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II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)
INTELECTUAIS E PODER
Simpósio 3 | Política e cidadania
Uma reflexão sobre a construção da cidadania a partir da experiência do
Programa Mediação de Conflitos do Estado de Minas Gerais.
Ariane Gontijo Lopes Leandro
Resumo:
Este artigo realiza uma breve reflexão sobre a construção da cidadania a partir da atuação do
Programa Medição de Conflitos – Governo do Estado de Minas Gerais. Trata-se de uma
produção bibliográfica em que são apresentados e discutidos alguns pressupostos de dois
autores (Marshall e Foucault) que trabalham com temas relacionados ao problema em
questão. Com base nesses autores são tecidos alguns comentários e articulações entre as
postulações teóricas e a importância do modo de atuação/ atendimento do Programa Mediação
de Conflitos junto aos grupos sociais moradores das favelas de Belo Horizonte, Região
Metropolitana e interior mineiro, marcados pela ausência de acesso aos direitos formais. Com
o tema e objetivos aqui propostos, esperamos contribuir com o conjunto de estudos
relacionados à dimensão social da cidadania brasileira, trazendo elementos e análises
relacionadas à temática.
Mediadora. Psicóloga. Especialista em Políticas Públicas UFMG. Especialista em Culturas Políticas UFMG.
Formação na área de “Mediação de Conflitos Comunitária”. Mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV – RJ. Já atuou na coordenação e na supervisão metodológica do Programa Mediação de Conflitos/ MG. Atualmente atua na Subsecretaria de Promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro.
Palavras-Chave: Cidadania/direitos, Poder e Mediação de Conflitos.
****
I. INTRODUÇÃO
O Programa Mediação de Conflitos é uma política pública do Governo Estadual de
Minas Gerais, que presta serviço de atendimento às populações localizadas nas regiões
(favelas, aglomerados urbanos e vilas) marcadas pela ausência dos direitos básicos e
fundamentais, pela vulnerabilidade social e pelo alto índice de criminalidade violenta. O
objetivo do Programa é contribuir para minimização destes quadros de ausência apresentado,
promovendo, por meio da “mediação de conflitos”, alternativas de participação, engajamento
e empoderamento na construção da cidadania, conciliando as formas locais de “resolução de
conflitos” com as “regras formais” (leis). Neste artigo, a partir da obra de Marshall (1967)
intitulada “Cidadania, Classe Social e Status” e da obra de Foucault (1979): “Microfísica do
Poder”, será analisada uma breve reflexão dos modos de construção da cidadania a partir da
atuação do Programa Mediação de Conflitos, intenciona-se com essa abordagem colaborar
com o debate acerca das “novas configurações” do direito que direcionam o movimento da
cidadania “de baixo para cima”, partindo das microestruturas para as macroestruturas.
II. DESENVOLVIMENTO E TRAJETÓRIA DA CIDADANIA EM T.H.
MARSHALL
Marshall (1967) demonstra como o processo de desenvolvimento da cidadania ocorreu
na Inglaterra. O autor relaciona o processo de construção da cidadania inglesa e seu impacto
na desigualdade social. Com esta obra Marshall (1967) irá se tornar um expoente para os
estudos da cidadania. Sua análise retrata uma dimensão “sincronizada” da cidadania,
subsequenciada pela conquista dos direitos e pelos desfechos de sua titularidade (constituição
dos direitos) durante os séculos XVIII, XIX e XX.
A cidadania refere-se ao título de direitos que cada cidadão possui, considerado como
“um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles
que possuem status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status.”
(MARSHALL, 1967: 76). A dimensão de status é diferente da condição existente no período
medieval (concebido pela herança ou classe), pois trata da titularidade dos direitos que pode
ser alterada a qualquer momento, dadas as condições dos títulos de direito de cada cidadão.
Essa titulação dos direitos é subdividida da seguinte forma: direitos civis, direitos políticos e
direitos sociais que, de acordo com o autor, se desenvolveram respectivamente durante os
séculos XVIII, XIX e XX.
Os direitos civis, segundo Marshall (1967), são aqueles necessários à liberdade
individual, de ir e vir, de imprensa, de pensamento, de religião, da propriedade. Trata-se do
direito que concebe os contratos sociais e o direito à justiça. Este último (o direito à justiça) se
difere aos dois outros, pois é o direito de defesa e afirmação de todos os direitos em termos de
igualdade, especialmente processual; a instituição que mais o representa são os tribunais de
justiça. Os direitos políticos são aqueles que garantem o direito a participação na vida política,
seja como membro (de um organismo ou instituição) ou como eleitor de tais membros.
