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Uma outra aproximação: dois casos de autoconstrução nas periferias de São Paulo

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Trabalho Final de Graduação pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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agradecimentos

Agradeço a Cláudia e Jacira pela generosidade ao me receberem em suas casas e pela paciência. A Elma que sempre me ajudou em minhas visitas ao Grajaú.

A Leadro Roque de Oliveira e Evandro Roque de Oliveira pela gentileza.

Aos professores que me ajudaram nos caminhos tortuosos do trabalho: Luis Antonio Jorge, Vera Pallamin, Ângela Maria Rocha, Nabil Bonduki, Alexandre Delijaicov, Maria Ruth Amaral de Sampaio e Lito Dias. Principalmente Marta Amoroso, que me encorajou na aproximação à antropologia.

A meus amigos pelos ricos momentos de discussão e conversa, especialmente Marina Rago, Carolina Laiate, Guido Otero, Cadu Marino, Thais Oyola, Raffaella Yacar, Natália Nicolau e Maya Dias pelas ajudas e apoio nos momentos finais.

A Pedro Henrique Araújo pela companhia e pelas inúmeras ajudas.

Aos meus pais pelo incansável apoio. Minhas irmãs pelas conversas e desabafos.

Mas principalmente à minha orientadora, Ana Lucia Duarte Lanna. Além da identificação, nossos encontros sempre resultaram em estímulo e encorajamento.

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Introdução

Tema

Escolha dos casos

Descrição dos casos

Comparações

Contrastes

Análises

Liberdade

Lugar e a Familia

Uso do espaço

Ausência do Estado

Lugar e a Cidade

Conclusão

Anexo - Relatórios dos encontros

Bibliografia índice

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introdução

Ao longo de minha formação deparei-me com uma série de inquietações que foram conduzindo minhas escolhas e meus caminhos dentro do curso. Uma dessas inquietações se deu a partir de um interesse em tratar das contradições da cidade de São Paulo e as formas de lidar com elas. Dentre as diversas questões possíveis que envolvem essa metrópole, acabei me aproximando mais das relativas à habitação, principalmente no que se refere às classes baixas. Nesse sentido, tive poucas oportunidades, mas muito interesse em conhecer – através de visitas – áreas de periferias da cidade, onde se reproduz mais notávelmente a construção informal e as habitações precárias. As oportunidades que tive me suscitaram uma vontade de aprofundar esses contatos. Isso a partir da perspectiva de que essas áreas podem ser interessantes focos de estudo seja pela busca de soluções para enfrentar a precariedade, e para isso é fundamental, seja pelo entendimento da peculiaridade de seus arranjos sócio-espaciais. Entretanto, é esse segundo caso que orienta a realização deste trabalho, uma possibilidade de apreensão desses arranjos sócio-espaciais.

Enxerguei no Trabalho Final de Graduação, uma oportunidade de contemplar algumas dessas inquietações. Na tentativa de associá-las com as disciplinas que me despertaram interesse no curso, lembrei-me da disciplina Design do Objeto – AUP0446. A partir disso, em princípio, comecei a imaginar um trabalho em que eu pudesse chegar à produção prática com alguma intervenção em habitações precárias da periferia de São Paulo através do desenho de movelaria de baixo custo de produção, que talvez pudesse ser produzida nas próprias comunidades.

Entretanto, na busca pela definição do tema do trabalho, logo de início me deparei com a necessidade de justificar a escolha da autoconstrução como foco, e como propor uma intervenção prática em uma situação já bastante consolidada, como são as habitações autoconstruídas nas periferias de São Paulo. Aos

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poucos a ideia de propor intervenções mais diretas e práticas por meio da produção de movelaria foi perdendo o sentido a medida em que fui problematizando essa questão de como intervir. Todas as formas que eu imaginava de aproximar-me de alguma comunidade ou bairro de periferia através da proposta de uma intervenção prática me levavam a refletir qual a validade e a necessidade de uma ação desse tipo. Talvez esse contato que me colocaria no papel de detentora da técnica fosse justamente o caminho de aproximação que eu não queria.

E foi aí que se evidenciou uma outra inquietude que me acompanha a bastante tempo em minha formação. Sempre me questionei a respeito da forma como o arquiteto intervém nos espaços com seus projetos. Sem ignorar o que aprendi a respeito da prática projetual, sempre tive interesse em ir além do desenho no papel, em uma outra forma de me relacionar com o objeto de projeto – o lugar ou o terreno – e com os instrumentos para projetar. Tenho interesse em me aproximar do objeto não só como território, como espaço, mas como espaço habitado, espaço de relações e encontros. E esses espaços do encontro tem características muito específicas em cada caso que podem não ser completamente apreendidas pelos métodos clássicos de análise dos arquitetos – mapas, plantas, tabelas. É a procura de outro tipo de apreensão do problema que me interessa, através de uma forma diferente de aproximação desses espaços habitados.

Sobre a questão da autoconstrução, meu interesse em abordá-la se deu por acreditar que trata-se de uma forma de habitação predominante nas áreas de periferia. De fato, de acordo com a SEMPLA, cerca de 3,4 milhões de habitantes, vivem em assentamentos precários no município de São Paulo, dos quais 1,6 milhão em moradias precárias localizadas em loteamentos irregulares; 1,2 milhão em favelas; 600 mil em cortiços1 1 Olhar São Paulo – Contrastes Urbanos. Publicação da Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA) da Prefeitura de São Paulo – Departamento de Estatística e Produção de Informação (DIPRO). São Paulo, 2007

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(SEMPLA, 2007, p.55). Apesar desses dados bastante objetivos, os próprios termos “favela” e “autoconstrução” estão permeados por subjetividades. É difícil definir os limites de uma e de outra. A SEHAB tem a seguinte definição de favela:

aglomerados de moradias de reduzidas dimensões, construídas com materiais inadequados (madeira velha, zinco, latas e até papelão) distribuídos irregularmente em terrenos quase sempre desprovidos de serviços e de equipamentos urbanos e sociais, compondo um complexo de ordem social, econômica, sanitária, educacional e urbanística. 2

Entretanto essa definição já está sendo questionada pela própria secretaria. Lúcio Kowarick aborda diversas questões a respeito de autoconstrução, favelas e cortiços em seu livro Viver em risco3, dentre elas a linha tênue que define o que é um ou outro tipo de habitação. Ele demonstra em sua pesquisa que há diversas interpretações do que são essas três formas de habitar até mesmo entre os que as habitam.

Para quem não habita favela, esta é vista como a pior condição de moradia, seja pela precariedade, seja pela violência que as pessoas consideram lá existir. De um lado, nada indica que elas se destacam por maior índice de crimes em relação às demais áreas periféricas. De outro, é difícil distinguir os aglomerados das áreas invadidas dos loteamentos ‘ilegais’. Mas não resta dúvida de que houve uma aproximação entre estas modalidades de habitar: a Vila Nova Jaguaré é exemplo destas mobilizações por melhorias urbanas: ‘O povo se organiza quando percebe que pode ganhar alguma coisa’. (KOWARICK, 2009, p. 286)

Portanto, trabalhar com autoconstrução é um interesse que decorre do reconhecimento de uma forma predominante de habitação entre as classes baixas. E são diversos os autores e as formas de tratar desse assunto. Na busca de uma definição melhor do meu tema, entrei em contato com alguns trabalhos que tratam da autoconstrução. Vou explicitar aqui alguns dos 2 www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/3 KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. São Paulo: Ed. 34, 2009

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caminhos possíveis que eu poderia ter seguido, mas para fazer jus às minhas inquietações acabei me aprofundando em outro sentido.

Os trabalhos de Raquel Rolnik e Nabil Bonduki4, trazem o debate da autoconstrução no contexto da acumulação capitalista, fazendo referência às análises de Francisco de Oliveira. São diversas as interpretações de como a autoconstrução se insere nos sistemas e processos produtivos da cidade, e essa discussão segue problematizando as formas de tratar a questão da habitação na cidade. O trecho a seguir está inserido em um texto de Nabil Bonduki, intitulado Autoconstrução e habitação – memória e reflexões sobre a contribuição de Chico de Oliveira, no livro Francisco de Oliveira – A tarefa da crítica5.

(...) por fidelidade teórica e ideológica criticávamos e não admitíamos qualquer iniciativa pública que propusesse apoiar a autoconstrução, o mutirão e outros processos produtivos considerados convenientes para a acumulação capitalista nos moldes da interpretação que o Chico dava. (BONDUKI in RIZEK; ROMÃO, 2006, p.231)

No texto o autor discorre sobre como ele mesmo voltou a questionar a própria posição que tinha a respeito do tema, problematizando a interpretação de que a autoconstrução contribui para a acumulação capitalista pelo supertrabalho a que está sujeita - em geral os moradores constroem utilizando seu tempo livre para essa atividade que não é remunerada. Entrar nessa discussão é um caminho possível, já trilhado por vários autores, porém, no meu caso, tratarei da autoconstrução como forma de morar, como espaço que abriga percursos de vida, e não como agente ou produto de toda uma cadeia de processos em um sistema sócio-econômico.

4 a exemplo BONDUKI, Nabil Georges; ROLNIK, Raquel. Periferias - Ocupação do espaço e reprodução da força de trabalho. São Paulo, FAUUSP - Fundação para Pesquisa Ambiental, 1979.5 RIZEK, Cibele Saliba; ROMÃO, Wagner de Melo (org.). Francisco de Oliveira, a tarefa da crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2006

Na página anterior: fotografia da vista da janela posterior da casa de Cláudia - um dos casos aqui tratados - no Parque Residencial

Cocaia na Zona Sul de São Paulo.

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Outros trabalhos que problematizam a questão da autoconstrução são os projetos participativos das assessorias técnicas, a exemplo Usina e Peabiru. São organizações que tem conceitos de atuação distintos, mas ambas operam em projetos de cunho social, de forma conjunta com os interessados, os moradores das áreas de ação dos projetos. A Usina apresenta- se dizendo que atua

principalmente junto aos movimentos sociais objetivando a construção de experiências territoriais de outra ordem, que envolvam a capacidade de planejar, projetar e construir pelos próprios trabalhadores, mobilizando fundos públicos em um contexto de luta social e reforma urbana.6

Se propõem portanto não só a efetivar construções coletivas através de mutirões, como também coletivizar a própria concepção dos projetos. Já a Peabiru coloca-se de forma diferente:

Para cada trabalho, a Peabiru compõe equipes técnicas interdisciplinares, procurando estabelecer relações de troca entre os saberes técnico e popular e estimular a autonomia dos grupos assessorados.7

Portanto, ambas preocupam-se com a relação entre os projetos e quem deles fará uso, mas cada uma tem uma maneira de lidar com a questão. De qualquer forma, são trabalhos que tem em comum com o meu essa preocupação com o tipo de aproximação que faz o arquiteto de seu objeto de estudo. Contudo, são trabalhos que exigem algum tipo de organização prévia de um grupo ou comunidade, ou por iniciativa do Estado. Portanto acontecem sempre que há um interesse e uma iniciativa, e acredito que esse tipo de ação represente uma pequena parcela na produção de habitação na cidade, e por isso não contemplam a maioria da população de baixa renda nas periferias de São Paulo – lembrando que 3,4 milhões de pessoas vivem em 6 www.usinactah.org.br7 www.peabirutca.org.br

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assentamentos precários na metrópole8. Para o meu trabalho, me interessa analisar moradias que façam parte dessa maioria de unidades habitacionais precárias, que são as casas autoconstruídas, para poder tentar compreendê-las de forma distinta. As atuações das assessorias e os trabalhos de mutirão implicam, portanto, em consequências e modos de morar distintos das que pretendo analisar. José Guilherme Cantor Magnani fala em seu livro Festa no pedaço9 a respeito da necessidade de se entender os moradores das periferias de outra forma, de não reconhecê-los somente através de movimentos organizados.

Em suma, as populações dos bairros periféricos são objeto de atenção e interesse na medida em que se organizam em associações e protagonizam movimentos reivindicativos. Outras práticas, através das quais enfrentam o cotidiano, não são levadas em conta, ou então são consideradas como obstáculos à percepção de seus interesses e a uma ação política consequente: sua concepção de família é tida como conservadora; suas tradições, resquícios fragmentários de uma cultura rural e pré-capitalista; seu lazer não passa de escapismo, sua religiosidade é fator de alienação e seus projetos de vida, tentativas frustradas de ascensão social. (MAGNANI, 1984, p. 19)

Os trabalhos de Carlos Lemos e Maria Ruth Sampaio introduzem outra forma de enfrentar a questão da habitação social. Na pesquisa Habitação popular autoconstruída10, fazem levantamentos quantitativos a respeito da autoconstrução nas periferias da cidade de São Paulo. Esta pesquisa tem grande importância para a bibliografia como um todo, por levantar de forma palpável dados a respeito de um tipo de habitação que foi amplamente reproduzido nas periferias da cidade nas últimas décadas. Este trabalho foi também importante como

8 Olhar São Paulo – Contrastes Urbanos. Publicação da Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA) da Prefeitura de São Paulo – Departamento de Estatística e Produção de Informação (DIPRO). São Paulo, 20079 MAGNANI, José Guilherme C.. Festa no pedaço:cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.10 SAMPAIO, Maria Ruth e LEMOS, Carlos A. C.. Habitação popular autoconstruída. São Paulo: FAUUSP, 1978.

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Fotografia da vista dos fundos da casa de Cláudia no Parque Residencial Cocaia

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contextualização para o meu, entretanto, faz um tipo de análise que tem sentido distinto do que me proponho a fazer.

Enfim, esperamos conseguir, com a nossa mencionada pesquisa, elementos que norteiem uma racional programação da casa popular, sem pretender o perfeccionismo do arquiteto Nuno Portas, que almeja tirar de um computador eletrônico a fórmula perfeita e fria de um lar operário, mas querendo buscar nos hábitos singelos do povo uma receita de bem morar. (Lemos, 1978, p. 19)

Um levantamento como este me serve como evidência da relevância do tema da autoconstrução, mas o caminho que pretendo seguir será distinto deste. Pretendo fazer uma aproximação diferente, uma tentativa de enxergar essas pessoas e essas habitações com outro olhar. Elas são em meu trabalho o próprio objeto, e não um dado. Nem tampouco pretendo encontrar uma “receita do bem morar” justamente por acreditar que as formas de morar devem ser apreendidas com maior profundidade. A ideia de receita me parece um pouco complicada, não entendo essas habitações como passíveis de um tipo de homogeinização.

Portanto, considerando todos esses caminhos e contribuições possíveis mencionados, pretendo trabalhar com um tipo de aproximação que leve em conta as formas de morar dessas pessoas que vivem em habitações autoconstruídas nas periferias de São Paulo, seus valores e sua cultura.

Essa inquietação pela busca de um outro tipo de aproximação está presente desde o início de minha formação, quando me questionava a respeito de quem são as pessoas para as quais projetamos, quais são suas expectativas, seus valores, seus desejos? Não pretendo projetar conjuntamente com a comunidade como fazem algumas assessorias, acompanhar processos de mutirão, tampouco reproduzir a relação arquiteto-cliente em áreas de periferia.

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Me interessa uma aproximação do objeto distinta daquela que aprendi nas disciplinas de projeto que cursei. As análises de fluxos, zoneamento, coeficientes e necessidades, e até mesmo as visitas que fazemos ao lugar como arquitetos tem um caráter técnico e distanciado. Algumas vezes há breves diálogos com moradores. O produto final são desenhos que transmitem uma série de valores do arquiteto moldados a fatores observados através de mapas, google e fotografias.

Os desenhos e fotografias que aparecem neste trabalho fazem parte do conjunto de registros feitos por mim durante o ano de 2011 em visitas aos estudos de caso aqui tratados.

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“Quando se propõe uma viagem por dentro da cidade, o que se pretende é ir além dessas alternativas, não para provar alguma tese ou buscar a comprovação de questões preestabelecidas, mas para dispor-se a reconhecer outro horizonte e perceber a palpável e efetiva existência de redes sociais, iniciativas localizadas, arranjos coletivos, sistemas de trocas, projetos em parcerias, pontos de encontro, formas de autopromoção, de representação, de associação - sem os quais a vida social, nas suas múltiplas dimensões, já a muito estaria impossibilitada, no cenário dessa megalópole.” (Magnani, 2004, p. 34)

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“Quando se propõe uma viagem por dentro da cidade, o que se pretende é ir além dessas alternativas, não para provar alguma tese ou buscar a comprovação de questões preestabelecidas, mas para dispor-se a reconhecer outro horizonte e perceber a palpável e efetiva existência de redes sociais, iniciativas localizadas, arranjos coletivos, sistemas de trocas, projetos em parcerias, pontos de encontro, formas de autopromoção, de representação, de associação - sem os quais a vida social, nas suas múltiplas dimensões, já a muito estaria impossibilitada, no cenário dessa megalópole.” (Magnani, 2004, p. 34)

Rua de terra no Cocaia

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Com este trabalho questiono o processo projetual de raízes modernas que aprendi, do diagnóstico à proposição. Sem negar a importância dessas aprendizagens, pretendo olhar para aspectos que envolvem o processo projetual. Trata-se de um outro tipo de aproximação do problema que não a quantitativa, técnica, em algum sentido distante e superior.

Minha inquietação referente ao ato de projetar se deu por um incômodo em relação a esse distanciamento que há entre o detentor da técnica - o arquiteto - e seu objeto. Projeta-se com base em mapas e plantas, em vista superior. Me interessa um entendimento sensorial do problema, uma relação fisicamente próxima da área que se pretende projetar. Me interessa o exercício de um olhar de dentro para fora, uma inserção no problema. E não só isso, mas também conhecer de forma mais humana e menos técnica as pessoas que vivem nesses lugares. Para além de suas insatisfações com a falta de infraestrutura, a ausência do Estado, quero entender de quem estou tratando, quais são os valores dessas pessoas, sua cultura, seu olhar para a cidade.

Nesse sentido, acredito que procuro com este trabalho olhar para essas pessoas, entendendo-as como indivíduos com suas particularidades e visões de mundo e espaço. A visão do mapa, ortogonal e superior, permite leituras distintas da que busco aqui. Michelle Perrot, em seu livro Os excluídos da história – operários, mulheres e prisioneiros1, fala que o urbanismo, associado a mudanças demográficas, fim das migrações e enraizamentos, tende a disciplinar a multidão, que começa a voltar-se mais a seus espaços particulares.

Por mais que eu possua o conhecimento técnico, não me sinto confortável em propor intervenções que aconteçam de cima para baixo, como se eu detivesse o poder do conhecimento e da

1 PERROT, Michele. Os excluídos da história – operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Vista da Serra da Cantareira a partir da cobertura da casa de Jacira

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técnica que se sobrepusesse a todos os valores e camadas de história, cultura e vida do lugar. Novamente reitero que não abdico das aprendizagens do curso de Arquitetura e Urbanismo, que entendo a importância das análises técnicas, do projeto que se resolve no desenho. Mas para este trabalho, pretendo olhar de outra forma.

