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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE Macunaíma e Miramar: Instauração da Ficção Modernista Brasileira Por: Fanny Louise Steinberg Nigri Orientadora Profª. Vilson Sergio Rio de Janeiro 2007

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

Macunaíma e Miramar:

Instauração da Ficção Modernista Brasileira

Por: Fanny Louise Steinberg Nigri

Orientadora

Profª. Vilson Sergio

Rio de Janeiro

2007

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

Macunaíma e Miramar:

Instauração da Ficção Modernista Brasileira

Apresentação de monografia à Universidade Candido

Mendes como condição prévia para a conclusão do

Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Docência

do Ensino Superior.

Por: Fanny Louise Steinberg Nigri

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AGRADECIMENTOS

Aos professores da Universidade Cândido

Mendes, em especial ao professor Vilson

Sergio, pela orientação segura para a

elaboração deste trabalho.

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DEDICATÓRIA

Ao meu marido Salim pela dedicação e aos meus filhos Victor e Thiago,

pela compreensão e carinho.

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RESUMO

Esta Monografia tem como propósito investigar como se deu o processo de

instauração de um modernismo tipicamente brasileiro, a partir da análise comparativa

das obras de Oswald de Andrade e Mario de Andrade, respectivamente autores de

Memórias Sentimentais de João Miramar e Macunaíma.

Além do embasamento teórico, por meio de uma pesquisa bibliográfica sobre

o momento vivido pelos cânones nacionais, Oswald e Mario de Andrade, leitura das

obras que marcaram o início de uma literatura tipicamente nacional, busca-se também

discutir a importância da valorização desses mestres na formação do professor de

português no curso de Letras.

Assim sendo, o capítulo I buscará discutir a formação do professor de

literatura, sua importância para a sociedade e o porquê de se privilegiar o estudo do

cânone nacional.

O capítulo II versa sobre o implementação de uma linguagem tipicamente

nacional, discutindo o momento histórico da implementação da linguagem modernista

no Brasil.

No capít6ulo III fazemos um breve relato da importância de dois grandes

cânones nacionais: Oswald e Mario de Andrade, cuja benéfica influência ainda paira

sobre nós.

E, finalmente, o capítulo IV mostrará os ecos do movimento modernista tanto

na nossa formação cidadã quanto na nossa formação cultural e intelectual.

O trabalho conclui que para que tenhamos uma oportunidade de refletir, trocar

experiências e informações e definir ações que valorizem a literatura e o idioma e

necessário que haja uma política que preveja a formação de professores de português, a

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elaboração e a avaliação de materiais didáticos sobre o ensino de literatura e o

intercâmbio de experiências pedagógicas.

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METODOLOGIA

A metodologia utilizada para a elaboração desta Monografia foi a pesquisa

bibliográfica em livros sobre Literatura, englobando as áreas de didática do ensino de

Língua e Literatura, além dos livros referência: Memória Sentimentais de João Miramar

e Macunaíma.

Desenvolveu-se também uma pesquisa em livros que tratam da pedagogia do

ensino da Língua Portuguesa no que tangue a valorização dos cânones nacionais.

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Sumário INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------- 9

CAPÍTULO I LITERATURA E O PROFESSOR DE PORTUGUÊS ---------------- 11 1.1 - Considerações sobre o cânone e o professor de português 1.2 - Que professor de Português queremos formar?

CAPÍTULO II IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA MODERNISTA ------------- 23 2.1 – Da velha Europa: modelos, virtudes e manifestos – um início 2.2 – No Brasil, também é século XX! – um meio 2.2.1 – O quadro dos acontecimentos (óleo sobre tela, ainda) 2.2.2 – Rio: Passos e sua Paris tropical 2.2.3 – São Paulo: um cenário bem competente 2.3 – O modernismo – um fim 2.4 – A semana – cem anos em dependência, o Brasil CAPÍTULO III OSWALD E MÁRIO – ANDRADES MODERNOS ----------------- 30 3.1 – Brasil como musa comum 3.2 – Oswald: um semeador 3.3 – Mário: sementes para cultivar 3.4 – Macunaíma & Miramar 3.5 – Miramar Vs. Macunaíma CAPÍTULO IV ECOS ----------------------------------------------------------------------- 37 4.1 – As reações acadêmicas – uma elite escandalizada 4.2 - O povo do Brasil: falado, porém, surdo 4.3 – Contribuição indelével CONCLUSÃO -------------------------------------------------------------------------------- 39 BIBLIOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------- 42

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INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo discutir a formação do professor de

português nos cursos de Letras e comentar a experiência literária brasileira no primeiro

momento da fase modernista da ficção nacional.

Como referencial literário, foram utilizadas as obras: Macunaíma, de Mário de

Andrade, onde a aspiração de identidade com um modelo endógeno, por parte do

público, leva o autor a criar um herói desprovido de qualquer caráter; Memórias

sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, é um telegrama contundente e

delirante, que contém uma complexa trama memorialista. Este completa a curta, mas

expressivíssima lista de romances-referência.

Estas duas peças da literatura brasileira, provas incontestes do talento e da

genialidade dos nossos autores, marcam, embora, em alguns pontos afinadas e

complementares, e, em outros, díspares e contrastantes, a instauração da ficção moderna

no Brasil, bem como inauguram uma língua literária brasileira.

No entanto, percebe-se que o novo desenho curricular para o Ensino Médio

representa uma opção anti-canônica, deixando de lado a importância do estudo dos

clássicos para formação de uma identidade cultural brasileira.

Com base na leitura das obras citadas acima e de pressupostos teóricos vários,

tentou-se estabelecer um panorama de acontecimentos e de procedimentos que

ensejaram a formação de uma literatura revolucionária e autóctone, e ainda avaliar

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como o trabalho dos referidos escritores, em especial Macunaíma e Miramar, contribuiu

para a perpetuação de um modo típico de escrever e de criar.

Este estudo pretende discutir que o professor com uma sólida formação literária

é aquele que interpreta o cânone não como um mero catálogo de nomes de autores e de

livros, mas como um ato comunicativo, pois se preocupa com a transmissão de dados

culturais; abarcar, de forma breve, a importância da literatura na formação dos

professores de língua portuguesa e observar como isso foi feito desde os movimentos

de vanguarda na Europa até os possíveis ecos hodiernos do movimento Modernista.

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LITERATURA E O PROFESSOR DE PORTUGUÊS

1.1 Considerações sobre o cânone e o professor de português

O novo desenho curricular para o Ensino Secundário representa uma opção anti-

canônica do ensino do Português. Parte-se do pressuposto, nunca justificado, de que o

cânone literário é uma forma grosseira de aprendizagem do Português. Tem-se

defendido que ensinar literatura significou sempre ensinar “história literária”, uma

disciplina que se admite corromper a aprendizagem, porque apenas consegue

desenvolver no estudante habilidades classificatórias. Ignora-se, contudo, que o cânone

não pode ser responsabilizado pela metodologia que um professor de Português utiliza.

