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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta CRISTIANE BACHIEGA YAMAMURA Orientador: Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística SÃO PAULO 2014

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

CRISTIANE BACHIEGA YAMAMURA

Orientador: Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística

SÃO PAULO 2014

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

NXXXp

Yamamura, Cristiane Bachiega

O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta / Cristiane Bachiega Yamamura. - São Paulo; SP: [s.n], 2014.

118 p. : il. ; 30 cm.

Orientador: Guaraciaba Micheletti.

Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul.

1. Discurso (análise) 2. Ironia - Literatura 3. Estilo 4. Ariano Suassuna 1927-2014 I. Micheletti, Guaraciaba. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: XX.XXX:XXX(XXX.X)

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

Cristiane Bachiega Yamamura Dissertação de mestrado defendida e aprovada pela Banca Examinadora em 19/12/2014.

BANCA EXAMINADORA: Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti Universidade Cruzeiro do Sul Presidente Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Tinoco Cabral Universidade Cruzeiro do Sul Prof.ª Dr.ª Maria Inês Batista Campos Universidade de São Paulo

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Àquele que, já imortal, se faz presente em cada um de meus dias: Ariano Vilar Suassuna.

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AGRADECIMENTOS

À Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti pela orientação, compreensão e incentivo dispensado ao desenvolvimento deste trabalho, mas principalmente por me apresentar a obra de Ariano Suassuna, sobre a qual pude me debruçar e me apaixonar.

A todos os docentes que fizeram parte dessa minha conquista, em especial às componentes de minha banca, Prof.ª Dr.ª Maria Inês Batista Campos (USP) e Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL).

À minha amada amiga e parceira de trabalho para todas as horas, Flaviana Botta Giachini, por todo o incentivo dispensado desde meu ingresso na Secretaria Municipal de Educação de Caraguatatuba.

À Prefeitura Municipal de Caraguatatuba que, por meio do Programa de Concessão de Bolsas de Estudo, oportunizou a mim a realização de um sonho de longa data.

À minha mãe Almerí Leite Bachiega pelo interesse e leitura de meus escritos todos e pela dedicação à minha pessoa, ainda que estando longe.

Ao meu pai Sergio Yamamura pela paciência e dedicação ao se preocupar e cuidar de minha saúde estando sempre por perto.

Ao meu irmão caçula Leonardo Alderí Bachiega Rios pela contribuição intelectual em nossas discussões histórico-literárias.

À minha irmã Lívia Bachiega Yamamura Catarina e também ao seu esposo Ricardo Parra Catarina por todo o auxílio dispensado.

ESPECIALMENTE ao meu sobrinho, Heitor Yamamura Catarina, que, com seus juvenis olhares de quatro meses de vida, já preenche minha alma de alegria.

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YAMAMURA, C. B. O DISCURSO IRÔNICO NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA. 118 F. DISSERTAÇÃO (MESTRADO EM LINGUÍSTICA) - UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL. SÃO PAULO, 2014.

RESUMO

A presente dissertação, intitulada “O discurso irônico no Romance d’A Pedra do

Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna”, tem por

objetivo analisar os aspectos linguístico-estilísticos do referido Romance, em

especial, os traços irônicos. Para tanto, inserido na linha de pesquisa “Estudos

estilísticos: discurso, gramática e estilo”, e sob a perspectiva dos estudos de

Nilce Sant’Anna Martins, dentre outros, nosso trabalho procura reconhecer,

também, de que maneira as escolhas linguísticas consequentes do estilo

suassuniano colaboram na construção do discurso irônico na obra. O estudo da

ironia terá como base, sobretudo, as pesquisas de Beth Brait em consonância

com as perspectivas atuais provenientes do legado do Círculo de Bakhtin.

Desse modo, as análises dar-se-ão a partir de um critério de seleção dos

trechos extraídos do romance. Esses trechos provêm de quatro eixos

norteadores: 1º) Quaderna e seu discurso de apelo realizado por meio do

vocativo; 2º) A ironia de Quaderna para com as obras clássicas e instituições

literárias e filosóficas; 3º) A ironia de Quaderna para com demais instituições;

4º) Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista.

Palavras-chave: Ironia, escolhas linguísticas, estilo.

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YAMAMURA, C. B. THE IRONIC SPEECH IN THE ROMANCE OF THE STONE OF THE KINGDOM AND THE PRINCE OF COMING-AND-GOING BLOOD. 118 F. DISSERTAÇÃO (MESTRADO EM LINGUÍSTICA) - UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL. SÃO PAULO, 2014.

ABSTRACT

This dissertation entitled "The ironic speech in the Romance of The Stone of the

Kingdom and the Prince of Coming-and-Going Blood, by Ariano Suassuna”,

aims to analyze the linguistic and stylistic aspects of the quoted novel, in

particular, ironic traits. And so, inserted into the line of research "stylistic

studies: speech, grammar and style," and from the perspective of Nilce

Sant'Anna Martins studies, among others, our work also seeks to recognize

how the linguistic choices, consequence of the suassuniano style, collaborate in

the construction of ironic speech in the novel. The study of the irony will use as

a base, above all, the researches done by Beth Brait in line with the current

perspectives from the legacy of the Bakhtin Circle. Thus, the analysis will be

announced from a selection criterion of excerpts taken from the novel. These

excerpts are from four guiding principles: 1) Quaderna and his appeal speech

made through the vocative; 2) The Quaderna's irony towards the classical

works and literary and philosophical institutions; 3) The Quaderna's irony

towards other institutions; 4) Quaderna versus Judge Magistrate and the irony

experienced by the protagonist.

Keywords: Irony, linguistic choices, style.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................10

CAPÍTULO 1 1 SUASSUNA E A CULTURA POPULAR ...............................................20 1.1 A relevância da Cultura Popular Sertaneja na composição da

literatura suassuniana presente no RPR............................................23 1.1.1 A divisão do romance em folhetos.................................................25

1.1.2 As ilustrações imitando as xilogravuras.........................................31

1.2 As escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo suassuniano.....................................................32

CAPÍTULO 2 2 A IRONIA..............................................................................................37 2.1 O recurso da ironia: breves considerações.......................................37 2.2 A ironia presente no RP........................................................................45

CAPÍTULO 3 3 IRONIA, LÉXICO E ESTILO SUASSUNIANO NO RPR........................50 3.1 Quaderna e seu discurso irônico de apelo realizado por meio do

vocativo..................................................................................................53 3.2 A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições

literárias e filosóficas............................................................................68 3.2.1 O debate acerca da figura de Homero...........................................84

3.2.2 O debate acerca da Filosofia Clementina do Penetral (Tratado de

Filosofia do Penetral)..............................................................................85

3.2.3 O debate acerca do gênero Epopeia.............................................90

3.3 A ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”...........................................................................................92 3.3.1 O "Duelo" e a ironia no discurso do Lº...........................................93

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3.3.2 A "Vida Casta" e a ironia nos discursos de Quaderna Narrador e

Quaderna Personagem...........................................................................96

3.3.3 A "Monarquia", a "Igreja (Católica)" e a ironia no discurso de

Quaderna Personagem...........................................................................98

3.3.4 A "Língua Portuguesa" e a ironia nos discursos dos personagens

Quaderna e Juiz-Corregedor.................................................................100 3.4 Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo

protagonista.........................................................................................105 3.4.1 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de

colocações exclamativas (Fragmentos 16 e 17)...................................106

3.4.2 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de

colocação interrogativa (Fragmento 18)................................................107

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................109

REFERÊNCIAS...........................................................................................115

ANEXOS.......................................................................................................118

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INTRODUÇÃO

A literatura concentra, converte, encontra possibilidades expressionais presentes na língua em todas as suas variedades escritas e orais. Além disso, explora possibilidades expressionais potenciais e seus efeitos. Retira da cartola em seu espetáculo mágico usos possíveis, mas nunca utilizados. Por essa característica, foi sempre campo de colheita farta para os estudos linguísticos. (TRAVAGLIA, In BRAIT, 2013, p.36)

Esta pesquisa propõe uma investigação do universo irônico no qual se

encontra envolvida a narrativa do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do

Sangue do Vai-e-Volta (RPR), do escritor paraibano Ariano Vilar Suassuna

(1927-2014). Sob a perspectiva dos estudos linguístico-estilísticos, optamos

por tratar deste fenômeno, focalizando, particularmente, as escolhas

linguísticas de seu criador. E, para tanto, determinados trechos da história

foram compondo o corpus deste trabalho, na medida em que fomos

identificando as palavras, expressões e sintagmas que revelam a comunhão

entre a ironia e o estilo suassuniano no decorrer dos discursos presentes na

narrativa. E vale adiantar que – ainda que ora mais nítida, ora menos nítida –, o

maior destaque da ironia em associação ao estilo suassuniano se encontra no

discurso de Quaderna, seu herói protagonista e narrador-personagem.

Publicado pela primeira vez em 1971, o RPR1 revela um universo

popular inspirado na cultura específica da região do Cariri2 – representada

nesta obra ficcional pelo município paraibano de Taperoá3, cidade-natal do

escritor. E, para que vivesse grandiloquentes aventuras por este local,

Suassuna cria o personagem Quaderna que se constrói a partir de uma crítica

proveniente de um viés irônico. Com a intenção em refletir sobre as mazelas

dessa região, e sendo a cidade paraibana de Taperoá como um microcosmo

1 A partir desta página, por inúmeras vezes, o nome da obra Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta será substituído pela abreviação RPR. 2 Sertão do Cariri é a denominação dada às terras onde viviam os índios kariris, no Ceará e Paraíba. (Fonte: disponível em http://www.almanaquebrasil.com.br/curiosidades-cultura/7166-muito-alem-do-sertao.html) 3 O município de Taperoá encontra-se no Planalto da Borborema, na parte central do Estado da Paraíba. Faz parte da Mesorregião da Borborema e da Microrregião do Cariri Ocidental. (Fonte: disponível em http://www.taperoa.pb.gov.br/a_cidade/historia)

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do Brasil (TAVARES, 2007, p.178) dentro da referida ficção, atentar-nos-emos

ao olhar crítico e irônico de Suassuna, o qual se revela um olhar preocupado

com a beleza, o mistério e as contradições desse local, de modo a revê-lo.

Por esta razão, embora o Sertão já tenha sido anteriormente tratado em

obras da Literatura Brasileira, publicadas por escritores tais como os

modernistas e pré-modernistas – dentre os quais se podem destacar: Euclides

da Cunha (1866-1909), Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rêgo

(1901-1957), João Guimarães Rosa (1908-1967) e João Cabral de Melo Neto

(1920-1999) –, em Suassuna este cenário, Sertão, se dá diferente de tudo que

já havia sido feito, sobretudo em se considerando sua inovação na confluência

dos gêneros, bem como no que tange à maneira irônica de exploração do

“grotesco” da miséria sertaneja. Salientamos, pois, que:

[...] é uma ilusão crer que a obra tem uma existência independente. Ela aparece em um universo literário povoado pelas obras já existentes e é aí que ela se integra. Cada obra de arte entra em relações complexas com as obras do passado que formam, segundo as épocas, diferentes hierarquias. (TODOROV In: BARTHES et al [1981] 2011, p.220)

E, em relação a essa estrutura narrativa, Suassuna proporciona uma

nova alternativa de composição do Romance, concebendo a mescla de vários

gêneros. Segundo a escritora Rachel de Queiroz, que assina o prefácio do

RPR quando de seu lançamento em 1971:

Mas se o hábito da rotulagem faz a gente insistir na tentativa de situar o livro dentro de um gênero - pois que então fique como romance [...]. Contudo, também poderia ele ser uma Crônica - no sentido de que relata casos supostamente históricos, guerras e armadilhas e elevação e trucidamento de reis, rainhas e princesas. Mas também é profecia e doutrinação, também é romance de cavalaria e conto fantástico - e romance erótico, por que não o erotismo seco, reduzido aos essenciais, uma espécie de erótico sem luxúria, esfolado e ríspido. É profético, porque passa por ele todo um sopro religioso, partindo embora de boca maldita - mas nunca chega a ser demoníaco. (In SUASSUNA, 2012, p.15)

Quem sabe motivados por essa inovação proporcionada pelo estilo

suassuniano é que estudiosos vêm se dedicando às análises de sua obra

desde o seu aparecimento. Por meio dessa maneira de trato à temática

sertaneja, e de uma linguagem revolucionária, Ariano Suassuna – que, a partir

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de 1990, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras ocupando a

cadeira de nº 32 – é, hoje, reconhecido como um dos grandes nomes de nossa

literatura contemporânea.

Atualmente há um número considerável de críticos e pesquisadores que

estudam sua obra como um todo, e um bom exemplo dessa dedicação ao tema

“Ariano Suassuna” vem do trabalho realizado por Idelette R. Muzart F. dos

Santos, que pelo menos desde 1973 analisa o teatro e a literatura deste

escritor assim como suas relações com a cultura popular. Tratando da

construção de uma obra multifacetada suassuniana, no livro Em demanda da

poética popular, publicado em 1999, I. Santos declara que:

Num feixe semântico concorrente e, às vezes, contraditório, popular designa o que vem do povo, o que é relativo ao povo, o que é feito para o povo e, finalmente, o que é amado pelo povo. Pertence, portanto, a um discurso sobre o povo [...]. (p.14)

Especificamente voltados para os estudos do RPR, apontam-se nomes

do meio acadêmico, tais como: Guaraciaba Micheletti, Sônia Sueli Berti Santos

e Braulio Tavares. Este se dedica não apenas ao RPR, mas a toda a obra de

Ariano Suassuna, publicando em 2007 o livro ABC de Suassuna; é também

autor do texto de orelha que acompanha o RPR conforme a republicação

deste, mais de vinte anos depois de sua 1ª edição. S. Santos – que, além de

pesquisadora na área de Linguística, é artista plástica e estudiosa da linha

semiológica – realizou um estudo acerca das ilustrações de Suassuna

presentes no RPR, enfatizando a arte e a representação contida em sua capa.

Micheletti, por sua vez, tratou dessa narrativa pouco mais de dez anos após a

sua primeira publicação, de acordo com a dissertação de mestrado defendida

por ela, cujo tema “Ariano Suassuna e o romance nordestino” deu origem, em

1997, ao ensaio Na confluência das formas – O discurso polifônico de

Quaderna/Suassuna que diz:

Fruto de uma vivência geográfica, social e política, a Pedra do Reino chega a confundir-se com a história pessoal de seu autor; o depoimento de Quaderna ao Corregedor transforma-se no depoimento-denúncia do sertanejo Ariano Suassuna à nação brasileira. (p.13)

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e desde então, Micheletti reserva um espaço em seus estudos para envolver-

se nas análises do RPR, desenvolvendo e organizando outras publicações de

referência, sobretudo para pesquisadores da obra desse enigmático escritor.

Não podemos ignorar, no entanto, que o RPR foi primeiramente

estudado por pesquisadores estrangeiros, como, por exemplo, a romancista

alemã R-G Mertin que escreveu a tese Romance da Pedra do Reino, em 1979.

Já nas duas últimas décadas, Suassuna teve sua obra divulgada pela televisão

e, desse modo, começou a despertar maior interesse entre leitores e

pesquisadores.

* * *

O mundo suassuniano tem uma particularidade geográfica: sua capital literária é Taperoá, uma pequena cidade dos Cariris Velhos, no sertão da Paraíba, que ultrapassava apenas os 12 mil habitantes no censo de 1975. Taperoá foi o espaço da infância de Suassuna: ali viveu dos 6 aos 14 anos, ali estudou, descobriu a caça nas fazendas dos arredores, pertencentes a parentes ou amigos, entre as quais a Fazenda Malhada da Onça que se torna, no RPR, “Onça Malhada”. (SANTOS, 1999, p. 72)

Tendo sempre vivido no circuito Paraíba-Pernambuco, Ariano Suassuna

elabora muito naturalmente uma releitura do ambiente sertanejo, bem como

considera sua experiência de vida para com essa região. O criador do

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta soma o

legado cultural mouro-ibérico de nossos colonizadores portugueses às mazelas

sociais, ao mesmo tempo em que amplia a reflexão linguístico-social. A

paisagem nordestina é o pano de fundo na proposição de tal reflexão, a qual

era pouco – ou quase nada – proporcionada pelos romances brasileiros, até

então; uma vez que era ofertada apenas por meio da literatura de cordel. Assim

sendo, vale lembrar que o gênero literatura de cordel, ou folheto, trazido da

“metrópole” Portugal, vem tratando, legitimamente, desta paisagem sertaneja e

de sua respectiva linguagem.

Portanto, por intermédio da valorização da cultura popular nordestina

expressa pelas produções artísticas – dentre elas o Cordel –, é que Suassuna

pôde compilar suas ideias criando junto com outros artistas nordestinos o

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Movimento Armorial, um ano antes da publicação do RPR. Segundo passagem

do livro de mesmo nome (Movimento Armorial),

O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o nome ‘armorial’ para denominá-lo. Acontece que, sendo ‘armorial’ o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que desejávamos ligar-nos a essas raízes da Cultura popular brasileira. (SUASSUNA apud MICHELETTI, 1997, p.131)

Com a imensa possibilidade de tratar da riqueza do universo popular, e

com base no aludido movimento, Suassuna exibe o RPR em folhetos de cordel

compostos de ilustrações por ele mesmo produzidas, que acompanham

algumas passagens da narrativa que é composta de 754 páginas. Nessa

ficção, ao unir a Cultura Brasileira à Cultura Clássica, o autor cria e dá voz a

um personagem original e extraordinariamente inventado: Pedro Dinis Ferreira-

Quaderna, que é o narrador protagonista, cuja história se passa durante seu

depoimento prestado ao Juiz-Corregedor (e à Dona Margarida Torres Martins –

escrivã do tribunal), devido à acusação de que seria um conspirador contra as

autoridades daquele local. E devemos salientar, aqui, que em sua narrativa,

Quaderna “passeia” por toda a literatura ocidental.

O enredo se inicia em 09 de outubro de 1938, quando Quaderna se vê

na prisão de Taperoá e, diante da necessidade de sua defesa, é, a partir de

então, que se declara o Rei do Brasil e o sagrado “gênio da raça brasileira”.

Quaderna passa então a escrever ou reescrever histórias reais, histórias fictícias, poemas de autores eruditos, versos de cordel, romances ibéricos, documentos históricos, textos proféticos, visões sobrenaturais, epigramas, anedotas fesceninas. Seu delirante projeto literário requer uma antropofagia de todos os gêneros [...]. (TAVARES, 2007, p.152)

Podendo ser identificado como o reflexo de um povo na busca de sua

identidade, o protagonista Quaderna se utiliza do início de seu depoimento ao

Juiz-Corregedor, para discursar acerca de seus antepassados, retomando as

histórias vividas por ele mesmo e/ou por seus ascendentes. Com base em um

discurso clássico-filosófico mesclado a uma linguagem peculiar do Sertão, eis

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que, para se defender, inicialmente, recupera a história de seus descendentes

relativa a quatro impérios desta região, remontando à Primeira notícia dos

Quaderna. Nesse sentido, inclui-se a história de “Dom Ferreira-Quaderna, o

execrável” que, terrivelmente, sacrificou parte de seu povo, conforme

degolamento público que ocorria no local denominado de “Pedra do Reino”.

Assim sendo, tem-se que o criador do RPR – Suassuna – apresenta a

crença de um povo no mito sebastianista e dá voz à sua principal criatura –

Quaderna –, a fim de que ela se utilize de um discurso que possua passagens

reais de nossa História e que, recorrendo a uma caracterização do

fundamentalismo messiânico típico da região sertaneja, faça referência ao

massacre que se deu em 1838, em São José do Belmonte. Geograficamente

localizado na fronteira da Paraíba com Pernambuco, o local denominado Pedra

Bonita (Pedra do Reino, no RPR) fica na parte do Sertão, conhecida por Pajeú,

sendo palco da morte de 89 pessoas (grupo de 59 adultos e 30 crianças)

durante o período de 14 a 18 de maio daquele ano (1838), em atendimento às

ordens de fazendeiros – entre outras “forças” locais –, os quais motivavam seu

povo a acreditar que, mediante tais sacrifícios, trariam de volta o reinado de

Dom Sebastião4.

É, pois, o messianismo, um assunto recorrente na temática sertaneja e

que, em consequência, não poderia faltar ao RPR a preocupação de Suassuna

com a caracterização típica desse local, que se quer revelar através da tradição

de um povo. Há que se considerar, desta forma, que no RPR, a simbologia da

“Pedra do Reino” possui imensa relevância, sobretudo como sendo o local

onde Quaderna se pretende (auto)coroar como “rei” de um novo império, a

partir de uma sagração “paródica” que, segundo sua própria opinião, se faz

justa e consequente por ser, ele, herdeiro de uma tradição “castanha”. Em se

tratando dessa sua forte presença, a “Pedra do Reino” compõe desde o título

escrito e a ilustração da obra – observados na capa da primeira edição e

4 Séculos depois do desaparecimento do rei de Portugal, Dom Sebastião, e de iniciado o mito sebastianista, o movimento místico acontece no sertão nordestino, onde surge a seita conhecida como Pedra Bonita, ou Pedra do Reino, liderada por João Antônio que logo foi afastado pelas autoridades locais. No seu lugar, assume João Ferreira, defendendo que, para restaurar o reino, era preciso imolar homens, mulheres e crianças e assim que D. Sebastião voltasse, todos ressuscitariam. A matança começa em 14 de maio de 1838 e depois de três dias o local é totalmente destruído. (Fonte: disponível em http://historitura.wordpress.com/2013/08/26/d-sebastiao-e-o-sebastianismo/)

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também da última –, até os inúmeros momentos em que se é referida durante a

narrativa. Segundo S. Santos:

A gravura da pedra que aparece na capa desta obra, elaborada a partir da fotografia de Vilar, é uma recriação estética do real que apresenta as características das técnicas das xilogravuras encontradas nas obras de Samico, que influenciaram Suassuna. (In: MICHELETTI, 2007, p.117)

Em relação à trajetória do herói-narrador Quaderna, propriamente dita,

após reconstituir as histórias sertanejas de suas famílias, ele dá início ao relato

de seu próprio percurso por aquelas terras, caracterizando-se por ser detentor

de ritos e aventuras. Por meio de uma ardilosa argumentação para conquistar

sua maior batalha daquele momento – que é convencer a todos de sua

inocência –, a narrativa quadernesca impressiona pela fluidez. Por vezes,

entretanto, distancia-se da realidade, caracterizando-se pelos traços irônicos e,

até mesmo, cômicos de seus personagens.

Reiteramos que, neste trabalho, a ironia que se mostra ora com humor,

ora com sarcasmo e ora, ainda, com deboche, por vezes concretizada em uma

linguagem que revela a ideologia e o estilo suassuniano, será nosso principal

foco de análise. Até pelo fato de que a ironia pode, ou não, encerrar-se nela

mesma, tentaremos evidenciar algumas passagens nas quais se identifica a

ironia suassuniana, a fim de analisá-la para além do que foi dito; ou seja, é o

“não-dito” que aqui será apresentado como proposta.

* * *

Faz-se necessário, assim, um levantamento prévio acerca do percurso

histórico frente à abordagem da ironia. E, para tanto, tem-se como base os

estudos de Beth Brait (2008), dentre outros pesquisadores que, tal como ela,

possuem suas concepções em associação às propostas da Análise do

Discurso (AD) e em consonância com o legado proveniente do Círculo de

Bakhtin, cujas pesquisas trataram do interdiscurso e da polifonia – elementos

de que se compõem peças-chave para uma análise do referido fenômeno

(ironia), objeto de análise desta pesquisa.

Já adiantamos que:

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A busca de uma perspectiva discursiva, que surpreendesse a ironia como conjunção de discurso e, mais especificamente, como forma particular de interdiscurso, revelou-se como um caminho no sentido de descrever e interpretar determinados aspectos ligados a fenômenos linguísticos, caracterizados dentro de uma categoria ampla denominada humor e localizada em diferentes tipos de discurso. (BRAIT, 2008, p.13)

À vista disso, considera-se que dois aspectos serão o cerne deste

trabalho. São eles: a maneira com que a ironia vai se construindo por meio da

enunciação, bem como a importância de determinadas escolhas linguístico-

estilísticas realizadas pelo escritor para a obtenção dessa ironia. Há que

salientar, neste momento, que, para a identificação e análise dessas escolhas

serão utilizados, em associação, os estudos propostos especialmente por Nilce

Sant’Anna Martins, Norma Discini, Maria Aparecida Barbosa e Manuel

Rodrigues Lapa. Ressaltamos que para Martins (2008):

Quanto à significação das palavras – assunto de acentuada complexidade – pareceu-nos conveniente aproveitar o que ensina Tatiana Slama-Cazacu, na obra Lenguaje y contexto: existe em cada palavra, tal como na língua, algo que lhe imprime determinada constância e que impede o seu emprego arbitrário. [....] A autora faz uma distinção entre significado e sentido. O significado existe na palavra pertencente ao léxico da língua, é a noção da palavra e contém latências para casos particulares; no mecanismo concreto da comunicação, a noção se individualiza, torna-se mais precisa pela indicação do caso particular, se enriquece, se completa, torna-se o sentido que a palavra adquire para uma certa pessoa que a emprega em uma situação específica, sentido que se amplia mais ainda pelos diversos elementos afetivos. O sentido é, pois, a realidade que aparece na prática da linguagem, como fato complexo e variável; o significado é uma parte necessária e muito importante dele, mas não é a única. O sentido depende dos diversos aspectos da personalidade de cada um e pode variar em diferentes momentos. (p.77)

E, especificamente relacionando o Romance d’A Pedra do Reino e o

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta à ironia, alguns trabalhos fazem menção a

ela, mas não se dedicam com mais profundidade ao tema, o que – de certa

maneira – comprovou-nos a relevância de nossa escolha e consequente

responsabilidade para com as análises propostas. Nesse âmbito, além das

considerações iniciais e finais com as quais abriremos e fecharemos este

trabalho, nossas discussões se darão divididas da seguinte maneira:

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Capítulo 1, “Suassuna e a Cultura Popular”, tentaremos subdividi-lo em

duas subpartes a fim de apontar: 1º) “A “relevância” da Cultura Popular

Sertaneja na composição da literatura suassuniana presente no RPR”; 2º) “As

escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo

suassuniano”.

Capítulo 2, “A Ironia”, será apresentado sob duas subpartes, sendo a

primeira, “O recurso da ironia: breves considerações”, utilizada para se elencar

as concepções de ironia ao longo dos séculos, de modo a apresentar um

percurso da Antiguidade até os dias de hoje; ou seja, a partir das ideias do

filósofo Sócrates – visitado nos escritos de Søren A. Kierkegaard – dar-se-á

início às considerações do fenômeno (ironia), perpassando por outras épocas e

por outras áreas, como a Psicologia, até chegar aos estudos dados em nossa

contemporaneidade, de acordo com as pesquisas de Beth Brait, realizadas no

Brasil, cujas concepções – já dissemos – remetem ao “Círculo de Bakhtin” (e

vale ressaltar, neste momento, que tal percurso norteará as análises a serem

apresentadas no capítulo 3). Em seu livro Ironia em perspectiva polifônica, Brait

esboça que:

[...] uma perspectiva discursiva a respeito de ironia e, não particularmente, da relação existente entre ironia, intertextualidade e interdiscursividade, combinatória escolhida para abordar um ângulo, ao menos, da complexidade do discurso marcado pelo humor e consequentemente pela ambiguidade. (2008, p.22)

Embora não exatamente tratando da ironia, destacam-se, também, os

estudos de Julia Kristeva, os quais foram utilizados nesse trabalho na medida

em que se relacionavam às buscas de nossa pesquisa, uma vez que esta

escritora búlgara se utiliza dos conceitos de Mikhail Bakhtin (1895-1975) –

dentre eles a interdiscursividade –, ao mesmo tempo em que inaugura o uso do

termo intertextualidade na crítica literária.

Aproveitamos para salientar ainda que, quando o panorama do conceito

de ironia estiver mencionando as concepções dadas no campo específico da

Linguística, estudiosos como Dominique Maingueneau – e demais seguidores

da Análise do Discurso de linha francesa – serão mencionados conforme

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algumas citações que serão apresentadas apenas como ilustração da história

desse referido conceito.

E dando sequência ao Capítulo 2, este se encerra com a subparte “A

ironia presente no RPR”.