Corresponde a esses direitos: o direito de associar-se, além da constituição e participação nos
parlamentos e conselhos dos governos nacionais. Os direitos sociais são aqueles que abarcam
o direito mínimo de bem-estar econômico, de segurança, de participação na herança social, de
garantias de convivência e de padrões de vida de “um ser civilizado”1, ou seja, inserido na
dinâmica social. De acordo com Marshall (1967) as principais instituições voltadas à garantia
destes direitos seriam o sistema educacional e o sistema de serviço social das nações. Apesar
da existência de inúmeras críticas aos aspectos da linearidade temporal da construção dos
direitos em Marshall (1967), entendemos que o autor demonstra que tal seqüência
cronológica/linear, na verdade, não ocorreu na Inglaterra, pois o desenvolvimento dos
direitos teve interseções e retrocessos entre um período de século e outro.
Outro fundamento importante é o modo como a preponderância de cada um dos
direitos se institui, ou seja, como cada direito foi abarcado institucionalmente por uma
instituição. Esse processo (de garantir o direito por uma instituição) seria o marco da
montagem/desenvolvimento da cidadania segundo Marshall (1967), onde a titularidade dos
direitos, ou seja, a cidadania, só teria validade se abarcada por lei e por instituições capazes
de garanti-la e regulá-la.
A construção dos direitos civis, políticos e sociais, se distanciam uns dos outros
quando analisados em seus respectivos desenvolvimentos. O processo de construção inicial do
1 Termo utilizado pelo autor.
direito civil na Inglaterra, segundo Marshall (1967), poderia ser compreendido pelo período
entre a Revolução Francesa e o primeiro Reform Act, pois já era uma conquista do homem.
Quanto ao setor econômico, o direito civil traduziu-se como direito ao trabalho, antes negado
pela lei e pelos costumes do status medieval, conforme mencionamos anteriormente. O
reconhecimento desta conquista acarretou modificações fundamentais na sociedade inglesa,
pois a liberdade passou a ser interpretada como direito. Nas cidades, os termos “liberdade” e
“cidadania” eram tidos como semelhantes. Quando a liberdade se tornou universal, a
cidadania passou de uma instituição local à designadora da nação. Nas palavras de Marshall
(1967):
A velha premissa de que os monopólios locais e grupais eram de interesse público porque o comércio e o tráfego não podem ser mantidos ou aumentados sem ordem ou Governo foi substituída pela nova suposição segundo a qual as restrições eram uma ofensa à liberdade do súdito e uma ameaça à prosperidade da nação. (MARSAHLL, 1967: 67)
Os direitos políticos, por sua vez, se diferem dos direitos civis, tanto na sua relação
com o tempo quanto no caráter de sua institucionalização. Seu processo de formação deu-se
no início do século XIX, quando o legado dos direitos civis relacionados ao status de
liberdade já havia consolidado de modo substancial seu entendimento como status geral de
cidadania. No início, os direitos políticos consistiram não na criação de novos direitos (status
de cidadania), mas na complementação e/ou doação de direitos já existentes às novas parcelas
da população que também deveriam ser abrangidas. Segundo Marshall (1967), os direitos
políticos, no século XVIII, eram reduzidos ao monopólio de alguns grupos, e a Lei de 1832
alterou pouco no sentido de ampliação deste direito. Foi somente com a Lei de 1918 que este
quadro dos direitos políticos teve maior alteração, devido à adoção do sufrágio universal.
