202
Mestrado em Psicologia Área de Especialização | Psicologia Clínica Dissertação Évora, 2018 A Culpa Escondida Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos institucionalizados Maria Filipa Martins de Almeida Orientadora - Prof.ª Doutora Isabel Maria Marques Mesquita ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

Mestrado em Psicologia

Área de Especialização | Psicologia Clínica

Dissertação

Évora, 2018

A Culpa Escondida

Uma leitura analítica da culpabilidade

em filhos de idosos institucionalizados

Maria Filipa Martins de Almeida

Orientadora - Prof.ª Doutora Isabel Maria Marques

Mesquita

ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Page 2: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Mestrado em Psicologia

Área de Especialização | Psicologia Clínica

Dissertação

Évora, 2018

A Culpa Escondida

Uma leitura analítica da culpabilidade

em filhos de idosos institucionalizados

Maria Filipa Martins de Almeida

Orientadora - Prof.ª Doutora Isabel Maria Marques

Mesquita

Page 3: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a
Page 4: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

Dissertação de Mestrado em Psicologia

realizada sob a orientação da Professora

Doutora Isabel Maria Marques Mesquita,

apresentada na Universidade de Évora,

Departamento de Psicologia,

para obtenção do grau de Mestre na

especialidade de Psicologia Clínica.

Page 5: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

ii

Dedicatória

In Memoriam

À minha mãe e à minha sogra,

duas mulheres da minha vida

que viveram institucionalizadas,

sem o terem decidido.

Page 6: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

iii

Agradecimentos

Esta dissertação constitui um desafio pessoal e um percurso feito com alguma

dor. Muitas memórias percorreram a escrita e a reflexão, ao longo do último ano.

Enquanto ouvia os entrevistados, ouvia, muitas vezes, a minha própria voz sussurrar-me

que eles também eram “eu”, que eu também me sentira assim, de uma ou de outra

forma. Por isso, o meu primeiro agradecimento vai para esses homens e mulheres, filhos

e filhas em que me revi, que, um dia, deixaram o seu pai/mãe num Lar de Idosos, e que

se disponibilizaram a partilhar os vários significados que essa decisão assumiu. A eles e

elas, que, com voz embargada, recordaram e reviveram emoções e sentimentos, o meu

primeiro “muito obrigada!”.

À minha orientadora, Prof.ª Doutora Isabel Mesquita, um agradecimento

especial, pela disponibilidade para refletir comigo e me ajudar a descortinar o menos

evidente, mas tão importante, que, por vezes, está escondido sob as palavras que

mascaram o verdadeiro sentir; pelo incentivo para aprofundar este tema e, a partir deste

trabalho, fazer nascer algo mais para ajudar estas famílias; pela profundidade com que

sempre acolheu as minhas dúvidas e dificuldades; por ser como é!

A alguns amigos, com quem partilhava dúvidas e reflexões e me ajudavam a

“ver melhor”, porque quando damos voz aos pensamentos, eles tornam-se mais

brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que

“aborreci” com as conversas sobre o trabalho. À Anabela e à minha irmã Isa, pela ajuda

nas transcrições das entrevistas. À Ana Paula, pela ajuda com o inglês. À Mónica,

sempre disponível, cuja inteligência crítica e perspicácia, me ajudavam a ver outros

lados do mesmo problema.

Ao meu marido que, com a sua “racionalidade”, me obrigava a pensar mais nos

mecanismos de defesa que todos usamos, sem disso nos apercebermos. Ao meu muito

querido filho adolescente, que me incentivava, quando me perguntava quando é que

acabava “de estudar”.

A todos os que não referi, e que foram importantes para a conclusão deste

trabalho. Mesmo àqueles que acham que estudar “é só para os novos”!

Muito obrigada a todos!

Page 7: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

iv

Page 8: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

v

A Culpa Escondida

Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos

institucionalizados

O presente estudo propõe-se analisar a existência da culpabilidade, em filhos, com pai

ou mãe institucionalizados, assim como o uso de mecanismos de defesa para gerir essa

culpabilidade. Para o efeito, foram selecionados 10 participantes (6 mulheres e 4

homens), com idades entre 50 e 70 anos. A análise das entrevistas semiestruturadas foi

realizada com recurso ao método fenomenológico, o que permitiu encontrar dez

constituintes essenciais: (1) Desresponsabilização da decisão de institucionalizar; (2)

Racionalização e generalização; (3) Idealização das instituições e desidealização da casa

familiar; (4) Sentimentos dos filhos; (5) Perceção, pelos filhos, dos sentimentos dos

pais; (6) Pagamento como alívio; (7) Institucionalização como último recurso; (8)

Visitas e contactos como alívio da culpabilidade; (9) Saídas temporárias da instituição

(10) O peso do passado no relacionamento com os pais. A generalidade dos filhos

revelou sentimentos de culpabilidade, devido à institucionalização dos pais, usando

vários mecanismos inconscientes, como defesas.

Palavras-chave: institucionalização; culpabilidade; filhos; idosos; mecanismos de defesa

Page 9: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

vi

Abstract

The Hidden Guilt

An analytical view of the guilt felt by adult children

of institutionalized elderly

The present study aims at analysing the existence of guilt in children, who have an

institutionalized father or mother, as well as the defence mechanisms used by them to

deal with this guilt. For this purpose, 10 participants were selected (6 women and 4

men), aged from 50 to 70 years. The analysis of the semi-structured interviews was

carried out using the phenomenological method, which allowed us to find ten essential

constituents.: (1) Non-responsibility for the decision of institutionalization; (2)

Rationalization and generalization; (3) Idealisation of the institutions and devaluation of

the family home; (4) Children’s feelings; (5) Children’s perceptions about their parents’

feelings; (6) Payment as a relief; (7) Institutionalization as last option; (8) Visits and

contacts as guilt relief; (9) Temporary departures from the institution (10) The weight of

the past in the relationship with parents. Most children revealed feelings of guilt, due to

the institutionalization of parents, using various unconscious mechanisms, such as

defences.

Keywords: institutionalization; guilt; children; elderly; defence mechanisms

Page 10: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

vii

Índice Geral

Dedicatória iii

Agradecimentos Iv

Resumo V

Abstract vi

Índice geral vii

Parte 1 Razões de uma escolha 1

1.1 Introdução 3

1.2 Contextualização 5

1.3.1 Envelhecer 5

1.3.2 Envelhecimento e família 7

1.3.3 Institucionalização – um mal necessário? 11

Parte 2 Enquadramento Teórico 13

2.1 A culpa 13

2.2 Culpa e religião 20

2.3 A culpabilidade sentida pelos filhos cuidadores dos pais 24

2.4 Conteúdo manifesto, conteúdo latente e mecanismos de

defesa

26

2.4.1 O manifesto e o latente 26

2.4.2 Mecanismos de defesa 27

2.4.3 Funcionamento e organização dos Mecanismos de Defesa 29

2.4.4 Mecanismos de defesa da culpa 31

Parte 3 Estudo Empírico

3.1 Pertinência do Estudo 32

3.2 Metodologia

3.2.1 Formulação do problema de investigação 32

Page 11: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

viii

3.2.2 Objetivos 32

3.2.3 Desenho da investigação 33

3.2.4 Participantes 33

3.2.5 Instrumentos 34

3.2.6 Procedimentos éticos e deontológicos 35

3.2.7 Procedimento de recolha de dados 35

3.2.8 Procedimentos de análise dos dados 36

3.3 Apresentação de resultados 38

3.3.1 Constituintes essenciais e estrutura geral 38

3.3.2 Análise dos constituintes essenciais 41

3.4 Diálogo com a literatura 67

3.5 Conclusão 73

3.5 Limitações do Estudo e Implicações Práticas 74

Referências 76

Índice de Figuras

Figura 1 38

Figura 2 41

Anexos 88

Page 12: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

ix

Mea Culpa

Não duvido que o mundo no seu eixo

Gire suspenso e volva em harmonia;

Que o homem suba e vá da noite ao dia,

E o homem vá subindo, insecto, o seixo.

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,

Nem chamo ao céu da vida noite fria;

Não chamo à existencia hora sombria;

Acaso, à ordem; nem à lei desleixo.

A Natureza é minha mãe ainda...

É minha mãe... Ah, se eu à face linda

Não sei sorrir: se estou desesperado;

Se nada há que me aqueça esta frieza;

Se estou cheio de fel e de tristeza...

É de crer que só eu seja o culpado!

Antero de Quental, in "Sonetos"

Page 13: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

x

Page 14: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

1

Razões de uma escolha

Todos nascemos, crescemos e, se a vida for longa, envelhecemos antes de

morrer. É certamente o envelhecimento a etapa mais temida pelo próprio e por aqueles

que o rodeiam, devido às perdas de todos os tipos sentidas nessa fase do ciclo vital.

Frequentemente, os idosos acabam os seus dias em Lares, institucionalizados, seja por

decisão própria ou (e mais frequentemente) por submissão à vontade dos filhos, que

consideram não ter condições para cuidar dos pais e que não os querem sozinhos em

casa, quando aqueles deixam de ter condições para cuidar de si próprios. No entanto, é

frequente que estes filhos exprimam, explícita ou implicitamente, um sentimento de

mal-estar, uma certa culpabilidade, por não manterem os seus pais idosos no ambiente

familiar onde antes viviam.

Foram estas contradições que, a partir da experiência própria e do conhecimento

de muitos outros casos, despertaram, em nós, a vontade de aprofundar a existência dessa

culpabilidade (consciente ou não), e de que forma os filhos a conseguem gerir. Por um

lado, eles querem que os seus pais/mães sejam bem cuidados e vigiados, para evitar os

problemas do isolamento e da solidão, mas, por outro, a decisão de institucionalizar o

pai ou a mãe (ou ambos) não produz nenhum sentimento de felicidade ou bem-estar,

despertando, antes, angústias e tristeza. O que se passa, então? Como viver o

envelhecimento dos nossos e a sua crescente dependência? Como conciliar os “deveres

filiais” com o aumento da esperança de vida e com a necessidade de trabalhar, mais e

mais anos? Como vemos e nos relacionamos com os nossos pais institucionalizados e

como preservamos a nossa vida familiar e profissional? E como nos sentimos, e porquê,

nessa nova situação de visitantes?

Foram muitas as questões surgidas aquando da escolha do tema. Não

pretendemos dar resposta a todas, mas tão somente analisar a culpabilidade que

pensamos acompanhar, muitas vezes, estes processos familiares.

Da literatura consultada, encontrámos poucos estudos específicos sobre esta

matéria, e nenhum feito em Portugal Muitos há sobre o bem-estar, a satisfação com a

vida dos idosos institucionalizados, todos na perspetiva do idoso, mas não sobre o que

sentem os filhos que, frequentemente, são responsáveis por essa institucionalização.

Page 15: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

2

Essa ausência de estudos motivou-nos a investigar um pouco. Esperemos,

humildemente, poder contribuir para uma melhor compreensão do problema.

Page 16: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

3

Introdução

“É um mal necessário, para eles e para nós, que temos de decidir e temos de lá os

deixar, porque, para mim, aquilo é mesmo o ponto de passagem para o outro lado.

Quando eles vão, já não voltam mais, e isso é muito difícil pensar que os vamos deixar

ali e que já não regressam a casa. Aquilo ali é mesmo o ponto de passagem para o

outro lado, não há volta a dar, todos os que vão já não voltam.”

F10 1

A experiência vivida de decidir, ou participar na decisão, de institucionalizar o

pai ou a mãe, é vivida por filhos de meia idade, de formas diversas, mas, cremos nós,

sempre carregadas de uma culpabilidade, mais ou menos, consciente, traduzida em

atitudes e comportamentos, e expressa através de diversos mecanismos de defesa.

Ser/sentir-se culpado de uma decisão referente aos pais, coloca os filhos numa

posição de fragilidade emocional e altera os relacionamentos familiares, já que ninguém

está preparado para ser “pai/mãe dos seus pais” e a inversão de papéis é muito difícil de

aceitar por uns e por outros. Pelos pais, porque sempre decidiram e, pelos filhos, que

passam a decidir.

Apesar da escassez de estudos sobre esta matéria, encontrámos, na literatura,

fundamentos para acreditar que os filhos adultos passam por experiências emocionais

negativas, e que, apesar de já, antes, serem cuidadores dos pais, a institucionalização

mobiliza sentimentos de “pesar”, que estes filhos carregam e que não diminuem com a

frequência de visitas aos pais. Para aliviar essa culpabilidade, os filhos adultos servem-

se de mecanismos de defesa, mais ou menos adaptativos, de acordo com o estilo

defensivo de cada pessoa.

O presente estudo, feito a partir do relato verbal de um conjunto de dez

entrevistados, pretende observar, no discurso, a existência da culpabilidade filial,

relacionada com a institucionalização dos idosos, e quais os mecanismos de defesa mais

usados para lidar com essa culpabilidade. Essa análise é de tipo qualitativo, utilizando o

método fenomenológico, que permite estudar profundamente

1 Filho 10 (10ª entrevistado)

Page 17: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

3

a experiência vivida por cada um/a, desde os antecedentes que conduziram à

institucionalização do pai/mãe, até às visitas (aos) e saídas temporárias (dos) idosos, que

passaram a viver institucionalizados, sem terem, livremente, tomado essa decisão.

No estudo, não esquecemos que cada fenómeno (e este também) se insere num

tempo e numa sociedade, com características específicas, em que a estrutura familiar é

dinâmica e que os cuidadores familiares (tradicionalmente mulheres) ocupam, hoje,

outras funções, na família, na sociedade e no mundo do trabalho, que colidem com a sua

função de cuidadores.

O trabalho aqui apresentado está dividido em três partes: uma primeira, em que

se contextualiza o fenómeno do envelhecimento e a institucionalização; uma segunda

parte, em que é fundamentada, teoricamente, a culpabilidade, assim como os

mecanismos de defesa, e uma terceira parte, dedicada ao estudo realizado e aos seus

resultados.

Page 18: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

4

Parte I - Contextualização

Envelhecer

A importância dos estudos sobre o envelhecimento tem vindo a crescer ao longo

das últimas décadas, pelo aumento da esperança média de vida, que tem levado a um

crescimento significativo de pessoas idosas, na população, em geral. Atualmente,

verifica-se a existência de um número progressivamente superior de pessoas muito

idosas, situadas por alguns autores na denominada quarta idade, ou seja, pessoas com

idades superiores a 80 anos (Oliveira, Freire & Giaretta, 1999).

O envelhecimento demográfico em Portugal, entre 1960 e 2001, caracterizou-se

por um decréscimo de 36% na população jovem (0-14 anos) e um aumento de 140% da

população com 65 ou mais anos de idade. Dentro deste mesmo grupo, acentua-se o

envelhecimento das pessoas com idade igual ou superior a 75 anos que, em 1960, era de

2,7% e passou, em 2001, para 6,7% do total da população. A população com idade igual

ou superior a 85 anos aumentou de 0,4% para 1,5% entre 1960 e 2001. Os indivíduos

com 100 anos eram cerca de um milhar, com maior longevidade nas mulheres. “Assiste-

se assim, ao fenómeno do envelhecimento da própria população idosa” (INE, 2002:

11). A esperança média de vida aumentou, no mesmo período, cerca de 11 anos para os

homens e cerca de 13 para as mulheres. A par do aumento da população idosa, em

Portugal, tem-se verificado uma diminuição da população mais jovem, nas últimas

décadas, chegando aquela a representar, em 2006, 17,3% da população total, e a

população jovem, apenas 15,5% (INE, 2007).

O crescente aumento do número de idosos faz crescer a preocupação com a sua

inserção na sociedade. Assim, é necessária uma especial atenção aos apoios que

favoreçam a sua qualidade de vida e bem-estar. Moura (2012) refere que o

envelhecimento “…é hoje uma manifesta questão demográfica, que representa um

papel significativo na preparação para o desafio sobre a presente organização da

sociedade, em que a estrutura etária da população constitui um dos aspetos que torna a

abordagem do envelhecimento demográfico uma prioridade” (p.27). Pinto (2009) refere

que, na Europa, “se estima um ritmo de crescimento quatro vezes maior no número de

Page 19: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

5

idosos, em relação ao número de jovens” (p.156). De acordo com Rosa (2012), em

Portugal, a população deverá continuar a envelhecer, de forma crescente. Estima-se que,

em 2060, mesmo que os níveis de fecundidade não aumentem muito e os saldos

migratórios continuem a ser positivos, a população poderá continuar próxima dos dez

milhões de pessoas, porém, será bem mais envelhecida do que atualmente.

O aumento do número de idosos significa que uma parte crescente da população

deixa de ter um papel ativo no mundo do trabalho e beneficiará de uma reforma. A

reforma tem, com efeito, uma dupla significação, que representa o afastamento do

circuito de produção e a possibilidade de direito a um repouso remunerado. A primeira

significação associa-se ao efeito do afastamento do trabalho, porque provoca

sentimentos de inutilidade e vazio, decorrentes da diminuição dos contactos sociais

estabelecidos ao longo de uma vida profissional, acrescidos de uma baixa autoestima e

de um empobrecimento pela diminuição de rendimentos. A segunda significação

associa-se a aspetos positivos da situação de reforma (Assis, 2002): os indivíduos idosos

passam a ter mais tempo livre, o que, idealmente, favorece a experiência de novas

competências, no sentido de redefinir a sua nova posição no sistema social, (Santos,

1992) capaz de contribuir para uma satisfação e realização pessoais.

A sociedade vive sob a égide da efemeridade, na qual, o indivíduo, para se

manter, tem que ser produtivo e jovem, uma vez que a mais-valia e a meritocracia são as

ideologias vigentes (Farber, 2012). O individualismo requer, dos cidadãos,

independência e agilidade de adaptação às mudanças, que rapidamente ocorrem. E os

avanços tecnológicos não são dominados por todos os que são da geração anterior à

atual. Enquanto a sociedade valoriza a informação, os idosos condoem-se com a perda

da memória e do senso de continuidade histórica reinante (Farber 2012). Segundo

Fraiman (1991), a velhice diferencia-se de outras faixas etárias, principalmente se

considerarmos: as inúmeras perdas sofridas, seja por morte de pessoas próximas ou

afastamento no decorrer da vida; as novas constituições familiares, decorrentes de

falecimento dos pais ou do cônjuge ; o casamento dos filhos; problemas devidos à saída

do mercado de trabalho; perdas orgânicas, e o aparecimento de doenças, além da

ameaça/ proximidade da morte, sem esquecer a falta de papéis sociais favoráveis. Para

Nazaré e Moraes (2009), a dimensão psicológica faz parte do processo de

envelhecimento, e é influenciada por vários fatores, relacionados com a perceção, pelo

indivíduo, do seu envelhecer.

Page 20: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

6

É indiscutível que os idosos vivenciam várias perdas, sejam físicas ou afetivas,

com maior frequência do que noutras idades. O medo do desconhecido, a angústia, a

desvinculação de um tempo, antes preenchido, a ameaça de morte mais próxima,

certamente potenciam um estado de maior insegurança. Mesmo que falemos de uma

abordagem social, jamais poderemos desvincular-nos do individual, que se processa no

envelhecimento (Fraiman, 1991).

Apesar de muitos idosos encontrarem e prosseguirem atividades que preenchem

o seu tempo e a necessidade de se sentirem úteis, e outros têm que continuar a sustentar

(com os seus rendimentos) filhos e netos, para muitos, a reforma coincide com o

aparecimento de doenças, ou agrava as já existentes, e o sonhado “tempo dourado” é

mais negro do que alguma vez se imaginara. E são estes últimos, os primeiros a

necessitar de cuidados de terceiros, e de decisões quanto à natureza e proveniência

desses cuidados, de acordo com a estrutura familiar e a rede de apoio social existentes.

Envelhecimento e família

É feio ver os idosos descartados, é coisa feia, é pecado. A Igreja não quer nem pode

conformar-se com uma mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença e de

desprezo, em relação à velhice. Temos de despertar o sentimento coletivo de gratidão,

de apreço e hospitalidade, que façam sentir ao idoso que este é parte ativa da

comunidade.

Papa Francisco

Audiência Geral, Praça de S. Pedro, Vaticano, 4/3/2015

O envelhecimento é um processo complexo de mudanças biológicas,

psicológicas e sociais, que se iniciam no momento do nascimento e se prolongam ao

longo da vida. Ao nível biológico, o envelhecimento é associado ao acumular de uma

grande variedade de danos moleculares e celulares. Com o tempo, esse dano leva a uma

perda gradual nas reservas fisiológicas, um aumento do risco de contrair diversas

doenças e um declínio geral na capacidade intrínseca do indivíduo (World Health

Organization, 2015). Pode ser entendido como um processo dinâmico, progressivo, com

alterações morfológicas, funcionais e bioquímicas, que mudam, de forma progressiva, o

organismo, tornando-o mais suscetível às agressões internas e externas. Surgem, então,

Page 21: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

7

a lentidão dos movimentos, incapacidade para realizar atividades voluntárias, assim

como alterações funcionais, associadas à prevalência de doenças crónicas, conducentes

à diminuição das habilidades e da independência (Netto, 2006). Outros autores, como

Garcia (1987), referem-se à velhice como uma etapa de perdas do antigo referencial de

vida, de elementos da realidade de si mesmo. No contexto social, tem-se associado o

envelhecer a uma representação, atribuindo-se ao idoso, à velhice, ao processo de

envelhecimento e ao cuidado, valores diferentes, predominantemente negativos. Perlado

(1995) diz que o ato de envelhecer implica mudanças constantes, em que o saber lidar

com as perdas, e procurar novas aquisições, durante o processo de envelhecimento,

traria a possibilidade de o tornar saudável. E aí, o meio familiar do idoso desempenha

um papel fundamental.

A família, cuja constituição e conservação exigiram altos esforços morais e

mentais, ao longo de todas as épocas, é uma instituição humana com uma história, uma

experiência prolongada e diversificada, que está em constante mudança, porque inserida

numa sociedade, também ela, em permanente e acelerada alteração. A transformação da

instituição “família” foi acontecendo sempre, tendo passado por formas diversas, até às

atuais (Canevacci, 1984), que não pararão de se modificar. E, em cada momento, a

família lidará, à sua maneira, com a velhice e o envelhecimento. Hoje não é igual a

ontem e será diferente do amanhã.

A estrutura familiar alterou-se com a passagem do predomínio das famílias

múltiplas e extensas para as famílias tendencialmente formadas por um só núcleo, o dos

pais e dos filhos, e de famílias recompostas, de famílias não convencionais, como as

mulheres com filhos ou pessoas do mesmo sexo com filhos, ou pessoas a viverem sós

(Carvalho, 2009). Em pouco anos, a organização familiar reconfigurou-se, devido às

transformações relacionadas com o aumento da taxa de participação das mulheres no

mercado de trabalho, a fragmentação dos agregados familiares, com as alterações nos

processos de trabalho centrados na tecnologia, e com a globalização crescente,

associada tanto a potencialidades, como a riscos. Estas mudanças poderão reduzir o

papel das famílias na provisão de serviços para os mais idosos. Em Portugal, como em

muitos países do Mediterrâneo, os familiares (mulheres, pais, maridos, etc.) formam o

grosso dos cuidadores das pessoas idosas com dificuldades nas atividades da vida diária

(Comas-Herrera, Wittenberg & Pickard, 2003), com predomínio das mulheres nestes

cuidados. Mas, se figura da mulher doméstica, por opção, passou a ser uma raridade,

Page 22: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

8

como conciliar o seu papel de cuidadora com o de mulher trabalhadora, que não

prescinde desse estatuto?

São necessárias inovações nas respostas sociais, para atender às necessidades em

serviços de saúde e apoio social, numa sociedade em rápida mudança. O que não muda,

tão facilmente, são as leis sociais, os deveres filiais internalizados, em confronto com

novas formas de pensar.

A velhice e o envelhecimento, numa visão global, evidenciam a falta de suporte

familiar no cuidado ao idoso dependente. Diante da precariedade das condições de

saúde, ressalta a fragilidade do idoso e as dificuldades em lidar com as suas alterações

funcionais e comportamentais (Telles e Petrilli, 2002). Na sociedade pré-moderna, o

sistema básico de “seguro social” implícito consistia em os filhos adultos cuidarem dos

seus pais idosos, constituindo-se, assim, um sistema de interajuda inter geracional. A

transição duma economia rural para uma economia (pós)industrial, caracterizada pela

urbanização, pela nuclearização da família, pela mobilidade geográfica e pela erosão

das tradicionais normas de obrigação familiar e reciprocidade, quebrou esta instituição

ancestral, chegando-se à situação de muitos filhos não terem tempo ou disponibilidade

para cuidar dos seus pais dependentes.

Se a velhice traz consigo várias patologias e um decréscimo das competências de

adaptação (Baltes & Smith, 1997), por outro lado, verifica-se que o suporte familiar é

cada vez mais reduzido, por razões histórico-sociais já apontadas. Para outros autores,

como Slepoj (2000), a família “baseia-se, hoje, mais na satisfação de desejos do que na

assistência recíproca” (p.89). O envelhecimento da população e consequente aumento

de pessoas idosas dependentes, o menor número de filhos, a focalização dos indivíduos

no sucesso profissional, levaram à desresponsabilização do papel da família como

cuidadora primária, passando o “dever” de os filhos prestarem assistência aos seus pais,

para um novo grupo profissional, o do cuidador formal (Casado & López, cit. por

Martinéz, 2005).

No entanto, a família continua a ter um papel de extrema importância, pois, se

não lidar bem com o envelhecimento, este poderá tornar-se um fardo, algo inesperado

ou difícil de suportar. E a consequência pode ser o distanciamento dos seus membros,

por não conseguirem suportar as modificações do envelhecimento que dizem respeito ao

declínio da memória, da perceção, atenção, capacidade de conhecer e reconhecer os

seus familiares. Em termos psicológicos, os familiares de idosos dependentes

Page 23: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

9

experimentam um antagonismo de sentimentos, vivendo uma relação em que o amor e a

raiva podem coexistir, já que o cuidado ininterrupto de uma pessoa idosa pode levar o

cuidador à sobrecarga (Caldas, 2003).

Por outro lado, o envelhecimento de um membro da família remete para o

envelhecimento dos próprios filhos. No momento em que o indivíduo percebe a velhice

do outro, fantasia a sua própria velhice, reconhecendo que a vida é finita. Não saber

lidar com esta fase desenvolvimental, no outro, poderá significar o medo da sua própria

velhice. Assim, constata-se que experiências negativas de envelhecimento, na família e

na sociedade, podem gerar conflitos familiares e perturbações psicoafectivas, assim

como a perpetuação de mitos e estereótipos do envelhecimento, como um processo

patológico.

Também se pode associar o afastamento do familiar, na fase da

institucionalização, com situações relacionais. De acordo com Netto (2006), alguns

familiares, por vezes, negligenciam o contacto com o idoso e não assumem

compromissos, por não possuírem uma relação afetiva e um sentido de responsabilidade

para com ele, evidenciando uma relação comprometida por problemas de ordem

emocional que não foram solucionados. Num estudo feito com familiares de idosos

sobre a análise da representação social da relação entre o cuidador familiar e o idoso,

Mazza e Lefrève (2005), foi investigado o quotidiano dos familiares de idosos com

incapacidade funcional, concluindo que a família possui uma ambiguidade de

sentimentos, que vão desde um dever a uma obrigação. Acontece, frequentemente, a

inversão de papéis na relação mãe/pai e filho/filha, provocando desgaste e sobrecarga

no cuidador. Quando os filhos começam a cuidar dos pais doentes, não contam mais

com a figura sólida que estes representavam. E, então, pode surgir a raiva,

provavelmente para proteger o filho, ao defrontar-se com a fragilidade dos pais, já que

pode ser doloroso e triste perder a condição de ser cuidado e protegido para ocupar o

lugar de quem protege (Eizirik et al., 1993).

Com o tempo, a tarefa mais importante da família é estabelecer um equilíbrio

entre a continuidade da assistência e a consideração das necessidades de cada um dos

seus membros. Para os filhos, esta situação é desconcertante, pois, em alguns casos, a

institucionalização dos pais, em lares, mobiliza sentimentos de resistência, tanto da

parte do idoso como de alguns familiares. A forma como estas situações de crise são

elaboradas por esses filhos de 50, 60 anos ou mais, provavelmente vai interferir nas suas

Page 24: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

10

relações futuras com os seus filhos e netos (Krassoievitch, 1988). Neste contexto podem

surgir sentimentos de culpa, quando os membros da família acreditam que não lidaram

adequadamente com a situação (Stuart- Hamilton, 2002), ou quando os filhos percebem

que os seus pais estão envelhecendo e que começam a ficar dependentes deles (Eizirik

et al., 1993; Krassoievitch, 1988), sentindo a dificuldade em assumir o papel de

cuidadores.

A reação às perdas na velhice, de maneira ideal, deveria ser vivenciada pelos

familiares, de forma a elaborar e construir novas forças adaptativas, com o objetivo de

manter o bem-estar e a qualidade de vida, na rede familiar, nesta etapa do ciclo vital.

Perlado (1995) destaca o papel duplo da família perante o idoso; por um lado, é a fonte

de apoio emocional no que diz respeito ao afeto, segurança e equilíbrio, por outro é a

fonte de apoio económico para alimentação e outros cuidados na doença, ou seja, um

apoio emocional e outro prático, estrutural. Enfatiza ainda que o apoio afetivo e

emocional seria produtor de sentimentos de confiança, aceitação e dignidade, sendo um

fator importante para o estado de saúde dos mais velhos. Mas nem sempre as mudanças

são assim. Celich e Batistella (2007), ao pesquisarem as vivências e sentimentos da

família ao cuidar do idoso com demência, notaram o impacto sobre a família, ajustes na

sua dinâmica de funcionamento, sobrecarga física e emocional. Portanto, muitas vezes,

o familiar pode não estar preparado para lidar com as múltiplas dimensões do cuidado

ao idoso dependente. E, nesse contexto, a institucionalização pode ser uma (a única)

alternativa possível.

A institucionalização do idoso é, frequentemente, acompanhada por sentimentos

de culpa, por parte dos familiares, que, racionalmente, consideram ter tomado a melhor

decisão, mas, emocionalmente, não a aceitam. E essa culpabilidade não compreendida

passa a invadir o relacionamento inter-geracional. É comum os próprios idosos não

entenderem a institucionalização, já que, no passado, eles cuidaram dos seus idosos e,

agora, não têm quem cuide de si. É como se o “investimento” feito nos filhos fosse um”

seguro de vida” fraudulento! E esta “cobrança” dos pais contribui também para o

desenvolvimento da culpabilidade nos filhos.

Page 25: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

11

Institucionalização---um mal necessário?

A institucionalização, cada vez mais presente na vida familiar, é um tema de

grande interesse, desde há algumas décadas, devido à necessidade de se conhecerem os

fatores a ela associados, o seu impacto na vida das pessoas idosas, assim como a

necessidade de se fomentar o conhecimento de práticas que promovam o bem-estar

destas pessoas. Embora seja, geralmente, rejeitada e temida pela maioria das pessoas

mais velhas, existem famílias que, por motivos financeiros ou emocionais, não têm

capacidade de cuidar dos seus familiares dependentes; assim, embora possa ser

considerada negativa, a verdade é que a institucionalização pode promover uma maior

sensação de segurança (Pimentel, 2001), principalmente se resultar de perdas na

autonomia, causadas por patologias físicas, perda de cônjuge, carências de apoio social,

isolamento ou vivências habitacionais negativas.

Existe, hoje, uma diversidade de respostas propiciadoras de cuidados aos mais

velhos. Estas respostas sociais são desenvolvidas por Instituições Privadas Com Fins

Lucrativos ou por Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) ou

equiparadas, como Santas Casas da Misericórdia, Centros Sociais e Paroquiais,

Cooperativas, Associações de Reformados, entre outras.

Em Portugal, a institucionalização é feita, maioritariamente, por IPSS, que

surgiram em 1976, e são até hoje, as instituições que disponibilizam um maior número

de serviços para a população idosa, desde centros de convívio (focados na prevenção do

isolamento e manutenção das relações sociais), aos centros de dia (onde são

disponibilizados, essencialmente, serviços associados à alimentação, higiene e outros

cuidados básicos, durante o dia, permitindo à pessoa idosa manter-se em sua casa ou

com a sua família, mesmo que esta não lhe possa prestar todos os cuidados necessários),

serviços de apoio domiciliário (cuidados que incluem, desde a satisfação das

necessidades básicas a cuidados de saúde e de higiene, permitindo-se à pessoa idosa

continuar a viver em sua casa), até aos lares ou residências de terceira idade, com um

carácter mais permanente, onde se prestam serviços, como o alojamento temporário ou

permanente, alimentação, cuidados de saúde, higiene e conforto, atividades de convívio

e animação social, assim como ocupação dos tempos livres (Despacho Normativo nº

12/98 de 25 de Fevereiro).

Page 26: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

12

Segundo os resultados definitivos dos Censos 2011 (INE, 2012) o número de

pessoas que vive em estabelecimentos de apoio social aumentou cerca de 49% face ao

anterior período censitário, o que traduz a resposta da sociedade portuguesa ao

crescimento da população mais idosa, sobretudo mulheres, salientando-se a

representatividade da população acima dos 70 anos, no universo das pessoas que

residem nestes estabelecimentos. O acolhimento dos mais velhos, na residência dos

filhos ou dos parentes, tem vindo progressivamente a ser substituído pela

institucionalização do idoso, em estabelecimentos vocacionados para o efeito.

Em 2002, segundo estimativa do INE, referida por Aleixo, Escoval e Fonseca

(2012), residiam em lares, cerca de 51.017 pessoas idosas, sendo a maioria mulheres

(69%) e 85% do total dos residentes tinha mais de 75 anos de idade. Passados dois anos,

em 2004, existiam 56.535 pessoas idosas institucionalizadas em 1517 lares (legais) de

terceira idade, representando 3.2% das pessoas idosas (INE, 2007, citado por Neto &

Corte-Real, 2013). E, em 2016, com um índice de envelhecimento de 150.90 (nº de

pessoas com 65 e mais anos por cada 100 jovens com menos de 15 anos), o número de

idosos institucionalizados ultrapassa os 78 mil, a somar aos 76 mil que recebem apoio

domiciliário, a cargo de 4775 IPSS (ISS, 2017).

Page 27: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

13

Parte II - Enquadramento Teórico

A raiva é um sentimento muito poderoso, mas é a culpa que nos destrói.

Stefan Salvatore

A Culpa

Na perspetiva da teoria psicanalítica (a que mais nos interessa), a culpa é alvo de

uma atenção particular, surgindo como complexo de culpa. O problema foi abordado

por variados autores, de que se distinguem Sigmund Freud, Mélanie Klein, León

Grinberg, António Coimbra de Matos, entre outros.

Sigmund Freud percorreu um trajeto de pesquisas e investigações, em que se

destaca a universalidade da culpa, na tentativa de explicar o cerne da civilização, e dá

atenção à neurose e à culpa que atormentam o sujeito. Em muitos textos,

especificamente em “Totem e Tabu” (1913), e “O Futuro de uma Ilusão” (1927), Freud

apresenta o antagonismo irremediável entre as exigências da sociedade e a moção

pulsional, considerando tal incompatibilidade como ameaça constante à sobrevivência

da civilização, uma vez que os impulsos agressivos e hostis procuram sempre uma

forma de expressão. E é por isso que a civilização beneficia do agente interno que vigia

o sujeito e o condena, com o aparecimento da culpa. Após inúmeras reflexões e

trabalhos, em 1930, em “O mal-estar na cultura”, Freud conclui que a civilização

consegue, de uma maneira ou de outra, dominar o perigoso desejo de agressão,

enfraquecê-lo, desarmá-lo e estabelecer, no interior do sujeito, um agente para conter o

desejo. Esse agente – o superego – vigia o ego e está pronto a condená-lo,

intensificando o sentimento de culpa, que sustenta a civilização. “Totem e Tabu” (1913)

foi um dos mais importantes textos de Freud para explicar a relevância do sentimento de

culpa no indivíduo. A partir de estudos antropológicos sobre comunidades primitivas

ainda existentes, o autor abordou rituais e proibições fortemente enraizadas, como, por

exemplo, o horror ao incesto e a exogamia. No texto, Freud sugere que existem

inúmeras semelhanças e pontos de concordância entre a psicologia dos povos primitivos

e a psicologia dos neuróticos. É importante destacar também a relevância da infância,

Page 28: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

14

uma vez que, para Freud, o homem selvagem e o neurótico assemelham-se muito às

crianças. Um neurótico apresenta, invariavelmente, certo grau de infantilismo psíquico:

ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam na sua infância

ou regressou a elas (regressão).

Freud utiliza o exemplo da proibição do incesto no seio de uma tribo de

aborígenes para explicar o que entende por “culpa coletiva”. Se o transgressor é punido

de forma violenta por toda a comunidade, isso significa a existência da culpa coletiva,

pois, se ele ficasse impune, todo o povo poderia ser castigado. A culpa estaria, então,

ligada à necessidade de castigo. E explica-o a partir do mito da Horda Primeva, em que

os filhos se teriam unido para assassinar o Pai Primevo. Mas com a morte do pai, ao

invés de satisfação e liberdade, os filhos depararam-se com o remorso e o temor de uma

punição; assim, adotaram um totem (frequentemente um animal) como substituto

sagrado do pai, o qual era venerado e inviolável, provocando uma espécie de

reconciliação, que pudesse amenizar a culpa e ajudasse a esquecer o crime cometido

(Freud, 1913). O sentimento moral tem origem na mesma fonte, da qual se originou a

religião, porém esse é fruto da exigência da sociedade e da penitência que o sentimento

de culpa estabelece.

A questão da culpa aparece também no texto freudiano “Sobre o Narcisismo –

uma Introdução” (1914), quando Freud fala sobre o ideal do eu e a instância daí

resultante, o superego. Com o conceito de narcisismo, o autor avançou bastante na

compreensão do sentimento de culpa, pois a construção de uma noção de ideal do eu e,

posteriormente, do superego, exemplifica a emergência da culpa. Laplanche e Pontalis

apontam o ideal do eu como uma formação intrapsíquica relativamente autónoma, que

serve de referência ao eu para apreciar as suas relações afetivas, e afirmam que “a sua

origem é principalmente narcísica” (Laplanche & Pontalis, 1968).

Com a formulação do complexo de Édipo (Freud, 1915), o sentimento da culpa

está presente e é revivido individualmente, no que o autor identifica como intensos

desejos de morte (desejo de matar o pai), podendo estes transfigurar-se em medo

consciente da própria morte (como vingança) graças à ação da instância interna

opressora que se origina com a resolução do Édipo – o superego. Para Freud, aquando

do crime primevo, a autoridade era externa ao sujeito; agora, com a emergência do

superego e a internalização das normas, a instância opressora é interna. A culpa é

compreendida, portanto, como sendo a forma pela qual o ego percebe a crítica do

Page 29: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

15

superego. É, pois, um sentimento de indignidade. Há um ideal do eu que “critica” o eu e

este sente-se indigno do ideal. Então, a culpa é o resultado da tensão existente entre o

Ego e o Superego. O Id é a instância que condensa as pulsões mais primitivas e a

necessidade de satisfação imediata do prazer associado a essas mesmas pulsões,

enquanto que o Superego está encarregado da sua repressão, através de juízos de

censura e crítica (Freud,1923). Cabe ao Ego a função de mediação destas duas

instâncias, em benefício do indivíduo, na sua totalidade. No entanto, quando a

severidade e rigidez do superego dominam, esta mediação torna-se difícil de alcançar,

originando, assim, uma submissão do Ego ao Superego. É desta submissão, segundo

Freud, que emerge o sentimento de culpa, que seria, então, um agente de moralização,

através da repressão, e daí ela ser geradora de neuroses e de várias formas de doença

psíquica. Temos a culpa como um fenómeno negativo e de caráter patológico.

Mélanie Klein (1937, 1948) também escreveu sobre a culpa e investigou de que

maneira ela aparece na vida do ser humano e a afeta. A teoria kleiniana salienta o

sentimento de culpa como sendo o resultado da integração dos objetos parciais num

objeto total (Klein, 1948). Inicialmente, o bebé relaciona-se com a mãe sob a forma de

objetos parciais, sendo esta alvo de impulsos agressivos (quando percecionada como um

objeto ameaçador). Quando é feita a integração dos objetos parciais, surge o sentimento

de culpa, que advém do facto de o bebé perceber que o objeto que ama e que odeia é um

só. Assim, ele receia ter destruído esse objeto com os seus impulsos mais destrutivos e

teme perder o seu amor. Desta forma, em Klein, a ansiedade depressiva e a culpa

surgem com a introjeção do objeto como um todo (Klein 1937), numa síntese entre o

amor e o ódio, relativamente aos objetos parciais. Segundo a autora, esta síntese dá

origem à ansiedade depressiva, à culpa e ao desejo de reparação do objeto amado.

Apesar de Klein considerar o sentimento de culpa como positivo e auxiliador da

criança no seu desenvolvimento e amadurecimento, em termos psicológicos, percebe-se

que a qualidade da culpa e a forma como ela aparece na experiência do indivíduo, ainda

se relaciona com a teoria freudiana. Klein não abandona os conceitos freudianos de

pulsão de vida e de morte (que originam a culpa) e também a ideia de que ela é o

resultado do choque entre o Id e o Superego. Para ela, a criança, mesmo antes do

contacto com conteúdos edípicos, já possui um superego, ainda que arcaico (Klein,

1937).

Page 30: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

16

Outro autor, Donald Winnicott, também abordou o tema, refletindo sobre os

textos de Freud e Klein. Reconhece que a culpa é uma aquisição maturacional, já que a

chegada a este estado está associada à restituição e reparação (Winicott,1963) face ao

objeto. No entanto, defende ele que a criança experiencia a culpa, não só como medo de

perda, mas também porque reconhece o objeto como autónomo, que existe fora de si, e

se preocupa com os efeitos que pode ter causado nele. A culpa seria mais uma

preocupação e cuidado com o outro, e não só o medo da perda. Loparic (1997) escreveu,

a este respeito,

Segundo Klein, a agressividade contra a mãe, que é sentida na posição depressiva, resulta da

frustração, seja da pulsão de aniquilação ou de morte. Para Winnicott, a agressividade do

estágio de concernimento, é mais primitiva que a raiva da frustração. Esta última implica a

existência de instintos formados, visando a satisfação, condição a que o bebé que entra na fase

de concernimento, ainda não chegou (1997, p. 53).

A culpa, para Winnicott resulta do encontro entre a criança com o outro (mãe),

uma relação de intimidade, e não um fenómeno resultado de dinamismos psíquicos e

mentais, ou intrapsíquicos. E o papel desse “outro” é de extrema importância para que a

culpa seja vivida e possa contribuir para a transformação e o amadurecimento. Uma mãe

“suficientemente boa”, está ali, em permanência, disponível para acolher os diversos

estados do bebé. Quando este alcança o estatuto de um “eu”, separado do “não eu”,

começa a integrar a instintualidade como fazendo parte do eu (Dias, 2000). Ele começa

a reconhecer que o eu dos estados tranquilos e o dos estados excitados é o mesmo, e

mais, que a mãe que cuida dele e a que ele ataca nos estados excitados, são uma e

mesma pessoa. O bebé passa, então, a preocupar-se e a sentir-se responsável pelos

resultados do seu amor excitado, tanto na mãe como em si mesmo. E assim que a

criança começa a dar-se conta do dano que é provocado pelo seu amor excitado e

começa a preocupar-se e a sentir culpa, a sua tendência é fazer a reparação do dano

(Winnicott, 1965).

Para que essa reparação se faça, a criança precisa sustentar a culpa por algum

tempo e isso só é possível com a ajuda de uma mãe pessoal e viva, que permanece e

suporta a situação, durante o tempo necessário para esse processo. Se a mãe é

contentora, o bebé tem tempo de organizar as numerosas consequências imaginativas da

experiência instintiva e resgatar algo que seja sentido como "bom", que não agrida, que

seja aceitável e, com isto, repare, imaginativamente, o dano causado à mãe. Essa

Page 31: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

17

sequência agredir-e-curar repete-se inúmeras vezes e, gradualmente, o bebé passa a

acreditar no esforço construtivo, a suportar a culpa e, assim, a tornar-se livre para o

amor instintivo. É a isso que Winnicott chama círculo benigno e, se ele se estabelece, a

criança torna-se capaz de descobrir a sua destrutividade e o seu próprio ímpeto pessoal

de dar, construir e reparar (Winnicott, 1958). Caso contrário, a vida instintiva será

inibida e reaparecerá a dissociação entre os estados tranquilos e os estados excitados; o

descanso torna-se impossível e fica perdida a capacidade de brincar, alhear-se,

concentrar-se; e o amadurecimento é perturbado.

Desta forma, o sentimento de culpa na teoria winnicotiana, é um processo

complexo e depende muito da provisão ambiental, podendo trazer consequências muito

positivas para a criança quando esta alcança o seu potencial, isto é, quando pode ser

vivido como consideração, preocupação e cuidado com o outro. Pode promover o

aparecimento da ideia de “valor” (das coisas e do outro) e de acreditar em, e auxilia a

criança a tornar-se responsável por si e pelo outro. A culpa não surge de uma moral

apresentada à criança, mas sim do amor pelo objeto.

Para que o sentimento de culpa possa conduzir à reparação e à transformação

vivida na relação entre o bebé e a mãe, o ambiente tem que ser constante, sustentar a

situação no tempo e sobreviver à carga destrutiva dessa etapa do desenvolvimento.

Winnicott (1963) coloca a questão, distinguindo a culpa ligada à reparação e, portanto,

fruto do sucesso entre a sustentação ambiental e as potencialidades da criança, da culpa

insuportável, fruto do desencontro e da falta de ligação entre a mãe e o bebé. Neste

último caso, o resultado é o empobrecimento da vida interna da criança e o desperdício

do potencial criativo da culpa (Dias, 2000).

Noutras fases do desenvolvimento, para além da primeira infância, a capacidade

transformadora da culpa e as potencialidades que a mesma gera nas relações, pode

também ser analisada a partir da teoria winnicottiana. É o próprio autor que nos diz:

A maioria dos processos que se iniciam nos primeiros meses de vida nunca se

estabelecem plenamente e continuam a ser fortalecidos pelo crescimento, que

prossegue nos anos subsequentes da infância – e, na verdade, da vida adulta e até

mesmo da velhice (1963, p. 112)

Léon Grinberg (1964, 2000) baseia-se nas teorias de Freud, Klein e Winnicott

para estruturar a sua própria teoria acerca da culpa, que surge como um conjunto

Page 32: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

18

organizado de várias teorizações sobre este tema. Por um lado, recorre às reflexões de

Klein para apresentar a “sua” culpa persecutória (caracterizada por um funcionamento

onde predominam as ansiedades persecutórias e o duplo sentimento de perda, relativo

ao objeto e às partes do self) e a culpa depressiva, que subentende a existência de um Eu

mais maduro e integrativo, de modo a proporcionar os movimentos de reparação. Este

tipo de culpa emerge do sentimento de se ter agredido o objeto e da necessidade de

repará-lo destes ‘danos’ que o indivíduo sente ter provocado, com os seus impulsos

agressivos.

Reunindo as considerações de Klein e Winnicott, Grinberg (2000) atribui um

carácter de alternância e predominância a estes estados, (conforme o predomínio de

Eros ou Tanatos), i.e., a criança passaria de um tipo de culpa para o outro, evoluindo na

capacidade de a sentir, e transformando a ansiedade e angústias referentes a esta (morte

e castração) em capacidade de reparação. Para isso, precisaria de ter um Eu

amadurecido, capaz de aceitar a ansiedade inerente à culpa primária/persecutória. No

entanto, conservaria interiormente, resíduos de uma culpa que, por ser primária,

precocemente experienciada, provocou grande choque no Eu ainda frágil e em

formação, pelo que algumas partes da sua ação e afetos, a ela associados, se perpetuam

na vida da criança.

A formação da culpa, segundo Grinberg (2000), é sempre potenciada pelas

sucessivas perdas e privações que a criança sofre durante a vida, pois “em todas as

experiências de perda, existe implicitamente uma certa dose de culpa” (p. 101). É este

cariz (persecutório ou depressivo) que dita a forma como a ansiedade (de separação,

abandono ou morte) se apresentará ao Eu: como algo insuportável e persecutório, em

que o Eu vive atormentado pela destruição que provocou no objeto, e a angústia de

morte domina as suas fantasias, ou como um apelo à reparação, face ao

empobrecimento da relação, devido à fantasia agressiva do Eu. O espetro da perda do

amor incita o Eu a tentar recuperar esse amor do objeto, a restaurar o objeto e o vínculo

entre os dois.

Esta sucessão de privações desencadeia-se desde a infância mais precoce,

momento em que se forma o primeiro tipo de culpa, de cariz persecutório. À

semelhança das hipóteses freudiana e kleiniana sobre a relação entre culpa e instinto (de

vida – Eros – e de morte – Tanatos), para Grinberg (2000), a culpa persecutória

encontra-se diretamente sob o domínio da pulsão de morte, que invade o interior

Page 33: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

19

psíquico e, através das “fantasias inconscientes relacionadas com as experiências de

perda e frustração” (p. 103), provoca a angústia de morte no Eu frágil, forçando-o a

uma defesa, pela projeção no objeto. No entanto, ao utilizar este como depósito da

pulsão de morte, ao clivar as suas próprias partes más, e ao dissociar-se dessas partes

destrutivas e culpadas, colocando-as no objeto, enfatiza o regresso de uma culpa

persecutória, sob a forma de pressão do Superego.

O Eu frágil ultrapassa o período persecutório da culpa, recorrendo a mecanismos

de defesa primitivos como a dissociação, a negação, a idealização e a identificação

projetiva, para afastar a culpa, colocando-a fora do Eu. Quando permanecem na vida

adulta, estas defesas poderão conduzir a estados-limite, onde imperam as autopunições e

passagens ao ato (Grinberg, 2000).

O ressentimento assume um papel importante para Grinberg, na medida em que,

só a sua diminuição, enquanto emoção primordial, permitirá uma diminuição da culpa

persecutória e do rancor dirigidos ao objeto e ao próprio self e, assim, um aumento “da

aflição e dor pela perda, com uma conotação mais depressiva, aumento da preocupação

e da responsabilidade e, em última instância, da capacidade reparadora” (Grinberg,

2000, p. 105).

A partir do momento em que a ambivalência se torna suportável para o Eu e se

instala a capacidade de integração, i.e., quando a criança percebe que o objeto que

magoou não foi destruído e se apercebe que existem, em si e no outro, partes boas e

más, dá-se o crescimento emocional, a ambivalência da culpa passa a ser tolerada, a

criança liberta-se do ressentimento, para sentir, simultaneamente, tristeza e preocupação

(pelo objeto que lesou), arrependimento e aflição (pela fantasia destrutiva que

desenvolveu) e responsabilidade (pela agressividade que colocou no objeto), (Grinberg,

1964; Pracana, 2007). É a capacidade de reparação que desponta no Eu, a vontade de

reparar o objeto que, apesar de ter recebido a sua agressividade, se conserva como

contentor e reforça o vínculo através de um incondicional amor, mas que, na fantasia da

criança, ficou magoado e necessita de ser tratado, amado e reparado. O alcançar da

culpa depressiva só é possível quando o Eu sublima ou reprime o instinto destrutivo e o

substitui pelo instinto reparador, só possível na presença de um objeto e de um vínculo

satisfatórios. Nesta perspetiva, a culpa existe na relação com o objeto, e decorre da ação

do Eu que ataca esse mesmo objeto ou (e) é atacado por ele, não havendo lugar à

reparação.

Page 34: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

20

Na perspetiva mais relacional, Coimbra de Matos (2000) fala da culpabilidade

inconsciente, considerando-a uma espécie de resíduo que, mantendo-se inconsciente,

determina e condiciona os comportamentos do indivíduo, sem que a sua origem seja

identificável (Matos,2000). Para o autor, a culpa resulta de três fatores relacionais: a

necessidade absoluta que a criança tem do seu objeto, enquanto o convívio com o

mesmo, dado o seu potencial hostil e agressivo, se torna insuportável; os seus próprios

impulsos agressivos para com o objeto; a sua própria atitude culpabilizante e a projeção

culposa no objeto, face à introjeção, no self, do objeto malévolo e agressivo (Matos,

2001). Trata-se de uma culpa persecutória, que persegue o indivíduo de dentro e por

dentro, e que o torna muito sugestionável à inculpação vinda de fora, à indução da culpa

pelos outros, que é, muitas vezes, a projeção da culpa do indutor, uma identificação

projetiva deste, manipulador, em que o objeto quer transformar o sujeito naquilo que

projeta nele. (Matos, 2001).

Stephen Mitchell e Jay Greenberg (1983) defenderam que as relações com os

outros constituem os blocos fundamentais na construção da vida mental. O termo

relacional, muito amplo, inclui interações entre o indivíduo e o mundo social, relações

interpessoais internas e externas, autorregulação e regulação mútua, formando, assim,

uma ponte entre os espaços interpessoal e intrapsíquico (Lewis Aron, 1996).

Na visão relacional, a unidade básica de estudo não é o indivíduo como uma

entidade separada, na qual os seus desejos entram em conflito com a realidade externa,

mas sim a vasta área relacional onde os indivíduos se encontram, procurando manter o

contacto com os outros e articularem-se a si mesmos. A compreensão do ser humano só

é possível através da compreensão da sua vasta “tapeçaria relacional” passada e presente

(Mitchell, 1988). As teorias dos modelos relacionais veem a mente como

fundamentalmente diádica e interativa, em que as relações de objeto são as interações

do indivíduo com os outros externos e internos (reais e imaginados), e a relação entre os

seus mundos internos e externos. Quando se verificam falhas nas relações primárias,

existe um défice nos ingredientes que permitem o crescimento emocional. A criança

internaliza e fica presa a estas relações, uma vez que não se pode separar e necessita

delas para a sua própria sobrevivência. E assim cresce, tendo internalizado que uma má

relação é melhor que nenhuma relação (Matos, 2002), situação que certamente, se

repercutirá nas futuras relações com esse e com outros objetos.

