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8/9/2019 Uma proposta para a noo de gnero jornalstico
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UMA PROPOSTA PARA A NOO DE
GNERO JORNALSTICO1
Lia da Fonseca Seixas2
Resumo: Este artigo representa nossa tese de doutorado, para a qual o gnero
jornalstico uma enunciao relativamente estvel, ao invs de enunciado
relativamente estvel, como dizia Bakhtin. O gnero do jornalismo de atualidade se
constitui nas combinaes regulares de quatro elementos principais: 1) a lgica
enunciativa; 2) a fora argumentativa; 3) a identidade discursiva e 4) o mdium.Segundo as competncias empregadas pelos sujeitos comunicantes, sugerimos
repensar a diviso entre gneros jornalsticos e gneros jornlicos. Fundamentada
na formao discursiva de Foucault, na anlise do discurso (Charaudeau e
Maingueneau) e na pragmtica da comunicao (Austin, Searle), a tese analisou
composies discursivas de seis veculos impressos e digitais de uma empresa
brasileira (Grupo Folha da Manh S.A.), uma espanhola (RCS MediaGroup, maior
acionista do El Mundo) e uma francesa (Le Monde S.A.).
Palavras-Chave: gnero jornalstico 1. anlise do discurso 2. pragmtica da
comunicao 3.
1. Introduo
Aprender a fazer jornalismo aprender a produzir gneros jornalsticos3. O
conhecimento mais profundo dos elementos que constituem os tipos mais frequentes de
composies discursivas da atividade jornalstica implica em maior conhecimento sobre a
prpria prtica, sobre as competncias necessrias para a realizao da atividade e
principalmente sobre as aes lingusticas que se pode realizar em cada composio. Os
gneros esto, assim, na gnese das finalidades institucionais desta atividade social, na
essncia do jornalismo moderno com a separao em news and comments (incio do sculo
XVIII). Mais profundamente, trata-se ainda da relao entre discurso e realidade, da dialtica
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos do Jornalismo, do XVIII Encontro da Comps, naPontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, de 02 a 05 de junho de 2009.
2 Universidade Federal da Bahia, [email protected] O termo gnero, incorporado pela comunidade acadmica, adquiriu um sentido clssico ao longo do tempo.Ns utilizamos o mesmo termo, mas reivindicamos para gnero um conceito mais aprofundado. O gnerodo jornalismo deve ser pensado como composio discursiva, ou seja, atravs da sua dimenso discursiva.
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do evento e da significao (filosofia da linguagem) e do conceito de interpretao, um n
para a teoria de gneros jornalsticos.
Com as novas mdias, a noo de gnero entra, mais uma vez, em cheque. Por isso
mesmo passa a ser vista com mais ateno. Surgem novos formatos, se hibridizam, seembaralham os gneros. As prticas discursivas passam a experimentar e produzir novos
formatos, que podem se instituir ou no em novos gneros. Torna-se clara a diferena entre
formato e gnero. Com a multimidialidade da mdia digital, se explicita a separao que
marcou os estudos do gnero jornalstico: por mdia. Analisam-se os gneros televisuais,
radiofnicos, digitais e do jornalismo impresso. A tradio dos estudos sobre gneros
jornalsticos trabalhou separadamente por mdia ou por domnio (rea do saber). Enquanto a
mdia considerada um critrio de genericidade, o domnio colocado em segundo plano. Se
acreditarmos que a diferena entre as mdias igualmente uma diferena de gnero, no seriapossvel falar em gneros do jornalismo. S podem existir gneros jornalsticos se o domnio
for determinante para a genericidade de tipos discursivos.
Na tese, propomos sair dos critrios clssicos de finalidade/funo, estilo, contedo
para analisar a noo de gnero segundo: um conjunto de elementos intra e extradiscursivo,
destacando-se o estatuto dos participantes; a relao entre discurso e realidade; e o mdium.