Acredito que a discussão que Bruno Latour traz em Jamais fomos modernos2 na área da antropologia a respeito da separação entre as ciências exatas e as ciências humanas contribui aqui para essa reflexão do distanciamento que há entre o fazer arquitetônico e os sujeitos que dele são objeto.

Se a Constituição moderna inventa uma separação entre o poder científico encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado de representar os sujeitos, não devemos tirar disto a conclusão que os sujeitos estão longe das coisas. (Latour, 1994, p. 35)

Latour coloca que essa separação das ciências nasce na modernidade:

Enquanto considerarmos separadamente estas práticas, seremos realmente modernos, ou seja, estaremos aderindo sinceramente, ao projeto da purificação crítica (…) (Latour, 1994, p. 16)

Com o interesse em um outro tipo de aproximação do objeto de estudo ou do problema de projeto, fui em busca de um conjunto de referências bibliográficas que pudessem orientar essas inquietações distinto daquele citado na introdução.

Consultei alguns trabalhos de antropologia, e dessas leituras me chamou a atenção alguns pontos que os pesquisadores levantam a respeito de suas metodologias de trabalho. Notei que a questão da relação com o objeto é bastante recorrente. Tanto quando o objeto é próximo ou familiar ao pesquisador, quanto quando é distante, há dificuldades a serem enfrentadas seja pelo risco de 2 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

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“naturalizá-lo”, no primeiro caso, seja pelas barreiras à inserção, no outro caso.

Faz-se necessário manter, de alguma forma, esta situação de “estranhamento”, pois à medida que o desconhecido vai se tornando familiar, corre-se o risco de prestar atenção apenas a questões supostamente mais importantes. (Magnani, 1984, p.10)

Durante o meu trabalho passei por alguns momentos em que essa questão se evidencia e eu tive que lidar com situações de desconfiança, tomando cuidado para não criar barreiras maiores.

Identifiquei também que não há regras rígidas de conduta para as pesquisas de campo antropológicas e etnográficas. Como as variáveis são infinitas, cada objeto tem uma série de contextos e atores, não é possível definir posturas corretas ou incorretas. Deve-se sim não perder o foco da pesquisa, aproximando-se ou distanciando-se à medida que for necessário. Trabalhar com as sutilezas do discurso, respeitando limites para evitar rompimentos ou criação de barreiras.

não há como ensinar a fazer pesquisa de campo como se ensina, em outras ciências sociais, métodos estatísticos, técnicas de surveys, aplicação de questionário. Na antropologia, a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisador, das opções teóricas da disciplina em determinado momento, do contexto histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações que se configuram no dia-a-dia no local da pesquisa, entre pesquisador e pesquisados. (Mariza Peirano in Magnani, 2000, p.35)

Notei que as pesquisas antropológicas fazem um recorte que privilegia seus entrevistados como fonte, relacionando o particular com o geral, sempre fundamentando o entendimento dessa fonte com suas referências da área. Mas as análises do lugar, o contexto, a história, estão sempre ligados ao discurso dos entrevistados, são eles que contam as histórias do lugar. Nesse sentido difere da arquitetura pois problematiza a escolha

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e o uso da fonte. Entendo que o fazer arquitetônico, da forma como me foi ensinado, atribui outra relevância ao uso dos personagens que fazem parte do contexto de seu objeto. A antropologia então traz essa possibilidade de um outro olhar para essas pessoas, uma forma de conferir-lhes importância como objeto e como fonte.

No texto Antropologia Urbana. Encontro de tradições e novas perspectivas de Gilberto Velho3, há uma citação particularmente interessante para minha pesquisa.

Os objetos estudados e as perspectivas técnicas mais utilizadas levaram, inevitavelmente, ao uso crescente de histórias de vida, biografias e trajetórias individuais. Dessa forma, os indivíduos, na sua singularidade, também se tornaram matéria da antropologia, à medida que eram percebidos como sujeitos de uma ação social constituída a partir de redes de significados. Em lugar de considerar os indivíduos como determinados por instâncias englobantes anteriores, passava-se a estudá-los como intérpretes de mapas e códigos socioculturais, enfatizando-se uma visão dinâmica da sociedade e procurando-se estabelecer pontes entre os níveis micro e macro. (Velho, 2003, p. 16)

Nesse sentido, nota-se que não só a antropologia faz uso desse artifício de pesquisa que toma apenas um indivíduo como objeto, como também a história.

Alguns estudos biográficos mostraram que um indivíduo medíocre, destituído de interesse por si mesmo – e justamente por isso representativo – pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado período histórico – a nobreza austríaca ou o baixo clero inglês do século XVI. (...) Em poucas palavras, mesmo um caso limite (e Menocchio com certeza o é) pode se revelar representativo, seja negativamente – porque ajuda a precisar o que se deva entender, numa situação dada, por ‘estatísticamente mais frequente’ – seja positivamente – porque permite circunscrever as

3 VELHO, Gilberto. Antropologia Urbana. Encontro de tradições e novas perspectivas. Publicação Sociologia, problemáticas e práticas. Nº 59, 2009.

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possibilidades latentes de algo (a cultura popular) que nos chega apenas através de documentos fragmentários e deformados, provenientes quase todos de ‘arquivos da repressão’. (Ginzburg, 1987, p.27)

Nesse trecho do prefácio do livro O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição4, Carlo Ginzburg justifica a pesquisa histórica que se foca em um único indivíduo.

A parir dessas leituras, e considerando as possibilidades de um Trabalho Final de Graduação, optei por tratar de dois casos individuais que possam levantar questões amplas a respeito da autoconstrução nas periferias.

Pretendo, portanto, através desses dois estudos de caso, me aproximar de pessoas que vivem em regiões periféricas da cidade, em casas autoconstruídas em loteamentos irregulares. Essa aproximação se dará de forma a entender a vida e a vivência de moradia e de cidade que essas pessoas têm, sem objetivar um projeto arquitetônico específico. Não estou propondo que a cada projeto que se faça seja necessária uma imersão, um aprofundamento intenso como o que me proponho a fazer. Mas o que me interessa perceber é que a técnica vai além de resolver fluxos e necessidades. Acredito que existem fatores de caráter humano e cultural, que devem ser considerados na prática projetual.

Os dados da SEHAB, já mencionados, comprovam a presença significativa desse ‘modelo’ de habitação que é a autoconstrução nas periferias de São Paulo. Além disso, a bibliografia repete, ao descrever o processo evolutivo da cidade, que

Foram enfim se criando os fundamentos para um crescimento baseado no trinômio loteamento periférico, casa própria e autoconstrução. (Frugoli, 1995, p.29)

4 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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O Cachoeira

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Mônica de Carvalho faz uma breve descrição desse processo de crescimento da cidade no livro Expedição São Paulo 450 anos: uma viagem por dentro da metrópole, organizado por Magnani. Segundo ela, desde o século XIX inicia-se um processo de ocupação das terras rurais adjacententes à cidade por serem terras sem regulamentação, facilitando a ocupação por loteamentos populares.

O problema se intensifica a partir da década de 1940, quando a crise de financiamento para habitação de aluguel produz o trinômio loteamento irregular, autoconstrução e casa própria. (...) O mesmo movimento, que expandia os equipamentos públicos e os benefícios, da urbanização para os loteamentos desprovidos das mínimas condições, conferia-lhe valor, reproduzindo a terra para o capital. A geração seguinte não teria mais condições de pagar pela terra enriquecida pelo trabalho social e teria de avançar, conquistando novas terras num processo de migração interurbana sempre renovável. (Carvalho in Magnani, 2004, p.104)

A autoconstrução aparece, portanto, quase como único recurso para alcançar o “sonho da casa própria”. E esse sonho foi e continua sendo reiterado pelas políticas de governo e mídia como a representação da garantia dos direitos, do reconhecimento como cidadão.

É nítido que a autoconstrução em loteamentos irregulares é hoje e desde algumas décadas, a forma de habitação predominante nas periferias da cidade de São Paulo. E foi por isso que voltei meu olhar para ela, por enxergar que é assim que a cidade se reproduz e se expande nas periferias.

A escolha de tratar deste tema sob esse outro olhar e questionando o processo projetual traz também a antiga questão do papel do arquiteto. Qual a função do arquiteto que se depara com um cenário urbano tão consolidado como são as periferias de São Paulo? Qual a função do arquiteto que se vê diante da

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precariedade urbana e construtiva desses lugares? Como deve tratar esses problemas? Em que medida o arquiteto é capaz de resolver os problemas urbanísticos e arquitetônicos da periferia? Como deve ser sua inserção e a inserção de sua prática no lugar?

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Antena de transmissão de alta tensão, Cocaia

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escolha dos casosSituados em diferentes áreas geográficas da cidade, a pesquisa trabalhou com duas mulheres com histórias de vida diferentes. Têm poucas coisas em comum: ambas vivem em casas autoconstruídas em loteamentos clandestinos localizados em áreas periféricas da cidade de São Paulo. E são essas características que as fez minhas fontes de pesquisa, já que fazem parte, por isso, da maioria, já referida na introdução, que vive em habitações precárias na cidade de São Paulo. São elas Jacira, 46 anos, moradora do bairro Cachoeira, no extremo da Zona Norte de São Paulo, e Cláudia, 41 anos, moradora do Parque Residencial Cocaia, bairro no Grajaú, região da Represa

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Antena de transmissão de alta tensão, Cachoeira

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Billings na Zona Sul da cidade.

A escolha desses casos partiu de uma viabilidade prática. Antes mesmo de saber qual seria o tema da pesquisa comecei a procurar os primeiros contatos com habitações em áreas de periferia, pois tinha a convicção de que este seria meu objeto de trabalho. Acabei conhecendo essas duas mulheres e, no decorrer do desenvolvimento do tema diversos fatores convergiram no sentido de justificá-las como casos de estudo. Diversas semelhanças e diferenças entre esses dois casos se mostraram ricas fontes de pesquisa, desde a localização geográfica até a composição familiar e as histórias de vida.

Antes de discorrer sobre os dois casos, quero esclarecer algumas opções que tomei em relação à forma como conduzi as conversas com as pesquisadas. No primeiro contato, meu tema ainda não estava bem delineado, fui então para uma primeira conversa, sem saber ao certo a proposta desse contato. Há, entretanto, uma diferença em minha relação com elas, Cláudia já trabalhou em minha casa e temos alguma proximidade, mas Jacira eu não conhecia, e por isso fui recebida com uma certa desconfiança, apesar de ela não poupar conversa. Na segunda visita já se percebe uma confiança maior. Porém, mesmo nessa segunda visita a ambas, apesar de eu ter levado câmera fotográfica para eventuais registros, acabei optando por não usá-la. Cogitei também o uso de gravador de voz, e me questionei bastante a esse respeito, pois acredito que minha capacidade de registro por memória filtre muitas informações importantes. Entretanto, preferi não utilizar nenhum desses equipamentos por acreditar que criariam barreiras entre mim e elas. No caso de Jacira, já havia uma desconfiança latente, creio que o uso dos equipamentos nos distanciaria mais, já que estávamos em um momento de aproximação. Já Cláudia não possui barreiras em relação a mim, mas talvez em relação a idéia de contribuir para um trabalho de faculdade, e nesse caso o uso

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dos aparelhos poderia causar censura e estranhamento. Optei, portanto, em fazer uso de minha proximidade com Cláudia, e iniciar uma relação de proximidade com Jacira, aproveitando sua eloquência.

No terceiro encontro já foi notável a abertura que começa a acontecer. No final das contas acabei tendo mais facilidade em tirar fotografias e registrar vídeos na casa de Jacira do que na casa de Cláudia, isso porque Jacira se diz mais acostumada com a presença de jornalistas tirando fotos em sua casa, já que seu filho é rapper. Ao longo do trabalho, no entanto, foi possível me aproximar o suficiente para conseguir registrar melhor os encontros.

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jaciradescrição dos casosAo longo do ano foram seis encontros que duraram em torno de três a seis horas cada, e uma visita ao bairro que fiz sozinha. Às vezes acompanhei alguns percursos que Jacira faz pela cidade, outras vezes fiz visitas diretamente a sua casa.

Dona Jacira é moradora do Cachoeira desde pequena. Conta que seus pais viviam nos fundos de uma igreja no bairro Casa Verde porque seu pai era presbiteriano, mas ele morreu meses antes de ela nascer e como sua mãe não tinha ligações com a igreja, tiveram que sair de lá. Passaram por um cortiço, mas devido à pouca idade ela não se lembra onde se localizava, e depois os seus irmãos foram para uma cidade do interior - eram três - e as meninas - Jacira e uma irmã - foram para um convento, onde ela sofria agressões. A passagem pelo convento, por volta dos seis anos, foi bastante traumatizante, Jacira se lembra de “perder a fantasia” que enxergava nas coisas, e da decepção em relação à mãe. Essa decepção permeou seu discurso.

Jacira somente saiu do convento depois de uma internação na UTI por motivos que não foram esclarecidos, apenas disse que ficou muito doente, como se fosse consequência do mau tratamento que recebia. Na UTI disse que o médico recomendou que sua mãe não a levasse novamente ao convento, porque “toda

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Antena de transmissão de alta tensão, Cachoeira

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vez que via uma freira piorava”. Passou então a viver com a mãe em uma casa já no Cachoeira.

Aos 13 anos casa-se em busca de uma vida melhor, aparentemente a vida com a mãe era fonte de infelicidade. “Mas eu era feliz e não sabia”, ao mudar-se para a casa da família do marido, depara-se com um ambiente cheio de conflitos e violência. “De quatro irmãos só sobrou um!”, seu marido foi morto depois que ela já havia voltado a viver com a mãe. Nessa época já possuía os quatro filhos.

Buscando sair da casa de sua mãe novamente, envolve-se com o Movimento Sem Terra, participando de ocupações e acampamentos com os filhos, sempre ali na região do Cachoeira. Mas logo se frustra ao acompanhar uma conversa em que duas mulheres falavam sobre corrupções e “aí descobri que minha casa tinha sido vendida”. Sai então do movimento e continua vivendo com a mãe, o que aparentemente lhe causava incômodo, dizia “eu não podia voltar pra casa da minha mãe de novo!”.

“Fiquei pensando o que eu vou fazer agora com esses quatro meninos, eu não tinha expectativa de vida”. Ao ouvir falar de um curso técnico em enfermagem que uma prima havia feito, “pensei, vou fazer isso mesmo né”. Após o curso, passou três anos exercendo a profissão, quando teve insuficiência renal e novamente foi parar na UTI. Nesse momento Jacira não fez referência à doença que possui, que descobri mais tarde que era Lupus, uma doença autoimune sem cura. Aposentou-se por invalidez e casou-se novamente.

A família do marido não aceitava a união visto que ela era uma mulher negra, pobre e com quatro filhos e Eduardo e sua família eram todos brancos. Mas assim mesmo foram morar em uma casa no mesmo terreno que o da família de Eduardo. “Lá eles falavam comigo enquanto o Eduardo estava em casa, quando ele saía pra trabalhar eles não falavam.”

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Terminal intermodal Santana, ponto inicial do ônibus Cachoeira 1783

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Através de sua mãe Jacira ficou sabendo da venda de lotes onde hoje é sua casa. Compraram o lote de uma pessoa que depois de um tempo nunca mais ninguém soube notícia. Construíram um barraco de madeirite, onde foram morar enquanto começavam a construir a casa de alvenaria. A polícia chegou um dia com um mandado de despejo, então tiveram que deixar o terreno. Começaram a viver de aluguel, mas em visitas ao local do terreno comprado descobriram que outras pessoas começaram a construir, então voltaram. “Até hoje o cara não conseguiu provar que o terreno é dele, às vezes tem umas reuniões com a prefeitura.”

Começaram a construir pela cozinha e pela garagem. Compravam os materiais em três prestações, por levas. Jacira faz referência à candidatura da ex-prefeita Marta Suplicy, que implantou o Bilhete Único, e só assim foi possível juntar dinheiro para comprar os materiais e construir a casa. Antes pagava quatro conduções para cada filho ir e voltar da escola, além de pagar as parcelas da compra do terreno.

Hoje vive na casa de três andares com o marido Eduardo, um dos filhos, uma das filhas e o genro.

Quando perguntada sobre o transporte Jacira disse que o único ônibus que serve a região é o “Cachoeira”, que sempre existiu, mas que antes possuía outro nome, “Portal da Cantareira”, “que é bem mais bonito né?! Se bem que Cachoeira também é bonito”.

O percurso até a casa de dona Jacira demora aproximadamente 50 minutos desde o centro da cidade seguindo de automóvel. Fazendo o trajeto de ônibus demoramos aproximadamente 2h com uma parada em um mercado, em um horário com pouco trânsito. Pegamos o ônibus Lauzane Paulista 178L, paramos no terminal de Santana, na estação Santana do metrô, ponto inicial do outro ônibus que pegamos, o Cachoeira.

O caminho de automóvel pode ser feito por dentro da Zona Norte

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da cidade de São Paulo ou pela rodovia Fernão Dias. Segue-se pela Av. Coronel Sezefredo Fagundes e nela são nítidas as mudanças de paisagens. No início há uma sensação de continuidade urbana da cidade até um trecho em que a avenida torna-se um pequeno centro comercial, com muitas pessoas e carros na rua. Logo depois desse trecho a paisagem segue como ruralizando-se, aparecem edificações mais peculiares como motéis e criação de produtos agrícolas. Aos poucos nota-se alguns núcleos de loteamentos semelhantes ao de Jacira, com urbanização precária e casas autoconstruídas. No caso do loteamento dela o asfalto era nitidamente muito recente em

Vista da Serra da Cantareira a partir da varanda da casa de Jacira

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minha primeira visita, assim como a ligação de esgotos, que entretanto ainda não pode ser usada devido à um trecho em falta.

No caminho também é possível ver alguns loteamentos de casas e edifícios que acredito que são algumas citadas por Jacira como feitas pelo CDHU. Além das antenas de transmissão de energia.

Ao longo das visitas, notei algumas casas que estavam em construção, mas ainda nas fundações, e que foram evoluindo, subindo paredes e lajes.

Jacira sempre esteve um pouco desconfiada em relação a mim. Ela mesma se diz uma pessoa muito desconfiada, quando falava das matérias que saem na mídia a respeito de seu filho, que é rapper. Entretanto, desde primeira visita à ela nota-se uma evolução. Acredito que essa evolução se deve a um melhor entendimento do tema do trabalho, tanto por mim quanto por ela, e também à abordagem, perguntei mais sobre sua vida, sua história. Jacira gosta de falar, não é preciso muito para que ela comece a discorrer sobre sua vida. Algumas vezes se perdia no discurso. Dessa forma me parece que fica mais fácil a conversa, cujo foco na verdade é ouvir o que ela tem para falar. Evolução de uma construção à frente da casa

de Jacira

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Foram quatro encontros com Cláudia ao longo do ano e em uma delas dormi em sua casa e a acompanhei no percurso de ida ao trabalho. Fiz mais duas outras visitas ao bairro desacompanhada.

