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UNASP-CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO TRADUTOR E INTÉRPRETE TAMARA MAGALHÃES RODRIGUES “THE FIRST SENSE”: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NA TRADUÇÃO DO CONTO DE NADINE GORDIMER ENGENHEIRO COELHO 2014

UNASP-CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO … · tradução, com a finalidade de discutir sobre a prática tradutória, analisar os aspectos do texto-fonte e justificar as soluções

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UNASP-CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO

CAMPUS ENGENHEIRO COELHO

TRADUTOR E INTÉRPRETE

TAMARA MAGALHÃES RODRIGUES

“THE FIRST SENSE”: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NA TRADUÇÃO DO

CONTO DE NADINE GORDIMER

ENGENHEIRO COELHO

2014

TAMARA MAGALHÃES RODRIGUES

“THE FIRST SENSE”: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NA TRADUÇÃO DO

CONTO DE NADINE GORDIMER

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo-Campus Engenheiro Coelho-do curso de Tradutor e Intérprete sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria de Moura Schäffer.

ENGENHEIRO COELHO

2014

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,

do curso de Tradutor & Intérprete, apresentado e aprovado em 09 de novembro de

2014.

____________________________________________________

Orientadora: Profª Drª Ana Maria de Moura Schäffer

__________________________________________________________

Segundo Leitor: Prof. Ms Neumar de Lima

Dedico este trabalho aos meus pais e aos meus irmãos que sempre me apoiam e ajudam,

Obrigada por tudo.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente à Deus por ter me capacitado e me dado o privilégio e a

oportunidade de ter essa realização em minha vida. Sem Ele não conseguiria.

Tudo vem dEle e à Ele são todas as coisas;

À minha orientadora, professora Ana Maria de Moura Schäffer. Obrigada pelo

seu tempo, sua dedicação e paciência. Sou muito grata por tudo;

Aos meus professores que, direta e indiretamente, contribuíram para a

realização deste trabalho;

Aos meus pais, Antônio e Santana, que sempre me aconselham, me apoiam

e me incentivam a continuar lutando. Este trabalho também é fruto do esforço

de vocês e é a realização de seus sonhos. Obrigada por tudo. Vocês são o

maior exemplo na minha vida;

À minha irmã Thamiris por ter me ajudado sempre que precisei e por ter me

incentivado e aconselhado quando precisei e ao meu irmão, Juan, por sempre

me fazer rir tornando a minha vida mais feliz. Amo vocês demais.

RESUMO

Este trabalho é uma tradução comentada de um conto da autora sul-africana Nadine Gordimer que traduzi para o português do Brasil. O conto escolhido foi The first sense, que foi publicado em 2006, em The New Yorker’s archive, local onde muitas das obras da autora surgiram. O gênero história de ficção curta foi o que mais trouxe destaque para Gordimer, ao ela expor neste gênero questões que incomodavam a alma humana e instigavam a crítica aos problemas sociais e políticos do seu país. O meu estudo enfatizou ,dois aspectos: por um lado o enquadramento do conto no contexto da obra de Gordimer e os aspectos centrais da sua obra, tendo como foco a segregação racial na África do Sul, tema que emerge em todos os seus trabalhos; por outro, a natureza empírica como o fator relevante da tradução, ao se trazer um pouco das implicações teóricas da tradução literária, a partir de noções como a traduzibilidade, o papel do tradutor e o processo de recriação literária de autores como Antunes (1991), Britto (2002) e César (1999), tradutores de textos literários que praticaram na década de 1990 a tradução comentada e anotada, no caso de César; e os demais que são referência de tradução literária no Brasil, como é o caso de Britto. Procurei reproduzir em português não apenas os sentidos, mas também as denúncias sociais contra o apartheid feitas pela autora no conto. Observei aspectos sintáticos e semânticos, como o tipo de vocabulário usado e imagens que são particularmente interessantes e que apresentaram dificuldades no traduzir. Analisando a tradução, observei o estilo literário da autora e sua importância para a literatura sul-africana e universal. Ao apresentar a tradução do conto, objetivei sinalizar algumas das dificuldades e soluções, bem como as reflexões relacionadas ao estilo da autora, à margem da leitura do seu texto.

Palavras-chave: Tradução literária; Tradução comentada e anotada; Apartheid

ABSTRACT

This paper is an annotated translation of a short story of the South African author Nadine Gordimer which I translated into Portuguese of Brazil. The tale chosen was The first sense, which was published in 2006 in The New Yorker's archive, where many of the author's works appeared. The genre of short story fiction was what most brought her prominance as she exposes this genre issues that bothered the human soul and incited criticism of social and political problems of her country. Our study emphasized two aspects: first, the framework of the tale in the context of the work of Gordimer and central aspects of her work, focusing on racial segregation in South Africa, a theme that emerges in all her works; secondly, the empirical nature as the relevant factor of the translation, by bringing a bit of the theoretical implications of literary translation, from notions such as translatability, the role of the translator and the process of recreating literary authors such as Antunes (1991), Britto (2002) and César (1999), translators of literary texts that practiced in the 1990s commented, annotated translation, in the case of César; and others that are a reference of literary translation in Brazil, as in the case of Britto. We seek to reproduce in Portuguese not only the senses but also the social complaints against apartheid made by the author in the story. We observe syntactic and semantic aspects such as the type of vocabulary and images that are particularly interesting and which presented translation problems. Analyzing the translation, we observe the literary style of the author and her importance to the South African and world literature. In presenting the translation of the tale, we aim to identify some of the difficulties and solutions, as well as the reflections related to the style of the author and the margin reading of her text.

Key-Words: Literary translation; Commented and annotated translation; Apartheid.

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Trechos comentados A .............................................................................. 40

Tabela 2: Trechos comentados B .............................................................................. 41

Tabela 3: Trechos comentados C ............................................................................. 42

Tabela 4: Trechos comentados D ............................................................................. 43

Tabela 5: Trechos comentados E .............................................................................. 44

Tabela 6: Trechos comentados F .............................................................................. 45

Sumário

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 10

2 METODOLOGIA .............................................................................................................................. 12

3 SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA ............................................................................................ 13

4 CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E HISTÓRICO-CULTURAIS DO CONTO “THE FIRST

SENSE” DE NADINE GORDIMER .................................................................................................. 18

5 O CONTO E SUA TRADUÇÃO COM NOTAS E COMENTÁRIOS ........................................ 22

5.1 Considerações Preliminares sobre o Processo Tradutório do Conto e o Estilo Literário de

Gordimer .............................................................................................................................................. 22

5.2 Tradução Comparativa da Pesquisadora ................................................................................ 23

5.3 Notas e Comentários da Pesquisadora .................................................................................... 39

Tabela 1: Trechos comentados A .................................................................................................... 40

Tabela 2: Trechos comentados B .................................................................................................... 41

Tabela 3: Trechos comentados C .................................................................................................... 41

Tabela 4: Trechos comentados D .................................................................................................... 42

Tabela 5: Trechos comentados E .................................................................................................... 43

Tabela 6: Trechos comentados F .................................................................................................... 44

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 46

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 48

1 INTRODUÇÃO

O presente objeto de estudo é uma pesquisa acadêmica que abordará o

formato de monografia e terá como parte fundamental a pesquisa bibliográfica na

área de tradução comentada e anotada. Os principais autores que fundamentam

nosso estudo são Britto (2012), Cesar (1999) e Antunes (1991). A escolha desses

autores se justifica porque, primeiramente são poetas, tradutores e críticos literários.

Principalmente Britto que é importante pela sua profunda atuação no campo da

tradução literária, tanto como tradutor como quanto professor da área em

universidades brasileiras.

Para isso, levantamos o seguinte questionamento se ao se fazer uma

tradução comentada: basta que nos concentremos em buscar sentidos na língua de

chegada ou é exigido de quem traduz esse tipo de gênero textual, aprofundamento

nas características da língua-fonte consideradas relevantes no autor e no período

literário a que ele pertence? Considerando-se tal problemática, defendemos que

uma tradução comentada alcança seus objetivos, quando durante o processo, quem

traduz se aprofunda na pesquisa sobre o período literário vivido pelo autor do texto

original, nas características literárias desse período, bem como nas do autor em

estudo, observando suas idiossincrasias e estilo de escrita.

Na tentativa de responder à pergunta levantada, discutiremos as dificuldades

que os tradutores encontram ao traduzir uma obra literária e as técnicas usadas

pelos profissionais e, a partir da tradução, do conto literário “The first sense”, da

autora Sul-Africana Nadine Gordimer (2006), ainda não traduzido para o português

do Brasil. Identificaremos as dificuldades que o tradutor encontra para traduzir uma

obra, ao realizar a tradução comentada, para tentar identificar estratégias de

tradução que facilitem a tradução de textos desse gênero; além disso,

comentaremos e anotaremos, a partir das pesquisas sobre a autora e sobre o conto,

o período do mesmo, suas características, as dificuldades encontradas ao traduzir e

as estratégias adotadas para resolver os problemas de tradução.

A busca por um trabalho de tradução de um conto literário nos ajudará a

entender melhor os procedimentos e estratégias adotados por quem transita nesta

área, cientes de que traduzir não é, nem nunca foi uma tarefa fácil. Uma das áreas

11

que mais chama a atenção de um estudante de tradução, talvez para alguns que

pretendem seguir carreira, é a tradução literária. Talvez seja pelo fato de envolver a

tradução de histórias ou apenas paixão pela profissão; mas o que realmente chama

a atenção é a criação final.

Embora a exigência de fidelidade persiga o profissional da tradução, quando

se fala em tradução literária, há mais autonomia, pois nesta área é possível se

aventurar mais no processo de recriar de forma criativa, a tradução, sem fugir do

original pois o resultado final que deve chegar ao leitor da língua meta não deve se

distanciar daquele pretendido pelo texto da língua fonte.

2 METODOLOGIA

Neste trabalho será desenvolvida uma pesquisa introspectiva e retrospectiva.

Ao mesmo tempo que traduzirmos, realizaremos comentários sobre o processo de

tradução, com a finalidade de discutir sobre a prática tradutória, analisar os aspectos

do texto-fonte e justificar as soluções dadas a possíveis problemas encontrados no

processo tradutório.

O primeiro passo tomado foi o de escolher um conto contemporâneo de autor

não tão conhecido no contexto brasileiro e inédito enquanto tradução. Em seguida,

avaliou-se o impacto desse autor no contexto de partida, seu período literário e sua

importância para a literatura de seu país.

A tradução comentada seguiu as orientações de Antunes (1991), César

(1999) e Britto (2012), tradutores literários que têm praticado a tradução comentada

e anotada.

Depois de realizada a pesquisa bibliográfica sobre o autor escolhido, o

período literário a que pertence e as características desse período, o próximo passo

do objeto de estudo será a tradução do conto escolhido e a realização das notas

sobre o mesmo; para, finalmente, chegar ao aspecto mais importante do estudo que

é comentar o processo de tradução, as dificuldades encontradas e as estratégias e

justificativas empregadas para tentar resolver os problemas tradutórios.