Page 35: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

21

O ponto fundamental da vivência da culpa é o sentimento que a acompanha.

Trata-se de um sentimento de pesar, o “peso” sentido da culpa, muito mais do que

“pena” ou “tristeza”. Está sobre nós próprios, fazendo peso sobre a nossa consciência

(Castilla del Pino, 1991).

As teorias tradicionais da culpa assentam no individual e intrapsíquico, mas

menosprezam a sua natureza intrinsecamente relacional. De facto, toda a culpa,

exteriorizada ou sentida, é culpa perante alguém, real ou virtual (Deus), podendo

entender-se como uma emoção reguladora das relações sociais (Castilla del Pino, 1991;

Pérez-Sales, 2006). Em sentido negativo, poderia ser vista como um procedimento de

controlo (indução da culpa), utilizado para conseguir que outras pessoas se submetam a

determinados pedidos que, de outra forma, não aceitariam, sem resistir. Do ponto de

vista interpessoal, é sempre o outro que projeta, sobre o sujeito, o valor moral das suas

ações. A atitude desse outro (ou a atitude que supomos que ele tem para connosco)

converte-se no espelho do valor moral das nossas ações, porque todas as relações são

especulares (Garcia Haro, 2014). Não há imagem se não houver um outro que a

devolva, e quem se sente culpado, fá-lo perante os outros, porque são eles que o fazem

sentir assim. No entanto, para além do olhar real, pode haver olhares simbólicos

acusatórios e, assim, a ação em que o sujeito edifica a sua culpabilidade seria aquela que

supõe transgressão das definições mútuas, ou imagens recíprocas, previamente

acordadas. De facto, a culpa compromete tanto a continuidade da relação como a

imagem dessa relação e, segundo Garcia-Haro (2014), ela poderá servir como “sinal de

alarme moral”, de que algo se rompeu na relação e que, para preservar ou restabelecer o

vínculo afetivo e a harmonia, o indivíduo tem de fazer alguma reparação.

Culpa e Religião

“Confesso a Deus todo-poderoso

e a vós irmãos,

que pequei muitas vezes

por pensamentos, palavras,

atos e omissões

por minha culpa,

minha tão grande culpa.”

Ato de Contrição (oração católica)

Page 36: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

22

É desta forma que a religião católica aborda a questão da culpa e do pecado,

surgindo a primeira na sequência do ato de pecar. E se o pecado pode acontecer por

“pensamentos, palavras, atos e omissões”, tal significa, ser, praticamente, impossível,

não pecar, e, logo, não haver culpa. E daí surge a necessidade de castigo/penitência e, só

depois, o perdão. A culpa aparece ligada ao “pecado”, já que significa um desvio às

normas de conduta e valores que orientam a existência, podendo causar um mal-estar

psicológico, entendido como culpabilidade (Frankl, 2008). Esse sofrimento interno, daí

decorrente, pode conduzir à necessidade do perdão, o que se verifica no judaísmo e no

cristianismo, onde existem rituais de redenção (Lukas, 1991).

Segundo o escritor judeu Tauber (2007), falando sobre a culpa no judaísmo, vem

à baila uma citação do Torá, no texto de Devarim 21.1025: “Quando você construir

uma casa, faça um parapeito para o seu telhado; para que você não derrame sangue

em sua casa, quando alguém dele cair.” A intenção é mostrar a orientação judaica,

segundo a qual as opções e os atos de cada indivíduo, embora atinjam apenas uma área

minúscula da vida de outra pessoa, e uma área ainda menor da história humana, poderão

influenciar profundamente o destino de qualquer sujeito, as realizações da comunidade e

o curso do progresso humano, no decorrer do tempo. Aquilo que o indivíduo escolhe e

faz, fará até a diferença entre a morte e a vida, entre fracasso e sucesso.

Também Kertzer pondera que a “culpa judaica” ocorre por uma visão

egocêntrica, falha e pessimista do universo. Segundo este autor, os pais judeus culpam-

se por se acharem responsáveis pelos fracassos dos filhos, mesmo que estes filhos já

tenham sessenta anos; os líderes religiosos interiorizam que todos os problemas do

mundo estão relacionados com os pecados cometidos por eles como rabinos. Portanto, a

ideia judaica de culpa é que as pessoas são responsáveis por tudo o que acontece no

lugar onde estão inseridas. Segundo Kertzer, os judeus explicam a culpa dizendo que se

Deus colocou aquela pessoa em determinada situação, significa que ela pode fazer

alguma diferença, portanto, é sua responsabilidade fazê-la, e, com êxito, pois foi

escolhida por Deus e Ele a ajudará.

No Antigo Testamento (Bíblia, Êxodo) consta que os hebreus acreditavam na

existência de um único deus, autor de uma aliança com o povo, a quem Ele deu a

conhecer as leis e as consequências decorrentes da quebra dessa aliança. Na cultura

Page 37: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

23

judaica, quando o povo se afastou de Deus e das suas leis, sofreu o castigo que Moisés

havia predito. Para combater o politeísmo e fortalecer as leis divinas, os castigos pelas

suas transgressões contribuíram para o aparecimento de uma consciência culpada

(Cambi, 1999).

O monoteísmo difundiu a figura de um Deus punitivo, que prosseguiu com o

cristianismo. Os discursos de Moisés apresentavam o povo como eterno devedor de um

Deus que o libertou da escravidão, que cuidou dele, mas que exigia, em troca, a

exclusividade da adoração, punindo todos os que adoravam outros deuses. A culpa do

homem surge, então, para justificar o pecado contra esse Deus único, que iria dominar

toda a cultura ocidental. Refletir sobre a culpa na perspetiva do cristianismo passa

obrigatoriamente pelas consequências do pecado de Adão, passadas para a raça humana

e que pesam sobre a humanidade, sob a forma de culpa e castigo.

O pecado inclui a culpa e a corrupção e define culpa como “o estado de

merecimento da condenação ou de ser passível de punição, pela violação de uma lei ou

de uma exigência moral” (Berkhof 1990). O autor explica que a culpa expressa a

relação do pecado com a justiça ou da personalidade com a lei, advertindo ainda que a

palavra tem duplo sentido: um indicando uma qualidade inerente ao pecador, ou seja, as

suas más qualidades, o que o faz merecedor do castigo; o outro é o que indica a

obrigação de satisfazer a justiça, pagar a penalidade do pecado.

Henry Thiessen (1987) escritor protestante, afirma que as Escrituras reconhecem

diferentes graus de culpa, que resultam de diferentes tipos de pecados e que “este

princípio é reconhecido no Velho Testamento, na variedade dos sacrifícios exigidos

para as diferentes transgressões, e também indicadas pela variedade de julgamentos, no

Novo Testamento. Em contraposição à ideia de culpa no cristianismo católico, que

prega a distinção de pecados venais (aqueles que podem ser perdoados), e mortais, (que

são voluntários e deliberados e que envolvem a morte da alma), Henry Thiessen

relaciona as diferenças de culpa com as diferenças de pecado.

Com a Idade Média e o advento da Inquisição, aumenta o peso da culpabilidade

e do castigo e das consequentes punições a que estavam sujeitos os hereges. Na Europa

instalou-se uma mentalidade obsessiva e uma enorme culpabilização, provocando uma

busca incessante de interiorização, de recolhimento e de consciência moral (Delumeau,

2003), e uma grande dificuldade de vencer os desejos e a vontade. Delumeau (2003)

afirma que a crença na existência de um Deus rigoroso, que castiga e vinga os pecadores

Page 38: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

24

(apesar da redenção de Cristo), se transforma numa “neurose cristã”, não sendo possível

fazer desaparecer o sentimento de culpabilidade. Segundo Scliar (2007), com o

Renascimento, a Reforma Protestante e a Contrarreforma, surgiram novos valores. Por

um lado, o progresso científico, intelectual e artístico e, por outro, as doenças, as

guerras e as crenças antigas, facilitavam um sentimento de culpa desencadeado pelo

luxo e a vaidade, conforto e facilidades materiais, confrontados com o medo do pecado

e a preocupação exagerada com a morte, momento do “acerto de contas” com Deus.

No séc. XIX, Nietzsch (2009) explica, em Genealogia da Moral, que a má

consciência é uma doença adquirida pelo homem que, ao tentar externalizar a sua

agressividade, é impedido pela pressão social, sendo obrigado a conter os seus instintos

e impulsos, o que origina a má consciência ou sentimento de culpa, considerada por ele,

uma doença que o homem sofre consigo mesmo. Para Nietzsch, o conceito de culpa está

associado ao aparecimento e propagação do cristianismo, e tem crescido, em paralelo,

com o conceito de Deus. O pecado e a culpa são inseparáveis da moral judaico-cristã,

aparecendo sempre como uma ofensa a Deus, que é preciso reparar, através do remorso

e do arrependimento (Scliar, 2007).

Com a possibilidade do perdão, o indivíduo que vive perturbado é capaz de

seguir um caminho diferente, à luz da fé, e alcançar a paz com o outro, consigo mesmo

e no contexto onde vive e interage. A teologia procura desenvolver, no ser humano, a

capacidade de “viver a consciência de culpa e não o sentimento de culpa”, segundo

Lucas Mazzochini (2009), e tem procurado estudar esse enigma do vazio e

fragmentação, desenvolvendo estudos que promovem a reconciliação do ser humano

consigo mesmo e nas suas relações, através da reflexão sobre a culpa, o pecado e o

perdão. O que não é fácil, se tivermos em conta que, ao nascer, uma criança já carrega

consigo um pecado que não cometeu, o chamado “pecado original”, em resultado da

transgressão dos nossos primeiros antepassados.

O peso da cultura religiosa, mesmo para os que a negam, faz-se sentir,

principalmente, quando não se lida bem com o “dever moral”, quando o indivíduo não

conseguiu resolver o dilema entre o que deseja e o que pensa que deveria desejar,

quando se teme o castigo “divino” pelas falhas humanas. No lado oposto, temos uma

reconciliação com as nossas imperfeições, com ajustamentos entre a realidade e o

desejo, com assunção plena dos atos praticados. Em suma, uma relação saudável com

Deus.

Page 39: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

25

A Culpa Sentida pelos Filhos Cuidadores dos Pais

“Eu acho, não sei se estou a pecar ou não, mas eu acho que, para mim, foi a melhor

solução” (F7)

A culpabilidade dos filhos cuidadores não tem uma definição única, e tem sido

pouco estudada, em comparação com os inúmeros estudos existentes sobre os

sentimentos do idoso face à família. Uma definição dada por Goldberg (1985) descreve-

a como “o sentimento de culpabilidade que surge quando há a infração consciente dos

valores morais admitidos pelo indivíduo” (p. 32). E continua “um erro que foi cometido

e é preciso fazer algo para o anular: expiar, reparar, obter perdão” (p. 32). Friedman

(1985) critica algumas teorias sobre a culpa e define-a de forma mais precisa: “uma

pessoa considera, de forma consciente ou inconsciente, que os seus planos,

pensamentos, ações e omissões são prejudiciais para alguém, de que ela se sente

responsável” (p. 529).

A culpa é a ansiedade, o sofrimento, a ausência de prazer, a depressão e os

remorsos (Stein, 1968). A autopunição, a confissão de ter agido mal e a necessidade de

reparar sugerem, também, um sentimento de culpabilidade (Abramson, Mosher,

Abramson & Woychowski, 1977). A culpa é uma resposta emocional comum nos

cuidadores (Hatch & Franken, 1984), é uma reação psicológica que se segue à

colocação de uma pessoa próxima numa instituição (Brandwein & Postoff, 1980; Brody

et al., 1990; Gladstone, 1995). A culpa sentida pelos filhos de um idoso

institucionalizado pode advir do facto de ter transgredido uma regra moral, respeitante

aos cuidados de suporte que devem ser dados, pelos membros da família, a um elemento

da mesma, quando deles necessita (Grau et al., 1993). Alguns membros da família,

nomeadamente, os filhos, sentem-se culpados por não terem feito mais pelo idoso

institucionalizado (Brody et al., 1990; Pruchno, Peters, Kleban & Burant, 1994), ou por

não estarem disponíveis para o fazer. As mulheres, em particular, sentem-se mais

culpadas por não poderem responder a todas as necessidades (Zarit, cit in Barusch et

Spaid, 1989), já que, tradicionalmente, cabe à mulher o papel de cuidadora. No meio

rural português, é ainda muito comum a mulher cuidar do sogro ou da sogra, como

Page 40: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

26

cuida dos pais, e essa é uma tarefa socialmente tão valorizada quanto desvalorizador é o

oposto, a delegação dos cuidados noutros, nos cuidadores formais.

A institucionalização é vista como uma solução de último recurso pelo familiar,

que não pode continuar a encarregar-se de todas as responsabilidades que o cuidar exige

(Stone et al., 1987). Institucionalizar um pai/mãe é uma experiência bastante stressante

para o cuidador/filho (Zarit & Whitlatch, 1992), que diz não ter tido outra opção

(Townsend, 1990). Alguns autores, como Matthiesen (1989) defendem que a decisão de

institucionalizar a mãe levaria as filhas a viver, de forma recorrente, sentimentos de

culpabilidade, mesmo quando a institucionalização não é recente, e há filhos (as) que

creem que o seu sentimento de culpabilidade só desaparecerá com a morte do pai/mãe

(Matthiesen, 1989), enquanto outros continuam a sentir-se culpados um ano depois do

falecimento (Mullan, 1992).

A decisão de institucionalizar o idoso pressupõe uma nova fonte de stress para

os cuidadores familiares porque existe uma troca de papéis (Zarit, 1992), quando o

familiar tem que admitir que não é a única pessoa capacitada para proporcionar

cuidados ao seu idoso. A tomada de decisão precipita-se quando a pessoa começa a

desenvolver alterações de comportamento, como acontece nos casos de demência

(Cumming, 1994; Gaugler, 2010), mesmo tendo passado vários anos após o diagnóstico.

Segundo Artaso et al. (2001), a decisão engloba sentimento de culpabilidade, escassez

de recursos económicos e a falta de confiança nos cuidadores formais. É necessária a

intervenção junto das famílias que, quando existe, produz redução da culpabilidade,

redução da sintomatologia depressiva e de sobrecarga e, a longo prazo, melhoria da

saúde do cuidador familiar (Gaugler, 2007).

A disfunção da situação familiar, o conhecimento da evolução da doença e a

escassez de apoio favorecem a tomada de decisão da institucionalização definitiva

(Spitznagel, 2006) que, não obstante, pode provocar sintomatologia depressiva. Este

fenómeno poderá ser amenizado se, antes da decisão, foram tidas em conta variáveis,

como o grau de incapacidade ou dependência do idoso, a idade do/a cuidador familiar e

o possível aproveitamento dos recursos comunitários (Liberman, 2001; Tornatore

2002).

Gaugler, (2003) estudou, durante anos, um grupo de famílias que tinham

institucionalizado os seus idosos, tendo concluído que: os cuidadores mais velhos

apresentavam um maior grau de satisfação; as mulheres apresentavam mais queixas

Page 41: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

27

(talvez devido às expetativas dos cuidados); quanto maior era o nível educativo dos

cuidadores, maior a participação nos cuidados ao idoso e maior o número de visitas.

Estas relacionam-se com a perda de intimidade entre as pessoas (familiares e idosos) e

com as alterações comportamentais destes últimos. Observou também o autor que,

depois da institucionalização, a sobrecarga do cuidador familiar se reduzia

significativamente, entre os seis e os doze primeiros meses (Gaugler, 2007). Davis y

Buckwalter et al. (2001) fizeram uma revisão dos estudos publicados até então,

concluindo que os familiares apresentam, durante um período de tempo significativo,

sentimentos ambivalentes de culpa, sintomas depressivos e preocupação.

A culpabilidade sentida pelos filhos que institucionalizam os seus pais idosos

pode ser regulada pelo custo da institucionalização, seja ela paga pelos idosos que têm

recursos para isso, ou pelos filhos, se o idoso não puder pagar. O preço a pagar à

instituição poderá ter o também o papel de abafar emoções negativas intensas,

invasoras, mas indizíveis, suscitadas por uma imagem materna ou paterna danificadas e,

por isso, inaceitáveis (Durieux, 2006). A culpabilidade, de que as lágrimas são a

expressão depressiva, mostra a dificuldade em conter a agressividade e as pulsões

destrutivas, e o custo financeiro da instituição pode ter o valor simbólico de descarga da

culpabilidade, inerente à relação entre gerações (Durieux, 2006). Trata-se, segundo a

autora, de um “contrato narcísico”, que liga os filhos dos idosos à instituição e aos

cuidadores profissionais, que teriam o papel de responder aos desejos fantasmáticos dos

filhos, de “rejuvenescer” os seus velhos pais.

Conteúdo Manifesto, Conteúdo Latente e Mecanismos de Defesa

O Manifesto e o Latente

As expressões conteúdo manifesto e conteúdo latente relacionam-se, em

primeiro lugar, com a análise dos sonhos, proposta por Freud, em que o manifesto se

refere ao que se apresenta à memória do sonhante, enquanto o latente diz respeito aos

significados inconscientes, não permitidos pelo superego. O conteúdo latente de um

sonho seria, então, constituído por restos diurnos, recordações da infância, impressões

corporais, alusões à situação transferencial. Num sentido mais restrito, o conteúdo

latente designaria, por oposição ao conteúdo manifesto — lacunar e mentiroso —, a

tradução integral e verídica da palavra do sonhante, a expressão adequada do seu desejo.

O conteúdo manifesto (que Freud designa muitas vezes apenas pelo termo “conteúdo”)

Page 42: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

28

é a versão mutilada, sendo o conteúdo latente (igualmente chamado “pensamentos” ou

“pensamentos latentes” do sonho), descoberto pelo analista, a versão correta (Laplanche

e Pontalis, 1990).

Na análise qualitativa, o investigador tem de optar quanto ao tipo de conteúdo

que se propõe examinar. Irá limitar-se ao conteúdo manifesto ou procurará explorar

igualmente o conteúdo latente? Esta opção relaciona-se também com a opção por uma

exploração objetiva, em oposição a uma análise de caráter subjetivo. A análise de

conteúdo, a nível manifesto, restringe-se ao que é dito, sem procurar os significados

ocultos. Ao nível do latente, o pesquisador procura captar sentidos implícitos, partindo

da informação manifesta no texto, para então se dirigir à intenção que o autor quis

expressar, chegando, às vezes, a captar algo de que nem aquele tinha plena consciência.

Os níveis manifesto e latente estão relacionados com a ênfase posta na

objetividade ou na subjetividade, entre as quais oscila a análise de conteúdo. O nível

manifesto corresponde a uma leitura representacional, na qual se procura a inferência

direta do que o autor quis dizer. Mas a busca de uma compreensão mais profunda não

pode ignorar o conteúdo latente das mensagens, revelado mais, pelo não dito, do que

pelo expresso. Isto corresponde a uma leitura que capta nas entrelinhas, motivações

inconscientes ou indizíveis, reveladas por descontinuidades e contradições.

Então, podemo-nos questionar: como fazer, de uma forma válida, uma análise de

dados subjetiva? Segundo Lincoln e Guba (1985), a dimensão da objetividade-

subjetividade não questiona a objetividade ou a subjetividade do pesquisador. A ênfase

na subjetividade não é inconciliável com o rigor científico. Este não exclui nem

substitui sentidos latentes e intuições não quantificáveis. A análise de conteúdo, numa

abordagem qualitativa, ultrapassa o nível manifesto, articulando o texto com o contexto

psicossocial e cultural. No discurso, verbalizado ou escrito, procuramos também o

latente, através do manifesto, procuramos interpretar o que é dito ou escrito, para chegar

à versão correta, verdadeira, do que, na realidade se sente, mas que a “censura interna”

não deixa surgir, conscientemente.

Mecanismos de Defesa

Os mecanismos de defesa constituem operações de proteção do self, para sua

própria segurança, e são fundamentais para a sobrevivência de um ego frágil. Mas, não

Page 43: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

29

representam apenas o conflito e a patologia, são também uma forma de adaptação. O

que torna ‘as defesas’ uma perturbação é a sua utilização ineficaz ou, então, a sua não

adaptação às realidades internas ou externas. Existem vários tipos de mecanismos de

defesa, mas ninguém faz uso de todos. Cada pessoa utiliza somente alguns deles, que se

tornam modalidades regulares de reação e que são repetidas ao longo da vida, sempre

que ocorre uma situação semelhante. Estas operações mentais protegem o indivíduo da

ansiedade excessiva, assim como de outros afetos negativos e sentimentos

potencialmente dolorosos, que podem surgir.

O conceito de defesa foi introduzido, pela primeira vez, por Freud, em 1894, de

forma a descrever os mecanismos de defesa específicos que operam na histeria, tendo

estes sido definidos, originalmente, como forças direcionadas contra a expressão de

determinados impulsos indesejáveis. As defesas constituíram um aspeto saliente,

original e importante no inicio de teoria de Freud, que o autor desenvolveu ao longo da

sua vida e obra, evoluindo o conceito “defesa”, de sinónimo de recalcamento (pedra

basilar da psicanálise) para uma diversidade de conceitos. Freud estipulou nove tipos de

defesas: a projeção, introjeção, regressão, repressão, virar-se contra o self, formação

reativa, anulação, isolamento e reversão (Cooper, 1998; Ihilevich, e Gleser, 1986),

tendo identificado cinco propriedades das mesmas, descrevendo-as como um meio

inconsciente de gerir instintos e afetos. Considerou-as distintas umas das outras,

reversíveis, e podendo ser consideradas como adaptativas ou como patológicas (Freud

citado por Plutchick, 1995). Mais tarde, o autor reconheceu, ainda, as funções de

bloquear, inibir ou distorcer conteúdos mentais; ou filtrar e encobrir esses conteúdos,

pelo uso de conteúdos opostos ou diversos (Plutchick, 1995).

A partir dos trabalhos do seu pai, Anna Freud teorizou e consolidou a teoria das

defesas, tendo acrescentado algumas à lista, como a identificação ao agressor e a

intelectualização (Anna Freud, citada por Cooper, 1998; Ihilevich e Gleser, 1986;

McWilliams, 2005). A autora apresenta a defesa como uma atividade do ego, destinada

a proteger o indivíduo contra uma exigência pulsional demasiado grande (A. Freud,

citada por Bergeret, 1987).

Com os trabalhos de Melanie Klein e dos autores das teorias das relações de

objetos, as defesas são apresentadas como funcionando em sistemas, estando estes

associados a relações de objeto internalizadas, que formam organizações defensivas

estáveis ao longo do tempo.

Page 44: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

30

Assim, com a evolução da teoria psicanalítica, a definição clássica das defesas,

como formas de funcionamento pouco desejáveis e associadas a conflitos

intrapsíquicos, resultantes da oposição de pulsões e instâncias intrapsíquicas, tem vindo

a ser alargada. Atualmente, as defesas são percecionadas como tendo uma grande

influência a nível das relações interpessoais e do desenvolvimento (Cooper, 1998).

Os mecanismos de defesa foram também influenciados pelo evoluir das teorias

em psicanálise. Cooper (1998) identifica Harry Stack Sullivan, (como Anna Freud, mais

ligado à psicologia do Ego), como um dos primeiros teóricos a perspetivar as defesas do

ponto de vista da relação interpessoal, considerando o valor relacional do mecanismo de

defesa, como algo que ocorre na relação com o outro (Cooper, 1998). Também Norem

(1998) salienta esta mudança, argumentando sobre a utilidade de se compreenderem as

defesas, do ponto de vista das relações de objeto e da vinculação, devido a serem mais

extensíveis a outros domínios da psicologia, bem como a temáticas atualmente mais

pertinentes, como é o caso da autoestima (Cooper, 1998, Norem, 1998). As relações de

objeto trouxeram, assim, para o tema das defesas, a noção de que não seriam tão

independentes umas das outras, mas que tenderiam a funcionar em conjunto, formando

sistemas que fazem parte de, e funcionam com o padrão relacional da pessoa (Plutchick,

1995). Os autores das relações de objeto, entendem, assim, o agir humano numa base

essencialmente relacional, considerando que os indivíduos, mesmo nas suas atividades

mais complexas e adultas, reproduzem, de algum modo, as configurações relacionais

que estiveram na base da sua relação primária (Matos, 2002).

Lagache, (citado por Bergeret, 1987) descreve as defesas como processos

automáticos, inconscientes, sob a dependência de processos primários, funcionando para

redução da tensão pulsional e da angústia que dela decorre. O papel adaptativo destas

tem vindo a ser reforçado, uma vez que elas ajudam e proporcionam ao indivíduo, uma

forma de adaptar as suas necessidades internas às necessidades sociais e relacionais

(Matos, 2002).

Em 1994, Vaillant descreveu cinco das principais propriedades dos mecanismos

de defesa: 1) os mecanismos de defesa são as formas principais de gestão de conflito e

dos afetos; 2) são relativamente inconscientes; 3) são distintos entre si; 4) apesar de

estarem significativamente associados à presença de psicopatologia, são reversíveis; 5)

e, por último, podem ser, tanto patológicos, como adaptativos.

Page 45: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

31

A definição atual de Mecanismos de Defesa apresenta-os como processos,

maioritariamente inconscientes, que protegem o indivíduo de stressores internos ou

externos, tendo, portanto, uma função normal e adaptativa, mas podendo tornar-se

psicopatológicos ou desadaptativos, se usados de uma forma rígida, inflexível e

excessiva (Perry & Bond, 2005).

Funcionamento e Organização dos Mecanismos de Defesa

Os mecanismos de defesa têm a função de proteger o indivíduo de perigos

externos ou internos, geradores de mal-estar psicológico (Fonagy & Target, 2003). Essa

proteção tem vindo a ser alargado, ao longo do tempo, com o desenvolvimento da teoria

psicanalítica. Atualmente são vistos como desempenhando as seguintes funções: a)

protegem o indivíduo de sentimentos de perda, abandono, sentimentos de medo e

angústia (Matos, 2002); b) Mantêm o narcisismo e um sentimento de segurança interna

(Gabbard, 2004, McWilliams, 2005); c) mantêm a estabilidade interna e a integração do

ego (Pearson, Cooper & Gabbard, 2005; Mcwilliams 2005; Cramer, 2006) d) permitem

gerir conflitos passados e presentes (Gabbard, 2004); e) controlam impulsos, de forma a

promover a adaptação às necessidades relacionais e sociais (Matos, 2002). Para

atingirem estes fins, os mecanismos de defesa alteram a realidade subjetiva do sujeito,

com o intuito de evitar a perceção de experiências potencialmente perturbantes e

dolorosas (Lemma, 2003; Caligor, Kernberg e Clarkin, 2008), atuando, também, ao

nível das perceções (e representações) dos outros; e do próprio, ao nível das ideias e dos

sentimentos.

Os mecanismos de defesa classificam-se por níveis de maturidade (defesas

maduras, neuróticas ou imaturas), constando, nas primeiras, a sublimação, humor,

antecipação e supressão, que ajudam o ego a ajustar-se, e indicam uma melhor

adaptação às diferentes situações (Vaillant, 1994; Kipper et al, 2004).

Freud (1993) incluiu, nos mecanismos de defesa neuróticos, a anulação, o

pseudoaltruísmo, a idealização e a formação reativa, e defendeu que eles permitem que

alguns conteúdos mentais indesejáveis, cheguem à consciência, de forma encoberta ou

distorcida, a partir de formações de compromisso do conflito psíquico (Andrews; Sing;

Bond, 1993). Dessa forma, o indivíduo consegue manter fora da consciência,

ansiedades, emoções, ideias, memórias, desejos, temores, todos os conteúdos

Page 46: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

32

potencialmente ameaçadores. São estas defesas que alteram os conteúdos internos e a

expressão das pulsões, e cuja eficiência depende da maior ou menor integração dessas

forças mentais em conflito (Vaillant, 1994).

Por outro lado, quando o ego é frágil, poderá haver uma regressão aos níveis de

funcionamento anteriores, se os objetos internalizados tiverem características primitivas,

persecutórias e temidas. O ego ficará empobrecido e mais exposto aos stressores

externos. Segundo Andrews, Sing e Bond (1993), os mecanismos de defesa imaturos

são: projeção, agressão, isolamento, desvalorização, negação, deslocamento,

dissociação, cisão, racionalização e somatização. As defesas imaturas servem para

controlar a ansiedade, mantendo os stressores ou componentes mentais desagradáveis

ou inaceitáveis, fora da consciência. Estas defesas podem “disfarçar” o conflito ,

atribuindo-o a causas externas, conduzindo a uma pior adaptação do indivíduo (Vaillant,

1994).

Coimbra de Matos (2002), ao abordar os esquemas de ação dos mecanismos de

defesa do Ego, refere que estes podem intervir de diferentes formas: 1) distorcendo a

expressão dos pensamentos, impulsos e sentimentos ao nível da sua representação ou

ação; 2) limitando o acesso destes à consciência; 3) adaptando as necessidades internas

às circunstâncias da realidade externa. Cada pessoa organiza defensivamente, a sua

experiência interna e externa, e todas utilizam mecanismos de defesa, podendo estes ser

mais ou menos adaptativos.

Não iremos analisar todos os mecanismos de defesa, antes sim, dar especial

ênfase àqueles que surgem mais ligados à culpabilidade, como forma de aliviar essa

culpa, de que o indivíduo se quer (e não consegue) libertar.

Alguns Mecanismos de Defesa

Negação.

Na Negação existe uma evitação (negação) da tomada de consciência de aspetos

da realidade externa que são difíceis de ser encarados (Gabbard, 2004, Caligor, et. al.,

2008). Trata-se de uma recusa em perceber factos perturbadores. Retira, ao indivíduo, a

perceção necessária para lidar com os desafios inerentes à situação, e a capacidade de se

valer de estratégias adaptativas adequadas.

Page 47: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

33

Idealização.

A Idealização é caracterizada por ver os outros, o próprio ou os acontecimentos,

como exageradamente bons, com o objetivo de evitar ansiedades relacionadas com a

tomada de consciência de sentimentos negativos (Kernberg, 1976).

Racionalização.

A racionalização está relacionada com a nossa necessidade de explicar o que

acontece e manter a coerência entre ações e pensamentos. Consiste na utilização de uma

justificação lógica artificial para evitar o reconhecimento de ansiedade associada às

ideias, pensamentos e sentimentos.

Projeção.

A Projeção permite a perceção de impulsos e características inaceitáveis do

próprio, como sendo externas, colocadas em objetos externos (Gabbard, 2004).Este

mecanismo ocorre quando o indivíduo reprime as suas pulsões, projetando-as no mundo

exterior, e fazendo com que a mente consciente não as reconheça.. O ego projeta, coloca

fora, o que lhe é inadmissível e angustiante. Este mecanismo, segundo Bergeret (2006),

também está articulado com a negação.

Page 48: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

34

Parte III - Estudo Empírico

Pertinência do Estudo

Muitos estudos existem sobre os idosos e as consequências, boas e más, da

institucionalização. No entanto, esses trabalhos têm buscado perceber o impacto da

institucionalização, do ponto de vista da pessoa institucionalizada, ou, noutros casos,

dos cuidadores formais. Ora, por detrás de um idoso que entra num lar residencial, está

(quase sempre) uma família que tomou essa decisão, geralmente, os filhos, quando os

há. E poucos trabalhos têm sido feitos, particularmente em Portugal, abordando os

sentimentos de quem decide, e as consequências, no relacionamento familiar, da

institucionalização.

Metodologia

Formulação do Problema de Investigação

Após alguns anos de observação e interação com filhos de idosos

institucionalizados, e depois de consultada a literatura disponível, conclui-se que existe

um sentimento de culpabilidade nos filhos que decidem institucionalizar os pais idosos,

independentemente das razões que conduziram à institucionalização. Também se

verifica que os filhos que tomaram a decisão, usam mecanismos de defesa para gerir

essa culpabilidade. De que forma são eles revelados, e como é vivida essa

culpabilidade? É esta a questão que nos ocupa. Perante a constatação de que nem

sempre o sentimento de culpa se manifesta de uma forma explícita, mas está, sobretudo,

latente, tornou-se fundamental perceber como é possível a sua identificação, a partir do

relato dos entrevistados.

Objetivos

O objetivo principal deste trabalho foi investigar a existência de culpabilidade

nos filhos/as de idosos/as institucionalizados. A partir do objetivo geral, foram definidos

Page 49: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

35

três objetivos específicos: (1) analisar o que significa a institucionalização do idoso/a

para o filho/a e que alterações se produzem na relação familiar; (2) investigar o

sentimento de culpabilidade, manifesto ou latente, de quem decidiu a institucionalização

e (3) observar os mecanismos de defesa usados pelos filhos para atenuar essa

culpabilidade.

Desenho de Investigação

Este é um estudo exploratório qualitativo. Considerámos que a metodologia

qualitativa, de natureza fenomenológica, seria a mais adequada a este estudo, por dispor

de estratégias que permitem alcançar e compreender a realidade subjetiva e o

significado individual das experiências vividas pelas pessoas envolvidas no processo do

objeto de estudo, tendo em vista resultados não generalizáveis por enumeração ou

frequências, mas por uma interpretação analítica do fenómeno investigado, através do

uso de entrevistas semiestruturadas.

Para atingir os objetivos do estudo, o método de investigação deve ser escolhido

de acordo com a natureza desse mesmo estudo (Groenewald 2004), por isso,

entendemos aplicar o método fenomenológico, na análise dos dados, visando estudar a

vivência humana individual, através da compreensão interpretativa das suas

experiências (Giorgi, 2006). O investigador não pretende encontrar explicações, mas tão

só factos significantes vividos e expressos pelos participantes (Amatuzzi, 2007). O

método fenomenológico, em Psicologia, procura analisar como os dados são

representados à consciência e não propriamente qual é a sua “realidade”, procura

perceber como eles são sentidos por cada pessoa em particular (Giorgi & Souza, 2010).

A fenomenologia é um método de investigação intuitivo e descritivo, tanto da descrição

concreta das experiências vividas e narradas pelos participantes, como do processo de

análise dessas experiências, através de interpretação da essência psicológica do

fenómeno (Girogi & Giorgi, 2008). A investigação de natureza fenomenológica é

direcionada para a descoberta e não para confirmar hipóteses ou testar teorias,

permitindo uma descrição exaustiva do fenómeno de uma experiência quotidiana, com a

intenção de compreender a sua essência.

Participantes

Page 50: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

36

De acordo com os objetivos desta investigação, os critérios de seleção da

amostra assentam na temática principal sobre a “culpabilidade sentida”. Os participantes

constituem uma amostra de dez indivíduos, com as seguintes características: a) são

filhos ou filhas adultos/as de pai/mãe institucionalizado; b) antes da institucionalização,

eram os cuidadores principais desses idosos; c) tomaram (ou participaram na tomada) da

decisão da institucionalização; d) todos os participantes mantêm relação com o pai/mãe

institucionalizado; e) são todos/as portugueses/as. São dados mais detalhes no quadro

dos participantes (Anexo 3).

O contacto com os participantes foi feito pessoalmente, a partir do

conhecimento da investigadora e de sugestões dadas pelos primeiros entrevistados. A

fim de preservar o anonimato dos participantes neste estudo, eles são identificados pela

letra F (Filhos): F1, F2, F3, F4, F5, F6, F7, F8, F9, F10, correspondendo o número à

ordem das entrevistas.

Instrumentos

Em pesquisa qualitativa, a entrevista procura ampliar o papel do entrevistado, ao

fazer com o que o pesquisador mantenha uma postura de abertura no processo de

interação, evitando restringir-se às perguntas pré-definidas, de forma que a palavra do

entrevistado possa encontrar liberdade para se exprimir (Gaskell, 2002). Pode elaborar-

se um guião, que oriente a condução da entrevista, mas que não impeça o

aprofundamento de aspetos que possam ser relevantes ao entendimento do objeto ou do

tema em estudo. Para a elaboração dos tópicos, é importante que o pesquisador avalie os

seus interesses de investigação e proceda a uma revisão da literatura sobre o tema.

Na abordagem qualitativa, entretanto, o que se pretende, além de conhecer as

opiniões das pessoas sobre determinado tema, é entender as motivações, os significados

e os valores que sustentam as opiniões e as visões de mundo. Por outras palavras, é dar

voz ao outro e compreender de que perspetiva ele fala. Para atingir este objetivo, o

entrevistador assume um papel menos diretivo, para favorecer o diálogo mais aberto

com o entrevistado, e fazer emergir novos aspetos significativos sobre o tema.

Foi elaborado um guião de entrevista (Anexo 2) que pudesse guiar a conversa,

sem cortar a espontaneidade dos entrevistados. Como é referido por Bogdam e Biklen

(1994), no âmbito da investigação qualitativa, a entrevista representa um instrumento

Page 51: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

37

básico que possibilita “recolher dados na linguagem própria do sujeito, permitindo ao

investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos

interpretam aspetos do mundo”. Optámos por este meio, tendo em conta a natureza do

estudo. Todas as entrevistas foram realizadas apenas com a presença da investigadora e

do participante, sem qualquer interrupção ou interferência de terceiras pessoas.

Os participantes tiveram toda a liberdade de expressar situações, sentimentos e

opiniões, sob orientação da investigadora, apenas para que fossem obtidos os dados

considerados pertinentes ao estudo. As entrevistas foram gravadas digitalmente, com o

computador, após aceitação por parte do participante.

Procedimentos éticos e deontológicos.

A pesquisa seguiu as recomendações éticas para a realização de investigação em

Psicologia, de acordo com os princípios éticos e os códigos de conduta da American

Psychological Association (APA, 2010) e da Ordem dos Psicólogos Portugueses

(Regulamento nº 258/11, de 20 de abril). Neste âmbito, antes de cada entrevista, foi

explicado o objetivo do estudo e assinado, pelos participantes, um Termo de

Consentimento Informado (Anexo 1) com: 1) identificação da investigadora, do curso a

que pertence e da orientadora do trabalho; 2) breve esclarecimento sobre os objetivos do

estudo; 3) informação sobre o carácter voluntário da participação e da possibilidade do

participante se retirar a qualquer momento; 4) conhecimento, ao participante, que a

investigadora assegurava a privacidade, confidencialidade e anonimato dos dados

recolhidos, esclarecendo-se que não seriam apresentados nomes nem outros dados

referentes a locais ou pessoas referidas nas entrevistas.

Procedimentos de recolha de dados

O primeiro passo na recolha de dados foi a elaboração de uma lista de possíveis

participantes, a partir do conhecimento próprio da investigadora. Os critérios de

elaboração da lista incluíram o facto de serem adultos (homens ou mulheres), terem o

pai, a mãe (ou ambos) institucionalizados, terem sido os principais cuidadores antes da

institucionalização, e terem tomado (ou participado) a decisão sobre a

institucionalização. Os contactos iniciais foram feitos pessoalmente ou por telefone,

Page 52: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

38

tendo sido apresentado o objetivo do trabalho e a garantia de anonimato e total

confidencialidade dos dados. Após aceitação por parte do entrevistado, foram marcadas

as entrevistas, para local e hora acordados previamente, mas sempre à escolha do

entrevistado. Antes da concretização da entrevista, foi apresentado e explicado o Termo

de Consentimento Informado, que foi assinado pelo entrevistado. Preencheu-se também

um pequeno questionário sociodemográfico, após o que se procedeu à entrevista áudio

gravada (com autorização do entrevistado).

A partir das primeiras entrevistas, também os participantes contribuíram para

alargar a lista inicial, com indicações de outras pessoas, suas conhecidas, nas mesmas

condições. Todas as entrevistas foram realizadas entre janeiro e maio de 2017.

Não se pode esquecer que o esclarecimento dos critérios de escolha dos

participantes a serem entrevistados é muito importante, visto que a aleatoriedade na

abordagem qualitativa não é considerada a melhor opção. O que importa não é quantos

foram entrevistados, mas se os entrevistados foram capazes de trazer conteúdos

significativos para a compreensão do tema em questão. Em pesquisas qualitativas, o

fundamental é que a seleção seja feita, de forma a ampliar a compreensão do tema e

explorar as variadas representações sobre determinado objeto de estudo. O critério mais

importante a ser considerado, neste processo de escolha, não é numérico, já que a

finalidade não é quantificar opiniões, mas explorar e compreender os diferentes pontos

de vista. Num ambiente social específico, o espectro de opiniões é limitado, pois a partir

de um determinado número de entrevistas, percebe-se o esgotamento das respostas

quando elas tendem a se repetir, e novas entrevistas não oferecem ganhos qualitativos

adicionais para a compreensão do assunto. Isto significa que já se torna possível

identificar a estrutura de sentido, ou seja, as representações compartilhadas socialmente

sobre determinado tema de interesse comum (Gaskell, 2002; Gondim, 2002). Neste

sentido, foram realizadas dez entrevistas, apesar de, inicialmente, se terem previsto

quinze.

Análise dos Dados

Começou-se por fazer uma audição atenta de cada entrevista, após o que se

transcreveram, na íntegra, as dez que constituem o material a analisar, tendo em conta

os objetivos do estudo. A transcrição serviu também para que a investigadora

Page 53: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

39

compreendesse melhor o conteúdo do que havia sido dito. Segundo Amatuzzi (2007),

quando se solicita aos participantes o fornecimento das suas vivências pessoais, o

investigador deve estar atento às frases dos participantes, que dizem algo essencial

acerca do fenómeno em estudo, mas que os participantes não conseguem expressar de

maneira detalhada. Após as transcrições, fizemos uma reflexão sobre o material

recolhido, a partir das respostas de cada participante, e escolhemos o método

fenomenológico do psicólogo americano Amadeo Giorgi, desenvolvido em 1970, a

partir do conceito de interpretação do filósofo Husserl e adaptado aos conhecimentos

científicos da Psicologia (Giorgi & Giogi, 2008). Este método é constituído por quatro

fases (Giorgi & Souza, 2010).

1 - Leitura da descrição do relato dos participantes na sua integridade, para obter a

compreensão do todo, tendo em conta que a abordagem fenomenológica tem um

carácter holístico. Deve ser considerado que todas as fases do método têm como foco o

sentido da descrição oferecida pelos participantes. A descrição do relato do participante

é repartida em unidades de significado (situações, eventos ou sentimentos relacionados

diretamente com o fenómeno em estudo), numa perspetiva psicológica, considerando

que na abordagem fenomenológica há um componente arbitrário na constituição das

unidades, podendo diferentes investigadores assinalar diferentes unidades. As unidades

de significado foram retiradas das respostas dadas pelos participantes. Os nomes

próprios das pessoas referidas nas mesmas foram substituídos por uma letra, de modo a

assegurar a confidencialidade dos dados. Também os nomes de instituições ou

localidades foram substituídos pela letra inicial. Todas as unidades de significado

constam do Anexo 4.

2 - A transformação das unidades de significado em linguagem psicológica, referente ao

fenómeno em estudo, permite o refinamento progressivo do sentido da descrição

original e permite tornar explícitas as vivências subjacentes do fenómeno

(nomeadamente em relação ao significado psicológico), mas que não são relatados de

forma clara ou consciente. Essas unidades são transformadas de maneira livre,

dependendo da criatividade interpretativa do investigador, o que permite explorar o

fenómeno sob diferentes perspetivas, com o objetivo de descobrir a sua essência. A

transformação também envolve descrever a situação com sensibilidade psicológica, o

que significa esclarecer os significados psicológicos implicados na experiência. Nessa

Page 54: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

40

fase, há também uma transformação da linguagem quotidiana e do senso comum,

transformando-a em linguagem psicológica, tendo em conta o fenómeno que está a ser

investigado.

3 - Segue-se a síntese das unidades de significado e uma determinação dos fatores

invariantes da estrutura. Nessa fase, o investigador analisa cada uma das unidades

transformadas e seleciona os constituintes essenciais, que são utilizados na construção

da estrutura, o que permite uma compreensão mais profunda da experiência, reduzindo a

descrição a componentes essenciais.

4 - Para finalizar esse processo de análise dos dados e a descrição essencial da vivência

do fenómeno, o investigador dialoga com a literatura, de forma a estabelecer uma

comparação entre os dados recolhidos e analisados e as investigações e teorias

existentes.

Apresentação dos Resultados

Constituintes essenciais e estrutura geral.

Page 55: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

41

Figura 1. Nuvem de palavras obtida, no word, a partir da apresentação dos resultados.

Estrutura geral.

É proibido sentir! A negação da culpabilidade constitui o mecanismo comum aos

dez entrevistados, embora se expresse de formas diferentes em cada um, e está

intimamente ligada com a idealização, surgindo, frequentemente, através de

contradições. O principal mecanismo de defesa serve para que os sujeitos (filhos)

possam lidar com a culpabilidade de terem institucionalizado o pai/mãe, ou ambos.

Assim, surge, muitas vezes, nas respostas, a desresponsabilização da decisão tomada,

remetendo-a para o pai/mãe, ou para os irmãos, embora o sujeito tenha participado ou

tenha conduzido o processo, não deixando outra alternativa ao idoso.

A institucionalização surge, com pormenorizadas explicações sobre as condições

de saúde que conduziram àquele momento e após a tentativa de encontrar outras

soluções, surgindo o Lar como a última solução, logo, não a melhor solução. O ideal

aparece no condicional “a casa seria melhor”, mas esta também é descrita com atributos

pouco apelativos, e adjetivada como “fria, húmida, com muitos degraus, escadas,…”,

opondo-se-lhe a imagem do Lar como “acolhedor, quente, confortável, com boas

condições”. Estas contradições colocam a institucionalização no plano ideal, ao

Page 56: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

42

contrário do que é dito expressamente, enquanto a antiga casa surge como o espaço

desagradável, problemático, gerador de possíveis problemas de saúde e segurança.

Os entrevistados apresentam um raciocínio racional, explicitando todas as

variáveis objetivas que influenciaram a decisão, (nomeadamente, a doença e a

dependência) e tentando colocar os aspetos emocionais aparte, certamente como forma

de autoproteção.

Os contactos com o pai/mãe institucionalizado, em geral, constituem-se como

formas de diminuição da culpabilidade, sendo muito mais frequentes as visitas ao idoso

do que a saída deste da instituição, mesmo quando a saúde e a autonomia não são

limitativas. Esses contactos, entre filhos e pais carregam um significativo peso do

relacionamento familiar passado, que ressurge, agora, e traz à superfície, fantasias e

conflitos nunca resolvidos.

Constituintes Essenciais.

1. Desresponsabilização da decisão de institucionalizar

A partir das narrativas feitas pelos entrevistados, dos percursos que levaram à

institucionalização do pai ou da mãe, analisaremos o que é comum, e algumas

particularidades apresentadas como justificação, assim como a atribuição da

responsabilidade da decisão ao pai/mãe ou irmãos.

2. Racionalização e generalização

Os sujeitos utilizam descrições e narrações muito pormenorizadas dos factos que

conduziram à institucionalização do (a) seu/sua pai/mãe, colocando esses

acontecimentos fora do domínio das emoções.

3. Idealização das instituições e desidealização da casa familiar

Os Lares residenciais surgem como o local ideal para viver os últimos anos da

vida, em oposição à casa tradicional do pai/mãe, sendo os primeiros adornados com

todo o tipo de condições de conforto, enquanto a casa é caracterizada como um espaço

desconfortável.

4. Sentimentos dos filhos

Page 57: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

43

O que os entrevistados dizem sentir não é, frequentemente, consistente, já que

surgem, nos relatos, contradições, quando os filhos falam dos sentimentos, quer no

momento da institucionalização, quer aquando da entrevista.

5. Perceção, pelos filhos, dos sentimentos dos pais

O que os filhos pensam sobre o que os pais sentem condiciona a culpabilidade

sentida face à institucionalização.

6. O pagamento como alívio

Analisamos o papel dos custos financeiros da institucionalização, pagos pelos

filhos, na diminuição da culpabilidade.

7. Institucionalização como último recurso

Neste ponto, analisaremos as vantagens apontadas pelos participantes, para a

institucionalização, contrapondo a sua perceção de que um Lar é sempre o último

recurso, esgotadas todas as outras soluções.

8. As visitas e contactos como alívio da culpabilidade

A frequência das visitas, e as suas razões, levar-nos-ão ao seu papel na

diminuição da culpabilidade sentida pelos filhos.

9. Saídas temporárias da instituição

As respostas dos entrevistados revelam um crescente isolamento do idoso/a face

ao mundo exterior, como se a institucionalização fosse uma porta que se fecha sobre o

mundo e sobre a vida anterior.

10. O peso do passado no relacionamento com os pais

Este constituinte permite-nos relacionar a qualidade do relacionamento entre

filho/a e pai/mãe, com as histórias de vida contadas pelos entrevistados, e perceber

como a culpabilidade e inferioridade podem condicionar as atitudes destes e dos seus

pais.

Page 58: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

44

Análise dos constituintes essenciais

Figura 2: Esquema dos mecanismos defensivos mais usados para gestão da

culpabilidade.

1. Desresponsabilização da decisão de institucionalizar

F1. “Então, o meu pai tinha tido um avc com 50 e poucos anos, estava em cadeira

de rodas, e a minha mãe tinha que cuidar dele. Entretanto, ela começou a ter algumas

dificuldades de memória e de fazer as coisas básicas. Começámos a ver que ela não

estava bem, foi a um neurologista e tinha um princípio de demência. Viviam os dois lá

na aldeia, longe dos filhos (eu, um irmão e duas irmãs) e não podiam continuar

sozinhos. Então, a minha mãe é que tratou de tudo.”

F2. “Isto tudo começou, a minha mãe esteve hospitalizada durante quase três

semanas, depois desorientou-se completamente, já não dizia coisa com coisa, mas

entretanto no hospital recuperou, veio para casa. (…) a gente távamos a ver que ela

Culpabilidade

NEGADA

IDEALIZAÇÃO

Desresponsabilização na decisão

Contradições

Racionalização

Page 59: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

45

sozinha estava mal e metemos ali uma rapariga a fazer os serviços da casa e a fazer-lhe

algum tipo de comer, mas começámos a ver que não resultava, e então começámos a

mandar vir o comer do lar e elas vinham cá fazer a limpeza e faziam essas coisas. (…)

E então vimos que ela estava bem e ela começou a dizer “ah, eu faço o comer e

pronto”, mas a gente ainda fomos a ver se arranjávamos uma pessoa para vir dormir

(…), um dia de manhã cai, bate com a cabeça no guarda-fato, abriu a cabeça, (…) eu

falei com ela e com a minha irmã e disse-lhe “oh mãe, você não pode estar aqui

sozinha, o que é que quer fazer?”, “ah, eu vou pro lar, se me arranjares lugar no lar,

eu vou pro lar”.

F3. “Ela estava em casa, ela tem uma dificuldade imensa em se locomover e faz

fisioterapia. Em casa tínhamos uma senhora que tratava dela, pagávamos imenso,

pagávamos o dobro do que pagamos aqui, não tinha as condições nem de perto nem de

longe que tem aqui. Essa senhora só estava lá até às 19, a partir daí a minha mãe

ficava sozinha, quer dizer, ficava com o meu pai. Depois tinha crises grandes, fazia

anemias, lá tínhamos que chamar o INEM. Numa dessas estadias dela no hospital,

acabou por apanhar uma bactéria, esteve mal, depois voltou para casa. Esteve mal

outra vez, e então chegámos à conclusão que não podia ser, porque ela em casa não

tinha as condições, nós não conseguíamos dar-lhe as condições que ela precisava, que

era estar sempre com alguém do lado e com alguém que soubesse cuidar dela e dar-lhe

mais assistência. E então, eu e o meu irmão, e o meu pai, os três, resolvemos procurar

uma instituição.

F4. “A decisão foi tomada porque ele [o pai]) veio do hospital, esteve hospitalizado

em X, veio do hospital referenciado pela unidade da C. V. para recuperação;

entretanto, não havia vagas, pediu-se a alguém que nos ajudasse e esteve três semanas

no lar, numa enfermaria à espera da vaga, até que surgiu a ida para a C. V. para Y aí,

esteve algum tempo, dois meses mais ou menos, e ao fim desses dois meses, foi

transferido para Z para a C. V.. (…) aí, saiu numa situação em que tínhamos

praticamente as esperanças perdidas que ele sobrevivesse porque estava mesmo,

mesmo mal. Felizmente chegou a Z e ao fim de dias, começou a recuperar, ou porque

teve outra assistência ou porque tinha mesmo de recuperar.

Page 60: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

46

F5. “Então a minha mãe, é insulinodependente, há muitos anos e vivia sozinha lá

em B., (…) depois começou a deixar de comer, os diabetes começaram-se a alterar,

começou a ter distúrbios. Entretanto (…) as minhas primas, telefonaram-me (…) eu fui,

nesse dia logo, trouxe-a para a minha casa. Esteve seis meses a viver comigo em casa,

pronto, foi um bocado complicado porque ela depois durante a noite desorientava-se,

eu ia trabalhar. Cheguei ao fim daqueles seis meses, que achei que era um bocadinho

complicado e já estava a ficar um pouco saturada, porque eu não dormia nas noites e

tinha de vir trabalhar, resolvi metê-la no centro de dia, pronto, eu ia levá-la às 9 e

depois ia busca-la às 7 da noite. (…) nesse período que ela teve comigo em casa caiu,

partiu o coxis e eu disse que a partir daí ela nunca mais poderia ficar em casa sozinha

(…) a partir daí foi mais complicado, as noites cada vez mais, cada vez mais, cada vez

mais, pedi ajuda ao meu irmão, para tentarmos resolver a situação e ele disse que

decidisse o que achasse que era melhor e pronto, a minha mãe foi para o lar.”

