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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
CRISTIANE BACHIEGA YAMAMURA
Orientador: Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti
Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística
SÃO PAULO 2014
2
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
NXXXp
Yamamura, Cristiane Bachiega
O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta / Cristiane Bachiega Yamamura. - São Paulo; SP: [s.n], 2014.
118 p. : il. ; 30 cm.
Orientador: Guaraciaba Micheletti.
Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul.
1. Discurso (análise) 2. Ironia - Literatura 3. Estilo 4. Ariano Suassuna 1927-2014 I. Micheletti, Guaraciaba. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.
CDU: XX.XXX:XXX(XXX.X)
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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
O discurso irônico no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta
Cristiane Bachiega Yamamura Dissertação de mestrado defendida e aprovada pela Banca Examinadora em 19/12/2014.
BANCA EXAMINADORA: Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti Universidade Cruzeiro do Sul Presidente Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Tinoco Cabral Universidade Cruzeiro do Sul Prof.ª Dr.ª Maria Inês Batista Campos Universidade de São Paulo
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Àquele que, já imortal, se faz presente em cada um de meus dias: Ariano Vilar Suassuna.
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AGRADECIMENTOS
À Prof.ª Dr.ª Guaraciaba Micheletti pela orientação, compreensão e incentivo dispensado ao desenvolvimento deste trabalho, mas principalmente por me apresentar a obra de Ariano Suassuna, sobre a qual pude me debruçar e me apaixonar.
A todos os docentes que fizeram parte dessa minha conquista, em especial às componentes de minha banca, Prof.ª Dr.ª Maria Inês Batista Campos (USP) e Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL).
À minha amada amiga e parceira de trabalho para todas as horas, Flaviana Botta Giachini, por todo o incentivo dispensado desde meu ingresso na Secretaria Municipal de Educação de Caraguatatuba.
À Prefeitura Municipal de Caraguatatuba que, por meio do Programa de Concessão de Bolsas de Estudo, oportunizou a mim a realização de um sonho de longa data.
À minha mãe Almerí Leite Bachiega pelo interesse e leitura de meus escritos todos e pela dedicação à minha pessoa, ainda que estando longe.
Ao meu pai Sergio Yamamura pela paciência e dedicação ao se preocupar e cuidar de minha saúde estando sempre por perto.
Ao meu irmão caçula Leonardo Alderí Bachiega Rios pela contribuição intelectual em nossas discussões histórico-literárias.
À minha irmã Lívia Bachiega Yamamura Catarina e também ao seu esposo Ricardo Parra Catarina por todo o auxílio dispensado.
ESPECIALMENTE ao meu sobrinho, Heitor Yamamura Catarina, que, com seus juvenis olhares de quatro meses de vida, já preenche minha alma de alegria.
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YAMAMURA, C. B. O DISCURSO IRÔNICO NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA. 118 F. DISSERTAÇÃO (MESTRADO EM LINGUÍSTICA) - UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL. SÃO PAULO, 2014.
RESUMO
A presente dissertação, intitulada “O discurso irônico no Romance d’A Pedra do
Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna”, tem por
objetivo analisar os aspectos linguístico-estilísticos do referido Romance, em
especial, os traços irônicos. Para tanto, inserido na linha de pesquisa “Estudos
estilísticos: discurso, gramática e estilo”, e sob a perspectiva dos estudos de
Nilce Sant’Anna Martins, dentre outros, nosso trabalho procura reconhecer,
também, de que maneira as escolhas linguísticas consequentes do estilo
suassuniano colaboram na construção do discurso irônico na obra. O estudo da
ironia terá como base, sobretudo, as pesquisas de Beth Brait em consonância
com as perspectivas atuais provenientes do legado do Círculo de Bakhtin.
Desse modo, as análises dar-se-ão a partir de um critério de seleção dos
trechos extraídos do romance. Esses trechos provêm de quatro eixos
norteadores: 1º) Quaderna e seu discurso de apelo realizado por meio do
vocativo; 2º) A ironia de Quaderna para com as obras clássicas e instituições
literárias e filosóficas; 3º) A ironia de Quaderna para com demais instituições;
4º) Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista.