Ao final, sugerimos quatro principais critrios de definio de gnero para a formao
discursiva jornalstica (FDJ, por RINGOOT & UTARD, 2005): finalidades institucionais,
lgica enunciativa, fora argumentativa, identidade discursiva (competncias empregadas) e
potencialidades do mdium. A partir da pragmtica da comunicao e da anlise do discurso,
analisamos as condies constitutivas de um ato comunicativo relativamente estvel4 da
prtica discursiva jornalstica. Examinamos se existe uma hierarquia destas condies,
ordenando-as segundo sua fora de influncia na configurao do gnero.
2. Da finalidade para competncia: gneros jornalsticos e gneros jornlicos
Nesses pouco mais de 50 anos de estudo, os gneros jornalsticos estiveram divididos
por um critrio-chave: funo/finalidade. Sejam pesquisadores de impressos, televisivos ou
4 Acreditamos que os gneros discursivos constituem-se em atos comunicativos relativamente estveis, noenunciados relativamente estveis como dizia Bakhtin. Os gneros discursivos encarnam o processo decomunicao.
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digitais, todos defendem, com pequenas diferenas, o critrio de funo/finalidade para a
diferenciao de gneros. As finalidades giram em torno de relatar ou informar, comentar ou
opinar, orientar, divertir e variam muito quanto concepo do lugar da interpretao. Dentre
estas, informar considerada uma finalidade indiscutvel. O que no consenso o nvelinterpretativo do fazer jornalstico, ou seja, como se d a relao entre discurso e realidade
operada pelo jornalismo, relao esta que aparece em termos de finalidade da composio
considerada sinnimo de finalidade institucional.
Nesse sentido, pressuposto compreender e marcar a diferena entre finalidade
institucional e finalidade da composio discursiva. Para os estudos de gnero, finalidade da
composio jornalstica igual a finalidade institucional. Ou melhor, essa nunca foi uma
questo. A importncia disto est na diferenciao entre instituio e organizao, proposta
por Josenildo Guerra (GUERRA, 2003, p. 79-80). Existe o que reconhecido socialmentecomo finalidade da instituio jornalstica e o que efetivamente realizado na organizao
jornalstica segundo competncias exigidas. A primeira da dimenso normativa, enquanto a
segunda de ordem emprica. A organizao definida como clula institucional, onde se
manifestam o que a instituio determina formalmente. na organizao que ocorrem os
problemas institucionais e extra-institucionais, alm dos organizacionais e extra-
organizacionais. no nvel das organizaes que podemos compreender as responsabilidades
e competncias exigidas. Como explica Foucault, fazem parte do status dos indivduos o
cargo, funes, aes e troca de informao que pode realizar, competncias, atribuies e
subordinao hierrquica.
Se admitirmos que dentre as finalidades da instituio jornalstica esto informar,
opinar, educar, divertir, prestar servios e mediar, devemos admitir que toda composio
discursiva de um produto jornalstico deve cumprir, pelo menos, uma finalidade. No entanto,
no seria razovel dizer que algumas composies cumprem mais de uma finalidade
institucional, enquanto outras no cumprem nenhuma? Nem todas as composies
discursivas de um produto jornalstico so produzidas pela organizao jornalstica. Basta
apontar as peas publicitrias, os textos de horscopo, os cartoons e at mesmo os artigos. Os
artigos so, em geral, composies de atores sociais pertencentes a outras instituies. Em
que medida a instituio jornalstica est implicada num artigo? E a organizao jornalstica?
Acreditamos que estas respostas s podem vir por uma compreenso clara das
responsabilidades e competncias empregadas. As responsabilidades esto ligadas aos
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compromissos efetuados pelos atos de linguagem e as competncias constituem o que
Ericson, Baranek e Chan (1987, apud TRAQUINA, 2005) sistematizam como os saberes
principais da atividade jornalstica:
O saber do reconhecimento a capacidade de reconhecer quais so osacontecimentos que possuem valor como notcia; aqui o jornalista mobiliza oscritrios de noticiabilidade, um conjunto de valores-notcia, tais como anotoriedade, o conflito, a proximidade geogrfica (...).
(...) Depois de reconhecer as ocorrncias ou as questes como valor-notcia, o jornalista precisa de mobilizar o saber de procedimento, ou seja, osconhecimentos precisos que orientam os passos a seguir na recolha de dados paraelaborar a notcia. A competncia noticiosa implica tambm o conhecimentoespecfico de identificao e verificao dos fatos.
