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Uma teoria da prova criminal: o paradigma indiciário Primeira parte – Elementos – Tomo I - capítulos 1 a 17 Marco Aydos “Bambini”, de Edson Di Bernardi – coleção do autor Florianópolis Setembro/2013 1

Uma teoria da prova criminal: o paradigma indiciário · Mas o simpático indefinido deve ter sua verdade, porque uma teoria ... O problema é real. A verdade dos fatos sofre de causas

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Uma teoria da prova criminal: oparadigma indiciário

Primeira parte – Elementos – Tomo I - capítulos 1 a 17

Marco Aydos

“Bambini”, de Edson Di Bernardi – coleção do autor

Florianópolis

Setembro/2013

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Uma teoria da prova criminal: oparadigma indiciário

1. Introduçãojunho 8, 2012

Caros amigos: apresento-lhes uma teoria da prova criminal.

O indefinido uma admite que existem outras, e parece falsa petição de modéstia. Masnão é. Se a teoria de que precisamos hoje já estivesse no mercado, eu nem teriacomeçado a escrever esta. O indefinido uma substitui o possessivo minha, arriscado deparecer abusado e narcisista e dar causa a réplica mal-humorada: se é tua, por que nãofica com ela? Mas o simpático indefinido deve ter sua verdade, porque uma teoriadeixa de pertencer a seu autor assim que aparece na rua.

Para que serve uma teoria da prova?

Se é certo que na verificação dos fatos lidamos com um conceito cotidiano, trivial, deverdade, como correspondência, que admite apenas ser ou não ser, ter acontecido ounão, sem as tais perspectivas, não será mau serviço à verdade o excesso de teoria?

O problema é real. A verdade dos fatos sofre de causas naturais, como o esquecimento ea seletividade da memória, mas também de causas artificiais, como são os conselhos deteorias ruins. Mas isso será culpa da teoria? Refutando, em seu tempo, os perigos deabuso da retórica, Aristóteles disse com sabedoria que a retórica é um bem e pode-seabusar de tudo que é um bem, exceto da virtude (1355b4-5). A teoria é um bem quepode ser abusado, como se pode abusar do álcool, mas pode ser usada e apreciada commoderação, como um bom vinho.

Alguma teoria é necessária. Não conseguimos comunicar a experiência comoexperiência. Se eu disser que certa vez fui induzido a erro por tal ou qual circunstância,minha experiência já se tornou apenas exemplo de algo que por natureza não se repetirádo mesmo jeito. O que a gente retira do exemplo é a tal lição da experiência, ou suamáxima, que já é algo meio teórico.

A vida é confusa. Quando não sabemos o que fazer em determinada situação, dizemosque está tudo um caos. Uma teoria quer ajudar-nos a ver com o olho da alma o que nãovemos com a visão da retina. Para isso, separa artificialmente os fatos, como quemordena os livros na biblioteca. Se as teorias são criticáveis por congelar os fatos, retirardeles o colorido da vida, elas são elogiáveis quando ajudam a organizar o pensamento,pondo cada coisa em seu lugar, em ordem. Para ordenar o caos, as teorias classificam,distinguem diferença específica do seu gênero próximo, valem-se do método da divisão

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ou qualquer outro, quando necessário inventam nomes, estabelecem tipologias. Existirãoclassificações excessivas, filigranas inúteis? Certamente, assim como existem teoriasque fazem de conta que ordenam, mas duplicam o caos numa neblina de erudição semsabedoria.

Por que uma teoria da prova hoje?

Alguns juristas dizem que o momento é de crise de paradigmas, mas isso não é correto.Vivemos em crise de identidade, não de paradigma. Em conferência em Goiânia, em24/11/2011, refleti um pouco sobre essa crise de identidade, examinando o sistemapenal como algo que simplesmente enlouqueceu. Alguns de nós, não todos, “nãoconseguimos enxergar razão no sistema porque o seu produto final não chega aomercado do crime, a pena fica embotada no caminho. Toda a nossa energia de trabalhose exaure dentro do sistema, que parece viver para si mesmo. Resulta dessa loucura que‘o criminoso se ri do direito’, na expressão do jurista Binding (citado por Carl Schmitt,1985, p. 261). O caso de Pimenta Neves é paradigmático: o condenado – que seria, emtese, beneficiário da loucura do sistema, reclama do sistema e diz que foi prejudicado:preferia ter cumprido sua pena há muito tempo!”

Mas essa crise de identidade não implica que o sistema consinta com a crise de seuparadigma. A justiça criminal é uma forma de poder que precisa legitimar-se em algumainstituição imaginária. Existe um paradigma dominante que é dominante porque contacom o favor do poder. Mas como toda instituição imaginária, também esse paradigmadominante precisou legitimar-se por algum tipo de revolução espiritual antes dealcançar a zona de conforto em que se reproduz como algo quase-natural, parando depensar. Sob o paradigma dominante o sistema diz de si mesmo, feliz, que é garantista,desde que ninguém pergunte o que significa isso.

Quem reconhece a crise de identidade do sistema e acredita que sua loucura é incurável,ou pelo menos intratável enquanto estiver no poder esse paradigma dominante, precisade um paradigma concorrente. É normal que esse paradigma concorrente precisetrabalhar com o pensamento, porque não tem o favor de ter o poder. Contando apenascom o espírito, precisa de uma nova teoria.

Que tipo de teoria é uma teoria da prova?

A origem grega da palavra, theoreîn, designa a atitude admirativa do espectador dosjogos ou festivais públicos. Uma teoria da prova criminal é um modo de olhar a prova.Todo olhar é um tipo de especulação, mas o palco que miramos movimenta toda a alma,não só a inteligência. Procuramos uma teoria da prova quando não temos certeza seenxergamos corretamente o que aparece nesse palco.

Temos dúvidas sobre a força probatória das evidências disponíveis, que por vezessimplesmente passam despercebidas porque não nos habituamos a interrogar os fatos.Ainda quero especular mais detidamente sobre a hipótese de que a probidade de julgarapenas os fatos talvez seja mais enraizada na tradição do direito inglês e norte-americano que em nossa tradição continental. Julgar os fatos exige interrogar cadaprova. Um filme como Twelve angry men, 1957, dirigido por Sidney Lumet, e 1997, porWillian Friedrich, com Henry Fonda e Jack Lemmon no papel do primeiro jurado aabsolver, respectivamente (entre nós Doze homens e uma sentença) não é norte-

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americano por acidente, talvez não poderia ser uma produção européia (pelo menosoriginal, pois há diversos remakes). Com certeza não seria um filme brasileiro.

Voltando ao que nos move para uma teoria da prova: quando chegamos a ter certeza,nem sempre sabemos expor convincentemente nossa conclusão. Mas em toda essaconfusão, de uma coisa estamos certos: não nos contentamos com autoridades. Pornatureza, a teoria da prova é aparentada com a filosofia, ou pelo menos é composiçãode vários gêneros mais próximos da filosofia prática que da ciência jurídica. Ea filosofia prática é moral e política.

A teoria da prova como filosofia moral

Uma teoria moderna da prova compartilha com a filosofia moral o modo pessoal comque se dirige a seu destinatário, como numa ligação telefônica. Uma teoria moralmoderna, diz a filósofa, só se dirige a quem atende ao telefone, e quem atende aotelefone com a pergunta “qual é a coisa certa para eu fazer?” já escolheu a si mesmocomo uma pessoa boa e honesta, que apenas se tornará o que já é (Heller, 1990). Aescolha existencial precede ao atendimento a essa ligação telefônica. Essa escolhaexistencial pode dar-se sob a categoria da universalidade – em que se escolhe ser bom,justo e honesto, ou sob a categoria da diferença, em que se escolhe uma vocação ou umchamado. Os dilemas de cada uma são diferentes, e até mesmo as filosofias que seocupam de cada uma pertencem a gêneros diferentes. Para citar apenas três nomes datradição, Aristóteles e Kant ocupam-se com a escolha existencial sob a categoria dauniversalidade; Nietzsche, com a da diferença (Nietzsche é autor de uma ética depersonalidade, não é um filósofo moral). As escolhas existenciais são irrevogáveis emambas. Mas uma diferença essencial é que a escolha existencial sob a categoria dauniversalidade não admite falência existencial, ao passo que a ética de personalidade nacategoria da diferença admite falência existencial, porque é consequencialista. É precisoum mínimo de resultados para alguém tornar-se o destino que escolheu como suadiferença. Mas os resultados, bons ou maus, são apenas acidentes na vida da pessoa queescolheu a si mesma na categoria da universalidade, porque sua substância é ser boa ejusta todos os dias da semana, não só em dia feriado (Heller, 1996, p. 157, citação não-textual).

Por compartilhar essa natureza com a filosofia moral, no modo formulado pela filósofa,minha teoria da prova não se destina a quem não escolheu a si mesmo existencialmentesob a categoria da universalidade (aqui, como uma pessoa justa). Parece tolice, mas éverdade: apenas quem já é justo procura uma teoria da prova para tornar-se aquilo quejá é. Em suma, uma teoria da prova não moraliza, não aponta o dedo indicador aosinjustos que julgam a prova de má-fé.

A teoria da prova como lógica

Mas nem por isso uma teoria da prova ignora que existem erros desonestos dejulgamento da prova. Todos nós sabemos que não existe nada mais fácil numjulgamento que modificar os fatos pelo simples ato de fazer deles uma narrativa, quechamamos de relatório. Uma teoria da prova não pode deixar-nos à revelia nesseproblema. Precisamos aprender a identificar – sem moralizar – demonstrações

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desonestas da prova. Mas aqui ela já caminha pela lógica e tenta ensinar-nos aidentificar falácias e refutá-las.

A teoria da prova como filosofia política

Uma teoria da prova compartilha com a filosofia política sua natureza polêmica,guerreira (segundo a etimologia da palavra em pólemos = guerra). É normal que tenhaorigem na oposição a outra teoria.

Mas empreender um estudo sobre a prova foi algo que me pegou de surpresa. Até entãoeu pensava não ter nada relevante a dizer que não estivesse no tratado de Mittermaier. Aorigem desta teoria vem do espanto, que os gregos diziam dar causa à filosofia.Espantei-me com algumas soluções propostas por comissão de juristas, nomeada peloSenado em 2009 e autodenominada garantista, para reforma do Código de ProcessoPenal de 1941. Resultou desse espanto um estudo crítico ao anteprojeto garantista(Enfim um código de garantias: mas para quem?, publicado aqui em 15/11/2010),cuja segunda parte seria um estudo crítico da teoria do garantismo. Razão por que meobriguei a ler Direito e razão – Teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli.

Encontrei uma teoria muito ruim, embrulhada numa construção metafísica intempestiva,um tipo de grande narrativa de eterna luta entre os amigos e os inimigos dessegarantismo, inspirada n’Os inimigos da sociedade aberta de Karl Popper. Mas a obratem de positivo seu primeiro impulso de investigar como se produz a decisão criminal,de que elementos é feita e que capacidades movimenta. Mas o impulso aristotélico nãochega a lugar nenhum associado ao espírito platonista do autor, que pretende darà ciência jurídica a exatidão das ciências físicas. De qualquer modo, sou grato a LuigiFerrajoli, estímulo negativo para minha construção, que não existiria sem ele.

A segunda parte da crítica ao anteprojeto garantista tornou-se um projeto autônomo,com título O Evangelho de Luigi Ferrajoli, trabalho em andamento do qual escrevi 6capítulos. No capítulo 3, esbocei uma introdução à crítica da teoria garantista da prova,onde percebi que só podia criticar uma teoria ruim opondo-lhe como termo decomparação uma teoria boa.

E que boa teoria da prova eu tinha?

Pensei em Mittermaier. Mas o garantismo de Ferrajoli propõe ter revogado todas asteorias precedentes. Eu precisaria, pelo menos, demonstrar a atualidade de um tratadopublicado em 1843. Além disso, limitar-me a recomendar Mittermaier contra Ferrajoliseria propor a troca de uma autoridade por outra. Mas quem se interessa por uma teoriada prova não acolhe autoridades sem se convencer antes se dizem a verdade. Perguntarpor que Mittermaier diz a verdade é começar a filosofar, pensar as coisas desde ocomeço sem recurso a autoridades.

Pensei em Aristóteles. E rapidamente o dispensei, porque lamentavelmente não tinhatempo para ler Aristóteles como ele merece. Sem dar-me conta da absurda pretensão,cogitei de reconstruir a Retórica com três autores modernos: Toulmin, Mittermaier eAgnes Heller. Mas no capítulo 6 precisei de uma ajuda que só Aristóteles podia dar. Senão é a tal epistéme a capacidade que permite decidir com justiça a causa criminal, quecapacidade será? Inicialmente, restringi minha impertinência limitando-me a estudar o

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livro Z (VI) da Ética a Nicômaco, que trata das cinco virtudes dianoéticas. Mas essepouco de Aristóteles foi suficiente para eu perceber como Heidegger esteve certo emconsiderar inautênticas as pessoas que reclamam não ter tempo para nada (Heidegger,1962, p. 463). A gente encontra o tempo que precisa quando precisa dele.

E assim fui-me envolvendo com a teoria da prova, encomendando e lendo materialnovo. Como estímulos positivos, refiro a compreensão que ganhei da Tópica aristotélicano modo explicado por Slomkowski, e o livro de Paul Ricoeur chamado A memória, ahistória, o esquecimento. E percebi que sem querer estava já construindo a minha teoriada prova, que mesmo sem inventar coisa alguma resultará bem original, pois reúne emsua composição conhecimentos da filosofia e das teorias da história associados a umelemento que faz falta em muitos estudiosos do direito: minha experiência que somahoje 17 anos em audiências criminais, inquirindo testemunhas, vítimas e acusados. Se ateoria é um bem que pode ser abusado, se há bons juízes que se estragam quando secandidatam ao doutorado e começam a estudar, por exemplo, garantismo, também aexperiência é palavra ambígua. Alguns congelam-se de tal modo em preconceitos quenunca adquirem experiência, apenas antiguidade.

Como se organiza esta teoria da prova?

A inspiração na Retórica aristotélica, com seus três livros, provou ser útil para organizartema tão vasto, que dividirei em três partes.

Na primeira – Elementos – elaboro aspectos introdutórios, discutindo temas como: queé prova? Que significa provar algo? Que tipos de prova existem? Que capacidademobilizamos para julgar a prova? Que significa objetividade? E imparcialidade? Qual éo princípio de uma teoria moderna da prova? Que papel joga, se é que algum, apresunção de inocência numa teoria da prova? Que significa a expressão “ônus daprova”? É possível falar em repartição do ônus da prova no processo criminal? Quesignifica a expressão “dúvida razoável”?

A segunda – Testemunhos – trata da interpretação da prova. Excluo a perícia,remanescente de ciência numa teoria da prova, de modo que posso considerar todas asprovas no gênero do testemunho, que dividirei em mudos (indícios, documentos) efalados (testemunhas, vítimas e acusados). O gênero abrangente propõe revalorizar oindício. Se toda teoria quer lançar alguma luz na neblina dos preconceitos correntes,aqui é onde mais se precisa de um novo olhar. Entre os comentaristas contemporâneos,pelo menos Nucci reconhece como um fato que “há muito preconceito contra essaespécie de prova” (Nucci, 2008, p. 514). Esse fato me espanta. Pergunto: de onde vemesse preconceito? Sublinho a pergunta, porque ela constitui o fio condutor de toda estainvestigação. Adianto apenas que esse preconceito é uma espécie de resistência contraa modernidade. Um lapso, por instinto, na imaginação pré-moderna da certeza legal,que nasce do medo à contingência, cuja consciência é característica existencial dacondição moderna.

A terceira parte – Argumentos – dedica-se à dificuldade de demonstração da prova.Aqui precisaremos de uma teoria da argumentação para não comprometer nossa certezacom demonstração frágil das garantias de nossas conclusões. E também precisaremos dealgum treino na identificação de falácias e no modo eficaz de construir refutações àviolência sofística das demonstrações falsas.

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Que valores informam esta teoria da prova?

Toda teoria elabora-se implicitamente sobre alguns valores. O melhor a fazer éapresentá-los claramente desde o começo. Adoto como valor que todos os crimes devemser punidos e também que apenas os culpados devem ser punidos. Não há contradiçãoentre ambos, que são ideias reguladoras, utopias que podemos realizar apenas de modoaproximado. O desmascaramento dessas utopias como ilusão é irrelevante. O problemade não darmos conta de todo o serviço, que alguns elaboram como dilema entreobrigatoriedade ou discricionariedade seletiva na apuração criminal, é real e relevante,mas não diz nada numa teoria da prova, pois aqui já decidimos antes que vale a penainvestigar, encontrar provas e punir os culpados. Ética, social e politicamente não é umvalor admitirmos que possam existir crimes perfeitos que não serão punidos. Existemcrimes que quase não deixam vestígios. Um caso desses é o do filme policial canadense,de Noël Mitrani, The Kate Logan Affair (2010), lançado entre nós como Traiçãoperigosa. Mas não existem crimes absolutamente sem vestígios. Em seu ensaio sobreMoisés e a origem do monoteísmo, Freud concluiu: é sempre mais fácil cometer crimesque apagar-lhes os vestígios. Por mais cuidadoso que seja, o criminoso não conseguedeter o acidental, por exemplo, um botão que lhe caiu da camisa e será encontrado juntoao corpo da vítima. Vestígios sempre existem. O que não sabemos é se as provas serãosuficientes para termos certeza da justiça da condenação. A teoria da prova vem paraajudar-nos nesse terreno difícil e paradoxal.

O terreno é paradoxal porque pessoas justas existem e elas não precisam de filosofia,lógica ou ciência para acertar em seus julgamentos. Não se pode convencer alguém a serbom e justo pela força da razão, ou dos argumentos. Por isso a fórmula que expressa afilosofia moral de Agnes Heller diz: “pessoas boas, decentes, existem; como elas sãopossíveis?” Porque elas existem, compreendemos o limite de uma teoria moral, e assim,de uma teoria da prova: só o que se pode fazer é compilar lições da experiência própriae da tradição. Como escreve a filósofa, concluindo sua filosofia moral, “Bertold Brechtcerta vez observou ‘como é formidável a tentação do bem’ O que a filosofia moral podefazer é somar seus próprios argumentos a essa formidável tentação” (Heller, 1990, p.231).

Nosso terreno também é difícil porque começa com temas de jurisprudência e nosconduz rapidamente a questões de alta indagação nos campos de filosofia e lógica,da natureza e dos limites do entendimento humano. A primeira dificuldade é resolverteoricamente se é verdade que o juiz de carreira julga a prova com as mesmascapacidades mentais empregadas pelo jurado, como sustenta com veemência a teoriada prova de Mittermaier.

Por onde começa esta teoria da prova?

Porque o tema é difícil, ainda é seguro prosseguir no método aristotélico de exame dasteorias antecedentes. Mas se Aristóteles ainda podia examinar todos os seusantecessores, nós já não podemos, e precisamos selecionar alguns. Selecionei quatroteorias representativas. E o que elas representam?

Aristóteles representa o começo, a primeira teoria da prova digna desse nome.

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Jeremy Bentham e Mittermaier representam o ponto de vista moderno, visto pelatradição do direito inglês, de um lado, e do direito continental, de outro.

E Luigi Ferrajoli representa o desafio do espírito do presente. Não importa que o autornão seja tão respeitável como jurista e filósofo: importa apenas que ele é o poderoso paido garantismo, a instituição imaginária dominante entre nós. Uma teoria da prova quedesprezasse esse poder talvez ficasse mais sofisticada, mas seria intempestiva, correndoo risco de ser praticamente irrelevante.

2. Elementos da tradição: Aristóteles.Aproximação

junho 20, 2012

Raffaelo Sanzio, afresco conhecido como Escola de Atenas (1506-1510) em detalhe, Platão eAristóteles

Que é prova? Que significa provar? Que tipos de prova existem?

Proponho encontrar respostas na casa de Aristóteles. Não vai ser fácil. Tomemos fôlegopara escalar montanhas de dificuldades até pisar em terra firme. A primeira dificuldadede quem pede para entrar na casa dos outros é a de encontrar um modo de comunicaçãopossível com o dono da casa. Reconheço minha impertinência em transitar pela moradado Mestre sem tempo para ler sua filosofia como ela merece ser lida. Mas como é queela merece ser lida?

Numa palavra: com devoção.

Heidegger, quando jovem, desdobrou um pouco o conceito: devemos esquecer oAristóteles de uma tradição de distinções terminológicas sem vida, como “umescolástico medieval ou um professor alemão”, para perceber o investigador, vivo e

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ativo em seus movimentos de pensamento. Precisamos experienciar como “somos muitofracos e despreparados” para essa tarefa, único caminho para começarmos a ter umpouco de “respeito diante das verdadeiras obras do espírito” (Heidegger, 2007, p. 53,91).

Mais concretamente, Aristóteles merece ser lido na totalidade do que sobreviveu dosseus escritos, no idioma original, para então escolhermos os temas de nossa predileçãopara sabê-lo de cor. Nesse patamar de exigência uma vida não basta. Mas o cânonefunciona como utopia para chegar ao nosso melhor possível. Decorar também é sabercom o coração, como se diz no inglês: by heart. Quando se decora a boa poesia, a genteàs vezes nem sempre entende, mas ela fará sentido no momento exato em queprecisarmos. O filósofo árabe Ibn Sina (Avicena) confessa que leu a Metafísica 40 vezesaté sabê-la de cor. Mas não entendeu nada, pelo menos até encontrar o comentário de al-Farabi. Estudiosos supõem que uma das dificuldades de Avicena estava na tradução dogrego para o árabe, pelo emprego de várias palavras desconhecidas na língua de destino(Avicena, 2005, p. xxiv). Eu com certeza não decorei toda a Retórica, mas quase sei decor em grego as páginas que nos interessam aqui, entre o início, 1354a1, e a linha1359a37. O tanto de grego que aprendi no Greek-Latin Institute de Nova Iorque, em1995, não me possibilita acesso fluente ao texto, mas dá para o segundo melhorcaminho, de leitura do original com tradução ao lado. Utilizarei o texto da Retórica daLoeb Classical Library (Aristotle, 1926). Referências ao texto grego serão dadas nomodo corrente de citar Aristóteles, por remissão às páginas da edição de ImmanuelBekker (Berlim, 1831), a primeira edição completa (do que fora descoberto até então)dos originais do filósofo, que apresenta o texto em duas colunas, razão por que após onúmero de página indicam-se as letras ‘a’ ou ‘b’, paginação referida em quase todas asedições posteriores, seguidas da indicação das linhas onde localizar o texto citado.Traduções serão indicadas pelo nome do editor ou do tradutor, no formato moderno.Justifico no arquivo anexo algumas convenções para transliteraçoes i .

Quem se sabe impertinente toma cuidados, devidos por amizade à filosofia deAristóteles, mas necessários assim que percebermos tudo que se perde de Aristóteles emqualquer tradução. Em nosso tema, se confiássemos nas traduções disponíveis, eminglês e em português, ninguém enxergaria onde está a teoria aristotélica da prova.Diriam que minha proposta é reducionista, que eu não compreendo a grandeza dofilósofo limitando-o a uma teoria da prova de utilidade forense. Em edição respeitável,como a de Oxford das obras completas, o tradutor da Retórica, W. Rhys Roberts,enfeitou tanto o texto que se deu ao luxo de surrupiar palavras importantes, como pístis,que também significa prova. Como encontrar uma teoria da prova sem a palavra prova?Roberts achou mais elegante verter písteis éntechnon (1354a13, provas construídas) pormodes of persuasion (Barnes, 1984, p. 2.152). A tradução brasileira disponível, deEdson Bini, parece ter traduzido Aristóteles literalmente, mas em tradução literal daversão em inglês da edição Oxford. Um pouco adiante, para a expressão bastante sonora“corpo da prova”, Roberts empregou substance, o que dá à teoria um charme metafísicoque o texto não tem e até dispensa. Por coincidência, se não estiver copiando, Binitraduziu “sôma tês písteos” (1354a15) por “substância da persuasão retórica”, e paradar a impressão de ter traduzido do grego apresentou no rodapé apenas a palavracorpo, sôma, sem dizer de quê, i.e., que é o corpo da prova. Justificando o sumiço daprova-pístis e sua opção por meios de persuasão, Bini escreve em nota de rodapé:“contemplamos aqui e na sequência o sentido lato e genérico da palavra, e não o estritoe específico de prova judicial, uma vez que Aristóteles distingue (e até, em certa

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medida, privilegia) uma retórica pública, política, além da retórica judiciária; de resto, osentido lato não exclui, mas inclui o sentido estrito” (Aristóteles-Bini, 2011, p. 39). Oargumento impressiona, mas está errado numa questão fundamental. Com esses modosde persuasão, genéricos, desde a abertura do livro perde-se a diferença deAristóteles em relação aos retóricos precedentes: e aí perde-se tudo!

Mesmo que não se empurrem melhoras de estilo ao texto telegráfico de Aristóteles, feitode notas para exposição oral, quase como um power-point, não existe meio de fugir aodilema do tradutor-traidor. Os termos mais relevantes envolvem tradução e interpretaçãosobre o modo como são empregados em cada passagem, pois são todos polissêmicos. Eainda seria exigível do bom tradutor a sensibilidade de evitar palavras com sentidoscarregados de modernidade, ou, quando inevitáveis, explicar a devida diferença emrodapés, algo que torna a tradução uma tarefa dificílima, pois algumas diferençasexigem mais espaço que o disponível nos rodapés.

Heidegger insistiu em que a phýsis aristotélica não corresponde a nossa Natureza, seriaalgo como “a palavra que funda originariamente o Ser, como presença, aquilo queemerge por si mesmo” (1991, p. 181). Esta é uma interpretação de Aristóteles pelafilosofia de Heidegger, mas o próprio Aristóteles ofereceu-nos um catálogo de sentidosem que se usa a palavra, e nenhum deles é próximo do sentido que tem a modernainstituição imaginária chamada Natureza. Não conseguimos pensar a palavra naturezadesvinculada do direito natural, com seu credo de que todos nascem livres e igualmentedotados de razão, a tal ponto que esquecemos que isso não era natural na Antiguidade.Ao tradutor será impossível não transformar phýsis em natureza, porque afinal é precisotraduzir. Mas se soubermos afastar a modernidade inerente à palavra traduzida, nãogastaremos fosfato criticando a desumanidade ou o espírito tacanho do filósofo porconsiderar a escravidão natural. E então poderemos começar a admirar a novidade doseu ponto de vista na filosofia política. Pois o filósofo concebe phýsis, entre outrossentidos que a palavra tem, como aquilo que é assim em todos os lugares, e tambémcomo o que contém seu eídos e sua morphé (forma e matéria-figura, como os animais esuas partes, Metafísica, Delta, 1015a5-7). Deixando de olhar apenas para os ideais ouformas de governo, o filósofo busca na matéria existente um começo novo: observa omodo de produção da vida social. Algo comum em todas as póleis era o modo deprodução escravista. Aqui, como na ética, Aristóteles introduz na filosofia a novidadeda imanência do ser social (Heller, 1983, p. 200). Em lugar de dicotomias rígidas, elemaneja a categoria da particularidade, da mediação, daquilo que está entre o geral (omodo de produção escravista) e o particular (as diferentes cidades com suas leis).Aristóteles não considera impossível que exista conflito entre essas duas ordens, nemque para obedecer a uma ordem geral se deva desobedecer a uma ordem particular, “talcomo aparece na Antígona de Sófocles” (Heller, 1983, p. 200, com citação daRetórica). Como filósofo pós-ilustrado, Aristóteles consegue recusar a unilateralidadeda ideia platônica sem render-se à unilateralidade relativista dos sofistas. Observa amatéria política como aparece em todas as póleis, mas a submete aos cânones do ideal,como fará com matéria tão característica ao espírito grego, a instituição chamadapaideía (que não me arrisco a traduzir nem explicar telegraficamente: Werner Jaegerescreveu um livro sobre ela), ao triplo cânone do adequado (tò prépon), do justo (tó teméson) e do possível (tò dýnaton) (Política, 1342b34-35). Em suma, faz teoria política:observa as coisas com o olho da alma, não é mero colecionador de formas ouenciclopedista.

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Um zoólogo em ação

Werner Jaeger observa que não foi fácil a Aristóteles persuadir os jovens atenienses,acostumados ao jogo abstrato das ideias e ao duelo verbal ático, a dedicarem-se àinspeção de insetos ou à nojenta dissecação das partes de animais. O método da divisãoconstitui a alma de sua filosofia, que não forma um sistema, porque o método da divisão(diaireîn) não é um princípio de construção, mas instrumento de investigação viva(Jaeger, 1946, p. 386, 428 e 426). A dissecação dos animais o filósofo estenderá a todosos problemas sociais e intelectuais. Buscando compreender como se movimenta opensamento, dissecará os lógoi, os discursos que formam a tradição de duelos verbaisno agón ateniense, para ver como são construídos, como é que se movimentam emdireção à conclusão. Essa dissecação será objeto dos cursos Tópica, Refutaçõessofísticas e Retórica. Nosso interesse volta-se para a Retórica, porque aí se constrói suateoria da prova, cuja divisão primordial, a partir do radical téchne, formará as classesfundamentais das písteis (provas). Em comum com a Tópica, aparecerá aqui outrotermo fundamental formado pelo radical dóxa: o éndoxon. Peço licença para mantê-losna dicção original, com algumas explicações que nos auxiliem a nos aproximar domovimento do pensamento do filósofo.

As divisões essenciais são produzidas pelo uso dos prefixos én e do alpha privativo. Oén forma palavras que têm algo, e seu contrário é formado pelo alpha privativo.O estudo da alma, por exemplo, começa pela divisão entre o que tem alma (émpsychon)e o que não tem alma (ápsychon). Discutindo os méritos do método da divisão, que nãofoi invenção aristotélica, Heidegger observa que tudo dependerá de como se divide, poisas divisões devem ser corretas e abrangentes, mas nem tudo que é correto e completo dáà divisão caráter essencial. Pois “a divisão de todos os humanos de nosso planeta empossuidores de motocicleta e não possuidores de motocicleta tanto é completa comocorreta”. Mas perguntaríamos com razão: e ela serve para quê? Nosso conhecimento sóparece avançar se a divisão for essencial. E isso significa que o método de dividir nãopode ser arbitrário: “uma divisão não pode ser acrescentada do exterior ao que vai serdividido” (Heidegger, 2007, p. 126, 7). Prosseguindo no tema da alma, depois de dividiro que tem e o que não tem alma, o filósofo passa a dividir a própria alma entre a parteque tem lógos e a que não tem lógos. E aqui naturalmente enfrentamos o problema dolégetai pollachôs que Aristóteles usa toda hora, isto é, que todas as coisas são ditas demuitos modos, fórmula que representa “o timoneiro de toda a sua filosofia” (Heidegger,2007, p. 21, 33). Esse lógos é polissêmico. Pode significar linguagem, ou o que a línguafrancesa expressa por raison d’être, ou ainda: argumento, discurso, razão, cálculo, comoradical do que chamamos de logística. Mas que fará um tradutor para verter numapalavra o álogon, o que não tem lógos? Dirá que é irracional. Mas o problema éque lógos aqui significa mais propriamente linguagem (mas não em todo lugar, nemabsolutamente, como reivindica com abuso o paradigma da linguagem, “o maisimperialista dos paradigmas”, na expressão da filósofa). O álogon contém ossentimentos, e por isso também se expressa e a seu modo coopera com o lógos,ele apenas não fala diretamente através da linguagem, mas pode ser lido ecompreendido: “o mundo aristotélico se caracteriza pela ideia de um álogon descritívelpela lógica e vinculado à experiência; um álogon, pois, cuja intelectualização potencialé quase infinita. Por isso, não apenas não tem nada que ver com o irracional, comotambém se poderia acusar o filósofo de não ter rompido com o racionalismo éticotradicional, apesar de sua aguda crítica ao pensamento ético de Sócrates” (Heller, 1983,p. 252). Na teoria da prova, encontraremos a mesma divisão essencial entre provas que

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são sem téchne e as que são com téchne (átechna e éntechna). Quando chegarmos lá,discutiremos a divisão a partir desse termo que divide, téchne, radical de palavras queconhecemos bem, como técnica, tecnologia. Antes, exploremos um pouco o termofundamental da teoria da prova.

Pístis

Pístis é prova. Mas também é a compreensão que ganhamos de algo a partir da prova, eassim pode significar convicção. Pode também significar argumento, que às vezes é osentido que tem a palavra lógos. Então pístis será lógos?

A pergunta é interessante porque a tradição acostumou-nos a ver pístis como Fé, oabsoluto outro do lógos, a Razão. Mas isso não é correto, pois a relação entre os doistermos é de complementaridade. O inventor da lógica disse muito claramente que ológos só é capaz entre o primeiro e o último termo da cadeia lógica: não é competentepara compreender nem o primeiro nem o último. À capacidade que apreende o primeiroe o último termos Aristóteles chama noûs (lê-se nús). Hoje seria melhor substituirmosesse noûs por pístis. Porque na tradição filosófica o noûs associou-se ao imaginário daintuição intelectual: uma espécie de oráculo que possibilita chamar de conhecimentoqualquer coisa que se queira, como a definiu Hegel, quando o correto “em filosofia,quando queremos estabelecer alguma coisa, [é] exigirmos provas” (Hegel, 1995, vol.III, p. 526). E ainda hoje precisaremos recorrer ao termo pístis, porque “sem pístis nãoexiste lógos” (Heller, 1999, p. 231). Nosso problema será compreender como a relaçãoentre pístis e lógos se inverteu, o que tentarei explicar reportando-me à teoria damodernidade da filósofa, ainda nesta primeira parte, quando estudarmos o tema maisdifícil em nossa montanha de dificuldades, a saber, o princípio de uma teoria modernada prova. Por enquanto, consideremos que pístis não é fé, mas prova econvicção: parentesco que Heidegger (1962, p. 300) explora na sua fenomenologia apartir da etimologia de Überzeugung (convicção) na palavra Zeugnis (testemunho).Péssima escolha a das traduções que fizeram desaparecer o sentido de pístis paratransformá-la em meio de persuasão, porque há meios de persuasão que não empregampísteis: existem modos de convencimento que não empregam provas. São os métodosdos retóricos antecedentes, incluindo os chamados sofistas, professores de sedução. Asedução, em última instância, existe como algo natural, como o poder. Lessing, noclímax de drama moderno, fez sua heroína Emília Galotti perguntar: que é o poder? Eresponder: o poder não é nada: a sedução é o verdadeiro poder.

O Mestre não desconsidera os métodos ou estratagemas da sedução, porque existem, eleapenas não os ensina na Tópica, para que sejam usados, mas na Retórica enas Refutações sofísticas para que a gente se proteja deles. E está certo: para quem crênas suas razões, ou quer procurar pela verdade, a sedução é inessencial, pois pareceexigir alguém que queira ser seduzido: onde não encontrar esse terreno fértil, é métodoque não será seguro.

A primeira aparição da palavra pístis na Retórica se faz na 13ª linha (1354a13). Mas nãoconvém pular as 12 primeiras. Aristóteles começa o curso com uma definição geral.A Retórica é o antístrophos da Dialética. Freesman indica em rodapé que o termoprovém da teoria da composição das odes corais, e o traduz como counterpart. ARetórica seria a contraparte da Dialética? Pensamos em contraparte como o outro ladoda moeda, mas talvez devêssemos enfatizar que são dois lados da mesma moeda. Porque

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um pouco adiante Aristóteles redefine a retórica como uma parte, ou talvez uma coisaparecida com a Dialética, sendo ambas “dynámeis tinès toû porísai lógous”(1356a32), capacidades através das quais nós construímos argumentos. Se elas são tãoparecidas, vale a pena saber o que seja essa tal Dialética, que o filósofo desenvolveunum curso chamado Tópica. Alguma compreensão da Tópica ajudará a visualizar omodo de argumentação empregado pelo filósofo na Retórica e a compreender o que eletrouxe de novidade nesse terreno.

Encerrando nossa aproximação ao tema, já que empreendemos algum esforço paraesquecer os preconceitos que envolvem o Aristóteles da tradição, não seria mal esquecertambém o título Retórica, e vermos nele a teoria aristotélica da prova, apostoexplicativo cuja legitimidade ainda pretendo demonstrar. Porque a Retórica deAristóteles é algo completamente novo. Antes e depois dele, a retórica permaneceu umtipo de oratória bem definida pelo poeta Mário Quintana, quando observou que essaoratória

“bramidora e gesticulante ainda em uso em certas localidades” talvez seja apenas “umaforma literária da epilepsia” (Quintana, 1979, p. 56-7).

3. Elementos da tradição: Aristóteles.Que é prova?

julho 3, 2012

À primeira vista, parece que o filósofo não seguiu na Retórica o método de examinartodas as opiniões disponíveis. Mas se consultarmos Diogenes Laertius, biógrafo dosfilósofos antigos, veremos que do total de 445 mil e 270 linhas creditadas a Aristóteles,há vários títulos sobre o tema: Grylus, talvez um diálogo; Sobre os entimeimasretóricos; Divisões dos entimeimas; e ainda uma compilação de todas as artes(Synagogè Technôn) que possivelmente reunisse as opiniões dos retóricos precedentes(Laertius, 1972, p. 465-475). Na Retórica que sobreviveu, em três livros, o filósofo“resume, não glosa”, como diz a toda hora o Riobaldo em Grande Sertão: veredas.

Em resumo: todos os célebres predecessores tinham algo em comum, pois todosnegligenciaram o essencial e só falaram do acessório. Os retóricos ensinavam técnicasde persuasão para o orador conquistar o ânimo do juiz a seu favor, movendo-o para asimpatia ou para a antipatia. Mas nas cidades bem governadas, como se vê na instituiçãodo Areópago ateniense, os juízes têm por missão decidir se o fato aconteceu ou nãoaconteceu, e não são tão influenciáveis. Logo, argumenta Aristóteles, a técnica que elesensinam corre o risco de perder o objeto. O essencial é ensinar a provar os fatos.

Mas o que é prova?