Foi como veremos, próprio da sociedade capitalista do século XIX tratar os direitos políticos como um produto secundário dos direitos civis. Foi igualmente próprio do século XX abandonar essa posição e associar os direitos políticos direta e independentemente à cidadania como tal. Essa mudança vital de princípio entrou em vigor quando a Lei de 1918, pela adoção do sufrágio universal, transferiu a base dos direitos políticos do substrato econômico para o status pessoal. (MARSHALL, 1967: 71)
Este percurso da construção inicial da cidadania, partindo dos direitos civis e políticos
(no cenário inglês) durante os séculos XVIII e XIX, não apresentou rupturas ou modificações
nas estruturas sociais/desigualdade social daquele país, pois foram gerados “preconceitos de
classe” e “falta de oportunidade econômica”, além dos agravantes relacionados com a
ausência histórica de experiência, organização e concepção de instituição política. Com o
surgimento destes fenômenos geradores de desigualdade social e com a evidência da
problemática da pobreza, surge a necessidade de arregimentar outros direitos, os direitos
sociais. Nesta perspectiva, salientamos a central preocupação de Marshall (1967) em relação
ao impacto da cidadania nas desigualdades sociais, tendo em vista que, neste conjunto de
novas necessidades se poderia garantir a cidadania social mais completa, embora, para o
autor, “a desigualdade do sistema de classe seria aceitável sempre que fosse reconhecida a
igualdade de cidadania” (MARSHALL, 1967: 94).
Marshall (1967) se remetendo a natureza da classe social, com o objetivo de
compreender o impacto da cidadania sobre a desigualdade social afirma haver diferenças
neste aspecto nos séculos por ele analisados. O autor apresenta a classe social como um
sistema de desigualdade, baseado num conjunto de idéias, crenças e valores. A classe social e
a cidadania assumem uma forma conflituosa, obtendo interesses e princípios opostos,
vejamos:
(...) a cidadania tem sido uma instituição em desenvolvimento na Inglaterra pelo menos desde a segunda metade do século XVII, então é claro que seu crescimento coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é o sistema não de igualdade, mas de desigualdade. (MARSHALL, 1967: 76)
Marshall (1967) discorre também sobre a existência de diferentes linhas de abordagem
e análise das classes sociais. Uma delas, parte da hierarquia de status, expressando as
diferenças de uma classe para as outras, baseando-as nos direitos legais e nos costumes, que
estabelecem o caráter coercitivo da lei. A classe social seria uma instituição em seu próprio
direito, aceita como ordem natural. Portanto, a igualdade implícita no conceito de cidadania,
mesmo com limitações em conteúdo, diminuiu a desigualdade do sistema de classe, que antes
era uma desigualdade total. Assim:
Uma justiça Nacional e uma lei igual para todos devem, inevitavelmente, enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como um direito natural universal, deve eliminar a servidão. (MARSHALL, 1967: 77)
A outra perspectiva trabalha com o pressuposto de que a classe social não é uma
instituição em seu próprio direito e nem derivada de outras instituições. Embora seja possível
referir-se à noção de status social nesta perspectiva, argumenta Marshall (1967), a tentativa é
de não olhar o termo de forma puramente técnica. Ou seja, as diferenças de classe não devem
ser definidas neste modelo pelas leis e costumes e sim, a partir da combinação de fatores
múltiplos relacionadas com instituições como, por exemplo, a educação, a propriedade e a
economia nacional.
Em fim, buscamos tratar aqui, do modo como Marshall (1967) discorre sobre o
processo de construção da cidadania na Inglaterra, afirmando, sobretudo, o movimento de
institucionalidade da cidadania, partindo do título de direito que cada cidadão possui,
demonstrando o surgimento dos direitos civis, em um primeiro momento, alinhado à
conquista da liberdade. Os direitos políticos se seguiram dos direitos civis e sua ampliação
ocorre no século XIX, mas o seu princípio de cidadania é reconhecido mais amplamente em
1918 com o sufrágio universal. Já os direitos sociais, como parte do conceito de cidadania,
não existiam nos séculos XVIII e XIX. Apesar do surgimento deste direito começar com o
desenvolvimento da educação primária no final do século XIX, é somente no século XX que
ele alcança uma dimensão de igualdade com os outros dois direitos, contemplando a dimensão
da cidadania social.
III. PODER, DIREITO E PRODUÇÃO DA VERDADE EM FOUCAULT
Foucault (1979) analisa o poder pelo modo como o mesmo se organiza a partir das
relações sociais e não como conceito estático e fixo. Para isto é proposto em sua análise duas
linhas orientadoras: a) uma que descreve formalmente o poder pelas regras do direito; e b)
outra que descreve a produção das verdades produzidas pelo poder, culminando em um
triângulo que combina: poder, direito e verdade.
As sociedades produzem relações de poder múltiplas, permeadas pelo corpo social, e
essas relações não estão separadas ou omissas à produção do discurso, pois elas (as relações)
estão submetidas pelo próprio poder a produzi-lo (o discurso), nas palavras do autor, “somos
submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da
verdade”. (FOUCAULT, 1979:180).
