Uma Nova Antropologia Unidade Critica e Arranjo Interdisciplinar Na Dialetica Do Esclarecimento 9809

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teoria crítica, filosofia

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    Uma nova antropologia. Unidade crtica e arranjo interdisciplinar na Dialtica do Esclarecimento

    Marcos Nobre

    Professor de Filosofia na Unicamp e Coordenador do Ncleo de Direito e Democracia do Cebrap

    Marcos Nobre e Inara Luisa Marin

    Doutora em Psicanlise e Psicopatologia pela Universit Paris Diderot Paris 7

    Resumo: Entre muitos outros elemen-tos, o diagnstico de tempo que subjaz Dialtica do esclarecimento aponta-va para uma perda da centralidade da Economia Poltica no arranjo interdis-ciplinar da Teoria Crtica, o que exigiu uma renovao do prprio conceito de crtica. Sob esse aspecto, a principal consequncia foi a emergncia de uma antropologia peculiar entendida como transformao de elementos psicanalti-cos em termos de teoria social , colo-cada na base de uma nova concepo de interdisciplinaridade. Em um nico artigo, no certamente possvel re-construir esse modelo crtico, mesmo em suas linhas mais gerais, mas pelo menos possvel delinear alguns de seus elementos principais e suas relaes tanto com o novo arranjo interdisciplinar e com uma nova concepo de crtica.

    Palavras-chave: Teoria Crtica; Dialtica do esclarecimento; interdisciplinaridade; crtica; Freud; antropologia.

    Abstract: Among many other elements, the diagnosis of time underlying the Dialectic of Enlightenment pointed to the lost of centrality of political economy in the interdisciplinary arrangement of Critical Theory, implying also the need for a new basis for critique itself. Under this aspect the main consequence was the emergence of a peculiar anthropology understood in terms of a transformation of psychoanalytical elements into a social theory that was put on the basis of a new conception of interdisciplinarity. In a single paper it is certainly not possible to reconstruct this new critical model even in its most general features, but it is at least possible to advance some of its main elements and stress their relation both to the new interdisciplinary arrangement and to the new conception of critique.

    Keywords: Critical Theory; Dialect of Enlightenment; interdisciplinarity; critique; Freud; anthropology.

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    provvel que o maior desconforto na leitura da Dialtica do es-clarecimento esteja no chocante contraste entre a organizao rasgada-mente ensastica do livro e o carter universalmente peremptrio de suas teses. O livro abriga formas estilsticas muito diversas: uma ex-posio geral seguida de dois excursos, dois estudos de caso (in-dstria cultural e antissemitismo) e uma srie de notas e esboos. No se trata de um conjunto de textos redutveis a uma organizao segundo captulos, mas, de outra parte, tampouco se pode compre-ender o volume como uma coleo de ensaios dispersos, enfeixados segundo um fio condutor mais ou menos arbitrrio. Ao mesmo tempo, o prprio subttulo do livro (Fragmentos filosficos) j alerta para o equ-voco de se pretender encontrar uma organizao sistemtica acabada de seus desenvolvimentos tericos1.

    Mas, alm desse, h ainda um outro desconforto, que consiste na utilizao de pensadores e obras no apenas dspares, mas inconciliveis entre si. Acresce que essa utilizao tambm no obedece a qualquer critrio de coerncia interna das obras utilizadas: Horkheimer e Adorno retiram ideias e conceitos de seus respectivos contextos e os utilizam segundo os interesses de sua prpria argumentao. possvel que esse segundo desconforto possa servir melhor como fio condutor para exa-minar com maior profundidade o problema da unidade crtica da Dial-tica do esclarecimento. E sua elucidao pode bem explicar em grande medida o desconforto digamos estilstico do livro.

    nesse sentido que se coloca aqui inicialmente o problema da unidade crtica da Dialtica do esclarecimento. Afinal, qual seria a chave

    1. Assim como o prprio Prefcio, que enuncia: Embora tivssemos observado h muitos anos que, na atividade cientfica moderna, o preo das grandes in-venes a runa progressiva da cultura terica, acreditvamos de qualquer modo que podamos nos dedicar a ela na medida em que fosse possvel limitar nosso desempenho crtica ou ao desenvolvimento de temticas especializadas. Nosso desempenho deveria restringir-se, pelo menos tematicamente, s disci-plinas tradicionais: sociologia, psicologia e teoria do conhecimento. Os fragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos de abandonar aquela confiana, ADORNO, T. W./HORKHEIMER, M. Dialtica do Esclare-cimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. p. 11, doravante abreviado DE. HORKHEIMER, M. Gesammelte Schriften, vol. 5. Frankfurt/Main: Fischer, 1987, p. 16. Doravante abreviado DA. Sobre esse ponto, ver tambm NOBRE, M. Lukcs e os limites da reificao. Um estudo sobre Histria e conscincia de classe. So Paulo: Editora 34, 2001, especialmente as Consideraes Finais.

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    terica que permitiria compatibilizar referncias to dspares? Qual chave permitiria entender a organizao e a estruturao peculiares desse livro? Pois patente que se encontram repetidas ao longo do livro teses e linhas de argumentao extremamente fortes e exigentes. Responder a essas perguntas parece exigir, por sua vez, que se enfren-te pelo menos os seguintes problemas. Em primeiro lugar: que tipo de consequncias tem a Dialtica do Esclarecimento para a ideia de materia-lismo interdisciplinar formulada por Horkheimer nos seus escritos dos anos 1930? Ou, formulado de maneira ainda mais geral: existe uma lgica de arranjos disciplinares que decorra diretamente da proposta interdisciplinar que caracteriza e distingue a Teoria Crtica de outras formulaes? Em segundo lugar: que tipo especfico de fundamentao da crtica se encontra presente na Dialtica do Esclarecimento? Pretende-se aqui no mais do que formular de maneira rigorosa uma hiptese de leitura que, devidamente desenvolvida, seria capaz de dar conta dessas perguntas.