O saber da narrao tambm implica a capacidade de mobilizar a linguagem jornalstica (...) com suas regras estilsticas (uma sintaxe direta e concisa, as palavras concretas, a voz ativa, a descrio detalhada, a preciso do pormenor).(TRAQUINA, 2005, p. 42-43)
O saber do reconhecimento o da leitura da realidade, que decide o que noticivel,
publicvel. Trata-se de apurao, de checagem de informao, do que os norte-americanos
consideram como verificao (MEYER, 1991) ou definem como princpios intelectuais
(KOVACH & ROSENSTIEL, 2004). O saber de narrao, mais do que regras estilsticas,
um saber das lgicas enunciativas, conceitos e estratgias nas palavras de Foucault, por isso
preferimos chamar de competncia discursiva. Alm destas, acreditamos na existncia de
mais uma competncia, a de domnio, saber especializado sobre outra formao discursiva. Acompetncia de domnio prpria dos colunistas, dotados de um saber aprofundado sobre
objetos, parmetros, conceitos de outro campo social em frequente dilogo com o campo
jornalstico.
A competncia de procedimento, associada ao que se entende por apurao, no
empregada na produo de muitas composies discursivas. Algum valor-notcia, entretanto,
pauta todas as composies publicadas num veculo de jornalismo de atualidade, assim como
a organizao jornalstica participa em certo nvel da publicao ou disponibilizao de todas
as composies discursivas. Consideramos necessrio medir esse nvel de alguma forma.
certo que no se resolve apenas com as competncias empregadas, pois constituem apenas
um elemento do estatuto dos participantes, que , por sua vez, um dos critrios para a
formao de um gnero do discurso jornalstico. Portanto, preciso compreender com se d o
jogo da identidade discursiva na atividade jornalstica.
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3. Identidades discursivas
O sujeito comunicante uma das instncias do plo de enunciao criadas por Ducrot
(1984), trabalhadas por Charaudeau (2004), Maingueneau e por Charron e De Bonville
(2004): sujeito falante ou comunicante, locutor e enunciador. Sujeito comunicante se aplica
pessoa real que escreveu o texto ou ao ator social responsvel de sua produo. O locutor
um ser do discurso relativamente independente de cada texto particular porque pr-
existente ao texto. com o locutor que o leitor reconhece no ato de comunicao. O
enunciador o autor tal qual ele se manifesta no texto a partir de indcios que ele deixa l.
Essas dimenses constituem o que Charron e De Bonville chamam de identidade discursiva
(CHARRON & DE BONVILLE, 2004, p. 321)
5
. A identidade discursiva tambmconsiderada como efeito da atividade discursiva dos locutores e das relaes sociais entre os
sujeitos comunicantes.
Tanto para o impresso como para o site noticioso do jornalismo de atualidade, a
instituio jornalstica locutor de todas as composies publicadas. Porque, como explica
Mouillaud (1997), o nome do jornal um conjunto de conotaes que so condensadas sob
seu nome no curso de sua histria. O nome do jornal um locutor presente com maior ou
menor grau, a depender do nvel de interferncia institucional na composio. Nas
composies chamadas de gneros informativos, a instituio jornalstica aparece, em
geral, como locutor e enunciador, seja com marca da assinatura (da redao, Redao e
agncias, Folha Online, Jornalista e agncias, Le Monde, El Mundo) ou com
expresses (A Folha apurou, A reportagem do El Mundo no encontrou, O Le Monde
entrevistou). Quando o jornalista aparece como nica assinatura, a instituio jornalstica
pode ter menor fora na dimenso de locutor, mas isto depende ainda do estatuto do outro
participante (leitor real), que pode ser uma das fontes entrevistadas, pode manter uma relao
profissional com o jornalista especializado, por exemplo.
No manual de jornalismo de Ives Agns (2002), alguns gneros fazem parte de um
grupo chamado opinies exteriores para todos aqueles em que o importante a opinio de
5 Le concept d'identit discursive dsigne la reprsentation du locuteur que le sujet communicant et le lecteurrel construisent partir des indices linguistiques que les nonciateurs laissent dans leurs textes.(...) (CHARRON & DE BONVILLE, 2004, p. 321).