À custa das más práticas de ensino do Português, que ninguém quer reformar, que não

estão contempladas em nenhuma reforma curricular, culpa-se o cânone, ora pela sua

extensão ora pela sua impossibilidade epistemológica.

O cânone não pode ensinar porque abrange centenas de anos de criação

literária - primeiro argumento anti-canônico; o cânone não pode ensinar, porque a

literatura reduz a aprendizagem a um pequeno número de conteúdos, deixando de lado

formas de comunicação verbal e não verbal não literárias, cuja importância é hoje

fundamental na formação de jovens leitores - segundo argumento anti-canônico. Por

outras palavras, a resistência ao cânone em nome da defesa do pragmatismo mais

insipiente da língua como método preferencial de aprendizagem, ao fim de nove anos de

escolaridade, significa, afinal de contas mal contadas, que Antônio Vieira não pode

ensinar-nos a escrever um texto argumentativo, que Almeida Garrett não pode ensinar-

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nos a escrever bem um requerimento, que Eça de Queirós não pode ensinar-nos a

escrever prosa jornalística, que Antero de Quental não pode treinar-nos na arte do

debate, que Almada Negreiros nunca nos poderá ensinar a redigir uma reclamação ou

um protesto, que Alexandre O’Neill não pode ensinar-nos a escrever um texto

publicitário, etc. Enfim, tudo isto, que em si mesmo representa uma visão canônica da

comunicação verbal literária interagindo com a comunicação verbal não literária, para

usar palavras que os anti-canônicos possam entender, é desprezível para quem

programou o novo ensino do Português.

Criaram-se então, com esta reforma curricular do século XXI, programas de

ensino de Língua Portuguesa, mas não se criaram, felizmente, programas de Língua

Inglesa e programas de Literatura Inglesa, programas de Língua Francesa e programas

de Literatura Francesa, tal como não se criaram, ainda felizmente, programas de

Filosofia da Linguagem e de Filosofia do Conhecimento, de História das Idéias e de

História de Portugal, etc. O Português é, neste novo figurino curricular do Ensino

Secundário, a única disciplina européia que pressupõe uma especialização precoce. O

que vai sobrar para o futuro destes estudantes especializados não parece ser uma

prioridade.

Consideremos dois tipos fundamentais de professor de Português: o professor

tecnocrata e o professor metódico. O primeiro aprendeu a trabalhar com o cânone como

um pseudo-cientista que aprende uma fórmula cuja comprovação é feita uma única vez.

O cânone existe para ele uma só vez e numa só forma, tal como lhe foi transmitido por

outros, razão que explica também o fato de não compreender a existência de cânones. A

solução que encontrou é válida pelo menos durante trinta anos. A metodologia de ensino

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do cânone é invariável, mesmo quando tem de trabalhar um programa de Língua

Portuguesa com um programa de literatura incrustado. A literatura é, para o professor

tecnocrata, uma crosta, um invólucro de um corpo maior chamado língua. Por isso,

qualquer que seja a mudança do cânone, mesmo que este se dilua em revisitações

arbitrárias da história literária, ele há de ensinar sempre como um tecnocrata. Num

primeiro momento, apresenta ao estudante um conjunto de traços literários, de

procedimentos técnicos ou de temas, reunidos sob uma rubrica como Renascimento,

Romantismo ou Realismo. Num segundo passo, totalmente mecanizado, faz com que,

para um dado texto X, o estudante seja capaz de descobrir o “estilo de época” Y a que

aquele texto pertence. Toda a observação se dirige à comprovação de que o texto

pertence ou representa um “movimento” ou uma “escola”. O professor tecnocrata está

convencido de que o cânone não existe para além da realidade maior do seu método. O

currículo nacional é que tem de se adaptar ao professor tecnocrata e, por mais incrível

que possa parecer, a verdade é que o currículo acaba vencido, vergado à metodologia do

ensino da literatura como parte do ensino de uma história literária. É esta história

literária corrompida por uma má prática que os programadores de ensino costumam

confundir com o cânone como doença do espírito.

O professor metódico é aquele que interpreta o cânone. Há uma grande diferença

entre o conhecimento cultural de uma ciência e o conhecimento técnico dos métodos de

ensino dessa mesma ciência. Ele acredita que o ensino da história literária não é

perigoso para a formação cultural de um adolescente. Ele não ensina literatura por um

catálogo de nomes de autores e de livros que o distraem da aprendizagem da língua

materna. O ensino da literatura é tido como um ato comunicativo, porque o professor

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metódico não se preocupa apenas com a transmissão de dados culturais e teóricos sobre

o texto. Ele valoriza invariavelmente mais a língua e a cultura dentro do ensino da

literatura do que o professor tecnocrata. O professor metódico usa a história literária

como arte de adestrar ou pôr em exercício a literatura. Ele sabe que uma tal arte é tão

ensinável e tão formativa como qualquer outra analítica. Repudiá-la eqüivale a repudiar

o pensamento rigoroso sobre a obra de arte literária, eqüivale a eliminar toda a

propedêutica sobre a literatura, que fica assim reduzida a um mero artefato. A aula de

um professor tecnocrata de Português pode ser descarregada da Internet, pode ser

compactada num CD-ROM ou num DVD, pode ser pirateada, pode ficar sujeita a ser

infectada por todo o tipo de vírus, porque se trata efetivamente de uma aula em código

universal. A aula do professor metódico é um ato do seu próprio pensamento, e isso

nunca ninguém conseguirá legislar. Muito menos, alguém conseguirá separar.

Simplesmente, o pensamento lingüístico do professor metódico de Português é

inseparável do pensamento literário, do pensamento cultural, do pensamento político, do

pensamento ético, etc.

1.2 Que professor de Português queremos formar?

Segundo Magda Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais, a pergunta

que dá título a esta exposição envolve outras, que a precedem: que saber escolar é este,

a que chamamos Português? que critérios permitem definir o profissional que se

responsabilize pelo ensino e pela aprendizagem desse saber escolar?

Para responder a essas perguntas, duas ordens de fatores devem ser

consideradas: de um lado, fatores externos à própria disciplina Português – fatores de

natureza social, política, cultural; de outro lado, fatores internos à disciplina – fatores

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relativos ao estatuto da área de conhecimentos sobre a língua. Uma perspectiva histórica

que recupere o processo de instituição do Português como disciplina escolar e os

processos de constituição do profissional “professor de Português”, e, assim, revele o

papel determinante desses fatores ao longo do tempo permitirá compreender o presente

– que professor de Português estamos formando – e definir a meta para o futuro – que

professor de Português queremos (ou devemos) formar.

A necessidade, num país de língua portuguesa, de uma disciplina, no currículo

escolar, que tenha por objeto e objetivo o estudo dessa língua, e de um profissional

formado especificamente para encarregar-se do ensino dessa disciplina parece, aos

olhos de hoje, óbvia e indiscutível. Uma perspectiva histórica mostra que não é assim:

com tal denominação – Língua Portuguesa ou Português – a disciplina só passou a

existir nos currículos escolares brasileiros tardiamente, nas últimas décadas do século

XIX, depois de já há muito organizado o sistema de ensino, e o processo de formação

do professor para tal disciplina só teve início nos anos 30 do século XX.