Uma primeira definição aparece de modo negativo, no confronto com a tradição. Provaé tudo que os retóricos negligenciaram: pois eles não falaram do enthýmema. Mas quesignifica isso? Pelo menos para Aristóteles, nada menos que a mais poderosa de todas asprovas (kyriótaton tôn písteon, 1355a7). A seguir usarei o termo em transliteraçãofonética: entimeima é o nome que o filósofo dá ao silogismo retóricoii. O objetivo do

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curso, que propõe algo novo em tema tradicional, é tornar os alunos entimeimáticos,mestres no manejo do silogismo.

E o que é um silogismo?

Breve carreira de uma palavra

Difícil prosseguir ignorando que somos modernos, saturados de tradição, de conceitos epreconceitos.

O silogismo é frequentemente abusado como trivialidade ou arbítrio. Schopenhauer, porexemplo, querendo desqualificar Hegel, disse que ele operava com a lógica da pata deganso, segundo o silogismo “todos os gansos têm duas pernas – Você tem duas pernas –logo você é um ganso” (Schopenhauer, 1965, p. 17). O preconceito é solo fértil para ohumor, como prova a piada clássica do português que aprendeu no Brasil a “lógica doaquário”. A crítica a Hegel é ferina mas injusta, pois ele denunciava na sua Lógica oestado lastimável em que se encontrava a teoria do silogismo, e ofereceu um exemplode abuso parecido na fórmula “Todos os cristãos são humanos – Os judeus não sãocristãos – logo, os judeus não são humanos” (Hegel, 1969, p. 686). O exemplo é deabuso do silogismo, não de antissemitismo: Hegel não era antissemita, e opunha-se comveeêmencia ao antissemitismo do jurista Savigny, que considerava os judeus (comoEduard Gans, entusiasta da filosofia de Hegel) inadmissíveis na universidade, poranalogia com o código prussiano que no seu § 357 os declarava incapazes de servircomo testemunhas em processos criminais (cf. Pinkard, 2000, p. 530-534).

Não estou certo de que “não apenas o silogismo é racional, como também tudo que éracional será um silogismo” (Hegel, 1969, p. 664). Mas em nosso tema, é difícil nãoconceder que a decisão criminal é um argumento racional que funciona, numa vistaaérea, como um grande silogismo.

O problema é que a definição geral de silogismo dada por Aristóteles mais atrapalha queajuda. Silogismo é um tipo de argumento (lógos) em que de algumas coisasestabelecidas como premissas, outra coisa, a conclusão, segue [necessariamente] comoconsequência unicamente das premissas (Top A 1, 100a25-27, APr A 1, 24b18-20).Desde logo, dois problemas: 1. A definição é algo simplificada; 2. Precisamos retirardela a palavra necessariamente (ex anánkes). Porque a decisão judicial é um silogismo,mas não é simples nem fácil, e não é uma dedução necessária, apenas possível.

O silogismo tradicional que conhecemos: “Todos os homens são mortais – Sócrates éhomem – logo, Sócrates é mortal”, chamado pela escolástica pelonome Barbara (Pätzig, 1968, p. 1), é uma figura que não nos serve para nada, porqueenvolve um padrão de dedução matemático-geométrico de prova. É um argumentoanalítico. Mas se apenas os argumentos analíticos fossem conclusivos, no sentido doslógicos profissionais, de onde tiraríamos a certeza de nossas conclusões em outroscampos, como a jurisprudência, a ética?

Parece consensual que “também em outros campos chega um momento em queapresentamos, em suporte às nossas conclusões, dados e garantias plenos e sólidos obastante, no contexto, para ser desnecessária qualquer investigação adicional – assim,

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neste sentido, os argumentos não-analíticos também podem ser conclusivos” (Toulmin,2006, p. 334).

A decisão judicial então será um silogismo-não-analítico. E não muito simples. Nemcategórico. Retirando da definição o advérbio necessariamente, que resta de lógica?

Vejamos outro personagem que lida com provas: o historiador. Também para as teoriasda história a lógica tradicional não servia para nada, pois sempre parecia haver entre aspremissas e a conclusão uma espécie de salto lógico. A solução é que talvez não existaproblema algum nesse salto. Robin Georg Collingwood reporta que apenas em fins doséculo 19 a ciência da história conseguiu chegar a um padrão de desenvolvimentocomparável ao das modernas ciências da natureza, e estas desenvolveram-se desde ofinal da chamada Idade média em franca e inevitável revolta contra a lógica aristotélica,uma lógica de força compulsiva. Mas na história nós pensamos a partir do particular,que é sabido (os vestígios, os traços, as pegadas) em direção ao desconhecido. Éessencial a esse tipo de pensamento que não possa existir uma compulsão lógica queobrigue a pular das premissas para a conclusão. Mas disso não decorre que não existaverdade no fato histórico. O historiador afirma que a guerra ocorreu, jamais que deacordo com todas as probabilidades teria ocorrido uma guerra. E tudo isso obedece auma lógica diferente, sem compulsão. O raciocínio do historiador, quando prova aexistência de um fato, é um argumento de permissão, e este é um “sentido perfeitamentelegítimo para a palavra provar (approuver, probare)” (Collingwood, 1956, p. 255).

Também podemos dispensar da lógica tradicional a rigorosa distinção entre dedução eindução, que numa teoria da prova judicial significa apenas querela em torno de nomes.Pois não há diferença prática na vida real entre induzir e deduzir:

“Sherlock Holmes … jamais hesitou em dizer que deduziu, por exemplo, que umhomem esteve recentemente em East Sussex pela cor e textura dos fragmentos de soloque deixou no tapete do gabinete; e falava como personagem da vida real”. E “comoRyle infere, o sentido da palavra ‘deduzir’ é, efetivamente, o mesmo de ‘inferir’; demodo que sempre que houver garantias estabelecidas ou procedimentos determinados decálculo, pelos quais se possa passar dos dados para uma conclusão, pode-se falarapropriadamente de ‘deduções’ (Toulmin, 2006, p. 173-4). Hegel (1969, p. 690) chega achamar a indução de “silogismo da experiência”.

Aqui chegando, pergunto: se nos voltamos com tanta veemência contra Aristóteles, porque retornar ao filósofo?

Na lógica aristotélica, interessa-nos um curso específico, a Tópica. Retornar aAristóteles é abuso de linguagem, pois não posso voltar a um lugar onde jamais estive.Quase se poderia dizer, onde jamais estivemos, pois os lógicos negligenciaram esselivro, que pensavam tratar-se de simples exercício preparatório da lógica analítica,considerada a verdadeira lógica do filósofo, mais formal, mais elegante do ponto devista matemático.

Meu interesse aqui é devedor da tese de Slomkowski sobre a Tópica, guia seguro paraentrar num aposento fechado a chave na casa do Mestre. Eu pelo menos não teriaenxergado nada sem um bom cicerone. Para provar que a Tópica é um livroespecialmente difícil bastaria dizer que o filósofo não definiu aí o que é um tópos, e que

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a situação encontrada por Slomkowski, em revisão completa de tudo que fora escritosobre o tema, era ainda a mesma descrita pelo lógico Bochenski nos anos quarenta doséculo 20: “até agora ninguém teve sucesso em dizer com brevidade e clareza o que sãoos tópoi” (Slomkowski, 1997, p. 3).

Slomkowski provou serem os tópoi (plural, singular tópos) estruturas internas dosilogismo, mais precisamente hipóteses: argumentos auxiliares na construção desilogismos hipotéticos. Sua descoberta é interessante para nós porque o silogismo dadecisão judicial é um tipo especial de silogismo hipotético.

A fórmula do silogismo hipotético é: “Se P, então Q”. Na técnica tradicional de redaçãoda denúncia, usa-se o verbo agir no gerúndio, seguido da conclusão, a aplicação depena: assim agindo. A expressão é fórmula abreviada de: Se é verdade que o acusadoagiu assim, então disso decorre que deve receber a sanção correspondente prevista emlei. A oração formada por essas duas palavras corresponde a uma hipótese: sua formagramatical no nosso gerúndio corresponde ao genitivo-absoluto grego, forma frequenteno silogismo hipotético (Slomkowski, 1997, p. 99).

Nada aqui será fácil, porque dentro dessa hipótese que constitui apenas a primeira partedo silogismo hipotético precisaremos construir sub-argumentos auxiliares. Mas aindaveremos como usamos alguns tópoi com naturalidade, mesmo não sabendo o que elessignificam. A gente chega a duvidar que os lógicos discutam a sério se Aristóteles usavaa lógica que ensinava, ou apenas a ensinava. Para nós, parece óbvio que a gente usanaturalmente alguma lógica, mesmo sem conhecer suas fórmulas. É o que sustentaToulmin. Entre os estudiosos da lógica aristotélica, Pätzig também sustenta algoparecido: “Wieland em geral está menos disposto do que eu a supor que Aristóteles‘conhecia’ as regras de lógica que utilizou em seus argumentos. [...] No entanto, aquestão não é tão simples. ‘Usar’ uma lei da lógica e ‘conhecê-la’ não são, segundo meparece, algo relacionado do mesmo modo como estão relacionados ‘usar’ e ‘mencionar’um nome. Entre o uso e o conhecimento claro de uma regra pode haver estágiosintermediários – nós podemos estar meio-cientes da regra. Pode-se argumentar segundoalguma lei de lógica sem perceber que essa lei exista, ou mesmo que é uma lei delógica. Pode-se também estar convicto de que o próprio argumento é uma questão delógica, sem ter capacidade de formular a sua lei ou prestar contas de sua validade”(Pätzig, 1968, p. vii-viii).

Aristóteles descobriu a lógica como método, técnica ou ciência. Mas evidentemente nãoa inventou. A lógica da Tópica é dissecação dos elementos internos dos lógoi praticadosem Atenas. A lógica existe. Aprendemos a pensar de modo hipotético desde crianças,quando ouvimos: se você sair sem casaco, vai pegar um resfriado. A lógica que usamosnaturalmente pode ser comparada a um relógio que funciona. Nosso problema é quandoele atrasa e não sabemos operar o acerto dos ponteiros: precisamos abrir o maquinismoe ver o funcionamento interno. Para isso, Aristóteles é bom mestre. E a melhor fonte é aTópica, não a teoria do silogismo. O próprio Aristóteles nos direciona para a Tópica, emsua teoria da prova, na primeira apresentação do tema: a Retórica é o outro lado damoeda chamada Dialética.

Mas nosso retorno (por força de expressão) à Tópica, segue ainda por outra via bemsurpreendente: Luigi Ferrajoli.

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A teoria do garantismo penal pode não ser boa ou nem mesmo minimamente científica,mas tem o mérito de aproximar-se da decisão criminal pelo menos tentando examinarseu funcionamento interno. Só que Luigi Ferrajoli despachou-se rapidamente demais daprova dizendo que tudo se resolve segundo as regras lógicas de Modus ponens e Modustollens. Quem o leu poderá saber se entendeu: eu não entendi absolutamente nada.Desconfio que Ferrajoli se livrou de um tema difícil deixando-o enigmático, noestratagema erístico que Olavo de Carvalho chamou de “argumento ad auditores”(estratagema 28) em sua edição de Schopenhauer. Fala-se algo bem difícil que oauditório não conhece, e a solução parece perfeita. “Ainda que o adversário seja umconhecedor do assunto, não o são os ouvintes. Aos olhos destes ele estará derrotado”.Dá-se como exemplo o argumento que envolve conhecimentos de física para cujacompreensão “seria preciso expor todo um tratado” (Schopenhauer-Olavo de Carvalho,1997, p. 158, 160). Mesmo descobrindo no mundo virtual que as regras de lógica formala que se reporta o autor italiano são triviais (em inglês, the bread-and-butter rules offormal logic), o fato é que nós não estudamos lógica formal e não sabemos como issofunciona.

Felizmente, encontrei na Tópica de Aristóteles, guiado pela mão de Slomkowski, algoque Ferrajoli poderia ter desejado encontrar. Se Ferrajoli quis falar difícil noestratagema ‘ad auditores’, merece réplica mais difícil ainda (minha salvação é quepretendo traduzi-la no limite da minha capacidade): ”Os chamados tópoi ‘maisoportunos’ [epikairótatoi] operam como silogismos hipotéticos metalépticos, i. e., agrosso modo como Modus ponens e tollens“. Aliás, “os termos ‘Modus ponens‘ e‘Modus tollens‘ parecem ter origem peripatética, porque ponere e tollere correspondemaos termos gregos kataskeuázein e anaskeuázein” (Slomkowski, 1997, pp. 173, 129).Obviamente, ficarei devendo explicação para o termo metaléptico, um degrau maissofisticado de dificuldade que não nos será muito útil.

O movimento lógico do debate dialético se faz pela construção do argumento, como seconstrói uma casa, a partir dos alicerces (kataskeuázein = construir). Ao labor deconstruir, opõem-se objeções com o propósito de demolir esse argumento(anaskeuázein = demolir). Em ambos, quem atua quer fazer bom trabalho: construircom segurança, ou ver a casa cair o mais rapidamente possível. Para isso atacam-se osalicerces, as premissas, do argumento. Como dizemos no cotidiano: há que cortar naveia.

Não desfaço ainda o enigma de Ferrajoli. Por enquanto, descubro que Toulmin temrazão em perguntar: se ainda “há de haver quem se surpreenda ao descobrir o quantoprogrediu pouco a nossa capacidade para compreender as respostas que temos – emtodos estes séculos, desde que a ciência da lógica nasceu, com Aristóteles?” (Toulmin,2006, p. 2-3).

Se o Mestre quer deixar-nos entimeimáticos, é porque o entimeima é na realidade o“corpo da prova”, tudo que havia sido negligenciado pelos célebres retóricosprecedentes. Mas o que é essa prova de que o entimeima seria o corpo? Aristótelesadianta duas definições gerais, que desenvolverá nos três livros da Retórica: 1. Prova éum tipo de demonstração que por si mesma é capaz de assegurar a certeza sobre algo(no telegráfico grego: pístis apódeixís tis, 1355a5). 2. Prova é tudo que convencealguém (tò pithanòn tinì pithanón esti, 1356b27).

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Na ênfase na força da prova como demonstração, caminhamos pelo que hoje chamamosde teoria da argumentação. Na ênfase no alguém a quem queremos convencer, pelateoria dos sentimentos. Isso explica o arranjo do tema em três livros: o primeirocaminha pela lógica, o segundo pela teoria das emoções, e o terceiro retorna àdemonstração com ênfase no arranjo, que Toulmin chama de lay-out do argumento, paraque seja o mais eficiente possível no limitado tempo disponível. E isso compreendetudo em matéria de prova: não há mais o que inventar.

Encerrando nossa aproximação ao silogismo, observo que a palavra é composta peloprefixo syn (preposição correspondente ao latim cum) mais o radical lógos. Em relaçãoa tudo que exige prova, só existem duas opções: ou somos vencidos pelo argumento daforça, ou somos convencidos pela força do argumento (silogismo, com lógos).Aristóteles inovou a tradição porque descobriu a lógica das provas.

Mas que lógica é essa? Que significa provar?

4. Elementos da tradição: Aristóteles.Que lógica é essa a da dialética?

julho 7, 2012

Bom começo em tema difícil é colher a opinião geral consagrada nos dicionários. Para overbete Dialética, lemos na wikipedia: “Aristóteles define a dialética como a lógica doprovável; do processo racional que não pode ser demonstrado”. E o que é o provável?Segue citação: “Provável é o que parece aceitável a todos, ou à maioria, ou aos maisconhecidos e ilustres” (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Dial%C3%A9tica> acesso em5/7/2012).

A citação é legítima (Tópica, linha 100b21-23). Mas fora de contexto éincompreensível: ou parece banal ou conhecimento cabalístico. Deixemo-la à parte porenquanto. O problema da verdade consagrada começa no aposto explicativo para alógica do provável: processo racional que não pode ser demonstrado. É preciso dizeralgo mais: que não pode ser demonstrado com o rigor analítico do silogismo analítico.Pois não foi o Mestre quem definiu prova, na Retórica, como um tipo de demonstração(pístis apódeixís tis)? Como conduzir um processo racional sem algum tipo dedemonstração? Como é que se prova um argumento? Retornamos à estaca zero.

O mal-entendido é mais um problema de tradução de uma palavra fundamental naanálise aristotélica da dialética.

Aristóteles não inventou a dialética. Ele submeteu à dissecação os discursos correntesem Atenas, não necessariamente contemporâneos. Do que sabemos por WernerJaeger, Aristóteles passou cerca de vinte anos estudando filosofia na Academia dePlatão. E como era normal, começou imitando o mestre na composição de diálogos.Mas talvez tenha percebido que não tinha talento para esse gênero. Ou simplesmentetinha um gênio diferente. Jaeger curiosamente o qualifica como um gênio menor: “que

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um homem de talento tão profundamente original tenha permanecido por tempo tãolongo sob a influência de um gênio extraordinário de natureza totalmente diferente, e setenha desenvolvido inteiramente à sua sombra, é um feito sem paralelo na história dosgrandes pensadores” (Jaeger, 1946, p. 19). Mas o que é um gênio menor? E faz algumsentido a genialidade em filosofia? De qualquer modo, Aristóteles não tinha o espíritotrágico da Ática, mas o espírito observador próprio à filosofia da natureza praticada naJônia. Era filho de médico. E logo procurou compreender como funcionavam aquelesdebates atenienses, procedendo com os discursos do modo como examinava insetos epartes de animais, para descobrir de que partes são feitos, por onde começam e comose movimentam no rumo da conclusão. A Tópica é reconhecidamente obra de juventudedo filósofo. Aí ele opera a dissecação dos argumentos dialéticos correntes. Não deve serretirada do espaço do debate dialético real. Como argumentam os filósofos? ComoSócrates argumenta?

Ainda hoje não temos clareza de que os filósofos não argumentam para convenceroutros filósofos, mas debatem num cenário de disputa (agonístico) pela alma doauditório. Criticando Richard Rorty, Agnes Heller sustenta que filosofia e literatura sãogêneros distintos. A obra literária convive alegremente com todas as outras, nãocompete com ninguém, é por isso o espelho de nossa solidão existencial; a filosofia, aocontrário, é de briga, espelha a nossa sociabilidade-associal (Heller, 1990, p. 94). Quemdeclara o vencedor é o auditório. O locus clássico é o diálogo dramático de Platão queconhecemos por República (Politeía). Sócrates sabe que não convencerá Trasímaco:ambos disputam pela alma do homem bom e sensato, retratado no personagem Gláucon,que representa o papel do coro das grandes tragédias. A evocação moderna desse drama,lembra a filósofa, foi retratada por Thomas Mann no debate entre Naphta e Settembrinipela alma do jovem Hans Castorp (Heller, 1983, p. 94).

Começando pelo começo: como tem início um debate dialético? A descobertado método, sua organização lógica, é mérito de Aristóteles: o debate dialético deveobrigatoriamente começar com uma prótasis (proposição) endóxica (palavra forjada apartir do grego éndoxon). A dialética é a lógica do éndoxon. Mas que significaéndoxon?

A lógica do éndoxon

O termo é formado pelo sufixo inclusivo én: é o que tem dóxa. No Greek-EnglishLexicon, de Liddel & Scott, éndoxon significa held in repute, honoured: o que tem boareputação. Na edição Loeb, verte-se a expressão tà éndoxa por probabilities (1355a18);na tradução brasileira de Bini, probabilidades. A edição Oxford é mais fiel ao original(what is reputable). De qualquer modo, provável é a versão consagrada. Mas éndoxonsó significa provável se compreendemos por provável aquilo que pode ser provadodeste modo ou daquele outro modo. E não é isso que pensamos ao ouvir a palavra.

O éndoxon de Aristóteles é um padrão cotidiano, não-científico, de verdade, mas que éverdade, não é probabilidade, nem o que apenas pode ser. Na vida cotidiana, temoscerteza de algumas coisas. Precisamos ter algumas certezas para sobreviver. O maiorproblema da palavra provável, assim como do termo probabilidade, escolhido paratraduzir o grego eíkos (1357a35), termo fundamental na fenomenologia da memóriaexplorada por Paul Ricoeur (que veremos na segunda parte: Testemunhos), e é um doselementos do silogismo retórico ou entimeima, é que ambos não conseguem

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desvencilhar-se do paradigma geométrico, que desvaloriza tudo o que o filósofodescobriu. Basta dizer que éndoxon também se aplica aos raciocínios necessários à boaprova no debate forense. E se existir a tal lógica do provável ela com certeza não seaplica ao universo dos debates forenses, pois sob o imaginário moderno do prováveljamais teremos terra firme para condenar alguém.

Pós-modernamente, quem associa a decisão judicial ao universo matemático dasprobabilidades quer absolver a todos ou pelo menos incutir na condenação um tipo depecado original que não precisa estar lá. Ainda veremos por quê. Por enquanto, ésuficiente registrar que o paradigma dominante, sob o poder da teoria garantista dodireito penal, comprou à vista o imaginário do provável, e o associou ao padrãogeométrico de certeza, para ver na decisão judicial eterna insegurança. Luigi Ferrajoliensina que nada é seguro na decisão judicial, porque “a verdade fática é uma inferênciaindutiva, da qual, contudo, é irredutivelmente insegura, porque provável, a verdade daconclusão” (Ferrajoli, 2010, p. 105).

No imaginário da probabilidade, Karl Popper ensina que “a regra de acordo com a qualas improbabilidades extremas devem ser desprezadas” está em “consonância com aexigência de objetividade científica” (Popper, 2007, p. 223). Mas nada disso interessa auma teoria da prova criminal, porque lidamos com o passado e com um fato único quenão se repetirá jamais. Sabemos, por um lado, que a moça que matou pai e mãe pelaherança não o fará novamente, pois isso é impossível. Mas sabemos, por outro lado,que o improvável acontece. A experiência forense obedece à lógica da vida cotidiana.Quantas vezes ouvimos um relato do tipo: se eu fosse contar, ninguém acreditaria.

Outro problema de tradução é que tendemos a associar dóxa a opinião e pensar: é sóuma opinião, logo, não é verdade. O imaginário da opinião como algo subjetivo émoderno. No idioma alemão, Hegel associa a palavra Meinung = opinião com o que émeu, mein. Daí conclui que toda opinião é algo subjetivo, Meinung ist mein (Hegel,1995, p. 12).

Mas não é esse o imaginário grego da dóxa. A palavra em si está relacionada à boareputação de alguém perante os outros, é algo objetivo. Aristóteles tem em altaconsideração a dóxa, embora ela esteja entre as coisas nas quais pode haver tanto overdadeiro quanto o falso. Pois quem sustenta uma opinião sabendo ser falsa? Alguémdirá: o mentiroso. Mas se todo mundo mentisse, todas as opiniões seriam falsas.

Em geral todo mundo sustenta uma opinião que acredita corresponder à verdade.Quando trata da imaginação (phantasía) em De Anima, Aristóteles pergunta se ela é umtipo de dóxa? E desenvolve o argumento: a imaginação não pode ser ciência (epistéme)nem intelecto (noûs) porque essas capacidades sempre apontam o verdadeiro. Massabemos que existe imaginação falsa.

“Resta ver então se ela é opinião; pois ocorre tanto verdadeira como falsa. Mas aopinião é acompanhada de convicção [pístis] (pois não é possível que aquele que opinanão acredite [verbo: pisteúein] naquilo que opina)” (Aristóteles-Maria Cecília Gomesdos Reis, 2006, p. 111, adicionei em colchetes as palavras do original, de AristotelisMCMLVI: 428a19-21).

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Uma opinião é pístis, no sentido de convicção. A muralha chinesa entre dóxa, falsidade,e epistéme, verdade, é platônica. A palavra dóxa para Aristóteles tem valor elevado enão está necessariamente em oposição à verdade. Na Metafísica, 1011b13, ele chega achamar o princípio de contradição como a mais indisputável – a mais prestigiada – dasopiniões - bebaiotáte dóxa, como lembra Slomkowski (1997, p. 20).

Esquecendo o provável, tentemos compreender o éndoxon. Facilita comparar o termocom outros igualmente formados pelo radical dóxa. 1. aquilo que tem boa dóxa:o éndoxon; 2. aquilo que não tem essa boa reputação: o ádoxon; 3. aquilo que dizem ossábios mas nenhum de nós acredita, porque o que eles dizem é completamente contrárioà dóxa (parádoxon).

No debate dialético não se recomenda o ádoxon, porque facilita demais a vida doadversário. Mas também estamos fora de um debate dialético ”se apresentamos umaproposição paradoxal”, para dar espaço a um estratagema como o de número 15, queOlavo de Carvalho chama de “anulação do paradoxo” (Schopenhauer-Olavo deCarvalho, p. 147).

Tanto pelo proponente como pelo adversário só devem ter lugar no debate dialéticoproposições endóxicas, com boas condições de conquistar o consentimento do oponentee do auditório. Por exigir o consentimento do oponente em cada passo, cada debatedorexclui-se do que chamamos de “argumento de autoridade”. Também por isso todas asarmas de que trata a Tópica são legítimas. Mas quem julga essa legitimidade? Em geralquem pode declarar o vencedor.

Um debate dialético é um duelo entre dois oponentes perante um auditório, cujo papel,como demonstrou Slomkowski, é precisamente o de regular o fair-play. O auditório vetaquem se comporta mal e golpeia abaixo do joelho (em grego, dyskolaínein, vertido porSlomkowski por to behave peevishly). Ataques pessoais e objeções para ganhar temponão são considerados neste curso, porque ilegítimos. Pode-se vencer com métodosilícitos, mas há enorme risco de perder. Um exemplo contemporâneo ilumina a questão:em debate político na eleição de 2008 a candidata ao governo de São Paulo golpeou seuadversário com pergunta desconcertante, que não buscava uma resposta: o senhor écasado? Parece que a réplica lhe foi dada nas urnas. A violação do fair-play pode sermortal, mas é uma arma de tipo bumerangue.

Mas como é tudo legítimo se Aristóteles ensina a “ocultar a conclusão”?

A ocultação da conclusão

A estratégia parece erística (termo que usamos como sinônimo de ilegítima). Mas nãoé. Quem entra no debate avança uma proposição tendente à construção do argumento.Porque o debate é agonístico, um proponente inteligente não apresenta a conclusãofinal, pois sabe que não obterá consentimento. Ocultando-a tanto quanto possível,avança com proposições ligadas de algum modo a essa conclusão, mas que não pareçamindicar o caminho do argumento. Essa poderia chamar-se a regra de ouro do debatedialético. Não é um recurso erístico, como pareceu a Schopenhauer, e chega até nóscomo estratagema de nº 4, na edição de Olavo de Carvalho, com nome incorreto, aliás,de “pré-silogismo”. O exemplo mostra que também Olavo de Carvalho nãocompreendeu a regra. Segundo o editor, aqui teríamos o caso da manipulação da opinião

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pública (Schopenhauer-Olavo de Carvalho: 1997, p. 134-5). Mas é tudo ao contrário. Amanipulação por via de propaganda é um argumento poderoso e sofístico, que opera porvia de sedução não por ocultar a conclusão a ser vendida, mas por oferecer a conclusãocomo se tivesse sido correta e legalmente deduzida de premissas, estas sim ocultas (p.ex. vá ao sucesso, com Hollywood, famoso comercial de cigarros).

O procedimento de ocultação da conclusão distingue o dialético do filósofo. O filósofonão precisa ocultar para onde conduzirá seu raciocínio, porque não espera ou não estápreocupado com objeções. O filósofo escreve porque acredita que está na verdade, ealém disso tem todo o tempo de que precisa para demonstrar a verdade. Já odialético atua no ágon contra alguém, espera objeções e está limitado em seu tempo deperformance. Ocultar a conclusão é útil porque o adversário tende a recusarconsentimento e quer vencer. Aliás, segundo o fair-play o adversário deve apresentaralguma objeção. Se o oponente não souber exatamente para onde caminha o argumento,mais facilmente dará consentimento aos raciocínios auxiliares que preparam o caminhopara a conclusão: “se não estiver clara a utilidade do argumento, as pessoas dirão maisfacilmente aquilo que pensam realmente” (156b6-9).

A prótasis dialética

O debate deve começar com uma proposição com boa dóxa, boas chances de obter oconsentimento do adversário. Não se formulam indagações de alta complexidadefilosófica, como seria a proposição “que é o homem?” Uma proposição assim deixariaterreno livre para o adversário avançar a informação que julgasse conveniente, passandoao domínio do debate como proponente. A prótasis dialética deve ser formulada comoalternativa: “Será o homem um animal bípede, ou não?”

A Tópica é um repertório exaustivo de tudo que pode acontecer no debate. Aristótelesensina o que fazer diante das mais variadas situações. Por exemplo: se a proposição nosparecer adóxica, como responder? Aqui só podemos focar o formato do debate. Obtidoo consentimento do adversário, o proponente avança com outra prótasis endóxica,sempre apresentada como um silogismo hipotético: se você me concede que etc. então éjusto que também concorde com alguma consequência disso.

A melhor explicação é o exemplo. No filme Twelve angry men (Doze homens e umasentença), o primeiro jurado faz o papel do proponente e os outros 11 de adversários. Oprimeiro já tem certeza formada pela absolvição e pretende convencer os outros. O júrinorte-americano precisa ser unânime e os jurados podem persuadir um ao outrolivremente. Se o primeiro jurado apenas afirmasse seu voto not-guilty, o debate sequercomeçaria. Ele começa com proposições distantes da conclusão, obtém consentimentodos adversários, então avança com uma segunda prótasis endóxica, até que se aproximada conclusão desejada.

Mas a Tópica também é útil para o pesquisador solitário, afirma Aristóteles. Em quesentido?

Ela é útil na procura da verdade. É antigo o parentesco entre a arte jurídica e a artemédica: ambas atuam sobre alguns fatos conhecidos na busca de algo desconhecido: dossintomas para o diagnóstico. O melhor exemplo aqui é a série americana House. Nãopor acaso o seriado combina a arte médica com investigações tipicamente policiais,

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como a busca domiciliar. House literalmente desenha no quadro os sintomas, a quetodos dão consentimento, como pistas para o desconhecido, que se alcançará em certomomento pesando todas as objeções possíveis.

Cada prótasis endóxica é um pedaço (elemento) do argumento. Mas que é uma prótasisendóxica? Na Tópica temos pelo menos duas definições. 1. Na formulação mais clara,uma prótasis endóxica é aquela contra a qual não se levanta objeção alguma. 2. Umaoutra formulação é mais obscura: foi a que se consagrou. Endóxica é a proposição queganha o assentimento de “todos, da maioria, ou dos sábios”. Precisamos de algunsesclarecimentos sobre cada uma.

A prótasis endóxica à prova de objeções

A arte de debater dialeticamente, em respeito ao fair-play, exige que o adversáriotambém observe algumas regras. Se o proponente avança para o debate com algumasinformações que pedem o seu assentimento, espera-se que o debate prossiga pela recusaem dar assentimento. A recusa toma a forma de objeções em sentido amplo. A palavragrega para objeção é énstasis (plural enstáseis). É termo de uso corrente na Tópica ena Retórica e não apresenta dificuldade de tradução. A curiosidade aqui é a carreiraengraçada que a palavra adquiriu no Brasil na edição da Erística de Schopenhauer porOlavo de Carvalho.

O editor brasileiro conseguiu a proeza de inventar uma palavra inexistente no léxicogrego. A origem do erro deve ser que o ‘s’ (sigma) tem no grego dois formatos, oraquando está no fim, ora quando está no meio da palavra, e neste caso se parece com umômicron com um rabinho no canto superior direito. Olavo confundiu o sigma da palavraénstasis pelo ômicron, e oferece em sua edição da Erística de Schopenhauer a palavragrega enotasis. A curiosidade não fica nisso. Olavo de Carvalho explica ao leitor queprocurou e não encontrou “o termo no Index aristotelicus de Bonitz”. Como encontrariapalavra que não existe? Agora o mais interessante: Olavo de Carvalho supõe que apalavra grega que ele inventou “derive de enotes, unidade” (Schopenhauer-Olavo deCarvalho, 1997, p. 122). A tradução pela via do latim instância já torna Aristótelesesotérico e incompreensível. Mas derivar objeção de unidade parece um paradoxo. Apalavra original é cotidiana, formada pelo prefixo en+stásis, e stásis significa tambémfacção, sedição, partido; enstátes = adversário (Riddel & Scott, Greek-English Lexicon,pp. 648, 228).

Em obediência ao fair-play, espera-se que o adversário se comporte bem, avançandoobjeções. Objeções em sentido amplo compreendem soluções (singular lúsis,plural lúseis) e objeções em sentido estrito. Soluções são objeções que literalmentematam o argumento pela raiz, provando desde logo que foi construído como umargumento falso. As soluções (lúseis) são discutidas no curso Refutações sofísticas, nãona Tópica. As objeções em sentido estrito são de três tipos: objeção às premissas daproposição, à pessoa do proponente e objeções para ganhar tempo (prós tòn chrónon).Apenas a primeira interessa à Tópica, as demais às Refutações sofísticas. (No debateforense, o rol dá conta de todas as defesas possíveis: 1. a solução parece corresponder àfase de admissibilidade da acusação; admitida a causa, é possível 2. demolir aspremissas da acusação, de modo legítimo; ou barbarizar com 3. objeção à pessoa, tristerotina da inversão de papeis que torna o acusado acusador, em geral pela via da

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difamação; ou 4. objeção prós tòn chrónon, para ganhar tempo, que apelidamos dechicana).

O consentimento de todos, da maioria ou dos sábios

Retornemos à definição consagrada que havíamos deixado de lado. O maior problemaaqui é que ela normalmente vem combinada com outra citação célebre da Tópica (nolivro VIII, linha 164b8) em que Aristóteles recomenda que não se deve discutir comqualquer um, pois com alguns adversários qualquer discussão tende a degenerar emviolência. A combinação sugere um filósofo aristocrático que só admitiria conversa comalguns seletos iniciados. Essa é uma recepção romântica do filósofo alimentada pelalenda dos “discursos esotéricos e exotéricos”. Aristóteles de fato emprega a expressão“exoterikoì lógoi” várias vezes (p. ex. na Ética a Nicômaco, 1102a26, na edição Oxfordtraduzidos como discussions outside our school). Werner Jaeger demonstrouconvincentemente que esses escritos de popularização da filosofia não existiam e queAristóteles reporta-se aos seus diálogos de juventude. Chegou-se a forjar em reforço àlenda uma carta supostamente endereçada a Alexandre em que o filósofo teria dito queusava termos propositadamente obscuros para que não fossem compreendidos pelovulgo (Jaeger, 1946, p. 45).

A recomendação da Tópica 164b8 apenas chama atenção para o fair-play do debate,sem o qual não vale a pena discutir, não se presta ao aristocratismo de seitas deiniciados. E a prótasis dialética pode solicitar o consentimento de todos, só de alguns oudos mais ilustres e sábios porque o debate pode ocorrer em auditórios comuns a todosou mais específicos a alguns. Por envolver o fator tempo, se debatermos questõesespecíficas e pudermos presumir o conhecimento de termos técnicos, a prótasis dialéticapoderá requerer o consentimento apenas dos que têm domínio desse conhecimentoespecífico.

Termos técnicos são empregados no discurso jurídico com legitimidade comoabreviações de um longo curso de pensamento: se precisassem ser ensinados a todosnão haveria tempo suficiente, por exemplo, no limite de uma sustentação oral. Diferentedisso é falar difícil ou latim para impressionar o plenário do júri: corre-se o risco de nãoser simplesmente compreendido.

O emprego de termos técnicos precisos destina-se a evitar ambiguidades e expressõesnebulosas, pois o que não é claro não se presta a fazer justiça. É preciso defender comveemência a exatidão técnica e não misturá-la com a pompa artificiosa da retóricaforense, porque é recorrente a tendência de confundi-las na exigência de tornar odiscurso jurídico acessível a todos, que frequentemente degenera em populismo edemagogia. Outra forma de nos venderem vinho misturado, com que o filósofo comparaargumentos tortuosos e artifícios de linguagem (1404b20).

Aristóteles treina nossa sensibilidade para a lógica do argumento. Há quem considere olivro Refutações Sofísticas como o livro IX da Tópica (Freese, tradução Loeb), o que fazalgum sentido se percebemos como ao final o filósofo faz um balanço de suasdescobertas. Na retórica, diz, somos apenas herdeiros de uma longa sucessão decelebridades, mas na lógica tudo é ainda experimental, não existia nada. O tipo deinstrução oferecido por Górgias, para ser decorado, era um ensino rápido, mas semmétodo. Os retóricos ofereciam aos alunos os produtos da técnica, mas não a arte em si

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mesma. Como um professor que dispusesse diante do aluno uma coleção de vários tiposde sapatos, mas não o ensinasse a fazer um par de sapatos (Refutações sofísticas,183b30-184b8). Diríamos, hoje, que eles davam o peixe, mas não ensinavam a pescar.

Aristóteles ensina a pescar. Melhor dizendo, a provar. Mas que significa provar?

Ainda temos alguma altura a escalar na montanha de dificuldades da Tópica. Prossigona dissecação do silogismo, para compreender o significado do que encontraremos nasua estrutura interna: elementos e tópoi (singular tópos). Depois, discuto que tipos deprova existem, porque provar também pode ser dito de mais de um modo.

5. Elementos da tradição: Aristóteles.Figuras do pensável

julho 15, 2012

A Tópica é um curso difícil para nós. Não era para Aristóteles que, segundo a tradição,lecionava temas muito difíceis pela manhã, e à tarde assuntos mais amenos, comoretórica e dialética (Jaeger, 1946, p. 362). Do que ficou escrito, sabemos quando oassunto é árduo, pois o filósofo avisa logo no início que é dificílimo (chalepóteron),como no estudo sobre a alma (402a17), aliás, com belo preâmbulo em que o autordeclara ter dúvida até mesmo quanto ao método adequado, se demonstração, divisão oualgum outro.

