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Uma outra Comissão da Verdade? O papel da imprensa na construção da verdade sobre o passado ditatorial no Brasil 1 DIAS, André Bonsanto (doutorando) 2 Universidade Federal Fluminense/RJ Resumo: Este artigo pretende problematizar o jogo de enunciação midiático e suas construções discursivas sobre o passado ditatorial no Brasil. A ponto de ser considerada uma “outra” Comissão da Verdade, os trabalhos da imprensa foram cruciais para instaurar certas fatias de verdadenos embates pela legitimação de determinadas narrativas sobre aqueles idos. Para pensar o processo de articulação destas verdades na ordem discursiva tomamos como exemplo a análise de alguns aspectos da cobertura do jornal Folha de S. Paulo ao longo dos trabalhos da Comissão. Pautando reflexões exploratórias, este estudo busca contextualizar algumas hipóteses, que aqui surgem ainda como interrogações. Palavras-chave: Comissão da Verdade; imprensa; memória; verdade; ditadura militar. Surgida em decreto a partir da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) insere-se no Brasil em um contexto de amplas discussões decorrentes, por mais que tardiamente, do período de redemocratização e no processo de transição política que por muito tempo pautou-se pelo silêncio. A implementação de políticas de memória que buscassem construir uma narrativa oficial sobre a verdade do passado ditatorial iniciou-se nas comissões de reparação tendo como marco o ano de 1995 com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e, posteriormente, com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2001). Mas é a partir de 2008, com a Conferência Nacional de Direitos Humanos, que se estabeleceram bases mais sólidas para a institucionalização da CNV. Na ocasião foi criado o III Plano Nacional que, posteriormente, com articulação de um grupo de trabalho e representação da sociedade civil, formulou projeto de lei, encaminhando-o ao Congresso Nacional e sancionado pela presidência da República em 2011 (GONZÁLEZ e VARNEY, 2013). A lei surge também em um contexto internacional, impulsionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que já havia indiciado o Brasil pela sua ausência no enfrentamento das questões referentes às graves violações de direitos humanos 1 Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015. 2 Doutorando em Comunicação (UFF). Foi Analista de Pesquisa da Comissão Nacional da Verdade durante o segundo semestre de 2014. É mestre em Comunicação (UFPR) e graduado em Comunicação Social Publicidade e Propaganda e em História (UNICENTRO). E-mail: [email protected].

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Uma outra Comissão da Verdade?

O papel da imprensa na construção da verdade sobre o passado

ditatorial no Brasil 1

DIAS, André Bonsanto (doutorando) 2

Universidade Federal Fluminense/RJ

Resumo: Este artigo pretende problematizar o jogo de enunciação midiático e suas construções

discursivas sobre o passado ditatorial no Brasil. A ponto de ser considerada uma “outra” Comissão da

Verdade, os trabalhos da imprensa foram cruciais para instaurar certas “fatias de verdade” nos embates

pela legitimação de determinadas narrativas sobre aqueles idos. Para pensar o processo de articulação

destas verdades na ordem discursiva tomamos como exemplo a análise de alguns aspectos da cobertura do

jornal Folha de S. Paulo ao longo dos trabalhos da Comissão. Pautando reflexões exploratórias, este

estudo busca contextualizar algumas hipóteses, que aqui surgem ainda como interrogações.

Palavras-chave: Comissão da Verdade; imprensa; memória; verdade; ditadura militar.

Surgida em decreto a partir da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, a

Comissão Nacional da Verdade (CNV) insere-se no Brasil em um contexto de amplas

discussões decorrentes, por mais que tardiamente, do período de redemocratização e no

processo de transição política que por muito tempo pautou-se pelo silêncio. A

implementação de políticas de memória que buscassem construir uma narrativa oficial

sobre a verdade do passado ditatorial iniciou-se nas comissões de reparação tendo como

marco o ano de 1995 com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e

Desaparecidos Políticos e, posteriormente, com a Comissão de Anistia do Ministério da

Justiça (2001). Mas é a partir de 2008, com a Conferência Nacional de Direitos

Humanos, que se estabeleceram bases mais sólidas para a institucionalização da CNV.

Na ocasião foi criado o III Plano Nacional que, posteriormente, com articulação de um

grupo de trabalho e representação da sociedade civil, formulou projeto de lei,

encaminhando-o ao Congresso Nacional e sancionado pela presidência da República em

2011 (GONZÁLEZ e VARNEY, 2013).

A lei surge também em um contexto internacional, impulsionado pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos que já havia indiciado o Brasil pela sua ausência

no enfrentamento das questões referentes às graves violações de direitos humanos

1 Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, integrante do 10º Encontro Nacional de

História da Mídia, 2015.

2 Doutorando em Comunicação (UFF). Foi Analista de Pesquisa da Comissão Nacional da Verdade

durante o segundo semestre de 2014. É mestre em Comunicação (UFPR) e graduado em Comunicação

Social – Publicidade e Propaganda e em História (UNICENTRO). E-mail: [email protected].