Com a finalização deste trabalho, esperamos que o processo tradutório

aumente nossa autoconsciência enquanto profissional da área e,

consequentemente, ajude-nos a melhorar a qualidade das traduções feitas.

3 SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA

Neste capítulo faremos considerações sobre as implicações de se traduzir um

conto literário, a partir de Britto (2012, p.11) que, em sua obra A Tradução Literária,

reflete que: “a tradução é uma atividade indispensável em toda e qualquer cultura

que esteja em contato com alguma outra que fale um idioma diferente”.

Na tradução literária, o tradutor tem que estar ciente de que ele tem que

manter-se fiel em absoluto com o original para não deixar passar nada que a

principio possa parecer estranho ou sem sentido, mas que acaba sendo de grande

valor no texto original, por isso é importante ser fiel ao original. Para o tradutor, a

tradução literária pode ser vista como um “jogo de tradução”, como afirma Britto:

…o significado não é uma propriedade estável do texto, uma essência que possa ser destacada do texto e isolada de maneira definitiva; minha visão do sentido é (…) antiessencialista. Seguindo a visão de Wittgenstein, porém, eu diria que a tradução de textos segue determinadas regras que constituem o que podemos denominar de “jogo da tradução”. Eis algumas regras deste jogo: o tradutor deve pressupor que o texto tem (…) um determinado conjunto de sentidos específicos, tratando-se de um texto literário, já que uma das regras do “jogo da literatura” é justamente o pressuposto de que os textos devem ter uma pluralidade de sentidos, ambiguidades, indefinições etc. Outra regra do jogo da tradução é que o tradutor deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa” que o original, e, portanto deve reproduzir de algum modo os efeitos de sentido, de estilo, de som (no caso da tradução de poesia) etc., permitindo que o leitor da tradução afirma [sic], sem mentir, que leu o original. (…) Não se trata, pois, de tratar o sentido dentro de uma visão essencialista; trata-se simplesmente de respeitar as convenções do que se entende por tradução, na sociedade e no tempo em que vivemos. (2012, p. 28-29)

Percebemos que a tradução pode ser vista como uma recriação do original

sempre levando em conta o que o original produz. Os efeitos causados no leitor do

original têm que ser os mesmos na tradução.

Ao falarmos em tradução, não imaginamos o grau de dificuldade que a

mesma envolve. Britto (2012), afirma que muito diferente do que a maioria das

pessoas pensam sobre a tradução, na verdade, ela é uma atividade de criação muito

complexa que por mais que o dicionário dê o significado e a origem da palavra, não

apresentará a forma certa de expressá-la na frase e, muitas vezes, não ajudará no

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processo de dar sentido à frase, pois o maior problema começa na própria estrutura

do idioma, ou seja, na sintaxe das palavras que são conhecidas no idioma.

Ainda de acordo com Britto, ele diz que na visão do senso comum:

[...] traduzir é, na verdade, uma tarefa relativamente fácil; que o principal problema do tradutor consiste em saber que nome têm as coisas num idioma estrangeiro. Que este problema se resolve com a consulta de dicionários bilíngues; e que, com os avanços da informática e o advento da internet, em pouco tempo a tradução será uma atividade inteiramente automatizada, feita sem a intervenção humana (2012, p. 12 e p. 18- 19).

No entanto, pelo que entendemos com a prática e leituras de teóricos da área,

esta visão do senso comum não se sustenta, visto que, conforme defende Britto

(2012, p. 14), a tradução é uma atividade criativa bem complexa que, por mais que o

dicionário dê o significado da palavra e a origem da mesma, não apresentará a

forma certa de expressá-la na frase e, muitas vezes, não ajudará no processo de dar

sentido à frase, pois o maior problema começa na própria estrutura do idioma, ou

seja, na sintaxe das palavras que são conhecidas no idioma.

Antunes (apud BRITTO, 2012, p.14) em Notas sobre Tradução Literária

afirma, com palavras diferentes, o mesmo que Britto: “Embora seja uma prática cada

vez mais corrente, a tradução literária apresenta questões complexas e às vezes

insolúveis que vão desde a sua própria definição até às técnicas básicas de

realização”. Então podemos afirmar que, mesmo que seja uma atividade conhecida,

traduzir não é uma tarefa relativamente fácil e muito menos rápida, pois o processo

da tradução leva tempo e é complexa, como afirma Britto (2012) e Antunes (1991),

por causa da própria estrutura do idioma.

A tradução literária nada mais é do que a arte de recriar numa outra língua um

texto literário fazendo o possível para preservar a sua literalidade. Porém, já que o

problema está na própria estrutura do idioma, como devemos preservar a sua

literalidade? Britto (p. 48) afirma, com um exemplo de tradução de um manual, que

“em tais casos o objetivo do tradutor é muito claro; ele tem que passar para a língua-

meta toda a informação contida no texto em língua-fonte, e fazê-lo com o máximo de

funcionalidade”. Se na língua- fonte o manual apresentou utilidade na língua- meta

também deve ser útil, ou seja, todas as informações presentes na língua- fonte

devem estar presentes na língua-meta com o objetivo de ser fácil e útil para o

15

consumidor. Porém não podemos dizer que na tradução literária o objetivo é o

mesmo. O tradutor deve sim se manter fiel ao original mantendo as mesmas

informações causando um impacto no leitor da língua-meta, o mesmo impacto que o

leitor da língua- fonte teve. Porém, segundo Britto (2012, p. 54), fazer uma tradução

com as mesmas informações é uma tarefa inatingível. O tradutor precisa estar ciente

que seus objetivos na hora da tradução podem não ser todos alcançados. O

principal objetivo do tradutor tem que ser o de determinar quais características do

original são mais importantes, quais são possíveis de reconstruir na tradução e,

depois, pelo menos, tentar recriar um texto com essas características.

Contudo, o tradutor, mesmo tendo conhecimento da língua e de suas

limitações, vendo uma tradução como uma atividade de criação, a mesma deve

estar o mais próximo possível do texto original. Pode até mesmo ser com palavras

diferentes, mas tem de estar próximo para que o leitor diga, sem confusão ou algo

parecido, que leu a obra original. É o que Britto também considera:

Em suma: cabe ao tradutor, dentro dos limites do idioma com que trabalha, e de suas próprias limitações pessoais, produzir na língua- meta um texto que seja tão próximo ao texto fonte-fonte, no que diz respeito às suas principais características enquanto obra literária, que o leitor de sua tradução possa afirmar, sem estar mentindo, que leu o original (2012, p. 55).

Como base nisso, podemos afirmar que a tradução é uma atividade de

recriação do texto original e é o que Antunes (1991) também afirma. Para ele a

tradução literária pode ser encarada como uma criação nova, recriação como

acabamos de ver, algo que é dotado de um valor original. Sobre a questão do

problema no idioma, ele afirma:

De qualquer maneira, quando se fala da intraduzibilidade de um texto sobretudo literário, devemos entender que o termo tem uma função dialética na colocação do problema. Não deve ser tomado ao pé da letra. Pois, assim como toda criação artística, a tradução é um desafio, um esforço de expressão, de comunicação (1991, p. 5).

Então entendemos que o processo da tradução é, nada mais nada menos do

que a recriação da obra original, e os problemas na sintaxe, na estrutura do idioma

não significa que ela é intraduzível mas sim que já que toda língua tem seus

problemas e dificuldades, deve-se recriar o objetivo da obra sempre mantendo a

mensagem do original, como já vimos também.

16

Na tradução de um conto literário, o tradutor não precisa se preocupar em

simplificar aquilo que não é nada simples; a única preocupação é causar um impacto

no leitor da língua meta, o mesmo que o da língua fonte teve. Por isso, o ponto

chave é conhecer as características do autor e a cultura da língua meta para assim

obter um bom resultado não só para a tradução, mas também para o leitor. E para

ter este bom resultado, o tradutor deve ter uma identificação com o texto que está

traduzindo. Isso também serve para quando se faz uma tradução comentada, que é

o objetivo deste trabalho.

O tradutor deve traduzir mesmo sabendo quais são as suas implicações,

dificuldade, objetivos, o que dá para pôr na tradução e o que não. Afinal, toda e

qualquer língua apresenta problemas, portanto a tradução literária deve ser vista

como a recriação da obra original. Mas o que podemos dizer sobre essa

modalidade? Sobre a tradução literária comentada, contaremos com as

considerações de Cesar (1999) em Crítica e Tradução. A autora afirma o mesmo

que Britto (2012) e Antunes (1991):

O primeiro tipo de notas (talvez o mais evidente) se relaciona com os problemas gerais de interpretações ou com questões mais amplas. [...] surpreendentemente o tipo de notas mais frequente se relaciona com problemas de sintaxe (CESAR, 1999, p. 286-287).

A partir disso, percebemos a similaridade com as afirmações de Britto e

Antunes sobre a complexidade, a dificuldade que o tradutor encontra no idioma na

hora de realizar a tradução. Pode ser que no momento da tradução, por causa das

dificuldades encontradas no idioma, o tradutor tenha que recorrer a pesquisas mais

profundas ou dependendo da obra, o tradutor não encontre essa necessidade.

“A tradução anotada pode ser vista como uma tarefa fundamentalmente

técnica”, diz Cesar (1991, p. 292); porém, a anotação nada mais é do que a

concentração de todo o conteúdo da tradução:

No entanto, se nos indagarmos sobre as razões que levam à concentração de notas em determinados momentos da história, concluiremos que o comentário técnico é inconscientemente conduzido por pontos literários centrífugos, isto é, pelo conteúdo. (1999, p. 292).

Então o tradutor se vê envolvido de forma pessoal e profissional, ou seja, ele

sente a necessidade de explicar os trechos em que a história se intensifica,

17

colocando os seus pensamentos, as suas palavras na própria tradução. O tradutor

deve estar ciente da existência de todo e qualquer tipo de sentimento como tensão,

amor, medo, compaixão, desespero etc. e, se ele identificar na obra e achar

necessário explicar, tem que tentar passar com a mensagem certa. Se ele não

estiver ciente disso não terá como passar a mensagem na obra. Ficará com

dificuldade e a mensagem não será a mesma que a do original, já que, como já

vimos, o principal objetivo do tradutor é o de passar ao leitor da língua-meta a

mesma mensagem, o mesmo efeito que o da língua-fonte teve.