Até meados do século XVIII, no sistema de ensino do Brasil (como no de

Portugal), o ensino do português restringia-se à alfabetização, após à qual aqueles

poucos alunos que tinham acesso a uma escolarização mais prolongada passavam

diretamente à aprendizagem do latim, basicamente da gramática da língua latina, e ainda

da retórica e da poética; quando a Reforma Pombalina (1759) tornou obrigatório, em

Portugal e no Brasil, o ensino da Língua Portuguesa, esse ensino seguiu a tradição do

ensino do latim, isto é, definiu-se e realizou-se como ensino da gramática do português,

ao lado do qual manteve-se, até fins do século XIX, o ensino da retórica e da poética.

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Assim, quando, em 1837, foi criado, no Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, que

se tornou, durante décadas, o modelo e padrão para o ensino secundário no Brasil, o

estudo da língua portuguesa foi incluído no currículo sob a forma das disciplinas

Retórica e Poética, abrangendo esta a Literatura; curiosamente, só no ano seguinte, em

1838, o regulamento do Colégio passa a mencionar a Gramática Nacional como objeto

de estudo.

Retórica, Poética, Gramática — estas eram, pois, as disciplinas nas quais se fazia o

ensino da língua portuguesa até o fim do Império. Em meados do século XIX o

conteúdo gramatical ganha a denominação de Português, e em 1871 foi criado no país,

por decreto imperial, o cargo de “professor de Português.

Entretanto, a mudança de denominação não significou mudança no objeto e no

objetivo dos estudos da língua: a disciplina Português manteve, até os anos 40 do século

XX, a tradição da gramática, da retórica e da poética.

Por que, durante tanto tempo, manteve-se, nos estudos escolares da língua, essa

tradição? De um lado, essa persistência se explica por fatores externos às próprias

disciplinas: manteve-se essa tradição porque, fundamentalmente, continuaram a ser os

mesmos aqueles a quem a escola servia: os grupos social e economicamente

privilegiados, únicos a ter acesso à escola; pertencentes a contextos culturais letrados,

chegavam às aulas de Português já com um razoável domínio do dialeto de prestígio (a

chamada “norma padrão culta”), que a escola usava e queria ver usado, e já com

práticas sociais de leitura e escrita freqüentes em seu meio social. A função do ensino de

Português era, assim, fundamentalmente, levar ao conhecimento, talvez mesmo apenas

ao reconhecimento, das normas e regras de funcionamento desse dialeto de prestígio:

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ensino da gramática, isto é, ensino a respeito da língua, e análise de textos literários,

para estudos de Retórica e Poética.

Por outro lado, fatores internos explicam a persistência, por tanto tempo, de um

ensino da língua entendido como estudos de gramática, retórica e poética: o

conhecimento que então se tinha da língua era aquele transferido do conhecimento da

gramática do latim, da retórica e da poética aprendidas de e em autores latinos e gregos.

Que outra coisa se poderia ensinar?

Assim, na disciplina Português, durante todo esse período, estudava- se a

gramática da língua portuguesa, e analisavam-se textos de autores consagrados, ou seja:

persistiu, na verdade, a disciplina gramática, para a aprendizagem sobre o sistema da

língua, e persistiram a retórica e a poética, estas adquirindo, é verdade, novas roupagens

ao longo do tempo: à medida que a oratória foi perdendo o lugar de destaque que tinha

até meados do século XIX, tanto no contexto eclesiástico quanto no contexto social, a

retórica e a poética foram assumindo o caráter de estudos estilísticos, tal como hoje os

conhecemos, e foram-se afastando dos preceitos sobre o falar bem, que já não era uma

exigência social, para substituí-los por preceitos sobre o escrever bem, já então

exigência social. Assim, embora a disciplina curricular se denominasse Português,

persistiram embutidas nela as disciplinas anteriores, até mesmo com individualidade e

autonomia, o que se comprova pela convivência na escola, nas quatro primeiras décadas

deste século, de dois diferentes e independentes manuais didáticos: as gramáticas e as

coletâneas de textos. Evidenciam essa convivência com independência a publicação

concomitante de gramáticas e de seletas, ambos os gêneros com forte presença na

escola, nas primeiras décadas do século XX.

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Quem eram, então, os professores de Gramática, Retórica, Poética e,

posteriormente, de Português, nessa época em que ainda não existiam instâncias de

formação do professor (lembre-se: estas só surgem nos anos 30)? Eram estudiosos

autodidatas da língua e de sua literatura, com sólida formação humanística, que, a par de

suas atividades profissionais (eram médicos, advogados, engenheiros e outros

profissionais liberais) e do exercício de cargos públicos, que quase sempre detinham,

dedicavam-se também ao ensino; exemplos são João Ribeiro, Júlio Ri-beiro, Franklin

Dória, Carlos de Laet, Fausto Barreto, Antenor Nascentes, Francisco da Silveira Bueno,

Eduardo Carlos Pereira, nomes conhecidos por suas publicações: gramáticas, antologias,

estudos filológicos, estudos literários.

A competência atribuída a esses professores de Português que hoje chamaríamos

“leigos” fica evidenciada nos manuais utilizados nas escolas: as gramáticas não tinham

caráter didático, eram apenas exposição de uma gramática normativa, sem comentários

pedagógicos, sem proposta de exercícios e atividades a serem desenvolvidas pelos

alunos; as antologias limitavam-se à apresentação de trechos de autores consagrados,

não incluindo, em geral, nada mais além deles (nem comentários ou explicações, nem

exercícios ou questionários). Assim, o professor da disciplina Português era aquele que

conhecia bem a gramática e a literatura da língua, a retórica e a poética, aquele a quem

bastava, por isso, que o manual didático lhe fornecesse o texto (a exposição gramatical

ou os excertos literários), cabendo a ele, e a ele só, comentá-lo, discuti-lo, analisá-lo, e

propor questões e exercícios aos alunos.

A partir dos anos 50 é que começa a ocorrer uma real modificação nas condições

de ensino e de aprendizagem da disciplina Português – fatores externos: uma

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progressiva transformação das condições sociais e culturais e, sobretudo, das

possibilidades de acesso à escola vai exigindo a reformulação das funções e dos

objetivos dessa instituição. Em primeiro lugar, é a partir desse momento que começa a

modificar-se profundamente o alunado: como conseqüência da crescente reivindicação,

pelas camadas populares, do direito à escolarização, democratiza-se a escola, e já não

são apenas os filhos da burguesia que povoam as salas de aula, são também os filhos

dos trabalhadores — nos anos 60, o número de alunos no ensino médio quase triplicou,

e duplicou no ensino primário. Em segundo lugar, e como conseqüência da

multiplicação de alunos, ocorreu um recrutamento mais amplo e, portanto, menos

seletivo de professores, embora estes fossem já, em grande parte, oriundos das recém-

criadas Faculdades de Filosofia, formados não só em conteúdos de língua e de literatura,

mas também de pedagogia e didática. As condições escolares e pedagógicas, as

necessidades e exigências culturais passam, assim, a ser outras bem diferentes.