    So perguntas que pressupem haver uma fundamentao para a crtica na Dialtica do Esclarecimento, ao contrrio da mera ideia de que no possvel fundamentar um modelo de crtica apresentado expli-citamente como aportico por Horkheimer e por Adorno. A formu-lao mesma das perguntas acima pressupe que h uma relao nti-ma entre esse modelo de crtica e a prpria constelao de disciplinas que caracteriza a obra. Isso implica tambm dizer que, do ponto de vista da constelao de disciplinas presente no ensaio seminal Teoria Tradicional e Teoria Crtica, o modelo crtico2 da Dialtica do Esclare-cimento no , de fato, passvel de fundamentao.

    Mas, se se pensa a Dialtica do Esclarecimento no contexto de um rearranjo interdisciplinar, torna-se possvel pensar esse livro como um novo modelo crtico. Isso significa, de um lado, que continua a ser possvel entend-lo (e mesmo critic-lo) a partir do modelo presente em Teoria Tradicional e Teoria Crtica. De outro lado, entretanto, h especificidades e potenciais crticos nesse novo modelo que se perdem se ele for medido sem mais pelo gabarito de Teoria Tradicio-nal e Teoria Crtica. Pois possvel caracterizar um modelo crtico por pelo menos trs marcas distintivas, segundo: a forma com que se

    2. Sobre a ideia de modelo crtico, ver NOBRE, M. A Teoria Crtica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, e ainda NOBRE, M (org.). Curso Livre de Teoria Crtica. Campinas: Papirus, 2008.

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    relaciona com a Teoria Tradicional; a configurao disciplinar a partir da qual se organiza; a necessidade ou no de realizar investigaes empricas prprias3. No caso dos escritos de Horkheimer da dcada de 1930,

    fica evidente que a crtica da economia poltica ocupa o centro da constelao disciplinar. O que corresponde ao diagnstico do tem-po segundo o qual o mercado continuava a ser a instituio social estruturante, mesmo se o prprio capitalismo j tinha passado a uma fase monopolista. Nesse contexto, o conceito de classe (com todas as suas obscuridades e elas so muitas, com certeza nos escritos de Horkheimer desse perodo) que permite a passagem entre a crtica da economia poltica como foco e ncleo do arranjo disciplinar a investigaes empricas, como aquela dirigida por Erich Fromm sobre o autoritarismo nas famlias proletrias, por exemplo4.

    Pretende-se mostrar aqui que a Dialtica do esclarecimento introduz um novo modelo crtico tambm porque foi produzida em vista de um novo arranjo interdisciplinar, solidrio de um novo diagnstico do tempo presente. E essa nova configurao no apenas coloca a psica-nlise no centro da constelao disciplinar, como se bastasse colocar no lugar da economia poltica uma leitura interessada de Freud. Trata-se de uma outra maneira de fazer convergir as diferentes disci-plinas, trata-se de um modelo que projeta uma nova relao entre as disciplinas, em que o peculiar materialismo psicanaltico do livro deveria como que fornecer um campo comum para o debate e a in-vestigao interdisciplinar. Que esse modelo no tenha tido continui-dade em termos de investigaes coletivas por parte do Instituto de Pesquisa no diminui em nada sua importncia e relevncia para sua eventual atualizao. flagrante o contraste, entretanto, entre, de um lado, as muitas e influentes atualizaes do modelo crtico da Dialtica do esclarecimento, e, de outro lado, o silncio sobre o modelo de inves-tigao interdisciplinar que projeta.

    Seja como for, necessrio estabelecer de sada que os proble-mas tais como formulados aqui dizem muito mais diretamente res-

    3. Ver NOBRE, M. e REPA, L. (orgs.). Habermas e a reconstruo. Sobre a categoria central da Teoria Crtica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012, pp. 13-17.

    4. Idem, p. 16.

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    peito ao desenvolvimento terico de Hokheimer do que ao de Adorno. Ou seja, opera aqui o pressuposto de que Horkheimer tem primazia nesse processo de colaborao que resultou na coautoria do livro. Nesse sentido, seria possvel encontrar nos escritos de Horkheimer dos anos 1930 dois projetos distintos e, por vezes, conflitantes. Um deles justamente aquele que culmina no ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crtica, de 1937. O outro diz respeito ao projeto de uma antropologia da poca burguesa, expresso utilizada por Horkheimer no subttulo do ensaio Egosmo e movi-mento de libertao, de 1936. Vista dessa maneira, a Dialtica do Esclarecimento significaria, de um lado, uma ruptura com o projeto presente no texto de 1937. Mas, ao mesmo tempo, como tentaremos mostrar, daria continuidade a certos motivos e desenvolvimentos tericos que j estavam presentes no ensaio de 19365.

    Se verdade que a ruptura da Dialtica do Esclarecimento foi, em grande medida, influenciada pelo diagnstico geral de Friedrich Pollock do capitalismo de Estado, nem por isso Horkheimer e Adorno aceitaram sem mais as formulaes derivadas dessa nova situao histria. Apesar de concordarem, de maneira geral, com a ideia de Pollock de uma nova forma de primazia da poltica sobre a economia em condies no-socialistas, na Dialtica do Esclarecimento o que encontramos no a adeso a uma das formas do capitalismo de Estado tais como formuladas teoricamente por Pollock (a forma autoritria e a forma democrtica), mas antes uma variante da forma autoritria que Horkheimer e Adorno denominaram mundo administrado6.

    Mesmo considerando que a economia poltica no deveria mais ser tomada como a disciplina central no arranjo interdisciplinar da Teoria Crtica, Horkheimer e Adorno no se dedicaram a formular de maneira direta uma teoria poltica crtica, como seria de se esperar a

    5. Sobre este e outros aspectos, consulta-se a notvel biografia intelectual rea-lizada por ABROMEIT, J. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambrige UP, 2011.

    6. Sobre isso, ver NOBRE, M. A dialtica negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. So Paulo: Iluminuras/FAPESP, 1998, especialmente o captulo 1. Nessa constelao, o ensaio de Horkheimer Estado autoritrio (1942) ocupa uma posio central. Assim como o ensaio Razo e autopreservao (1940/1942) pode ser visto como em continuidade com o projeto presente em Egosmo e movimento de libertao.

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    partir da mudana de diagnstico do tempo realizada a partir dos trabalhos de Pollock. A tese defendida aqui, ao contrrio, a de que foi uma peculiar antropologia, entendida em termos de uma transfor-mao da psicanlise freudiana tornada teoria social, que reformulou a ideia mesma de interdisciplinaridade tal como pensada at ento.