Para concluirmos este capítulo, entendemos que o tradutor faz uma espécie

de jogo de tradução e, ao traduzir nesse jogo, o máximo de cuidado é exigido para

não gerar uma tradução sem pé nem cabeça, sempre tendo como meta a fidelidade

com o original mesmo sabendo que nem todas as metas que o tradutor tem podem

ser atingidas. Um bom tradutor é o que realiza uma tradução que corresponde, às

vezes não perfeitamente, mas de forma razoável, com o texto original. Outro fator

importante é que a maior dificuldade e problema que o tradutor encontra, conforme

levantou César (1999), está na sintaxe do idioma, já que a cultura de cada país é

diferente; e se o tradutor estiver ciente disso, a tradução será mais que uma

recriação do original. Na tradução comentada (anotada), o tradutor, devido ao

grande envolvimento em alguns trechos da obra, sente a necessidade de explicar

com as próprias palavras sem tornar-se um traidor quanto ao original, passando a

mensagem, a beleza que o original apresenta. Afinal, um tradutor não pode ser

considerado um traidor, mas sim um recriador, já que “beleza e fidelidade são

perfeitamente compatíveis” (BRITTO, 2012, p. 19).

4 CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E HISTÓRICO-CULTURAIS DO CONTO “THE

FIRST SENSE” DE NADINE GORDIMER

Neste capítulo faremos considerações sociais, históricas e culturais sobre a

autora sul-africana Nadine Gordimer e sobre o conto escolhido para a tradução

comentada, levando em conta pesquisas bibliográficas.

Gordimer nasceu em Springs, cidade mineira na África do Sul, em 20 de

novembro de 1923 e era filha de imigrantes. Sua mãe nasceu na Inglaterra e seu pai

na Letônia. Estudou numa escola cristã e aos 9 anos começou a escrever em casa

pois ficava aos cuidados de sua mãe devido a sua obsessão para com sua saúde.

Nadine publicou seu primeiro trabalho aos 15 anos e em 1948 mudou-se para

Johannesburgo, onde frequentou a Universidade de Witwatersrand por apenas um

ano. Ela desistiu dos estudos pois preferia escrever. Em 1949 publica o seu primeiro

livro que é uma coletânea de contos intitulada Face to Face. Nele ela revela a sua

preocupação com a segregação racial na sociedade sul-africana. Em 1952, publica

A voz macia da serpente, sua primeira coleção de histórias curtas. A seguinte foi o

romance The lying days, publicado em 1953, ambos de temas que exploram os

direitos da população negra que é um dos temas que Gordimer mais explora ao

escrever as suas obras.

No fim dos anos de 1960, passa a viver nos Estados Unidos onde leciona em

diversas escolas até o início da próxima década. The Conservationist (1974) é um

romance em que a autora mostra um contraste entre o mundo Zulu e o fluxo de

industrialização proposto pela sociedade europeia. Como já mencionado antes,

Gordimer explora muito o tema dos direitos da população negra de seu país, por

isso suas novelas e romances têm como tema as dificuldades de comunicação entre

a comunidade branca e negra em seu país, em consequência do Apartheid, que

proibia a convivência das duas etnias. Seus livros, além da temática dos problemas

raciais, também analisam a repressão na África do Sul e em outros estados

africanos. Em 1991, recebeu o Prêmio Nobel da Literatura, e até 1994 já havia

publicado 13 novelas, duas centenas de pequenas histórias e diversos livros de

ensaio.

19

Para entendermos a escrita de Nadine Gordimer, é necessário conhecer um

pouco da história do país onde nasceu e viveu. Em 1652, o holandês Jan Van

Riebeek fundou uma colônia de 70 homens no Cabo de Boa Esperança para

fornecer uma escala aos navios mercantes que passavam pela África e tinham como

destino a Indonésia. Os primeiros colonizadores que ficaram conhecidos como

bôeres - do holandês boer e que significa agricultor, família de grupos étnicos que

existe no sudeste da África do Sul - escravizavam os nativos em suas plantações no

litoral. Os franceses, ingleses e alemães se juntaram a eles algum tempo depois.

Sendo assim, a população branca é fruto da mistura dos primeiros colonos

holandeses com os demais que se juntaram. Estes se denominavam africânderes.

Em 1800, a colônia do Cabo foi tomada pelos britânicos, mas só em 1814 tornou-se

posse deles. Depois de a escravidão em solo britânico ter sido proibida, em 1834

atritos surgiram entre os africânderes e os britânicos, fazendo com que os

africânderes mudassem para o interior, levando consigo os escravos negros e

construíssem fazendas tipo seminômades. O conflito racial teve início com o povo

Xhosa, os agricultores nativos. No final do século XVIII, e por quase um século, o

conflito chegou a um estado de guerra entre grupos África do Sul e Namíbia.

A maioria das leis do Apartheid vieram do governo britânico, em 1948; porém,

os holandeses e alemães que já estavam na África do Sul eram convictos

defensores da supremacia branca. O objetivo é o mesmo, é a luta contra o

Apartheid, cujo fim Nadine Gordimer teve a alegria de presenciar anos depois da

escrita do livro A gente de july (1981). Ela continuou a explorar os problemas de seu

país em livros como O engate (2004) e Beethoven was one-sixteenth black, uma

coletânea de contos.

Gordimer foi considerada pelos meios acadêmicos uma das escritoras sul-

africanas de mais destaque por ter escrito mais de 30 obras, que são: A filha de

burguer (1979); Um abraço de soldado (1980), coletânea de pequenas histórias e A

gente de july (1981). Dentre os títulos de honra que já recebeu, podemos citar os: de

Yale, Harvard, Columbia, New School for Social Research, EUA, Universidade de

Leuven, na Bélgica, da Universidade de York (Inglaterra), Universidades da Cidade

do Cabo e Witwatersrand (África do Sul), da Universidade de Cambridge (Inglaterra).

No dia 20 de março deste ano, o site UOL publicou uma matéria sobre uma

entrevista que Nadine Gordimer concedeu à revista italiana Republica. Aos 90 anos

20

de idade, a autora revela que está com câncer no pâncreas e que não tem mais

força para escrever seus contos; como é bastante crítica com suas obras, ela

prefere não escrever.

The First Sense, o conto escolhido para tradução e análise, faz parte de

Beethoven was one-sixteenth black: and other stories, uma coletânea de contos; o

conto é um romance deturpado pela guerra que descreve a delicada construção de

um casamento entre um talentoso e ambicioso violoncelista e sua esposa que não é

nada talentosa e ambiciosa. Trata-se, na verdade, de um triângulo amoroso que

envolve o casal e um violoncelo e, ao mesmo tempo, torna-se um relato vívido entre

grandes artistas da música clássica e um conto de credibilidade emocional e de

traição. No decorrer da história, percebe-se que o violoncelo começa a ser descrito

como se realmente fosse uma mulher, a sua amante, com aspectos físicos

femininos. As comparações que a autora faz entre a intimidade do casal são

semelhantes ao jeito como o marido toca o instrumento. A esposa deseja que seu

casamento seja extraordinário, porém tem de aprender a lidar com a vida musical

extraordinária de seu marido. Fica enciumada com o fato de o marido mostrar amar

mais ao instrumento que a ela; afinal, ela fez a escolha de apoiá-lo e ajudá-lo com

sua carreira. Em determinado ponto, a esposa chega a se questionar e a imaginar

com quem ele a trai, já que ele acaba se tornando uma pessoa fria e distante dela.

Então ela fica imaginando, inúmeras vezes, quem provavelmente seria a amante

dele. Mas ela não se afasta dele, não o rejeita e muito menos o confronta com medo

de perdê-lo mais ainda e acabar mandando-o para os braços de outra mulher, se é

que ela exista. No desenrolar do romance, percebemos que não é só o marido que é

um verdadeiro apaixonado pelo instrumento, mas também ela acaba se

apaixonando e agradecendo ao próprio instrumento. The first sense foi publicado

inicialmente no The New Yorker, no ano de 2006.

No conto notamos a característica do Apartheid no romance, já que o mesmo

se passa em um momento pós-guerra, momento este quando a segregação já havia

sido proibida. Com ele percebemos a criatividade que Gordimer tinha para escrever

sobre um tema tão difícil, mas não só pelo tema que antes foi citado, mas também

por outros. Gordimer consegue passar uma intensidade em cada linha, cada

sentimento que a obra contém é muito bem descrito em cada parte do conto. Até

21

mesmo o preconceito, em uma das partes, é bem descrito, sentido e reproduzido

para o leitor.

E é neste sentido que, ao desenvolvermos a tradução comentada de um de

seus contos, objetivamos também prestar uma homenagem a esta tão renomada

autora que infelizmente faleceu durante o processo de escrita desse trabalho, e cujo

legado literário tem enriquecido não só seu país de origem, mas também se

estendido a outros, graças à tradução de todas as suas obras.

5 O CONTO E SUA TRADUÇÃO COM NOTAS E COMENTÁRIOS

5.1 Considerações Preliminares sobre o Processo Tradutório do Conto e o

Estilo Literário de Gordimer

Como já dito antes, a tradução é uma recriação do original com o objetivo de

passar o efeito que o original produz. Britto (2012) afirma que mesmo que a tradução

seja uma atividade criativa ela também é complexa e mesmo que o dicionário dê o

significado e a origem das palavras, ele não dará a forma correta de expressar a

palavra na frase. E um dos principais objetivos deste trabalho é o de identificar

possíveis estratégias que facilitem o processo de tradução de textos literários. A

tradução é uma atividade que tem como ponto principal a comunicação entre

pessoas de diferentes línguas e a transmissão de conhecimentos entre culturas e se

a tradução não for bem feita, ela pode ter um efeito bem diferente do original.

Sabemos que uma tradução perfeita não existe, portanto cabe ao tradutor fazer com

que essa impossibilidade desapareça e para isso é necessário fazer uma tradução

que flua em compreensão na língua-meta para não gerar uma confusão na

mensagem e muito menos perdê-la.

Segundo pesquisas, para Gordimer a liberdade de expressão era primordial

para a atividade de escritora. Ela acreditava que existiam duas bases para a

liberdade: uma é a de se poder votar à sua escolha e outra é a liberdade para se

dizer o que pensa, seja a imprensa seja um cidadão comum. Para ela ter o direito de

publicar livros e expressar os seus pensamentos é um caminho de compreender a

vida, pois um livro acaba sendo mais importante que jornais e revistas, pois ele

transforma-se em um testemunho para a próxima geração. Gordimer afirmava ter

muita preocupação com a mensagem que passaria em suas obras, desde a visão

crítica à comunicação com o leitor. Suas obras são de um inglês simples e sem

complexidade alguma. Em seus romances, contos e ensaios, ela nunca foi uma

autora panfletária. Ela conseguia descrever de forma sútil o contexto social em que

vivia, e a profundidade de suas personagens em suas obras conta muito a história

contemporânea africana.

23

Durante o processo de tradução de The first sense, notamos que a riqueza do

mesmo encontra-se nas expressões. Com nossa experiência tradutória, percebemos

que o conto traz muitas expressões rotineiras que, às vezes, levam quem traduz a

dar voltas e buscar paráfrases para não perder a riqueza do texto. Assim, antes de

empreendermos o processo de tradução, o primeiro passo tomado foi o de pesquisar

possíveis traduções para as expressões e, até mesmo, recriá-las para manter o

sentido literário do conto. Assim como a autora ao escrever tinha a preocupação da

mensagem que passaria ao leitor, também tivemos essa preocupação de manter a

mensagem que a autora passa ao leitor.