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durante a ditadura. A Comissão Nacional da Verdade surge, portanto, numa conjuntura

de demandas pautadas por políticas da justiça de transição e, obviamente, não foi um

caso pioneiro. 3 No caso especificamente brasileiro, a CNV estipulou, de acordo com a

lei que a criou4, apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de

setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Instituída em 16 de maio de 2012, a CNV

teria a princípio dois anos de trabalho, que foram posteriormente prorrogados,

encerrando as atividades oficialmente em 10 de dezembro de 2014, com a entrega de

seu relatório final.

Apesar do amplo escopo temporal, a Comissão se debruçou na apuração de

crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985) e era baseada, sobretudo, nas

questões referentes ao “direito à verdade”. Este direito está referendado na busca por

uma reparação efetiva aos familiares das vítimas de graves violações de direitos

humanos, o que inclui conhecer as causas que levaram a esses abusos, as circunstâncias

e os fatos, bem como o destino final e o paradeiro dessas vítimas com a possível

identificação dos responsáveis.

De acordo com González e Varney (2013, p. 03), alguns sistemas jurídicos ainda

consideram este direito atrelado ao direito à liberdade de informação e à liberdade de

expressão. A busca por um direito à verdade estaria associado, portanto, a um direito

que possibilite uma investigação eficaz dos órgãos responsáveis a partir da ampla

verificação dos fatos com abertura dos arquivos e, consequentemente, a reparação e

divulgação dessa verdade à cena pública. No caso brasileiro, a Comissão tinha como

objetivo buscar a “reconciliação nacional”, pensada por uma investigação pautada na

transparência de informação para com a sociedade. Daí decorre a importância para estas

Comissões se debruçar sobre como esta “verdade” será conduzida ao público que

também constitui os discursos que se pretende legitimar. Não à toa, o papel da

comunicação para estas Comissões, tanto interna como externamente é também crucial.

No primeiro tomo de seu relatório final – documento que contém todo o

processo e resultado do trabalho da Comissão - há um sub item específico para tratar do

tema da comunicação dentro das atividades da CNV. O relatório afirma que os trabalhos

de comunicação da Comissão tiveram como diretriz a divulgação de suas atividades de

3 Para mais sobre as Comissões da Verdade instaladas ao redor do mundo, consultar Hayner (2011). 4 A lei está disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm

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“forma ampla” com assessoria específica para esta finalidade, sendo que as audiências,

diligências e depoimentos coletados pela equipe foram em todos os casos previamente

informados à imprensa, frisando que os membros da Comissão sempre buscaram

atender às solicitações dos jornalistas na realização de entrevistas individuais e

coletivas. A CNV também firmou convênio com a Empresa Brasil de Comunicação

(EBC) a partir de agosto de 2012 e contava com canais próprios de comunicação no

Twitter, Facebook e Youtube, além de um site institucional.

Importante ainda destacar a relevância que a própria Comissão deu aos trabalhos

da imprensa nacional como um todo. Em diversas ocasiões, incluindo a cerimônia

oficial da entrega do relatório final à presidência da república, o então coordenador da

CNV Pedro Dallari enfatizou o protagonismo exercido pelos veículos na divulgação e

ampliação dos trabalhos. Em entrevista concedida ao programa Observatório da

Imprensa na TV, na semana final dos trabalhos da Comissão, Dallari relatou a Alberto

Dines que o trabalho do grupo se constituiu em sistematizar um conjunto de

informações que, em parte, foram produzidas concomitantemente por outras fontes.

Segundo ele, os jornalistas tiveram um papel muito importante neste processo, uma vez

que “seus veículos foram não apenas reprodutores daquilo que estava sendo dito pela

Comissão Nacional e pelas Comissões Estaduais, mas eles foram fontes pra nós,

geraram matérias que nos ajudaram na investigação.”5

Esse discurso é refletido também no texto do relatório final. O documento

afirma, no trecho específico sobre a comunicação, anteriormente citado, que as

atividades da CNV receberam “expressiva cobertura” por parte dos veículos de

comunicação, sendo este trabalho de “grande importância” para a disseminação dos

resultados obtidos por eles, fazendo com que “a sociedade brasileira tivesse condições

de acompanhar a vida da CNV, formando sua convicção e posicionando-se em relação

às manifestações do órgão e de seus integrantes.”6

Evidentemente, ao longo dos últimos anos houve uma espécie de

“comemorativite” (CANDAU, 2012) desenfreada pelos órgãos de comunicação sobre os

tempos da ditadura, impulsionada pelos 50 anos do golpe civil militar em março/abril de

5 Observatório da Imprensa na TV. Entrevista com Pedro Dallari. Programa nº 753 de 02/12/2014.

Disponível em: www.youtube.com/watch?v=1yCXunJCpzg Acesso em: 7 de abril de 2015.

6 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório; v. 1. Brasília: CNV, 2014, p. 51.

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2014. Os trabalhos da Comissão realmente alavancaram a pauta sobre o passado

ditatorial, gerando debates calorosos na opinião pública ao longo de ao menos três anos.