No entanto, não houve grande alteração nos fatores internos, isto é, nos

conhecimentos sobre a língua: esta continuou a ser concebida como um sistema cuja

gramática deveria ser estudada, e como um instrumento de expressão para fins retóricos

e poéticos. Assim, não houve alteração significativa no objeto e nos objetivos da

disciplina Português. É verdade que gramática e texto, estudo sobre a língua e estudo da

língua, começam a deixar de ser duas áreas independentes, e passam a articular-se: ora é

na gramática que se vão buscar elementos para a compreensão e a interpretação do

texto, ora é no texto que se vão buscar estruturas lingüísticas para a aprendizagem da

gramática. Assim, ou se estuda a gramática a partir do texto ou se estuda o texto com os

instrumentos que a gramática oferece.

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Quanto à concepção de professor, esta se altera fundamentalmente, o que fica

claramente evidenciado nos manuais didáticos que substituem, a partir dos anos 50, as

gramáticas e as antologias: num único livro apresentam-se conhecimentos gramaticais e

textos para leitura, e, sobretudo, incluem-se exercícios — de vocabulário, de

interpretação, de redação, de gramática. Assim, já não se remete ao professor, como

anteriormente, a responsabilidade e a tarefa de formular exercícios e propor questões: o

autor do livro didático assume ele mesmo essa responsabilidade e essa tarefa, que os

próprios professores passam a esperar dele, o que surpreende, se recordar que já então

os professores tinham passado a ser profissionais formados em cursos específicos.

Algumas razões talvez expliquem esse aparente paradoxo.

Uma delas é que é nessa época que se intensifica o processo de depreciação da função

docente: a necessidade de recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores, já

anteriormente mencionado, resultado da multiplicação de alunos, vai conduzindo a

rebaixamento salarial e, conseqüentemente, a precárias condições de trabalho, o que

obriga os professores a buscar estratégias de facilitação de sua atividade docente — uma

delas é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios. Acrescente-se

a isso o fato de que o rebaixamento salarial, e conseqüente perda de prestígio da

profissão docente, muda significativamente a clientela dos cursos de Letras, que

começam a atrair para o magistério indivíduos oriundos de contextos pouco letrados,

com precárias práticas de leitura e de escrita. Enquanto isso, os formadores de

professores, nas Faculdades de Filosofia, eram especialistas que desconheciam as novas

condições de letramento de seus alunos futuros professores, e também desconheciam a

nova realidade da escola e do alunado à espera desses futuros professores, o que se

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explica por se terem formado em outras condições sociais e educacionais. Por isso, não

se propunham propriamente o objetivo de formar professores, mas estudiosos da língua

e da literatura.

Assim, pode-se afirmar que as modificações nas condições de ensino e de

aprendizagem da disciplina Português, ocorridas a partir dos anos 50, não alteraram

fundamentalmente o ensino dessa disciplina, que continuou a orientar-se por uma

concepção da língua como sistema, continuou a ser ensino sobre a língua, quer como

ensino de gramática normativa, quer como leitura de textos para conhecimento e

apropriação da língua padrão. Em síntese: o alunado tornou-se outro, radicalmente

diferente, os professores passaram a ser formados em instituições específicas mas, ao

mesmo tempo, passaram a originar-se de grupos sociais menos letrados; as concepções

de língua e de ensino de língua continuaram, porém, as mesmas. Talvez este

distanciamento entre os fatores externos e os fatores internos seja a principal explicação

para o tão citado e comprovado fracasso do ensino e da aprendizagem do Português na

escola.

As novas teorias desenvolvidas na área das ciências lingüísticas a partir, sobretudo, da

segunda metade dos anos 80 é que começam a alterar fundamentalmente essa situação.

Introduzidas nos currículos de formação de professores a partir dos anos 60 —

inicialmente, a Lingüística, mais tarde, a Sociolingüística, ainda mais recentemente, a

Lingüística Aplicada, a Psicolingüística, a Lingüística Textual, a Pragmática, a Análise

do discurso — só nos anos 90 essas ciências começam a chegar à escola, “aplicadas” ao

ensino da língua materna.

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Mas não são apenas as ciências lingüísticas que vêm constituindo os fatores

internos de determinação do ensino de Português e, portanto, de definição dos

professores que queremos formar. Recentemente, três novas áreas de estudo introduzem

a necessidade de orientar o ensino da língua também por perspectivas históricas,

sociológicas e antropológicas: a História da Leitura e da Escrita, a Sociologia da Leitura

e da Escrita, a Antropologia da Leitura e da Escrita, especializações da História, da

Sociologia e da Antropologia, ao investigar e analisar, a primeira, as práticas históricas

de leitura e escrita, a segunda, as práticas sociais de leitura e escrita, a terceira, os usos e

funções da leitura e da escrita em diferentes grupos culturais, propõem questões que um

ensino de língua não pode deixar de levar em consideração: como se explicam as

práticas de leitura e de escrita atuais, à luz das práticas do passado e quais são essas

práticas atuais de leitura e de escrita, que demandas de leitura e de escrita são feitas e

serão feitas aos alunos nas sociedades grafocêntricas em que vivemos.

Pode-se concluir do exposto que a resposta à pergunta “Que professores de

Português queremos formar?” só pode ser encontrada considerando-se fatores internos à

própria disciplina “Português”, isto é, fatores relativos ao estatuto atual da área de

conhecimentos sobre a língua, e fatores externos, relativos ao contexto social, político,

cultural. Mas isto já foi feito certa vez por um grupo de intelectuais comprometidos com

a História de um Brasil que estava dispostos a criar. Voltemos, então, ao Brasil dos

primórdios do século XX....

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IMPLANTAÇÃO DA LITERATURA MODERNISTA 2.2 – No Brasil, também é século XX! – um meio

Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal! Ainda vai tornar-se um Império colonial.2

É característica comum aos países que sediaram colônias de exploração, a

postura de seus habitantes definida por estar de costas para o interior e com os olhos

pousados sobre o mar. a ocupação litorânea do Brasil parece radicalizar o desejo de o

homem brasileiro sair mar a fora, num atavismo às avessas, para conquistar o exógeno.

Iludido, o pobre nativo do Brasil deixa-se conquistar, na verdade, por tudo o que

vem do estrangeiro, numa inconseqüente xenofilia que o deixará sempre inseguro da sua

própria cidadania, da sua própria cultura.

Como o século XX batia à porta do mundo civilizado, batia, também nas

arenosas fronteiras brasileiras, e era preciso fazer com que o espocar do champagne em

Paris fosse ouvido e saudado pelas elites brasileiras, já bastante entusiasmadas com o

café nas Bolsas de Valores internacionais.

2.2.1 – O quadro dos acontecimentos (óleo sobre tela, ainda) No alvorecer do novecentos o Brasil guardava uma feição não muito distinta da

que o vetusto Imperador deixou ao partir para o exílio. a república era recente e a

situação instável.