Partindo desta consideração que relaciona direito, poder e produção da verdade,
Foucault (1979) ao retomar a elaboração do pensamento jurídico nas sociedades ocidentais da
Idade Média, o faz tendo em vista a organização do “poder real” (dos reinados/reis), em suas
palavras, “o personagem central de todo o edifício jurídico ocidental é o rei” (FOUCAULT,
1979: 181). São dois os modos de compreensão deste poder, um que demonstra como o
sistema jurídico e seu exercício pelo poder do rei (soberania) funcionava; e outro que limitava
o poder soberano, demonstrando o jogo que envolve as regras de direito em que o rei também
está submetido. Foucault (1979) inverteu o movimento da análise do discurso do direito
quando analisou “o como do poder”, ou seja, sua dinâmica empírica de realização e
funcionamento. O autor deixa clara sua intenção e posicionamento ao escrever de forma
favorável à necessidade de:
Fazer sobressair o fato da dominação no seu íntimo e em sua brutalidade e a partir daí mostrar não só como o direito é de modo geral o instrumento dessa dominação – o que é consenso – mas também como, até que ponto e sob que forma o direito (e quando digo direito não penso simplesmente na lei, mas no conjunto de aparelhos, instituições e regulamentos que aplicam o direito) põe em prática, veicula relações que não são relações de soberania e sim de dominação. (FOUCAULT, 1979: 181).
Dominação para o autor são as múltiplas sujeições que fazem funcionar o corpo social,
tratando-se das múltiplas formas de controle em exercício nas sociedades, conforme pode ser
percebido na passagem abaixo.
O sistema de direito, o campo do judiciário são canais permanentes de relações de dominação e técnicas de sujeição polimorfas. O direito deve ser visto como um procedimento de sujeição, que ele desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida. (...) o problema é evitar a questão, central para o direito, da soberania e da obediência dos indivíduos que lhe são submetidos e fazer aparecer em seu lugar o problema da dominação e da sujeição. (FOUCAULT, 1979: 182).
Para orientar sua análise sobre o poder, o direito e a produção da verdade, Foucault
(1979) apresenta alguns imperativos e cinco precauções metodológicas. Estes seriam: (a)
perceber o poder como sendo de caráter local, ou seja, de forma contrária às propostas que o
identificam com um suposto centro; (b) caracterizado pela exteriorização da sujeição por parte
dos indivíduos; (c) pela circularidade ou transitoriedade, ou seja, o poder não se constitui
como um bem, sendo algo que transita que circula entre os indivíduos; (d) por sua
característica ascendente (da base para o topo); e (e) por fim, pelo princípio da não-
ideologização, o que consiste em dizer que a base do poder seriam os instrumentos de
formação e acúmulo de saber.
Como podemos perceber, o poder para Foucault (1979) acontece na construção das
microestruturas que produzem o saber. Com o advento da burguesia, um novo conceito,
diferente do poder soberano, passa a compor a sociedade moderna e as novas estruturas, como
os hospitais, as escolas, entre outros. O autor rompe com as teorias que buscam explicar o
poder por meio do Estado e suas instituições – teoria jurídico-política da soberania. O poder
contido nas microestruturas, se organiza nas relações entre os indivíduos submetidos às
mesmas, caracterizando-se como a capacidade dos mesmos (indivíduos) em exteriorizar-se,
ou seja, “captar a instância material da sujeição enquanto constituição dos sujeitos”
(FOUCAULT, 1979: 183). O poder não é um bem material, algo a ser adquirido ou possuído,
o poder não é do indivíduo e não está no indivíduo, o poder passa pelos indivíduos, o poder
está e se constitui nas relações sociais, é algo que funciona no exercício das relações e se
exerce em rede. A análise do autor pressupõe também a característica ascendente do poder, ou
seja, este (o poder) parte das relações micro para as relações macro, de domínio global, dos
súditos para os soberanos. Assim o poder seria traduzido pelo princípio da não-ideologização,
uma dimensão que estaria entre o direito (leis) e as normas, e que constituiria a produção e o
acúmulo de saber gerador do “poder disciplinador”. Sendo o poder transitório e circular,
conforme dissemos, ele está sempre em ação nesta estrutura que é, portanto, também
relacional. A produção de saber, além de geradora do poder disciplinador é também
caracterizada por um tipo de organização espacial, por um controle de tempo e pela vigilância
invisível, sendo esta última, um dos principais mecanismos de controle por se materializar nos
corpos dos sujeitos, com função de adestramento. Não se trata da análise do exercício do
poder em sua forma regulamentar e legítima e sim das suas ramificações, ou seja, o poder nas
extremidades menos jurídicas de seu exercício, nas palavras de Foucault (1979):
Trata-se, ao contrário, de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar, captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento. (FOUCAULT, 1979: 182).