Estudo preliminar publicado por Sanglard e Tristão (2014) identificou os principais

veículos que noticiaram assuntos relativos à CNV na semana em que esta completou um

ano, entre 15 e 22 de maio de 2013. De acordo com as autoras, os jornais impressos

foram os que mais se dedicaram à temática e, dentre as 64 matérias analisadas no

período, 18 delas foram publicadas pela Folha de S. Paulo e O Globo (9 em cada

veículo), sendo os jornais que mais destacaram o tema naquela ocasião. Pela quantidade

de matérias publicadas no período acredita-se, ainda segundo as autoras, que há no

trabalho da Comissão uma grande responsabilidade em promover o debate público e

pautar a imprensa sobre assuntos referentes ao período ditatorial no país.

Durante uma série de programas especiais produzidos pelo Observatório da

Imprensa na TV para discutir, já no ano de 2015, o emaranhado de questões que

surgiram na imprensa ao longo da efeméride, estiveram presentes Chico Otávio do

jornal O Globo, um dos principais articuladores destas pautas no jornal e o historiador e

professor da UFRJ, referência na área, Carlos Fico. Na ocasião, o historiador aproveitou

um momento de sua fala para elogiar a atuação do jornalista. Segundo ele, o trabalho de

Chico, e da imprensa como um todo, foi responsável por deflagar uma espécie de “outra

Comissão da Verdade”, sendo que as maiores revelações obtidas sobre o período teriam

vindo dos trabalhos investigativos produzidos recentemente pela imprensa. Estes jornais

– sobretudo os maiores, enfatizou – fizeram sites, levantaram materiais de uma “riqueza

extraordinária” que tem sido inclusive utilizado pelos historiadores, um trabalho “de

primeiro nível”: “é uma coisa impressionante […] as revelações mais importantes, mais

bombásticas, tem vindo da imprensa. […] E a qualidade do material de pesquisa, de

reportagem, […] que alimentou os 50 anos do golpe pelo olhar da imprensa, isso é

preciso destacar.”7

É pertinente pensar que esta declaração deve ter agradado não só o jornalista ali

presente mas, principalmente, alguns dos órgãos de nossa imprensa que protagonizaram

estes acontecimentos. Ressaltamos aqui, no entanto, que nossa preocupação não está em

perceber apenas como a Comissão impulsionou uma pauta específica nos trabalhos de

7 Observatório da Imprensa na TV. Chumbo Quente IV. Programa nº 760 de 03/02/2015. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=mxMTa8dykDQ Acesso em: 7 de abril de 2015.

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memória desta imprensa. Mais do que isso, queremos problematizar como, em um

presente particular, estes sentidos do passado vêm carregados de certo “horizonte de

expectativa” pelos agentes que a constroem. Se há evidentemente cada vez mais uma

discussão pública e política no que concerne à questão do passado ditatorial no campo

midiático é porque, colocamos como hipótese, esta imprensa está preocupada em

articular políticas de memória específicas sobre o período, pautadas em um presente

estritamente particular. Há de se considerar que, no contexto da instituição da CNV e

das efemérides dos 50 anos do golpe de 1964, período particular de nossa história

recente, estas empresas vêm trabalhando com políticas específicas no que se refere à sua

postura sobre aqueles idos. Vide, por exemplo, as repercussões do caso da “ditabranda”

protagonizados pela Folha de S. Paulo e as políticas de memória construídas por O

Globo a partir de seu pedido de mea culpa em relação ao regime militar (Dias, 2014a)

Ainda que neste estudo surjam apenas indagações preliminares, buscamos

também perceber como a própria constituição da identidade destes periódicos está

relacionado àquilo que elas constroem em seus sucessivos presentes da enunciação.

Acredita-se que a busca por uma “verdade” sobre o período ditatorial pautada pelos

trabalhos da CNV muito refletem aquilo que estes jornais pretendem passar a seu

público como sendo uma verdade de seu próprio discurso enquanto instituições

alicerçadas num jornalismo objetivo, plural, democrático e independente.8 Vale lembrar

que os jornalistas e suas empresas constroem e rememoram o passado para atender

agendas específicas e não trabalham apenas com a questão da memória, mas articulam,

a partir de suas narrativas de lembrança e esquecimento, uma ideia de história que

muitas vezes busca construir sentidos àquele passado. Daí a importância de se

problematizar que parte do passado ou que tipo de expectativa de futuro é trazido aos

embates do presente, a partir dessa reconstrução mnemônica.

O que ocorre, neste caso, são lutas pela legitimação de uma verdade sobre o

passado que vêm sendo cada vez mais perpassadas pelo campo midiático. Já discutimos

anteriormente (Dias, 2014b)9 que as mídias noticiosas produzem um estatuto específico

8 As Organizações Globo, visando reforçar seu protagonismo nesta nova construção identitária em

relação ao período da ditadura militar, firmaram, inclusive, um acordo formal de colaboração com a CNV. 9 Sugerimos que todos os textos citados de nossa autoria sejam encarados em sua possível

complementaridade, uma vez que a presente pesquisa pretende a todo o momento dialogar com eles.