2 HOLANDA, Chico Buarque de. In: encarte do disco A arte de Chico Buarque, Poligram, 1975.

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Os assustados, supõe-se, olhos azuis do monarca despatriado viram, pela última

vez o porto do rio de Janeiro – “precário e insalubre” 3, que servia de sala de visitas a

uma cidade imunda e colonial; mestiça e escura.

O mundo, porém, respirava vapores elegantes e, tornava-se urgente o que

Nicolau Sevcenko chamou de “inserção compulsória do Brasil na Belle Époque” 4, pois

uma grande nação emergente, atualizada politicamente, tinha de ser sua Capital Federal

nos moldes das grandes cidades européias.

2.2.2 – Rio: Passos e sua Paris tropical

A l´exception de New York et Chicago, dont l´evolution assume des proportions étonnentes, peu de centres urbains de l´ancien et du nouveau continent présentent un phénomène identique a celui de la Capitale du Brésil 5

A Capital Federal, centro político da república que acabava de nascer, assistiu,

participante, a um enorme surto de progresso que adveio de uma nova filosofia

financeira imposta pela política do Encilhamento.

Nascia a ambição industrial; os grandes capitais estrangeiros invadiam os Ativos

da indústria no vigésimo século brasileiro. tornava-se obrigatória uma nova ordem,

“uma remodelação dos hábitos sociais e dos cuidados pessoais” 6; tudo isto tem seu

resultado certo: o consumo.

Consumir era lei. gastar dinheiro nas compras de produtos dernier bateau era um

dos parágrafos dessa lei. Falar bem o francês e se ocupar das coisas da Europa era

3 NOSSO SÉCULO, Abril Cultural, V.1 p. 3 4 SEVCENKO. (1985) p. 25 5 GUIMARÃES & LAFOND. In: SEVCENKO. Op. cit. p. 52 6 SEVSENKO. Op. cit. p. 28

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mister para a sociedade carioca de então; rapazes têm de estudar em Paris, moças têm de

ir à França para passeios e compras.

Na febra indômita da francofilia registram-se fatos até hilariantes, das famílias

não muito abastadas que faziam suas filhas embarcarem em vapores para Santos ou

Salvador, dizendo e propagando que estavam indo para a “Cidade Luz” e quando

regressavam, compravam, na Alfândega, produtos importados para serem exibidos em

tertúlias festivas regadas a champanha comprada em contrabando. 7

Neste cenário surge a importante figura do prefeito Pereira Passos, que resolveu

transformar o centro do Rio num boulevard parisiense, derrubando velhos casarões

coloniais e, consequentemente, expulsando seus habitantes do refinado centro.

Passos fez obras na cidade. Alargou a Avenida Central, ergueu o Teatro

Municipal à imagem e semelhança da Ópera de Paris. Chegou até a importar vários

engradados de andorinhas para completar o clima soturno do outono europeu. 8

A vida moderna invade o país com exagero. É radical a sede de modernização

dos costumes, bem como o é a europeização da vida. Assim, tudo o que signifique

brasilidade, desde a língua falada até os remanescentes de populações indígenas, que

conseguiram sobreviver a uma abordagem colonial brutal e genocida, era tratado com

violento repúdio como comprova o trecho a seguir, retirado da crônica social de 1908:

Infelizmente não era mais tempo de providenciar de tirar aquela nódoa tupinambá da nossa correção parisiense, de esconder aqueles caboclos importunos, de, ao menos, cortar-lhes o cabelo (embora parecesse melhor a muita gente cortar-lhes a cabeça), de atenuar com escova e perfumaria aquele escândalo de bugres metediços... Não houve remédio senão aturar as feras, mas só Deus sabe que força tivemos que empregar para sorrir ao Sr. Root, responder em bom inglês ao seu inglês, vendo o nervoso que nos sacudia a mão quando

7 Informação obtida em conferência proferida pelo Profº Nicolau Sevsenko, no curso História Social da República, oferecido pela UNIVERTA, de outubro a dezembro de 1983. 8 Idem.

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empunhávamos a taça dos brindes solenes e engolir de modo que não revelasse aos hóspedes que tínhamos índios atravessados na nossa garganta. (...) A figura do índio nos perseguia com a tenacidade do remorso. (...) As suas plumas verdes e amarelas quebravam a uniformidade negra das casacas. Broncas sílabas tupis pingaram, enodoando o primor das línguas educadas. 9

Está bem clara a situação do índio no Brasil moderno: um entruso. Assim ficará bem

fácil, como veremos adiante, entender como e porque Mário de Andrade o transformou em

herói, ainda que sem nenhum caráter.

2.2.3 – São Paulo: um cenário bem competente

... da dura poesia concreta de tuas esquinas ... tuas oficinas de florestas teus deuses da chuva. Panaméricas de Áfricas utópicas túmulo do samba mais possível novo quilombo de Zumbi ... 10

Ao se falar em modernismo, a primeira imagem que se tem na cabeça é a de São

Paulo, pois naquele ambiente veloz, já nas primeiras décadas do século XX, o progresso

conheceu seu lugar definitivo.

Só em São Paulo é que poderiam ser digeridos os cultos à velocidade, à industria

vindos da Europa. Os emigrantes conheciam muito bem o que era trabalho duro e assim,

prédios subiam vertiginosamente, a cidade se tornava cada vez mais radial e as fábricas

e maquinarias produziam a música infernal do desenvolvimento.

O café do oeste do estado estava para os paulistanos assim com as sementes de

cacau estavam para Macunaíma; e de grão em grão as grandes fortunas foram-se

formando para sustentar a vida nova tão bem recepcionada na Capital de República.

São Paulo tornava-se, portanto, o único cenário possível para a instauração do

Modernismo no Brasil; o café leva Tarsila a estudar na Europa, leva Santos Dummon a

9 Crônica de A Semana, de 30 de março de 1908. (1985) p. 36 10 VELLOSO, Caetano. Sampa. In: encarte do disco Mãe, Poligram, 1979.

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brincar com balões em Paris, conduz presidentes ao cadete e solidifica o status da

fabulosa cidade – industrial e moderna.

O Brasil acabava de se tornar, no início do século, um meio receptivo para

reformulações ideológicas, para reconstruções estéticas, para uma reação artística.

2.3 – O Modernismo – um fim O movimento modernista tem seus alicerces no futurismo de Marinetti. O rico

filho de fazendeiros, Oswald de Andrade, chega da Europa, em 1912, trazendo as idéias

de um manifesto que propunha a destruição absoluta do velho em favor do novo do

recente:

... Um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Somotrácia. 11

Será esse mesmo Oswald o principal teórico do ideário modernista brasileiro.

Numa rápida seqüência de acontecimentos, o Modernismo vai ganhando adesões

e tudo parece acontecer naturalmente, a princípio. Em 1913, em São Paulo, Lasar Segall

promove a 1ª exposição de pintura não acadêmica, no ano seguinte, Anita Malfatti vem

de Berlim para exibir seus quadros impressionistas; 1915 reúne Ronald de Carvalho e o

lusitano Luís de Montalvor em torno da elaboração da revista Orpheu e, finalmente em

1917, Oswald conhece Mário de Andrade quando este proferia uma palestra num

colégio de São Paulo e aquele, jornalista, se encantava com o encontro daquela alma –

gêmea.