Claudia é mineira de uma cidade do interior de Minas Gerais. Veio para São Paulo com 19 anos e logo começou a trabalhar como empregada doméstica. Seu marido, José Carlos, é baiano de uma cidade próxima à Vitória da Conquista, veio a São Paulo com aproximadamente vinte anos.

Conheceram-se em um baile na Praça da Árvore, quando José Carlos se interessou por sua amiga. Demorou seis meses até que pudessem se reencontrar, nesse meio tempo Luisa, amiga de Cláudia delatava os namoros de José Carlos com outras garotas. Depois de três meses juntos, a prima de Cláudia é demitida e ela a ajuda alugando conjuntamente um apartamento na Praça da Árvore. Entretanto acabam vivendo no apartamento a prima e José Carlos, pois Cláudia dormia no emprego.

No período da primeira gravidez Claudia conta que se separa de José Carlos, “homem é tudo safado né”, e passa a morar ‘de favor’ em minha casa. Depois de alguns meses de vida da filha mais velha, reatam o relacionamento.

cláudiadescrição dos casos

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Depois do nascimento dos dois filhos, uma menina e um menino, começaram a viver de aluguel na Vila Joaniza. Hoje faz aproximadamente nove anos que compraram a casa no bairro Parque Residencial Cocaia. Quando perguntados porque foram morar no bairro, responderam “por causa dela” - apontando para Cida, uma sobrinha de José Carlos que já morava no bairro com o marido -, “e depois de mim veio minha irmã com o marido”. Cida falou: “Eu bem que gostaria de morar onde você mora, mas não tenho...”, e fez um gesto com os dedos indicador e polegar representando dinheiro.

A casa, localizada em um terreno inclinado bem próximo a um braço da Represa Billings, foi comprada já com dois andares. Enquanto moravam no de baixo iniciaram a construção de uma laje a mais e hoje vivem no terceiro andar com uma cozinha, dois quartos e um banheiro, e alugam os cômodos dos andares de baixo, sendo que todos têm acessos separados. A parte onde vivem e alguns cômodos dentre os alugáveis ainda estão sem revestimento, que eles estão providenciando com a contratação de um pedreiro, “Pedreiro enrola muito, vixe Maria!”.

O percurso até a casa de Cláudia já é bem diferente do de Jacira. Totalmente urbanizado e densificado, com ocupação intensa da rua por carros e transeuntes. É notável a presença do comércio em plena atividade em um domigo as 14h principalmente quando nos aproximamos da região do Grajaú, depois de passar o autódromo de Interlagos. Para esse percurso demorei uma hora, de automóvel, desde a minha casa no bairro Planalto Paulista, próximo ao metrô Praça da Árvore. O citado comércio é, predominantemente, de lojas cujo público alvo são as classes C, D e E.

Em uma das visitas fui recebida não só pela Cláudia, seu marido e a filha Anna Beatriz, como também por Cida. Mais tarde chegaram o marido de Cida, seu filho e também o marido de Silvana e seu filho. Em princípio ficamos conversando na

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cozinha, enquanto Cláudia cozinhava, “Você vai almoçar com a gente tá?!”. Depois fomos ver a Represa Billings por um ângulo da janela com grades no quarto das crianças. Em outra conversa Cláudia comenta de forma displicente que não vê e nem conhece a represa que faz margem à sua casa.

No quarto das crianças conversei um tempo com José Carlos, e quando retornamos à cozinha em seu centro havia um núcleo de crianças brincando, que logo foram expulsas para o quarto do casal. “Você está em casa de pobre, em casa de pobre não tem cadeira”, explica Cláudia tentando me acomodar enquanto cozinha. Com a casa cheia, dentre adultos e crianças, almoçamos em meio a piadas e histórias.

Vista da represa Billings pela janela posterior da casa de Cláudia

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comparações

Em ambos os casos é notável a centralidade das famílias em todo o percurso de vida, a moradia está sempre associada a ela. No caso de Jacira há uma questão de trauma familiar, tanto pela frustração em relação à figura da mãe, quanto de desavenças com os irmãos que são “praticamente estranhos” para ela, já que se separaram muito cedo. Mas ainda assim, quando quis fugir do abrigo da mãe, procurou a constituição de uma nova família, indo morar com as famílias dos maridos que teve. E nas duas tentativas se frustrou, tanto pela violência no primeiro caso, quanto pelo preconceito que sofria no segundo. Diante disso, Jacira continuou a se apoiar na família que já havia constituído, com os quatro filhos e o segundo marido.

No caso de Cláudia, ela mesma diz que casou muito rápido, “foram só 3 meses de namoro!” e logo a vida já começou a ser pautada pela relação. Alugaram apartamento juntos mesmo que ela estivesse dormindo no serviço. Os filhos trazem a necessidade da sobrevivência e a solidificação da unidade familiar, que acaba sendo o motivo e a base das escolhas possíveis de moradia.

Há um texto de Glaucia de Oliveira Assis, intitulado Conexão Criciúma-Boston: os novos emigrantes brasileiros e a configuração de laços transnacionais1 que, ao falar das redes sociais de apoio, discorre sobre a família como centro das opções de vida e moradia. No caso desse trabalho são moradores da cidade de Criciúma, em Santa Catarina, que imigram para os Estados Unidos, mas sempre mantendo ligação com os familiares que ficam, que acabam sendo sua referência para os próximos movimentos que fizessem. Assim como o caso de Criciúma, é nítido a importância da família na construção das histórias de vida aqui tratadas, e das escolhas que vão fazendo. É através da família que se imagina um futuro, que se criam as expectativas, que se superam as dificuldades. 1 ASSIS, Glaucia de Oliveira. Conexão Criciúma-Boston: os novos emigrantes brasileiros e a configuração de laços transnacionais. UDESC.

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É possível perceber que ambas tem perspectivas de melhorar a casa ou aumentá-la de alguma forma, entretanto, Cláudia já dá um uso diferente de Jacira, aluga os cômodos como complementação da renda familiar. Jacira conta com a ajuda dos filhos para as ampliações e sonhos que tem em relação à sua casa, mas também está construindo uma espécie de edícula no fundo do lote onde vão morar sua filha e o marido. Enquanto a primeira já comprou a casa pronta, e apenas construiu extensões, a outra esteve presente desde o princípio da aquisição do lote, chegou a viver em barraco de madeira e aos poucos foi construindo sua casa.

Consequência disso é a forma como as casas foram construídas. Enquanto a de Jacira teve um nítido percurso que começa com o barraco de madeira, que é tido como algo provisório, o começo da construção de alvenaria acontece pela cozinha e depois pela garagem. Só quando vêm os outros cômodos a família sai do barraco. Por ser comprada pronta, a casa de Cláudia já possuía alguns cômodos em dois andares, mas hoje se sentem realizados por morar no andar superior que eles mesmos construíram subindo uma laje.

A sensação de realização para Cláudia e seu marido decorre da posse de uma propriedade privada da qual fazem uso para moradia e para complementação de renda. Essa questão da propriedade privada está relacionada ao valor que a casa própria adquiriu ao longo dos anos por uma série de fatores já mencionados na descrição do tema do trabalho. Mas também revela que usufruir de uma casa própria para eles significa, para além de segurança, liberdade.

Aliás, esse desejo da casa própria necessita de melhor interpretação, além daquela que vai apelar aos sentimentos de segurança ou estabilidade, ou ainda garantia de futuro sem preocupação. (Lemos, 1978, p. 182)

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A parte da casa em que vivem não precisa para eles, em princípio, possuir mais cômodos do que os que têm – dois quartos, cozinha e banheiro. Entretanto, o fato de jamais terem destruído uma escada fechada de ligação entre um cômodo alugado e sua casa, revela uma intenção de manter as possibilidades em aberto. Já Jacira vive em uma casa com garagem no térreo, sala, cozinha, quartos e varanda no primeiro andar, e mais duas salas – sendo que uma funciona como ateliê –, varanda, banheiro e quartos no segundo andar e ainda pretende construir um jardim e uma cozinha em um terceiro andar, sendo que o acesso a esse possível próximo andar já existe através de uma escada.

Jacira me recebeu cada vez em uma sala diferente, uma delas no andar superior, que é como se fosse uma antesala que liga a escada aos quartos e à outra sala do andar. Lá sentamos em um sofá que está centralizado para deixar o corredor livre. Em outras vezes que me recebeu, sentamos em um sofá na sala do primeiro andar, que fica ao lado da cozinha, sem portas dividindo esses dois cômodos. De qualquer forma, a entrada da casa, semelhante à de Cláudia, é feita por uma escada de ligação ao exterior, que dá no ponto central entre a sala, a cozinha e a outra escada de acesso ao terceiro piso. Já na casa de Cláudia a cozinha é um local de múltiplas atividades, foi onde me recebeu e onde almoçamos. Além disso, é o cômodo de entrada da parte onde moram da casa com acesso por uma escada de ligação ao exterior. Assim, percebe-se que a cozinha é um lugar central nas duas casa, ou por ser o lugar onde se pratica todas as outras atividades que não sejam de repouso, ou por estar ligada diretamente ao cômodo de estar, onde se pratica essas atividades.

O fato de Jacira possuir um ateliê dentro de casa e também estar construindo um jardim na cobertura, somado à existência de duas salas, indicam o tipo de uso que ela faz da casa. Não se trata de um lugar para dormir nos dias de semana e para lazer nos

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finais de semana, como é o caso de Cláudia, que trabalha todos os dias úteis inclusive sábados e frequentemente domingos.

O discurso de Cláudia ao me receber é permeado por justificativas como “casa de pobre não tem cadeira”, “você tá em casa de pobre”. Entretanto fica claro também que se sente muito realizada com a conquista de uma casa própria e das reformas que fizeram. Quando perguntei sobre a escolha do lugar quem respondeu foi a Cida, sobrinha de José Carlos, que diz “Eu bem que gostaria de morar onde você mora, mas não tenho...”. Cida enfatiza a diferença socioeconômica entre nós e onde vivemos. Além disso, ressurge aí a questão das redes sociais familiares que servem de apoio inclusive na escolha do local de moradia, “viemos pra cá por causa dela (apontando para Cida), e depois de mim veio minha irmã com o marido”.

Ao fazer referência que gostaria de morar onde eu moro, Cida revela um desejo que não está ao seu alcance, vive onde é possível. Cláudia, em outra conversa disse que gostaria de continuar morando na Praça da Árvore, pela facilidade no acesso, entretanto, pelo preço que pagou em seu imóvel não encontraria apartamento nesse bairro. Já a fala de Jacira não transparece desejo de sair de lá, apenas comenta da precariedade dos serviços públicos e acessos, sem, entretanto, usar esses argumentos como obstáculos para a permanência no local, e sim como problemas que cabe ao Estado resolver.

Os problemas que Jacira enfrentou e enfrenta por viver numa área periférica da cidade não são exatamente os mesmos de Cláudia. Enquanto a região da primeira se vê servida de apenas uma linha de ônibus há mais de 10 anos, na segunda há muito mais linhas, apesar de ambas terem que percorrer longas distâncias e vários ônibus para o centro da cidade. Quanto aos outros serviços públicos, é nítido que a maior urbanização do caso da Zona Sul proporciona mais equipamentos como escolas e postos de saúde, enquanto que no caso da Zona Norte, há que

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se percorrer longas distâncias até a escola ou o posto de saúde mais próximo. Novamente, o que incomoda Jacira é o descaso do serviço público com a região, isso porque hoje os filhos não vivem mais com ela, mas enquanto os filhos eram pequenos, teve várias dificuldades devido à distância das escolas. Enquanto que para Cláudia a escola não é um problema, visto que os filhos podem ir a pé.

Quanto aos equipamentos de lazer, Jacira faz imediata associação aos bares. Nota-se que para ela, o lazer está mais associado à sua permanência em casa, suas atividades manuais de arte, artesanato e jardinagem. Cláudia, apesar da proximidade do CEU Navegantes, da Represa Billings e de alguns campos de futebol de várzea, não faz uso desses equipamentos, concentrando os horários de lazer em casa ou na rua com a vizinhança de amigos.

Jacira refere-se também algumas vezes à dificuldade do acesso a produtos alimentícios baratos, “se eu vou ao centro comprar uma alface ela chega aqui toda murcha”, e por isso até começou o jardim, para produzir as próprias verduras e legumes. Na região de Cláudia, por outro lado, há grande variedade de comércio, inclusive com preços mais acessíveis do que no centro da cidade. Em uma das visitas cheguei a ver uma placa de supermercado que anunciava uma cerveja a R$1,00, enquanto que nos mercados mais ao centro da cidade os preços da cerveja variavam entre R$1,25 e R$1,45.

Portanto, me parece que a realização dos sonhos encontra-se focada mais na constituição da casa em si do que na região onde moram. Cláudia reclama pouco sobre suas dificuldades de locomoção, cita quantas horas demora para se transportar, “tá vendo Bia como a gente sofre”. Uma reclamação que de fato fez foi a respeito do pedreiro contratado para a obra de sua casa. Sair do aluguel já lhe é de grande valia. Jacira tampouco se vê saindo de onde mora, se incomoda com as dificuldades de locomoção,

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mas sempre argumentando como um direito a ser cumprido pelo poder público.

Notei algumas mudanças na evolução da construção das casas, especialmente no caso de Jacira. A primeira vez que a visitei ela falava dos planos que tinha de construir um jardim na cobertura de sua casa. Agora ela já está colocando em execução esse plano com alguns tanques de terra que foram alocados sobre a cobertura da casa. No segundo encontro ela falou sobre o ateliê que possui no segundo andar. Quando nos encontramos pela terceira vez ela já tinha intenções de mudar o local do ateliê pois onde ele está localizado acaba se tornando uma sala de televisão, pois a sala do andar de baixo é muito fria no inverno e todos preferem a sala do andar superior. Portanto Jacira começou a pensar em transformar a sala de baixo em ateliê. No último encontro que tivemos já havia um novo projeto em sua mente que era o de construir uma cozinha na cobertura ao lado do jardim, pois ela diz que odeia cozinhas escuras, e a atual estava ficando mal iluminada principalmente porque o vizinho está construindo no terreno ao lado.

No caso de Cláudia ainda pude perceber que ela tem desejos de completar a casa no sentido de um melhor acabamento. Além disso, há uma escada que liga o andar alugado ao andar em que moram mas que está bloqueada pela laje, porém eles nunca quiseram destruí-la com a expectativa de poderem mudar de idéia a qualquer momento, e voltar a ocupar os cômodos que atualmente estão alugando. O inquilino, porém, agora está destruindo a escada por incômodo com a falta de espaço. Mas também é nítido que sua casa passou por vários processos de mudança ao longo dos anos em que viveram lá.

Portanto está claro que suas casas estão submetidas a uma certa volatilidade no sentido de que os desejos e projetos são construídos e destruídos a todo momento. A única constante em seus planos é a mudança. E, diferentemente do que coloca

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Carlos Lemos2, os motivos para essas constantes mudanças a que estão submetidas essas casas autoconstruídas em periferias, não são obrigatoriamente decorrentes de necessidades de moradia como a ampliação da família, mas sim decorrentes dos desejos de seus moradores.

Nota-se os diversos tipos de relação que elas estabelecem na cidade. Apesar de terem idades não muito distantes – Cláudia tem 41 e Jacira 46 –, elas tem posturas bastante diferentes. Jacira é aposentada e se coloca de forma mais distante, como sendo uma pessoa de mais idade. Mas ainda assim é bastante ativa na medida do possível, está sempre fazendo cursos e buscando conhecer técnicas de habilidades manuais. Percebe-se que é uma pessoa que passa bastante tempo em casa até pela forma como a construiu. Além disso é freqüentadora do SESC Pompéia, do Parque Ibirapuera, do Parque da Água Branca e do Hospital das Clínicas, importantes pontos de referência da cidade, com os quais ela criou uma relação de proximidade.

Por outro lado, Cláudia está em plena e intensa atividade profissional, trabalhando inclusive aos finais de semana. Sua relação com o resto da cidade parece restringir-se basicamente aos locais de trabalho e, eventualmente, a casa de algum parente. É novidade em sua vida o curso à distância de pedagogia que está cursando na faculdade Unisa, no bairro de Santo Amaro. Sua casa não possui sala, diferente da de Jacira que tem duas salas. A casa parece ter outra função para Cláudia, mais ligada ao descanso cotidiano, quase que funcional nesse sentido. Seus filhos e seu marido parecem se apropriar da casa de forma diferente, usando a rua como sua extensão, principalmente para as atividades de lazer.

O uso da rua como extensão da casa aparece nos dois casos e é um aspecto interessante que diferencia as formas de morar

2 LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc – Um estudo sobre as zonas de serviço da casa paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

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dessas pessoas em relação a moradores de bairros mais centrais na cidade. Estão o tempo todo interagindo com vizinhos ou parentes que os avizinham. Além disso, nos dois casos, boa parte da vida social acontece nas cercanias da casa, seja pela escola das crianças ou o comércio local.

Percebo também em ambos os discursos dois tipos de desejos diferentes: os realizáveis e os inatingíveis. Apesar de o discurso de Jacira aparentemente ser mais engajado, pois ela se preocupa mais com as questões políticas e já esteve envolvida em movimentos sociais, seu incômodo com as dificuldades que vive diariamente com a falta de serviços e equipamentos, limita-se a manifestações de indignação no discurso, mas não impede-a de enfrentar todos esses problemas diariamente e nem tampouco a faz cogitar mudar-se de onde vive. São problemas que o governo deveria sanar e, portanto, estão fora de seu alcance.

Para Cláudia a questão dos serviços públicos também é um problema, principalmente a questão do transporte. Durante algumas viagens em que a acompanhei até sua casa, ela fez questão de comentar sobre as dificuldades que passa todos os dias. Entretanto ela não cita nenhuma entidade governamental, coloca a questão como uma condição ruim, indigna, mas sem definir responsáveis. Algo cuja mudança não depende de sua ação direta.

Os desejos realizáveis são todos aqueles que elas enxergam como possíveis na medida em que seu esforço pessoal, profissional, lhes permita colocar em prática. Ter casa própria, construí-la à sua maneira, constituir a família, são desejos que elas demonstram a gratificação por terem alcançado. E são desejos em constante renovação.