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de escrita ao rememorar acontecimentos e instaurá-los em seu presente da enunciação.

Verdadeiros “fazedores de história”, os agentes jornalísticos devem ser encarados como

aqueles que atuam para além do mero “rascunho” da história. É oportuno frisar

novamente, no entanto, que esse processo de rememoração não se dá de forma

meramente espontânea. Muito provavelmente, ao atuar como uma “outra” Comissão,

estes jornais estavam cientes de que selecionavam um passado específico que gostariam

de fazer emergir, “revelando” acontecimentos que, reatualizados no presente, visavam

sempre a expectativas futuras.

A verdade que se pretende construir sobre o passado está imbricada, como

afirma Gagnebin (2009), muito mais a uma ética de ação presente do que a uma

problemática de adequação pretensamente científica entre “palavras” e “fatos”. Logo, é

complicado imaginar que possamos efetuar, ao narrar ou rememorar tempos idos, um

simples “resgate” do passado. Gagnebin vai na esteira de Benjamin (2012), em suas

teses sobre o conceito de história, para pensar que nós sempre nos “apropriamos” do

passado e uma recordação nada mais é do que uma forma de agir sobre o presente,

visando a sua transformação. Já que não se pode dizer tudo sobre o que de fato ocorreu,

devemos pensar que os acontecimentos são sempre narrados em suas possíveis brechas,

uma vez que eles são articulados e re(a)presentados em presentes sucessivos a partir das

conjunturas mais diversas.

Daí decorre a importância de abordarmos a questão da verdade sob uma

problemática que é, acima de tudo, discursiva, e nos remete às relações de poder.

Foucault (2006) já nos dizia que a verdade não existe fora deste campo de relações, que

são produzidas frente às múltiplas coerções a que estão impostas. Assim, cada sociedade

produz seu regime de verdade, uma espécie de “política” que regula e fundamenta

discursos que podem ser considerados, ou não, verdadeiros. Há em nossa sociedade,

portanto, um constante embate pela legitimação da verdade ou, ao menos, acredita o

autor, “em torno da” verdade. Essa verdade não seria algo que deveríamos descobrir ou

fazer aceitar, mas um conjunto de regras que distinguem o verdadeiro do falso e que

atribuem ao verdadeiro “efeitos específicos” de poder.

A partir do momento que estas relações são sempre sancionadas, selecionadas e

organizadas por procedimentos de exclusão, nós entramos naquilo que Foucault (2010)

denomina a ordem do discurso, que é articulada a partir dos interditos. Ou seja, há aqui

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agentes autorizados que disputam esses jogos de fala e é por esta “verdade” no discurso

que as relações de poder são travadas. Uma “vontade de verdade” reflete, portanto, os

jogos e relações de poder intrínsecos às práticas que entrelaçam os discursos e suas

supostas intenções.

O que buscamos neste trabalho será perceber como estes jogos pela legitimação

de uma “verdade” foram articulados na imprensa a ponto de serem considerados - por

um agente autorizado -, como uma “outra” Comissão da Verdade, portanto,

supostamente “legítima” em seus pressupostos e “verdadeira” em seus discursos. Por

mais que nossa preocupação central em longo prazo seja problematizar as políticas de

memória construídas pelos jornais O Globo e Folha de S. Paulo – dois jornais que, a

nosso ver, mais têm se preocupado em construir um presente a partir daquele passado10 -

optamos, neste estudo, em nos atermos apenas aos trabalhos realizados pela Folha. A

escolha se deu, neste caso, pela limitação de escopo do artigo, que pretende apenas

situar algumas questões preliminares, antes de embarcar a fundo na análise empírica e

comparada, que não se faz necessária no andamento da presente pesquisa. Pelo seu

título interrogativo, este artigo busca indicar e balizar possíveis respostas, que aqui nos

surgem ainda como hipóteses contextualizantes.

A “outra” Comissão da Verdade: o presente do passado ditatorial e os “efeitos de

verdade” na ordem discursiva midiática.

Situado um arcabouço de indagações que nos fizeram pensar sobre a

constituição de uma “outra” Comissão da Verdade, vamos agora contextualizar o caso

específico da Folha de S. Paulo. Por sua atuação constante ao longo dos trabalhos da

CNV conseguimos identificar alguns eixos que nortearam seu trabalho, situando

10 A escolha pelos dois jornais não deve soar arbitrária. Primeiro porque ambos surgiram em meados da

década de 1920 e se modernizaram efetivamente como grandes grupos de mídia apenas na década de

1960, período da dita modernização conservadora imposta pelo regime militar. São duas empresas que

próximas de completar o seu centenário exercem ainda considerável protagonismo naquilo que podemos

chamar de uma “grande imprensa” no país. Influência e magnitude que foi gradativamente adquirida pelo

caráter de aproximação com os ideais impostos pelo regime no período militar e que ambas foram, ao

longo do tempo, sutilmente tentando se desvencilhar. Há de se inferir, portanto, que a história da ditadura

militar está muito atrelada à constituição da identidade destes periódicos e ainda lhes é muito cara. Uma

vez que elas assumem o protagonismo de “revelar” aquele passado de forma comprometida, não podemos

nunca negligenciar - mais uma vez enfatizamos - que presente e qual expectativa de futuro estes jornais

pretendem construir como “verdadeiro” a partir de seus jogos de enunciação discursiva.