O modernismo, porém, não se limitou a uma compilação de movimentos

dispersos. Não. Havia uma doutrina, uma linha ideológica vanguardista que seus

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fundadores, muitos deles, buscaram pessoalmente na Europa. O movimento chamado de

“plena autonomia”12 por Eduardo Portella buscava uma interrogação da sensibilidade

artística, que, fatalmente, colocasse o novo diante do passado. Devem-se juntar em

amálgama idéias, valores e procedimentos de natureza vária e contraditos. Há uma

obstinação dos modernistas pela guerra à inteligência nacional, ao bem falar imposto

por Portugal, ao decimonônico Parnasianismo, pleno de rigidez formal e vazio de

conteúdo.

Naturalmente, a crítica brasileira não aceitou as novas propostas, mas isto já era

previsto, pois se a natureza do movimento era rebelde, o grupo responsável por ele teve

de se opor violentamente à comunidade.

É na poesia, em princípio, que o ideal modernista se instala. A prática poética

radicaliza as “palavras em liberdade” 13, a “arte feia” 14, as imagens – choque. O

grotesco e o cômico têm convivência assegurada pelos poetas modernistas. Tudo é

permitido; que se reunam numa única obra todos os estilos, todas as formas de escrever.

É imperioso pesquisar, experimentar, deglutir todos os –ismos para dizer não à

tradição, para por penas e tinteiros, pincéis e telas à disposição do porvir, do atual

nacional.

Como tudo que permeia a História humana é carente de marcos históricos, o

grupo modernista decide que no ano do centenário da Independência, a estética artística

brasileira daria o seu grito (perto) do Ipiranga.

2.4 – A Semana – cem anos em dependência, o Brasil

11 MARINETTI, In: TELES. Op. cit. p. 91 12 PORTELLA, Eduardo. Literatura e realidade nacional. 13 NUNES, et alii (1975) p. 45 14 HAUSER, In: NUNES et alii p. 44

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1922: três revoltas militares e uma revolução cultural movida a café. 15

Em 1921, Menotti del Picchia publica um artigo intitulado Na maré das

reformas, onde torna pública a doutrina modernista, mas algum tempo antes, 1920,

Oswald de Andrade escreve um artigo no qual se refere a um evento que deverá marcar

as comemorações do centenário da Independência, em 1922. Fica patente a teorização

do movimento modernista.

Reuniram-se várias vezes, para elaborar a Semana, os componentes o grupo

moderno e assim, após muitos delírios ideológicos conseguiram sensibilizar o

acadêmico Graça Aranha que aderiu a inusitada idéia, até mesmo para emprestar seu

prestigiado nome ao evento de 22.

Com o apoio da gente rica de São Paulo e dos artistas entusiasmados com a nova

ordem estética, o Teatro Municipal da capital paulista, grave e engalanado, foi palco, de

11 a 18 de fevereiro de 1922, do mais polêmico acontecimento artístico-cultural já visto

no Brasil.

Graça Aranha discursou, sapos de bandeira pulavam da boca de Ronald de

Carvalho para o colo de uma platéia enjoada e revoltada, pedras drummoníacas se

interpuseram no caminho das pessoas, Anita exibe cubismos estupefacientes, Villa-

Lobos emite acordes ruidosos e dissonantes, Antonio de Moya, Vicente do Rego

Monteiro, Guiomar Novaes entre outros estavam lá, submetidos às vaias indignadas da

assistência seleta.

A reação mais violenta foi, sem dúvida, contra à literatura e às artes plásticas.

Ninguém admitia, naquele teatro, os pontificados modernos. Todavia, a Semana coloca

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cultural e cientificamente, no século XX, o Brasil, e este Brasil será o tema predileto dos

modernistas – uma re-leitura do fato de ser brasileiro.

OSWALD E MÁRIO – ANDRADES MODERNOS com o já citado encontro, em 1917, de Mário e Oswald, desencadeou-se o

processo da ficção modernista.. ambos consagraram seus estros ao romance de século

XX, à narrativa veloz, cubista, elétrica e tecnicista.

O progresso industrial e a tecnologia ensejaram a crise de individualidade no

homem moderno. O espaço mental é condenado a viver mutilado no espaço

fragmentário de presente. 16

Mário e Oswald mergulharam nos seus “eus” e produziram obras perpassadas de

modernismos.

3.1 – Brasil como musa comum

Gosto dela meio velha assim mesmo; ela é meio velha, mas é tão bonita. ............................................................. E essa nação é assim: grandalhona, meio velha, mas uma musa e tanto. 17

Dentre as várias aspirações do advento modernista mo Brasil, estava a primazia

dos assuntos brasileiros. Para aquele grupo de intelectuais que, iconoclastas, iam

derrubando o fazer artístico tradicional, se ocupar do Brasil como tema – causa e

conseqüência – era como obstinação.

Mário e Oswald queriam ter seu país revisto, pesquisado e respeitado como

nação produtora de cultura e de arte.

15 SOUZA, Márcio. O brasileiro voador. RJ, Marco zero, 1986. p. 255 16 BRAYNER, et alii (1986) p. 5

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Mário de Andrade radicalizou o processo de busca da identidade nacional,

quando empreendeu exaustivas pesquisas sobre o folclore, sobre os falares, sobre os

costumes dos brasileiros. Afirmou que o português que exprimisse brasilidade tinha de

ser a língua literária da prática moderna.

Oswald, põe meio do Manifesto Pau-Brasil, entre outros, o desejo de uma língua

sem arcaísmos, coloquial, “natural e neológica”, rica da “milionária contribuição de

todos os erros.” 18

Fica claramente definida a idéia de língua como produto de cultura: expressão

maior de um proceder de um povo, do ser cidadão, do cultivar uma pátria.

3.2 – Oswald: um semeador

muito mais que um escritor, Oswald foi um teórico da modernidade; com suas

viagens a Europa, suas leituras extremamente atualizadas e sobretudo seu agudo senso

crítico, Oswald de Andrade recolheu um enorme inventário de novas propostas que

serviram como orientação imprescindível ao processo ficcional moderno.

Oswald publicou diversos manifestos entre outros escritos, mas foi em

Memórias sentimentais de João Miramar que o escritor reuniu seus postulados

modernistas; o experimentalismo artístico tinha que sair do âmbito dos manifestos e

discursos. Era necessário surgir a obra de arte moderna: o romance do novecentos

brasileiro.

Teve Oswald. Obviamente, a intenção de escrever um romance onde a nova

estética se pronunciasse concretamente, mas o caráter experimental de Miramar não

subtraiu a beleza da escritura. É fato que Memórias sentimentais constitui uma leitura

17 TATIT, Luiz. In: encarte do disco Rumo. SP, Independente, 1982

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dificílima, cheia de hermetismos, quase criptográfica, mas é imperioso perceber que a

reação a memorialística do século XIX, muito completa, muito pormenorizada, foi

determinante para a criação de uma literatura mais pessoal, mais preocupada com a

seleção dos dados, não com a apresentação impune destes.