Capítulo 3, “Ironia e estilo suassuniano no RPR”, finalmente serão

apresentadas as análises, cujas observações de vocábulos e sintagmas

relacionados ao fenômeno ironia serão realizadas especialmente sob a luz dos

estudos estilísticos aliados aos estudos do fenômeno ironia, sempre

considerando que:

A tonalidade emotiva de um grande número de palavras se deve a associações provocadas pela sua origem ou pela variedade linguística a que pertencem. São as palavras de poder evocativo, conforme as classificou Bally. São os estrangeirismos, os arcaísmos, os termos dialetais, os neologismos, as expressões de gíria, os quais não só transmitem um significado, mas também nos remetem a uma época, a um lugar, a um meio social ou cultural. (MARTINS, 2008, p.80)

Em especial no seu capítulo intitulado A Estilística da Enunciação,

Martins (2008) aborda, brevemente, de que maneira se dá o estudo das figuras

retóricas vistas sob o ângulo da enunciação. E, em relação à ironia e demais

figuras, a mesma declara:

A ironia, o paradoxo, o eufemismo, a lítotes, a hipérbole, por exemplo, só são apreendidos pelo receptor se ele atenta para a violação da relação de verdade entre o que o emissor diz literalmente e aquilo de que ele fala. O conhecimento do referente é indispensável para que se compreenda o sentido que se deve atribuir ao enunciado. Na ironia, o sentido oposto ao literal [...]. (2008, p.217)

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CAPÍTULO 1

1 SUASSUNA E A CULTURA POPULAR

Arte popular brasileira existe. E não apenas isto: é vigorosa e autêntica, como provam, entre outras manifestações, as xilogravuras populares do Nordeste. E a Literatura popular brasileira também existe, basta o fato de possuirmos, nos folhetos, o maior e mais variado Romanceiro vivo do mundo, para demonstrar esta minha afirmação. [...] Nós, aqui no Brasil, temos, à mão, um material muito mais vasto, rico e variado do que o Romanceiro ibérico, um material que, se caísse, daqui a dois séculos, na mão de um crítico de sensibilidade, encheria toda a sua vida de estudos [...]. (SUASSUNA, 1969, In SUASSUNA, 2008, p.151)

O trecho acima faz parte de um ensaio publicado aproximadamente sete

anos após Ariano Suassuna escrever um artigo, no Recife, dizendo que o

Movimento de Cultura Popular constituía uma contrafação, pelo menos pelo

que o título indicava. Segundo ele, a Cultura popular é feita pelo Povo, pelo

“quarto Estado”, aqui identificado com os analfabetos ou semi-analfabetos

(Idem, Ibidem, p.156).

Sendo os ensaios críticos publicados em periódicos e jornais uma

atividade frequente do escritor desde muito tempo antes de 1971 (ano de

publicação do RPR), o tratamento ao Sertão e suas peculiaridades, sobretudo

ocorridas na literatura sertanista do Brasil, sempre foi um tema recorrente de

seus escritos crítico-reflexivos como no caso da citação acima. Ou seja, desde

o início de sua carreira de escritor, Suassuna vem priorizando tal tematização

em suas discussões apresentadas em publicações ensaísticas. A exemplo,

temos o ensaio “Encantação de Guimarães Rosa”, no qual se trata das

características geográfico-culturais e literárias:

Barroco do litoral nordestino é menos sóbrio e menos áspero do que o sertanejo, que sempre me pareceu brasileiro e nordestino, porém mais aparentado com a Espanha do que com Portugal. O barroco baiano é menos sóbrio do que o nordestino litorâneo [...]. Já o Barroco mineiro, a meu ver, seria mais aparentado com Portugal do que com o austero e sóbrio espírito espanhol.

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É dentro dessas linhas gerais de pensamento que aproximo João Guimarães Rosa de Euclydes da Cunha. É daí que vêm suas semelhanças, seus parentescos profundos, como também as diferenças que marcam cada um deles dentro da mesma linhagem brasileira e barroca. (SUASSUNA, 1967, Ibidem, p.127)

Por outro lado, caracterizando o “seu Sertão” em comparação com os

“outros sertões”, Suassuna continua:

A mim parece que o Sertão de Minas Gerais é mais parecido com a nossa Zona da Mata do que com o verdadeiro Sertão nordestino. Pelo menos é o que me sugere a paisagem do Grande Sertão: Veredas, cheias de árvores, bosques verdes e rios; [...]. Já o Sertão nordestino, o Cariri, a Espinhara, o Moxotó, o Pajeú, é um deserto pedregoso, povoado de cabras, jumentos, carneiros, répteis e lagartos, carcarás e gaviões, um grande planalto amarelo e castanho, com uma ou outra serra, muito poeira e muito sol. (SUASSUNA, 1967, Ibidem, p.127)

E um pouco mais à frente, ainda no mesmo ensaio, Suassuna discorre

especificamente acerca da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:

A mim, o que mais me entusiasma no Grande Sertão: Veredas é que, sendo tudo isso, dizendo tudo isso, é um grande romance e um grande romance profundamente brasileiro. Uso, de propósito, a palavra romance, que, exatamente por ter muitos significados (desde o rimance em verso medieval até o folheto também em verso do Romanceiro nordestino e a novela em prosa), é a palavra mais apta a expressar a riqueza e profundidade vital dessa grande obra. (Idem, Ibidem, p.134)

* * *

Talvez inspirado pelas leituras que fez dos escritores sertanistas, bem

como indo além de uma apresentação da “cor local” até então realizada pelos

mesmos – cujas obras permearam, ou não, questões sociológicas, além de

descrever o Sertão –, é que Ariano Suassuna parece inovar a partir do

momento em que revela, ao mundo, o “castanho” (a cultura “castanha”) deste

local. Em relação ao tratamento dado ao Sertão nordestino no ensaio Um novo

romance sertanejo, Suassuna afirma que:

O Sertão, com sua terra áspera e sua civilização fechada, com sua Cavalaria do Cangaço vestida de “armaduras de couro”, seus casos de honra e suas rebeliões, sempre exerceu sedução sobre alguns dos melhores espíritos brasileiros do Litoral, dos Engenhos da Zona da Mata e mesmo do Sul do Brasil. (SUASSUNA, 1964, Ibidem, p.75)

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Desse modo Suassuna frequentemente externava suas ideias e

reflexões, as quais antecipavam determinadas rupturas ao que havia sido feito

até então com a temática sertaneja, assim como oportunizaram a ele uma

experiência crítico-escritora que contribuiu para sua maturidade na redação

daquela que seria sua maior obra: o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe

do Sangue do Vai-e-Volta; segundo suas próprias afirmações. Finalmente

publicado em 1971, o RPR se apresenta em uma narrativa que parece

desconstruir a natureza da condição humana, revelando seus dramas; ou seja,

uma obra que ultrapassa os limites de um regionalismo, pois problematiza o

Homem. Parodiando fatos históricos e passagens consagradas da literatura

universal, bem como projetando em seu RPR, mais do que uma paisagem

sertaneja, Suassuna revela um estilo que também se compõe por elementos

oriundos da cultura popular, em especial àqueles relativos à linguagem. Talvez

se pudéssemos dizer que, reescrevendo o Cariri, então, Suassuna divulga, de

certa maneira, a cultura nordestina para além de seus limites geográficos, a fim

de atingir os mais diferentes leitores de todo o Brasil e do mundo.

Por outro lado, devemos salientar que, posterior a 1971 as discussões

apresentadas por ele em sua literatura crítico-ensaística perduraram e

amadureceram ainda mais, fato este que se dá (continua) até o fim de sua vida.

Em trecho de um ensaio publicado seis anos após o lançamento do Romance,

por exemplo, Suassuna ao descrever a maneira com que “enxergava” a arte

sertaneja, ressalta a modo irônico – entre outros – com que as figuras

presentes nas xilogravuras sertanejas se apresentavam diante dele na

condição em transmitir determinadas peculiaridades da tradição regional deste

local. Vejamos:

Depois de muito olhar e comparar, descobri o que caracterizava e realmente singularizava as nossas xilogravuras populares do Nordeste, em meio ao ambiente exausto, repetitivo e esteticista que, vindo de fora, dominava, naquele tempo, o campo da gravura feita no Brasil. E concluí: [...] eram [...] as figuras monstruosas e fortes, reais, por mais estranho que isso possa parecer, exatamente na medida em que saíam da imaginação ao mesmo tempo irônica, mística, satírica e alucinada do povo nordestino [...] e diga-se de passagem que foi por não encontrar no regionalismo e nos romances neonaturalistas deste movimento um ambiente que nos permitisse recriações à altura desse real-mítico, que procuramos outro, através da Movimento Armorial. (SUASSUNA, 1977, Ibidem, p.215)

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E é neste contexto, portanto, que se concebe o Movimento Armorial, fruto de

toda essa visão suassuniana na interpretação do popular regional do Cariri, e o

qual vem sendo sistematizado desde os primórdios de seus escritos. Para

Micheletti, em resumo, o Movimento Armorial busca, numa inspiração

semelhante à do Romantismo, uma síntese de elementos populares e

elementos eruditos que se transforme num modelo nacional de Arte (2007,

p.132).

1.1 A relevância da Cultura Popular Sertaneja na composição da literatura suassuniana presente no RPR

A criação artística alimenta-se da variedade de temas e linguagens que integram uma sociedade, uma cultura, um dado momento histórico, seus diálogos com o passado e com o futuro, procurando dar sentido aos mistérios da existência. (BRAIT, In: BRAIT 2013, p.148)

Ao contrário de ser uma narrativa convencional, com começo, meio e

fim, tal como um romance geral e tradicionalmente se apresenta, o Romance

da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta possui uma narrativa

disforme, desafiando o leitor a desvendá-la. Para Micheletti (1997):

O leitor (ou mesmo o crítico), habituado aos romances tradicionais e às novas narrativas contemporâneas, surpreende-se ao iniciar a leitura d’A Pedra do Reino. Defronta-se com uma história apresentada em folhetos, vinculada à tradição dos romanceiros medievais e segmentada conforme às técnicas do folhetim, espécie de romance pequeno burguês que floresceu na França do século XIX. E a perplexidade se avoluma quando, além desses dois aspectos, surgem outras formas épicas que vão compondo o tecido narrativo. (p.27)

A propósito, a maneira como Suassuna apresenta sua grande obra-

prima – por ele mesmo, assim denominada, visto que se um dia todas as suas

obras fossem destruídas e apenas uma pudesse ser preservada, que fosse o

Romance da Pedra do Reino (TAVARES, 2007, p.149) – inova a literatura

brasileira, sobretudo devido à sua completa ‘navegação’ pelos gêneros

textuais.

Ainda segundo Micheletti, tem-se que:

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As palavras do autor, classificando sua narrativa como “novela”, preferindo chamá-la de “romance” e pretendendo que seja a um tempo epopeia e sátira já lançam o leitor num caldeirão onde fervilham os mais variados ingredientes. Suassuna parece comprazer-se em embaralhar as fôrmas como se estivesse de posse de um baralho propondo um jogo, cujas cartas foram, a priori, por ele marcadas. (1997, p.16)

E, somando-se a tudo isso, incorpora-se um ritmo produzido pelo efeito

da inserção de versos/poemas que compõem uma vasta coletânea que, pouco

a pouco, é apresentada na narrativa do RPR, na qual se identificam as

“homenagens” aos poetas populares nacionais e também aos escritores

consagrados da literatura brasileira e universal, em uma espécie da “releitura”

desses escritos/poemas encontrados em nossa contemporaneidade e

igualmente em outras épocas – das mais recentes às mais remotas possíveis.

Como Idelette Muzart Fonseca dos Santos observou e analisou (Em Demanda da Poética Popular), a escritura de Suassuna é uma reescritura de textos próprios ou alheios. Ela considera o romance de Ariano um texto “grafofágico”, devorador de outros textos, e afirma, ao se referir às “citações falsificadas ou transformadas”: “Estas são muito numerosas no romance; a rigor, todas as citações do romance são falsas ou transformadas.” O autor nunca cita um texto alheio sem interferir nele, sem modificá-lo de propósito, usando para isso o pretexto de ser Quaderna quem faz a citação se amoldar a seu próprio estilo régio. (TAVARES, 2007, p.119)

Frisamos, por essa razão, que muitos desses poemas, inclusive, são

releituras dos cordéis presentes nas feiras populares do Nordeste, oferecendo

ao leitor a possibilidade, por exemplo, de imaginá-los ao som do ritmo

sertanejo, embalado pelos instrumentos típicos, e declamados por algum

repentista, à maneira como se dão nessas feiras repletas de cordéis dentre

outros infindáveis elementos representantes da cultura popular do Sertão.

Assim, o caminho da Arte e da Literatura brasileiras deve ser o da integração, e não o das discriminações. Aliás, nisso, como em muitas outras coisas, a própria atitude dos Cantadores e poetas populares é muito mais aberta, criadora e humana, ao mesmo tempo que singular, peculiar, resistentemente brasileira. Os folhetos, ao mesmo tempo que mantêm a raiz brasileira, não se fecham ao que vem de fora: pelo contrário, acolhem tudo [...]. (SUASSUNA, 1969, In SUASSUNA, 2008, p.159)

No Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta,

por sua vez, ao contar com um cenário sertanejo, Suassuna

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consequentemente revela um universo popular envolto pela cultura nordestina

e que, na organização estrutural de seu Romance, pode ser representada por

meio de elementos tais como:

- A divisão do romance em folhetos;

- As ilustrações imitando as xilogravuras.

1.1.1 A divisão do romance em folhetos

Composto por um único volume, o Romance d’A Pedra do Reino e o

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é dividido em cinco livros e 85 capítulos

(denominados folhetos, por Suassuna), sendo, estes, numerados com

algarismos romanos. A seguir, apresentamos esta organização:

Quadro 1

ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA

(“Antigo” Livro I)

PRELÚDIO – A Pedra do Reino

Capítulo Página 1 FOLHETO I Pequeno Cantar Acadêmico a Modo de Introdução p.31 2 FOLHETO II O Caso da Estranha Cavalgada p.35 3 FOLHETO III A Aventura da Emboscada Sertaneja p.50 4 FOLHETO IV O Caso do Fazendeiro Degolado p.59 5 FOLHETO V Primeira Notícia dos Quadernas e da Pedra do Reino p.65 6 FOLHETO VI O Primeiro Império p.68 7 FOLHETO VII O Segundo Império p.71 8 FOLHETO VIII O Terceiro Império p.73 9 FOLHETO IX O Quarto Império p.81 10 FOLHETO X O Quinto Império p.82 11 FOLHETO XI A Aventura de Rosa e De La Condessa p.84 12 FOLHETO XII O Reino da Poesia p.89 13 FOLHETO XIII O Caso da Cavalhada p.98 14 FOLHETO XIV O Caso do Castelo Sertanejo p.103 15 FOLHETO XV O Sonho do Castelo Verdadeiro p.116 16 FOLHETO XVI A Viagem p.120 17 FOLHETO XVII A Primeira Caçada Aventurosa p.122 18 FOLHETO XVIII A Segunda Caçada Aventurosa p.131 19 FOLHETO XIX O Caso da Coroa Extraviada p.134 20 FOLHETO XX A Terceira Caçada Aventurosa p.139 21 FOLHETO XXI As Pedras do Reino p.145 22 FOLHETO XXII A Sagração do Quinto Império p.149

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(“Antigo” Livro II)

CHAMADA – Os Emparedados

Capítulo Página

23 FOLHETO XXIII Crônica dos Garcia-Barrettos p.157 24 FOLHETO XXIV O Caso do Filósofo Sertanejo p.164 25 FOLHETO XXV O Fidalgo dos Engenhos p.165 26 FOLHETO XXVI O Caso dos Três Emparedados p.170 27 FOLHETO XXVII A Academia e o Gênio Brasileiro Desconhecido p.181 28 FOLHETO XXVIII A Sessão a Cavalo e o Gênio da Raça p.187 29 FOLHETO XXIX O Gênio Máximo da Humanidade p.191 30 FOLHETO XXX A Filosofia do Penetral p.193 31 FOLHETO XXXI O Romance do Castelo p.195 32 FOLHETO XXXII A Trágica Desaventura do Rei Zumbi dos Palmares p.203 33 FOLHETO XXXIII O Estranho Caso do Cavaleiro Diabólico p.207 34 FOLHETO XXXIV Marítima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro p.214 35 FOLHETO XXXV A Trágica Desaventura de Dom Sebastião, Rei de Portugal e do Brasil p.227 36 FOLHETO XXXVI O Gênio da Raça e o Cantador da Borborema p.232

(“Antigo” Livro III)

GALOPE – Os Três Irmãos Sertanejos

Capítulo Página

37 FOLHETO XXXVII A Teia do Meu Processo p. 245 38 FOLHETO XXXVIII O Caso da Cabeça Involuntária p.247 39 FOLHETO XXXIX O Cordão Azul e o Cordão Encarnado p.253 40 FOLHETO XL Cantar dos nossos Cavalos p.271 41 FOLHETO XLI As Armas e os Barões Assinalados p.281 42 FOLHETO XLII O Duelo p.288 43 FOLHETO XLIII O Almoço do Condenado p.302 44 FOLHETO XLIV A Visagem da Moça Caetana p.305 45 FOLHETO XLV As Desventuras de um Corno Desambicioso p.307 46 FOLHETO XLVI O Reino da Pedra Fina p.320 47 FOLHETO XLVII A Aventura dos Cachorros Amaldiçoados p.324 48 FOLHETO XLVIII A Confissão da Possessa p.331 49 FOLHETO XLIX A Cadeia p.334 50 FOLHETO L O Inquérito p.337 51 FOLHETO LI O Crime Indecifrável p.358 52 FOLHETO LII Os Três Irmãos Sertanejos p.371 53 FOLHETO LIII Meus Doze Pares de França p.380 54 FOLHETO LIV A Parada dos Fidalgos Sertanejos p.390 55 FOLHETO LV De Novo a Cavalgada p.398 56 FOLHETO LVI A Visagem da Bicha Bruzacã p.402 57 FOLHETO LVII Invasão e Tomada da Vila p.412 58 FOLHETO LVIII A Aventura da Onça Mijadeira p.415 59 FOLHETO LIX O Grande Pretendente p.418 60 FOLHETO LX A Furna Misteriosa p.422 61 FOLHETO LXI O Caso do Cego Teológico p.426 62 FOLHETO LXII O Atentado Misterioso p.432 63 FOLHETO LXIII O Encontro de Dois Irmãos p.439

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(“Antigo” Livro IV)

TOCATA – Os Doidos

Capítulo Página

64 FOLHETO LXIV A Cachorra Cantadeira e o Anel Misterioso p.447 65 FOLHETO LXV De Novo a Pedra do Reino p.459 66 FOLHETO LXVI A Filha Noiva do Pai, ou Amor, Culpa e Perdão p.467 67 FOLHETO LXVII O Emissário do Azul e as Juras de Castidade p.480 68 FOLHETO LXVIII O Caso do Cachorro Mal Comportado p.501 69 FOLHETO LXIX A Estranha Aventura do Cavalo Concertante p.517 70 FOLHETO LXX O Carneiro Cabeludo p.528 71 FOLHETO LXXI O Caso do Jaguar Sarnento p.532 72 FOLHETO LXXII O Almoço do Profeta p.546 73 FOLHETO LXXIII Cavalhadas de São João na Judéia p.559 74 FOLHETO LXXIV A Astrosa Desaventura dos Gaviões Cegadores p.568 75 FOLHETO LXXV O Ajudante de Profeta p.578

(“Antigo” Livro V)

FUGA – A Demanda do Sangral

Capítulo Página

76 FOLHETO LXXVI A Gruta Sumeriana do Deserto Sertanejo p.593 77 FOLHETO LXXVII Cantar do Fidalgo Pobre p.602 78 FOLHETO LXXVIII A Cegueira Epopeica p.610 79 FOLHETO LXXIX O Emissário do Cordão Encarnado p.621 80 FOLHETO LXXX O Roteiro do Tesouro p.653 81 FOLHETO LXXXI A Cantiga da Velha do Badalo p.688 82 FOLHETO LXXXII A Demanda do Sangral p.696 83 FOLHETO LXXXIII O Vinho da Pedra do Reino p.712 84 FOLHETO LXXXIV O Enviado do Divino p.723 85 FOLHETO LXXXV A Sagração do Gênio Brasileiro Desconhecido p.732

O Romance d’A Pedra do Reino¸ formado por cinco livros, constituídos por folhetos, narra as aventuras de Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, os acontecimentos que o levaram à prisão e à sua “demanda novelosa”. O Livro I se abre com um resumo dos episódios e uma invocação à Musa Sertaneja. Em seguida, Quaderna, o narrador-personagem, que se encontra preso, descreve a chegada dos ciganos e do rapaz do cavalo branco a Taperoá, acontecimento desencadeador de fatos que o levaram à prisão. [...] No livro II, segue-se a crônica das famílias envolvidas nos acontecimentos, a apresentação dos dois professores e amigos de Quaderna, Samuel e Clemente, que representam duas correntes político-ideológicas, Direita e Esquerda, respectivamente. No livro III, os primeiros folhetos (XXXVII-XLVIII) versam sobre os antecedentes do interrogatório; o XLIX marca a ligação do narrador e seus amigos com os acontecimentos políticos do período de 1930-1938 [...] Os outros dois capítulos apresentam a sequência do depoimento, sempre entremeado por “histórias” que visam, num plano imediato, distrair a atenção do Corregedor e, num outro, aumentar o suspense que cerca a narrativa. (MICHELETTI, 1997, p.17)

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A título de curiosidade, devemos dizer que a organização e divisão dos

folhetos que outrora eram distribuídos pelos chamados Livros, a partir de 2006,

com a publicação de sua 8ª edição, os Livros I, II, III, IV e V passam a ser

chamados de “Prelúdio”, “Chamada”, “Galope”, “Tocata” e Fuga”,

respectivamente.

Vale lembrar que os títulos que davam nome aos antigos Livros, foram

preservados neste novo formato, havendo a seguinte mudança:

Quadro 2

MODIFICAÇÃO DA DIVISÃO DA OBRA

“LIVRO 1 – A Pedra do Reino” passa a ser “PRELÚDIO – A Pedra do Reino”

“LIVRO 2 – Os Emparedados” passa a ser “CHAMADA – Os Emparedados”

“LIVRO 3 – Os três Irmãos Sertanejos” passa a ser “GALOPE – Os Três Irmãos Sertanejos”

“LIVRO 4 – Os Doidos” passa a ser “TOCATA – Os Doidos”

“LIVRO 5 – A Demanda do Sangral” passa a ser “FUGA – A Demanda do Sangral”

Verifica-se que na organização relativa à divisão dos folhetos/capítulos e

revelada desde a apresentação do sumário, ao substituir o lexema ‘livro’ por

termos provenientes da teoria musical e relativos à música erudita, Suassuna

parece revelar uma preocupação em apontar para a concretização do

“casamento” entre as culturas popular e erudita, já nas primeiras páginas de

sua obra e de modo explícito.

Segundo Queiroz (1971):

Só comparo o Suassuna, no Brasil, a dois sujeitos: a Villa-Lobos e a Portinari. Neles a força do artista obra o milagre da integração do material popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência, com o toque pessoal de originalidade e improvisação. (In SUASSUNA, 2012, p.16)

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Sem que nos aprofundemos nestes estudos, de qualquer modo

podemos dizer que há uma certa hierarquização da estrutura organizativa dos

“capítulos”, uma vez que os folhetos – representantes da cultura popular –

encontram-se dispostos dentro de uma macro-organização dada por meio da

divisão da obra em “livros” os quais são identificados por uma expressão

representante do vocábulo musical erudito e apresentam-se por um mecanismo

de gradação se considerarmos a cadência musical conforme a consecução dos

nomes dados a cada um deles (livros).

E para que possamos aclarar o significado de cada um destes termos

utilizados para denominar os títulos dos “livros” que organizam o RPR,

verificamos um dicionário específico da área musical, que é o Diccionario

Musical de Ernesto Vieira5, publicado em 1899 em Lisboa. Segundo ele, tem-se

que:

Quadro 3

PRELÚDIO Música que se executa de improviso, como que servindo de preparativo e

experiência antes de se começar o trecho principal. Pequena peça servindo de

introdução a outra mais extensa.

CHAMADA Sinal empregado na notação para chamar a atenção do executante, advertindo-o

de que deve voltar a ele quando o encontrar pela segunda vez.

GALOPE Dança moderna de sala, em compasso binário simples, andamento muito vivo

(cujo ritmo evoca o galope de um cavalo); dança-se ordinariamente no final de

uma quadrilha de contradanças.

TOCATA Música que se toca em qualquer instrumento; o mesmo que sonata.

(Composição instrumental livre, de caráter brilhante e vivo.)

FUGA

Peça de música em ritmo polifônico, na qual se desenvolve um pequeno tema,

reproduzindo-o em imitações livres. Primitivamente deu-se o nome de fuga ao

efeito das imitações, porque nelas parece sentir-se fingirem as vozes, umas após

outras. Nos séculos XV e XVI, fuga era sinônimo de imitação e de cânon; no

século XVII é que adquiriu o caráter de uma composição especial, desenhada

com certas formas particulares que pouco a pouco se aperfeiçoaram, vindo a

servir de base para as regras que se estabeleceram até então.

1. A fuga pode ser a duas, três ou mais vozes (considerando o termo voz

como sinônimo de parte de harmonia.).

5 Nenhuma referência bibliográfica do estudioso foi encontrada. Sabe-se, porém, que foi um estudioso da música escrevendo livros de teoria e biografia de músicos.

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FUGA

2. Para se compor uma fuga, começa-se por escolher ou inventar o tema;

este deve consistir numa frase curta, desenhada de modo que se preste

a receber um contraponto interessante, e que se possa dividir em

fragmentos para serem aproveitados no desenvolvimento. O tema

recebe o nome de sujeito.

3. Apresentado o sujeito por uma voz, responde-lhe outra imitando-o à

quinta superior ou à quarta inferior; esta imitação chama-se resposta.

4. Seguidamente outra voz (ou a primeira se for só a duas) repete o sujeito

e ainda outra (ou a primeira se for a três) repete a resposta até que tenha

passado por todas as vozes.

5. Tendo cada uma das vozes feito a apresentação do sujeito ou da

resposta, continua a sua marcha melódica fazendo contraponto com a

outra ou outras vozes.

6. Quando o sujeito com a resposta tem sucessivamente percorrido todas

as vozes, está terminada a parte da fuga que se denomina exposição e

que é como o exórdio de um discurso.

7. Se o sujeito não sabe do tom principal e a resposta se realiza com

intervalos exatos como no cânon rigoroso, ter-se-ia uma fuga real.

No entanto, para o termo ‘galope’ – descrito no quadro acima –,

devemos considerar que especificamente fora da teoria musical e dentro da

teoria de outras áreas, ele possui acepções diversas a esta colocada por

Vieira. De acordo com Aulette eletrônico:

ga.lo.pe sm. 1. O mais rápido movimento da andadura do cavalo e de outros animais. 2. Ver galopada. 3. P.ext. Distância que um cavalo pode percorrer a galope: A igreja fica a um bom galope daqui.4. Passo muito rápido, apressado: Sua tia saiu a galope para comprar o remédio. 5. Dnç. Dança viva, rápida, popular na Inglaterra vitoriana. 6. Dnç. Dança alemã do séc. XIX, muito ritmada e curta. 7. P.ext. Mús. A música para essa dança. 8. Mar. Parte superior de um mastro, sem mastaréu, que recebe a borla. 9. Poét. Martelo de seis pés, sextilha de decassílabos us. pelos cantadores brasileiros; martelo agalopado. [F.: Do fr. galop.]

A área literária, por exemplo, considera ‘galope’, na Literatura Brasileira

Popular, basicamente como gênero de poesia popular que se desenvolve em

versos de onze sílabas.

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1.1.2 As ilustrações imitando as xilogravuras

A arte armorial define-se, portanto, por uma relação “fundadora” com a literatura popular do Nordeste e particularmente com o folheto de feira, que o artista armorial ergue como bandeira por unir três formas artísticas distintas: a poesia narrativa de seus versos, a xilogravura de suas capas, a música (e o canto) de suas estrofes, literatura do povo, que parece escapar às certezas para suscitar vários questionamentos – e em primeiro lugar o de sua denominação e definição social. (SANTOS, 1999, p.14)

As influências artísticas populares estão presentes no romancista Ariano

Suassuna. Sendo um artista pleno ao transitar naturalmente por entre as Artes

– enveredando por todos os seus vieses: literário, musical, plástico, etc. – e,

além disso, um exímio conhecedor de todas essas áreas, Suassuna, com

extroversão, fez uso de suas xilogravuras na composição do Romance d’A

Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.