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algumas particularidades no material analisado. Como uma “outra” Comissão, o jornal

atuou, desde as instalações da CNV, de forma crítica e preocupada com a possível

contaminação política que esta poderia exercer. Logo no primeiro dia de sua instalação,

a Folha, em editorial, pedia “Mais Luz” ao trabalho de uma Comissão que deveria

transcender o “debate viciado sobre revanchismo”. Apesar de afirmar que o dia 16 de

maio de 2012 entraria para a história com passos decisivos do Estado brasileiro em sua

transparência de ações, o jornal acrescentava que, antes mesmo de empossada, a

Comissão já se via envolta de polêmicas que atestavam a “impropriedade de seu nome”,

alertando para possíveis problemas que poderia enfrentar em seu processo de

investigação, principalmente em relação aos crimes cometidos pela esquerda armada. 11

O editorial discorria também sobre a Lei de Acesso a Informação, que entrava

em vigor naquele mesmo dia e regulamentava o acesso às informações públicas no país.

A lei, que facilitaria, em tese, o acesso a documentações por qualquer pessoa, física ou

jurídica, impulsionou uma série de investigações protagonizadas pela empresa que

trabalhou de forma bastante incisiva, cobrando até mesmo o governo e a CNV sobre

trabalhos referentes ao acesso a documentações sigilosas. Ao longo de todo o ano de

2012 o jornal trabalhou ativamente no processo de “revelação” de uma série de

documentos que até então não eram de conhecimento público, uma vez que a grande

maioria ainda estava em posse dos militares ou com possibilidade de acesso bastante

entravado. A abertura de novos arquivos da repressão, como aponta Ludmila Catela

(2011) criou uma expectativa sobre o poder de “revelação” que os documentos

poderiam conter. Isso desperta grande interesse à categoria dos jornalistas que acabam

se tornando um dos principais mediadores da publicidade destes relatos, uma vez que

“começam a construir representações sobre as “verdades” que revelam esses papéis” (p.

394).

No início do mês de julho de 2012, a Folha revelou a seu público que a ditadura

havia destruído mais de 19 mil documentos secretos. Guardados em sigilo por mais de

trinta anos, o jornal obtera acesso às ordens de destruição dos arquivos emitidas pelo

11 MAIS LUZ. Folha de S. Paulo, ano 92, nº 30.359, p. A2, 16 de maio de 2012. A tese do jornal,

defendida em vários editoriais ao longo de sua cobertura, é a de que ambos os lados, tanto os militares e o

regime, como a esquerda armada, deveriam ser investigados, uma vez que o país vivia uma espécie de

“guerra suja” naquele conturbado momento.

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SNI e que agora teriam sido liberadas para consulta no Arquivo Nacional.12 A partir de

então, o jornal começou a produzir uma série de notícias sobre estes documentos,

revelando novas facetas sobre a realidade daquele passado ditatorial. Assim, ficávamos

sabendo um pouco mais sobre como o regime monitorava artistas como Chico Buarque

e Caetano Velo (os “subversivos vip”, segundo o jornal)13, tomávamos conhecido de

uma “rara foto” do corpo do guerrilheiro Carlos Lamarca, que evidenciava lesões à bala

em seu corpo14, ou víamos pela primeira vez a foto – desconhecida até então de seus

próprios familiares - do engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, 11 dias antes de sua

morte, mostrando que este estava em boas condições de saúde antes de ser preso e

torturado pelo DOPS.15

Todo esse material produzido pelo regime viera a público graças ao trabalho

investigado do jornal que, respaldado pela Lei de Acesso à Informação, enfatizava a

todo o momento que a documentação, até então secreta, fora “obtida” e “revelada” por

sua iniciativa. Esse posicionamento tinha intuito de afirmar certo protagonismo obtido

pela empresa, buscando atuar efetivamente como uma “outra” Comissão, cobrando,

inclusive, dos órgãos responsáveis, incluindo a CNV, que estas questões fossem

investigadas a fundo. O jornal saía então na dianteira, pautando alguns trabalhos que

seriam abordados pela Comissão posteriormente.

Destes trabalhos, o mais significativo e que repercutiu por um tempo

considerável nas pautas sobre o presente do passado ditatorial foi a matéria publicada no

caderno Ilustríssima em 5 de fevereiro de 2012 pelo jornalista Lucas Ferraz, quando o

jornal localizou e entrevistou o fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, autor da icônica foto de

Vladimir Herzog morto das dependências do Doi-Codi de São Paulo.16 Agora quem tem

voz é uma testemunha que atuaria como um agente autorizado, na tentativa de ajudar a

desmontar - ao revelar novas evidências – a farsa sustentada pelo regime. Conforme

12 Disponível em: ww1.folha.uol.com.br/fsp/poder/52189-ditadura-destruiu-mais-de-19-mil-documentos-

secretos.shtml Acesso em: 8 de abril de 2015.