    A ideia a de que a perda de centralidade da economia no arranjo disciplinar dos anos 1940 implicou tambm um novo problema de fundamentao para a prpria crtica. Como escreveram Horkheimer e Adorno no Prefcio ao livro,

    A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruio do esclareci-mento. No alimentamos dvida nenhuma e nisso reside nossa petitio principii de que a liberdade na sociedade inseparvel do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o prprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas histricas concretas, as instituies da so-ciedade com as quais est entrelaado, contm o germe para a re-gresso que hoje tem lugar em toda parte. Se o esclarecimento no acolhe dentro de si a reflexo sobre esse elemento regressivo, ele est selando seu prprio destino7.

    Segundo a hiptese enunciada aqui, a correta compreenso da estrutura dessa aporia e sua especfica fundamentao crtica tm de ser buscadas em uma nova antropologia, entendida como uma verso transformada de teses freudianas8. Mas isso significa tambm que essa nova antropologia borra inteiramente as fronteiras entre as disciplinas tais como entendidas at os anos 1930. Pois essa nova antropologia no pode ser reduzida a nenhuma disciplina existente. No se pode dizer dela que seja uma nova disciplina, a ser colocada no centro de um novo arranjo interdisciplinar, no papel antes ocupado pela Econo-mia Poltica. a ideia mesma de interdisciplinaridade que est em questo na Dialtica do Esclarecimento.

    Tampouco se pode dizer, entretanto, que a ideia de colaborao entre as disciplinas tenha desaparecido. O que desapareceu foi a cen-

    7. DE, p. 13; DA, pp. 18-19

    8. Ver a esse respeito, MARIN, I. L. Psychanalyse et Thorie Critique. Tese de Dou-torado, Universit de Paris VII, 2009. Muitos dos argumentos e formulaes utilizadas aqui provm desse trabalho.

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    tralidade da Economia Poltica. De outro lado, Horkheimer e Adorno como que criaram, com isso que chamado aqui de nova antropologia, um ambiente, um espao de dilogo interdisciplinar novo. De certa maneira, para o fulcro desse novo ambiente interdisciplinar que pre-tende apontar a exposio que se segue. Mas no sem antes esclarecer o ponto de vista a partir do qual foi escrito este texto. O pressuposto aqui o de que o modelo crtico apresentado na Dialtica do Esclarecimen-to, com seu diagnstico do tempo e seus especficos prognsticos, mostrou-se equivocado em vrios sentidos e que no serve para com-preender o momento atual em toda a sua complexidade. Entretanto, duas observaes em sentido contrrio se fazem necessrias.

    Em primeiro lugar, para poder levar a Teoria Crtica para alm da Dialtica do Esclarecimento, mas com ela, preciso realizar a devida avalia-o do modelo crtico que representa, tarefa que no nos parece ter sido realizada em sua plenitude at hoje. Da a proposta de buscar na espe-cfica verso da psicanlise freudiana em termos de filosofia social, em termos de uma nova antropologia, o cerne desse modelo crtico. bem possvel que esse ponto central tenha ficado obscurecido em razo dos posicionamentos sectrios que o livro provocou, seja a favor, seja contra ele. Em segundo lugar, parece bvio que h ainda muito por preservar desse livro de 1947. Para mencionar apenas dois exemplos clssicos, pode ser que tenham aparecido explicaes to abrangentes e to fe-cundas sobre os fenmenos da indstria cultural e do nazismo desde ento, mas no interpretaes que superem ou dispensem as anlises da Dialtica do Esclarecimento. Se h certamente que modificar nossa compre-enso desses dois fenmenos em vista da situao atual, esse livro continua a ser o ponto de partida necessrio para faz-lo.

    O argumento aqui que Horkheimer e Adorno conseguiram formular explicaes to instigantes sobre fenmenos como os da indstria cultural e do nazismo exatamente porque formularam um novo tipo de antropologia, que alterou profundamente os termos do arranjo interdisciplinar que caracterizou a Teoria Crtica nos anos 1930. Na nova formulao da Dialtica do Esclarecimento, a psicologia social pensada em termos antropolgicos nos alerta tambm para o fato de que a psicanlise e a psicologia social de maneira mais ampla j permaneceram tempo demais marginalizadas no campo crtico, desde pelo menos a dcada de 1970. mais que tempo de dar psi-canlise e psicologia social a posio de destaque que lhes deveria caber nos arranjos interdisciplinares atuais. Para isso, entretanto, preciso que surjam tericos crticos que se dediquem a essa tarefa,

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    lacuna que talvez s no seja mais grave do que o dficit de tericos crticos no campo da economia.

    * * *

    recomendvel que se comece pelas principais e mais conhecidas das teses da Dialtica do Esclarecimento. J no Prefcio, referindo-se expo-sio geral com que iniciam o livro e que tem o ttulo de Conceito de esclarecimento, Horkheimer e Adorno escrevem: Em linhas gerais, o primeiro estudo pode ser reduzido em sua parte crtica a duas teses: o mito j esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter mitologia9.

    Com respeito segunda das duas teses (a recada do esclareci-mento no mito), a elucidao veio j apresentada um pouco antes no mesmo Prefcio:

    a causa da recada do esclarecimento na mitologia no deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pags e em outras mi-tologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa reca-da, mas no prprio esclarecimento paralisado pelo temor (Furcht) da verdade. Neste respeito, os dois conceitos [mito e esclarecimen-to] devem ser compreendidos no apenas como histrico-culturais, mas como reais (real)10.

    E a primeira tese (a do mito j ser esclarecimento), por sua vez, aparece elucidada logo na abertura do primeiro estudo:

    No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimen-to tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo (Furcht) e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmen-te esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo11.