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contrastes57

A periferia da cidade de São Paulo constitui um mundo de difícil acesso para quem vem do lado de lá da Avenida Marginal: sua topografia é acidentada, o traçado das ruas e becos nem sempre respeita as decantadas regras do planejamento urbano, as construções denunciam a ausência da prancheta do arquiteto e a decoração fere ostensivamente as normas de uma certa concepção estética. (Magnani, 1984, p. 15)

Meu imaginário a respeito do que eu iria encontrar nessas visitas a áreas de periferia é até difícil de recordar, visto que à medida em que fui me familiarizando com esses novos ambientes, essa proximidade se sobrepõe às imagens que eu possuía. A memória que tenho desses lugares foi se construindo e apagando as projeções subjetivas que fazia.

Acredito que eu imaginava entrar em lugares onde a penetração é difícil, onde eu tivesse que obter algum tipo de “permissão” para essa entrada. Imaginava que essa permissão estaria concedida a partir do momento que eu tivesse contato com algum morador, mas que ainda assim haveriam restrições mesmo que veladas. Mais objetivamente, eu achava que havia um poder e dominação local pelo grupo de tráfico de drogas, que controla a entrada de qualquer pessoa estranha à comunidade. Achava que esse controle, visível ou não, de alguma forma seria notável e me provocaria algum tipo de ameaça.

Cocaia, Zona Sul

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O que encontrei nos dois casos visitados, foram espaços que são continuidades da paisagem tão heterogênea da cidade. Eventualmente falou-se sobre pessoas envolvidas com tráfico de drogas ou vendas de materiais roubados, mas eu pessoalmente não presenciei nada que eu enxergasse nitidamente como relacionado a esses temas. Portanto a ameaça não me apareceu de forma direta a não ser após relatos e conversas com Jacira e Cláudia. Houve um momento em que eu utilizava a câmera fotográfica para fazer registros enquanto caminhávamos – eu e Jacira – por seu bairro, quando um garoto que passava fez um comentário para que eu tirasse fotos dele. Em princípio levei a atitude como comum já que o uso da câmera chama a atenção em qualquer lugar. Porém, logo em seguida Jacira fez um comentário dizendo que o tal garoto era usuário de drogas e até traficante, “um vagabundo”, para em seguida continuar o discurso contando sobre toda a família do rapaz.

Creio que esse temor pelo desconhecido que eu sentia antes de ir não é exclusividade minha, é comum tanto para quem desbrava um lugar completamente novo, quanto para o caso específico das áreas de periferia, que imagino que têm uma imagem de impenetráveis por quem não seja morador. Isso decorre principalmente das informações a que se tem acesso sobre esses lugares, que são informações veiculadas por instrumentos midiáticos de massa principalmente.

Outra questão era a paisagem que eu encontraria. Meu repertório de paisagem de áreas de periferia da cidade resumia-se genericamente ao que já vi em livros ou na mídia e também dos levantamentos de áreas de projeto trabalhadas na faculdade. Eventualmente algumas visitas rápidas e pouco aprofundadas. Tinha algumas referências de elementos típicos de paisagens de periferias, como o modo como as habitações são construídas. E realmente o que vi são habitações construídas muito próximas umas às outras, sem recuos e próximas também à rua, entretanto

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Vista notuna Cocaia, Zona Sul

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cada um dos casos estudados possui um tipo de paisagem e urbanização muito diferente do outro. Portanto não é possível classificar esses lugares homogênea e genericamente, por periferias. São áreas periféricas com algumas características semelhantes, mas que formam paisagens bastantes distintas. Uma delas tem um caráter mais ruralizado, e de certa forma mais provinciano, pois é um loteamento rodeado por mata da Serra da Cantareira, o que faz com que todos ali se conheçam mesmo que indiretamente. A outra já é bem mais urbanizada e densa, em que circulam muitas pessoas nas ruas o tempo todo.

Imaginava também uma proximidade cotidiana com a vizinhança, com conversas, brincadeiras entre crianças vizinhas, vidas compartilhadas, enfim. Jacira tem de fato uma relação com a vizinhança, algumas vezes presenciei interações com intimidade dela com vendedores das lojinhas e bares da rua e do bairro. Também a vi conversando com vizinhos diretos, sobre os quais, posteriormente, contou histórias. Na casa de Cláudia, pelo fato de sua irmã e a sobrinha de José Carlos morarem com as famílias nos arredores, há bastante convivência entre eles, principalmente entre as crianças. Ocupam a rua e frequentam diariamente as casas um do outro, as portas ficam praticamente abertas. Contudo, é nítido que, em ambos os casos, não se trata de uma vida em comunidade em que todos convivem e se ajudam, como faz crer o pré-conceito. Mas cada uma dessas mulheres tem suas vidas particulares, vivem-nas voltadas para seu círculo familiar, convivem com vizinhos, mas sem compartilhar as vidas completamente.

Essa vivência foi importante para mim no sentido de quebrar meus medos e me aproximar de uma realidade diferente da que vivo cotidianamente. Hoje já me parece muito mais natural me aproximar desses lugares. De certa forma me sinto um pouco menos distante da compreensão da complexidade da cidade, na medida em que vou destruindo as barreiras invisíveis que me

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Na página anterior: vizinhança de Jacira, Cachoeira, Zona Norte

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Crianças brincando na cobertura do vizinho de frente de Jacira. Cachoeira, Zona Norte

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impediam de fazer essa aproximação.

Nesse sentido, acredito que o fato de ter me aproximado desses lugares mudou a forma como os conceituava. Na introdução citei Lúcio Kowarick1, que trata das definições e indefinições dos conceitos de favela, autocosntrução e cortiço, os próprios moradores de cada uma dessas formas de morar enxergam esses conceitos de formas diferentes. E assim, é difícil definir o que é ou não favela, o que é ou não autocontrução. Pois fui a essas primeiras visitas aos casos estudados acreditando estar entrando em favelas ou algo próximo do que se pode definir como favela. Hoje já vejo de forma diferente. Não enxergo proximidade desses lugares que fui com o que acredito serem favelas. Para mim esses lugares têm cada um sua especificidade. São sim casas autoconstruídas pelas características construtivas e pelo que contam suas proprietárias. Em um diálogo com Cláudia, quando ela nos convidou a conhecer a laje de sua irmã, ela disse “Vamos ali na casa da Silvana pra vocês filmarem a favelinha ali”, ao que Carlinhos, seu filho, contestou “Favela!?”, e ela respondeu um pouco constrangida “É, ali tem uma favelinha, aqui é como se fosse favela.”.

Assim, aos poucos fui percebendo que os conceitos e pré-conceitos, a que normalmente as periferias da cidade estão sujeitas, não contemplam de forma alguma as especificidades desses lugares que visitei. Pelo contrário, essas imagens criam estigmas, seja pela ideia da favela que é perigosa e dominada pelo tráfico, seja pela glamourização das relações sociais em comunidade.

1 KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. São Paulo: Ed. 34, 2009.

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Cachoeira, Zona Norte

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No início do trabalho me propus a um exercício que em princípio objetivava ser um registro das minhas primeiras impressões e uma tentativa de proposta de intervenção. Fiz desenhos em forma de croquis das casas de Cláudia e Jacira, e neles assinalei os elementos que me chamaram a atenção por terem sido mal projetados ou mal construídos. Esse registro acabou se tornando importante no sentido de mostrar claramente a visão técnica que em princípio dominava minhas análises.

Sobre as questões construtivas, notei alguns pontos no momento desse exercício. Uma que realmente me chamou a atenção e incomodou foram as escadas. Nos dois casos as escadas são mal construídas com degraus com alturas e larguras variáveis e não planos. Em todas as escadas que passei há esse problema. Janelas voltadas para muros e paredes também são comuns, e como nessas áreas trabalhadas não são respeitadas as leis referentes a recuos, a iluminação e ventilação dos cômodos ficam severamente prejudicadas. O assentamento das cerâmicas também é malfeito em alguns casos. A própria Cláudia inclusive comenta sobre a falha do pedreiro contratado ao colocar os interruptores dos quartos do lado de fora dos mesmos.

Há alguns problemas que são decorrentes da falta de projeto, como a escada de entrada da casa de Cláudia, que cria um patamar com um vão onde há a escada, e esse vão cria resíduos de espaços inutilizados além de não possuir parapeito, tornando-se um risco à vida das crianças principalmente. Na casa de Jacira há um chanfro em um quarto que foi feito para possibilitar a entrada no outro quarto, que ficaria obstruída pelo banheiro.

No momento de tentar alguma proposta de modificação do projeto das casas me deparei com as contradições que venho me questionando desde o início do trabalho. Não faz sentido para mim propor uma reestruturação desses ruídos projetuais e construtivos sem propor um novo projeto. Tampouco faz análises

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Croqui da planta da casa de Jacira

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sentido propor um novo projeto para essas habitações que já estão construídas, e também reproduzindo a relação arquiteto-cliente. E mais ainda, não faz sentido para mim me colocar diante dessas pessoas como detentora de um poder e uma técnica que atropele seus critérios, desejos e formas de morar.

Tentei, portanto, com este trabalho, conhecer melhor essas formas de morar. Não para propor um projeto de uma residência para um cliente de baixa renda, mas sim para projetar em um sentido mais amplo, enxergando soluções diante dessas características que só podem ser apreendidas através de uma aproximação presencial do problema.

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Escada de entrada à casa de Jacira

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Croqui da planta da casa de Cláudia

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Sanca no teto da sala de Jacira Viga de madeira e telha na casa de Cláudia Mosaico de azulejos em piso da casa de Jacira

Escada de entrada casa de Cláudia

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Fotografia da vista dos fundos da casa de Jacira, no Cachoeira na Zona Norte de São Paulo.

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liberdade x planejamento

Quando se chega a Tecla, pouco se vê da cidade, escondida atrás dos tapumes, das defesas de pano, dos andaimes, das armaduras metálicas, das pontes de madeira suspensas por cabos ou apoiadas em cavaletes, das escadas de corda, dos fardos de juta. À pergunta: Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?, os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pinceis para cima e para baixo, respondem:

- Para que não comece a destruição. – E, questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar-se, acrescentam rapidamente, sussurrando: - Não só a cidade.

Se, insatisfeito com as respostas, alguém espia através dos cercados, vê guindastes que erguem outros guindastes, armações que revestem outras armações, traves que escoram outras traves.

- Qual é o sentido de tanta construção? – pergunta. – Qual é o objetivo de uma cidade em construção senão uma cidade? Onde está o plano que vocês seguem, o projeto?

- Mostraremos assim que terminar a jornada de trabalho; agora não podemos ser interrompidos – respondem.

O trabalho cessa ao pôr-do-sol. A noite cai sobre os canteiros de obras. É uma noite estrelada.

- Eis o projeto – dizem.

(Cidades Invisíveis. Calvino, 1990, p.117)

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Um aspecto que me chamou a atenção no que concerne as formas do morar dessas mulheres foi a volatilidade a que estão sujeitas suas casas. Seus projetos para a residência estão em constante alteração, não há um objetivo fixo que se pretende atingir.

No caso de Jacira, no início do ano, em uma das primeiras visitas que fiz, ela me contava

do projeto que tinha de construir um jardim na cobertura da casa, que já possui três andares. No momento ela estava participando de um curso de jardinagem no Parque do Ibirapuera. Um tempo depois, ela já começou a colocar o plano em prática com alguns tanques de terra para pequenas hortas. Alguns meses depois, em vista da parede do vizinho

que ao longo do tempo foi sendo erguida sem recuo, como era de se esperar, ela começou a incomodar-se com a escuridão de sua cozinha – afinal a única janela agora estava obstruída, e agora tem um novo projeto que é transferir a cozinha para a laje superior, inutilizando a existente. A nova cozinha teria comunicação com o jardim, de onde ela poderia retirar os

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alimentos frescos diretamente para cozinhar.

A casa de Cláudia não sofreu nenhuma alteração que eu tenha visto, a não ser a aquisição de uma televisão de plasma de aproximadamente 35 polegadas. No entanto, não foram poucas as vezes que ouvi comentários a respeito de projetos para a continuação da casa. Quando construíram a

laje onde vivem hoje, bloquearam uma escada de comunicação entre o segundo e terceiro andar, entretanto, jamais destruíram essa escada por acreditarem na possibilidade de um dia interromper os aluguéis e reabrir o acesso. Posteriormente, Cláudia veio me contar que a escada estava sendo destruída por seu inquilino que queria mais

espaço em seu quarto.

Nos dois casos fica claro a falta de projeto que têm para suas obras. O estado de permanente construção é para elas sinônimo de liberdade, não há limites para sua imaginação quando se trata de suas casas próprias. Com a casa fazem o que querem, mudam-na a qualquer momento conforme seus desejos.

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Essa volatilidade na construção de suas casas pode estar associada a diversos fatores como, por exemplo, o valor que a casa própria foi adquirindo ao longo do tempo desde os anos 40, como já foi citado aqui. Entretanto, é muito interessante o quanto esse processo é comum às duas mulheres aqui tratadas. Essa liberdade que o construir “com as próprias mãos” traz se tornou uma cultura popular amplamente disseminada nas periferias.

Não é novidade que as periferias da cidade com essa característica da presença marcante da autoconstrução, têm sua paisagem em mudança constante. Sobe-se paredes e lajes o tempo todo, o que vai alterando os cenários possíveis. Durante esse ano pude presenciar algumas edificações que foram sendo erguidas ao redor das casas onde moram Cláudia e Jacira. Inclusive, em uma das visitas acabei conhecendo um rapaz, artista, que vive na região do Grajaú, que comentou sobre o quanto “a periferia é isso aqui, ta mudando o tempo todo.” Portanto, quando me refiro à volatilidade dessas construções, ou da paisagem desses lugares, não estou trazendo nada de novo. A bibliografia trata diversas vezes sobre essa questão de sua intensa e constante mutação.

No entanto, o elemento que difere em minha análise, é que este trabalho acabou problematizando as formas de entender isso e transformar essa volatilidade em questão e problema para o projeto que ultrapasse a abordagem da desordem do espaço. Trato aqui também da volatilidade dos desejos dessas mulheres, porque são eles que determinam as mudanças que fazem em suas casas. Carlos Lemos, no livro Cozinhas, etc.1, levanta algumas das razões que os entrevistados de sua pesquisa utilizaram para justificar os motivos de se recusarem a morar em apartamentos.

Morando bem ou mal, todas as famílias pesquisadas, no entanto, são ligadas por uma posição comum: abominam a idéia de residir em prédios de apartamentos. (...) As justificativas das 960 rejeições à idéia em 1073 questionários são as mais variadas: falta de quintal para

1 LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc – Um estudo sobre as zonas de serviço da casa paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

Nas páginas anteriores: página 70 vista dos fundos da casa de Cláudia no Cocaia. Na página 71: balaústre na varanda de Jacira

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cultivo de verduras, para a lavagem e coramento de roupas, para animais domésticos; impossibilidade de aumento de área construída, perigo para as crianças devido às janelas altas; falta de lugar para os filhos brincarem com liberdade, abafamento, calor, promiscuidade em demasia e, depois, a propriedade não é bem definida, ninguém é dono de seu próprio chão. (Lemos, 1978, p. 193)

Ora, dentre essas justificativas estão uma série de fatores que referem-se a desejos pessoais que valorizam justamente essa liberdade a que me refiro que possuem Cláudia e Jacira. Seus entrevistados também têm um conjunto de desejos que são plenamente contemplados pela casa própria autoconstruída. A rejeição ao prédio de apartamentos não está ligada especificamente à falta de quintal para jardinagem ou de lugar para as crianças brincarem, mas sim todos esses fatores fazem muito sentido no contexto em que essas pessoas vivem. Poder aumentar a área construída não é uma vontade que deriva de uma necessidade, mas sim de um desejo.

Portanto concordo com Lemos quando diz que

Julgamos que o operário, em São Paulo, ao procurar a casa própria fundamentalmente não está desejando uma propriedade que simbolize um status que lhe dê a sensação de ser “dono” de alguma coisa, de um bem de raiz, de um capital que possa deixar à família, enfim, não pensa primordialmente em termos de “patrimônio”. (Lemos, 1978, p. 184)

E prossegue

Ele procura a casa própria porque ela é o meio mais barato de se morar. A casa autoconstruída é o caminho mais fácil, mais acessível.

Entretanto, acredito que não se trata apenas do recurso mais acessível. Há outros fatores que envolvem essa escolha. A liberdade para a criação e constante mudança dessas projeções do uso e ocupação dos espaços, é uma delas.

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o lugar e a família

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Convém não confundir sentido da família com sentido de moradia. O primeiro, frenquentemente muito vivo entre os meios populares do século XIX, não se inscreve necessariamente no espaço do interior. A família é uma rede de pessoas, uma organização econômica (extrema importância da economia familiar, da disposição comum das fontes e entradas), uma forma de solidariedade distendida, desterritorializada, possível de se compreender através das modalidades contemporâneas de migração – vejam-se os marroquinos do Magreb, os turcos, os portugueses de hoje na França, e outros lugares. A família é, sem dúvida, uma das primeiras e mais vivas formas de sociabilidade popular, não é uma criação burguesa. No limite, esta seria a coincidência absoluta entre família e interior, a separação entre o público e o privado (Perrot, 1988, p. 113).

Acredito que essa citação é de fundamental importância para entender a questão da família como principal forma de sociabilidade, como base da construção dos trajetos dessas pessoas. Nos dois casos estudados é nítido o seu papel ao longo dos percursos de vida dessas pessoas, é através da família que se trilha os caminhos do morar. Mais importante é a ênfase na separação de qualquer vínculo desse tipo de relação familiar com uma cultura burguesa, a família tem a importância que tem para as classes populares, desvinculada da ideia da reprodução das relações burguesas. E isso acredito que se estende para as diversas relações possíveis que acontecem nas áreas de periferias da cidade, há um conjunto de valores que independe da cultura das classes mais altas. A ideia de que o pobre reproduz os valores e a cultura dos ricos não faz sentido aqui.

Nota-se também a relação que a autora faz entre família e moradia, colocando ambas como um intermédio na ligação dessas pessoas com o mundo. É através da família que se faz a comunicação com o exterior.

No caso de Jacira, desde muito nova procura uma independência em relação à mãe por traumas infantis. E desde então já é nítida

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a importância da família como rede estruturadora, pois é através de um casamento que encontra a solução para se desvencilhar da mãe. Com o insucesso do casamento retorna à moradia da mãe, mesmo que a contragosto. O curioso aí é que o recurso que Jacira encontra está ligado novamente à família, mesmo que a ela desagrade a ideia de voltar a viver com a mãe. Mais a frente casa-se novamente e só vai adquirir o terreno para casa própria por indicação da mãe, um terreno próximo à casa dela – e novamente a mãe conduz seus movimentos. Nos dois casamentos Jacira morou, em um primeiro momento, nas casas das famílias de cada marido, sofrendo assim com preconceitos e incômodos dos familiares de seus maridos.