Palavras-chave: Ironia, escolhas linguísticas, estilo.
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YAMAMURA, C. B. THE IRONIC SPEECH IN THE ROMANCE OF THE STONE OF THE KINGDOM AND THE PRINCE OF COMING-AND-GOING BLOOD. 118 F. DISSERTAÇÃO (MESTRADO EM LINGUÍSTICA) - UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL. SÃO PAULO, 2014.
ABSTRACT
This dissertation entitled "The ironic speech in the Romance of The Stone of the
Kingdom and the Prince of Coming-and-Going Blood, by Ariano Suassuna”,
aims to analyze the linguistic and stylistic aspects of the quoted novel, in
particular, ironic traits. And so, inserted into the line of research "stylistic
studies: speech, grammar and style," and from the perspective of Nilce
Sant'Anna Martins studies, among others, our work also seeks to recognize
how the linguistic choices, consequence of the suassuniano style, collaborate in
the construction of ironic speech in the novel. The study of the irony will use as
a base, above all, the researches done by Beth Brait in line with the current
perspectives from the legacy of the Bakhtin Circle. Thus, the analysis will be
announced from a selection criterion of excerpts taken from the novel. These
excerpts are from four guiding principles: 1) Quaderna and his appeal speech
made through the vocative; 2) The Quaderna's irony towards the classical
works and literary and philosophical institutions; 3) The Quaderna's irony
towards other institutions; 4) Quaderna versus Judge Magistrate and the irony
experienced by the protagonist.
Keywords: Irony, linguistic choices, style.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................10
CAPÍTULO 1 1 SUASSUNA E A CULTURA POPULAR ...............................................20 1.1 A relevância da Cultura Popular Sertaneja na composição da
literatura suassuniana presente no RPR............................................23 1.1.1 A divisão do romance em folhetos.................................................25
1.1.2 As ilustrações imitando as xilogravuras.........................................31
1.2 As escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo suassuniano.....................................................32
CAPÍTULO 2 2 A IRONIA..............................................................................................37 2.1 O recurso da ironia: breves considerações.......................................37 2.2 A ironia presente no RP........................................................................45
CAPÍTULO 3 3 IRONIA, LÉXICO E ESTILO SUASSUNIANO NO RPR........................50 3.1 Quaderna e seu discurso irônico de apelo realizado por meio do
vocativo..................................................................................................53 3.2 A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições
literárias e filosóficas............................................................................68 3.2.1 O debate acerca da figura de Homero...........................................84
3.2.2 O debate acerca da Filosofia Clementina do Penetral (Tratado de
Filosofia do Penetral)..............................................................................85
3.2.3 O debate acerca do gênero Epopeia.............................................90
3.3 A ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”...........................................................................................92 3.3.1 O "Duelo" e a ironia no discurso do Lº...........................................93
9
3.3.2 A "Vida Casta" e a ironia nos discursos de Quaderna Narrador e
Quaderna Personagem...........................................................................96
3.3.3 A "Monarquia", a "Igreja (Católica)" e a ironia no discurso de
Quaderna Personagem...........................................................................98
3.3.4 A "Língua Portuguesa" e a ironia nos discursos dos personagens
Quaderna e Juiz-Corregedor.................................................................100 3.4 Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo
protagonista.........................................................................................105 3.4.1 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de
colocações exclamativas (Fragmentos 16 e 17)...................................106
3.4.2 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de
colocação interrogativa (Fragmento 18)................................................107
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................109
REFERÊNCIAS...........................................................................................115
ANEXOS.......................................................................................................118
10
INTRODUÇÃO
A literatura concentra, converte, encontra possibilidades expressionais presentes na língua em todas as suas variedades escritas e orais. Além disso, explora possibilidades expressionais potenciais e seus efeitos. Retira da cartola em seu espetáculo mágico usos possíveis, mas nunca utilizados. Por essa característica, foi sempre campo de colheita farta para os estudos linguísticos. (TRAVAGLIA, In BRAIT, 2013, p.36)
Esta pesquisa propõe uma investigação do universo irônico no qual se
encontra envolvida a narrativa do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue do Vai-e-Volta (RPR), do escritor paraibano Ariano Vilar Suassuna
(1927-2014). Sob a perspectiva dos estudos linguístico-estilísticos, optamos
por tratar deste fenômeno, focalizando, particularmente, as escolhas
linguísticas de seu criador. E, para tanto, determinados trechos da história
foram compondo o corpus deste trabalho, na medida em que fomos
identificando as palavras, expressões e sintagmas que revelam a comunhão
entre a ironia e o estilo suassuniano no decorrer dos discursos presentes na
narrativa. E vale adiantar que – ainda que ora mais nítida, ora menos nítida –, o
maior destaque da ironia em associação ao estilo suassuniano se encontra no
discurso de Quaderna, seu herói protagonista e narrador-personagem.