O nome Tópica vem da palavra tópos (plural tópoi) que significa lugar. Aqui também émais seguro prosseguir com o grego, pois lugar não diz muito; lugar-comum diz demais,tem sentido pejorativo do que se tornou batido, trivial. E nem todos os tópoi sãocomuns, alguns são específicos a determinado campo de argumentação. Um termomoderno compatível com a ideia, não por acaso utilizado pelo filósofo grego earistotélico Cornelius Castoriadis, seria: figuras do pensável. Mas aí trocamos umproblema por outro, pois que são figuras do pensável?

Não existe fusão de horizontes, mas perceber alguma diferença essencial no horizonteda filosofia antiga ajuda a compreender o problema: por que esses lugares, ou figuras dopensável, são relevantes num curso dedicado à lógica do éndoxon ou dialética?

Talvez porque no horizonte da filosofia antiga o elemento espaço prepondera sobre oelemento tempo. Na filosofia moderna é o contrário. A ciência da história tem seu pontoculminante de desenvolvimento na modernidade tardia, no final do século 19. Nãoexiste uma época pós-moderna: o pós-moderno é um modo de consciência em relação àmodernidade que abriga três tipos de atitude: de resistência; de aposta militante em suasobrevivência, ou de frívola indiferença, chamada de relativismo. Ao longo de nossajornada compreenderemos que o paradigma garantista corresponde à resistência contra amodernidade; o nosso paradigma, à aposta militante por sua sobrevivência.

A consciência histórica de nosso tempo retorna à preponderância do elemento espaço.Hoje falamos mais em memória que em história, ainda que abusadamente. E a memóriaestá ligada aos “lugares de memória”, expressão cunhada por Pierre Nora nos anos 80

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do século passado. Talvez não seja casual que apenas no século 20 a Tópica aristotélicatenha sido valorizada na história da filosofia. Essa valorização é mérito de StephenToulmin, cujo livro Os usos do argumento foi saudado em sua primeira edição de 1958como “um novo despertar dos Tópicos”. Mesmo que o autor confidencie em prefácio de2002: “Foi só quando comecei a estudar ética médica, e reli Aristóteles com umacompreensão maior, que entendi a essência desse comentário” (Toulmin, 2006, p. x).Também se destaca Chaïm Perelman e seu Tratado da Argumentação (1ª edição em1988). Mas na lógica, quem decifrou a caixa-preta da Tópica foi Paul Slomkowski(1997).

Symphonía ou Táxis

A filosofia grega compreende o espaço de dois modos: 1. Um é mais fortementemetafísico e centrado na palavra symphonía. Aqui vigora um imaginário de hierarquiasrígidas entre o que está no Alto Comando (razão, verdade, ciência, etc.) e o que está naspartes baixas da Obediência (paixões, imaginação, etc.). A sinfonia é uma instituição dafilosofia de Platão. E da filosofia moderna, centrada no padrão geométrico de certeza,chamado cartesiano. 2. O outro é o modo aristotélico, mais fracamente metafísico,centrado na palavra táxis.

É comum ouvir-se que o método aristotélico é uma taxonomia, o que não está errado,mas pode parecer um classificacionismo escolar, inessencial, como o praticado nacrítica literária, que Walter Benjamin disse com razão dedicar-se à “mortificação daobra de arte”. No gaveteiro médico-legal dos gêneros, cada obra de arte morrerácatalogada. A crítica tem os seus méritos, mas a gente sempre gosta mesmo é da gavetarotulada de: Outros. Os representantes clássicos de um rótulo soem ser epígonos: “umaobra maior estabelece o gênero ou o abole, e a perfeita faz as duas coisas” (Benjamin,1985, pp. 182, 44).

Mas a táxis aristotélica não é esse gaveteiro mortífero de tudo que vive. Táxis é um tipode ordem, com ênfase no elemento organização (a palavra é usada para o modo deorganização espacial de um exército no front). A táxis aristotélica é uma oposiçãoveemente à sinfonia platônica: “O que Aristóteles ambiciona não é uma sonoraconcordância polifônica, por natural que pudesse ser este sentimento a um gregohelenístico, mas a cooperação organizada de todas as formas tendendo à realização deum pensamento superior a elas. Para dar expressão a essa visão de mundo, prossegueJaeger, Aristóteles inventou uma imagem feliz – o movimento tático dos guerreiros deum exército que executa o plano de um general invisível” (Jaeger, 1946, p. 443). WernerJaeger no começo do livro parece admirar o gênio menor de Aristóteles resmungando(na excelente expressão de Agripino Grieco, que gostava mais de Lima Barreto, emcrítica a Machado de Assis). Como filósofo da religião, parece incomodar-lhe a aparentefalta de Deus na filosofia aristotélica, a ponto de ter registrado em rodapé (nota 37, p.283) afirmação de Bernays de que “a teologia de Aristóteles adentra em sua filosofia tãoescassamente quanto seu Deus entra no mundo”. Jaeger parece reconciliar-se com ofilósofo com essa imagem feliz: o Deus de Aristóteles deve ser esse “general invisível”.Mas a grande novidade de Aristóteles é que sua filosofia é imanente, não transcendente:a ética, por exemplo, não trata nem da bestialidade menos que humana nem dadivindade sobre-humana: e não fala dos deuses porque eles não são passíveis de erro ouvício (Ética a Nicômaco, Livro H ou VII, 2).

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Um taxonomista é uma espécie de cartógrafo, suas classificações são sinalizações nummapa. Ao transitarmos pela cidade em que vivemos não precisamos de orientaçãoespacial, pois sabemos o mapa de cor, como o poeta:

Olho o mapa da cidadeComo quem examinasse

A anatomia de um corpo…(É nem que fosse o meu corpo!)

(Mário Quintana, “O mapa”)

Mas para aventurar-nos em terreno estrangeiro, é bom ter o mapa à mão. O cartógrafoAristóteles desenhou um mapa completo da alma, válido ainda hoje, se descontarmos ocontinente novo que será descoberto e explorado por Freud. A Tópica é um mapa deuma região da alma chamada pensamento. Mas o que é o pensamento?

Melhor começar pelo que o pensamento não é. Com licença a Platão, “pensar não é sairda caverna”, diz o grego e aristotélico Castoriadis (2004, p. 7). Porque pensar também“não é construir catedrais ou compor sinfonias. Se a sinfonia existir, é o leitor queprecisa criá-la nos seus próprios ouvidos”, disse o filósofo em prefácio a sua obramagna, A instituição imaginária da sociedade (Castoriadis, 1987, p. 2).

“O pensamento são as coisas pensadas”. “A alma jamais pensa sem imagem”(Aristóteles-Maria Cecília Gomes dos Reis, 2006, pp. 57, 119). Ludwig Wittgensteinadiciona uma pergunta: “Nós pensamos sobre coisas, mas como é que essas coisasentram em nosso pensamento?” (1965, p. 38).

As provas que buscamos são coisas que, à míngua de orientação, não aparecem, poisnão sabemos procurá-las. Lugares marcados no mapa são pontos de referênciageralmente usados para resposta à pergunta: onde estou? Perto da praça principal, pertodo porto, perto da feira, ou longe do centro, no subúrbio, na área rural. Lugaressinalizados no mapa são hierarquias naturais de importância e valor. A Tópica deAristóteles pode ser compreendida como uma cartografia do debate dialético, com umrol exaustivo de pontos de referência do pensamento: as “figuras do pensável” deCastoriadis.

Uma dificuldade da Tópica para nós é que Aristóteles não se ocupou em definir o que éum tópos, e o único trecho da Retórica que poderia ajudar tem sido mal-traduzido.Outra é que os tópoi designam coisas diferentes. Um título jurídico prometeu trazer otema para a jurisprudência, mas Theodor Viehweg trata Aristóteles como meroantecedente de uma longa tradição, não chega a explicar o que é um tópos, nem suarelevância na jurisprudência. Prossigo com Chaïm Perelman, Toulmin e Slomkowski.

O tópos em Perelman: primeiros acordos no campo do preferível

O Tratado da argumentação, de Perelman, é interessante por associar os tópoi àspresunções. No seu § 21 (“Os lugares”), o autor apropria a noção aristotélica numateoria da argumentação como “primeiros acordos no campo do preferível” (Perelman,2005, p. 95). Um exemplo citado por Perelman é o hoje chamado princípio dapresunção da inocência (tecnicamente um “lugar específico” da argumentação jurídica):

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“As presunções legais costumam ser da mesma natureza que aquelas que seriamadmitidas na vida extrajurídica; a lei notadamente regulamenta geralmente o que elaconsidera normal. Entretanto, a origem dessas presunções jurídicas importa pouco: éverossímil que a presunção da inocência do acusado, em matéria penal, provenha dofato de que se temem as consequências sociais e morais de outra convenção, e não dofato de que o direito tenha adotado uma presunção de senso comum ligada ao normal”(Perelman, 2005, p. 116).

Nosso interesse em saber o que é um tópos também está associado à necessidade dedescobrir que tipo de estrutura lógica é uma presunção. Todas as presunções sãoestruturas de realidade, hierarquias do real aplicadas aos argumentos. Algumas dessasestruturas são chamadas pelos juristas de “princípios gerais de direito”. Masrigorosamente um tópos não se qualifica como princípio no sentido aristotélico, o quenão é fácil de perceber. Há passagens textuais que dão a impressão de que tópoi sãoprincípios (archaí), dificuldade esclarecida por Slomkowski (1997, p. 54) por razõesfilológicas: o grego não conta com palavras para o que compreendemos como regras eleis da lógica e Aristóteles precisava se virar com os termos tópos e arché (essa palavra,polissêmica como todas as relevantes, também pode significar aquilo por onde secomeça, e o começo do debate envolve escolher o tópos, de modo que nesse sentidoseria arché).

A presunção de inocência é um tópos específico do raciocínio jurídico. Segundo a lógicaaristotélica, é uma espécie de regra de inferência (na fórmula hipotética se-então: sevocê concluiu com dúvida, então deve absolver) que não pode ser princípio, porqueincide no raciocínio quando a formação de nosso convencimento já se exauriu, quaseantes da conclusão: é algo que está entre P e Q. Volto a discutir a utilidade dessapresunção quando tratar do princípio de uma teoria moderna da prova criminal.

O sentido de tópos para Toulmin: garantia do argumento

Para Toulmin, um tópos é um tipo de apoio que permite que o argumento avance efornece garantia para a conclusão. Paul Slomkowski refere que o esquema de Toulmin éinteressante, mas “um pouco anacrônico” (1997, p. 54). Mas é possível que o esquemajá estivesse implícito em Aristóteles, porque a explicação de Slomkowski para o tóposaproxima-se bastante da de Toulmin. Segundo Slomkowski, o entimeima é umargumento do tipo “se P, então Q”. E “os tópoi distinguem-se pelo fato de que elesexpressam várias relações que existem entre P e Q”, de tal modo que os “entimeimassão argumentos garantidos pelo princípio expresso no tópos” (1997, p. 45).

Se estou certo em identificar a decisão judicial criminal como um grande silogismohipotético regulado pela fórmula Se P, então Q (se assim agiu, deve ser condenado),descobrimos que as garantias de certeza da conclusão desse silogismo podem serestruturas internas do silogismo. Nosso problema é como chegar à primeira parte, se P.Não podemos pular diretamente para a conclusão (é o caso de P), ou teríamos umargumento de autoridade. Não podemos ocultar o caminho do raciocínio, ou teríamosum argumento sofístico. Para compreender como o raciocínio funciona, podemosdissecar o argumento hipotético se-então em partes. As partes do entimeima sãoelementos e tópoi. Naturalmente utilizamos a palavra elementos de prova. Mas nãousamos lugares. E obviamente não sabemos o que eles são nem como funcionam. O

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mistério pode ser desvendado se abrimos essa decisão como uma caixa-preta. Para isso,precisamos explorar com Slomkowski como funciona o maquinismo.

Dois significados de tópos em Slomkowski

Como bom aristotélico, Slomkowski passa em revista toda a literatura lógica disponível.Os lógicos já compreenderam os tópoi como regras de inferência; leis da lógica;princípios; instruções de pesquisa; pontos de vista; garantias. Após crítica de todas essasdefinições e análise lógico-filológica da Tópica e da Retórica, Slomkowski conclui queeles são estruturas internas do silogismo hipotético, hipóteses auxiliares, sub-argumentos que podem ser construídos também como silogismos (e aí são corretamentelocalizados os chamados pré-silogismos); e também são instruções de investigação.Slomkowski parte da quase-definição de tópos, que aparece apenas na Retórica,1403a18ss, quando Aristóteles diz o que é um elemento (stoicheîon).

“Por elemento eu compreendo o mesmo que um tópos. Porque elemento e tópos sãoaquilo que fica dentro de muitos entimeimas” (tò gàr autò légo stoicheîon kaì tópon;ésti gàr stoicheîon kaì tópos eis hò pollà enthymémata empíptei). Empíptein, noLiddel&Scott, significa to fall upon, fall in with. Em inglês, por Slomkowski: By anelement I mean the same thing as a topos, for an element and a topos is somethingunder which many enthymemes fall (1997, p. 43). A tradução de Bini erra feio aoacompanhar o tradutor Roberts, da edição Oxford, da qual este trecho também é cópialiteral: “Um elemento – para Roberts/Bini – é um lugar-comum que abarca numerosostipos particulares de entimemas” (Aristóteles-Bini, 2011, p. 208; Barnes, 1984, p. 2237).Dizer que algo é o mesmo que outra coisa não é equivalente a dizer que esse algo éaquela outra coisa. Aristóteles utiliza a similaridade como relação, diz que o tópos é omesmo que um elemento apenas em relação a serem ambos partes da estrutura internado silogismo retórico.

Aristóteles enumera em torno de 300 tópoi. Limitado ao interesse de explicar o que sãoe como funcionam essas estruturas lógicas, uso apenas três: 1. o tópos do maior-menor;2. o tópos do possível-impossível; 3. todos os que são desdobramentos degenus/definição/proprium e predicado. Os dois primeiros têm sentido decifrado porSlomkowski como hipótese auxiliar em silogismos hipotéticos, ou regra auxiliar deinferência. O terceiro, o de instrução de pesquisa. O primeiro sentido interessa-nos naconstrução ou demolição da prova, depois que já foram encontradas as provas (adiferença entre o termo no singular e no plural veremos adiante, no exame da outra parteinterna do maquinismo: os elementos). O segundo sentido interessa-nos em faseanterior, na chamada colheita das provas. Vejamos cada um deles.

O tópos como regra auxiliar de inferência

Nessa concepção, o tópos serve para auxiliar a construção/demolição da garantia doargumento (da credibilidade das provas). Se o argumento forense é um silogismohipotético (Se P, então Q) e não sabemos como chegar à conclusão sobre a primeiraparte do silogismo, isto é, se é mesmo o fato de P, por onde começar?

O mais seguro é construir o raciocínio começando por proposições endóxicas: o que éincontroverso. Por exemplo: alguém morreu por ação de outrem, então foi vítima dehomicídio. Se as provas oferecidas pela acusação indiciam o acusado como autor, o

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oponente precisa escolher um tópos para ingressar no debate. Aristóteles dizliteralmente tòn tópon eureîn, o que se presta a confusões, se traduzirmos eureîn porinventar, e tópos por terreno, ou mesmo por “to choose ground“, como em algumasedições em inglês (Slomkowski, 1997, p. 10). Sabendo que eureîn é o verbo que formao nosso conhecido eúreka (descoberta), os garantistas dirão que isso é tudo que elescombatem: pois os anti-garantistas do mal não têm provas e ficam inventando.

Escolher o tópos significa definir em que flanco construir ou contra-atacar: em suma, oque alegar. Exemplifico com dois tópoi oportunos para a defesa. O tópos a escolherdependerá do grau de controvérsia do fato alegado pelo proponente. Se é endóxico-incontroverso que o cliente matou, que saída haverá? Talvez o tópos do maior-menor.Há que construir um argumento auxiliar segundo o qual o cliente esteve de fato diantede um dilema. Avança-se como objeção que o autor praticou o melhor entre dois males,e assim merece absolvição ou pelo menos atenuação de rigor nas consequências.

Mas se é controverso que foi o acusado quem matou, o tópos mais oportuno é o dopossível-impossível. Será construído um argumento auxiliar no sentido de que eraimpossível ao acusado ter sido o autor do disparo ou da estocada fatal. Podemosconstruir o argumento auxiliar de quatro modos: 1. por indução; 2. pelo silogismo; 3.por indução e silogismo, ou 4. sendo simplesmente apresentada a prótasis auxiliar se elafor suficientemente clara. Para ilustrar com um exemplo, recorro mais uma vez ao filmeTwelve angry men-Doze homens e uma sentença. O primeiro jurado pretende desafiarum “elemento de prova” (existente, a prova testemunhal de um senhor que alega tervisto o fato) em sua credibilidade. Ele parte de alguns fatos conhecidos e provados, dosquais obtém o consentimento dos adversários (os demais jurados). Por exemplo, se écerto que o crime ocorreu em determinada hora, então a testemunha, que estavadormindo, precisaria ter percorrido algum caminho até chegar a ter condições de ver,naquele momento, o fato. E então ele prossegue com o tópos do possível-impossível,um argumento auxiliar: se você me concede que um homem de certa idade caminhacom dificuldade (o jurado conta os passos necessários, depois de ter feito um mapa dacena do crime), então contemos no relógio quanto tempo ele precisaria para dar cabo doespaço necessário, etc. Até que soma suficiente consentimento para a conclusão: eraimpossível que a testemunha tivesse visto o que disse que viu. Mas e então? Segue-senovo sub-argumento: por que esse homem teria faltado com a verdade? Mas aí talvezseja necessário escolher outro tópos, não o do possível-impossível, pois mentir não éalgo que se prove por possibilidade ou impossibilidade de dizer a verdade. Mentirenvolve o querer: por que esse homem teria desejado faltar com a verdade? Pretendodiscutir essa questão mais detidamente na segunda parte.

Por enquanto, temos pelo menos uma conclusão relevante: que existe alguma diferençaentre as provas existentes e a prova construída, a que finalmente nos convence.Vejamos, ainda, a função do tópos como instrução de investigação.

O tópos paranguelmático: instrução de investigação

Os tópoi que são fórmulas ou instruções de investigação têm utilidade diferente. Podemser usados no debate agonístico entre proponente e adversário, mas servemprincipalmente para o investigador solitário. Possivelmente por essa razão Teofrasto,segundo registro de Alexander, deu a esse tópos um nome específico: parángelma(Slomkowski, 1997, p. 62). A palavra também é usada no dialeto militar como “senha

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de acesso” a algo (em inglês: watchword). Adotando a terminologia de Teofrasto,demonstro que os tópoi paranguelmáticos interessam-nos na colheita da prova.

Em Aristóteles, esses tópoi normalmente começam no imperativo: examine, investigue(ex: skopeîn, significando mantenha o olho nisto, de onde vem nossa palavra escopo;epiblépein, significando preste atenção em). São instruções de investigação quedecoramos para não esquecer o que procurar. Por exemplo, examine se a proposiçãocontém palavras usadas no seu gênero, ou definição (combinação de gênero + diferençaespecífica), ou em sentido próprio, particular àquela coisa mas que não seja suadiferença específica, ou em último caso se são usadas como mero predicado: osymbebekòs, que tem status especial na Tópica e raramente designa, nesse curso,acidente, sua tradução corrente (Slomkowski, 1997, capítulo 3).

Pareceria tudo muito difícil ou inútil se não fôssemos acostumados nos cursos de direitoa perceber essas diferenças com outros nomes. Falamos no gênero das coisas, porexemplo, na expressão “em sentido amplo”, diferente da mesma coisa “em sentidoestrito”. Operamos cotidianamente com um recurso chamado “recurso em sentidoestrito”. Situamos os crimes sob as cabeças ou títulos, quando codificados, parasabermos algo relevante na colheita da prova: que bem da vida eles protegem.Telegraficamente encerro com observações sobre três temas sugeridos pelos tópoiparanguelmáticos.

O bem jurídico

Sem ter clareza se um crime ofende a dignidade pessoal da vítima ou a paz social, se écrime de dano ou de perigo, se ofende a saúde pública ou diretamente a vida, é possívelque as provas mais importantes sejam negligenciadas. É preciso sensibilidade jurídicapara perceber a partir de que ponto, do que foi apurado, um atropelamento torna-seeventualmente doloso e não mera culpa por imprudência, o que abre caminho novo paraa chamada colheita das provas. Tudo isso pode ser compreendido na expressão bemjurídico. Observe sempre atentamente que bem jurídico é protegido pela norma penalantes de ir a campo na colheita das provas: eis o tópos paranguelmático que constituiregra de ouro nesta fase da investigação.

Não obstante interessantes estudos sobre o tema, de complexidade diferente e que nãocabe numa teoria da prova, não consigo ver numa teoria moderna do bem jurídico outrautilidade a não ser taxonômica. Qualquer teoria material do bem jurídico parece-metratar da Razão do autor (com letra maiúscula) em detrimento das nossas razões (comletra minúscula). A pretensão de deduzir materialmente instruções ou limites para olegislador criar crimes ou não poder criminalizar condutas parece-me reportar-se a umafilosofia política mais fortemente metafísica em que o filósofo deve governar, algointempestivo. Se alguém disser que táxis é muito pouco para a nossa razão, estou deacordo: adoto como “grande teoria” no cenário desta teoria da prova uma filosofiapolítica de low profile. Que não escuta mais a Heráclito, como ponderou Castoriadis,pois “o mal começou quando Heráclito ousou dizer: Ouvindo não a mim, mas ao lógos,é sábio concordar que…” Cuidado: “essa humildade é a arrogância suprema”, pois “oindivíduo político e o pensador político oferecem um discurso sob sua própriaresponsabilidade”. Não devem falar em nome de outrem, salvo se expressamentetiverem recebido essa delegação (Castoriadis, 1987, p. 4).

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As disposições legais sobre prova

Numa teoria moderna da prova criminal, todas as disposições legais sobre prova sãotópoi paranguelmáticos, meras instruções para que livre e responsavelmente tomemosos rumos que escolhermos para fazer justiça, contanto que tenhamos suficientesgarantias. Precisamos decorá-los para poder encontrar as provas. Proponho umareflexão: sabemos dizer, sem consulta, e sem erro, o conceito legal de indício? Oexercício é perigosíssimo: imaginemo-lo expandido: quantos juízes engasgariam? Edentre os juízes, quantos juízes criminais teriam dificuldade? E quantosdesembargadores, e ministros?

O tópos paranguelmático proposto está em nosso Código de Processo Penal, no art. 239.Indício não é algo parecido com a suspeita, só que mais fortinho, mas “a circunstânciaconhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se aexistência de outra ou outras circunstâncias”. A fórmula é perfeita. Impressiona ter-sedesejado, em reforma da lei de 1941, desaparecer com ela. Porque não existe vácuonuma instituição imaginária indispensável à boa interpretação da prova. Se hoje com otópos na lei, não sabemos o que é um indício, que tipos existem, por que um é maisforte e outro mais fraquinho, quando o conceito legal desaparecer viveremos no paraísodo preconceito.

Codificação

Sem títulos indicadores dos bens da vida protegidos, não temos sinalização mínima paraa colheita da prova em cada caso. Classificações essenciais da teoria do delito tambémsão relevantes, pois se não distinguimos um crime que deixa vestígios materiais daqueleque se esvai no ar, perderemos o vestígio ou perderemos tempo procurando o que nãoexiste. Codificar uma legislação é uma necessidade de razão. Hegel no século 19 diziacom veemência que “não há maior insulto que recusar a um povo civilizado acapacidade de codificar seu direito” (Hegel-Knox, 1967, § 211, p. 136). Estamos noséculo 21, mas não vejo como revogar essa veemência. A codificação quer oferecer-noso mapa, uma ordem espacial no sentido aristotélico de táxis, em oposição ao caos dacompilação de leis extravagantes. Apesar da dificuldade em conseguirmos atingirconsenso universal sobre os princípios norteadores da recodificação, ainda devemosperseguir essa utopia.

Também é relevante neste contexto registrar que para a boa colheita de provas de crimesnão é suficiente ter energia, boa vontade e pé na rua: excesso romântico recorrente comque se critica um problema real, a inércia burocratizante do nosso inquérito policial.Mas o problema tem outra raiz, que é a emulação, pela autoridade policial, daautoridade judicial, e não está tão associado à decantada tradição do bacharelismobrasileiro. Porque aqui a formação jurídica é indispensável. Não apenas os tópoiparanguelmáticos (instruções de investigação criminal) precisam ser bem sabidos, comotambém o mapa completo dos crimes e suas cabeças ou bens jurídicos. E ainda não háoutro modo de conseguir visualizar razoavelmente esse mapa, até caminhar por elecomo em nossa cidade natal, sem treinamento jurídico. E ainda com o ensinamento dafaculdade de direito é difícil: a teoria da prova é o capítulo mais negligenciado, porque omais difícil, e não só na faculdade, também nos cursos de formação às carreiras damagistratura.

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As provas estão plantadas no mundo e precisam ser colhidas. Sem orientação, nãosabemos onde procurá-las, pois a planta boa segue misturada com erva daninha. Nossaprimeira impressão é que está tudo em desordem, como se despejássemos todos oslivros da biblioteca sobre o chão para mudança ou arrumação, segundo feliz imagem deWittgenstein (1965, p. 42). Os livros todos no chão são algo parecido com o caos, quecomeçamos a organizar ao devolvê-los a cada estante. Mas a que estante pertence cadaqual? Como os arranjaremos?

Aqui começamos a sentir falta das classes. Prossigo com a terceira pergunta desta etapaaristotélica introdutória: que tipos de prova existem? A pergunta também envolvedescobrir o que é e como funciona aquela segunda parte interna do maquinismo: oselementos [de prova].

6. Elementos da tradição: Aristóteles.Que significa provar?

agosto 10, 2012

Que significa provar?

A palavra é difícil, daquelas que são ditas de muitos modos. Melhor indagar antes quetipos de prova existem. Tipos são sinalizações úteis no mapa de um país desconhecidoou mesmo no que conhecemos bem. Mas nem por isso a vida deixará de surpreender-nos. Como diz o poeta, “há tanta esquina esquisita,/Tanta nuança de paredes”. Por queentão simplificar a riqueza da vida com divisões, se um fato nunca será igual a outrofato?

Algumas tipologias são o que em inglês se chama de hair-splitting, tão minuciosasquanto inúteis. Mas divisões existem. Em qualquer manual encontramos decretado queas provas são, por exemplo, diretas ou indiretas. Que significa isso? Especulo sobre alegitimidade das divisões existentes, em procedimento que questiona os usos ilegítimosda razão, por costume ou autoridade, no exato sentido kantiano de uma filosofia crítica.

Trazendo o tema para nossa realidade: recente alteração da lei brasileira determinou que“o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditóriojudicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementosinformativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis eantecipadas (art. 155 do Código de processo penal, desde 2008). Quando tiversuficientes elementos de prova, darei minha opinião na disputa pró ou contra essapalavra exclusivamente. Por enquanto, observo que não há nos comentários correntesclareza sobre o direito com que se usa cada palavra. Pois não perguntam o essencial:quê significa produzir uma prova?

Acredito que nosso retorno à matriz aristotélica pode iluminar esse terreno difícil.Aristóteles justifica sua cartografia da prova ao redefinir, desde o comecinho (exhyparchês) a retórica, que já não é tanto a arte de persuadir, mas a técnica que ensina aencontrar para cada coisa a prova possível. “Cada coisa” em grego é dito kath’hékaston.O conjunto de todas essas coisas, que chamamos de casuística, é ilimitado, infinito (que

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se diz em grego ápeiron). Não é possível aprender nem ensinar o infinito, que não éconhecível: “kath’hékaston ápeiron kaì ouk epistetón” (1356b33-34). Não se podeensinar alguém a convencer Sócrates, só podemos iluminar o caminho para convenceralguém do tipo de Sócrates: os mais sábios. A medicina também não ensina a curar estaou aquela pessoa, mas as doenças. O médico e o jurista precisarão afinar o tom da teoriapara cada caso, mas isso é já outra virtude, que talvez não possa ser completamenteensinada ou aprendida.

Partindo da definição geral de prova como aquilo que convence alguém, Aristótelesdivide as provas em três tipos, pois o orador convence alguém por (1) sua própriacredibilidade; (2) por suscitar no ouvinte uma boa receptividade para o seu argumento;(3) e pela força intrínseca do argumento. Cada tipo é mais ou menos indicado para cadagênero de discurso existente. Aristóteles distingue três gêneros conforme variáveis detempo e espaço, perguntando: a que auditório se dirige o discurso?

O ouvinte de um argumento pode ser espectador ou juiz. Se for juiz, será juiz de coisaspassadas (discurso forense) ou futuras (discurso político-deliberativo). Ao espectadornormalmente se oferece um tipo de discurso epideiktikón, no presente. A laudatioacadêmica, os discursos fúnebres, os discursos de motivação das técnicas gerenciais derecursos humanos são formas contemporâneas desse tipo. Mas se a retórica foiredefinida desde o começo como o modo adequado de encontrar a prova em cada caso,é evidente que o discurso epideiktikòn não apresenta as mesmas dificuldades dos outrosdois tipos. A abertura do segundo livro deixa isso claro: o objeto da retórica é ojulgamento, e apenas em debates forenses ou políticos existe julgamento. Mas é útilsaber que o discurso de elogio ou censura não precisa provar nada, que lhe bastaampliar ou depreciar o objeto de elogio ou censura. Pois aprenderemos que nos tipos deretórica que exigem provas a ampliação retórica, por si, não nos satisfaz. O recurso daampliação é legítimo e comum aos três gêneros retóricos. Mas Schopenhauer está certoem considerá-lo estratagema erístico, porque normalmente é usado de modo ilegítimoem substituição à prova que não se produz, é o “vinho misturado” de que falaAristóteles.

Cada momento histórico-político tem sua retórica. Em seu belo ensaio sobre oromantismo político, Carl Schmitt observa que a retórica romântica constrói-seinvariavelmente com propensão ao superlativo. Em Adam Müller, publicista estudadono ensaio, esse romantismo atinge seu ápice na conjugação do superlativo à triplaadjetivação: não é bastante um adjetivo. E tudo se apresenta absolutamente,verdadeiramente, incondicionalmente (Schmitt, 1986, p. 136-7). A retórica política denosso tempo é do tipo romântico: não se contenta com o normal, com sua parcela debom e ruim sempre meio misturada; precisa do bem incondicional, distante do mal, daescória moral, de um lado, e da santidade, de outro. O superlativo romântico no discursocriminal tem operado pelo modismo acadêmico da constitucionalização do direito penal.A altura normativa dos princípios constitucionais é invariavelmente usada como palavramágica que opera como ampliação retórica em discursos de autoridade. Quandosubstituem a prova e a singularidade do fato, costumam ser discursos autoritários emoralistas.

No campo dos discursos que precisam de provas, é útil distinguir que tipos de prova sãopossíveis. Logicamente temos apenas dois tipos, correspondentes ao silogismo e à

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indução da dialética. Ao silogismo retórico, como já vimos, Aristóteles chamaentimeima. A indução chama-se parádeigma (traduzido correntemente como exemplo).

Uma associação útil dos tipos lógicos ao gêneros de retórica que exigem provas é queem geral, no discurso político, que delibera sobre o futuro, é possível satisfazer anecessidade de prova mediante o emprego da indução. Na retórica forense, em geral,exigimos o entimeima, correspondente ao convencimento pela força do silogismo, aindaque não seja uma demonstração necessária, apenas possível. Tanto a indução quanto osilogismo são provas lógicas e toda prova lógica é construída pelo orador. Mas a partirde que matéria-prima?

Aqui chegamos à divisão que se tornou clássica. Aristóteles diz na linha 1355b36 que“quanto a provas, existem as sem téchne e as com téchne“ (“Tôn dè písteon hai mènátechnoì eisin hai d’éntechnoi“). Vale a pena aprofundar o tema, pois é formulaçãousada ainda hoje sob outros nomes. As traduções correntes dizem “sem técnica e comtécnica” ou inartificiais e artificiais. Mas que pensamos ao ouvir a palavra artificial?

Flores de plástico são flores artificiais, sem perfume, sem vida: são flores falsas. Masprovas artificiais seriam provas falsas? Então toda a retórica, redefinida por Aristóteles,lidaria com provas falsas, deixando de lado as verdadeiras? Abandonando a tradução,tentemos compreender a divisão a partir do significado do termo usado para dividir.A classificação geral das provas opera pelo emprego do sufixo inclusivo én e do alphaprivativo, aplicados ao radical téchne. E que é téchne?

A retórica (teoria da prova) é uma téchne

Uma definição geral desse termo é dada logo na apresentação do curso: a retórica é umatéchne, não é uma epistéme, por ser aquela de uso geral de todos, ao passo que esta é umsaber especializado. Uma segunda definição aparece ainda na apresentação do cursoquando Aristóteles defende a utilidade desse ensinamento, através de proposiçãoendóxica de como as coisas são: todos estão em situação de acusar alguém ou dedefender-se. Mas alguns têm êxito, outros não. Por que isso é assim? Investigar ascausas do êxito nessas disputas é algo que foge à mera visão da retina, precisa do olhoda alma para a procura de causas, e isso é teoria. Alguns têm exito por sorte, ou porquese familiarizam com a matéria. O êxito que depende da sorte não é seguro. E o êxitoque depende de familiaridade com o tema, por sua vez, demanda muito tempo. Mastudo que pode ser feito por sorte ou por experiência pode ser possivelmente mais bemfeito com conhecimento de causa. A téchne também é o oposto da empirîa e da sorte(tyché). Mas essas definições não realçam o elemento mais relevante que aproximatéchne e epistéme: sua comunicabilidade universal.

Vale a pena demorar um pouco no mapa aristotélico da parte da alma com lógos,discutido no Livro Z (VI) da Ética a Nicômaco, que tem sido mal compreendido comouma “hierarquia epistêmica”. Não existe isso em Aristóteles, porque a expressão trazconsigo a imaginação platônica da sinfonia, mais fortemente metafísica, em que umafaculdade da alma comanda, como regente, as partes baixas da alma, à obediência.Aristóteles pensa na cooperação entre todas as partes da alma.

Mas por que ele trata faculdades do lógos como virtudes? Nossa dificuldade está emafastar os preconceitos modernos com a palavra virtude. Pensamos logo no virtuoso, no

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exagero de quem não possui alma, apenas técnica, ou no trauma germânico da virtudecomo Dever. O termo grego areté, às vezes traduzido como excelência, diz apenas quealgo é bom e elogiável. Existem virtudes do corpo, virtudes éticas e também virtudes daparte da alma que é com lógos. Esculpir uma bela estátua é algo elogiável, a estátuaperfeita é um bem compartilhado numa comunidade integrada. Dedicar-se ao estudo émais que ocupação individual, é um bem social, virtude partilhada com a cidade. Fazerpolítica com discernimento sobre o justo e o injusto é uma virtude social. Aristótelesprecisava distinguir essas virtudes da parte da alma que participa do lógos para definirque virtude é essencial para auxiliar a distinguir o bem moral. Contrariamente àtradição, Aristóteles pensa que essa virtude não é uma téchne, como também não é umaepistéme. O estudo do livro Z (VI) da Ética a Nicômaco define rapidamente as cincovirtudes dianoéticas, mas dedica-se quase integralmente à phrónesis: a virtudedianoética que opera a mediação entre a parte da alma com lógos e o álogon: o mundodos sentimentos que também cooperam, a seu modo, com o bem, pois também seexpressam, mas de forma muda, sem palavras. Vejamos telegraficamente o quesignificam essas cinco virtudes-faculdades da parte da alma que é com lógos.

Epistéme é uma capacidade de conhecimento verdadeiro que lida com coisas que sãonecessariamente assim e não podem ser de outro modo; opera com demonstrações, masnão é capaz de fornecer a si mesma os primeiros termos dessas demonstrações. Amatemática é uma faculdade desse tipo, passível de ser comunicada a todos. É algo quese pode aprender e ensinar. E também esquecer.

Téchne é a virtude dianoética que lida com coisas que são capazes de ser deste oudaquele modo. As coisas que não são necessárias podem ser resultado do fazer(produzir) ou do agir. Mas a capacidade da alma que produz é diferente da capacidadeda alma que age: a principal diferença está em que a capacidade produtiva não se deixainfluenciar por prazer e dor. A técnica é uma virtude produtiva, parecida com a virtudeética do agir apenas naquilo que diz respeito a lidar com coisas que podem ser deste oudaquele jeito, mas é sobretudo mais parecida com a epistéme, no sentido de que podeser objeto de ensino e aprendizado. A téchne é algo que todos podem aprender, como seaprende a tabuada. Heidegger chama a téchne, por isso, de epistéme poietiké (2007, p.174). Téchne é know-how, algo que a gente sabe fazer, que se possui (quem tem esseknow-how pode até vendê-lo) mas só se aprende fazendo. Pode-se perder a técnica poresquecimento.

Phrónesis é a virtude da alma que afina nossa sensibilidade para o modo certo de agir,no tempo certo, nem antes nem depois, na intensidade adequada, nem demais, nem demenos. É a capacidade de mediação da parte da alma com lógos e o álogon, que lidacom aquilo que é afetado pelo prazer e pela dor. A phrónesis é uma disposiçãopermanentemente orientada para o bem e para o justo. Mas a phrónesis não é algo quepode ser simplesmente ensinado como se ensina a tabuada, e uma vez assimilada pelaalma não é passível de esquecimento: ninguém diz, a não ser metaforicamente, que emdeterminado evento esqueceu de ter coragem. É uma capacidade acessível a todos, masque por diversos motivos de prazer e dor nem todos são capazes de exercer com amesma intensidade.

Noûs é a capacidade da alma que apreende os primeiros termos, não passíveis dedemonstração. Apenas a partir desses termos é possível existir epistéme, pois esta não écapaz de alcançar a verdade de seus próprios pressupostos.

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Sophía é a combinação ideal de noûs e epistéme. O sábio não apenas consegueapreender os primeiros termos, mas também é capaz de deduzir a partir delesconhecimento de detalhes, uma longa série de ensinamento, e é por isso capaz deensinar.