Foucault (1979) não analisa o poder no plano da intencionalidade, se perguntando por
que uns querem dominar, e sim onde se implanta e como o poder produz efeitos reais
evidenciados pelo funcionamento dos processos de sujeição ou dos processos contínuos que
sujeitam os corpos, interpretando os seus hábitos, gestos, comportamentos entre outros.
Questionar o modo como se constitui e se organiza o poder a partir da multiplicidade dos
corpos, das forças e das matérias, captando a instância material da sujeição enquanto
constituição dos sujeitos é o objetivo do autor.
Tendo feito esta breve explanação sobre os autores (Marshall, 1967 e Foucault, 1979),
passemos a algumas reflexões sobre as contribuições do Programa Mediação de Conflitos da
Secretaria de Estado de Defesa Social - Governo do Estado de Minas Gerais - na construção
da cidadania do público que o acessa.
IV. CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO ESTADO DE MINAS GERAIS
A proposta de refletir sobre a construção da cidadania a partir da atuação do Programa
Mediação de Conflitos – Governo do Estado de Minas Gerais – tem relação direta com a
construção dos direitos no âmbito da sociedade brasileira. Isso porque, os grupos sociais
atendidos por este programa, em geral, estão vivenciando a cidadania de forma a estabelecer
trajetórias alternativas nos modos de garantia e regulação dos direitos e seus conflitos, assim
como ocorreu historicamente no percurso da cidadania brasileira. Antes de iniciar a reflexão
propriamente dita, faz-se necessário, contudo, apresentarmos de forma breve e descritiva, a
origem, metodologia e institucionalidade do programa.
O Programa Mediação de Conflitos surge de uma prática de extensão desenvolvida
pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a partir do Programa
Pólos de Cidadania2. Este Programa diagnosticou, a partir da metodologia de pesquisa-ação,
quais eram as percepções e concepções vivenciadas por alguns dos grupos moradores das
favelas, vilas e bairros periféricos de Belo Horizonte, em geral, excluídos do acesso aos
direitos e garantias fundamentais. A metodologia adotada pelo Programa Pólos de Cidadania
visava ainda compreender as complexidades dos problemas sociais vivenciados por estes
grupos, de modo a integrar a percepção da universidade com a prática e a vivência
comunitária.
Contudo, o processo de construção metodológica do programa não se esgotou na
universidade. Em 2005, a proposta de mediação de conflitos tornou-se uma política pública
executada pelo Governo do Estado de Minas Gerais, sendo, atualmente, uma experiência
reconhecida de atuação governamental em relação às questões da exclusão social, da violência
e do exercício da cidadania em regiões e comunidades marcadas pelo acesso precário aos
serviços sociais básicos. O programa está localizado na Superintendência de Prevenção à
Criminalidade – Secretaria de Estado de Defesa Social (MG) e atua em 11 (onze) municípios,
totalizando 25 núcleos de atendimento, que englobam a região metropolitana de Belo
2 Pólos de Cidadania é um programa interinstitucional com sede na Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) que visa aliar atividades de ensino, pesquisa e extensão com o objetivo de promover a inclusão e a emancipação de grupos sociais com histórico de exclusão e trajetória de risco. Criado em 1995, o Pólos atua em parceria com outras unidades da UFMG, com instituições públicas e privadas de ensino superior e com instituições da administração pública.
Horizonte e outras áreas do interior do Estado.