13 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/53081-subversivos-vip.shtml Acesso em: 8 de

abril de 2015.

14 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/poder/2012/07/1121659-arquivo-libera-foto-que-revela-

lesoes-a-bala-em-carlos-lamarca.shtml Acesso em: 8 de abril de 2015.

15 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/poder/2012/07/1121793-foto-do-sni-mostra-preso-bem-de-

saude-11-dias-antes-da-morte.shtml Acesso em: 8 de abril de 2015.

16 O INSTANTE DECISIVO. Folha de S. Paulo. Ilustríssima, ano 91, nº 30.258, p.A6-7, 5 de fevereiro

de 2012.

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observamos em análise mais detalhada sobre o acontecimento (Dias, 2015), quando o

jornal evidencia ao seu público quem de fato fora o responsável por criar aquela

imagem – um símbolo da repressão militar - ele estava querendo não apenas

re(a)presentar o acontecimento mas fixar um tempo presente a ser futuro pela própria

apropriação do passado. Isso é possível perceber pela forma como a empresa se utilizou

da repercussão que o acontecimento causou à cena pública, noticiando como ele foi

recebido por seus leitores e outros agentes, como a própria Comissão da Verdade, que o

teria entrevistado posteriormente, graças à revelação do jornal.17

Apesar de estas repercussões abarcarem um amplo leque temporal (Silvaldo

prestou depoimento à Comissão apenas em maio de 2013), vale lembrar que a matéria

inicial fora publicada em fevereiro de 2012, ou seja, em um momento anterior aos

trabalhos da CNV que, já promulgada em lei, só teria início efetivo em maio daquele

ano. Todo esse trabalho de investigação do jornal pode ser caracterizado com um dos

primeiros esforços para assumir uma posição frente às atividades da Comissão, que

ainda caminhavam vagarosamente. Ainda que realizados de forma pontual, eles

trabalhavam com a possibilidade de revelar novas evidências e, portanto, fatias de

“verdade” sobre aquele passado.

Aqui é importante frisarmos como a questão da verdade no discurso da

informação está diretamente intrincada à “validade” que esta toma ao ser posta à cena

pública. Nos jogos enunciativos da informação, as mídias trabalham, acredita

Charaudeau (2006), a partir de estratégias que são construídas visando “efeitos”

específicos. Desta forma, não existe “efeito” fora de um dispositivo enunciativo, uma

vez que o que está em jogo aqui não seria a busca de uma verdade em si, mas a sua

“credibilidade” e consequente validação. Assim, pode-se pensar que, para estas mídias,

o “valor” de verdade só ganha sentido e validade, se tornando uma “verdade” legítima a

partir dos seus “efeitos” criados pelos jogos de enunciação discursiva. É por isso que, a

o todo momento, o jornal busca revelar documentos, evocar testemunhas que, como

agentes autorizados, garantiriam a suposta veracidade da informação. Assim, o próprio

jornal, em seu jogo enunciativo, se assume como autoridade, uma vez que ele tem o

17 Essas novas revelações sobre o caso Herzog repercutiram de forma significativa nos trabalhos iniciais

da CNV, uma vez que o Brasil, naquele momento, acabara de ser pressionado pela Corte Interamericana

de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) a assumir de forma efetiva a

responsabilidade pelas circunstâncias de sua morte.

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“poder de dizer” e revelar estas falas que se pretendem verdadeiras.

Além disso, quando o jornal publica textos com outras vozes comentando suas

próprias matérias, reproduz carta de leitores elogiando suas iniciativas e mostra como a

CNV vem agindo a partir das pautas que o jornal revelava, ele nada mais faz do que

criar uma tentativa de validação de seus discursos, efeitos que buscam caracterizar um

valor de verdade àqueles enunciados. Há, portanto, finalidades na construção destes

discursos que determinam as condições de seu funcionamento e é pensando na

articulação dialógica destas narrativas que as intencionalidades e multiplicidades de

vozes se engendram nos processos de sua construção. Segundo Marialva Barbosa (2014,

p.1) os meios já as criam pensando, muitas vezes, em sua reapropriação, “construídas

para produzir uma representação do passado no futuro. São produções que desejam ser

arquivos da e para a história.”

Em um primeiro momento, podemos afirmar que a cobertura do jornal está

focada mais em revelar evidências do que noticiar os trabalhos da Comissão, criando

assim marcos memoráveis de sua própria atuação. Até porque, naquele primeiro ano, a

própria CNV se mantinha realmente “tímida” nos trabalhos de investigação e era como

se a Folha aproveitasse aí uma brecha para competir nos jogos de enunciação de uma

“verdade” que seria posta ao público. Após essa etapa inicial que, obviamente, não se

esgota ao longo da cobertura, identificamos um momento em que o jornal se

compromete em uma discussão mais incisiva em relação à questão da revisão da Lei de

Anistia. Isso se dá em meados de 2013 e antecede os preparativos das efemérides dos 50

anos do golpe. Este é um momento em que a CNV – já completado um ano de seu

trabalho - passava por uma série de crises internas, com mudanças em sua coordenação

e limitações no escopo investigativo, que o jornal acompanhou de perto, com críticas

pontuais. A questão da revisão da Lei de Anistia, dos assuntos mais polêmicos que

perpassaram os trabalhos da Comissão, gerou discussões calorosas por toda a imprensa.