F6.” Foi mais ou menos entre os três [ele, o irmão e a mãe], Numa altura em que

ela estava já sozinha lá em casa e que às tantas as coisas não estavam a começar a

funcionar, ela perdeu os medicamentos, mesmo que a gente fosse lá todos os dias era

difícil, então entre os três e ela aceitou que íamos fazer uma experiência para lá. Que

ela foi para lá já um bocado debilitada, e acho que para... o feitio que a minha mãe

tem, ela achava que já estava debilitada em relação a isso, então nós concordámos,

aceitámos e colocámo-la lá, pronto.”

F7. “…a minha mãe já sofre, de há muitos anos, de artrite reumatoide, tem

problemas de coração, tem problemas de diabetes, tem uma data de complicações. O…

os ossos, em si, estão-se a começar a deformar, tem as mãos a ficar deformadas. (…) a

situação dela agravou-se…, em questão de pulmões, em questão de coração. Ficou

muito tempo metida na cama, perdeu a massa muscular, deixou de andar. Entretanto,

ela depois recuperou. Entretanto, nós, as três, entendemos que ela não tinha condições

para estar sozinha. Além da medicação que tinha que tomar, a casa tem degraus… e já

tinha acontecido uma vez ela lá, … de noite, levantar-se, ter caído, ficou lá em casa

caída, gritava, gritava, até que as vizinhas deram por ela... tiveram que arrombar a

porta, para… chamar a polícia e tudo mais (…) E então nós, depois de ela ter vindo de

V., achámos que era a melhor situação era ela ir… para um Lar. Decidimos que seria

Page 61: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

47

melhor ela estar numa instituição onde fosse vigiada dia e noite, onde tivesse

alimentação a horas, onde lhe dessem a medicação…”

F8.” Essa decisão, da minha parte, eu queria que ela fosse para um Lar, assim que

faleceu meu irmão, o F., porque ela ficou sozinha em casa, num primeiro andar, umas

escadas antigas, difíceis, e ela não queria. Não queria abandonar a casa dela, de

maneira nenhuma. Depois, a 16 de julho teve a infelicidade de cair lá no quarto, partiu

a cabeça do fémur, foi hospitalizada, foi operada e a partir daí, seguiu para M., para os

Cuidados Continuados. Esteve lá 30 dias, de M. passou para os … também nos

cuidados continuados, mais dois meses e meio. Dali é que teve uma vaga para a S. C.de

M. de B., onde está desde 22 de novembro de 2016. Foi quando surgiu a oportunidade e

ela aceitou.”

F9. “Primeiramente entrou na vertente de dia, um mês antes, durante o mês de

junho, (…). Ia de manhã e eu ia buscá-la à tardinha. Até que, depois, quando vagou

uma cama, ficou lá. (…) comecei a ver que ela estava a perder aquelas faculdades dela,

aquelas pequenas coisas que ela, que toda a gente faz, no dia a dia. (…) com a morte

da minha irmã, isto veio-se a precipitar tudo, né? (…), tornou-se completamente

dependente. Entretanto, levei-a ao neurologista e ele disse que aquilo era demência e

que, realmente, não podia estar sozinha”.

F10. (…) “porque já não têm capacidade para estarem, para se cuidarem, para

terem todo o apoio que é preciso, porque eles não têm, já, quando chega a uma certa

idade, não têm essas capacidades, embora eles não admitam, mas já não têm, precisam

de ter alguém com eles 24 horas por dia (…), e nós não temos possibilidades de estar

com eles o tempo todo, temos a nossa casa, a nossa família, marido, filhos, trabalho, é

impossível! E eles precisam, chega a uma certa altura que tem mesmo que ser. (…) Ele

[o pai] precisava de todos os cuidados, ele era cem por cento dependente para tudo: ir

à casa de banho, para comer, para tudo, ele dependia sempre 24 horas por dia,

dependia de todos para tudo”.

Todos os filhos/as entrevistados/as respondem exaustivamente à questão sobre

as razões que levaram à institucionalização do pai ou da mãe, descrevendo todas as

etapas do processo de doenças e perdas de capacidades, numa demonstração de que a

decisão de institucionalizar foi precedida de motivos suficientemente fortes, objetivos,

Page 62: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

48

impossibilitadores da continuação do idoso/a no meio em que, antes, vivia. Em comum,

surgem a solidão, o isolamento, as quedas, o agravamento das perdas cognitivas.

2. Racionalização e Generalização

A racionalização surge, nos relatos, para diminuir a culpabilidade sentida pelos

entrevistados, e é comum a todos, com predominância em algumas respostas. Relatam-

se, “objetivamente”, todos os passos dados, pelo(s) cuidador (es), e justificam-se todas

as vantagens de estar institucionalizado (alimentação cuidada, medicação atempada,

acompanhamento, higiene) para colocar fora os sentimentos que acompanham essa

decisão. Ao apresentar a decisão como uma necessidade decorrente de acontecimentos

externos, o filho cuidador sente um menor peso e uma menor responsabilidade, já que

coloca, externamente, as razões da institucionalização.

Alguns entrevistados generalizam as considerações que fazem, alargando-as a

todos os idosos, a todas as situações de doença e/ou dependência, para, de algum modo,

poderem diluir, no “todos” o peso que tem a decisão individual.

3. Idealização das instituições e desidealização do lar familiar

Os Lares residenciais surgem, nas respostas, como o local ideal para viver os

últimos anos da vida, em oposição à casa tradicional do pai/mãe, sendo os primeiros

adornados com todo o tipo de condições de conforto (material e humano), enquanto a

casa é caracterizada como um espaço desconfortável e isolado. Tudo isto, ao serviço da

desculpabilização de quem tomou uma decisão que lhe “pesa”, emocionalmente.

F1. “o Lar tem boas condições, um quarto, sala e w.c. privativos, sentiu que

aquela passava a ser a sua casa”;

F2 . “ela está impecável, está bem, está muito melhor, mais bem-encarada do

que o que estava aqui em casa, não tem nada a ver. Pronto, porque ela lá está tratada a

tempo e a horas e aqui passava frio, lá não tem frio, essas condições”;

F3. “ …gelada, cheia de frio, porque a casa é muito húmida, muito fria; …aqui

há condições de higiene, há assistência, há apoio, segundo aquilo que me parece ver,

os utentes são bem tratados, são bem cuidados; …. aqui estava melhor, tinha mais

condições, tinha mais conforto. A casa dos meus pais é uma casa antiga, não é plana,

tem muitos portados, muitas portadas e, pronto, era difícil. É fria, no inverno…; aqui

Page 63: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

49

há muito asseio, há muita limpeza, esfregam muito, como ela gosta; ela está num sítio

em que ela é muito bem tratada, em que tem tudo aquilo que é importante”;

F5. “lá no lar as pessoas são impecáveis,… lá no lar tem acompanhamento; a

minha mãe está bem e está cuidada, se calhar melhor do que eu a conseguisse cuidar;

ela diz-me “elas tratam-me bem, elas tratam-me bem”;

F6. “ Lá começou a tomar tudo a horas, comia a comida que era necessária

para ela, não era os outros doces, e pronto, não era o que ela lhe apetecia, e a partir

daí ela começou a melhorar; então ela saía, comia o que queria, comprava bolos,

queria aquilo, não fazia uma refeição como devia de ser, apesar da gente dizer, mas…

lá, pronto, é sempre diferente e depois não estava acompanhada…; vimos que aquele

era o melhor [Lar]; lá, está acompanhada, tem médicos, tem enfermeiros, tem as

senhoras que estão lá que tratam delas, fazem-lhe tudo; levam-nos a passear”;

F7 . “a casa tem degraus… e já tinha acontecido uma vez ela lá, … de noite,

levantar-se, ter caído, ficou lá em casa caída, estava ali isolada; não sei se estou a

pecar ou não, mas eu acho que, para mim, foi a melhor solução que nós arranjámos

para a minha mãe; haja ali qualquer problema, haja aquilo que houver com ela, tem

uma médica; há qualquer problema durante a noite - há lá pessoal para a trazerem… e

em estando em casa sozinha, ela não tinha nada disso; a solidão também deve ser uma

coisa muito triste; as vizinhas, ali, praticamente, são todas… andam mais ou menos

naquela idade, está tudo dentro de casa e, praticamente, não se vê ninguém”;

F8. “ela ficou sozinha em casa, num primeiro andar, umas escadas antigas,

difíceis; eles ali tratam muito bem as pessoas, todas as pessoas que estão naquela

instituição, sabem tratar-lhes, a alimentação é razoável, e cheguei à conclusão que é

onde ela estava melhor; está claramente integrada e está satisfeita. Nota-se que está

satisfeita.; ali sempre está acompanhada. Qualquer situação que surja, de imediato,

tem socorro”;

F9 .”porque o simples facto de ela estar entre quatro paredes sozinha, só a

estava a prejudicar também, a fazer-lhe mal. Sozinha, sem comunicar com ninguém;

levá-la para a minha casa não era solução porque ela ficava sozinha o dia inteiro; a

minha mãe mudou da noite para o dia, a minha mãe está muito melhor, não tem nada a

ver; Muito alegre, sempre bem-disposta, não a sinto triste em nada; é muito raro

aparecer uma pessoa nas condições da minha mãe, em que vai para um Lar, e gostar

tanto de lá estar; parece que está sempre desejosa de voltar; Adorou o espaço porque

Page 64: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

50

aquilo tem um espaço enorme cá fora para poder passear, para estar sentada num

banquinho; Ela criou aquele espaço dela lá, tem as coisinhas dela lá”;

F10. “nós entendemos e eles são bem tratados e são bem cuidados e ali têm

tudo aquilo que, se tiverem na casa deles, não têm…; precisam de ter alguém com eles

24 horas por dia; a casa é muito… e o sítio é um bocado isolado”;

4. Sentimentos dos filhos

O que sentem nem sempre é o que dizem sentir. A forma como respondem à

questão indicia que, mesmo os que dizem sentir-se “satisfeitos”, “reconfortados”,

apresentam, nessa e noutras respostas, contradições que evidenciam a culpabilidade

negada para defender o ego da angústia.

F1. “Naquela altura senti-me triste. Afinal, um Lar não é a nossa casa. E

comecei a pensar que um dia me vai acontecer a mim o mesmo; agora, sinto-me bem,

porque eles estão bem, quando os visito estão sempre bem, contentes…”;

F2. “Eu fiquei muito satisfeito com aquilo, porque ela, (…) está impecável, está

bem, está muito melhor; A minha opinião, eu hoje em dia, assim eu tivesse dinheiro,

uma reforma para poder ir para lá”;

F3 .“ não, não me senti mal…se a minha mãe estivesse num lugar, num sítio em

que fosse maltratada, não houvesse condições, eu sentia-me muito mal e não a deixava;

mas ela está num sítio em que ela é muito bem tratada, em que tem tudo aquilo que é

importante”;

F4. “ foi uma coisa que nunca nos passou pela cabeça.... pronto. Nós eramos,

somos oito e nunca nos passou pela cabeça que ele chegasse a esta situação”;

F5. “senti-me um pouco triste, pronto, porque eu sabia que ia deixá-la num, vá,

num quarto onde ela praticamente nunca tinha visto, pessoas com quem ela nunca tinha

dormido; eu não me sinto, pronto, muito mal, porque eu sei e vou lá, pronto…; custa-

me um bocado porque eu sei que ela fica triste e não gosta e às vezes está revoltada.”;

F6. “Como é que eu me senti? A primeira vez, a gente não sabe como é que

aquilo funciona…; está sempre à espera que seja bom para ela, mas depois com a

continuação, estamos sempre a ver como é que ela se adapta, se não se adapta…; estou

tranquilo”;

Page 65: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

51

F7. “Eu senti-me um bocado em baixo e foi complicado para mim (tom de voz

choroso) porque, ao fim e ao cabo, eu é que tive que dar a cara… e ela se calhar até

pensou que eu é que a queria lá meter; custou-me um bocado ter que lhe dizer,

Custou-me um bocado, mas… eu… tive que dizer à minha mãe, pronto, que era

realmente a situação mais indicada para ela, ao fim e ao cabo para estar…

acompanhada; mas eu não fico com remorsos nenhuns daquilo que fiz, porque eu achei

que era o melhor para a minha mãe;

F8. “Senti-me mais reconfortado, porque sei e conheço o Lar; é claro que, para

mim, foi uma coisa difícil, porque a casa dela, eu sei como é”;

F9. “a mim custou-me um bocado, né? Custou-me porque ela sempre foi uma

pessoa muito autónoma…; Chorei. Quando eu dei por mim a ver de um sítio para ela

ficar porque não podia estar sozinha, e quando dou por mim a visitar este tipo de

instituições, ao final do dia caí em mim e comecei a chorar porque, realmente, acho

que isto é o mais triste que pode haver;… pensei: vou meter a minha mãe com pessoas

estranhas, pessoas com que ela nunca lidou, pessoas que ela não conhece de lado

nenhum; Eu não tive a sensação de abandono, que a estava a abandonar, não foi essa

sensação que eu tive; olhar para a minha mãe e vê-la naquele estado, e saber que a

tinha que ir meter numa instituição para tomarem conta dela, despoletou todos os meus

sentimentos, né? Apesar de eu saber que estava a fazer o melhor pra ela, e não pra

mim.”)

F10. “Foi, foi, foi muito difícil. (…) Sinto-me impotente porque, por um lado,

gostava que fosse, gostava de a ver feliz e contente da vida, porque voltava à casa dela,

voltava a ter as vizinhas com quem, pronto, toda aquela rotina que ela antigamente

tinha. (…) mas não, mas por outro lado, penso que não, que não há condições, não

pode ser”

5. Perceção, pelos filhos, dos sentimentos dos pais

As respostas à questão “Como acha que ele/ela se sentiu [no início da

institucionalização] e como se sente agora?” dão-nos , não o verdadeiro sentir dos

Page 66: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

52

idosos institucionalizados, mas sim a perceção dos filhos sobre esses sentimentos, e a

forma como esses filhos avaliam o bem-estar ou o mal-estar dos seus pais.

F1. “A minha mãe sentiu-se logo bem, até porque foi ela a decidir, e sempre foi

uma mulher muito ativa. O meu pai sempre fez o que ela decidia, sempre esteve de

acordo com ela. Agora, ele continua igual e ela está muito melhor. Faz ginástica,

pertence a um grupo de teatro, participa nas iniciativas culturais, que são várias. Está

sempre ocupada. Sinto que eles estão melhor, agora”;

F2 . “a opinião dela agora é que está lá muito bem, está contente, está…, diz ela

que já lá devia estar há mais tempo”;

F3. “A princípio foi um bocado complicado porque falava muito na casa, queria

muito ir para casa; Chegou a um ponto que ela tinha imensa dificuldade até em levar a

colher à boca e aí ela percebeu que não dava e acabou por aceitar, digamos assim,

conformar-se a estar aqui; está conformada, vê-se que está deprimida, isso nota-se

perfeitamente que ela está deprimida (…) mas ela já percebeu também quando está em

casa ou quando vai a casa, ela fica pior; tinha dias que me dizia que havia de ser

permitido que as pessoas, quando querem morrer, morressem. Porque ela via lá na

televisão a eutanásia e achava que essa seria a solução para ela”;

F4. “Ele no Lar, em Y, nunca gostou de estar, não sabemos porquê, ele se

calhar não gosta de estar em nenhum…; Ele só uma vez ou duas é que falou “quando é

que me levam ou eu quero-me ir embora, não estou aqui a fazer nada”; o meu pai foi

sempre muito fechado, muito para sofrer para ele. Ele, à vista, nunca tinha

problemas;”

F5. “Muito mal, ainda hoje lida muito mal. A minha mãe não aceita, a minha

mãe não queria, não quer e continua a não querer; pensa que eu é que a meti lá porque

quis; a minha mãe faz, diz que não gosta porque fui eu que a coloquei lá e tomei a

decisão, mas depois ela reconhece também e diz-me “não, mas elas tratam-me bem,

elas tratam-me bem”;

F6. “ À medida que começou a melhorar, começou a capacitar, a pensar que já

tinha condições para se ir embora; agora , precisamente, depois de ter acontecido

aquilo que aconteceu, sente-se mais calma e sente-se que está lá bem, é porque ainda

não está a cem por cento; ela também se vai adaptando. Aquilo depende dos dias,

aquilo é dias, pronto; ela já não liga muito à casa dela, neste momento”;

Page 67: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

53

F7. “Houve uns dias, ao princípio, que estava assim um bocado mais em baixo,

porque não sabia para onde ia, não conhecia ninguém; depois, foi-se habituando,

começou a ver a recuperação, habituou-se; foi-se habituando, até lá tem pessoas

conhecidas, que ela já conhecia cá de fora. E agora tem aceitado bem; Não sei, não

posso dizer como é que ela se sentiu, porque ela também não demonstrou muito aquilo

que sentiu; ela só diz “Quem está cá dentro é que sabe aquilo que se passa”. É o que

ela diz”;

F8. “Primeiro, não queria sair de casa dela. Depois (…) já estava mais

mentalizada; ela é uma pessoa de relações fáceis. E tem aquele, de qualquer coisa faz

um verso (…) e ela começou a ter uma noção da realidade, que era diferente daquilo

que ela imaginava. E com a conversa que eu lhe fazia também, ela chegou à conclusão

que pronto, ainda teve muita sorte, em ter ali um lugar; sente-se privilegiada. Até se

sente privilegiada em relação a algumas pessoas que não têm tanta sorte; agora já está

claramente integrada e está satisfeita. Nota-se que está satisfeita. E sente-se muito

melhor.”;

F9 . “A primeira vez que eu falei com ela, ela ficou um bocado.., até parece que

ficou ofendida comigo, e até me respondeu que, se eu gostava tanto dos lares, que fosse

eu para lá, e que a deixasse a ela na casa dela; a minha mãe mudou da noite para o

dia, a minha mãe está muito melhor, não tem nada a ver. Muito alegre, sempre bem-

disposta, não a sinto triste em nada; ela gostou imenso. Desde o início, desde o

primeiro dia, ela sempre gostou de lá estar”;

F10. “Ela, se fosse ela, ela não queria, achava que não ia e talvez não fossem,

pelo menos naquela altura, não iam se não, se não fosse o caso dele estar conforme

estava; pela minha mãe não ia e, ainda hoje, depois do meu pai partir, eu tenho a

sensação que, se eu dissesse à minha mãe se ela queria voltar para casa, ela não

olhava para trás; eu sei, eu sinto que ela gostava, que ela não se importava nada de

voltar p’ra casa dela”;

6. O pagamento como alívio

Alguns filhos/as entrevistados, tomaram a decisão de escolher uma instituição

onde os custos são mais elevados, não sendo suficiente, para os pagar, a pensão de

reforma do pai/mãe, e sendo eles, filhos, os pagadores da diferença. Nestas situações, a

instituição ainda é mais idealizada, e a culpa mais “abafada” pelo dinheiro pago. No

Page 68: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

54

entanto, mesmo nos restantes casos, os custos também surgem, nas respostas, como se

se tratasse de uma “penitência” paga pela culpabilidade que sentem.

F2. “a pessoa para vir dormir queria 400 e tal euros e uma semana por mês

tínhamos que lá ir alguém dormir com ela. Fiz contas e disse-lhe “olhe, a gente assim,

em estar a pagar 400 e tal euros, mais o comer do lar não vale a pena…; ficava a

pagar num 700€, noutro 775€ e noutro 890€. Então olhe, é pra onde me arranjar vaga,

quando mais depressa melhor! E ficou no mais caro!”;

F3.” eu e o meu irmão, e o meu pai, os três, resolvemos procurar uma

instituição com condições que nós pudéssemos arranjar e tivéssemos condições de

pagar…; é mais caro mas, pronto, ficamos de consciência tranquila que fizemos o

melhor por ela e arranjámos o melhor para ela estar confortável”;

F6. “Colocámos outra hipótese, mas depois surgiu aquela novamente e então,

preferimos ali, preferimos ali. Dos três lares, havia a opção de alterar, mas vimos que

aquele era o melhor, então optámos por ficar lá, apesar de ser mais caro, pronto...”;

F7 . “tem telefone para pagar, há contagens para dar, há transferências de

dinheiros para o lar e essas coisas todas; sou eu que tenho que fazer tudo”;

F8. “Eu inscrevia-a precisamente naquele lar que é subsidiado, porque a reforma dela

é muito pequena, a reforma dela é de 375 euros, mas na impossibilidade de haver uma vaga

nesse, ela ficou nesse mesmo lar, numa daquelas 10 camas não comparticipadas… Ficou a

pagar 700 euros, mais as fraldas, os medicamentos à parte…; . E é isso que eu tenho estado a

suportar. As despesas são só minhas. Porque o outro está com uma reforma de 200 e poucos

euros e não pode….; … tive de aproveitar, e tive que assumir. E tive que assumir eu sozinho,

porque eu é que tenho decidido, posto o preto no branco;… Eu carrego-lhe o telemóvel, sou eu

que lhe carrego o telemóvel; a minha mãe só tinha a reforma dela e eu muitas vezes durante

esse tempo todo, fui com ela ao supermercado, e quem pagou a conta para ela e para ele, foi o

meu cartão de débito; desde os quinze anos de idade que era chefe de família, com ela viúva e

três irmãos menores, que fui eu que tive de os acabar de criar; o meu dinheiro era lá para a

casa, eu é que era o chefe de família; ela sabe quem a tem apoiado toda a vida. Ela sabe em

que se encostar e quem tem contribuído inclusivamente para uma vida mais feliz”;

F9 . “eu estou sozinha nesta maratona, eu pago os extras todos do meu bolso, nem

sequer é pago pela reforma; estas instituições levam as reformas todas, não sobra um tostão

que seja, e depois é tudo pago à parte. Ou seja, tudo o que ela ganha é tudo para a instituição.

Page 69: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

55

Medicamentos, produtos de higiene, cortes de cabelo, arranjos de pés, tudo o que for extra sou

eu que pago do meu bolso”;

7. Institucionalização como último recurso

Todos os entrevistados referem vantagens da mudança do pai/mãe, de casa para o Lar

Residencial. Foram essas vantagens que serviram para justificar a opção tomada. No entanto,

por melhores que sejam as condições apresentadas, todos dizem que o “ideal seria a casa”,

colocando esse ideal no plano do desejo, não possível na realidade.

F1. “o Lar tem boas condições, um quarto, sala e w.c. privativos…mas, afinal, um Lar

não é a nossa casa!”;

F2. “ela lá está tratada a tempo e a horas…, está bem, está muito melhor, mais bem

encarada; eu penso que como toda a gente pensa, ir para o lar é a última hipótese…; … As

pessoas a estar mal em casa, é preferível…; sim, a nossa casa é a nossa casa. Enquanto a gente

está em condições de estar em casa e ter companhia, eu acho que em casa está-se sempre

melhor, estar no nosso cantinho, faz aquilo que a gente quer e isso tudo”;

F3. “ela em casa não tinha as condições, nós não conseguíamos dar-lhe as condições

que ela precisava, que era estar sempre com alguém do lado e com alguém que soubesse cuidar

dela e dar-lhe mais assistência; e conseguimos pô-la aqui., onde há condições de higiene, há

assistência, há apoio, há até, segundo aquilo que me parece ver, os utentes são bem tratados,

são bem cuidados;… ela não pode estar sempre connosco, que seria o ideal;… É claro, o ideal

seria ela estar na casa dela”;

F4. “ foi uma situação realmente nunca, foi uma coisa que nunca nos passou pela

cabeça.... pronto. Nós eramos, somos oito e nunca nos passou pela cabeça que ele chegasse a

esta situação. O certo é que a gente, pronto a gente à distância, por vezes não vê as coisas

como elas, sempre pensamos que a..... um dia que chegasse a esta situação haver algum ou

alguma que tivesse disponibilidade…; A minha sogra teve a felicidade de ter a filha que se

disponibilizou e está lá há doze anos em casa dela, pronto. Não está num lar, está em casa da

filha. Mas sempre pensamos que o meu pai estivesse assim, tivesse essa possibilidade, mas....

atendendo à vida que cada um tomou, não era possível isso acontecer”;

F5. “ Se eu pudesse monetariamente pagar, em vez de a minha mãe estar num lar, ter

uma pessoa que enquanto eu estivesse a trabalhar, tomasse conta dela e me ajudasse um

bocadinho, na noite, sim. Não teria posto a minha mãe num lar, pelo menos ela não saía do

ambiente familiar dela. É lógico que sim, eu mudaria isso. Isso eu faria, sim, sim, sim. Se

houvesse estabilidade financeira para isso, claro”;

Page 70: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

56

F6. “ está acompanhada, tem médicos, tem enfermeiros, tem as senhoras que estão lá

que tratam delas fazem-lhe tudo;… Se a gente tivesse hipóteses de a termos na nossa casa, mas

a gente não está em casa, a gente trabalha…; um dia mais tarde, se lá chegar, não é, também

gostava de estar num sítio desses;… Em casa é sempre preferível, enquanto se pode…; “Você

imagina-se naquela situação? F6: se tiver que ser, não é?”;

F7. “acredito que num lar onde há tanta gente, é natural, se calhar, de vez em quando,

não serem tratadas, não quer dizer que as tratem mal, mas se calhar não serem tratadas se

calhar como elas deviam.; A gente também sabe que, num lar onde há tanta gente, nem sempre

se pode dar atenção a todas ao mesmo tempo, nem de igual maneira, porque cada pessoa,

pronto e cada pessoa também tem o seu feitio…; Ela tem a casinha dela ainda, à mesma, tem

água, tem luz…”;

F9. “elas foram sempre muito carinhosas com ela, gostou, adaptou-se lindamente,

integrou-se de uma maneira que eu nunca pensei que ela se viesse a integrar; …realmente,

acho que isto é o mais triste que pode haver; Se eu pudesse, ela não..., não sei, porque eu hoje

em dia, no início, era o que eu pensei quando lá a meti, pensei: vou meter a minha mãe com

pessoas estranhas, pessoas com que ela nunca lidou, pessoas que ela não conhece de lado

nenhum…pelo menos, no cantinho dela, na casinha dela, ela estava melhor, vai lá a família; vê-

la naquele estado, e saber que a tinha que ir meter numa instituição para tomarem conta

dela…; eu sei que há pessoas que estão, mesmo contrariadas, e choram e não ligam a ninguém

e muitas vezes é meio caminho andado para a morte, porque infelizmente, ali é a última morada

da maior parte delas”;

F10. “ a maior parte dos idosos estão lá porque tiveram que ir para ali, é um

tem que ser; para mim é um mal (…) nós entendemos e eles são bem tratados e são bem

cuidados e ali têm tudo aquilo que, se tiverem na casa deles, não têm, porque já não

têm capacidade para estarem, para se cuidarem; eu digo que é um mal necessário para

eles e para nós, com que temos de tomar e temos de lá os deixar porque, para mim,

aquilo é mesmo o ponto de passagem para o outro lado. Quando eles vão, já não

voltam mais, isso é muito difícil pensar, que os vamos deixar ali e que já não regressam

a casa. Aquilo ali é mesmo o ponto de passagem para o outro lado, não há volta a dar,

todos os que vão já não voltam; … aquilo ali, apesar de não ser aquilo que eles acham

que é bom mas, nós é que, é aquilo que lhe podemos dar, pelo menos terem ali umas

condições mínimas necessárias para irem vivendo…”

8. As visitas e contactos como alívio da culpabilidade

Page 71: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

57

As visitas ao idoso institucionalizado, por parte dos filhos, antes cuidadores,

estão relacionadas com a culpabilidade sentida, ainda que de forma não linear. Não

podemos dizer que quem se sente mais culpado faz mais ou menos visitas ao pai ou à

mãe, já que essa relação não é automática e, de acordo com os relatos, existem outros

fatores (nomeadamente, relacionamento anterior) que condicionam e regulam os

contactos que se estabelecem após a institucionalização.

F1 . “como não conduzo, vou quando o meu marido pode, mais ou menos, de

quinze em quinze dias, mas falo com a minha mãe quase todos os dias, ao telefone”;

F2 .“Todos os dias; eu penso que as pessoas, estando num sítio daqueles, os

filhos nem aparecem lá, penso que as pessoas começam a estar contrariadas de tudo”;

F3 “;Todos os dias. Só quando eu não posso. Só mesmo quando eu não posso

vir, de forma alguma, às vezes acontece, não é? Só mesmo quando é completamente

impossível. E, se eu não venho, ela fica triste, muito triste e muito preocupada; se eu

não vier todos os dias, eu não fico bem comigo própria, sinto a falta (…) e porque

penso assim, ela agora, a minha mãe que tá lúcida ainda, eu ainda consigo estar com

ela, ela ainda tira algum prazer de estar comigo e eu com ela, ainda falamos, ainda lhe

conto as graças das minhas netas que ela fica feliz, ainda lhe conto como vai o negócio,

como vão as pessoas que trabalham lá em casa, como vai tudo isso e também porque

penso que pra já, ela ainda está cá, ainda tá lúcida e eu ainda consigo estar com ela,

usufruir dela…; tenho que aproveitar todos os dias e sempre que posso enquanto ela

estiver cá.”;

F4. “Todas as terças feiras vou com a minha mulher visitá-lo (…) se eu lá não

for durante a semana, ele não estranha nada, mas, se eu tiver quinze dias sem lá ir, já

estranha; se a minha irmã não me disser nada, telefono-lhe eu" então como é que está o

X" portanto é a nossa conversa é o X "então como é que estava o X?" [refere-se ao pai

pelo nome próprio];

F5 . “Eu, às vezes, vou durante a semana uma vez e depois vou sempre aos fins-

de-semana, ou sábado ou domingo; ou telefono. Mãe, olhe que eu não vou”;

F6. “Dois, três dias, às vezes vou lá ao domingo. Domingo, essa não falha, não

é, e às vezes trazemo-la, e vai almoçar com a gente, juntamos todos, a família toda”;

Page 72: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

58

F7. “Vou lá todas as semanas. E todos os dias, se for preciso, telefono-lhe .(…) :

normalmente vou uma vez por semana mas, se ela precisar, se eu telefonar, se ela

precisar de coisas que leve, vou duas e três vezes se for preciso lá a levar-lhe aquilo

que ela precise; eu sou sincera, eu todos os dias também não posso porque também

tenho a minha casa, tenho as minhas coisas para fazer e tudo o que seja relativo à

minha mãe sou eu tudo que tenho que tratar; portanto eu não tenho disponibilidade de

ir lá todos os dias. Tenho disponibilidade de lhe telefonar”;

F8. “ Se fosse como ela queria, se calhar tinha-a visitado das 11 ao meio dia e

das 3 às 5, como ela queria. Mas não pode ser, visito-a dia sim, dia não; E quando não

vou, no dia que eu não vou, ela tem sempre visitas. É que ela tem sempre visitas, e por

vezes 3 e 4 pessoas. Ela é muito visitada; E telefona-me duas vezes, e aí há bocado, ela

telefonou-me para ver como é que estava. Logo à noite, as 7, sete e tal quando se deita,

telefona-me sempre; por vontade dela, eu iria todos os dias. Mas ela tem lá muita gente

e por vezes vou lá só para a ver, porque depois é muita gente e não há condições para

receber muita gente em simultâneo”;

F9. “ dia sim dia não (e antigamente era todos os dias) eu passava por lá para

sabe se ela se estava a integrar. Agora é que já vou mais espaçadamente porque sei que

está bem e também não quero estar a ser massacrante porque aquilo tem um horário de

visita; …atende, fala, mas não tem telemóvel. eu telefono para a instituição e elas

passam-lhe o telefone”;

F10 . “eu ainda vou lá todos os dias, eu ainda passo lá, p’ra já porque lá

trabalho, e mesmo não trabalhando (feriado ou fim de semana) eu vou lá mesmo todos

os dias; às vezes penso que não havia necessidade, eu tenho a minha vida, tenho o dia

mais ocupado, mas a minha mãe está sempre à espera; sempre, sempre, sempre. Até o

facto de ser feriado, ser fim de semana, o saber que não me vê com tanta frequência,

(porque eu passo por lá às 9, ao meio dia e meia, depois de almoço e ao fim da tarde,

antes de sair), portanto ela sabe que se for fim de semana ou feriado, só me vê uma vez.

E ela diz” é bom p’ra ti o feriado, é bom p’ra ti o fim de semana, mas eu estranho”

9. Saídas temporárias da instituição

Institucionalizar o idoso/a significa deixá-lo lá para sempre, com corte total de

ligação ao mundo exterior? O pai/mãe perdem os seus direitos de cidadania ao irem

Page 73: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

59

viver para um Lar de idosos? Qual é a conceção que os filhos têm e que praticam?

Como veem esta mudança na vida dos pais e de que forma agem?

F1. “Sim. Vou sempre no Natal e quando fazem anos. Vêm para a minha casa,

outras vezes vão para casa dos meus irmãos. A minha irmã da Suíça também os vai

buscar quando vem a Portugal, duas vezes por ano. Eles gostam de sair e a minha mãe

diz que só tem saudades da sua casa, de mais nada”;

F2. “ Já saiu, fomos um dia ao médico e fomos outro dia à da minha irmã, a

casa da minha irmã em Beja, e pronto. E veio outro dia para minha casa”;

F3. “a minha mãe logo quando veio, de quinze em quinze dias, ia a casa”;

Pois, porque estava melhor, de quinze em quinze dias, nós levávamo-la a casa. Ainda

chegou lá a passar, logo ao princípio de estar aqui, três/quatro dias, umas férias;… só

que a situação depois também se começou a complicar)

F4. “Eu ainda não fui, ainda não fui, ainda não calhou… os meus irmãos foram;

pelo natal foram uns e pelo ano novo foram outros”;

F5. “eu vou buscá-la sempre de manhã, almoça comigo, quando começa lá

pelas 2 e meia 3 horas, começa a dizer “se calhar vais-me mas é levar, elas tão lá ao pé

de mim, eu quero é ir lá para o pé delas”;

F6. “às vezes trazemo-la, e vai almoçar com a gente, juntamos todos, a família

toda. Ela gosta muito de sair com a gente, de ir comer. (…) No Natal vai para o meu

irmão e depois a gente vai lá ter…; no ano novo, normalmente juntamos lá todos na

minha casa”;

F7. “Quando é festas, a minha mãe sai. Quando é só assim… um dia… quando é

assim um dia ou assim, nós vamos buscá-la e trazê-la. Por exemplo, quando foi pelo

natal, fui buscá-la, mas é assim: a minha mãe é uma pessoa que está dependente do

oxigénio”;

F8. “Trouxe-a a almoçar a casa uma meia dúzia de vezes, quando vem tratar

dos pés, vou lá buscá-la e vai tratar dos pés e depois levo-a a casa a almoçar e depois

vou a uma esplanada quando o tempo permite, aliás… para falar com dois ou três, bebe

um cafezinho e depois vou levá-la”;

F9. “Ela gosta de sair, nunca diz que não. Eu vou lá e digo "mãe, hoje vais

almoçar comigo", "Ah, está bem, está bem", mas quando a trago, depois está sempre

Page 74: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

60

desejosa de voltar; eu fiz anos no dia 9 de março, fui buscá-la, tinha ido buscá-la um

fim de semana atrás; tinha ido buscá-la no ano novo. Vou buscá-la quando calha”;

F10. “ quando vêm estes dias [Natal], levava os meus (sempre, sempre), agora levo

a minha mãe. E noutras ocasiões, claro! Sou incapaz, sempre assim foi, quando alguém

faz anos…”

10. O peso do passado no relacionamento com os pais

Em todas as entrevistas veio à superfície a importância do relacionamento

anterior nas atuais relações entre filhos e pais. Alguns, aprofundaram mesmo a sua

história pessoal, desde a infância (sem que isso tenha sido pedido), como forma de

justificar (?) o tipo de contactos atuais e a sua qualidade.

F2. “toda a vida a minha relação com a minha mãe foi boa, pronto. Eu fiquei

sem pai, ainda não tinha dois anos e pronto, vivi sempre com a minha mãe, com os

meus avós. Depois a minha mãe casou, o meu padrasto foi, se calhar, melhor que um

pai, o meu padrinho foi impecável sempre, nunca me faltou nada, precisasse daquilo

que precisasse era dizer-lhe e ele se tivesse, estava desenrascado. E pronto, foi sempre

uma vida assim com eles sempre me dei bem e com a minha irmã, igual, com a minha

irmã nunca tivemos nada um com o outro, felizmente e espero nunca virmos a ter”;

F3 (…na minha relação com a minha mãe, ao longo destes dois anos, temos

uma relação mais calma, mais tranquila, porque nós chocávamos imenso as duas,

muito. Somos um pouco polos opostos, enquanto a minha mãe é, era, coitada, o quero,

posso e mando, dava ordens, eu era ao contrário; E por vezes, entravamos até um

bocado em conflito as duas, até por causa das pessoas que trabalham lá em casa.

Achava, não concordava, na maneira, na forma como a minha mãe por vezes falava

para as pessoas, com tom autoritário; agora, a nossa relação assim é mais, é mais…

E--Tranquila?

F3--Mais tranquila.

E--Não têm essas coisas para discutir.

F3--Nem essas, nem “onde estiveste? nem onde foste? onde andaste? Nem, olha

lá que horas são! porque eu estou viúva. Onde é que foste, passas o dia na rua, havia

sempre….; eu às vezes também perdia a paciência, também com ela. Houve umas

ocasiões, em que a senhora que ficava lá com ela, que estava a cuidar dela, eu não

Page 75: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

61

suportava aquilo, não suportava. Ela punha a criatura de joelhos, tinha que andar de

joelhos a esfregar o chão da cozinha, não sei com o quê.

F4.“ Eu nunca fui pessoa muito de .....andar a ir todos os dias, por exemplo, a

ver o meu pai a casa ou ver a minha mãe (…) nós somos muitos, todos os dias nos

vemos (…) todos os dias eu e a minha irmã que estava em casa, todos os dias de

manhã, eu via-a, ela vinha beber café para ir para o serviço dela ou para sair para o

escritório e eu perguntava-lhe sempre" então os meninos?"; A nossa relação.... e eu fui

sempre, portanto tive sempre assim uma boa relação, porque eu .... não fui criado com

os meus pais, em parte…não foi por isto ou por aquilo. Antigamente havia aquela

tradição, a mãe ter um bebé, o outro mais novinho precisava de estar uns dias afastado,

desmamar, não sei quê, e foi assim que eu fui para casa dos meus padrinhos, fui e lá

fiquei, pronto, a minha irmã foi para os XX e lá ficou”;

F5 .“Sempre foi o mesmo, sempre foi preferencial o meu irmão; por isso é que

eu talvez senti muito, muito, muito a morte do meu pai. Porque o meu pai tentava

sempre compensar, embora o meu pai tivesse sempre a predileção pelo meu irmão. Mas

foi muito complicado. Hoje em dia já não é tanto. A gente tem fases difíceis na vida e

vamos ultrapassando; … Isto que vou dizer, a minha mãe disse-me muitas vezes, que

não gosta tanto de mim como gosta do meu irmão, mas pronto. (…) E ela às vezes diz-

me, pronto que eu tenho assim, sou um pouco mais explosiva e que gosta mais do meu

irmão. Mas isso disse-me muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes. (…) E foi muito

difícil, muito difícil!”;

F6.“ Ela sempre teve o feitio aquele, sempre havia os altos e baixos; [queixa-se]

de tudo! De toda a gente! E antes, antes de ir para o lar também se queixava muito.

Aqui, o feitio é igual, ah, o feitio é igual! (…) quando tem que dizer, diz, e depois às

vezes, arrepende-se.;… sim, sim, sim é o nosso dever [dos filhos]. Ela cuidou da gente,

e a gente tem de cuidar dela”;

F7.” A minha relação com a minha mãe foi sempre boa. Mas… chegou a uma

certa altura que a minha mãe… era o que ela dizia, era o que tinha que ser feito! E eu,

depois, cheguei a uma certa altura que tive que me impor com a minha mãe…e fazer-

lhe ver-lhe certas coisas, porque ela comigo é que desabafava tudo. E eu levava… e

hoje, se for preciso, se eu não lhe cortar, levo com tudo aquilo que ela tem que dizer às

outras;…. Normalmente, costumamos dizer que… costumamos dizer que é o mais velho,

Page 76: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

62

não é?, que tem obrigação, é assim e assado; eu não, eu é ao contrário, eu sou a mais

nova”;

F8.“Toda a vida foi boa [relação com a mãe]. Foi excelente, aliás os meus

irmãos, perante os meus irmãos, sempre foram um bocado difíceis, porque tinham

muitos vícios, desde o álcool, passando pelo tabaco e pela batota, e isto e aquilo;

desde os quinze anos de idade que era chefe de família; ela foi mãe solteira… ele

gostava imenso da minha mãe, mas os pais tinham a mania que eram ricos… a minha

mãe era de família pobre, aquilo era proibido”;

F9. “Melhorou [a relação]. Melhorou porque é assim, a minha mãe está muito

mais carinhosa, ela tornou-se uma pessoa muito mais chegada, não sei se é por estar

afastada da família, estar numa instituição. A minha mãe não era uma pessoa

carinhosa, a minha mãe até era uma pessoa fria, não era uma pessoa de muitas

demonstrações de sentimentos. E agora quando me vê diz logo "olha, olha a minha

filha!", faz assim, faz uma festa tão grande quando nos vê!... agarra-se a mim e, ela

dantes não, dantes eu ia a casa dela e ela não se manifestava dessa maneira;… estava

habituada a lidar com ela, ter uma relação diferente com ela”;

F10. “a minha vida sempre foi um bocado condicionada por eles. Sempre as

minhas atitudes e as minhas decisões foram tomadas, muitas vezes, em relação a eles;

em função deles, do bem-estar deles, das opiniões e dos sentimentos;… Eu tive um

irmão. Faleceu com oito anos (pausa) quando eu tinha 9 meses…durante a minha

infância, os primeiros anos, eu parecia que eu tinha vivido com ele, porque a minha

mãe sempre falava dele, sempre guardou coisas dele, e ainda hoje ela fala muito nele,

ainda hoje ela acha que, se ele cá estivesse, as coisas também poderiam ser um pouco

diferentes; (…) ela despegou-se ali um bocado de mim, porque ela, o sentido dela era

só nele. Ela centralizou ali uns anos da vida dela só nas lembranças do filho. Tanto

que, sempre ela me disse que tinha uma prima que foi p’ra casa para cuidar de mim,

porque ela, simplesmente, não estava bem, ela não tinha capacidade para cuidar de

mim!.... E eu sempre me senti que eu era a única…pronto, era o único apoio que eles

tinham! E sempre tentei fazer…pronto, não fazemos sempre tudo aquilo que eles

esperam de nós, ninguém é perfeito!...eu ainda hoje sinto a falta e penso muitas vezes se

eu tivesse aquele irmão, também tudo seria diferente!… Quando eles estão no fim da

vida, tudo aquilo que eles passaram, tudo, lá está, é um mal necessário! Se a gente

pudesse, faria as coisas diferentes, faria tudo com que eles estivessem bem!”

Page 77: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

63

Na maior parte das respostas, verifica-se a tentativa de desresponsabilização do

entrevistado/a, relativamente à decisão tomada de institucionalizar o pai ou a mãe, fosse

por não ter participado diretamente (F4), tendo a decisão sido dos irmãos, ou por

considerar que foi o pai ou a mãe a decidir (F1 e F2), perante a inoperacionalidade de

outras alternativas. A verdade é que essas decisões dos idosos, tal como são

apresentadas nas respostas, foram opções “forçadas”, quando não lhes foram

apresentadas outras soluções. No entanto, fica a ilusão de que foi ele/ela (pai/mãe) a

optar pela ida para o Lar, aliviando a responsabilidade do filho/ cuidador/a (F2), que se

“conformou” com a situação, tendo em conta as circunstâncias. Invertem-se os papéis e

fica-se na ilusão de que ele/ela continua a tomar as decisões importantes sobre as suas

vidas, e essa ilusão é tranquilizadora, securizante e desresponsabiliza os filhos dos atos

praticados.

Em algumas respostas, é visível a crítica a outros (irmãs/irmãos) que não se

disponibilizaram para ajudar a cuidar (F5 e F7), enquanto outros referem as barreiras

físicas (escadas, F8), como impedimento para a continuação da mãe em casa. Há uma

resposta (F9) que refere o conselho do médico para que a idosa não continuasse a viver

sozinha.

Verifica-se uma tentativa de racionalização, nas respostas, enumerando factos e

acontecimentos que terão levado à solução adotada, mesmo que, antes, se tenham

experimentado outras soluções, todas elas conducentes à institucionalização. E, pelo

menos, uma entrevistada (F10) generaliza a crescente dependência dos idosos para

justificar a institucionalização, simultânea, dos seus pais, admitindo a sua própria

incapacidade para os cuidar, mesmo que dispusesse de tempo. Assim, normalmente a

culpa vem projetada no exterior, ou seja, numa doença súbita ou no agravamento da

mesma, nas condições desconfortáveis da casa, numa situação familiar difícil, ou, no

sentir-se só para prodigalizar os cuidados necessários.

Em resumo, a generalidade dos entrevistados distribui a responsabilidade da

institucionalização por pessoas (pai/mãe, irmãos, indisponibilidade destes) e/ou

circunstâncias (doença, dependência física ou psicológica do/a idoso/a), assim como

características da habitação (ausência de cuidadores ou vigilantes próximos, barreiras

arquitetónicas, falta de conforto da casa), de forma a aliviar a culpabilidade que

julgamos ser sentida por todos. A casa do idoso foi “despida” de todas as comodidades,

Page 78: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

64

de todo o conforto (é fria, húmida, tem escadas, degraus, é isolada), e o filho/a isola (ele

próprio) as emoções e afetos ligados a esse lar, que foi, muitas vezes, o local onde

nasceu e cresceu. Por outro lado, todos os atributos positivos e favoráveis a uma boa

qualidade de vida (“ela lá está tratada a tempo e a horas e aqui passava frio, lá não tem

frio, essas condições” – F2: 5) “, passam para a instituição (boas condições, conforto,

acompanhamento, alimentação, cuidados médicos), que passa a ter o estatuto de “nova

casa, novo lar”.

Os aspetos negativos da vida num Lar de Idosos, são referidos en passant e

menorizados, ou são completamente ignorados; mesmo quando a mãe se queixa (F6), o

filho responde “então, elas tratam-te bem, cuidam de ti!”, como se, só através dessa

idealização da instituição, fosse possível suportar a culpabilidade. A negação do menos

bom da institucionalização surge também em F7 (21) “A gente também sabe que, num

Lar onde há tanta gente, nem sempre se pode dar atenção a todas ao mesmo tempo,

nem de igual maneira (…) nunca vi ninguém tratar mal ninguém, nunca vi ninguém dar

resposta má a ninguém, nem muito menos à minha mãe…”, em que a filha admite

haver, mas justifica, atitudes pouco corretas relativamente aos idosos.

No entanto, e apesar da idealização da instituição e da institucionalização, esta é

acompanhada, e mesmo, precedida de sentimentos de angústia, tristeza e medo, porque

os filhos têm consciência da profunda alteração na vida familiar, que nunca mais será

igual. A institucionalização remete também para o envelhecimento do próprio, quando

se antevê numa situação semelhante, refletido no pai/mãe, que agora está a entrar para a

sua última morada. E esta forma de encarar o Lar de Idosos como uma inevitabilidade,

ou como um privilégio, a que o próprio não sabe se terá direito, são duas faces da

mesma moeda, uma mais adequada (reconhecendo a culpabilidade do ato), outra menos

adaptativa e mais idealizada (atribuindo o estatuto de privilegiado ao pai/mãe, em

comparação com muitas outras pessoas). Esses filhos, que consideram os pais/mães

privilegiados por terem acesso a um lugar num Lar de Idosos (“assim eu tivesse

dinheiro, uma reforma pra poder ir para lá” – F2:18); (ela chegou à conclusão que

pronto, ainda teve muita sorte, em ter ali um lugar” – F8:15) são também os que

associam os custos financeiros à qualidade dos serviços prestados, e idealizam, não só a

institucionalização, mas também a mãe (“foi sempre muito comunicativa, apesar de ser

analfabeta publicou um livro sobre a vida dela”- F8:4; “Ela é uma pessoa de relações

fáceis. E tem aquele, de qualquer coisa faz um verso” – F8:14; “ela é muito visitada” –

Page 79: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

65

F8:22; “ela como está boa de cabeça, ela está impecável, para mim, devia haver uma

situação que as pessoas estivessem em zonas diferentes – F2:12).

Os filhos que negam sentimentos de tristeza e que, pelo contrário, se afirmam

“muito satisfeito” (F2), “não me senti mal” (F3) “reconfortado” (F8), são aqueles que

mais idealizam a institucionalização e que atribuem uma grande melhoria à qualidade de

vida do pai/mãe. Pensamos que esta visão “dourada” serve para aliviar a culpabilidade,

negando-a e racionalizando os sentimentos, quando se diz “se a minha mãe estivesse

num lugar, num sítio em que fosse maltratada, não houvesse condições, eu sentia-me

muito mal” (F3), fazendo depender o que se sente, dos cuidados físicos dispensados e

do tipo de instituição escolhida.

Os que exprimem, claramente, o mal-estar e admitem sentir-se tristes, vivenciam

a culpabilidade de uma forma mais adaptativa e, talvez, menos angustiante. “Senti-me

um pouco triste” – F5; “senti-me um bocado em baixo e foi complicado para mim” –

F7; “a mim custou-me um bocado. Chorei” – F9; “Foi, foi, foi muito difícil” – F10. Ao

contrário de outros, estes filhos não escondem as emoções e sentimentos negativos,

associados à entrada dos pais num Lar de Idosos e, pelo menos aqui, não usam a

negação como defesa. Mas, mais do que tristeza, a institucionalização do pai ou da mãe

faz-se acompanhar de pesar, algo mais poderoso e sufocante. Escolhemos, para ilustrar

o sentimento de pesar (la pesadumbre, como escreve Garcia Haro, 2014), reconhecido

por vários entrevistados, um excerto da resposta de F10: “quando ali os deixamos,

pensamos mais, pensa-se mais, que ali é como se os estivéssemos a pôr no início da

ponte. E que, agora é atravessar a ponte. A ponte pode demorar mais, menos, mas a

ponte está lá, e há-de chegar o fim da ponte. E há-de chegar aquele dia”. E o princípio

do fim, quando é sentido desta forma, é particularmente doloroso “porque aquilo que

nos toca cá no fundo, por mais que se queira, nós não conseguimos disfarçar, aquilo

atormenta, não conseguimos mostrar que as coisas são diferentes. Queremos, de

alguma maneira, mas não convence. É difícil. É difícil mesmo!” (F10);

Quanto à reação dos pais, da forma como é sentida pelos filhos, podemos dizer

que estes reconhecem que não foi fácil, tendo alguns deles (pais) resistido, enquanto

puderam, à mudança. Os percursos são diferentes, e somente F1 e F2 consideram que os

respetivos pais/mães se sentiram, desde o início, satisfeitos com a ida para o Lar (a

primeira porque “foi ela a decidir”; a segunda por reconhecer que “deveria ter ido

antes”). F8 diz que a mãe não queria sair de casa, mas agora está “plenamente integrada

Page 80: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

66

e satisfeita”, e “chegou à conclusão que ela “ainda teve muita sorte” em ter ali um

lugar”. Para o filho, esta conclusão “da mãe” serve de alívio à pressão feita por ele, para

a mãe aceitar a institucionalização, ou seja, ela confirma e reforça a convicção dele de

que um lugar num Lar é um privilégio a que nem todos têm direito, e aqueles que o têm

devem estar agradecidos a quem o proporcionou. Logo, sendo ele o responsável por

essa “dádiva”, sente um verdadeiro alívio na culpabilidade por ter institucionalizado a

mãe.

Os restantes entrevistados admitem que os pais/mães não queriam ser

institucionalizados, reagiram mal, no início, mantendo-se a maior parte, não satisfeita

com a vida atual que têm. A perceção dos filhos, dessa insatisfação, acentua o seu

próprio mal-estar, de que se vão defendendo, invocando o caráter “fechado” do pai/mãe

(F4 e F7) ou a sua permanente insatisfação e instabilidade (F6). Os restantes vivem

atormentados, por não conseguirem devolver aos pais o ambiente familiar, admitem

essa angústia, que remete diretamente para uma culpabilidade sentida, aqui não ocultada

por mecanismos de defesa.

Não vai para um Lar de Idosos quem quer, nem par o Lar que gostaria. O

problema dos custos, frequentemente não suportados pela pensão de reforma dos idosos,

surge nas entrevistas, como um fator condicionante da culpabilidade. Sempre que foi

possível, ou quando não foi possível a opção “mais barata”, os filhos que decidiram

apresentam “a conta” do que têm que pagar por um lugar numa instituição. Mas, mesmo

quando a reforma do idoso/a é suficiente para pagar a mensalidade, surge o “sacrifício” feito

pelo filho/a, ao pagar todos os extras: medicamentos, fraldas, cuidados corporais, etc. São os

filhos cuidadores a pagar porque, como diz F9, “estas instituições levam as reformas todas, não

sobra um tostão que seja, e depois é tudo pago à parte, e sou eu que pago do meu bolso”. Isto é

dito, evidenciando uma revolta por assumir esses custos sozinha, mas servindo também para

aliviar o peso da decisão de ter institucionalizado a mãe.