Segundo Tavares:

A xilogravura nordestina, da qual o Movimento Armorial se propôs a derivar toda uma estética para as artes visuais, abriu um novo caminho para a literatura de Ariano Suassuna, fornecendo-lhe a inspiração para as ilustrações do Romance d’A Pedra do Reino (certamente um dos romances brasileiros em que ilustrações feitas pelo próprio autor mais dialogam com o texto) [...]. (2007, p.191)

Desse modo, em se considerando o tratamento visual dado por

Suassuna em toda a sua obra – em especial à sua poesia e, igualmente ao seu

RPR, o qual também apresenta trechos em versos – Maria Inês Batista

Campos declara no artigo “Iluminogravuras de Ariano Suassuna: cartografia

com letra e pincel”, que as iluminogravuras suassunianas inauguram um tipo de

produção poética que poderia ser considerada típica do Movimento Armorial6

Para a estudiosa:

6 Na página 21 do livro Em demanda da poética popular, Idelette. M. F. dos Santos declara que: em 18 de outubro de 1970, um concerto era realizado na Igreja São Pedro dos Clérigos, no Recife, por uma orquestra recém-criada, a Orquestra Armorial. Paralelamente, acontecia uma exposição de artes plásticas. Ambas as manifestações tinham sido organizadas pelo Departamento de Extensão Cultural (DEC) da Universidade de Pernambuco. Seu diretor, Ariano Suassuna, no texto do programa, revelava ao público a existência do Movimento Armorial. No ano seguinte, a segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja do Rosário dos Pretos, em 26 de novembro de 1971, confirmava a proclamação de Suassuna. O conceito inaugural do Quinteto Armorial, naquele mesmo dia, testemunhava os primeiros passos da música armorial. A partir desta data, o Movimento Armorial, passava a existir.

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A denominação “iluminogravura”, inventada por Suassuna, reúne a “iluminura” medieval (ilustrações que ornamentavam os pergaminhos dos mosteiros) e a “gravura”, de letras, desenhos e ornamentos em madeira, metal ou pedra. Na iluminogravura, o autor recupera a tradição poética [...], e a tradição pictórica, na xilogravura típica da cultura popular nordestina. Mas ele também transgride essas formas, fortalecendo as linguagens ao enunciá-las verbo-visualmente. Nesse entrecruzamento, os textos verbo-visuais tornam-se um acontecimento discursivo que surpreende o interlocutor por sua beleza visual [...]. (In: MICHELETTI, 2007, p.191)

Até por não ser muito frequente na Literatura Brasileira a ideia do

romance interligado à imagem, parece poder atribuir a Suassuna a utilização

da xilogravura popular como parte integrante do romance. Desta forma, por

meio de um processo natural de apropriação das características populares,

Suassuna revela, explicitamente, seu olhar criador e cuidadoso para a

manutenção desta cultura.

1.2 As escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo suassuniano

Utilizando-se das concepções trazidas pelo Movimento Armorial,

Suassuna se baseia na tensão entre “fazer o que seja a soma de tudo que foi

feito antes” e “fazer algo que seja novo”, sendo que para ele, os artistas

populares, na sua aparente ignorância das grandes teorias estéticas e das

grandes tradições artísticas, são o melhor exemplo da força intuitiva que

produz a Arte (TAVARES, 2007, p 120).

Segundo Braulio Tavares, em seu livro ABC de Suassuna:

Essa tentativa de fazer do conceito de “armorial” a união de diferentes registros históricos e culturais está presente, mais do que em qualquer outra parte, no tratamento dispensado pelo escritor Ariano à língua portuguesa falada no Brasil. Sua obra no romance é comparada à de Guimarães Rosa pela temática sertaneja e pela amplitude do universo abarcado [...]. A versatilidade do autor lhe permite explorar diferentes vozes narrativas, diferentes registros da palavra escrita, desde o mais simples ao mais erudito. (2007, p.116)

Podendo ser caracterizada do mesmo modo por um viés popular, a

referida obra possui logo na abertura de sua narrativa, uma apresentação da

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história que será narrada, a moda de folheto nordestino, ainda que a narrativa

se trate de um romance. Sendo assim, tal como a disposição dos capítulos em

folhetos, tem-se na abertura da obra, a necessidade de seu criador confirmar

as marcas características do gênero cordel. Neste momento vale salientar que,

de acordo com os estudos de Marcela Cristina Evaristo, o cordel:

Constitui-se de um gênero intermediário entre a oralidade e a escrita. Faz uma espécie de ponte de passagem entre uma cultura popular e outra, literária. Por isso, mantém algumas pistas da oralidade ao ser transposto para o texto escrito impresso. Em termos de dialogicidade, pode-se dizer que as histórias são contadas e recontadas e que o sujeito-narrador dialoga com o já produzido, na medida em que reelabora o que ouviu e acrescenta sua contribuição própria [...]. Predominam, nos textos produzidos, as misturas de elementos da literatura erudita ocidental aliados às características próprias e particularidades históricas do sertão nordestino. (2011, p.120)

Em vista disso salientamos, ainda, que,

No Brasil cordel é sinônimo de poesia popular em verso. As histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e sociais do país e do mundo, as famosas disputas entre cantadores, fazem de diversos tipos de texto em verso denominados literatura de cordel. [...] A expressão “literatura de cordel” foi inicialmente empregada pelos estudiosos da nossa cultura para designar os folhetos vendidos nas feiras, sobretudo em pequenas cidades do interior do Nordeste, em uma aproximação com o que acontecia em terras portuguesas. Em Portugal, eram chamados cordéis os livros impressos em papel barato, vendidos em feiras, praças e mercados. (MARINHO & PINHEIRO, 2012, p.17)

E, em se considerando que a literatura de cordel se fez presente na vida

de Ariano Vilar Suassuna desde criança, quando vivia em Taperoá, todas as

manifestações populares vivenciadas por ele, em menino, favoreceram sua

formação em terras sertanejas e o tornou um exímio pensador da cultura

nordestina especialmente da região do Cariri. Segundo Tavares (2007):

Para Ariano, o cordel é uma forma de expressão que envolve a Literatura, por meio da história contada em versos; a Música, pela toada (a solfa utilizada no Sertão para cantar os versos); e as Artes Plásticas, pelas xilogravuras que ilustram as capas dos folhetos. (p.25)

* * *

E tal como se apresenta o gênero Cordel, devemos lembrar que, antes

mesmo do primeiro capítulo, ou melhor, do primeiro folheto, o Romance d’A

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Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta apresenta um texto de

abertura em uma folha que dá início à narrativa/história.

Partindo, pois, da perspectiva estilística, observa-se que as primeiras

frases do RPR que compõem esta página de abertura, apresentam-se como

sendo frases descritivas nominais curtas (em exceção a uma mais longa),

estruturadas de modo a pôr em evidência o sentido de algumas palavras, já

indicando o estilo suassuniano em sua associação à seleção lexical e ao uso

da pontuação.

Segue abaixo este trecho:

Fragmento 01

Romance-enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso

Rapaz do Cavalo Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do

Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações

sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio! Como seu Pai foi morto

por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o

mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o numa Masmorra onde ele penou

durante dois anos! Caçadas e expedições heroicas nas serras do Sertão! Aparições

assombratícias e proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas

Catingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte!

(RPR, p.27)

Antecipando traços de análise que serão observados ao longo do

Capítulo 3, e considerando os estudos de Martins relativos à Estilística da

Enunciação,

No Dicionário das ciências da linguagem Tzvetan Todorov distingue duas Estilísticas: a do enunciado, que se ocupa do aspecto verbal, suas particularidades fônicas, morfológicas, semânticas, sintáticas; e a da enunciação, que se ocupa da relação entre protagonista do discurso: locutor, receptor, referente. Se se nota no discurso certa ênfase no locutor, tem-se o estilo emotivo; se o locutor dá especial relevo ao referente, tem-se o estilo avaliativo; se o locutor se inclina para a avaliação da verdade do enunciado, tem-se o estilo modalizante. (MARTINS, 2008, p.189)

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identifica-se no Fragmento 01 a presença do estilo avaliativo, uma vez que o

locutor dá especial ênfase ao referente que, neste caso, é a própria história a

ser narrada. E, analisando o fragmento como um todo, tem-se que, quanto às

palavras lexicais, percebe-se uma relação substantivo-adjetivo que, além de

poder ser uma característica do gênero (desse texto de abertura), aponta-nos

para o estilo suassuniano. Ou seja, as escolhas lexicais e tais relações

demonstram o cuidado de seu criador (o Locutor Empírico Suassuna) em, já na

abertura de sua obra, fazer uso de expressões – especialmente dos adjetivos –

que remetem à temática sertaneja (a qual, por vezes, remonta-se à cultura

medieval).

E, há que se destacar que, nas duas últimas frases do fragmento, há

única e exclusivamente a presença de substantivos dispostos entre vírgulas;

sendo que tal pontuação utilizada representa a velocidade “galopante” com que

se dão as informações de ordem publicitária para a “venda” dessa história –

sendo este um texto de abertura. Em relação aos substantivos dessas duas

últimas frases, estes são lexemas que – tais como os anteriores – compõem

um grupo lexical o qual, reiteramos, remete ao misticismo e à cultura da Idade

Média. Eis que, por meio dessas palavras lexicais o estilo suassuniano oferta

ao leitor a possibilidade de representação simbólica mental numa ”enxurrada”

de substantivos que compõem o tropo da história. (Aqui, vale destacar a

palavra morte como sendo o último lexema do trecho e, claro, propõe o

adiantamento de um possível final trágico para o desfecho do enredo.)

Em relação à pontuação aproveitamos para salientar que ela é um

elemento que fará parte das observações de nossas análises, conforme vai se

apresentando representativa nos fragmentos selecionados. Neste Fragmento 01 ela é peça fundamental para a observação, visto que além das especiais

vírgulas presentes nas duas frases finais, devemos destacar, da mesma forma,

o uso das exclamações. Assim sendo, temos que, em exceção às duas frases

iniciais – cujas pontuações finais se dão por meio do uso do ‘ponto final’ –,

todas as outras sete frases são finalizadas com o ‘ponto de exclamação’,

sendo, este, um recurso que aproxima o texto de uma certa oralidade,

procurando um contato maior com o leitor. Ou seja, tais exclamações se

associam à presença do enunciador e ao envolvimento que ele mantém com a

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narrativa que vai apresentar, consistindo numa pontuação emotiva que marca a

presença de um eu, ainda que ele não estivesse nos dêiticos ou verbos. Desse

modo, por meio dessas exclamações, é revelado o indício de um estilo

suassuniano à medida que o Locutor Empírico, Suassuna, vai tratando das

surpresas do mundo da narrativa que se seguirá.

Retomando o fato de termos uma grande quantidade de substantivos e

adjetivos presentes nessas frases de abertura da obra, concluímos que eles

(substantivos e adjetivos) contribuem para despertar no leitor a curiosidade do

que está por vir, já que “carregam” um tom enigmático – traço que se manterá

por toda a história, e que reflete o estilo suassuniano, o qual está diretamente

associado a mistérios e aventuras grandiloquentes. Para Micheletti:

A Pedra do Reino, cujo assunto se origina de elementos regionais, apresenta-se ao leitor como um “romance armorial-popular brasileiro”. Os adjetivos parecem consubstanciar a intenção do autor. Há na narrativa vários traços que a identificam com um nacionalismo ufanista: a megalomania do narrador que pretende criar uma “Obra modelar e de primeira classe” e tornar-se o “Gênio da Raça brasileira”, o caráter narcisista dele e demais personagens; traços culturais da região – permanência do sebastianismo e a figura do cangaceiro; a linguagem apelativa, enfática e hiperbólica; palavras chaves escritas com letras maiúsculas. (1997, p.132)

Conforme a citação acima vale adiantar que, posteriormente ao texto de

abertura – e já a partir das primeiras páginas do primeiro folheto/capítulo – não

menos grandiloquentes serão os vocábulos que lá estão e que tão bem

funcionam na associação com a ironia. Arriscamos dizer que, por meio de uma

proposta irônica “pós-moderna”, a qual expõe a condição humana do drama

sertanejo, identifica-se também a preocupação de Suassuna para com o

tratamento da cultura “mítica” popular, que até hoje pode ser reconhecida pelos

sertões nordestinos afora.

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Capítulo 2

2 A IRONIA

2.1 O recurso da ironia: breves considerações

Devido à liberdade subjetiva de uma interpretação, eis que a ironia é um

elemento relativizado, pois o significado de uma mensagem necessita do uso

de diversos procedimentos intelectuais, haja vista que se apresenta entre o dito

e o não-dito, o declarado e o não-declarado. A seguir, apresentamos

brevemente alguns dos conceitos de ironia, que vêm sendo utilizados desde a

Antiguidade e, consequentemente, sob o enfoque de diferentes concepções.

Nessa trajetória da Ironia, tem-se que ainda hoje haja muita confusão

em relação ao método que Sócrates criou com o auxílio da figura de linguagem

ironia, uma vez que ele (método) não era realizado para constranger o seu

interlocutor. Tendo como base o verbo que originou a palavra (eirein), que

etimologicamente significa nada mais do que perguntar, a ironia socrática era

na verdade um método de questionar sobre algo em discussão, ou seja, era

uma maneira de delimitar um conceito, contradizendo-o, refutando-o, enfim, era

um processo para, acima de tudo, purificar o pensamento do outro, desfazendo

ilusões. Não tinha, portanto, o intuito de ridicularizar o outro, mas de fazer

irromper da aporia (isto é, do impasse sobre o conceito de alguma coisa) o

entendimento.

Em relação aos estudos relativos à análise da ironia especificamente

apresentados na Literatura, interessante apontar que estes se deram

inicialmente com base nas teorias provenientes da Retórica clássica, as quais

se preocupavam na identificação de determinadas classes de palavras (tais

como advérbios, adjetivos e locuções) que eram analisadas para que

pudessem indiciar o significado irônico, promovendo uma espécie de

lexicalização do fenômeno.

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Por outro lado, e um pouco mais tarde, os estudos do fenômeno ironia

foram deixando de lado essas listas de palavras, a fim de não comprometer a

originalidade das obras, considerando o seu viés implícito representado em um

texto. Independente de seu estado interior ser de difícil delimitação, em 1961,

no livro Contribuições para uma estilística da ironia, Maria Helena de Novais

Paiva defende que, de uma maneira ou de outra, é característica da ironia ser

capaz de atribuir às palavras um significado contrário, ao que usualmente

expressam.

Para melhor elucidar as inúmeras maneiras com que o fenômeno é

tratado pelos estudiosos, faz-se necessário uma breve abordagem com base

nos conceitos propostos por Sócrates na Antiguidade, apresentados por Søren

A. Kierkegaard. Este dinamarquês do século XVIII expõe que a essência do

fenômeno da ironia é exatamente o seu contrário e, em O conceito de ironia –

constantemente referido a Sócrates, ele:

[...] ocorre no discurso retórico frequentemente uma cofigura que traz o nome ironia; e cuja característica está em se dizer o contrário de que se pensa. Aí já temos então uma definição que percorre toda ironia, ou seja, que o fenômeno não é a essência, e sim o contrário da essência. (KIERKEGAARD, [1841] 2013, p.246)

Continuando com suas considerações, o filófoso Kierkegaard completa

que:

[...] a ironia se mostra como aquela que compreende o mundo, que procura mistificar o mundo circundante, não tanto para ocultar-se quanto para fazer os outros se revelarem. Mas a ironia também pode se mostrar quando o irônico procura levar o mundo circundante a falsas pistas a respeito dele mesmo. (Idem, Ibidem, p.251)

* * *

Na área dos estudos da linguagem, a ironia é abordada em diversas

disciplinas e mencionaremos alguns desses estudos, iniciando por Dominique

Maingueneau que há algum tempo, vem dedicando parte de seus escritos para

abordá-la. O estudioso é um pesquisador que sempre se preocupou com a

construção de uma crítica linguístico-literária e, em seus estudos publicados

sob o título Elementos de linguística para o texto literário, no trecho “Ironia e

polifonia”, ele afirma que a ironia:

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[...] faz parte tradicionalmente dos “tropos” da Retórica, como a metáfora, a hipérbole, a litotes. Considera-se que há um “tropo” em todos esses casos porque o enunciado deve ser interpretado como portador de um sentido diferente do que ele libera “literalmente”. (1996, p. 94)

Por outro lado existem diversas teorias da ironia que se distanciam

dessa concepção tradicional (MAINGUENEAU, 1996, p.94). Sob a perspectiva

da enunciação irônica, o conceito de polifonia passa a reinar, deixando de lado

a perspectiva da Retórica que considera a ironia uma figura.

Assim, para Ducrot “falar de modo irônico é para um locutor L, apresentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador E, posição de que se sabe, aliás, que o locutor L não assume a responsabilidade e, mais que isso, que ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de vista expresso na enunciação.” [...] Trata-se assim para L de mostrar que ele se distancia com respeito ao ponto de vista absurdo. Ducrot chama “enunciador” essa personagem ridícula cujo ponto de vista é encenado através da enunciação irônica e o opõe ao “sujeito falante” e ao “locutor” (Idem, Ibidem, p.95) (substituir por BRAIT porque ela chega ao discurso)

Em outro trecho da mesma obra, porém, agora, sob o subtítulo de “Ironia

e conotação autonímica”, o estudioso continua:

Qualquer teoria da ironia deve explicar o fato de que o enunciado irônico é diretamente expresso (não é uma citação) sem ser por isso da responsabilidade do sujeito da enunciação. Esta estranha combinação de uma adesão e de uma recusa pode ser tratada em termos de polifonia, mas também de enunciação paradoxal, autodestruidora, na qual o sujeito invalida sua própria enunciação. (Idem, Ibidem, p.99)

Vale lembrar que, dentre os inúmeros seguidores dos estudos iniciados

na França, por Maingueneau, em muitos países espalhados pelo mundo, têm-

se grupos de pesquisadores que se dedicam a linhas de pesquisa provenientes

da Análise do Discurso (AD), sendo muitos deles em associação aos estudos

estilísticos.

No Brasil, Fernanda Mussalim é uma dessas seguidoras que, junto de

colegas – tais como: Anna Christina Bentes e Beth Brait – vem publicando

artigos e organizando publicações que envolvem os estudos da enunciação.

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Em seu texto “Uma abordagem discursiva sobre as relações entre ethos e

estilo”, ela esclarece que:

No que se refere à noção de ethos, Maingueneau afirma que todo discurso está relacionado a uma “voz” ou “tom”, decorrente de seu modo de enunciação. Esta era uma dimensão bem conhecida da retórica antiga, que entendia por ethe as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, não pelo que diziam de si mesmos, mas pela aparência que lhes conferia o próprio modo de enunciarem seus discursos: o ritmo, a entonação, a escolha das palavras e dos argumentos revelaram determinadas características desses oradores. (2011, p.71)

* * *

Ressalta-se, pois, que a ironia, desde a Antiguidade, apresenta um jogo

que envolve o sentido e o não-sentido, sendo determinante o seu contexto para

que se realize a negação. Nesse momento, devem-se destacar da mesma

maneira os estudos de José Manuel Vasconcelos Esteves que, ao apresentar a

ironia como um jogo, afirma que ela só tem sentido como um convite, um

desafio, uma sugestão, uma sedução ao diálogo conivente, convivente,

cúmplice, numa partida interpares de debate de argumentos (2009, p.42). De

certa maneira o fenômeno da inversão semântica proposto pelo jogo irônico

reserva nesse universo a possibilidade de dar voz explícita àquilo que se quer

dizer implicitamente.

Em Ironia e Argumentação publicado em Lisboa, há aproximadamente

quatro anos, Esteves registra que,

Na verdade, a ironia, em vez de pressupor uma semelhança ou valorização de uma parte em relação ao todo, remete para a negação e para uma desidentificação, o contrário do operado na metáfora, o que lhe gera riscos de má interpretação e ambiguidade que são, apesar da sua dimensão negativa, elementos constituintes e necessários à ironia. (Ibidem, p.23)

Assim sendo – independente das linhas de pesquisa e diferenças

conceptuais que o conceito de ironia vem apresentando ao longo dos séculos –

algo que lhe é peculiar é o fato de ela ser diferente da metáfora; uma vez que a

ironia corre riscos à medida que desidentifica ao invés de pressupor uma

semelhança. Em seus estudos, Esteves revela que a ironia é a expressão de

uma arte de conjecturar, forma determinante do raciocínio e da expressão

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retóricos (Ibidem, p.63). O que nela (ironia) se prefigura é uma retórica como

encontro de sujeitos, onde o discursivo se encorpa do ethos e do pathos

(Ibidem, p.65). Além disso, ele salienta que

O ironista é um dos que mais penetrou no jogo de sombras da linguagem, o que mais apreendeu a sua mobilidade, as perturbações e os desarranjos que ela provoca; o que mais excede a literalidade, ao ponto de a distender até ao limite e de nela atrever-se quase ao absurdo, já que a ironia é a forma mais extrema da linguagem. (Ibidem, p.85)

Também alinhada a essas concepções da ironia diretamente relacionada

ao discurso e aos sujeitos da enunciação, a área da Psicologia, por sua vez,

vem a contribuir no esclarecimento do seu conceito. Para Adriano Facioli, tem-

se que:

O artista é irônico na medida em que deve estranhar a si mesmo e sua produção, expondo-se à crítica. A produção artística deve ser crítica, ou seja, deve situar-se em regiões limites, nas fronteiras, à beira do abismo de separações históricas, semânticas ou formais, buscando a conjunção de universos usualmente tidos como distantes ou inconciliáveis. Situar-se próximo ao abismo é o que o irônico faz, já que se expõe ao equívoco e ao mal-entendido. (2010, p.23)

Desse modo, em uma espécie de jogo, o sujeito ironista se expressa de

modo a instalar um efeito “contrário” subentendido ao que disse, de modo a

criar uma inteligibilidade partilhada, a partir do momento em que convoca a

inteligência dum outro sujeito, sendo este o próprio ironizado ou aqueles que

comungam da ironia. Mais à frente, ainda, o psicólogo completa:

A interação estabelecida pelo ironista, se levada ao extremo de envolver o seu interlocutor em seu jogo de sentidos, constitui um paradoxo pragmático. O ironista que deixou no ar a indefinição acerca do que estava dizendo provoca no outro a sensação de que dois sentidos estavam sendo veiculados simultaneamente e que não é possível a escolha por um deles. (Idem, Ibidem, p.50)

Na tentativa de nos embasar em uma teoria que pudesse associar o

“romance” à ‘ironia”, recorremos à Kristeva. Em seu livro Introdução à

Semanálise, podemos identificar o que ela define como negação algo

associado ao fenômeno ironia e, portanto, tem-se que:

A oposição inicialmente reconhecida, e que provoca o trajeto romanesco, se vê imediatamente repelida num antes para ceder, num

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agora, uma rede de realizações que sobrevoam os dois polos opostos num encadeamento de derivações e, num esforço de síntese, se resolvem na figura do disfarce ou da máscara, a negação é, assim, retomada pela afirmação de uma duplicidade; a exclusividade dos dois termos colocados pelo circuito temático do romance é substituída por uma positividade duvidosa [...]. ([1966-67], 2012, p.118)

Mais adiante, Kristeva completa:

O duplo (a ficção, a máscara) que era a figura fundamental do carnaval se torna, assim, o eixo-de-lance dos desvios que preenchem o silêncio imposto pela função disjuntiva do circuito temático-programador do romance. (Ibidem, p.119)

E mesmo que não nos aprofundemos (batido!!!) nas especificidades dos

estudos de Kristeva – além de não termos identificado uma estrita e direta

relação com a ironia – para darmos conta de uma espécie de caráter formador

presente no estilo suassuniano, faremos uso de seus estudos acerca do

verossímil, fenômeno que, de certa maneira, é tangenciado durante as análises

mais à frente, no próximo capítulo.

* * *

Dos pesquisadores brasileiros são os estudos linguísticos

contemporâneos de Beth Brait acerca da ironia, um dos maiores destaques de

alguns anos ‘pra cá.

Vale ressaltar que Brait é uma pesquisadora que, além de já ter

explorado a abrangência teórica do tema, apresenta pesquisas acerca do

fenômeno ironia, recorrendo a estudos de textos literários sobre os quais

realizou ensaios e análises críticas.

Em Ironia em perspectiva polifônica, a estudiosa afirma que com a

ironia, pretende-se que os enunciados proferidos sejam atribuídos ao Outro,

evidenciando que o dito não pertence ao Enunciador que o enunciou, mas está

sendo negado por ele.

Segundo ela,

[...] a ironia é surpreendida como procedimento intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um processo de meta-referencialização, de estruturação do fragmentário, que, como

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organização de recursos significantes, pode provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Em outras palavras, a ironia será considerada como estratégia de linguagem que, participando da constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que essa polifonia não signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou criados. (2008, p.16)

Ao recuperar duas concepções de ironia – socrática e romântica – as

quais motivaram inúmeras outras reflexões por parte de outros filósofos, como

é o caso, por exemplo, do dinamarquês Kierkegaard, Brait considera que:

De uma perspectiva discursiva, não se pode deixar de aproveitar, por meio de uma releitura, a ideia da presença de marcas da enunciação irônica, detectadas a partir de um discurso literário. Se para Kierkegaard a ironia é uma postura do escritor, do homem que produziu determinado tipo de literatura, para um analista de discurso esse é um dado que só pode ser constatado, analisado e interpretado por meio de textos produzidos por esse autor que – configurando um traço essencial do discurso – permitam caracterizá-lo como “um escritor irônico”, ou mesmo uma “personalidade irônica”. (Ibidem, p.40)

Mais adiante, e após discorrer acerca dos “Percursos e percalços do

estudo da ironia”, cujas considerações se apresentam de modo a traçar um

fidedigno histórico desse fenômeno, Brait parte de um questionamento para

expor sua reflexão:

[...] de que modo é possível saltar de uma concepção retórica da ironia, formulada em termos de frase, para uma outra que dela se distancia na medida em que se propõe a enfrentar o mesmo fenômeno em dimensões completamente diferentes? [...] Na medida em que essa postura é esclarecida e, num certo sentido respeitada, é possível redimensionar o objeto por diferentes prismas, tomando o cuidado de especificar as particularidades desse novo ponto de vista. É nesse sentido que se podem compreender concepções tão diferentes de ironia quanto as que são postuladas pela retórica clássica, por diferentes correntes filosóficas, pelos românticos, pela semântica argumentativa e por tantas outras vertentes de enfrentamento da linguagem e das formas de concepções e representações do mundo. (Ibidem, p.127)

* * *

Sendo assim, para relacionarmos a ironia expressa por meio estilísticos

de seu escritor, recorremos aos estudos especificamente estilísticos. E quando

ironia somada ao estilo está em associação a determinados usos de vocábulos,

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sabe-se que de acordo com a significação das palavras é possível que haja

tantas palavras quantas as significações (LAPA, 1973, p. 17).

Em seu livro Estilística da Língua Portuguesa, o linguista M. Rodrigues

Lapa declara que:

[...] quem escreve e quem fala tem à sua disposição, para traduzir exatamente o pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que acodem ao espírito, para as necessidades da expressão. [...] Com efeito, a arte de escrever repousa especialmente na escolha do termo justo para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos. Por outras palavras: só escrevemos bem, quando, na série sinonímica, escolhermos a palavra ou o grupo de palavras que melhor se ajustam àquilo que queremos exprimir. É nessa escolha que reside, em grande parte, o segredo do estilo. (1973, p.20)

Segundo a Estilística, em nosso poder de apreciação tendemos para

achar boas ou más as coisas, segundo nos causam prazer ou desgosto. E este

fato necessariamente se há de refletir na linguagem. Sabe-se que a língua está

cheia destas expressões, que encerram numa série sinonímica valores

melhorativos ou pejorativos. Sabe-se, também, que as palavras sinônimas

podem evocar certas formas de vida e atividade, certos meios sociais (LAPA,

1973, p. 30-32).

Desse modo salientamos que ao longo de praticamente toda a

apresentação de nossas análises, as expressões suassunianas serão

apontadas na tentativa de destacarmos o discurso irônico presente nos

enunciados. Inclusive relacionando-as (expressões suassunianas) à cultura

popular, quando em se tratando de uma reflexão acerca do “falar” nordestino,

outros determinantes aspectos podem se instalar como propulsores de um

efeito irônico – seja ele realizado por meio da utilização de neologismo,

arcaísmo ou regionalismo/provincianismo. E novamente utilizando os escritos

de Lapa, é como se Suassuna, por vezes, promovesse um exame de

consciência lexical, levando-nos a reconhecer a nossa ignorância em matéria

de vocabulário (1973, p. 60)

Isto posto reitera-se que as análises do corpus contido neste trabalho,

serão realizadas recorrendo aos discursos apresentados na narrativa do

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, nos quais

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se identificou a utilização de determinadas palavras, expressões e sintagmas

relacionados ao fenômeno da ironia. Para tanto, destacar-se-ão algumas

passagens do enredo, as quais foram assinaladas como compositoras do

universo irônico, criado por Ariano Suassuna.