Publicado pela primeira vez em 1971, o RPR1 revela um universo
popular inspirado na cultura específica da região do Cariri2 – representada
nesta obra ficcional pelo município paraibano de Taperoá3, cidade-natal do
escritor. E, para que vivesse grandiloquentes aventuras por este local,
Suassuna cria o personagem Quaderna que se constrói a partir de uma crítica
proveniente de um viés irônico. Com a intenção em refletir sobre as mazelas
dessa região, e sendo a cidade paraibana de Taperoá como um microcosmo
1 A partir desta página, por inúmeras vezes, o nome da obra Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta será substituído pela abreviação RPR. 2 Sertão do Cariri é a denominação dada às terras onde viviam os índios kariris, no Ceará e Paraíba. (Fonte: disponível em http://www.almanaquebrasil.com.br/curiosidades-cultura/7166-muito-alem-do-sertao.html) 3 O município de Taperoá encontra-se no Planalto da Borborema, na parte central do Estado da Paraíba. Faz parte da Mesorregião da Borborema e da Microrregião do Cariri Ocidental. (Fonte: disponível em http://www.taperoa.pb.gov.br/a_cidade/historia)
11
do Brasil (TAVARES, 2007, p.178) dentro da referida ficção, atentar-nos-emos
ao olhar crítico e irônico de Suassuna, o qual se revela um olhar preocupado
com a beleza, o mistério e as contradições desse local, de modo a revê-lo.
Por esta razão, embora o Sertão já tenha sido anteriormente tratado em
obras da Literatura Brasileira, publicadas por escritores tais como os
modernistas e pré-modernistas – dentre os quais se podem destacar: Euclides
da Cunha (1866-1909), Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rêgo
(1901-1957), João Guimarães Rosa (1908-1967) e João Cabral de Melo Neto
(1920-1999) –, em Suassuna este cenário, Sertão, se dá diferente de tudo que
já havia sido feito, sobretudo em se considerando sua inovação na confluência
dos gêneros, bem como no que tange à maneira irônica de exploração do
“grotesco” da miséria sertaneja. Salientamos, pois, que:
[...] é uma ilusão crer que a obra tem uma existência independente. Ela aparece em um universo literário povoado pelas obras já existentes e é aí que ela se integra. Cada obra de arte entra em relações complexas com as obras do passado que formam, segundo as épocas, diferentes hierarquias. (TODOROV In: BARTHES et al [1981] 2011, p.220)
E, em relação a essa estrutura narrativa, Suassuna proporciona uma
nova alternativa de composição do Romance, concebendo a mescla de vários
gêneros. Segundo a escritora Rachel de Queiroz, que assina o prefácio do
RPR quando de seu lançamento em 1971:
Mas se o hábito da rotulagem faz a gente insistir na tentativa de situar o livro dentro de um gênero - pois que então fique como romance [...]. Contudo, também poderia ele ser uma Crônica - no sentido de que relata casos supostamente históricos, guerras e armadilhas e elevação e trucidamento de reis, rainhas e princesas. Mas também é profecia e doutrinação, também é romance de cavalaria e conto fantástico - e romance erótico, por que não o erotismo seco, reduzido aos essenciais, uma espécie de erótico sem luxúria, esfolado e ríspido. É profético, porque passa por ele todo um sopro religioso, partindo embora de boca maldita - mas nunca chega a ser demoníaco. (In SUASSUNA, 2012, p.15)
Quem sabe motivados por essa inovação proporcionada pelo estilo
suassuniano é que estudiosos vêm se dedicando às análises de sua obra
desde o seu aparecimento. Por meio dessa maneira de trato à temática
sertaneja, e de uma linguagem revolucionária, Ariano Suassuna – que, a partir
12
de 1990, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras ocupando a
cadeira de nº 32 – é, hoje, reconhecido como um dos grandes nomes de nossa
literatura contemporânea.