Do ponto de vista lógico, as cinco capacidades admitem ser dividas em dois grandescampos: a que capta os primeiros termos torna possível o lógos; todas as demais sãopossíveis a partir desta primeira, que alguns chamam intuição intelectual. O noûs estáfora da lógica, pois fornece os primeiros termos, os princípios. Adotarei essa grandedivisão, adiante, ao discutir o princípio de uma teoria moderna da prova criminal,renomeando o noûs como pístis, pois sem pístis não existe lógos. Por enquanto,investigamos apenas se existe algum tipo de hierarquia entre as cinco virtudesdianoéticas. Sabemos que não é uma hierarquia epistêmica. Na investigação ética,Aristóteles – que já havia empreendido vasta investigação da lógica – descobre algoimportante que o separa do mestre e amigo Platão:

Para Platão, a alma é heterogênea, literalmente tem partes, tal qual modernamente será aalma de Kant, criticada pela verve de Hegel como um “saco de faculdades” (Hegel,1995, vol 3, p. 443), mas a capacidade de conhecimento é homogênea, é a epistéme quealcança na transcendência as Ideias e governa as faculdades inferiores.

Para o Aristóteles maduro, será tudo ao contrário: a alma é homogênea, mas ascapacidades de conhecimento da alma são diversas. Uns possuem maiordesenvolvimento na pura especulação; outros, em decisões práticas. E os filósofos, paraAristóteles, não “apenas não querem, eles sequer sabem governar” (Heller, 1983, p.259).

Mas existe uma hierarquia entre as cinco virtudes dianoéticas. Apropriando ensinamentoda filósofa, é possível descrever essa hierarquia como uma espécie de economia socialdas almas disponíveis na pólis. A hierarquia não se dá entre a faculdade que manda e asque obedecem, mas entre o que é socialmente mais ou menos raro (Heller, 1983, pp.256/7).

Contrariando os que pretendem ver na epistéme a governança suprema, essa virtude,juntamente com a epistéme poietiké (denominação de Heidegger para a téchne), está nabase da pirâmide. Ambas são as capacidades de conhecimento mais universais, poispodem ser objeto de ensino e aprendizado por todos. A capacidade de raciocinarconforme o modo demonstrativo do silogismo ou da indução é dada a todosindistintamente. Do mesmo modo, todas as técnicas: pode-se ensinar a arte médica, aarte naval, as classificações das constituições, a arte da prova ou retórica. Nesse patamaruniversal localiza-se a capacidade de racionalidade que se definirá modernamente comoo bom-senso cartesiano, distribuído igualmente entre todos.

Em degrau intermediário, aparece a phrónesis, socialmente mais rarefeita, como é maisdifícil tudo que mexe com prazeres e dores. Como explica a filósofa: “Em princípio, sãocapazes desta qualidade todos em igual medida, mas como a esfera dos páthe podeconduzir ao cometimento de atos maus, a aplicação constante da justa phrónesisrepresenta um valor (que corre em paralelo com o domínio de si) mais difícil dealcançar do que aquelas primeiras disposições. Por isso, a ação que aspira sempre aobem e que encontra o caminho de alcançá-lo é mais rara e mais difícil de praticar do que

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a boa téchne, por ser primordialmente um estrutura da própria alma do indivíduo”(Heller, 1983, p. 257).

Adiante na pirâmide encontramos o noûs e no ápice a sophía, virtudes ainda mais raras.O conhecimento dos primeiros princípios e a sabedoria que os utiliza em combinaçãocom a ciência são prerrogativa de poucos. Além disso, não são comunicáveis peloensinamento, não podem ser aprendidos. “As ideias geniais e grandiosas dos filósofosjônicos se baseavam todas no noûs, segundo Aristóteles. Por outro lado, há homensdotados de uma excepcional capacidade de distinção e raciocínio, mas que sãoincapazes de alcançar uma visão de conjunto. Por último, os mais grandiosos e sábios,são capazes de igualmente raciocinar e distinguir, mas também de compreender asrelações de todas as coisas em sua complexa integração” (Heller, 1983, p. 253).

O mais interessante dessa pirâmide é que ela contraria o jargão jurídico do “quem podeo mais, pode o menos”: aquele que tem o mais raro não tem necessariamente o menos.O sábio não é necessariamente um bom escultor, alguns são mais dotados de noûs,outros de epistéme, e ainda haverá os que possuem ambas, os verdadeiros sábios, aosquais pode faltar a phrónesis política, e por isso não são necessariamente os sábios osmelhores governantes.

Esse mapa da parte com lógos da alma ainda hoje parece exaustivo e exato. Uma teoriada prova criminal é uma téchne que pode ser objeto de ensino e aprendizado universal.Mas sabemos por experiência que o aprendizado de uma técnica não faz do mau juiz umbom juiz: é preciso afinação, phrónesis: esta, em tese, é acessível a todos, mas não éexercida por todos na mesma intensidade. Uma disposição permanente para a probidadenão é uma virtude tão frequente na economia social da alma judiciária. O que nos salvaé que alguma técnica, exigível de todos, também impõe alguns míseros limites àimprobidade.

Voltemos à divisão. Que aprendemos em saber que umas provas são com técnica eoutras sem?

Vejamos a definição oferecida pelo filósofo: “por átechna eu compreendo as provas quenão são produzidas por nós mas que simplesmente existem, como por exemplo,testemunhos, confissões, contratos e outras do gênero; por éntechna eu compreendoaquelas que são passíveis de ser construídas por nós através de algum método(kataskeuasthênai é aquele verbo kataskeuázein = construir, que vimos na construção deproposições no debate dialético, aqui na voz passiva).

O filósofo usa dois verbos distintos na definição das provas simplesmente existentes eas que são passíveis de construção: as primeiras são simplesmente usadas (toîs mènchrésasthai), as com téchne nós precisamos descobrir (tà dè eureîn). Ou seja, umascoisas a gente encontra e usa; outras, a gente precisa fabricar, produzir. Usar e produzir,colher e fabricar: não serão atividades diferentes? O que é dividido está no mesmo planohierárquico? Ou pelo menos é semelhante? Mas é parecido em quê?

A solução dessas dificuldades envolve compreender a estrutura do silogismo. Emborahaja evidência textual dizendo que um elemento é o mesmo que um tópos (1396b21-22), explicação posterior, corretamente traduzida por Slomkowski, indica que elementose tópoi são a mesma coisa apenas por serem ambos estruturas internas do entimeima. Se

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o entimeima é uma prova com técnica, as provas sem técnica talvez estejam dentrodessa estrutura. As provas sem técnica não são tópoi. Já sabemos que tópoi sãoargumentos auxiliares, hipóteses em silogismos hipotéticos ou instruções deinvestigação. Resta saber se as provas sem técnica seriam “elementos” da verdadeiraprova: a prova completa, fabricada, construída, produzida.

Quando Aristóteles comenta, rapidamente, as provas sem técnica, em generalidades,ainda úteis, sobre a interpretação de documentos e de testemunhos, dá uma pista para oque procuramos descobrir (linhas 1376a29-32, em paráfrase): “todas as outras questõesque envolvem testemunhas, se amigo, inimigo ou indiferente; se de boa, má ou medianareputação; e ainda para todas as outras diferenças desse tipo devemos recorrer aosmesmos tópoi de que já falamos ao tratar daquilo de que são feitos os entimeimas”.

Evidencia-se aqui que as provas sem técnica (átechna) não possuem seu próprio lógos.Mas aquilo que verdadeiramente convence é um tipo de demonstração silogísticachamado de entimeima. O entimeima é formado de partes, a saber: tópoi (às vezes otexto diz proposições, protáseis) e elementos. Não é difícil concluir que as provas semtécnica são elementos úteis (existentes, que a gente apenas usa) na construção da prova,como matéria-prima da prova construída. Se o desenvolvimento do raciocínio não éabusado, chegamos a concluir que a divisão geral das provas entre provas com téchne esem téchne – para não ser enganadora – talvez mereça outro nome.

Se existe apenas um tipo de prova (com técnica), a melhor modernização para a divisãoaristotélica seria considerar que a prova será sempre éntechna, produzida, e que todas asprovas existentes, que precisam apenas ser colhidas e apresentadas para o debateconstituem logicamente meros “elementos de prova”. Porque as provas definidas peloalpha privativo compartilham algo com a parte sem lógos da alma (o álogon), que comovimos não deve ser associado ao irracional. Elas expressam algo relevante, mas sãomudas: elas só se tornarão convincentes se forem interrogadas no debate dialéticosujeito às objeções de um adversário, e regulado em seu fair-play pelo juiz e pelosjurados. A testemunha diz que viu algo, mas um sem-número de sub-argumentos serãodesenvolvidos até que se prove a credibilidade desse testemunho (algo que jáexemplificamos com a demolição de credibilidade de um testemunho pelo primeirojurado do filme Twelve angry men).

No sentido lógico, as provas sem técnica são o mesmo que outros elementos doentimeima, os fatos conhecidos e provados que autorizam por indução a concluir aexistência de outro fato ou circunstância, que chamamos de indícios, e que emAristóteles recebem três nomes: eíkos, semeîon e tekmérion. Recolho, adiante, nasegunda parte e na teoria do indício, as interessantes observações de Aristóteles sobre osindícios. Por enquanto, limitado às três perguntas introdutórias, é suficiente o queestudamos para avançarmos um pouco nas respostas.

Que é prova? Prova é um tipo de demonstração, e também tudo que convence alguém.Que tipos de prova existem? As que simplesmente existem (os elementos de prova), eaquelas que precisamos construir com o pensamento (com o lógos). Que significaprovar? Provar é produzir/construir a prova, com proposições verossímeis (endóxicas),verdadeiras no sentido cotidiano da palavra, à prova de objeções razoáveis. Como seproduz/constrói ou destrói a prova? A partir da matéria-prima existente (os elementosdisponíveis para ser usados, testemunhos, documentos, indícios), construindo sub-

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argumentos auxiliares que confiram credibilidade aos elementos de prova, ou destruamessa credibilidade, com auxílio dos tópoi, escolhidos conforme o caso. Onde se produza prova? Perante o juiz ou perante os jurados, no espaço do debate dialético em que oproponente constrói sua prova, ao passo que o adversário destrói essa construção,através de objeções. Quando se produz a prova? Podemos com legitimidade falar emprodução da prova apenas no exato instante em que tomamos a palavra (o lógos, nosentido de linguagem) para sustentar um argumento lógico hábil ao convencimento.Antes disso somos (como atores do processo) espectadores da apresentação das provasexistentes, coadjuvantes no processo de torná-las convincentes ou inconvincentesatravés do debate dialético. No processo penal, o tempo de produção da prova (nosingular) ocorre apenas depois de encerrada a chamada “instrução probatória”.

Concluímos, não sem alguma surpresa, quanto pode ser enganadora a primeira eclássica divisão das provas em dois tipos, porque as provas inartificiais, sem técnica ounaturais, como por vezes apropriadas na tradição, são apenas elementos de prova: essadivisão não divide grandezas semelhantes, apenas assinala dois modos distintos de usoda palavra: um em relação ao todo; outro, a uma de suas partes. Por isso, Aristóteles dizclaramente desde o início da teoria da prova (1354a14) que só existe um tipo de prova, a que é produzida com técnica, com lógos: písteis éntechnón esti mónon.

7. O “paradigmaindiciário”. Aproximação

novembro 19, 2012

Se foi difícil caminhar por alguns aposentos da casa de Aristóteles, mais difícil seráquerer sair de lá. Pois precisaremos combinar a análise lógica mais ou menos estáticacom a abordagem dinâmica da prova criminal, sua historicidade, termo que seempregará na forma proposta na teoria da história de Agnes Heller. Historicidade não ésó estar na história, mas tomar consciência disso. A filósofa sugere que a reflexão sobrea historicidade envolve as três perguntas que o pintor Paul Gauguin escreveu em óleosobre tela no Taiti por volta de 1897: “De onde viemos, quem somos, para ondevamos?” (Heller, 1982, p. 4)

D’où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous? 139.1 × 374.6 cm, Museum of fine arts, Boston (Fonte: Wikipedia)

Nosso enigma histórico é o mesmo explorado por Max Weber em sua teoria daracionalização como compreensão da modernidade: por que caminhos estranhos amodernidade jurídica se construiu sob sistemas em tudo antagônicos, representadospelos tipos-ideais do direito inglês e do direito continental?

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Por enquanto, seguindo a ordem de temas proposta na introdução, começo a discutir quecapacidades ou virtudes são mobilizadas para julgar a prova, a partir do que aprendemosna exposição telegráfica do mapa da alma apresentado pelo filósofo no livro Z (VI) daÉtica a Nicômaco. Começando pelo fim, adianto que não é possível responder de modounívoco à pergunta sobre que capacidades mobilizamos para julgar a prova. Minharesposta obedece à perspectiva sob a qual esta teoria examina a prova criminal. Entãoprecisamos discutir, antes, o tema anunciado no subtítulo e até agora em suspenso: quesignifica esse tal “paradigma indiciário”?

Não inventei o nome, copiado do ensaio Sinais: Raízes de um paradigma indiciário(Spie: Radici di un paradigma indiziario, 1979), de Carlo Ginzburg (2011, p. 143-179).O que se precisa inventar, aqui, se a palavra não for imprópria, é como justificar essaapropriação numa teoria da prova criminal, terreno parecido, mas não idêntico aoexplorado pelo historiador, e definir com que direito se usará a expressão paradigmanuma teoria da prova criminal.

Que é um paradigma?

Modo seguro de orientação é começar pelo começo. A teoria dos paradigmas é umaexplicação filosófica para a pergunta sobre o que constitui conhecimento verdadeiro nasciências da natureza, proposta por Thomas S. Kuhn em 1962, com a publicação doensaio A estrutura das revoluções científicas. Nesse terreno, a proposta pode ser vistacomo concorrente da versão representativa na filosofia da ciência, que até então seapresentava com ênfase no elemento da falseabilidade/falsificação como critérioconstituinte do que seria uma ciência da natureza, proposta por Karl Popper.

Nas duas versões, a reflexão dos filósofos está ligada originalmente às ciências danatureza. A primeira edição alemã da obra de Popper, com prefácio de 1934, traziasubtítulo esclarecedor: “sobre a teoria do conhecimento da ciência da naturezamoderna” (Zur Erkenntnistheorie der modernen Naturwissenschaft), como se lê emapêndice à edição brasileira (Popper, 2007, p. 531). Thomas Kuhn, por sua parte, deixabem claro que a teoria dos paradigmas não se aplica às “ciências cuja principal raisond’être seja uma necessidade social exterior à ciência, como é o caso da tecnologia, damedicina e do direito”, e deixa em aberto a pergunta sobre “que setores da ciência socialjá adquiriram esses paradigmas” (Kuhn, 1996, pp. 19, 15). Qualquer extrapolação desseterreno limitado será responsabilidade do receptor, adquirente, por assim dizer, dasteorias. O uso do termo por Ginzburg é extrapolação do sentido original, o que exigejustificação.

Paradigma, segundo Kuhn, é um termo que diz respeito à ciência em sua condição denormalidade. O estudo do paradigma de uma ciência madura proporciona ao aluno umbilhete de ingresso na comunidade científica, pois o habilita ao uso de uma linguagemesotérica, compreensível apenas entre iniciados, que elabora regras e métodos deabordagem dos fenômenos da natureza, e opera como uma lente de aumento (a metáforaé de minha responsabilidade, não está no texto de Kuhn) que possibilita ver osfenômenos da natureza que interessam àquela ciência. Sem essa lente, todos osfenômenos adquirem a mesma relevância, ou seja, são também todos igualmenteirrelevantes. Nesse caso, o fenômeno da natureza que será objeto da ciência resultará deuma escolha aleatória que obedecerá, normalmente, ao critério de aproveitamento dariqueza de fenômenos que estão mais à-mão do pesquisador. Enquanto não existe um

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corpo de conhecimentos pelo menos implícito que contenha crenças teóricas oumetodológicas, o simples ato de selecionar fenômenos de interesse da ciência seráguiado por algum tipo de saber exterior à ciência, como a metafísica, outra ciência, ouainda por puro acidente histórico ou biográfico. À medida que amadurece, uma ciêncianormaliza o seu paradigma, elevando o corpo de saberes que permitem a seleção, aavaliação e a crítica dos fenômenos, à condição de paradigma único, de tal modo querenunciar ao paradigma significa renunciar à própria ciência.

Essencial na teoria dos paradigmas é a contraposição entre situação normal e situaçãode crise. Kuhn compara as grandes mudanças de perspectiva na ciência às revoluçõespolíticas. A mudança de paradigma, inicialmente posta como um desafio do tipo que talse olharmos a situação sob outro ângulo, ou mesmo de cabeça para baixo, é como umarevolução. Na situação de normalidade, o paradigma é dado por estabelecido (taken forgranted). O cientista que procura avançar em determinada ciência já não precisa discutirseus primeiros termos e é assim que a ciência progride. Cientistas não gostam deinventar teorias novas, e normalmente veem com intolerância as invenções dos outros(Kuhn, 1996, p. 24). Cientistas também não costumam filosofar e até olham comsuspeita as filosofias (Kuhn, 1996, p. 88).

Crises de paradigmas são momentos em que esse corpo de conhecimento enfrentaalguma proposta nova. Essa proposta nova aparece quando o paradigma deixa situaçõesmal-resolvidas ou por resolver. Toda ciência abarca três tipos de fenômenos:

(1) os que o paradigma permite explorar, conhecer e explicar;

(2) os que o paradigma permitirá explorar, à medida que a ciência avançar para detalhesainda inexplorados; e

(3) as anomalias, os fenômenos que teimam em não combinar com o paradigma, ou quesua capacidade explicativa não compreende. Aqui é interessante registrar que Kuhncompreende a teoria da falsificação de Popper como uma versão limitada do problema,que apenas abarcaria o tópico das anomalias. Divergindo de Popper, Kuhn entende quenão existe a falsificação de uma teoria por um evento natural, pois este eventofalsificador já terá sido captado pelo paradigma concorrente (Kuhn, 1996, p. 146ss).

Nos dois primeiros casos, “enquanto se engaja na ciência normal, o pesquisador é umresolvedor de problemas, não alguém que põe em xeque os paradigmas [...] ele é comoum jogador de xadrez que diante de um problema posto no tabuleiro, física oumentalmente, tenta várias jogadas alternativas em busca de uma solução” (Kuhn, 1996,p. 144-145).

Mas nenhuma dessas jogadas põe em xeque o paradigma. Só se põe em xeque oparadigma no caso de anomalias, depois de muitos fracassos na tentativa de resolver umproblema relevante, o que gera uma crise comparável a um tumulto político ourevolução (daí o nome do ensaio, a estrutura das revoluções científicas). A competiçãoentre paradigmas não é algo normal na ciência natural, é antes sintoma de crise. Aeleição de um paradigma novo não se explica por critérios lógicos e nem mesmopersuasivos, pois para começar a compreender os fenômenos que o paradigma novopermite explorar já é preciso adotar pelo menos a linguagem do novo paradigma. Porisso, Kuhn compara a adoção de um paradigma novo a um “ato de fé” e uma espécie de

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“conversão” (Kuhn, 1996, p. 150), expressões que certamente devem ter chocado osfilósofos da ciência. Citando Max Planck, Kuhn endossa a conclusão de que umaciência nova não vence por convencer seus oponentes e fazê-los ver sua luz, mas emgeral porque estes “um dia morrem e uma nova geração já cresce familiarizada com ela”(Kuhn, 1996, p. 151).

Concluímos algo importante sobre a noção de progresso na ciência. Uma vez que umparadigma triunfa, torna-se possível progredir porque seus fundamentos não são postosem xeque, e a exploração dos fenômenos pode prosseguir de modo cumulativo,estudando cada vez mais detalhadamente os fenômenos. Outro dado importante, emcomparação com as filosofias e as ciências sociais, é que o paradigma científico podeser ensinado às novas gerações pelo livro-texto sem risco de perder-se a profundidadeda teoria científica. O contrário acontece na filosofia:

“Na filosofia, até mesmo na fase introdutória, o aluno deve ler os ‘clássicos’ e nãoapenas seus resumos em livros-texto. Na ciência, porém, é normal que Newton, Faradaye Einstein sejam lidos apenas naquilo que o livro-texto apresenta” [e] “para as tarefasdo trabalho científico normal, para a solução de problemas dentro da tradição definidapelos livros-texto, o cientista está quase que perfeitamente equipado” (Kuhn, 1996, p.165-166).

Em síntese, o que caracteriza a normalidade das ciências naturais é que um únicoparadigma deve servir de fundamento à pesquisa científica. A ciência natural resolveproblemas teóricos no marco desse paradigma, e cumulativamente constrói o que sechama de progresso científico, mesmo que seja sempre um progresso limitado àsfronteiras daquele paradigma.

Extrapolações

O termo paradigma ganhou mundo e expandiu-se livremente, com mais ou menosresponsabilidade, para outros terrenos.

Recepção entusiástica do pensamento de Kuhn na universidade levou muita gente apensar que também em filosofia existiria o tal paradigma único. Talvez porque oparadigma da produção da filosofia-ciência de Karl Marx, dominante em boa parte doséculo 20, tenha sido mescla de filosofia e ciência, e no que era ciência tenha sidocompletamente falsificado (no sentido de Popper), alguns imaginaram que só se poderiafilosofar com seriedade no século 20 de acordo com o novo pretendente, o paradigma dalinguagem, depois do que seria um evento histórico, o tal “giro linguístico”.

Reflexão mais sóbria não permite subscrever ao triunfalismo do paradigma dalinguagem. Precisamos compreender as diferenças entre o emprego do termo paradigmano modelo original das ciências da natureza e seu uso em outros terrenos. A metáforaadequada para comparação com as filosofias talvez seja a de uma fotografia emnegativo. A situação da filosofia e das ciências sociais é em tudo o exato contrário dasituação da ciência natural: o que na ciência natural é normal, nas filosofias e ciênciassociais é aberração (simples dominação ideológica); a concorrência de paradigmas, quena ciência natural é sintoma de crise, na filosofia e nas ciências sociais é sintoma denormalidade.

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Mas há outras diferenças relevantes: a noção de “comunidade científica” como últimoárbitro da validade de determinada pesquisa científica é viável no contexto das ciênciasnaturais; as filosofias e ciências sociais, ao contrário, perdem relevância se não foremrecebidas pelo público não-especializado, o que cria um paradoxo não resolúvel detodo: as filosofias e ciências sociais, tal como as ciências da natureza, não podem ter oseu valor medido pela recepção popular, o que as tornaria apenas ideologias, mas oextremo oposto da absoluta ausência de recepção popular faz com que elas não tenhamrelevância.

Outro dado interessante na compreensão da pluralidade de paradigmas nas filosofias eciências sociais é que a concorrência entre os paradigmas não se dá em pé de igualdade.Porque tal como ocorre na comunidade científica, existe na filosofia e nas ciênciassociais algo parecido com um establishment. A diferença é que esse establishment dasfilosofias e ciências sociais obedece a razões que por vezes chegam a ser aleatórias,como são os fenômenos de moda. Além dos modismos acadêmicos, a prática da ciênciasocial e da filosofia também está associada ao pertencimento a instituições políticas. Aconcorrência entre paradigmas nas filosofias e ciências sociais obedece de modo maismarcante que nas ciências da natureza a critérios vigentes no tempo e no espaço para adistribuição social de honra e prestígio, algo que na sociologia de Max Webercaracteriza a vida interna dos estamentos sociais, diferentes das classes sociais. Parecelegítimo concluir que, tal como nas relações sociais e políticas, existirão paradigmasdominantes e paradigmas marginais. (Meu paradigma indiciário na teoria da provacriminal, em nossa tradição, ainda é um paradigma marginal, mesmo que o valor dosindícios tenha sido um pouco elevado acima da original condição marginalizada quetinha entre nós sob influência do garantismo, por ocasião do julgamento da ação penaldo chamado mensalão pelo Supremo Tribunal Federal: pois que sem uma construçãoteórica firme, esses avanços tornam-se episódicos e não estão assegurados). Nasciências sociais no Brasil, é interessante notar que não obstante a dominação doambiente universitário pelo paradigma da produção (também chamado de perspectivamarxista), o que restou de clássico no século 20 foi produzido sob paradigmasmarginais, como exemplificam, cada qual a seu modo, Gilberto Freyre e Sérgio Buarquede Holanda. Na filosofia, o paradigma da linguagem (ainda hoje talvez) apresenta-secom pretensão a ser o paradigma dominante, mas como bem diz a filósofa, valendo-seda metáfora política:

“o paradigma da linguagem e seus sub-paradigmas são apenas casos de imperialismofilosófico. As teses de que todas as coisas são linguagem ou de que todas as coisas sãocomunicação são especulações filosóficas igualmente e absolutamente legítimas. Mastambém são legítimos os paradigmas do trabalho, da imaginação e da consciência, e atémesmo a proposição de que tudo é matéria e forma não lhes é inferior” (Heller, 1990a,p. 44).

E qual seria a situação das ciências sociais?

Precisamos distinguir as diferenças essenciais entre as ciências sociais e as ciências danatureza. O que em primeiro lugar salta aos olhos é que as ciências sociais não resolvemprecipuamente problemas teóricos, elas também resolvem alguns problemas masprecipuamente oferecem sentido (meaning). Segundo, que não existe cumulatividadenas ciências sociais. Ninguém diria, por exemplo, que:

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“Marx resolve um problema, Tonnies confia na solução e dá um passo adiante, Weber,confiando nos dois, dá um passo um pouquinho mais à frente, Parsons, herdando todasessas soluções junta à lista mais uma solução, ao passo que hoje Luhmann construirianovas soluções a partir das soluções de todos os sociólogos precedentes. Isso soa comouma paródia […] a razão para isso é simples: as ciências sociais não resolvem,predominantemente, problemas sociais, em primeiro plano. Elas criam ‘sentido’ e assimcontribuem para o nosso autoconhecimento” (Heller, 1990a, p. 14).

As ciências sociais, em suas elaborações representativas e relevantes, fornecem sentido(meaning) às indagações que temos sobre nosso modo de estar no mundo, nossahistoricidade, enfim sobre todos os temas e problemas que elas abordam.

No universo das ciências sociais, a que mais nos interessa é a historiografia. Prossigo naestrutura geral da teoria da história da filósofa, que elabora, entre outras questões, apergunta sobre: que significa conhecimento histórico verdadeiro?

O conhecimento histórico ergue-se sobre a verdade dos fatos, mas a verdade dos fatos, eapenas ela, não é suficiente para que a gente considere determinado texto comohistoriografia. Uma coleção de fatos verdadeiros é um produto auxiliar, uma espécie defonte do historiador, mas ainda não é história, pode ser jornalismo ou crônica histórica.A elaboração mais esclarecedora do problema (aqui como em tudo o mais, na minhaopinião) da historiografia é oferecida na teoria da história da filósofa, ao compreender afase inicial de reconhecimento do fato verdadeiro como um evento que obedece àsregras e à estrutura geral da vida cotidiana. Nessa fase inicial, é próximo o parentescoentre o historiador e o juiz ou investigador criminal. Essa fase não é científica. Não há,em tese, diferença entre a descoberta do fato histórico ou do fato criminal e a atitudecotidiana de descobrir o que de fato aconteceu na briga entre os filhos. Ocorreu um fatoque não vimos, precisamos saber o que ocorreu. Procederemos de modo investigativo naformulação de perguntas: quem começou? Ouvimos os envolvidos, e não sabemosdecidir: procuramos testemunhos de terceiros. Examinamos os vestígios materiais,quem se feriu e como? Da soma de evidências extraímos uma conclusão que não podeser comparada ao “jogo de xadrez” da ciência natural, segundo a metáfora de Kuhn,pois não temos diante de nós um problema teórico que desafia o jogador a testar passoscom seus peões, temos um problema prático-pragmático para resolver. Depois de nossaconclusão, chegaremos nesse evento cotidiano a um momento comparável aodispositivo da sentença criminal: isso posto, tudo visto e examinado, quem começoupagará castigo de uma semana sem videogame; por outro lado, como a reação doprovocado foi desproporcional, pagará este três dias sem videogame. Uma investigaçãocriminal não é nada diferente disso: é pura afetação de teorias pretender falar nesseterreno em epistemologias e teorias do conhecimento científico.

Que constitui a diferença entre o historiador e o juiz? A diferença essencial é que ohistoriador não pode contentar-se apenas com a verdade dos fatos. Ultrapassada a fasede colheita da prova e descoberta do fato como realmente ocorreu, termina o seuparentesco com o juiz criminal. Pois aqui começa (ou não) a realmente existirhistoriografia como conhecimento verdadeiro. O conhecimento verdadeiro dahistoriografia é diferente da simples exposição do fato como realmente ocorreu porqueprecisa oferecer sentido (meaning) ao fato histórico. Por isso, toda historiografia comoconhecimento verdadeiro (no sentido de epistéme) conterá alguma teoria aplicada aofato e uma grande teoria de fundo: a explicação da filósofa para a historiografia permite-

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se combinar as duas versões representativas da filosofia da ciência: na teoria aplicada, ahistoriografia está sujeita, por ser ciência, a ser falsificada, no sentido popperiano.Podemos então dizer, por exemplo, que a historiografia de Marx, que almejava serciência (o filósofo orgulhosamente afirmava que sua teoria elevara o socialismo da faseutópica para a fase científica), foi falsificada e não é mais ciência, o que não significadizer que Marx morreu para a inteligência humana, porque Marx é filósofo, e filósofosnão morrem, porque as filosofias não são falsificáveis como as ciências (se nos forpermitido corrigir a memorável confusão de Popper entre ciências e filosofias em suaobra sobre os amigos e inimigos da sociedade aberta). Mas toda historiografia relevanteconterá em seu cenário uma grande teoria e aqui é aplicável a teoria dos paradigmas deKuhn: não constitui demérito para o historiador essa dependência da historiografia àsfilosofias. O que se exige do conhecimento histórico verdadeiro é que ele apresentesentido (meaning) para os fatos, e as grandes fontes de sentido são formulações que nafilosofia de Hegel eram associadas ao espírito absoluto (compreendendo arte, religião efilosofia). Um fato histórico poderá ser contado de modo igualmente verdadeiro sobdiferentes paradigmas (do ponto de vista weberiano, do ponto de vista freudiano, doponto de vista foucauldiano, e assim por diante), e isso não diminui a verdade do fatohistórico. Diferente disso é se na fase inicial, comum ao historiador e ao investigadorcriminal, o fato interpretado pela historiografia não existir ou for falsificado porideologia ou deficiência na colheita ou análise da prova. No primeiro caso, teremos parao historiador o mesmo que ocorre com o investigador criminal: pura e simplesimprobidade.

Concluímos, aqui, que o parentesco do juiz criminal ao historiador acontece apenasnuma fase cotidiana de aproximação da verdade dos fatos. E é nessa fase cotidiana deverdade que permaneceremos em nossa teoria da prova criminal, sem dar um passoadiante disso. Concluímos que se pode dizer com legitimidade, na historiografia, quenão existem fatos, apenas interpretações. Mas o dito não é válido na estrutura deverdade da vida cotidiana: os fatos existem. Quem arbitra uma briga entre os filhos sabeque os fatos existem, e procura, no melhor de sua fé, alcançar a verdade dos fatos.

Todos os dias ouvimos das testemunhas a promessa de dizer a verdade, nada mais que averdade, e apenas excepcionalmente perguntamos a alguém sua opinião sobre os fatos.A testemunha jura que diz a verdade, não que dá sua opinião sobre o fato. Por isso tudo,parece que a teoria dos paradigmas não faz sentido numa teoria da prova criminal.

E no entanto nossa teoria já cometeu o abuso de anunciar-se com o subtítulo de“paradigma indiciário”. (Uma solução seria revogar o subtítulo. Mas algo me diz que agente não cria problemas que não consegue resolver. Então deixemos lá o subtítulo, queexpressa algo essencial nesta teoria). Prosseguirei com Ginzburg, e a partir dele de voltaao mapa aristotélico das cinco capacidades/virtudes dianoéticas. E veremos onde issovai dar.

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8. As raízes do paradigma indiciáriosegundo Carlo Ginzburg

janeiro 8, 2013

No ensaio que me inspirou a adotar o subtítulo desta teoria da prova, o historiadoritaliano Carlo Ginzburg sintetiza sua proposta dizendo que tentará

“mostrar como, por volta do século XIX, emergiu silenciosamente no âmbito dasciências humanas um modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma) ao qualaté agora não se prestou suficiente atenção. A análise desse paradigma, amplamenteoperante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dosincômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo’.” (Ginzburg, 2011,p. 143).

O ensaio de Ginzburg estrutura-se em duas partes: (1) descreve o paradigma indiciário,e (2) descreve a genealogia de um caso de conhecimento indiciário, contando as origensdo conhecimento pericial que hoje conhecemos como papiloscopia.

O paradigma indiciário é descrito a partir do chamado “método morelliano” deatribuição de autoria nas artes plásticas. Entre 1874 e 1876, Giovanni Morelli publicouem alemão, sob pseudônimo de Ivan Lermolieff, suposto estudioso russo, uma série deartigos sobre a pintura italiana em que propôs um método novo de atribuição de autoria.Segundo Morelli, para atribuir corretamente autoria a obras não-assinadas e outrasatribuídas de modo incorreto, mais que à visão total da obra seria preciso prestaratenção aos detalhes, aos “pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciadospelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas,as formas dos dedos das mãos e dos pés” (Ginzburg, 2011, p. 144).

Os escritos de Morelli apresentavam catálogos de orelhas típicas, com os quais o autorjulgava atribuir corretamente um quadro que retratava uma orelha de Botticelli, porexemplo. O método foi considerado grosseiro, positivista e mecânico: estamos na idadede ouro da criminologia positivista: Cesare Lombroso publica em 1876 sua obra sobreO homem criminoso, cujo horizonte histórico é bem descrito em livro de PierreDarmon, Médicos e assassinos na Belle Époque (1991, pp. 36ss). Mas Morelli não foicompletamente ignorado: a pesquisa sobre a carreira do método morelliano levaGinzburg a associação desse método à medicina, a partir de revelação de SigmundFreud, em ensaio de 1914 sobre O Moisés de Michelangelo, cuja autoria Freud admitiuapenas mais tarde na edição de suas obras completas:

“Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar da psicanálise vim a saber que umespecialista de arte russo, Ivan Lermolieff, cujos primeiros ensaios foram publicados emalemão entre 1874 e 1876, havia provocado uma revolução nas galerias de Europarecolocando em discussão a atribuição de muitos quadros a cada pintor (…) Foi depoismuito interessante para mim saber que sob o pseudônimo russo escondia-se um médicoitaliano de nome Morelli (…) Creio que o seu método está estreitamente aparentado àtécnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas

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e ocultas, através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou‘refugos’ da nossa observação” (Freud, citado por Ginzburg, 2011, p. 147).

O método morelliano também havia sido comparado ao método atribuído, na mesmaépoca, a Sherlock Holmes, por seu criador, Arthur Conan Doyle, o qual antes dededicar-se à literatura havia sido médico.

Bem se vê que não é casual a confluência de três médicos na investigação de pistasnormalmente negligenciadas dos fatos. A medicina hipocrática, lembra Ginzburg,“definiu seus métodos refletindo sobre a noção decisiva de sintoma (semeîon)”[transliteração alterada, MA]. Esse paradigma indiciário na medicina constituiu umparadigma implícito: “esmagado pelo prestigioso (e socialmente mais elevado) modelode conhecimento elaborado por Platão” (Ginzburg, 2011, p. 155).

Ginzburg debita a marginalização do método indiciário à “cesura definitiva” sofridapelas noções de “rigor” e “ciência” com o aparecimento da física galileana, pois “ogrupo de disciplinas que chamamos de indiciárias (incluída a medicina) não entraabsolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos,situações e documentos individuais, enquanto individuais“. Mais adiante, aponta adiferença em relação ao outro paradigma, pois:

“A ciência galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lemaescolástico individuum est ineffabile, do que é individual não se pode falar. O empregoda matemática e o método experimental, de fato, implicavam respectivamente aquantificação e a repetibilidade dos fenômenos, enquanto a perspectiva individualizanteexcluía por definição a segunda, e admitia a primeira apenas em funções auxiliares”(Ginzburg, 2011, p. 157).

Ginzburg aproxima a medicina à ciência da historiografia porque ambas descartam oparadigma galileano e assumem que “quando as causas não são reproduzíveis, só restainferi-las a partir dos efeitos” (2011, p. 169). Na segunda parte do ensaio, Ginzburgbusca na origem da papiloscopia a vertente marginal do paradigma indiciário, um tipode saber que não se afeiçoa por abstrações mas por detalhes do evento único, irrepetível,individual. Relata como o método indiciário de identificação de criminosos surgiu naEuropa por conta de uma necessidade social: a extinção do estigma. Antes, o criminosoreincidente, por exemplo, era marcado no corpo com o estigma do crime. Com aabolição do estigma (na França em 1832), surgiu um problema: como identificar oreincidente? E com o problema surgiram propostas de solução, entre elas aantropometria, a constituição do chamado “retrato falado”, por Bertillon (p. 174). Atéque Willian Herschel, administrador do distrito de Hooghly, em Bengala, descobriu queno Oriente costumava-se “imprimir nas cartas e documentos uma ponta de dedo borradade piche ou tinta”. Essa prática estava associada ao desenvolvimento de umasensibilidade para a leitura dos sinais individuais, únicos, de cada indivíduo. Adescoberta foi relatada por Herschel em 1880, na revista Nature, ao contar como“depois de dezessete anos de experiências, as impressões digitais foram introduzidasoficialmente no distrito de Hooghly, onde já eram usadas havia três anos com ótimosresultados” (p. 176). Desse artigo surgiu inspiração para a elaboração sistemática dapapiloscopia por Galton, depois o método de identificação foi introduzido na Inglaterra,e gradualmente em todo o mundo (p. 177).