5.2 Tradução Comparativa da Pesquisadora

“The First Sense”

“A Primeira Sensação”

By Nadine Gordimer

Tradução de Tamara Magalhães Rodrigues

Original em Inglês Tradução para o Português do Brasil

Parágrafo 1: She has never felt any

resentment that he became a musician and

she didn’t. Could hardly call her amateur

flute-playing a vocation. Envy? Only pride in

the achievement that he was born for. She

sits at a computer in a city-government

office, earning, under pleasant enough

conditions, a salary that has at least

provided regularly for their basic needs,

while his remuneration for the privilege of

being a cellist in a symphony orchestra has

been sometimes augmented by chamber-

music engagements, sometimes not; in the

summer, the off season for the orchestra,

Ela nunca ficou ressentida com o fato de ele

ter se tornado músico e ela não. Mal podia

dizer que seu jeito amadorístico de tocar

flauta era uma vocação. Inveja? Apenas um

orgulho da realização com o fato de que ele

nasceu para isso. Ela trabalha na frente de

um computador, num escritório da cidade,

ganhando, em condições bastante

agradáveis, um salário que é, pelo menos,

regular para as suas necessidades básicas;

enquanto a remuneração dele pelo privilégio

de ser um violoncelista numa orquestra

sinfônica aumenta pelos compromissos com

a música de câmara, outras vezes, não; na

24

he is dependent on these performances on

the side.

estação baixa da orquestra, em

contrapartida, ele depende dessas

atuações.

Parágrafo 2: Their social life is in his

professional circle—fellow-musicians, music

critics, aficionados whose connections

insure them free tickets, and the musical

families in which most of the orchestra

members grew up, the piano-teacher or

choir-singing mothers and church-organist

fathers. When new acquaintances

remember to give her the obligatory polite

attention, with the question “What do you

do?,” and she tells them, they clearly

wonder what she and the cellist who is

married to her have in common.

A vida social de ambos está envolvida no

círculo profissional dele; os colegas

músicos, críticos musicais, aficionados

cujas conexões lhes garantem ingressos

grátis e as famílias musicais na qual a

maioria dos membros da orquestra

cresceram, o professor de piano ou as

coralistas e os organistas de igreja. Seus

novos amigos lembram-se de dar-lhe uma

atenção obrigatória, só por educação, com

a pergunta: “O que você faz?”, ela os

responde e claramente eles imaginam o que

ela e o violoncelista, com quem é casada,

têm em comum.

Parágrafo 3: As for her, she found when

she was still an adolescent—the time for

discovering parental limitations—that her

cheerful father, with his sports shop and the

beguiling heartiness that is a qualification

for that business, and her mother, with her

groupies exchanging talk of female

reproductive maladies, from conception to

menopause, did not have in their

comprehension what it was that she wanted

to do. A school outing at sixteen had taken

her to a concert where she heard, coming

out of a slim tube held to human lips, the

call of the flute. Much later, she was able to

identify the auditory memory as Mozart’s

Flute Concerto No. 2 in D, K. 314.

Meanwhile, attribution didn’t matter any

more than the unknown name of a bird that

Quanto a ela, encontrou o instrumento

quando ainda era adolescente, época de

descobrir a limitação dos pais. Seu alegre

pai, com sua loja de esportes e a cativante

cordialidade que é a qualificação para esse

negócio; e sua mãe, com suas fanáticas

conversas sobre as doenças reprodutivas

femininas desde a concepção até a

menopausa, e a filha não entendia o que

sua mãe queria dizer com isso. Um dia, aos

dezesseis anos uma excursão da escola a

levou a um concerto onde ela ouviu, vindo

de um tubo fino e que era mantido em

lábios humanos, o chamado da flauta. Muito

tempo depois, ela conseguia identificar, com

a memória auditiva, o Concerto de Mozart

para Flauta No. 2 em Ré maior, K314.

Enquanto isso, a atribuição não importava

25

sang heart-piercingly, hidden in her parents’

garden. The teacher who had arranged the

cultural event was understanding enough to

put the girl in touch with a musical youth

group in the city. She babysat on weekends

to pay for the hire of a flute, and began to

attempt to learn how to produce with her

own breath and fingers something of what

she had heard.

mais do que o nome desconhecido de um

pássaro que cantava agudamente com o

coração escondido no jardim de seus pais.

O professor que tinha planejado um evento

cultural sabia o suficiente para colocar a

menina em contato com um grupo de jovens

músicos na cidade. Ela trabalhava como

babá aos fins de semana para poder pagar

o aluguel da flauta e começar a se esforçar

para aprender como produzir, com seu

fôlego e dedos, algo que havia ouvido.

Parágrafo 4: He was among the Youth

Players. His instrument was the very

antithesis of the flute. Part of the language

of early attraction was a kind of repartee

about this, showoff, slangy, childish. The

sounds he drew from the overgrown violin

between his knees: the complaining moo of

a sick cow; the rasp of a blunt saw; a long

fart. “Excuse me!” he would say, with a

clownish lift of the eyebrows and a down-

twisted mouth. His cello, like her flute, was a

secondhand donation to the Players from

the estate of some old man or woman that

was of no interest to family descendants. He

tended it in a sensuous way, which, if she

had not been so young and innocent, she

could have read as an augur of how his

lovemaking would begin. Within a year, his

exceptional talent had been recognized by

the professional musicians who coached

these young people voluntarily, and the

cello was declared his, no longer on loan.

Ele estava entre os jovens musicistas. O

seu instrumento era o oposto da flauta.

Parte da deste tipo de atração precoce era

uma espécie de resposta: ser exibido, falar

gírias e ser infantil. Os sons que ele tirava

do violino que ficava entre seus joelhos

parecia um mugido, como a queixa de uma

vaca doente, a lima de uma serra sem corte

e um longo peido. — “Desculpe-me!” ele

diria, com um levantar das sobrancelhas e a

boca torcida. Seu violoncelo, assim como a

flauta dela, era uma doação aos musicistas

do estado de homens ou mulheres, cujos

instrumentos não interessavam mais aos

descendentes da família. Ele guardava de

uma forma sensual que, se ela não fosse

tão jovem e inocente, poderia ler como uma

adivinha como a sua vida amorosa

começaria. Dentro de um ano, o

excepcional talento dele foi reconhecido

pelos músicos profissionais que treinaram

estes jovens voluntariamente, e o violoncelo

já era dele e não mais emprestado.

Parágrafo 5: They played together when Eles tocavam juntos quando estavam

26

alone, to amuse themselves and secretly

imagine that they were already in concert

performance, the low, powerful cadence

coming from the golden-brown body of the

cello making her flute voice sound, by

contrast, more like that of a squeaking

mouse than it would have heard solo. In

time, she reached a certain level of minor

accomplishment. He couldn’t lie to her.

They had, with the complicity of his friends,

found a place where they could make

love—for her, the first time—and, out of

commitment to a sincerity beyond their

years, he couldn’t deceive her and let her

suffer the disillusions of persisting with a

career that was not open to her level of

performance. Already she had been hurt,

dismayed at being replaced by other young

flautists when ensembles were chosen for

public performances by “talented musicians

of the future.”

“You’ll still have the pleasure of

playing the instrument you love best.”

She would always remember what

she said: “The cello is the instrument I love

best.”

sozinhos para se divertirem e,

secretamente, imaginarem que já estavam

em um concerto. Um baixo de cadência

poderosa vinha do corpo amarronzado do

violoncelo, fazendo fluir o som da sua flauta.

Um contraste mais parecido com um rato

rangendo do que um solo. Por hora, ela

chegou a um certo nível de menor

realização pessoal. Ele não podia mentir

para ela, pois havia, com a cumplicidade de

seus amigos, encontrado um lugar onde

eles pudessem fazer amor — para ela, a

primeira vez — e um compromisso com a

sinceridade ao longo dos anos. Ele não

podia enganá-la e deixá-la sofrer com as

desilusões de persistir com uma carreira

que não era aberta para o seu nível de

concerto. Ela já havia sido ferida e

desmotivada por ter sido substituída por

outros jovens flautistas quando conjuntos

completos foram escolhidos para as

apresentações públicas pelos “talentosos

músicos do futuro”.

— “Você ainda terá o prazer de tocar

o instrumento que mais ama”.

Ela sempre se lembrara do que ele

disse: — “O violoncelo é o instrumento que

mais amo”.

Parágrafo 6: They grew up enough to leave

whatever they had been told was home, the

parents. They worked as waiters in a

restaurant; he gave music lessons in

schools. They found a bachelor pad in the

run-down part of town, where most whites

were afraid to live because blacks had

Eles cresceram o suficiente para deixar tudo

o que tinham em casa, os pais.

Trabalharam como garçons em um

restaurante. Ele deu aulas de música em

escolas. Acharam um apartamento de

solteiro na parte decadente da cidade onde

a maioria dos brancos tinha medo de morar

27

moved there since segregation was

outlawed. In the generosity of their

passionate happiness they had the

expansive impossible need to share

something of it—the intangible become

tangible—bringing a young man who played

pennywhistle kwela on the street corner up

to their kitchen nook to have a real meal

with them, rather than tossing small change

into his cap. The white caretaker of the

building objected vociferously. “You mad?

You mad or what? Inviting blacks to rob and

murder you. I can’t have it in the building.”

porque os negros haviam mudado para lá

desde a proibição da segregação. Na

generosidade de sua felicidade apaixonada,

eles tinham a expansiva necessidade

impossível de compartilhar algo deles — o

intangível tornou-se tangível — trazendo um

jovem, que tocava uma *Pennywhistle

Kwela na esquina da rua, para a sua

cozinha para ter uma refeição de verdade

com eles, em vez de jogar um pequeno

trocado em seu chapéu. O zelador branco

do prédio se opôs veementemente: — Você

está louco? Você é maluco ou quê?

Convidando os negros para roubar e matar

você. Eu não posso tê-lo no prédio.

Parágrafo 7: She went to computer courses

and became proficient. If you’re not an artist

of some kind, or a doctor, a civil-rights

lawyer, what other skill makes you of use in

a developing country? Chosen, loved by the

one you love—what would be more

meaningful than being necessary to him in a

practical sense as well, able to support his

vocation, his achievements yours by proxy?

“What do you do?” “Can’t you see? She

makes fulfillment possible, for both of them.”

Ela fez cursos de computação e tornou-se

competente na área. Se você não é algum

tipo de artista ou doutor, advogado de

direitos civis, que outra habilidade faz de

uso em um país em desenvolvimento?

Escolhido. Amado pelo que você ama. O

que seria mais significativo do que ser algo

necessário para ele em um sentido prático e

ser capaz de suportar a vocação dele, as

conquistas dele pela sua aproximação? —

“O que você faz?” “Você não vê? Ela faz de

tudo para satisfazer ambos”.