Os participantes F3 e F6 relatam como optaram pela solução mais cara, entre várias

opções, por considerarem ser essa a melhor solução, a que reunia mais vantagens, enquanto F2

apresenta os custos de três opções, dentro da mesma instituição (todos acima das possibilidades

financeiras da mãe) e optou pela que tivesse lugar mais rapidamente, que foi também a mais

cara. Mas é, nas respostas de F8, que mais se evidencia o papel dos custos financeiros na

redução da culpabilidade. Não é só o custo mensal do Lar onde institucionalizou a mãe, mas

também os gastos que, ao longo da vida, o filho suportou, para proporcionar conforto à mãe e

aos irmãos. Esse “preço” pago à família não teve retorno de nenhum tipo, já que os irmãos

Page 81: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

67

viveram uma vida de “vícios”, como ele diz, e “não quiseram” aproveitar as oportunidades,

tendo-se suicidado um, enquanto o outro morreu de cancro (por abuso do tabaco). F8 considera-

se o apoio permanente da mãe, desde os quinze anos, e acha que ela reconhece essa dedicação,

que “justifica” a institucionalização. Ao filho que já pagou tanto (e que continua a pagar), não se

pode culpar de nada! Trata-se, pensamos, de uma fuga, de uma defesa que lhe permite fugir à

culpabilidade.

Mas, mesmo os sujeitos que mais defesas usam para se sentirem menos culpados, não

estão imunes às contradições, muito evidentes no conjunto das respostas. A contradição entre

o Lar institucional como solução para todos os problemas (solidão, cuidados físicos,

alimentação) e a representação que os filhos adultos têm da institucionalização, está

bem presente nas respostas que deram. A ideia principal que fica é que um Lar é mesmo

a última morada, o último recurso da família, quando já nada mais há a fazer, ou,

entendemos nós, quando queremos convencer-nos de que não havia outras hipóteses de

solução para o problema que nos aflige. A “última morada”, o “início da ponte para o

outro lado”, “um Lar não é a nossa casa”, “o ideal seria a casa” “Eu penso que… ,

como toda a gente pensa, ir para o Lar é a última hipótese” constituem desabafos do

filho/a, um buraco no muro sólido, que construíram mentalmente, de que tomaram a

melhor decisão (em benefício dos pais). Contradição? Talvez não, se tivermos em conta

o fundo de culpabilidade que acompanhou essas decisões, e a oposição verbalizada

pelos idosos. Ainda assim, e por mais que os filhos tenham procurado a residência mais

cara ou luxuosa, qual hotel de cinco estrelas da velhice, (pelo menos, fantasiada, por

eles dessa forma), o estigma do Lar de Idosos, a conotação negativa da própria palavra,

a despersonalização de alguém no meio de 20 ou de 200, não deixa de acompanhar a

representação que se tem da institucionalização.

Os próprios pais são idealizados, mas também pintados com cores que vão,

rapidamente, do branco ao preto ou o inverso: “a minha mãe tinha um princípio de

demência/ ela começou a ter algumas dificuldades de memória e de fazer as coisas

básicas (…) a minha mãe é que tratou de tudo” (F1:1); “Faz ginástica, pertence a um

grupo de teatro, participa nas iniciativas culturais, que são várias. Está sempre

ocupada” (F1:6); “Acho que sim, que está conformada, vê-se que está deprimida, isso

nota-se perfeitamente que ela está deprimida porque está ali, está aqui o dia inteiro,

está sentada…” mas, “quando vai a casa, ela fica pior”. (F3:7); “ela diz para os

irmãos, que tem os filhos muito amigos dela, porque os filhos dela puseram-na num

sítio muito bom, onde ela é muito bem tratada, onde há muito asseio onde cuidam muito

Page 82: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

68

bem dos velhos”; (F3:21); “ele era analfabeto, mas ele nunca teve o problema de falar

qualquer coisa com alguém. Ele tinha um assunto para tratar com o juiz, por exemplo,

com um advogado, com ... ele não tinha problemas” (F4:19); “Ela agora tem saudades

da casa dela, pede para lá ir, mas também já estou a ver que ela já não liga muito à

casa dela” (F6:17); “Ela tem um cérebro extraordinário, a 100%, não tem

dores”,(F8:3);” Ainda ontem, ela me perguntou por uns candeeiros… gosta de saber e

ainda tem aquela nostalgia…, mas, de qualquer maneira não a afeta psicologicamente

“ (F8:18); “ até o meu pai, na demência dele, tinha aqueles dias em que ele estava

mais lúcido”(F10:12).

Os filhos entrevistados mantêm um contacto regular com os pais, seja visitando-

os, telefonando e levando-os a sair do Lar, embora mais raramente. Desde as visitas

diárias (e, no caso de F10, três vezes por dia), às semanais com dia marcado (F4), estes

filhos/as mantêm uma relação próxima com os pais, semelhante, na maioria dos casos, à

que mantinham antes da institucionalização. Mais do que o número de visitas, é a

justificação das mesmas que nos dá uma mais clara ligação com a culpabilidade. F2, por

exemplo, justifica as visitas diárias à mãe com a convicção de que os idosos que não

têm visitas dos filhos, começam a viver constantemente “contrariados”, tendo as visitas

o papel de aliviar a solidão que sentem, ainda que no meio de todos os outros. Para este

filho, a visita à mãe é fundamental para que ela se sinta bem, logo, diminui a sua (dele)

culpabilidade. F3, que também vai diariamente (faz todos os dias 30 km) sente uma

enorme necessidade de aliviar a angústia da mãe porque, nas suas palavras, ela “fica

muito preocupada”, e porque precisa aproveitar enquanto a mãe cá está” (na vida). No

entanto, a sua resposta indica também outras necessidades da filha e da mãe, a primeira

tendo que dar conta de tudo o que se passa na família, para satisfazer a ilusão de

controlo da segunda, numa mimetização do relacionamento anterior. Esta filha, com

mais de 60 anos, continua a prestar contas, diárias, à mãe, sobre a família, o negócio e a

casa.

No caso de F8, as visitas constituem-se como a reafirmação de que aquele é o

“filho ideal”, que nunca falhou à mãe, que continua a ser o “chefe de família”, e cuja

saúde preocupa a senhora de 96 anos. A necessidade de não falhar a esta mãe (já que os

outros falharam), obriga F8 a ir, dia sim dia não, justificando a não ida diária com a

idealização da vida social da mãe que “tem sempre visitas, é uma mulher muito

Page 83: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

69

visitada” e ele (filho) não “quer incomodar” porque o espaço não tem “condições para

receber, muita gente, em simultâneo”.

F4 tornou as visitas ao pai um ritual semanal, com dia marcado, e vai sempre

acompanhado da mulher. Esta ritualização assume o carater de um dever filial a

cumprir, porque não era habitual visitar os pais, perguntava por eles à irmã mais nova, o

que continua a acontecer nos dias em que não vai, usando o nome do pai (X),

demonstrando alguma distância afetiva, compreendida na história de vida de F4. Mas,

quando não vai uma semana, o pai recorda-lhe essa “falta” e, por isso, torna-se

“culpado”, logo, tem de reparar a falta, se não a puder impedir.

Outros filhos dizem que “agora é que já vou mais espaçadamente, porque sei

que está bem e também não quero estar a ser massacrante” (F9:23) ou “Ela tem a

casinha dela ainda, à mesma, tem água, tem luz, tem telefone para pagar, há contagens

para dar, há transferências de dinheiros para o lar e essas coisas todas; sou eu que

tenho que fazer tudo, portanto eu não tenho disponibilidade de ir lá todos os dias”

(F7:22), sentindo necessidade de se justificar com as tarefas referentes à casa que a mãe

já não habita, nem está previsto voltar a habitar. Um caso particular é o de F1, que

coloca no marido a responsabilidade pelas visitas aos pais, já que ela “não conduz” e,

portanto, vai quando “o marido pode”. Esta desresponsabilização é consonante com a

tomada de decisão inicial, em que também se verifica a alienação da responsabilidade.

Para esta filha, colocar a culpa no exterior, é o mecanismo de defesa principal.

As saídas dos pais/mães do Lar, que poderiam ser frequentes, pelo menos

quando não existe dependência física, são uma realidade esporádica, na maior parte dos

casos, como se a porta se tivesse fechado para aquelas pessoas, como se se tratasse de

um convento, do qual só se sai, em ocasiões especiais, e a sua vida ficasse dividida entre

um “antes” e um “depois”. A resposta à pergunta “Costuma ir buscar os seus pais com

frequência?” não tem muitas variantes:“ sim, pelo Natal e Ano Novo”, entendendo-se,

talvez, que há datas em que é mesmo obrigatório ir (e será “pecado” não o fazer),

esquecendo que o ano tem 365 dias. E cumpridos esses rituais, das “ocasiões especiais”,

fica a consciência tranquila de ter feito o que é devido (e esperado).

Desde F1, que diz ir buscar os pais “sempre no Natal e quando fazem anos”; “já

saiu; fomos um dia ao médico e outro a casa da minha irmã” (F2); “ainda não calhou

assim uns anos ou assim” (F4); “Ela gosta muito de sair com a gente, de ir comer. No

Natal vai para o meu irmão e depois a gente vai lá ter, no ano novo, normalmente

Page 84: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

70

juntamos lá todos na minha casa e pronto,” (F6); “levo-a lá para regar as flores [à casa

dela] apesar das flores já estarem todas mortas” (F6); “Quando é festas, a minha mãe

sai” (F7); “Trouxe-a a almoçar a casa uma meia dúzia de vezes” (F8); até F10 “levava

os meus sempre, agora levo a minha mãe [no Natal]. E noutras ocasiões, claro! Sou

incapaz, sempre assim foi, quando alguém faz anos…” fica claro que as saídas não são

entendidas como um direito ou uma necessidade dos idosos, bastando as visitas dos

filhos, que consideram os pais numa categoria diferente, após a institucionalização,

passando a estar confinados a um espaço delimitado.

Há, no entanto, respostas que não se enquadram no parágrafo anterior, e em que

se regista uma informalidade nas saídas (leia-se, no convite dos filhos aos pais, para

sair), sendo essa a exceção e não a regra geral. A institucionalização é, pois, para a

maioria dos filhos, um momento de corte, uma passagem para outra dimensão do

contacto com os pais, mudança “aceite” pelos idosos, como se não houvesse

possibilidade de ser de outra forma. Não se trata de uma simples mudança de casa, mas

sim uma mudança de vida.

Verificamos, também, que o atual relacionamento pais – filhos está ligado ao

passado conjunto, emergindo, nas entrevistas, relações de vinculação diferentes,

estabelecidas muito precocemente, traumas e conflitos emocionais que reaparecem no

presente, quais fantasmas preciosamente guardados. Não nos atrevemos a dizer que

essas relações do passado condicionam as atuais, entre pais e filhos, por não ser esse o

objeto do nosso estudo; o que podemos afirmar é que os entrevistados falaram do

passado e, alguns, aí mergulharam, ressuscitando dores que, certamente, não são alheias

ao que sentem agora.

O passado não se apaga. Em resposta à questão “O seu relacionamento com o

seu/sua pai/mãe mudou depois da institucionalização?” surgiram verdadeiras “viagens

ao passado” do filho/a entrevistado/a. E nesse “regresso”, apareceram histórias que

fazem renascer emoções e sentimentos que ligam (ou ligaram) mães e pais, pais e filhos,

filhos e mães, irmãos (vivos e mortos) uns com os outros, e com o sujeito. Essas teias de

laços afetivos condicionam formas de relacionamento atuais, que unem (e dividem) as

famílias, em momentos de crise, como o é a institucionalização do pai ou da mãe (ou de

ambos).

Em F1, é a relação da entrevistada com uma irmã, que se deteriorou, porque a

culpa, a ela, de ter institucionalizado os pais, enquanto F3 recorda os constantes

Page 85: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

71

conflitos relacionais com a mãe, e o seu autoritarismo, que não lhe permitiram, a ela, ter

liberdade, até aos 60 anos. F2 recorda a sempre boa relação com a mãe, a irmã e o

padrasto (que considera pai) para dizer que esse afeto se mantém até hoje no seio

familiar. F4 mantém uma relação de “respeito” e de idealização do pai que, no entanto,

não o cuidou a ele, em criança, tendo-o entregue aos padrinhos. Já F5, única cuidadora

da mãe e principal visita, refere ter sido, sempre, preterida em relação ao irmão, ausente

e não cuidador, mas nega sentir-se “mal com isso”, apesar da mãe continuar a verbalizar

claramente essa preferência. F6 habituou-se à instabilidade emocional da mãe e mantém

uma quase irregularidade nas visitas, afastando, visivelmente, as emoções associadas à

institucionalização. Por seu lado, F7 diz que, ao contrário do que é habitual nas famílias,

foi ela (a mais nova) quem assumiu a decisão e a comunicação à mãe, relativas à ida

para o Lar, sendo as irmãs “poupadas” a esse confronto, devido à distância (uma) e à

doença mental (outra); e, sendo ela a interlocutora da mãe, é quem suporta toda a

agressividade materna, mesmo quando ela é dirigida a outros membros da família. F8

foi filho de mãe solteira, num tempo e num meio social em que isso era uma condição

ostraciza-te; no entanto, aos quinze anos viu-se responsável pela mãe e por três irmãos

(filhos do padrasto que morreu) e foi ele, até agora (e continua a ser) o suporte material

da mãe, assim como o foi de dois irmãos, entretanto falecidos. Esta condição de

“suporte” e “amparo” da família granjearam-lhe o estatuto de “filho preferido”, aquele a

quem nada se pode recriminar. Em F9 recai também a responsabilidade com a mãe, por

ausência do irmão (está longe e é “irresponsável”) e da irmã, que morreu há um ano.

Talvez por isso (ou não) a mãe tenha passado, segundo ela, a ser mais carinhosa, a

expressar emoções e afetos que a filha estranha porque nunca assim fora. F10 é a filha

única que teve um irmão (falecido aos 8 anos) que ela conhece através das memórias

demasiado vivas da mãe, que continua a recordá-lo como se estivesse vivo. E esta filha,

que cresceu à sombra de um fantasma, considera-se “o único apoio dos pais”, e vive

“em função deles”, como sempre fez, enterrando sonhos e desejos.

Consideramos haver, na generalidade, uma negação da culpabilidade sentida,

porque é doloroso, para os filhos, assumir que tomaram a decisão de institucionalizar o

pai ou a mãe. Embora procurando justificações racionais, tendo sempre em vista a

melhoria das condições de segurança e conforto do “seu” idoso/a, embora assumam

gastos elevados com a institucionalização, consideram a ida para o Lar como último

recurso, guardando, para si, os remorsos que dizem não sentir (“eu não fico com

Page 86: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

72

remorsos nenhuns daquilo que fiz” diz F7), e “compensam” com visitas o que não

podem dar de outra forma (“se eu não vier todos os dias, eu não fico bem comigo

própria” – F3; “Eu penso que as pessoas, estando num sítio daqueles, se os filhos nem

aparecem lá, penso que as pessoas começam a estar contrariadas de tudo” – F2).

Diálogo com a literatura

Depois de analisar os constituintes essenciais relevantes neste estudo,

relacionados com a culpabilidade sentida por filhos de idosos institucionalizados,

ousamos compará-los com a literatura encontrada, numa tentativa de perceber a forma

como essa culpabilidade é analisada por outros investigadores, e saber se os nossos

resultados vão ao encontro de conclusões anteriormente verificadas.

A família é o lugar principal das partilhas inter-geracionais (Fernandes, 2001).

É o lugar da troca e da entreajuda, onde as gerações se encontram de forma intensa.

Estas relações inter-geracionais desenvolvem-se em estruturas familiares

contemporâneas que diferem das tradicionais, dado o incremento do número de famílias

tri-geracionais com aumento e reforço do topo, (o que leva a que haja mais avós do que

netos), a redução da coabitação dos pais idosos com os seus filhos adultos e o aumento

dos idosos a viverem sós, tal como mostram os dados das entrevistas que fizemos. Os

modelos de ajuda que se estabelecem entre os membros da família, quer derivem da

geração intermédia para os seus pais idosos, ou ao contrário, dos pais mais velhos para

os filhos, têm usualmente origem no reconhecimento de uma necessidade. E essa

necessidade intensifica-se quando ocorre perda de competências e se geram

dependências, nos idosos, que carecem de apoios mais intensos, como aconteceu com os

pais de todos os nossos entrevistados.

Para Vaz Serra (cit in Martins, 2005), apoio social/familiar é a quantidade e a

qualidade das relações sociais/familiares que envolvem, de modo ativo, uma pessoa, e

que têm o intuito de fomentar o seu bem-estar físico e psíquico. Concluímos, de acordo

com este autor, que o conceito de apoio social/familiar envolve transações entre pessoas

e as suas redes sociais/familiares, no sentido de satisfazer necessidades. O apoio

social/familiar tem um efeito direto sobre o bem-estar, favorecendo a saúde. Assim,

quanto maior for o apoio social/familiar, menor será o mal-estar psicológico percebido e

Page 87: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

73

quanto menor for o apoio social/familiar maior será a ocorrência de perturbações

(Martins, 2005).

A proliferação de serviços públicos e privados, exclusivos para os idosos, é

considerada, por alguns autores, como uma das causas da progressiva

desresponsabilização da família. Martin (cit in Rodrigues, 2000) refere que, cada vez

mais, as pessoas aguardam respostas globais por parte das instituições particulares e

públicas, esquecendo-se que algumas dessas competências eram tradicionalmente

remetidas para a família. De facto, se não existissem respostas sociais, os filhos não

institucionalizariam os pais, logo, não se poria o problema da culpabilidade, mas a

existência dessas estruturas impede outro tipo de problemas que se colocariam às

famílias atuais, diferentes das de há cinquenta anos ou mais atrás.

Segundo Quaresma (1996), as situações que exigem cuidados surgem, muitas

vezes, na sequência de um problema de saúde repentino (acidentes vasculares cerebrais,

quedas e outras situações cujo progresso conduziu a uma clara perda de autonomia), do

agravamento da situação de saúde ou de uma deficiência (cegueira progressiva,

senilidade, estados de desorientação psíquica, por exemplo) que, manifestando-se numa

maior dependência, levam ao aumento do tipo e da frequência dos apoios concedidos

pela família. Os casos dos pais/mães dos nossos entrevistados inserem-se todos nestas

situações, sentindo os filhos uma forte pressão social (sobretudo, as mulheres), tendo

em conta a gratificação que experimentam pela imagem positiva que a comunidade tem

a seu respeito (Quaresma, 1996).

No entanto, Quaresma e Bernardo (1996) também explicitam as dificuldades

com que se debatem os cuidadores familiares: dificuldades de ordem pessoal –

demonstração de stresse físico e psicológico, medos e receios de não saber resolver a

situação, conflitos de expectativas de realização pessoal, escassez de informação e de

formação adequadas à prestação dos cuidados. Alguns dos filhos com quem falámos

referiram essas dificuldades, ao confessarem cansaço físico e psicológico,

indisponibilidade devido ao trabalho, ansiedade, problemas de saúde dos próprios

cuidadores e incapacidade para prestar cuidados de saúde especializados. Outras

dificuldades, de ordem familiar, incluem aparecimento de conflitos familiares graves

(nomeadamente, com irmãos) e dificuldade em criar uma rede familiar de apoio.

Segundo Perlini et al. (2007), as dificuldades de relacionamento com os restantes

elementos da família também contribuem para que o idoso seja integrado num Lar para

Page 88: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

74

Idosos. E também esses problemas se depararam aos nossos entrevistados:

indisponibilidade de irmãos para ajudar a cuidar os pais, distância física desses

possíveis cuidadores, conflitos e desresponsabilização de alguns membros da família.

Perante todas estas dificuldades, e de acordo com Figueiredo e Sousa (2008), a

prestação de cuidados a um familiar idoso dependente pode ser esgotante, por isso, na

literatura gerontológica utiliza-se o termo “sobrecarga” para estimar os efeitos

negativos, na saúde e bem-estar do cuidador, da tarefa de cuidar, sendo usual distinguir-

se duas dimensões da sobrecarga, a objetiva e a subjetiva, referindo-se a primeira às

consequências do cuidar, nas várias dimensões da vida do cuidador (familiar, social,

económica, profissional), enquanto a segunda se prende com as atitudes e respostas

emocionais do cuidador às exigências do cuidar. As consequências, para o cuidador,

evidenciam-se ao nível de mal-estar psicológico (ansiedade, depressão) e de

morbilidade física (sistema imunitário debilitado, perceção negativa do estado de saúde,

ocorrência elevada de doenças crónicas, cansaço físico). De acordo com Caldas (2003),

a sobrecarga física, emocional e socioeconómica de cuidar de uma pessoa idosa é

enorme e, por isso, a família deve ser capaz de lutar contra os sentimentos de culpa,

frustração, raiva, depressão e outros sentimentos intrinsecamente ligados a esse encargo.

Alguns dos filhos/filhas que entrevistámos foram, antes da institucionalização dos pais,

os seus principais cuidadores, e integram-se, perfeitamente, nesta descrição. Cansaço,

labilidade emocional, stress, dores físicas, hipertensão, foram-nos relatadas por filhos

cuidadores, que tinham institucionalizados o seu pai/mãe, recentemente.

A procura da instituição pauta-se por razões de proximidade geográfica,

condições de conforto, atenção dos cuidadores e, sobretudo, um local onde as suas

necessidades básicas sejam totalmente atendidas, de uma forma mais capaz do que

aquela que a família pode conceder (Perlini et al. (2007). Neste sentido, os familiares,

por vezes acompanhados pelos próprios idosos, fazem visitas a diferentes instituições,

com o intuito de descobrir aquela que poderá atender melhor às expectativas de ambos,

tal como fizeram os sujeitos do nosso estudo. Para Perlini et al (2007) a situação

económica e os custos cobrados pela instituição são também pontos importantes na

decisão, seja porque inviabilizam algumas opções, seja (dizemos nós) por escolha pelo

mais caro, por representar, para os decisores, a melhor qualidade e menor sentimento de

culpabilidade.

Page 89: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

75

Para os filhos, o problema financeiro pode ser perturbador e angustiante, quando

constatam que a pensão do pai/mãe idoso/a, tem que ser completada com contribuições

complementares, e que o seu próprio orçamento será sobrecarregado. Nessa situação,

como cuidar da mãe idosa, enquanto ela, no seu tempo, cuidava do filho, sem sentir o

peso da dívida de gratidão? (Durieux, M. 2006), é um problema que alguns dos nossos

entrevistados afloram (“ ela cuidou de nós, temos obrigação de cuidar dela” F4; “Eu

sei que ela cuidou de mim quando eu era pequena, mas os tempos eram outros” – F5).

No entanto, estes filhos não podem ser hostis a uma mãe ou um pai “que custa dinheiro”

porque fragilizado, já que esse sentimento não é permitido pelo superego, tendo que ser

reprimido. Defende Durieux que a culpabilidade, de que as lágrimas são a expressão

depressiva, mostra a dificuldade em conter a agressividade e as pulsões destrutivas. O

custo da institucionalização terá tido, ao longo do tempo, um valor simbólico de

descarga da culpabilidade inerente à relação entre gerações (p. 176). O dinheiro pago à

instituição poderá também ter a função de ajudar o filho a libertar-se de emoções

negativas muito intensas, invasoras mas indizíveis, suscitadas por uma imagem da mãe

ou do pai, danificada, logo, inaceitável. E esta representação parece-nos estar presente

no caso F8, que idealiza tanto a mãe e a instituição, quanto sublinha todos os gastos que

tem (e que sempre teve) que suportar sozinho.

“S’il y a souffrance de voir cette mère aimée s’éloigner de ce qu’elle a été au

point de devoir être protégée à son tour comme un enfant, il y a aussi une culpabilité

bien humaine dans notre contexte socioculturel”, diz Durieux (2006), que caracteriza

essa culpabilidade como proveniente do laço indissolúvel entre amor e ódio, que

caracteriza todas as relações. Lembremo-nos das palavras de F9 “vê-la naquele estado,

e saber que a tinha que ir meter numa instituição para tomarem conta dela, despoletou

todos os meus sentimentos; Quando eu dei por mim a ver de um sítio para ela ficar

porque não podia estar sozinha, e quando dou por mim a visitar este tipo de

instituições, ao final do dia caí em mim e comecei a chorar, porque, realmente, acho

que isto é o mais triste que pode haver.”e deparamo-nos com a impotência sentida pelos

filhos, perante os pais dependentes, filhos que não estão preparados para ser pais dos

seus pais, para passar de cuidados a cuidadores (“nunca nos passou pela cabeça que ele

chegasse a esta situação” – F4) ou (“Sinto-me impotente, porque gostava de a ver feliz

e contente da vida” – F10). De acordo com Eizirik et al. (1993), quando os filhos

começam a cuidar dos pais doentes, não contam mais com a figura sólida que estes

Page 90: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

76

representavam, e essa fragilidade dos mais velhos torna frágeis, emocionalmente, os

seus descendentes (“andava enervado. Ainda ando, ainda não consegui ver-me livre da

situação” – F2).

Os filhos decisores, para além de racionalizarem a situação, procurando

apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de

vista moral, para a atitude (Laplanche e Pontalis, 1990) face à institucionalização,

idealizam a instituição escolhida e o estado do seu pai/mãe. Esta idealização está patente

em quase todas as entrevistas, e serve para ver o acontecimento como exageradamente

bom, com o objetivo de evitar ansiedades relacionadas com a tomada de consciência de

sentimentos negativos (Kernberg, 1976), que acompanham a culpabilidade. O Lar “foi a

melhor decisão”; a minha mãe está muito melhor”; “tem muito boas condições”; “lá,

tratam muito bem as pessoas”; “já devia ter ido há mais tempo”; “ ela está sempre

contente, bem-disposta, não parece a mesma”; quando sai, está sempre com pressa de

voltar para lá”, como se a institucionalização potenciasse o rejuvenescimento. E, se isso

acontecesse, os filhos sentir-se-iam recompensados, desaparecendo a culpa de ter

transgredido a norma em relação ao outro (Garcia Haro, 2014) . De acordo com Mancini

(2000), para que alguém se sinta responsável e culpado é necessário assumir algum

controle, atual ou potencial, sobre as próprias ações, o que acontece com os nossos

entrevistados, que tinham a possibilidade de ter decidido de outra forma, cujas

consequências para o “outro” teriam sido diferentes. E mais culpabilidade se sente

quanto mais o sujeito se depara com o olhar real do outro, porque, sem esse olhar, a

ação tem pouca capacidade de suscitar culpa (Castilla del Pino, 1998). Por isso, é tão

difícil, para alguns dos sujeitos do presente estudo, continuarem a encarar o olhar

acusador do pai ou da mãe, quando lhes diz que não gosta de estar no Lar, que gostaria

de ou quer voltar para casa. Pela mesma razão, se compreende o alívio da culpabilidade

naqueles que ouvem os pais dizerem que “estão lá muito bem, que gostam muito de lá

estar”.

A culpabilidade nunca é admitida pelos sujeitos entrevistados, dado que, ou se

desresponsabilizam, colocando a responsabilidade noutros familiares (aí incluindo o

próprio institucionalizado), ou racionalizam os motivos que conduziram à tomada de

decisão. Esta negação, tal como a definem Gabbard, 2004, Caligor, et. al. (2008), evita

(nega) a tomada de consciência de aspetos da realidade que são difíceis de ser

encarados, neste caso, o peso da culpabilidade, por terem praticado uma ação que,

Page 91: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

77

intimamente, consideram reprovável, ou que é considerada, dessa forma, pelos outros

externos. E a negação, como mecanismo defensivo, protege o indivíduo da dor de sentir.

Na maior parte das entrevistas, os sujeitos não admitem, conscientemente, que a

institucionalização é negativa, ignoram a vontade dos pais idosos e minimizam as suas

queixas, enquanto idealizam as instituições e os cuidados aí prestados. Fazem-no,

inconscientemente, para não terem de se confrontar com o lado “mau”, com a falha para

com o objeto. E, ao fazê-lo, projetam também, no mundo exterior (nos irmãos, nas

condições da casa dos pais ou da sua, na personalidade “difícil” dos pais) impulsos e

características próprias, que lhes são inaceitáveis (Gabbard, 2004), reprimindo e

fazendo com que a mente consciente não as reconheça. Por ser inadmissível e

angustiante sentir culpabilidade, ela é negada (Bergeret, 2006) e reprimida.

Em sujeitos que admitem que, se tivessem recursos, fariam diferente,

reconhecendo o desprazer do pai/mãe institucionalizados, que não idealizam tanto a

solução adotada, e que admitem não se sentir “tranquilos”, mas tão só “conformados”,

as defesas são mais adaptativas, permitindo o contacto com o desprazer (seu e do outro).

Como defendeu Klein (1937), a ansiedade depressiva e a culpa surgem com a introjeção

do objeto como um todo, e são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo.

Posteriormente à institucionalização, uma forma de facilitar a conservação e o

desenvolvimento dos laços afetivos estabelecidos no decorrer da vida, entre o idoso e a

sua família mais restrita, é a regularidade das visitas, e a evidência de que as mesmas

são realizadas com afeto, interesse, preocupação e responsabilização. Para Perlini et al.

(2007), um dos benefícios da institucionalização, para toda a família, é o de haver maior

interação e entendimento entre o idoso e a família, uma vez que as questões que

poderiam promover o conflito, derivadas da convivência contínua, se dissipam ou

podem ser resolvidas de uma outra forma. E temos, no nosso estudo, F3 que admite “ao

longo destes dois anos, temos uma relação mais calma, mais tranquila, porque nós

chocávamos imenso as duas” ou F9 “a minha mãe está muito mais carinhosa, ela

tornou-se uma pessoa muito mais chegada”. Esta relação, mais amenizada, mais afetiva,

sentida por duas filhas entrevistadas, deve-se, segundo elas, à ausência de motivos de

conflito, e contribui para que as visitas se repitam mais frequentemente. Ou a tentativa

de reparar a anterior relação a isso conduz.

“A culpa é má, péssima - um veneno psíquico. Porém, a inferioridade não é

melhor: é corrosiva; mais silenciosa, mas letal” (Matos, 2012). Alguns dos filhos

Page 92: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

78

entrevistados carregam o peso da inferioridade, que lhes foi incutido pelos objetos

primários. O filho F4, com sete irmãos, recorda “Antigamente havia aquela tradição, a

mãe ter um bebé, o outro mais novinho precisava de estar uns dias afastado, desmamar,

não sei quê, e foi assim que eu fui para casa dos meus padrinhos, fui e lá fiquei”, mas

F5 (com um irmão cinco anos mais velho, diz “a minha mãe disse-me muitas vezes, que

não gosta tanto de mim como gosta do meu irmão”, enquanto F 10 constata ter-se

sentido esquecida pela mãe (“ela despegou-se ali um bocado de mim, porque ela, o

sentido dela era só nele. Ela centralizou ali uns anos da vida dela só nas lembranças do

filho”) para concluir que “ainda hoje sinto a falta e penso muitas vezes se eu tivesse

aquele irmão, também tudo seria diferente”.

Recordemos Fairbain (1980) e a sua Teoria das Relações de Objeto, quando o

autor defende que, para evitar a dependência de objetos maus, pouco responsivos, a

criança encontra modos defensivos de se relacionar com esses objetos, identificando-se

com a maldade presente neles, e, considerando-se, a si própria, má. O autor sugere que

essa é uma estratégia para sobreviver num mundo incondicionalmente mau, visto que

seria melhor considerar que a maldade, presente nas relações de objeto, é condicional à

sua pessoa, e não uma consequência inevitável do objeto, do qual depende. É melhor ser

má num mundo de bons objetos do que ser boa num mundo de maus objetos, assim

como é melhor ter um mau objeto do que não ter nenhum. Ora, estes filhos/as que

recordam não ter tido uma mãe suficientemente boa (Winnicott, 1985), têm ainda mais

necessidade de preservar essa relação com o objeto, mas ela vai ser contaminada pela

culpa, como forma de defesa contra as relações do ego com esses objetos (Fairbain,

1980). E a institucionalização pode ser vivida como um ataque ao objeto, ao seio mau,

(Kein, 1998), ataque gerador de culpabilidade.

Conclusão

“quando eles estão no fim da vida, tudo aquilo que eles passaram, tudo, lá está,… é um

mal necessário! Se a gente pudesse, faria as coisas diferentes, faria tudo com que eles

estivessem bem!”

F10

Page 93: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

79

Os sentimentos de culpa são provenientes das normas culturais, familiares ou

morais e são transmitidos pelas gerações mais velhas às mais novas. Todos, em algum

momento de nossas vidas, já nos sentimos culpados por alguma coisa que dissemos,

fizemos, ou ainda, por algo que deixamos de fazer ou mesmo de dizer. Estes

sentimentos podem ser saudáveis, quando servem para reparar o prejuízo causado a

alguém, ou ser doentios, quando se traduzem numa angústia persecutória, desencadeada

por exigências irracionais, de ordem intrapsíquica, cultural, ética e religiosa.

Na psicanálise, o sentimento de culpa aparece, frequentemente, relacionado com

a moral e a ética, bem como com o superego e o desenvolvimento e sobrevivência da

civilização. A culpa é tida como um sentimento universal, que sustenta a vida em

comunidade, mas que também se relaciona, no sujeito, com o aparecimento de

perturbações. Porém, é na relação que a culpabilidade se concretiza, sendo necessário

um objeto, que é alvo da ação do sujeito. No nosso estudo, alguns desses objetos, pais

ou mães dos sujeitos, verbalizavam mesmo o mal-estar provocado pela ação do/a

filho/a, tornando mais penosa a culpabilidade destes. Por outro lado, pudemos observar

como as relações afetivas e os conflitos familiares, anteriores à institucionalização,

podem contribuir para o aumento da culpabilidade sentida.

A culpa costuma acompanhar os filhos cuidadores, prejudicando ainda mais a

sua qualidade de vida, e a qualidade da relação com o pai/mãe cuidado/a. É frequente o

relato dos filhos refletir culpa por terem levado o idoso para uma instituição, ainda que

ela tenha as melhores condições de cuidados e assistência. E é também frequente a

negação dessa culpabilidade, através de alguns mecanismos de defesa, como a negação,

a idealização institucional, a desidealização da casa do idoso, a racionalização dos

fatores desencadeantes, e as inúmeras contradições que tentam equilibrar a tensão entre

o que se fez e o que “não se deveria ter feito”.

O familiar filho/ pode sofrer muito mais em consequência dos seus sentimentos

de culpa do que em relação ao que realmente está acontecendo com o idoso, já que,

frequentemente, o encontra “bem”, “melhor”, “ótimo”. Verificámos, em alguns casos,

que a própria entrevista teve uma função contentora, serviu para aliviar os sentimentos

negativos que acompanham os filhos cuidadores, o que só prova a necessidade de haver

apoio técnico especializado para ajudar estas pessoas, minimizando a sua angústia e

ansiedade. A culpa escondida é corrosiva, destrói por dentro, mesmo que ela seja,

conscientemente, negada.

Page 94: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

80

Limitações e implicações práticas

A principal limitação deste estudo está na dificuldade de transformar as

respostas dos entrevistados em unidades de significado psicológico, sem perder o real

significado das experiências relatadas. Por outro lado, o tamanho da amostra não

permite a generalização dos resultados, nem isso era pretendido. Privilegia-se a

experiência subjetiva, como fonte a que acedemos, para melhor compreender o

indivíduo. Uma outra dificuldade relaciona-se com o facto de a maior parte dos estudos

realizados, que encontrámos, terem sido na área da medicina e da psicologia social.

No entanto, pensamos que, apesar destas limitações, as experiências vividas,

relatadas e analisadas, dos filhos adultos com pais institucionalizados, constituem um

contributo importante para a compreensão do fenómeno da culpabilidade em filhos que

institucionalizaram os seus pais. E podemos afirmar que os filhos cuidadores carecem

de apoio, antes e durante a institucionalização e, mesmo, após a morte do idoso.

Precisam de poder exprimir emoções e sentimentos de culpa, e poder viver bem com a

decisão tomada. Precisam de compreender e validar o que sentem, para se aceitarem e

poderem aceitar, verdadeiramente, a realidade interna e externa, que conduziu àquela

situação.

As instituições que acolhem idosos teriam vantagem em disponibilizar esse

apoio às famílias. A bem dos idosos, dos filhos e do funcionamento das próprias

instituições. Porque um relacionamento com menos culpabilidade, beneficiaria os

idosos, os seus filhos, as relações interpessoais, e da família com as instituições. Se a

ida para um Lar deixasse de ser “um mal necessário”.

Para o futuro, fica o gosto por esta área da investigação. Seria importante,

pensamos, investigar se as representações menos boas das relações do passado, entre

pais e filhos, conduzirão a mais culpabilidade no momento da institucionalização do

idoso. Outra área de interesse, para a compreensão deste fenómeno, prende-se com a

necessidade de analisar como a representação social dos Lares Residenciais influencia e

potencia a culpabilidade de quem decide a institucionalização.

Page 95: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

81

Referências

Abramson, P.R., Mosher, D.L., Abramson, L.M., & Woychowski, B. (1977).

Personality correlates of the Mosher Guilt Scales. Journal of Personality

Assessment, 41(4), 375-382.

Aleixo, T., Escoval, A., & Fonseca, C. (2012). Indicadores de Qualidade em Lares para

Idosos. Revista Investigação em Enfermagem, 21, 17-30.

Amatuzzi, M. M. (2007). Pesquisa fenomenológica em Psicologia. In M. A. T. Bruns &

A. F. Holanda. Psicologia e fenomenologia: reflexões e perspetiva (2ª ed., pp. 17-

25). Campinas, São Paulo: Alínea

American Psychological Association. (2010). Publication Manual of the American

Psychological Association. Washington (DC): APA.

Andrews, G., Singh, M., Bond, M. (1993). The Defense Style Questionnaire. J Nerv.

Ment Dis: 181(4): 246-56.

Aron, L. (1996). A meeting of minds: mutuality in Psychoanalysis. Hillsdale, NJ:

Analytic Press.

Artaso Irigoyen, B., Goñi Sarriés, A., Gómez Martínez, A.R. (2001). Sobrecarga del

cuidador informal del paciente con demencia: demanda en un Centro de Día

Psicogeriátrico en Navarra. Geriatrika. 2001;17 (2):69-73,39-4

Assis, M. (2002). Promoção da saúde e envelhecimento: orientações para o

desenvolvimento de acções educativas com idosos. Rio de Janeiro: Centro de

Referência e Documentação sobre Envelhecimento, UnATI, UERJ

Baltes, P. B. & Smith, J. (1997). A systemic-holistic view of psychological functioning

in very old age: Introduction to a collection of articles from the Berlin Aging

Study. Psychology and Aging, 12(3), 395-409. doi: 10.1037/0882-7974.12.3.395

Barusch, A.S., & Spaid, W.M. (1989). Gender differences in caregiving: Why do wives

report greater burden? The Gerontologist, 29(5), 667-676.

Page 96: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

82

Bergeret (1987). Psicologia Patológica. Lisboa: Climepsi Editores.

Bergeret, J. (2006). Psicopatologia – Teoria e clínica. 9ª ed. Porto Alegre: Artmed.

Berkhof, L. (1990). Teologia Sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho.

Bíblia Sagrada. Texto Bíblico do Antigo e Novo Testamento. Lisboa: Mel Editores

Bogdan, R. e Biklen, S. (1994). Investigação Qualitativa em Educação: Uma

Introdução à Teoria e aos Métodos. Porto: Porto Editora.

Brandwein, C., & Postoff, R. (1980). A model of intervention for working with adult

children of aged parents. Long Term Care and Health Services, 4, 173-182.

Brody, E.M., Dempsey, N.P., & Pruchno, R.A. (1990). Mental health of sons and

daughters of the institutionalized aged. The Gerontologist, 30(2),212-219.

Caldas, C. (2003). Envelhecimento com dependência: responsabilidades e demandas da

família. Cadernos de Saúde Pública, vol.19, nº3, pp.773-781.

Caligor, E., Kernberg, O., Clarkin, J. & Rosa, S. (2008). Psicoterapia Dinâmica das

Patologias Leves de Personalidade. Porto Alegre: Artmed.

Cambi, F. (1999). História da Pedagogia. São Paulo: UNESP.

Canevacci, M. (1984). Dialética da família. São Paulo: Brasiliense

Carvalho, M. I. L. B. (2009). Os cuidados familiares prestados às pessoas idosas em

situação de dependência: características do apoio informal familiar em Portugal.

Revista Kairós, 12 (1), 77-96.

Castilla del Pino, C. (1991). La culpa. Madrid: Alianza.

Celich, K. L. S., & Batistella, M. (2007). Ser cuidador familiar do portador de doença

de Alzheimer: vivências e sentimentos desvelados. Cogitare Enferm, 12(2), 143-

149.

Comas Herrera, A.; Wittwnberg, R. e Pickard, L. (2005). Making projections of public

expenditure on long-term care for the European member states: Methodological

proposal for discussion. In European Commission - Brussels: AWG-OECD

Workshop, 21-22

Page 97: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

83

Cooper, S. (1998). Changing notions of defense within psychoanalytic theory. Journal

of Personality, 66, 947–964.

Cramer, P. (2006). Protecting the self: defense mechanisms in action. New York:

Guilford Press.

Cummings, J.L., Mega M, Gray K., Rosenberg-Thompson S., Carusi DA, Gornbein.

(1994). The Neuropsychiatric Inventory: Comprehensive assessment of

psychopathology in dementia. Neurology 44: 2308-2314

Daniel, F. (2009). Profissionalização e Qualificação da Resposta Social ‘Lar de Idosos’

em Portugal. Interações: Sociedade e as novas modernidades, 17. Acesso em

Fevereiro 6, 2017 de http://interacoes-

ismt.com/index.php/revista/article/view/316/328

Davis L.L., Buckwalter K. (2001). Family caregiving after nursing home admission. J

Ment Health Aging.

Diário da República (1998). Despacho Normativo nº 12/98 de 25 de Fevereiro — I

SÉRIE-B Nº 47.

Diário da República (2011). Regulamento n.º 258/2011. D.R. n.º 78, Série II

Delumeau, J. (2003). O Pecado e o Medo. A História da Culpabilização no Ocidente.

Vol.1. Tradução de Álvaro Lorencini. Bauru/SP. Edusc.

Dias, E. O. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. Natureza

humana. 2(1), 9-48. Consultado em 29 de janeiro de 2017, de

http://pepsic.bvsalud.org/scielo

Despacho Normativo n.º 12/98. Diário da República n.º 47/1998, Série I-B de 1998-02-

25

Durieux, M. (2006). Argent et vieillissement en institution de retraite. Une approche

psychologique. Gérontologie et société, n° 117, p. 173-182. DOI

10.3917/gs.117.0173

Eizirik, C., Kapczinski, F., & Bassols, A. M. (1993). O Ciclo da vida humana: uma

perspetiva psicodinâmica. Porto Alegre: Artmed.

Page 98: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

84

Fairbain, W. R. D. (1980). Estudos Psicanalíticos da Personalidade (E. Nick, Trad.).

Rio de Janeiro: Interamericana. (Original publicado em 1952).

Farber, S. S. (2012). Envelhecimento e elaboração das perdas. In ATerceira Idade:

Estudos sobre Envelhecimento, vol. 23, nº 53, março. S. Paulo: SESC

Feuerbach, L. (2002). A Essência do Cristianismo. Porto: Fundação Calouste

Gulbenkian.

Fernandes, A. (2001). Velhice, solidariedades familiares e política social: itinerário de

pesquisa em torno do aumento da esperança de vida. Sociologia – Problema e

Práticas, nº 36, pp.39-52.

Figueiredo, D. e Sousa, L. (2008). Perceção do estado de saúde e sobrecarga em

cuidadores familiares de idosos dependentes com e sem demência. Revista

Portuguesa de Saúde Pública, vol.26, nº1, pp.15-24.

Fonagy, P. & Target, M. (2003). Psychoanalytic theories: perspectives from

developmental psychopathology. London: Whurr.

Fraiman, A. P. A (1991). Crise da Meia Idade. In Coisas da Idade, 2ª ed. São Paulo

(SP): Hermes Ed. E Informação S.A.

Frankl, V. E. (2008). Em busca de sentido. Petrópolis. Vozes.

Freud, S. (1894). The neuro-psychoses of defence. SE, 3, 41-61.

Freud, S. (1969). Totem e Tabu – alguns pontos de concordância entre a vida mental

dos selvagens e dos neuróticos. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de S. Freud (J. Salomão trad., Vol. 13, pp.

17192). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)

Freud, S. (1974). Sobre o narcisismo: Uma introdução, In Freud, S. Edição Standard

Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 14).

Freud, S. (1969). O ego e o id. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 13-80). Rio

de Janeiro. Imago. (Trabalho original publicado em 1923).

Freud, S. (1969). O futuro de uma ilusão. In S. Freud, In Edição Standard Brasileira

das Obras Psicológicas Completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp.

154209). Rio de Janeiro. Imago. (Trabalho original publicado em 1927).

Page 99: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

85

Freud, S. (1969). O inconsciente. In S. Freud, In Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 163-210).

Rio de Janeiro Imago. (Trabalho original publicado em 1915)

Freud, S. (1969). O mal estar na cultura. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp.

65148). Rio de Janeiro. Imago. (Trabalho original publicado em 1930).

Friedman, M. (1985). Toward a reconceptualization of guilt. Contemporary

Freud, A. (1993). The ego and the mechanisms of defence (Rev. ed.). London: Karnac

Books.

Gabbard, G. (2004). Long-term psychodynamic psychotherapy: a basic text.

Washington, DC: American Psychiatric Pub.

Garcia, C. (1987). La vida y su sentido en la tercera edad. Buenos Aires: Paidós.

Garcia Haro, J. (2014). Culpa, Reparación e Perdón: implicaciones clínicas y

terapêuticas. Revista de Psicoterapia, 25 (97), 179-210.

Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e de grupos. In M.W. Bauer & G. Gaskell

(orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual prático

(pp.64-89). Petrópolis: Vozes.

Gaugler, J.E., Zarit, S.H., Pearlin, L.I. (2003). Family involvement following

institutionalization: modeling nursing home visits over time. Aging Hum Dev;

57(2):91-117.

Gaugler, J.E., Pot, A.M., Zarit SH. (2007). Long-term adaptation to institutionalization

in dementia caregivers. Gerontologist Dec; 47(6):730-40.

Gaugler J.E., Yu F., Krichbaum, K, Wyman J.F. (2009). Predictors of nursing home

admission for persons with dementia. Med Care Feb; 47 (2):191-8.

Gaugler J.E., Mittelman M.S., Hepburn K, Newcomer R. (2010). Clinically significant

changes in burden and depression among dementia caregivers following

nursing home admission. BMC Med Dec 17;8:85.

Page 100: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

86

Gellis, A., & Hamud, M. (2011). Sentimento de culpa na obra freudiana: universal e

inconsciente. Psicologia USP, 22(3), 635-654.

doi:http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642011005000020

Giorgi, A. (2006). Concerning variations in the application of the phenomenological

method. The Humanistic Psychologist, 34(4): 305–319. doi:

10.1207/s15473333thp3404_2

Giorgi A, Giorgi B. (2008). Phenomenological psychology. In: Willig C, Stainton-

Rogers W, editors. The Sage handbook of qualitative research in psychology.

London: Sage. doi: http://dx.doi.org/10.4135/9781848607927.n10.

Giorgi, A. & Souza, D. (2010). Método Fenomenológico de Investigação em

Psicologia. Portugal: Sociedade Unipessoal.

Goldberg, J. (1985). La culpabilité, axiome de la psychanalyse. Paris: Presses

Universitaires de France.

Gondim, S.M. (2002). Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: Desafios

metodológicos. Paidéia, Cadernos de Psicologia e Educação, 12(24), 149-

161.

Grau, L., Teresi, J., & Chandler, B. (1993). Demoralization among sons, daughters,

spouses and other relatives of nursing home residents. Research on Aging,

15(3),324-345.

Grinberg, L. (1964). Two kinds of guilt: Their relations with normal and pathological

aspects of mourning. International Journal of Psycho-Analysis, 45, 366-371.

Grinberg, L. 2000. Culpa e Depressão. Lisboa: Climepsi Editores.

Groenewald, T. (2004). A phenomenological research design illustrated. International

Journal of Qualitative Methods 3 (1) April, 2004.

Hatch, R., & Franken, M.L. (1984). Concerns of children with parents in nursing

homes. Journal of Gerontologie Social Work, 7, 19-30.

Ihilevich, D & Gleser, G. (1986). Defense Mechanisms – Their classification, correlates

and measurement with the Defense Mechanisms Inventory. Owosso

Michigan: DMI Associates

Page 101: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

87

Instituto Nacional de Estatística (2002). O Envelhecimento em Portugal: situação

demográfica e socioeconómica recente das pessoas idosas. Lisboa: INE

Instituto Nacional de Estatística (2006). Estimativas de População Residente 2006.

Lisboa: INE

Instituto Nacional de Estatística (2012). Censos 2011. Resultados Definitivos -

Portugal. Lisboa: INE.

Instituto da Segurança Social (2017). Segurança Social em Números. Lisboa: ISS

Kernberg, O. F. (1976). Object-relations theory and clinical psychoanalysis. New York:

J. Aronson.

Kertzer, M. O que é Torá. Disponível em:

www.colecao.judaismo.tryte.com.br/livro1/l1cap23.php. Consultado em 23

janeiro 2017.

Kipper, L. Blaya, C., Teruchkin, B., Heldt, E., Isolan, L., Mezzomo, K., Bond, M,

Manfro, G.G. (2004). Brazilian Patients with panic disorder: the use of defense

mechanisms and their association with severity. J. Nerv Ment Dis, 192:58-64.

Klein, M. 1998. Love, Guilt and Reparation. London: Vintage Publishing.(Textos

origiais publicados entre 1935 e 1948).

Krassoievitch, M. (1988). Psicoterapia Geriátrica. México: Fundo de Cultura

Económica.

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1968). Vocabulaire de la Psychanalyse. Paris: Presses

Univ. de France.

Laplanche, J.; Pontalis, J-B. (1990). Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Editorial

Presença.

Lemma, A. (2003). Introduction to the practice of psychoanalytic psychotherapy.

Chichester: John Wiley & Sons.

Liberman (2001). The Effects of Nursing Home Placement on Family Caregivers of

Patients with Alzheimer’s Disease. The Gerontologist, Vol. 41, No. 6, 819–

826.

Page 102: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

88

Lincoln, Y.S.; Guba, E.G. (1985). Naturalistic Inquiry. Londres: Sabe.

Loparic, Z. (1997). Winnicott e Mélanie Klein: conflito de paradigmas. In A clínica e a

pesquisa no final do século - Winnicott e a Universidade, S. Paulo: Lemos

Lukas, E. (1991). A Descoberta do Ser: Estudos sobre a Psicologia Existencial. Rio de

Janeiro. Rocco.

Mancini, F. (2000). Un modelo cognitivo del transtorno obsessivo-compulsivo. Revista

de Psicoterapia, 42/43, 5-30.

Martínez, J. L. (2005). Entrenamiento en el Manejo del Estrés en Cuidadores de

Familiares Mayores Dependientes: Desarrollo Y Evaluación de la Eficacia

De Un Programa. Universidad Complutense de Madrid: Madrid.

Martins, R. (2005). A relevância do apoio social na velhice. Educação Ciência e

Tecnologia, pp.128-134.

Matos, A. C. (2001). A depressão. Lisboa: Climepsi.

Matos, A. (2002) O Desespero: aquém da depressão. Lisboa: Climepsi Editores.

Matthiesen, V. (1989). Guilt and Grief: When daughters place mothers in nursing

homes. Journal of Gerontological Nursing, 15(7), 11-15.

Mazza, M. M. P. R.; Lefrève, F. (2005). Cuidar em família: análise da representação

social da relação do cuidador familiar com o idoso. Revista Brasileira de

Crescimento e desenvolvimento humano, v. 15, n. 1, p. 1-10.

Mazzochini, L. A. (2009). Culpa e pecado na sociedade atual. Anais do X Salão de

Iniciação Científica. Porto Alegre: PUCRS.

McWilliams, N. (2005). Diagnóstico Psicanalítico. Lisboa: Climepsi.

Mitchell, S. & Greenberg, G. J. (1983). Relational Concepts in Psychoanalysis.

Cambridge, MA.: Harvard University Press.

Mitchell, S. (1988). Relational concepts in psychoanalysis: an integration. Cambridge,

Mass: Harvard University Press.

Moura, C. (2012). Processos e estratégias do envelhecimento: Intervenção para um

envelhecimento ativo. Lisboa: Euedito.

Page 103: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

89

Mullan, J.T. (1992). The bereaved caregiver: A prospective study of changes in well-

being. The Gerontologist, 32(5), 673-683.

Nazaré, O; Moraes, P. (2009). Grupos de Idosos: Atuação da Psicogerontologia no

Enfoque Preventivo. Psicologia Ciência e Profissão, 2009, 29 (4), 846-855.

Neto, M. P. (2006). Gerontologia: a velhice e o envelhecimento em visão globalizada.

São Paulo: Atheneu.

Neto, M. J., & Corte-Real, J. (2013). A pessoa idosa institucionalizada: depressão e

suporte social. 26ª Reunião do GEECD.

Nietzsch, F. (2009). Genealogia da Moral: uma polémica. S. Paulo: Companhia das

Letras.

Norem, J. K. (1998) Why should we lower our defenses about defense mechanisms?

Journal of Personality, 66(6), 895-917

Oliveira, S., Freire, S. & Giaretta, V. (1999). Análise da depressão em idosas

institucionalizadas. XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica.

São Paulo: Universidade do Vale do Paraíba.

Pérez-Sales, P. (2006). Trauma, culpa y duelo. Bilbao: Desclée de Brouwer.

Perlado, F. (1995). Teoria y prática de la geriatria. Madrid: Diaz de Santos.

Perlini, G.; Leite, T. e Furini, C. (2007). Em busca de uma instituição para a pessoa

idosa morar: motivos apontados por familiares. Revista Escola de Enfermagem.