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A conclusão junta as duas partes do ensaio. Interessado na revalorização da prova nahistoriografia, Ginzburg opõe ao paradigma dominante daabstração/quantificação/reprodubitilidade das ciências físicas – que ele chama deparadigma galileano – o paradigma da qualidade/individuação/irreprodutibilidade, dosaber indiciário médico e policial (que associa ao conhecimento historiográfico). Aodescrever o método indiciário, Ginzburg conclui que aqui “entram em jogo (diz-senormalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”. E é interessanteregistrar como o autor fugia e de repente libera o uso dessa palavra perigosa: intuição.

“Até aqui abstivemo-nos, escrupulosamente, de empregar esse termo minado. Mas, sese insiste em querer usá-lo, como sinônimo de processos racionais, será necessáriodistinguir entre uma intuição baixa e uma intuição alta. A antiga fisiognomia árabeestava baseada na firasa: noção complexa, que designava em geral a capacidade depassar imediatamente do conhecido para o desconhecido, na base de indícios. (…) Essa‘intuição baixa’ está arraigada nos sentidos (mesmo superando-os) – e enquanto tal nãotem nada a ver com a intuição supra-sensível dos vários irracionalismos dos séculosXIX e XX. É difundida no mundo todo, sem limites geográficos, históricos, étnicos,sexuais ou de classe – e está portanto muito distante de qualquer forma de conhecimentosuperior, privilégio de poucos eleitos. É patrimônio dos bengaleses, expropriados do seusaber por sir Willian Herschel, dos caçadores, dos marinheiros, das mulheres. Uneestreitamente o animal homem às outras espécies animais” (Ginzburg, 2011, p. 179).

Problemática

Se descontarmos a retórica politicamente correta da conclusão anti-eurocêntrica deGinzburg, o ensaio é interessante, principalmente porque, no contexto do quedesenvolvemos até aqui nesta teoria da prova, suscita mais problemas que soluções.Pois: 1. Será possível falar num “paradigma indiciário” que resolva o problema dacontraposição entre racionalismo/irracionalismo? 2. Que tipo de racionalidade estáenvolvida nessa capacidade identificada pelo tal paradigma indiciário? 3. Se esseparadigma é aplicável à medicina e às investigações policiais, em que medida estas duaspráticas são parecidas com a historiografia, para que nos seja autorizado associá-las namesma classe? 4. Isso que Ginzburg identifica como modo indiciário é um paradigmaou uma epistemologia? Não será preciso discutir antes em que sentido se pode falar emepistéme na historiografia? 5. E outro problema que não é pequeno: que sentido pode terfalar em “intuição” numa teoria da prova? 6. Que é intuição e como funciona? 7. Comoé possível, enfim, seguir usando de empréstimo a expressão de Ginzburg de modoconsistente com a moldura filosófica geral de nossa teoria da prova? 8. Mas qual eramesmo a moldura filosófica de nossa teoria da prova?

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9. Problemática do “paradigmaindiciário”: Que significa epistemologia?

janeiro 10, 2013

Retomando o fio da meada: discutíamos que capacidades intelectuais empregamospara julgar a prova. Foi proposto como hipótese que isso depende do paradigma peloqual examinamos a prova numa teoria da prova. Voltamos então ao subtítulo desta teoriaapresentando o “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg. Descobrimos queapareceram mais problemas que soluções. Pois nada pode ser mais confuso doque começar a descrição do tal paradigma indiciário como uma certa “epistemologia” econcluir dizendo que para usá-lo é preciso desenvolver um certo “faro, golpe de vista,intuição”.

Como dizia o poeta Paulo Leminski: “problemas têm famílias grandes/ e aos domingossaem todos passear/ o problema, sua senhora/ e outros pequenos probleminhas” (Bemno Fundo, em Distraídos venceremos, 1987). Passo a discutir dois pequenosprobleminhas: epistemologia e intuição.

Segundo Ginzburg, o modo indiciário de conhecimento constitui uma epistemologiamarginalizada, comum à historiografia, à investigação criminal e à medicina. Se aepistemologia é a ciência que investiga qualquer forma de conhecimento, parece queseria uma ciência a ser estudada numa teoria da prova, pois afinal a verdade dos fatos éalgo que se conhece (no sentido de que não se sabe, mas procura, perscruta, investiga,examina, avalia, etc). Mas uma ciência como essa parece um exercício meio escolásticode querer aprender a nadar sem entrar na água, pois que diferença faz investigar como éque pensamos para concluir sobre a ocorrência de um fato, desde que a gente concluacom razão, justamente? Quem perguntará como é que nós raciocinamos para chegar lá?E pensaremos melhor se descobrirmos o enigma?

A prova criminal interessa ao juiz e ao jurado. Ao juiz não se pergunta como pensoupara chegar à conclusão, se deu um salto intuitivo para a conclusão ou se enveredou porcaminhos tortuosos, com avanços e recuos. Sabemos que às vezes é de um jeito, outrasvezes de outro, e isso não altera a situação, pois de qualquer modo o que interessarásempre é o modo como o juiz justifica, depois de ter pensado, a sua conclusão, quegarantias nos dá de que acertou. Em suma, a lógica que se pede é a consistência doargumento, posterior ao pensamento.

Ao jurado não se pergunta como pensou para votar culpado ou inocente, e nem se pedejustificativa posterior. Mas isso talvez não signifique que o jurado movimente umacapacidade racional diferente da que o juiz emprega. Mesmo se um dia o jurado noscontar que absolveu porque estava cansado daquele processo longo, será essa razãoirracional? Em que sentido? Normalmente não diremos que sua decisão foi irracional,diremos que foi irresponsável, o que implica uma avaliação ética. O nobre russo que nacondição de jurado condenou, sem perceber conscientemente, a empregada que eleperseguira como sedutor, e que o rechaçou, prova que o que está em jogo aqui é aconsequência moral, tanto que ele cairá em si numa espécie de catarse e mudará toda asua vida, segundo o belo romance de Tolstoy, apropriadamente intitulado Ressurreição.

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Mas aqui perguntaríamos: quantos juízes de carreira são igualmente irresponsáveis? Equantos serão bem mais refratários que o jurado a qualquer perspectiva de catarse emudança de rumo?

Mas se a palavra epistemologia se apresenta, precisamos resolver o que fazer com ela.

O melhor será desencantar a palavra com a crítica filosófica. Porque epistemologia é,acima de tudo, uma grande palavra, com algo de mágico e sedutor, porque parece quebasta pronunciá-la para deixar nossa teoria mais pesada. Deve ser por isso que se tornoumoeda corrente em estudos acadêmicos ultra-sofisticados sobre a prova criminal. Umestudioso norte-americano, por exemplo, formula uma pergunta que também nos ocupa(“existem princípios universais de julgamento da prova?“), mas resolve o temadivagando sobre “redes de inferências e onto-epistemologia” (Tillers, 2008, p. 179-198),de um modo que não chego completamente a compreender, embora seja simpática àminha teoria a proposta do autor de retornar à visão geral da racionalidade humana nomodo proposto por Aristóteles (p. 197).

O problema é que nossa indagação sobre que capacidades movimentamos para julgar aprova parece epistemológica. Mas problema maior é que a ciência chamadaepistemologia não nos ajuda em nada, porque (prosseguindo com Stephen Toulmin):

“O status da epistemologia sempre foi um tanto ambíguo”, pois ela sempre “abrangeuum conjunto de respostas que parecem lógicas a questões que parecem psicológicas”(Toulmin, 2006, p. 301).

Para superar essa ambiguidade, Toulmin propõe que a epistemologia se divorcie dapsicologia e a lógica se divorcie da matemática pura, reunindo-se ambas numa únicadisciplina que pode ser chamada de “lógica aplicada”, que estudará com que garantiaspodemos sustentar, em cada campo, a validade de nosso argumento. Minha teoria adotaessa solução de Toulmin.

Em todos os campos, alguém que se apresenta diante de nós dizendo que sabe algo,formula pretensão a ter um tipo especial de autoridade para essa afirmação. Uma lógicaaplicada renunciará a descobrir um modo único e fora do tempo de responder à pergunta“como você sabe o que sabe?”: aprenderá a situar o argumento no tempo e no seucampo de validade específico. Pois a pergunta “como você sabe” pede ”diferentes tiposde resposta em diferentes ocasiões”.

A testemunha responderá à pergunta “como você sabe?” dizendo simplesmente: eu seiporque eu vi. Essa é sua autoridade especial, que evidentemente não esgota todos osproblemas de crítica da credibilidade do testemunho, de que trataremos na segundaparte, mas é condição sem a qual ela sequer se qualifica como testemunha.

Na teoria de Toulmin, temos mais alguns casos.

1. Em alguns, não todos, a resposta terá um formato lógico: sei porque apresento razões,indícios, prova, justificação.

2. Mas a resposta pode também ser de tipo biográfico. No exemplo de Toulmin: “seicomo fazer puxa-puxa porque minha mãe me ensinou” (p. 307). Aqui a pergunta “como

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você sabe” parece não fazer sentido. Por exemplo, se me perguntam como é o nome demeu irmão, normalmente não esperamos que indaguem também “como você sabe?”pois “aprendi um dia o nome de meu irmão, não preciso de razões ou premissas a fim decontinuar sabendo” (p. 347). Mas se investigamos o nome da pessoa que se registrou nohotel na noite passada, naturalmente a resposta virá acompanhada de sua justificaçãológica: a pessoa que se apresentou é tal, porque é o nome registrado no livro dehóspedes (evidentemente isso não esgota o problema, pois a recepção pode ter errado aoregistrar aquele hóspede, ou ele pode ter simplesmente apresentado nome falso, etc.Interessa aqui distinguir essa forma lógica de resposta da biográfica).

3. Mas há um caso em que a pergunta pede que se responda em que situação especial seencontra a pessoa que sabe para saber o que ela sabe. Para usar o exemplo deToulmin, eu precisaria de razões (indícios, prova, justificação) para chegar a dizer comautoridade que um certo sr. Blenkinsop chegou excepcionalmente cansado ontem ànoite, “mas sua mulher está numa posição diferente”. Nesse exemplo, “a sra.Blenkinsop é única. Pode-se confiar nela quando ela diz que sabe, muito embora ela nãopossa dizer como sabe”. Esse saber da sra. Blenkinsop não é do tipo biográfico, comoaquele caso em que sei o nome de meu irmão. Porque, em princípio, a sra. Blenkinsoppoderia desfiar um rosário de indícios pelos quais ela percebeu que o marido estavaexcepcionalmente cansado (“alguma coisa no som abafado dos pés dele na escada ou ainclinação de seus ombros quando ele pendurou o casaco”, p. 347). É neste caso queusamos, cotidianamente, os termos “sexto-sentido” ou “intuição”. E essa intuição da sra.Blenkinsop é idêntica em natureza à “intuição matemática de Fermat”:

“Só porque se poderiam apresentar razões – mas nós renunciamos a elas quandoestamos lidando com a sra. Blenkinsop e Fermat – é que faz sentido falar que eles têmintuição.” (p. 351).

A intuição é um processo que parece pré-cognitivo mas é pós-cognitivo. Temostantas experiências somadas que já não sabemos dizer qual delas será decisiva, se é quealguma terá essa qualidade, quando pensamos que intuímos algo: no caso da sra.Blenkinsop, ela simplesmente sabe que na noite em que o marido chegouexcepcionalmente cansado não seria boa hora para contar que a vidraça quebrou. Algoparecido ocorre quando nossa conclusão se baseia na soma dos indícios: a convicção vaicrescendo de tal modo que normalmente não saberíamos dizer qual deles foi decisivopara que o pensamento ultrapasse a fronteira para a certeza (mas possivelmente não épor isso que os indícios sofrem de preconceito entre nós, porque esse preconceito écultural, não é algo natural e nem mesmo universal).

Mas pelos problemas envolvidos na palavra intuição, tendo aposentado a palavraepistemologia e sua utilidade em nossa teoria da prova, podemos descartar também esse“termo minado”, na expressão de Ginzburg. A solução de Ginzburg, de distinguir umaintuição alta e uma intuição baixa, no meu modo de ver, só piora as coisas. E de restoa palavra intuição não apresenta nada de novo que não tenha sido compreendido, e demodo superior, na formulação da phrónesis, no mapa aristotélico da parte com lógos daalma, ao qual ainda retornaremos.

Retomando a questão da prova criminal, afirmei na introdução que Mittermaier temrazão em dizer que juiz e jurado julgam a prova com as mesmas capacidades mentais.Mas sentimos falta de uma base para justificar essa razão. Partindo da confusão

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de Ginzburg entre paradigma indiciário, epistemologia, historiografia e intuição,perceberemos que o autor usa as palavras de modo ingênuo porque não desenvolveunem adotou uma teoria da história. E uma teoria da história faz falta aqui, pois umateoria da história desenvolve as primeiras perguntas, deve definir o que constitui ahistoriografia como ciência, qual é sua diferença específica em relação a conhecimentosparecidos que parecem históricos. O gênero próximo que aparece naturalmente nestaempreitada será o da investigação criminal. A historiografia seria uma investigaçãocriminal com a diferença específica de que o historiador não se encontra constrangidopelo fator tempo, como estão o juiz e o jurado, segundo formulou Collingwood. Issoexplica por que, segundo o filósofo e historiador:

“o estudioso do método histórico dificilmente achará algum proveito em seguir de pertoas regras sobre prova reconhecidas nos tribunais. Porque o historiador não temobrigação de formar sua convicção num determinado tempo. Nada lhe importa a não serque sua decisão, quando ele a alcançar, seja correta, o que significa, para ele, que elaprovenha inevitavelmente da prova. Mas, desde que se tenha isso em mente, a analogiaentre os métodos legais e os métodos históricos tem algum valor para a compreensão dahistória” (Collingwood, 1956, p. 268).

A diferença apontada por Collingwood é verdadeira. Não se poderia considerar umhistoriador digno do status de cientista se lhe impuséssemos a constrição de examinar aprova disponível num tempo breve, como é, com maior ou menor duração, o tempo dejulgamento da prova criminal. O julgamento criminal não envolve um tipo de sabercientífico também porque está diretamente vinculado a uma necessidade social prática:precisa absolver ou condenar aqui e agora, isto é, no tempo do julgamento, e só por issopode absolver por falta de provas. A historiografia jamais nos apresentará algum fato,como fato, amparada sobre a falta de provas: quando muito se resignará a formularconjecturas, hipóteses. Mas a diferença de Collingwood, com ênfase no fator tempo, nãosatisfaz completamente, pois não diz o que constitui epistéme, no sentido deconhecimento verdadeiro, na historiografia.

A teoria da história que de modo mais certeiro enfrenta o problema, na minha opinião, éa da filósofa Agnes Heller, segundo a qual o parentesco entre o juiz ou o investigadorcriminal e o historiador ocorre até determinado momento em que ambos raciocinamsegundo o modo de pensar específico da vida cotidiana. Mas o que confere a qualidadede conhecimento verdadeiro – no sentido de epistéme - à historiografia começa depoisde se ter apurado como o fato ocorreu. No julgamento criminal, não admitiremos, porexemplo, que, segundo a interpretação da testemunha a camisa usada pelo acusado eraverde, quando tudo indica que era vermelha. Concluiremos que a percepção datestemunha não está correta, que ela possivelmente sofre de daltonismo. Mas ahistoriografia só tem relevância se nos apresenta interpretações densas, ricas designificados, dos fatos sobre os quais ela se ocupa. Em sua elaboração como epistémeou conhecimento verdadeiro, a historiografia é dependente de uma “grande teoria” enessa etapa os paradigmas são necessariamente múltiplos. Pode-se contar uma históriado ponto de vista weberiano, freudiano, ou qualquer outro, ou de um ponto de vistanovo que combine paradigmas já explorados, e nesse sentido pode-se dizer que existem,em princípio, vários conhecimentos verdadeiros sobre a base do mesmo fato. Nãoexiste epistéme na vida cotidiana, mas também não é específico da ciência que sedesenvolva alguma tese sobre a base de intuições. A intuição é um tipo de pensamentoespecífico da vida cotidiana. E aqui sentimos falta de uma elaboração conceitual sobre a

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estrutura da vida cotidiana. Que significa vida cotidiana? Que tipo de pensamento éespecífico da vida cotidiana e por quê?

Chegamos à filosofia que constitui a moldura geral de nossa teoria da prova criminal, eserá útil apresentar em linhas gerais o seu paradigma, qualificando a palavra como umaespécie de lente pela qual enxergamos o mundo. O paradigma da filosofia de AgnesHeller foi desenvolvido em 1967-68 e publicado originalmente em 1970, em húngaro,com título A mindennapi élet. Versão castelhana transformou o título indevidamentenuma “Sociologia da vida cotidiana”, quando em realidade o livro é umaelaboração filosófica sobre os constituintes da vida cotidiana, em contraposição, comosua diferença, a tudo o que não constitui a vida cotidiana. Utilizarei a tradução eminglês, Everyday life, produzida a partir de redução do original pela autora, e publicadaem 1984. Não apresentarei um resumo, porque um livro não pode ser apresentado comouma aborrecida soma de fichamentos de leitura: tentarei esboçar em linhas gerais oponto de vista da obra, com ênfase nos tópicos que nos socorram em nossosprobleminhas. Alguns são novos, como esse de saber o que é intuição; outros maisantigos, que havíamos deixado em suspenso, como por exemplo: por que percebemostantos preconceitos na prática e nas teorias da prova criminal? Que é um preconceito?

E por fim, mas não por último: por que Mittermaier tem razão em afirmar na sua teoriada prova que juiz e jurado, quando julgam a prova criminal, movimentam as mesmascapacidades mentais ou racionais?

10. A filosofia desta teoria da prova:Aproximação

fevereiro 2, 2013

Encerramos nossa última jornada dizendo que chegamos à filosofia que orienta estateoria da prova. Como se diz na culinária, aquilo que já elaboramos de nossa receita,deixemos de reserva. Nossas perguntas mais recentes (que significa intuição? que é umpreconceito?) serão resolvidas na moldura dessa filosofia (mas também descobriremospor que as teorias jurídicas apresentam-se em sua normalidade com tantospreconceitos).

Intuição e preconceito são características da vida cotidiana. Em geral associamos apalavra a apenas uma de suas características, a repetição: “todo dia ela faz tudo sempreigual/me sacode às seis horas da manhã…”. A filosofia que nos socorre é elaboradasobre a pergunta: que significa a vida cotidiana? Mas em que sentido se pode elaborarum paradigma para uma filosofia a partir dessa pergunta?

A filosofia é diferente da arte também porque dispensa a genialidade: na arte semprehaverá uma espécie de mão invisível guiando a obra que se constrói a si mesma; nafilosofia essa mão invisível aparece às vezes, mas na composição ou no estilo, não nométodo nem no conteúdo. Por isso, podemos confiar no testemunho do filósofo quando

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descreve a intenção e o ponto-de-vista de sua obra. Em prefácio à tradução em inglês, aautora apresenta telegraficamente informações sobre o método de construção e oconteúdo do que diz ter constituído o seu paradigma (a transcrição não é literal e minhasadições virão entre parênteses).

A intenção original era construir uma teoria da vida cotidiana, como o título indica. Masa empreitada em si tornou-se ou revelou-se mais ambiciosa: tratava-se de construirmoldura nova para filosofar (o que se tornou comum descrever pelo nome paradigma apartir de Kuhn). Esse paradigma não sofreu alteração em toda a sua obra filosófica,apenas modificações. O método de construção é uma combinação da fenomenologia deHusserl com o procedimento analítico, compreendido no sentido aristotélico,combinação necessária porque na modernidade, em que valores tradicionais foramdemolidos, os fenômenos precisam ser eles mesmos construídos, construção para a qualHusserl e “um Heidegger criticamente-modificado” forneceram um método. A estruturado paradigma, porém, não pode ser resumida tão brevemente, o que pode ser dito numprefácio é que

“nesse livro eu elaborei uma versão específica do paradigma da objetivação: oparadigma da esfera da ‘objetivação em-si’. Como essa esfera de objetivação é umuniversal empírico, todas as categorias sociais podem ser compreendidas porrecorrência a esta objetivação, e assim o procedimento de dedução transcendental pôdeser evitado”.

Em seguida a autora comenta rapidamente que importou algumas noções da tradição,notadamente a terminologia “em-si” e “para-si” da filosofia de Hegel e a noção deessência-genérica da espécie humana, dos Manuscritos de Paris de Karl Marx,importações que também permitem que a intenção prática da obra seja inequivocamentecrítica a Heidegger, em cuja filosofia a vida cotidiana aparece como o domínioinescapável do “inautêntico”: a abordagem analítica dos constituintes da vida cotidiana,combinada com a historicidade e a teoria da alienação de Marx, permite que aconstrução do paradigma seja anti-historicista mas não a-histórica: pois aparece nohorizonte do cotidiano a perspectiva comandada pelo verso de Rilke: deves mudar tuavida. A vida cotidiana, assim, não é necessariamente alienada, ou, pelo menos, aalienação não é uma atitude intrínseca ao cotidiano. Por outro lado, a esfera dasobjetivações para-si (compreendendo a ciência, a filosofia, a arte e a religião) não éequivalente ao domínio do intrinsecamente não-alienado: a ciência, por exemplo, podeser mais ou menos alienada.

Antes de tentar apresentar esquematicamente o conteúdo desse paradigma, não consigoimpedir-me de fazer rápidos comentários sobre a literatura secundária disponível nomercado. A filosofia de Agnes Heller é um bom caso probatório do que disse Kuhn (eincrivelmente pouca gente admite no Brasil, mesmo em cursos universitários defilosofia): em filosofia não adianta comprar generalidades da literatura secundária. Porconta da profusão de títulos de sua obra, muitos serão tentados a compreender seusentido através de um estudo introdutório por algum autor. Grumley propôs ajudarnisso, mas seu livro é um monumental mal-entendimento de tudo, desde o título até aúltima nota de rodapé. E o comentarista não se dá por achado: para aparentar queexamina a obra de uma distância imparcial apresenta suas críticas. Corrigindo a auto-interpretação da autora, disponível quando escreveu seu livro, Grumley imagina umafilosofia camaleônica, que numa hora adota alguns conceitos e autores para virar acasaca daqui a pouco e mudar tudo, como se na viagem para a Austrália Agnes Heller

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tivesse perdido a mala de Marx e agora tivesse que se virar com Kierkegaard. Parte doanedotário é com certeza a crítica de machismo. Segundo Grumley, Agnes Heller nãoseria politicamente correta, por empregar o gênero masculino inclusivo, homem,significando homens e mulheres, ou em inglês mankind, a humanidade. Algumesclarecimento sobre isso chegou tarde, depois do livro de Grumley. Na segunda ediçãoda teoria dos sentimentos, a filósofa explicou que o idioma húngaro não possui gênerosmasculino e feminino, e os livros não foram traduzidos por ela. O que encontra de ruim,Grumley vai recolhendo: alguém disse que a filosofia moral de Agnes Heller lembra osconselhos de uma tia velha, outro falou que a linguagem é fácil demais, parece senso-comum elevado à dignidade da filosofia, e que a teoria moral parece “auto-ajuda” (nesseponto eu pessoalmente considero um elogio, mesmo que não tivesse tal intenção: afinalainda existe uma filosofia prática que é prática). Pode-se dizer da literatura universitáriao que um crítico da Ilustração disse dos livros jurídicos: quem leu um, conhece todos. Acrítica mais engraçada é posta em apresentação do que devia ser uma coleção deensaios acadêmicos de homenagem, que ainda pediu à autora uma “réplica aoscríticos”. O organizador, John Burnheim, especula por que a filosofia de Agnes Hellernão é popular, isto é, não rende as centenas ou milhares de teses que se ocupam deoutros autores, e publica a interessante tese: é porque a filósofa não cita a gente e nãofrequenta nossos congressos! Que se poderia dizer em réplica: lamento, mas isso éverdade, sempre preferi os clássicos. Alguns criticam o excesso de sistema, outros, oecletismo das fontes, ou simplesmente adotam a crítica que parece autorizada, umescrito mal-humorado de Mihaly Vajda que disse que se aprende muito de filosofia comAgnes Heller mas ela mesma não tem uma filosofia, pois construiu um edifíciomonumental sem fundamentos. A razão disso, segundo o crítico, que foi aluno dafilósofa, seria que todo mundo que fazia filosofia com Marx e sua Gattungsmässigkeitficou sem chão quando o paradigma ruiu. Mas isso provavelmente aplica-se a Vajda,não a Heller, que nunca ergueu seu edifício monumental sobre o paradigma daprodução, apenas tomou de empréstimo o conceito ontológico de Marx, que, melhorexplicando mais tarde, significa, do mesmo modo como o Dasein de Heidegger, umainterpretação da “condição humana”. A expressão, a propósito, que passou a substituir aessência-genérica, foi adotada com inspiração no título de livro de Hannah Arendt, masnão é uma adoção repentina do pensamento dela. Mas já basta de críticas: uma filosofiaapropriada numa nova teoria mostra-se (também) segundo o dito bíblico: pelos frutos(também) se conhece a árvore. Essa filosofia não se apresenta aqui para ocupar espaço,que é matéria-prima que economizo ao máximo, mas para ajudar-nos com nossasperguntas.

Admitindo que a síntese não é fácil sem cair no risco do esquema grosseiro, peço dobrode paciência nesta etapa (ou que se leia bem rápido, pois não é indispensávelcompreender absolutamente tudo). Não vou tentar resumir a obra, por isso não sigo aordem de apresentação dos conteúdos. Apresento em linhas gerais o quase-sistema dafilosofia de Agnes Heller, e depois dedico mais tempo à demolição – não se digadesconstrução, porque o termo ficou carregado de outros sentidos – do conceito abstratode pessoa, e por fim ao tópico sobre os “tipos de atitude teórica no pensamentocotidiano”.

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11. Que é intuição?

fevereiro 15, 2013

Investigando que capacidades mobilizamos para julgar a prova criminal dentre as cincovirtudes dianoéticas do mapa aristotélico da alma, enveredamos pelo paradigmaindiciário, apresentado por Ginzburg como uma epistemologia que requer uma certaintuição. Mas que vem a ser intuição?

A tradução moderna, por via da filosofia alemã, do noûs aristotélico como intuiçãointelectual parece responsável por tornar a palavra intuição um “termo minado” quedecidimos abandonar. Mas antes de abandoná-lo será bom saber o que jogamos fora,para certificar-nos – por mais surrada que seja a metáfora – de não jogar fora o bebêcom a água do banho. Desde logo, podemos abandonar teoricamente uma palavra, masnão convém recusar-lhe a existência. Existe algo parecido com um sexto sentido, umfaro ou intuição, que por vezes nos habilita a reduzir o caminho do pensamentofazendo-o saltar direto para a conclusão. E isso funciona tanto em sentido afirmativo(sei qual será minha conclusão, mas não percorri ainda todo o caminho necessário parafundamentá-la) como em sentido negativo (sei que algo aqui não está fechando, sei quetem algo errado, só não sei ainda o quê nem por quê está errado). Mas admitindo queexiste essa intuição, o que exatamente ela significa? Terão todas as pessoas o mesmotipo de intuição?

Intuição é um modo de pensamento característico da vida cotidiana, segundo a filosofiaque nos socorre, cujo edifício foi construído como um quase-sistema. Confiando no queos juristas chamam de interpretação autêntica, aprendemos na autobiografia de suafilosofia que a autora só descobriu, com surpresa, o modo quase-sistemático deconstrução de sua filosofia em 2008, ao dedicar-se durante uma semana a explicar suafilosofia em seminário em Turim, na Itália. Por muito tempo, aceitara a premonição deHegel segundo a qual depois dele (ou seja, depois do ‘fim’ da filosofia) a filosofia setornaria apenas reflexão. E uma filosofia reflexiva pode pensar todos os temas quequiser, sem preocupação com a construção de um sistema no qual tudo se ajuste. Atradição da hermenêutica é uma filosofia desse tipo. Mas ao repensar sua filosofia,percebeu que tinha subestimado a sedução pelo pensamento sistemático, que não ésinônimo de pensamento metafísico (Heller, 2011, p. ix).

Tornou-se moda entre os juristas – sempre mais tardiamente que entre os filósofosuniversitários – desqualificar tudo que contraria suas teorias como metafísico, masnormalmente não encontramos uma explicação breve e clara do que significa o termo.Um sistema metafísico não é senão a imagem filosófica de um mundo rigidamentehierarquizado. Como toda filosofia é seu tempo compreendido em pensamentos, énatural que a destruição moderna das hierarquias sociais abra passo à destruição dametafísica. Nos sistemas rigidamente metafísicos, existe algo no Alto comando –normalmente algo ‘puro’, governando as partes baixas da alma, onde se localizam, porexemplo, os sentimentos, que por isso são tratados ao longo da tradição metafísica como“crianças necessitadas de ser constantemente guiadas pela razão”. Mesmo Aristóteles,

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que em sua Retórica tratou das emoções em seu próprio direito, não foi menos radicalque Platão, ao conceber em sua Metafísica e em De Anima que “a imortalidade doaspecto supremo do noûs é garantida por sua ‘pura’ espiritualidade” (Heller, 2009, p. 1,2). (Adiantando um pouco a abordagem dinâmica, ou histórica, de nossa teoria:construções tipicamente metafísicas ainda são possíveis, mas não são mais filosofia, sãoconstruções precipuamente ideológicas, visões de mundo fundamentalistas: a teoria dogarantismo penal de Luigi Ferrajoli é um caso desse tipo, de forte impacto ideológico,que se torna uma ‘instituição do imaginário social’).

Fugiria ao limite do nosso tema uma exposição completa do quase-sistema da filosofiade Agnes Heller. Descrevendo-o mais ou menos nos termos em que explicado pelaautora, esse quase-sistema ergue dois edifícios: uma torre sobre a teoria moral e outrasobre a teoria da história. Essas duas torres intercomunicam-se no alto pela teoria dajustiça, construída com abordagem ao mesmo tempo analítica e dialética, ou como umateoria estática da justiça (o que é justiça?) e uma teoria dinâmica da justiça (como é quehistoricamente se desenvolve a narrativa da justiça, retornando à analítica após aconclusão de que modernamente não existe mais um conceito ético-político completo dejustiça, apenas os seus resquícios ou vestígios, que são as ideias de justiça retributiva,justiça distributiva e as teorias da guerra justa). Mas os dois edifícios e essa ponte sãoconstruídos sobre um único alicerce: e esse fundamento é elaborado no livro Vidacotidiana, onde foi estabelecido o paradigma de toda essa filosofia.

Na construção desse paradigma, sabemos pelo prefácio da autora à edição em inglês queo vocabulário “em-si” e “para-si” foi importado da filosofia de Hegel. Fugiria aindamais de nosso foco falar um pouco da filosofia do direito de Hegel, que é na realidade aprimeira teoria compreensiva da modernidade, mas é possível observar de passagem queé mérito de Hegel ter superado as filosofias que retratavam a vida social em oposiçõesbinárias (como indivíduo x sociedade, ou sociedade x estado), e criado uma zonaintermediária, a esfera das mediações. Não existe o indivíduo abstrato do direito natural,mas alguém que pertence desde o nascimento a integrações sociais, cuja diferença estána sua regulação por “poderes éticos”. Na teoria da modernidade de Hegel, seguindosua lógica, encontraremos uma esfera da imediatez (da Família, regulada pelo poderético do Amor), uma esfera das particularidades soltas em luta umas com as outras(Sociedade Civil, que constitui o sistema de necessidades, regulado pela noção de razãocomo Verstand) e uma esfera da razão como Vernunft, do Estado. A filosofia do direitode Hegel merece ser lida e refletida parágrafo a parágrafo, mas não permite comfacilidade ser aplicada à nossa realidade. Basta dizer que teríamos dificuldade emcompreender por que o sistema de administração de justiça, por exemplo, não pertenceaí ao Estado, mas à Sociedade Civil (par. 188). Já com o paradigma desenhado no livroVida cotidiana podemos seguir filosofando no século 21, com a vantagem, em relaçãoao modelo de Hegel, no qual a moralidade constituía um ‘momento’, que aqui a moralnão constitui uma esfera, mas uma relação prática que permeia todas as esferas, umaatitude da pessoa em relação a valores e expectativas normativas aplicável em todas astrês esferas.

As três esferas de objetivações

O quase-sistema da filosofia de Agnes Heller é parecido com o sistema hegeliano pormanter em seus alicerces o número três na divisão de esferas de objetivaçãorelacionadas de algum modo à essência genérica da espécie (conceito ontológico

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originário de Marx). Essas esferas são compreendidas com a ajuda das noções “em-si” e“para-si”. Em-si é tudo que se apresenta mais ou menos pronto, ou seja o mundo deobjetivações que nos confronta ao nascer, e que precisamos dominar com algumacompetência para a simples tarefa de sobreviver. O que caracteriza uma esfera comoessa é que sem ela não existiria sociedade. Seus três constituintes, ainda que sempreinterconectados, são ferramentas e produtos, os costumes e a linguagem. “Em-si” podeser definido como o império da necessidade. Já a esfera das objetivações para-si é“ontologicamente secundária”: elas nascem de necessidades da vida cotidiana, eretornam a ela, mas à diferença do caráter necessário da objetivação em-si, é essencial àobjetivação para-si que ela seja criada intencionalmente, e nesse sentido temos aqui oimpério da liberdade. A vida social é viável sem objetivações para-si. Existia filosofiaem Atenas na formação clássica da pólis, mas Esparta não tinha filosofia, assim comoem várias outras cidades a vida social se reproduzia sem filosofia (p.119).

Existem integrações sociais que não são em-si nem para-si, mas um pouco de cada, ouseja, são objetivações “em-si e para-si”. São objetivações desse tipo as que conhecemospor instituições, a “administração de justiça” inclusive. O que mede o grau de alienaçãodesse tipo de objetivação é o quanto elas são permeáveis à esfera das objetivações para-si. Mas em que sentido a esfera da objetivação em-si relaciona-se ao tema que dá nomeao livro, vida cotidiana? Todas as objetivações são universos de exteriorização da açãohumana, isto é, de pessoas. A conexão exige um ‘desmonte’ do conceito abstrato depessoa. A vida cotidiana pode ser definida como o agregado de fatores que tornampossível a reprodução de cada pessoa e por extensão de uma sociedade. Mas a vidacotidiana é equivalente à objetivação em-si apenas para a pessoa particularista. Quevem a ser uma pessoa particularista? Que significa pessoa? Seguindo a terminologiahegeliana, a personalidade de cada pessoa também exterioriza-se, ou se objetiva,conforme essas duas categorias, em-si e para-si. A abordagem fenomenológica depessoa duplica o termo abstrato em dois tipos-ideais.

Pessoas particularistas x indivíduos

Os dois tipos ideais que resultam do desmonte da categoria ‘pessoa’ são ideais nosentido de que não existe uma pessoa concreta que seja cem por cento cada um deles,mas a divisão em tipos ajuda a compreender tendências para mais este ou mais aquele.Os tipos são forjados a partir da teoria da alienação de Marx. Ao contrário do que sepensa normalmente, a categoria da alienação não é uma categoria negativa em Marx. Deacordo com o filósofo, a essência da espécie humana se desenvolve numa espécie de‘esvaziamento’ da existência individual em favor da riqueza humana que se acumulafora da pessoa, em detrimento da pessoa mas em favor da espécie, não apenas nosentido econômico, mas no sentido de riqueza humana em geral, o que compreende ograu de desenvolvimento da ciência, da arte, das instituições políticas. A pessoa seempobrece sob condições de alienação (examinada por Marx segundo o paradigma daprodução, isto é, através da análise da alienação do trabalho em que o produtor deriqueza perde a noção final do produto de seu trabalho, ingressa na esteira de produção epercebe-se apenas como ‘meio’, de tal modo que toda a sua existência também adquireessa inversão de fins e meios: sua vida é seu meio de subsistência). Esse indivíduoalienado tem sua vida centrada em sua particularidade, e perde a relação com a riquezada espécie, que está fora dele e fora de seu mundo imediato. Mas toda sociedade produz

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exceções, que são exceções porque relacionam-se conscientemente com a essência daespécie: essas exceções formam o tipo-ideal dos indivíduos. Toda pessoa nasce com umcomplexo de características particulares (mais tarde a autora elabora dois “a prioris”,um genético e outro social, resultantes de uma espécie de loteria), e esse limite éineliminável: isso significa que não pode existir alguém que seja apenas indivíduo. Mascomo tendência, a pessoa particularista é aquela que preserva o seu ser (Self) e oexpande sem entrar em maiores conflitos com o entorno (por isso seu cotidiano éequivalente ao sistema de objetivações em-si). Essa atitude pode ser viável numasociedade tradicional, mas quanto maior o dinamismo social, mais vulnerável essapessoa fica, porque o entorno está mudando a toda hora.

A identificação particularista com o entorno pode ocorrer também em relação àsobjetivações em-si e para-si: a pessoa totalmente ajustada a uma instituição, que “vestea camiseta” do emprego, ou do partido, ou da corporação ou mesmo de seu estamentosem ter capacidade de tomar distâncias em relação a esse ajustamento pode serconsiderada uma pessoa particularista. O perigo disso (no caso das instituições) é quepessoas com tendências fortemente particularistas apresentam essa característicatambém em sua vida emocional, mas os afetos puramente particularistas típicos são ainveja, a vaidade e a covardia. Não apenas poderemos esperar covardia da pessoaexcessivamente vaidosa, como também alguns processos racionais tipicamenteparticularistas, como a racionalização, em que a pessoa pensa que:

“Meus erros foram devidos a outros fatores – hereditariedade (da qual não posso fugir!mas que é outra racionalização), as intrigas dos outros, golpes do destino, ou apenas‘má-sorte’. E a racionalização não ocorre apenas em relação ao passado, aplica-setambém ao futuro… Antes que o lobo devore a ovelha, ele precisa motivar sua ação –porque ele deve devorá-la” (p. 14-15).

E ainda veremos como as pessoas particularistas e os indivíduos relacionam-se de modoessencialmente diverso em relação ao ‘poder’ – presente em todas as instituiçõespolíticas.