Parágrafo 8: Children: married more than

a year, they discussed this, the supposedly

natural progression in love. Postponed until

next time. Next time, they reached the fact:

as his unusual gifts began to bring

engagements at music festivals abroad and

opportunities to play with important—soon-

to-be-famous—orchestras, it became clear

Os filhos, casados há mais de um ano falam

sobre isso. A progressão supostamente

natural no amor. Adiado até a próxima vez.

Na próxima, eles chegaram à conclusão: os

dons incomuns dele começaram a trazer

compromissos em festivais de música no

exterior e a oportunidade de tocar com

importantes orquestras; estavam prestes a

28

that he could not be a father, home for the

bedtime story every night, or for schoolboy

soccer games, at the same time that he was

a cellist, soon to have his name on CD

labels. If she could get leave from her

increasingly responsible job—not too

difficult, on occasion—to accompany him,

she would not be able to shelve that other

responsibility, care of a baby. They made

the choice of what they wanted: each other,

within a single career. Let her mother and

her teatime friends focus on the hazards of

reproduction, contemplating their own

navels. Let other men seek immortality in

progeny; music has no limiting lifespan. An

expert told them that the hand-me-down

cello was at least seventy years old and the

better for it.

serem famosos. Ficou claro que ele não

podia ser um pai que estaria em casa na

hora de dormir para contar história ou para

ir os jogos de futebol da escola, ao mesmo

tempo em que fosse um violoncelista, que

logo teria seu nome em etiquetas de CD. Se

ela pudesse deixar de ser incrivelmente

responsável no seu trabalho — o que não

seria muito difícil nesta ocasião— só para

acompanhá-lo, ela não seria capaz de

arquivar essa outra responsabilidade, a de

cuidar de um bebê. Eles fizeram a escolha

que queriam: um ao outro, dentro de uma

carreira solo. Deixe que a mãe dela e suas

amigas da hora do chá foquem nos perigos

da reprodução, contemplando seus próprios

umbigos. Deixe outro homem procurar a

imortalidade na descendência, a música

não tem tempo limitado de vida. Um

profissional da área lhes disse que o

violoncelo de segunda mão tinha pelo

menos setenta anos e por isso, era melhor.

Parágrafo 9: One month—when was it?—

she found that she was pregnant; kept

getting ready to tell him but didn’t. He was

going on a concert tour in another part of

the country, and by the time he came back

there was nothing to tell. The process was

legal, fortunately, under the new laws of the

country, conveniently available at a clinic

named for Marie Stopes, a past campaigner

for women’s rights over their reproductive

systems. Better not to have him—what?

Even regretful. You know how men, no

matter how rewarded with success, buoyant

with the tide of applause, still feel they must

Um mês — quando foi isso mesmo? — ela

descobriu que estava grávida. Estava se

preparando para contar para ele, mas não

conseguia. Ele estava saindo para uma

turnê em outra parte do país, e quando

voltou não havia nada para dizer. O

processo foi legal. Felizmente, estava

dentro das novas leis do país,

convenientemente disponível numa clínica

chamada Marie Stopes, uma clínica ativista

que lutava pelos direitos das mulheres em

relação aos seus sistemas reprodutivos.

Melhor não ter ele — o quê? Ainda

arrependida. Você sabe como são os

29

prove themselves potent. (Where had she

picked that up? Eavesdropping, as an

adolescent, on tea parties.)

homens, não importa o quanto são

recompensados com sucesso e flutuantes

com a maré de aplausos, ainda sentem que

devem provar-se potentes. (Como ela sabe

disso? Espiando como se fosse uma

adolescente em festas de chá).

Parágrafo 10: She was so much part of the

confraternity of orchestras. The rivalry

among the players, drowned out by the

exaltation of the music they created

together. The gossip—because she was not

one of them, both the men and the women

trusted her with indiscretions that they

wouldn’t risk with one another. And when he

had differences with guest conductors from

Bulgaria or Japan or God knows where,

their egos as complex as the pronunciation

of their names, his exasperation found

relief, as he unburdened himself in bed of

the podium dramas and moved on to the

haven of lovemaking. If she was in a low

mood—the -bungles of an inefficient

colleague at work, or her father’s “heart

condition” and her mother’s long complaints

over the telephone about his disobeying

doctor’s orders with his whiskey-swilling

golfers—the cello would join them in the

bedroom and he’d play for her. Sometimes

until she fell asleep to the low tender tones

of what had become his voice, to her, the

voice of that big curved instrument, its softly

buffed surface and graceful bulk held close

against his body, sharing the intimacy that

was hers. At concerts, when his solo part

came, she did not realize that she was

smiling in recognition, that this was a voice

Ela fazia parte da confraria de orquestras. A

rivalidade entre os músicos abafou a

exaltação da música que eles criaram

juntos. A fofoca era que ela não era parte

deste grupo de homens e mulheres. Todos

confiaram nela com indiscrições que não

arriscariam com outra pessoa e quando ele

teve diferenças com os maestros

convidados da Bulgária, do Japão ou sabe

Deus de onde, seus egos, tão complexos

como a pronúncia de seus nomes, e sua

irritação encontrou alívio quando ele relaxou

na cama, o pódio dos dramáticos e passou

para um paraíso ao fazer amor. Se ela

estava de baixo astral, — os trabalhos mal

feitos de um colega de trabalho ineficiente

ou a “condição do coração” do seu pai e as

longas queixas que sua mãe fazia ao

telefone por ele desobedecer às ordens do

médico, se embebedando de uísque com os

jogadores do golfe — o violoncelo se

juntaria a eles no quarto e ele tocaria para

ela. Às vezes, até que ela adormecesse. Os

tons baixos haviam tornado-se para ela a

voz dele, a voz daquele instrumento grande

e curvado, sua superfície suavemente

polida e o volume gracioso mantido próximo

ao seu corpo, dividindo a intimidade que era

dela. Nos concertos, quando a parte solo

dele começava, ela não se dava conta que

30

she would have recognized anywhere,

among other cellists bowing other

instruments

estava sorrindo ao perceber que esta era a

voz que ela reconheceria em qualquer lugar

dentre outros violoncelistas que tocam seus

instrumentos.

Parágrafo 11: Each year, the music critics

granted, he played better. Exceeded

himself. When distinguished musicians

came for the symphony and opera season,

it was appropriate that he and she should

entertain them at the house, far from the

pad they’d once dossed down in. Where

others might have kept a special piece of

furniture, some inheritance, there stood in

the living room, retired, the cello he’d

learned to play on loan. He now owned a

Guadagnini, a mid-eighteenth-century cello,

found for him by a dealer in Prague. He had

been hesitant. How could he spend such a

fortune? But she was taken aback,

indignant, as if someone had already dared

to remark on his presumptuous

extravagance. “An artist doesn’t care for

material possessions as such. You’re not

buying a Mercedes, a yacht!” He had

bought a voice of incomparable beauty,

somehow human, though of a subtlety and

depth—moving from the sonority of an

organ to the faintest stir of silences—that no

human voice could produce. He admitted—

as if telling himself in confidence, as much

as her—that this instrument roused in him

skilled responses that he hadn’t known he

had.

A cada ano, segundo os críticos musicais,

ele tocava melhor, superando-se. Quando

músicos ilustres vinham para a sinfônica e

para a temporada de ópera, era apropriado

que ele e ela os entretecem em casa, longe

do teclado que um dia haviam tocado. Onde

outros guardariam um pedaço especial de

mobília, alguma herança, lá estava, na sala

de estar, aposentado, o violoncelo

emprestado no qual aprendera a tocar.

Agora ele era dono de um Guadagnini, um

violoncelo de meados do século XVIII,

encontrado por um negociante para ele, em

Praga. Ele ficou hesitante; como poderia

gastar tamanha fortuna? Mas ela foi pega

de surpresa, indignada, como se alguém

tivesse se atrevido a observar em sua

presunçosa extravagância. — “Um artista

não liga para posses materiais como esta.

Você não está comprando uma mercedes,

um iate!” Ele comprou uma voz de beleza

incomparável, de alguma forma humana,

embora de uma sutileza e profundidade —

movendo-se da sonoridade de um órgão à

agitação mais fraca dos silêncios — que

nenhuma voz humana pode produzir. Ele

admitiu, falando para si em confiança, mais

que a ela — que este instrumento despertou

nele respostas hábeis que ele não sabia

que tinha.

Parágrafo 12: In the company of guests Acompanhado de convidados, para os quais

31

whose life was music, as was his, he was

as generous as a pop singer responding to

fans. He’d bring out the precious presence

in its black reliquary, free it, and settle

himself to play among the buffet plates and

replenished wineglasses. If he’d had a few

too many, he’d joke, taking her by the waist

for a moment, “I’m just the wunderkind

brought in to thump out ‘Für Elise’ on the

piano,” and then he’d play so purely that the

voice of the aristocratic cello, which she

knew as well as she had that of the charity

one, made all social exchange strangely

trivial. But the musicians, entrepreneurs,

and guests favored to be among them

applauded, descended upon him, the

husbands and gay men hunching his

shoulders in their grasp, the women giving

accolades, sometimes landing on his lips. It

wasn’t unusual for one of the distinguished

male guests—not the Japanese but

especially the elderly German or Italian

conductors—to make a pass at her. She

knew that she was attractive enough,

intelligent enough, musically and otherwise

(even her buffet was good), for this to

happen, but she was aware that it was

really the bloom of being the outstandingly

gifted cellist’s woman that motivated these

advances. Imagine if the next time the

celebrated cellist played under your baton in

Strasbourg you were able to remark to

another musician your own age, “And his

wife’s pretty good, too, in bed.”

a música era a vida como também o era

para ele, era tão generoso quanto um

cantor pop ao responder seus fãs. Haveria a

preciosa presença de seu relicário preto, o

tiraria, se contentaria em tocar no buffet e

reabasteceria os copos de vinho. Se ele

bebesse um pouco demais, ele brinca,

pegando pela cintura por um momento: —

“Sou apenas o prodígio sendo trazido para

fora com "Für Elise" no piano”. Então ele

tocava de forma tão pura que a voz do

violoncelo que ela conhecia tanto quanto o

da instituição de caridade fez toda troca

social, curiosamente trivial. Mas os músicos,

empresários e convidados preferiam estar

entre eles para aplaudir, para cair sobre ele,

os maridos e os homens gays levantando

os ombros ao seu alcance; as mulheres

fazendo elogios, às vezes aterrissando em

seus lábios. Não era incomum para um dos

ilustres convidados do sexo masculino —

não os japoneses, mas em especial os

condutores mais velhos alemães e italianos

— abrir caminho para ela. Ela sabia que era

atraente e inteligente o suficiente,

musicalmente e de outra forma, mesmo que

o seu buffet tenha sido bom, para isso

acontecer, ela estava ciente da alegria do

que realmente era ser a mulher do

violoncelista excepcionalmente talentoso

que motivou estes avanços. Imagine se na

próxima vez que um famoso violoncelista

tocasse, sob sua batuta, em Estrasburgo,

fosse capaz de observar outro músico da

sua idade, “e sua esposa muito boa,

também, na cama”.