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ator social de outro domnio. Se as competncias de reconhecimento, procedimento, de
domnio e parte da discursiva so de ator social de outro domnio, porque no se separar essas
composies em um tipo? No seria mais revelador e produtivo para o jornalismo se
considerar as competncias empregadas como critrio de diviso? As competncias, certo,fazem parte do status dos indivduos, um dos elementos a se analisar no estatuto dos
participantes, ao lado da identidade discursiva. O estatuto dos participantes do plo de
enunciao to importante que exerce um grau de influncia na realizao dos atos de
linguagem. Ou seja, as atribuies, competncias, instrumentos de verificao, a identidade
discursiva, todos esses elementos interferem na lgica enunciativa e so influenciados por
esta.
4. Lgica enunciativa
As lgicas enunciativas do discurso das instituies jornalsticas so constitudas por
um tipo frequente de relao entre objetos de realidade (OR), tpicos jornalsticos e
compromissos realizados pelo ato de linguagem. Os OR so a matria-prima do jornalismo.
A grande maioria dos estudos do jornalismo trabalha com a concepo de que a prtica
jornalstica trata apenas de fatos, o que no verdade. Existe uma primeira diferena, em
geral, no desconhecida entre fato e acontecimento. O fato algo que passou, ocorrido
(GOMES, 1994, p. 66-67), portanto, o resultado de uma ao, passada. J o acontecimento
fenmeno em processo, que se apresenta na atualidade. Os acontecimentos podem estar em
ocorrncia ou terem um dado grau de probabilidade de ocorrer (provveis, previsveis e
possveis). Existe, inclusive, uma srie de tipos de objetos de difcil delimitao e nomeao
pela linguagem. A realidade noticivel inclui o que verificvel pela simples observao, os
chamados objetos de acordo (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA) de fcil
comprovao (passveis de constatao intersubjetiva pela simples presena), objetos de
acordo que no so passveis de verificao (como verdades de saberes cientficos), atintenes de declaraes, objetos abstratos impossveis de se verificar e mesmo de se
alcanar acordo. Em mdia, segundo a nossa mostra, dos OR enunciados pelas notcias, 50%
se realiza como fato passvel de verificao ou constatao. Nas reportagens, a maioria
outro grupo de OR: articulao entre objetos de acordo. A articulao, de alguma ordem,
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seja por sucesso apenas ou uma relao explcita de causa e consequncia, parece originar
um terceiro OR construdo como enunciado.
Os tpicos funcionam como senso comum, parmetros de acordo, pois constituem o
saber social sobre objetos, idias, opinies (AMOSSY, 2006). Os tpicos jornalsticos so oslugares comuns sobre as relaes entre os OR compartilhados pelos pblicos, que autorizam
determinadas concluses e configuram, historicamente, lgicas enunciativas. Aps uma
exaustiva anlise de composies, sugerimos os principais tpicos jornalsticos: 1) tpico do
factual crena intersubjetiva (coletiva) de que a atividade jornalstica trata apenas de fatos e
dados passveis de constatao ou de verificao; 2) tpico da presena crena
intersubjetiva de que a testemunha ocular garante a funo de checagem e verificao de
informaes do jornalista-reprter; 3) tpico de autoridade a crena intersubjetiva de que
deve falar apenas aquele que responsvel por um evento, tem autoridade (cargo ouconhecimento) para explicar, justificar, analisar; 4) tpico da quantidade a crena
intersubjetiva de que quanto mais declaraes tm uma composio, quanto mais pessoas
foram ouvidas, mais exato o conhecimento da realidade.
Os compromissos de um ato de linguagem constituem o propsito reconhecido do
fazer lingustico, ao efetivamente realizada ao se proferir algo. Uma das linhas de origem
da AD, a Pragmtica da Comunicao defende que, ao se produzir um proferimento, est-se
fazendo a emisso concreta e particular de uma sentena, de acordo com as condies de
xito (AUSTIN, 1990). Desenvolvidas por John Searle como doze dimenses significativas
(SEARLE, 1979), as condies seriam constitutivas ou fundamentais para a realizao do
proferimento6. O compromisso se d na e pela realizao do ato lingustico. O assertivo, por
exemplo, teria como propsito comprometer o enunciador com a adequao da proposio
realidade. Ainda que o enunciador no tenha a inteno ou propsito de asserir, se realizar
uma assero estar comprometido com a verdade da proposio (nas palavras da
pragmtica).