Mas se a particularidade é ineliminável, que significa ser um indivíduo? Primeiro, serum indivíduo é um fluxo, não é um processo terminado, é um processo constante noqual se funde ou sintetiza a nossa particularidade com a essência genérica da espécie. Aessência genérica que pode fundir-se com a particularidade de cada um é historicamentevariável, e emerge em diferentes níveis. O nível mais alto permite identificar o grau emque a essência da espécie desenvolveu-se objetivamente numa determinada sociedade.O nível mais baixo é sempre a particularidade, que nunca é completamente anulada,mesmo no indivíduo. A particularidade é a essência genérica da espécie em-si, tambémdenominada por Marx de essência ‘muda’ da espécie. A mudez significa aqui ‘ainda nãoconsciente’ de sua essência genérica. Ser um indivíduo é em primeiro lugar tomardistância de sua particularidade. Não apenas os afetos, mas também a relação da pessoacom a moral, que não é uma esfera, mas permeia todas as esferas, pode ser particularistaou individual: a responsabilidade moral da pessoa particularista é ‘externa’, ao passoque a responsabilidade moral da pessoa individual é ‘interna’. É importante em nossa

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discussão sublinhar que a virtude aristotélica da phrónesis é uma qualidade doindivíduo, não existe na particularidade, porque “ a particularidade não é nada maissenão o prolongamento mudo de si mesma, de tal modo que ela não venha a entrar emrota de colisão com o sistema admitido de normas: de modo que não pode existir aquiaquela relação completa – espontaneamente sintetizada – com a situação, como no casodo indivíduo” (p.24).

De modo esquemático, é suficiente o que foi dito sobre os tipos ideais de pessoas, quecompreenderemos melhor ao tratar do tema “o que significa imparcialidade”, com apoiona teoria dos sentimentos. Por enquanto, para compreender o que é intuição, será útilapresentar algumas características estruturais do pensamento da vida cotidiana. Quesignifica pensar na vida cotidiana?

Características estruturais do pensamento cotidiano

O pensamento cotidiano tem em comum com a vida cotidiana sua principalcaracterística: é heterogêneo. A vida cotidiana é um agregado de conhecimentospráticos, sentimentos, tarefas. A vida cotidiana é o domínio do humano-inteiro (segundoterminologia de Lukács). As objetivações para-si exigem um processo dehomogenização de tudo que é heterogêneo, e isso implica necessariamente a suspensãoda particularidade. O pensamento cotidiano também é precipuamente pragmático: navida cotidiana há um vínculo direto de teoria e práxis, outro modo de enfatizar seucaráter heterogêneo, pois na ciência e na filosofia uma teoria é normalmente ‘apenas’teoria, porque os vínculos com a prática não estão sempre dados direta e imediatamente.Essa unidade de teoria e práxis decorre do caráter precipuamente ‘econômico’ da vidacotidiana, que permite que possamos sobreviver sem precisar ‘pensar’ a cada tomada deatitude. O pensamento cotidiano não é investigativo das verdades contrárias à visão danossa retina: por isso é heterogêneo e seu conceito de verdade adquire semelhança comum sentimento geral de afirmação: de tal modo que “acredito que…” pode ser sinônimode “sei que” no plano do cotidiano. O pensamento cotidiano é sempre um tipo de dóxa,não de epistéme, mas isso não deve ser confundido com o problema de a verdade serrelativa, temporária ou eterna.

“Alguns items de conhecimento cotidiano podem ser muito mais firmes, menos sujeitosa mudanças, mais ‘eternos’ do que nosso estoque de informação científica. As pessoassempre souberam – e corretamente – que quando um objeto é atirado para o alto elecairá no chão, mas as explicações científicas para a queda livre sofreram modificaçõesradicais mais de uma vez” (p. 203).

Na vida cotidiana não existe nada ‘puro’, nem pura percepção, nem pura emoção, nempura cognição. Já o pensamento científico só é possível separando artificialmente o queé misturado e heterogêneo, através de uma espécie de filtro que constitui o “meiohomogêneo” da ciência, ou da arte, ou mesmo de algumas instituições em si e para si,como por exemplo, o direito.

A noção de prova e refutação não é a mesma em se tratando de dóxa ou epistéme. Umaproposição é científica por ser refutável, ao passo que no cotidiano várias verdades sãoirrefutáveis: ninguém pode refutar que alguém tenha tido uma visão de sua avó (p. 205).

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Prova e refutação na vida cotidiana estão normalmente conectadas com os fatos do caso.“Se X diz que Y estava na escola, quando eu sei perfeitamente que Y estava jogandocartas, eu posso refutar X … Verificação e refutação desse tipo de conteúdo factual sãoos antecessores do pensamento legal no plano da dóxa do cotidiano, com a diferença,porém, de que a lei sempre constrói a constatação de um fato segundo os termos de seumeio homogêneo” (adiciono aqui que os chamados sistemas de avaliação da prova nãosão diferentes epistemologias, apenas modos diversos de ‘economia’ ou administraçãoda prova, mas ainda precisaremos discutir o tema quando ingressarmos na abordagemdinâmica da prova, que exigirá uma espécie de historiografia).

O pensamento cotidiano pode ser apreendido no par de contrários repetitivo-inventivo.O pensamento repetitivo ”é um tipo de generalização – mas um tipo em que nãoprecisamos percorrer no seu todo o processo generalizador. Em geral, graças àapropriação de esquemas gerais socialmente herdados, podemos dispensar o processo dereiteração de todo o processo generalizador; graças a esquemas gerais socialmenteherdados nós avançamos criando ainda novos esquematismos construídos sobre nossoestoque de experiência, nossos pensamentos e atividades” (p. 130).

É possível chamar de pensamento repetitivo todo tipo de pensamento que um dia foigerado pelo pensamento inventivo – isto é, pelo uso do pensamento intencionalmentedirigido à solução de determinado problema – que se torna uma prática espontânea, detal modo que pareça dispensar a atividade de pensar. Mas é evidente que o pensamentorepetitivo não é suficiente sequer para habilitar alguém a sobreviver no dia a dia:existem atos que podemos tornar repetitivos, como por exemplo, o ato de parar o carrodiante do sinal vermelho, e seguir diante do verde. Mas existem funções cotidianas queexigem o tratamento da situação em sua singularidade: o desafio proposto pelo sinalamarelo é desse tipo. Não se pode congelar nossa prática numa regra como ‘sempreforçar a passagem pelo amarelo’ ou ‘sempre frear diante do amarelo’ (o exemplo émeu). Se as pessoas não contassem com algum tipo de habilidade para lidar com umasituação nunca vista, agindo como autômatos, as catástrofes da vida cotidiana seriaminevitáveis. Mas os dois tipos de pensamento, repetitivo e intuitivo, são tipos-ideais: navida real nossas atitudes combinam ambos, com maior ênfase de um ou de outro. O quehá de comum entre ambos é que sempre operam uma espécie de subsunção (embora agente não perceba isso no fato psicológico chamado de intuição). O pensamentorepetitivo subsume o fato novo aos esquemas de generalização que herdamos ereelaboramos com nossa própria experiência. Mas que tipo de subsunção se opera nopensamento intuitivo?

A intuição é, tal como o pensamento repetitivo, resultado do acúmulo de experiências,mas difere do pensamento repetitivo em que a intuição é um derivado do conjunto deexperiências que passa a integrar a personalidade. É um fato psicológico com relevância cognitiva, mas é um procedimento pós-cognitivo e não pré-cognitivo: aintuição subsume o fato novo na generalidade formada pela estrutura da personalidade.Sendo assim, podemos concluir que não existe uma intuição humana universal, pois aestrutura da personalidade pode ser construída segundo as categorias em si – comopersonalidade particularista – ou para si – como indivíduo. E a intuição da pessoaparticularista é um tipo diferente de intuição. Porque a pessoa particularista não

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desenvolveu a válvula afinadora da situação singular, que não é uma válvula cognitiva(não é um fato epistemológico) mas um fato moral, definido por Aristóteles como umavirtude dianoética (uma virtude da parte da alma que movimenta precipuamente opensamento: não necessariamente intelecto nem inteligência), a capacidade da almachamada phrónesis. Essa capacidade, que é uma virtude do indivíduo, é exercida nãoapenas no salto para a conclusão que parece resultar da intuição, mas em todo oprocesso de decisão, de modo que ela auxilia o indivíduo a tomar distância também emrelação a suas intuições. A intuição, por fim, revela-se apenas como um ‘momento’ natemporalidade do processo de pensamento que constituirá a decisão, seja boa ou ruim, ecomo tal não tem relevância numa teoria da prova. Podemos admiti-la como um fato,mas não é a ‘intuição’, seja alta ou baixa, o elemento epistemológico diferencial de umateoria da prova orientada pelo paradigma indiciário.

Resulta disso que nos sobrou apenas o título “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg,uma vez que dispensamos sua confusão com a epistemologia e a intuição. Dispensandoa epistemologia, das cinco virtudes dianoéticas de Aristóteles nosso paradigmaindiciário dispensará a epistéme. As verdades com que lidamos na decisão criminal nãosão verdades científicas, mas verdades cotidianas, espécies de dóxa. Mas por ser oparadigma indiciário um método de aproximação dos fenômenos que capta o singular eirrepetível, a qualidade de cada coisa ou situação, não podemos dispensar a virtudearistotélica da phrónesis. Mas será possível ensinar alguém a desenvolver essa virtude?Se não for possível, então o quê afinal se pode ensinar numa teoria da prova?Discutiremos novamente a questão ao tratar da imparcialidade. Antes, para finalizarnossa compreensão sobre o pensamento cotidiano, temos para resolver o problema dospreconceitos. Por que a prática e a teoria jurídicas são tão pródigas em preconceitos?Que são preconceitos?

12. Que são preconceitos? Verdade e método – 20 anos depois

março 30, 2013

Antes de edificar convém limpar bem o terreno.

Preconceitos não são o mesmo que as pré-compreensões de Hans-Georg Gadamer. Masnão me parece justificada a pretensão do filósofo de adicionar à palavra cotidiana onome novo (não importando se cunhado por Bultmann ou por outro autor), pois comesse nome Gadamer não deixa o fenômeno menos ambíguo, e eliminar ou reduzir aambiguidade dos nomes é a única razão para cunhar-se um nome novo. O filósofo usaos dois nomes, mas não chega a explicar em que se distinguem, parecendo que pré-compreensões seriam gênero, preconceito espécie, mas isso não está claro. De qualquermodo, o equívoco mais sério é confundir o preconceito com epistemologia. Poiso preconceito não é, pelo menos precipuamente, uma categoria epistemológica.

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Uma crítica ao filósofo de Verdade e método não estava no projeto, mas não seráintempestiva: ela se impôs à minha teoria como uma espécie de imposição do mercado.Uma teoria da prova criminal destina-se a juristas práticos, e precisa de algum modoresolver o problema dos preconceitos, porque preconceitos são coisas ruins queprejudicam a procura da verdade dos fatos. Mas Gadamer ensina algo diferente,notadamente ao contrário, pois para ele existem preconceitos do bem. Então precisamoscomeçar justificando por que Gadamer não diz a verdade toda, porque os juristasteóricos de hoje vêm empurrando goela abaixo dos destinatários potenciais desta teoriaa mais nova verdade, e parece que não se pode pensar algo diferente de Gadamer semestar fora de moda, ultrapassado. Ficaram encantados com o filósofo Gadamer e suahermenêutica. Demonstrar que Gadamer não está cem por cento certo é quebrar esseencanto, o que nos levará a aprender um pouco de filosofia, pois só se constrói algo útilem filosofia a partir da negação. Como ensina a filósofa, toda filosofia nasce quandoapontamos: isso não é bem assim, não é verdade, algo diferente é que é verdade.

Começando pela recepção, é preciso criticar o modo como os juristas se encantam coma filosofia: alguém espalha a boa nova (não obstante Verdade e método não ser tão novo,sua publicação original se deu em 1960) e o livro vira a bola da vez, é entronizado nodiscurso do presente como porta-voz do progresso em si. Talvez isso ocorra pelo nossocostume de lidar com as leis no tempo: temos dificuldade em pensar que algo novopossa existir sem revogar o antigo. E essa consciência da temporalidade é tão enraizadaque, por mais que digam criticar o paradigma das ciências naturais, os juristas teóricos,na prática, seguem acreditando no progresso unilinear sob o paradigma tecnológico. Umbom exemplo está nas teorias das “gerações” dos direitos. Agora adotaram o pós-moderno, mas invariavelmente os juristas pensam no pós-moderno como um tempo,uma época, não como uma forma de consciência. E esse (novo) tempo é aindaconcebido na metáfora da conquista por exploradores (típica da aurora damodernidade). Como o poeta que saudava os navegadores portugueses, é difícilencontrar um jurista que não tenha a arrogância de mandar cessar tudo o que a musaantiga canta, que um valor mais alto se alevanta.

Mas até aqui já temos elementos para desconfiar que esta nossa teoria da prova é maisinvestigativa e filosófica que jurídica e doutrinária, então ficaremos à vontade emreconhecer a constituição espiritual do nosso tempo e sua pluralidade de paradigmas.Admitamos, apenas por hipótese, que outro pensamento, por mais marginalizado queseja, possa dizer algo verdadeiro.

Meu preconceito em relação a Gadamer

Bom começo é aplicar um pouco o método de Gadamer de trazer nossos preconceitospara o front do debate. O termo front é uma liberdade minha que substitui o prefixo“pré” correntemente empregado para traduzir o termo original, porque “pré” me pareceexcessivamente associado à temporalidade, e prefiro raciocinar de modo mais espacial.Quando o li pela primeira vez, adquiri um forte preconceito contra Gadamer, suafilosofia, sua hermenêutica, tudo que tivesse alguma relação com esse livro Verdade emétodo. Com o tempo, diminuí meu preconceito com o filósofo, de quem apreciei os

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estudos sobre filosofia grega clássica, no inglês Dialogue and dialectic, de longemelhores que Verdade e método. Em relação à hermenêutica de Gadamer, não mudeimeu preconceito. Mas contrariando Gadamer, penso que uma investigação filosóficanão admite preconceitos, nem do bem nem do mal, e nem me interessa investigar, nofront do debate, o meu preconceito, para apenas compreender a verdade do texto deGadamer, chegar a ler só o que está escrito. A filosofia não limpa o terreno dopreconceito para contentar-se com o entendimento correto do que o outro diz, isso éapenas hermenêutica. A filosofia vai além, ou não será filosofia: procura pela verdade.Vinte anos depois de ler Gadamer, pela necessidade de retomar alguns de seusensinamentos, transformo meu preconceito em conceito. Amigavelmente, no espírito domote aristotélico (que aliás dá título a um ensaio de Gadamer): amicus Plato magisamica veritas.

Relendo Gadamer, investigo em primeiro lugar: por que adquiri meu preconceito?

Quando a gente compra uma teoria espera receber o que o título promete, não abiografia do autor de contrabando. Referências autobiográficas são adições marginais àteoria, destinadas ao lugar de honra ou desonra dos rodapés. O problema, ou suasolução, é que meu atual modo de publicar não admite rodapés. Mas a pergunta exigeencher um pouco a história e pede um alongado rodapé.

Comprei Verdade e método em 1993, para um seminário na New School. O livro,lançado na Alemanha em 1960, estava então em voga nos Estados Unidos,possivelmente pela publicação nesse ano de uma nova tradução. Acompanhei oseminário sem entusiasmo: ao contrário até, com irritação. O que exatamente me irritavano livro?

Relendo sua parte central, hoje, percebo a mesma irritação. Voltando no tempo, perceboque adquiri meu preconceito a respeito da irrelevância desse livro porque fiqueiencantado com a verdade de uma filosofia melhor que a dele, que descobri na coleçãode ensaios de Lukács chamada A alma e as formas, cujo núcleo indaga como é possívelcompreender o outro. A descoberta do livro de Lukács me fez olhar Verdade emétodo com irritação porque o livro de Lukács me parecia verdadeiro, e o de Gadamer,falso. Minha irritação já era por isso meio conceitual, não era um puro preconceito.Hoje elaboro de outro modo esse conceito de uma filosofia falsa, adotando o modohegeliano: porque é inegavelmente uma obra de filosofia, Verdade e método não podeser falso; Gadamer, como todos os filósofos, está na verdade, mas não na verdade toda.Em relação ao livro de Lukács, reformulo suas qualidades: além de verdadeiro, é delonge existencial e especulativamente mais denso, e diante dele Verdade e métodotransparece em sua platitude.

“Uma reação que se torna recorrente com frequência deve ter fundações profundas naalma”, escrevia Lukács, ou algo parecido com isso, pois este é o terceiro idioma depassagem, desde o original húngaro, de 1910 (Lukács, 1974, p. 79). Com vinte e cincoanos, numa bela coleção de ensaios, o filósofo criou um mundo que é o absoluto opostodo mundo de Gadamer. Em A alma e as formas, toda compreensão é um mal-entendimento. Nós não escaparemos jamais dos mal-entendidos, por que então nos

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preocupar com a compreensão correta que seria possível através da fusão dehorizontes? A proposta de Gadamer transparece em seu fracasso existencial desde aestrutura, ao começar pela tentativa de abordar a verdade na obra de arte, pois oconceito do que é apenas correto lida com um aspecto, indispensável mas nãosuficiente, na criação e na recepção da arte: a perfeição no manejo (técnico) do meiohomogêneo. Uma obra apenas correta não é arte, é virtuosismo (o jacobinismo datécnica, nas palavras de Lukács). É preciso que a obra tenha alma, intensidadeexistencial, profundidade de experiência vivida: mas apenas esta, por outro lado, deixa adesejar, pois é diletantismo (o jacobinismo da experiência vivida). A obra de arteconstitui-se num salto, em que esses dois componentes se mesclam de tal modo quecriam um mundo novo, que parece corresponder a uma harmonia pré-estabelecida(segundo desenvolvimento da Estética de Heidelberg, “obra prima [ainda]desconhecida” de Lukács).

Na minha arrogância infantil, eu formulava meu preconceito dizendo que Gadamerdestronava a filosofia do espírito absoluto para trazê-la para o mundinho do espíritoobjetivo. E dizia que o ideal antropológico da filosofia de Gadamer era o homemacadêmico. Mas existia vida lá fora, e por isso ainda poderia, quem sabe, existirfilosofia para tratar dos problemas reais das pessoas reais.

Passados vinte anos, não me afastei um centímetro desse juízo. Minha irritação é quemudou de objeto. O livro de Gadamer, descansando em sua irrelevância na minhabiblioteca, não me incomodaria mais se não fosse a irritação de hoje com a festivarecepção de Gadamer. Essa recepção não surpreenderia, nem incomodaria, se estivessecontida nos muros da universidade, que na mesma febre em que se encanta, rapidamentedesencanta-se com as filosofias, sem que isso cause qualquer prejuízo concreto na vidareal: nos últimos 20 anos houve a voga Habermas, depois Hannah Arendt, depoisGadamer, agora parece a vez de Carl Schmitt. Minha surpresa foi ver Gadamer adotadona vida real, virar jurisprudência. Nem se tivesse um “longo sonho do futuro”, não teriaconseguido imaginar, em agosto de 1993, quando comecei a estudar filosofia na NewSchool, que Heidegger seria citado em ementa de jurisprudência, associado a Gadamer eimponentes conceitos como pré-compreensões, círculo hermenêutico, faticidade,tradição, experiência, e a festejada, não obstante impossível, “fusão de horizontes”.Acordei para essa realidade ao ler o julgamento de uma apelação criminal no tribunalfederal da 4ª Região (0010944-45.2006.404.7100, publicado no diário eletrônico dotribunal em 16/01/2013).

A filosofia pode ser concebida como um produto que se oferece ao mercado parasatisfação de uma necessidade. Gosto dessa concepção porque é modesta, mas tambémporque não admite ingenuidades, questiona o momento da recepção, o que sempre podeadicionar à filosofia uma válvula de responsabilidade, a tentativa de prever o que aspessoas farão amanhã na vida real com essas belas palavras com que a gente recheiaos livros. Então pergunto: que necessidade satisfaz esta digressão crítica aparentementeintempestiva?

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Minha investigação filosófica sobre a recepção jurídica de Verdade e método satisfaz emprimeiro lugar minha necessidade de desengolir essa festa, teoricamente frágil, nãoobstante sua arrogância, e irresponsável em relação a suas consequências práticas. Mascomo a gente não se contenta em verificar um fato sem compreendê-lo, tambémsatisfaz minha necessidade de compreender:

Que necessidade pode ser satisfeita pela apropriação de Heidegger, filtrado porGadamer, e casado com o garantismo de Luigi Ferrajoli?

Fico feliz que hoje, com vinte anos de filosofia a mais na cabeça, consigo dar umaforma filosófica à minha irritação e chegar a um conceito. Posso adiantar apenas aconclusão, pois o argumento precisa de recheio, que se desenvolverá ao longo da etapadialética dos elementos desta teoria da prova, isto é, a elaboração da historicidade daprova e das teorias da prova. Descobri o que me irrita nas apropriações de Gadamerpelos nossos juristas, e seu nada surpreendente casamento com o garantismo de LuigiFerrajoli: todas essas teorias têm em comum que elas satisfazem o narcisismosecundário, e serão sempre, de modo mais ou menos explícito, negações damodernidade: resistências relacionadas ao desejo de morte. Toda recepção é um mal-entendido, mas algo deve existir na origem que permita essa recepção, pois o igualprocria o igual. Alguma coisa desse desejo de morte deve estar na fonte, mas demonstrarisso fugiria demais dos limites especulativos deste projeto, que ainda é, afinal, apenasuma teoria da prova. Por enquanto, na etapa analítica, volto à pergunta sobre que são ospreconceitos.

Gadamer é filósofo. E filósofos estão na verdade. Então aprenderemos um pouco comele, ou a partir dele, na próxima jornada deste intervalo.

13. Preconceitos existem. Mas o que eles são?

abril 3, 2013

Preconceitos existem. E no sentido corrente da palavra não são coisas boas, são coisasruins que prejudicam o nosso juízo. Se uma teoria da prova promete ajudar-nos emnossa dificuldade cotidiana de formar um bom juízo, precisa discutir o que sãopreconceitos.

Uma boa aproximação será registrar o modo como naturalmente reagimos diante de umpreconceito: dizemos que não se pode generalizar. Então descobrimos que o preconceitoé um tipo de generalização. Mas nós não reclamamos de todas as generalizações quecotidianamente empregamos, apenas de algumas. Todo preconceito é uma

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generalização, mas nem toda generalização será um preconceito. Mas qual será adiferença específica da generalização preconceituosa?

Uma segunda aproximação tentará obter resposta na definição dada pelo dicionário.Segundo o dicionário Encarta, a palavra prejudice ingressou no inglês pelo século 13,através do francês, por via do latim praejudicium, que seria um julgamento antes dotempo. Temos então que todo preconceito é um juízo antecipado, tendencialmenteprejudicial, por ser uma

“opinião pré-formada, favorável ou desfavorável, baseada em conhecimentoinsuficiente, sentimentos irracionais ou estereótipos imprecisos” (Encarta, 1999, p.1484).

Mas a explicação da palavra nesses termos mais confunde que explica, pois nos deixa aseguinte série de questionamentos: 1. em que sentido o preconceito é baseado em faltade conhecimento? 2. que tipo de conhecimento seria capaz de eliminar o preconceito? 3.em que medida o preconceito é eliminável? e se não for eliminável, que se pode fazercom nossos preconceitos? 4. que seriam sentimentos irracionais? 5. que são estereótiposimprecisos? existem estereótipos que sejam precisos, corretos? por que os imprecisossão imprecisos?

A definição corrente, por deixar-nos mais confusos, faz desconfiar que estamos diantede uma palavra filosófica. A definição do dicionário Encarta reporta-se, notadamente, àfilosofia da Ilustração, que numa de suas vertentes apresenta a ingenuidade de pensarque o poder da razão ou do conhecimento seriam capazes de varrer do mapa ospreconceitos, que seriam fenômenos da pré-história da idade do esclarecimento. Asconsequências mais dramáticas dessa filosofia se fizeram sentir na história doantissemitismo: houve uma ilustração judaica que acreditou um dia que o preconceitocontra o judeu seria apenas uma etapa histórica, a ser rapidamente vencida pelapassagem da humanidade para a Ilustração, que chegaria de modo inexorável peloprogresso contínuo da razão. Mas o que se demonstrou rapidamente vencido pelahistória foi a ilustração judaica.

Preconceitos antigos ressuscitam facilmente, assim como ressuscita a discriminaçãofundada no preconceito. O mais paradigmático dos preconceitos talvez seja opreconceito de raça. E nesse caso, o paradigma da discriminação operada pelopreconceito racial será o antissemitismo, porque construiu sua “solução final”, cujotermo corrente, Holocausto, é “covarde eufemismo” (Kertész, 2007. p. 69), pois já éuma estilização, uma abstração delicada de termos que soam muito mais brutais, como“campo de extermínio” ou Endlösung, segundo sensata observação de Imre Kertész(2004, p. 173). Memorável o acerto de Arendt em fazer anteceder, à compreensão dototalitarismo, um estudo sobre os significados do antissemitismo. Nem mesmo a “estrelaamarela” de identificação do inimigo pertence ao passado, pois ressuscita hoje no solohúngaro, em crise de identidade diante do fracasso, ou pelo menos das dificuldades, daintegração europeia. Ao escrever este capítulo, em que me reportarei a um antigo ensaioda filósofa Agnes Heller sobre os preconceitos, da década de 70 do século passado(disponível em O cotidiano e a história, em tradução de Konder & Coutinho), vejo na

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página do facebook da filósofa em 14 de março de 2013 uma fotografia da sala 44 complaca com seu nome como professora emérita na universidade húngara, contendo cartazdizendo “Judeus! A universidade pertence a nós, não a vocês” (não compreendo ohúngaro, mas alguém forneceu uma tradução em alemão: “Juden! Die Universitätgehört uns, nicht euch!“):

Ainda precisamos vencer o preconceito da Ilustração de imaginar que os preconceitosseriam algum dia eliminados pelo poder da razão. Precisamos compreender opreconceito como algo mais profundo, incrustado num lugar que é como umsubterrâneo social, que não será revogado pelo progresso científico ou tecnológico.

Há algum tempo uma campanha de promoção da identidade negra no Brasil formulouuma pergunta instigante: Onde você guarda o seu preconceito?

Em texto recente sobre o antissemitismo à brasileira, chamado “Flores para TheodorHerzl”, publicado neste espaço, em 9/2/2011, tentei compreender o fenômenorecorrendo ao magistral estudo de Freud sobre as origens do antissemitismo, em seuensaio sobre Moisés. Nessa linha, poderíamos responder à pergunta da campanhadizendo que guardamos nossos preconceitos no inconsciente, indestrutível eineliminável, mas que pode ser conhecido, explorado, compreendido e tratado, de modoque não retorne com violência. A compreensão freudiana é verdadeira, ao lembrar-nosde que os preconceitos são fenômenos ligados de perto aos afetos, mas um poucolimitada, porque não permite compreender a historicidade desse subterrâneoindestrutível onde vivem os preconceitos, que também são construídos socialmente, eassim apresentam variações históricas no modo como o inconsciente retorna, mais oumenos violento, à superfície social, cristalizando-se na discriminação.

Aqui seríamos tentados a trocar uma explicação filosófica que não satisfaz, por seuexcesso de ingenuidade racionalista, por uma compreensão freudiana, que no entantonão é menos racionalista: pois afinal o inconsciente é um espaço a ser ocupado: ondeestava o Id, deverá estar o Ego (Wo Es war, soll Ich werden, por facilidade reporto-me,daqui em diante, à interpretação filosófica de Freud por Paul Ricoeur, que apresenta osprincipais termos na dicção original, Ricoeur, 1970, p. 492). Com a desvantagem deque sabemos que os preconceitos são fenômenos individuais mas também coletivos, e asmassas não se sujeitam à análise no divã.

Mas se já sabemos que preconceito é uma palavra densamente filosófica, podemosexplorar a via da ilustração filosófica: tentar compreender o que são os preconceitos ecomo podemos lidar com eles. Para isso, será útil consultar uma filosofia que prometesuperar os excessos racionalistas que envolvem a compreensão dos preconceitos: ahermenêutica de Gadamer.

Gadamer e os preconceitos

As filosofias precisam ser de algum modo apropriadas por teorias jurídicas, porqueteorias jurídicas são elaborações teórico-práticas para ser aplicadas em instituições queadministram justiça. No vocabulário da filósofa, estas instituições são objetivações “em

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si e para si” exatamente porque reproduzem o conservadorismo da vida cotidiana aomesmo tempo em que são influenciadas, por serem instituições que precisam de algummodo de legitimação, por filosofias sociais e políticas. Mas o modo como as teoriasjurídicas apropriam filosofias não é cem por cento filosófico: todas elas serão receptorasparciais de filosofias, o que significa que todas essas teorias jurídicas são ideologias,não no sentido negativo de falsa consciência, mas no sentido positivo como mananciaisde entusiasmo para a ação prática, depósitos de crenças gerais, certas ou erradas, sobre obem. Sendo assim, se toda compreensão é um mal-entendimento, é de esperar que osmal-entendimentos das recepções parciais de filosofias sejam fatos normais. Apontarum mal-entendimento não significa operar uma correção da recepção, mas compreenderque necessidades esse mal-entendido satisfaz. Sendo assim, é útil começar a abordar ahermenêutica de Gadamer pelo modo como ela é correntemente recebida e mal-entendida pelos juristas, que imaginam que Gadamer adapta Heidegger ao direito.

É possível que os juristas adaptem Heidegger ao direito, via Gadamer, algo cujapossibilidade foge à minha compreensão. Mas Gadamer faz algo diferente, aliás, aocontrário, pois não está preocupado em oferecer uma filosofia para o mercado jurídico.

Para a discussão sobre os preconceitos, interessa-nos a segunda parte de Verdade emétodo, em que o autor desenvolve os “elementos para uma teoria da experiênciahermenêutica”. Aí aparece com clareza a proposta de Gadamer de retornar à unidadeperdida da hermenêutica, que na origem não fazia distinção entre a interpretação dostextos de lei, das Escrituras e dos textos sagrados da tradição filosófica. O modo em queGadamer pensa que os juristas aplicam as leis seria exemplar para a restauração dessaunidade perdida, na qual “o jurista e o teólogo encontram o filólogo” (p. 328). O que ofilósofo aprecia no modelo jurídico de hermenêutica? O fato de que nem o jurista nem oteólogo consideram o trabalho de aplicação algo parecido com tomar liberdades com otexto (p. 332).

No modo como a apresento, já se delineia minha crítica essencial à proposta. Apercepção de Gadamer sobre a mentalidade dos juristas é ingênua demais. SegundoGadamer, o modelo da hermenêutica legal é exemplar porque mostraria um caminhodiferente do perseguido pela hermenêutica do historicismo romântico, que o filósofopretende criticar sem cair no extremo oposto da “quimera da ilustração perfeita” (p.378). O caminho errado do historicismo romântico vê a interpretação da alteridade dooutro como um processo de apropriação, através de misteriosa comunhão de almas, cujautopia seria compreender o outro melhor que ele mesmo (p. 296). Mas esseconhecimento como apropriação não passa de uma forma de dominação. E para superaresse erro “o verdadeiro modelo” deve ser o das hermenêuticas teológica e legal, porque

“interpretar a vontade da lei ou as promessas de Deus não é uma forma de domínio masuma forma de servir” (p. 311).

Mas aqui bem se vê que o filósofo não conhece o universo prático que elege pormodelo. Toda teoria precisa criar seus próprios tipos essenciais. Não é preciso queadotemos os tipos de Carl Schmitt (2004, p. 43) do direito como normativismo oudecisionismo (no sentido moderno de lex ou Recht) ou ordem concreta (Gestaltung,

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correspondente ao termo grego nómos) para reconhecer que o jurista-filósofo, queconheceu bem demais a mentalidade dos juristas, sentiu necessidade de ampliar essaunidade, para aproximar os tipos da vida real. Os historiadores práticos tambémpercebem essa necessidade ao observarem como são falsas as “histórias do direito”,porque não contam as histórias dos juristas (Marc Bloch, 1953, p. 149). Mas quem sãoos juristas?

Podemos aproximar-nos melhor da realidade se adotarmos uma tipologia que desmonteo conceito do jurista, adotando a divisão do conceito abstrato de pessoa dafenomenologia da vida cotidiana de Agnes Heller, em personalidades particularistas eindivíduos. Combinando-a com a formulação de Gadamer, temos uma tipologia pelomenos duplicada: existem juízes que tendencialmente interpretarão a vontade da leicomo forma de dominação; existem aqueles outros juízes que tendencialmenteinterpretarão a vontade da lei como uma forma de servir. O termo tendencialmenteenfatiza que esses são tipos-ideais na concepção de Max Weber, isto é, são tipos purosque não existem na vida real, mas cuja formulação teórica, por artificial que pareça,ajuda a dar conta da diversidade do real. Pessoas reais serão misturas de tipos puros,mas ainda assim apresentarão preponderantemente mais aquele ou mais este.

Existem juízes que na aplicação da lei tendem mais a usar o serviço como uma forma depoder, e esse tipo ideal corresponde ao tipo ideal das pessoas particularistas; existemjuízes que na aplicação da lei tendem mais a usar o serviço como uma forma de servir, eesse tipo ideal corresponde ao tipo ideal dos indivíduos. Uma diferença entre eles estána válvula moral chamada por Aristóteles de phrónesis, quase totalmente ausente ou emalto grau inoperante nas pessoas particularistas. Mas que isso diz dos preconceitos?

Preconceitos são espécie do gênero generalizações. O gênero é indispensável, mas sópode ser adequadamente empregado se contarmos com o permanente corretivo daphrónesis, a virtude que percebe a singularidade de cada pessoa ou evento. Se existe umtipo ideal de juízes que não possui ou tem sua phrónesis bem pouco desenvolvida,certamente esse tipo terá maior tendência às generalizações injustas, e generalizaçõesinjustas são preconceitos. Nem todas as pessoas, e já podemos dizer, nem todos osjuízes, serão igualmente predispostos a julgar com base em preconceitos.

Até aqui insistimos em que preconceitos são fenômenos negativos, que prejudicam obom juízo. Mas será correta essa visão corrente do termo? Segundo Gadamer, não. AIlustração deve ser criticada por ter excedido na entonação pejorativa, negativa, dopreconceito, quando em realidade existem os preconceitos justos, verdadeiros, ou, comodiz o filósofo em francês, préjugés légitimes (p. 271). E então surge a perguntaepistemológica fundamental: qual é o terreno de legitimidade dos preconceitos? (p.277). Os problemas da filosofia de Gadamer não estão tanto nas perguntas que propõe,mas no vago e impreciso das respostas, algo recorrente no livro todo: é uma filosofiaque gira, gira, mas volta ao ponto de partida, em circularidade, mas não num círculo decírculos em que se progride para algo mais elevado. Desde o início, lemos que “ainterpretação começa quando as pré-compreensões são substituídas por outras maisadequadas”. E o filósofo indaga: nós poderíamos perguntar como a gente apreende essas

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pré-compreensões? (p. 267, 268), mas não pergunta que novas compreensões são maisadequadas, nem justifica por que seriam mais adequadas. Segundo Gadamer, o maisimportante é conhecermos as nossas pré-compreensões e os nossos preconceitos demodo que o texto possa apresentar-se em sua alteridade. Mas em sua projetadasuperação da Ilustração, o filósofo apenas diz que existem os preconceitos pelos quais agente compreende e os preconceitos pelos quais a gente mal-compreende. Mas quando agente quer saber o que distingue o preconceito ruim do preconceito legítimo, por queexiste um pelo qual a gente compreende e o outro pelo qual a gente mal-compreende, ahermenêutica fica na promessa. Pois Gadamer limita o conceito de preconceito ao fatortempo, apenas um problema de timing do juízo, pois o preconceito seria um juízo oujulgamento passado antes de serem examinados todos os elementos que determinamcada situação (p. 271).

Não encontro orientação segura na hermenêutica de Gadamer. Aprende-se com ele amanter abertura para a alteridade dos outros como a verdadeira postura hermenêutica,muito bem. Aprende-se que existem fatos contra nós que precisamos admitir, noçãocitada à náusea como a sabedoria da hermenêutica de Gadamer, que no entanto defineapenas a prosaica, embora rara na prática, honestidade intelectual, que aplicada na vidareal, pela ausência de critério do que precisamos aceitar e o que legitimamente devemosrecusar na alteridade do outro, torna-se livremente apropriável pelo liberalismoinsincero ou pelo fanatismo etnocrata, contemporâneos, que toleram tudo porque seria aforma de cultura do outro. Aprende-se que a postura adequada para a abertura para asverdades dos outros requer a suspensão de nossos preconceitos, e que essa suspensãotem estruturalmente o formato de uma pergunta; que toda hermenêutica segue umalógica desconhecida nas ciências humanas, que foi reivindicada por Collingwood emsua, aliás excelente, autobiografia: a lógica de pergunta e resposta. Aprende-se quetrazer um preconceito para o front (em inglês foreground, no original abheben) requersuspender sua validade para nós, mas quando perguntamos como isso é possível,ouvimos do filósofo que “isso é impossível”, enquanto o preconceito opera em nósinconscientemente. Isso só será possível se esse preconceito for provocado por algumapergunta. Um texto sagrado da tradição seria essa pergunta (p. 299). Mas entãovoltamos à circularidade, pois se um texto da tradição é sagrado para nós é porque ele écapaz de formular essa pergunta feliz que suspende nossos preconceitos, mas nãoconseguimos dar a esse texto a qualidade de pergunta que o torna sagrado sem estarmospredispostos a suspender nossos preconceitos.

E quando procuramos por uma resposta para o dilema epistemológico de Gadamer,sobre o que distingue um preconceito positivo de um negativo, que encontramos?