Era uma prática corriqueira, especialmente entre mulheres jovens e recém-casadas, irem morar próximo aos familiares. Parecia ser uma estratégia de sobrevivência entre grupos e famílias pobres, mas não era somente isso, pois, ao mesmo tempo em que os pais ajudavam na manutenção do novo casal em dificuldades, as mães mais experientes aproveitavam para acompanhar a relação da filha com o marido e ajuda-la também emocionalmente. Essa proximidade será de grande serventia em períodos de dificuldades, mas em certas circunstâncias desembocará em conflitos. (Sousa, 2001, p.160)

A citação faz parte da tese de Doutorado de Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de Sousa1, e trata de mulheres do meio popular da cidade de Campina Grande nos períodos de 1930 a 1945. O autor no caso fala da transferência do casal para a casa dos pais da noiva, o que é diferente do caso de Jacira, que não pôde mudar-se com os maridos para a casa de sua mãe, até por causa das desavenças que tinham. Entretanto, é interessante essa análise do quanto a relação familiar intensifica-se, de forma positiva ou negativa, com o fato de morarem próximos. Jacira teve muitos conflitos com as famílias de seus maridos.

Os caminhos de Cláudia também são permeados pela presença 1 SOUZA, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de. Cartografias e imagens da cidade. Campina Grande (1920-1945). Doutorado em história. Campinas, Unicamp, 2001. Cocaia, Zona Sul.

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da família, mais especificamente de sua irmã, que veio a São Paulo por sua indicação, e de seu marido. Casa-se e assim inicia uma busca constante pela melhor moradia. Em princípio alugam um apartamento na Praça da Árvore, mas após a primeira gravidez há um período de

No contexto do bairro, por exemplo, uma das formas de apropriação do espaço, como foi visto, tem como referência a articulação de vínculos já existentes – de família, vizinhança, procedência – resultando na sociabilidade típica do pedaço. (Magnani, 2000, p. 39)

separação em que Cláudia recorre ao vínculo com os antigos patrões. Reatada a relação, o casal aluga uma casa na Vila Joaniza, onde vivem bastante tempo, mas sem abdicar do sonho de ter uma casa própria. E é através de uma sobrinha de José Carlos que encontram o imóvel onde

vivem hoje e onde ao lado vive sua irmã com a família. A proximidade das casas enfatiza os laços familiares que os ligam.

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uso do espaço

Citando novamente Michelle Perrot, é relevante a distinção que coloca de formas de uso do espaço entre as mulheres.

É claro que o que vale para a mulher do povo não vale para a burguesa. Ao nível das classes, os usos sociais da cidade se diferenciam muito claramente (Perrot, 1988, p.215)

Além dos usos da cidade, a moradia é muito diferente entre as mulheres do povo e as burguesas. A autora descreve o apartamento haussmanniano burguês como segregado em dois pólos, a região dos senhores e a dos empregados e essas áreas são marcadamente distintas e distantes dentro de uma morada. Esse modelo de segregação dos empregados foi amplamente reproduzido no Brasil entre as classes altas.

Entretanto,

Não existe nada disso entre as classes populares. A habitação não é, ou mal chega a ser um interior, mas sim um ponto de reunião: aí se dorme, aí se come, e muitas vezes até no almoço por ser mais econômico. (...) Para ela, a rua não é apenas um corredor de circulação, mas também um meio de vida que, por exemplo, deve lhe fornecer matéria para o aquecimento. (Perrot, 1988, p. 221)

E no caso brasileiro tampouco existe essa segregação dos espaços em função de uma hierarquia social. O que percebi ao entrar nessas casas foi justamente uma quebra de organização do espaço em relação ao modelo da classe média. E há sim espaços que, apesar de terem uma suposta função, são bastante heterogêneos em seus usos. A cozinha é lugar das crianças brincarem, dos adultos conversarem, além de espaço para alimentação. E no caso de Jacira, há cômodos bastante híbridos, que mudam de função, ou que não tem função bem definida,

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Cozinha da casa de Cláudia

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Carlinhos, filho de Cláudia brincando com o primo e um vizinho na garagem de sua casa, que também é o acesso aos cômodas alugados

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com diversos usos.

Quando Perrot trata da disciplina industrial, em um momento faz referência a uma incipiente preocupação dos donos de indústria em relação à arquitetura industrial, afinal antes desse momento as indústrias eram montadas em antigos conventos entre outros tipos de edificações.

Por outro lado as exigências em matéria de higiene industrial tornam-se mais precisas e levam à elaboração de uma arquitetura industrial nova, prevendo espaços ‘neutros’: vestiários, cantinas, banheiros, etc. Desse ponto de vista, as fábricas construídas entre 1910 e 1914 apresentam um grande interesse: aí se esboça uma nova maneira de comandar os homens, inclusive por meio do ambiente. (Perrot, 1988, p.77)

Toda escolha de disposição dos espaços indica uma intenção. De forma semelhante, quando a entrada principal das casas que visitei se faz pela cozinha, isso revela alguma intenção. Ou pelo menos revela uma cultura de uso dos espaços, diferente da que conheço como sendo característica de classe média. Mas por que a cozinha é o espaço principal, o cômodo de recepção dos ingressantes?

Enquanto as casas maiores tentam expulsar a cozinha e demais cômodos de serviço para fora do retângulo fechado da habitação, a casa pequena do pobre quase que se desenvolve em torno da cozinha, o cômodo maior. (Lemos, 1978, p.52)

O livro de Carlos Lemos remonta ao período escravocrata, o clima tropical de nosso país e as influências modernistas, para discorrer a respeito das formas e funções da cozinha ao longo dos anos no Brasil. Fala sobre como os cômodos das casas e suas funções foram se modificando. E há diversos fatores que influenciam nessas mudanças para além da segregação da área considerada de criados – a cozinha.

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O autor traz também um ponto interessante que diz respeito à hibridez do uso dos cômodos. A cozinha de Cláudia não só é o cômodo de recepção dos visitantes, como também tem uma multiplicidade de funções. Na casa de Jacira, é notável a indefinição de funções específicas para suas salas, que podem ser de estar, jantar, ateliê, sala de TV.

Não erramos se dissermos que na casa operária há a superposição de quase todas as funções habitacionais, sendo constante a superposição da zona de serviço com a zona de estar: o que não acontece com a moradia mínima burguesa, o pequeno apartamento urbano de sala-quarto, banheiro e kitchnette – onde há superposição necessária das zonas de estar e repouso e atrofia quase que total da terceira zona, a de serviço. (Lemos, 1978, p.16)

Além dessa questão da organização dos espaços internos das casas, me chamou a atenção a forma com que elas colocam-na em relação com a rua. A rua faz parte delas, como se fosse sua continuação. Em ambos os casos esse uso é nítido e acontece também em função das redes sociais, familiares ou não. As portas das casas permanecem destrancadas, um convite à permanente troca com o ambiente externo.

E isso não é exclusividade dos casos tratados. Em todas as visitas pude presenciar intensa ocupação da rua, sempre há transeuntes, crianças brincando, pessoas sentadas à frente de suas casas conversando mesmo em dias frios. A rua é como se fosse o espaço público que lhes falta, que o Estado não pôde prover.

Pierre Mayol, em seu livro com Michel de Certeu e Luce Giard, A invenção do cotidiano 2. Morar, cozinhar1, discorre de forma interessante sobre a apropriação do bairro.

Ora, o bairro é, quase por definição, um domínio do ambiente social, pois ele constitui para o usuário uma

1 CERTEAU, Michel de. GIARD, Luce. MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

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Jacira e sua filha Tiana. Cachoeira, Zona Norte

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parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva ou negativamente, ele se sente reconhecido. Pode-se portanto apreender o bairro como esta porção do espaço público em geral (anônimo, de todo mundo) em que se insinua pouco a pouco um espaço privado particularizado, pelo fato do uso quase cotidiano desse espaço. (Mayol in Certau; Giard; Mayol, 2008, p. 40)

À rua, estende-se aqui esse sentido de bairro. Esses lugares visitados parecem transparecer essa apropriação do lugar, esse uso do espaço público – a rua – quase como privado, a extensão da casa. Ainda da mesma autora,

O bairro constitui o termo médio de uma dialética existencial entre o dentro e o fora. E é na tensão entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro, que se efetua a apropriação do espaço. Um bairro, poder-se-ia dizer, é assim uma ampliação do habitáculo; para o usuário, ele se resume à soma das trajetórias inauguradas a partir do seu local de habitação. (Mayol in Certau; Giard; Mayol, 2008, p.42)

Referente a esse assunto, Magnani usa o termo pedaço:

O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. (Magnani, p. 138, 1984)

O filho de Jacira, Leandro, que é rapper, criou um jargão próprio que reproduz constantemente em suas músicas e shows: “a rua é nóiz”. Isso me parece bastante significativo desse sentido amplo que a palavra rua tem para ele e para as periferias como um todo. Trata-se de uma apropriação da rua como elemento estruturador de sua vida e personalidade. A palavra ganha múltiplos significados.

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Cocaia, Zona Sul.

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Janela do quarto de Cláudia

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Da varanda Jacira vê a Serra da Cantareira. Da janela Cláudia vê

caixas d`água azuis e antenas parabólicas. Mas é a rua que se

faz presente. Bola, bicicleta, pipa. A porta fica aberta

enquanto os meninos brincam.

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ausência do estado

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É comum, no contato com áreas de periferia, ouvir eventuais reclamações, e incômodos com a falta de infraestrutura. Por vezes Jacira e Cláudia fazem menção às dificuldades de locomoção, à falta de serviços básicos como esgoto e asfalto. Entretanto, essas questões aparecem apenas em comentários eventuais, quando estamos diante do problema de fato. Em nenhum momento se dizem insatisfeitas a ponto de reivindicarem de alguma forma mais ativa por esses direitos básicos. Não enxergam como possibilidade uma mobilização de cunho político.

Desde o início do trabalho a forma como as pessoas lidam com a falta de atenção do Estado foi uma questão para mim. Cheguei a ouvir de um amigo o chavão do ‘brasileiro conformista’ e isso permaneceu comigo como um incômodo. O adjetivo não me parecia caracterizar as mulheres que entrei em contato. Pelo contrário, suas vidas são permeadas por lutas e conquistas.

No já citado livro Os excluídos da história – operários, mulheres e prisioneiros1, Michelle Perrot fala da introdução das máquinas na industrialização da França no século XVIII e XIX, que provocou intensa mobilização dos operários que entendiam-na como um primeiro movimento de disciplinarização que os tiraria a autonomia e o controle que possuíam do processo produtivo. Enquanto lia o livro, me perguntei o que motiva e estimula as pessoas a mobilizações coletivas para conquistas coletivas.

O movimento operário na França dos séculos XVIII e XIX, e o caso aqui tratado são bastante distantes no que diz respeito à movimentação política. Perrot trata justamente do processo de reconhecimento do poder das reivindicações operárias, enquanto que no nosso caso a movimentação política parece não ter retorno. O Estado é tão ausente que nem sequer é reconhecido como reivindicação. Néstor García Canclini analisa o tema:

Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas

1 PERROT, Michele. Os excluídos da história – operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Cocaia, Zona Sul

A urbanização sem recuos, a rede elétrica profusa, os longos e lentos trajetos de ônibus. A escola e o posto policial confundem:

o Estado existe ou não nesse lugar? A escola faz fundos para uma rua ainda não asfaltada. A garantia dos direitos chega

lentamente, enquanto isso a vida segue no Cocaia.

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próprias dos cidadãos - a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses, recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos. (Canclini, 1999, p. 37)

Nesse sentido, o próprio trajeto de vida de Jacira é representativo porque ela teve contato com o Movimento Sem Terra, e se frustrou ao ver a casa que era pra ser sua, sendo alvo de corrupção. Jacira tem em seu discurso uma vontade política que já apareceu algumas vezes ao longo de sua vida. Porém, mesmo fazendo um esforço em recorrer à movimentação política, a frustração não compensou.

Em seus trajetos de vida, as lutas e conquistas acontecem sempre em busca dos desejos que estão ao alcance de suas mãos. Os desejos que passam pela conquista de seus direitos através do Estado parecem estar em outro patamar de busca.

(...) reconhecia nessa injustiça uma ordem das coisas, em que nada autorizava a esperar a mudança. É sempre assim, é o que se vê todo dia. Mas não se concedia nenhuma legitimidade a esse estado de fato. Pelo contrário, embora sendo uma realidade sempre repetida, esta relação de forças nem por isso se tornava mais aceitável. (Certeau, 1994, p. 77)

Nesse trecho do livro A invenção do cotidiano – artes de fazer2, Michel de Certau trata de um estudo realizado sobre a língua falada de lavradores pernambucanos, em 1974. No caso ele discorre a respeito de como esses personagens lidam com hierarquia de poderes. O ponto de interesse aqui é a forma como os lavradores entendem as injustiças por que passam. De forma semelhante, Cláudia e Jacira reconhecem a falta de recursos a que estão submetidas, é um estado de fato que nem por isso é aceitável. Mas ainda assim não enxergam as reivindicações através dos meios democráticos como passíveis de trazer retorno.2 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

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o lugar e a cidade

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Esta reflexão vem de uma percepção pessoal do quanto esses lugares, através dessas mulheres, são colocados em relação com a cidade. Antes de visitá-las, eu esperava encontrar lugares tão diferentes e tão distantes do que eu conhecia como cidade, que me causaria a impressão de estar visitando outras cidades. Me deparei sim com lugares bastante distintos de todas as experiências que já tive em São Paulo, entretanto são lugares que nitidamente fazem perde dela. São a continuidade de seu tecido heterogêneo.

Michelle Perrot, justifica a escolha do tema de seu estudo fazendo referência à pouca informação que há a respeito desses personagens tão importantes nos movimentos históricos, mas tão pouco lembrados, desde o registro de informações até o próprio interesse da pesquisa em geral. São eles os operários, as mulheres e os prisioneiros. E isso ela irá reiterar diversas vezes ao longo de seu livro.

De um lado, a realidade um tanto idealizada da França rural, de outro lado a superioridade atribuída às formas organizadas do movimento operário fazem com que o ploretariado em formação, seus modos de luta, muitas vezes individuais e cotidianos, sua própria cultura sejam em larga medida desconhecidos, considerados na melhor das hipóteses como uma pré-história, era de ‘balbucios’ infantis preparatórios de futuras realizações. (Perrot, 1988, p. 18).

Esses personagens que estão à margem, são colocados em segundo plano não só na contemporaneidade de suas vivências, através de discriminação ou hierarquias sociais, como também ao longo da história. Eles serão lembrados como uma massa homogênea e nunca detentores de uma individualidade que lhes seja peculiar.

As famílias que acompanhei neste trabalho de certa forma podem ser consideradas também figuras à margem se observamos onde se localizam geograficamente suas moradias

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A imagem é um desenho de um encontro marcado com Jacira no Sesc Pompéia, lugar

que frequenta e onde, naquele momento, fazia um curso de estamparia. O reflexo dessa

vivência de cidade aparece na fotografia. O produto do curso, um tecido estampado por ela, é cenário somado à Serra da Cantareira, visível da varanda de sua casa. A cidade que

Jacira vive está lá, em seu varal. O balaústre, diferente do que pode presumir o arquiteto,

não entra em conflito com o concreto modernista de Lina Bo Bardi. Mas eles

conversam através de Jacira e fazem parte igualmente do tecido da cidade.

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Cachoeira, Zona Norte

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na cidade. Entretanto, para mim esse termo está perdendo o sentido à medida em que me aproximo dessas pessoas.

No entanto, a despeito do nome da avenida que de algum modo traça os limites entre a cidade e os bairros periféricos, seus habitantes já não são considerados “massas marginais”. (Magnani, 1984, p.15)

Percebo que, apesar das dificuldades, da falta de atenção do Estado e das condições sociais, são pessoas que têm uma vivência muito rica da cidade. São integrantes dela assim como os que vivem na cidade formal.

Essas pessoas têm uma capacidade surpreendente de aproveitar as potencialidades da cidade, não apenas pelo ângulo econômico, mas como local de prazeres (...) Mas então que cidade eles querem? E para fazer o que? Ter uma cidade aberta, morar no centro, circular e utilizar livremente o espaço público: eis, parece-me, três reivindicações fundamentais. (Perrot, 1988, p.116).

Na São Paulo atual, morar no centro e utilizar o espaço público não me parecem valores dessas mulheres como eram para os operários franceses do século XIX. Esses valores podem ser outros, mas acho que as perguntas colocadas pela autora cabem muito bem em minha pesquisa. Que cidade elas querem? E para fazer o quê?

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Vista da rua desde a varanda de Jacira

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conclusão10

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Já me haviam relatado que a definição de um tema para o Trabalho Final de Graduação seria um processo longo e trabalhoso, com diversas idas e vindas, e que possivelmente esse mesmo processo acabaria se tornando o próprio trabalho. A experiência de Iniciação Científica foi uma aprendizagem nesse sentido. Me encorajou a seguir a busca por essa definição sem me entregar ao medo de o trabalho caminhar sem tema.

E foi o próprio curso de Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP que me forneceu as bases para esses questionamentos. Foi aprendendo com ele que pude enxergá-lo de forma crítica.

Foi ele que me aproximou das questões sociais e de habitação. Foi nele que conheci os trabalhos que teorizam sobre essas questões num contexto urbano, social, econômico e político. Foi nele que tive contato com a prática do projeto participativo. E acima de tudo, foi nele que aprendi a projetar e questionar o projetar.

E foi o contato com esses trabalhos que afunilaram meu caminho. Aos poucos fui entendendo o porquê da minha recusa quase que instintiva em seguir os caminhos já trilhados.

Escolhi tratar de lugares que são permeados de contradições, tanto no que se refere à suas relações com a cidade e suas questões com o Estado, quanto às formas de tratar deles na prática de projeto. As periferias de São Paulo são muitas e diversas. E esses dois casos refletem bem essa diversidade. O meu trabalho poderia se estender para áreas do centro da cidade, pois o meu foco é, principalmente, a forma de aproximação do objeto. Porém, escolhi esses lugares por diversos fatores que vão desde o meu interesse em tratar da questão da habitação, até o desafio que é falar de projeto em áreas tão distantes das formas que regulam a cidade formal.

A escolha dos lugares específicos que eu trataria partiu do

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encontro com as personagens dos estudos de caso, Cláudia e Jacira. Curiosamente elas moram em extremos opostos da cidade, o que trouxe a possibilidade da comparação. São áreas tão distintas e simultaneamente tão próximas. E também a escolha dessas mulheres decorre do interesse em tratar desses lugares.

Entretanto, demorei um tempo para entender que tipo de aproximação me pretendia. Desde aquela ideia da intervenção prática por movelaria de baixo custo, há uma intenção em me aproximar pessoalmente desses lugares e dessas pessoas. Mas ainda não conseguia aplicar à essas intenções uma justificativa ou um motivo claro. Queria me aproximar justamente porque sentia falta dessa proximidade quando projetava. E à medida em que o trabalho foi caminhando tive que buscar outras referências para entender como poderia fazer esse outro tipo de aproximação, visto que os trabalhos que citei na introdução, não contemplavam esses incômodos. E passei a usar a antropologia como fonte, tentando associar essa ciência à prática da arquitetura e do urbanismo. O resultado disso foram mais questionamentos e problematizações do que uma nova metodologia de projeto.