USP [online], vol.41, nº2, pp.229-236.

Perry, J. & Bond, M. (2005). Defensive function. In Oldham, J., Andrew, S. & Donna,

B. (Eds.) The American Psychiatric Publishing textbook of personality

disorders (pp. 523-540). Washington, DC: American Psychiatric Pub.

Person, E., Cooper, A. & Gabbard, G. (2005). The American Psychiatric Publishing

textbook of psychoanalysis. Washington, DC: American Psychiatric Pub.

Pimentel, L. (2001). O Lugar do Idoso na Família: Contextos e Trajetórias. Coimbra:

Quarteto.

Page 104: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

90

Pinto, H.G.C. (2009). Satisfação de idosos institucionalizados em lar lucrativo e idosos

a usufruirem da prestação informal de apoio domiciliário: uma abordagem

comparativa. Manuscrito não publicado, Faculdade de Economia da

Universidade do Porto. Porto.

Plutchik, R. (1995). A theory of ego defenses. In H.R. Conte & R. Plutchik (Eds.), Ego

defenses. Theory and measurement (p. 13-37). New York: John Wiley and Sons

Inc.

Pracana, C. (2007). Félix Culpa: Ensaio psicanalítico sobre a culpa. Tese de

Doutoramento, não publicada. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.

Pruchno, R.A., Peters, N.D., Kleban, M.H., & Burant, C.J. (1994). Attachment among

adult children and their institutionalized parents. Journal of Gerontology:

Social Sciences, 49, S209-S218.

Quaresma, M., (1996). Cuidados familiares às pessoas muito idosas. Lisboa: Núcleo de

Documentação Técnica e Divulgação da Direção-Geral da Ação Social.

Quaresma, M. e Bernardo, M. (1996). Cuidados a Idosos, Formação para apoio às

famílias, in Bonfin, C.; Teles, A. e Saraiva, M. População idosa, análise e

perspetivas: a problemática dos cuidados intrafamiliares. Lisboa: Núcleo de

Documentação Técnica e Divulgação da Direção-Geral da Ação Social.

Ribeiro, A.M. (2012, março, 4). Entrevista a Coimbra de Matos. Público.

Rodrigues, M., (2000). Já não tenho família. Actas do IV Congresso Português de

Sociologia. Coimbra: Universidade de Coimbra.

Rosa, M. (2012). O envelhecimento da sociedade portuguesa. Lisboa: Relógio D’Água

Editores.

Santos, B. S. S. (1992) “O Estado e a Sociedade na Semiperiferia do Sistema Mundial:

o caso português” in O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988), 2.ª ed.

Porto: Edições Afrontamento.

Scliar, N. J. (2007). Enigmas da Culpa. Rio de Janeiro: Objetiva. Coleção Filosófica.

Segal, H. (2011). Introduction à l'Oeuvre de Melanie Klein (11ed). Paris: PUF.

Slepoj, V. (2000). As relações de família. Lisboa: Editorial Presença.

Page 105: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

91

Spitznagel MB, Tremont G, Davis JD, Foster SM. (2006). Psychosocial predictors of

dementia caregiver desire to institutionalize: caregiver, care recipient, and

family relationship factors. J Geriatr Psychiatry Neurol, Mar;19(1):16-20.

Stein, E. (1968). Guilt: Theory and therapy. E.V. Stein (Éd.) Philadelphia, PA: The

Westminster Press.

Stone, R., Cafferata, G.L., & Sangl, J. (1987). Caregivers of the frail elderly: A national

profile. The Gerontologist, 27(5),616-626.

Stuart-Hamilton (2000). Psicologia do Envelhecimento. Porto Alegre: Artmed.

Tauber, Y. 2011. A culpa judaica. Disponível em

www.chabad.org.br/biblioteca/index.html . Consultado em 23 janeiro 2017

Telles, P. C. P. P.; Petrilli, J. F. (2002). Causas da inserção de idosos numa instituição

asilar. Escola Anna Nery. Revista de Enfermagem, v. 6, n. 1, p. 135-143.

Thiessen, H. C. 1987. Palestras em Teologia Sistemática. São Paulo: Imprensa Batista

Regular.

Tornatore J, &. Grant, L. A. (2002). Burden Among Family Caregivers of Persons With

Alzheimer´s Disease in Nursing Homes. The Gerontologist Vol 42. Nª 4, 497-

506.

Townsend, A.L. (1990). Nursing home care and family caregivers' stress. In M.A.P.

Stephens, J. H. Crowther, S. E. Hobfoll, & D. L. Tennenbaum (Eds.), Stress

and coping in later-life families. Washington (DC): Hemisphere

Vaillant, G. (1994). Ego mechanisms of defense and personality psychopathology.

Journal of Abnormal Psychology, 103, 44-50.

Winnicott, D. 1963. The Development of Capacity for Concern. Colleted Papers.

Maturational Processes. London: Karnak Books.

Winnicott, D. W. 1983. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre.

Artmed. (Trabalho original publicado em 1965).

Winnicott, D. (1990). Psycho-Analysis and the Sense of Guilt. Collected Papers.

Maturational Processes. London. Karnak Books (texto publicado em 1958)

Page 106: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

92

World Health Organization (2015). Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde.

Zarit, S.H., & Whitlatch, C.l. (1992). Institutional placement: Phases of the transition.

The Gerontologist, 32(5),665-672

Page 107: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

93

ANEXOS

Page 108: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

94

Anexo 1 – Termo de Consentimento Informado

Curso de Mestrado em Psicologia

Especialidade de Psicologia Clínica

Termo de Consentimento Informado

Tomei conhecimento de que a estudante do Mestrado em Psicologia, da

Universidade de Évora, Maria Filipa Martins de Almeida, está a desenvolver a sua

dissertação sobre uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos

institucionalizados, sob orientação da Professora Doutora Isabel Mesquita, docente na

instituição.

Neste âmbito, foram-me explicados os objetivos do trabalho e foi solicitada a

minha colaboração, participando numa entrevista.

Fui informado(a) de que a minha identificação nunca será divulgada e que os

dados serão usados unicamente para fins académicos. A minha colaboração tem carácter

voluntário, podendo desistir em qualquer momento.

Compreendo que não irá existir qualquer tipo de remuneração ou custos pela

minha participação neste estudo. É-me garantido que, sempre que necessitar, ser-me-á

proporcionado qualquer esclarecimento.

Fui esclarecido(a) sobre todos os aspetos que considero importantes e as

perguntas que coloquei foram respondidas. Fui informado(a) que tenho direito a recusar

participar e que a minha recusa não terá consequências para mim.

Aceito, pois, colaborar neste estudo e assino onde indicado.

_____________________________________________

---/---/ 201

Page 109: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

95

Anexo 2 – Guião da Entrevista

1. Como foi tomada e por quem, a decisão de institucionalizar o seu pai/mãe? E

porquê naquela instituição?

2. Como se sentiu e como se sente agora em relação à institucionalização? O que

mais o/a preocupa?

3. Como acha que ele/ela se sentiu e como acha que se sente agora?

4. O que é que mudou na sua relação com o seu/sua pai/mãe?

5. Costuma visitá-lo/a regularmente? Telefona-lhe ou telefona a pedir notícias

dele? Porque é que vai tantas vezes/porque é que vai tão pouco?

6. Leva o seu pai/mãe para fora do Lar? Com que frequência? Onde? Como acha

que ele/ela se sente?

Page 110: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

96

Anexo 3 - Dados sociodemográficos dos entrevistados

sujeito género idade nac. estado

civil

profissão hab. liter. Nº

irmão

s

F1 feminino 59 Port

.

Casada Assist.

adm.

11º. ano 3

F2 masculino 63 Port

.

Casado Industrial

serralharia

2º. Ciclo 1

F3 feminino 60 Port

.

Viúva Prof.

reformada

licenciatur

a

1

F4 masculino 64 Port

.

Casado comerciant

e

Ensino

básico

7

F5 feminino 52

Port

.

divorciad

a

Assist.

admin.

12º. ano 1

F6 masculino 53 Port

.

Casado Técnico

eletrónico

11º ano 1

F7 feminino 53 Port

.

Casada Assist.

admin.

12º ano 2

F8 masculino 70 Port

.

Casado reformado 2º ciclo 4

F9 feminino 52 Port

.

Casada Tec.

Superior

licenciatur

a

1

F10 feminino 50 Port

.

Casada Aux. Serv.

Gerais

11º ano 0

Page 111: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

97

Anexo 4 - Tabela das unidades de significado e expressões de

significado psicológico das entrevistas

Transformação das Unidades de Significado em Expressões de Caráter

Psicológico

Participante F1

Unidades de Significado Expressões de Carácter

Psicológico

1. O meu pai tinha tido um avc com 50 e poucos

anos, estava em cadeira de rodas, e a minha mãe

tinha que cuidar dele. Entretanto, ela começou a

ter algumas dificuldades de memória e de fazer as

coisas básicas. Começámos a ver que ela não

estava bem, foi a um neurologista e tinha um

princípio de demência. Viviam os dois lá na

aldeia, longe dos filhos (eu, um irmão e duas

irmãs) e não podiam continuar sozinhos. Então, a

minha mãe é que tratou de tudo

1. A entrevistada refere a doença

incapacitante do pai, o início de

demência da mãe, e a distância

física de todos os filhos, como

razões que levaram à

institucionalização simultânea do

pai e da mãe. Assegura que foi a

mãe quem concretizou a

institucionalização, escolhendo

também a instituição de

acolhimento.

Para esta filha, foi normal que,

quando os pais começaram a

precisar de cuidados diários, e se

a mãe não podia cuidar do pai, e

não tinha os filhos por perto, a

própria mãe contactou uma

instituição e tratou do processo,

com isso desresponsabilizando os

filhos.

Page 112: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

98

2. Eu, a minha irmã que vive em E. e o meu irmão,

concordámos. A minha outra irmã, que está na S.,

nunca esteve de acordo, mas também não

apresentou uma alternativa.

(…) A relação nunca mais foi a mesma. Ela não

perde uma oportunidade para me acusar de ter

posto os pais num Lar. Mas a verdade é que ela

não está cá, não ajudava em nada, e como eu sou

a mais velha, acha que a decisão foi minha.

2. A filha admite que as relações

fraternais se degradaram devido à

institucionalização dos pais, mas

considera isso uma

inevitabilidade, já que quem

criticou não apresentou uma

alternativa para o problema. Esta

filha, por ser a mais velha de

todos, sente-se acusada pela irmã

discordante, por ter levado os pais

par um Lar, como se aos mais

velhos coubesse a

responsabilidade destas decisões.

3.. E comecei a pensar que um dia me vai

acontecer a mim o mesmo. Mas como os via bem-

dispostos, fiquei mais descansada.

3. A entrevistada recorda o

momento da institucionalização,

com tristeza, e revela que o facto

a fez pensar na sua própria velhice

futura, e numa situação similar,

quando não restar outra solução, e

ela tiver que trocar a sua casa por

uma instituição.

4 . E- E agora, como te sentes em relação a isso?

F1 - Sinto-me bem porque eles estão bem, quando

os visito estão sempre bem, contentes…

4. O facto de ver os pais

satisfeitos, quando os visita,

tranquiliza-a e apazigua a sua

consciência, aliviando a

culpabilidade que parece carregar.

5 . E - Vais visitá-los com frequência?

F 1 - Como não conduzo, vou quando o meu

marido pode, mais ou menos, de quinze em quinze

dias, mas falo com a minha mãe quase todos os

dias, ao telefone. Ela conta-me o que se passa e eu

5. A resposta de F1 informa e

justifica a frequência quinzenal de

visitas, atribuindo a causa ao

marido (que conduz) e não a si

própria, colocando a culpa no

Page 113: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

99

sinto que ela está sempre satisfeita. Tem telemóvel

e consegue atender e telefonar. Também, quando

eles estavam em casa, não os via mais vezes,

porque viviam lá na aldeia e eu vivo na cidade há

mais de 30 anos.

exterior. O telefone serve para

manter contacto com a mãe, e

para a deixar tranquila a ela (filha)

Refere que a situação da distância

não é nova para ela nem para os

pais, já que há mais de trinta anos

que vivem em terras diferentes,

desvalorizando o facto de, agora,

eles não serem autónomos como

eram e de não viverem na sua

própria casa. F1 considera as duas

situações semelhantes, e isso pode

servir para reduzir a

culpabilidade.

6. A minha mãe sentiu-se logo bem, até porque foi

ela a decidir, e sempre foi uma mulher muito

ativa. Como conhecia muitas pessoas, e o Lar tem

boas condições (um quarto, sala e w.c.

privativos), sentiu que aquela passava a ser a sua

casa. O meu pai sempre fez o que ela decidia,

sempre esteve de acordo com ela. Agora, ele

continua igual e ela está muito melhor. Faz

ginástica, pertence a um grupo de teatro,

participa nas iniciativas culturais, que são várias.

Está sempre ocupada.

6. F1 fala, entusiasmada, das

melhorias na vida dos pais, após a

institucionalização, como se

tivessem somente mudado de

casa, e para melhor. Assume que

o pai está bem e que a mãe está

muito melhor, ocupada com

atividades de que gosta e que,

antes, não tinha. E, como foi a

mãe a decidir qual a instituição,

F1 deposita nela (mãe) a

responsabilidade pela situação.

Para esta filha, as mudanças que

houve foram positivas, e isso

contribui para o seu próprio bem-

estar.

7 . E- Costumas ir buscá-los algumas vezes ao 7 . À pergunta da entrevistadora,

Page 114: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

100

Lar?

F1 - Sim. Vou sempre no Natal e quando fazem

anos. Vêm para a minha casa, outras vezes vão

para casa dos meus irmãos. A minha irmã da

Suíça também os vai buscar quando vem a

Portugal, duas vezes por ano. Eles gostam de sair

e a minha mãe diz que só tem saudades da sua

casa, de mais nada.

F1 assegura que, ela e os irmãos

(incluindo a irmã emigrante), vão

buscar os pais para passarem

alguns dias fora do Lar,

nomeadamente no Natal, nos

aniversários e quando a irmã vem

a Portugal. Apesar de saber que os

pais gostam de sair, não os vai

buscar fora dos momentos

festivos.

8.. A minha mãe sempre foi muito ativa, e o meu

pai sempre apoiou o que ela dizia e fazia. E

continua. Se ela está bem, ele também está. Até diz

que, se ela morrer primeiro, ele se atira da

varanda. Não quer viver sem ela.

9 . Desde sempre, a minha mãe é que decidia

tudo. Eles tinham uma loja na aldeia,

trabalhavam os dois, mas era ela que mandava.

Não sei se é por isso, mas ela ficou sem mãe aos

16 anos e o meu pai apoiou-a muito, antes e

depois de casarem. Mas, foi ela que tomou conta

de tudo.

8 . F1 fala da relação dos pais,

apresentando-a como muito sólida

e cooperante, desde sempre, mas

com uma clara dominância da

mãe, que tudo decide, cabendo ao

pai o papel passivo, embora feliz.

9 . Tudo o que for decidido pela

mãe, é visto como positivo, como

se a vontade dela fosse também (e

sempre) a vontade dele.

Curiosamente, diz que a mãe

ficou órfã aos dezasseis anos, e

foi o pai (então namorado) quem a

apoiou, mas depois ela tomou o

comando da vida de ambos, e

assim continuam, numa clara

relação “desequilibrada”, mas

pacífica.

10 . A minha mãe sempre foi ativista política e

continua a ser. Quando há eleições, ela faz

campanha junto dos outros velhos e velhas e

10 . A filha fala, com orgulho, da

força de carácter da mãe, que

continua fiel à sua antiga

Page 115: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

101

Participante F2

incita-os a ir votar (no partido dela, claro!).

Mesmo sabendo que o diretor do Lar é de outro

partido, ela não quer saber. Diz “se ele pode ser

de um, eu posso ser de outro!”. Como há muitos

da mesma aldeia, às vezes vai uma carrinha do

Lar, mas outras vezes vai o meu irmão buscá-los e

levá-los a votar.

intervenção social e política e não

abdica dos seus direitos de cidadã.

Como em tudo, o marido segue-a,

sem vontade própria nem

autonomia. E ela, F1, não tem

qualquer intervenção nisso.

11 . Se pudesses voltar atrás e mudar alguma

coisa, voltavas a confiá-los à mesma instituição?

F1 - Sem dúvida. Sinto que eles estão melhor

agora, a minha mãe está melhor, embora se

esqueça de muita coisa. E eu estou descansada,

porque eles não estão sozinhos.

11 . Reafirma a sua satisfação

com a institucionalização, devido

à satisfação que vê nos pais e ao

facto de não viverem sós. Em

suma, parece ter encontrada a

solução perfeita!

Unidades de Significado Expressões de Caráter

Psicológico

1 . Isto tudo começou, a minha mãe esteve

hospitalizada durante quase três semanas, depois

desorientou-se completamente, já não dizia coisa

com coisa, mas, entretanto, no hospital recuperou,

veio para casa.

1 . F2 atribui o início do processo à

doença da mãe, e consequente,

hospitalização.

2 . A gente távamos a ver que ela sozinha tava mal e

metemos ali uma rapariga a fazer os serviços da

casa e a fazer-lhe algum tipo de comer, mas

começámos a ver que não resultava, e então

começámos a mandar vir o comer do Lar e elas

2 . A desorientação que se seguiu à

estada no hospital, obrigou os

filhos a tomar medidas, contratando

uma pessoa para ajudar a idosa. A

solução não resultou, seguindo-se o

Page 116: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

102

vinham cá fazer a limpeza e faziam essas coisas. (…)

E então vimos que ela tava bem e ela começou a

dizer “ah, eu faço o comer e pronto”, mas a gente

ainda fomos a ver se arranjávamos uma pessoa para

vir dormir. A pessoa para vir dormir queria 400 e tal

euros e uma semana por mês tínhamos que lá ir

alguém dormir com ela. Fiz contas e disse-lhe “olhe,

a gente assim, em tar a pagar 400 e tal euros, mais o

comer do Lar não vale a pena. “Não, eu fico sozinha

e não sei quê”. Pronto, como ela andava bem,

decidimos que ela ficava sozinha em casa. Eu

passava lá quatro, cinco, seis vezes por dia a ver

como é que ela tava. Andou ali um mês e tal mais ou

menos bem,

apoio domiciliário.

Depois de melhorar, a idosa quis

voltar a viver sem apoio, embora a

família quisesse contratar alguém

para dormir lá, solução não adotada

devido ao custo excessivo. Perante

a estabilidade de saúde e a lucidez

demonstradas, voltou a viver

sozinha, na sua própria casa, sendo

visitada pelo filho várias vezes por

dia. Este filho, sendo o que estava

mais próximo da casa da mãe,

sentia-se constantemente

preocupado que algo pudesse

acontecer-lhe, sem ter quem a

socorresse. A preocupação com

uma mãe de noventa anos não

permitia a F2 estar tranquilo,

obrigando-se a viver numa

constante ida e vinda, situação

causadora de grande inquietação e

instabilidade emocional.

3 . Um dia de manhã cai, bate com a cabeça no

guarda fato, abriu a cabeça, por sorte conseguiu

chegar ao pé do telefone, telefonou-me, eu vim a

correr, tava ela gelada no chão, uma poça, uma

grande poça de sangue, chamei o INEM, fui com ela

para E., o médico achou que era melhor irmos pra

É., fomos pra É., fez um TAC, depois quando viemos

de lá, eu falei com ela e com a minha irmã e disse-

3 . A queda física que a idosa

sofreu, sozinha em casa, e que

obrigou a outra ida ao hospital, foi

o fator decisivo para a sua

institucionalização, sugerida pelo

filho (com apoio da irmã) e aceite,

finalmente, por ela.

Esta decisão já estava na mente de

Page 117: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

103

lhe “oh mãe, você não pode tar aqui sozinha, o que é

que quer fazer?”, “ah, eu vou pro Lar, se me

arranjares lugar no Lar, eu vou pro lar”.

F2 que, no entanto, não queria

assumi-la, sem o acordo da mãe.

Perante os acontecimentos, foi a

mãe a “encontrar” (aceitar) a

solução que tranquilizou o filho.

4 . Ela mudou de opinião. E ao mudar de opinião, até

fiquei muito satisfeito, porque ela depois, eu

consegui arranjar vaga lá no Lar e olha, infelizmente

pra uma pessoa que morreu, felizmente pra gente que

conseguimos. Ela foi pra lá e a opinião dela agora é

que tá lá muito bem, tá contente, tá…, diz ela que já

lá devia tar há mais tempo.

4 . O filho ficou muito satisfeito e

mais tranquilo com a mudança de

opinião da mãe e a sua aceitação da

institucionalização. Ao ouvi-la

dizer que está lá muito bem, o filho

vê recompensados os seus esforços,

porque, mesmo a solução “ida para

o Lar” nem sempre é possível,

dependendo de vagas existentes

(que são resultantes da morte de

alguém) e das diligências de quem

a solicita.

5 . Eu fiquei muito satisfeito com aquilo, porque ela,

(…) tá impecável, tá bem, tá muito melhor, mais bem

encarada do que o que tava aqui em casa, não tem

nada a ver. Pronto, porque ela lá tá tratada a tempo

e a horas e aqui passava frio, lá não tem frio, essas

condições.

5 . A satisfação do filho está

relacionada com as condições

físicas que ele verifica que a mãe

tem no Lar e não tinha em casa. Os

cuidados prestados pela instituição

fazem parecer que a

institucionalização é a solução ideal

para a solidão dos idosos e para as

más condições de habitabilidade.

6 . E - Na tua opinião, qual era o receio que ela

tinha, quando ela dizia que não queria, que queria

ficar em casa? Porque é que achas que ela não

quereria pensar no Lar?

F 2 - Eu penso que… , como toda a gente pensa, ir

6 . Ele acha que ela não queria,

anteriormente, porque a

institucionalização significa a

última hipótese. Um Lar de Idosos

é a última morada para o idoso, e

Page 118: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

104

pro Lar é a última hipótese.

essa consciencialização não foi

fácil, nem para o filho nem para a

mãe. É admitir que a mãe chegou à

fase final da vida e tem que ser

entregue ao cuidado de outras

pessoas. E a consciência da finitude

é dolorosa.

7 . Eu, na minha opinião, pronto, o Lar, porquê?

Vamos lá. A gente vai ao lar e se entrarmos no mais

velho, no Dr. Humberto, a gente tem uma opinião

totalmente diferente. E depois, o pessoal do centro de

dia que tá lá, e aquilo a porta a abrir e a fechar

constantemente, e as pessoas sentadas nas cadeiras e

aquilo não tem o aquecimento que tem nos outros.

(…) E a gente tem uma opinião diferente. Quando a

gente entra nos outros e vê as condições em que as

pessoas tão, é totalmente diferente.

7 . Aqui, o filho conforta-se a si

mesmo, quando estabelece a

comparação entre o Lar “bom” e o

Lar “mau”, entre o mais “pobre”,

mais velho, com menos condições

de conforto, e os outros dois, que

ele diz serem totalmente diferentes.

A ida para um destes últimos não é

vista, socialmente, da mesma

forma. É quase um “privilégio” ter

condições para estar lá. É a

diferença entre ter e não ter, meios

para pagar. E isso é fator de

diminuição da culpabilidade

latente.

8 . Pois, porque em casa era a preocupação.

Era dela tar ali gelada, cheia de frio, porque a casa

é muito húmida, muito fria e eu tava sempre

preocupado. Depois ela cai, como é que chama

alguém, se não conseguir chegar ao telefone? E eu,

na minha casa não tenho condições. Sabes, eu tenho

lá a minha filha e os meus netos e agora não tinha

condições nenhumas. Porque se eu tivesse condições,

ela ia lá pra minha casa, como teve a minha sogra.

8 . F2 volta a justificar a

institucionalização da mãe, com as

condições de habitação e com o

facto de estar sozinha e poder

acontecer-lhe qualquer coisa. E

introduz aqui, sem qualquer

pergunta da investigadora, outra

justificação: não ter condições, na

sua própria casa, para aí acolher a

mãe, tal como acolheu a sogra.

Page 119: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

105

Agora eu não tenho lá condições nenhumas, pronto,

andava enervado. Ainda ando, ainda não consegui

ver-me livre da situação.

Dado que teve que acolher a filha e

os netos, não pode fazer o mesmo à

mãe, o que o deixa ansioso e

amargurado, (culpado?) não

conseguindo sentir-se bem, mesmo

depois da institucionalização.

9 . Eu com a minha irmã, a gente damos lindamente

bem e sempre o que eu decidir, tá decidido, o que ela

decidir tá decidido. A gente nunca metemos

problemas de coisa nenhuma.

9 . A relação de cumplicidade com

a irmã facilitou a decisão, já que ela

confia nele (e vice-versa) em todas

as decisões.

10 . Eu ainda a fui inscrever nos Combatentes, na

Liga dos Combatentes, em E., como sócia pra ver se

arranjava lá vaga, porque tá lá a minha tia, a irmã

dela (…) mas pronto, como em todo o lado, não é

fácil. Depois aqui, pus a situação pra qualquer dos

três, (…) Ficava a pagar num 700€, noutro 775€ e

noutro 890€. “Então olhe, é pra onde me arranjar

vaga, quando mais depressa melhor”, disse eu.

Depois, pronto, até que foi mais ou menos rápido, um

mês, um mês e qualquer coisa.

10 . O filho conta que procurou

outra solução, a ida para outra

instituição onde a mãe tem uma

irmã, mas não houve vaga. Então,

perante os valores a pagar, ele

confiou a esta instituição a decisão

sobre qual dos Lares seria, por

ordem de rapidez. Depois da mãe

aceitar, o importante era que não

demorasse, era urgente. Já não

importava o lugar, tendo ficado no

mais caro. Esta questão é realçada

como uma “desculpa” para a

decisão. Fica implícita a ideia de

que, se custa muito dinheiro, é

porque é bom.

11 . Agora neste momento, pelo menos eu ainda não

vi que houvesse assim que me preocupar, (…) a

única coisa que eu disse ao enfermeiro é que não

quero mexidas nos medicamentos dela, só quem mexe

nos medicamentos dela são os médicos dela. (…)

11 . F2 deixou claro que, em

relação aos cuidados médicos, a

mãe continua com os mesmos

médicos de antes, não transferindo

essa responsabilidade para a

Page 120: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

106

Porque ela tá a ser tratada pelo cardiologista, tá a

ser tratada pelo do rim e tá a ser tratada pela médica

de família, por causa dos diabetes, pronto e eu acho

que chega de medicamentos, não há que alterar

nada.

instituição, o que também era

possível E, se for necessário alterar

algum medicamento, será ele

(filho) a falar com os médicos da

mãe, e não o profissional da

instituição. É uma

responsabilidade que o mantém

ligado à mãe, que faz com que

continue a sentir-se cuidador.

12 . Ela conta-me, pronto. Aquilo além, o engraçado

é que uns, infelizmente, tão passados da cabeça e ela

de vez em quando diz “deixo-me rir com parvoíces

dos outros e pronto,” ela como tá boa de cabeça, ela

tá impecável(…) para mim, devia haver uma situação

que as pessoas tivessem em zonas diferentes.

12 . F2 mantém conversas com a

mãe, que está lúcida, e que se ri de

comportamentos de outros idosos

que sofrem de demências. O ideal,

para F2, seria que esses estivessem

num espaço diferente, e não juntos

com os que “estão bem da cabeça”.

Esta opinião vai ao encontro de

muitas outras, que consideram que

os doentes mentais deveriam estar

separados dos outros. Se a mãe

estivesse somente com pessoas

lúcidas, como ela, o Lar poderia ser

mais semelhante a uma “casa”.

13 . E - As amigas que ela tinha costumam visitá-la,

também?

F2 - Olha, não tenho lá visto ninguém. Dizem-me é

“tenho que lá ir a ver, tenho que lá ir”, mas por

enquanto ainda lá não foram. Encontrou-se lá há

dias com uma velhota que morava aqui ao pé dela,

que é de B. que de vez em quando vai lá acima às

festas que eles lá fazem às quintas-feiras ou às

13 . Respondendo a uma pergunta

da investigadora, F2 introduz aqui

o assunto do corte de relações da

mãe com amigas e vizinhas

(resultado da institucionalização),

que, apesar de dizerem que vão

visitar a mãe dele, não o fazem.

Está implícita uma crítica, pois

seria muito melhor, para os idosos

Page 121: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

107

quartas e um dia destes é que se encontraram lá e

tiveram a falar, de resto, pronto, as outras amigas,

que gostavam muito dela, aqui da rua e isso tudo

“tenho que lá ir a vê-la”, mas pronto, há sempre

coisas.

Ela tá sempre a dizer “então já falaste, viste alguém

das vizinhas? Já lhes disseste alguma coisa como eu

tou? Tou contente e não sei quê”. É a conversa dela

para mim.

institucionalizados, poderem

continuar a conviver com as

pessoas com quem se relacionavam

antes. E a mãe faz-lhe sentir essa

ausência, solicitando-lhe que seja

ele a manter essa ligação, que era

importante para ela, a dizer às

amigas que ela está bem.

14 . E - E tu, vais lá muitas vezes?

F2 - Todos os dias. Ainda hoje ela me disse “quando

tu não puderes vir, não venhas. Não estejas a vir de

propósito, às vezes que não podes, não vens.

14 . O filho refere que visita a mãe,

diariamente, embora ela lhe diga

que não é necessário. Ele reafirma

que, enquanto puder, vai todos os

dias. Pretende manter as visitas,

como fazia quando ela estava em

casa. Considera isso um hábito, só

mudou o local.

15 . Eu penso que as pessoas, estando num sítio

daqueles, os filhos nem aparecem lá, penso que as

pessoas começam a tar contrariadas de tudo.

E - Revoltadas, se calhar.

F2 - Revoltadas, sim, revoltadas de tudo. É isso que

eu me dá a sensação das pessoas que lá tão e que

menos pessoas lá vão.

15 . F2 tece uma crítica aos filhos

que não visitam os pais,

considerando que essa ausência

provoca contrariedade e revolta nos

idosos. Já que puseram os pais num

Lar, é dever dos filhos ir visitá-los,

frequentemente, opinião que

corrobora a do meio social em que

F2 está inserido. Apesar das

vantagens da institucionalização,

ela só é suportável se se mantiver a

proximidade da família.

16 . Toda a vida, a minha relação com a minha mãe

foi boa, pronto. Eu fiquei sem pai, ainda não tinha

16 . F2 diz não haver qualquer

alteração na relação afetiva com a

Page 122: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

108

dois anos e pronto, vivi sempre com a minha mãe,

com os meus avós. Depois a minha mãe casou, o meu

padrasto foi, se calhar, melhor que um pai, o meu

padrinho foi impecável sempre, nunca me faltou

nada, precisasse daquilo que precisasse, era dizer-

lhe e ele se tivesse, tava desenrascado. E pronto, foi

sempre uma vida assim com eles, sempre me dei bem

e com a minha irmã, igual, com a minha irmã nunca

tivemos nada um com o outro, felizmente e espero

nunca virmos a ter.

mãe, reafirmando que sempre

tiveram uma boa relação. O facto

de ter ficado órfão de pai na 1ª

infância, não prejudicou a sua vida.

Considera a mãe como sempre

presente e o padrasto como um pai

autêntico (para além da

proximidade que teve com os avós)

e diz que as relações familiares

sempre foram muitos boas, entre

todos os membros, incluindo a

irmã.

17 . E - E depois da ida para lá, ela já saiu, já a foste

buscar?

F2 - Já. Saiu, fomos um dia ao médico e fomos outro

dia à da minha irmã, a casa da minha irmã, em B., e

pronto. E veio outro dia pra minha casa.

17 . O filho responde que já foi

buscar a mãe, enumerando as

saídas: ida ao médico, visita à filha.

Como filho mais próximo, cumpre

todos os deveres: visitas, passeios,

telefonemas. E isso dá-lhe

tranquilidade.

18 . A minha opinião, eu hoje em dia, assim eu

tivesse dinheiro, uma reforma pra puder ir para lá.

Porque eu já tou, agora, vendo aquilo, a maneira

como são tratados, mesmo, pronto, eu vejo lá

pessoas que ainda tão nas faculdades de sair e de vir

até cá abaixo. As pessoas a tar mal em casa, é

preferível.(…)

Sim, a nossa casa é a nossa casa. Enquanto a gente

tá em condições de tar em casa e ter companhia, eu

acho que em casa tá-se sempre melhor, tar no nosso

cantinho, faz aquilo que a gente quer e isso tudo,

18 . F2 conclui que, apesar de se

estar melhor em casa, porque aí a

pessoa tem liberdade para fazer o

que quer, não está sujeita a regras,

horários e opiniões dos

companheiros de quarto, a solução

da institucionalização (nas

condições físicas em que a mãe

está) é muito boa e não está ao

alcance de todos, provavelmente,

ele não terá recursos para ir para lá,

quando for velho. Logo, a mãe tem

direito a um privilégio que muitos

Page 123: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

109

Participante F3

não têm. Esta racionalização

constitui um mecanismo de defesa,

relativamente à institucionalização.

Unidades de Significado Expressões de Caráter

Psicológico

1 . A minha mãe está institucionalizada, o meu pai

não. Ele faz a sua vida, é autónomo.

1 . F3 informa, logo de início que a

mãe está no Lar, enquanto o pai se

mantém, de forma autónoma, em

casa, o que pressupõe que a

institucionalização está ligada à

falta de autonomia da mãe.

2 . Ela estava em casa, ela tem uma dificuldade

imensa em se locomover e faz fisioterapia. Em casa

tínhamos uma senhora que tratava dela, pagávamos

imenso, pagávamos o dobro do que pagamos aqui,

não tinha as condições nem de perto nem de longe

que tem aqui. Essa senhora só estava lá até às 19, a

partir daí a minha mãe ficava sozinha, quer dizer,

ficava com o meu pai. Depois tinha crises grandes,

fazia anemias, lá tínhamos que chamar o INEM, ia

para É., estava em É. dois, três dias, faziam-lhe lá

umas transfusões, e mandavam-na para casa. Numa

dessas estadias dela em É., acabou por apanhar uma

bactéria, esteve mal, depois voltou para casa. Voltou

para casa, esteve mal outra vez, e então chegámos à

conclusão que não podia ser, porque ela em casa não

tinha as condições, nós não conseguíamos dar-lhe as

2 . A mãe de F3 tem dificuldades

locomotoras, necessitando de

fisioterapia. Em casa, dispunha de

uma cuidadora formal, durante o

dia, mas havia a desvantagem de

ser uma solução muito cara, sem as

boas condições físicas do Lar.

F3 justifica que a mãe ficava

sozinha, de noite, mas depois diz

que ficava com o marido,

desvalorizando essa presença, que

não considera cuidadora.

O relato dos problemas de saúde

faz crer que os mesmos estavam

relacionados com a ausência de

Page 124: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

110

condições que ela precisava, que era estar sempre

com alguém do lado e com alguém que soubesse

cuidar dela e dar-lhe mais assistência.

cuidados permanentes e de

assistência especializada, que os

familiares não conseguiam

proporcionar, mas está subjacente,

nas palavras e na forma de falar de

F3, a incapacidade para lidar com

uma mãe demasiado exigente e

autoritária.

3 . E então, eu e o meu irmão, e o meu pai, os três,

resolvemos procurar uma instituição com condições

que nós pudéssemos arranjar e tivéssemos condições

de pagar, e conseguimos pô-la aqui em B., onde há

condições de higiene, há assistência, há apoio, há

até…, segundo aquilo que me parece ver, os utentes

são bem tratados, são bem cuidados, e nós, família

estamos satisfeitos, embora o ideal fosse ela estar em

casa.

3 . A filha assume que a decisão foi

tomada por ela, pelo irmão e pelo

pai, sem qualquer participação da

mãe (embora esta esteja

completamente lúcida). A escolha

teve em conta a qualidade da

assistência prestada, mas também o

custo da mesma. Tudo feito sem

qualquer pedido de opinião à

mãe/esposa. Para os familiares, o

fundamental foi haver higiene,

assistência e apoio, suficientes para

lhes proporcionar satisfação (a

eles).

4 . Ela, a minha mãe, quando veio, vinha na ideia de

que estava cá um mês ou dois e depois voltava para

casa. A princípio foi um bocado complicado porque

falava muito na casa, queria muito ir para casa.

Depois, ela própria, ao fim de algum tempo, nós

levávamo-la a passar o fim de semana, e ela própria

queria vir para o Lar porque sentia que aqui estava

melhor, tinha mais condições, tinha mais conforto. A

casa dos meus pais é uma casa antiga, não é plana,

tem muitos portados, muitas portadas e, pronto, era

4 . F3 revela que a mãe não sabia

que a ida para o Lar era definitiva,

ou seja, foi enganada, pensando que

se tratava de um centro de

recuperação, de onde voltaria para

casa. Quando se apercebeu da

verdade, assumiu que não haveria

regresso. A justificação da filha é

acompanhada da descrição das más

condições da habitação, das

Page 125: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

111

difícil. É fria, no inverno,…e foi assim! barreiras arquitetónicas, da falta de

conforto, da temperatura, mas não

explica porque foi omitida, à mãe, a

questão principal.

5 . E - Porque é que veio para este Lar? Foi o que

consideraram melhor? Porque não era o mais

próximo!

F3 - Foi o que nós consideramos melhor, porque

mais próximo tínhamos X, Y, mas principalmente X.

Mas eu, tanto eu como o meu irmão, não queríamos

a nossa mãe em X, porque lá, acho que não há

grandes condições de higiene, não tem as condições

que tem aqui. É mais caro mas, pronto, ficamos de

consciência tranquila que fizemos o melhor por ela e

arranjámos o melhor para ela estar confortável.

5 . F3 relata a pesquisa de

instituição, feita por ela e pelo

irmão, que recusaram Lares mais

próximos de casa por os

considerarem com menos

condições de higiene. Refere

também que escolheram a solução

mais onerosa, a fim de ficarem com

a consciência tranquila de que

tinham escolhido o melhor. O

problema do custo é,

frequentemente, referido pelos

familiares, para minimizar um

possível sentimento de culpa, como

se, pagando mais, se justificasse

melhor a decisão tomada.

6 . Ela falava muito em ir para casa e que ainda

conseguia cozinhar e (…) engomar a roupa, lavar a

loiça, ela podia fazer essas coisas lá em casa. Claro

que ela não podia fazer nada, nem sequer consegue

estar em pé, não é? Entretanto, ela própria, depois

começou a perceber, as vezes que lá foi, que não

conseguia nada. Chegou a um ponto que ela tinha

imensa dificuldade até em levar a colher à boca e aí

ela percebeu que não dava e acabou por aceitar,

digamos assim, conformar-se a estar aqui.

6. A filha admite que a mãe não

queria a institucionalização, tendo,

várias vezes, afirmado que

conseguia ser autónoma, na sua

casa. No entanto, na opinião de F3,

a mãe era dependente, e acabou por

ceder à vontade da família, embora

não concorde. É uma situação clara

de imposição familiar, dos filhos e

do marido, que não permitiram à

Page 126: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

112

idosa, qualquer alternativa.

7 . E - Como é que acha que ela se sente agora?

Depois de já estar, disse há pouco que ela está

conformada, mas acha-a bem, bem-disposta ou ela é

sempre assim?

F3 - Não, ela era, a minha mãe era uma pessoa

muito ativa, era uma mulher poderosa, ela era

general, ela comandava toda a gente, como eu digo é

que é, como eu faço é como se faz, ela tinha muito,

costumava muito dizer isto, “mesmo que seja mais

mal feito, mas sou eu que mando, pronto”. É evidente

que aqui não pode ser assim, não é? Acho que sim,

que está conformada, vê-se que está deprimida, isso

nota-se perfeitamente que ela está deprimida porque

está ali, está aqui o dia inteiro, está sentada, vai

fazer a fisioterapia duas vezes por semana, anda um

bocadinho, com imensa dificuldade, porque tem

muitas dores, mas ela já percebeu também, que

quando está em casa ou quando vai a casa, ela fica

pior.

7. F3 diz que a mãe está deprimida,

associando, claramente, esse estado

ao facto de passar o dia inteiro

sentada, no Lar, completamente

passiva, e sem querer ali estar. E, a

isso, opõe a imagem anterior de

uma mulher poderosa, autoritária,

tipo “general”, a quem família e

empregados eram obrigados a

submeter-se, e que não tinham

direito a opinião própria. Hoje,

institucionalizada, perdida toda a

autoridade, é, segundo a filha, uma

pessoa claramente deprimida.

8 . Agora já não me tem dito isso, mas tinha dias que

me dizia que havia de ser permitido que as pessoas,

quando querem morrer, morressem. Porque ela via

lá na televisão a eutanásia e achava que essa seria a

solução para ela.

8. A filha diz que, perante a perda

completa de autoridade e de

autonomia, a mãe considera não

haver razões para continuar a viver,

e diz-lhe que a eutanásia seria a

melhor solução para ela.

9 . No entanto, ela, a minha mãe aqui, ela diz muito

bem, porque ela era muito limpa, muito, gostava de

9. O Lar, diz F3, é considerado,

pela mãe, um lugar muito limpo,

Page 127: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

113

esfregar e tudo isso e ela manifesta muitas vezes isso,

que aqui há muito asseio, há muita limpeza, esfregam

muito, como ela gosta.

com muita higiene, como ela

gostava de fazer em casa. É um

aspeto positivo, que merece ser

referido pela filha, talvez para

atenuar o desprazer da idosa em

estar naquele local, que, ainda que

somente num aspeto, se assemelha

à casa que “perdeu”.

10 . Logo que veio para cá, ela ia à Oficina do Idoso

e gostava muito, mas depois chegou a um ponto que

deixou de ir porque ela já não conseguia fazer

absolutamente nada, porque não tinha, nos dedos,

ela não tinha sensibilidade, não tinha força, não

conseguia nada e então, a partir daí, ela ficou mais

triste porque já nem isso conseguia fazer.

10 . Outro aspeto positivo da

instituição era, segundo F3, a

Oficina do Idoso, onde a mãe

gostava de estar porque isso lhe

permitia fazer coisas. Com a perda

de sensibilidade nas mãos, perdeu

também essa competência, o que a

deixa mais abatida.

11 . E - Vem todos os dias visitá-la?

F3 - Todos os dias. Só quando eu não posso. Só

mesmo quando eu não posso vir, de forma alguma,

às vezes acontece, não é? Surgirem situações que

tenho que resolver, aí eu falo com ela ao telefone,

mas eu venho cá todos os dias. Só mesmo quando é

completamente impossível. E, se eu não venho, ela

fica triste, muito triste e muito preocupada.

11 . F3 responde à entrevistadora,

dizendo que visita a mãe

diariamente, só não o fazendo se

houver impossibilidade total. E,

quando isso acontece, sabe que a

mãe fica triste e muito preocupada

com ela. De alguma forma, F3

continua a temer a mãe que a todos

dominava, e faz, todos os dias 30

km, para não a desiludir, para

manter o amor do objeto.

12 . E - E diga-me uma coisa, se não quiser

responder, não responda. Porque é que acha essa

necessidade de vir todos os dias, mesmo todos os

dias?

12 . Esta filha justifica a visita

diária à mãe, com o seu próprio

bem-estar. É um ato indispensável

à sua tranquilidade, mas é também

Page 128: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

114

F3 - Olhe, porque se eu não vier todos os dias, eu

não fico bem comigo própria, sinto a falta (…) e

porque penso assim, ela agora, a minha mãe que tá

lúcida ainda, eu ainda consigo estar com ela, ela

ainda tira algum prazer de estar comigo e eu com

ela, ainda falamos, ainda lhe conto as graças das

minhas netas que ela fica feliz, ainda lhe conto como

vai o negócio, como vão as pessoas que trabalham lá

em casa, como vai tudo isso e também porque penso

que pra já, ela ainda está cá, ainda tá lúcida e eu

ainda consigo estar com ela, usufruir dela, uma vez

que ela não pode estar sempre connosco, que seria o

ideal, não é? E então, tenho que aproveitar todos os

dias e sempre que posso enquanto ela estiver cá.

a resposta à necessidade da mãe, de

continuar a saber tudo o que se

passa, sem o seu comando. Diz que

ambas retiram prazer desses

momentos e, por isso, acha que os

deve aproveitar, enquanto a mãe for

viva. Parece que ambas necessitam

de continuar a desempenhar os

papéis de dirigente e dirigida, o que

lhes dá segurança. E, à filha, o

contacto com o objeto é necessário,

apesar de poder não ser um bom

objeto (mais vale um menos bom,

do que nenhum).

13 . E - E o seu pai, também a visita com

regularidade?

F3 - Olhe, não. O meu pai, é curioso, o meu pai, a

minha mãe está aqui faz dois anos em agosto e ele

não vinha cá. Desculpava-se que não podia porque

doíam-lhe as pernas e depois tinha que andar, não

vinha cá. Agora, há um tempo a esta parte, vem com

alguma, para mim, com alguma frequência porque

vem todas as semanas. (… ) morreu um irmão dele, o

mais novo de todos e a partir daí, o meu pai ficou um

bocado, ficou perturbado, ficou diferente, tá

diferente e a partir daí ele agora quer vir todas as

semanas.

13 . F3 responde à entrevistadora,

admitindo que o pai não visitava a

mãe, situação que mudou desde que

lhe morreu um irmão, o que, na

opinião da filha, o terá deixado

perturbado e mais sensível aos

afetos, aos outros, nomeadamente,

à esposa. Esta diferença, que a filha

nota, mas não consegue explicar,

provocou alterações nas visitas à

mãe de F3, que passaram a ser

semanais.

14 . A minha mãe logo quando veio, de quinze em

quinze dias, ia a casa.

Pois, porque estava melhor, de quinze em quinze

14 . No início da

institucionalização, F3 levava a

mãe a casa, quinzenalmente,

Page 129: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

115

dias, nós levávamo-la a casa. Ainda chegou lá a

passar, logo ao princípio de estar aqui, três/quatro

dias, umas férias, porque estava a minha filha,

estavam as meninas, ela gosta muito de crianças e

gosta muito das meninas, para usufruir mais delas,

só que a situação depois também começou-se a

complicar.

situação que deixou de acontecer,

com regularidade, passando essas

saídas para ocasiões festivas,

embora a idosa continue a gostar de

ir. F3 não explica concretamente as

razões dessa mudança, e fala

sempre no plural “nós”, aí

incluindo o pai e o irmão, embora

seja ela a visita mais frequente e

quem poderia tomar outra decisão.

15 . E - Uma pergunta que eu costumo fazer a toda a

gente: quando há eleições, costuma levá-la a votar?

F3 - Ora bem, desde que ela aqui está,… ela gostou

sempre muito de votar, sempre.

E - Era uma cidadã ativa?

F3 - Muito. E nós, ela está aqui, portanto, penso que

as únicas eleições que houve desde que ela, ah não,

já houve duas, as legislativas e a presidência da

República.

E - Sim, sim.

F3 - E nós, ela dizia que queria ir, que queria ir, que

queria ir. E nós, sim senhora, levamo-la. Mas depois,

quando era mesmo no dia que era para ir, disse que

desistia, não queria. Mas foi sempre muito ativa. Ela

é capaz de ir votar é para as autárquicas, aí vamos

lá ver.

15 . A filha afirma que a mãe

sempre foi uma cidadã ativa,

gostava de ir votar, mas,

curiosamente, já houve eleições

desde que entrou para o Lar e ela

desistiu de ir, no próprio dia.

Também na questão da cidadania, é

claro, para a filha, que a mãe

mudou, tendo-se desinteressado,

passando de ativa a passiva. Resta a

esperança: talvez vá nas próximas,

porque são eleições autárquicas.

16 . Curiosamente, na minha relação com a minha

mãe, ao longo destes dois anos, temos uma relação

16 . À pergunta sobre como a filha

se tem sentido e o que mudou na

Page 130: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

116

mais calma, mais tranquila, porque nós chocávamos

imenso as duas, muito. Somos um pouco polos

opostos, enquanto a minha mãe é, era coitada, agora

já não é, o “quero, posso e mando”, dava ordens, eu

era ao contrário.

E - Obedecia?

F3 (acena afirmativamente) - E por vezes,

entravamos até um bocado em conflito as duas, até

por causa das pessoas que trabalham lá em casa.

Achava, não concordava, na maneira, na forma

como a minha mãe por vezes falava para as pessoas,

com tom autoritário.

relação, ela responde, sem hesitar,

que, agora, se relaciona de forma

mais tranquila com a mãe, porque,

antes, não concordava com o

autoritarismo dela, mesmo com as

funcionárias de casa. No entanto, a

mãe não permitia a ninguém (nem

mesmo à filha) fazer valer as suas

opiniões. Agora, que já não tem

poder, e que os papéis se

inverteram, a relação é melhor.

Contraditoriamente, a filha lamenta

que a mãe tenha perdido o poder,

mas essa perda contribuiu para a

facilitação a relação entre ambas.

17 . Agora, a nossa relação assim é mais, é mais…

E - Tranquila?

F3 - Mais tranquila.

E - Não têm essas coisas para discutir.

F3 - Nem essas, nem “onde estiveste? nem onde

foste? onde andaste?” Nem,” olha lá que horas

são!” porque eu estou viúva. “Onde é que foste,

passas o dia na rua”, havia sempre….

17 . Outro aspeto da relação de que

F3 fala diz respeito à sua submissão

pessoal à mãe, que, apesar da idade

da filha (mais de 60 anos) e da sua

condição de viúva, a controlava nas

saídas de casa e lhe exigia

explicação de tudo o que fazia. Era

como se a filha continuasse a ser

adolescente, como se a relação não

tivesse amadurecido nem tivesse

havido individuação.

18 . Agora tenho, agora tenho o meu pai.

E - Que faz esse papel?

F3 - Que faz esse papel, embora tenha outra

maneira, não é? É mais… não é tão possessivo, mas

também faz um pouco isso. Também me controla,

18 . A situação de dependência e

submissão filial continua, agora

controlada pelo pai, que, embora de

forma um pouco diferente, também

interfere na vida pessoal da filha e a

controla. E isto é dito por F3, com

Page 131: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

117

quer saber onde eu vou, se vou arranjar as mãos, é

porque sou vaidosa, é assim…

um ar resignado, como se não

houvesse forma de resolver e

modificar estas relações doentias,

como se ela não encontrasse forças

para reverter a situação, como se

fosse uma fatalidade.

19. Como também já disse, o ideal seria ela estar na

sua própria casa. Sentiu-se mal com isso, com essa

decisão que tomaram em conjunto? Em algum

momento, ou naquele momento, no princípio?

F3 - Não. Quer dizer, não, porque se a minha mãe

estivesse num lugar, num sítio em que fosse

maltratada, não houvesse condições, eu sentia-me

muito mal e não a deixava, nem sequer a deixava.

Mas ela está num sítio em que ela é muito bem

tratada, em que tem tudo aquilo que é importante. É

claro, o ideal seria ela estar na casa dela.

19 . F3 afirma não se sentir mal

com a decisão tomada, de

institucionalizar a mãe, porque

considera que ela está bem tratada.

Diz que não é a solução ideal, mas

o ideal não é possível, então,

satisfaz-se com o “bom”.

20 . (…) eu às vezes também perdia a paciência,

também com ela. Houve umas ocasiões, em que a

senhora que ficava lá com ela, que estava a cuidar

dela, eu não suportava aquilo, não suportava. Ela

punha a criatura de joelhos, tinha que andar de

joelhos a esfregar o chão da cozinha, não sei com o

quê.

20 . Infere-se, da sua resposta, a

tranquilidade que advém da

impossibilidade atual da mãe

maltratar ou subjugar alguém,

como fazia quando estava em casa.

Esta perda do poder prepotente da

mãe é o lado

positivo/compensatório.

21 . No entanto, a minha mãe hoje diz para os

irmãos e assim, que eu e o meu irmão é que estamos

a completar a reforma dela, que somos nós que

estamos a suportar o que falta. E então, ela diz para

os irmãos, que tem os filhos muito amigos dela,

21 . A filha refere a imagem

positiva que a mãe passa, dos

filhos, para as outras pessoas,

dizendo que eles a puseram num

local bom, muito limpo. Esta

Page 132: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

118

Participante F4

porque os filhos dela puseram-na num sítio muito

bom, onde ela é muito bem tratada, onde há muito

asseio, onde há muita higiene, onde cuidam muito

bem dos velhos.

imagem para o exterior é necessária

à manutenção, ainda que aparente,

de um controlo da idosa, sobre a

situação, embora seja um falso

controlo.

22 . Há uma mágoa que ela tem, que ela se queixa,

que é quando as pessoas, os utentes que estão aqui,

partem, ninguém lhe dizer.

22 . F3 refere uma só queixa feita

pela mãe, que é não ser informada

quando algum dos utentes do Lar

morre. E saber, depois, só quando

pergunta, deixa-a muito magoada.

Mais uma vez, está presente a

reação negativa perante a perda de

controlo sobre os acontecimentos e

sobre o conhecimento do que

acontece.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . E - Já me disse que já não tem mãe e tem sete

irmãos. Como é que foi tomada a decisão de

institucionalizar o seu pai?

F4 - A decisão foi tomada porque ele veio do

hospital, esteve hospitalizado em X, veio do hospital

referenciado pela unidade da C.V. para

recuperação; entretanto, não havia vagas, pediu-se a

alguém que nos ajudasse e esteve três semanas no

Lar, numa enfermaria do Lar à espera da vaga, até

que surgiu a ida para a C.V. para Y aí, esteve algum

tempo, dois meses mais ou menos, sensivelmente, e

1 . Numa primeira resposta, F4

conta o percurso da doença do pai,

passando por vários serviços médicos

e de apoio, e a sua recuperação, que

os filhos julgavam impossível.

