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Entrevistas 15/12/2009 CULTURA Uma conversa sobre comunicação, cultura e educação com Leonel Kaz Alfredo Boneff e Ademir Veroneze Um vazio de conhecimento, um futuro preocupante com escolas pouco interessadas na disseminação de uma educação de qualidade e com políticas culturais imediatistas. Assim Leonel Kaz avalia o atual estágio educacional e da comunicação cultural no Brasil. Curador do Museu do Futebol, em São Paulo, sócio da editora Aprazível e professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o jornalista defende o uso das redes sociais na internet, desde que as superficialidades sejam postas de lado em prol do compartilhamento de conteúdos fundamentais. A entrevista de Leonel Kaz faz parte da 13ª edição da revista Comunicação 360º, que tem o perfil do novo comunicador como tema central. Confira a seguir os principais trechos da conversa. Meios de comunicação e a cultura no Brasil Eu acho que as editorias de cultura hoje em dia são reféns dos press releases. O que acho lamentável. A vida só faz sentido se é vivida e o e-mail, o telefone, o press release são formas de morte, não de vida, são formas de banalização das coisas, como o Ferreira Goulart diz. Eu acho que contato pessoal é uma coisa muito significativa. Os meios de comunicação de massa são reféns do press release e reféns de uma série de itens imediatos. Por exemplo, no campo da arte, o que é uma crítica de arte para mim? Tudo é arte, o mobiliário também é arte, a nova linha de carros lançados pelas montadoras é arte, o cenário de uma peça teatral é arte, a arquitetura nova que está sendo lançada nos condomínios da Barra é arte. Tudo é uma forma de estética. No entanto, as editorias dos jornais e das revistas só se dedicam à arte de vanguarda, segundo os interesses das galerias e de alguns artistas. O que eu acho completo absurdo. Isso é uma desinformação.

Uma conversa sobre comunicação, cultura e educação

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Entrevistas

15/12/2009

CULTURA

Uma conversa sobre comunicação, cultura e educação com Leonel Kaz

Alfredo Boneff e Ademir Veroneze

Um vazio de conhecimento, um futuro preocupante com escolas pouco interessadas na disseminação de uma educação de qualidade e com políticas culturais imediatistas. Assim Leonel Kaz avalia o atual estágio educacional e da comunicação cultural no Brasil. Curador do Museu do Futebol, em São Paulo, sócio da editora Aprazível e professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o jornalista defende o uso das redes sociais na internet, desde que as superficialidades sejam postas de lado em prol do compartilhamento de conteúdos fundamentais. A entrevista de Leonel Kaz faz parte da 13ª edição da revista Comunicação 360º, que tem o perfil do novo comunicador como tema central. Confira a seguir os principais trechos da conversa.

Meios de comunicação e a cultura no Brasil

Eu acho que as editorias de cultura hoje em dia são reféns dos press releases.

O que acho lamentável. A vida só faz sentido se é vivida e o e-mail, o telefone, o

press release são formas de morte, não de vida, são formas de banalização das

coisas, como o Ferreira Goulart diz. Eu acho que contato pessoal é uma coisa

muito significativa.

Os meios de comunicação de massa são reféns do press release e reféns de

uma série de itens imediatos. Por exemplo, no campo da arte, o que é uma

crítica de arte para mim? Tudo é arte, o mobiliário também é arte, a nova linha

de carros lançados pelas montadoras é arte, o cenário de uma peça teatral é

arte, a arquitetura nova que está sendo lançada nos condomínios da Barra é

arte. Tudo é uma forma de estética. No entanto, as editorias dos jornais e das

revistas só se dedicam à arte de vanguarda, segundo os interesses das galerias

e de alguns artistas. O que eu acho completo absurdo. Isso é uma

desinformação.

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Cadê o resto todo da arte? Onde ela está sendo avaliada? Onde ela está sendo

julgada? Será que artista é só aquele que a galeria diz que é e por causa disso

ele vai criar um marketing específico para ele e a partir daí transformar essa

realidade?