Há que se salientar que a ironia que permeia o RPR – como em

qualquer outra situação dentro de uma obra ficcional – tem seu cunho inicial

relativo à ambiguidade cujo jogo enunciativo entre implícito e explícito é o que

primeiro se destaca na observação do fenômeno.

Sendo assim, quer considerada como uma figura estilística quer

considerada como fenômeno da enunciação, o intuito dessa pesquisa é

apontar o caráter estilístico da ironia, considerando suas consequentes

possibilidades polifônicas e, claro, reveladora de um estilo ímpar, o qual se

corporifica na expressividade dos discursos presentes durante a narrativa do

RPR, que, por sua vez, envolvem os interlocutores: enunciador/emissor (ethos)

e coenunciador/receptor (pathos).

[...] procura-se, em toda relação de comunicação, convencer o outro de alguma coisa, persuadi-lo, levá-lo a acreditar em algo, a experimentar algo e a fazer o que se quer que ele faça. As estratégias de persuasão do discurso caracterizam o sujeito da enunciação por seu modo de ação. Apresentam-se, sobretudo, como “escolhas” da enunciação de tempo, de espaço e de ator (de pessoa), com a finalidade de convencer o destinatário da verdade (ou da falsidade) do discurso enunciado. […] Para que a manipulação funcione é preciso ainda que o destinatário manipulado interprete a persuasão do outro, acredite no destinador e faça o que dele se espera. (BARROS, in FANTI & BARBISAN, 2012, p.28)

2.2 A Ironia presente no RPR

Embora a palavra estilística já fosse usada no século XIX, é no século

XX que ela passa a designar uma nova disciplina ligada à Linguística. E,

considerando que ela tem um campo de estudo mais amplo que o da Retórica:

não se limitando ao uso da linguagem com fins exclusivamente literários

(MARTINS, 2008) é que os estudos estilísticos identificam o fenômeno da

ironia mais do que uma simples inversão e que uma figura de linguagem.

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Ou seja, para que aqui se possa identificar o estilo suassuniano, a ironia

será considerada como uma expressão que demonstra liberdade de

pensamento e de linguagem, de modo a introduzir o inesperado sendo um

convite ao diálogo cúmplice, num debate de argumentos entre pares. É uma

negação interna entre o conteúdo explícito e o contexto implícito, gerando um

enunciado bivalente.

* * *

Fundador de uma nova estética, Ariano Suassuna une à cultura clássico-

erudita as expressões populares advindas do Sertão nordestino do Brasil; e o

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é um livro

em que muito se utiliza dessa união. Sem qualquer desmerecimento e muito à

vontade para identificar o lado socialmente grotesco da cultura mítica popular –

reconhecida até hoje, nos sertões nordestinos por meio dos mitos populares –,

Suassuna faz uso de um estilo por vezes caracterizado por uma ironia que

parece estar a serviço de um processo de dessacralização dessa Cultura

Popular.

O RPR revela a ironia da própria realidade de seu criador e o contexto

que a cerca, mediante a criação de D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna.

Bibliotecário e memorialista, este personagem se dirige à Nação brasileira em

confissões que a todo o momento parecem dar voz a seu criador (Suassuna),

chamando atenção (levando à reflexão) para a importância de mantermos viva

a cultura de “seu” Sertão. Na história contada por este narrador-protagonista

Quaderna, tem-se que, tal como os romances de cavalaria – nos quais seus

heróis buscam restaurar alguma ordem perdida –, a espécie de delírio

“quadernesco” em se declarar Rei do Brasil parece revelá-lo como um

“empoeirado” e “castanho” herói sertanejo

Em uma analogia ao que seria a nação brasileira residente no Sertão em

busca por uma identidade, Quaderna parece estar sempre em uma trajetória

(repetitivo!) por uma estrada que representa essa sua busca pela sua

identidade em um passado “glorioso”, na tentativa de apagar suas mazelas;

sendo nítida, durante toda a narrativa, a presença de inúmeros símbolos

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sertanejos representados por insígnias e brasões. Logo no início, o leitor

identifica que a trajetória deste protagonista inicia-se com a chegada do Rapaz

do Cavalo Branco: o seu primo Sinésio, o Alumioso – uma espécie de

representação das influências portuguesas, das quais se destaca a crença no

mito sebastianista.

Quanto ao chamado “universo irônico” pelos quais iremos tratar

especificamente a partir do Capítulo 3 deste trabalho, pode-se antecipá-lo por

meio da identificação de um Quaderna caracterizado como personagem

cômico-irônico inspirado nos palhaços que compuseram a infância e

adolescência de Suassuna. Para melhor elucidar, tem-se que durante a história

do RPR, aos poucos o protagonista narra sua formação relatando a tentativa

frustrada de seu pai, Pedro Justino, em enviá-lo para o seminário, pois que não

se identificou com a vida religiosa. Na metade do Romance, Quaderna deixa

claro ao leitor a contribuição de seus dois gurus – Samuel, conservador

monárquico; e Clemente, popular e revolucionário –, com os quais conviveu e

formou-se um “Monarquista da Esquerda”. Tanto assim, podemos adiantar o

seguinte fragmento:

Fragmento 02

- Sr. Pedro Dinis Quaderna, dou-lhe os meus parabéns por sua notável

lucidez política e pela - como diremos, Dona Margarida? - pela franqueza com que

vem dando depoimento sobre seus amigos. Espero, agora, que o senhor use, em

relação a si mesmo, da mesma franqueza que usou para os outros. Chegou a sua

vez, Sr. Quaderna! O senhor é extremista da Esquerda, da Direita ou do Centro?

- De nenhum dos três, Excelência! Eu sou Monarquista da Esquerda!

- Como é?

- Monarquista da Esquerda - repeti mais alto, para ele ver que era aquilo

mesmo e não tinha por onde, como dizia minha Tia Filipa.

- O senhor pode me explicar essa posição? O que foi que trouxe o senhor

para ela?

- Os motivos foram vários, Excelência, e o senhor entenderá tudo melhor à

medida que for me conhecendo mais. Um dos motivos mais importantes, porém, é

que eu sou um Epopeieta.

- Um o quê, Bibliotecário Quaderna?

- Um Epopeieta, um poeta épico, um autor de epopeias! (RPR, p. 341)

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em que é a própria “impossibilidade” de uma posição política “Monarquista da

Esquerda” que torna irônica a fala de Quaderna neste diálogo junto do Juiz-

Corregedor.

E, lembrando que a linguagem de Quaderna é ao mesmo tempo formal e

grandiloquente, como também, carregada de aspectos da oralidade,

aproveitamo-nos deste Fragmento 2 para frisar a primeira aparição da palavra

Epopeieta no RPR. Formada pelo acréscimo sufixal -eta, o vocábulo Epopeita,

é uma criação lexical suassuniana e seu significado pode ser considerado

como sendo relativo ao escritor de epopeias, tal como afirma seu próprio

criador, por intermédio da voz do protagonista do Romance d’A Pedra do Reino

e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, o personagem D. Pedro Dinis Ferreira-

Quaderna. Para além de um surgimento em consequência de uma

necessidade social e linguística, a criação do neologismo “epopeieta” surge

como resultado de intenções estiísticas de um locutor que quer causar certos

efeitos no interlocutor (BARBOSA, 1981, p. 136).

Para Barbosa:

Há, em nossa língua, considerável número de unidades lexicais que são criadas a partir de elementos mórficos – lexêmicos ou gramêmicos – já existentes no universo lexical. Constitui natural tendência dos falantes o recurso a signos linguísticos já existentes, quando da criação de novos signos. (Ibidem, p. 186)

* * *

“Jogando” com as palavras e com a oralidade da língua portuguesa – em

especial, aquela proveniente do Sertão –, o Quaderna irônico pouco a pouco

vai se solidificando na compreensão do leitor, sobretudo por meio de seus

encaixes de apelo que se estendem até o final da história, criando a

proximidade entre enunciador e enunciatário. Assim sendo, uma vez instalado

o jogo entre locutor (Suassuna/Quaderna) e leitor, a ironia necessita dar conta

dos conflitos e das diferenças entre os protagonistas deste processo, revelando

ser uma forma de tolerância ao outro. Mostra um narrador extremamente

consciente que sabe usar os recursos da linguagem a seu favor. Para Tavares:

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Todo o Romance d’A Pedra do Reino se baseia na ideia de que o Sertão é a mais verdadeira das coisas, e por isso é terrivelmente belo, de uma beleza convulsa, agressiva, medonha, e às vezes destruidora e mortal. [...] Suassuna parece ter colhido da experiência sensorial proporcionada pela vida no Sertão uma grande parte da estética peculiar que inspira seu romance, uma estética em que, mais do que a serenidade, a harmonia, a perfeição de formas, o que conta é a intensidade sensorial e emotiva das experiências, que se vincula a uma paisagem física calcinada, pedregosa e áspera, e a uma paisagem social entretecida de violência e misticismo, contemplação estoica e mutirões solidários, malassombros e catástrofes, tragédias sem desespero e epifanias sem explicação. (2007, p.163)

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CAPÍTULO 3

3 IRONIA, LÉXICO E ESTILO SUASSUNIANO NO RPR

[...] meu grito final de revolta só ocorreu mesmo no dia em que abri uma Enciclopédia e lá encontrei meu nome escrito como Ariano Suaçuna, que, sem dúvida, mais parece nome de Cobra que de gente. Foi a partir daí que tomei a decisão de só escrever o que quero e como quero. São minhas heranças barrocas, populares e simbolistas que explicam, entre outras coisas, minhas maiúsculas “arbitrárias” e meus hífens “não-autorizados”. (SUASSUNA, 2000, In SUASSUNA, 2008, p.279)

Já na época em que Ariano Suassuna concebe o Romance d’A Pedra do

Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, ele se entrega ao estilo

“libertário”. Em meio às ideias de escrever só o que quer e como quer, deixa

bem confortável o seu fazer poético, ao mesmo tempo em que se vê livre para

criticar ferozmente a sociedade e respectivas instituições, encarando

literariamente de vez, a hipocrisia social a partir de uma postura transgressora.

E para nos referirmos a Suassuna, podemos parafrasear algumas

observações de Discini (2013). Dizemos então que, ao apresentar um “herói”

politicamente não-correto e que de maneira satisfatória sustenta-se na

narrativa, Suassuna relativiza verdades e dogmas na completa

desestabilização de um refinado statu quo. Por vezes, imita e subverte

convenções de ordem autoritária, [na qual] firma-se um ethos oposto ao da

submissão a dogmas, apoiado, portanto, no simulacro do eu livre, libertador e

libertário (p.47). No RPR, Suassuna instala sua arena de conflitos por meio de

uma enunciação irreverente e usa estrategicamente a ironia para arquitetar seu

significado (Idem, Ibidem, p 266).

Buscaremos, pois, neste capítulo, associar esse estilo “libertário”

suassuniano à ironia utilizada nos enunciados do RPR, os quais revelam uma

atmosfera irônica presente em toda a enunciação – neste caso, em toda a

narrativa. No entanto, sendo o RPR uma obra extensa, optamos por centralizar

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nossas análises em quatro categorias, cujos trechos extraídos deste corpus,

têm como propósito apontar os discursos irônicos de narrador e personagens

por entre suas 754 páginas. São elas (categorias):

- Quaderna e seu discurso irônico de apelo, realizado por meio do

vocativo;

- a ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias

e filosóficas;

- a ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida

Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”;

- Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista.

Tanto assim, considerando que:

O locutor é apresentado como o ser responsável pela enunciação. Isto é, alguém a quem se deve imputar a responsabilidade pela produção do enunciado. Diferentemente do autor empírico, trata-se de uma ficção discursiva, embora geralmente coincida com este no discurso oral. É ao locutor que remetem as marcas de primeira pessoa contidas no enunciado. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.65)

para que possamos ilustrar nossas colocações frente à ironia presente nos

referidos discursos, temos nossas análises realizadas nas quatro categorias já

indicadas, porém a partir da seguinte organização:

Quadro 4

A ironia no discurso em 1ª pessoa do narrador-protagonista Quaderna, sendo:

- Quaderna Narrador = Locutor Zero (Lº)

A ironia no discurso direto dos personagens principais –

Quaderna, Juiz-Corregedor, Samuel e Clemente –, sendo:

- Quaderna Protagonista = Locutor 1 (L¹); - Demais personagens = Locutor 2 (L²), Locutor 3 (L³);

e assim sucessivamente, na medida em que eles aparecem nos excertos.

Obs.: Sempre considerando, também, o Lº (“Quaderna Narrador”).

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A ironia no discurso direto de determinados personagens, a qual, na sequência, é

explicitamente indicada pelo discurso em 1ª pessoa do narrador-protagonista Quaderna:

- Quaderna = Locutor Zero (Lº) & Quaderna Protagonista = Locutor 1 (L¹); - Demais personagens = Locutor 2 (L²), Locutor 3 (L³);

e assim sucessivamente, na medida em que eles aparecem nos excertos.

Há que se lembrar que nossas análises serão realizadas, sobretudo, a

partir dos estudos de Nilce Sant’Anna Martins, Maria Aparecida Barbosa,

Norma Discini e, até mesmo, Manuel Rodrigues Lapa. E, conforme já

apresentado no Quadro 4 da página anterior, faremos uso da abreviação “L”

de Locutor, tal como Martins o fez em suas discussões e análises de

Introdução à Estilística. Desse modo, vale lembrar que para ela:

O emissor (Lº) transcreve o enunciado de outra pessoa (L¹) tal como foi formulado ou como se imagina ou simula que o foi, mantendo todos os seus traços de subjetividade: interjeições, exclamações, blasfêmias, interrogações, ordens, expressões de desejo, enfim, sugere-se o enunciado vivo, como saiu ou deveria sair da boca daquela outra pessoa. (2008, p.32)

Porém nossa maior fonte de referência são os estudos de Beth Brait

publicados sob o título Ironia em perspectiva polifônica. De todo modo não nos

apropriaremos das várias abreviações utilizadas pela mesma, como, por

exemplo, A¹ para o locutor que dirige um certo discurso irônico para um

receptor (A²), para caçoar de um terceiro (A³) (BRAIT, 2008, p.78).

Embora fosse interessante considerarmos que:

[...] os três actantes envolvidos podem coincidir no todo ou em parte, dependendo do tipo de discurso em que aparecem. No caso de um solilóquio irônico há a coincidência entre A¹ e A³. Há ainda a possibilidade de o receptor ser tomado como alvo, o que implica uma coincidência entre A² e A³ ou, ainda, um caso de solilóquio autoirônico em que coincidem A¹/A²/A³. (BRAIT, 2008, p.78)

e sendo abreviação “A” de Actante relativa às análises do discurso irônico (no

caso, uma abreviação pertencente ao que Brait aponta de trio actancial

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proposto por Greimas), de qualquer maneira a deixaremos de lado, optando,

como já esclarecido acima, pela abreviação “L” e tão somente.

3.1 Quaderna e seu discurso irônico de apelo realizado por meio do vocativo

O ironista, o produtor da ironia, encontra formas de chamar a atenção do enunciatário para o discurso e, por meio desse procedimento, contar com sua adesão. Sem isso a ironia não se realiza. O conteúdo, portanto, estará subjetivamente assinalado por valores atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de forma a exigir a participação do enunciatário, sua perspicácia para o enunciado e suas sinalizações, por vezes extremamente sutis. Essa participação é que instaura a intersubjetividade, pressupondo não apenas conhecimentos partilhados, mas também pontos de vista, valores pessoais ou cultural e socialmente comungados ou, ainda, constitutivos de um imaginário coletivo. É a organização discursivo-textual que vai permitir esse chamar a atenção sobre o enunciado e, especialmente, sobre o sujeito da enunciação. (BRAIT, 2008, p.138)

Embora se pudesse defender que todo o Romance da Pedra do Reino e

o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta fosse uma narrativa de apelo, isto é, um

“total” discurso de apelo do Lº (“Quaderna Narrador”), o objetivo, nesta parte

inicial de nossas observações, é indicar quais são as ocorrências específicas

de apelo do Lº, dadas por meio do vocativo.

Para a análise propriamente dita, recortamos um único trecho em que

possamos não apenas apontar e analisar o vocativo, mas apontar e analisar

cada uma das passagens do fragmento, as quais apresentam, no enunciado,

expressões que revelam mais claramente a ironia deste Lº. O recorte para

compor nosso primeiro fragmento é, também, o primeiro trecho de ocorrência

do vocativo, que se dá logo no início do enredo, na quarta página da história

(página 34 do livro).

Por meio do discurso do Lº, a narrativa do RPR se inicia no momento em

que narra estar preso em Taperoá, na data de 09 de outubro de 1938, acusado

pela morte de seu Padrinho e pelo desaparecimento de seu primo. E, logo em

uma das primeiras páginas do Romance, no Folheto I, há o apelo dirigido ao

público, cujos integrantes/componentes – segundo este Lº – são todos os

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Brasileiros, sem exceção (SUASSUNA, 2012, p.34). Verifiquemos este recorte

abaixo:

Fragmento 03

Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha

vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e

gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso, o mundo me

pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos Reis de Ouro com

castanhas Damas de Espada, onde passam Ases, Peninchas e Coringas, governados

pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. É por isso também

que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 - faminto,

esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos quarenta e um

anos de idade - dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção (01); mas

especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados - toda essa

raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim, aos

escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-Escrivães e Acadêmicos

fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui, expressamente, por

intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras.

Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual estou

sendo submetido por decisão da justiça, este é um pedido de clemência, uma espécie

de confissão geral, uma apelação - um apelo ao coração magnânimo de Vossas

Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm sempre o coração mais

brando, esta é uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de

Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem.

Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha

terrível história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de sensualidade e

violência; de enigma, de morte o disparate; de lutas nas estradas e combates nas

Catingas; história que foi a suma de tudo o que passei e que terminou com meus

costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos

Cariris Velhos da Capitania e Província da Paraíba do Norte

(RPR, p.34-35)

De acordo com a passagem 01, há que se considerar o fato de que,

dirigir-se a todos os brasileiros, sem exceção, torna o Lº deveras pretensioso;

razão pela qual parece adiantar um ar irônico – que se perpetuará durante toda

a narrativa –, na medida em que se tem, neste cenário, todo um povo (todos os

brasileiros) “aos pés” do relato que está a ser proferido por seu enunciador.

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[...] já no primeiro folheto, Quaderna esclarece que sua narrativa é um memorial, o que prepara e justifica o reiterado apelo que o narrador dirige “aos nobres Senhores e belas Damas”. Por outro lado [...] Quaderna consegue que seu discurso seja um verdadeiro apelo a seus ouvintes, à “Nação Brasileira”. Para isso monta uma representação: seu “romance-epopeico” é a transcrição do seu depoimento ao Corregedor; portanto, um discurso preso à oralidade. (MICHELETTI, 1997, p.138)

Conforme o discurso avança e se desenrola neste Fragmento 03,

percebemos o movimento de uma crescente (cadência/ritmo) irônica, tornando

o fenômeno ainda mais nítido. Arriscamos dizer que nada tão irônico até então

(ou, quem sabe, nada tão explicitamente irônico), havia sido declarado por este

Lº, uma vez que, basicamente, tem-se nas páginas antecedentes apenas uma

apresentação descritiva do cenário e de algumas concepções quadernescas –

mesmo que determinadas críticas já tenham sido expostas por meio de

expressões tais como: indomável Vila sertaneja e Raça piolhosa dos homens.

Assim sendo apresenta-se a ironia quadernesca em todo o discurso deste

Fragmento 3 e, por conseguinte, daí por diante a atmosfera da história já pode

se tornar, toda ela, irônica.

Salientamos que o Lº – na sequência ao dizer que se dirige a todos os

Brasileiros – restringe este seu público, declarando que se dirige,

especialmente, aos magistrados e soldados, e também aos escritores

brasileiros. Encerra sua restrição referindo-se até mesmo, às esposas destes

homens anteriormente citados (magistrados e soldados e escritores

brasileiros), e, após uma explicação/justificativa plenamente irônica para com

os “brandos corações” dessas mulheres, finalmente o Lº se utiliza de um

vocativo que irá se repetir ao longo de toda a narrativa.

Tanto assim, o Lº dirige-se a seu público, por meio da invocação nobres

Senhores e belas Damas de peitos brandos, pedindo para que este (público)

não fuja ao que está por vir, escutando sua terrível história.

O conceito para o fenômeno que põe em destaque entre vírgulas, a

pessoa a quem se fala, é um termo denominado vocativo que está, segundo

Martins (2008):

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[...] à parte da estrutura da oração, que pode ele próprio ser uma frase, assim como permite várias colocações (início, meio e fim da frase), presta-se a várias funções da comunicação do esquema de Jakobson. Na nossa vida diária, estamos constantemente a usá-lo; na função apelativa, chamando um interlocutor, provocando-lhe a atenção, e, ao mesmo tempo, renovando o contacto com ele, o que já é da função fática; mas ele é também afetivo, pois revela o sentimento do falante em relação ao interlocutor, podendo assumir tonalidades várias, que vão da ternura à rispidez. (p.214)

Separadamente, agora, segue cada um dos três parágrafos do

Fragmento 3, a fim de levantarmos específicos trechos irônicos.

1º Parágrafo do Fragmento 03

Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha

vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e

gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso, o mundo me

pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos Reis de Ouro com

castanhas Damas de Espada, onde passam Ases, Peninchas e Coringas, governados

pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. É por isso também

que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 - faminto,

esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos quarenta e um anos de idade (02) - dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção; mas

especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados - toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros (03). Dirijo-me,

outrossim, aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-Escrivães

e Acadêmicos fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui,

expressamente, por intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras (04).

(RPR, p.34)

Conforme destacado, neste 1º Parágrafo identificamos três passagens

explícitas de ironia. Na passagem 2, tem-se o modo inflamado com que o Lº

discursa acerca de sua fragilidade.

Procurar-se-á então entender como e por que um estilo [...] Trata-se de “formas de ‘heterogeneidade mostrada’, que inscrevem ‘o outro’ no fio do discurso — discurso direto, aspas, formas interpretativas ou explicativas, discurso indireto livre, ironia”, como diz Authier-Revuz (1984: 98) (DISCINI, 2013, p.224)

* * *

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Estendendo as formas de “heterogeneidade mostrada” citadas acima,

entendemos que, colocada entre travessões a passagem 02, observa-se a

ênfase que o Lº pretende dar à descrição de sua condição física por estar

vivendo encarcerado. E mesmo que demonstrando (ou simulando) total

debilidade, engana-se aquele (Leitor Empírico) que acredita na fragilidade do

Lº e o compreenda como um “coitadinho”.

Pelo contrário, o Lº concretiza a ironia no enunciado por meio de sua

esperteza. Dessa maneira, mesmo franzino, o Lº, Quaderna, está longe de ser

alguém fraco, uma vez que ele é pleno de esperteza e, inclusive por isso, faz-

se irônico na tentativa de se representar como uma espécie de “pícaro”; porém,

é claro, nada há de ingênuo e puro nele, quando analisada e caracterizada sua

argumentação bastante persuasiva.

Tem-se, pois, na passagem 2 uma ironia instalada: ao querer se valer

das mazelas próprias daquele que está preso, o leitor atento deve observar a

malícia irônica com que o Lº pretende se aproveitar dessa situação.

Já na passagem 03 tem-se a acidez do Lº ao referir-se a magistrados e

soldados. Quando declara toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e

prender os outros, nitidamente ironiza este grupo de profissionais. Na

expressão toda essa raça ilustre, o uso do substantivo ‘raça’, além de ser um

elemento que comumente é utilizado para diminuir o referente (magistrados e

soldados, no caso), quando acompanhado do adjetivo ‘ilustre’ torna essa

expressão ainda mais irônica, se considerarmos a ironia como sendo

construída e firmada/concretizada a cada termo acrescentado a um sintagma

(por exemplo) como este – neste caso, o acréscimo final do irônico

“desqualificador” ilustre.

Aqui vale o parêntese para o fato de que tal expressão raça ilustre –

dentre outras ocorrências iniciais do RPR dadas no Folheto I – foram

anteriormente comentadas por Micheletti em seu texto “Fórmulas de cortesia e

efeitos irônicos em A Pedra do Reino, de A. Suassuna”.

Segundo a pesquisadora:

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Embora palavra raça venha acompanhada do qualificativo ilustre, o pronome demonstrativo essa que a precede, nesse contexto, carrega um valor depreciativo. Como sublinha Rodrigues Lapa (1977, p. 167), o demonstrativo exprime valores afetivos, muitas vezes pejorativos. Esse traço pejorativo se constitui do poder que os referidos por essa raça ilustre têm sobre os demais, inclusive sobre o depoente que está preso. Poder esse que torna o adjetivo “ilustre” irônico. Na ironia, utilizada por Quaderna há um certo humor que visa a criar uma empatia com seus leitores, os seus “ouvintes’. (2014, p.4)

Aprofundando, então, a análise para a expressão raça ilustre,

observamos que ela, quando acompanhada dos termos toda essa, por sua vez,

ao mesmo tempo em que ‘toda’ parece generalizar o grupo de magistrados e

soldados – visto que, para os pronomes indefinidos:

A própria denominação diz o suficiente sobre o tom de imprecisão e misteriosa vaguidão que caracterizam este pronome. Os grandes escritores têm ainda o poder de refugir aos consagrados esquemas gramaticais e, pelo uso de locuções, acentuarem o indefinido das coisas e das circunstâncias. (LAPA, 1973, p.133)

– ‘essa’ parece conferir uma especificação à expressão raça ilustre. Por isso,

enquanto ‘toda’ compreende o universo completo de magistrados e soldados

desse mundo (de onde não se escapa nenhum deles), ‘essa’ parece

representar ironicamente a imagem de um dedo em riste apontado para este

grupo e antecipando as ações de seus integrantes, as quais não são aceitas

pelo Lº – ações essas, representadas na sequência do sintagma pelo trecho

que tem o poder de julgar e prender os outros. Assim, temos ‘essa’ remontando

àquilo de que já se conhece, que já se sabe, embora:

Nos estudos linguísticos, grosso modo, os pronomes demonstrativos são definidos como tendo a função de situar a posição de um ser ou objeto no tempo e no espaço, tendo como referente os participantes da interação. (RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.109)

Para além, portanto, deste conceito supracitado, nos estudos do texto,

eles [pronomes demonstrativos] são analisados na abordagem da progressão

textual (Idem, Ibidem, p.109). Segundo Lapa (1973), o demonstrativo pode

exprimir valores afetivos e claro que a atmosfera e a entoação desempenham

neste caso um papel importante; são elas que imprimem à expressão o

verdadeiro significado (p.130).

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Sendo assim, irônica e estilisticamente, ‘essa’ abandona sua função

primeira de referência ao posicionamento real do enunciador, para referir-se a

um posicionamento pejorativo diante daquele grupo. Mais do que a

representação de uma mão em movimento desdenhando o grupo, o emprego

de ‘essa’ possibilita – como já dissemos – imaginarmos o “dedo em riste” firme

e acusador do Lº apontando e balançando em direção daqueles integrantes

que estão situados próximos a ele. Ironicamente, tem-se a inversão dos réus,

na medida em que o grupo é “difamado” pelo Lº, conforme revela-nos a ironia

da expressão.

À vista disso, elucida-se a maneira como o Lº conhece e reconhece esse

grupo e, claro, não aceita suas ações. No plano da enunciação como um todo,

percebe-se o deboche instalado para com a instituição dos magistrados e

soldados, uma vez que ele próprio, Lº, ironicamente se encontra no direito de

julgar aqueles que o julgam; aqueles – que têm o dever de julgar e fazer

cumprir a condenação dos criminosos – parecem ser os próprios condenados,

em se considerando essa ironia.

Na mesma passagem 03, ao final, tem-se a ocorrência do pronome

‘outros’ que é uma referência a ele próprio – ao Lº (Quaderna) – e a todos os

membros da sociedade em oposição aos magistrados e soldados. Embora

novamente generalizando, ‘outros’ é mais um pronome indefinido utilizado

estilisticamente para corroborar o efeito irônico, de modo que nesta progressão

textual, o Lº confia neste vocábulo a responsabilidade em generalizar do

mesmo modo todas as ações dessa raça, pondo em xeque seus julgamentos e

dando a entender que – independente da necessidade da absolvição dele, e,

quem sabe, de todo e qualquer cidadão que se veja em mesma situação –

ninguém pode ter o poder de julgar e prender o outro. Sendo assim, o Lº põe

em xeque a arbitrariedade com que a instituição do Supremo Tribunal,

representada na figura de seus magistrados e soldados, julga e sanciona um

condenado.