Atribui esse facto, talvez, à qualidade

do último serviço onde esteve (uma

Unidade de Recuperação), ou ao

acaso. É como se um milagre tivesse

acontecido, após perdidas todas as

esperanças.

Page 133: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

119

ao fim desses dois meses foi transferido, para Z, para

a C.V.. (…) Aí, saiu numa situação em que tínhamos

praticamente as esperanças perdidas que ele

sobrevivesse porque estava mesmo, mesmo mal.

Felizmente, chegou a Z e ao fim de dias, começou a

recuperar, ou porque teve outra assistência ou

porque tinha mesmo de recuperar. Ele estava

totalmente dependente, inclusivamente para se virar

na cama, tinha que ser ajudado.

2 . Quando adoeceu, ainda a minha mãe estava

também viva e estavam os dois em casa com a minha

irmã. Com a mais nova, uma das mais novas.

Entretanto, a minha mãe faleceu, faleceu enquanto

ele esteve na C.V, em Z, e não era possível ele lá em

casa com a minha irmã que também não tinha

fisicamente possibilidades de estar com ele, uma vez

que ele continuava, embora mais recuperado, mas

continuava sendo dependente de alguém.

2 . Durante esse tempo, faleceu a

mãe de F4, ficando em casa, somente

a filha mais nova, também ela com

problemas de saúde, sem capacidade

para cuidar do pai, após a saída da

Unidade de Recuperação. Todos

estes factos são contados, por F4,

numa voz trémula, não conseguindo

conter as lágrimas durante quase toda

a entrevista. É-lhe difícil recordar

como, em poucos meses, a

estabilidade familiar foi abalada,

com a morte da mãe e a

doença/dependência do pai.

3 . Tudo isto começou na altura, portanto, em que

ele acabou por ir para a C.V. para X, mas, aí, nessa

altura, é que chegou-se à situação em que ele,

portanto, para ir à casa de banho, a minha mãe, na

altura a minha mãe ainda era viva também, a minha

mãe, ela coitada, tinha dificuldade em se

movimentar, ela porque tinha a bengala, só com as

duas bengalinhas, senão era impossível de pensar em

ela ajudar alguma coisa, e a minha irmã também não

3 . A decisão da institucionalização

foi tomada, pelos filhos, antes da

morte da mãe, já que previam que ela

não conseguiria ajudar o marido,

devido à sua própria debilidade, e a

filha também não. A hipótese dos

filhos acolherem o pai, também foi

rejeitada por todos, tendo decidido a

Page 134: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

120

podia, e então ai tomámos a decisão, uma vez que

nenhum de nós tinha possibilidades para o ter em

casa, e pronto, foi decidido tentarmos arranjar lugar

num Lar.

institucionalização.

4 . Ele no lar em Y, nunca gostou de estar, não

sabemos porquê, ele se calhar não gosta de estar em

nenhum, mas lá, ele não gostava mesmo, pediu-nos

para nós o mudarmos porque não queria lá estar, foi

quando nós tomámos a decisão e conseguiu-se

arranjar a colocação dele, primeiro no lar A, depois

mais tarde no lar B, onde se encontra. Foi uma coisa

que nunca nos passou pela cabeça, mas teve que ser.

4 . A primeira instituição escolhida

foi rejeitada pelo pai, que pediu aos

filhos que o tirassem de lá, ao que

eles acederam, encontrando-se,

atualmente, na localidade onde vivia.

O filho diz que nunca, antes, tinham

(ele e os irmãos) pensado nesta

solução que, visivelmente, lhe causa

mal-estar, mas que foi adotada por

não ser possível outra alternativa. E

acrescenta, choroso, que, talvez o pai

não goste de nenhum Lar.

5 . E - Como é que ele aceitou, ele participou nessa

decisão ou foram os filhos?

F4 - Não, na altura ele não tinha condições.

Não tinha condições psicológicas nem emocionais,

de maneira nenhuma, portanto nada, para tomar

essa decisão, nós é que lhe dissemos, pronto, e ele

aceitou, aceitou... ele teve fases que não sabia sequer

se estava no lar se estava em casa, portanto não, ele

não teve qualquer decisão aí, a única coisa em que

ele teve um bocadinho de influência, que foi à

vontade dele, foi na transferência do lar de Y..

5 . F4 assume que o pai não

participou na decisão relativa à sua

institucionalização nem tinha

(naquela fase da doença) capacidade

mental para decidir. Também não foi

consultado, sendo-lhe apresentada a

solução como um facto consumado.

A única vontade que os filhos lhe

satisfizeram, posteriormente, foi a

mudança de instituição.

6 . Ele só uma vez ou duas é que falou “quando é

que me levam ou eu quero-me ir embora, não estou

aqui a fazer nada” e quando às vezes se fala, quer

6 . O filho reconhece que o pai, em

momentos de lucidez, os (aos filhos)

interroga sobre a necessidade da sua

Page 135: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

121

sair porque diz que não está a fazer nada " o que é

que estou aqui a fazer se não tenho aqui trabalho e

não tenho nada que fazer" mas pronto, mas foi uma

situação… realmente nunca, foi uma coisa que nunca

nos passou pela cabeça.... pronto. Nós eramos,

somos oito e nunca nos passou pela cabeça que ele

chegasse a esta situação. O certo é que a gente,

pronto a gente à distância, por vezes não vê as coisas

como elas…, sempre pensamos que a..... um dia que

chegasse a esta situação haver algum ou alguma que

tivesse disponibilidade…

estadia no Lar, mostrando vontade de

sair, mas não lhe sendo dada

nenhuma resposta. F4 constata,

lamentando, a decisão tomada, que

diz não ter sido planeada por nenhum

dos irmãos, cada um sempre

pensando que, entre tantos, algum

teria disponibilidade para acolher o

pai. É como uma fatalidade, que

poderia ter sido evitada. Embora não

acuse ninguém, está implícita a

crítica, mas é, segundo as suas

palavras, uma crítica feita por todos

os filhos a todos os irmãos, cada um

responsabilizando os outros, tendo,

todos, “ignorado” o problema do

envelhecimento dos pais.

7 . Por exemplo, o caso da minha sogra. A minha

sogra teve a felicidade de ter a filha que se

disponibilizou, e está lá, há doze anos em casa dela,

pronto. Não está num lar, está em casa da filha. Mas

sempre pensamos que o meu pai estivesse assim,

tivesse essa possibilidade, mas.... atendendo à vida

que cada um tomou, não era possível isso acontecer.

7 . E surge a comparação com a

situação da sogra, que teve a

felicidade de ir para casa da filha (a

casa de F4), enquanto o seu pai teve

que ser institucionalizado. É latente o

mal-estar familiar, quando se tratam,

intra familiarmente, duas situações

semelhantes, de formas

completamente opostas, uma

considerada boa (a da sogra), e a

outra menos boa (a do pai).

8 . E - Quando tomaram a decisão, foi uma decisão

consensual dos filhos?

F4 - Sim, sim, sim, foi, foi, foi tomada por dois ou

8 . A decisão não foi tomada por

todos os filhos. Alguns decidiram e

os outros (incluindo F4) aceitaram,

porque não encontraram uma melhor

Page 136: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

122

três, mas pronto, todos…Por exemplo, quando os

meus irmãos vieram ter comigo, vieram para me

dizer "olha pensamos isto assim a assim". Com

certeza, então, tem que ser tomada, ele não pode

estar sozinho,” portanto ... foi assim.

alternativa, o que deixa transparecer

uma unanimidade forçada e uma

“unidade” familiar em que há

diversos graus de poder, e em que,

claramente, a F4 não cabe tomar a

iniciativa.

9 . Vão dois anos e tal já que ele, digamos que não

está em casa. Ele sente-se, ele, o meu pai foi sempre

muito, mesmo noutro tempo, foi sempre muito

fechado, muito para ele sofrer para ele. Ele, à vista,

nunca tinha problemas, tinha lá os problemas dele.

(…) mesmo na questão de doenças, ele só à última ou

se alguém que detetasse.

9 . F4 rodeia a questão, justificando-

se, antecipadamente, com o a forma

de ser do pai, dizendo que ele sempre

foi muito fechado, nunca falou muito

de si próprio nem se queixava de

nada, embora tivesse problemas ou

alguma doença.

10 . (…) mesmo agora, quando já estava nesta

situação e que a minha mãe faleceu, foi a mesma

coisa, ele..... a minha mãe faleceu, quando soube foi

ao fim de três ou quatro dias (…) ele chorou um

bocadinho, quis saber como é que tinha sido o

funeral, quem é que tinha vindo, se a irmã da minha

mãe, que uns tempos antes tinham tido assim uma

queziliazita, estavam um bocadinho, pouco bem

humoradas uma com a outra, se a outra tinha vindo,

quis saber isso tudo, a partir daí, só quis foi o luto,

quis fazer o luto, pediu-me roupa preta para fazer o

luto, e a partir daí não quis mais conversa.

10 . Até a reação à morte da esposa

mostra um homem”duro”, resistente,

respeitador de tradições. Após a

informação sobre o funeral, não quis

voltar a falar do assunto, como se o

tivesse enterrado, definitivamente,

esse assunto.

11 . (…) mas foi sempre, sempre assim, sempre,

mesmo quando ele se chateava com qualquer pessoa,

nós não sabíamos, nós só sabíamos se essa pessoa ou

alguém nos dissesse " olha afinal o teu pai…"

11 . A imagem que nos transmite é a

de um homem que não expressa

sentimentos, que não se queixa de

nada, e que aceita o inevitável, que

só faz pequenas “confissões” quando

Page 137: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

123

está menos lúcido.

F4 constata que o pai sempre foi

assim, nunca partilhava

preocupações com a família, portanto

agora é igual, não sabendo o filho

qual o seu verdadeiro estado de

ânimo.

12 . Não, não, na minha relação não mudou

praticamente nada, porque foi assim.

E - Costumava vê-lo frequentemente, antes dele ir o

lar?

F4 - Hã, hã, sim, quase todos os dias, porque ele

quase todos os dias aqui vinha, hã, hã, porque eu fui

sempre assim também com ele, e ele sabia isso e a

minha mãe também, Deus tenha a alma em descanso,

mas sabia isso também. Eu nunca fui pessoa muito de

.....andar a ir todos os dias, por exemplo, a ver o meu

pai a casa ou ver a minha mãe (…) nós somos

muitos, todos os dias nos vemos (…) todos os dias eu

e a minha irmã que estava em casa, todos os dias de

manhã, eu via-a, ela vinha beber café para ir para o

serviço dela ou para sair para o escritório e eu

perguntava-lhe sempre" então os meninos?"

12 . F4 assegura que o seu contacto

com o pai é igual ao que era.

Enquanto foi possível, era o pai que

o visitava a ele (no café) e, no

mesmo local, via diariamente a irmã

que vivia com os pais. Ele, filho, só

ia a casa dos pais se fosse mesmo

necessário, caso contrário, não

tomava a iniciativa. À irmã,

perguntava pelos “meninos”,

infantilizando os pais, fantasiando-os

como crianças, à guarda da filha

mais nova.

13 . A nossa relação.... e eu fui sempre, portanto,

tive sempre assim uma boa relação, porque eu ....

porque eu não fui criado com os meus pais, em parte

(…) Mas, não é isso, não é isso, porque isso não

afetou em nada a nossa relação, nem com os meus

irmãos nem com os meus pais, nunca, tal como a

minha irmã X a mesma coisa, também, isso nunca

afetou porque nós, apesar de não sermos criados

13 . F4 diz que sempre teve uma boa

relação com o pai, e introduz aqui

um facto da sua história de vida,

revelando não ter sido criado pelos

pais, tal como uma das irmãs,

justificando e minimizando o facto

com um hábito antigo, nas famílias

numerosas, de afastar o filho mais

Page 138: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

124

com eles, nós não fomos criados com eles, não foi

por isto ou por aquilo. Antigamente havia aquela

tradição, a mãe ter um bebé, o outro mais novinho

precisava de estar uns dias afastado, desmamar, não

sei quê, e foi assim que eu fui para casa dos meus

padrinhos, fui e lá fiquei, pronto, a minha irmã foi

para os XX e lá ficou.

novo, aquando do nascimento de

outro bebé. Reafirma que isso não

afetou a relação familiar nem os

sentimentos que nutria/nutre pelos

pais e pelos irmãos. É uma resposta

que tenta negar o efeito do

afastamento, decidido pelos pais, na

relação afetiva com eles,

desresponsabilizando-os e colocando

a responsabilidade num costume da

época.

14 . Fui criado com os meus padrinhos, que já

também faleceram os dois, esses infelizmente nunca

chegaram a esta situação, à situação nem à idade,

porque a idade por vezes não é tudo, mas, faleceram

antes de chegar a uma situação que tivessem que ir

para o Lar, porque senão pronto, se calhar eu teria

que tomar a mesma decisão.

14 . E, para reforçar a convicção de

que não há diferenças na relação que

teve com os pais e com os padrinhos,

diz que, se tivesse sido necessário,

teria tomado mesma decisão de os

institucionalizar. Mas aqui fala na 1ª

pessoa, em que seria ele a decidir,

era ele o cuidador, e não teria com

quem dividir a responsabilidade, em

que a mesma se dilui no “nós”.

15 . Todas as terças feiras, vou com a minha mulher

visitá-lo (…) se eu lá não for durante a semana, ele

não estranha nada, mas, se eu tiver quinze dias sem

lá ir, já estranha.

(…) se a minha irmã não me disser nada, telefono-

lhe eu" então como é que está o X ?" portanto, é a

nossa conversa, é o X "então como é que estava o

X?"

15 . A visita ao pai é um ritual, com

dia e hora marcados, semanalmente.

Admite que há algumas exceções,

não indo um desses dias ou indo, sem

ser esperado. O pai, habituado à

rotina semanal, faz-lhe sentir a falta,

se não for visitá-lo uma vez por

semana.

Nos outros dias, recorre às

informações da irmã mais nova

Page 139: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

125

(elemento responsável, perante a

instituição), perguntando-lhe pelo X

(refere-se ao pai pelo nome próprio).

Funciona a rede familiar para

trocarem informações sobre o estado

do pai, mais do que o diálogo com o

próprio. Aliás, sente-se, nesta

conversa, mais do que afetividade, o

cumprimento de um dever para com

o progenitor, o que se compreende

pela história de vida de F4.

16 . E - Ele já voltou a casa, depois de ir para o

Lar?

F4 - A casa dele não, não voltou. (…) A casa não,

porque nós temos evitado sempre isso... porque como

ele não fala, nem gosta, e nós não o temos levado a

casa dele, por isso, para que ele não viva mais

aquela sensação da falta.

16 . À pergunta direta, responde que

nunca levaram o pai à sua própria

casa, para que ele não sinta o vazio

deixado pela morte da mulher,

pressupondo que isso o fará sofrer,

mas nunca lhe tendo perguntado se

queria ir.

17 . E - E você, já foi buscá-lo alguma vez?

F4 -Eu ainda não fui, ainda não fui, ainda não

calhou, assim uns anos ou assim, como um dia em

que desse para eu..., os meus irmãos foram; pelo

natal, foram uns e pelo ano novo, foram outros.

17 . Quanto a ele, F4, confessa nunca

ter ido buscar o pai para sair um

pouco do Lar, embora já tenha estado

com ele, em casa de irmãos. Não

apresenta justificação, dizendo

apenas que nunca “calhou”.

18 . E - Como é que acha que ele se sente nessas

saídas de lá? Acha que se sente bem?

F4 - Sente, sente bem, porque ele é , ele é assim; se o

meu irmão lá chegar e disser assim "ó pai, olha, eu

amanhã ou hoje, venho-te buscar para ires a

18 . F4 diz que o pai gosta de sair do

Lar, porque, quando não quer sair, se

recusa a fazê-lo. É reforçada aqui a

imagem de um pai com um

funcionamento rígido, fechado em si

Page 140: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

126

Participante F5

almoçar ou ires jantar" e ele se não estiver naqueles

dias em que ele não tem vontade e que por qualquer

motivo, ele diz logo " olha não venhas que eu não

vou,... não venhas que eu não vou", ele vai. (…) mas,

quando ele diz não…”

próprio, e que impõe a sua vontade,

sem qualquer explicação. E, perante

essa rigidez, F4 sente-se intimidado e

receoso.

19 . Foi sempre assim, mesmo na vida dele. Ah,

qualquer coisa que tinha com alguém, era com essa

pessoa é que ele, é que ele esclarecia o assunto, fosse

quem fosse, e depois tinha, teve sempre, uma coisa,

ele nunca teve o problema, ele era analfabeto, mas

ele nunca teve o problema de falar qualquer coisa

com alguém. Ele tinha um assunto para tratar com o

juiz, por exemplo, com um advogado, com ... ele não

tinha problemas: tinha que falar, tinha que falar,

tinha assunto para tratar, tinha assunto para tratar,

era ele, o assunto era dele e ele é que tinha de falar,

tinha que tratar, é que tinha de esclarecer e,

felizmente, ao longo da vida, com essas atitudes

todas, só arranjou amigos, felizmente.

19 . F4 deixa clara a grande

admiração sentida pela retidão e

frontalidade que sempre reconheceu

no pai, em relação a todos os

assuntos, afirmando que esse carácter

sempre foi reconhecido pelos outros,

com respeito e amizade. A imagem

do pai é bastante idealizada, é a

imagem de um “grande homem”,

apesar de analfabeto, um ser

superior, admirado por todos. No

entanto, é uma imagem distante, em

termos afetivos.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . Então a minha mãe, pronto, a minha mãe é

insulinodependente, há muitos anos, e vivia sozinha lá

em B., (…) depois começou a deixar de comer, os

diabetes começaram-se a alterar, começou a ter

distúrbios, (…), trouxe-a logo, trouxe-a para a minha

casa.

1 . F5 fala da mãe, com 86 anos,

descrevendo o que aconteceu, desde

os primeiros problemas graves de

saúde (devido à diabetes) com

desorientação, tendo F5 ido buscá-la

(à casa onde vivia sozinha) para ir

viver consigo.

Page 141: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

127

2 . Esteve seis meses a viver comigo em casa, pronto,

foi um bocado complicado porque ela depois, durante

a noite, desorientava-se, eu ia trabalhar. Cheguei ao

fim daqueles seis meses, que achei que era um

bocadinho complicado e já tava a ficar um pouco

saturada, porque eu não dormia nas noites e tinha de

vir trabalhar. Resolvi metê-la no centro de dia, pronto,

eu ia levá-la às 9 e depois ia buscá-la às 7 da noite.

(…) nesse período que ela teve comigo em casa caiu,

(…) quando eu cheguei a casa à 1h, a minha mãe

ainda tava deitada no chão. Partiu-me o coxis e eu

disse que a partir daí ela nunca mais poderia ficar em

casa sozinha (…) a partir daí foi mais complicado, as

noites cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais…

2 . A filha descreve o agravamento

dos problemas da mãe e a sua própria

dificuldade em trabalhar e,

simultaneamente, cuidar bem dela, o

que a levou a decidir-se pela

institucionalização parcial, num

Centro de Dia. Após uma queda

grave da mãe, F5 decidiu que ela não

poderia continuar sem vigilância

permanente.

3 . Pedi ajuda ao meu irmão pra tentarmos resolver a

situação e ele disse que decidisse o que achasse que

era melhor e pronto, a minha mãe foi para o Lar.

3 . Fala num tom magoado, de

alguém que teve que tomar, sozinha,

a decisão de institucionalizar a mãe,

já que o irmão, que vive longe, se

demitiu dessa responsabilidade.

4 . A minha mãe já estava, durante o dia, naquele

local, pronto, foi porque eu conhecia lá muita gente,

(…) as vagas, pronto, eram onde estavam mais

disponíveis, percorri vários e todos os que havia não

eram em E., eram tudo fora do meu local, daqui, onde

eu vivo. (…) porque havia para mais longe, quer dizer,

mas isso também não me interessava. Qualquer

problema, eu estou aqui perto e elas, pronto, lá no lar

as pessoas são impecáveis, e mesmo como sabem que

eu estou aqui, telefonam-me logo imediatamente

4 . Pesquisou instituições pela

proximidade da terra onde vive e

pelos conhecimentos pessoais na

instituição escolhida, tendo em conta

as poucas vagas disponíveis nas

instituições para idosos.

A proximidade foi importante porque

as funcionárias da instituição

contactam-na sempre que há

qualquer problema e ela pode ir lá,

em pouco tempo. Estar próxima da

mãe, é, para F5, um fator importante.

Page 142: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

128

5 . Ainda hoje lida muito mal. A minha mãe não

aceita, a minha mãe não queria, não quer e continua a

não querer e ela sabe que não consegue já quase

andar, já caiu algumas três vezes lá no Lar e tem

acompanhamento, das quais partiu 3 vértebras, (…) e

continua renitente e não quer e não gosta, quer ir pra

casa dela, mas isso é impossível.

5 . F5 afirma claramente que a mãe

reagiu muito mal à

institucionalização e que continua a

pedir para voltar a casa. E, apesar do

agravamento dos problemas de

saúde, não aceita (nem nunca

aceitará, diz a filha) o facto de estar

num Lar. Mas, apesar de ter

consciência disso, esta filha

considera completamente impossível

o regresso.

6 . (…) A minha mãe não aceita, não aceita nem nunca

irá aceitar. Depois, às vezes, torna-se um bocadinho

complicado, porque ela depois pensa que eu é que a

meti lá porque quis.

E - Ela faz-lhe sentir isso, fala-lhe disso?

F5 - Faz, faz.

E - Acusa-a de ser a J. a tê-la colocado lá…

F5 - Porque eu quis.

E - Porque não queria cuidar dela?

F5 - Exato.

6 . E mantém a decisão, embora a

mãe a acuse, frequentemente, de a ter

posto num Lar porque não queria

cuidar dela.

F5 não tem dúvidas quanto à vontade

da mãe, completamente oposta à

institucionalização, e essa perceção

mostra-se muito perturbadora.

7 . Eu não me sinto, pronto, muito mal, porque eu sei

e vou lá, pronto, em parte afetiva eu até gostava e

adoraria, mas é assim, infelizmente nós temos a nossa

vida. Eu sei que ela cuidou de mim quando eu era

pequena, não é, mas os tempos eram outros e eu agora

pra cuidar da minha mãe tinha que deixar de

trabalhar e eu não posso. Como viveria eu, não é? E

7 . F5 diz não se sentir muito mal, e,

embora gostasse de cuidar da mãe

como ela a cuidou quando era

pequena, não o conseguiria sem

deixar de trabalhar, e isso deixá-la-ia

sem recursos para viver.

Tem consciência da tristeza da mãe e

Page 143: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

129

eu tentei, tive seis meses com a minha mãe sozinha em

casa, eu tentei, pronto, porque custa-me um bocado,

porque eu sei que ela fica triste e não gosta e às vezes

tá revoltada

da sua revolta, mas não encontra

forma de a aliviar.

8 . (…)mas por outro lado eu sei, e isso eu sei

plenamente, porque a minha mãe tem graves

problemas de diabetes e picos altíssimos, altíssimos e

que a minha mãe tá bem e tá cuidada, se calhar

melhor do que eu a conseguisse cuidar.

8 . No entanto, diz que, devido aos

problemas de saúde da mãe, talvez

nem a conseguisse cuidar tão bem

como faz a instituição. E dá o

exemplo de cuidados noturnos que,

por vezes, são necessários, e que ela

não teria condições de prestar com a

mesma qualidade.

9 . E - Quando a deixou lá, a primeira vez, lembra-se

como é que se sentiu?

Quer dizer, senti-me um pouco triste, pronto, porque

eu sabia que ia deixá-la num, vá, num quarto onde ela

praticamente nunca tinha visto, pessoas com quem ela

nunca tinha dormido, conhecia, durante o dia, não é,

mas dormir, o ambiente, não sabia como é que era,

ela, pronto, a casa de banho também era diferente,

porque era tudo diferente.

9 . A filha recorda que se sentiu

triste no 1º dia de institucionalização

da mãe. O desconhecido, o diferente,

o que é novo, preocupavam F5 e

desencadearam um sentimento de

tristeza, por não saber como iria a

mãe lidar com essas mudanças.

10 . E - Vai visitá-la com frequência?

F5 - Sim e levo-a para casa. Não, não, eu vou buscá-

la.

10 . À pergunta da entrevistadora, F5

responde que visita a mãe com

frequência e que a vai buscar

regularmente.

11 . Encontro-a bem, e ela, bem, quando está em casa,

comigo, ela diz que não gosta de lá estar, mas depois,

(por isso é que eu fico mais tranquila), porque em

chegando, assim, aí às vezes, eu vou buscá-la sempre

de manhã, almoça comigo, quando começa lá pelas 2

e meia 3 horas, começa a dizer “se calhar vais-me

11. F5 diz que a forma contraditória

como a mãe vê o Lar, a deixa a ela,

filha, mais tranquila, porque a mãe

diz que não gosta, mas, quando a

filha a leva a sua casa para almoçar,

ela quer regressar ao Lar, poucas

Page 144: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

130

mas é levar, elas tão lá ao pé de mim, eu quero é ir lá

para o pé delas”, oh mãe, então, mas tamos aqui em

casa comigo, “não, não, não, vai-me lá levar que eu

gosto de lá estar, eu quero mesmo estar ao pé delas”.

Portanto, isto também me tranquiliza, porque eu sei

que ela gosta de me ver e depois diz-me “então, mas

eu já te vi, já almocei contigo, vai-me levar já, eu

quero ir para lá, que eu gosto de lá estar”.

horas depois, explicando que gosta

de lá estar.

12 . (…) a minha mãe diz que não gosta porque fui eu

que a coloquei lá e tomei a decisão, mas depois, ela

reconhece também e diz-me “não, mas elas tratam-me

bem, elas tratam-me bem” e eu fico também mais

tranquila.

12. Esta contradição é vista por F5

como uma acusação da mãe à

decisão da filha, de a

institucionalizar, embora a idosa

reconheça os aspetos positivos da

mesma.

13. Eu, às vezes, vou durante a semana, uma vez, e

depois vou sempre aos fins-de-semana, ou sábado ou

domingo.

E-- E quando (já deve ter acontecido alguma vez) não

poder ir, ela lembra-a disso?

F5-- Diz, diz. “Ah não sei quê, no outro dia não vieste

cá.” Eu disse” tá bem, então, não vim mas não podia

vir mãe, não posso. (…) Ou telefono. “Mãe olhe que

eu não vou ou não sei quê.”

13 . F5 diz que visita a mãe,

regularmente, duas vezes por semana

(a meio e no fim-de-semana).

Quando, por qualquer motivo, não

pode ir, a mãe “cobra-lhe” essa falta,

embora ela tenha a preocupação de

telefonar a avisar que não pode. É

um ritual que, ao ser quebrado,

produz uma reação de acusação.

14 . Com o meu irmão reage mal, porque ela gosta

muito do meu irmão, tem uma paixão muito, muito

pelo meu irmão, é o menino dela, pronto, é filho, né?

E depois queixa-se, às vezes diz-me “ah, o teu irmão

vem cá, nunca se senta, tá sempre com pressa, quase

nunca, às vezes vem aqui, tá sempre “ah tenho de me

14 . F5 diz que a mãe sente muito a

falta do filho, que vai vê-la poucas

vezes e que está sempre apressado

para se ir embora. Queixa-se, à filha,

da pouca disponibilidade do filho,

cabendo àquela o papel de mediadora

Page 145: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

131

ir embora e não sei quê.” (…) Eu noto que ela tem

muita carência do meu irmão, tem.

E - E a J. alguma vez que falou com o seu irmão sobre

isso?

F5- Já, mas ele é assim, já falei tantas vezes.

e de pressionar o irmão, que sempre

teve este tipo de comportamento,

inclusivamente com o pai, já

falecido. F5 diz não ser possível a

mudança de atitude do irmão, apesar

das suas muitas tentativas.

15 . Infelizmente tive outra situação com o meu pai e

nem essa consegui. (…) o meu pai morreu, tinha

cancro no pulmão. E eu pedi-lhe tantas vezes, e às

vezes tinha de lhe fazer mesmo ultimatos.

15 . Diz que o irmão teve a mesma

atitude com o pai (já falecido), pelo

que ela não espera que ele mude.

16 . Só telefona ao meu irmão. (gargalhada)

E - Não sente ciúmes?

F5 - Não, já aprendi a lidar com isso, e lido com isso

desde que nasci. (…) Sempre foi o mesmo, sempre foi

preferencial o meu irmão.

E - Para si, foi complicado?

F5 - Muito complicado, muito complicado, muito

complicado. Tive sempre, pronto, não totalmente, mas

por isso é que eu talvez senti muito, muito, muito a

morte do meu pai. Porque o meu pai tentava sempre

compensar, embora o meu pai tivesse sempre a

predileção pelo meu irmão. Mas foi muito complicado.

Hoje em dia, já não é tanto. A gente tem fases difíceis

na vida e vamos ultrapassando, mas ainda hoje existe,

ainda hoje existe e sempre foi, o meu irmão é sem

sombra de dúvidas. Eu, não é ciúmes, pronto, mas eu

lido bem com isso.

15 . F5 diz que a mãe nunca lhe

telefona, mas ao filho, sim. Diz não

sentir ciúmes porque já aprendeu a

viver com isso, mas a mãe sempre

deixou claro que preferia, e prefere, o

filho, 5 anos mais velho. F5 diz que

sentiu essa diferença de afeto da

mãe, desde que nasceu e, que, talvez

por isso, tenha sentido muito mais a

perda do pai, que tentava compensar

esse desequilíbrio afetivo, embora

também preferisse o filho. Também

confessa que, na infância e

adolescência, foi muito difícil.

Compreende-se a sua revolta,

embora diga que aprendeu a viver

com isso, e a sua atitude de crítica ao

irmão que, sendo o preferido da mãe

e do pai, não demonstrou nem

demonstra disponibilidade, mesmo

quando está presente. Apesar disso,

Page 146: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

132

Participante F6

ele continua a ser objeto da atenção

da mãe, que utiliza a filha para saber

notícias dele.

17 . Isto que vou dizer, a minha mãe disse-me muitas

vezes, que não gosta tanto de mim como gosta do meu

irmão, mas pronto.

(…) E ela às vezes diz-me, pronto que eu tenho assim,

sou um pouco mais explosiva e que gosta mais do meu

irmão. Mas isso disse-me muitas vezes, muitas vezes,

muitas vezes. (…) E foi muito difícil, muito difícil!!!

17 . F5 não tem dúvidas sobre a

preferência da mãe pelo filho porque

a própria mãe sempre lhe disse isso,

claramente. Para F5 foi, como ela

diz, muito difícil aceitar esse 2º lugar

no afeto da mãe.

18. Se eu pudesse, sim. Se eu pudesse monetariamente

pagar, em vez de a minha mãe estar num lar, ter uma

pessoa que enquanto eu estivesse a trabalhar, tomasse

conta dela e me ajudasse um bocadinho, na noite, sim.

Não teria posto a minha mãe num lar, pelo menos ela

não saía do ambiente familiar dela. É lógico que sim,

eu mudaria isso. Isso eu faria, sim, sim, sim. Se

houvesse estabilidade financeira para isso, claro.

18 . F5 diz, claramente que, se

tivesse meios financeiros para

contratar uma cuidadora, não teria

institucionalizado a mãe, e mudaria a

situação, caso viesse a tê-los. Não

tem qualquer dúvida sobre o assunto.

Apesar da mãe a preterir,

relativamente ao irmão, ela (filha)

investiria na tentativa de melhoria da

relação, proporcionando à mãe, o

meio familiar e afetivo. Parece ser

uma tentativa fantasiada de reparar a

relação, de compensar o afeto não

recebido do objeto.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

Page 147: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

133

1. E - Há quanto tempo está a sua mãe

institucionalizada?

F6- Quatro anos, com um intervalo ali pelo meio, quis

vir para casa, mas depois teve que voltar outra vez.

1 . F6 diz que a mãe está

institucionalizada há 4 anos, com

uma pequena interrupção.

2 . E - E como é que foi tomar essa decisão? Quem é

que a tomou? Foi ela? Foram os filhos?

F6 - Foi mais ou menos entre os três, não é, o que é

que a gente achou? Numa altura em que ela estava já

sozinha lá em casa e que, às tantas, as coisas não

estavam a começar a funcionar como funcionavam

dantes, ela perdeu os medicamentos, mesmo que a

gente fosse lá todos os dias era difícil, então, entre os

três, ela aceitou que íamos fazer uma experiência para

lá.

2 . F6 diz que a decisão da

institucionalização foi tomada,

consensualmente, entre ele, o irmão e

a mãe, que aceitou, numa fase da

vida em que estava mais debilitada e

já não conseguia tomar a medicação,

sem ajuda dos filhos. Diz que a mãe

aceitou experimentar o Lar, ou seja,

não se tratou de uma decisão

definitiva da idosa, mas antes de um

recurso temporário (foi assim que ela

o viu) para uma fase de saúde menos

boa.

3 . Aconteceu que ela melhorou. Lá, começou a tomar

tudo a horas, comia a comida que era necessária para

ela, não era os outros doces, e pronto, não era o que

ela lhe apetecia, e a partir daí, ela começou a

melhorar. À medida que começou a melhorar,

começou a capacitar, a pensar que já tinha condições

para se ir embora.

Dizia que estava capaz de ir embora sozinha para

casa, e a gente disse sempre que não, e havia sempre

atritos entre nós todos, que ela queria vir, queria vir,

queria vir... e depois ofendia lá as pessoas e não sei o

quê mais, e a gente às tantas" Ai sim? então vamos

embora!”.

3 . A melhoria de saúde, devido à

medicação atempada e à alimentação

cuidada, sem os excessos que fazia

antes, devolveram-lhe energia,

lucidez e a crença de que podia

voltar à sua casa e a viver sozinha.

Essa vontade de sair provocou atritos

com os filhos e com as funcionárias

da instituição, e a idosa acabou por

regressar a casa.

4 . Ao fim de, não sei quanto tempo, não posso 4 . Aí, a saúde voltou a deteriorar-se

Page 148: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

134

precisar, mas três, quatro meses (…) aquilo começou

a piorar, não é, a fazer a mesma vida que fazia dantes,

e ia sempre a piorar. Às tantas, tivemos que optar por

colocá-la lá, mas não havia vagas e ela, depois já

queria, não é, depois então levamo-la para o centro de

dia, fazia lá as refeições todas s depois vinha para

casa, mas pronto, porque não dava. Sempre a dizer

que não queria lá estar, não sei o quê mais, e então às

tantas, veio outra vez para casa. A partir daí, começou

outra vez a piorar, até que às tantas não deu mesmo.

(…), até que, pronto, ela capacitou-se que tinha que ir

para lá outra vez, via que não podia estar ali (…)

depois, combinou-se, arranjou-se uma vaga, e ela, por

iniciativa própria, foi sozinha para lá. Ela é que foi

para lá.(…) Também já ia um bocado debilitada.

e, passados alguns meses, os filhos

recorreram ao Centro de Dia, onde a

mãe fazia as refeições e tomava a

medicação, indo dormir a casa. No

entanto, também esta não se revelou

a solução adequada, tendo voltado à

institucionalização plena, após

alguns meses à espera de vaga (que

já não tinha). E aí, ela própria tomou

a iniciativa de ir.

Como se trata de uma mulher que

dificilmente aceita opiniões de

terceiros, este processo foi sendo

construído de acordo com o estado

de saúde da mãe de F6, até à

institucionalização definitiva.

5. Por mais que a gente fizesse, não podíamos estar

sempre ao pé dela, então ela saía, comia o que queria,

comprava bolos, queria aquilo, não fazia uma refeição

como devia de ser, apesar da gente dizer, mas… lá,

pronto, é sempre diferente, e depois não estava

acompanhada porque a gente só podia ir à noite.

5 . O filho justifica -se, dizendo que

não podia estar sempre com a mãe,

que fazia o que queria, comia o que

não devia (sofre de diabetes) e eles,

filhos, não conseguiam controlar a

situação.

6 . (…) e acontece que andou agarrando nos

saquinhos, outra vez, novamente para ir para lá e a

partir daí ficou lá até hoje. Apesar de, depois, ao fim

de dois meses, melhorar outra vez e quis-se vir

embora. (…) agora nós temos andado a convencê-la

para não vir e ..., mas pronto, agora em princípio já

não vai sair.

6 . Em determinado momento, foi a

mãe que decidiu voltar para o Lar,

mas, quando voltou a melhorar, quis

sair de novo, no entanto, ainda lá

continua, apesar das insistências para

sair. Paira, nas palavras do filho, a

dúvida sobre a continuação da mãe

na instituição, embora ele diga que já

Page 149: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

135

não deverá sair.

7 . Colocámos outra hipótese, mas depois surgiu

aquela novamente e então, preferimos ali. Dos três

lares, havia a opção de alterar, mas vimos que aquele

era o melhor, então optámos por ficar lá, apesar de

ser mais caro, pronto.

7 . F6 diz que consideraram três

lares, tendo optado pelo melhor,

apesar de ser mais caro.

Consideraram que a instituição mais

cara é a que apresenta melhores

condições para a mãe.

8 . E - Como é que se sentiu, sentiu-se aliviado, sentiu-

se mal, como é que se sentiu?

F6 - A primeira vez, a gente não sabe como é que

aquilo funciona, não é, e então a gente está, está

sempre à espera que seja bom para ela, mas depois

com a continuação, estamos sempre a ver como é que

ela se adapta, se não se adapta, porque ela ainda

estava um bocadinho debilitada, e então, com o

continuar, vimos que foi a melhor coisa que fizemos,

foi ela estar lá, está acompanhada, tem médicos, tem

enfermeiros, tem as senhoras que estão lá que tratam

delas, fazem-lhe tudo…

E - Está mais tranquilo agora do que no princípio, ou

está igual?

F6 - Não, estou igual. (…) Tanto da primeira como da

segunda, estou tranquilo.

8 . À pergunta direta sobre como é

que se sentiu aquando da primeira

institucionalização, F6 rodeia a

resposta, reconhecendo que o

desconhecimento real do

funcionamento da instituição lhe

provocou alguma apreensão, tendo-

se mantido muito atento à adaptação

da mãe, e tendo concluído, mais

tarde, não haver razão para receios,

devido às boas condições de

cuidados existentes. Não responde

verdadeiramente à pergunta e só,

após outra pergunta, diz que está

tranquilo (e que já estava), o que

parece uma contradição com o início

da resposta dada.

9 . E - E quando ela diz que se quer vir embora,

quando ela melhora e depois se quer vir embora, como

é que você se sente, quando ela lhe diz isso?

F6 - Sinto que era outra asneira, que já fizemos uma

vez, e então, agora na segunda vez temos que... a

voltar ao mesmo não dá, mas ela, neste momento, já se

9 . O filho revela algum receio de

que a mãe possa querer regressar a

casa e é sempre com cautela que vai

acompanhando a situação, dizendo

que, agora que ela está mais calma, é

porque ainda não está completamente

Page 150: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

136

sente mais..., agora precisamente depois de ter

acontecido aquilo que aconteceu, sente-se mais calma

e sente-se que está lá bem, é porque ainda não está a

cem por cento.

bem de saúde.

10 . E ela também se vai adaptando. Aquilo depende

dos dias, aquilo é dias, pronto, a idade também já é

avançada e ela também, a mente também já não é o

que era, mas pronto! Há dias que acorda como se não

tivesse nada, há outros dias que aparece com ..., que

elas dizem, não é, entre parenteses, com a veneta, que

aquilo, pronto, mas aí a gente temos que dar desculpa,

eu pelo menos dou e tento dizer a eles.

E - Nunca se viu tentado a trazê-la?

F6 - A tirá-la? Não, não. Não, porque já sei que vai

acontecer novamente, então não, porque sei que ali é o

melhor para ela estar.

10 . Diz também que o humor da

mãe é distímico, e que ele vai

informando o pessoal da instituição

de que não devem “ligar” muito

quando ela acorda mal-humorada.

Apesar dessas oscilações, afirma não

pensar nunca em retirá-la de lá

porque sabe, antecipadamente, o que

vai acontecer, e que teria que voltar.

Atribui as mudanças dela ao

envelhecimento, alternando dias bons

com outros muito maus, situação que

deve ser compreendida.

11 . Se a gente tivesse hipóteses de a termos na nossa

casa, mas a gente não está em casa, a gente trabalha.

Então como é que vai para casa, para ficar sozinha

outra vez? Não dá, então achamos que ali é o melhor

(…) Em casa é sempre preferível, enquanto se pode…

11. Apesar das vantagens do Lar, F6

diz que, se houvesse possibilidade de

ter a mãe em casa, acompanhada,

isso seria melhor, mas como não há,

porque todos trabalham, então a

institucionalização é o melhor,

apesar de a casa ser preferível,

enquanto é possível.

12 . Penso que, um dia mais tarde, se lá chegar, não é,

também gostava de estar num sítio desses, e vejo lá

outros senhores que... que optaram, e estando bem,

12 . Imagina-se, na velhice, num

local semelhante, dando como

exemplos, algumas pessoas que

Page 151: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

137

optaram por ir para lá e são lá bem tratados, e depois

fazem a vidinha cá fora à mesma, pronto, mas chegam

lá, têm os sítios para comer e fazem-lhe tudo.

conhece que, estando sozinhas,

optaram, elas próprias, pela

institucionalização, mas mantêm uma

vida autónoma “cá fora”, sem

preocupações com os problemas

básicos da alimentação, dormida,

medicação. Assim, dessa forma, um

Lar parece-lhe um bom sítio para

envelhecer. Está implícita a fantasia

de ver a mãe nessa situação, a estar

lá voluntariamente e poder sair,

voltando. O que não é o caso.

13 . E - Você imagina-se naquela situação?

F6 - Se tiver que ser, não é, aqueles senhores que eu

estava a dar o exemplo; é um senhor que se separou

da mulher, estão separados, ele está sozinho, não quer

depender os filhos, tem uma boa reforma, já falei

muitas vezes com ele e, e pronto, e ele optou por isso,

mas está sozinho, não é... o que não quer é incomodar

os filhos.

13 . Imagina-se institucionalizado, se

não puder viver só, continuando a

dar exemplos de pessoas que não

querem incomodar os filhos, optando

por encontrar, numa instituição, a sua

nova casa, mas só se não houver

alternativa.

14 . Eles levam-na a passear, ainda agora, na sexta

feira houve lá uma missa, houve a procissão, não sei

se ela foi se não, mas eu acho que não, e há outros

passeios que eles fazem na primavera, aí por todo o

lado, levam-nos a passear, depois, ainda por cima,

têm as piscinas, que era bom para ela, que ela não

gostava, mas ia.

14 . F6 acha que a instituição tem

atividades suficientes para os idosos,

que eles não precisam de mais. Nem

sequer aproveitam todas as

existentes, como é o caso da sua mãe

que, por vezes, não aceita as ofertas

disponíveis. Com todas as atividades

que há, o Lar é o local ideal para a

sua mãe.

15 . Ela sempre teve o feitio aquele, sempre havia os

altos e baixos, mas pronto, não.

15 . Acha que a sua relação com a

mãe não mudou, sempre foi pautada

Page 152: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

138

E - Enquanto ela esteve em casa, visitava-a com

frequência?

F6 - Pois, nem sempre lá podia ir, às vezes não ia ou

então ia de dois em dois dias, outras vezes ia dia sim

dia não, outras vezes mais, depois ia o meu irmão,

pronto, mas é diferente lá, porque ela, enquanto pôde

estava bem, esteve sempre bem, esteve lá à volta de

vinte anos, desde que o meu pai faleceu, esteve lá

sozinha e a gente ia lá e ela fazia de tudo: saía, ia

para a minha casa, às vezes ia lá ter à minha casa e à

do meu irmão pronto fazia e a gente ia quando saía do

trabalho. Chegou uma altura que já não conseguiu,

não consegue...

por “altos e baixos”, ela sempre foi

assim, instável, mas enquanto a

saúde lhe permitiu, viveu sozinha

durante vinte anos, após a morte do

marido. Ele, filho, ia visitá-la, às

vezes, outras ia ela a casa dele e do

outro filho.

16 . E - E agora, visita-a com muita frequência?

F6 - Mais ou menos. Dois, três dias, às vezes vou lá ao

domingo. Domingo, essa não falha, não é, e às vezes

trazemo-la, e vai almoçar com a gente, juntamos

todos, a família toda.

Ela gosta muito de sair com a gente, de ir comer. (…)

No Natal vai para o meu irmão e depois a gente vai lá

ter, não é, como temos duas famílias, a da minha

mulher, vai lá ter. No ano novo, normalmente

juntamos lá todos na minha casa.

16 . Agora, diz que a visita 2 ou 3

vezes por semana, não faltando,

nunca, ao domingo, dia em que,

frequentemente, a levam (ele ou o

irmão) a almoçar fora do Lar, para

além do Natal e do Ano Novo, em

que se juntam todos, em família, em

casa de um ou outro irmão.

17 . Ela agora tem saudades da casa dela, não é, pede

para lá ir, mas também já estou a ver que ela já não

liga muito à casa dela, neste momento.

E - Mas já lá foi?

F6 - Já, já, tantas vezes! Levo-a lá para regar as

flores. Apesar das flores já estarem todas mortas,

queria regar as flores, quer ver a casa, andou a lavar

17 . O filho diz que, quando a mãe

sai do Lar, leva-a, a seu pedido, à sua

casa (dela), onde ela faz o que lhe era

habitual: rega as flores, lava as

escadas, atividades que vão

enfraquecendo, gradualmente, com o

tempo, embora ela planeie, ainda, ir

lá fazer as limpezas maiores, no

Page 153: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

139

o quintal, as escadas, sem poder, mas pronto, e pelos

vistos, já não consegue. E quer, agora quando for

para as limpezas, quer ir para lá, diz ela que quer ir

para lá e pronto, a gente vai resolver, contratamos

uma senhora para fazer as limpezas com ela e ela está

lá, está lá a ver e pronto, a ajudar.

próximo verão. F6, que fala das

atitudes da mãe com

condescendência, diz que ela já não

tem capacidades para o que quer

fazer, mas ele está disposto a fazer-

lhe a vontade porque sabe que não

vale a pena contrariá-la.

18 . E - E ela costuma fazer queixas de alguma coisa?

F6 - De tudo! De toda a gente! E antes, antes de ir

para o lar também se queixava muito.

Aqui, o feitio é igual, ah, o feitio é igual! (…) Quando

tem que dizer, diz e depois, às vezes, arrepende-se.

Ela, às vezes, diz mal das empregadas, mas depois a

gente diz-lhe: “não! Então, elas tratam-te bem, fazem

tudo o que tu queres, dão-te banho, dão-te de comer”,

mas ela diz que não, lá na maneira dela. E a gente dá-

lhe a volta, e é verdade, porque eu vejo que elas a

tratam bem.

18 . Responde a uma pergunta,

dizendo que a mãe se queixa de tudo

e de todos, mas isso também já se

verificava antes da

institucionalização. Descreve-a como

uma pessoa direta, que diz tudo o que

pensa, situação que, por vezes, lhe

traz alguns problemas, e que depois

se arrepende.

F6 reage às queixas da mãe,

minimizando-as, e realçando os

aspetos positivos e as qualidades das

pessoas que ela critica. E diz que o

faz porque acredita, de facto, que

assim é. Já está habituado porque

sempre foi assim, independentemente

do estado de saúde da mãe.

19 . [Os netos] não os vê como eu gostava, mas

pronto, vê-os menos vezes do que...(…) por não irem

lá (…) são mais despegados.

Não são filhos, é verdade! (…) Sim, sim, sim, é o nosso

dever, ela cuidou da gente, e a gente tem de cuidar

dela.

Desabafa, dizendo que os netos

deveriam ir mais vezes, visitar a avó,

que sente a falta deles, mas atribui

essas faltas à sua condição de netos e

não de filhos. Estes últimos têm o

dever, considera, de cuidarem a mãe,

que os cuidou em pequenos,

Page 154: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

140

Participante F7

completando, assim, o círculo

geracional.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . A minha mãe foi para lá… está lá há poucos

meses ainda, está desde novembro e isso aconteceu

porque… a minha mãe é viúva há dez anos, ela teve

sempre na casa dela, fazia a vida dela

completamente, sem precisar praticamente de

ninguém. Entretanto, a minha mãe já sofre, de há

muitos anos, de artrite reumatóide, tem problemas de

coração, tem problemas de diabetes, tem uma data

de complicações. O… os ossos, em si, estão-se a

começar a deformar, tem as mãos a ficar

deformadas. Anda aí a fazer tratamento no hospital

de dia, entretanto, com certos tratamentos que fez,

dito pela médica, a situação dela agravou-se, em

questão de pulmões, em questão de coração (…)

Ficou muito tempo metida na cama, perdeu a massa

muscular, deixou de andar. Entretanto, depois

recuperou,… foi para V. para a recuperação, veio de

lá a andar, com canadianas, pronto, com uma certa

limitação, mas veio a andar.

1 . F7 faz um relatório

pormenorizado da evolução das

doenças da mãe, que a tornaram,

progressivamente, dependente de

cuidados de terceiros. Diz que a mãe

viveu sozinha durante dez anos, após

ter enviuvado, e que os problemas

graves de saúde (incluindo uma

queda grave) fizeram com que as

filhas tivessem procurado centros de

recuperação.

2 . Entretanto, nós, as três, entendemos que ela não

tinha condições para estar sozinha. Além da

medicação que tinha que tomar, a casa tem

degraus… e já tinha acontecido uma vez ela lá, … de

noite, levantar-se, ter caído, ficou lá em casa caída,

gritava, gritava, até que as vizinhas deram por ela...

2 . F7 diz que, juntamente com as

irmãs, decidiram que a mãe não

podia continuar a viver sozinha,

devido aos medicamentos que tinha

que tomar e às barreiras

arquitetónicas da casa, que já lhe

Page 155: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

141

tiveram que arrombar a porta, para… chamar a

polícia e tudo mais (…) E então nós, depois de ela ter

vindo de V.V,, achámos que a melhor situação era

ela ir… para… para um Lar. Foi ali para a C.V.,

ainda esteve lá uma semana à espera de vaga, mas

entretanto, depois, foi para a S. C.

tinham provocado uma queda. E a

solução encontrada foi a ida para um

Lar.

3 . Não foi muito do agrado dela, em princípio,

porque acho que ninguém gosta de sair do meio onde

vive… para ir para um lar, mas nós, o médico

aconselhou-nos,

3 . A filha diz também que a

institucionalização da mãe não foi do

agrado da mesma, mas foi

aconselhada pelo médico

4 . (…) nós notávamos que a minha mãe estava muito

sonolenta e que até podia haver ali, às vezes, troca

de medicação, não estar a tomar a medicação como

devia ser. Como tem problemas também de sangue e

tudo mais, havia, às vezes, certas alterações no

sangue, e nós tomámos a decisão.

4 . F7 diz que se suspeitava que a

mãe poderia estar a tomar,

indiscriminadamente, a medicação,

algumas vezes em excesso, pois

apresentava alguns sintomas de

sobredosagem.

5 . Eu tenho uma irmã que trabalha em S., tem lá a

vida dela; tenho outra cá, que é a do meio, que tem

problemas de depressões, que ela é bipolar... e eu, ao

fim e ao cabo, encontrava-me sozinha..

5. Assim, a decisão foi baseada, na

opinião de F7, na necessidade de

vigilância constante da mãe e

cuidados alimentares adequados, que

nem ela, como filha (nem as duas

irmãs) estavam em condições de

proporcionar. Sentiu-se sozinha e

incapaz de prestar, à mãe, os

cuidados necessários, já que uma

irmã vive longe e a outra sofre de

doença mental crónica.

6 . Eu também tenho a minha vida, também trabalho

aqui o dia todo, para a minha casa também não a

podia levar porque também não está lá ninguém -

tenho a minha filha a estudar fora, tenho o meu

6 . A mãe, sozinha em casa, era uma

fonte de preocupação para F7, que se

sentia impossibilitada de a vigiar

devidamente, porque tinha que sair

Page 156: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

142

marido também a trabalhar, na minha casa também

não tinha condições de a poder lá ter, porque, ao fim

e ao cabo, só estava acompanhada durante a noite, e

ela precisava de dia e de noite.

para trabalhar e, se a deixasse na sua

casa, ela continuaria sozinha todo o

dia.

7 . Porque, ao fim ao cabo, ela estava ali em casa,

estava ali isolada, porque nem todos os dias podia lá

ir a casa, e depois havia o problema que nós

telefonávamos e ela podia estar lá para… para

dentro, ou para a casa de banho, ou fosse para onde

fosse… e depois não atendia o telefone, porque

também não chegava a tempo, porque anda devagar,

e depois tornava-se a telefonar e ela não atendia, e

eu pegava no carro e tinha que ir lá a cima a casa a

ver o que se passava e o que não se passava.

7 . A solidão e o isolamento da mãe

eram uma preocupação constante da

filha, que, por vezes, ao tentar

contactá-la telefonicamente, se ela

não atendia, se via obrigada a ir ver

se estava tudo bem.

Esta filha, embora sendo a mais

nova, assumiu-se como cuidadora e

responsável principal da mãe, e essa

situação era geradora de constante

ansiedade.

8 . A minha mãe sempre disse, ao princípio “Eu,

quando for mais velha, não quero dar problemas a

ninguém, e metam-me no lar”. Mas a gente também

sabe que é muito fácil a gente falar, não é? Quando

não estamos nessa situação. E tirá-la do meio

ambiente dela, a gente sabe que é difícil.

8 . F7 diz que a mãe não aprovou a

decisão de ir para o Lar, embora,

antigamente, dissesse que queria,

para não dar trabalho a ninguém. No

momento da decisão, a saída do seu

ambiente não foi fácil, situação que a

filha compreende e que lamenta. A

filha compreende que a “vontade”

expressa pela mãe, quando gozava de

boa saúde, não é, hoje, igual, quando

tem que ser posta em prática.