As escolas de jornalismo e a educação no País

As escolas de jornalismo no Brasil são precárias. Eu dou aula numa delas. São

precárias porque as pessoas não têm interesse em se aprofundar. Vivemos no

passado uma época em que existia a verticalização do conhecimento. O cara

tinha que saber muito sobre uma coisa só. Hoje em dia você tem à disposição

tudo sobre o aprofundamento daquele conhecimento. É evidente que para o

pesquisador e o cientista isso é fundamental. Mas para as outras ciências

humanas não. O sujeito tem de ter um conhecimento vário. Na Universidade de

Cornell, nos Estados Unidos, o primeiro ano de Economia e Administração é

passado no campus avançado da cidade italiana de Florença, onde os alunos

aprendem Arte e Arquitetura do Renascimento.

As escolas brasileiras são verdadeiras mordaças, são penitenciárias de crianças

para aprender História, Português, Matemática e Geografia através de leis

formais. De vez em quando toca numa bandinha ou faz um desenho. Como se

isso fosse arte, como se isso fosse música. Quer dizer, nós estamos numa

escola completamente amordaçada e as pessoas saem daí para o resto da

mordaça cotidiana. A escola diz que ensina, o professor diz que ensina, o aluno

finge que aprende, todo mundo sai para esse desvario e fica hipnotizado pelo

cotidiano da televisão, fica-se repetindo fórmulas.

Se a Universidade de Cornell está mandando os alunos estudarem arte é porque

os americanos sabem muito bem que num futuro próximo as relações vão ser

mais horizontais. Outro amigo mandou o filho estudar Relações Internacionais

numa universidade americana. Lá, cada aluno passa o primeiro semestre num

país do mundo diferente e volta no segundo semestre para que todos eles

possam trocar relações entre si de cada experiência vivida individualmente. E o

sujeito aprende filosofia com arquitetura, aprende a ser florista com o

marceneiro. As relações são muito fluidas.

Museu do Futebol

No início, nós fomos muito criticados porque o museu não tinha relíquias, não

tinha peças históricas, não tinha objetos. Para que ter? No mundo da internet, no

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mundo da comunicação, no mundo da vivência, o que é importante é a

ludicidade interativa, a riqueza da exploração dos talentos individuais que a

gente não faz. Na verdade, é uma experiência que se pretende mais atual, mais

contemporânea e sem uma olhar curatorial de baixo para cima. As pessoas vão

lá e se divertem, saem de lá felizes, dizem que aquilo é um acontecimento, tanto

é que por visitação espontânea já é o museu mais visitado do Brasil em um ano.

Há até alguns estandes com a evolução da bola, evolução da chuteira, etc..

Mas, o que importa é você reviver coisas que foram vividas. Não adianta mostrar

o passado frio, mostrar uma série de troféus, como se fosse um cemitério de

troféus. É uma coisa dramática isso. Nós fomos aos museus de outros clubes.

Lá, mostravam os grandes gols, sem a força da narrativa oral. E sem a força da

tradição oral, sem a força da palavra, nada se constrói.

Um reitor da Universidade Lusófona de Lisboa foi ao museu e disse que ele é o

museu da palavra, porque as 1.700 imagens e as sete horas de vídeo permitem

um tal burburinho, uma tal algazarra de palavras dentro de cada um, uma tal

troca de palavras entre as diversas gerações. É o museu para os fanáticos por

futebol e para os não fanáticos.

A arte e a cultura no Brasil

Eu estive, no início de novembro, em São Paulo, em um encontro para formular

o Plano Nacional de Cultura. Era um auditório de três mil pessoas e tinha uns 40

gatos pingados. Trinta deles falaram 30 coisas diferentes. O Brasil não formou

laços comunitários. Todas as decisões aqui, como Sérgio Buarque de Hollanda

fala, as decisões políticas, as grandes decisões são feitas ao sabor das paixões

momentâneas. A gente vê pelo atual governo que tudo é feito segundo as

paixões do momento. Não há um plano a longo prazo. O Brasil não está

investindo na inteligência. O Brasil investe em portos, em pré-sal. Qual é, por

exemplo, o programa da inteligência brasileira? Qual o programa daqui a 20

anos para o aprimoramento da escola de qualidade? Qual o programa de

formação de plateias? Qual o programa de desenvolvimento do olhar, da

audição, da visão, da percepção? Por que o Ministério da Cultura não se

transforma, como nos tempos de Getúlio, numa estrutura toda a serviço de uma

educação pública de qualidade?