A bibliografia de antropologia me deu bases para iniciar esse outro tipo de aproximação do objeto do arquiteto. As visitas às casas passaram a ter um caráter de pesquisa e não de levantamento, como seria o usual na prática da arquitetura. Comecei a entender que meus incômodos derivavam de uma sensação de que me faltava um instrumento para projetar. E esse instrumento eu só encontraria me relacionando com o lugar sem o anteparo do papel, do mapa.

Me aproximando do final do trabalho, voltei ao papel. Mas não para fazer projeto. Não para voltar à visão em planta. O desenho vem como apreensão desses lugares e dessas pessoas pela perspectiva da experiência que esses espaços me

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proporcionaram.

Parece irônico questionar a forma de projetar, sem propor uma que a substitua. Possivelmente, assim que me formar, trabalharei com projetos arquitetônicos e urbanísticos usando os mesmo métodos e critérios que tanto tentei desviar nesse trabalho. Entretanto, acredito que o mais importante dessa experiência é a mudança no olhar.

Não acredito que o papel do arquiteto abrigue imprimir em seus projetos uma marca ou identidade própria. Nunca entendi o arquiteto como possuidor de um instrumento que o eleva e distancia. O arquiteto pode se aproximar de seu objeto de diversas formas. Gostaria de ter essa aproximação mais humana como uma possibilidade.

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anexo

relato dos encontros

Jacira

Visita dia 20.02.2011, domingo

Esse primeiro encontro foi combinado com o filho de Jacira, Evandro. Cheguei em sua casa pela manhã, por volta das 10h30. Fomos recebidos na sala do terceiro piso e nesse contato me apresentei e tentei explicar as ideias de trabalho que ainda estavam indefinidas para mim. Ela se dispôs a me ajudar e contou ligeiramente sobre sua vida e a vivencia no bairro.

Encontro dia 28.05.2011, sábado

Por telefone, marquei um novo encontro em sua casa. Era um sábado, dia 28 de maio, e comecei perguntando sobre sua história de vida, ao que ela prontamente respondeu “Minha história de vida é longa”. Seus pais se conheceram porque o pai era integrante da igreja presbiteriana e peregrinava por algumas cidades. Eles casaram e foram para São Paulo, o que ela justifica por questões familiares e brigas de interesses, “quando cada família fica querendo ficar com a maior parte da partilha então melhor sair da cidade, não viver nem perto de uma família, nem de outra”.

Quando perguntei de onde ela era, ela prontamente respondeu “Eu sou daqui”, demonstrando certo orgulho pelas raízes que tem no lugar.

Em São Paulo seus pais foram para Casa Verde, na Zona Norte. Entretanto, Jacira não conheceu o pai, que morreu em setembro, e que ela nasceu em dezembro do mesmo ano. Moravam no fundo de uma igreja, mas quando o pai morre eles têm de sair de lá porque a mãe não era ligada à igreja. Os 3 irmãos foram para outra cidade, Itápolis e as meninas foram para um convento. No convento, Jacira conta que sofreu tortura de uma freira – a freira beliscava na axila e depois passava uma flor para maquiar. Apesar

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do pouco tempo de estada aí, ela sente trauma por esse período. Sobre esse trauma, ela conta que lembrava de um quintal na casa da mãe que ela brincava, e quando voltou do convento não via mais fantasia nas coisas, o quintal não tinha mais o mesmo sentido. Diz que achava que a mãe não gostava dela e por isso deixou-a no convento.

Saiu do convento quando ficou muito doente, internada na UTI. Segundo ela, toda vez que via uma freira piorava seu estado clínico. O médico percebeu e receitou que ela fosse para casa e não para o convento. Nessa época tinha menos de seis anos.

Chegou a morar em um cortiço, mas não lembra onde ele se localizava porque ela era muito pequena, só lembra que quando a mãe saía para trabalhar uma mulher do cortiço botava todas as crianças para brincar no quintal e quando via a mãe dela na esquina botava as crianças de volta para dentro.

A mãe tinha uma casa já na região do Cachoeira, mas a vida estava mais triste, não se davam bem em família, quando os irmãos voltaram de Itápolis ela já era adulta e não se entendeu com eles. A falta de convivência distanciou a relação.

Com uns 13 anos se casou e foi morar com a família do marido. Disse que descobriu que “era feliz e não sabia”, frase que ela repetiu algumas vezes em outras conversas. A família do marido era muito violenta, os irmãos brigavam muito, “só sobrou um vivo”. Seu primeiro marido morreu em seu próprio aniversário, após uma briga com um sobrinho que ficou muito tempo preso após o falecimento e depois “se perdeu na vida” porque já era envolvido com roubos e drogas. Ela conta que a morte aconteceu quando ele caiu e bateu a cabeça na guia da rua. Leandro, filho de Jacira, era pequeno, diziam para ele que ele deveria vingar o pai. Ela se separou antes de ele morrer, mas diz que “trocou seis por meia dúzia”, pois voltou a morar com a mãe.

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Começou a se envolver com o Movimento Sem Terra em acampamentos na região com os quatro filhos que teve com o primeiro marido. Em busca de moradia, participou de ocupações em terras da Santa Casa, “deu briga, conseguiram assentar”. Quando perguntei sobre como eram costruídas as casas no movimento, ela disse que uma parte é construída por mutirão, outra pelos próprios donos, e tiveram algumas unidades construídas pelo CDHU.

Mas na divisão das casas uma vez, conversando com algumas mulheres do assentamento, Jacira descobriu que “Rosa”, alguém de papel aparentemente importante na divisão das apropriações do movimento, vendeu a casa que seria sua. Ela entendeu que nunca conseguiria uma casa dessa forma. Começaram a descobrir as falcatruas de Rosa quando houve um caso muito grave em uma creche da região em que mataram 3 meninas com sinais de tortura. Não entendi a relação exata da tal Rosa com o caso.

Saiu do movimento e não sabia mais o que fazer, “não tinha perspectiva de vida”. Voltou a estudar - havia parado na 5ª série – e fez curso de enfermagem por indicação de uma prima, “falei vou fazer isso mesmo”. Na área, trabalhou durante 3 anos até um momento em que teve insuficiência renal. “Aí falei quando as coisas tão se ajeitando Deus vem e faz isso, parece que não é para as coisas darem certo”. A insuficiência renal, provavelmente é decorrente da doença que ela possui, Lupus, que faz com que ela tenha que fazer sessões de hemodiálise frequentemente. Após esse episódio aposentou-se por invalidez.

Já estava namorando Eduardo, que hoje vive com ela, então resolveram casar. Como não tinham para onde ir eles foram morar no mesmo terreno da casa da família dele. Lá, ela era discriminada por ser negra, pobre e ter quatro filhos e três cães. Eduardo é branco. “Eles falavam comigo enquanto o Eduardo estava em casa, mas quando ele não estava não falavam. Mas pra

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mim também tudo bem, mas era complicado, era porta com porta.”

Então ficaram sabendo do loteamento do Cachoeira, onde vivem hoje, por um conhecido da mãe. Juntaram o dinheiro da aposentadoria dela com a do salário dele, que trabalhava em um cemitério como funcionário público dia sim, dia não, e começaram a pagar – a prestação do terreno era o equivalente a dois salários mínimos.

Se mudaram para um barraco nos fundos do terreno. Depois de um tempo a polícia surgiu com um mandado de reintegração de posse. Então voltaram a viver na casa da família de Eduardo. Depois de um tempo visitaram o terreno e perceberam que o entorno estava sendo ocupado, se sentiram livres para construir sua casa e voltaram a morar no barraco nos fundos do terreno comprado. Eventualmente a polícia aparecia com mandados de reintegração de posse, e os moradores enfrentavam com barreiras humanas. Jacira conta que houve um dia em que os moradores passaram em sua casa convidando algum homem da casa para contribuir para negociação com os policiais, e então Leandro, com 11 anos na época, se prontificou e foi, já que não havia mais ninguém na casa – ela conta rindo.

Começaram a construir a casa pela cozinha, depois a garagem. Compravam o material à prestação, em 3 vezes. Jacira diz que só foi possível começar a construir depois que a Marta Suplicy foi eleita e implantou o bilhete único. Como os filhos gastavam 4 conduções para ir e voltar da escola porque estudavam na Vila Maria eram dezesseis conduções diárias, além da prestação da compra do lote.

“Os meninos estudavam no SESI, a escola é boa, tem ensino diferenciado, o Evandro fazia aula de música.”. Evandro é mais novo que Leandro, que era mais tímido. Antes do SESI eles estudavam em uma mesma escola do bairro, mas quando foram

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para o SESI Leandro não se adaptou, e então volta para a escola anterior e é alocado em uma classe com repetentes. Os mais velhos faziam bullying com ele, jogavam-no no rio. Falando sobre as matérias que saem na imprensa sobre o filho, Jacira menciona que não têm gostado de algumas que têm saído. Cita uma em que os jornalistas falaram que Leandro havia sofrido buillying: “nem sei o que essa palavra significa, aqui é todo mundo ignorante, ninguém sabe o que é isso, e todo mundo já sofreu isso na vida”.

Ela reparou que o menino começou a chegar muito sujo da escola, e descobriu que ele começou a faltar nas aulas devido às agressões que sofria, e ia para os fliperamas próximos à escola. O SESI, junto com o juizado de menores, fez então uma varredura nos fliperamas da região, “foi o que salvou meu filho dessa situação, ele vendeu todos os cascos de 4 engradados de cerveja que minha mãe tinha para jogar no fliperama”.

Para resolver o problema, Jacira falou com a assistente social do SESI, que falou pra ela procurar alguma coisa que Leandro gostasse de fazer, para estimulá-lo a outra coisa que não fosse o fliperama. Ele gostava de fazer desenhos, mas ela jogava-os fora porque achava muito feio – e dizia isso rindo – “eram uns bonecos de olho grande, aquilo não é japonês, japonês tem olho puxado!”. Ela então deu materiais para o filho desenhar “e achava ótimo, deixava ele lá desenhando”.

Jacira conta que levava os filhos para museus, e somente museus. Mas um dia levou-os para o Itaú Cultural, lugar que Leandro começou a frequentar, e onde conheceu pessoas que o ajudaram a desenvolver sua carreira. Especialmente um artista plástico que o contratou como assistente, “Mas sem pagar salário, só condução. Eu falei vai meu filho, tem que tentar né, fazer o quê? Mas o povo tem preconceito, fala que é coisa de vagabundo. Aí que ele fez os contatos e começou a fazer música. Aí um dia ele me trouxe uma letra que eu achei bom, falei ‘nossa, ele tem jeito

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pra coisa mesmo!’. Eu não conhecia rap, hiphop, achava estranho.”. Foi com o dinheiro da venda do primeiro cd do filho que Jacira conseguiu construir o primeiro andar da casa.

Perguntei sobre as linhas de ônibus que atendem a região e ela respondeu que existe apenas uma que já existia desde que ela se mudou para o terreno. Chama-se “Cachoeira”. “Sempre existiu, mas antes chamava ‘Portal da Cantareira’, bem mais bonito que ‘Cachoeira’, né? Mas cachoeira também é bonito.”

Durante seu discurso é notável a questão do “vai e volta” da casa da mãe, dizia “eu não podia voltar para a casa da minha mãe”.

Sobre a compra do lote, Jacira conta que depois que o comprou, os vendedores sumiram, “dizem que vendem lotes em Minas Gerais”. Até hoje há reuniões de negociação com a prefeitura e os supostos proprietários, que segundo ela não conseguiram provar que tem posse do loteamento.

Hoje moram na casa ela, seu marido Eduardo, a filha e o genro. Na cobertura da casa está fazendo uma horta, isso porque fez um curso de jardinagem no parque Ibirapuera, quando terminou esse curso começou a fazer paisagismo.

Sobre religião ela diz ter passado por várias durante a vida.

Quando perguntei se há equipamentos de lazer no bairro ela respondeu sem titubear que o lazer no bairro é o bar. Comentou também sobre o clube esportivo privado vizinho ao lote, freqüentado pela classe média, que eventualmente abre as portas às crianças da comunidade. Mas ela não deixava os filhos freqüentarem esse evento por ele separar as crianças da comunidade das crianças que freqüentam o clube.

Em alguns momentos ela falou sobre as freqüentes mortes de garotos jovens na região, “aqui tem muito defunto” e sobre alguns episódios a respeito do controle que alguns grupos de

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tráfico de drogas. E por isso, segundo ela, lá há muitos cemitérios.

Em sua sala no primeiro andar, há um forro de gesso decorado com sancas. Quando perguntei sobre esse forro ela contou que ele rachou devido às explosões que ocorrem na pedreira que há a alguns metros do loteamento.

Mencionou que costuma freqüentar, além do parque Ibirapuera, o SESC, “O SESC é minha segunda casa”, principalmente o SESC Pompéia, que é o que ela mais gosta.

Sobre Leandro ela conta que, na busca por um ofício, ele freqüentou um circo, o Ciro Kamia, em que foi colocado para vender cachorro quentes e depois foi “promovido” ao tiro ao alvo. Sua irmã mais velha, Tiana, defendia-o na escola. E quando falava sobre as músicas dele comenta do pensamento rápido que ele têm. Contou uma história para ilustrar que o filho começou a se virar sozinho. Leandro chegou da escola com uma recomendação da professora para que levasse um vidro para a escola para fazerem um trabalho. Quando chegou em casa e pediu à mãe o vidro, a mãe disse que não lhe daria nenhum vidro porque era perigoso para as crianças. Na escola, a professora lhe puniu por não levar o objeto, ao que ele respondeu reproduzindo os ensinamentos da mãe.

Encontro dia 09.06.2011, quinta-feira 10h30 até 15h30 – no SESC Pompéia

Marcamos um encontro em uma quinta-feira, por sugestão dela no SESC Pompéia, lugar que ela freqüenta por gosto e pelos cursos que faz. Perguntei qual é esse curso, e ela contou que é um curso de estamparia às quartas-feiras e mostrou alguns desenhos que pretendia trabalhar nas aulas. Disse que no dia anterior ficou no SESC até as 19h, duas horas depois do término da aula, que acaba às 17h, isso porque fica conversando com os colegas e

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professores. Nesse dia chegou em casa às 21h30. Ela diz que criou os desenhos porque não queria mais trabalhar com os padrões de florais e elementos da natureza que o professor passava, e que mostraria para o professor na próxima aula. Esse método de estamparia é um processo em que se passa uma cera na parte que não será tingida.

Falou da filha, Kátia, que não mora com ela e tem uma fillha, Maria, mesmo nome de sua mãe.

Jacira contou também sobre sofrimentos de infância. Depois do convento, sua mãe botou-a para trabalhar com 11 anos em casa de família como empregada doméstica, mas quando lhe pediram para descascar uma laranja, ela respondeu “eu não, você tem mão”, e acabou perdendo o trabalho. Depois a mãe colocou-a em outro emprego como arrematadora em uma loja de confecção de roupas. O dono da loja frequentemente pedia para ela experimentar as roupas. Ela as experimentava por cima de sua roupa na frente de todos, até que o chefe começou a pedir para que ela experimentasse na sala dele e se despisse para isso. Com sua recusa, ele diz para sua mãe que ela não queria trabalhar. Sobre a reação da mãe ela diz que não adiantava dizer que foi abusada porque a mãe respondia que assédio é culpa da mulher, a mulher “fez por onde”. Os incômodos com a mãe são muitos. Outro deles é o que ela fala a respeito das músicas que seu filho Leandro escreve como rapper, sua mãe diz para ela tomar cuidado com as “músicas de bandido” que o Leandro faz, porque “qualquer dia ele vai ser pego pela polícia”.

Sai desse emprego na loja de confecção e começa a pedir esmola, a princípio por brincadeira com umas amigas, mas a partir do momento que começou a ver que dava dinheiro continuou a pedir. No início pediam na Estação da Luz, “até no parque mesmo”. Então começaram a aparecer propostas de prostituição e foram pedir no Brás. Mas em algum momento percebeu que não estava bem porque “você ouve de tudo”.

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Falou sobre sexo, “os animais fazem na hora que tem que fazer. Eu nunca vi um animal que tenta fazer sexo com outro criança” e deu o exemplo do elefante. “Deus deixou em aberto a questão da sexualidade”. Contou sobre os documentários que assiste sobre animais, um específico em que descobriu uma espécie de vespa que põe ovos em aranhas. Os documentários fazem parte do tipo de programação televisiva que ela gosta de assistir, que diz ser oposta ao que a maioria das pessoas em sua casa gostam. “O pessoal gosta de novela, eu não gosto de novela, até porque o noticiário me marca, não consigo ver uma tragédia e ir cortar cenoura depois! Aquilo fica na minha cabeça.”

Namorou um rapaz “que queria fazer sexo” com ela, mas ela não queria porque tinha apenas 11 anos, e ele começou a persegui-la e agredi-la. Então apareceu Miguel, seu primeiro marido, pai de seus filhos, que a defendeu e bateu no perseguidor. “Aí achei que tinha encontrado meu príncipe encantado”. Casou-se com ele. “Mas eu era feliz e não sabia”.

Ficou casada dos 14 aos 22 anos, quando o marido começou a virar alcoólatra. Separou-se e voltou a morar com a mãe. Mas novamente ficou sem foco na vida.

Não via sentido nos estudos, “era tudo chato”, por isso foi trabalhar - largou a escola na 6ª série. Sua mãe dizia que mulher não tem que estudar. Retomou os estudos porque viu que “não tinha como, precisava estudar”, e terminou o ensino fundamental.

Fez um curso técnico de enfermagem porque “botei na cabeça que era isso que tinha que fazer”. E foi exercendo a profissão que completou os estudos do ginásio, no Sindicato. “Aí é que conheci um professor, aí é que comecei a ter gosto pelos estudos.”.

Quando falou dos trabalhos de bordar falou que tem dificuldade de se desapegar das coisas que faz, o Leandro fala que tem que

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fazer em maior escala para vender – criar uma estampa para ser reproduzida. Como tem muito apego pelo que produz, não quer vender, mas pensou que teria que fazer algo com os trabalhos. “Se não ia vender, tinha que expor”. Começou a procurar editais por indicação dos filhos.