O Programa Mediação de Conflitos está estruturado em quatro eixos de ação/atuação:
a) Mediação Atendimento: procedimento que consiste no atendimento às pessoas que
procuram o programa com uma ou mais demandas, sendo estas caracterizadas, inicialmente,
por serem de cunho individual (relações interpessoais), que envolvem aspectos que a
princípio não pertencem à esfera coletiva, utilizando-se tanto da mediação para resoluções
pacíficas dos conflitos, quanto para a ampliação de acesso à informações, bens e serviços
essenciais ao gozo e exercício dos direitos humanos e fundamentais; b) Mediação
Comunitária: procedimento que está diretamente vinculado ao conceito de coletividade e
comunidade. É o eixo cujas ações abrangem as demandas relacionadas à esfera comunitária,
que em sua maioria são questões de âmbito público. A realização do trabalho acontece de
acordo com a dinâmica social de cada localidade, caracterizando-se pelos seguintes objetivos:
(i) mapear e diagnosticar a organização comunitária, (ii) potencializar os processos de
emancipação comunitária, (iii) fomentar a constituição de redes sociais, (iv) cumprir a função
de mediação de conflitos comunitários e (v) coletivizar demandas; c) Projetos Temáticos: são
desenvolvidos a partir: i) da identificação do problema ou fator de risco (diagnóstico), ii) da
elaboração do projeto, iii) da aprovação pela coordenação do programa, iv) da implementação
(incluindo o monitoramento e avaliação) e v) do re-planejamento (que pode ocorrer a cada
monitoramento e avaliação). Os projetos devem partir de um diagnóstico da dinâmica local
com base na orientação dos fatores de risco. Essa iniciativa objetiva gerar fatores protetores
que possam influenciar a dinâmica local; e, por fim, d) Projetos Institucionais: que atuam, por
meio de parcerias institucionais, em questões e problemas sociais que se mostram estruturais.
(LEANDRO e CRUZ, 2009)
Iniciando nossa reflexão, entendemos haver duas possibilidades analíticas distintas em
relação à constituição, garantia e apropriação dos direitos, quando trabalhamos com Marshall
(1967) e Foucault (1979).3 Para Marshall (1967) a cidadania é reconhecida pelo título dos
direitos, ou seja, pela conquista e posse dos mesmos (diretos civis, políticos e sociais) por
parte dos indivíduos e sociedades. O autor argumenta que para cada um destes direitos deverá
haver instituições que de fato os garantam, reconhecendo e assegurando assim a cidadania
social. Já Foucault (1979) não percebe as instituições mencionadas por Marshall(1967) como
elementos de primeira ordem na constituição e garantia dos direitos dos indivíduos. Para ele,
3 Temos ciência da existência de inúmeras leituras e abordagens teóricas sobre o problema em questão.
Contudo, optamos em trabalhar aqui com estes dois autores por entender que tal exercício seria importante para a continuidade do trabalho de pesquisa que está sendo desenvolvido.
não são as grandes estruturas que reconhecem os direitos dos indivíduos, o movimento é
exatamente o contrário, ou seja, partiria das micro-relações, movimentadas pelos indivíduos,
em direção às macroestruturas.
É preciso salientar ainda que, no caso brasileiro, temos um processo histórico diferente
daquele descrito por Marshall (1967) quando o autor trata da construção da cidadania na
Inglaterra. Carvalho (1996), por exemplo, chama atenção para a necessidade de não limitar
nosso entendimento sobre a construção da cidadania tendo como base única e exclusiva a
perspectiva de Marshall. Visando compreender os tipos e percursos da cidadania no Brasil,
Carvalho (1996) com base em Turner (1990) trabalha com duas linhas orientadoras, uma que
apresenta o movimento da cidadania de cima para baixo ou de baixo para cima e outra que
analisa as relações dicotômicas público-privado em tais construções, o que complexifica e traz
outras questões à compreensão de tais processos. Nas palavras do autor:
(...) Exemplos de cidadania construída de baixo para cima são as experiências históricas marcadas pela luta por direitos civis e políticos, afinal conquistados ao Estado absolutista. Exemplos de movimento na direção oposta são os países em que o Estado manteve a iniciativa da mudança e foi incorporando aos poucos os cidadãos à medida em que ia abrindo o guarda-chuva de direitos. (...) A cidadania pode ser adquirida dentro do espaço público, mediante a conquista do Estado, ou dentro do espaço privado, mediante a afirmação dos direitos individuais, em parte sustentados por organizações voluntárias que constituem barreiras à ação do Estado. (CARVALHO, 1996: 01).