32

Parágrafo 13: Once the guests had gone,

host and hostess laughed about the

flirtatious attention, which he hadn’t failed to

notice. The cello stood grandly against the

wall in the bedroom. Burglaries were

common in the suburbs, and there were

knowledgeable gangs who looked not for

TV sets and computers but for paintings and

other valuable objects. Anyone who broke in

would have to come into the bedroom to

catch sight of the noble Guadagnini, and

face the revolver kept under the pillow.

Uma vez que os convidados foram embora,

o anfitrião e a anfitriã riram do atencioso

flerte, o qual ele não tinha deixado de notar.

O violoncelo ficou grandiosamente

encostado na parede do quarto. Assaltos

eram comuns nos subúrbios e havia

gangues conhecidas que não procuravam

por aparelhos de TV e computadores, mas

sim por pinturas e outros objetos de valor.

Qualquer um que arrombasse a casa teria

de ir para o quarto para ver o Guadagnini e

enfrentar o revólver guardado debaixo do

travesseiro.

Parágrafo 14: Bach, Mozart, Hindemith,

Cage, Stockhausen, and Glass were no

longer regarded in the performance world

patronizingly as music that blacks neither

enjoyed nor understood. The national

orchestra, which was his base—while his

prestige meant that he could absent himself

whenever he was invited to festivals or to

join a string ensemble on tour—had a black

trombonist and a young second violinist with

African braids that fell about her ebony neck

as she wielded her bow. She spoke German

to a visiting Austrian conductor; she’d had a

scholarship to study in Strasbourg.

Professional musicians have always been a

league of nations; for a time, the orchestra

had a tympanist from Brazil. He became a

special friend, and on occasion a live-in

guest, who kept her company when the

beautiful cello accompanied its player

overseas.

Bach, Mozart, Hindemith, Cage,

Stockhausen e Glass não eram mais

considerados, no mundo da apresentação

condescendente, como a música que os

negros não gostavam e nem entendiam. A

orquestra nacional, a qual era a sua base,

enquanto o seu prestígio significava que ele

podia ausentar-se sempre que fosse

convidado para festivais ou para participar

de uma orquestra de cordas em turnê, tinha

uma trombonista negra e uma segunda

violinista jovem com tranças africanas que

caíam-lhe sobre o braço de ébano do

violino, enquanto manuseava seu arco. Ela

falou alemão com o maestro austríaco que

os visitava. Ela devia ter uma bolsa de

estudos em Estrasburgo. Os músicos

profissionais têm sido sempre uma liga das

nações; por um tempo, a orquestra teve um

timpanista brasileiro. Ele tornou-se um

amigo especial e, de vez em quando, um

hóspede que mantinha a empresa dela

33

quando o belo violoncelo acompanhava seu

músico ao exterior.

Parágrafo 15: She was aware that, without

a particular ability of her own, beyond an

everyday competence in commercial

communications, she was privileged enough

to have an interesting life, and a remarkably

talented man whose milieu was also hers.

Ela sabia que sem uma habilidade especial

de sua própria autoria, além de uma

competência todos os dias em

comunicações comerciais, havia sido

privilegiada o suficiente para ter uma vida

interessante e um homem

extraordinariamente talentoso cujo meio de

vida também era dela.

Parágrafo 16: What was the phrase? She

“saw the world,” often travelling with him.

She had arranged a leave, to accompany

the string ensemble to Berlin, for one of the

many musical events in commemoration of

the two-hundred-and-fiftieth anniversary of

Mozart’s birth, but then couldn’t go after all,

because her father was dying—cheerfully,

but her mother had to be supported.

Qual era a frase? Ela “conheceu o mundo”

geralmente viajando com ele. Ela tinha

arranjado uma licença para acompanhar a

orquestra de cordas para Berlim, para um

dos muitos eventos musicais, em

comemoração ao aniversário de duzentos e

cinquenta anos de Mozart, mas não poderia

ir com ele em tudo, porque seu pai estava

morrendo e sua mãe precisava de seu

apoio.

Parágrafo 17: The ensemble met with

exceptional success, among musicians of

high reputation from many countries. He

brought back a folder full of press cuttings—

a few in English—glowing. He tipped his

head dismissively—perhaps you can

become inured to praise, in time, or perhaps

he was tired, drained by the demands of his

music. She had suggestions for relaxation:

a film, a dinner, away from concert-hall

discipline, with the ensemble musicians;

one becomes close to people—a special

relationship that she had long recognized in

him—with whom one has achieved

O conjunto reuniu-se com o sucesso

excepcional como os músicos de grande

reputação de muitos países. Ele trouxe de

volta uma pasta cheia de recortes de jornais

— alguns em inglês — brilhando. Ele

inclinou a cabeça com desdém; com o

tempo talvez se acostumaria com os elogios

ou talvez ele só estivesse cansado,

esgotado pelas exigências que a sua

música trazia. Ela tinha sugestões para o

momento de descanso: um filme, um jantar,

ficar longe da disciplina da sala de concerto

com o conjunto de músicos. A pessoa fica

próxima das pessoas com quem conseguiu

34

something. He was not enthusiastic. “Next

week, next week.” He took the revered cello

out of its solitude in the case carved to its

shape and played, to himself, to her—well,

she was in the room those evenings.

algo, uma característica especial que ela

admirava muito nele. Ele não estava

entusiasmado. — “Na próxima semana, na

próxima semana”. Ele tirou o respeitoso

violoncelo de sua solidão, esculpido à sua

forma e tocou para si mesmo e para ela.

Bom, em noites como estas ela estava na

sala.

Parágrafo 18: It is his voice, that glorious

voice of his cello, saying something

different, speaking not to her but to some

other.

He makes love to her. Isn’t that

always the signal of return after he has

been away?

There’s a deliberation in the

caresses. She is almost moved to say

stupidly what they’ve never thought to say

to each other: Do you still love me?

He begins to absent himself from her

at unexplained times or for obligations that

he must know she knows don’t exist.

The voice of the cello doesn’t lie.

É a sua voz. A gloriosa voz do seu

violoncelo dizendo algo diferente, falando

não para ela, mas para alguém.

Ele fez amor com ela. Não é sempre

este um sinal de retorno depois que ele ia

embora?

Há uma deliberação nas carícias.

Ela é quase movida a dizer, de forma

estúpida, o que eles nunca pensaram em

dizer um para o outro: — Você ainda me

ama?

Ele começou a se afastar dela, por

razões inexplicáveis, ou por obrigações que

ele imagine que ela sabe que as mesmas

não existem.

A voz do violoncelo não mente!

Parágrafo 19: How to apply to the life of

this man that shabby ordinary

circumstance—what’s the phrase? He’s

having an affair. Artists of any kind attract

women. They sniff out some mysterious

energy of devotion there, which will always

be the rival of their own usually reliable

powers of seduction. Something that will be

Como aplicar na vida deste homem que

decai em circunstância comum — qual é

mesmo a frase? — Ele está tendo um caso.

Artistas de qualquer natureza atraem as

mulheres. Eles farejam alguma energia

misteriosa de devoção, energia que sempre

será a rival de seus próprios poderes,

geralmente confiáveis de sedução. Algo que

35

kept from even the most desired woman.

Who could know that attraction better than

she? But, for her, that other, mysterious

energy of devotion has now made of love a

threesome.

The cello with its curved body

reverentially in the bedroom.

What woman?

será mantido até mesmo pela mulher mais

desejada. Quem poderia conhecer melhor a

atração do que ela? Mas para ela, essa

outra energia misteriosa de devoção fez

agora um ménage à trois1.

O violoncelo com seu corpo curvado

respeitosamente no quarto.

Mas que mulher?

Parágrafo 20: At music festivals around the

world, the same orchestral players, the

same quartets and trios keep meeting. In

different countries, they share a map of

common experience, live in the same

hotels, exchange discoveries of restaurants,

complaints about concert-hall acoustics,

and enthusiasm over audience response. If

it were some musician encountered on a

particular tour, that didn’t necessarily mean

that the affair was a brief one, which had

ended when the man and the woman went

their separate ways, seas and continents

apart; they might meet again, plan to, at the

next festival, somewhere else in the world—

Vienna, Jerusalem, Sydney—where he had

played or was contracted to play soon. The

stimulation not only of performance before

an unknown audience but of meeting again,

the excitement of being presented with the

opportunity to continue something

interrupted.

Nos festivais de música ao redor do mundo,

os mesmos músicos da orquestra, os

mesmos quartetos e trios continuavam se

encontrando. Em diferentes países, dividiam

um mapa de experiências em comuns,

moravam no mesmo hotel, trocavam

descobertas de restaurantes, as

reclamações sobre os concertos acústicos e

o entusiasmo sobre a resposta do público.

Se fosse algum encontro de músicos em

uma turnê especial não significaria

necessariamente que o caso era breve,

caso que acabou quando o homem e a

mulher seguiram caminhos separados,

oceanos e continentes de distância. Eles

podem se encontrar de novo. É o plano, no

próximo festival, em algum lugar do mundo:

Viena, Jerusalém, Sydney, onde ele tocou

ou foi contratado para em breve tocar. O

estímulo não só de desempenho diante de

uma plateia desconhecida, mas de

reencontro, a empolgação de ser

presenteado com a oportunidade de

continuar algo que foi interrompido.

Parágrafo 21: Or was the woman nearer Ou era a mulher que morava perto de casa?

1 Ménage à trois- relacionamentos sexuais entre três pessoas.

36

home? A member of the national orchestra

in which he and his cello were star

performers? That was an identification she

found hard to look for, considering their

company of friends in this way. A young

woman, of course, a younger woman than

herself. But wasn’t that just the inevitable

decided at her mother’s tea-table forum?

The clarinet player was in her late forties,

endowed with fine breasts in décolleté and

a delightful wit. There was often repartee

between them, the clarinet and the cello,

over drinks. The pianist, young with waist-

length red-out-of-the-bottle hair, was a

lesbian kept under strict guard by her

woman. The third and last female musician

in the orchestra was also the last whom one

would be crass enough to think of: her

name was Khomotso; she was the second

violinist of extraordinary talent, one of the

two black musicians. She was so young;

she had given birth to an adored baby, who,

for the first few months of life, had been

brought to rehearsals in the car of

Khomotso’s sister so that the mother could

suckle the infant there. The director of the

orchestra gave an interview to a Sunday

newspaper about this, as an example of the

orchestra’s adaptation to the human values

of the new South Africa. The violinist was

certainly the prettiest, the most desirable, of

the women in whose company the cellist

spent the intense part of his days and

nights, but respect, his human feeling,

would be stronger than sexual attraction, his

identification with her as a musician would

Ou a que fazia parte da orquestra nacional

da qual ele e seu violoncelo eram astros?