Contou sobre coisas da infância que ela lembra com muito carinho: o cheiro da roupa lavada por sua mãe, “nenhum amaciante copia”. Ela lavava, botava para engomar e pra secar, com outras mulheres, todo o processo sempre cantando. “Hoje é só botar tudo na máquina”. Outra memória é sobre as brincadeiras com a forma de conservar os alimentos que sua mãe fazia - ela cozinhava a carne, colocava no meio de gordura de porco e enterrava no quintal da casa. As crianças procuravam a carne e comiam todos os pedaços em meio à gordura, quando a mãe ia derreter a gordura não havia mais carne. Mais uma brincadeira de infância era assistir um matadouro de porcos. Sua mãe até tinha uma criação de galinhas, e pedia para que ela fosse procurar os ninhos no mato. Ela encontrava os ovos e comia-os com açúcar, quando sua mãe perguntava se ela os havia encontrado, ela respondia que não. Outra lembrança era sobre a hierarquia da divisão dos pedaços do frango nas refeições: “os homens ficavam com coxas e sobrecoxa, as mulheres com peito e outros, e as crianças com o pé e pescoço”.

Jacira não queria que os filhos convivessem com os primos da família do pai, isso porque eles mendigavam, não queriam trabalhar. Os primos dos filhos por sua parte, não conviveram com eles porque ela não tem proximidade com os irmãos. “Meus irmãos não queriam que os filhos convivessem com os meus porque a gente é mais pobre que eles, e eu não queria que meus filhos convivessem com os filhos dos irmãos do pai que são mais pobres, olha como são essas coisas! Mas não era porque eram mais pobres.”

Ela contou sobre as sessões de hemodiálise que tem que fazer

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diariamente devido à doença, são sessões de 1h30. Ela faz sessões diárias porque não gosta do outro programa que prevê três sessões semanais de quatro horas por sessão, isso porque acha ruim, “você não se locomove sozinho, não dá”.

Sobre as vivências no Hospital das Clínicas, onde faz as sessões de hemodiálise, ela conta da questão com os nutricionistas, “cada hora chegam a uma turma diferente e tentam um novo cardápio. Teve um que tinha que comer duas bolachas de água no café da manhã com chá ou leite. Eu comecei a seguir a regra e fui internada, fiquei subnutrida. Fiz um monte de exames e não descobriram o que eu tinha. Aí um menino que faz hemodiálise a 20 anos me perguntou ‘você tá seguindo a dieta, né?’ e mandou eu tomar um caldo de mocotó. Meu marido burlou as regras do hospital e levou o mocotó. Em três dias tive alta. É muito ruim quando vem alguém falar o que você tem que fazer sem saber o que você passa.”.

Esse discurso a respeito da intervenção de alguém alheio ao problema começou quando ela me perguntou o que exatamente era meu trabalho pra que a gente ficasse conversando dessa forma e eu respondi que queria tentar um novo tipo de aproximação das pessoas. Nesse sentido, ela faz alguns discursos de revolta com pessoas, políticos e engenheiros. “Os engenheiros são muito ruins, só fazem obra ruim, e quando reformam, reformam mal”.

Ainda sobre as sessões de hemodiálise, Jacira se manifesta a respeito da desinformação de algumas pessoas que são de seu grupo de sessões. Comenta sobre médico ter explicado que o nível de potássio no sangue é amenizado pela hemodiálise, mas o nível de fósforo, “que deixa o osso poroso”, se acumula durante todo o mês, “então não adianta ficar sem comer alimentos com fósforo só no dia anterior ao ‘rotinão’, tem gente que é formada e não entende isso!”. “Rotinão” é como chamam uma bateria de exames que eles têm que fazer periodicamente.

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Jacira além de fazer hemodiálise no Hospital das Clínicas, faz psicoterapia, com “Rose”. Já tentou com outros analistas, mas não deu certo, uma dessas tentativas foi com uma menina recém formada na faculdade, mas “ela não tinha muita confiança”.

Nas sessões de hemodiálise havia grupos separados por horários, e junto com os colegas reivindicava por mudanças no cardápio, entretanto quem não seguia a dieta era considerado paciente rebelde e consequentemente era trocado de horário.

Associou o tema das dietas determinadas pelo hospital com o jardim que está construindo na cobertura da casa, em que já colheu alimentos para consumo da família. Sobre o ateliê que há em sua casa, disse que não é exatamente um ateliê, pois suas coisas estão distribuídas pela casa e o ateliê virou sala de televisão. Ela não gosta de ver o que todos na casa gostam, e nem eles gostam de ver o que ela gosta “a casa não é só minha”. Então Jacira pretende fazer um ateliê na sala de baixo com uma televisão para que ela possa ver os documentários que gosta.

Sobre outros projetos para sua casa, ela conta que queria fazer uma lareira e chegou a construir. Mas não deu certo, a fumaça começou a ir para dentro de casa, concluiu que desperdiçou material, “se tivesse contratado o menino para fazer antes teria gasto menos, mas o projeto do menino não coube debaixo da escada, vai ter que fazer outro”.

Jacira conta um caso sobre famílias desestruturadas, “tenho pena da mulher que perdeu o marido, os filhos foram pro juizado e ela ficou no manicômio sob efeito de remédios. Perdeu tudo”.

Encontro dia 22.06.2011

Liguei para Jacira para encontrá-la em sua casa para tirar fotos da casa. Ela prontamente aceitou e fui visitá-la na quinta feira pela manhã. Ela me recebeu já em seu jardim, onde estava

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trabalhando com as plantas. Convidou-me a subir para ver os tanques de hortas que montou na laje, no teto da casa. De lá pude tirar boas fotografias do entorno do loteamento, a vista era boa lá de cima. Ela discorreu um pouco a respeito das hortaliças daqueles tanques e das técnicas de jardinagem que aprendeu no curso no Parque Ibirapuera.

Ainda na cobertura da casa, ela contou que pretende construir lá uma cozinha para que fique próxima às plantas. “Aquela cozinha é muito escura! Não gosto de cozinha escura, e aqui é bom que já fica perto das plantas do jardim.”.

Descemos para o segundo andar da casa, em que tirei fotos de uma abertura que há em uma das paredes, mas que não tem caixilho. Ela comentou “Você tá tirando foto do meu buraco!”. Nessa mesma sala ela comentou sobre uma das paredes que pretende fazer uma pintura, “Essa parede é minha, ninguém tasca! Vou fazer um painel africano.”

Jacira mostrou os tecidos que produziu no curso de estamparia e falou sobre a pesquisa que faz sobre temas africanos para reproduzir em seus trabalhos manuais.

Seu filho, que acabara de acordar, perguntou se o açúcar havia acabado, ao que ela respondeu que sim, havia acabado. E pediu licença para ir buscar na venda, vizinha de frente, um pacote de açúcar. “Vai tirando as fotos aí que eu vou lá e já volto!”.

Encontro dia 15.07.2011, sexta feira, no Hospital das Clínicas

Combinei de encontrá-la no Hospital das Clínicas, onde ela faz hemodiálise praticamente todas as manhãs, às 8h30. Cheguei um pouco atrasada, por volta das 8h50 na estação Clínicas do Metrô, e fui buscar a sessão de hemodiálise do hospital. Acho chegar no setor, perguntei na secretaria por Jacira e a enfermeira me respondeu com a naturalidade de quem a conhece bem, e me

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disse para aguardar que ela iria conferir se Jacira ainda estava em sessão. Alguns minutos depois voltou dizendo que ela já estava terminando.

Na sala de espera haviam mais quatro pessoas e uma criança que corria de um lado a outro. Depois de alguns minutos Jacira apareceu com duas ataduras no braço. Saímos do hospital em direção à avenida Doutor Arnaldo e começamos conversando sobre o tempo. Eu disse que em minha casa faz muito frio, que nesse período abro as janelas para o calor entrar. Ela riu e falou que faz frio no inverno e calor no verão em sua casa.

Chegamos na avenida e eu perguntei quais ônibus ela pega para voltar de lá, ao que ela respondeu “o Lauzane é melhor”, que foi o que acabamos pegando. Quando fomos passar na catraca ela me ofereceu passar o bilhete dela, porque dessa forma eu era “acompanhante” dela. Isso porque, ela me explicou em seguida, o bilhete único que ela possui é específico para pessoas com alguma doença que necessitem de acompanhamento para os deslocamentos. Discorreu ainda mais sobre o assunto contando que houve um período em que essa cota de passagem para o acompanhante foi suspensa, e que por isso haviam muitos pais de crianças que necessitam fazer hemodiálise sofrendo com o gasto das passagens para levar as crianças ao hospital. E foi por isso que foi implantado o bilhete único com cota para acompanhante.

No caminho até o terminal Santana conversamos sobre a reunião que eu havia ido no dia anterior por motivo de trabalho, em um órgão da prefeitura que fica próximo da região onde Jacira vive, em Jova Rural. Ela conhece a região de Jova Rural porque foi um assentamento do MST, na época em que ela fazia parte do movimento. Quando expliquei que o motivo da reunião era um encontro com profissionais e pessoas que vivem na região para a produção de um projeto urbanístico, ela se interessou por esses encontros.

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Fomos até o terminal de Santana, onde pegamos o ônibus Cachoeira 1783. O ônibus já estava a espera, o que a surpreendeu, “é raro encontrar o Cachoeira já no terminal”. Da janela do ônibus vimos alguns moradores de rua que Jacira, “eu já conheço esses moradores de rua de vista, o que me impressiona é que são tão jovens!”.

No meio do caminho paramos para ir ao mercado, e lá conversamos sobre a proximidade com os vendedores. Ela disse que tinha proximidade com aqueles vendedores que lhe tratavam bem. Comprou cenouras, alface, vagem, tomates e um peixe. Olhando a vitrine do frigorífico ela me explicou o que é a tulipa de frango. Então ela segue com o discurso a respeito da importância de se conhecer os vendedores do mercado, a importância de ter um tratamento mais cuidadoso.

Saindo do mercado, no ponto de ônibus, ela comenta rindo que havia uma senhora que estava à nossa frente na peixaria que esqueceu de pegar a sacola com sua compra, pois a viu de mãos vazias no ponto de ônibus.

Pegamos novamente o mesmo ônibus, o Cachoeira, e ela comntou que era uma surpresa chegar tão rápido novamente. No caminho ela comentou sobre uma igreja evangélica pela qual passamos e conversamos um tempo a respeito disso. Ela falou sobre o quanto “essas igrejas tiram dinheiro de pobre”, sobre as pessoas que tentam evangelizar outras.

Quando chegamos no ponto de ônibus de sua casa, no caminho até ela passamos por uma vendinha, onde Jacira parou para conversar com a moça do caixa. Elas brincaram uma com a outra, demonstrando intimidade. Para alcançar sua casa ainda percorremos uma ladeira íngreme. Nesse momento perguntei que sonho ela ainda gostaria de realizar na vida, e ela responde que seu sonho é fazer o que ela gosta de fazer. Depois explica que o que ela gosta é sua pesquisa sobre cultura negra e seus

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trabalhos manuais, que gostaria de poder escrever um livro sobre esses assuntos.

Em casa estava Tiana, uma de suas filhas. Reparei que ela mudou o cabelo, mas não comentei. Na sala conversamos sentadas no sofá. Tiana nos mostra sua nova tatuagem com a frase “A rua é nóis” na nuca, frase esta que é um chavão repetido por seu irmão rapper, Leandro. Jacira então brinca com a filha sobre escrever nomes de pessoas nas tatuagens.

Me conta sobre o vizinho que revende materiais roubados (materiais de construção, caixilhos, objetos) e ela diz que dá um jeito de disfarçar e negas as ofertas do vizinho sem ofendê-lo. Sobre esse assunto ela fez referência a um caminhão de cargas que passou por nós quando estávamos subindo a ladeira até sua casa.

Depois, um outro vizinho se aproxima da casa com um som tocando alto no carro, e loco ela comenta que ele sempre assim o faz, mas que a cada hora o tipo de música que toca é diferente porque “acho que são carros roubados, cada hora é um carro novo com um som novo”.

Em sua casa Jacira fala também de sua neta, Estela, filha de Leandro e sobre uma certa repressão religiosa que acredita que a outra avó faz com a menina.

Tiana comenta que vai ao Tucuruvi resolver um problema com a Sabesp relacionado à casa em que ela morava, num loteamento próximo, mas que foi roubada, e pelo trauma ela acabou indo morar com a mãe (estão construindo uma casa nos fundos do terreno de Jacira para ela viver com o marido). Como ela ia até o Tucuruvi, Jacira pediu pra que ela me acompanhasse em meu retorno. Seguimos então as três até a vendinha no meio do caminho, onde Tiana compra algumas coisas e onde Jacira fica. A moça do caixa brinca com as duas novamente com intimidade.

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Seguimos então eu e Tiana até o ponto de ônibus, e Jacira diz “cuida bem da minha colega!”. Tiana é mais fechada, pergunto sobre a casa que ela morava, e ela me conta a história do assalto. Pergunto também se ela frequenta os shows do irmão, que ela responde que vai quando possível, e também sobre sua irmã, que é mais distante. No caminho conversamos pouco e quando chegamos no metrô ela encontra seu marido e eu sigo meu caminho.

Encontro dia 22.10.2011, sábado

Combinamos novamente o encontro no Hospital das Clínicas, mas dessa vez um pouco mais cedo, às 8h. Saímos de lá e tomamos um ônibus até o Parque da Água Branca, onde ela pretendia fazer compras em uma feira orgânica.

No parque conversamos sobre os animais que há lá, com os quais ela se diverte. E na feira ela me fez diversas explicações sobre os legumes e vegetais orgânicos. Acabou comprando um punhado de couve e uma sacola de uma flor comestível que ela inclusive planta em sua casa também. Se interessou pela venda de um biodigestor caseiro, fazendo perguntas para o vendedor. Lá mesmo tomamos um café da manhã.

Na volta fizemos um caminho diferente. Tomamos um ônibus até o Anhangabaú e, de lá, outro que nos levou até o mesmo mercado que estivemos da outra vez. Lá, passamos apenas na peixaria. No ponto de ônibus, como a espera pelo Cacheira começava a se alongar, tomamos um Vila Zilda que nos levaria até uma parte mais adiante do percurso, em que ela me disse que haveria mais chances de chegar o Cachoeira. Descemos alguns pontos a frente e pegamos enfim o Cachoeira.

No caminho conversamos sobre o terreno onde Tiana morou e foi assaltada e Jacira resolveu passar em frente ao terreno para que eu o visse. Paramos então um ponto à frente do de sua casa.

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Seguimos até a área do terreno, que fica ao final de uma rua, com poucas casas construídas envolta e muitas em processo de construção. Essa área fica numa parte mais alta, então fomos descendo a rua até a casa de Jacira.

Nesse percurso a pé ela apontou o clube esportivo que fica logo abaixo do morro, contou sobre um restaurante que havia a frente e teceu explicações a respeito da presença da árvore Embaúba no Brasil. Ainda nessa caminhada um rapaz passou por nós e comentou “se eu soubesse que você estava tirando fotos, teria feito uma pose”. Eu sorri, e logo a frente Jacira comentou que o garoto é usuário de drogas e envolvido com o tráfico, mas ela também tinha conhecimento de toda a desestrutura familiar do menino. Contou sobre os pais e irmãos do garoto.

Em sua casa estava sua filha Tiana e, como das outras vezes, Jacira me levou para ver suas plantas. Falou sobre os tomates, a flor comestível, os morangos e também sobre as ervas que estava secando. Passei um tempo desenhando e tirando fotos, e nesse momento ouvi os diálogos de Jacira e Tiana com as pessoas que estavam sentados no bar a frente de sua casa, através de sua sacada. Brincavam e riam entre si.

Passamos mais um tempo conversando em sua sala e, no momento de meu retorno, me acompanhou até aquela mesma vendinha da outra vez. No caminho me chamou a atenção dois rapazes sobre um muro que dá para o clube esportivo que avizinha o bairro, assistindo algum jogo apoiados sobre a rede elétrica.

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Cláudia

Encontro dia 29.05.2011, domingo

No dia 29 de maio marquei com Cláudia uma visita em sua casa no Cocaia, bairro próximo à represa Billings, na Zona Sul da cidade. Quando cheguei à sua casa fui recebida por ela, o marido, a irmã e a sobrinha com seus maridos, além das crianças. Cláudia preparava um almoço para todos.

As primeiras perguntas que fiz foi como foi feita a escolha de ir morar nesse lugar e porque foram para lá. “Por causa dela” disse Cláudia apontando para Cida, sobrinha de José Carlos. “E depois veio a Silvana, uma trouxe a outra”. Cida completa “A gente veio pra cá porque é o que dá, eu adoraria morar lá onde você mora, mas não tenho...” e faz um sinal com as mãos representando dinheiro.

Antes moravam na Vila Joaniza de aluguel. Compraram a casa já construída, mas com o tempo foram construindo novas lajes, e hoje moram no andar superior e alugam os dois andares inferiores. Contrataram pedreiro para fazer a obra, “mas o pedreiro enrola...”.

Cláudia fala com José Carlos sobre o revestimento do banheiro no andar de baixo, que ele estava fazendo mas teve que parar porque acabou o material e a loja de materiais já estava fechada.

Pergunto se eles têm vista para a represa, José responde que sim e me convida ver da janela do quarto das crianças. “Eu queria deixar sem grade para poder ver, mas os meninos não dá, eles pegam o banco e sobem, o Carlinhos fica olhando.”

Ao lado da janela notei um buraco por onde passam alguns fios, e José comentou “aqui a gente divide com os vizinhos a internet, é speedy, aí a gente racha a conta. (A internet) nem fica mais lenta, antes era 500 megapix, agora é 2 giga e nem sinto

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diferença, pra mim tá tudo igual”. Sobre as contas de luz e água, ele conta que não divide porque pode receber multa. “Todo mundo tem ‘gato’, mas se um dia vem cobrar, toma multa”.

Vimos uma disputa de pipas pela janela, uma ‘cortou’ e ‘aparou’ uma outra e José Carlos disse “fim de semana isso aqui fica cheio”. Perguntei sobre times de futebol da região, “time daqui tem o Águia Negra, mas aí é grande”.

José Carlos é baiano de uma cidade próxima à Vitória da Conquista, veio para São Paulo com 22 anos. Cláudia é mineira, veio para São Paulo com aproximadamente 19 anos. Conheceram-se em um baile na Rua Bosque da Saúde, na Praça da Árvore enquanto ela e uma amiga, Conceição, passaram e José mexeu com Conceição. Durante seis meses Luisa, outra amiga de Cláudia, delatava as garotas com que José se encontrava no baile. Até que ele ficou sabendo do interesse dela.

Quando fomos almoçar não havia cadeiras e nem espaço para todos se sentarem a mesa, e Cláudia comentou: “Aqui é casa de pobre, não tem cadeira”.

Perguntei sobre a oferta de transporte público e Cláudia contou que tem que pegar três conduções normalmente para ir ao trabalho. José completa que há várias linhas de ônibus, mas que o trajeto é longo e os ônibus sempre vão lotados.

Cláudia cozinhou costela e comentou “Fiz costela, você nunca comeu? Por isso tem frango. Costela é lá da minha terra.”