6 Em nossa dissertao de mestrado, chegamos concluso de que apenas cinco das doze dimenses sonecessrias na realizao do proferimento: 1) propsito ilocucionrio; 2) fora ilocucionria; 3) instituioextralingustica; 4) contedo proposicional; e 5) estatuto de falante e ouvinte. SEIXAS, Lia. Os atos verbais jornalsticos. Um estudo dos fazeres jornalsticos por editorias de poltica. Dissertao de mestrado.Salvador, junho de 2000. Disponvel em:http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4381/1/NP2SEIXAS.pdf. Acesso emsetembro de 2008.
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A lgica enunciativa responde, assim, ao problema da relao entre realidade e
discurso. Acreditamos que h uma constituio mtua entre OR e compromisso realizado,
pela qual o OR reconhecido aquele que se configura no ato da troca comunicativa. Na
dimenso do reconhecimento, os parmetros de interpretao seguem os tpicos jornalsticos.Para explicar como ocorre, utilizaremos alguns exemplos de anlise da nossa tese. Antes,
ento, uma breve apresentao do corpus.
Foram selecionados quatro grupos de diferentes de OR: 1) a eleio presidencial da
Frana de 2007; 2) o massacre no campus de Virginia Tech, nos Estados Unidos; 3)
incidentes nos metrs de Paris, So Paulo e Madrid; e 4) exposies de artes plstica. Os
grupos incluem ocorrncias de diferentes tipos, se inscrevem em diferentes editorias e deram
origem produo de diferentes gneros. Ao todo, foram analisadas 324 composies
discursivas. s ocorrncias se somam outros quatro critrios: 1) veculos jornalsticos; 2)mdia; 3) editorias e 4) perodo. So seis veculos jornalsticos do jornalismo de atualidade,
organizaes tradicionais e de grande audincia: Le Monde S.A, Folha da Manh S.A e El
Mundo. Privilegiando a noo de gnero, selecionamos a mdia tradicional (impressos) e a
nova mdia (webjornais). Um dos eixos para a seleo da amostra de composies so quatro
editorias: internacional/mundo, cotidiano/sociedade, poltica/nacional e cultura/ilustrada. O
perodo de anlise corresponde a trs meses do ano de 2007: maro, abril e maio. Um perodo
aleatrio para o estudo de gneros pressupe que as composies se institucionalizam na
prtica social, portanto, se reafirmam no dia-a-dia.
No dia 28 de maro de 2007 se deu uma ocorrncia numa das mais movimentadas
estaes de metr ao norte de Paris. Esta ocorrncia foi definida como guerrilha urbana,
afrontamentos violentos, um palco de violncia. Uma pessoa teria sido abordada por
pular as catracas do metr na Gare du Norde resistido abordagem dos controladores. Esta
ocorrncia teria gerado o que se viu em vdeos e imagens fotogrficas, vitrines, totens
luminosos, lixeiras sendo destrudas, e lojas sendo saqueadas. Comparando as principais
matrias de Le Monde e Lemonde.fr, El Mundo e Elmundo.es, Folha de S.Paulo e Folha
Online, destacamos exemplos representativos da dinmica de constituio de um OR
resultado de apurao jornalstica realizado como objeto passvel de constatao7:
29/03/07 29/03/07 29/03/07
7 Essa a dinmica da tese: anlise com exemplos representativos. Mas, por falta de espao, no pudemossegui-la aqui neste artigo.