Assunto cercado de controvérsias e que ainda não foi efetivamente esgotado. A Folha,

sempre contrária à tentativa de revisão da Lei, deixava clara sua posição em editoriais,

mas articulava diversas posições para evidenciar os jogos de validação destes discursos,

fomentando uma série de debates.

No dia 25 de maio de 2013 o jornal publicou editorial “Em defesa da Anistia”,

afirmando categoricamente ser “inoportuna a proposta” de alguns membros da

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Comissão em rever os termos da lei. Propostas como esta tratavam-se de “recorrente e

rematado equívoco” que trariam repercussões “danosas”, fomentando a discórdia na

própria CNV, uma vez que a instituição continha membros contrários a ela. De acordo

com o texto, atitudes como esta reavivavam a desconfiança de que os trabalhos da

Comissão poderiam estar pautados por atitudes de “revanchismo”, sendo que seu foco

deveria se concentrar no “valioso” trabalho que têm feito de restabelecimento de fatos

históricos “em vez de abraçar propostas inoportunas que extrapolam o seu próprio

escopo.”18

Além de fomentar o debate o jornal assumia também o papel de fiscalizar

supostos desvirtuamentos daquele trabalho. Intentava efetivar-se como um dos agentes

autorizados que articulavam “verdades” através de seus jogos de enunciação discursiva.

Para isso precisava, além de assumir um lado, deixar que outras posições ganhassem

espaço, na tentativa de se “provocar” o acontecimento sob um emaranhado de vozes.19

Essa postura se dá de forma clara em um terceiro momento dos trabalhos desta “outra”

Comissão: durante as efemérides dos 50 anos do golpe, que repercutiram ao longo de

praticamente todo o ano de 2014 na imprensa do país. Além do material especial

produzido para “comemorar” o acontecimento, a Folha promoveu uma série de debates,

ouviu historiadores, sociólogos, ex militantes e militares, abriu espaço para colunistas e

rememorou, com uma grande quantidade de matérias, os acontecimentos referentes não

apenas aos trabalhos da Comissão, mas àqueles referentes ao passado ditatorial no

Brasil. No caso específico da efeméride o jornal publicou, no dia 23 de março de 2014,

um caderno especial onde pretendia contar “tudo sobre a ditadura militar”. Importante

observar que, ao propor tentar reproduzir “tudo” sobre aquele passado, estava mais uma

vez intentando ser, ao menos, um mediador destas fatias de verdade, atuando como uma

instituição capaz de revelar vozes que se pretendiam legítimas.

Produzindo um “mosaico de versões” sobre aqueles idos, que ricocheteavam na

arena de memórias instaurada pelo jornal, a efeméride acabou por, nos moldes daquilo

18 EM DEFESA DA ANISTIA. Folha de S. Paulo, ano 93, nº 30.733, p. A2, 25 de maio de 2013.

19 Não cabe aqui nos alongarmos neste debate. A título de exemplificação, vale consultar a coluna de

Vladimir Safatle (“A farsa da Anistia” - publicada em 28/05/2013) e o texto de Alfredo Sirkis, (“Tiro nos

pé” - 06/04/2014), publicado dias após a Folha revelar os resultados de uma pesquisa inédita, onde

constatava ser a maior parte da população favorável à anulação da lei. Para a pesquisa, acessar:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1433374-maior-parte-da-populacao-quer-anular-lei-da-

anistia-aponta-datafolha.shtml Acesso em: 10 de abril de 2015.

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que problematiza Charaudeau (2006), “provocar” um acontecimento que foi

amplamente enquadrado sob efeitos particulares. De acordo com o autor, o espaço

público não é um lugar onde apenas se (re)produzem acontecimentos, mas também

lugar de construção de opinião, que se pauta pela busca de uma espécie de “verdade”

submetida à deliberação. As mídias noticiosas, desta forma, não se contentam apenas

em relatar o acontecido, buscando a o todo momento – ainda mais nas efemérides –

realizar um debate que se dá pelo confronto de vozes diversas. Esse confronto, portanto,

não surge de forma espontânea, mas é inserido na ordem discursiva pelo dispositivo

midiático.

Não é a pretensão deste artigo analisar a infinidade de relatos que foram

produzidos na ocasião. 20 Vale apenas acrescentar como novamente, na tentativa de

legitimação dos seus “efeitos” de verdade, o jornal criou no dia seguinte uma espécie de

“meta notícia” que nos deve soar peculiar. “Estudiosos elogiam reportagem sobre os 50

anos do golpe”21 afirmava a nota, de texto curto e breve, que tinha o intuito claro de

legitimar o discurso produzido pela Folha, uma vez que vários dos especialistas

“destacaram o equilíbrio dos textos e os recursos de áudio e vídeo.” Há aqui uma

aparente preocupação da empresa em atestar seu estatuto de produtor de um discurso

histórico, legítimo, aceito e elogiado por seus “pares”, logo, que possuía credibilidade e

construía, de certa forma, fatias de “verdade” sobre aquele passado.