Essa foi uma identificação que ela achou

difícil de procurar, considerando a sua

companhia de amigos. Uma mulher jovem é

claro, mais jovem do que ela, mas isto não

foi apenas o que é inevitável decidido no

fórum de mesa de chá de sua mãe? Uma

clarinetista que estava nos seus quarenta e

tantos anos, dotada de seios finos no

decote e um humor delicioso. Houve,

frequentemente, ponderações entre eles, o

clarinete e o violoncelo, sobre bebidas. Ou

seria a pianista, jovem com o cabelo

vermelho que ia até a cintura, uma lésbica

mantida sob a guarda estrita de sua mulher.

A terceira e última mulher musicista da

orquestra era também a última em quem

alguém seria estúpido o suficiente para

pensar: o nome dela era Khomotso. Era a

segunda violinista de talento extraordinário,

uma das duas musicistas negras. Ela era

tão jovem, tinha dado a luz a um adorável

bebê que, nos primeiros meses de vida, fora

trazido aos ensaios no carro de sua irmã

para que ela pudesse amamentá-lo. O

diretor da orquestra concedeu uma

entrevista para um jornal de domingo sobre

isto, como um exemplo de adaptação da

orquestra para os valores humanos da nova

África do Sul. A violinista foi certamente a

mais bonita, a mais desejada das mulheres,

cuja companhia o violoncelista passou a

parte mais intensa de seus dias e noites.

Além de respeito, o seu sentimento humano

seria mais forte do que a atração sexual, a

37

make distracting her from that taboo. As for

him, wouldn’t it look like the old South

Africa—a white man “taking advantage of”

the precariously balanced life of a young

black woman?

sua identificação com ela como um músico

a distrairia daquele tabu. Quanto a ele, não

se parecia com a velha África do Sul — um

homem branco “se aproveitando” da vida

precariamente equilibrada de uma jovem

negra?

Parágrafo 22: His lover might also have

been one of the faithful season-ticket

holders who gave post-performance parties.

He had a lunchtime friendship with one of

the male regulars, an industrialist and

amateur viola player with a fine music

library, from which he was free to borrow.

Or it might have been the wife of one of

these men. Many of the wives were

themselves career women, much younger

than their wealthy husbands, bringing

intelligence of a commitment to ideas and

activities outside the arts, as well as what

he might see as sexual availability.

A amante dele também poderia ser uma das

fiéis fãs da época dos convites que deram

para as festas após as apresentações. Ele

tinha um amigável almoço com um dos

frequentadores masculinos, um

industrialista e tocador de viola amador,

com uma biblioteca de música muito

requintada, da qual ele era livre para pegar

emprestado. Ou pode ter sido a esposa de

um destes homens. Muitas das esposas

eram mulheres de carreira, mais jovens do

que seus saudáveis maridos, dotadas de

inteligência, de um compromisso com ideias

e atividades fora das artes, bem como o que

ele poderia ver como disponibilidade sexual.

Parágrafo 23: It was no longer assumed

that she would go with him, as she always

had, when he accepted invitations to

receptions or private houses; the unspoken

implication was that these were now strictly

professional. He no longer suggested what

had also been assumed—that when he was

to give a recital in another city in their home

country she would, of course, be there. He

packed his overnight bag on their bed, took

up the black-clad body of the cello, and

kissed her goodbye. There were well-

spaced acts of dutiful intercourse, as if it

Já não se pensava que ela sairia com ele, já

que ela sempre estava junto dele quando

ele aceitava os convites para recepções ou

para as casas particulares; a implicação

tácita era que estes eram agora

estritamente profissionais. Ele não sugeriu o

que já havia sido assumido que, quando ele

fosse participar de um recital em outra

cidade, em seu país de origem, ela deveria,

é claro, estar lá. Ele arrumou a mala na

cama dos dois, pegou o corpo coberto de

preto do violoncelo e lhe deu um beijo de

adeus. Havia atos sexuais bem espaçados

38

were as routine as a regular haircut. She

began to want to avoid the approach in bed,

and then grew fearful that she would send

him to the other woman by suggesting that

she did not desire him; at the same time,

she wanted terribly to put her hands, her

mouth on the body beside her, no matter

the humiliation of the act, which he fulfilled

like a medical procedure, prescribed to

satisfy her. A bill to be paid.

e obrigatórios, como se ele fosse tão

rotineiro quanto um corte de cabelo regular.

Ela começou a querer evitar a aproximação

na cama e depois ficou com medo de que

acabaria mandando-o para outra mulher,

sugerindo que ela não o desejava; porém

ao mesmo tempo, ela queria terrivelmente

colocar as mãos e a boca sobre o corpo,

não importava a humilhação do ato que ele

cumpriu como um procedimento médico,

prescrito para satisfazê-la. Uma conta a ser

paga.

Parágrafo 24: She waited for him to speak.

About what had happened. To trust the long

confidence between them. He never did.

She did not ask, because she was also

afraid that what had happened, once

admitted, would be irrevocably real.

One night, he got up in the dark,

took the cello out of its bed, and played.

She woke to the voice, saying something

passionately angry in its deepest bass.

Then there came the time when—

was it possible, in his magnificent, exquisite

playing?—there was a disharmony, the low

notes dragging as if the cello were refusing

him. Nights, weeks, the same.

Ela esperou que ele falasse sobre o que

aconteceu. Tinha fé na confiança que há

muito existia entre eles. Ele nunca falou. Ela

não perguntou, porque estava com medo de

que o que aconteceu, uma vez assumido,

podia ser irrevogavelmente real.

Uma noite, ele se levantou, tirou o

violoncelo da sua cama e tocou. Ela

acordou ao som da voz, dizendo algo

apaixonadamente brava, num profundo tom

baixo.

Então veio a época em que houve

uma desarmonia - era possível, no

magnífico e requintado jogo dele? As notas

baixas se arrastando como se o violoncelo

as estivesse recusando. Por noites e

semanas aconteceu o mesmo.

Parágrafo 25: So. She knew that the affair

was over. She felt a pull of sadness—for

him. For herself, nothing. By never

confronting him she had stunned herself.

Soon he came to her again. The

Então, ela soube que o caso havia

acabado. Ela sentiu uma tristeza por ele,

não por ela, e se surpreendeu por nunca tê-

lo confrontado.

Logo, ele voltou para ela novamente.

39

three of them—he, she, and the cello

against the wall—were together.

He made love better than ever

remembered, caresses not known, more

subtle, more anticipatory of what could be

roused in her, what she was capable of

feeling, needing. As if he’d had the

experience of a different instrument to learn

from.

Os três — ele, ela e o violoncelo encostado

à parede — estavam juntos!

Ele fez amor melhor do que ela se

lembrava. Carícias nunca feitas antes, mais

sutis, mais antecipatórias do que poderia

ser despertado nela, o que ela era capaz de

sentir e de necessitar. Era como se ele

tivesse tido na experiência de um outro

instrumento um aprendizado.

5.3 Notas e Comentários da Pesquisadora

Nesta seção apresentaremos os comentários feitos pela pesquisadora a

respeito do conto escolhido The First Sense. Como apresentamos na metodologia,

nossos comentários serão feitos seguindo as orientações de Antunes (1991), Britto

(2002) e Cesar (1995); esta ultima na sua tradução de Bliss, de Katherine Mansfield.

Comecemos falando sobre o título. Para a realização desta tradução tivemos

que analisar o contexto da história apresentada no conto. Analisar o que a esposa

sentiu ao perceber que seu marido podia a estar traindo. Com o decorrer da história

o conto torna-se um relato vívido entre grandes artistas da música clássica e de

credibilidade emocional e de traição, inúmeras vezes imaginando quem seria a

suposta amante. Mas no fim percebe que na verdade era o violoncelo. Sendo assim,

podemos considerar o que ela sentiu como uma primeira sensação, no caso, de

traição. Portanto A primeira sensação é a tradução que mais se encaixou, por ter

essa ligação com a obra de acordo com o contexto de todo o conto.

Como sabemos, o apartheid foi uma política racial implantada na África do

Sul, e Gordimer o teve como tema principal para escrever as suas obras. Seus

romances, contos e ensaios têm sempre essa marca, essa característica a qual

podemos considerar como sendo um ponto forte da autora. Em The First Sense

essa característica é apresentada de forma explícita em alguns pontos, porém em

outros, aparece somente nas entrelinhas, revelando-se apenas com uma ou outra

40

palavra. Mas essa marca se repete, e muito, no conto. Vejamos alguns exemplos na

tabela abaixo:

Tabela 1: Trechos comentados A

Exemplo 1: “[…] where most whites were

afraid to live because blacks had moved

there since segregation was outlawed”.

Ver parágrafo 6

“[...] onde a maioria dos brancos tinha medo

de morar porque os negros haviam mudado

para lá desde a proibição da segregação”.

Exemplo 2: “In the generosity of their

passionate happiness they had the

expansive impossible need to share

something of it—the intangible become

tangible—bringing a young man who played

pennywhistle kwela on the street corner up

to their kitchen nook to have a real meal

with them, rather than tossing small change

into his cap. The white caretaker of the

building objected vociferously. “You mad?

You mad or what? Inviting blacks to rob and

murder you. I can’t have it in the building”.

Ver parágrafo 6

“Na generosidade de sua felicidade

apaixonada, eles tinham a expansiva

necessidade impossível de compartilhar algo

deles – o intangível tornou-se tangível —

trazendo um jovem, que tocava uma

*Pennywhistle Kwela na esquina da rua,

para a sua cozinha para ter uma refeição de

verdade com eles, em vez de jogar um

pequeno trocado em seu chapéu. O zelador

branco do prédio se opôs veementemente:

—“Você está louco? Você é maluco ou quê?

Convidando os negros para roubar e matar

você. Eu não posso tê-lo no prédio”.

Tabela 1: Trechos comentados A

Percebemos que no decorrer deste parágrafo não é tão claro essa questão do

racismo. Só fica claro quando a autora cita o “branco” referindo-se tanto as pessoas

quanto ao zelador do prédio, dando, assim, a entender, no segundo exemplo, que o

jovem que tocava flauta na esquina da casa do casal, a quem eles queriam ajudar

era negro, não merecendo, por isso, nenhuma comiseração.

Vejamos mais um exemplo:

41

Tabela 2: Trechos comentados B

Exemplo 3: “The third and last female

musician in the orchestra was also the last

whom one would be crass enough to think

of: her name was Khomotso; she was the

second violinist of extraordinary talent, one

of the two black musicians”

Ver parágrafo 21

“A terceira e última mulher musicista da

orquestra era também a última em quem

alguém seria estúpido o suficiente para

pensar: o nome dela era Khomotso. Era a

segunda violinista de talento extraordinário,

uma das duas musicistas negras”.