Visita dia 21.06.2011

Pedi a Cláudia para passar uma noite em sua casa, ela prontamente se dispôs a me receber e combinamos então numa terça-feira que eu a acompanharia na volta do trabalho.

Ela passou em minha casa, pois trabalha perto às terças-feiras,

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mas também para nos acompanhar Elma, que trabalha em minha casa e mora perto de Cláudia. Nesse dia, excepcionalmente, Elma havia trazido a filha, Carol para o serviço.

Saímos por volta das 16h35, e fomos até a Av. Indianópolis, a duas quadras de minha casa, onde pegamos o ônibus 675 A - Pq. Sto Antônio. O ônibus não estava lotado, havia apenas algumas pessoas em pé no corredor, e nele seguimos até o ponto na Av. Washington Luis nº 6979, a frente do Aeroporto de Congonhas.

Andamos uma quadra para pegar a perua da linha 6110-10 Conj. Hab. Palmares. Foi o trecho mais complicado da viagem. A perua já saiu do ponto inicial cheia, com os passageiros que iam entrando, e quase nenhum saindo, tive que apoiar as mãos na janela passando por cima das pessoas que estavam sentadas. Não havia espaço nem para mudar os pés de posição. No caminho Cláudia me fazia algumas considerações. “Tá vendo como é? A sorte é que hoje tá sem trânsito, porque quando tem trânsito é isso só que demora mais!”. Ela e Elma conversavam entre si de diversos assuntos, por vezes íntimos, sem se incomodar com a proximidade das pessoas ao redor. Uma mulher ofereceu para segurar minha mochila, eu recusei e Cláudia ficou zombando de mim, dizia para Elma “Olha só Elma, a mulher ofereceu para segurar a bolsa da Bia e ela não aceitou! Se ela oferecesse pra mim eu dava! Oxe!” ao que a mulher correspondeu oferecendo segurar sua bolsa. Ela cede a bolsa e insiste para que eu também desse e eu acabo também cedendo.

Com a perua paramos na frente da Sabesp e esperamos cinco minutos pelo ônibus Jd. Gaivota. No ônibus são diversas conversas e brincadeiras por todo o percurso com eventuais participações de estranhos. Cláudia contou um episódio de “um barraco na perua que um homem velho se esfregava na garota que estava sentada no banco, fizeram o homem sair da perua!”. No último ônibus que tomamos havia um rapaz que se colocou

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demasiadamente próximo de uma mulher ao meu lado, a mulher se incomodou mas não fez nada. O homem só saiu quando disseram a ele que aquela porta não abriria pois era uma porta para acesso a deficientes físicos. Quando ele saiu Elma falou “olha lá, de meia branca pra cima, parece que vai jogar futebol”. No dia seguinte, no ônibus para ir ao trabalho, Elma lembrou desse episódio e brincou “se fosse bonitinho eu deixava”.

Paramos na Av. Estrada do canal Cocaia, onde nos separamos de Elma, que seguiu para sua casa com o combinado de encontrar-nos mais tarde na casa de Cláudia, e fomos caminhando por cerca de dez minutos até lá.

Era aproximadamente 18h30, e no caminho do ponto de ônibus até a casa de Cláudia passamos por dois grupos de crianças em ruas diferentes que jogavam futebol, eram grupos de oito ou dez crianças. Comentei que havia muitas igrejas no bairro, Cláudia disse que Anna Beatriz, sua filha de 13 anos freqüentava uma por conta própria, mas não desenvolveu o assunto.

Cláudia me mostrou a rua onde se realiza uma quermesse de São João organizada por uma associação localizada na própria rua.

Já era noite, a temperatura estava amena. A paisagem é de casas coladas uma à outra, e a fiação da rede elétrica profusa cruzando por sobre nossas cabeças.

Já na casa de Cláudia, subo as escadas – os degraus têm tamanhos variáveis –, deixo minha mochila no quarto dos filhos, onde vou dormir, lavo as mãos enquanto Cláudia começa a organizar o jantar que já estava feito por sua irmã, Silvana, que mora ao lado. O fato de Silvana preparar o almoço se tornou motivo de piada mais tarde com a presença de Elma.

Fiquei tirando fotos da paisagem e do interior da casa. Cláudia se preocupa com o fato de ser noite e estar escuro para tirar fotos e

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pergunta “no trabalho você vai falar também da vida da família” em afirmativa ela responde “Essa família é meio louca”.

José Carlos chega com compras para o café da manhã e cervejas, isso porque no trajeto de ônibus Cláudia ligou para ele pedindo que o fizesse devido à minha presença. José me ofereceu também Campari e caipirinha feita por Marcos, o vizinho de baixo, que por sua vez tem interesse em Elma.

Antes de Elma chegar, eu e Cláudia conversamos sobre o marido dela, isso porque é assunto trivial suas desavenças com ele. Cláudia disse “acho que ela tinha que largar ele, porque além de tudo parece que ele tem envolvimento com essas coisas de droga”. Quando Elma chegou trouxe canjica que disse que traria. Elma é extrovertida e faz brincadeiras todo o tempo.

Anna Beatriz vai à escola sozinha, mas nesse dia não teve aula por causa da aplicação do “Provão” do governo, que ela faria no dia seguinte. Gosta de assistir às novelas da Globo e disse que estudou um pouco para a prova.

Carlinhos, o filho mais novo de aproximadamente 5 anos, estava em uma peça de teatro do Pinóquio com a escola. Cláudia disse que pagou 17 reais para ele ir ao passeio. Chegou às 17h30, e quando chegamos em casa ele estava brincando com um primo. Pediu à mãe para ir brincar com o primo em outro lugar, Cláudia permitiu e eles saíram. Voltou quando já estávamos jantando e pediu para os pais pedirem pizza. Cláudia não queria que pedissem porque haveria muita comida que estragaria pois iriam viajar no feriado. Ela disse que iriam para Ermelino Matarazzo, na Zona Leste da cidade, onde mora um primo de José Carlos. Entretanto ele não negou o pedido do filho que ficou emburrado com a mãe, e ela acabou cedendo. Me perguntaram que sabores eu gostava e pediram uma pizza sabor metade quatro queijos e metade muzzarela. José deu 22 reais na mão de Anna Beatriz e Cláudia me disse “agora você vai conhecer a pizza do Cocaia”.

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Brincaram que Carlinhos adora pizza, que esse tipo de comida não tem na Bahia – Elma, que é baiana, não gosta –, que é coisa de paulista. E também diziam que Anna Beatriz não podia comer porque está gorda. Aparentemente ela não se incomoda com os comentários e brinca que está fazendo regime e por isso vai comer pizza. Comentaram sobre sua barriga e a quantidade que come, mas que também eles não ajudam quando compram pizza e “essas coisas”. Inclusive Elma é autora de alguns desses comentários, comparando Anna Beatriz com sua filha, Carol. Sobre Carol, Elma não mede palavras para dizer que está gorda “ela pesava 68 quilos, hoje está com 53. tem que partir da pessoa, foi ela que olhou no espelho e falou ‘assim não dá, meu peito tá muito grande’”.

Elma brincava com José Carlos para que ele pedisse para Marcos colocar mais cachaça na caipirinha, porque estava fraca. Ele e Cláudia brincam sobre a atração que Marcos sente por Elma, e ela provoca-o nesses momentos.

Vamos para o computador ver no site de relacionamentos “Orkut” as fotos do aniversário de Thais, outra filha de Elma. Depois, vimos fotos de uma viagem para Bahia e Minas Gerais, onde Zé e Cláudia tem parentes, respectivamente.

Carlinhos dormiu e Cláudia comentou que não deu tempo nem de dar banho e nem de escovar os dentes do menino. Começou a arrumar a cama onde ele dormiria, para carregá-lo para lá. Como era a cama onde Elma estava sentada, ela começou a brincar a respeito de Cláudia a estar expulsando de casa. Brincadeira essa que ela já havia feito quando Cláudia lavava a louça do jantar enquanto conversávamos na cozinha. Cláudia gosta de deixar tudo limpo e organizado.

Elma então vai embora e vamos para o quarto do casal assistir televisão. Pegamos apenas a frase final da novela, “Elma não deixou a gente assistir” diz Cláudia. José Carlos ficou contando

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histórias enquanto passava outro programa na televisão. Ao mesmo tempo Cláudia falava para irmos dormir, fiquei um tempo pensando se me arrumava para ir dormir ou se ficava lá em frente à televisão, não entendi o que eles esperavam que eu fizesse. Me levantei e fui me arrumar, mas depois de um tempo Cláudia foi me chamar para terminar de assistir o programa que passava na televisão. Mais uma vez me questionei se ela estava me chamando por educação ou se era realmente para eu ir. Voltei, José havia descido à rua ou à casa de baixo, pois não queria dormir ainda. Anna Beatriz estava deitada assistindo à televisão, e Cláudia também sentou. Quando o programa acabou, por volta das 23h, fomos deitar. Anna Beatriz e o irmão dormiram juntos em uma cama e eu em outra.

Sobre a casa, notei algumas coisas. Além da escada, cujos degraus são irregulares, o assentamento de azulejos no banheiro estava torto nas quinas, o que pode ser falta de prumo e ortogonalidade até das próprias paredes. O banheiro exala mau cheiro que algumas vezes me incomodou durante o jantar. Cláudia comentou sobre o mau cheiro com o marido dizendo que os banheiros um em cima do outro estavam exalando o cheiro, que tinha que passar “diabo verde”. Uma parede do quarto das crianças parecia ter também uma falta de ortogonalidade.

Cláudia comentou “até nisso o pedreiro errou”, quando perguntei onde estava o interruptor do quarto, pois os interruptores dos dois quartos estão fora dele, na cozinha.

Da janela do quarto do casal, voltada para a rua, pude ver o movimento que havia, era aproximadamente 20h. À frente há uma casa que funciona como salão de cabeleireiro masculino, onde havia uma concentração de uns cinco rapazes na porta. Pela rua passou um ciclista, uma senhora, um casal e outros cinco rapazes em momentos distintos enquanto fiquei observando e tirando fotos da janela. De lá também pude ver fiação da rede elétrica muito próxima, profusa e cheia de rabiolas

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de pipa enroladas. No terreno logo à frente há uma construção que parecia incompleta, com vários gatos transitando.

Minha noite de sono foi, no início, tranqüila, como estava com sono, dormi rápido. Mas no meio da noite ouvi um estouro seguido por um coro de cães sendo que um deles, que soava esta bastante próximo, fazia o ruído característico de choro de cães. Isso foi suficiente para me assustar e permear minha cabeça de um imaginário preconceituoso daquele lugar. Sonhei com tiros, balas perdidas e enchentes a partir desse momento. Ficava imaginando se aquela sensação de segurança que Cláudia me passava, já que ela comentou algumas vezes sobre o bairro ser tranqüilo, era real ou não. Dias antes, Elma, que trabalha em minha casa, havia me contado de uma morte que ocorrera muito próximo à sua casa, o que acredito que contribuiu para me assustar nessa noite.

Acordamos às 5h da manhã, me troquei enquanto Cláudia, que já estava acordada desde as 4h segundo ela, preparava o café. Tomei água, e nesse momento Cláudia ficou justificando a falta de filtro, o filho tinha que ir buscar água.

Comi um pedaço de bolo de côco que José havia comprado e tomei um copo de leite com “Toddy”. Não estava com fome, mas senti que seria uma desfeita já que eles compraram tudo aquilo por minha causa. Compraram cerveja, “Toddy”, pão de fôrma, queijo e bolos de côco e de laranja.

Arrumei a cama, mas Anna Beatriz e Cláudia insistiram que não precisava, que depois elas arrumavam, mas mesmo assim o fiz.

Quando estava me arrumando, Cláudia acendeu a luz do quarto para que eu pudesse enxergar. Eu a apaguei para não incomodar as crianças. Anna Beatriz disse que não precisava apagar, que podia deixar acesa. Cláudia acendeu novamente e eu novamente apaguei.

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Saímos para ir até o ponto. Ainda era noite e havia apenas um rapaz e duas moças em nosso caminho na rua de Cláudia, a Rua Manoel Plas. Comentei sobre o estouro que ouvi à noite e ela disse que não ouviu nada, nem os galos que cantavam às 5h. Disse que sua janela é virada para a rua, que os barulhos deviam vir de trás da casa. Na avenida já havia um fluxo maior de pessoas, contei 8 ou 10 à nossa frente. Cláudia comentou “olha Bia, aqui também tem, não é só no centro” referindo-se a um morador de rua.

Encontramos Elma no caminho. Ela contou que não dormiu bem, porque seu marido chegou em casa às 3h27, acordou a todos. Cláudia criticou Elma que fumava logo cedo, eram 5h30. Elma reclamou que não a enchesse, pois ela já havia tomado café.

Chegamos no ponto onde sai o ônibus “Praça da Sé”. Haviam 4 filas, sendo uma delas maior que as outras. Entramos na primeira fila, e Cláudia comentou que deveríamos pegar a segunda para irmos sentadas no ônibus. Em seguida notou que o próximo ônibus seria um “grande” – biarticulado –, então voltamos à fila maior. Elma reclama da indecisão de Cláudia.

Entramos no ônibus e sentamos eu e Cláudia em assentos preferenciais para idosos, gestantes e pessoas com deficiência. Alguns pontos à frente Cláudia cedeu lugar a uma senhora. Outros pontos à frente entraram uma mulher com quatro crianças. Quando fiz menção de levantar, Elma me impediu dizendo que haviam duas moças jovens sentadas em assento preferencial do outro lado. E disse em voz alta “olha a moça com criança aí gente”, chamando a atenção para que as outras moças cedessem lugar.

Saímos aproximadamente às 5h40 do Cocaia e chegamos às 7h na Av. Vereador José Diniz, na esquina com a Rua Vieira de Morais. Lá pegamos, eu e Elma, o ônibus “Metrô São Judas”, enquanto Cláudia seguiu para outro ponto.

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Às 7h30 chegamos em minha casa. Elma comentou que gostou de sair mais cedo porque tinha menos trânsito, normalmente ela sai as 6h10, mas dessa vez saiu mais cedo para acompanhar a mim e Cláudia.

Elma e Cláudia se conheceram através de minha família. Elma começou a trabalhar em casa em janeiro, como Cláudia eventualmente passa por minha casa porque trabalha na região, acabaram se conhecendo e aproximando motivadas por morarem próximas. Costumam fazer a viagem de volta do trabalho juntas e eventualmente a de ida.

Encontro dia 24.09.2011, domingo

Combinamos de nos encontrar na região do metrô Ana Rosa logo após seu trabalho, que terminaria por volta das 13h. Nesse dia, Cláudia trabalhou em um consultório.

Nos encontramos, ela está acompanhada de seu filho Carlinhos, e lamenta a partida de um ônibus a poucos minutos, “de domingo demora mais.”. Explica que aos domingos o caminho que o ônibus faz é outro.

Diante de câmeras, dentro do ônibus, Cláudia comenta sobre as dificuldades de depender do transporte público. Em outro momento menciona que gostaria de continuar a morar na Praça da Árvore, “tudo é tão pertinho”.

No percurso conta de sua relação com José Carlos, que teve um momento de separação na época em que ela estava grávida de sua primeira filha, Anna Beatriz, “homem é tudo safado, né!”. Nesse período de separação, Cláudia morou na edícula de minha casa.

Saímos às 14h25 e após tomarmos três ônibus, chegamos ao Cocaia, as 16h10. No caminho, as ruas estavam movimentadas mesmo com o tempo frio. Cláudia troca palavras com garotos

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que estavam na rua: “olha quanta menina bonita que eu trouxe!”, ao que um deles responde “daqui a pouco estou indo lá!”.

Ao chegarmos, Cláudia retira os sapatos enquanto enfatiza que nós não precisávamos retira-los e também contando a Silvana, sua irmã o diálogo que teve com o garoto minutos antes na rua. As duas riem. Silvana está com Anna Beatriz, filha de Cláudia, preparando o almoço. Preparavam favas no momento.

Conversamos sobre as comidas, sobre os produtos que seu marido havia trazido de Minas Gerais. Eram tamarindos e um saco enorme de farinha de mandioca. Almoçamos e após o almoço Cláudia ofereceu canjica e rapadura de sobremesa, também trazida de Minas Gerais. Com a rapadura, mais tarde, improvisou um “café de rapadura”, adoçando a água com a rapadura antes de coar o café.

Ao final da tarde, Cláudia convida: “vamos ali na laje da Silvana para vocês filmarem ali a favela”, ao que seu filho, Carlinhos, contesta: “favela?!”. Ela então responde um pouco constrangida “é, ali tem uma favelinha. Aqui é como favela.”

Encontro dia 08.11.2011

Cláudia trabalhou nesse dia em uma casa próxima à minha. Eu lhe disse que iria de carro ao Cocaia e ela aceitou minha carona. No carro, disse que da janela desse lugar em que trabalha se pode ver nitidamente o aeroporto. “No começo eu ficava assistindo os aviões, mas agora já me acostumei.”.

No caminho Elma, que foi conosco, contou sobre seus filhos e sobre sua terra natal, a Bahia. Falamos um pouco também sobre os rumos do meu trabalho de graduação.

Já na Av. Estrada do canal Cocaia, paramos na escola onde Carlinhos estuda porque Cláudia resolveu buscá-lo já que chegou mais cedo do que o normal, a tempo da saída da escola. Não

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fosse ela, sua filha o buscaria. Esperamos um pouco e Cláudia volta com o filho. Elma ficou na avenida pois sua casa fica ali próxima. Nesse momento há intensa movimentação das crianças saindo da escola.

Em sua casa, Cláudia me oferece gelatina e Bis e lamenta-se por não ter mais a oferecer. Enquanto tiro fotos ela me acompanha. Pergunto se não a estou atrapalhando e ela responde que “não, não tenho nada para fazer”. Pergunto de sua irmã, e ela responde que não está pois está no trabalho.

As crianças brincam de bater cartas na garagem. Bia pede dinheiro para fazer algo que presumi que já haviam combinado, Cláudia concorda pedindo que ela comprasse alguns outros itens. Em seguida é Carlinhos quem pede dinheiro, mas para comprar sorvete, “tá calor mãe!”. Cláudia nega e ele insiste. Sem sucesso, se retira. Posteriormente vem o filho de Silvana também pedir dinheiro, Cláudia retruca oferecendo gelatina. Se voltando a mim ela diz “você viu Bia, todo mundo vem pedir dinheiro”. Ele quer gelatina com leite condensado, Cláudia diz que não tem e ele vai buscar em sua casa. Nesse momento notei o quanto a relação familiar transcende as paredes, ela e sua irmã cuidam dos filhos uma da outra como se fossem seus.

Sento na cozinha para desenhar e os meninos ficam batendo cartas no meio da cozinha, o piso da garagem não estava ajudando na brincadeira. Meu desenho chama a atenção das crianças que se reúnem em torno de mim para vê-lo – há mais dois outros garotos que não conheço.

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