    A hiptese defendida aqui a de que essa presena do medo e do temor de fundamental importncia na apresentao e elucidao das duas teses fundamentais do primeiro estudo. Para isso, comeamos por ressaltar que a traduo brasileira, apesar de ser de alta qualidade, traduziu a mesma palavra (Furcht) diferentemente nos dois trechos citados. E que esse problema se agrava quando se examina o conceito inseparvel com

    9. DE, p. 15; DA, p. 21.

    10. DE, p. 13; DA, p. 19.

    11. DE, p. 19; DA, p. 25.

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    que Furcht (que traduziremos por medo) faz par na Dialtica do Esclare-cimento, a noo de Angst (que traduziremos por angstia). esse par conceitual que pretendemos examinar mais detidamente. O que levar tambm s noes de Mimesis (que traduziremos por mimese) e de Schrecken (que traduziremos por terror), igualmente pertencentes constelao conceitual de que nos ocuparemos aqui12.

    Se bem compreendida em sua posio na argumentao do livro, a constelao que envolve os termos Schrecken, Furcht, Angst, Mimesis e, alm deles, tambm o de Gefahr (perigo), pode servir de base a uma tentativa de entender a unidade crtica da Dialtica do Esclarecimento como um todo. Uma hiptese formulada de tal maneira que sua ambio explicativa pretende abarcar at mesmo o princpio estilstico de construo do livro: com suas construes chocantes (no sentido dos ensaios de Benjamin sobre Baudelaire13), elpticas e pe-remptrias, Horkheimer e Adorno mimetizariam o medo que fez do mito esclarecimento e do esclarecimento mito14.

    Essa hiptese de conjunto encontra apoio inicialmente na pas-sagem do Prefcio de 1944, em que Horkheimer e Adorno caracte-rizam da seguinte maneira a ltima parte da Dialtica do Esclarecimento, intitulada Fragmentos e esboos:

    Na ltima parte publicam-se notas e esboos que, em parte, perten-cem ao horizonte intelectual dos estudos precedentes, sem encon-trar a seu lugar, e em parte traam um esboo provisrio de proble-mas a serem tratados num trabalho futuro. A maioria deles refere-se a uma antropologia dialtica15.

    12. No trataremos aqui das possveis aproximaes e dos devidos afastamentos dessa constelao de noes com o universo hegeliano, em especial da Feno-menologia do esprito, em que essas noes desempenham papel de importncia em pelo menos trs momentos: na chamada dialtica do senhor e do servo, no captulo IV; ao final do captulo VI (O esprito); e ainda no ltimo ca-ptulo do livro (O saber absoluto).

    13. Sobre a importncia do Freud de Para alm do princpio do prazer tanto em Benjamin quanto na Dialtica do Esclarecimento, veja-se adiante.

    14. Essa hiptese pode tambm conferir maior densidade afirmao to conhe-cida do livro: S o pensamento que faz violncia a si mesmo suficiente-mente duro para destruir os mitos (DE, p. 20; DA, p. 26).

    15. DE, p. 17; DA, p. 23.

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    Apesar da meno a um trabalho ainda por vir, fica claro que a ideia de uma antropologia dialtica j se encontra desenvolvida, pelo menos em parte, no livro de 1947. nesse sentido que possvel tambm aproximar a Dialtica do Esclarecimento no apenas de Freud, mas tambm do jovem Marx 16 e de Rousseau 17. Nesse sentido, a dialtica entre comportamento mimtico e auto-preservao se desenvolve de maneira a expulsar a mimese do domnio do racional na forma de uma apropriao da ideia de recalque freudiano, da Verdrngung18, con-sagrando assim a pretenso exclusivista da auto-preservao na deter-minao da esfera prpria do racional. Seja como for, a ideia defendi-da aqui a de que so teses antropolgicas derivadas de Freud que permitem vislumbrar a real identidade argumentativa e crtica do livro e de que essa apropriao de Freud por Horkheimer e Adorno se d como incorporao da arquitetnica pulsional em novos termos. Nesse caso, a prpria constelao de elementos fundamentais que compem essa apropriao igualmente freudiana. dessa constela-o que se trata aqui.

    No nvel puramente natural da sua existncia, a espcie encontra--se diante do perigo absoluto (absolute Gefahr). Ainda que j mediado primeiramente pelo comportamento mimtico, esse perigo no pode ser evitado: ele se mostra como terror (Schrecken). Se-gundo o texto:

    Para a civilizao, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constitua o perigo absoluto. Um aps o outro, os com-portamentos mimtico, mtico e metafsico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles estava

    16. Essa aproximao pode comear a ser construda consultando-se GIANNOTTI, J. A. Origens da dialtica do trabalho. Estudo sobre a lgica do jovem Marx. Porto Alegre: L&PM, 1985, especialmente p. 21.

    17. Essa aproximao parece poder ser realizada no apenas sob o aspecto de uma histria negativa (nos termos do Segundo Discurso), mas tambm me-diante uma transposio em termos pulsionais freudianos dos sentimentos de piedade natural e de amor de si. Sobre isso, consulte-se MARIN, I. L. Equilbrio da natureza equilbrio na sociedade: configuraes todo-parte na filosofia de Jean-Jacques Rousseau. Dissertao de Mestrado. So Paulo: USP, 1999.

    18. A ratio, que recalca a mimese, no simplesmente seu contrrio. Ela prpria mimese: a mimese do que est morto (DE, p. 62; DA, p. 81). Sobre uma possvel interpretao pulsional da mimese, ver adiante.

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    associada ao terror (Schrecken) de que o eu revertesse mera natureza, da qual havia se alienado com esforo indizvel e que por isso mesmo infundia nele indizvel terror (Grauen, melhor vertido como horror)19.

    Seria interessante comparar essas trs diferentes eras (Weltalter) com os famosos trs estgios de Auguste Comte ou com as formulaes de Schelling. Mas isso levaria muito longe. Cabe apenas enfatizar aqui o elemento que funciona como o verdadeiro motor da dialtica do esclarecimento: o terror. o terror da regresso ao eu meramente natural que impele para a prxima figura, para a prxima era, como o vento do progresso que, em Benjamin, impele o anjo da histria (ele mesmo aterrorizado) irresistivelmente para o futuro.

    por essa razo que Horkheimer e Adorno escrevem, j em Elementos do anti-semitismo:

    A constelao (...) na qual a identidade se produz a identidade imediata da mimese assim como a identidade mediatizada da snte-se, a assimilao coisa no ato cego de viver, assim como a compa-rao dos objetos reificados na conceitualidade cientfica continua a ser a constelao do terror (Schrecken)20.