Nenhum país se constrói sem bases sólidas. Não apenas voltadas para si

mesmas, para a sua própria história, como para a história universal que nos

constitui. Se nós não lemos, se nós não percebemos verdadeiramente uma obra

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de arte, se nós não ouvimos as músicas que foram criadas, nada disso faz

sentido.

Eu vejo um retrocesso nítido na questão cultural no Brasil porque a cultura só se

constrói com base na qualidade e na solidez. Está tendo uma substituição dos

grandes valores permanentes do país por valores ainda discutíveis ou em

ebulição. Por chamados valores culturais intangíveis.

As políticas do Ministério da Cultura

O Ministério da Cultura está muito preocupado com políticas locais e deveria

trabalhar fundamentalmente em prol da educação pública de qualidade. Eu

acredito que a educação pública de qualidade forma leva à formação e

transformação de valores culturais sólidos. Acredito que devam ser valorizados

pequenos rincões, pequenas manifestações populares, mas não pode ser

abandonada a grande qualidade intrínseca do passado. Por que as crianças de

escolas públicas do Rio de Janeiro não frequentam os nossos grandes

museus? Quantos alunos de escolas você vê no Palácio da Cultura, no Rio de

Janeiro, admirando a obra do Niemeyer, os jardins do Burle Marx, os painéis de

Portinari? Estão ali à disposição das pessoas. Por que as escolas, como em

todos os países do mundo, não vão aproveitar essa riqueza que está nas ruas e

que está no nosso patrimônio? Isso seria até um fator de segurança pública. Eu

acho que há esforços louváveis que estão sendo feitos, agora mesmo num

esforço sobre-humano, a Secretaria de Educação de São Paulo está começando

a premiar os professores pela meritocracia e não por tempo de trabalho, que

iguala por baixo.

Os valores da sociedade

Tudo aqui fica a reboque de determinado valores da sociedade. Como se os

grandes valores da sociedade fossem os apresentadores da televisão. Fui à

casa de um artista na Baixada Fluminense. Na Baixada, só se vê os quatro

grandes apresentadores de televisão vendendo tudo, de detergente a pasta de

dente. Eu fico muito impressionado com isso, como se o grande valor fosse um

apresentador de televisão. Isso é uma tradição nossa. Nós não valorizamos

nenhuma profissão manual. O serralheiro não é valorizado, o marceneiro não é

valorizado, nada aqui é valorizado. É valorizado o anel de doutor. Mas o grande

drama no Brasil é que parece que é fundado todo dia de novo pela manhã. E

você tem que nascer de novo, tudo novo, tudo legal, tudo descolado.

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As redes sociais na internet

Essas redes por um lado são fascinantes, embora eu não as utilize. Eu utilizo e-

mail, acesso a internet, vejo coisas, mas enfim, particularmente não entrei no

Twitter, nem no Facebook, mas não tenho nada contra. Não tenho nada contra

nada. Agora, essas redes são muito boas como propagação de ideias, como

'momentanização'. O termo é um neologismo que estou usando. Mas tudo isso é

bom desde que não exista uma passividade. Eu acho que se isso funcionar

como uma espécie de coisa supérflua, superficial, como fosse uma coisa

passiva, como é a televisão, se não se faz um aprofundamento, também tudo

fica boiando na superfície. Twitter é muito bom, mas no Twitter você lida com

meia dúzia de palavras. Sempre. Eu não sei se nós vamos nos transformar em

grandes criadores de haikai. A humanidade toda, fazendo coisas mínimas e

criando provérbios, uma frase. Pode ser que leve a isso, quem sabe? Eu acho

que isso é muito gostoso, é bom e tal, mas sem mergulho no conhecimento não

se vai a lugar nenhum.

Quantas pessoas que estão usando o Twitter leram ‘Os Irmãos Karamazov’? Ler

os ‘Irmãos Karamazov’ é uma experiência transformadora de vida. Para

encontrar uma pessoa que tenha, mesmo dentro do universo dos

comunicadores, uma formação mais densa é uma coisa muito rara. Quantos dos

meus alunos na PUC liam sequer Machado de Assis? Muito poucos. Para ler

‘Raízes do Brasil’ e ‘Casa Grande e Senzala’ foi um esforço quase sobre-

humano. Então, eu acho que está tudo bem, acho ótimo todas as vanguardas,

tudo que existir. Mas acho que nenhum processo substitui o outro.