Atualmente há um número considerável de críticos e pesquisadores que
estudam sua obra como um todo, e um bom exemplo dessa dedicação ao tema
“Ariano Suassuna” vem do trabalho realizado por Idelette R. Muzart F. dos
Santos, que pelo menos desde 1973 analisa o teatro e a literatura deste
escritor assim como suas relações com a cultura popular. Tratando da
construção de uma obra multifacetada suassuniana, no livro Em demanda da
poética popular, publicado em 1999, I. Santos declara que:
Num feixe semântico concorrente e, às vezes, contraditório, popular designa o que vem do povo, o que é relativo ao povo, o que é feito para o povo e, finalmente, o que é amado pelo povo. Pertence, portanto, a um discurso sobre o povo [...]. (p.14)
Especificamente voltados para os estudos do RPR, apontam-se nomes
do meio acadêmico, tais como: Guaraciaba Micheletti, Sônia Sueli Berti Santos
e Braulio Tavares. Este se dedica não apenas ao RPR, mas a toda a obra de
Ariano Suassuna, publicando em 2007 o livro ABC de Suassuna; é também
autor do texto de orelha que acompanha o RPR conforme a republicação
deste, mais de vinte anos depois de sua 1ª edição. S. Santos – que, além de
pesquisadora na área de Linguística, é artista plástica e estudiosa da linha
semiológica – realizou um estudo acerca das ilustrações de Suassuna
presentes no RPR, enfatizando a arte e a representação contida em sua capa.
Micheletti, por sua vez, tratou dessa narrativa pouco mais de dez anos após a
sua primeira publicação, de acordo com a dissertação de mestrado defendida
por ela, cujo tema “Ariano Suassuna e o romance nordestino” deu origem, em
1997, ao ensaio Na confluência das formas – O discurso polifônico de
Quaderna/Suassuna que diz:
Fruto de uma vivência geográfica, social e política, a Pedra do Reino chega a confundir-se com a história pessoal de seu autor; o depoimento de Quaderna ao Corregedor transforma-se no depoimento-denúncia do sertanejo Ariano Suassuna à nação brasileira. (p.13)
13
e desde então, Micheletti reserva um espaço em seus estudos para envolver-
se nas análises do RPR, desenvolvendo e organizando outras publicações de
referência, sobretudo para pesquisadores da obra desse enigmático escritor.
Não podemos ignorar, no entanto, que o RPR foi primeiramente
estudado por pesquisadores estrangeiros, como, por exemplo, a romancista
alemã R-G Mertin que escreveu a tese Romance da Pedra do Reino, em 1979.
Já nas duas últimas décadas, Suassuna teve sua obra divulgada pela televisão
e, desse modo, começou a despertar maior interesse entre leitores e
pesquisadores.