Em outra produção, Carvalho (2004) postulou que no Brasil a trajetória dos direitos foi
diferente daquela demonstrada por Marshall (1967) sobre o caso Inglês. A seqüência lógica e
também cronológica descrita por Marshall (1967) não encontrou ressonância no
desenvolvimento da cidadania brasileira, que teve início com o reconhecimento dos direitos
sociais, passando aos direitos políticos e, por fim, à conquista dos direitos civis, percurso
exatamente oposto ao da Inglaterra.
Concordando com Carvalho (1996 e 2004) nossa intenção é identificar e refletir sobre
diferentes maneiras de construção da cidadania, entre elas, fenômenos micro-sociológicos da
construção dos direitos que não estejam, necessariamente, relacionados ou garantidos por uma
instituição. Entendemos que o Programa Mediação de Conflitos se aproxima destas
características. Por meio de sua prática os indivíduos dão significados a construção dos seus
direitos a partir de suas relações locais (microssociais). Entendemos que a institucionalização
de macroestruturas não serão efetivas na garantia dos direitos se os grupos sociais as
desconhecem e/ou delas não participaram/participam. Existe um claro distanciamento entre os
sujeitos e estas instituições e é nesta lacuna que o referido programa atua, trabalhando na
direção de possibilitar o acesso, instrumentalizar, empoderar e contribuir na garantia da
autonomia destes grupos sociais, para que eles possam reconhecer o modo como percebem
seus direitos e, a partir daí, compreendê-los e ter a possibilidade de alterá-los de forma
relacional. Consideramos no desenvolvimento da pesquisa em curso se tratar da característica
transitória e circular do poder, postulada por Foucault (1979), na prática, ou seja, em uma de
suas formas empíricas. Conforme mencionamos, Foucault (1979) identifica o movimento que
reconhece a produção dos saberes entre os indivíduos pela via do poder, que perpassa os
mesmos, sendo transitório e ascendente, ou seja, parte dos súditos para os soberanos, do
domínio local para o global.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto brasileiro, o direito formal se institucionalizou por meio das Constituições
legais e instituições que o regulam, mas existe um distanciamento da população em relação às
estruturas criadas para garanti-lo. Durante muito tempo, em um passado recente, a prática foi
normatizar leis e direitos, sem reconhecer o processo de participação e inclusão dos grupos
sociais na construção da cidadania do país. Entendemos que o Programa Mediação de
Conflitos, ao reconhecer os processos peculiares da construção dos direitos, pode ser um
instrumento que contribui para a amenização das distancias entre esses grupos e as
instituições.
Nossa intenção foi apresentar brevemente algumas das abordagens micro e
macrossociais sobre o problema em questão, considerando as relações e divergências
existentes entre as mesmas. Entendemos que Marshall (1967) trouxe sua contribuição ao
sedimentar as dimensões históricas dos direitos fundamentais na vida das sociedades
modernas, mas é Foucault (1979), no nosso entendimento, que apresenta os caminhos e
movimentos que mais se aproximam da atuação do Programa Mediação de Conflitos. Não
objetivamos estabelecer um diálogo entre os autores, a intenção foi utilizar os caminhos
distintos percorridos pelos mesmos (os autores) para subsidiar nossa breve reflexão sobre a
possibilidade da construção da cidadania entre os grupos sociais que acessam o Programa
Mediação de Conflitos.4
4 Ressaltamos que essa breve reflexão teve como premissa a construção de uma análise inicial, portanto, este
presente texto é oriundo do trabalho final apresentado a disciplina de sociedade do PPHPBC/CPDOC, pois as análises mais aprofundadas sobre a contribuição (ou mesmo se existe alguma contribuição) e percepção da cidadania para os grupos sociais que acessam o Programa Mediação de Conflitos é a hipótese do Projeto de Pesquisa da presente mestranda, e será analisada ao londo do curso, com a pesquisa de campo, entre outras
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 5 ªed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
CARVALHO, J. M. de. Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.
18, 1996.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
LEANDRO, Ariane Gontijo Lopes; CRUZ, Giselle Fernandes Corrêa da. Programa Mediação
de Conflitos da Secretaria de Estado de Defesa social de Minas Gerais: delineando uma
metodologia em mediação individual e comunitária. In: CASELLA, Paulo Borba; SOUZA,
Luciane Moessa de (Coord.). Mediação de Conflitos: novo paradigma de acesso à justiça.
Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 201-233.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
revisões literárias/ bibliográficas como esta produção.