Reiteramos que, ironicamente, aqueles que devem ter o poder de

defender a sociedade e prender os criminosos, na visão do Lº não deveriam

fazê-lo. (A impressão/sensação que a ironia transmite, neste caso, é de que –

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no geral, entre todas as pessoas desse mundo – ninguém poderia julgar o

outro.)

Por sua vez a passagem 04, finaliza a crítica direta às figuras

masculinas, que, mais tarde – ou melhor, na sequência –, o Lº irá chamar

ironicamente é claro de nobres Senhores. Já no momento em que se refere à

Academia Brasileira, por meio da expressão Supremo Tribunal das Letras, o Lº

apresenta uma ironia que expõe sua opinião acerca do que imagina serem as

arbitrariedades, também realizadas por esta instituição (Academia). Associada

a um “Supremo Tribunal”, digamos que a Academia é rebaixada de sua

categoria, porém “elevada” ironicamente ao órgão máximo de poder, sendo

delegada a ela (a partir desse momento) a responsabilidade por todo e

qualquer julgamento que se faz necessário, quando ameaçado seu caráter de

ordem.

É como se a ordem linguística e literária retirasse a liberdade linguístico-

literária da comunidade de escritores, tolhendo a tudo o que se apresenta de

contrário às suas normas. Nesta passagem 04, o Lº não se preocupa em medir

consequências ao usar o que parece ser a mais forte e presente ironia do

Fragmento 03, pois que o caráter metalinguístico revelado é relativo ao seu

fazer poético e à narrativa (história) que se segue.

Vale destacar, além disso, que novamente temos o demonstrativo ‘esse’

que se faz irônico. Reforçando a ideia de especificação/caracterização desse

grupo, mais uma vez revela que o Lº conhece bem aqueles que ocupam as

cadeiras da Academia, sendo, então, alvos de suas críticas.

Corroborando a ironia na passagem 04, o Lº faz uso do termo ‘das’ para

Supremo Tribunal das Letras, em lugar de Supremo Tribunal de Letras.

Estilisticamente optando pela preposição ‘de’ acompanhada de artigo definido

‘as’ (de + as), o Lº nitidamente retira do campo “Letras” um recorte, ou seja, faz

uma restrição ao campo, referindo-se a uma parte dele e, de maneira irônica, a

rebaixa; enquanto a outra parte é implicitamente preservada é, no caso, a parte

em que ele se inclui. Nos estudos do artigo e os nomes próprios, Lapa faz a

seguinte explicação, seguida de exemplo:

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Contudo a demasiada familiaridade com um homem pode trazer como resultado um aviltamento das suas qualidades. Por isso se diz hoje, não apenas com intimidade, mas com certo sentido displicente: o Camões, o Bocage, etc. No seu célebre soneto a Eurico, a personagem do romance de Herculano, Guerra Junqueira escreveu: “Beija a Hermengarda, a tímida donzela”. O verso ficaria talvez melhor sem aquele primeiro artigo; mas o autor quis dar à figura da irmã de Pelágio um aspecto familiar e cidadão. Aquele artigo definido é pois intencional e até irônico. (LAPA, 1973, p.95)

Da mesma forma da citação acima, o mesmo se dá com a composição

de + as para a expressão das Letras em lugar da opção de Letras, neste caso.

Observando qual o efeito deste modo de escrever, Suassuna parece verter um

desprezo, uma vez que adornando a expressão com o artigo ‘as’ carrega-a de

intenção pejorativa (Idem, Ibidem, p.95).

Não poderia, portanto, fazer uso de um “solitário” ’de’ porque estaria ele

– e todos os demais escritores – presentes em um campo de Letras pleno e

único. Por conseguinte nem todas as “Literaturas” – que parecem se dividir em

repulsivas e não repulsivas na ironia quadernesca – encontram-se como fruto

dos escritores do grupo da Academia. Pelo contrário, lá estão somente as

repulsivas.

Conclui-se que, grosso modo, na visão do Lº, pode-se dizer que nem

tudo está perdido, visto que uma parte da Literatura se salva; é uma Literatura

“libertária” e que está fora da Academia; é a sua Literatura, a Literatura

quadernesca.

2º Parágrafo do Fragmento 03

Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual estou sendo submetido por decisão da justiça (05), este é um pedido de

clemência, uma espécie de confissão geral, uma apelação - um apelo ao coração

magnânimo de Vossas Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm

sempre o coração mais brando, esta é uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem (06).

(RPR, p.35)

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Toda a declaração do Lº, presente no 1ª Parágrafo, é nitidamente

reforçada no início deste 2º Parágrafo, conforme sua primeira palavra – sua

primeira expressão Sim! – tem o poder de recuperar o parágrafo anterior.

Quando declara Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário,

ao qual estou sendo submetido por decisão da justiça, na passagem 05, ‘sim’

comprova a preocupação do Lº em sanar qualquer dúvida que o público possa

ter levantado frente à justiça – ou melhor, injustiça – pela qual ele vem sofrendo

quando se tratam de instituições políticas e literárias, tal como se expressa por

meio de tempo político e literário. E claro que a expressividade estilística de um

‘sim’ em um contexto irônico como este, sempre remete a um reforço imediato

e quase que de um efeito “enlouquecido” que o enunciador possui para

interromper o discurso, na tentativa de reforçar o que se diz.

Na passagem 06, observa-se o sarcasmo do Lº, sobretudo ao reduzir

todo o público feminino – que inicialmente apareceu como parte integrante do

grupo de todos os Brasileiros – às mulheres de Vossas Excelências.

“Descaradamente” também reduz a feminilidade à fragilidade de quem tem a

pureza e facilidade de manipulação, dado que se apresenta com o coração

brando, ou seja, brandos peitos, brandas excelências. Quando diz de todas as

mulheres, entende-se que todas têm o peito brando.

Destacamos que há um tom “’prá lá” de irônico, quando se percebe o

humor (comicidade) proveniente da expressão brandas excelências, dado que

o termo ‘excelências’ remete diretamente aos seios (busto feminino),

transformando-se em referente sinonímico para este órgão feminino

acompanhado do adjetivo brandas, o que requer a possibilidade humorística de

delegar ao busto (às excelências) o conforto brando para acalentar este

locutor; ao que outrora tenha sido o acolhimento a seus aleitados filhos, quem

sabe agora possam acolher ao “coitadinho” deste Lº, Quaderna.

Subvertendo, desse modo, a instituição família, por sua vez, esta

passagem 06 apresenta, em sua ironia, aquela que serve para que possa se

acalentar, tal como os filhos de outrora; ou ainda, sexualmente falando, tal

como se desfrutam delas (excelências) seus respectivos esposos.

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3º Parágrafo do Fragmento 03

Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos (07), minha terrível história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de sensualidade e

violência; de enigma, de morte o disparate; de lutas nas estradas e combates nas

Catingas; história que foi a suma de tudo o que passei e que terminou com meus

costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos

Cariris Velhos da Capitania e Província da Paraíba do Norte.

(RPR, p.35)

No 3º parágrafo e último do Fragmento 03, os pronomes de tratamento

escolhidos para o vocativo nele presente, embora possam remontar à cultura

medieval (em atendimento, inclusive, ao gênero Cordel, visto que se localiza

logo nas primeiras páginas da narrativa, na sequência ao trecho de abertura,

cujas características já foram apresentadas anteriormente, em nossa

Introdução deste trabalho), concretizam o tom irônico do Lº nesta passagem 07. Por isso o mecanismo da ironia se vê mais forte e agressivo no Lº,

conforme outros elementos se inserem neste sintagma, colaborando para o

efeito pretendido.

* * *

Realizado este apelo inicial na passagem 07, começa o relato

quadernesco de histórias repletas de aventuras por meio de uma ardilosa

argumentação para que se possa convencer a todos. Além dos traços irônicos

mais e menos explícitos, caracterizados pela fluidez da argumentação, por

vezes o relato se distancia da realidade, revelando igualmente determinados

efeitos humorísticos. Segundo Micheletti, na ironia utilizada por Quaderna há

um certo humor que visa a uma empatia com seus leitores, os seus ouvintes

(2014).

Salientamos que este chamamento apresentar-se-á em inúmeros outros

momentos ao longo da narrativa, reforçando o pedido quadernesco de “preste

atenção, por favor”, mesmo que em tom irônico. Isto é, em todos os momentos

em que o Lº percebe a necessidade/importância de chamar atenção de seu

público, ele o faz. É preciso salientar que nem sempre o sintagma central

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nobres Senhores e belas Damas irá se repetir acompanhado de peitos

brandos. Ao todo são mais de vinte passagens em que o Lº dialoga

diretamente com seu público, dirigindo-se a este por meio do referido sintagma.

Nobres Senhores e belas damas: um vocativo mais que irônico; um sintagma polivalente.

Embora muitos fenômenos, como o sintagma, são ora relacionados ao

campo da gramática, ora ao campo da estilística, como se fosse borrada a

fronteira entre os dois campos devemos, sim, sempre levar em conta que a

escolha de uma determinada forma gramatical pelo autor é um ato de estilo

(RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.107). Para Bakhtin (2003ª):

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer fenômeno concreto da linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto [totalidade] de um enunciado individual ou do gênero do discurso já se trata de fenômeno estilístico. (apud RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.107)

Além do acompanhamento de seios brandos para as belas Damas,

outras formas estarão – ou não – junto deste sintagma. Ou não, porque, na

maioria dos casos, ele (sintagma) ocorrerá sozinho, sem qualquer outra

referência, apresentando-se apenas como nobres Senhores e belas Damas. E

vale lembrar que, por mais que puramente apresentado como nobres Senhores

e belas Damas pudesse, sozinho, trazer a sensação de elevação da posição

social do público a quem o Lº se dirige, devemos reconhecer que,

contrariamente/ironicamente é o ocorre. Portanto todas as passagens que

contam com a presença deste sintagma – seja ele sozinho, ou não –

expressam a ironia do Lº para com seu público.

Formado pela base nobres Senhores e belas Damas, ao todo são quatro

diferentes formas de ocorrência deste vocativo ao longo da narrativa; sendo

uma delas (a 3ª) a ocorrência sem qualquer acréscimo e a que se apresenta

mais frequente. Vejamos todas elas abaixo:

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Quadro 5

...nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos...

1º sintagma7, ocorrido pela primeira vez na página 34

e que se repete duas vezes ao longo da narrativa.

...nobres Senhores e belas Damas de peitos macios...

2º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página 47

e que também se repete três vezes ao longo da

narrativa.

...nobres Senhores e belas Damas...

3º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página 59

e o que mais se repete ao longo da narrativa. No

total são dezesseis vezes em que ele é repetido.

...nobres Senhores e belas Damas que me ouvem...

4º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página

291 e que se repete duas vezes ao longo da

narrativa.

Como não iremos nos estender nas análises recortadas de cada uma

dessas ocorrências, todas elas estão devidamente representas, em anexo, ao

final deste trabalho, conforme a indicação dos fragmentos descritos acima; em

exceção, é claro, ao 1º sintagma, visto que já foi apresentado e vem sendo

aqui analisado, neste trecho de nosso trabalho.

* * *

Em se considerando, pois, a permanência do vocativo por toda a

narrativa, bem como a continuidade à ironia travada contra as instituições

Supremo Tribunal de magistrados e soldados e Academia Brasileira de Letras,

reiteramos que o Fragmento 03, dado no início da narrativa, apresenta-se

como uma espécie de justificativa a tudo o que está por vir.

E, mesmo que sem definir exatamente este Lº, Quaderna, é possível

verificar que sua postura discursiva revela determinadas características que

impossibilitam sua associação a um pícaro. À vista disso, é como uma espécie

7 Nas edições anteriores, a primeira ocorrência do sintagma se dá já na primeira página do Romance (em sua folha de abertura), na forma nobres Damas e Senhores.

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de palhaço que o Lº revela seus traços ironicamente inocentes, porém o leitor

atento percebe este farsante. Por outro lado, podemos dizer que, conforme o

enunciatário se vê na perfeita condição em traduzir o discurso estilisticamente

proferido – e irônico – em uma representação mental de “movimentos”

característicos a um palhaço eufórico que não “mede” seu discurso, já nos

parece possível que o Lº seja reconhecido como a própria vítima de sua

argumentação, como o próprio farsante palhaço que cai em sua própria

armadilha que é a ironia.

Para Lemos, não à toa, Quaderna possui trejeitos típicos de um palhaço:

O personagem-narrador Quaderna [...] é ao mesmo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, religioso e satírico, sangrento cheio de gargalhadas. Do risível e cômico ao dramático e trágico, Quaderna, nesse ponto, transparece a voz de seu criador Suasuna e é um maestro conciliador de suas contradições e das tensões de pensamento que provoca com o seu discurso. Regente de tensões opostas. (2007, p.13)

Abrimos aqui um parêntese para o fato de que a figura do palhaço, e

consequentemente do circo, sempre fizeram parte da vida de Suassuna, sendo

o interesse deste Locutor Empírico revelá-la em sua obra; em seu estilo. Desse

modo, com base nessa caracterização cômico-irônica do personagem

Quaderna, o próprio Suassuna diz:

Um personagem meu, Quaderna, o narrador d’A Pedra do Reino, fala assim a certa altura para o Juiz Corregedor que o interroga: “Desde menino que eu era entusiasmado com circo [...].” E depois, quando ele chama seus amigos Clemente e Samuel para organizarem uma expedição que vai procurar um certo importantíssimo tesouro, é sob a forma de Circo que ele planeja a viagem. Diz ele: “Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa! [...]” Assim, como se vê, a visão do Circo é fundamental para se entender não só meu Teatro mas toda a poética que se encontra por trás dele, do meu romance, da minha poesia e até da minha vida, como um dia talvez venha a revelar melhor. (In SUASSUNA, p.211)

Não podemos negar que a “animação” do Lº para os inúmeros

chamamentos nobres Senhores e belas Damas pode ser identificada por seu

tom circense, uma vez que se percebe uma analogia ao chamamento do

público frequentador do circo, para os grandes momentos do espetáculo. Tal

como no circo, no RPR o Lº realiza este vocativo para chamar a atenção de

seu público para os momentos mais “espetaculosos” a serem apresentados

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durante a história. Imbricam, pois, ironia e comicidade, mesmo que sejam

fenômenos não exatamente paralelos. E, embora seja possível tal associação

entre ironia e comicidade, devemos aqui lembrar que:

Em meios aos aspectos que provocam as sérias divergências existentes entre os diversos grupos de pesquisadores estão as diferenças ou semelhanças que abrangem termos como ironia, sátira, humor, cômico, paródia, riso e outros tantos constantemente invocados, mesmo nos estudos que se propõem a tratar especificamente da ironia. [...] É somente a partir de um posicionamento que se pode focalizar um desses termos e, por exemplo, alinhar e definir todos os outros, ou estabelecer novas séries que excluem a possibilidade de abranger todos numa única. (BRAIT, 2008, p.73)

A singular narrativa quadernesca deste Lº impressiona pela fluidez,

todavia por vezes, distancia-se da realidade, haja vista que se apresentam os

traços irônicos e caracterizados ora com humor, ora com sarcasmo e ora,

ainda, com deboche. À vista disso todas as passagens que contém o alusivo

sintagma, primeiramente ocorrido na passagem 07 – seja ele sozinho, ou não

–, expressam a ironia do Lº para com este seu público. E já se começando

assim, dirigindo-se ferozmente a seu público com esta ironia, mesclada por um

cinismo “inocente”, o que se esperar de toda a história a ser narrada por este

Lº? Eis que todo o contexto é irônico.

A partir de então, enunciador e enunciatário se fazem cúmplices, sendo

atribuída à ironia a responsabilidade por esta cumplicidade visto que diminuem

as distâncias entre estes protagonistas da enunciação (enunciador e

enunciatário), firmando-se, portanto, a direção argumentativa da ironia e

fazendo-se recorrente, ou melhor, total.

* * *

Podemos dizer que, realizado seu apelo inicial, o Lº, Quaderna, discursa

acerca de seus antepassados e sempre, sempre, com ironia. Retomando as

histórias vividas por ele mesmo e/ou por seus ascendentes, ressaltamos que o

Lº mescla um discurso clássico-filosófico a uma linguagem peculiar do Sertão,

para que possa se defender. Inicialmente, recupera a história de seu

antepassado relativa a quatro impérios do Sertão, remontando à Primeira

notícia dos Quaderna, incluindo-se a história de “Dom Ferreira-Quaderna, o

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execrável” que, terrivelmente, sacrificou parte de seu povo, conforme

degolamento público ocorrido no local denominado de “Pedra do Reino”. Por

considerar-se herdeiro dessa tradição (de uma raça “castanha”), é neste local

onde o Lº declara pretender (auto)coroar-se como “rei” de um novo império, a

partir de uma sagração paródica.

Ao longo de sua narrativa, então, o Lº reconstitui as histórias sertanejas

de suas famílias e relata o seu próprio percurso por aquelas terras, em meio a

ritos e aventuras, além, é claro, de realizar tudo isso por meio de uma

argumentação a serviço de sua defesa e do convencimento de todos de sua

inocência.

3.2 A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias e filosóficas

O que eu sei é que o Quaderna nos impõe e nos arrasta a ele e a nós pelos seus mundos alucinados, através dos seus delírios genealógicos e seus mistérios e enigmas nem sempre decifrados. (QUEIROZ In: SUASSUNA, [1971] 2012, p.17)

Já aproximados e cúmplices – desde a primeira ocorrência do vocativo

nobres Senhores e belas Damas,–, enunciador e enunciatário parecem

conviver, desde esse momento, em uma relação de comunhão estabelecida na

proposição de uma narrativa caracterizada pela ironia. Ou seja, onde há ironia,

certa sobrecarga de cumplicidade atravessa o sujeito da enunciação,

diminuindo as distâncias entre enunciador e enunciatário (DISCINI, 2013,

p.124).

Tanto assim, na sequência da apresentação inicial quadernesca

introduzindo didática e metodologicamente sua ironia frente a algumas

instituições e seus concernentes representantes, é durante os momentos de

embate entre os discursos de Clemente e Samuel que a atmosfera irônica mais

possui seu viés “ferino”. Posterior ao que foi uma espécie de

explicação/justificativa do Lº – já descrita em nossa análise anterior deste

trabalho –, a proposta narrativa quadernesca firma-se irônica podendo ser

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observada nos momentos em que este Lº revela por meio de seus relatos, o

conflito entre as ideias destes dois personagens. Discussões que tratam da

figura de Homero, das características do gênero Epopeia, ou mesmo dos

estudos filosóficos, serão aqui analisadas a partir de alguns fragmentos

escolhidos para tal; pois que é por meio do discurso direto tanto de Samuel

quanto de Clemente, que Quaderna parece assegurar o ritmo de seu relato,

podendo – pouco a pouco – comprovar suas ideias e concepções acerca de

determinados pontos a serem corroborados pelas vozes destes dois

personagens.

Segundo Micheletti (1997), tem-se que no RPR:

Tal como no folhetim, o papel social e a postura das personagens são facilmente identificáveis, porque estas se apresentam tipificadas. Dessa forma, as personagens que encarnam duas correntes políticas contrárias: o Comunismo e o Integralismo, respectivamente, o Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio e o Doutor Samuel Wandernes, bem como o narrador, que se pretende numa posição intermediária, caracterizam-se por atitudes, traços físicos e vestimentas que lhes conferem um aspecto caricatural [...]. (p.31)

Destacamos que antes da página 181 –, na qual a história prevê a

primeira conversa a ser travada entre os personagens Quaderna, Samuel e

Clemente –, o Lº, Quaderna, remete-se aos outros dois em inúmeros

momentos de seu discurso narrativo ao longo de seu relato. Assim sendo,

analisaremos dois trechos retirados da apresentação de cada um destes dois

personagens, mesmo que sem o recurso do discurso direto.

Apresentação dos personagens Samuel versus Clemente por meio do discurso narrativo do protagonista Quaderna (Quaderna Narrador = Lº)

Considerando que a expressividade é

[...] o meio do qual o falante se vale para alcançar seu objetivo de exteriorizar seus pensamentos, imprimindo suas marcas de singularidade. Ela ocorre sempre em relação a um outro falante, real ou imaginário, individual ou coletivo. Através desse mecanismo, o falante atua por meio da linguagem, fazendo um uso pessoal da língua, recriando-a constantemente. O procedimento que gera a expressividade não é nem automático, nem infalível. (In: FLORES et al 2009, p.118)

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e sendo neste trabalho observada a ironia como produto dessa expressividade,

percebe-se a importância de uma análise frente aos momentos de discurso

exclusivamente narrativo do Lº para com a caracterização física e psicológica

dos importantes personagens Samuel e Clemente.

Temos, assim, que a primeira aparição de Samuel, dada no segundo

parágrafo do Folheto II “Caso da Estranha Cavalgada”, já prevê um instantâneo

retrato deste personagem na passagem: o Doutor Samuel Wandernes, homem

intelectual, Poeta e promotor da nossa Comarca (SUASSUNA, 2012, p.35).

Clemente, por sua vez, embora apareça primeiramente junto de Samuel na

página 44, sua primeira efetiva caracterização acontece somente na página

164, conforme fragmento que se segue:

Fragmento 04

Nós vivíamos, na "Onça Malhada", sob os cuidados de um preceptor, o

Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (08), "um Filósofo, um bacharel, um historiador, um luminar, uma sumidade (09)", como era voz corrente no Sertão.

Era filho de pais incógnitos (10). Sabia-se que era da Vila do Patu, no Rio Grande do Norte (11). Em menino, "era um negrinho bonito, de cabelo bom (12)", deixado na porta do célebre latinista sertanejo (13), Antônio Gomes de Arruda Barretto, em

Brejo da Cruz, Paraíba, perto da fronteira do Rio Grande do Norte. O humanista

Antônio Gomes tomara o menino e educara-o no seu famoso "Colégio Sete de

Setembro", onde Clemente foi aluno brilhante (14). Aproveitando os fumos liberais

do Segundo Império e de Dom Pedro II, o moleque exposto fez os preparatórios e

ingressou, depois, na Faculdade de Direito do Recife (15). (RPR, p.164)

Este Fragmento 04 é o segundo parágrafo componente do Folheto

XXIV, intitulado “O Caso do Filósofo Sertanejo” cujo conteúdo é todo ele para a

apresentação deste personagem, Clemente. Já devemos observar, aqui, o fato

de Quaderna parecer querer justificar a grandeza do ser humano Clemente –

da pessoa Clemente –, conforme a preocupação em apresentar suas

características psicológicas anteriormente a qualquer uma de suas

características físicas. Na sequência da apresentação de seu nome e

sobrenome junto ao título Professor (passagem 08), Quaderna descreve

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Clemente como sendo um Filósofo, um bacharel, um historiador, um luminar,

uma sumidade (passagem 09). Podemos dizer que, nesta passagem 09,

observa-se o cuidado do Lº para com uma intencional gradação, revelada

estilisticamente por um ritmo oportunizado pela sequência dos substantivos

(nomes) acompanhados de artigos indefinidos e separados por vírgulas.

Quanto ao papel fundamental da repetição expressiva do artigo

indefinido, devemos ressaltar que além de produzir um belo efeito estilístico,

uma vez que, segundo Lapa, o (artigo) indefinido serve para traduzir a

indeterminação e o mistério, sabemos que sem eles este ritmo, esta gradação,

não seria possível. Se o Lº tivesse reproduzido os substantivos ‘filósofo,

bacharel, historiador, luminar, sumidade’ absolutamente sem qualquer outro

elemento – que não a vírgula –, não atenderia ao mesmo efeito.

Ora a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimentos da sensibilidade. É por isso que o artigo indefinido traduz muitas vezes os sobressaltos da alma, a intensidade obscura dos afetos. É um instrumento precioso para exprimir a complicação da alma moderna, o seu caráter impressionável. (LAPA, 1973, p.96)

Isto posto ressaltamos que o artigo indefinido dramatiza o caso,

reforçando ao mesmo tempo a intensidade da representação. Eis porque esse

morfema se emprega muitas vezes como uma espécie de superlativo, e que é

o que ocorre neste caso da passagem 09. Entre o artigo e o nome

subentende-se qualquer coisa como “grande”, “enorme”, sendo bem visível que

o morfema valoriza intensamente o nome a que se refere. (Idem, Ibidem, p.97)

Ao contrário de encerrarmos a análise da passagem 09, optamos por

estendê-la um pouco a mais essa nossa espécie de “produtiva divagação

analítica”, para que possamos consultar o uso das aspas, visto que elas

oportunizam a observação da ironia deste enunciado.

Ou seja, por mais que o discurso seja do próprio narrador da história –

Lº, Quaderna –, este parece querer jogar a responsabilidade de sua descrição

a outrem, pois que, ao fazer uso das aspas, promove um certo esclarecimento

de que aquelas não seriam palavras suas, e sim reproduzidas de acordo com o

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que está na “boca do povo”, traduzindo o que o “povo” diz de Clemente;

reportadas como o “povo” caracteriza Clemente.

Para Bakhtin, não existe um objeto de discurso que já não seja dialógico, pois não há uma fala original. No dito coexiste o já-dito. A ideia de compreensão ativa é particularmente ilustrativa desse aspecto. A transmissão da palavra de outrem, como objeto de transmissão interessada, é sempre parcial. A consciência de si está sempre presente na consciência que o outro tem do locutor. O “eu para si” no qual as vozes constituem a consciência do sujeito e que este, por sua vez, fala a partir do discurso do outro, com o discurso do outro e para o discurso do outro. Na voz do sujeito, está a consciência que o outro tem dele. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.59)

Por esta razão, temos o que o próprio trecho subsequente como era voz

corrente no Sertão, vai confirmar; revela o discurso do outro – o “povo”, o

senso comum – que é exatamente o responsável por tal designação, já que o

Lº somente reproduz o que se diz “por aí”. Não apenas nesta passagem 09,

mas em outras é o que acontece. É, assim, uma espécie de discurso indireto,

em se considerando que:

Com o discurso indireto não se usam, normalmente, os sinais diacríticos que destacam o discurso direto, a saber, dois pontos, aspas, travessão, ou ainda outras formas de realce como grifo, itálico ou negrito. Contudo, em casos especiais, o enunciado transcrito, ou apenas parte dele, pode receber alguma dessas marcas, seja pela intenção de demonstrar fidelidade, seja para dar ênfase ao que foi dito, seja por ironia ou dúvida do citador. (MARTINS, 2008, p.195)

Reafirmamos que queremos dizer que o que temos na passagem 09 é

um Lº que, ao dar voz ao “povo” para a sua descrição de Clemente, não se

responsabiliza pela citação. Quer esteja em acordo, quer esteja em desacordo

com a “voz corrente”, sutil e ironicamente o fato é que o Lº parece não querer

dar o braço a torcer das mesmas opiniões relativas às qualidades de Clemente.

Desse modo, mesmo que seu discurso tenda favorável a um enaltecimento

desse personagem, há indícios de que na verdade seja exatamente o contrário;

ou melhor, ironicamente tem-se um sentimento de orgulho que o Lº tem em

não querer trazer, ele próprio, os elogios àquele que muito já contribuiu e

influenciou em sua formação intelectual. Ele o faz apenas por intermédio dessa

“voz corrente”.

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E aqui já podemos adiantar que, aos poucos, o Lº vai deixando

transparecer que – mais do que nunca – Clemente pode ser um rival em

potencial, dado que ele – Lº – se vê acima de tudo e de todos, e por que não,

inclusive daqueles que outrora foram seus mentores intelectuais; no caso aqui,

Clemente, um destes dois mentores/tutores.

* * *

Ainda que o Lº tenha somente reproduzido o senso comum na descrição

de ordem psicológica de Clemente (passagem 09), não devemos

desconsiderar o fato de que a maneira com que os cinco substantivos

engrandecem Clemente é algo que veio inicial e propositalmente, para que o Lº

pudesse se encontrar mais “confortável” em declarar que Clemente [em

menino] era um negrinho bonito, de cabelo bom (passagem 12). Esta

passagem 12 funciona como ponto de chegada após todo um cuidado do Lº

em anteriormente engrandecer o personagem. Porém, além de ponto de

chegada esta mesma passagem 12 funciona ao mesmo tempo como ponto de

partida se considerarmos que vem anterior à deixado na porta do célebre

latinista sertanejo (passagem 13).

Sob a luz deste enfoque, fica cada vez mais claro para nós que o Lº quer

justificar o fato de uma ilustre família (branca, ao que tudo indica) acolher em

seu seio familiar um menino negro deixado junto de sua porta. O Lº se

preocupa excessivamente em chamar a atenção para as questões de ordem

étnico-racial e suas respectivas implicações em nossa sociedade, uma vez que

parece querer fazer-se compreender pelo seu público (leitor/enunciatário/

receptor) que, por sua vez, deverá perceber a necessidade dos cuidados

quadernescos para, enfim, declarar a questão da adoção; de tal maneira que o

Lº constrói uma situação confortável para conduzir o pensamento de seu

receptor acerca da possibilidade aceitável de um menino bonito e de cabelo

bom, mesmo sendo negro, poder ser educado como um ente de uma família

branca e abastada.