Torna-se inevitável concluir que o contributo de Oswald de Andrade foi

caríssimo aos autores que se inscreveram na nova estética, que Miramar copila tudo

aquilo que o modernismo elegeu como matéria-prima, como meta do novo estilo das

letras brasileiras.

3.3 – Mário: sementes para cultivar

Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos. Que me importa ser louvado em 1985?

Mário de Andrade Extremamente preocupado em proteger o patrimônio cultural do Brasil, Mário

de Andrade estréia no modernismo com Paulicéia desvairada – poesia que vai

representar o experimentalismo marioandradino, como também introduzir o que estava

em voga, do ponto de vista estético, na literatura brasileira.

Mário visava a forma, a expressão pertinente ao ideário dos modernos. Queria

ele revisar, recriar, atualizar a inteligência brasileira tão pasteurizada nos estilos de

épocas precedentes.

O nacionalismo tinha de ser universal; sem popularismos simplórios, mas com

uma vasta contribuição do somatório do que é culto e do que é popular: o Brasil ligado

18 ANDRADE, O. de. BRITO, M. S. (1970) p. 23

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por uma filosofia artística que atendesse a todos os segmentos nacionais – sem

privilegiar esta ou aquela facção sócio-regional.

Mário estava sempre inovando, sempre se auto-criticando para não cair no

estacionário conforto em que muitos revolucionários artísticos se deixaram cair por

vaidade exagerada. Não. Mário não visava à posteridade, visava ao resultado do seu

trabalho, bem entendido e bem assimilado, que faria da arte brasileira uma arte genuína,

sincera, múltipla.

Mário, do ponto de vista literário, foi il meglior fabro – lembrando o que disse

Dante sobre Arnaud Daniel -, e com relação a escritores de outras épocas parece ser este

o momento de comentar a influência de Machado de Assis sobre os modernistas. É, de

fato curioso que artistas de reação como Mário e como Oswald tenham se abeberado em

fontes machadianas para suas produções, mas Machado era, na sua época, um inovador.

Um ousado pesquisador de formas e conteúdo que tão bem se evidenciaram numa

literatura caracterizada pela interferência do narrador na narrativa, pelo uso da ironia,

pela secção de capítulos e pela paródia.

Assim como Quixote preservou do fogo o Amadis de Gaula, os modernistas não

incineraram Machado de Assis. Na verdade, reavivaram a chama eterna do magistral

talento daquele que na sua Cartomante nos fala de vulgaridades sublimes, dignas de

literatura.

3.4 – Macunaíma & Miramar

As obras de Mário e de Oswald foram, sem dúvida, instrumentos de implantação

do romance modernista do Brasil. Em alguns pontos de experiências de Macunaíma e de

Miramar se completaram.

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Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, transborda o fusionismo cultural de

um povo que tem vários místicos e rituais.

Caso se pudesse estabelecer a estrutura de Macunaíma de maneira breve e

bastante incompleta, tratar-se-ia da história de um índio que nasce preto na selva

brasileira e, com o auxílio de forças (sobre) naturais, vive sua vida de maneira lerda e

preguiçosa; após um arrebatador romance com Ci, a mãe do mato, recebe da amante um

talismã. A muiraquitã se perde pela narrativa e vai parar nas mãos de um gigante

estrangeiro. Macunaíma persegue por todo o exótico cenário do Brasil a sua Muiraquitã

e sabendo-a em São Paulo desce um rio, no percurso vira branco, e vai para capital

paulista achar seu talismã.

Entre peripécias, sincretismo religioso, situações fantásticas e muito humor, o

herói consegue resgatar a sua pedra e volta para a terra original. Lá, Macunaíma não

morre; como se espera de qualquer herói, o índio ira uma constelação.

Macunaíma, porém, não é só isso. Esta obra é o coroamento da busca de uma

identidade nacional, é a consagração da língua brasileira que Mário de Andrade tanto

perseguiu.

Seus segmentos estão cheios de regionalismos escritos com o vultuoso auxílio

do léxico tupi. É o livro de Mário um grande repositório folclórico brasileiro; tudo

misturado, tudo mesclado com o intuito de fazer um mosaico mitológico para o Brasil.

Em se tratando de Memórias sentimentais de João Miramar, obra memorialística

que apresenta a Intertextualidade entre a vida e a obra de Oswald, a experiência

modernista é bem representada. Datado de 1924, quatro anos antes de Macunaíma,

portanto, Miramar é uma narrativa elíptica, veloz e paródica.

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A paródia, elemento comum às duas obras em questão, é o recurso estilístico

preferido dos modernos e Oswald de Andrade o utiliza sem cerimônias nas suas

Memórias.

O referido livro de Oswald traça a trajetória de um homem no início do século

vista de acordo com a experiência do protagonista; na medida em que a idade de João

Miramar vai avançando, muda, ou ainda, desloca-se a linha de visão do texto.

A narrativa é visual e auditiva. Utiliza-se de imagens e sons grafados que

reportam o leitor a uma estância sinestésica.

Um grande e complexo telegrama que se pretende antes de tudo a dar vasão a

“memórias reprimidas”, “a resíduos psíquicos” 20

Fragmentário e humorístico, Miramar expressa o alter-ego de Oswald, e a

própria proposta do livro é uma paródia do memorialismo, do nostálgico do fim dos

oitocentos. Reação é mesmo a palavra de ordem para Oswald.

Visto esse belíssimo panorama das duas obras estudadas pode-se perceber que

ambas significam verdadeiras bíblias modernistas, e, principalmente, têm consonância

na proposta linguística e na abordagem dos temas eleitos: contundente, direta, sem

preocupação aparente com a logicidade da cadeia narrativa.

A própria questão do sexo – assunto predileto dos últimos anos – é tratada nas

duas obras de maneira sui generis: para Macunaíma sexo é brinquedo; para Miramar, é

natural, biológico, lúdico também. A maternidade é para ambos assunto abordado de

forma rápida e descomprometida; os protagonistas são cidadãos do mundo; sem

atavismos, sem raízes sufocantemente edipianas.

20 HELENA, (1985) p. 127

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Estão cuidadosamente revistos em Macunaíma e Miramar os aspectos

religiosos, morais, familiares e linguageiros do Brasil dos primeiros decênios do século

XX.

3.5 – Miramar Vs. Macunaíma Os dois romances se contrastam principalmente na forma. Como já foi dito,

Miramar é escrito em fragmentos, em pequenas partes coladas e dispostas com aparente

displicência. Já Macunaíma se parece mais com um romance; ainda que, como

Miramar, o livro de Mário destrua a pontuação e a sintaxe convencionais e crie muito

no campo da semântica, novas formas, ele conserva uma seqüência mais transparente de

fatos.

Há também a opção pelo fantástico, pelo mitológico no caso de Mário que

esbarra na “realidade” cotidiana retratada por Oswald.