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Le MondeQuestions sur les violences de laGare du NordJeunes et policiers se sont affrontsdurant plusieurs heuresGabriel Bourovitch et Piotr Smolar
El MundoEl rebrote de la guerrilla urbanacalienta la campaa francesa8Royal ataca a Sarkozy tras los gravesincidentes ocurridos en una estacinferroviaria de Pars por la detencin de
un inmigrante desprovisto de billeteRUBN AMON. Corresponsal
Folha de S.PauloPolcia de Paris usa gs contrajovens no metr9DA REDAO
A la suite dun banal contrle detitre de transport, mardi 27 mars, la gare du Nord, Paris, de violentsincidents ont clat vers 16 h 30.Un voyageur de 32 ans, ensituation irrgulire, a tinterpell par des agents de laRATP aprs avoir tent defrauder. Cette interpellation adgnr en affrontements entrepoliciers et bandes de jeunes qui sesont prolongs jusque tard dans la
nuit. Ils ont provoqu des dgtsdans la gare souterraine. Treizepersonnes dont cinq mineurs ont tapprhendes par les forces delordre et places en garde vue.(...)
(...)La revuelta urbana se prolonghasta la madrugada de ayer a raz deun accidente anecdtico. Losvigilantes del metro parisinoretuvieron a un inmigrantecongols desprovisto de billete,pero no sospechaban que lamaniobra fuera a provocar laindignacin de un grupo dejvenes de origen africano, niimaginaban que la revueltapudiera contagiarse a gran escala.(...)
A polcia de Paris teve que disparargs lacrimogneo ontem na Gare duNord, uma das principais estaes demetr da capital, para deter bandosde jovens que saquearam lojas equebraram vitrines.Segundo a polcia, os tumultoscomearam quando um fiscalpediu o bilhete do trem a um dosjovens. Grupos de vndalos logocomearam a jogar objetos na polciae comeou o confronto. Uma mulher
teve que ser hospitalizada aps inalargs.(...)
Estes so os primeiros pargrafos das matrias principais nos impressos. Os trs
destaques em negrito tm como OR a ocorrncia noticivel: o passageiro interpelado pelos
controladores por ter tentado passar nas catracas do metr sem bilhete. O OR trata de uma
ocorrncia inverificvel por constatao, mas que tambm uma ocorrncia de naturezaconstatvel por simples observao. Sabe-se - e este um saber social prvio - que possvel
presenciar a ao do passageiro pulando as catracas e sendo abordado pelos controladores.
Inclusive poderamos acrescentar que a populao das trs cidades sede dos veculos
jornalsticos convive diariamente com o sistema de metr e conhecem suas regras e sanes.
O OR constitudo no texto o resultado, portanto, do saber jornalstico produzido por
checagem de dados, contraposio de declaraes de testemunhas e fontes oficiais, alm de,
possivelmente, documentos oficiais. Ou seja, um saber operado por determinadas
competncias, como a de apurar informao. Uma prova disto que o nico veculo em que o
8 El Mundo. El rebrote de la guerrilla urbana calienta la campaa francesa. Disponvel em:http://www.elmundo.es/papel/2007/03/29/mundo/2104634.html. Acesso em fevereiro de 2009.9 Folha de S.Paulo. Polcia de Paris usa gs contra jovens no metr. Disponvel em:http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2803200714.htm. Acesso em fevereiro de 2009.
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objeto construdo como declarao em ordem indireta na Folha de S.Paulo, sem
correspondente.
A fora que o OR adquire na enunciao jornalstica de um fato dado como algo que
foi constatado, embora tenha sido algo apurado por aqueles que assinam os textos. O grau deverossimilhana da adequao do enunciado realidade vem de um tpico universal, que diz
respeito ao conhecimento da natureza de uma ao, passvel de observao intersubjetiva.
Este tpico origina o tpico jornalstico da presena, segundo o qual a condio de
testemunha ocular garante a funo de checagem e verificao de informaes do
jornalista-reprter. A assinatura, ou seja, o estatuto dos enunciadores faz parte do grau de
verossimilhana, pois os nomes de jornalistas no incio ou final do texto indicam que o
jornalista foi testemunha das ocorrncias descritas. Na Folha de S.Paulo, a opo pelo
discurso indireto responsabilizando a fonte indica que o enunciador no se responsabiliza pela informao. Este conhecimento, no entanto, no to vasto a ponto de se tornar um
tpico jornalstico, compartilhado pelo pblico-leitor da Folha. Mas se compartilha o saber de
que, assim como em todos os outros textos da finalidade de informar, o veculo jornalstico
tem responsabilidade sobre o que afirmado.