    Mas se assim, se a constelao do terror aquela que preside a prpria dialtica do esclarecimento, que preside ao desenvolvimen-to que leva do estilingue bomba atmica, quais so seus elementos?

    bastante conhecida a tese de Horkheimer e Adorno da auto-matizao da auto-preservao, de tal maneira que a dominao da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida. Tal se d porque o esclarecimento impe uma alternativa inescapvel, que torna inevitvel a prpria dominao: Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se natureza ou submeter a natureza ao eu21.

    19. DE, p. 42; DA, p. 54.

    20. DE, p. 169; DA, p. 211.

    21. O contexto mais amplo da passagem o seguinte: Nos momentos decisivos da civilizao ocidental, da transio para a religio olmpica ao renascimen-to, reforma e ao atesmo burgus, todas as vezes que novos povos e cama-das sociais recalcavam o mito, de maneira mais decidida, o temor (Furcht) da natureza no compreendida e ameaadora consequncia da sua prpria materializao e objetualizao era degradado em superstio animista, e

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    A nosso ver, a dialtica que est em jogo aqui e que resulta na dupla dominao, da natureza interna e externa comea pela angstia (Angst) de uma natureza ameaadora e essencialmente incompreen-dida. Segundo a dialtica do terror, essa angstia exige uma interiori-zao da ameaa, uma determinao do objeto perigoso, de modo a buscar sempre a sua neutralizao. Essa relativa estabilizao alcana-da nos sucessivos estgios ou eras (mimtico, mtico e metafsico) surge como medo (Furcht).

    O medo indica que as sucessivas tentativas de interiorizao da natureza ameaadora sempre deixam restos. As tentativas de neutra-lizar a ameaa angustiante no podem nunca afast-la inteiramente. No h como interiorizar sem resto a natureza externa e suas ameaas. Essa impossibilidade, com suas cicatrizes, marcas e feridas que nunca se fecham completamente, esses rastros dolorosos da dialtica do terror o que Horkheimer e Adorno chamam de medo.

    Da a reunio em uma nica passagem (ainda que longa) dos elementos da constelao em causa:

    O conceito, que se costuma definir como a unidade caracterstica do que est nele subsumido, j era desde o incio o produto do pensamento dialtico, no qual cada coisa s o que ela tornando--se aquilo que ela no . Eis a a forma primitiva da determinao objetivadora na qual se separavam o conceito e a coisa, determina-o essa que j est amplamente desenvolvida na epopia homrica e que se acelera na cincia positiva moderna. Mas essa dialtica permanece impotente na medida em que se desenvolve a partir do chamado do terror (Ruf des Schreckens), que a prpria duplicao, a tautologia do terror (Schrecken). Os deuses no podem livrar os homens do medo (Furcht), pois so as vozes petrificadas do medo (Furcht) que eles trazem como nome. Do medo (Furcht) o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido. isso que determina o trajeto da desmitologizao e do esclarecimen-to, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito

    a dominao da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida. Quando afinal a autoconservao se automatiza, a razo abandonada por aqueles que assumiram sua herana a ttulo de organizadores da produo e agora a temem nos deserdados. A essncia do esclarecimento a alternativa cuja inevitabilidade a da dominao. Os homens sempre tiveram de esco-lher entre submeter-se natureza ou submeter a natureza ao eu( DE, p. 43; DA, p. 55).

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    identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento a angstia (Angst) tornada radical, mtica. A pura imanncia do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do fora a verdadeira fonte da angstia22.

    Dito de outra maneira ainda: sendo o padro da relao homem/natureza no estado de natureza a mimese, a passagem ao estado de sociedade a instaurao do medo, que, desse modo, no apenas modelo de relao do homem com a natureza, mas modelo social da relao homem/homem. o que encontramos na abertura do livro, que vale a pena citar ainda uma vez: No sentido mais amplo do pro-gresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal23.

    Habermas foi ao ponto quando escreveu: Dado que o comportamento mimtico, o amoldar-se orgnico ao outro, permanece sob o signo do medo, a mimese no assume o papel de guardadora de lugar para uma razo originria, cujo posto foi usurpado pela razo instrumental24. O que nos parece no se seguir a considerao de Habermas segundo a qual o exerccio mesmo da crtica na Dialtica do Esclarecimento se encontra minado em sua base. Segundo ele, Horkheimer e Adorno (...) intensificam e mantm aberta a contradio performativa de uma crtica da ideologia que suplanta a si mesma, sem querer super-la teoricamente25. Para suplantar essa aporia que no se fecha e que no tem perspectiva de ser superada, Habermas pretende encontrar na mimese de Horkheimer e Adorno as pistas para um conceito alternativo de razo que no esteja bloqueado pela dialtica do esclarecimento.

    22. DE, p. 29; DA, p. 38.

    23. DE, p. 19; DA, p. 25.

    24. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, vol. 1. Frankfurt/Main, 1987, p. 512.

    25. HABERMAS, J. O Discurso Filosfico da Modernidade. So Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 182-183. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1985, p. 154.

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    Dizendo de maneira breve: Habermas tem toda razo em fazer uma crtica como essa do ponto de vista do ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crtica. Do ponto de vista desse escrito de 1937, parece realmente que no h como defender o modelo de crtica da Dialtica do Esclarecimento. Se, porm, esse novo modelo for olhado do ponto de vista de uma nova antropologia, que pretende criar o ambiente in-terdisciplinar necessrio ao dilogo entre as especialidades, no h sentido em falar em uma razo originria, nem de imaginar suced-neos e guardadores de lugar. E, no entanto, uma tal interpretao alternativa s se torna possvel, a nosso ver, se indicar o papel central que desempenham os elementos freudianos na construo desse novo modelo crtico.