9 . Mas depois, mediante a conversa que eu tive com

a minha mãe, ela realmente chegou à conclusão que

9 . A filha diz que, devido às suas

explicações e justificações, a mãe

Page 157: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

143

era a melhor… solução para ela. (…) Houve uns

dias, ao princípio, que estava assim um bocado mais

em baixo, mas, já quando esteve em V. também

estava em baixo, porque também não sabia para

onde ia, não conhecia ninguém, era diferente.

Depois, foi-se habituando, começou a ver a

recuperação, habituou-se.

aceitou a decisão de ser

institucionalizada. No início, a mãe

estranhava o novo espaço e as

pessoas que não conhecia, mas

depois foi-se habituando.

10 . Aqui no lar foi a mesma coisa. Chegou ali, não…

não conhecia as pessoas, não sabia como é que era,

como é que não era, mas depois foi-se habituando,

até lá tem pessoas conhecidas, que ela já conhecia cá

de fora. E agora tem aceitado bem.

10 . No início, a mãe de F7 não

conhecia as pessoas do Lar, mas, tal

como acontecera nas unidades de

recuperação onde estivera, foi

descobrindo, também, que até havia

lá pessoas suas conhecidas. Diz a

filha que ela, atualmente, está bem e

integrada.

11 . Quando estamos nesta situação, a gente dizer-

lhe… quer dizer, eu é que tive que…, fui eu, pronto,

fui eu mesmo é que tive que falar com a minha mãe e

dizer-lhe: “Mãe, é assim: você vê a situação em que

está aqui, está com dificuldades, as mãos estão todas

deformadas, não têm ação! E anda com uma

canadiana, tem dificuldade, e a melhor solução que

nós arranjámos, visto que com a minha irmã não se

pode contar, com a outra que está longe também

não, eu sozinha aqui também tenho a minha vida,

tenho o meu trabalho…que é o dia todo – só chego a

casa praticamente às seis horas, é quando eu chego.

11 . F7 refere que foi difícil informar

a mãe da decisão sobre a

institucionalização, porque foi ela só

que teve que assumir essa conversa,

onde referiu a sua própria

indisponibilidade para cuidar da mãe,

assim como a indisponibilidade (por

razões diferentes) das duas irmãs.

Sente-se que o mais difícil para a

filha, foi ter que justificar, não só a

sua própria indisponibilidade, como

também a das irmãs.

12 . (…) E eu acho, não sei se estou a pecar ou não,

mas eu acho que, para mim, foi a melhor solução que

nós arranjámos para a minha mãe. Porque, haja ali

12 . A institucionalização foi vista

como a melhor solução para esta

filha, mas acompanhada do medo de

Page 158: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

144

qualquer problema, haja aquilo que houver com ela,

tem uma médica! Não se entendem com ela - trazem-

na ao hospital; há qualquer problema durante a

noite - há lá pessoal para a trazerem… e em estando

em casa sozinha, ela não tinha nada disso.

pecar, ao expressar a sua satisfação e

tranquilidade atuais, por ter quem se

ocupe dos cuidados com a mãe.

Parece que, admitindo as vantagens

dos cuidados prestados por outras

pessoas, à mãe, F7 se sente culpada

por não ser ela a prestá-los.

13 . Eu senti-me um bocado em baixo e foi

complicado para mim porque, ao fim e ao cabo, eu é

que tive que dar a cara… e ela se calhar até pensou

que eu é que a queria lá meter. Mas pronto, isto foi

uma decisão de nós as três. A minha irmã de cá não

lhe queria dizer, porque a minha irmã, sendo também

bipolar… a relação com a minha mãe… não sei se

será da própria doença em si… elas não… são um

bocado incompatíveis,…chocam um bocadinho uma

com a outra, não sei se é da própria doença, se é da

pessoa.

E a outra também, como lá estava… e a situação,

como tinha que se resolver, porque havia aquela

vaga e, por acaso, foi por uma pessoa conhecida…

13 . A filha diz que se sentiu triste

quando falou com a mãe e quando a

levou para o Lar, porque pensa que a

mãe a responsabiliza, só a ela, pela

institucionalização. A irmã doente

não quis dizer à mãe e a relação entre

elas é difícil, condição que F7

atribui, talvez, à doença da irmã. A

outra irmã vive longe, e, quando

surgiu a vaga no Lar, foi F7 quem

teve que assumir todas as

responsabilidades, o que fez

aumentar o seu mal-estar.

14 . Custou-me um bocado ter que lhe dizer, como…

daqui amanhã, se calhar, se a minha filha me fizer o

mesmo, se calhar também me vai custar, ou não, tudo

depende da reação de cada pessoa. Custou-me um

bocado, mas… eu… tive que dizer à minha mãe,

pronto, que era realmente a situação mais indicada

para ela, ao fim e ao cabo, para estar acompanhada.

14 . F7 imagina que também poderá

não gostar que, no futuro, a filha lhe

diga o que ela teve que dizer à mãe,

conseguindo pôr-se no lugar da mãe.

15 . Infelizmente é assim, nós precisamos dum Lar, 15 . F7 lamenta que uma decisão

difícil e dolorosa, de institucionalizar

Page 159: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

145

mas nem hoje temos! alguém, tenha ainda a dificuldade de

arranjar um lugar.

16 . No meu ponto de vista… eu não fico com

remorsos nenhuns daquilo que fiz; porque fui eu que,

ao fim e ao cabo, é que dei a cara, porque eu achei

que era o melhor para a minha mãe.

Porque a gente também calcula, não faço ideia,

pronto, nunca passei por isso… que a solidão

também deve ser uma coisa muito triste. Uma pessoa

estar dentro duma casa, ter uma televisão, ao fim e

ao cabo, que é o bem que se tem, e ter um telefone

dum filho… às cinco, às seis da tarde, às oito, às

dez… estar sempre à espera que o telefone toque

para poder falar com alguém, porque… aquilo é uma

rua na cidade… as vizinhas, ali, praticamente, são

todas… andam mais ou menos naquela idade, está

tudo dentro de casa e não se vê, praticamente,

ninguém.

16 . A filha acrescenta que não sente

remorsos porque fez o que achou

melhor para a mãe. E justifica com o

que acha ser pior: a solidão dos

idosos que vivem sós. O viverem

dependentes das visitas ou dos

telefonemas que os filhos lhes

fizerem. F7 considera isso mais triste

do que a institucionalização, até

porque a mãe vivia numa zona em

que a população é quase toda idosa e,

ao final da tarde, já não há com quem

falar, não se vê ninguém. E esta

solidão, em casa, e o seu término

com a ida para o Lar, servem

também para minimizar a culpa

sentida devido à institucionalização.

17 . Ela, ao princípio, sentiu-se… Não sei, não posso

dizer como é que ela se sentiu, porque ela também

não demonstrou muito aquilo que sentiu. Ela, a mim,

só o que me disse foi: “Agora, vou para ali e não

conheço ali ninguém.” E eu disse-lhe: “Mãe, você,

quando foi para V., também não conhecia ninguém.

É o mesmo que a gente quando… os miúdos vão para

o infantário, também não conhecem ninguém e vão-

se habituando uns aos outros. Se em V. também se foi

habituando às pessoas, foi conhecendo, e agora ali

passará a ser a mesma coisa. Até pode haver,

naquela instituição para onde vai, pessoas que você

já conhece”. E, por acaso, foi o caso: há lá pessoas

17 . F7 diz que não sabe como a mãe

se sentiu, no início da

institucionalização, porque ela nunca

disse muito explicitamente o que

sentia. Somente referiu o receio de,

no Lar, ir encontrar pessoas

desconhecidas, tendo a filha

respondido que, à semelhança da

unidade de recuperação onde

estivera, iria passar a conhecer as

pessoas, tal como as crianças,

quando vão para o infantário. Não se

conhecem e, passado pouco tempo,

Page 160: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

146

que ela já conhece. já se conhecem todas.

A comparação com a ida das crianças

para o infantário pode revelar um

desejo inconsciente de tornar a

situação menos dolorosa.

18 . Dão-se sempre umas melhores que as outras,

pronto. Porque é… ou é a companheira de quarto, ou

porque é a companheira da sala de estar lá em cima,

onde elas estão, ou porque é ali do convívio, que é

onde estão todas ali juntas… E ela, agora,

presentemente, sente-se bem.

18 . Refere que a mãe encontrou

idosas conhecidas e que se relaciona,

de forma diferente, com as outras

utentes, melhor com umas do que

com outras, de acordo com a

proximidade, em cada local (quarto,

sala de estar, sala de convívio) mas

acha isso normal. E diz que a mãe se

sente bem.

19 . Ela, às vezes, as queixas que faz… ela não faz

propriamente queixas, ela diz “Quem está cá dentro

é que sabe aquilo que se passa”. É o que ela diz. E

nós tentamos… eu, quando lá vou, tento perguntar

“Mãe, mas o que é que é? Disseram-lhe alguma

coisa? Trataram-na mal ou…?”, “Não, não

trataram, certas respostas que dão, a gente cá dentro

é que sabe aquilo que se passa.”

19 . A uma pergunta direta da

investigadora, responde que a mãe

não se queixa diretamente de nada,

mas diz que só quem está lá dentro é

que conhece bem o que se passa.

Embora não especifique nada, deixa

entrever que, por vezes, o

relacionamento com algumas

funcionárias não é o melhor. E às

perguntas da filha, sobre se a tratam

mal, responde que não, talvez para

evitar conflitos.

20 . Nunca vi, portanto nunca vi, mas acredito que

num lar onde há tanta gente, é natural, se calhar, de

vez em quando, não serem tratadas, não quer dizer

que as tratem mal, mas se calhar não serem tratadas

como elas deviam. Ou, se calhar, as pessoas, sendo

20. F7 diz nunca ter visto nenhuma

atitude menos correta, de

funcionárias para com as idosas, mas

acha que, num meio com tantos

utentes, talvez eles sintam que

Page 161: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

147

assim, pensam que se calhar que deviam, ou ter mais

cuidado do que aquilo que têm, mais atenção e tudo

mais.

precisam de mais atenção individual

do que aquela que lhes é dispensada.

Ela acredita que poderá haver

pequenos problemas no

relacionamento instituição – idosos,

devido à individualidade de cada um.

21 . A gente também sabe que, num lar onde há tanta

gente, nem sempre se pode dar atenção a todas ao

mesmo tempo, nem de igual maneira, porque cada

pessoa, pronto e cada pessoa também tem o seu feitio

e é tudo diferente, pronto. (…) Agora… as atitudes,

também nunca vi ninguém tratar mal ninguém, nunca

vi ninguém dar resposta má a ninguém, nem muito

menos à minha mãe, porque se lhe dessem alguma

resposta à minha mãe, ali na minha frente…

21 . F7 considera não haver solução

para dar especial atenção a todos, em

simultâneo, porque cada pessoa é

diferente das outras e ninguém pode

agradar a todos. Acrescenta que não

permitiria que tratassem mal a mãe e

que, pessoalmente, nunca viu

nenhuma atitude menos adequada do

pessoal auxiliar.

21 . Vou lá todas as semanas. E todos os dias, se for

preciso, telefono-lhe. Normalmente vou uma vez por

semana mas, se ela precisar, se ela precisar de

coisas que leve, vou duas e três vezes, se for preciso

levar-lhe aquilo que ela precise, vou.

21 . Vai visitar a mãe semanalmente,

e contacta-a, por telefone, muitas

vezes, e está disponível para ir mais

vezes, quando é necessário levar

alguma coisa à mãe.

22 . Eu sou sincera, eu todos os dias também não

posso porque também tenho a minha casa, tenho as

minhas coisas para fazer e tudo o que seja relativo à

minha mãe sou eu tudo que tenho que tratar. Ela tem

a casinha dela ainda, à mesma, tem água, tem luz,

tem telefone para pagar, há contagens para dar, há

transferências de dinheiros para o lar e essas coisas

todas; sou eu que tenho que fazer tudo, portanto eu

não tenho disponibilidade de ir lá todos os dias.

Tenho disponibilidade de lhe telefonar.

22 . Diz não conseguir ir todos os

dias porque tem a sua vida e as

responsabilidades inerentes à mãe,

incluindo a casa desta, contas,

medicação e tudo o mais.

Diz que vai sempre, ao fim de

semana e que, se não puder ir, por

qualquer motivo, avisa a mãe e vai a

filha dela ver a avó, ou, se não for

nenhuma delas, telefona a avisar a

Page 162: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

148

Se eu não conseguir ir… por acaso nunca aconteceu.

Se eu não conseguir ir, irá a minha filha. Que ela

também já lá tem ido sozinha a ver a avó. Se não

conseguirmos ir por qualquer motivo, ou porque

vamos a qualquer lado, ou seja aquilo que for, eu

telefono sempre e aviso-a.

mãe.

23 . Fala/falamos das coisas cá de fora e das coisas

lá de dentro. Até porque eu tenho muito o hábito,

quando lá vou à minha mãe, de fazer-lhe muitas

perguntas (...) Não sei por quê, mas pronto “Então o

que almoçou? Então o que jantou? Tem dormido

bem, não tem dormido? Tem medicação? Como é

que tinha os diabetes?”… para ver também a

maneira como ela responde. Porque a gente, ao ver a

maneira como ela responde, vê logo se há ou não ali

qualquer coisa. Se há qualquer coisa, tento-a puxar,

a ver se ela me consegue dizer. Mas ela não diz.

23 . Diz que a mãe fala muito com

ela, mais de assuntos de fora do lar,

mas também sobre a comida, o

dormir, a medicação. F7 diz que,

pelas respostas que a mãe dá às

perguntas que lhe faz, infere o seu

estado de ânimo e conclui da

existência ou não de algum

problema, embora a mãe não queira

nunca explicar o que se passa.

Nota-se uma certa inquietação, na

resposta de F7, que não confia

plenamente que a mãe lhe diga toda a

verdade sobre o dia-a-dia na

instituição.

24 . A minha relação com a minha mãe foi sempre

boa. Mas… chegou a uma certa altura que a minha

mãe… era o que ela dizia, era o que tinha que ser

feito! E eu, depois, cheguei a uma certa altura que

tive que me impor com a minha mãe. Não foi em

questão de a tratar mal nem tudo mais, nem nada

disso, mas tive que impor-me com a minha mão e

fazer-lhe ver-lhe certas coisas: que eu já era uma

pessoa adulta, que tinha a minha casa e que tinha

marido, que tinha filhos, e que já tinha cinquenta e

24 . Embora diga que a relação com

a mãe sempre foi boa, acrescenta

que, em determinado momento, a

mãe tinha atitudes pouco flexíveis,

exigindo que tudo fosse feito à sua

maneira. Para além disso, diz que a

mãe descarregava nela as queixas

que tinha das outras filhas. E isso

provocou alguns conflitos entre mãe

e filha, que deixou claro que não

Page 163: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

149

três anos e que, ao fim e ao cabo, não era uma gaiata

que ela sempre pensou que eu fosse, para ter que

estar a ouvir, às vezes, certas coisas que nem me

diziam respeito a mim. Porque ela comigo é que

desabafava tudo. E eu levava… e hoje, se for preciso,

se eu não lhe cortar, levo com tudo aquilo que ela

tem que dizer às outras.

queria ouvir nada que não lhe

dissesse respeito. Diz que teve que se

impor à mãe, que continuava a tratá-

la como se ela ainda fosse criança.

Atualmente, a situação voltou ao que

era, a mãe não diz nada às outras

duas filhas, ou aos netos, não as/os

critica diretamente, mas diz a F7 o

que deveria dizer às outras.

25 . Eu vejo que a minha irmã – a mais velha – será

a mais… beneficiada, não será o termo, mas pronto,

em questão dessas… ela com ela não é capaz de

dizer “Fizeste isto ou aquilo, ou devias ter feito ou

não devias de não ter feito”. E a mim diz-mo! Se ela

tiver que dizer alguma coisa, ela é a mim que me vai

dizer e não às outras, às outras filhas. Mesmo que

seja relacionada com as filhas.

25 . A filha sente que as irmãs,

principalmente a mais velha, são

mais beneficiadas na relação com a

mãe, já que é sempre F7 que ouve as

críticas que a mãe tem a fazer, a

qualquer das filhas.

26 . A minha mãe foi uma pessoa que esteve sempre,

esteve ali em casa, e estava sempre à espera que lhe

telefonassem, era preciso haver alguma coisa para

ela poder telefonar à gente. Os netos, é uma coisa

que a minha mãe tem, ao fim e ao cabo atravessada,

que não devia ter, porque ela também o fez. A minha

mãe, aos netos, por exemplo, raramente telefonava.

Ou telefonava para dar os parabéns, e nada mais!

Estava sempre à espera. E agora, como está ali, acha

que é uma obrigação dos netos telefonarem-lhe.

“Deviam ter telefonado, e ninguém telefona, e aqui

está… agora já não há avó, dantes havia avó e agora

não há avó”. E, depois, eles telefonam e a minha

mãe não é capaz de dizer aos netos aquilo que diz à

26 . F7 diz que a mãe sempre

esperou que a visitassem ou

contactassem, nunca tomava ela a

iniciativa, ficava à espera e criticava

quem não aparecia ou telefonava. E

esta filha continua a sentir-se

sobrecarregada com as queixas da

mãe sobre o resto da família,

especialmente os netos, dos quais

sente a ausência, mas que não critica

quando a visitam ou telefonam.

Page 164: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

150

Participante F8

filha, que sou eu. Que, ao fim e ao cabo, eu não

tenho culpa de nada disso…! Porque a minha filha

vai lá vê-la. E telefona-lhe quando é preciso.

27 . Normalmente, costumamos dizer que é o mais

velho, que tem obrigação. Eu não, eu é ao contrário,

eu sou a mais nova…

27 . Ironiza, ao dizer que,

habitualmente, a/o filha/o mais

velha/o é quem “carrega” com tudo,

mas, no seu caso, é ela, que é a mais

nova.

28 . Quando há festas, a minha mãe sai. Quando é

só assim… um dia… quando é assim um dia ou

assim, nós vamos buscá-la e trazê-la. Por exemplo,

quando foi pelo Natal, fui buscá-la, mas é assim: a

minha mãe é uma pessoa que está dependente do

oxigénio.

E - Ela sente-se bem ou mostra alguma vontade de

regressar?

F7 - A minha mãe mostra vontade de regressar ao

lar. É como uma obrigação, tem que cumprir aquele

horário.

28 . F7 diz que leva a mãe a sair, de

vez em quando, em dias festivos,

mas, como ela está dependente de

oxigénio, durante a noite, não é fácil

retirá-la por muito tempo. E, quando

sai, está sempre com vontade de

voltar e com pressa, por causa dos

horários, como se tivesse que

cumprir, rigorosamente, as regras da

nova casa.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . A minha mãe faz 96 anos a 26 de Maio. Essa

decisão, da minha parte, eu queria que ela fosse para

um Lar, assim que faleceu meu irmão, o F., porque

ela ficou sozinha em casa, num primeiro andar, umas

escadas antigas, difíceis, e ela não queria. Não

1 . F8 conta, em pormenor, os

motivos que o levaram a

institucionalizar a mãe, de 96 anos

que, até aos 95, viveu na sua própria

casa. Diz ele que, a partir da morte

Page 165: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

151

queria abandonar a casa dela, de maneira nenhuma. do irmão solteiro, que vivia com a

mãe, a tentou convencer a ir para um

Lar, mas ela não aceitou. Lúcida,

sem dificuldades motoras, quis

continuar a viver na sua própria casa,

mesmo sozinha.

2 . Depois, a 16 de julho teve a infelicidade de cair lá

no quarto, partiu a cabeça do fémur, foi

hospitalizada, foi operada e a partir daí, seguiu para

M., para os cuidados continuados. Esteve lá 30 dias,

passou para X, também nos cuidados continuados,

mais dois meses e meio. Dali é que teve uma vaga

para a S. C. M. de B., onde está desde 22 de

novembro de 2016. Foi quando surgiu a

oportunidade.

2 . O filho refere uma queda da mãe,

com fratura do fémur. A partir daí, e

após alguns meses em recuperação,

com estadia em duas Unidades de

Recuperação, F8 insistiu com a mãe

para não voltar para casa, pois temia

outra queda, com previsíveis

consequências ainda mais graves. A

mãe decidiu, então, que iria para um

Lar, mas somente na terra onde vivia,

tendo-lhe dito, claramente, que não

iria para outra localidade. Quando aí

surgiu uma vaga, ela aceitou

3 . E - Lúcida, está lúcida?!

F8--Perfeitamente, e quando foi operada, ficou ali

um bocado com pouca lucidez, durante 3 ou 4 dias,

mas eu suponho que aquilo era motivado pela

anestesia. Notamos que ela perdeu ali um bocadinho

a noção. Também acho que a partir dessa altura, que

perdeu um bocadinho de ouvido e de vista, uma coisa

pouco significativa, mas são os únicos senão que eu

encontro nela, porque recuperou a consciência a

100%. Ela tem um cérebro extraordinário, a 100%,

não tem dores, a não ser a perna que ela, na cirurgia

que lhe fizeram, fizeram uma cavilha e um parafuso.

3 . F8 diz que a mãe goza de uma

grande lucidez, e que só perdeu um

pouco a capacidade auditiva e sente

algumas dores na perna que partiu,

quando muda o tempo, tudo o mais

está bem. Considera que a mãe tem

um cérebro “extraordinário”,

reconhecendo-lhe um estatuto

especial, em resistência e saúde.

Page 166: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

152

E só quando há mudanças de tempo, doí-lhe um

bocado mais e tal. Mas, de resto, descansa bem

durante a noite, durante o dia convive com quem

pode.

4 . Agora já aceita perfeitamente, porque vê da terra

muitas pessoas conhecidas dela, ela gosta muito de

falar, foi sempre muito comunicativa, apesar de ser

analfabeta publicou um livro sobre a vida dela.

4 . F8 diz que a mãe, atualmente,

aceita muito bem a decisão, que é

muito comunicativa, o que facilita a

inclusão e o convívio com os outros

idosos. Acrescenta, com orgulho, que

a mãe, apesar de analfabeta, já

publicou um livro sobre a sua vida.

5 . E - Portanto, ela foi para ali por ser da terra. Por

ser de cá, não?

F8 - Não, porque eu a tinha inscrito logo que teve o

acidente, (…) Eu inscrevia-a precisamente naquele

lar que é subsidiado, porque a reforma dela é muito

pequena, a reforma dela é de 375 euros e então foi

nesse que eu a inscrevi, mas na impossibilidade de

haver uma vaga nesse, ela ficou nesse mesmo lar,

numa daquelas 10 camas não comparticipadas.

5 . F8 diz que inscreveu a mãe no

Lar, quando ela sofreu o acidente,

mas só conseguiu uma vaga (não

comparticipada pela Segurança

Social) passados alguns meses.

6 . Ficou a pagar 700 euros, mais as fraldas, os

medicamentos à parte. E é isso que eu tenho estado a

suportar, agora, enquanto não houver condições, se

é que que vai chegar a haver condições, para ela

passar para o Lar, onde previamente estava inscrita.

6 . Especifica os custos da

institucionalização, suportando ele a

diferença entre o que a mãe recebe

de reforma e o custo do Lar, e diz

que vai continuar a fazê-lo enquanto

puder. É importante para F8

especificar os custos, o dinheiro é

muito importante para ele, que sentiu

a sua carência.

7 . Tenho mais um irmão de mãe, exatamente. Tenho 7 . Apesar de ter ainda um irmão,

tendo morrido dois, F8 diz que a

Page 167: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

153

dois falecidos.

E - Então esta decisão de a institucionalizar, de por

a mãe no lar, foi tomado por ti ou pelos dois?

F8 - Foi consensual. Houve consenso. Simplesmente

eu é que…, tenho sido eu a responsabilizar-me em

todos os atos. Tem que haver um familiar que se

responsabilize.

decisão de institucionalizar a mãe foi

consensual entre ela e os dois filhos.

No entanto, reafirma que é ele o

responsável, perante a instituição,

minimizando o papel do irmão.

8 . As despesas são só minhas. Porque o outro está

com uma reforma de 200 e poucos euros e não pode.

Não sobra do ordenado da mulher, que trabalha na

Câmara e tem ordenado baixo, paga renda de casa,

de maneira que não pode, diz que não pode e tenho

sido eu a suportar até que possa.

8 . Reafirma que é só ele a pagar as

despesas, já que o irmão está

reformado por invalidez e com

dificuldades financeiras. Afirma-se

como cuidador, pagador e “único”

responsável.

9 . E - Como é que te sentiste quando a deixaste lá no

lar?

F8 - Senti-me mais reconfortado, porque sei e

conheço o Lar, e sei que ela ali pode ser

acompanhada 24 horas por dia. De dia e de noite, e

é bem tratada, por aquilo que me tenho apercebido, e

já tinha conhecimento disso. Eles ali tratam muito

bem as pessoas, todas as pessoas que estão naquela

instituição, sabem tratá-las, a alimentação é

razoável, e cheguei à conclusão que é onde ela

estava melhor.

9 . F8 diz sentir-se reconfortado pela

institucionalização da mãe, porque

ela tem acompanhamento 24 horas

por dia, é bem cuidada (as pessoas lá

são bem cuidadas), a alimentação

também satisfaz. Diz que já tinha

prévio conhecimento das condições

na instituição, e está convencido que

é o melhor sítio para a mãe viver.

9 . Se ela vivesse num rés-do-chão, eu tinha acedido

ao pedido dela, não queria deixar a casa dela, que

ela morava naquela casa há mais de 60 anos,

embora não sendo dela.

9 . F8 diz que, se a mãe vivesse num

r/c, teria acedido ao pedido dela para

continuar em casa, já que viveu lá

mais de sessenta anos, ou seja, era o

verdadeiro lar familiar, carregado de

memórias.

Page 168: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

154

10 . Não queria sair de casa dela. E depois,

atendendo à continuação da doença, e da

recuperação, havia dificuldade em arranjar um

lugar, e na C.V., em E., terminado aquele prazo, as

pessoas têm que sair. E ela pôs-me a questão “eu,

com a idade que tenho já não vou para longe, não

permitas qualquer lar para longe, que eu não vou

para longe. Se houver lugar para mim, no lar em B.,

eu vou. Se não houver, vou para a minha casa.

Levas-me para a minha casa”.

10 . Diz que a mãe queria regressar a

casa, depois do internamento e da

estadia transitória, na unidade de

recuperação, e que só lhe deu (a ele)

uma alternativa (o Lar da sua terra).

Se não fosse aí, queria mesmo voltar

para casa.

E, apesar de se sentir responsável e

preocupado com a segurança da mãe,

F8 deixa não teria como fazê-la

mudar de opinião.

12 . E é claro que para mim foi uma coisa difícil,

porque a casa dela eu sei como é, ela não podia de

maneira nenhuma subir escadas, atendendo à

dificuldade. Se fossem umas escadas largas e

modernas, em que pudesse ser apoiada com duas

pessoas, uma de cada lado para ajudar, que ela

também é pesada, é forte, ainda vai que não vá, mas

ela tornava-se uma prisioneira, na casa e nós

tínhamos, eu e mais alguém que se voluntariasse

para isso, tínhamos que passar a dormir lá.

12 . A F8, a recusa da mãe em sair,

para uma instituição fora da sua

terra, causou-lhe grande angústia,

devido, diz ele, às difíceis condições

de acesso da casa, com escadas

antigas, para uma pessoa de 96 anos,

após uma fratura do fémur. F8

antevia a mãe, prisioneira na sua

própria casa, por não poder sair e

entrar sozinha, e antevia-se a si,

obrigado a ir dormir a casa da mãe,

de forma a minimizar a sua própria

preocupação. Ou seja, a “prisão”

seria também para ele.

13 . E foi precisamente nessa altura, que surgiu ali

aquele lugar. Mas dentro daquelas camas não

subsidiadas, e que tive de aproveitar, e tive que

assumir. E tive que assumir eu sozinho, porque eu é

que tenho decidido, posto o preto no branco

13 . O aparecimento da solução,

ainda que mais cara, significou um

enorme alívio para este filho que

reafirma a sua condição de único

cuidador e único pagador.

14 . E - Como é que achas que ela se sentiu 14 . Diz que a mãe já estava

Page 169: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

155

quando…?

F8 - Já estava mais mentalizada. Estava mentalizada

porque já falava com muitas pessoas, com casos

mais difíceis. Ela em M., por exemplo, era a pessoa

mais velha que lá estava. Foi muito bem tratada em

M. (…) Ela é uma pessoa de relações fáceis. E tem

aquele, de qualquer coisa faz um verso, e elas

pronto, escreveram os versos dela e tudo mais, e

ficaram com pena dela e nem lhe dava muito

trabalho, porque ela, ao fim de algum tempo era

autónoma, tinha um quarto e tinha a casa de banho,

mesmo junto ao quarto, era um quarto de duas

camas, e então, não dava, não dependia muito de

terceiros e pronto, sentia-se lá bem. Era das

melhores que lá estavam. Na C. V., em E. aconteceu

a mesma coisa.

preparada, psicologicamente, quando

entrou para o Lar, tendo servido de

preparação a estadia em duas

unidades de recuperação, onde

conheceu muitas pessoas e casos

bem piores do que o seu.

Volta a falar da extroversão da mãe,

da sua resistência física e da sua

habilidade poética, fatores que a

tornaram muito popular nos locais

onde esteve.

Esta mãe é idealizada pelo filho, nas

capacidades físicas e intelectuais, tão

idealizada que recuperou facilmente

a autonomia. Mas…

15 . E ela começou a ter, digamos assim, uma noção

da realidade, que era diferente daquilo que ela

imaginava. E com a conversa que eu lhe fazia

também, ela chegou à conclusão que pronto, ainda

teve muita sorte, em ter ali um lugar, porque agora

já está claramente integrada e está satisfeita. Nota-se

que está satisfeita.

15 . Diz o filho que o contacto com a

realidade da institucionalização

permitiu que a mãe mudasse a sua

forma de ver o problema e aceitasse,

porque até para isso

(institucionalização) é preciso ter

sorte, e a mãe teve-a. Acha que ela,

agora, está satisfeita e que se acha

uma pessoa de sorte, agradecida.

16 . Está completamente e sente-se muito melhor.

Tanto assim é que despejamos a casa dela e eu tive

que pagar todo o mês de Dezembro, paguei no dia 8

de Janeiro o mês Dezembro, que foi o último mês

(…). Ali é que foi um bocadinho mais difícil também,

porque a gente fomos criados ali, e ela foi toda a

16 . F8 está convencido que a mãe

está bem, está muito melhor e, por

isso, decidiram despejar a casa dela,

que era alugada. Diz que isso foi

difícil porque era um local carregado

de memórias, ele e os irmãos foram

Page 170: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

156

vida ali, e depois a gente chega à conclusão que a

vida é um pouco, não é aquilo que a gente imaginou.

criados ali, e a mãe viveu sempre

naquela casa, desde adulta.

17 . A gente está sempre a fazer projetos de futuro e

hoje compra isto e aquilo e parece que não chega e

que há pessoas mais felizes. Ao fim e ao cabo, nestas

alturas a gente chega à conclusão que sobra tudo.

(…) porque tivemos que deitar algumas coisas fora,

porque cada um tem a sua casa (…), e pronto

chegamos à conclusão que os bens materiais por

vezes são mais do que aqueles que são necessários.

17 . Diz que foi difícil separar-se das

coisas da mãe, mas foi inevitável

porque todos (ele e o irmão) têm as

suas coisas e não há lugar para os

objetos que pertenciam à mãe, apesar

de serem funcionais. O filho

generaliza, falando, com

desprendimento, dos bens materiais,

muitas vezes, desnecessários.

18 . Ainda hoje pergunta, “e isto foi para onde?

Então e aquilo, e não sei o quê?” Ainda ontem, ela

me perguntou por uns candeeiros, assim, assim e tal.

Gosta de saber e ainda tem aquela nostalgia, estás a

perceber? E é normal, que é normal. E é assim, mas

pronto, de qualquer maneira não a afeta

psicologicamente. Eu noto que não a afeta

psicologicamente.

18 . A mãe, diz o filho, continua a

sentir a falta da sua casa e dos

objetos que continha, e refere-se a

eles perguntando ao filho, para onde

foram. É-lhe difícil aceitar a perda,

simbolizada pelos objetos que a

acompanharam durante muitos anos.

F8 compreende isso, mas conclui,

contraditoriamente, que isso não

afeta, psicologicamente, a mãe.

19 . À partida, eu fiquei mais tranquilo, porque sei

que ela tem acompanhamento e por muito que eu

pudesse ajudar, nunca podia estar 24 horas por dia

junto dela. E era nessa altura que não pudesse estar

junto dela que ela podia precisar, e ali sempre está

acompanhada. Qualquer situação que surja, de

imediato, tem socorro. (…) Quando é preciso ir para

mais longe, tem que ser um familiar a acompanhar e

assumir a responsabilidade.

19 . F8 diz que a mãe está bem

integrada e que o seu estado físico e

psicológico lhe proporciona, a ele,

tranquilidade porque sabe que não

poderia estar junto da mãe de dia e

de noite e que ela poderia precisar de

ajuda, em qualquer momento em que

estivesse sozinha. Assim, garantido

esse acompanhamento permanente, e

cabendo-lhe, a ele, outro tipo de

Page 171: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

157

ajuda, como levá-la ao médico, por

exemplo, sente-se capaz de o dar e de

assumir todas as responsabilidades.

20 . E - Achas que mudou alguma coisa, na tua

relação com ela, depois de ela ir para o lar?

F8 - Absolutamente nada. A mesma relação. Se fosse

como ela queria, se calhar tinha-a visitado das 11 ao

meio dia e das 3 às 5, como ela queria. Mas não

pode ser, visito-a dia sim, dia não.

20 . F8 diz que nada mudou na sua

relação afetiva com a mãe, sempre

foi boa. Diz que a visita dia sim dia

não, mas, por vontade dela, ele iria

todos os dias, de manhã e à tarde.

21 . E - Ela faz-te sentir isso? Que gostaria?

F8 - Sim, porque “então já te vais embora?”, “já são

cinco horas, já te vais embora?” e não sei o quê,

“fica mais um bocadinho”, e a gente, às vezes tem

que fazer, sabe que está bem, que ela está bem, que

está acompanhada, e digo que tenho mais coisas, que

tenho que me ir embora, porque tenho mais que

fazer. Então já vi e vi que está bem, então não há

problema nenhum. “Está bem, filho. Vai lá” e depois

telefona-me, ela tem um telefone.

21 . A mãe, diz, pergunta-lhe sempre

porque se vai já embora,

respondendo ele que tem outras

coisas para fazer. E justifica que,

como já a viu e sabe que está bem,

pode ir. Cumprido o “dever” da

visita, sai tranquilo, mas ela telefona

sempre.

22 . E quando não vou, no dia que eu não vou, ela

tem sempre visitas. É que ela tem sempre visitas, e

por vezes 3 e 4 pessoas. Ela é muito visitada.

22 . Diz que a mãe tem sempre várias

visitas, nunca está sem ninguém. É

uma pessoa muito visitada. E isso

satisfaz o filho.

23 . E telefona-me duas vezes e ai há bocado, ela

telefonou-me para ver como é que estava. Logo à

noite, as 7, sete e tal quando se deita, telefona-me

sempre. Eu carrego-lhe o telemóvel, estás a

perceber, sou eu que lhe carrego o telemóvel, e ela

tem discado o meu número, para mim tem aquele

número, para o C. é o outro número, e 2 ou 3 amigas

23 . F8 carrega o telemóvel da mãe

para que ela possa telefonar quando

quiser, o que ela faz, todos os dias,

sobretudo à noite, antes de se deitar.

Page 172: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

158

que ela tem.

24 . Deixei de telefonar mais ultimamente, porque ela

depois não ouvia o telefone, e então agora utilizamos

mais o esquema, pego no telefone e ela liga que é

mais fácil, porque ela tem dificuldade em ouvir o

telefone, ali na mala, e já ouve um bocado mal, e

então combinamos fazer assim. Se precisar de

qualquer coisa de urgência, telefono, mas telefono

para a instituição. Eles também lá têm telefone.

24 . Diz que deixou de telefonar

diretamente para a mãe, devido às

suas dificuldades auditivas.

25. Por vontade dela, eu iria todos os dias. Mas ela

tem lá muita gente e por vezes vou lá só para a ver,

porque depois é muita gente e não há condições para

receber muita gente em simultâneo. Tanto que eu

optei por ir às 3 horas, porque elas têm o lanche às 3

e meia.

25 . F8 diz que visita a mãe só para a

ver, e escolhe um horário em que não

haja muitas visitas, porque, no Lar,

não há condições físicas para muita

gente, em simultâneo.

Quando não vai (e é habitual fazê-lo

antes do lanche), a mãe telefona-lhe

logo, preocupada com a sua saúde.

26 . Ela quer saber o que se passa e tal. Está sempre

muito preocupada comigo, agora então, desde que

tenho tido estes problemas, tem andado um bocado

preocupada. Aliás, a preocupação número um, dela,

agora é essa.

26 . A mãe, segundo ele, preocupa-se

muito com a saúde do filho que,

ultimamente, tem tido alguns

problemas de ansiedade e

hipertensão. A uma mulher a quem já

morreram dois filhos, a ameaça de

doença naquele que é o cuidador

principal, provoca, certamente,

angústia e medo.

E F8 confirma, dizendo que a

preocupação nº 1 da mãe é ele

próprio, a quem gostaria de ver

diariamente.

27 . Trouxe-a a almoçar a casa uma meia dúzia de 27 . F8 diz que vai buscar a mãe,

Page 173: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

159

vezes, quando vem tratar dos pés, vou lá buscá-la e

vai tratar dos pés e depois levo-a a casa a almoçar e

depois vou a uma esplanada, quando o tempo

permite, aliás… para falar com duas ou três, bebe

um cafezinho e depois vou levá-la.

com frequência, para almoçar com

ele e a família, para ir tratar dos pés,

e que, depois, leva-a ao café, antes de

voltar ao Lar. Ela gosta, e ele

também, do convívio e da conversa

com pessoas conhecidas.

28 . Noto que ela tem a moral elevada. Não está

deprimida. E portanto, isso ajuda também a forma

como os filhos se sentem. (…) O meu irmão vai lá

quase todos os dias um bocadinho.

28 . Diz que acha a mãe com bom

humor, com a “moral elevada”, não

está deprimida, e isso ajuda os filhos

a sentirem-se bem, ele e o irmão, que

também visita a mãe quase

diariamente.

29 . Há muitos idosos que não têm visitas. Eu

conheço alguns, infelizmente. (…) E até nesse

capítulo, a minha mãe agora, constatando esses

factos, sente-se privilegiada. Até se sente

privilegiada em relação a algumas pessoas que não

têm tanta sorte.

29 . F8 diz que há muitos idosos que

não têm visitas, o que faz da mãe

dele uma pessoa de sorte, porque se

compara com outros idosos, a quem

os filhos pouco visitam.

30 . Toda a vida foi boa [a relação]. Foi excelente,

aliás os meus irmãos sempre foram um bocado

difíceis, porque tinham muitos vícios, desde o álcool,

passando pelo tabaco e pela batota, e isto e aquilo.

Depois, primeiro o D., ele enforcou-se lá em cima,

ainda novo. O F. morreu com 58 anos com cancro na

faringe e depois que se prolongou também para os

pulmões, porque aquilo foi de fumar

inadvertidamente, mesmo muito, e mesmo depois de

estar doente e a sofrer bastante, cheguei a vigiá-lo e

apanhá-lo … estava sempre alerta, dizia-lhe coisas

que ele não gostava de ouvir quando andava a

fumar.

30 . Sobre a relação passada com a

mãe, F8 diz que sempre foi boa, foi

excelente, o que não aconteceu tanto

com os irmãos, devido aos vícios

(álcool, tabaco, jogo) e doenças

(suicídio de um e morte por cancro,

de outro). Acusa o irmão que morreu

de cancro, de ter sido o causador da

sua própria doença, por abuso de

álcool e tabaco, tendo-o, muitas

vezes, repreendido por isso.

31 . A minha mãe só tinha a reforma dela e eu 31 . Diz que sempre ajudou

Page 174: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

160

muitas vezes, durante esse tempo todo, fui com ela ao

supermercado, e quem pagou a conta para ela e para

ele, foi o meu cartão de débito, estás a perceber? E

todas essas coisas, pronto. Mas, nesse capítulo,

desde os quinze anos de idade que era chefe de

família, com ela viúva e três irmãos menores, que fui

eu que praticamente … é que tive de os acabar de

criar.

financeiramente, a mãe e os irmãos,

tendo-se tornado chefe de família

com quinze anos, altura em que a

mãe ficou viúva com quatro filhos

menores, sendo ele o mais velho. E

essa responsabilidade persistiu pela

vida fora.

32 . Depois, aos 21 anos, a minha mulher

engravidou, eu tinha sido recrutado para o serviço

militar, na altura era a guerra do ultramar (…)

Levei-a lá para a casa da minha mãe, não tinha

outra alternativa, o meu dinheiro era lá para a casa,

eu é que era o chefe de família (…) Depois, ao fim de

um tempo, lá arranjamos uma casita aí de aluguer.

Mesmo nessas alturas tive que ajudar a minha mãe.

32 . Aos vinte e um anos, foi pai,

pela 1ª vez, mas, devido à sua

responsabilidade familiar, teve que

levar a namorada (depois esposa)

para casa da mãe porque o dinheiro

que ganhava era para a família (mãe

e irmãos).

33 . Todos somos filhos dela e ela certamente gosta

de todos, ela diz que sim, mas ela sabe quem a tem

apoiado toda a vida. Ela sabe em que se encostar e

quem tem contribuído inclusivamente para uma vida

mais feliz, da parte dos meus irmãos, que não

quiseram, porque os vícios levam a estas situações,

infelizmente foi assim.

33 . Considera-se o filho preferido da

mãe, dizendo que, certamente ela

gostou de todos, mas sempre soube

quem a ajudou nos momentos

difíceis, a ela e aos outros filhos. F8

fala com tristeza dos vícios dos

irmãos e da infelicidade em que

viveram e fizeram viver a mãe, e

considera que foi ele, muitas vezes, o

suporte da família materna.

34 . Ela foi mãe solteira, porque isto é assim: eles

moravam …no monte onde eu nasci,….na margem

esquerda da ribeira e a família do meu pai morava

do outro lado da estrada, (…) e muita gente me disse

que ele gostava imenso da minha mãe, mas os pais

34 . F8 conta a história do seu

nascimento, revelando que foi filho

de mãe solteira, num tempo em que

isso era uma enorme vergonha. Diz

que as famílias do pai e da mãe

Page 175: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

161

Participante F9

tinham a mania que eram ricos, porque eram uns

pequenos… na altura, e já pareciam que eram ricos,

e então a minha mãe era filha do J. da aldeia e era

de família pobre, aquilo era proibido, esses

casamentos, ele casou com ….que por azar, a

senhora coitada, faleceu ao fim de pouco tempo (…)

Tenho três irmãos (de pai), o mais velho deles, tem 3

filhos, como eu, o F. tem uma filha…

viviam perto, mas, enquanto o pai era

filho de pessoas que se julgavam

ricas, a família da mãe era muito

pobre, o que fez com que o pai

(apesar de gostar muito da mãe de

F8) tivesse casado com outra mulher,

socialmente mais próxima.

A sua mãe casou, mais tarde, com

outro homem, de quem teve 3 filhos,

os irmãos que ele ajudou a criar.

Quanto ao pai, teve quatro filhos,

para além dele.

35 . E - Hoje tens relações normais com esses irmãos

da parte do teu pai? E a tua mãe sabe disso tudo?

F8 - Sabe e aprova. Vê isto com bons olhos, noutra

altura não, agora sim, não há qualquer problema.

35 . Atualmente, existem boas

relações entre todos. Diz que, no

passado, isso não era possível, mas

agora a mãe aprova esse

relacionamento entre os irmãos. E,

para F8, essa aprovação é

importante.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . Isto é um tema que, pronto, a mim choca-me um

bocadinho, não é? Porque a minha mãe está num

Lar, na S.C.M. em E., desde o dia 1 de julho de 2016.

Primeiramente, entrou na vertente de dia, um mês

antes, durante o mês de junho, (…). Ia de manhã e eu

1 . F9 refere que a mãe começou por

frequentar o Centro de Dia, tendo

passado para institucionalização

completa, um mês depois, quando

houve uma vaga.

Page 176: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

162

ia buscá-la à tardinha. Até que, depois, quando

vagou uma cama, ficou lá.

2 . A mim, isto é um tema que me custa muito porque

isto foi uma mudança muito repentina na vida de

todos nós, dos familiares, especialmente na minha

vida, pronto, que veio alterar muita coisa, após a

morte, o falecimento da minha irmã, porque a minha

irmã vivia com ela.

2 . Diz que é um tema de que lhe

custa falar, porque significou uma

mudança muito grande e repentina na

vida da família, principalmente na

sua vida, após a morte da irmã, que

vivia com a mãe.

3 . A minha irmã tinha 47 anos quando faleceu. E

estava com a mãe, porque tinha sido operada ao

coração há um ano atrás, e então, como ela era

divorciada, vivia sozinha, então, resolveu e ficou com

a minha mãe porque, onde a minha mãe morava,

tinham acesso ali a tudo e estavam mais

centralizadas, ali, mesmo em relação ao centro, a

tudo. Infelizmente só viveu, só sobreviveu um ano

após a operação, mas pronto,

3 . Diz, muito emocionada, que a

irmã morreu há um ano, com 47

anos, após ter sido operada ao

coração, um ano antes. Essa irmã

vivia com a mãe, para não estar

sozinha e poder estar mais perto de

tudo (no centro).

4 . …apesar de eu achar e de eu já andar a detetar

que a minha mãe já estava a apresentar sintomas de

uma pessoa que não podia viver sozinha, tipo

esquecimentos, perguntava as coisas vezes sem

conta, seguidas, e então eu comecei-me a aperceber,

aos poucos, que ela já não estava a 100%, né?

Comecei a ver que ela estava a perder aquelas

faculdades, aquelas pequenas coisas que ela, que

toda a gente faz, no dia a dia. (…) Com a morte da

minha irmã, isto veio-se a precipitar tudo, né? (…)

No dia 1 de julho de 2016 deu entrada de noite e de

dia.

4 . Durante o ano em que a irmã

viveu com a mãe, F9 apercebeu-se da

deterioração das faculdades mentais

desta, situação que se agravou,

repentinamente, após a morte da

filha.

5 . (…) tornou-se completamente dependente. Porque 5 . A mãe tornou-se completamente

Page 177: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

163

ela, até praticamente o comer, ela deixou de fazer, e

deixou de fazer pequenas coisas que lhe fazem falta

para o dia a dia, como, p. ex. deixou de ver horas,

deixou de atender o telefone, deixou de fazer estas

pequenas coisas que lhe faziam falta, a uma pessoa

que vive sozinha. Entretanto, levei-a ao neurologista

e ele disse que aquilo era demência e que, realmente,

não podia estar sozinha.

dependente, precisando de apoio para

tudo. E ela (filha) viu-se obrigada a

arranjar uma solução, após o

neurologista ter confirmado o estado

de demência da mãe e ter

aconselhado a que ela não ficasse

sozinha.

6 . A mim custou-me um bocado, né? Custou-me

porque ela sempre foi uma pessoa muito autónoma,

ela fazia as coisinhas dela, ela passeava, ela sempre

geriu a vidinha dela muito bem, nunca precisou de

apoio de ninguém, nunca...e de repente, eu vejo-me

nesta situação.

6 . F9 confessa que sofreu muito com

a mudança brusca sentida, porque a

mãe, que nunca precisara de

ninguém, passou a precisar de ajuda

para tudo. A perda da autonomia da

mãe foi fonte de grande sofrimento

para esta filha, que se viu

confrontada com a necessidade de

ser cuidadora.

7 . A decisão foi tomada por mim, mais

concretamente por mim. Falei, claro que falei com

ela. Ela, ao início, ficou assim um bocado renitente

porque vi mesmo que ela não queria ir porque queria

ficar na casa dela, mas ela não tinha conhecimento

nenhum do que eram os Lares, ela nem sequer fazia

a menor ideia, e quando eu lhe falei, pela 1ª vez, e

comecei a incutir-lhe isso e a dizer que ela não podia

estar sozinha, porque o simples facto de ela estar

entre 4 paredes sozinha, só a estava a prejudicar

também, a fazer-lhe mal. Sozinha, sem comunicar

com ninguém.

7 . F9 assume que tomou a decisão

sozinha, após ter explicado à mãe

que a doença não lhe permitia estar

só em casa. A renitência da mãe

causou mais angústia a F9, que

continuou a tentar convencê-la a

aceitar, porque a mãe (acha F9)

desconhecia o que era um Lar.

8 . eu acho que, à medida que o tempo foi passando,

porque a minha irmã morreu em março, e de março

8 . F9 diz que, pacientemente, foi

convencendo a mãe a aceitar a

Page 178: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

164

a junho, eu fui trabalhando-a aos poucos. Ou seja,

março, abril, maio, durante esses dois meses que

ficaram no meio, porque ela entrou no início de

junho, abril e maio andei ali, pronto, a ver o que é

que...pronto, tínhamos que resolver a situação o mais

depressa possível, porque também levá-la para a

minha casa não era solução porque ela ficava

sozinha o dia inteiro. Portanto, tirá-la da casa dela e

metê-la na minha não era solução. Ela precisava era

de companhia.

institucionalização, já que levá-la

para a sua casa não era a solução, já

que continuaria sozinha, durante o

dia.

9 . A 1ªvez que eu falei com ela, ela ficou um

bocado, até parece que ficou ofendida comigo, e até

me respondeu para o torto e me disse que, se eu

gostava tanto dos lares, que fosse eu para lá, e que a

deixasse a ela na casa dela. (…) E então, há um dia

que ela...ela deve-se começar a aperceber que,

realmente, já não tinha capacidade para estar

sozinha. E eu fiquei surpresa, quando ela me disse:

"Então quando é que lá vais ao Lar que me

disseste?" E eu, como tinha lá duas tias da parte do

meu marido, no lar, e ia lá algumas vezes a vê-las,

disse-lhe: "Olha, por acaso, até vou neste próximo

fim de semana, que vou ver as tias. "Então leva-me

contigo para eu ver como é que é." E ela quis ir

comigo naquele fim de semana. E gostou imenso.

9 . A filha diz que a mãe evoluiu, na

forma de considerar a

institucionalização como solução,

tendo passado da recusa total para a

sugestão de que a filha a levasse a

visitar o Lar, onde estavam duas tias

do marido de F9. Segundo a filha,

essa visita foi um sucesso, dado que

a mãe gostou muito.

10 . Adorou o espaço porque aquilo tem um espaço

enorme cá fora para poder passear, para estar

sentada num banquinho. Pronto, e então ela gostou

imenso. E depois disse-me "pronto, olha, se calhar

até tens razão, se calhar até vou ficar aqui melhor,

10 . O espaço, exterior foi

fundamental, diz a filha, para a

decisão da mãe, que concluiu ser o

Lar uma boa solução para se sentir

acompanhada.

Page 179: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

165

pelo menos, estou acompanhada.

11. entretanto, começou a ir, todos os dias eu ia

levá-la de manhã e vinha sempre muito contente ao

final do dia.

11 . Começou, então, a frequentar o

centro de dia, de onde chegava

sempre muito contente, à noite.

12 . E - E o seu irmão, a T tem um irmão, ele não

participou nesta decisão?

F9 - Nada. Não, porque ele nem sequer vai ver a

mãe! Como é que vai participar nas coisas da mãe?

O meu irmão, o caminho que ele escolhe é sempre o

de fugir aos problemas. Mas desde sempre. Sabe, eu

estou sozinha nesta maratona, sempre estive, e se

calhar vou continuar a estar sozinha, né? E não é

fácil!

12 . À pergunta sobre se o irmão

participou na decisão, F9 responde

que não e que nem sequer visita a

mãe, fugindo ao problema, como faz

em tudo, na vida. F9 considera-se

sozinha neste processo e não tem

esperança de que isso venha a mudar.

E concorda que é muito difícil ter

que tratar e decidir tudo sobre a mãe,

após a morte da irmã e a indiferença

e desinteresse do irmão.

13 . Neste momento, eu tenho consciência que ela

deve ser das pessoas que mais gosta de lá estar,

porque a maior parte das pessoas que lá estão não

querem lá estar, querem-se ir embora. E o que dizem

é o contrário da minha mãe. E a mim, o que me

dizem, é o contrário, da minha mãe (…). E ela

gostava porque elas foram sempre muito carinhosas

com ela, gostou, adaptou-se lindamente, integrou-se

de uma maneira que eu nunca pensei que ela se

viesse a integrar.

13 . A filha acha que a mãe é das

pessoas mais felizes, no Lar, porque

gosta de lá estar, o que não acontece

com a maioria dos idosos. Atribui

essa satisfação da mãe à forma como

sempre foi tratada pelas funcionárias

da instituição, considerando perfeita

a sua integração.

14 . A escolha da instituição até nem foi por ser

melhor ou pior, é que estávamos a chegar a um

ponto de desespero, pelo menos pela parte que me

toca. Durante o dia, eu vinha para aqui trabalhar e

eu não estava bem, e não sabia se ela estava bem ou

se não estava, o que é que lhe passaria pela cabeça,

14 . F9 diz não ter escolhido a

instituição, foi aquela porque havia

lugar e ela conhecia, devido às

visitas que fazia às tias do marido.