Parece oportuno supor, embora seja bastante perigoso, que Memórias

sentimentais tem uma maior preocupação em veicular a nova ordem estética;

Macunaíma parece ter fluído da pena de Mário com mais espontaneidade, com mais

segurança do que Miramar. Na verdade, ousa-se postular que Miramar é uma obra-

referência e Macunaíma, uma obra de arte.

Está claro que ambos os escritores eram detentores de talento incontestável, mas

atendendo até a um critério cronológico, Miramar parece ser o ensaio e Macunaíma, o

livro.

De todo modo, as duas obras são a instauração da ficção modernista brasileira.

Juntos ou opostos, complementares ou díspares, os dois romances constituem a pedra de

toque de uma inovadora e inusitada prática literária no Brasil.

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ECOS 4.1 – As reações acadêmicas – uma elite escandalizada Como era de se esperar, o resultado dos movimentos de não foram bem aceitos

pelos academicistas que não aprovaram esta alucinada interrogação da problemática

brasileira.

A elite que viabilizou a Semana de Arte Moderna e que vaiou os artistas no

Teatro Municipal não se conformou com a tematização das “sublimes vulgaridades” por

parte da intelectualidade.

Mas é sempre bom lembrar que os membros deste movimento eram todos, ou na

sua grande maioria, oriundos dessa elite: filhos diretos de seus sobrenomes e filhos

diletos de suas contas bancárias.

Quanto aos acadêmicos, não demorou muito para que estes se adaptassem à nova

estética; não havia outro jeito: ou sucumbiam, ou passariam à História como “sapos

tanoeiros” – “aguados”.

4.2 – O povo do Brasil: falado, porém, surdo Deve ficar claro que a arte modernista esteve presa ao papel e fechada em salões

elitizados. O povo brasileiro não tomou conhecimento de todas aquelas mudanças

propostas pelos modernistas.

A música popular bem ilustra esta situação, pois não há registro de composições

populares que sequer mencionem o movimento. O cancioneiro popular dos anos vinte

estava nas mãos de Donga, Noel Rosa, Sinhô e Ismael Silva.

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Os teóricos do modernismo pouco aludiram em seus ensaios à MPB; Mário de

Andrade foi quem mais se aproximou da canção popular em seus compêndios

folclóricos. Assim, as dificílimas e rebuscadas estruturas de catulo da Paixão Cearense

continuavam a emocionar as pessoas de então.

Affonso Romano de Sant´anna acredita que Noel Rosa se utilizou da paródia

para suas composições e que isto estabeleceria um elo entre a teoria modernista e a

prática da canção popular. Ora, Noel era um homem de seu tempo, um observador

implacável do cotidiano, um crítico acutérrimo do seu em-torno; pode ser que, por este

ponto de vista, tenha havido alguma aproximação, mas se esta se deu, foi meramente

coincidência.

Embora Noel e Mário fossem companheiros de mesa na taberna da Glória, no

Rio de Janeiro21, e que fossem iguais no sorver dos vapores etílicos da boemia, seu

contato não passou do sócio-noturno. Não houve portanto, nenhuma influência de

nenhuma das partes sobre qualquer um dos dois.

O povo brasileiro foi tema passivo no processo da modernidade.

4.3 – Contribuição indelével

A despeito da vontade de Mário, ele e Oswald vieram para ficar. Suas obras, de

forma geral, revolucionaram o mundo das letras e abriram caminho para toda uma

geração de escritores.

21 Informação obtida em programa da TVE / FUNTEVÊ, numa entrevista que a cantora Aracy de Almeida concedeu a Hermínio Belo de Carvalho em outubro de 1986, reprisada em maio próximo-passado.

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Macunaíma e Miramar, antes de qualquer coisa, possibilitaram uma prática

literária baseada na liberdade vigiada das palavras; o termo vigiadas se refere

principalmente a não vulgarização da linguagem literária, ao não abuso de erros de

língua e de depredação sintática: é preciso errar sabendo o certo; é o que Mário pensava,

em síntese.

Tudo é tema, todos os estilos são válidos, todas as abordagens são possíveis –

Mário e Oswald diriam, com certeza.

CONCLUSÃO Em última análise, este estudo tratou de uma literatura de elite, de uma prática

artística inspirada nos pressupostos vanguardistas europeus visando a instauração da

brasilidade.

Talvez coubesse nessa conclusão citar o destino histórico de alguns dos nomes

que fixaram a arte moderna no Brasil: as telas de Malfatti, Tarcila e Portinari valem

fortunas no mercado de arte; o, agora, octogenário poeta Drummond foi em 86 vitorioso

tema de uma escola de samba, como também o foram Macunaíma e Jorge de lima;

Oswald ganhou, há alguns anos, uma leitura do pessoal do cabaré, no teatro batizado

com o nome de outro festejado modernista – Villa Lobos – e dirigido por Buza Ferraz,

quem, por sinal, adaptou Serafim Ponte Grande para esta montagem e que resolveu

amalgamar o texto de Memórias sentimentais e do referido Serafim.

Poder-se-ia dizer que o movimento tropicalista da MPB, nos anos 60 / 70, teve

suas bases na antropofagia de Oswald, que a poesia concreta seguiu o caminho

inaugurado por Mário e por Oswald.

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Por tudo isso, há em toda esta movimentação do início do século XX um certo

aroma de inautenticidade; ideológica e praticamente, o modernismo forçou a entrada do

Brasil no novecentos via Europa. Mas tudo não passa de aroma. O fascinante

movimento legou aos brasileiros uma autonomia artística essencial; no bojo da

revolução modernista estava o Brasil e este Brasil rescrito por Mário e por Oswald

conquistou sua maturidade cultural, ou pelo menos acendeu o estopim da caracterização

da identidade nacional.

É evidente que Macunaíma e Miramar, enquanto binômio significativo da

modernidade, não resolveram efetivamente a problemática da descaracterização cultural

do Brasil. O povo brasileiro ainda pousa seus olhos cobiçosos nas coisas do estrangeiro,

mas não restam dúvidas sobre a importância da inauguração que os Andrades

promoveram. Restam sim, lamentos pelo que não foi devidamente compreendido; faz-se

referência a algumas práticas de literatura que sucederam àqueles dias de mudança –

alguns autores, baseados no legado de Oswald e Mário, produziram e produzem textos

ininteligíveis e de qualidade duvidosa.

Finalizando, foi a partir de Macunaíma e de Miramar que se radicalizou a

perplexidade do homem diante das sensações. Ali começou o que se pode nomear de

sinestesia anestesiada – bem atual, bem moderna.

O Brasil e os demais países de língua portuguesa devem seguir o exemplo de

nossos mestres Oswald e Mario de Andrade que romperam barreira e deram o primeiro

passo de uma importante caminhada, e estabelecer políticas de formação e difusão da

literatura e do idioma. Uma política que preveja a formação de professores de

português, a elaboração e a avaliação de materiais didáticos sobre o ensino de literatura

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e o intercâmbio de experiências pedagógicas. Para que tenhamos uma oportunidade de

refletir, trocar experiências e informações e definir ações que valorizem a literatura e o

idioma.

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