É como se o Lº pudesse preservar a pessoa de Clemente sem dar

qualquer chance a uma possível discriminação a ser sofrida por ele. Porém é

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mais do que isso; é, nesse caso uma ironia. A maneira como esta situação se

instala gera no público (leitor) a sensação dos cuidados excessivos do Lº, ou

seja, é irônico o fato do Lº fazer-nos pensar que ele se preocupa em deixar

claro que pretende preservar Clemente de alguma possibilidade de

discriminação. Porém, ao mesmo tempo levanta – com extrema ênfase – uma

abordagem preconceituosa com a qual convivemos em nossa sociedade,

levando-nos consequentemente à reflexão. Ao contrário de ser algum

preconceito por parte do Locutor Empírico Suassuna revelado no discurso do

Lº, o que temos – reiteramos – é exatamente a revelação do preconceito

existente em nossa sociedade.

De todo modo, adentrando a toda essa situação étnico-racial, devemos

salientar que há, portanto, o levantamento da possibilidade de que o senso

comum poderia partir da premissa de que ‘negrinho’ encontra-se em oposição

a ‘bonito’. Da mesma maneira poderia ser observado que embora o cabelo de

Clemente fosse bom, não é o que deva acontecer com a maioria dos cabelos

dos ‘negrinhos’; tudo isso, conforme o discurso proveniente do senso comum, a

saber, um senso comum “carregadíssimo” de preconceito. Eis que as

expressões ‘negrinho bonito’, e de ‘cabelo bom’ revelam o preconceito

embutido no discurso de senso comum presente em nossa “real” sociedade –

por meio do uso das aspas que delegam a responsabilidade ao “povo” – e,

claro, revelados pelo Locutor Empírico, por meio do discurso de sua criatura

Quaderna (Lº).

E, mesmo que a abordagem étnico-racial ligada às possibilidades

discriminatórias e/ou preconceituosas levantadas por meio do discurso

quadernesco não tivesse se dado em um processo explícito para com a

apresentação de Clemente, temos que considerar, neste momento, que em

uma contraposição direta entre as apresentações de Clemente e de Samuel,

tudo pode ficar mais claro para que se comprove a intenção do discurso

quadernesco.

Tem-se, pois, que no Folheto XXV, “O Fidalgo dos Engenhos” –

subsequente ao folheto da apresentação de Clemente –– Samuel também tem

a chance de ser melhor caracterizado pelo Lº no decorrer deste fragmento:

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Fragmento 05

Durou essa posição soberana de Clemente até 1906 ou 1907, quando, entre

nós, apareceu outro personagem, também importantíssimo em nossa história, o

Doutor Samuel Wandernes (16). Este não era negro (17), nem do Sertão, nem do Rio Grande do Norte (18). Era branco e fidalgo (19), "um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos" (20), como costumava dizer. Segundo nos disse, seu

Pai, Senhor arruinado do Engenho "Guarupá", tornara-se corretor-de-açúcar no

Recife, onde "vivia à larga, à moda fidalga". Ele, Samuel, "Morgado do Guarupá",

também formado na Faculdade de Direito (21), era, porém, não um radical (22), como Clemente (23), mas "um poeta do Sonho e pesquisador da Legenda" (24). Nessa qualidade, planejara, também, um livro, uma obra-de-gênio intitulada O Rei e a

Coroa de Esmeraldas.

(RPR, p. 165)

Observa-se que, embora tanto Clemente quanto Samuel sejam

bacharéis em Direito, não são referidos pelo mesmo título. Ao contrário de

Clemente que leva o título de Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio

(passagem 08), a Samuel é efetivamente dado o título de Doutor Samuel

Wandernes (passagem 16). Eis que ironicamente o Lº cuida para que se preze

por um distinto tratamento entre estes dois oponentes.

Adiantamos que a ironia relacionada às passagens dos Fragmentos 04 e 05 se dá desde as diferenças linguísticas dos nomes e sobrenomes de cada

um deles, porém, para além da escolha suassuniana, ou seja, para além da

escolha estilística do Locutor Empírico Suassuna quando da criação desses

nomes e suas relações possíveis. À vista disso, fora do empírico e dentro da

ficção, a impressão que temos é que Clemente – certa vez, dentro do campo

dessa ficção – teve total liberdade de escolha de seu sobrenome, visto que não

carrega o sobrenome da família que o criou/educou (representada na figura de

Antônio Gomes de Arruda Barreto). Porém isso se dá de maneira irônica, de

modo que não exatamente seria a liberdade de Clemente, e sim a não

possibilidade dele possuir um sobrenome tão abastado como ‘Gomes de

Arruda Barreto’, mesmo sendo, este, o sobrenome daquela que foi a família

que o criou. Isso é algo que muito chama a atenção, sobretudo pela crueldade

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exposta à frente de nossos “olhos” quando deste possível impedimento de

ordem preconceituosa.

Tal como ocorre no Fragmento 04, ao longo do Fragmento 05 tem-se

novamente o uso das aspas e sempre utilizadas estilisticamente para o mesmo

efeito expressivo já tratado anteriormente: a não responsabilidade de Quaderna

quanto às características apresentadas por ele; ainda que tenham sido

escolhidas por ele indicam que este Lº poderia não partilhar das mesmas

opiniões advindas do senso comum (“povo”).

Sendo Assim, apresentamos a seguir, um quadro que contrapõe cada

uma das características enumeradas acima, para que possamos aclarar os

pontos divergentes apresentados pelo discurso quadernesco, o qual confirma a

classe/posição social destes dois atores do enunciado.

Quadro 6

CLEMENTE

SAMUEL

- [...] Professor

Clemente Hará de Ravasco Anvérsio. Passagem 08

FRAGMENTO 4

- [...] Doutor Samuel Wandernes.

Passagem 16 FRAGMENTO 5

- [...] um Filósofo, um bacharel, um

historiador, um luminar, uma sumidade. Passagem 09

FRAGMENTO 4

- [...] um gentil-homem dos

Engenhos pernambucanos, Passagem 20

FRAGMENTO 5

- [...] um poeta do Sonho e

pesquisador da Legenda. Passagem 24

FRAGMENTO 5

- [...] filho de pais incógnitos. Passagem 10

FRAGMENTO 4

-[...] era (branco e) fidalgo, Passagem 19

FRAGMENTO 5

- [...] era da Vila do Patu,

no Rio Grande do Norte. Passagem 11

FRAGMENTO 4

- [...] (não era) nem do Sertão

nem do Rio Grande do Norte Passagem 18

FRAGMENTO 5

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- [...] (em menino) era um negrinho

bonito, de cabelo bom, Passagem 12

FRAGMENTO 4

- [...] não era negro Passagem 17

FRAGMENTO 5

- [...] deixado na porta do

célebre latinista sertanejo. Passagem 13

FRAGMENTO 4

-

- [...] foi aluno brilhante. Passagem 14

FRAGMENTO 4

-

- [...] ingressou (depois) na

Faculdade de Direito do Recife. Passagem 15

FRAGMENTO 4

- [...] também formado

na Faculdade de Direito, Passagem 21

FRAGMENTO 5

- (como Clemente = era um radical) Passagem 23

FRAGMENTO 5

- [...] era (porém,) não um radical,

(como Clemente) Passagem 22

FRAGMENTO 5

Para completar o retrato físico e ainda psicológico de Samuel e de

Clemente, bem como preencher ainda mais o quadro acima, poderíamos

recorrer a outros tantos trechos de narração/descrição de Quaderna (Lº) que

ilustram esta posição oponente firmada entre os dois personagens. Porém

deixaremos para retomá-la (oposição) mais adiante, quando das análises do

discurso direto proferido por cada um deles.

* * *

Continuando, então, na análise de trechos narrativos, não poderíamos

deixar de notar que Samuel também é tratado com ironia pelo Lº, o qual se

utiliza apenas do que lhe é conveniente. Mesmo com todas as diferenças

travadas entre Samuel e Clemente, Quaderna sempre os coloca numa posição

irônica, uma vez que ambos são extremistas tanto no sentido da distância

ideológica que há entre um e outro, bem como extremistas no sentido de que

ambos são irredutíveis. E sem que nos estendamos demasiado, cumpre-nos

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fazermos proveito do próprio fragmento anterior (5) para salientar alguns

destes pontos que apresentam a ironia quadernesca para com a figura de

Samuel. Ao contrário de Clemente que é o dito “Professor” - e quem sabe, o

mais “intelectual” dos dois – Samuel, por sua vez, na voz do Lº, é dado como

Doutor, conforme passagem 16. Sabe-se que no português falado no Brasil, o

termo “doutor” tem em uma de suas acepções àquela relativa ao campo do

pejorativo e que é referente à classe dominante, chamada hoje de minoria

favorecida socialmente. Se pensássemos da mesma maneira em sua variante

“doutô”, lembraríamos que o termo basicamente representa um pronome de

tratamento utilizado/“pronunciado” por determinados falantes brasileiros que se

auto classificam como inferiores àqueles com que eles chamam de “doutô”. Tal

variante é, portanto, algo que se refere àquele que tem um poder social maior,

ou seja, uma posição social mais elevada – sempre em relação/comparação a

outrem – comumente de alto padrão em relação à maioria desfavorecida sócia

e culturalmente. É, pois, a palavra “Doutor”, aqui utilizada ironicamente no

discurso do Lº e representando o status quo de uma sociedade injusta que é a

sociedade brasileira.

E, em se considerando toda essa discussão dada sob o enfoque da

ironia quadernesca, podemos ressaltar que Samuel é branco e fidalgo

(passagem 19), vindo de um lugar que não fica no Sertão, nem no Rio Grande

do Norte, de acordo com a passagem 18, mas sim – ao que tudo indica – de

um local muito mais “abastado”. Digamos que este lugar seria Pernambuco,

visto que é um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos (passagem 20).

No discurso irônico do Lº percebe-se que Samuel é capaz de ser tão

fino/elegante que não chega a ser considerado um radical no discurso presente

no enunciado, porém toda a enunciação confirma a ironia quadernesca, dado

que efetivamente Samuel é sim um radical de ideologia irredutível.

Também nos compete dizer que – tal como já apresentado,

anteriormente, em outros momentos deste nosso capítulo – mais uma vez

temos o uso das aspas em duas das passagens destacadas neste Fragmento 05. São elas: “um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos” (passagem 20); “um poeta do Sonho e pesquisados da Legenda” (passagem 24),

reforçando o estilo quadernesco de ironicamente colocar suas opiniões a partir

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do uso das falas pré-concebidas e ideologicamente já constituídas por uma

maioria (toda uma sociedade), chamada de “senso comum” – já apontado

desde a primeira análise das aspas neste trabalho.

A ironia no discurso direto dos personagens Quaderna (L¹), Samuel (L²) e Clemente (L³)

Utilizando-nos de trechos das falas destes personagens registradas por

meio do recurso do discurso direto, oportunizado pelo narrador, temos que

finalmente na página 181 do Folheto XXVII “A Academia e o Gênio Brasileiro

Desconhecido” dá-se a primeira ocorrência do discurso direto dos três

personagens. Então, separamos abaixo este trecho, mesmo que ele não

possua o embate entre os oponentes Samuel versus Clemente:

Fragmento 06

Colei de novo, cuidadosamente, os envelopes e, três dias depois, procurei

meus dois rivais e Mestres (25). Fingi que ignorava tudo e falei assim:

- Olhem, vocês dois aí! (26) De uns tempos para cá tive uma ideia que

poderia trazer vantagens importantíssimas para nós: seria entrarmos, nós três, para o

"Instituto Histórico e Geográfico Paraibano"!

Os dois me olharam, tensos, mas nada disseram e eu continuei:

- Com meu espírito de sacrifício, resolvi tentar minha entrada na frente, para

desbravar o caminho, mas fui recusado! Estou comunicando isso, porque, como vocês dois são Doutores (27), talvez o caminho que devamos seguir seja o oposto:

vocês se candidatariam e, depois de aceitos, patrocinariam minha candidatura!

Só se vendo o desprezo com que Samuel comentou para Clemente:

- Ah, era o que faltava, Clemente! Você ouviu? Rebaixarmo-nos desse jeito, dando, servilmente, ao Sr. Instituto, a honra de solicitar-lhe que nos aceite entre seus ilustres membros! Era o que faltava! (28)

- Era o que faltava! – ecoou Clemente com o mesmo riso falso. - Quaderna, se o Instituto nos quer, eles que nos aclamem por unanimidade, sem iniciativa nossa! E veja lá: nós concordaremos ou não, depois de pesar as vantagens e desvantagens que existem em ser membro do Instituto! (29)

(RPR, p. 181)

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Pelo contrário, o que há nesta primeira passagem (Fragmento 05) é um

outro embate: o embate entre Quaderna versus Samuel & Clemente. O Lº ao

disponibilizar o discurso direto para dar voz aos dois personagens Samuel (L²)

e Clemente (L³), promove um momento em que, ironicamente, ambos estão em

acordo; em comunhão de ideias. É como se o fato deles se unirem na

contraposição à opinião de Quaderna, fosse algo que desconstruísse o já

constituído; ou seja, dois antagônicos personagens, Samuel versus Clemente –

que vinham até este momento sendo apresentados ao público a partir de suas

diferenças físicas e psicológicas e, claro, a partir de suas diferentes

concepções e opiniões acerca do mundo em sociedade – são, agora, dois

personagens “iguais” no que concernem suas opiniões relativas ao modo de

entrada ao Instituto.

Devemos observar que antes da utilização da primeira ocorrência do

discurso direto neste Fragmento 05, há no discurso do Lº a passagem 25, a

qual ele (Lº, Quaderna) refere-se a Samuel e Clemente por meus dois rivais e

mestres colocando-os intelectualmente lado a lado e distantes dele próprio.

A passagem subsequente, que já é o próprio discurso direto do L¹

(Quaderna Personagem), permite-nos observar que tanto quanto

espacialmente (ainda que virtualmente) Samuel e Clemente também estão

dispostos lado a lado (juntos) em local contrário/oposto ao de Quaderna. Por

meio do termo ‘aí’, tem-se nesta passagem 26 a comprovação dessa oposição

espacial a qual instala a situação “Quaderna versus Samuel & Clemente”, ao

mesmo tempo, em que revela ainda uma virtual oposição intelectual de mesma

natureza: ideais/opiniões quadernescas versus ideias/opiniões de Samuel &

Clemente.

Voltando para a narrativa do Lº, tem-se na passagem 27 mais uma clara

aproximação entre as figuras de Samuel e de Clemente, pois, ao dizer como

vocês dois são Doutores, o L¹, Quaderna, utiliza-se do título Doutor, da área do

Direito, para referir-se tanto a um quanto ao outro, uma vez que ambos são

bacharéis desta Área. Diferentemente de toda a apresentação narrativa

anterior, a qual descreve Samuel como Doutor e Clemente como Professor,

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nesta passagem 27 Quaderna coloca-os na mesma posição

“social”/profissional.

O curioso é podermos delegar tudo isso à própria ironia presente na

enunciação. O que queremos dizer é que o fato dos dois personagens terem

sido, até então, apresentados com características divergentes no discurso do

Lº, é agora no Fragmento 05 por um mecanismo convergente que ambos se

unem no combate à opinião de Quaderna, neste primeiro trecho de conversa

entre os três. É uma ironia se pensarmos por este prisma e, claro, se

pensarmos por que razão Quaderna, após exibir suas divergências, coloca-os

em convergência para um embate de ideias em que ambos – unidos – travarão

com ele.

Devemos admitir, porém, que não se trata exatamente de que o Lº tenha

se utilizado de um total estranhamento, tal como Pereira (2012) esclarece que

seja esta estratégia discursiva,

O estranhamento – estratégia discursiva que expõe o conflito entre posições e consiste na apresentação de elementos intradiscursivos – palavras, expressões e/ou orações – e interdiscursivos, da ordem do ex-cêntrico, isto é, daquilo que se situa “fora” do que está sendo dito, mas que incide na cadeia significante, marcando uma “desordem” no enunciado. Aqui pode se dar aquilo que, em análise de discurso, denomina-se efeito de “pré-construído” através do qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado “antes, em outro lugar, independentemente”, rompendo (ou não) a estrutura linear do enunciado. Possui como características a imprevisibilidade, a inadequação e o distanciamento daquilo que é esperado. (In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.99)

mas, se considerarmos a crescente, a gradação descritiva relativa ao retrato

dos dois personagens em oposição, o fato de estarem, agora, em total paralelo,

prova a ironia quadernesca de que ambos, embora sejam diferentes ao grau

máximo de oposição, são – juntos – contrários às ideias quadernescas.

Adianta-se a conclusão de que no discurso narrativo, o Lº deixa clara a

sua visão frente à oposição entre Samuel e Clemente; porém no seu discurso

direto, o L¹ Quaderna, por sua vez, não prevê em seu discurso esta mesma

distinção. Parece que o discurso direto do L¹, Quaderna, quer garantir durante

a conversa com os outros dois personagens, que a posição deles (seus

mentores e opositores) deva ser acima da dele próprio, dado que Samuel e

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Clemente foram – e são – seus mentores intelectuais. Porém isto não é o que

garante a ironia presente na enunciação. Ou seja, por mais que haja uma

situação instalada pelo enunciado quadernesco – e aqui tem-se a soma do Lº

ao L¹ – a ironia deste enunciado é garantida pela enunciação visto que, na

verdade, ironicamente Quaderna (“gênio máximo”) vê-se acima de Samuel &

Clemente; que são consequentemente colocados abaixo dele (Quaderna).

Com isso, o Lº parece querer firmar ao público que as opiniões

quadernescas são as corretas, as adequadas; persuasivamente declaradas a

nós e nos fazendo “acreditar” de que são as melhores e/ou as mais

“corretas”/”adequadas”. Ironicamente falando, é a superação intelectual

quadernesca quando em comparação à intelectualidade de seus mentores.

Para elucidar toda esta discussão proveniente da análise do Fragmento 05, destacamos, ainda, as duas passagens de discurso direto: o discurso direto

do L² (Samuel) e o discurso direto do L³ (Clemente). Na passagem 28, tem-se

que Samuel (L²) dirige-se a Clemente e diz:

Passagem 28 do Fragmento 06

- Ah, era o que faltava, Clemente! Você ouviu? Rebaixarmo-nos desse jeito, dando, servilmente, ao Sr. Instituto, a honra de solicitar-lhe que nos aceite entre seus ilustres membros! Era o que faltava! (28)

(RPR, p. 181)

Clemente L³, concordando com Samuel, responde, de acordo com a

passagem 29:

Passagem 29 do Fragmento 06

- Era o que faltava! - ecoou Clemente com o mesmo riso falso. - Quaderna, se o Instituto nos quer, eles que nos aclamem por unanimidade, sem iniciativa nossa! E veja lá: nós concordaremos ou não, depois de pesar as vantagens e desvantagens que existem em ser membro do Instituto! (29)

(RPR, p. 181)

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Vale observar nesta passagem 29 que durante o discurso direto do L³,

há a intervenção do Lº, que vai além do uso comum de um verbo dicendi.

Neste caso, além do fato da opção crítico-estilística do Lº pelo dicendi ‘ecoou’

já antecipar a crítica quadernesca em relação à fala de Clemente, tem-se

também que toda a frase de intervenção narrativa dentro do discurso direto –

ecoou Clemente com o mesmo riso falso – mais uma vez corrobora para a

convergência entre as atitudes de Samuel e Clemente, pois que os dois –

segundo o Lº – estão com “aquele riso falso” sobre ele; ou melhor sobre

Quaderna.

Devemos frisar que, mais do que nunca, o verbo ‘ecoou’ representa na

ironia quadernesca do Lº, a falta de criatividade e a reprodução/repetição

daquilo que já foi havia sido pronunciado por Samuel. É mais uma dessas

representações que alinham Samuel e Clemente.

Temos, então, neste caso, Quaderna versus Samuel & Clemente, de

modo que estes dois comungam da mesma ideia ao contraporem as

colocações do protagonista frente às suas visões de mundo, neste caso, em

relação à inscrição para o Instituto.

* * *

Devemos lembrar, no entanto, que neste segundo momento de análise –

“A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias e

filosóficas” – interessa-nos apontar a ironia embutida nos discursos dos

personagens, que se dá por meio do discurso direto. É, assim, um momento

em que privilegiamos nos próximos fragmentos (7, 8 e 9), as conversas e

diálogos, os quais apresentam o debate acerca:

- da figura de Homero;

- da Filosofia Clementina do Penetral;

- do gênero Epopeia.

E claro, não podemos deixar de considerar a peculiaridade do discurso

direto que é a fidelidade dada à citação do falante/locutor. Segundo Martins

tem-se que:

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Enquanto no discurso indireto predomina a interpretação, a adaptação, no discurso direto predomina a reprodução fiel, a imitação. No indireto reduz-se a subjetividade do L¹, sendo o Lº o responsável pelo enunciado; no discurso direto o Lº é um mero intermediário que se submete à emotividade do L¹. Diz-se que o discurso direto escrito é objetivo porque cita com fidelidade as próprias palavras de um falante. (MARTINS, 2008, p.196)

3.2.1 O debate acerca da figura de Homero

Dois folhetos à frente daquele em que se encontra a primeira conversa

entre Quaderna, Samuel e Clemente, temos extraído nosso sétimo fragmento

dado no início do Folheto XXIX “O gênio Máximo da Humanidade”:

Fragmento 07

Aquilo também me interessava profundamente, pelo que, sem querer, dei uma

esporeada no vazio de "Pedra Lispe", que deu uma poupa. Reequilibrei-me e falei:

- Como é? E o cargo de "Gênio Máximo da Humanidade" também ainda está

vago? Pergunto, porque, no "Seminário da Paraíba", a gente estudava Retórica num

livro do Doutor Amorim Carvalho, as Postilas de Retórica e Gramática. Esse Doutor

era "Retórico do Imperador Pedro II", de modo que sua palavra não é brincadeira, e

ele afirma que, de todos os Poetas, "o primeiro, no tempo e na glória, é Homero"!

- Discordo inteiramente, porque está absolutamente errado! - disse Clemente. - Essa ideia da autoria individual das obras é reacionária e está ultrapassada! Hoje, está provado que Homero nunca existiu! Os dois poemas que são a "obra da raça grega" foram compostos aos poucos, pelo Povo, e reunidos depois pelos eruditos! (30)

- A autoria da obra é sempre trabalho de um homem só! - disse Samuel, já se irritando. - Homero não foi o "Gênio Máximo da Humanidade", mas o motivo principal disso foi a vulgaridade, a grosseria que o levou a lançar mão daquelas horríveis histórias populares! (31)

Eu procurei, de novo, desviar a briga. Interrompi:

- Bem, o importante é que já estão demonstradas três teses essenciais!

Primeiro, que o "Gênio da Raça" é um escritor. Segundo, que o cargo de "Gênio da

Raça Brasileira" está ainda vago. E terceiro, que ainda está vago, também, o de

"Gênio Máximo da Humanidade", porque o único candidato apontado até agora,

Homero, além de não existir, era grosseiro e vulgar! Tudo isso constará da nossa ata,

recebendo, assim, o selo oficial e acadêmico que lhe dará certeza! Mas existe ainda

um problema importante: qual deve ser o assunto da Obra nacional da Raça

Brasileira? (RPR, p.191)

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Aproveitaremos deste Fragmento 07, para a abordagem de dois

aspectos.

São eles:

1. a oposição entre os discursos direto de Samuel (L²) e Clemente (L³);

2. a ironia quadernesca para com a instituição “Homero”.

Desse modo, temos que a passagem 30 em oposição à passagem 31

revela as opiniões contrárias à existência de Homero, porém a crítica a este

personagem da História da Literatura é nítida e feroz de ambos os lados.

Ao dizer que Homero nunca existiu, Clemente já coloca em descrédito

toda a sua figura histórico-literária, ao mesmo tempo em que rebaixa a

qualidade de sua suposta obra. Samuel, por sua vez, em embate contra

Clemente acredita, sim, na existência de Homero, porém o concebe como

sendo uma figura grosseira e vulgar.

Portanto, ao colocarem em descrédito tanto a veracidade do fato de

Homero ter sido um escritor real – sendo a sua existência uma farsa realmente

possível –, bem como desqualificando toda a sua suposta obra revelam a linha

quadernesca dada pela condução do Lº na enunciação no que tange à sua

ironia crítica às instituições, sobretudo àquelas relativas à Literatura, pois que é

por meio dela (Literatura) que ele se pretende – ironicamente – consagrar-se

em uma posição jamais vista na História da humanidade.

3.2.2 O debate acerca da Filosofia Clementina do Penetral (Tratado de Filosofia do Penetral)

Conforme já citada na última linha do folheto anterior, quando do

discurso direto de Clemente, “A Filosofia do Penetral” é o título do Folheto XXX,

cuja preocupação é tratar deste assunto em suas quatro páginas. Extraímos o

primeiro trecho deste folheto, em que Clemente, quando indagado por

Quaderna, explica a este a sua “Filosofia do Penetral”:

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Fragmento 08

Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia

clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:

- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito,

e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que

quer dizer "penetral", hein?

Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. (32) Naquele dia, indagado assim,

respondeu:

- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do

penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a

união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do

deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!

- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente?

- Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é "o único-amplo"!

Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da

"desconhecença" para a "sabença"?

- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.

- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gaviônico de conhecimento

penetrálico, feche os olhos!

- Fechei! - disse eu, obedecendo.

- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!

- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!

- Em que é que você está pensando?

- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de

catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na

poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!

- Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você

pensou?

- É o mundo!

- É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido", aquilo que foi

deferido a você, como "íncola"! É "o insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas

partes: a "confraria da incessância" e "a força da malacacheta", representada, aí no

que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence

ao penetral?

- Não sei não, Clemente, mas pela cara que você está fazendo, parece que

pertence.

- Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no

penetral! Entretanto, para completar "o túdico" você, na sua enumeração do mundo,

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deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e

que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?

- Sei não, Clemente!

- Foi você mesmo, “o faraute”!

- O Faraute não, o Quaderna! - disse eu logo, cioso da minha identidade.

- O Quaderna é um faraute! - insistiu Clemente.

Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:

- Epa, Clemente, vá prá lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute

uma porra! Faraute é você! Não é besta não?

(RPR, p.193)

Se:

Na literatura, são sobretudo os romancistas que se utilizam de expressões dialetais, seja porque lhes ocorrem espontaneamente, seja porque têm a intenção de imprimir a chamada cor local às suas narrativas. (MARTINS, 2008, p.88)

observa-se que na passagem 32, o Lº ao declarar que a linguagem de

Clemente, por vezes, faz uso de “vulgaridades” e “plebeísmos”, parece justificar

a maneira como este personagem irá discursar adiante acerca de sua

explicação sobre o que seja a Filosofia do Penetral.

Vale destacar que tal justificativa quadernesca para com a linguagem

clementina é dada com base nas constatações de Samuel, algo que, inclusive,

torna este personagem presente no contexto deste trecho em que consta o

diálogo travado entre Quaderna e Clemente. Ou seja, por mais que Samuel

não esteja participando da conversa neste momento, sua opinião acerca da

linguagem de Clemente está presente no discurso narrativo do Lº. Para

Martins:

Sendo uma convenção estabelecida, cujas regras precisamos aprender e adotar, a ortografia é exterior à Estilística. Contudo, sempre é possível abrir algumas brechas, aproveitar alguma vacilação no uso, violar de algum modo a norma. (p.64)

Porém, mais do que uma violação possível, Clemente faz questão de

afirmar suas raízes populares durante este seu discurso. Desse modo, ainda

segundo Martins tem-se que:

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Os regionalismos – permitem a evocação de certos aspectos de determinada parte do País, produzindo efeitos diferentes conforme o ouvinte ou leitor seja ou não dessa região. Se for, o regionalismo, por comum e natural, pode passar despercebido; caso ele esteja distante do seu torrão, ouvindo a expressão aprendida na infância, poderá ela despertar-lhe várias reminiscências. Se o ouvinte-leitor não foi da região, ouvindo a expressão que não lhe é habitual, sentirá o sabor de algo pitoresco ou exótico. (2008, p.87)

É realmente cômica a maneira como a linguagem clementina é usada

para “dar conta” de uma explicação um tanto quanto mais “adequada” possível

para descrever a Quaderna o que seja essa filosofia. Torna-se engraçado,

então, todo o conjunto de explicação desta filosofia, em se considerando cada

uma das palavras e expressões da oralidade e de ordem “vulgar” utilizadas por

este personagem.