A cultura da destruição

A história, por exemplo, do Rio de Janeiro sempre foi uma história de destruição.

O Rio de Janeiro construiu a Avenida Central. Construíram 130 prédios e hoje

sobram seis de um século atrás. Logo depois, se destruiu o Morro do Castelo.

Encontraram um sanitarista qualquer para dar uma opinião que o morro não

permitia a circulação livre dos ventos e por isso é que as pessoas ficavam

tuberculosas. Botou-se tudo abaixo em prol dos interesses imobiliários. Criou-se

o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, em 1937, e logo depois se destruiu

sete igrejas notáveis, entre as quais dizem a mais bela do Brasil, que era de São

Pedro, para construir aquela medonha na Presidente Vargas.

O que existe aqui é um permanente fluxo de destruição do passado, como se o

passado não tivesse nenhum significado, nenhuma importância. Se você não

constrói algo que preserve o passado e a partir do passado constrói bases

futuras, não vai a lugar nenhum.

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Os valores culturais

Quando você fala em transporte público e um ônibus para no meio da rua e não

no meio fio para uma pessoa entrar, isso é cultura. Quando você fala que as

praças são consideradas lugares de 'mendigos' e um valhacouto de marginais,

isso é um valor cultural. Por quê? Porque praça é um bem público, a rua é um

bem público, mas no Brasil, bem público é tido como pertencente a quem é mais

malandro, quem passa mais a perna, quem toma conta.

O grande drama é que tudo é cultura. A cultura não deve estar isolada num

Segundo Caderno, ou num Caderno B ou numa Folha Ilustrada. A cultura

permuta e permeia todas as relações humanas. Acho que está havendo um

segregacionismo jornalístico em relação à cultura, o que é uma pena.

Investir mais no passado e não investir nessa ideia do futuro,

desordenadamente. Outro dia ouvi o nosso presidente da República dizer que o

Brasil será a quarta economia do mundo. De que adianta ser a quarta economia

do mundo se nós somos o 62º país no mundo em índice de desenvolvimento

humano? Ou seja, em injustiça social e em desconhecimento cultural.

Escola do Olhar

É um projeto da Fundação Roberto Marinho com a Prefeitura do Rio e o apoio

do governo do Estado visando construir na área do Porto a pinacoteca Escola do

Olhar, que estamos chamando de Pina, por enquanto. É um nome afetivo. Ela, a

princípio, vai se constituir numa exposição permanente sobre o Rio de Janeiro,

contando a história, a saga da cidade. E vai ter um outro núcleo de exposições

permanentes da relação da arte brasileira com a arte do mundo, a ‘Exposições

diálogo’, como a gente está chamando.

Eu espero que funcione. Além disso, nós pretendemos que esses prédios façam

uma relação com o morro da Conceição, que está ali ao lado, e o morro da

Conceição tem 400 anos de história. Então a gente está brincando com o ‘lá

dentro’ e o ‘lá fora’, está brincando com o presente e com o passado.

A reinvenção do Brasil

O homem se reinventa a partir de sua cultura. O Brasil nunca teve um Prêmio

Nobel, nunca produzimos praticamente patente nenhuma nem inovações

tecnológicas. Ficamos a reboque, continuamos a ser um pouco de certa maneira

o que fomos no passado. Estamos vivendo essa festa das commodities

atualmente, de matérias-primas do campo e de minérios, enfim, mas estamos

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produzindo muito pouca inteligência. E isso me preocupa profundamente. Acho

que o Brasil se reinventou naturalmente em vários campos: no da música e do

futebol são duas grandes expressões artísticas em que fomos capazes de nos

reinventar e de uma maneira até um pouco natural, algo que está dentro de nós

mesmos. São campos em que criamos linguagens singulares. Mas é pena que o

Brasil não tenha criado linguagens singulares em tantos outros campos da vida.

Acho que o país hoje se reinventa quando se relaciona cada vez mais consigo

mesmo e com o mundo exterior.

Fonte: Site Nós da Comunicação

http://www.nosdacomunicacao.com/panorama_interna.asp?panorama=662&tipo=A