    Foi possvel tomar aqui como fio condutor a constelao do terror, porque todos os seus termos so freudianos e se beneficiam da unidade dos escritos da dcada de 1920. Foi Freud quem primeiro distinguiu conceitualmente todos os termos dessa constelao em Para Alm do Princpio do Prazer (1920). A referncia a este livro no de modo algum casual aqui. Para dar apenas um exemplo, recorremos a um conjunto de notas de Adorno, do ano de 1941, que tm por ttulo Notizen zur neuen Anthropologie e, mais especificamente, seguin-te passagem:

    Freud se representa os processos pulsionais como uma espcie de troca de equivalentes. Entretanto, os esquemas de troca da pulso, colocados por Freud, no mais so vlidos to logo o Eu no dispe mais de poder sobre a massa pulsional que lhe est subordinada. Quando se formam sujeitos coletivos, toda a economia pulsional posta fora de ao juntamente com o mecanismo do prazer. Em seus trabalhos mais avanados, sobretudo em Para alm do princpio do prazer, Freud viu algo disso, mas no tirou as consequncias26.

    26. ADORNO, T. W./HORKHEIMER, M. Briefwechsel. vol. II: 1938-1944. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 2004, p. 454. Tambm no por acaso, certamente, que Para alm do princpio do prazer seja o texto freudiano de referncia para os desenvolvimentos de Benjamin na terceira parte de seu ensaio Sobre alguns motivos em Baudelaire In: Gesammelte Schriften. vol. I.2. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1972, pp. 612 e ss.. Alm disso, ainda de capital importncia lembrar aqui a observao do Vocabulaire de la Psychanalyse, de Jean Laplanche e J.-B. Pontalis (Paris: PUF, 1992, p. 129), segundo a qual pode-se dizer que no conjunto o significado do termo effroi (temor) no variou em Freud. Note-se apenas que, depois de Para alm do princpio de prazer,

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    Uma nova antropologia. Unidade crtica e arranjo...

    Freud apresenta sucintamente os termos da seguinte maneira:

    Terror (Schreck), temor (Furcht), angstia (Angst) so empregados equivocadamente como expresses sinnimas; elas se deixam dis-tinguir bem em sua relao com o perigo (Gefahr). A angstia de-signa um certo estado, como a expectativa do perigo e a preparao para o mesmo, mesmo que ele seja um perigo desconhecido; o medo exige um objeto determinado, diante do qual ficamos amedrontados; terror, no entanto, designa o estado em que nos encontramos quan-do estamos em perigo sem termos nos preparado para ele, enfatiza o momento da surpresa27.

    No pretendemos afirmar que Freud tenha utilizado esses termos ao longo de sua obra segundo essas precises conceituais que ele prprio estabeleceu, nem que seu emprego seja sempre uniforme. Mas, sob esse aspecto, tambm Horkheimer e Adorno no utilizaram esses termos em sentido rigoroso estrito28. No pretendemos igualmente

    o termo tende a ser menos empregado. A oposio que Freud havia tentado estabelecer entre os dois termos de angstia e de temor vai se dar, mas sob a forma de diferenciaes no interior da noo de angstia, notadamente na oposio entre uma angstia que sobrevm automaticamente em uma situao traumtica, e o sinal de angstia que implica uma atitude de espera ativa (Erwartung) e protege contra o desenvolvimento da angstia. Traduzido nos termos da interpretao proposta aqui, Horkheimer e Adorno se apoiam antes no Freud de Para alm do princpio do prazer do que nos escritos posteriores para construir a especfica constelao do terror, que, acreditamos, caracteriza mais amplamente a Dialtica do Esclarecimento.

    27. FREUD, S. Gesammelte Werke. Vol. XIII. Frankfurt/Main: Fischer, 1999, p. 10. Na apresentao de Inibio, sintoma e angstia (1926): A angstia (Angst) possui uma relao ineludvel com a expectativa; ela angstia diante (vor) de algo. -lhe inextrincvel um carter de indeterminidade (Unbestimmtheit) e de carncia de objetidade (Objektlosigkeit); quando ela encontrou um objeto, o correto uso lingstico altera seu nome e o substitui ento por medo (Furcht) (Vol. XIV, pp. 197-198).

    28. Alm disso, o quadro no fica completo sem o conceito de recalque, central tanto para a teoria freudiana como para a releitura de Horkheimer e Adorno. Freud, em um primeiro momento, estabelece o recalque como causa da an-gstia, enquanto, em um segundo momento (a partir de 1926, com Inibio, sintoma e angstia justamente), estabelece a angstia como causa do recal-que. No pensamos, entretanto, que essa dificuldade sistemtica tenha se posto enquanto tal para a leitura de Freud por Horkheimer e Adorno, que

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    dizer que, com essa mera referncia, ficam resolvidos problemas to fundamentais quanto os da passagem da angstia ao sujeito da angs-tia29, ou ainda o da pulso como afeto, ou mesmo a passagem entre angstia e pulso (que remete, uma vez mais, ao problema da identi-ficao). Muito menos as dificuldades em compreender a verso es-pecfica que deram Horkheimer e Adorno desses problemas sob forma de uma filosofia da histria a contrapelo e de uma peculiar antropo-logia. Mas pretendemos afirmar que so esses os termos do problema e deles que acreditamos que se deva partir para reconstruir a unida-de crtica da Dialtica do Esclarecimento.

    nosso objeto aqui. Uma maneira de figurar a hiptese de leitura da apropria-o da teoria freudiana por Horkheimer e Adorno que apresentamos aqui a de imaginar que, na Dialtica do Esclarecimento, a formulao dos conceitos pertence ao universo de Inibio, sintoma e angstia, mas o sentido que re-cebem depende do quadro terico de Para alm do princpio do prazer.