Ao longo de todo o Fragmento 08, são inúmeras estas palavras e

expressões, dentre as quais podemos destacar: de lascar; rodopelo; o torvo

torvelim; subjunção da relápsia; "desconhecença"; "sabença"; processo

gaviônico de conhecimento penetrálico; "o côisico"; "confraria da incessância";

"o túdico". E, embora o Lº nos adiante que o discurso de Clemente se vale

muitas vezes de “vulgarismos” e “plebeísmos”, poderíamos pensar em

aprofundar nossa pesquisa em uma verificação, a qual indicasse com mais

precisão se tais expressões clementinas seriam arcaísmos ou regionalismos,

quem sabe. Porém tal averiguação não será aqui realizada. O que podemos

considerar é que tais “vulgarismos” e “plebeísmos”, em especial aqueles

identificados pelo Lº, por meio do uso das aspas, são termos dentro de um

grupo de vocábulos que estão fora de nossos dicionários. Levaremos, pois, em

consideração apenas o caráter de ordem neológica presente nestes termos. Ao

tratar da “Aceitabilidade do neologismo” em Léxico, produção e criatividade –

processos do neologismo, Maria Aparecida Barbosa afirma que:

Numa primeira etapa, os membros de um grupo tomam conhecimento dessa produção, depois eles mesmos começam a empregá-las e, assim, vai-se passando a sua difusão. [...] É no meio social que se processa o julgamento da aceitabilidade, e isso depende não apenas da vontade de cada falante, como também de um consenso social e cultural, que populariza ou faz rejeitar certas novidades. Uma das primeiras condições para que elas sejam aceitas é, pois, o seu emprego por vários locutores. A repetição do emprego do neologismo e o sentimento de que é compatível com a língua, acabam por impô-lo. (BARBOSA, 1981, p. 144)

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Isto posto, por meio dos discursos presentes no RPR, tem-se que o

Locutor Empírico, Suassuna, parece revelar a oralidade do Sertão; e mesmo

que tais expressões não fossem possíveis fora da ficção suassuniana, essa foi

uma maneira deste autor em retratar a cultura popular por meio de sua

oralidade. Eis que tais termos poderiam ser classificados como neologismos

possíveis de locução – mesmo que nunca tivessem sido pronunciados no

mundo real/empírico – uma vez que fazem uso de sufixos justapostos a

palavras já existentes em nossa língua.

Para o caso especifico dos termos “desconhecença” e “sabença”, tem-se

que:

A substituição de um sufixo, já normalmente agregado a um lexema, por outro pode servir a um fim humorístico ou também lírico, o que tem sido um procedimento muito frequente nos autores modernos. (MARTINS, 2008, p. 117)

É, portanto, o viés humorístico, neste caso. Se considerarmos que o

vocábulo ‘desconhecimento’ foi substituído pelo não dicionarizado termo

“desconhecença”, e que sabedoria, por sua vez, o foi por “sabença”,

observaremos os interesses suassunianos. Ou seja – para além dos interesses

discursivos dentro da ficção – fora dela (ficção), constata-se o interesse do

Locutor Empírico Suassuna em oportunizar a divulgação dessas palavras que

podem ser, ou não, atualmente utilizadas pelo povo sertanejo em sua

oralidade.

Dessa maneira, o estilo suassuniano vai sendo identificado, ao mesmo

tempo em que se observam tais ocorrências de ordem neológica. Lembrando

que a união entre a cultura erudita e a popular faz parte das preocupações de

Suassuna, tal união é revelada também por meio da linguagem sertaneja; a

qual não poderia, claro, faltar da obra suassuniana, neste caso do RPR.

Quanto ao uso – ou não – das aspas, mais uma vez, devemos

considerar que ela tem relação com a responsabilidade do discurso, tal como já

discutido em análises anteriores. Ou seja, o fato de uma palavra se apresentar

com aspas, embora ilustre e corrobore a linha de pensamento do discurso

proferido pelo falante/locutor – neste caso do L³, Clemente – na verdade retira-

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lhe a responsabilidade, deixando o cargo da “vulgaridade”/”plebeísmo” das

palavras/expressões utilizadas por outrem, a saber: o povo. O povo é, assim, o

responsável pelas expressões que se seguem em aspas.

* * *

É, porém, da voz do personagem Quaderna (L¹), em seu discurso direto,

que saem as palavras mais vulgares de todas as presentes no Fragmento 08.

O uso de dois termos de ordem sexual – ‘trepando’; ‘porra’ – vão além

da vulgaridade própria da oralidade, beirando ao chulo, visto que Quaderna –

ao discordar de Clemente, na verdade pensando que ele pudesse estar usando

de alguma safadeza – quer atacá-lo, mas isso não chega exatamente a ser um

insulto propriamente dito a seu oponente.

Cumpre-nos destacar que o uso desses dois termos chulos poderiam ser

analisados à luz dos estudos de Bakhtin (2010) tratados em Cultura na Idade

Média e no Renascimento, tal como o fez este estudioso ao analisar a obra de

Rabelais

Se Rabelais é o mais difícil dos autores clássicos, é porque exige, para ser compreendido a reformulação radical de todas as concepções artísticas e ideológicas, a capacidade de desfazer-se de muitas exigências do gosto literário profundamente arraigadas, a revisão de uma infinidade de noções e, sobretudo, uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular que têm sido tão pouco e tão superficialmente explorada. (BAKHTIN, 2010, p.03)

Por mais que os estudos de Bakhtin tenham sido abordados pelo caráter

escatológico – e não especificamente pelo caráter de ordem sexual – temos a

característica popular relativa à comicidade que é o que ocorre em inúmeras

passagens do RPR e, então, pensamos que esta associação deva colaborar

com nossas observações.

3.2.3 O debate acerca do gênero Epopeia

Dando sequência ao Folheto XXX “A Filosofia do Penetral”,

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Fragmento 09

- Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? - perguntei. - Em

verso ou em prosa?

- A meu ver, em prosa! - disse Clemente. - E é assunto decidido, porque o

filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses

intelectuais e emocionais da humanidade"!

Samuel discordou:

- Como é que pode ser isso, se todas as "obras das raças" dos Países

estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?

- O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas-nacionais são,

sempre, autores de Epopeias! - tive eu a ingenuidade de dizer.

Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:

- Uma Epopeia! Era o que faltava! - zombou Samuel. - Vá ver que Quaderna

anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será

sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que ele andou metido? Não se meta nisso

não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias de heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando golpes em cima de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo! (33)

Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:

- Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopeias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopeia foi substituída pelo Romance! (34)

(RPR, p.196)

Nesta conversa (Fragmento 09) entre os personagens Clemente (L²) e

Samuel (L³), acompanhada de Quaderna (L¹) pode-se observar o embate

ideológico, o qual opõe os dois primeiros. E, na sua condição de Lº, Quaderna,

mais uma vez – e ironicamente – coloca os dois oponentes em situação

convergente, o que os torna unidos para se posicionarem contrários às ideias

quadernescas. Desenha-se, novamente, portanto, o embate: Quaderna versus

Samuel e Clemente.

Embora inicialmente tenhamos um conflito ideológico entre Clemente

(L²) e Samuel (L³) quanto ao gênero da redação da Obra da raça brasileira –

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pois que Clemente é adepto do texto em prosa, enquanto Samuel prefere em

versos – um pouco mais adiante os dois estarão unidos e alinhados para

debocharem do protagonista.

Eis então que Quaderna, na sua condição de L¹, após expressar sua

opinião a seus oponentes Samuel e Clemente, o mesmo Quaderna, porém,

agora, na condição de Lº, declara que os dois [Samuel e Clemente]

começaram a rir ao mesmo tempo. Para a identificação deste deboche com

que estes dois personagens se dirigem a Quaderna, temos, ainda, a afirmação

de Lº, zombou Samuel, em que novamente aproveita-se de sua intervenção

narrativa para marcar a situação em que se encontra, colocando-se –

ironicamente – como vítima de seus mentores.

Ao irem contra a Epopeia sugerida por Quaderna, ambos opositores

deste personagem se colocam radicalmente críticos em relação a esse gênero,

de modo a depreciá-lo, mesmo que ele seja um gênero genuinamente

constituído como um clássico já consagrado. E é neste sentido que se constitui

a ironia; ou seja, a possibilidade de debochar de um gênero consagrado que é

a Epopeia. As passagens 33 e 34 apresentam termos que desvalorizam a

Epopeia. Para tanto, podemos destacar as expressões: heróis cabeludos e

cabreiros fedorentos e cavalos empastados de suor e poeira, para a passagem 33. Já a passagem 34 apresenta a epopeia como superada e obscurantista,

além de apontar que ela de modo lapidar foi substituída pelo Romance – o

termo “lapidar”, aqui, remete à ideia de que a Epopeia está ultrapassada, ao

mesmo tempo em que o Romance é seu melhor “descendente”.

3.3 A ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”

Conforme já apresentado no Fragmento 03, o Lº, Quaderna, inicia sua

ironia para com as instituições já nas primeiras páginas do RPR, quando

justifica/explica para quem se dirige seu discurso, ou seja, quando declara qual

é o seu público alvo. E vale lembrar que, neste início do Romance, ele critica e

subverte as seguintes instituições:

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- Supremo Tribunal de magistrados e soldados;

- Academia Brasileira de Letras;

- Esposa (mulher)/Família.

Porém são incontáveis os trechos subsequentes, nos quais a ironia

quadernesca para com instituições se faz presente. Além da permanência de

uma ironia frente à Academia Brasileira de Letras, quando se trata da

Academia de Letras dos Emparedados, outras tantas instituições são vítimas

da ironia que se seguem ao longo da narrativa, dentre as quais, destacamos:

- o Duelo (Folheto XLII);

- a “Vida Casta” (Folhetos XLIII e LXVIII);

- a Monarquia e a Igreja (Folheto LXV);

- a Língua Portuguesa (Folhetos LI, LXII e LXXV).

3.3.1 O “Duelo” e a ironia no discurso do Lº

Considerando as palavras de Brait:

Em meios aos aspectos que provocam as sérias divergências existentes entre os diversos grupos de pesquisadores estão as diferenças ou semelhanças que abrangem termos como ironia, sátira, humor, cômico, paródia, riso e outros tantos constantemente invocados, mesmo nos estudos que se propõem a tratar especificamente da ironia. Não é preciso dizer que [...] é necessário que o estudioso se coloque numa determinada posição, num espaço teórico definido. (2008, p.73)

e embora não seja nosso foco relacionar diretamente o efeito irônico a seus

demais efeitos associados – humor, comicidade, sarcasmo, deboche, entre

outros –, devemos levar em conta que em determinados momentos o efeito

humorístico faz parte das passagens do RPR.

A fim de elucidar mais uma dessas passagens, portanto, optamos por

aquela que contempla a ironia quadernesca em comunhão ao efeito

humorístico oriundo da escolha lexical garantida pelo estilo suassuniano.

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Desse modo identificamos um fragmento que possui o vocábulo “penico”

(igualmente chamado de “cuba”) que aparece no último parágrafo do Folheto

XLII “O Duelo”, quando de sua associação a uma coroa:

Fragmento 10

O mais elegante, porém, era, sem dúvida, Samuel. É que o Professor

Clemente ia de manto mas de cabeça descoberta. E o outro, com o penico (35) à

guisa de elmo, mitra ou coroa imperial, com seu manto Azul com Cruz de Ouro às

costas, apresentava, de fato, um perfil régio e heróico, envolvido radiosamente pela

deslumbrante luz do ardente sol sertanejo.

(RPR, p.302)

Tal Fragmento 10 é o trecho final do referido folheto, cujo acontecimento

principal é o evento (duelo) travado entre Samuel e Clemente, motivados

ardilosamente por Quaderna. Ironicamente é um duelo “às avessas” cujo

vencido não é morto e sim coroado.

Temos que o objeto penico, onde são depositados os excrementos das

pessoas que o utilizam, quando colocado na cabeça do personagem Samuel

passa ironicamente a constituir a imagem de uma coroa. E devemos

considerar, no entanto, que antes de sua utilização como instrumento de

coroação, o mesmo objeto penico foi utilizado como arma para o referido duelo.

A ilustração que representa este evento aponta muito bem isso: Samuel versus

Clemente, cada um sobre seu cavalo e erguendo sua arma, ou melhor,

erguendo seu penico.

Tamanha importância deste evento “duelo” na composição do romance,

sua representação se faz imortalizada na ilustração que compõe a capa do

RPR desde a sua 8ª edição. Lembrando que é deveras expressiva a

simbologia que o Duelo pode representar, não apenas o embate entre Samuel

e Clemente está em cena, mas, também, todo e qualquer caráter maniqueísta

a eles relacionado.

Segundo I. Santos (1999):

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À esquerda está o homem branco e à direita, o canhoto, o sinistro, o homem negro. Como a obra carrega marcas profundas de uma simbologia cristã, há uma inversão, o estabelecimento de um discurso irônico e satírico ao se colocar à direita o negro e à esquerda o branco. A instauração dessa antítese pelas imagens conclama nossa memória discursiva para o entendimento, para a instauração do sentido da enunciação. Remete à dualidade Barroca. Se na simbologia cristã à direita fica o Bem e à esquerda fica o Mal, o sinistro, o canhoto, então isso constituiu uma polifonia, os muitos discursos, as muitas vozes evocadas para significar a imagem, por meio do discurso cristão, religioso, político, filosófico etc. Essa antítese não se restringe à esfera da religiosidade, mas a todos os discursos que podem ser levantados dessa representação emblemática. (p.118)

Dessa maneira, este Fragmento 10 no qual o Lº descreve a cena final

do duelo travado entre Samuel e Clemente, mais uma vez apresenta o lexema

penico (passagem 35) que se faz presente desde o início do referido folheto.

Todo ele, Folheto XLII, caracteriza-se na desconstrução do que seria um duelo

típico medieval, subvertendo tudo aquilo que compete ao duelo, desde sua

indumentária e o trato aos cavalos, até o compromisso heroico de seus atores,

uma vez que a sabotagem promovida por Quaderna faz parte, ainda, daquilo

que poderíamos denominar de um “ritual quadernesco”.

Eis que, em um duelo sem mortes, são as trapalhadas e discursos

caricatos de seus personagens participantes que garantem o efeito humorístico

para além da ironia. Transgredindo as possibilidades de um duelo e

subvertendo a coroação de um momento tão solene revelam, em

consequência, a crítica e o estilo suassunianos.

Diante de tal contexto, o penico, por se tratar de um objeto relativo à

ordem escatológica, exerce uma importante função na promoção do efeito

humorístico e respectiva ironia, apresentando-se como uma espécie de

protagonista da ironia quadernesca. Ou seja, ironicamente o instrumento

penico utilizado como arma, cumpriu esse seu papel. De certa maneira

apunhalado por esta arma (penico) rival, um dos duelistas – Samuel, no caso –

parece ironicamente atingido; embora ele não se veja ferido, mas sim coroado.

Além disso, ironicamente vivo, o derrotado declara em determinado trecho do

folheto, preferir a morte àquela situação jocosa.

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3.3.2 A “Vida Casta” e a ironia nos discursos de Quaderna Narrador (Lº) e Quaderna Personagem (L¹)

Dando sequência à comunhão entre ironia e humor, não podíamos

deixar de citar a instituição “vida casta”, dado que Quaderna, na condição de

narrador (Lº), inicialmente apresenta a personagem Dona Carmen Gutierrez

Torres Martins, mãe de Margarida e “Presidente-perpétuda” d’“As Virtuosas

Damas do Cálice Sagrado de Taperoá”, para, posteriormente, “gastar” toda a

sua ironia para com a descrição da mesma, na condição de personagem (L¹)

depoente. É como se uma espécie de efeito em que suspende a intenção

irônica do primeiro enunciado, possa ser recuperado conforme a ironia mais

explícita observada no segundo (enunciado). Vejamos a seguir o fragmento do

discurso do Lº, presente no Folheto XLIII:

Fragmento 11

Era a ala feminina da "Ordem dos Cavaleiros da Esfera Armilar", e chama-se "As

Virtuosas Damas do Cálice Sagrado de Taperoá". Entretanto, é mais conhecida por

seu endereço telegráfico e chamada abreviadamente "A Vidacasta" (36), nome que

"sendo mais fácil de gravar, resume ainda por cima um programa de moral e religião,

vida casta", como gosta de explicar Dona Carmem Gutierrez Torres Martins, mãe de

Margarida, mulher intelectual e Presidenta-perpétua da organização.

(RPR, p.304)

Em comparação, agora, vejamos, por sua vez, o discurso de L¹, no

Folheto LXVIII:

Fragmento 12

Era magra, de pernas finas e arqueadas. Usava uma franja que lhe vinha até os olhos.

O resto dos cabelos, pretos e estirados, cortados à nazarena, ladeavam-lhe o rosto

formando dois arcos negros que, partindo do alto da cabeça - onde se repartiam por

uma risca - vinham até o meio das bochechas. Tinha o rosto e todo o corpo finos e

magros, os olhos grandes, pretos e meio aboticados. E, como os braços eram,

também, finos e arqueados, ladeando o busto magro, Dom Eusébio Monturo, homem

de língua solta e irreverente, dizia que o enorme medalhão que Dona Carmem fazia

pender sempre do pescoço de uma longa corrente de prata destinava-se a indicar às

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pessoas se ela estava de frente ou de costas. Eusébio costumava acrescentar:

"Aquela mulher é toda entre parênteses! Tem a cara entre parênteses, por causa do cabelo. Tem o corpo entre parênteses, por causa dos braços de macaco raquítico. E, por causa das pernas finas, cabeludas e meio arqueadas para dentro, tem, até, a perseguida entre parênteses!" (37)

(RPR, p.510)

Algo que aproveitamos para chamar atenção, neste momento, é a

peculiaridade do discurso direto de Quaderna, o qual se encontra repleto de

outros citações. Ou seja, durante toda a enunciação narrativa, há determinados

trechos de discurso direto que se encontram dentro do próprio discurso direto

de Quaderna. Um exemplo é a passagem 37 cujo autor da citação é Dom

Eusébio Monturo.

Se pudéssemos representar organizacionalmente tal peculiaridade,

poderíamos dizer que no Fragmento 12 tem-se:

1º) uma narrativa “global” (NG) que é a própria história do RPR (Lº =

Quaderna Narrador);

2º) o discurso direto (DD) de Quaderna (Personagem Protagonista)

dentro dessa narrativa “global”;

3º) outra narrativa “menor” (NM) dentro do discurso direto de Quaderna;

e, finalmente

4º) o discurso direto (DD) de Dom Eusébio dentro uma narrativa “menor”

de Quaderna (Personagem Protagonista).

Como se fosse: NG < DD de Quaderna < NM < DD de Dom Eusébio

E, neste caso, a pontuação é um elemento fundamental para

representação dessa polifonia. Eis que as aspas garantem o discurso direto de

Dom Eusébio, que se encontra dentro do discurso direto de Quaderna, que, por

sua vez, é garantido pelo travessão colocado no início de sua longa fala, a qual

termina com o Fragmento 12.

Retomando, pois, a ironia, ressaltamos que à maneira do que já havia

sido feito por Quaderna Narrador (Lº), novamente agora, Quaderna

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Personagem (L¹) se utiliza de uma gradação ao descrever a personagem Dona

Carmen, sem que se responsabilize da descrição, a mais sarcástica possível. A

propósito, ainda que seja por meio da voz do L¹, Quaderna, intensifica-se a

ironia se considerarmos que a passagem 37 tenha sido proferida no discurso

direto de um componente da Igreja Católica – um Dom, no caso. Sendo assim,

não apenas o vocábulo “perseguida” tem seus próprios efeitos expressivos,

mas o próprio fato de quem o proferiu é algo estritamente irônico. E

dessacralizando a instituição “vida casta” quer seja por meio da descrição de

uma beata, quer seja por meio de um casto componente da Igreja Católica, o

Lº mais uma vez representa a feroz voz de seu criador Suassuna.

3.3.3 A “Monarquia”, a “Igreja (Católica)” e a ironia no discurso de Quaderna personagem (L¹)

Na mesma linha crítica descrita acima, podemos apontar – porém,

agora, mais precisamente – um outro fragmento para demonstrar a ironia de

Quaderna para com a Igreja, e também para com a Monarquia, quando do

diálogo entre ele e o Corregedor:

Fragmento 13

- E o senhor, mesmo pensando assim, é monarquista?

- Sou, sim senhor! Sou da Esquerda régia, ou, se Vossa Excelência

prefere, um Monarquista da Esquerda!

- Por que essa contradição?

- Porque acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, Brasões, desfiles a cavalo, bandeiras, punhais, Cavaleiros e Princesas, como no folheto de Carlos Magno e os Doze Pares de França! (38) É por isso que meu parente Dom Silvestre José dos Santos foi Rei do

Brasil, na Serra do Rodeador, em Pernambuco, com o nome de Dom Silvestre

I, o Enviado. Na Pedra do Reino, estiveram juntos, reinando, os dois ramos da

família, os Vieira-dos-Santos e os Ferreira-Quadernas. [...] Mas os dois ramos

terminaram se unificando, porque meu bisavô casou-se com as duas irmãs,

primas dele, a Rainha Josefa o a Princesa Isabel!

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- Casou-se com as duas irmãs de uma vez?

- Sr. Corregedor, Vossa Excelência já deve ter notado que o Catolicismo Sertanejo tem suas leis e seus mandamentos próprios! A poligamia, o pensamento socialista-sertanejo e monárquico, a devora dos proprietários por Cachorros degolados e ressuscitados como Dragões eram alguns dos itens do nosso credo da Pedra do Reino! (39)

(RPR, p.462)

Em relação à ironia quadernesca dispensada para com a instituição

Monarquia, podemos observar que única e exclusivamente o fato de uni-la ao

comunismo – representado pela palavra “Esquerda” – seria o suficiente para

comprovar a crítica suassuniana. No entanto, para além da “não possibilidade”

de tal comunhão, quando questionado pelo Juiz-Corregedor (L²), o L¹ reforça

mais significativamente sua ironia.

Desta vez, o fato de L¹ não possuir argumentos contundentes que

pudessem revelar os motivos pelos quais ele tenha criado a Monarquia da

Esquerda, é algo que nos chama atenção. Ou seja, a maneira trivial como trata

do assunto, desconsiderando a não possibilidade da união entre os regimes, e

também desconsiderando a importância de uma argumentação, o L¹

praticamente banaliza a indumentária e adereços monárquicos, entre outros,

conforme a Passagem 38, na tentativa de elucidar ao L² o porquê de uma

Monarquia da Esquerda. O fato é que a argumentação para esse caso não

acontece e ele (L¹) apenas alcança o que lhe é peculiar: a ironia. Poderíamos,

inclusive, apontar o tom debochado com que o L¹ faz tudo isso. É como se

apenas os ritos e símbolos monárquicos fossem suficientes para sustentar a

força de um regime; quiçá, ainda, em comunhão com um outro (regime);

comunismo, no caso. Porém no Fragmento 13, o L¹ não transgride apenas

contra o regime monárquico, mas igualmente o faz contra as “leis” da Igreja.

Quanto à ironia sofrida mais uma vez pelo Catolicismo, na passagem 39, o L¹ brevemente enumera as leis e os mandamentos daquilo que ele chama

de “Catolicismo Sertanejo”. Devemos lembrar, entretanto, que em outros

momentos da história, o próprio Quaderna, em sua condição de Lº, já havia

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garantido em sua narração, como se apresenta o Catolicismo Sertanejo, criado

por ele, cujo Diabo se faz pertencente à Santíssima Trindade e o Espírito Santo

é representado por um gavião.

Nesta passagem 39, dentre todas as ações nela contidas, inicialmente

parece-nos que a poligamia merecesse um destaque maior no discurso

quadernesco, uma vez que foi o tema gerador do questionamento do L²,

posterior ao L¹ contar que seu bisavô casou com duas irmãs de uma só vez.

Por outro lado, percebemos a genialidade do L¹ em, intencionalmente, querer

traduzir a leveza com que encara o que seriam as transgressões católicas.

Para tanto, estilisticamente, ele faz uso da enumeração das ações relativas ao

Catolicismo Sertanejo e, ironicamente, mais uma vez, atinge seu objetivo, qual

seja: tornar trivial toda a situação e, além disso, descartar todas as “não

possibilidades”.

Mais uma vez o tratamento trivial do L² dado em sua resposta, não

considera a relevância do fato: eis a ironia alcançada. A partir do momento em

que o L² traduz a leveza com que considera tudo muito normal, além de tudo

isso, nos é transmitido a sua ironia. É como se, propositalmente, o L² criasse a

leveza em seu discurso para revelar suas transgressões.

3.3.4 A “Língua Portuguesa” e a ironia nos discursos dos personagens Quaderna (L¹) e Juiz-Corregedor (L²)

Finalizando o levantamento das instituições “vitimadas” pela ironia

quadernesca, desta vez a instituição “Língua Portuguesa” será o nosso

enfoque, conforme fragmentos extraídos dos Folhetos LI e LXXV. No entanto,

cumpre-nos adiantar que, para além da ironia quadernesca, os enunciados

proferidos na voz do L² (Juiz-Corregedor) também, agora, apresentarão um tom

irônico, na medida em que realiza seus questionamentos linguísticos dirigidos

ao L¹ (Quaderna).

No primeiro Fragmento (14), tem-se o questionamento do Juiz-

Corregedor (L²) ao “falar errado” de Quaderna (L¹):

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Fragmento 14

- Sr. Quaderna, tenho que fazer, agora, uma observação contrária à de ainda

há pouco! Eu disse que às vezes o senhor dava para falar difícil: agora, devo

observar que, para um Epopeieta, o senhor de vez em quando dá para falar errado! Agora mesmo, o senhor disse "soterranho", em vez de "subterrâneo", e disse, também, duas vezes, "Prinspo" em vez de "Príncipe"! (40)

- Não é erro não, Excelência, é o Português pardo, leopardo, garranchento e pedregoso da Catinga (41), como diz o genial Gustavo Barroso!

Quando falo de Dom Sinésio, o Alumioso, eu prefiro dizer "Prinspo" porque é assim

que escrevia o genial E. P. Almeida, guerrilheiro do "Império do Belo Monte de

Canudos", na carta que foi encontrada em seu bornal de balas, em 1897!

(RPR, p. 369)

Ao quebrar o ritmo do diálogo, caracterizado pela narração em discurso

direto do L¹ (Quaderna), a qual se caracteriza por ser repleta de aventuras

genealógicas, percebe-se que o L², exclama o destacado na passagem 40,

abandonando/interrompendo os questionamentos que tangem ao inquérito,

para chamar a atenção do L¹ quanto ao seu uso “indevido” da língua

portuguesa. Ou seja, o L² aponta o “erro” linguístico do indiciado, o que parece,

nesse caso, um questionamento motivado por uma atmosfera irônica, pondo

em xeque as qualidades de um Epopeieta, pois que – segundo a visão deste L²

– há a estrita necessidade de um “falar correto” pelo L¹, sendo ele um escritor,

um Epopeita.

Por outro lado, a subversão da língua portuguesa igualmente acontece,

e – tal como ocorrido com as demais instituições já apresentadas neste

trabalho – é nítida a ironia quadernesca a qual representa a crítica e o estilo de

seu Locutor Empírico, Suassuna, a partir do momento em que transgride a

norma padrão e inova a mesma (língua portuguesa) por meio de uma

linguagem que acolhe determinadas peculiaridades da oralidade, oriundas

principalmente da região sertaneja do Brasil. Considerando que a língua escrita

é, por sua natureza, distinta da língua falada, emprega palavras diferentes, de

caráter mais antiquado, quando se trata de estilo narrativo (LAPA, 1973, p. 53),

para dentro da obra ficcional narrativa, e dando ênfase à expressividade das

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palavras lexicais, quando estas são identificadas como sendo desatualizadas

(arcaísmos, por exemplo), tem-se que:

A expressão, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontramos em livros velhos. Trata-se pois de um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprego choca-nos, evocando logo em nós um ambiente conservador e certa afetação literária. É a isto que se chama o “efeito por evocação” das palavras. (LAPA, 1973, p.32)

Para frisar a realização do jogo verbo-irônico suassuniano, aproveitamos

deste momento para reafirmar que o sentido arcaico de uma palavra, por ser

coisa velha e pouca usada, tem certa graça cômica (LAPA, 1973, p.50) e, por

isso, é que Suassuna o emprega, conforme a utilização dos vocábulos

soterranho e prinspo (passagem 40). O uso das palavras garranchento e

pedregoso, na passagem 41, por sua vez, pode ser caracterizado, segundo

Lapa (1973), como provincianismo, uma vez que:

Quando falamos em “povo”, não podemos razoavelmente circunscrever este termo à população que habita nas cidades, onde se desenvolvem, por via de regra, a gíria e o calão. O povo das aldeias também fala a sua língua, que, na escolha do vocabulário, na alteração fonética da palavra e na construção da frase, se afasta não pouco do idioma da cidade. Os dicionários correntes não trazem todos esses termos e locuções; mas os escritores mais impregnados de vida regional colhem às mãos-cheias nessa abundante e pitoresca seara de modismos provincianos. (p.58)

Nesta passagem 41, ao observarmos a resposta do L¹, as justificativas

apresentadas finalmente parecem querer explicar o uso dessa peculiar

linguagem, visto que, posterior a tantas outras passagens de uso da oralidade

por Quaderna no RPR, a partir desse momento (Fragmento 14, passagem 41), o L¹ chama a atenção de que prinspo e soterranho, neste caso, não são

“erros”, nem tampouco escolhas “indevidas”. Verifica-se, portanto, que tais

explicações parecem revelar a voz de um Locutor Empírico (o escritor Ariano

Suassuna) preocupado em ofertar justificativas ao mesmo tempo em que

favorece as “reflexões” linguísticas. Tem-se, pois, a explicação das

possibilidades linguísticas para a mescla da linguagem popular com a erudita.