Tabela 2: Trechos comentados B

Neste exemplo, podemos considerar como característica do apartheid quando

ela fala que seria de extrema estupidez pensar que seu marido a estava traindo com

uma violinista negra e acaba imaginando que não haveria possibilidade alguma

disso acontecer. Outra ênfase colocada nas entrelinhas do discurso racista refere-se

ao fato de que, apesar de ter talento extraordinário no violino, é a sua cor que é

considerada razão para que ela seja desqualificada como suposta amante do

marido. A partir da leitura, entendemos que a esposa, mesmo que anteriormente

estivessem ela e seu marido dispostos a ajudar um negro, não aceitava a

possibilidade de seu marido a trair com uma negra. Por isso ela diz que a última

pessoa que ela poderia imaginar ser a amante do marido seria a violinista. Este

pode ser considerado um belo exemplo que apresenta o grau de profundidade com

que a autora retrata o apartheid daquela época.

Durante o conto, temos muitos outros exemplos dessa marca da autora, como

se pode perceber na tabela abaixo.

Tabela 3: Trechos comentados C

Exemplo 4: “[…] had a black trombonist and

a young second violinist with African braids

that fell about her ebony neck as she

“[...] tinha uma trombonista negra e uma

segunda violinista jovem com tranças

africanas que caíam sobre o braço de ébano

42

wielded her bow. She spoke German to a

visiting Austrian conductor; she’d had a

scholarship to study in Strasbourg”.

Ver parágrafo 14

do violino, enquanto manuseava seu arco.

Ela falou alemão com o maestro austríaco

que os visitava. Ela tinha uma bolsa de

estudos em Estrasburgo”.

Exemplo 5: “As for him, wouldn’t it look like

the old South Africa— a white man “taking

advantage of” the precariously balanced life

of a young black woman?”

Ver parágrafo 21

“Quanto a ele, não se parecia com a velha

África do Sul — um homem branco “se

aproveitando” da vida precariamente

equilibrada de uma jovem negra?”.

Tabela 3: Trechos comentados C

No exemplo 4, percebemos fortemente o preconceito racial da época, ou seja

como que uma negra podia tocar violino numa orquestra, se não fosse com bolsa. É

muito claro essa marca da autora nesse exemplo. Já no exemplo 5, entendemos que

o homem se aproveitava daquela jovem violinista negra.

O processo da tradução é a recriação da obra original. Os problemas na

sintaxe e/ou estrutura do idioma, não a torna intraduzível, mas já que toda língua

apresenta seus problemas e dificuldades, devemos recriar o objetivo da obra sempre

mantendo a mensagem do original. Para realizar o processo de recriação houve a

necessidade de fazer pesquisas para uma possível tradução. A conclusão é que

certas frases, se mantidas literalmente como já dito, não ficariam com uma tradução

adequada, continuariam com a mensagem original, porém confusa na tradução. Não

é o caso de todas as frases. Existem frases que se traduzidas literalmente ficam

adequadas, conforme se pode observar nos exemplos abaixo:

Tabela 4: Trechos comentados D

Exemplo 6: “An expert told them that the

hand-me-down cello was at least seventy

years old and the better for it”.

Ver parágrafo 8

“Um profissional da área lhes disse que o

violoncelo de segunda mão tinha pelo menos

setenta anos e por isso, era melhor”.

43

Exemplo 7: “[…] her mother’s long

complaints over the telephone about his

disobeying doctor’s orders with his whiskey-

swilling golfers”.

Ver parágrafo 10

“[...] e as longas queixas que sua mãe fazia

ao telefone por ele desobedecer às ordens

do médico, se embebedando de uísque com

os jogadores do golfe”.

Tabela 4: Trechos comentados D

Outro ponto interessante que vale a pena comentar, é o fato da autora, sendo

a esposa, usar em muitas partes do conto a figura de linguagem— metáfora— para

descrever o instrumentos como se fosse uma mulher. Todo o uso dessa linguagem

leva a crer, em algumas partes, que quem ela cita é uma mulher, porém ao

prosseguirmos na leitura do conto, percebemos que se trata de um instrumento.

Como exemplo dessa metáfora temos algumas comparações que a esposa faz

sobre o jeito com que o marido toca o instrumento e estas se assemelham à

intimidade do casal. Por um instante pensamos ser de fato uma mulher, mesmo

citando em algumas partes o instrumento. Os exemplos a seguir nos ajudam a

perceber esse fato.

Tabela 5: Trechos comentados E

Exemplo 8: “He tended it in a sensuous

way […]” Ver parágrafo 4

“Ele guardava de uma forma sensual [...]”

Exemplo 9: “[…] the cello would join them in

the bedroom […]”.

Ver parágrafo 10

“[...] o violoncelo se juntaria a eles no

quarto[...]”

Exemplo 10: “[…] its softly buffed surface

and graceful bulk held close against his

body, sharing the intimacy that was hers

[…]” Ver parágrafo 10

“[…] o volume gracioso mantido próximo ao

seu corpo, dividindo a intimidade que era

dela [...]” Ver página

Exemplo 11: “But, for her, that other,

mysterious energy of devotion has now

“Mas para ela, essa outra energia misteriosa

de devoção fez agora do amor um ménage à

44

made of love a threesome”.

Ver parágrafo 19

trois”.

Exemplo 12: “He packed his overnight bag

on their bed, took up the black-clad body of

the cello, and kissed her goodbye. There

were well-spaced acts of dutiful intercourse,

as if it were as routine as a regular haircut”.

Ver parágrafo 23

“Ele arrumou a mala na cama dos dois,

pegou o corpo coberto de preto do violoncelo

e lhe deu um beijo de adeus. Havia atos

sexuais bem espaçados e obrigatórios, como

se ele fosse tão rotineiro quanto um corte de

cabelo regular”.

Tabela 5: Trechos comentados E

No conto, a esposa acaba vivendo numa espécie de alienação. No início, ela

fala como a sua mãe é uma mulher alienada, que se preocupa com vários motivos e

sem nenhuma razão. Percebemos claramente que a mãe dela é descrita como uma

mulher fanática e alienada que, de tanto reclamar, tudo acabava tornando-se

repetição. Por exemplo, ela sempre falava sobre as doenças reprodutivas femininas,

sobre o que é ter um filho. Com a leitura do conto percebemos que a esposa acaba

tornando-se fanática assemelhando-se a sua mãe. Só que com motivos diferentes.

Ela tem uma preocupação excessiva com o que o marido está fazendo e com tudo

que acontece ao seu redor. Ela falou tanto de sua mãe que não percebeu a

semelhança que tinha com ela. Essa constatação pode ser verificada nos exemplos

a seguir

Tabela 6: Trechos comentados F

Exemplo 13: “[…] and her mother, with her

groupies exchanging talk of female

reproductive maladies, from conception to

menopause, did not have in their

comprehension what it was that she wanted

to do”. Ver parágrafo 3

“[...] e sua mãe, com suas fanáticas

conversas sobre as doenças reprodutivas

femininas desde a concepção até a

menopausa, e a filha não entendia o que a

mãe queria dizer com isso”.

Exemplo 14 “Let her mother and her teatime

friends focus on the hazards of

“Deixe que a mãe dela e suas amigas da

hora do chá foquem nos perigos da

45

reproduction, contemplating their own

navels”. Ver parágrafo 8

reprodução, contemplando seus próprios

umbigos”.

Tabela 6: Trechos comentados F

Concluindo este capítulo, podemos afirmar que mesmo sabendo que uma

tradução perfeita não existe, tentar fazer com que, pelo menos, fique compreensível

é uma estratégia que o tradutor tem de levar a sério. Portanto, a tradução

comentada poder ser vista como uma tarefa que se concentra no conteúdo da obra,

pois durante o processo tradutório, o tradutor se envolve tanto com a história que

aos poucos vai se intensificando a ponto de sentir a necessidade de explicar a obra.

Levando em conta também a estratégia de pesquisar as expressões e procurar a

melhor tradução que se encaixe na frase e ainda assim mantenha a mensagem do

original. Podemos considerar, a partir da realização deste capítulo, que o papel do

tradutor é muito desafiador.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho desenvolvido teve como tema a tradução comentada que seguiu

as orientações de Antunes (1991), César (1999) e Britto (2012), tradutores literários

que têm praticado a tradução comentada e anotada.

Os objetivos lançados foram alcançados, uma vez que, a partir do processo

tradutório, foi possível identificar as dificuldades que o tradutor encontra para

traduzir uma obra. A prática tradutória faz com que nos aprofundemos de tal forma

na pesquisa sobre o período literário vivido pela autora do texto original, e nas

características literárias desse período, que nos leva a querer comentar com mais

exatidão e explicação a obra em questão.

Nadine Gordimer, autora de The first sense, conto escolhido para realização

da tradução comentada deste trabalho, tinha uma forma de escrita bastante rica. O

fato de a autora lutar sempre pela liberdade de expressão, pensando que todos têm

o direito de se expressar, baseando suas obras em um momento tão difícil e

conturbado que foi o Apartheid no fez ganhar tamanha admiração não só por suas

obras, mas também por sua vida, ainda que a mesma tenha sido discreta. Gordimer

realmente foi uma mulher de opinião que conseguiu, através de suas obras, se

expressar.

Entendemos que no processo tradutório é preciso ser fiel ao original para não

deixar passar nada que, a princípio, possa até parecer estranho e sem sentido, mas

que acaba sendo de grande valor para o original. Por isso, o tradutor tem que fazer

uma espécie de jogo de tradução para, assim, recriar, já que tradução é a recriação

do original. Sendo assim, percebemos que todos os tradutores enfrentam algum tipo

de dificuldade na hora de traduzir, seja ela na sintaxe do idioma ou não, pois um

tradutor é diferente do outro. Mas o que realmente importa é se ele conseguiu

passar a mensagem que o original apresenta para o leitor da língua-meta, porque,

às vezes, os tradutores recebem obras tão exuberantes que cabe ao tradutor,

durante o processo tradutório, manter a mensagem do original e causar, na

tradução, o impacto que o original causa.

A realização deste trabalho foi de grande satisfação pessoal, pois tendo tido a

experiência de tradução pude constatar que realmente não é nada fácil fazer uma

47

tradução. Além disso, posso afirmar que meu processo tradutório não só ampliou

meu vocabulário como também aumentou minha autoconsciência como profissional

da área e me ajudou a melhorar a qualidade de minhas traduções.

48

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, B. Notas sobre tradução literária. Disponível em: http://google.com.br.

Acesso em: 27 de abril de 2014;

BRITTO, P.H. A tradução literária. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2012;

CESAR, A.C. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999;

GORDIMER, Nadine. The first sense. The New Yorker’s archive,2006. Dispon[ivel

em: <http://www.newyorker.com/>. Acesso em maio de 2014;

http://www.infopedia.pt/$nadine-gordimer;jsessionid=hqt+Rot6MYTQ3zVWPXigsA__

Acesso em 15 de junho de 2014;

http://entretenimento.uol.com.br/flip/ultnot/ult4326u276.jhtm Acesso em 15 de junho

de 2014;

http://www.liceus.com/cgi-bin/aco/lit/02/11351.asp. Acesso em: 23 de julho de 2014;

http://www.newyorker.com/books/double-take/nadine-gordimer-in-the-new-yorker

Acesso em: 17 de outubro de 2014.