    29. A liquidao tendencial do indivduo faz parte do diagnstico do tempo mais geral da Dialtica do Esclarecimento. Para ficar em um nico exemplo entre muitos: O individual se reduz capacidade do universal de marcar to in-tegralmente (ohne Rest) o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo [...]. A pseudo-individualidade um pressuposto para compreender e tirar da tragdia sua virulncia: s porque os indivduos no so mais indivduos, mas sim meras encruzilhadas das tendncias do universal, que possvel reintegra-los sem falha (bruchlos) na universalidade (DE, 144-145; DA, pp. 181-182). Uma das consequncias importantes desse diagnstico para a transfigurao do esquema conceitual freudiano por Horkheimer e Adorno est, por exemplo, no conceito mesmo de narcisismo e sua relao com o Eu. Em carta a Horkheimer de 1. de janeiro de 1945, Adorno escre-veu o seguinte: Estamos com certeza de acordo em que, com a dissoluo do Eu, tambm no pode mais haver nenhum narcisismo do velho estilo. O que est diante de ns exatamente provavelmente antes um mecanismo de identificao imediata do Eu desprovido de Si (entselbsteten) com a instn-cia coletiva e a funo da psicologia popular essencialmente a promoo de um tal desempenho mecnico e peculiarmente externo. Trata-se ao mes-mo tempo da herana do narcisismo, semelhante a como o monoplio rece-beu a herana do capitalismo privado. Ou antes: em lugar de cada qual sa-tisfazer seu narcisismo como uma forma de propriedade privada, ele recebe o quantum de prazer desse tipo que lhe cabe, o qual, entretanto, de h muito j no o do Eu no sentido autntico, atribudo imediatamente pelo aparato de distribuio psicolgico (ADORNO, T. W./HORKHEIMER, M. Briefwechsel. Vol. II, p. 420). Sobre isso, ver MARIN, I. L. Psychanalyse et Thorie Critique. Tese de Doutorado.

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    Para analisar com um pouco mais de detalhe apenas uma dessas diferenas, vale lembrar a passagem de Inibio, sintoma e angstia, em que Freud distingue a angstia real da angstia neurtica e rela-ciona esta ltima com um perigo pulsional (o que, mais uma vez, mostra afinidade com as teses fundamentais da Dialtica do Esclarecimento):

    O perigo real aquele que conhecemos, a angstia real aquela que se d diante de um tal perigo conhecido. A angstia neurtica angstia diante de um perigo que no conhecemos. preciso, por-tanto, buscar primeiramente o perigo neurtico; a anlise nos ensi-nou que ele um perigo pulsional. Na medida em que trazemos conscincia esse perigo desconhecido para o eu, borramos a dife-rena entre angstia real e angstia neurtica, podemos tratar tanto a primeira quanto a segunda30.

    Para Horkheimer e Adorno, a dificuldade est em que esse tra-zer conscincia da angstia primordial encontra-se objetivamente bloqueado por uma organizao social em que o recalque j segun-da natureza e elevado lgica mesma de funcionamento de uma dominao sem fissuras: O esclarecimento a angstia (Angst) tor-nada radical, mtica31.

    Apesar de reconhecer todas essas diferenas e divergncias, no vemos como encontrar a unidade crtica da Dialtica do Esclarecimento em outro lugar que no em uma apropriao crtica peculiar da teoria freu-diana por Horkheimer e Adorno em termos de uma nova antropologia. Essa hiptese parece permitir compreender tambm outros elementos importantes (e, no por acaso, simtricos), como a apropriao do processo de racionalizao weberiano, sem sua concepo multidimen-sional da racionalidade, ou mesmo a apropriao do conceito lukcsia-no de reificao, sem a correspondente aceitao de sua limitao his-trica ao capitalismo e da noo de totalidade capaz de explic-lo32.

    30. FREUD, S. Gesammelte Werke. Vol. XIV. Frankfurt/Main: Fischer, 1999, p. 198.

    31. Aufklrung ist die radikal gewordene, mythische Angst (DE, p. 29; DA, p. 38).

    32. Apenas para ressaltar uma das muitas consequncias perturbadoras dessa maneira de reconstruir a Dialtica do Esclarecimento: se a formulao dos pro-blemas se d fundamentalmente a partir de uma apropriao antropolgico--materialista de Freud, tambm as muitas apropriaes de teses e formulaes de Weber e de Lukcs no livro so realizadas a partir desse enquadramento essencialmente freudiano. E no o contrrio.

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    Segundo nossa hiptese, o modelo crtico de Dialtica do escla-recimento distingue-se igualmente do modelo crtico do jovem Marx, embora ambos tenham feies antropolgicas. Como possvel constatar, por exemplo, na seguinte passagem do livro:

    Inicialmente, em sua fase mgica, a civilizao havia substitudo o amoldar-se orgnico ao outro, isto , o comportamento propria-mente mimtico, pela manipulao organizada da mimese e, por fim, na fase histrica, pela prxis racional, isto , pelo trabalho. A mimese incontrolada proscrita33.

    Fica claro aqui que, ao contrrio do jovem Marx, Horkheimer e Adorno recuam para um momento anterior ao trabalho, a partir do qual o momento do trabalho j surge, ele prprio, como reificado.

    Alm disso, a partir dessa nova unidade crtica dada por uma antropologia obtida a partir de formulaes freudianas que o fascismo poder se mostrar como aquela mesma mimese de morte caracters-tica do recalque da mimese pela ratio. Como, por exemplo, na seguin-te passagem:

    O sentido das frmulas fascistas, da disciplina ritual, dos uniformes e de todo o aparato pretensamente irracional possibilitar o com-portamento mimtico. Os smbolos engenhosamente arquitetados, prprios a todo movimento contra-revolucionrio, as caveiras e mascaradas, o brbaro rufar dos tambores, a montona repetio de palavras e gestos so outras tantas imitaes organizadas de prticas mgicas, mimese da mimese34.

    O mesmo trao, alis, que se pode encontrar em relao s an-lises da indstria cultural. Como, por exemplo:

    As mais ntimas reaes das pessoas esto to completamente reifi-cadas para elas prprias que a idia de algo peculiar a elas s per-dura na mais extrema abstrao: personality significa para elas pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor nas axilas e das emoes. Eis a o triunfo da publicidade na indstria cultural, a mimese compulsiva dos consumidores com as

    33. DE, p. 168.

    34. DE, p. 172.

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    mercadorias culturais que eles, ao mesmo tempo, decifram muito bem35.

    Para alm dos exemplos, pretendemos que a hiptese sistemti-ca formulada permita compreender com maior rigor a prpria con-cepo de racionalidade que subjaz ao esforo de Horkheimer e de Adorno. O jogo bruto das pulses freudianas36 interpretado por eles em termos scio-histricos como inevitabilidade da dominao: A essncia do esclarecimento a alternativa que torna inevitvel a dominao37. Da tambm que a razo no seja algo destacado da mimese, tampouco o seu contrrio: a razo , no jogo bruto das pulses, a imposio sem contestaes da mimese de morte por sobre a mi-mese de vida. nesse sentido que Horkheimer e Adorno afirmam que a ratio, que recalca a mimese, no simplesmente seu contrrio. Ela prpria mimese: a mimese do que est morto38. E essa mimese do que est morto exatamente, para Horkheimer e Adorno, a produo da igualdade universal do conceito e da troca.