Estendendo ao que seriam os interesses desse Locutor Empírico, observa-se,

além disso, que para o que até então havia sido apresentado sem qualquer

“pudor”, nesse Fragmento 14, e a partir dele, Suassuna nos revela o que é

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necessário considerar: a valorização da linguagem popular. Também se

observa que tais discussões/diálogos entre Quaderna e o Juiz-Corregedor

podem espelhar o jogo entre enunciador e enunciatário travado entre narrador

e leitor. Parece um metadiscurso que reflete esse jogo, ou seja, nesse

momento da narrativa, em relação à linguagem – que o tempo todo pode ter

sido questionada/repensada pelo leitor – Quaderna afirma que essas escolhas

linguísticas, ao contrário de não serem bem pensadas, foram na verdade

muitíssimo bem pensadas por ele. Sendo assim, considera-se que durante toda

a narrativa, as escolhas lexicais de Suassuna podem despertar um discurso

metalinguístico e reflexivo.

* * *

A fim de comprovarmos que as peculiaridades do uso da língua

portuguesa pelo L¹, Quaderna, seja algo que realmente perturbe o L², Juiz-

Corregedor, apresentamos mais um fragmento antes de encerrarmos esta

parte de nosso capítulo de análise:

Fragmento 15

- Sr. Quaderna, quando fizer a sua Epopeia, tenha cuidado com os tratamentos. Agora mesmo, aí na frase de Lino, o senhor usou um tratamento todo solene no começo, depois passou para "você" e finalmente para "tu"! Cuidado, porque isso é um descuido grave, num Epopeieta! (42)

- Não senhor, não foi descuido não, o senhor está enganado! Os pronomes de tratamento que venho empregando são escolhidos com todo cuidado! (43) Para que o senhor entenda bem certas particularidades que Lino

usava no seu tratamento para comigo, é preciso que eu lhe explique certas coisas.

Primeiro, eu tinha procurado ensinar aos Cavaleiros da Ordem da Pedra do Reino

algumas fórmulas cerimoniosas tiradas dos romances de José de Alencar e de

Zeferino Galvão, este um genial escritor pernambucano e sertanejo, da Vila de

Pesqueira, autor de O Mosteiro de Nîmes e de Heloísa d'Arlemont. Aquele "Dom

Pedro Dinis Quaderna, meu Rei e meu Senhor" que Lino me dera no começo vinha

daí. Mas, ao mesmo tempo, meus familiares me tratavam por Dinis. Ora, Lino tinha

sido meu companheiro na "Onça Malhada" e meu colega na "Escola de Cantoria" de

João Melchíades, de modo que, ora usava o tom cerimonioso e régio, ora o familiar.

Aliás, essa mistura de tratamentos era e é tradição da nossa Casa (44). [...]

(RPR, p. 582)

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Neste Fragmento 15, por sua vez, o questionamento do L² em relação à

linguagem de L¹, dá-se na crítica ao uso dos pronomes de tratamento. E tal

como já ocorrido no Fragmento 14, novamente neste Fragmento 15, o L²

pede para que o L¹ prossiga narrando os acontecimentos, sem que se

estendam e se aprofundam as questões linguísticas. Nesse sentido podemos

dizer que a ironia por si só se ocupa da necessidade de reflexão acerca da

língua; delicadamente e com uma de suas (da ironia) principais características,

que é a concisão do texto.

Eis que, em tão poucas linhas, a atmosfera irônica de reflexão sobre a

língua sustenta o estilo suassuniano. Isso é o que acontece nos enunciados.

Por outro lado, na enunciação como um todo – que é o próprio RPR por

completo, digamos assim – quem sabe a ironia esteja, além disso, permeando

todo o momento de embate linguístico, inclusive na possibilidade do

distanciamento entre um Epopeieta e sua respectiva linguagem – que é posta

em questionamento pela segunda vez.

Na passagem 42 temos um L² inconformado com a linguagem de um

escritor, de um Epopeieta. E, mais uma vez, na maior tranquilidade,

entendemos que o L¹ externa ser a coisa mais normal do mundo, trazendo

seus próprios critérios com os quais o L² deve passar a entender, conforme os

motivos plausíveis apresentados pelo L¹ em toda a sua resposta iniciada pela

passagem 43 e terminada pela passagem 44. Nessa resposta exibida entre as

passagens 43 e 44, ainda devemos salientar, a fala-resumo, que revela a

comunhão entre o clássico e o popular, representados pela tradição da

linguagem oral familiar utilizada concomitantemente com a linguagem mais

rebuscada.

Na passagem 44 notamos o uso de maiúsculas pelo L¹ o que é um

aspecto recorrente na linguagem quadernesca, neste caso tem-se o emprego

de maiúscula na composição da palavra “Casa”. Segundo Martins,

O emprego das maiúsculas, fora dos casos regulamentados pelo Acordo Ortográfico, pode sugerir respeito, admiração, sentimento religioso ou cívico, acatamento da autoridade (Pai, Mestre, Sacerdote, Pátria, Presidente, Senador, etc.). [...] A maiúscula pode ainda sugerir uma personificação, uma idealização, ou a intenção de uma profundeza metafísica. (2008, p.65)

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E, em relação a este aspecto, devemos lembrar, neste momento, que o

emprego de maiúsculas em toda a obra suassuniana vem sendo constituído no

estilo deste escritor desde os seus primórdios, pois que, antes mesmo da

publicação do RPR, o proposital emprego estilístico delas (maiúsculas) por este

escritor, esteve sempre presente, consideravelmente, até mesmo em seus

escritos ensaísticos e críticos.

3.4 Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista

Seguindo a linha dos apontamentos relativos não apenas à ironia

quadernesca que se faz presente em toda a enunciação, mas também à ironia

utilizada pelo L² (Juiz-Corregedor), apontaremos, nas próximas duas últimas

análises, os momentos em que o próprio Quaderna identifica a ironia sofrida

por ele, segundo sua própria interpretação, a qual nos é revelada por meio das

intervenções narrativas inseridas pelo Lº (Quaderna Narrador), durante o

diálogo entre o L¹ (Quaderna Personagem) e o L² (Juiz-Corregedor).

Desse modo, lembrando que

Os sinais de pontuação ajudam a reconstituir a entoação que o autor pode ter pretendido para o seu texto [...] Dado o seu valor afetivo, além do exclusivamente lógico, ligado à sintaxe, a pontuação não segue regras absolutas, e varia muito com os escritores, sendo alguns mais pródigos e outros mais econômicos com relação a esses sinais. (MARTINS, 2008, p.62)

dividimos em duas partes, a ironia presente na fala do:

- L², dirigida ao L¹ por meio de colocação exclamativa (Fragmento 16);

- L², dirigida ao L¹ por meio de colocações interrogativas (Fragmentos 17

e 18).

3.4.1 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de colocação exclamativa (Fragmentos 16)

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Fragmento 16 O Corregedor cortou, com ar incrédulo e irônico (45): - Quer dizer que, na sua opinião, aquele Rapaz-do-Cavalo-Branco era

uma espécie de Anjo de candura, inocente e inofensivo! (46)

- Não, Sr. Corregedor! Um Anjo é uma coisa muito diferente do que as

pessoas pensam! O senhor, não tendo sido discípulo de Samuel e Clemente, não

pode conhecer a tríplice natureza da Onça do Divino, dividida em quatro partes: a

Onça-Pintada, a Onça-Negra, a Onça-Parda e o Gavião-de-Ouro. Ou, em outras

palavras, a Esmeralda, a Granada Negra, o Rubi e o Topázio. Os Anjos, sendo

ligados ao Pai, à Onça Malhada, ao sopro do Sertão - o vento incendiário do Deserto

- e à Sarça Ardente da Pedra Lispe, são seres de fogo, armados de espada e

terrivelmente perigosos!

(RPR, p. 401)

Como já dissemos anteriormente, observa-se em todo o Fragmento 16 a atmosfera irônica que paira sobre o diálogo entre L¹ e L². O que é inegável é

o formato inaugural de intervenção do Lº explicitamente colocando a maneira

irônica no tratamento dirigido pelo L², conforme a passagem 45 em que se

destacam as sucessivas expressões “incrédulo” e “irônico”. É como se elas

(expressões) pudessem resumir a maneira céptica com que o L² se apresentou

a todo o momento, perante o inquérito do L¹. Embora sejam as impressões do

Lº ali apresentadas, devemos observar que sua tal intervenção venha a somar

na gradação a qual aponta para uma desconfiança de L² cada vez maior, se

considerarmos todo o plano da enunciação.

Ainda que o Lº constatasse aquilo que pode ser a verdade,

estilisticamente representados, incredulidade e pontuação, juntos, combinam-

se na constituição da ironia. Ou seja, a associação entre o termo ‘incrédulo’ na

voz do Lº e o ponto de exclamação colocado ao final do discurso do L²

enfatizam a ironia sofrida pelo L¹.

Em relação às expressões empregadas, destacamos a locução adjetiva

‘anjo de candura’, que precede outros dois adjetivos ‘inocente’ e ‘inofensivo’, e

é ironicamente proferida pelo L² ao se referir ao Rapaz-do-Cavalo-Branco.

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3.4.2 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de colocação interrogativa (fragmento 17 e 18):

Fragmento 17 - O senhor pretende ser o Gênio da Raça Brasileira? (47) - indagou,

irônico, o Corregedor. (48) - De fato, mesmo, já o sou, mas pretendo sê-lo também de direito,

oficialmente declarado pela Academia Brasileira de Letras! Se eu for condenado

neste Processo, mandarei tirar duas cópias de meus depoimentos, mandando uma

para o Supremo Tribunal, como Apelação, e outra para a Academia, a fim de que os

Imortais me deem, oficialmente, o título, nem que seja por levar em conta que eu

criei um gênero literário novo, o "Romance heróico-brasileiro, ibero-aventureiro,

criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor

legendário e de cavalaria épico-sertaneja"!

(RPR, p. 420)

Mais uma vez no Fragmento 17, a intervenção do Lº se faz presente ao

apontar a ironia no discurso do L². Porém o L² marca sua interrogação, o que

reforça sua ironia. E, em mais um fragmento (último) a ser apresentado neste

trabalho, tem-se os mesmo recursos: intervenção do Lº na identificação da

ironia do L² e o modo interrogativo com que L² se coloca frente ao L¹. Vejamos

a seguir:

Fragmento 18

- Pelo comum dos mortais? E o que é o senhor? Algum Iluminado, ou alguma Divindade tapuio-sertaneja, por acaso? (49) - disse o Corregedor,

irônico. (50)

- Eu não chegaria a dizer tanto, por modéstia e humildade cristã! No máximo,

o que me aconteceu foi um decreto insondável da Providência Divina, que não podia

permitir que o "Gênio da Raça Brasileira" fosse inferior, em nada, ao "gênio da raça

grega"! Minha cegueira seria muito parecida com a cegueira poética e profética de

Homero, caso tivesse existido, mesmo, esse mavioso e distinto Poeta, autor das

traduções gregas da Ilíada e da Odisseia - o que digo porque, como Samuel já

provou, o autor, de fato, dos originais brasileiros dessas duas obras foi o genial

Bardo nordestino, Doutor Manoel Odorico Mendes. Acredito, também, que foi mais

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ou menos no estado de cegueira e iluminação em que me encontro que Ezequiel, o

renomado Poeta judaico-sertanejo de que lhe falei há pouco, teve aquela sua

"visagem do campo de ossos" e aquela outra, precursora da Mitologia Negro-Tapuia,

na qual lhe apareceram umas águias, uns grifos e uns touros, sustentando o trono

do Divino, visagem que eu tive logo o cuidado de assertanejar mais, transformando

as águias em Gaviões, os grifos em cruzamentos de Onça com Seriema, e o leão do

Divino na Onça do Divino!

(RPR, p. 575)

Tal como o emprego do ponto de exclamação no Fragmento 16, nas

duas vezes em que temos o ponto de interrogação nos demais Fragmentos

(17 e 18), observamos a perplexidade com que o depoimento do L¹ causa no

L². E, mesmo que estes pontos sejam apenas a indicação da entonação como

o enunciado foi proferido, eles (pontos) acentuam sobremaneira a ironia dos

discursos, uma vez que são imbuídos de um efeito surpresa, construído e

confirmado a partir da intensidade enunciativa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura é um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação das relações entre linguagem cotidiana. Ela constitui uma das possibilidades de exploração da língua, como forma criativa e atuante de mobilização de palavras e estruturas linguísticas, apontando para inúmeros fins, para diferentes propósitos. Artisticamente arquitetado, o texto literário é objeto de estudo de diversas vertentes das teorias literárias e linguísticas, as quais têm contribuído para caracterizar a natureza diferenciada das articulações língua-literatura, pontuando as mudanças de acordo com diferentes momentos históricos, povos, línguas, culturas, variantes culturais e linguísticas dentro de um mesmo país. (BRAIT, 2013, p. 41)

Ao nos propormos a estudar a ironia em um corpus proveniente de uma

obra específica da Literatura Brasileira, inúmeras foram as possibilidades de

análise com as quais nos deparamos ao longo do processo, visto que o

Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano

Suassuna, apresentou-se como fonte inesgotável de pesquisa.

Por um lado, o enfoque escolhido aliou a atmosfera irônica presente na

enunciação às ocorrências pontuais identificadas dentro dos enunciados. E

somado a isso, observamos a revelação do estilo suassuniano por meio das

escolhas linguístico-estilísticas dos discursos presentes na narrativa.

Por outro, pudemos salientar diante desses aspectos levantados, a

característica do fazer poético de Suassuna, relativo à valorização da cultura

popular nordestina sertaneja, dado que as raízes e tradições alusivas a ela

(cultura) sempre fizeram parte da obra desse escritor. A exemplo,

aproximadamente sete anos antes da publicação do RPR, ele escreveu:

Não conheço nenhum país além do meu, e, mesmo dentro do Brasil, só posso dizer que conheço verdadeiramente o Nordeste, o sertão nordestino. Pressinto, porém, que aquilo que meu sangue – tão ligado à áspera, seca e pedregosa terra sertaneja – me sopra em relação à arte em geral e ao teatro em particular tem seus equivalentes e suas respostas em outras regiões além do Nordeste e em outros países além do Brasil. (SUASSUNA, 1964, In: SUASSUNA 2008, p.63)

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Procuramos, pois identificar na enunciação do RPR, a construção de um

discurso irônico realizado por meio das marcas estilísticas as quais refletem as

próprias preocupações e convicções do escritor Suassuna.

* * *

À vista disso, e considerando a importância da obra suassuniana e seu

reconhecimento pela comunidade literária nos últimos anos – desde o final do

século XX –, é que buscamos estabelecer um valor cultural e social para essa

pesquisa. Pretendemos analisar uma obra que se contextualiza no Sertão,

especificamente na região do Cariri (Sertão do Cariri), em meio às mazelas e

misérias sertanejas, identificando no discurso do RPR, um estilo que se revela

irônico. Segundo Micheletti:

O caráter nacionalista que impregna toda a narrativa está presente na expressão de todas as personagens e encontra-se acentuado em três delas: Quaderna, Clemente e Samuel. Três discursos diversos ideologicamente, mas centrados nos destinos da nação, pois há, neles, um traço comum: o desejo de descrever o brilho e a grandeza do Brasil. (MICHELETTI, 2007, p.64)

O RPR promove uma reflexão acerca das contradições e equívocos

relacionados a uma possível discriminação sofrida por essa “gente” – seu falar,

seu vestir, enfim –, sendo o recurso da ironia algo que parece dessacralizar as

convenções e, claro, criticar a sociedade brasileira; por vezes entendida como

uma sociedade hipócrita. Ao explicitar as representações de um povo por meio

de suas tradições, este Romance engrandece a valorização da cultura

sertaneja na medida em que vincula seus costumes e história local, os quais,

por vezes, restringem-se aos limites geográficos dessa região.

Nesse sentido, em especial no discurso do enunciador do RPR,

Quaderna (Lº) – pôde ser observado o sentimento peculiar de uma nação,

sentimento peculiar, este, que revela o sentimento universal próprio de

‘qualquer’ povo – seja o povo do Sertão, o povo brasileiro ou qualquer um povo

de outra região e/ou país por esse mundo afora. Ou seja, por meio de um

espírito regional tragicômico – que nada mais é, portanto, que o próprio espírito

tragicômico nacional e também universal – o discurso irônico quadernesco se

conflui com a ironia suassuniana. Esta ironia suassuniana, por seu turno,

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desconstrói estereótipos criados pelo senso comum na medida em que nos

apresenta um enunciador (Quaderna) apegado às transgressões sociais, e que

por vezes alia o humor à ironia.

Um exemplo imediato pode ser tirado das diferenças existentes entre riso e cômico [...] se levada em conta a separação feita por vários estudiosos que colocam o riso como um fenômeno fisiológico e o cômico como uma construção de linguagem. Esse é também o caso da ironia, se tomada de um ponto de vista da retórica clássica, lugar em que vai fazer par com outras figuras de linguagem, ou da sátira, se vista como forma teatral. Considerados esses dois pontos de vista como pertinentes, sátira e ironia estarão excluídas de uma mesma série. Aceitando-se a tipologia estabelecida por Denise Jardon (1988), a ironia e a sátira, assim como o humor e a paródia, passam a fazer parte do que ela chama de “tipos de discursos cômicos”, com base numa perspectiva que privilegia a abordagem linguística, bem como o fato de esses quatro tipos de discurso estarem de alguma maneira relacionados ao riso. (BRAIT, 2008, p.73)

Sendo assim, na medida em que este enunciador do RPR vai se

revelando uma espécie de palhaço por detrás de sua ironia, o Locutor

Empírico, Suassuna, promove-nos a partir do discurso quadernesco, momentos

de riso, porém momentos de incômodo com os quais vai deixando sua marca e

“carimbando” seu estilo. Este Locutor Empírico, objetivando tanto o

questionamento quanto o riso, dessacraliza qualquer que seja seu alvo,

revelando, por fim, as mazelas de uma sociedade em cacos que é a sociedade

brasileira.

Defendemos, então, que a ironia suassuniana é um fenômeno que está

presente em toda a enunciação do RPR, uma vez identificado por meio de uma

atmosfera irônica com a qual permeia toda a narrativa, dado que:

Não é de hoje a interação entre enunciação e literatura. Essa relação deve, sem dúvida, figurar entre as mais férteis em termos de produção teórica. Articular os mecanismos de enunciação com a linguagem literária constitui propriamente o objetivo de alguns autores antes estudados e pode ser verificado em trabalhos clássicos como os de Bally, de Jakobson e de Bakhtin. Em todos, percebe-se constante presença do texto literário como objeto de análise. As vozes dos personagens, autores e narradores sempre tiveram lugar na reflexão linguística. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.89)

E é neste sentido que buscamos associar o fenômeno ironia às palavras

e expressões utilizadas, sobretudo pelo referido enunciador, com as quais

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associamos, apontamos e analisamos determinadas escolhas linguísticas

identificadas nos discursos que se apresentam no RPR e que sejam

reveladoras de um estilo, na medida em que a narrativa leva o receptor/leitor à

reflexão, de modo a desconstruir estereótipos criados pelo senso comum. À

vista disso pretendemos identificar a ironia conforme a utilização de

determinados trechos que apresentam expressões enquadradas na crítica

suassuniana, ainda que algumas palavras apontadas sejam vocábulos de

impacto – quer por sua origem ‘vulgar’ da oralidade (sua procedência e

também permanência dadas na língua falada), quer por serem, determinadas

vezes, pejorativas e/ou chulas. Sendo assim, a partir de uma seleção de

palavras, expressões e sintagmas apontados por fragmentos que compuseram

nosso corpus, pudemos indicar que além dessas passagens colaborarem na

construção do efeito irônico, do mesmo modo fortalecem a identificação da

sociedade sertaneja, resgatando elementos que marcam suas tradições.

Para tanto teria sido impossível dissociar a obra de Suassuna do caráter

do Movimento Armorial – iniciado um ano antes da publicação do RPR – o qual

tem por objetivo recuperar e divulgar a aludida cultura popular que, por sua

vez, o vem acompanhando desde seus primeiros escritos. Reiteramos que:

Publicado poucos meses após o lançamento do Movimento Armorial, o RPR torna-se porta-bandeira deste, e ostenta um subtítulo genérico: romance popular brasileiro. A palavra “armorial”, sendo ainda um neologismo literário – pelo menos na acepção que lhe confere o movimento –, Suassuna explicita-a e completa-a com “popular” e “brasileiro”, A pedra do reino preenche perfeitamente seu papel de modelo literário e cultural para o Movimento Armorial: inspira composições musicais, poemas e quadros; torna-se o livro de cabeceira de jovens artistas e escritores armoriais. (SANTOS, 1999, p. 51)

Vale lembrar que mesmo o Movimento não tendo sido parte específica

na composição do nosso objeto de pesquisa, não tínhamos como dissociá-lo.

No RPR, Suassuna genuinamente se deixa levar pelas concepções

instauradas por esse Movimento, cujas características se fizeram necessárias

na composição do Romance sobre a qual se faz presente por entre os

discursos.

* * *

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Salientamos que dois principais aspectos puderam ser observados neste

trabalho: 1º) a maneira com que a ironia construída ao longo da enunciação

contribui na identificação da ironia nos enunciados; 2º) as determinantes

escolhas linguístico-estilísticas realizadas pelos protagonistas do discurso para

a manutenção desse universo irônico. E lembramos que tais observações

partiram de conceitos e concepções provenientes de um estudo cuja

perspectiva estilística contemplou a associação entre as teorias de Brait e

Martins, aliando sobretudo os estudos previstos em Ironia e perspectiva

polifônica e Introdução à Estilística: A expressividade da língua portuguesa,

respectivamente.

Além disso, pudemos perceber, também, que ao longo de nossos

estudos, sobretudo as instituições pré-concebidas e já consagradas em nossa

sociedade por meio das “verdades” oriundas deste senso comum, foram o alvo

mais acertado no RPR pela crítica suassuniana, propagada pela contribuição

crucial da ironia. E, à medida que selecionávamos e analisávamos fragmento

por fragmento, constatávamos – gradativamente – que a ironia suassuniana

tem, na obra, um papel altamente subversivo, em se considerando seu modo

dessacralizador, o qual impõe a apresentação de instituições às avessas.

Para concluir, cabe lembrar que é na perspectiva da análise linguística e

discursiva que é possível ao leitor compreender, por meio da estratégia

enunciativa construída pelo autor e efetivada pelo locutor, as pistas deixadas

por estes no momento da enunciação. Enfim, de que maneira o enunciado

“absurdo” expresso pelo enunciador pode indicar o caminho para identificação

do enunciador que se faz “sério”, sendo constituída, nesse processo, a

perspectiva polifônica. É como se esta ironia se revelasse para além da

materialidade linguística, uma vez que é no discurso que as ideologias

subjacentes tem o poder máximo na instauração do irônico em cada uma das

vozes dadas no RPR; sendo assim a ironia foi analisada de modo a identificar-

se o quão ela igualmente se torna um dos meios mais reveladores dos traços

do estilo de Suassuna.

* * *

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Isto posto, quem sabe as análises apresentadas por esta dissertação

apontem a um caminho já iniciado, porém a ser estreitado – cada vez mais –

na verificação da ironia de Ariano Suassuna associada ao seu estilo, o qual se

apresenta peculiar em se considerando seu processo natural de valorização da

cultura popular sertanejo-nordestina. Inclusive a oralidade proveniente da

linguagem sertaneja – brevemente apresentada neste estudo – seria algo com

que pudéssemos aprofundar nossas análises, visto que o autor do RPR, ao

contrário de expor uma oralidade daqueles que não dominam a língua escrita

(compondo algo que pudesse se caracterizar por primitivo), ao contrário, leva-

nos a refletir acerca de nossas próprias raízes brasileiras advindas de uma

língua que é fruto do Latim Vulgar. São, porém, infinitas as ocorrências de

“desvios”, repetições e pontuação que poderiam ser apontadas posteriormente.

Para tanto, a satisfação de termos encontrado uma linha de raciocínio, a mais

adequada possível, também seria um aspecto a ser garantido e mantido em um

novo grau de estudo.

De todo modo, estamos certas, também, ao apontar em que medida

alcançamos os objetivos a que nos propusemos em não isolar a obra para

estudo puramente específico, uma vez que o discurso se articula com o léxico

e vice-versa. Ou seja, a questão estética relativa ao linguístico-discursivo, traz

à tona uma análise estilística que se sustentou por meio de seus pensadores e

também considerou o Movimento Armorial como fenômeno cultural estético,

para além do fenômeno social e em favor de uma análise mais precisa, neste

aspecto. Sabemos, também, que ao analisarmos o RPR apresentando a

materialidade linguística, aliávamos a questão discursiva a partir das vozes que

se fizeram presentes nos excertos selecionados na composição de nosso

corpus.

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REFERÊNCIAS

Bibliografia

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ANEXOS

1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas de peitos macios

De fato, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, o

escudo que acabei de descrever era o Brasão familiar do Donzel, como o

Doutor Pedro Gouveia explicaria logo mais. Mas não deixa, também, de ser

"uma coincidência epopeica, astrosa e fatídica", que o timbre desse Escudo

fosse exatamente "uma Dama de cabelos soltos e com as mãos cobertas":

porque a moça Heliana, aquela que veio a ser o grande amor e o segredo da

sua vida, vivia sempre com as mãos cobertas, não se conhecendo notícia de

homem nenhum a quem ela, conscientemente, consentisse desvendá-las -

com exceção dele, é claro. (RPR, p.47)

1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas

Pode-se dizer, nobres Senhores e belas Damas, que houve duas

causas próximas para minha prisão. A primeira, foi a chegada, a Taperoá, do

rapaz do cavalo branco. A segunda, estreitamente ligada a ela, foi o

assassinato, por degolação, de meu tio e Padrinho, o fazendeiro Dom Pedro

Sebastião Garcia-Barretto. Meu Padrinho foi encontrado morto, no dia 24 de

Agosto de 1930, no elevado aposento de uma torre que existia na sua

fazenda, a "Onça Malhada". Essa torre servia, ao mesmo tempo, de mirante à

casaforte, o de campanário à capela da fazenda, que era pegada à casa. Seu

aposento superior era um quarto quadrado, sem móveis nem janelas. O chão,

as grossas paredes e o teto abobadado desse aposento eram de pedra-e-cal.

Por outro lado, meu Padrinho, naquele dia, entrara só no aposento e trancara-

se lá em cima, dentro dele, usando, para isso, não só a chave, como a barra

de ferro que a porta tinha por dentro, como tranca. Outra coisa misteriosa: no

mesmo dia, Sinésio, o filho mais moço de meu Padrinho, desapareceu sem

ninguém saber como. Dizia-se que fora raptado, a mando das pessoas que

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tinham degolado seu Pai, pessoas que odiavam o rapaz porque ele era amado

pelo Povo sertanejo, que depositava nele as últimas esperanças de um

enigmático Reino, semelhante àquele que meu bisavô criara. Sinésio fora

raptado e, segundo se noticiou, morrera também de modo cruel e enigmático,

dois anos depois, na Paraíba, o que não impedia o Povo de continuar

esperando a volta e o Reino miraculoso dele. (RPR, p.59)

1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas que me ouvem

Não vou mais transgredir as leis de Deus contando o que se passou.

Seria arriscar-me demais perante o juiz, o Delegado e os nobres Senhores e

belas Damas que me ouvem. (RPR, p.291)