Para além da efeméride, o ano de 2014 foi também o mais ativo no que concerne

os trabalhos da Comissão, todos pautados de forma contundente pela Folha, como a

realização das inúmeras audiências púbicas e diligências. Apesar da constante cobertura

articulada pela imprensa, é preciso levar em consideração também que houve certo

silenciamento de algumas pautas em virtude das eleições presidenciais de outubro que

tomaram a vitrine dos noticiários. As análises sobre a CNV voltaram com mais afinco

com a proximidade da entrega do relatório final, que ocorreu em 10 de dezembro de

2014. Neste momento surgiu um emaranhado de matérias de cunho factual, com críticas

pontuais à medida que as repercussões do relatório foram aparecendo. O jornal

20 Para consultar o site especial: http://arte.folha.uol.com.br/especiais/2014/03/23/o-golpe-e-a-ditadura-

militar/ Acesso em: 10 de abril de 2015. Uma análise preliminar sobre os 50 anos do golpe na Folha pode

ser conferida em Dias (2014b).

21 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1429806-estudiosos-elogiam-

reportagem-sobre-os-50-anos-do-golpe.shtml Acesso em: 10 de abril de 2015.

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aproveitou o momento para, mais uma vez, firmar seu protagonismo, ao publicar um

texto onde afirmava que teria acompanhado o processo investigativo da Comissão

“desde sua origem” 22. E, numa tentativa de encerrar o acontecimento, publicara o

editorial “Página virada”, dois dias após a entrega do relatório. Para o jornal, o

documento entregue pela CNV não trazia novidade sobre um período já esmiuçado de

nossa história. Após uma fase de “letargia errática”, a Comissão, segundo o texto, focou

seu debate baseado na investigação de ações promovidas apenas pelo Estado, o que

“silenciava” um lado da história, ao não abarcar os crimes cometidos por agentes de

esquerda. Por fim, afirmava que a anistia “um dos pilares sobre os quais se apoia a

democracia brasileira”, deveria ser preservada e só restava às Forças Armadas divulgar

documentos retidos e reconhecer os abusos praticados.23

Como todo acontecimento “provocado” que, visando seus critérios de

noticiabilidade, precisa ser devidamente encerrado, a Folha colocava uma espécie de

ponto final à história, como se estivesse, enfim, cumprido seu papel. No entanto, bem

sabemos que a pauta sobre o passado ditatorial no Brasil não se esgotou. Por mais que

silenciado - pouco se tocou sobre o tema CNV no corrente ano de 2015 – há questões

que ainda reverberam, como a questão da anistia. Será nosso papel voltar a estes

acontecimentos com um olhar mais comprometido, em análises futuras. Aqui buscamos

apenas situar como o jornal articulou a construção de algumas “verdades” sobre aqueles

idos. Verdades que, como bem alerta Charaudeau (2006, p. 270), as mídias ajudam a

construir de uma forma difusa, fragmentada, móvel e provisória “fixando-se na parede

de uma certeza como se fosse um molusco no rochedo atingido pelas ondas.”

Se encararmos como coerente esta metáfora só podemos concluir que vivemos

hoje num mar revolto. É de fundamental importância que as mídias medeiem esses

discursos de forma comprometida, já que elas possuem um importante papel na

construção, utilização, seleção e enquadramento de memórias no cotidiano. Mas isso

também nos faz indagar sobre quais as intenções destes efeitos discursivos e a que eles

realmente remetem nos jogos de enunciação a ponto de serem considerados uma “outra”

Comissão da Verdade. Até que ponto estas “verdades” postas pela imprensa foram

22 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/12/1560234-folha-acompanhou-a-comissao-

da-verdade-desde-sua-origem.shtml Acesso em 12 de abril de 2015.

23 PÁGINA VIRADA, Folha de S. Paulo, ano 94, nº 31.299, p. A2, 12 de dezembro de 2014.

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importantes para pautar um presente do passado e se incrustar no debate sobre o regime

ditatorial no Brasil? É preciso refletir sobre o papel destes discursos em um momento

que, muitas vezes, informação, opinião, memória e a “verdade” sobre este passado tem

se confundido cada vez mais.

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Texto da conferência apresentada no 2º Simpósio Internacional de História Pública. Niterói,

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CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

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políticas de memória da grande imprensa brasileira frente ao contexto dos 50 anos do golpe.

Revista Brasileira de História da Mídia. vol.3, n.2, jul/dez, 2014a.

___.Para além do rascunho: jornalistas “fazedores de história” e as rememorações do golpe de

1964, cinquenta anos depois. Revista Lumina. Vol. 8, n. 2, dez, 2014b.

___. Herzog re(a)presentado: notas sobre memória, narrativa e “acontecência”. 24º Encontro

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