Aqui o filósofo, como o venerável Platão recorrendo ao mito, resolve seu problema comretórica ou com a repetição da fé ilustrada em que o conhecimento é superior aossentimentos. Retoricamente, Gadamer declara que “é a tirania dos preconceitos ocultosque nos torna surdos para o que diz a tradição” (p. 270). Mas o que queríamos erainvestigar por que uns preconceitos são tiranos e outros amigos, por que uns nos deixamsurdos e outros atentos. A solução da hermenêutica é triste: porque a diferençaespecífica do preconceito segundo Gadamer é só o fator tempo, então a solução à vista

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está em aguardar o julgamento do Tempo, senhor da Razão: ”Quase sempre será adistância temporal quem resolverá a questão da crítica na hermenêutica, isto é, comodistinguir os preconceitos verdadeiros pelos quais compreendemos dos preconceitosfalsos pelos quais nós mal-entendemos” (p. 299). A confiança no tempo se expressatambém na tristeza com que o filósofo reconhece nossa “impotência para julgar, sempreque a distância temporal não nos proporciona critérios seguros” e seria por isso que asobras de arte de nossos contemporâneos são “desesperadamente inseguras para aconsciência acadêmica” (na versão em inglês, para a “scholarly consciousness”, p. 297).

A resignação de Gadamer à lição do tempo apenas reflete o fato de que ele trata umproblema moral exclusivamente como problema epistemológico, ou seja, pende maispara uma solução fortemente metafísica do tipo de Platão que para uma solução menosfortemente metafísica, do tipo de Aristóteles, mesmo que alegue apropriar Aristótelesem sua “relevância hermenêutica” para o modo de aplicar os universais. Não surpreendeque Gadamer tenha uma interpretação romântica, e particularmente incorreta, da éticaaristotélica, segundo a qual “na deliberação moral ver o que precisa ser feitoimediatamente não é apenas um modo de ver, mas noûs” (Gadamer, 1993, p. 322),equívoco que não se resolve pela remissão ao livro VI da Ética a Nicômaco, porque aíAristóteles enumera as cinco virtudes dianoéticas, explicando rapidamente cada uma,mas não diz que o noûs seja a virtude que capta o que fazer na hora de agir, porque esteé o domínio da phrónesis.

Encerro aqui minha viagem de retorno a Verdade e método. Prosseguiremos com ocaminho limpo, a partir de uma filosofia prática. Porque na maioria das vezes em quejulgamos a prova, não teremos o tempo em que o filósofo tanto confia. Queremos errarmenos, mas que seja agora. Era isso que fazia a diferença entre o historiador e o jurado,como já havia percebido Collingwood: o historiador tem todo o tempo do mundo parachegar ao juízo verdadeiro, mas não se admite que o jurado fuja da sala de deliberaçõessob a justificativa de que precisa pensar mais um pouco.

A análise filosófica da vida cotidiana, pela filósofa Agnes Heller, que nos fornece aargamassa para cimentar os tijolos desta teoria, de modo que não fiquem tão frágeiscomo “minha casa, minha vida”, nos socorrerá dos curtos-circuitos gerados pelopensamento ilustrado, e sua fé cega no poder da razão para vencer todos ospreconceitos, sem obrigar-nos a ajoelhar no altar imperialista do paradigma dalinguagem, pois nos oferece uma abordagem combinatória de analítica e dialética, istoé, uma analítica atenta à historicidade dos fenômenos. (E em matéria de preconceitos,tem a vantagem de poder combinar-se com as características que os preconceitos têmem comum com o inconsciente: sua indestrutibilidade, suas fases de latência e retornoviolento em face de algo que ameaça sua estrutura de necessidades, etc.) Começaremosde novo, sem nos envolver com problemas de epistemologia. Porque o preconceito éuma categoria da vida cotidiana. E ajudar-nos a vencer nossos preconceitos não é tantoum problema de cognição, é precipuamente um problema moral.

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14. Como saber se uma generalização éum preconceito?

abril 17, 2013

Interrompemos nossa jornada com a descoberta de que todo preconceito é umageneralização, mas nem toda generalização é um preconceito. Só não sabemos aindacomo distinguir cada qual. Prossigo por indução, através de um exemplo.

Existem momentos na administração de justiça em que precisamos confiar em juízosrápidos e definitivos (que até podemos chamar intuitivos, sabendo pelo capítulo 11 quetoda intuição é pós-cognitiva e não pré-cognitiva, é resultado de uma soma deexperiências e conhecimentos). Um desses momentos ocorre no uso da “recusaperemptória”, nome que damos ao instituto que em sua origem moderna, no direitoinglês, chama-se peremptory challenge (não sei como está agora, mas o instituto, napátria de origem do júri, foi abolido em 1988, no curso de reformas que vêm demolindoo sistema liberal de justiça construído no século 19, “que poderia ser descrito como bom[fair]” sob o ponto de vista do acusado, segundo Bentley (1998, p. 300-301), o quedemonstra que os sistemas tradicionais de processo criminal, o continental e o anglo-americano, encontram-se ambos em crise de identidade.

Recusa peremptória é o direito do acusado de recusar algum jurado sem dizer omotivo. O direito é regulado de modos diferentes, quanto ao número de recusaspossíveis, sua extensão, ou não, ao acusador, mas a existência dodireito, independentemente do modo como venha a ser limitado, constitui a essência dojúri: pois ao exercer o direito de recusar um jurado sem motivo, em realidade sem dizerseus motivos, o acusado ajuda a compor o seu júri, e ao aceitar o júri, admite alegitimidade do julgamento de seus pares.

O promotor e o advogado que se dirigem ao plenário têm algumas ideiasgerais (generalizações) sobre que tipo de jurado recusar, dependendo de quem foremvítima e réu. Homens ou mulheres serão mais favoráveis à acusação ou à defesa?Dependendo da idade da vítima, pessoas mais moças ou mais velhas? Algumasgeneralizações serão feitas à vista rápida do biótipo do jurado, do modo como se veste,como arruma o cabelo: parece uma pessoa moderna ou conservadora, indiferente àreligião ou de fé religiosa? Será que pessoas muito religiosas de fato tendem a absolversempre, por pensar que não lhes é concedido condenar?

Qualquer generalização que empregarmos poderia ser considerada um preconceito, e nahisteria das biopolíticas contemporâneas, de inescapável viés totalitário, ser tachada deilegítima discriminação, se não fosse concedido a quem recusa o direito de guardarsegredo sobre seus motivos. Preconceitos guardados em segredo são inofensivos. Sepretendêssemos eliminar todos os preconceitos, teríamos que abolir o instituto, mas aabolição não parece justa, porque o instituto é bom (voltarei a falar nele quando

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examinar, adiante, o problema da irracionalidade do júri, à luz da teoria demodernidade de Max Weber).

O exemplo é útil porque diz algo verdadeiro sobre os nossos preconceitos: eles existem,sempre existirão, mas não é por existirem que serão prejudiciais aos outros. Todos nósolhamos os outros de certo modo, com simpatia ou com olhar torto, e somos percebidospelos outros ao modo deles. Para dizê-lo com Guimarães Rosa, em Grande sertão:veredas: “um lugar conhece outro é por calúnias e falsos levantados; as pessoastambém, nesta vida”.

O que não podemos é dar vazão aos nossos preconceitos: enfim, pode-se tê-los, mas nãose deve dizê-los.

Agora imaginemos se a lei, de antemão, recusasse um jurado por nós: se, por exemplo,dissesse que açougueiros não podem ser jurados em crime de homicídio qualificadopelo meio cruel do esquartejamento do corpo da vítima. No início do século 21,achamos graça e dizemos que isso é absurdo. Perguntamos: por quê? Quem nos garanteque uma pessoa, por ter a profissão de açougueiro, será um jurado injusto?

Mas na Inglaterra do início do século 19, essa era uma generalização corrente. Não seadmitia um açougueiro em júri de crimes mais graves, punidos com pena capital.

Caminhamos na companhia de dois filósofos que se ocuparam da prova criminal: umantigo, Aristóteles; outro moderno, Jeremy Bentham. O filósofo inglês indignou-se comessa generalização absurda, por pensar que ela era apenas um preconceito contra osaçougueiros. E perguntou: se os açougueiros não podem ser jurados, por sua supostafrieza de coração, por que podem ser jurados os cirurgiões? E para arrematar, comhumor inglês, escreveu que, se dependesse dele, seria bem mais razoável excluir do júrios advogados (Bentham, 1827, p. 208-9).

Se examinarmos o preconceito da lei inglesa com os açougueiros, à distância de mais deduzentos anos, em que nos acostumamos a pensar que toda pessoa medianamenteinstruída e no vigor de sua capacidade mental pode ser um bom jurado, teremos umaindicação sobre como distinguir uma generalização de um preconceito:

O que distingue um preconceito como generalização injusta é a possibilidade de umageneralização alternativa e mais justa. E aí nos envolvemos em outra discussão imensa:que é justiça? Que tipo de generalização alternativa será legítima para afastar umageneralização como injusta ou preconceituosa?

Tentei aprender a diferença com a filosofia hermenêutica de Gadamer e não consegui.Desconfio que a culpa não foi completamente minha, e que não consegui aprenderporque Gadamer não conseguiu ensinar direito, ao acreditar que a ética aristotélica seriasuperior à filosofia moral moderna. Segundo o hermeneuta, “o que torna a ética clássicasuperior à filosofia moral moderna é que ela pavimenta a transição da ética para apolítica, a arte da boa legislação, na indispensabilidade da tradição (segue citação dolivro X da Ética a Nicômaco de Aristóteles). Em comparação, a Ilustração moderna éabstrata e revolucionária” (Gadamer, 1993, p. 281).

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Eu tenho grande apreço pela ética aristotélica, mas não vejo como o fato de se julgar aética clássica superior à filosofia moral moderna poderia resolver nosso problema, quejá podemos desconfiar ser um problema moderno. Porque no tempo de Aristóteles nãose discutia o problema dos preconceitos. A sociedade em que Aristóteles viveu ainda erauma civilização integrada, sem indivíduos “problemáticos”, nos termos de Lukács (naTeoria do romance: a expressão “cultura fechada” usada na tradução brasileira paraverter “eine homogene Welt” não é boa, também por lembrar demais Popper). NaRetórica, que seria o lugar onde deveríamos encontrar o tema, não há sequer umapalavra que expresse o que hoje compreendemos como preconceito (aqui me reporto àautoridade de Gadamer, filósofo de erudição clássica que ao apresentar a etimologia dapalavra não retroage ao grego, apenas ao latim). O preconceito é um fenômenomoderno. Porque o que distingue uma generalização de um preconceito é apossibilidade de existir uma generalização alternativa. Todas as generalizações sãoconceitos que usamos no cotidiano: a partir do momento em que existem generalizaçõesalternativas existirão modos de vida alternativos. A pluralidade de modos de vida é algotipicamente moderno, que tem começo quando a sociedade começa a perceber que agente não é obrigado a ser o que deveria ser pelo simples acidente do nascimento. Paradizê-lo com a filósofa, apenas as pessoas modernas perguntam às crianças “o que vocêquer ser quando crescer?”, pois os antigos já sabiam a resposta: nasci escravo, sereiescravo, talvez um bom escravo; nasci nobre e livre, serei um adulto nobre e livre (sepor acaso tiver nascido homem), talvez um homem bom e um bom cidadão, um homemde “alma grande” (megalopsychía, a “boa ordenação”, ou kósmos de todas as virtudes,Ética a Nicômaco, IV, iii, 16).

Aqui chegamos a um ponto em que a teoria da prova encontra as filosofias morais. Masuma filosofia moral para pessoas modernas não aponta o dedo indicador para ospecados ou erros alheios, ela é como uma ligação telefônica para a pessoa que pergunta“qual é a coisa certa para eu fazer?” (Agnes Heller). Uma receita moral moderna podepor isso prescrever uma dieta que nos ajuda a caminhar com uma “muleta” que nosoriente em todas as diferentes situações da vida; e não existe na filosofia moderna umamuleta melhor que a Lei Moral (com letra maiúscula) de Immanuel Kant, que pode serinterpretada como o comando que nos proíbe de instrumentalizar os outros, fazer dooutro apenas meio, e nos comanda a considerá-lo como fim em si mesmo. Sempre queestivermos em presença de uma generalização (por exemplo, no dito todos os homenssão iguais, só muda o endereço), podemos estar em presença de um preconceito. Mascom a troca de um simples sinal gráfico, da exclamação ou ponto final para ainterrogação, podemos parar um segundo para pensar: será que todos os homens sãoiguais, mesmo sendo certo que todos têm cada um seu endereço?

Uma generalização será, então, injusta, e assim, um preconceito, se pudermos escolherem detrimento dessa generalização uma alternativa mais elevada. Em que sentido maiselevada? A nossa proposta é medir a elevação de cada generalização pelo metro deKant: é mais elevada uma generalização que não instrumentaliza os outros e consideraos outros como fins em si mesmos. O nome disso, embora a palavra existisse antes, foicunhado na filosofia moral de Kant: chama-se dignidade. No universo dos fins, ensinou

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o filósofo, existem as coisas que têm um preço e as coisas que não têm um preço. Aqualidade das coisas que não têm preço chama-se dignidade.

Os juristas abusam demais do nome dignidade, mas não é por isso que perderemos adignidade dos nomes. Se pudermos pôr um ponto de interrogação em cada uma denossas generalizações, conseguiremos começar a pensar na possibilidade de umaalternativa. E pensando na alternativa, se lembrarmos das coisas que não devem ter umpreço mas uma dignidade, poderemos chegar a uma generalização mais elevada que fazdaquela nossa generalização anterior um preconceito tolo ou absurdo, tão absurdoquanto pensar que açougueiros seriam maus jurados.

Mas que estou dizendo? Então é possível alguém propor numa teoria da prova quemagistrados ilustres e eruditos julgam a prova criminal com as mesmas capacidadesmentais empregadas por simplórios açougueiros?

Não apenas práticos, mas diversos juristas teóricos sussurrarão seu horror (sequer épreciso que um autor diga que tem restrições ao júri, pois pelo modo como desenvolveo tema da prova a gente consegue adivinhar). Esse horror tem antecedentes. Ele é tantomais horrível quanto menos dispostos estivermos a receber duros golpes em nossonarcisismo. O precedente foi apontado por Sigmund Freud como uma “dificuldade”para a recepção da teoria dele, que representou o terceiro duro golpe em nossonarcisismo. O primeiro veio das descobertas de Copérnico, que nos tirou a ilusão desermos o centro do universo; o segundo, das descobertas de Darwin, que nos situouapenas num imenso fluxo de evolução vital, sem um grande começo; por fim Freud, quenos tirou a ilusão de que seríamos senhores absolutos em nosso próprio domínio: aconsciência (cf. Ricoeur, 1970, p. 277). Que sobrou para nós?

Sobrou descobrir que “o diabo não há! … Existe é homem humano. Travessia.”(Grande sertão: veredas). E aceitar que temos preconceitos, que não viveremos semeles, mas que pelo menos podemos buscar sempre uma generalização mais justa,alternativa. Parece enfim, que todo o nosso rodeio sobre o tema não chegou a lugarnenhum: mas a verdade talvez seja que não existe receita segura para que a gente osidentifique ou, depois de identificá-los, nos proteja contra as injustiças de nossospróprios preconceitos. Em artigo da década de 70 do século passado, que examinareiadiante, a filósofa encerra o tema com um dito de Goethe que diz que nossas ideias nãopodem ser tolerantes, mas o nosso ânimo (palavra que não diz bem o que quer dizer ooriginal Gemüt, mas não há outra) pode ser tolerante. E todavia o que mais vemos, eprincipalmente nas políticas de luta contra os preconceitos, é todo o contrário: vemospessoas de ideias tolerantíssimas, mas de ânimo intolerante, armado contra os outros.

Uma teoria da prova é um empreendimento por natureza incompetente para ensinaralguém a distanciar-se de seus preconceitos. O preconceito é uma categoria da vidacotidiana mais ligada à particularidade, e quem começa a distanciar-se de suaparticularidade para enxergar melhor os outros já está em processo de tornar-seindivíduo. Não há muralha da China entre um ponto e outro, mas será útil saber que ocomeço de tornar-se indivíduo é um salto, uma escolha existencial, em que a pessoaescolhe a si mesma como alguém que é justo, e só se tornará aquilo que já é. Quem

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escolhe a si mesmo como alguém justo no julgamento dos fatos começará a aprender,assim, a tornar-se imparcial, e não terminará de aprender nunca. Mas que éimparcialidade? Há enorme confusão tanto entre práticos como na literatura jurídica emtorno de três nomes parecidos: objetividade, imparcialidade e neutralidade. Antes deprosseguir na análise do fenômeno do preconceito à luz da fenomenologia da vidacotidiana, que nos explicará por que afinal as teorias jurídicas contêm tantospreconceitos, convém aplainar o terreno com algum esclarecimento sobre esses trêsnomes. Em especial sobre o nome imparcialidade, que não é o que normalmente a gentepensa que é. Porque imparcialidade é um sentimento. Mas resolve dizer isso, se nãosabemos o que é um sentimento?

15. Que significa imparcialidade?

junho 15, 2013

E la nave va…

Um filósofo moderno que examinou o tema da prova criminal escreveu: duas fontes deerro nas decisões são a improbidade e a insensatez: two sources of misdecision areimprobity and folly (Bentham, 1827, p. 561). Folly tem no inglês como sinônimosprincipais unreason e thoughtlessness. É interessante notar que Bentham ordinariamenteexclui de suas considerações o defeito de improbidade. Ao examinar os preconceitosque envolvem a interpretação dos testemunhos, por exemplo, exclui o falso-testemunho (mendacity), o que delimita de modo claro o que se pode fazer numa teoriada prova, que não se destina a ensinar probidade, mas submete ao discurso racionaltodas as folias que os juristas ensinam (loucuras, preconceitos, tolices, crenças eargumentos usados apenas por recurso à autoridade). Adoto essa limitação, mas será útilpelo menos investigar o que significa imparcialidade, cuja falta confere ao produtocolhido pelo investigador a mácula da improbidade.

Enquanto um sistema de administração de justiça funciona normalmente, não paramospara perguntar o que significa prova, o que significa justiça, o que significaimparcialidade, porque esses atributos parecem qualidades naturais desse sistema.Percebemos alguma crise quando esses atributos deixam de parecer naturais e tornam-seobjeto de disputa. Discute-se hoje quem pode colher a prova criminal com

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imparcialidade, se A ou B, como se essa qualidade fosse algo natural de A, que B pornatureza não teria, ou vice versa.

O conceito de imparcialidade que empregamos nessa guerra civil é pressuposto de modoingênuo possivelmente por dois motivos: 1. porque parece óbvio que a administração dejustiça deve ser imparcial; 2. mas só percebemos essa qualidade quando ela peca porfalta grosseira, quando o defeito se torna visível. Só vemos a parcialidade quando elacruzou uma certa fronteira: nosso problema é a dificuldade de precisar que fronteira éessa. Em resumo: não sabemos direito o que é imparcialidade e misturamos no seuconceito várias noções parecidas. Se uma teoria pode ter alguma utilidade, ela deveajudar a pacificar um pouco a guerra civil, limpando o terreno desse imagináriomisturado, em que imparcialidade parece sinônimo de isenção, objetividade eneutralidade.

Convém desde logo excluir de nossa preocupação o termo neutralidade, que só se aplicade certo modo à administração de justiça concebida no modelo acusatório norte-americano (já bem distanciado de sua origem no direito inglês), em que a verdade dosfatos é disputada entre duas partes em duelo cujo fair-play é regulado por um terceirorelativamente neutro, que deve inclusive sacrificar sua compreensão pessoal do queseria mais justo em homenagem ao bom combate e às regras do jogo, que valem maisque a justeza do veredito. Por enquanto, o que podemos dizer é que esse imaginário nãose aplica ao modo continental de administrar a justiça, de que somos herdeiros.Podemos tentar caminhar para o rumo do tipo-ideal acusatório, mas nunca poderemosadotá-lo, pois precisaríamos nascer de novo. Mas só teremos mais clareza sobre issomais para a frente nesta empreitada, na abordagem dinâmica da prova em suahistoricidade.

A gente normalmente diz ‘sejamos objetivos!’ querendo dizer ‘vejamos os fatos comcabeça fria’. Ou tendemos a associar imparcialidade ao imaginário da ciência: a colheitada prova deveria ocorrer numa espécie de laboratório onde o cientista apenas percebeos fatos, numa espécie de temperatura média mantida artificialmente pelo ar-condicionado da ciência, que nos protegeria dos calores da ira, dos debates, dasemoções.

A crítica dessa tradição, associada ao positivismo científico do século 19, opera pelodesmascaramento ou “hermenêutica de suspeição”, na expressão de Ricoeur (1970, p.32) para qualificar as abordagens das filosofias radicais do século 19, de Marx eNietzsche a Freud (processo que corresponde à reversão da metafísica). Os críticos maisradicais gostam de tirar a máscara de todos os atores envolvidos na administração dejustiça, pois por trás da máscara da imparcialidade estariam os fatores reais de poder ouos modos de produção da parcialidade. Mas ainda que caiam todas as máscaras, sobraum rosto, e nesse rosto teremos a última parcialidade, ineliminável, que algunsacadêmicos que empregam o termo epistemologia gostariam de chamar deparcialidade epistemológica, que pode ser explicada do seguinte modo: no processo dejuntar as pedras do mosaico que recompõe a realidade, inevitavelmente formamosalgumas noções sobre culpa e inocência e, segundo dizem, tendemos a selecionar no

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material empírico observado preferencialmente os dados que confirmam as noções queantecipamos em nossa imaginação. Desnecessário investigar a realidade psicológica doconvencimento para concordar que algo parecido com isso pode ocorrer, mesmo queessa parcialidade epistemológica seja uma simplificação grosseira de um processodinâmico e complexo, que nem sempre ocorre nesse modo de tendência à busca deconfirmação de uma primeira impressão ou simpatia/antipatia. Mas ainda levando odesmascaramento à última consequência de revelar-se como hipocrisia a fé naimparcialidade, esse desmascaramento não nos satisfaz completamente, pois não adiantaa gente convencer-se de que todo mundo é parcial de algum modo se na vida realseguiremos distinguindo a parcialidade da imparcialidade, mesmo que esta última sejaum terreno que se toca apenas por aproximação. Sabemos, enfim, que nem todos sãoparciais do mesmo modo.

O que acontece, então, é que insatisfeitos com o desmascaramento radical daimparcialidade como hipocrisia, retornamos com naturalidade a uma tradiçãometafísica de rígida hierarquia de uma razão pura que seria senhora e guia daspercepções, da imaginação, dos sentimentos, de tudo que seja misturado, heterogêneo,tudo que seria inferior, carente de obediência. Mas essa tradição também não nossatisfaz, assim que percebemos que ela opera em circularidade: a Razão, pura ou fria,suposta senhora dos sentimentos acalorados, poderia dominá-los, mas como então ela édominada por alguns afetos: que faremos ao reconhecer que no calor da ira ou da paixãonós simplesmente paramos de pensar?

Ainda queremos encontrar a fronteira, esse algum modo de parcialidade que prejudica ajustiça. E tudo que descobrimos é que ninguém nos ensina a medir, de modomatemático, onde ela começa. Outro aspecto negativo do imaginário científico é que elepressupõe como ideal uma espécie de vácuo emocional. Já passamos pelo processo dodesmascaramento: sabemos que esse vácuo emocional não existe. Mas isso não é tudo: épossível que a aproximação desse ideal não seja sequer desejável, porque não é aausência de sentimentos que melhora a percepção da verdade dos fatos, masa seleção de alguns sentimentos em detrimento de outros. Dito de outro modo,a imparcialidade é algo parecido com a objetividade mas não é o contrário absoluto dasubjetividade.

Prossigo no exame da imparcialidade com apoio numa teoria dos sentimentos queprocura superar esses obstáculos. Reporto-me à segunda edição em inglês da teoria dossentimentos de Agnes Heller, escrito filosófico conciso (Heller, 2009, 224p.) que abordade modo original e exaustivo tema tradicionalmente negligenciado na filosofia. Segundoa filósofa, os sentimentos e emoções são como “filhos postiços” (stepchildren) dafilosofia metafísica. Por serem considerados menos puros ou menos nobres que a razão,foram recorrentemente maltratados. Entre as formidáveis exceções, o terceiro livro daética de Spinoza traz a maior inovação no tratamento filosófico dos sentimentos desdeAristóteles, ao romper com a circularidade entre a fria razão e os sentimentos quentes.No ponto de vista de Spinoza, os sentimentos não podem ser controlados pela razão,apenas por sentimentos contrários e mais fortes (Heller, 2009, 2). Mas que sentimentoscontrários e mais fortes podem conter outros sentimentos?

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Examino telegraficamente a primeira parte da teoria, a fenomenologia dos sentimentos,elaborada sobre as perguntas: Que são sentimentos? Que tipos de sentimentos existem?Como se aprende a sentir um sentimento?

A imparcialidade é um sentimento

Sentir é envolver-se em algo. Mas que tipo de envolvimento? Diferentemente dosanimais, regulados por instintos, nós possuímos apenas vestígios de instintos, porque oprocesso de humanização corresponde à troca da regulação instintiva pela regulaçãosocial. Segundo a linguagem de Marx, ao nascer nós carregamos a essência-muda daespécie, algo como a condição humana em estado de latência. A essência da espéciehumana está fora de nós, nas objetivações sociais que precisam ser apreendidas.Herdamos da loteria genética e social algumas qualidades que formam a nossaparticularidade, o nosso limite, ineliminável. Entre nossa particularidade e a condiçãohumana haverá uma espécie de hiato (segundo expressão de Gehlen): o mundo dossentimentos tem por função ajustar esse hiato, opera com função homeostática(homeostasia, segundo nosso dicionarista Houaiss, é termo cunhado pelo fisiologistaamericano Walter Cannon para significar o “processo de regulação pelo qual umorganismo mantém constante o seu equilíbrio”). O mundo dos sentimentos ajusta essehiato sinalizando constantemente que tarefas teremos diante de nós para a preservaçãoda coerência e continuidade de nosso Self em relação ao mundo externo. O “sentimentohumano é assim consequência desse hiato”. Mas não existem sentimentos semconceitualização mínima, assim como não existem pensamentos sem algumenvolvimento. Então de onde vem a rígida separação entre sentir e pensar que adotamosno pensamento cotidiano, afirmada na tradição metafísica?

A primeira utilidade de definir o sentimento como um envolvimento está em quepodemos distinguir dois tipos de sentimento, conforme o centro de nossa consciênciaesteja fixado no envolvimento em si ou naquele algo em que nos envolvemos. Essasduas configurações são denominadas de sentimentos-figura e sentimentos-cenário. Anoção cotidiana, que herdamos da tradição metafísica, segundo a qual a razão friadominaria as paixões quentes pode ser compreendida com essa distinção. O que ocorrequando pensamos que a razão dominou um sentimento é que um sentimento contrário emais forte foi posto no centro de nossa consciência, tornou-se sentimento-figura capazde empurrar o outro sentimento para o cenário de nosso mundo sentimental. Outra razãopara essa rígida dicotomia é que do universo variado de sentimentos normalmente noslembramos apenas de alguns, notadamente alguns afetos, como o medo, a ira, etc. Emacessos de cólera, de fato paramos de pensar, mas a nossa razão só domina a cólera se equando focamos no centro de nossa consciência um sentimento mais forte e contrário,como figura: quando dizemos ‘examinemos friamente a questão’ já estamos envolvidoscom um sentimento mais forte, capaz de suspender aquele envolvimento com a cólera,como quando nos envolvemos com a justiça. Esse novo envolvimento, que é umsentimento, é que consegue mobilizar o pensamento que estava paralisado. Logo, éapenas aparente o ‘domínio’ dos sentimentos pela razão.

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Compreenderemos melhor esse processo numa apresentação, ainda que telegráfica, dostipos de sentimentos que existem. Tendo presente sempre que toda classificação é útilapenas em teoria, porque todo sentimento é uma síndrome de componentesheterogêneos, a filósofa apresenta a seguinte classificação de sentimentos: 1. drives(tradução apressada diria ‘instintos’, mas esta teoria elabora-se sobre uma teoria dosinstintos segundo a qual nós possuímos apenas vestígios instintivos, melhor seria dizerquase-instintos, ou, adotando a tradução castelhana, impulsos): drives são sinais queindicam que algo está fora de ordem e que a homeostasia biológica está ameaçada. Sãosinais dirigidos para o nosso Self, não para os outros, sinais indispensáveis do ponto devista da preservação biológica, por exemplo, quando sinto sede, sinto fome. 2. afetossão parecidos com drives naquilo que são resultantes da demolição dos instintos, com adiferença de que os drives são reações a estímulos internos, ao passo que afetos sãoreações a estímulos exteriores. Por isso todos os afetos são modos de expressão,comunicação com os outros. Como os afetos dizem respeito à condição humana em-si,eles não são sentimentos idiossincráticos. Não existem culturas sem expressões de medoou vergonha, raiva ou nojo, alegria e tristeza, etc., o que muda é o modo como os afetossão regulados, pois eles são regulados primariamente por normas éticas. Masdiferentemente das emoções, os afetos não são vinculantes: não somos responsáveis portermos um ímpeto de cólera ou de medo, embora sejamos responsáveis pelo modo peloqual reagiremos na presença desse afeto. A emoção é sempre vinculante, somosresponsáveis por nossas emoções. 3. sentimentos orientativos são os sentimentos quenos apresentam sinais de orientação em qualquer aspecto da vida, normalmentedivididos em yes-feelings (sentimentos de afirmação) e no-feelings (sentimentos denegação). A convicção é um típico sentimento de afirmação, a dúvida é um típicosentimento de negação. A diferença desses sentimentos para os drives e afetos é que elessão todos exclusivamente produtos da experiência, ainda que alguns desses sentimentoscontem com elementos inatos, como seria o sentimento que chamamos de ‘bom instinto’de um expert em diagnósticos. Haverá algo de inato aqui, mas será impossíveldesenvolvê-lo sem ter estudado medicina. 4. sentimentos cognitivo-situacionais ouemoções em sentido próprio são sentimentos puramente sociais, por isso sempreidiossincráticos. A cognição, processo em que chegamos a saber o que significa osentimento que sentimos, torna-se parte integrante do sentimento, mesmo que muitasvezes a gente nem saiba direito o que sente. Porque um sentimento é capaz demodificar-se quando percebemos que ele não corresponde ao seu conceito, comoquando dizemos “pensei que estava amando, mas estava errado” ou “acabo de descobrirque desprezei meu pai por toda a vida”, mas não dizemos “acabo de descobrir que emtoda a minha vida tive asco ao ver sangue” (p. 87). As emoções são idiossincráticas, masdiferentemente dos afetos, não são contagiosas. O segredo dos demagogos está emmovimentar o universo dos afetos contagiosos, como o medo, que pode ser “canalizado”para outro afeto como o ódio (ao inimigo, ao estrangeiro, etc). E que seriam as paixões?

A paixão não é um tipo independente de sentimento, mas uma variação das emoções.Apenas as disposições emocionais podem tornar-se paixões. Como os sentimentostransformam-se em paixões? Quando se associam com o que Marx chama de fixe

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Begierde (p. 100), que seriam subprodutos de necessidades que não podemos satisfazer.A insatisfação tornada ideia-fixa transforma uma disposição emocional em paixão.Necessidades alienadas, quantitativas por excelência, prestam-se a tornar-se ideias-fixas: são as três fomes da antropologia de Kant: a fome de ter, a fome de ser famoso,e a fome de poder (Habsucht, Ehrsucht, Herrschsucht, p. 200). Mas também ocorre umafixação num tipo de afeição por determinada ideia, uma afeição por determinada causa:no entusiasmo. O entusiasmo pode ser positivo ou negativo.

O entusiasmo tornado ideia-fixa tem duas zonas de perigo: pela fixação abstrata tende atornar-se fanatismo. Pois “o entusiasta abstrato abstrai-se de seu próprio mundoemocional, falta-lhe gosto pela vida, é um inimigo da sensualidade, porque a ideiaabstrata exige ascetismo”. Mas a “natureza” reprimida de seu Self normalmente évingativa. A vingança aparece em momentos em que o entusiasta desiste ou conclui quea ideia não é de todo capaz de realizar-se, e então o que se vê é que tudo que foireprimido em nome da ideia de repente jorra, e a administração doméstica do mundosentimental do entusiasta entra em colapso ou adota qualquer princípio ordenador, nãoraro aqueles contra os quais a Ideia tanto se batia. “O entusiasta que retorna ao cotidianoé um típico convertido”, “o entusiasmo questiona a característica instintiva dosSüchte mas, sendo incapaz de formar para si um mundo de sentimentos concreto eindividual, sujeita as pessoas a esses drives. Assim, em última instância, o egoísmo e oaltruísmo, o desejo de posse e o entusiasmo pela ideia, pertencem um ao outro” (p.207).

Mas existe um entusiasmo concreto que é positivo, e apresenta a sutil diferença entre apaixão e o apassionamento. Porque toda paixão envolve um compromisso, mas arecíproca não é verdadeira, pois nem todo compromisso é uma paixão: “minha emoçãotorna-se apaixonada se ela é intensa e profunda e se eu conscientemente assumoresponsabilidade por ela. Isso não significa que uma disposição emocional apaixonadadeva reprimir minhas outras emoções ou disposições emocionais. (…) oapassionamento não impede a riqueza de sentimentos, mas ao contrário: não podeexistir riqueza sentimental sem apassionamento” (p. 101).

Avancei um pouco no tema das paixões, porque é importante na discussão sobre ossentimentos de imparcialidade e de justiça. O entusiasta abstrato tornado fanático não éincomum, mas não é confiável. Porque a imparcialidade exige um distanciamento dasituação e dos nossos próprios sentimentos que permita que a gente enxergue os fatoscom alguma objetividade, mas o entusiasta abstrato de uma causa voa sempre altodemais como um albatroz (p. 206). O entusiasta abstrato por ideias que se torna fanáticonão desenvolve a válvula moral que nos aproxima da imparcialidade. E por isso nãochega a ser mendaz, porque nas situações mais difíceis sequer consegue ver os fatos.

A imparcialidade é uma emoção, ou sentimento cognitivo-situacional, o que implica queé integrada de algum modo pelo conhecimento. Então se pode aprender a ser imparcial?Podemos aprender a sentir?

A resposta é positiva, porque todo sentimento está inevitavelmente imbricado comalgum aspecto cognitivo. No princípio, aprendemos a sentir observando os outros,aprendendo a “ler os sentimentos” dos outros. Prosseguimos, aprendendo a distinguir os

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sentimentos autênticos dos inautênticos, a resistir às armadilhas de todos os tipos desedução, sem paralisar a capacidade de confiar. E por último precisamos aprender a unirdois tipos de saber: o saber-algo e o saber-fazer, knowing-what and knowing-how, Wissen und Können, aprendizado que faz parte da prática dos sentimentos e quepossivelmente nunca termina.

A imparcialidade individual e a imparcialidade particularista

Concluo que a imparcialidade é um sentimento. Como sentimento, é um envolvimento.Com o quê? A imparcialidade é um envolvimento com a justiça que pode ser capaz,ainda que sempre de modo aproximado, de nos distanciar um pouco, ou de pôr emsuspenso, todos os outros envolvimentos que necessariamente teremos. Por que esseenvolvimento será capaz de tarefa tão difícil? Porque como os demais envolvimentos étambém um sentimento, mas é um sentimento contrário e mais forte, por ser construídopela integração consciente de valores, de modo que será um sentimento profundo, queenvolve toda a personalidade. Mas é útil distinguir dois modos de envolvimento,segundo as configurações de sentimentos-figura e de sentimentos-cenário. Porque

“podemos nos aproximar da imparcialidade (…) se estivermos direta ou indiretamenteenvolvidos com a imparcialidade (…). Diretamente envolvidos se nós amamos a justiça,se experimentamos a imparcialidade como um valor pessoal; indiretamente envolvidosse sabemos que poderemos obter o respeito dos outros (sempre importante para o nossoSelf) apenas por nossa avaliação imparcial” (p. 28).

Nessa distinção retomamos os dois tipos-ideais da teoria do cotidiano: porque existirãoemoções particularistas e emoções individuais. Recordemos, antes de prosseguir, quetipos ideais são construções de teorias que não existem na vida real, o que existe na vidareal são tendências a este ou aquele tipo. Sentimentos são sinais que nos ajudam napreservação biológica e social de nosso organismo, são envolvimentos que apontamtarefas. Nessa função homeostática dos sentimentos nós necessariamente valorizamosnossos sentimentos, isto é, relacionamos o que sentimos a determinados valores, enormalmente avaliamos nossos sentimentos em sua capacidade para preservar ouexpandir o nosso Self. Nessa tarefa fundamental, todos nós tendemos (1) apreservar/expandir o nosso Self valorizando como positivos sentimentos que não entremem rota de colisão com valores socialmente dados (2) ou a preservar/expandirnosso Self valorizando como positivos sentimentos que sejam positivamenteconsiderados segundo nossa própria e individual seleção de valores.

Na análise que segue, os tipos particularista e individual se parecem um pouco com ostipos other-directed e inner-directed da teoria de Riesman. A pessoa que se relaciona demodo particularista com seu mundo sentimental tende a identificar-se completamentecom o seu mundo. “Em declarações como ‘eu sou o melhor pai, porque eduquei meusfilhos para serem bons empresários, ou bons nobres, ou bons cristãos” encontramos otipo particularista de seleção de valores. O tipo ideal particularista “sempre tem razão,sempre faz tudo certinho, é sempre inocente”. É o tipo que tende a racionalizar suasatitudes, a encontrar um culpado (eu não queria, mas fui levado a …). Frequentemente é

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um tipo que se considera injustiçado por ingratidão (a gente faz tudo pelos filhos, oupelo país, ou pelo partido, ou pela instituição e quando precisa…).