Os objetos da FDJ so considerados, em princpio, verificveis. H uma idia de que
todo OR tratado pela atividade jornalstica tem a qualidade de verificao (QV), ou seja, pode
ser verificado por parmetros do saber comum ou dos saberes cientficos. Por isso, funciona
ainda um elemento na determinao da fora de verossimilhana de um OR realizado no ato
comunicativo: o coeficiente de verificao (CV). O coeficiente de verificao de um OR
medido pelos tpicos jornalsticos. Essa dinmica tem ainda um elemento: o nvel de
necessidade de verificao (NV) em determinado contexto para determinada ocorrncia
noticiosa. O OR pode ser passvel de verificao, mas no haver necessidade de verificao,
como, por exemplo, com intenes de testemunhas. Quanto maior for o CV de um objeto,
maior o grau de verossimilhana (GV) e, consequentemente, mais prximo de uma evidncia
est.
O enunciado evidente aquele cujos OR se apresentam como objetos de acordo.
Portanto, o movimento dos assertivos trabalhar com sua QV e seu CV de maneira que se
realizem como fatos indiscutveis. So os tpicos jornalsticos que funcionam como um
sistema de mediao do nvel de evidncia dos objetos, consequentemente, no grau de
verossimilhana dos assertivos. O discurso jornalstico argumentativo pela relao que
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estabelece entre ao discursiva e OR. A fora argumentativa uma dimenso inerente a
numerosos discursos, o que no deve ser confundido com objetivo argumentativo
(ANSCOMBRE & DUCROT, 1983, p. 164). Argumentar e ao argumentativa so
essencialmente diferentes. O ato de argumentar pode fazer parte ou no de um pensamentoargumentativo, como ocorre em diversas composies da organizao jornalstica. Enfim, o
ato de argumentar no precisa, necessariamente, ter uma estrutura argumentativa/dissertativa.
As notcias, tanto de impressos quanto de digitais, apresentam, em geral, objetos de
acordo, desde fatos, dados de realidade, situaes contextuais, verdades de saberes
especializados. Isto ocorre porque a competncia de procedimento exatamente trabalhar
com a mxima quantidade de objetos de acordo, isoladamente ou interrelacionados. As
articulaes entre alguns objetos parecem apenas se suceder. Essas articulaes operam, no
entanto, conexes tambm reconhecidas e aceitas intersubjetivamente como se fossemargumentos de acordo. O que estamos chamando de argumentos de acordo so os argumentos
quase lgicos, os argumentos baseados na estrutura do real ou que fundamentam a estrutura
do real (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996). Dentre estes, se destacam os
argumentos por comparao e pelo provvel (quase lgicos), os argumentos pelo exemplo e
pela ilustrao (que fundamentam a estrutura do real) e argumentos de efeito e de autoridade
(baseados na estrutura do real). Os argumentos, fundados em valores, hierarquias, tpicos,
trazem os parmetros de interpretao. Todos se mostraram recorrentes na amostra da tese.
5. Potencialidades do mdium
O estudo separado por mdia instituiu, sem prvia discusso, a mdia como critrio
primeiro para a definio de gnero, sem, ao menos, se discutir como as propriedades destas
mdias influenciavam na noo. Se possvel se reconhecer uma entrevista nas rdios, nos
impressos, na TV e nos sites noticiosos, certamente as caractersticas regulares destas
composies perpassam as diferentes caractersticas das diferentes mdias. Por isso, a partir
da comparao entre sistematizaes sobre as propriedades das mdias digitais
(ECHEVERRA, 1999; PALCIOS, 1999; BARDOEL & DEUZE, 2000; MANOVICH,
2001; DAZ NOCI, 2004) e da midiologia (DEBRAY, 1991), investigamos quais
caractersticas do mdium seriam determinantes ou apenas influentes para as mudanas de
gnero (jornalstico ou jornlico). Chegamos concluso de que, dentre a operao de
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conhecimento, os sistemas semiolgicos, os sistemas de transmisso e estocagem, de
interao, de redes tcnicas, de influncias nas tcnicas (de redao) e da relao tempo-
espao, trs propriedades parecem determinantes: o sistema de transmisso, o sistema
semiolgico e a relao tempo-espao.