Refere a angústia que viveu, durante

os dois meses em que a mãe esteve

Page 180: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

166

né? Porque nós, quando a gente se começa a

aperceber que, infelizmente, as coisas não estão a

correr bem em termos de saúde, que era o caso dela,

eu não poderia estar bem durante o dia, no meu local

de trabalho, a pensar no que é que ela estava a fazer

ou no que lhe poderia acontecer.

sozinha, estando a trabalhar, na

incerteza do que se estaria a passar, e

sem poder cuidá-la.

15 . E então isto foi um..., as coisas precipitaram-se

todas e isto teve mesmo que ser. Foi uma coisa que

tinha que ser resolvida a curto prazo. Não podia, não

podia levar isto muito mais tempo, e eu prefiro que

ela esteja bem e que esteja orientada, do que estar

em casa, não ter ninguém.

15 .A escolha e decisão sobre a

instituição foram determinadas pela

urgência da situação, que F9 sentia

não conseguir aguentar muito mais

tempo.

16 . Eu sei que, infelizmente, há muitos casos de

pessoas idosas que estão em casa, nem que seja só

para lhes ficarem com as reformas e depois as

pessoas ficam completamente ao abandono. Eu não

sou capaz disso. Aliás, eu até lhe vou dizer mais, que

eu estou sozinha nesta maratona, eu pago os extras

todos do meu bolso, nem sequer é pago pela reforma,

porque, hoje em dia, estas instituições levam as

reformas todas, não sobra um tostão que seja, e

depois é tudo pago à parte. Ou seja, tudo o que ela

ganha é tudo para a instituição. Medicamentos,

produtos de higiene, cortes de cabelo, arranjos de

pés, tudo o que for extra sou eu que pago do meu

bolso.

16 . Como o problema era urgente,

diz, a solução também tinha de ser,

para que a sua mãe não ficasse

abandonada, como acontece a muitos

idosos que conhece, que ficam em

casa para os filhos usufruírem das

suas reformas. Ela, filha, não seria

capaz de o fazer, e paga sozinha, os

custos que a reforma da mãe não

cobre. Mas sente-se bem com isso.

17 . Chorei. Quando eu dei por mim a ver de um

sítio para ela ficar porque não podia estar sozinha, e

quando dou por mim a visitar este tipo de

instituições, ao final do dia caí em mim e comecei a

chorar porque, realmente, acho que isto é o mais

17 . F9 diz que chorou quando

decidiu a institucionalização da mãe,

quando começou a procurar um Lar,

pois considera muito triste uma

pessoa passar da autonomia total

Page 181: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

167

triste que pode haver.

para a dependência de outras

pessoas. E diz que, ao tomar plena

consciência da situação, sentiu que é

a mais triste que pode haver.

18 . Se eu pudesse, ela não..., não sei, porque eu

hoje em dia, no início, era o que eu pensei quando lá

a meti, pensei: vou meter a minha mãe com pessoas

estranhas, pessoas com que ela nunca lidou, pessoas

que ela não conhece de lado nenhum…pelo menos,

no cantinho dela, na casinha dela, ela estava melhor,

vai lá a família.

18 . Diz que, no início, receou

colocar a mãe com pessoas que ela

não conhecia, retirando-a da sua

casa, da proximidade da família, e

lamentou não poder mantê-la no

meio familiar.

19 . Mas, hoje em dia, estou consciente, após este

tempo todo, que foi a melhor coisa que eu fiz. E cada

vez estou mais consciente disso, porque, realmente, a

minha mãe mudou da noite para o dia, a minha mãe

está muito melhor, não tem nada a ver.

19 . No entanto, a melhoria do

estado da mãe, após a

institucionalização, proporciona-lhe,

a ela, satisfação e a convicção de que

tomou a melhor decisão.

20 . Eu não tive a sensação de abandono, que a

estava a abandonar, não foi essa sensação que eu

tive. A sensação que eu tive é que a gente olha para a

vida das pessoas, né?, que elas têm uma vida muito

ativa, que a minha mãe nunca dependeu de ninguém,

ela sempre foi uma pessoa muito autónoma na

resolução da vida dela e dos problemas dela, e de

repente, olhar para a minha mãe e vê-la naquele

estado, e saber que a tinha que ir meter numa

instituição para tomarem conta dela, despoletou

todos os meus sentimentos, né? Foi mais nesse

sentido. Apesar de eu saber que estava a fazer o

melhor pra ela, e não pra mim.

20 . F9 diz que nunca se sentiu

abandonante da mãe, sentiu antes que

estava a fazer o melhor para ela, e

não para si própria. A angústia que a

atormentou foi por pensar na

evolução da mãe, de uma pessoa

completamente independente para

uma tal dependência que necessitava

de ser cuidada por terceiros. Esta

consciência da mudança foi

precipitante de uma grande tristeza.

21 . Muito alegre, sempre bem-disposta, não a sinto 21 . A satisfação da mãe repercute-se

Page 182: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

168

triste em nada. Aliás, eu por detrás dela, até vou

falar com as responsáveis que estão com ela e,

inclusive, até falei com a psicóloga que dá apoio à

instituição e, após a psicóloga me dizer que nunca

tinha sentido, aliás, é muito raro aparecer uma

pessoa nas condições da minha mãe, em que vai para

um Lar, e gostar tanto de lá estar. Ou seja, aquilo

que ela transmite quando lhe fazem as consultas, é

que gosta muito de lá estar.

na da filha, quando vê confirmado,

pelas funcionárias e pela psicóloga

do Lar, o bem-estar que a mãe

revela, raro em utentes nas condições

em que ela entrou. Esta consciência

dos benefícios da institucionalização,

confirmada por outras pessoas,

constituem um grande alívio para a

culpabilidade sentida por F9.

22 . A minha mãe sempre foi uma pessoa muito

dura, e desde que eu me lembro, desde que eu era

criança, eu nunca ouvi aquela mulher dizer "dói-me

isto, dói-me aquilo, dói-me o outro". Sempre foi uma

pessoa muito rija.

E - Não, estava a pensar em se queixar da comida,

do tratamento das funcionárias...

F9 - Não, nada, nada. A comida? Só quem lida assim

com estas pessoas, no dia a dia, é que se apercebe de

algumas coisas. A comida? A minha mãe nem sabe o

que come. Infelizmente!

22 . A filha diz que a mãe não se

queixa de nada, na instituição, o que

está de acordo com a forma resistente

que sempre teve. A filha associa isso

também ao facto de a demência não

lhe permitir recordar os

acontecimentos mais recentes, nem

sequer o que acabou de comer.

23 . Normalmente, quando vou vê-la ao Lar, é

depois de sair daqui, porque eu, dia sim dia não (e

antigamente era todos os dias) eu passava por lá

para saber se ela se estava a integrar. Agora é que já

vou mais espaçadamente, porque sei que está bem e

também não quero estar a ser massacrante porque

aquilo tem um horário de visita. Eu, infelizmente,

durante a semana, só posso ir depois das cinco e

meia e acontece que eu chego lá e elas jantam às seis

e um quarto da tarde.

23 . F9 diz que visita a mãe, de dois

em dois dias (antes era todos os

dias), porque acha que ir diariamente

também pode ser massacrante, dado

haver horários de visitas que ela não

pode cumprir devido ao seu trabalho.

24 . Tudo o que é as pequeninas coisas do dia a dia, 24 . F9 fala, com tristeza, do estado

Page 183: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

169

desaparece tudo. E eu acabei por desistir, já não

faço mais perguntas. Basta a gente dizer que lhe

morreu uma filha e ela não se lembra. Portanto, e

com isto, eu digo tudo! Não vale a pena. Eu só quero

é que o pouco tempo que ela cá estiver, ou muito,

não sei, está nas mãos de Deus, eu só quero é que ela

seja feliz.

da demência da mãe, que esquece as

pequenas coisas do dia-a-dia, e todas

as outras, incluindo a morte da outra

filha. F9 diz que só quer que ela seja

feliz, enquanto viver.

25 . [a relação] melhorou… a minha mãe está muito

mais carinhosa, ela tornou-se uma pessoa muito mais

chegada, não sei se é por estar afastada da família,

estar numa instituição. A minha mãe não era uma

pessoa carinhosa, a minha mãe até era uma pessoa

fria, não era uma pessoa de muitas demonstrações de

sentimentos nem nada disso. E agora não, cada vez

que lá vou, quando me vê faz logo "olha, olha a

minha filha!", faz assim, faz uma festa tão grande

quando nos vê! Eu posso lá ir todos os dias, mas ela

continua a fazer a mesma festa, está a ver? "Ah, é a

minha filha!" agarra-se a mim…

25 . Curiosamente, esta filha diz que

a relação com a mãe melhorou. Está

muito mais carinhosa do que alguma

vez foi, referindo a filha que ela era

uma pessoa “fria”, que não

demonstrava sentimentos de afeto, ao

contrário de agora, que reage muito

afetivamente às visitas que recebe.

26 . Dantes não, dantes eu ia a casa dela e ela não

se manifestava dessa maneira. Eu acho que, eu, por

um lado, fico contente, fico feliz, mas, eu como

estava habituada a lidar com ela, ter uma relação

diferente com ela, ela nunca foi de muitas

demonstrações nem nada, mas, pronto, sempre nos

demos bem e não sei quê... Agora, eu acho é que ela

está mais carinhosa, aproximou-se mais à gente,

mais...(…) não sei se é por estar com outras pessoas,

que ao fim e ao cabo aquilo depois também se torna

uma família, mas vejo que ela fica muito mais

26 . F9 sente estranheza nessa nova

relação, sente-se feliz, mas… não

reconhece essa mãe que se exprime

afetivamente, que, através de

palavras e gestos, demonstra grande

contentamento pela visita da filha,

talvez (diz esta) por estar longe da

família, a viver com outras pessoas.

Page 184: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

170

contente e mais alegre, de cada vez que nos vê.

27 . E - E as saídas? Leva-a a sair, leva-a a casa?

F9 - Aí é que ela se torna um bocado sensível. Ela

está sempre desejosa de voltar para lá. Ela gosta de

sair, nunca diz que não. Eu vou lá e digo "mãe, hoje

vais almoçar comigo", "Ah, está bem, está bem", mas

quando a trago, depois está sempre desejosa de

voltar: "tens que me ir a levar", parece que está

sempre desejosa de voltar. Ela criou aquele espaço

dela lá, tem as coisinhas dela lá, está a dividir o

quarto com outra senhora…

27 . Sobre as saídas da mãe da

instituição, F9 diz que ela mostra

vontade de sair, mas depois, está

sempre com pressa de voltar ao Lar.

A filha atribui isso ao facto de a mãe

se sentir bem com as pessoas de lá,

de ter lá as suas coisas, de ser a sua

nova casa.

Inclusivamente, o dividir, desde o

início, o quarto com outra senhora,

criou uma cumplicidade entre ambas,

que contribui também para sentir o

Lar como a sua casa, para onde gosta

de regressar.

28 . Eu fiz anos no dia 9 de março, fui buscá-la,

tinha ido buscá-la um fim de semana atrás, mas isso

não foi nada de especial, tinha ido buscá-la no ano

novo. Vou buscá-la quando calha. Mas o que eu noto

nela é que ela, cada vez mais, não se sente muito bem

ao sair dali.

28 . F9 diz que vai buscar a mãe de

vez em quando, em momentos

festivos e noutros, quando tem

oportunidade, mas, cada vez mais,

nota que a mãe se sente apegada à

instituição.

29 . Foi a melhor solução, não estou nada

arrependida, pelo contrário, sinto-me bem porque a

vejo a ela bem, anda bem, anda contente, tem sempre

um sorriso. Se eu visse que ela andava triste, com

desgosto de estar ali (como eu lá certas pessoas, eu

sei que há pessoas que estão, mesmo contrariadas, e

choram e não ligam a ninguém e muitas vezes é meio

caminho andado para a morte, porque infelizmente,

ali é a última morada da maior parte delas), mas eu

vejo-a a ela bem, portanto, até à data, não estou

29 . Sobre a decisão que tomou, F9

diz não estar nada arrependida, pelo

contrário, acha que foi a melhor

solução porque vê mãe feliz, sempre

com um sorriso, muito próxima

afetivamente das funcionárias e

desligada da maior parte das coisas

que se passam à sua volta. A filha

compara a satisfação da mãe com a

insatisfação de outros idosos

Page 185: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

171

Participante F10

nada arrependida, acho que foi a melhor coisa que

lhe aconteceu.

institucionalizados, e sente-se bem

porque ela está bem.

30 . Tem outra coisa que eu não sei se é bom, se é

mau, mas acho que é bom pra ela porque, como fica

alheia a tudo, não sabe se estão a dizer mal ou bem,

ela desliga disso tudo. E então vive a vidinha dela,

pronto.Vive o momento, vive no mundozinho dela, ela

vive naquele mundozinho que criou para ela e,

pronto, sente-se feliz e sente-se bem e está sempre

com um sorriso e pronto, isso para mim é ótimo.

30 . F9 diz que, se por um lado, o

alheamento da mãe é mau, porque

representa a demência, por outro

lado, é bom a mãe viver o dia-a-dia,

sem memórias dolorosas, como a

morte da filha, de que não se recorda.

Diz F9 que ela vive o momento, vive

no mundozinho dela, naquele

mundozinho que criou para ela e,

pronto, sente-se feliz e sente-se bem

e está sempre com um sorriso. Para

F9, isso é ótimo! E desculpabilizante.

Unidades de Significado Expressões de Caráter Psicológico

1 . Tenho 50 anos, sou filha única, neste momento já

não tenho o meu pai, há cerca de 3 meses que ele

faleceu, sou casada, tenho 2 filhos, trabalho numa

instituição, embora não trabalhe diretamente com

idosos mas, todos os dias passo por eles, todos os

dias olho, todos os dias…, todos os dias dá que

pensar…(…) o facto de lidarmos com eles todos os

dias e ver que eles, muitos deles estão ali e a maioria

deles foi para ali e não era aquilo que eles gostavam,

não é o sitio que gostavam porque a mentalidade

deles nunca foi, nunca foi feita para isso, e eu noto

1 . F10 começa por dizer que

trabalha numa instituição de

acolhimento de idosos e que isso a

faz contactar, diariamente, com

pessoas que, na sua maioria, não

queriam estar ali. E acrescenta que

viu isso nos seus próprios pais,

institucionalizados em simultâneo

(tendo o pai falecido há 3 meses) e

cuja institucionalização foi uma

obrigação, porque não havia

Page 186: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

172

nos meus pais, foi uma obrigação, foi o tem que ser,

tinha mesmo que ser, não havia, não havia

alternativa.

alternativa. O contacto diário com

muitos idosos confirma a sua

perspetiva contra a

institucionalização. Acredita que a

maioria deles se sente mal, tal como

os seus pais se sentiram (e a sua mãe

se sente).

2 . É um mal, é um mal necessário.

Para mim é um mal (…) nós entendemos e eles são

bem tratados e são bem cuidados, e ali têm tudo

aquilo que, se tiverem na casa deles, não têm, porque

já não têm capacidade para estarem, para se

cuidarem, para terem todo o apoio que é preciso,

porque eles não têm, já, quando chega a uma certa

idade, não têm essas capacidades, embora eles não

admitam, mas já não têm, precisam de ter alguém

com eles 24 horas por dia (…),

2 . F10 afirma que a

institucionalização é um mal

necessário, porque a diminuição das

capacidades dos idosos (onde se

incluem os seus pais) não lhes

permite continuarem sem apoio de

alguém 24 horas por dia, e, em casa,

já não dispõem das boas condições

que um Lar proporciona, embora não

admitam que precisam de cuidados.

3 . Nós não temos possibilidades de estar com eles o

tempo todo, temos a nossa casa, a nossa família,

marido, filhos, trabalho, é impossível! E eles

precisam, chega a uma certa altura que tem mesmo

que ser. E eu digo que é um mal necessário para eles

e para nós, com que temos de tomar e temos de lá os

deixar porque, para mim, aquilo é mesmo o ponto de

passagem para o outro lado. Quando eles vão, já não

voltam mais, isso é muito difícil pensar, que os

vamos deixar ali e que já não regressam a casa.

3 . Os filhos (ela) não têm

disponibilidade para cuidar os pais,

porque têm a sua própria vida. No

entanto, está consciente de que a ida

para um Lar é um ponto de viragem,

sem regresso, na vida de uma pessoa

idosa, e essa consciência da

irreversibilidade da

institucionalização é geradora de

angústia. F10 diz que é muito difícil

um filho/a pensar que leva os pais

para um local de onde não

regressarão.

Page 187: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

173

4 . Aquilo ali é mesmo o ponto de passagem para o

outro lado, não há volta a dar, todos os que vão já

não voltam.

4 . O Lar, para F10, simboliza, muito

fortemente, o início do fim, é o ponto

de passagem para a morte, para todos

os idosos, sem exceção.

5 . Foi, foi, foi muito difícil. Se eu não precisasse de

trabalhar, se eu pudesse estar em casa, pronto, se eu

pudesse estar sempre com eles, mas, são muitos

anos, nunca se sabe o tempo e o desgaste que vamos

ter, e às tantas, uma pessoa, aí, sente-se sozinha, não

tendo ninguém que pudesse apoiar, mesmo que, se eu

não precisasse de trabalhar, mesmo o facto de estar

em casa, não sei até quando, eu, psicologicamente e

fisicamente, iria aguentar.

5 . F10 diz que, para ela, foi muito

difícil tomar a decisão e fê-lo por ter

necessidade de trabalhar, por não

poder cuidar os pais como eles

precisavam, mas, logo de seguida,

reconhece que, mesmo que não

trabalhasse, talvez também não

tivesse capacidade física nem

psicológica para prestar esses

cuidados.

6 . Nunca sabemos quando é que é o dia que eles

vão partir (…) Que aquilo ali, apesar de não ser

aquilo que eles acham que é bom mas, nós é que, é

aquilo que lhe podemos dar, pelo menos terem ali

umas condições mínimas necessárias para irem

vivendo…

6 . O Lar, para F10, é (foi) a solução

encontrada, que garante as condições

mínimas para os pais irem vivendo,

não para viverem como gostariam e

mereciam. Esta filha tomou a decisão

de institucionalizar os pais, mas não

consegue aceitar nem considera que

eles sejam (a mãe continua lá)

minimamente felizes. E,

consequentemente, ela também não.

7 . A minha mãe sempre achou que a ida dela para o

lar era forçada pela demência dele. Ela, se fosse ela,

ela não queria, achava que não ia e talvez não

fossem, pelo menos naquela altura, não iam se não,

se não fosse o caso dele estar conforme estava. Pela

minha mãe não ia e, ainda hoje, depois do meu pai

7 . F10 diz que a mãe aceitou a

institucionalização devido à

dependência do marido, que ela

própria não conseguia cuidar, mas de

quem não se queria separar. Se ele

não fosse completamente

Page 188: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

174

partir, eu tenho a sensação que, se eu dissesse à

minha mãe se ela queria voltar pra casa, ela não

olhava para trás.

dependente, não teriam ido para o

Lar, e, por isso, depois da morte do

pai, F10 diz saber que a mãe gostaria

de voltar para a sua casa, que isso lhe

daria uma grande alegria.

8 . Ela voltaria para casa. Ela, ao contrário de …

enquanto viveram na casa deles, com os problemas

de saúde, dela achar que não estavam bem sozinhos,

embora estivessem os dois, mas, se acontecesse

qualquer coisa a ela, porque ela sempre teve mais

problemas de saúde do que ele. Ai! se me acontece

alguma coisa aqui sozinha com o teu pai e não sei

quê e não estamos aqui bem, e a casa é muito… e o

sítio é um bocado isolado, os vizinhos, não temos

assim ninguém aqui ao pé, não estamos bem.

(…) eu sei, eu sinto que ela gostava, que ela não se

importava nada de voltar p’ra casa dela.

8 . F10 diz que a mãe sempre teve

mais problemas de saúde do que o

pai, e que temia viver na aldeia, com

poucos vizinhos. Apesar disso, F10

acha que ela não hesitaria em

regressar a casa.

9 . Hoje já passado, sei lá, pr’ai 10 ou 15 anos de

ter ouvido estas palavras dela e dela estar com 82

anos, ela neste momento, se pudesse voltar à casa

dela, era uma grande alegria, só que não, não! sabe

que não volta, que ela achava que teria condições,

não se importava e se tiver que morrer aqui, se

tivesse que morrer sozinha e conseguia dar a volta,

só que o problema é que não é o morrer, não é a

pessoa ficar, se morrer, se deitar, se não acordar. E

o resto? os problemas, a gente não sabe quando vai

nem da forma que vai, e se ela tiver problemas e

depois? Como é que é? Como é que eu depois trago

de volta p’ro lar?

9 . Mas, sabendo que não volta, nem

sequer fala no assunto, embora a

filha saiba que ela (mãe) se acha com

capacidades para viver sozinha. Diz

que a mãe não se importaria de estar

só, desde que estivesse na sua

própria casa, mesmo que isso

implicasse morrer sozinha. No

entanto, F10 teme, não a morte, mas

o agravamento dos problemas de

saúde que a mãe já tem e que,

quando precisasse de voltar para a

instituição, não houvesse lugar para

ela.

Page 189: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

175

10 . Sinto-me impotente porque, por um lado,

gostava que fosse, gostava de a ver feliz e contente

da vida, porque voltava à casa dela, voltava a ter as

vizinhas com quem, pronto, toda aquela rotina que

ela antigamente tinha. (…) mas não, mas por outro

lado, penso que não, que não há condições, não pode

ser, e então não pode ser, vamos tentando apaziguar

essas coisas.

10 . À pergunta sobre como se sente,

devido à decisão de manter a mãe

institucionalizada, F10 diz sentir-se

impotente, porque gostaria de ver a

mãe feliz e não é capaz lhe

proporcionar essa felicidade. Então,

diz que vai rodeando a questão, vai

tentando “apaziguar” a angústia.

11 . Mas ao fim e ao cabo, como eu costumo dizer,

eu ainda vou lá todos os dias, eu ainda passo lá, p’ra

já porque lá trabalho, e mesmo não trabalhando

(feriado ou fim de semana) eu vou lá mesmo todos os

dias. Só se eu estiver ausente é que não vou, desde

que eu esteja em casa, vou sempre. Às vezes penso

que não havia necessidade, mas eu tenho a minha

vida, tenho o dia mais ocupado, mas a minha mãe

está sempre à espera.

E - Ela está sempre à sua espera?

F10 - Sempre, sempre, sempre. Até o facto de ser

feriado, ser fim de semana, o saber que não me vê

com tanta frequência, (porque eu passo por lá às 9,

ao meio dia e meia, depois de almoço e ao fim da

tarde, antes de sair), portanto ela sabe que se for fim

de semana ou feriado, só me vê uma vez. E ela diz” é

bom p’ra ti o feriado, é bom p’ra ti o fim de semana,

mas eu estranho”.

11 . F10 diz que visita a mãe

diariamente, porque trabalha na

instituição, mas mesmo nos fins de

semana, vai também, já que a mãe

espera sempre as suas visitas. Diz

que, nos dias de trabalho vai ver a

mãe 4 vezes por dia e nos fins de

semana, só uma vez, e a mãe faz-lhe

sentir a diferença, dizendo-lhe que

estranha a sua “ausência”, e F10

tenta amenizar a situação, indo todos

os dias.

12 . Mas até o meu pai, na demência dele, tinha

aqueles dias em que ele estava mais lúcido, lembro-

me de, nas férias, não me ver com a frequência de

tantas vezes ao longo do dia, ali durante os dias de

férias só me via uma vez por dia, um dia que eu

12 . E acrescenta que mesmo o pai,

embora tivesse pouca noção do

tempo, sentia a diferença quando, nas

férias, ela só ia uma vez por dia.

Embora ele “não tivesse noção do

Page 190: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

176

cheguei e ele me disse “onde tens andado, ao tempo

que não te via?”. Não era o tempo, ele não me via as

vezes, tantas vezes como costumava ver, porque ele

não tinha noção do tempo, não era o tempo, era que

não me via com tanta frequência.

tempo”, sentia a menor frequência

das visitas.

13 . E pronto, mas é por ele, é por eles que estão, é

pelos outros que estão ali, que me conhecem do dia-

a-dia, e que noto que só o facto de nós dizermos “olá

bom dia” “olá boa tarde” até logo, até amanhã” ,

vê-se que ter alguém que lhes diga “bom dia” ter

alguém que lhes fale diretamente para eles , alguns

estão à espera que lhes diga” então, então hoje..?”,

porque muitos deles,… quando não há filhos, já não

há aquela ligação…há os sobrinhos, um irmão, um

primo, que vão lá de vez em quando, mas os filhos…é

parte de nós, não conseguimos desligar, é impossível.

Assim como os filhos para os pais é os pais para os

filhos, não se desliga, há ali um cordão, há ali um elo

que nunca se corta.

13 . Diz que mantém essa

regularidade de visitas, porque se

preocupa muito com os pais e com

todos os idosos institucionalizados, e

porque sabe que muitos não têm

filhos, sendo diferente ser visitado

por sobrinhos ou amigos. Diz F10

que a relação pais/filhos (a sua

relação com os seus) é um elo único

e que, aqueles que o não têm, estão

muito mais indefesos e necessitam

mais da visita, da palavra, do

interesse de quem lá vai. Para esta

mulher, a compaixão é uma questão

importante, ter olhos para os mais

fragilizados é fundamental, e não

consegue olhar sem ver o sofrimento

e a solidão nas expressões dos idosos

institucionalizados, sem ver esse

sofrimento nos olhos da sua mãe.

14 . No primeiro ano que fui p’ra lá trabalhar, eu

chorei, no dia que fui p’ra casa, no dia 24, de ver

quantos ficaram lá naquela noite. Eu só pensava”

não há ninguém que os leve? Aqueles que tinham

filhos, porque os que não tinham, pronto, a família

tinha lá a outra família mais chegada, mas os que

tinham filhos e não havia tempo, porque aquelas

14 . F10 conta que o 1º Natal, depois

de começar a trabalhar naquela

instituição, foi particularmente

doloroso para si, porque verificou

que muitos idosos não tinham visitas

das famílias nessa época festiva nem

saíam do Lar, levados por familiares.

Page 191: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

177

pessoas que têm demência e não sabem se é Natal,

não sabem nada, não conhecem sequer os familiares

já, esses, por um lado, nós temos pena, mas não os

vemos sofrer, porque p’ra eles é tudo igual, os dias

são iguais e as pessoas acabam por ser iguais.

Mas, naquele primeiro Natal, quando eu saí, e

aqueles que iam saindo ao longo do dia, via-se a

alegria na cara deles, e depois ver aqueles que iam

ficando, que não tinham ninguém, ninguém que os

levasse, ninguém que os tirasse dali um bocadinho.

Eu chorei e diziam-me “vê-se mesmo que não estás

habituada a isto”. “Não estou habituada nem é uma

coisa a que qualquer pessoa se habitue, porque

qualquer pessoa que olhe (nem que eu esteja aqui o

tempo que estiver), naquele ano custou-me mais

porque nunca me tinha apercebido, nunca tinha

estado, nunca tinha lidado, nunca tinha estado num

Lar sequer, não fazia bem ideia da realidade das

coisas.

Conta que chorou muito, ao ver a

tristeza que essas pessoas deixavam

transparecer, quando viam os outros

ir saindo, e diz que nunca tinha

percebido a realidade da vida dos

idosos num Lar, muito mais triste do

que imaginara.

15 . Mas quando vêm estes dias e se vê que o outro

companheiro do lado tem alguém que o leva e eu não

tenho ninguém, vê-se uma tristeza, vê-se no olhar,

vê-se, e dava vontade de os levar todos p’ra casa.

Mas, como não se podem levar todos, levam-se os

nossos, levava os meus (sempre, sempre), agora levo

a minha mãe. E noutras ocasiões, claro! Sou

incapaz, sempre assim foi, quando alguém faz anos…

15 . A situação a que assistiu

provocou-lhe um desejo impossível

de concretizar, de levar, para a sua

casa, todos os idosos sós, nessa noite

de Natal. Para ela, é impensável

deixar lá os pais (agora só a mãe)

nessa época, que considera,

obrigatoriamente, de reunião da

família, para além de outros

momentos. No entanto, não fala,

claramente, de levar os pais (ou a

mãe) a sair do Lar, com frequência.

Page 192: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

178

16 . Ia buscá-los sempre para a minha casa. E eu

costumo dizer que custa-me mais este Natal, este

ano, porque foi sempre na minha casa. Eu nunca saí

da minha casa e todos vieram para a minha casa. E

este ano é o primeiro Natal que falta alguém. Mas é

uma coisa que eu sempre disse “vai chegar um ano

em já não estamos todos. Vai chegar, é mesmo assim,

e quanto mais o tempo passa e vemos que eles vão

ficando mais velhos e mais doentes, está sempre

aquele medo e estamos sempre desejando que o

Natal chegue e passe depressa. Porque já passou, é

um alívio, até p’ra o ano! Um ano é muito tempo,

será que no próximo ano ainda estaremos todos?

16 . F10 diz que sempre passou o

Natal com os pais, na sua própria

casa, desde que casou. Os pais e a

sogra estiveram sempre presentes, e

não concebe que seja de outra forma.

Ela não sai de casa, mas recebe a

família, tal como os pais faziam

quando ela era solteira. É uma

tradição que se mantém, que tem de

se manter, embora seja vivida, por

F10, com apreensão e ansiedade, já

que se interroga sempre se, no

próximo ano, ainda continuarão

todos vivos. O Natal é, pois, vivido

com medo, esperando, ansiosamente

que chegue e que acabe, só

respirando, de alívio, no final das

festas, porque nada aconteceu que

perturbasse a rotina que se repete,

anualmente. E este ano já não estão

todos, concretizou-se o grande receio

desta mulher.

17 . E - Porque é que é tão importante para si o

Natal?

F10 - Porque é quando nos juntávamos todos,

sempre todos, os meus pais, que não tenho irmãos,

não tenho mais ninguém, juntava-se a minha sogra.

Não quer dizer que não acontecesse, noutras alturas

do ano, juntarmo-nos todos na mesma, mas o Natal,

o Natal sempre foi uma altura…até porque os meus

pais sempre gostaram dos Natal. Sempre foi uma

época muito… mesmo quando eu era pequena, não

17 . À pergunta “porque é o natal tão

importante, para si,” responde que

sempre foi comemorado, em casa dos

pais, embora fossem só os 3, embora

não houvesse grandes prendas, havia

algo de mágico, havia doces, havia a

expetativa de que o sapatinho posto,

na véspera de Natal, na chaminé,

contivesse, no dia seguinte, alguma

surpresa boa. E a certeza de que

Page 193: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

179

havia brinquedos, não havia nada dessas coisas, mas

eles tinham sempre o cuidado de…eram chocolates,

havia aquela magia do Natal, sempre lá em casa

havia aquela magia do Natal. Púnhamos os

sapatinhos à chaminé e, mesmo que estivéssemos só

os três (quando era mais pequena, o Natal era

passado em família, mas a família eramos só os três

(…) mas era sempre… não era um dia igual aos

outros. Mesmo só os 3, não era igual, era Natal, era

diferente…o Natal é especial, tem de ser, nunca

ninguém vai deixar passar o Natal assim como um

dia igual aos outros.

assim seria, tornava especial essa

noite, carregada de afetos.

Acrescenta que o Natal tem de ser

especial, nunca é um dia igual aos

outros, ninguém passa o Natal como

os restantes dias. E, para ela, é

imperdoável que o façam

18 . O facto, talvez, de ser filha única, sempre fomos

muito chegados, pronto, tem a ver, se calhar com

tudo. Às vezes, mesmo na minha casa, tem-se um

conceito de família, que eu acho que se perde em

muitas casas. As pessoas estarem presentes, a família

estar presente à hora da refeição, não é um chega,

janta às sete, o outro chega mais tarde, janta às oito.

A mesa, em certas casas, está posta e cada um vai

chegando e vai comendo, e eu sempre tive aquele

conceito de família e de estarmos juntos e de

partilhar. Sempre. Não sei se foi porque foi assim

que fui educada, sempre vivi assim com os meus pais,

continuei assim na minha casa e tentei sempre trazê-

los.

18 . F10 refere que a sua relação com

os pais é harmoniosa e pacífica, e

que transmitiu, aos filhos, essa forma

de estar em família. Para ela, a

reunião familiar às refeições é

importante e não admite que cada um

se sente à mesa quando lhe apetece.

É uma regra que diz ter aprendido

com os pais e ensinado aos filhos.

Considera a hora das refeições um

momento de partilha familiar muito

importante.

19 . E sei que, quando eu casei, o facto de sair, vir

para 6 km, sei que lhes custou muito, e sei, e nós

depois damos o valor, o facto de a minha filha, este

ano, ir para a faculdade (e foi para a faculdade), o

facto de sair e vir de vez em quando, nós depois

19 . Relaciona o funcionamento

familiar com o facto de ter deixado

os pais quando se casou e foi viver

para outra localidade, a 6 km. Sabe

que aos pais lhes custou muito essa

separação, mas só compreendeu isso,

Page 194: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

180

pensamos o que é que foi quando nós saímos.

agora, que a filha foi para a

universidade e só está presente,

esporadicamente. É um paralelo que

F10 traça e que a faz sofrer por si e

pelos seus pais.

20 . Na altura, na percebi, embora achasse, mas

sentir, sentir, não senti. Eu sabia que lhes custava,

mas pronto, custou, custou, mas eu vinha, eu casei,

tinha a minha casa,…mas agora que a gente sente na

pele, voltando atrás, vê que tinha que lhes custar.

Eles também não tinham mais ninguém, e o facto de

eu estar perto…(…) Imagine o que era eu ter saído

para Lisboa, para o estrangeiro. É assim, hoje eu

penso, era uma coisa que eu até gostava, de ter

saído, ter emigrado, por exemplo. Podia ter sido uma

coisa que eu até gostaria de ter feito, mas nunca o

faria, pelos meus pais.

20 . Diz e lamenta não ter percebido,

então, o que os pais sentiram, porque

eles não tinham mais ninguém. E,

por esse motivo, nunca se teria

atrevido a emigrar, sonho que

acalentou, mas que se proibiu de

cumprir, para não abandonar os pais.

21 . A minha vida sempre foi um bocado

condicionada por eles. Sempre as minhas atitudes e

as minhas decisões foram tomadas, muitas vezes, em

relação a eles, em função deles, do bem-estar deles,

das opiniões e dos sentimentos. O facto de eu saber

que, às vezes, por exemplo, durante muitos anos,

irmos às festas da terra. Aquilo a mim já não me

dizia nada, o facto de ir. Mas eu sabia que p’ra eles,

nós tínhamos que ir, tínhamos que almoçar, tínhamos

que jantar, tínhamos que estar lá. Naqueles dias

tínhamos que estar! E então tínhamos que ir! Em

função deles! Viver em função deles porque eles

também, muitas vezes, viveram em função de nós…

21 . F10 diz que as suas decisões

sempre foram tomadas em função do

bem-estar dos pais, das suas opiniões

e sentimentos, “sacrificando-se” ela

própria, ao fazer coisas que não lhe

davam prazer, mas de que os pais

gostavam. Se qualquer ritual era

importante para eles, ela participava,

para não os desiludir, vivia em

função deles porque também eles

viveram em função dos filhos.

22 . Eu tive um irmão. Faleceu com oito anos 22 . Aqui revela que teve um

Page 195: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

181

(pausa) quando eu tinha 9 meses. E sempre conheci a

minha mãe, quando eu era mais pequena, sempre, o

meu irmão, apesar de eu não ter, não me lembro,

com nove meses, mas durante muito tempo, durante a

minha infância, os primeiros anos, eu parecia que eu

tinha vivido com ele, porque a minha mãe sempre

falava dele, sempre guardou coisas dele, e ainda hoje

ela fala muito nele, ainda hoje ela acha que, se ele cá

estivesse, as coisas também poderiam ser um pouco

diferentes. Eu lembro-me de ela falar, falou muito

nele, ele sempre esteve muito presente, apesar de não

estar, sempre esteve muito presente,…e pronto, e

sempre fui habituada a ouvir histórias do que era, de

como foram os meus primeiros meses.

irmão…que morreu aos oito anos,

quando ela tinha 9 meses, A mãe de

F10 guarda, até hoje, objetos e

roupas do filho perdido, como algo

de sagrado. F10 viveu à sombra

desse irmão, que não conheceu,

dizendo que, durante a sua infância,

ele quase lhe parecia real, tal era a

fantasia da mãe, que idealizou esse

filho perfeito.

23 . Se calhar, o voltar para casa, se calhar,

entretanto, pensaria que hoje vou passar o dia à casa

da minha filha, amanhã vou passar o dia à casa do

meu filho, se ele cá estivesse…

23 . Esse irmão morto ainda hoje é

referido pela mãe, como a hipótese

“falhada” de ela poder não estar

institucionalizada, imaginando-se a

visitá-lo, e à filha, alternadamente.

24 . Eu tinha nove meses. A minha mãe esqueceu-se

um pouco de mim, que eu acho normal, aquilo

cons???., o desgosto consumiu-a de tal forma, que,

às vezes as pessoas dizerem “ai, só tinha um filho, se

tivesse outro…!”. Mas naquele momento, o facto de

ter outro filho não vai…impossível, pelo menos

naquilo que eu sempre soube deles, da minha mãe, o

facto de eu cá estar, não fez com que as coisas, com

que o desgosto fosse menor. Se eu cá não estivesse

seria, talvez, tudo da mesma forma, porque ele, ela

despegou-se ali um bocado de mim, porque ela, o

24 . F10 conta que a mãe, submersa

na dor da perda do filho,

negligenciou a filha bebé, não

conseguindo cuidá-la e tendo que

recorrer a uma prima para o fazer.

F10 não se permite criticar a mãe,

antes pelo contrário, diz que

compreende muito bem o que

aconteceu porque sempre lhe foi

apresentada a perda do irmão como

uma tragédia, da qual a mãe nunca se

Page 196: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

182

sentido dela era só nele. Ela centralizou ali uns anos

da vida dela só nas lembranças do filho. Tanto que,

sempre ela me disse que tinha uma prima que foi

p’ra casa para cuidar de mim, porque ela,

simplesmente, não estava bem, ela não tinha

capacidade para cuidar de mim!

chegou a recompor. No fundo, a sua

existência, naquele momento, era

irrelevante, diante da dor da mãe, não

servindo para a mitigar.

Pode-se observar, na voz e nas

palavras desta mulher, a dor de

sentir-se sempre em 2º lugar, mas

desculpabilizando a mãe e,

certamente, culpando-se a si própria

por ser suficiente para os pais.

25 . E eu sempre me senti que eu era a

única…pronto, era o único apoio que eles tinham! E

sempre tentei fazer…pronto, não fazemos sempre

tudo aquilo que eles esperam de nós, ninguém é

perfeito!

25 . F10, agora com 50 anos, sempre

sentiu que tinha que ser perfeita para

colmatar a falta do filho que os pais

perderam, sempre sentiu que não

podia falhar em nada, porque era o

único ponto de apoio que restava aos

pais. Mas não se sente perfeita…

26 . É que o facto de saber que eles passaram por

muito, o resto da vida, porque aquilo não…não…a

perda de um filho não se…sei lá! Não quero nem

pensar! Às vezes penso…só quem passa! São coisas

que não se conseguem imaginar, mas o desgosto

deles, e eu ainda hoje sinto a falta e penso muitas

vezes se eu tivesse aquele irmão, também tudo seria

diferente. As decisões que tenho que tomar em

relação aos meus pais, não tinha que as tomar

sozinha. Havia sempre alguém que me dissesse “se

calhar fazemos assim, podemos fazer de outra forma.

(…) talvez, quando eles foram para o Lar, pudesse

ser também diferente, talvez não tivessem ido logo, se

tivesse o apoio de um irmão que me pudesse ter

26 . A filha carrega o peso da morte

do irmão e diz pensar que, talvez, os

pais não tivessem que ter sido

institucionalizados, se ele fosse vivo.

Pelo menos, ela (filha) não teria que

decidir tudo sozinha, não teria que

assumir, sozinha, a responsabilidade.

Page 197: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

183

ajudado!

27 . A minha mãe, está sempre a falar “se ele cá

estivesse…”, pois, mas não está! (…) ela conta e

está-me sempre a contar como é que foi quando eu

nasci. O que é que ele dizia, como ele era carinhoso.

Ainda agora, noutro dia, quando íamos a É., como

nasci lá, ela conta que, quando ia lá ver-me, com o

meu pai, o que ele dizia, chegava lá e dizia “mãe, a

nossa menina é a menina mais linda”. E, pronto, e

sempre tudo assim muito carinhoso, a minha mãe diz

que ele era muito adulto, muito responsável, e que

quando eu nasci foi uma alegria, uma coisa assim,

uma grande alegria para depois…foi uma grande

alegria que só durou nove meses.

27 . A mãe de F10 continua a

contribuir para fantasiar esse filho

perdido, apresentando-o à filha,

como a criança perfeita, responsável

(aos oito anos), carinhoso, sonhando

a sua existência em adulto, o que

contribui para diminuir o papel da

filha, que está viva, presente e que

tenta ser “pelos dois”, por ela própria

e pelo irmão morto.

28 . Mas também se poderia por a hipótese que ele

cá estivesse e que não se pudessem dividir. E que as

coisas fossem complicadas como eu sei que há outros

casos em que são muitos e são complicados, porque

cada um tem a sua ideia, e um acha que devia ser

feito de uma forma e outro de outra. Não sei como é

que seria, mas, de todas as formas, o melhor seria

que ele cá estivesse.

28 . F10 tenta racionalizar a questão,

imaginando que, mesmo com o

irmão vivo, a situação atual poderia

não ser melhor, pois há muitos casos

em que os irmãos não se entendem

sobre as decisões a tomar, mas não se

consegue libertar da fantasia da falta

que ele deixou.

29 . Eu lembro-me, desde sempre e, às vezes, até

parece que o conheci. Parece porque sempre foi tudo

muito falado, sempre…Recordo-me de, durante

muito tempo, a minha mãe guardar as coisas dele da

escola, tudo, os livros, os cadernos, a mala, tudo!

Roupas…e era como se também o tivesse conhecido.

Era como, não sei, era como se ele estivesse

presente.

29 . F10 diz, tristemente, que a

presença do irmão sempre esteve lá,

nas descrições da mãe e nos objetos

guardados. Como um fantasma que a

tem acompanhado toda a vida,

recordando-lhe, constantemente, a

sua imperfeição, desvalorizando

todos os seus esforços. Não é

Page 198: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

184

possível competir com um morto

idealizado.

30 . Portanto, são coisas que, se nós pensarmos, lá

está, quando eles vão para o Lar, quando eles estão

no fim da vida, tudo aquilo que eles passaram, tudo,

lá está, é um mal necessário! Se a gente pudesse,

faria as coisas diferentes, faria tudo com que eles

estivessem bem! Se eu pudesse fazer tudo à maneira

deles, mas isso também já vai das pessoas, eu sou

assim por natureza, eu posso-me sacrificar em

função dos outros, e sempre fui assim, posso eu ficar

um bocadinho mais mal, mas vivo em função das

outras pessoas. Vivo muito em função dos outros e

isso reflete-se com os meus pais, tem-se refletido

sempre.

30 . Então, diz, no momento de

decidir a institucionalização, esse

sofrimento dos pais pesa ainda mais,

fazendo com que ela veja o Lar como

o “mal necessário”. Diz sempre ter

vivido para os pais, para as outras

pessoas, mesmo que tenha de se

sacrificar a ela própria. E essa

vivência tem-se refletido, sempre, na

relação com os pais.

31 . No Lar, talvez não! Não por ele, mas por ela!

Sei que lhes custou muito! Não só o facto de estar no

Lar porque antes de estar no Lar, eles já saíram de

casa, já mudaram de casa deles para poderem estar

mais perto. E aí foi o primeiro choque. É o facto de

terem que sair da casa deles, do ambiente deles, do

meio, porque num meio pequeno, em que os vizinhos

é uma família, sempre viveram ali, uma vida inteira,

sempre tiveram aquelas rotinas, uma vida inteira, e

quando se corta, ao fim, não digo da vida toda, mas

dos últimos vinte ou trinta anos, é uma rotina diária,

em que tudo se passa com as mesmas pessoas, nos

mesmos sítios, e de repente ter que se cortar com

isso, não deve ser fácil.

31 . F10 afirma que, se pudesse fazer

com que os pais fossem felizes,

principalmente a mãe, não os teria

institucionalizado, não os teria

retirado do seu ambiente, da casa e

da proximidade dos vizinhos que

sempre conheceram, das relações de

amizade que criaram ao longo da

vida. Principalmente, na velhice, ela

sabe que as mudanças são definitivas

e isso é muito mais difícil de aceitar,

e provoca uma dor muito maior,

embora tente, sempre, desvalorizar a

situação perante os pais.

32 . É que, depois quando se está no final, pensa-se

que aquilo de onde se saiu, já não voltamos lá. Uma

32 . A filha faz aqui a comparação

entre as mudanças, para os novos e

Page 199: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

185

coisa é a gente sair, agora mudou de casa, entretanto

vai viver um ano para aqui e depois pode ser que

volte. Mas quando se está no fim, no fim, que

sabemos que saem, mas o sair é um sair que já não

tem volta. E isso é que dói, dói p’ra nós que, às

vezes, tentamos não mostrar que dói, que estamos a

ver as coisas que eles estão a ver, tentamos dar a

volta, porque é assim e porque é assado, mas

sabemos que aquilo já não é, já não há volta.

para os velhos, e diz que, se custa aos

primeiros fazê-las, embora haja

sempre a hipótese de voltar, aos

idosos é muito mais difícil porque

são as últimas mudanças em vida.

Apesar de tentar disfarçar, sente uma

grande dor e não consegue aceitar a

consciência da finitude.

33 . O primeiro dia, aquele primeiro dia em que eles

ficam no Lar, o ter que sair, a primeira vez que eles

lá ficam…isto é como quando se deixa, é quase, não

é a mesma coisa, às vezes dizemos que as pessoas

também deixam os filhos no infantário porque vão

trabalhar, muitas vezes eles ficam lá a chorar, os

pais vêm-se embora e eles ficam a chorar, mas não é

a mesma coisa. Porque eu também já deixei filhos na

escola, nunca foram muito de ficar a chorar, também

não passei por isso, mas não é a mesma coisa. Eles

brincam, eles choram ali naquela hora, eles brincam

e riem e tudo mais. E tudo passa. Mas nesta idade,

aquilo que eles pensam é “eu estou aqui e amanhã

estou aqui, até que, até que Deus queira”, como eles

dizem. É tudo muito diferente! Muito! Não tem nada

a ver!

34 . Compara o 1ºdia em que levou

os pais par o Lar ao 1º dia de

infantário dos filhos, para concluir

que é tudo diferente, porque, no

primeiro caso, as crianças choram

um pouco, mas depois, brincam e

riem porque sabem que a mãe voltará

para os levar, e o infantário é o

primeiro de muitos espaços de

separação pais/filhos, enquanto o Lar

de Idosos é o último sítio onde se

deixam os pais. Não há esperança,

para eles, de sair de lá, nem, para os

filhos, de os voltar a ver autónomos.

É “até que Deus queira”, ou seja, até

à morte.

35 . E quando nós olhamos e sabemos que aquilo é o

que nos espera um dia! Mas é aquilo que nos espera

um dia, mas, como eu costumo dizer, e quando dizem

“ah, mas vão e vão, e eu estou lá e sei como é que as

coisas funcionam e aqui são bem tratados”, digo

35 . F10, olhando para os pais, vê-se,

a si própria, no futuro, na mesma

situação (institucionalizada). E diz

que, mesmo que os idosos sejam bem

cuidados, nada é igual à sua casa: são

Page 200: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

186

assim, “mas não há nada que chegue à casa, não há

nada que chegue à nossa casa. Eu compreendo-os

perfeitamente. Ali obedece-se a horários, é para

tomar o pequeno almoço, come-se aquilo que se põe

na mesa, já não é aquilo que eu tenho vontade de

comer e vou cozinhar. É, eu tenho fome, tenho que

comer aquilo que lá está. Eu tenho que me levantar

aquela hora porque aquela hora são horas de tomar

o pequeno almoço. Eu tenho que estar na mesa

aquela hora porque aquela hora é hora do almoço, é

hora do lanche, é hora do jantar. Nós, na nossa casa,

embora tenhamos, mais ou menos tudo com horários,

mas é diferente. Por muito, por muito velhinha que

seja a nossa casa, é o nosso canto. É a nossa casa!

E quando nós saímos da nossa casa, nessa idade, é a

ponte para o outro lado. É uma ponte de passagem

para o outro lado. Pode ser uma ponte mais

pequena, uma ponte maior, percorre-se mais

devagar, mais depressa, mas ali é mesmo a ponte

para o outro lado. Não há volta a dar!

os horários, as regras, a alimentação,

tudo é igual para todos, nada os

individualiza. É (e ela repete muito)

um local de passagem para o outro

lado, é uma ponte (mais ou menos

longa) no final da qual está a morte.

A imagem do Lar como um local de

espera da morte persegue esta filha,

que vive amargurada com a decisão

que acha que teve que tomar, mas da

qual se culpa, porque a

institucionalização representa uma

atitude dos filhos (dela, filha) no

sentido de apressar o final da vida

dos pais.

36 . Dói porque, quando lá os deixamos, pensamos.

Se estiverem em casa, também sabemos que aquele

dia vai chegar, mas quando ali os deixamos,

pensamos mais, pensa-se mais, que ali é como se os

estivéssemos a por no início da ponte. E que, agora é

atravessar a ponte. A ponte pode demorar mais,

menos, mas a ponte está lá, e há-de chegar o fim da

ponte. E há-de chegar aquele dia.

36 . F10 fala da dor sentida quando

institucionalizou os pais e diz que

esse momento marcou o princípio do

fim. Embora sabendo que, em casa,

também se morre, e ninguém sabe

quando, a ida para um Lar é o início

da contagem decrescente.

37 . Quem os deixa… (e depois há situações…e 37 . A incerteza sobre o tempo vida

Page 201: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

187

quando nós comparamos e quando sabemos, aquelas

situações em que se deixam lá porque já não os

podem ter em casa, porque, lá está, as condições de

saúde exigem todos os cuidados e os filhos não

podem) e saber que há filhos que lhes custa muito,

que os deixam lá, e voltam com o coração muito

apertado, e que, depois, há certos casos em que

aquela ponte não foi uma ponte, foi um degrau.

Passada ali uma semana, duas semanas…E já falei

com pessoas que lhes dói tanto pensarem” se eu

soubesse que demorava tão pouco, nunca tinha

tomado esta decisão”. Porque demorou tão pouco,

não era necessário,

da pessoa institucionalizada ainda é

mais perturbadora, para F10, que

antecipa a culpa, caso o idoso/a viva

pouco tempo. Isso faz aumentar a

culpa do filho/a, que não teria

tomada a decisão se o soubesse,

antecipadamente. Faz aumentar a sua

culpa.

38 . Ainda por cima, lá está, porque, por muito que

nos custe a demência dos nossos pais, p’ra eles, p’ra

eles é muito melhor do que aqueles que estão

conscientes. Porque, p’ra eles, é igual o estar ali,

desde que não os magoem, fisicamente, porque

psicologicamente já nada os magoa. Gostam de nos

ver, mas se não nos virem também não ficam tristes e

a chorar, à espera, com ansiedade de nos verem.

Quando eles estão conscientes, que lá os deixamos e

que eles pensam no sítio onde ficaram, e pensam de

dia e pensam de noite e pensam em tudo, isso dói

muito mais, dói muito mais. Eu, às vezes, dizia, o

meu pai, já não me custa, ele não diz “estou aqui até

quando?”

38 . F10 faz aqui uma pequena

distinção entre o pai, que sofria de

demência, e a mãe, que está lúcida,

dizendo que o primeiro sofreu muito

menos a institucionalização porque

nem tinha noção do espaço onde

estava, enquanto a mãe sofre mais,

pois apercebe-se de tudo. Nas suas

palavras, está presente uma angústia

muito maior relativamente à mãe,

que pensa, raciocina e pode julgar a

decisão da filha. E esse julgamento é,

para F10, uma enorme fonte de dor.

A demência do pai poderia servir

para atenuar a dor, considerando a

doença mental como justificativo

para a institucionalização, mas não o

estado de lucidez da mãe e a sua

Page 202: Uma leitura analítica da culpabilidade em filhos de idosos ... · brilhantes. À Marina, ao Cardoso, à Sandra, à Dr.ª Maria João, e a todos os que ³aborreci com ... pai ou a

A CULPA ESCONDIDA – UMA LEITURA ANALÍTICA DA CULPABILIDADE EM FILHOS DE

IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

188

relativa autonomia.

39 . São situações, são decisões que temos que

tomar e são coisas muito difíceis. Lá está, e depois

depende, depende dos filhos, depende…há pessoas

mais…que as decisões são tomadas mais de ânimo

leve, eu vejo pessoas que não…, ou que têm formas

diferentes de expressar os sentimentos, mas às vezes

também digo “mas que sentimentos são esses?”.

Porque aquilo que nos toca cá no fundo, por mais

que se queira, nós não conseguimos disfarçar, aquilo

atormenta, não conseguimos mostrar que as coisas

são diferentes. Queremos, de alguma maneira, mas

não convence. É difícil. É difícil mesmo.

39 . F 10 diz que lhe dói muito ter

institucionalizado os pais, porque

sabia que eles não aprovaram a

decisão, e, embora diga que não

tomou a decisão de ânimo leve, ao

contrário de muitas pessoas, diz que

ponderou muito bem, mas o tormento

continua lá, a culpa não reparada.

No seu discurso, está patente a

comparação crítica entre si própria e

os filhos que tomam a decisão de

institucionalizar os pais, de forma

pouco ponderada. E esta ponderação

agrava o sofrimento e a

culpabilidade.