O tipo-ideal do indivíduo seleciona seus valores, e ao selecionar valores caracteriza-sepor um certo distanciamento entre seu Self e o mundo. A divisão dos sentimentos nessesdois tipos-ideais faz sentido apenas em se tratando de emoções em sentido próprio, poistodos os drives e afetos são particularistas (ainda que em relação aos afetos nossarelação com eles possa ser particularista ou individual). Dentre as emoções em sentidopróprio, algumas não possuem função individual: são as emoções da vaidade e dainveja, sentimentos particularistas par excellence (p. 147). Todas as outras podem sermais ou menos individuais ou particularistas. Tanto os sentimentos particularistasquanto os individuais asseguram a continuidade da identidade e com isso a homeostasiada pessoa, mas conquistam essa tarefa de modo diferente. Em geral, os “mecanismos dedefesa” jogam um papel primordial no modo particularista de preservação daidentidade. Mas a função de guia operada pelos sentimentos particularistas deixa deoperar em situações-limite, e em geral o Self desaba, ou enfrenta neuroses ou até mesmoa loucura. O Self do indivíduo, porque foi construído com uma relação consciente com aespécie, é mais forte e persistente. A necessidade humana de obtermos a aprovação dosoutros ocorrerá nos dois casos. Mas o particularista normalmente deseja a aprovação detodos, ao passo que o indivíduo contenta-se com a aprovação dealguns, representativos de seus valores, e normalmente sequer deseja a aprovação, oamor ou o respeito daqueles outros.

Por ser um tipo que distancia mais o seu Self, construindo uma relação reflexiva com oentorno, o indivíduo parece às vezes que sente menos ou que não tem sentimentos. Masisso não é correto. O que ocorre é que os sentimentos particularistas parecem maisintensos, mas normalmente são também mais superficiais, ao passo que os sentimentosindividuais são sempre mais profundos: o que caracteriza sua profundidade é que eles serelacionam com a totalidade da personalidade.

Por relacionar-se de modo incondicional aos sistemas de valores vigentes, oparticularista parecerá mais natural. Sobre isso, deve-se observar que é difícil tornar-se indivíduo. Mas depois que isso ocorre, é cada vez mais fácil permanecer umindivíduo, o que se torna uma espécie de “segunda natureza”: “responder com amor aexpressões de franqueza, rejeitar a adulação com desprezo, amar os outros por simesmos, etc., tudo isso exige algum esforço no começo, mas chega o dia que se tornacada vez mais ‘natural’” (p. 157).

O envolvimento direto com a justiça caracteriza a imparcialidade do indivíduo; oenvolvimento indireto com a justiça caracteriza a imparcialidade particularista. Oindivíduo que escolheu a imparcialidade-figura será sempre mais confiável que o queescolheu o prestígio como figura, e a imparcialidade apenas indiretamente. Percebo atéque entre as pessoas que podemos observar que escolheram a imparcialidade comofigura não se verificam divergências na apreciação das provas para conclusão sobre osfatos. As pessoas que escolheram a si mesmas como envolvidas na imparcialidade-cenário, isto é, com foco no prestígio que a decisão imparcial lhes trará, não são

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confiáveis, mas normalmente serão ainda menos confiáveis em situações-limite. Quesignifica uma situação-limite? Uma situação-limite será toda aquela que ponha em riscoo sistema de normas vigente adotado incondicionalmente pelo particularista. Essapessoa tenderá a julgar imparcialmente todos os fatos que lhe sejam indiferentes. Àmedida que um fato aproximar-se, minimamente que seja, do seu universo vital, tudoserá possível, tudo dependerá de alguma circunstância imponderável, do jogo deprevisões sobre que decisão poderá ser mais ou menos digna de prestígio, uma vez queo foco da consciência tem a imparcialidade apenas como cenário, e o prestígio comofigura. O envolvimento indireto com a justiça, que caracteriza a imparcialidadeparticularista, também tem dificuldade em suspender as ‘analogias’ particularistas, tendea identificar-se completamente com o acusado ou com a vítima, conforme a situação.

A imparcialidade é um requisito de justiça aplicável em todo e qualquer momento emque se detém nas mãos os destinos dos outros. Para corrigir os filhos é precisoimparcialidade, para corrigir provas de alunos, também. É preciso imparcialidade paradistribuir censuras e elogios, que são atos de justiça distributiva, e como tais podem serautênticos ou inautênticos. Aqueles que escolheram a si mesmos como pessoas justas setornarão cada vez mais imparciais como se isso fosse uma segunda natureza, chegarão adesenvolver uma “disposição permanente para a imparcialidade”. Será que essa pessoatambém cometerá atos de parcialidade? Sim, eventualmente. Mas precisamos distinguircom Aristóteles a pessoa injusta, que desenvolve uma disposição permanente para ainjustiça, da pessoa justa que eventualmente comete atos injustos. O indivíduo queelegeu a imparcialidade como valor sofrerá a dor da injustiça de seu ato, procurarácorrigi-lo e se não for possível carregará dele uma lição, mas não sofrerá remorso ouproblemas de consciência. O remorso normalmente está associado ao universo dossentimentos particularistas, e pode acompanhar não só a descoberta do ato injusto porseu autor, mas, o que é mais frequente, sua descoberta pelos outros. A imparcialidade é,assim, uma categoria moral. Para evitar confusões, definimos o termo moral como anossa relação pessoal com as normas e regras éticas existentes.

Mas não é só isso. Como sabemos que nem toda a gente se escolherá existencialmente asi mesma na categoria da decência e da justiça, será útil que alguns devam serincentivados à imparcialidade pelo mecanismo indireto. E nisso a imparcialidadetambém é uma categoria ética, pois devemos desenvolver um forte éthos quedesincentive a parcialidade, que recuse prestigiar aqueles que reiteradamentetransgridem a fronteira para o lado da parcialidade. (Ou como escreveu Immanuel Kant:instituições devem ser criadas de tal modo que até mesmo uma raça de diabos (naspalavras do filósofo, ein Volk von Teufeln) seja obrigada a conviver decentemente comos outros (Kant, 1988, p. 146, vertido como “um povo de demónios”). Mas odesmascaramento moralista e demagógico, tão frequente, não fortalece esse éthos,porque normalmente provém de tendências particularistas, chegando por vezes aoautoritarismo que nasce de um narcisismo secundário tornado patológico, um tipo dedesejo de morte.

O tema é difícil e exigiria maior desenvolvimento, mas já conseguimos ao menoscompreender que imparcialidade é sinônimo de probidade no julgamento dos fatos.

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Então podemos prosseguir com as folias que os juristas nos ensinam, terreno específicode uma teoria da prova criminal. Mas por que as teorias dos juristas são tão pródigas empreconceitos?

16. Que capacidades mobilizamos parainvestigar e julgar a prova?

julho 18, 2013

Enfrentaremos algumas dificuldades até conseguirmos ver com outros olhos a paisagemdo cotidiano. Porque esta teoria da prova não quer pouco: ela quer mudar o modo peloqual enxergamos a investigação criminal no Brasil, que caminha de mal a pior.

Pois: que acontece no Brasil quando está tudo errado? Resposta: promulgamos uma leipara eternizar o princípio errado, e dificultar um pouco mais o começo de conserto. Esteé o mérito, para parcelas das corporações policiais que o festejam, da Lei 12.830,publicada em 20/6/2013, cinco dias antes da gloriosa derrota da PEC 37 por 430 x 9.

Que significa essa Lei 12.830?

Parece uma lei que trata da investigação criminal, mas não é. Na verdade, é uma coleçãode títulos de nobreza republicanos: não diz coisa alguma sobre o tema que propunhadisciplinar. Mas não nos enganemos: justamente onde parece inofensiva, porque nãotrata de nada concreto, a lei é mais prejudicial, porque cria uma instituição imaginária.

Eita polícia científica!

O poderoso imaginário da nova lei de apenas três artigos (que se fosse aproximar-seminimamente da boa técnica deveria chamar-se algo como lei de introdução ao códigode processo penal) é a ideia de que existiria uma ciência da investigação, cujosdetentores seriam os delegados de polícia, aos quais caberia o direito natural àautonomia científica, parodiada na lei como “livre convencimento técnico-jurídico”.

Pelo menos, vetou-se a autonomia “científica” da polícia, algo que não pode existir semque exista o objeto científico dessa autonomia, porque investigar crimes não constituiuma ciência, sem prejuízo de que a prova pericial, também chamada de ‘testemunho dosperitos’, envolva conhecimentos especializados e científicos.

Mas essa Lei 12.830/2013 é útil para que a gente se dê conta da situação espiritual donosso tempo. Pois descobriremos por que os historiadores contemporâneos preocupam-se tanto com a memória, e não mais apenas com fatos históricos. Porque a históriapassa, mas as memórias ficam. A gente só não sabe direito onde: pois ficam congeladasem algum lugar, e de repente reemergem como novidade. A única ferramenta que me

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permite compreender esse fenômeno pedirá de empréstimo a Sigmund Freud algumasde suas chaves: existem traumas que por longo tempo ficam latentes, para tornarem-seativos em situações de crise como “retorno violento do reprimido”. Essa lei12.830/2013 é um bom exemplo disso.

A tentativa de enxertar na lei uma autonomia científica para a polícia ressuscita umtempo de crise de identidade em que negociamos duas mitologias. Como bem retratou omestre Gilberto Freyre: na Primeira República nós superfaturamos a onipotência daCiência para melhor derrubar o poder do Império:

“A época evocada neste ensaio foi, no Brasil, da superação do mito do rei pelo mito deuma República fundada sob um tema abstratamente positivista: ‘Ordem eProgresso’. Superação difícil mas que se realizou, através de uma valorização mítica dequanto pudesse ser qualificado como ‘científico’: empenho que as elites positivistas ouparapositivistas conseguiram de algum modo comunicar a outros grupos da populaçãobrasileira. De onde a época aqui considerada ter se tornado de glorificação da parte, senão da massa, da grande parte da gente média, de ‘governo científico’, de ‘políticacientífica’, de ‘diplomacia científica’, e até de ‘espiritismo científico’ ou de ‘religiãocientífica’. Em 1909, ao aparecer, risonho e eufórico, numa das ruas do Rio de Janeiro,como presidente da República, Nilo Peçanha foi saudado por um homem do povo comas palavras: ‘Eita, presidente científico!’” (Freyre, 2004, p. 1024).

Hoje precisaríamos saudar: ‘Eita, polícia científica!’

Felizmente, o veto presidencial fez retornar o mito da Ciência para o subterrâneo denossas memórias e traumas. Mas a ressurreição de imaginário tão poderoso não voltapara o subterrâneo de graça: essa voga deixou como prêmio de consolação a legalizaçãoda mitologia policial do “indiciamento”.

A desconstrução do mito do indiciamento pertence à segunda parte desta teoria, quandotrataremos do indício. Mas posso adiantar que o instituto é logicamente contraditório,pois não é alguém que indicia o indiciado, é o indício que o indicia. O Código de 1941,de técnica impecável, dizia que, entre os atos de investigação, se deverá “ouvir oindiciado”. Obviamente, para alguém ouvir o indiciado, é pressuposto que já tenha sidoindiciado pelo indício, não por quem o ouve. Não se ouve antes e indicia depois, comofaz a polícia brasileira, com inspiração em rotina imemorial, repetida por mímese, degeração a geração, como algo quase-natural. Por enquanto, no limite do nosso temaatual, proponho como hipótese que o indiciamento pode ser mais um filhote dos nossospreconceitos em matéria de investigação criminal.

Mas quais são esses preconceitos? Para começar a vencê-los, há que primeiro conhecê-los. Mas quando tudo parece errado, não há outro jeito senão limpar o terreno e edificartudo de novo. Esses alicerces são os nossos “elementos”. Vistos isoladamente, elesparecem abstratos, especulativos demais e inúteis. Mas quando vemos uma barra deferro e uma saca de cimento também não enxergamos a coluna pronta. E não é incomumque a gente compre uma janela para a parede que ainda nem existe.

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Prossigo discutindo que capacidades usamos para investigar crimes e julgar a prova.Contrariamente ao que se pretendeu enxertar na lei 12.830/2013, não empregamos o quese chama epistéme, no sentido antigo (por isso não é possível investigar uma, quem diráduas, epistemologias da decisão judicial, como pretende Luigi Ferrajoli), nem ciênciano sentido moderno, mas phrónesis, no sentido aristotélico. Mas que significa isso?

Que significa phrónesis?

A capacidade essencial e indispensável que usamos para colher e julgar a prova chama-se phrónesis, palavra que designa a capacidade da alma que julga as coisas particularese capta de cada uma o que tem de único, opera no termo médio do silogismo, pois nãodelibera sobre o primeiro termo. Para começar a compreender o que ela significa,precisamos nos desvencilhar radicalmente da tradução corrente pela via dolatim prudentia. O problema não é só que não seja exata, mas que na acepção correnteem nossa língua chega a ser o contrário da phrónesis. O dicionarista Houaiss registrapara a palavra prudência:

“1. virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e os perigos; cautela,precaução (dirija com p.)…2. calma, ponderação, sensatez, paciência ao tratar deassunto delicado ou difícil …previdência, previsão, sabedoria, tino, inteligência,sagacidade, ciência … antônimos: descautela, doidice, imprudência, inconsideração,leveza, precipitação.”

Em inglês, o termo prudence, marca conhecida de preservativos, é o último fornecidopelo dicionário Liddell & Scott (Greek-English), após thoughtfulness, good sense,practical wisdom. Mesmo fazendo um apanhado de tudo isso, a phrónesis aristotélicacontinuaria obscura, quase mística e associada à palavra intuição, ou ao sexto sentido,ou, na pior das hipóteses, associada à fuga dos perigos. Melhor dispensar a tradução etentar compreender o sentido do termo na Ética a Nicômaco, elaboração final da éticaaristotélica.

O conceito final elaborado por Aristóteles trata de um tipo de pensamento que combinao lógos e o álogon da alma (não são equivalentes aos nossos termos racional eirracional, ou consciente e inconsciente). Abusadamente eu diria que esse conceito finalse aproxima do que os autores contemporâneos de livros de autoajuda imaginam terinventado ontem: a inteligência emocional.

A phrónesis não é a fuga dos perigos a que nos acostumaram os dicionários. Ela éum afinador. Sem ela, é impossível que exista qualquer virtude, segundo a teoriaaristotélica do meio, porque é esse afinador quem encontra o ponto certo em que umavirtude é virtude e não peca por excesso ou por falta. E essa afinação não é algo fácil deensinar, porque não é uma média aritmética, pois Aristóteles não trabalha com oconceito do bem em abstrato, mas do que é bom ‘para nós’ (pròs hemâs, Ét.Nic. II, 1106a 36). Daí o celebrado exemplo: o tanto de comida suficiente para um atleta pode nãosustentar Milo, que devia ser um fortão (Ét.Nic. II, 1106 b 2). Aristóteles discute essavirtude no livro VI, depois de ter examinado as virtudes éticas, começando pelacoragem e terminando pela justiça (livros III, IV e V). Algo extraordinário é que aindahoje não sabemos que só pode ter coragem, verdadeiramente, quem sente medo do que

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é de fato temível. Porque ignorar o perigo pode levar alguém a um ato parecido com ode coragem, mas não de coragem; desprezar o perigo é um excesso que não chega a sercoragem, e normalmente revela até o oposto da coragem: “os audaciosos sãoimpostores, e a maioria deles no fundo é covarde” (Ét.Nic. III, vii, 8,9). A virtude dacoragem é um termo médio entre a covardia e a audácia, mas quem o define? A fórmulade Aristóteles segue abstrata até a discussão do livro VI: o termo médio é afinado “katàtòn orthòn lógon” (Ét.Nic. VI, i, 1). Qualquer tradução disso ficará ruim: melhor serádizer que o termo médio é afinado do jeito que tem de ser, nem muito tenso, nem muitofrouxo (a imagem é empregada por Aristóteles na abertura do livro VI, e sugere oafinamento das cordas de um instrumento musical, segundo nota do tradutor H.Rackham, da edição aqui referida).

Quem afina o termo médio é outra disposição permanente, que será por isso umavirtude dianoética (uma virtude da parte pensante da alma). Porque não é suficiente teruma disposição permanente para a coragem, é preciso ter coragem (1) na hora certa,nem antes nem depois (2) nas circunstâncias certas, (3) em face das pessoas certas, (4)para o propósito correto e (5) no modo adequado (em grego isso é dito de modo maisbreve: tò d’hóte deî kaì eph’hoîs kaì pròs hoûs kaì hoû héneka kaì hos deî, Ét.Nic. II, 6,linhas 1106 b 21-22). Só depois de longa discussão no livro VI, que pode ser chamadode livro da phrónesis, Aristóteles reporta-se aos ensinamentos de seu mestre: amicusPlato magis amica veritas, o que já sugere, independentemente da datação definidapelos filólogos, que estamos em presença de obra de maturidade do filósofo. ParaSócrates e Platão, todas as virtudes seriam formas do lógos e todas seriam espécies deepistéme, mas eu (Aristóteles) faria uma pequena modificação dizendo que elas“colaboram” com o lógos (dé metà lógou, Ét.Nic, VI, xiii, 6). Mas faz algumadiferença ser o lógos ou colaborar com o lógos?

A pequena modificação parece filigrana, mas faz muita diferença. Pois concluímos quepodemos desenvolver nossa phrónesis, mas não adianta querer matricular-se numcursinho rápido de phrónesis, como propõem os mestres sofistas de hoje, sob os maisdiferentes nomes. Uma teoria da prova criminal será por isso uma empreitada bemmodesta, que confessa não poder ensinar sua virtude essencial e indispensável. Mas nãoserá por isso que lhe faltará assunto: pois podemos investigar tudo que desmobiliza aphrónesis que já possuímos e que passaremos a vida toda desenvolvendo.

E aqui voltamos ao preconceito. Porque o que desmobiliza a phrónesis é o preconceito.

Então temos algo para desenvolver teoricamente: investigar os preconceitos queprejudicam a boa colheita e a boa interpretação das provas. Mas também não se podepretender escrever numa teoria da prova um tratado geral de todos os preconceitos.Teremos já suficiente trabalho com os preconceitos ensinados pelos juristas.

Aqui é preciso novamente justificar nossa empreitada: por que alguém precisa de umateoria da prova, se é grande o risco de que elas ensinem errado?

Uma teoria da prova criminal mobiliza a virtude dianoética que Aristóteles chama de téchne. Como tudo na vida, existirá uma forma verdadeira e outra aparente de téchne. Eainda temos que enfrentar o paradoxo de toda téchne: que se pode fazer, sem téchne,

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aquilo que se faz com téchne, e os resultados não são sempre ruins. Mais que isso,podem ser até melhores, se a téchne escolhida for uma virtude aparente e nãoverdadeira. Nesse ponto, Aristóteles faz o mais modesto, mas autêntico, elogio possívelda teoria: porque se pode fazer sem teoria tudo que se faz com teoria, mas pagandoalguns preços.

O primeiro preço a pagar é o do tempo. Como diz mestre Riobaldo, de GuimarãesRosa: “minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés daidade” (Grande Sertão: veredas). O segundo preço a pagar, por vezes caro, é o da sorte.Mesmo quem tenha longa experiência, quando surgirem novidades, que sempreaparecem, precisará de boa sorte. Por isso, os versos citados por Aristóteles: a téchne éamiga da sorte (týche), e a sorte amiga da téchne (Ét.Nic.VI, iii, 5).

Quem não tem toda a experiência do mundo, e não quer confiar apenas na sorte, poderáconsultar uma elaboração teórica sobre a técnica que empregará. O maior problema aquié que existem no mercado teorias ruins que ensinam errado, também porque muitosacadêmicos não sabem fazer aquilo que pensam saber ensinar. E com os conselhos deuma teoria errada, a sagacidade natural do investigador se perde quase completamente,pois essa teoria ruim funciona como um par de antolhos que deixa o investigadorparcialmente cego para o que todas as pessoas enxergam com naturalidade. Em resumo:um investigador cheio de teorias frequentemente é pior que aquele sem teoria nenhuma.Mas quando a gente escreve uma teoria, tem por meta um ideal. O ideal de uma teoriada prova, como técnica verdadeira, é elevar o seu destinatário à “segunda ingenuidade”.

Mas será possível que juristas ensinem errado? É possível que existam preconceitos emsuas teorias?

Não apenas é possível, mas é normal e quase necessário que as teorias jurídicasapresentem compêndios de preconceitos, porque isso faz parte de sua natureza. E qual ésua natureza?

Encerro a análise do tema dos preconceitos retornando à fenomenologia da vidacotidiana, da filósofa Agnes Heller. O preconceito é uma categoria do pensamentocotidiano. E a administração de justiça é terreno fértil para os preconceitos, porque éuma objetivação social em-si e para-si. Na parte que é “em-si”, compartilhamos todosos preconceitos da vida cotidiana. Algumas características constituintes do pensamentocotidiano serão úteis para nossa compreensão do problema.

O que em primeiro lugar caracteriza o pensamento cotidiano é a unidade imediata deteoria e prática, que podemos chamar de:

(a) pragmatismo da vida cotidiana. Na vida cotidiana não ocorre a “suspensão” daprática para pensar por que agimos deste ou daquele modo. A mãe que dá vitamina Cpara os filhos sabe que isso faz bem para a saúde, mas não sabe por quê. Apenas ocientista investiga por que vitamina C faz bem, e por isso apenas uma verdadecientífica, como a proposição “vitamina C faz bem para a saúde”, pode ser revogada porum saber novo que daqui a pouco dirá que não está bem provado que vitamina C fazbem, ou que pode até fazer mal. Como não se dá suspensão entre teoria e prática, na

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vida cotidiana não encontraremos algo como um “meio homogêneo” depurado damistura de coisas de que é feita a vida cotidiana. A vida cotidiana é heterogênea, e issosignifica também que o pensamento cotidiano é fortemente carregado de sentimentos, eassim, necessariamente de afetos. O preconceito é um juízo que não é indiferente aoobjeto de seu juízo, até pelo contrário, é normalmente um juízo carregado de afetos deamor ou de ódio, e suas variações de intensidade, simpatia, antipatia, etc.;

(b) o pensamento cotidiano é probabilista, o que significa apenas que não temosconvicção científica de tudo que sabemos e que permite nossa sobrevivência no âmbitoda vida cotidiana, embora o termo probabilidade não seja aquele mesmo utilizado pelasciências modernas, mas apenas uma má tradução para o éndoxon de que fala Aristóteles,ou seja, um tipo de padrão cotidiano de verdade;

(c) o pensamento cotidiano é imitativo, fator de aprendizado que não desaparecemesmo em sociedades dinâmicas, pois o que aparece de novo é a pluralidade demodelos;

(d) numa variante da imitação, o pensamento cotidiano é analógico, um tipo deimitação que não opera pela identidade, mas pela similaridade. Ao contrário disso, opensamento especulativo, filosófico ou científico, não opera por analogia.

“Desde a antiguidade clássica, o pensamento social – especialmente a filosofia –declararam guerra ao pensamento analógico. O método aristotélico de distinções, queconvergiu para a análise científica, gira em torno do desdobramento dos conceitoscotidianos, da partição de suas ‘semelhanças’ sobre a base das diferenças entresemelhantes” (Heller, 1984, p. 174).

Na categoria analogia enquadra-se o chamado “precedente”: um derivado da analogiaque não se destina apenas a ganhar tempo, mas a conquistar ‘segurança’. Quandoencontramos um “precedente” para o que parecia novo, pisamos em solo aparentemente(ou ilusoriamente) mais firme. A firmeza é ilusória porque envolve um processo dedistanciamento de responsabilidade, que é parcialmente jogada sobre o precedente. Oproblema é que a ação com base no precedente não serve para facilitar a práxisrepetitiva, mas a práxis inventiva ou intuitiva, e por isso é mais facilmente suscetível aerros grosseiros que qualquer forma de analogia (Heller, 1984, p. 175);

(e) por fim, o pensamento cotidiano é generalizador, operação indispensável quecolabora com a economia da vida cotidiana. Mas aquilo que nos socorre também nos fazafundar, se não contarmos com um sentido de afinação para alguma circunstância nova,não prevista no tipo empregado. E aqui retornamos à phrónesis: o que opera a medidaideal entre o tanto de fé e de dúvida que deve acompanhar cada atitude ou decisão não éuma capacidade estritamente cognitiva, mas o afinador moral chamado de phrónesis porAristóteles.

Tendo presentes essas características constituintes do pensamento cotidiano, ficará bemdifícil sustentar que a prática jurídica seja científica. Existem ramos do conhecimentojurídico que desenvolvem teorias mais parecidas com a ciência, naquilo que tornamhomogêneos e inequívocos os usos de determinados termos fundamentais, como o

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direito tributário. Mas o universo prático da prova criminal com certeza está longe dissoe muito próximo da heterogeneidade do cotidiano. E é bom que permaneça aqui. Enfim,podemos concluir com alguma substância e menos arbitrariedade por que Mittermaieresteve certo em dizer que juízes de carreira e jurados empregam as mesmas capacidadesmentais quando julgam a prova criminal.

Mas isso é só metade da história. Toda justiça precisa legitimar-se e não pode legitimar-se recorrendo à estrutura da vida cotidiana. Por isso, a administração de justiça é umaobjetivação “em-si” e “para-si”. Mas não se pense que em suas fontes de legitimaçãoestaremos livres de preconceitos, porque o que normalmente acontece é que as fontes delegitimação da prática jurídica são recepções apenas parciais das filosofias. Todo ouniverso conhecido como “filosofias do direito” é constituído por ideologias, no sentidopositivo da palavra (não como falsa consciência): não constitui filosofia propriamente.Uma prova disso é que em filosofia normalmente encontraremos tendências aoromantismo, de um lado, e tendências à ilustração, de outro, ao passo que nas filosofiasdo direito encontraremos invariavelmente apenas tendências românticas. Max Weberexplicou esse fenômeno, examinando as teorias do tempo dele: o formalismo queenvolve necessariamente o processo de racionalização do direito, inerente àmodernidade, invariavelmente enfrentará resistências derivadas de pretensões de poderdo estamento dos juristas: “todas as exposições de tipo sociológico-jurídico oufilosófico-jurídico mencionadas brevemente por nós, quase sempre muito valiosas,fortalecerão sempre essa impressão, quer se trate de teorias sobre a natureza do direitoou sobre a posição do juiz, e seja qual for o conteúdo dessas teorias” (Weber, 1987, p.660).

Se a administração de justiça enfrenta preconceitos em sua parte “em-si”, mas tambémpreconceitos teóricos em suas fontes de legitimação “para-si’, o principal trabalho deuma teoria da prova criminal será examinar que preconceitos são esses. E ogrande problema dos preconceitos teóricos das teorias jurídicas é que não os vemos, elessão dados quase-naturais (em inglês se diria que são taken for granted). Precisaremosseguir escalando nossa montanha de dificuldades ainda um pouco mais alto, atéchegarmos ao princípio. O princípio é o que põe o lógos em movimento, e não pode serdeduzido logicamente. Como chegaremos a discernir o princípio sem arbitrariedade?

Qual será o princípio de uma teoria moderna da prova criminal?

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17. A rainha, a prostituta e o bobojulho 20, 2013

Chegamos ao topo da montanha, procurando pelo princípio, o tema mais difícil, que jánão é possível resolver com a facilidade apresentada pelo sábio Kopnin, que redescobrina última mudança de minha biblioteca. Ao folhear o primeiro livro de lógica queadquiri, em 1986 (A dialética como lógica e teoria do conhecimento), de autoria de umacadêmico russo apresentado no prefácio como um homem de “coragem e bravura quese manifestou na luta pela materialização da linha do nosso partido” (no final da décadade 70 traduzia-se e vendia-se, no Brasil, esse tipo de literatura, e havia quem comprassee lesse), percebo, pelo tanto que foi sublinhado, que li esse livro até o momento em queo autor declara ter resolvido a maior dificuldade da história da filosofia:

“é amplamente sabido que a filosofia antiga dava grande atenção ao princípio… Adialética materialista obliterou esse problema … Não é absolutamente tarefa da filosofiadescobrir esse ‘princípio’, essa ‘matéria primária’, de vez que ela não existe” (Kopnin,1978, p. 107).

Felizmente, obliterei de minha memória essas lições do sábio Kopnin, e recentementeaprendi com Aristóteles que acertar no princípio é mais que meio caminho andado(Ética a Nicômaco, I, vii, 23, linha 1098 b 7). O problema é acertar no princípio.Aristóteles mesmo é bem modesto, e registra que o princípio (arché) dos animais, porexemplo, deve ser “o coração segundo alguns, o cérebro segundo outros, ou aindaalguma outra parte segundo outros” (Aristóteles 2002, Metafísica, Delta, linhas 1013 a6-7).

Qual será o princípio de uma teoria moderna da prova?

Apresento em linhas gerais minha perspectiva, que combinará alguns fatos históricoscom alguns vestígios de memória.

1. O princípio de uma teoria moderna da prova é o mesmo princípio (no sentidoaristotélico de arché) da modernidade: não pode ser diferente. O princípio de uma teoriamoderna da prova criminal é dito na fórmula “livre apreciação da prova”, porque aarché da modernidade é a liberdade.

2. Mas no subterrâneo da modernidade seguem ativas fortes resistências contra aliberdade, clamando por certeza. Não é casual que a bandeira da livre apreciação daprova tenha sido erguida como slogan no continente europeu, para tentativa dederrubada do princípio pré-moderno da prova criminal, que se chamava “certeza legal”.Na Inglaterra, não se precisou de um slogan como esse, porque a liberdade não precisoulutar contra a certeza legal, que nunca chegou a ser dominante. O grande enigma ainterpretar não é por que a modernidade se construiu, mas por que vias diferentes elacaminhou. Eu penso em examinar essa história a partir dos seguintes teoremas.

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3. A modernidade erigiu como sua arché a liberdade, e de algum modo precisouconviver com o poderoso trauma da morte de Deus.

4. A morte de Deus foi mais habilmente sublimada na Inglaterra, onde forjou-se umateoria dos “dois corpos do rei”. A morte de Deus passou a ser representada como amorte do rei, emissário de Deus, mas a morte do rei passou a dar lugar, não importandose em termos práticos para evitar o risco de conflitos sucessórios entre as casas reais, àafirmação do princípio vivificador de Eros, expresso na dupla fórmula com que sepassou a anunciar o evento (mostrado no recente filme King George): The King isdead / Long live the King. O rei morreu, vida longa ao rei!

5. À sublimação bem sucedida da morte de Deus corresponde uma filosofia menosdensamente metafísica, e disso decorre que a “certeza” não permanece tão sedutora nosubterrâneo, pronta para retornar a todo momento.

6. À nossa sublimação mal sucedida da morte de Deus corresponde uma estrutura depensamento mais fortemente metafísica, que retorna a todo instante. Muito se fala emmetafísica sem saber o que é: compreenderemos claramente o termo se dissermos que ametafísica é o espelho de uma estrutura social rigidamente hierarquizada.

7. Em nossa tradição, temos dificuldade em constituir a liberdade como normalidade,por isso os sinais mnemônicos do antigo regime seguem ativos em nossa imaginação:exemplo disso é nossa dificuldade com o indício, porque ainda queremos um mundo dehierarquias rígidas. Não é por acaso que ainda pensamos segundo o imaginário dacerteza legal: nós aspiramos na investigação criminal a nada menos que encontrar aRainha (das provas, a confissão); não obtendo a Rainha, nem meios de chegar a elapela tortura, contentamo-nos com a Prostituta (das provas, os testemunhos). Porque nósqueremos esse mundo de rígidas hierarquias, construímos o imaginário da investigaçãocriminal como uma “corte”, da qual o indício, que entre nós nem prova é, será o Bobo.

8. Precisamos conhecer aquilo que resiste contra o espírito da modernidade, porque oque resiste são fundamentos que fundamentam, precisamente daí advém o nome“fundamentalismo”, ao passo que o fundamento da modernidade é o mais frágil entretodos os fundamentos possíveis. Porque a liberdade é um “fundamento que nãofundamenta” (como ensina Agnes Heller em sua teoria da modernidade, mas o capítuloinicial, que desenvolve o tema “Contingência” da filosofia da história em fragmentos,é denso e muito difícil para se pensar em tentar explicar. Li este último livro assim quepublicado, em 1993: o primeiro livro que comprei, ao chegar a Nova Iorque, na livrariaBarnes & Nobles da 5ª Avenida. Li em seguida e gostei muito, mas devo confessar: sementender quase nada. Desde então, venho progredindo um pouco: o suficiente para terfirme convicção de que da verdadeira filosofia não se precisa compreender tudo parasaber quanto está na verdade). Esse fundamento precisa ser escolhido, numa confissãode fé, todos os dias, em cada momento em que nos deparamos com as necessáriasmudanças que nossas instituições sempre pedem, e seguirão pedindo, porque vivemosnuma sociedade moderna e dinâmica. Nosso problema fundamental é que não podemosnascer novamente, ou imaginar que iremos “constituir” naturalmente a liberdade entrenós, como ocorreu na experiência feliz dos ingleses. Nem podemos “importar”

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instituições democráticas dos outros, pois elas não funcionarão para nós como elasfuncionam para os outros, porque instituições da democracia não são objetos deexportação como carros, geladeiras e televisões (Heller, 1993, p. 234). Mas podemos“caminhar” para a liberdade, fundamento que não fundamenta, liberdade que

“aposto – ainda é só a alegria de um pobre caminhozinho no dentro do ferro de grandesprisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém nãoensina: o beco para a liberdade se fazer” (João Guimarães Rosa, Grande Sertão:veredas).

É esse beco que procuramos trilhar nesta teoria da prova criminal. Para isso,retornaremos ao princípio, estabelecido na Inglaterra, por felizes circunstâncias. Lá aconfissão nunca foi Rainha: o acusado, aliás, no direito inglês já foi até proibido detestemunhar; a testemunha nunca foi prostituta, e o indício não era o bobo da corte.

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iNotas:

Transliterações

Transliterar é verter a palavra de um alfabeto para outro. Segundo tabela de romanização do alfabeto grego

recomendada pela Biblioteca do Congresso norte-americano, disponível em

<http://www.loc.gov/catdir/cpso/roman.html>, as letras eta e omega são vertidas

pelas nossas vogais 'e' e 'o' com um macron, ou seja, uma barra horizontal sobreposta. O sinal de aspiração é

romanizado pelo nosso 'h'. Todos os demais sinais gráficos são omitidos. A consoante gamma, quando antecede

outra consoante tem som de 'n', e é transliterada foneticamente. A vogal upsilon é vertida como y, exceto em

ditongos, quando é usada a nossa vogal 'u'. Adoto essa tabela, acrescentando os acentos e o iota subscrito, pois com

eles pode-se chegar ao ideal da transliteração, de reverter a palavra romanizada à forma original. Para tanto, adoto

em lugar do macron o 'e' e 'o' com underline, solução que permite combinação com os acentos originais. Para o iota

subscrito (que não é pronunciado, mas tem função sintática), adoto o 'i' entre parênteses (i). Para a pronúncia do

grego clássico, reporto-me ao manual usado no Greek-Latin Institute, da City University of New York, com a

pronúncia que se acredita corresponder ao dialeto ático do grego clássico, base de origem do dialeto comum,

Koine, empregado no Novo Testamento. O acento grave sinaliza decréscimo de ênfase; o agudo, ênfase crescente.

O circunflexo sinaliza subida e descida de ênfase na mesma sílaba (Hardy & Quin, p. 6), e não pronúncia fechada

como em português. Em ditongos, os acentos recaem sobre a segunda vogal, ao contrário da nossa língua.Assim, a

palavra moîra, por exemplo, não deve ser lida como hiato, como pareceria em português (mo-î-ra), mas môira.

ii Respostas a questionamentos do leitor Carlos: 1. o qual traz uma definição de manual de lógica segundo a qual o entimeima seria um silogismoque omite uma das premissas e pergunta: isso está escrito na Retórica? Respondo: Não. Aliás,está claro no livro II, parte final, que isso é algo parecido, é um entimeima aparente (quando ofilósofo trata das falácias do argumento retórico, fala tôn phainoménon enthymemáton, II, xxiii,2).2. E pergunta se há alguma relação entre a definição aristotélica de entimeima e a definiçãoapresentada pelo manual? Respondo: Sim. A relação entre ambas deve explicar o motivo do mal-entendimento. Para compreender a raiz do problema, alguns lugares clássicos ajudarão:entimeima desde a apresentação do tema, é “a prova mais poderosa”, “uma espécie desilogismo” (I, i, 11). Quanto aos nomes, (I, ii, 8), Aristóteles diz que ele chama (kalô) osilogismo retórico de entimeima, e a indução retórica de parádeigma. Na estrutura do debatedialético, aparece uma qualificação indireta do entimeima quando Aristóteles diz da objeção queela não é um entimeima. (II, xxvi, 4), o que pode gerar confusão com o entimeima refutativo(explicado quando ele trata dos dois tipos de entimeima, II, xxii, 15). Por enquanto eucompreendo que uma objeção não ‘constrói’ um argumento, mas destrói a premissa, mas épossível que um oponente admita as premissas e modifique a inferência que se deduz delas, etalvez esse seja o entimeima refutativo. Agora, para tentar compreender por que o manual podeter mal-compreendido o original aristotélico, talvez a fonte do engano seja Ret. II, xxi, 22, emque Aristóteles distingue o entimeima do silogismo [dialético] naquilo que torna o entimeimaaparentemente mais ‘rápido’ (e então não nos esqueçamos que o debatedor retórico situa-se no

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perímetro de um julgamento, diante de ouvintes leigos, com tempo certo para acabar, do que éparadigmático o julgamento grego (com ‘unidade de ação, tempo, etc. como a tragédia), o que nodireito inglês se chamará de julgamento de um dia no tribunal (a day in court). Por isso, oentimeima não pode encompridar o argumento deduzindo toda a cadeia de inferências, comofaria um filósofo, mas não pode saltar longos percursos entre suas premissas e a conclusão (nestecaso, diz o filósofo, se teria obscuridade, e no primeiro perda de tempo dizendo muita coisaóbvia). Mas isso não significa que um entimeima omita premissas, pois o entimeima que omitepremissas é um entimeima aparente, um tipo de falácia, cujo uso deliberado distingue o retóricolegítimo do sofístico, qualificando o discurso deste último como “erístico” (termo que aparece,em II xxiv, 10, para qualificar o debatedor que se vale de falácias). Resumindo, um entimeimaparece que ‘omite’ premissas, quando na realidade apenas apressa o processo de deduçãoprocedendo por saltos, o que é todavia legítimo.