Um exemplo claro da primeira so os chats e fruns dos sites noticiosos. A
interatividade exigida com a troca simultnea para o chate abertura do plo de emisso em
ambos s existe na tecnologia digital. Outra necessidade que a temporalidade seja
sincrnica, quando todos esto em conexo ao mesmo tempo, situao de troca impossvel
para os impressos. Mesmo com a mesa redonda (Table ronde) dos jornais franceses em que
se rene vrias pessoas numa nica entrevista, dentre estas pessoas no esto os agentes-
receptores, que apenas vo ler. Entretanto, a interatividade que a mdia tem como
potencialidade no nem sempre opera com o seu nvel mximo. o que se pode falar sobre a
televiso, cuja instantneidade potencial do dispositivo foi submetida lgica do mdium.
A possibilidade de escolher o cdigo lingustico permitida pelo sistema semiolgico
multimiditico tornou explcito que cada cdigo lingustico tem uma natureza diversa e serve
a dado OR dentro do fazer jornalstico. Imagens em movimento servem a um propsito
diferente do texto escrito e do grfico. As imagens em movimento, frequentemente, tm a
denominao do formato, como as imagens estticas, e integram um gnero10. No h, ainda,
nenhum formato em vdeo que tenha alado o lugar de gnero jornalstico como owebdocumentrio para a rea de cinema e vdeo. Ou seja, uma mudana de formato no
implica em uma mudana de gnero.
5. Concluses
Para que as composies discursivas da FDJ sejam consideradas gnero necessrio
que se realizem na combinao regular de alguns elementos: 1) lgica enunciativa, que se d
na relao entre objetos de realidade, compromissos realizados e tpicos jornalsticos; 2)
fora argumentativa, que se d na relao entre o grau de verossimilhana dos enunciados e
10 Exemplo representativo um vdeo sobre os confrontos na Gare du Nord em 28 de maro de 2007.Affrontements la gare du Nord. Disponvel em: http://www.lemonde.fr/a-la-une/video/2007/03/28/affrontements-a-la-gare-du-nord_888738_3208.html. Acesso em fevereiro de 2009.
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o nvel de evidncia dos OR, medida pelos tpicos jornalsticos; 3) identidade discursiva,
que se d na relao entre status (competncias) e as dimenses de sujeito comunicante,
locutor e enunciador no ato da troca comunicativa; e 4) potencialidades do mdium
(algumas apenas influentes).As diferentes combinaes destes elementos geram diferentes gneros. Uma primeira
diviso que propomos a de gneros jornalsticos e gneros jornlicos. Um gnero
jornalstico deve, pelo menos: 1) ser produzido pela organizao jornalstica, empregando a
competncia de procedimento, e satisfazer a uma ou mais finalidades institucionais; 2) ter
como enunciador, no ato da troca comunicativa, a instituio jornalstica; 3) apresentar uma
lgica enunciativa formada por compromisso de adequao do discurso realidade, como
objetos de acordo e/ou argumentos de acordo operados interpretados segundo tpicos
jornalsticos. J os gneros jornlicos tm outra combinao: 1) a instituio jornalstica nofaz parte da dimenso do enunciador; 2) a competncia de procedimento empregada no de
nenhum sujeito comunicante da organizao jornalstica, portanto de outra formao
discursiva; 3) a lgica enunciativa no trabalha, obrigatoriamente, como objetos de acordo e
pode ser formada por compromissos de crena sobre a adequao do enunciado realidade.
O termo jornlico, corruptela do texto jornlico de Charron e De Bonville11, se refere
produo no interior da organizao jornalstica consagrada atualidade.
Ainda que estas combinaes no se fortaleam com o tempo, a idia da regularidade
de critrios e, especificamente, estes critrios para as combinaes certamente abrem uma
possibilidade de definio para a complexa noo de gnero da atividade jornalstica.
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11 (...) Dans notre proposition, la notion de texte journalique inclut aussi les produits journalistiques (...) nonquotidiens (...) (CHARRON & DE BONVILLE, 2004, p. 91)
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