    Nesse momento, parece j adequado retomar a releitura daque-la passagem com que introduzimos primeiramente a constelao do terror, que agora j pode ser citada mais longamente para incluir a interpretao scio-histrica do jogo pulsional como dominao que procuramos apresentar:

    O rigor com que os dominadores impediram no curso dos sculos a seus prprios descendentes bem como s massas dominadas a recada em modos de vida mimticos , comeando pela proibio de imagens na religio, passando pela proscrio social dos atores e dos ciganos e chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma

    35. DE, p. 156.

    36. No ignoramos o problema sistemtico do ponto de vista da teoria de Freud que representa a ausncia, em Inibio, sintoma e angstia (de 1926), da noo de pulso de morte (introduzida em 1920), j que tal noo repre-senta um dos pilares da reformulao que deu origem chamada segunda tpica (1923). Entretanto, tambm aqui no acreditamos que tal problema sistemtico tenha se apresentado enquanto tal para Horkheimer e Adorno em sua leitura de Freud na Dialtica do Esclarecimento, de modo que pode ser deixado de lado para os propsitos deste texto.

    37. DE, p. 43; DA, p. 55.

    38. DE, p. 62; DA, p. 81.

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    as crianas de serem infantis , a prpria condio da civilizao (Bedingung der Zivilisation). A educao social e individual refora nos homens seu comportamento objetivante de trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuaes da natureza ambiente. Toda diverso, todo abandono tem algo de mimetismo (Mimikry). Foi se enrijecendo contra isso que o eu se forjou. atravs de sua constituio que se realiza a passagem da mimese reflexionante para a reflexo dominada (bergang von reflektorischer Mimesis zu beherrschter Reflexion). Em lugar da assimilao corporal (leibliche Angleichung) natureza surge a recognio no conceito, a apreen-so do diverso sob o mesmo. A constelao, porm, na qual a identidade se produz a identidade imediata da mimese assim como a identidade mediatizada da sntese, a assimilao coisa no ato cego de viver, assim como a comparao dos objetos reificados na conceitualidade cientfica continua a ser a constelao do terror (Schrecken)39.

    * * *

    Com essas observaes pretendemos apenas indicar que o mo-delo crtico da Dialtica do Esclarecimento parece ser mal compreendido quando entendido como um modelo aportico sem mais. Seu diag-nstico subjacente, que aponta para um bloqueio objetivo da prxis, da ao verdadeiramente transformadora, no pode e no deve ser confundido com ausncia de potencial crtico. Muito pelo contrrio, a fora da Dialtica do Esclarecimento est em que, at hoje, permite an-lises crticas cruciais da vida contempornea. No se trata de afirmar que teses cruciais como sobre a indstria cultural ou sobre o nazismo permaneam plausveis at hoje em sua formulao de 1947, mas simplesmente de reconhecer que elas so pontos de partida inescap-veis para quem se proponha a estudar tais fenmenos40.

    39. DE, p. 169; DA, p. 211.

    40. Dito isso, preciso lembrar, no entanto, que a linha de anlise da psicologia social que sustenta crticas como as formuladas indstria cultural no con-tinuou a ser desenvolvida com a mesma magnitude nos escritos posteriores de Horkheimer e de Adorno. O primeiro praticamente se absteve de publicar novos textos (embora tenha uma produo significativa, que permaneceu indita at sua morte). E Adorno dedicou-se mais intensamente, de um lado, a ensaios sobre temas especficos, e, de outro, a escavar os fundamentos da realizao da totalidade como totalidade reificada, em sua Dialtica negativa,

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    Se h, portanto, uma unidade crtica na Dialtica do Esclarecimento a ser encontrada para alm da contradio performativa e da aporia inerte, essa unidade est, a nosso ver, em uma leitura interessada de Freud que realizaram Horkheimer e Adorno. Isso no significa de maneira alguma, entretanto, ignorar as profundas diferenas entre as constelaes conceituais freudianas e as da Dialtica do Esclarecimento. Para alm da j mencionada diferena de estrutura Horkheimer e Adorno desenvolvem uma teoria da mimese e no uma teoria das pulses, o que est longe de ser um problema meramente terminol-gico , pode-se pensar em uma srie de outras diferenas analticas relevantes, como o papel de grande destaque concedido ao terror quando comparado ao esquema freudiano, o que acarreta arquitet-nicas pulsionais bastante diversas. Se Horkheimer e Adorno pretendem responder a problemas de inspirao freudiana, partem tambm do pressuposto de que a teoria freudiana sozinha no capaz de respon-d-los, ao mesmo tempo em que a traduo das constelaes concei-tuais freudianas em teoria social tem ao final por resultado uma radical transformao desse ponto de partida.

    Seja como for, acreditamos que reconstruir as teses fundamentais da Dialtica do Esclarecimento a partir de sua base freudiana significar nada menos do que descobrir a chave at hoje oculta de sua urdidura argumentativa e estilstica. Se no nos propusemos aqui a realizar essa tarefa em toda a sua amplitude, esperamos pelo menos ter conseguido colocar com clareza os termos desse desafio.

    Referncias bibliogrficas:

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    ao mesmo tempo em que buscava uma reflexo de cunho mais abrangente sobre a posio da arte no capitalismo tardio, em sua obra pstuma Teoria Esttica. possvel que apenas de Marcuse se possa dizer com propriedade que prosseguiu trabalhando no mesmo grau de abstrao aberto pela Dialti-ca do Esclarecimento, em seus escritos das dcadas de 1950 e 1960. Sobre a apropriao crtica de Freud por Marcuse no livro Eros e civilizao, ver CAR-NABA, M. E. C. Marcuse e a Psicanlise: Teoria Crtica e Teoria Tradicional na g-nese do conceito de represso. Campinas, 152f. Dissertao de Mestrado: IFCH UNICAMP, 2012.

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