* * *
O mundo suassuniano tem uma particularidade geográfica: sua capital literária é Taperoá, uma pequena cidade dos Cariris Velhos, no sertão da Paraíba, que ultrapassava apenas os 12 mil habitantes no censo de 1975. Taperoá foi o espaço da infância de Suassuna: ali viveu dos 6 aos 14 anos, ali estudou, descobriu a caça nas fazendas dos arredores, pertencentes a parentes ou amigos, entre as quais a Fazenda Malhada da Onça que se torna, no RPR, “Onça Malhada”. (SANTOS, 1999, p. 72)
Tendo sempre vivido no circuito Paraíba-Pernambuco, Ariano Suassuna
elabora muito naturalmente uma releitura do ambiente sertanejo, bem como
considera sua experiência de vida para com essa região. O criador do
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta soma o
legado cultural mouro-ibérico de nossos colonizadores portugueses às mazelas
sociais, ao mesmo tempo em que amplia a reflexão linguístico-social. A
paisagem nordestina é o pano de fundo na proposição de tal reflexão, a qual
era pouco – ou quase nada – proporcionada pelos romances brasileiros, até
então; uma vez que era ofertada apenas por meio da literatura de cordel. Assim
sendo, vale lembrar que o gênero literatura de cordel, ou folheto, trazido da
“metrópole” Portugal, vem tratando, legitimamente, desta paisagem sertaneja e
de sua respectiva linguagem.
Portanto, por intermédio da valorização da cultura popular nordestina
expressa pelas produções artísticas – dentre elas o Cordel –, é que Suassuna
pôde compilar suas ideias criando junto com outros artistas nordestinos o
14
Movimento Armorial, um ano antes da publicação do RPR. Segundo passagem
do livro de mesmo nome (Movimento Armorial),
O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o nome ‘armorial’ para denominá-lo. Acontece que, sendo ‘armorial’ o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que desejávamos ligar-nos a essas raízes da Cultura popular brasileira. (SUASSUNA apud MICHELETTI, 1997, p.131)
Com a imensa possibilidade de tratar da riqueza do universo popular, e
com base no aludido movimento, Suassuna exibe o RPR em folhetos de cordel
compostos de ilustrações por ele mesmo produzidas, que acompanham
algumas passagens da narrativa que é composta de 754 páginas. Nessa
ficção, ao unir a Cultura Brasileira à Cultura Clássica, o autor cria e dá voz a
um personagem original e extraordinariamente inventado: Pedro Dinis Ferreira-
Quaderna, que é o narrador protagonista, cuja história se passa durante seu
depoimento prestado ao Juiz-Corregedor (e à Dona Margarida Torres Martins –
escrivã do tribunal), devido à acusação de que seria um conspirador contra as
autoridades daquele local. E devemos salientar, aqui, que em sua narrativa,
Quaderna “passeia” por toda a literatura ocidental.
O enredo se inicia em 09 de outubro de 1938, quando Quaderna se vê
na prisão de Taperoá e, diante da necessidade de sua defesa, é, a partir de
então, que se declara o Rei do Brasil e o sagrado “gênio da raça brasileira”.
Quaderna passa então a escrever ou reescrever histórias reais, histórias fictícias, poemas de autores eruditos, versos de cordel, romances ibéricos, documentos históricos, textos proféticos, visões sobrenaturais, epigramas, anedotas fesceninas. Seu delirante projeto literário requer uma antropofagia de todos os gêneros [...]. (TAVARES, 2007, p.152)
Podendo ser identificado como o reflexo de um povo na busca de sua
identidade, o protagonista Quaderna se utiliza do início de seu depoimento ao
Juiz-Corregedor, para discursar acerca de seus antepassados, retomando as
histórias vividas por ele mesmo e/ou por seus ascendentes. Com base em um
discurso clássico-filosófico mesclado a uma linguagem peculiar do Sertão, eis
15
que, para se defender, inicialmente, recupera a história de seus descendentes
relativa a quatro impérios desta região, remontando à Primeira notícia dos
Quaderna. Nesse sentido, inclui-se a história de “Dom Ferreira-Quaderna, o
execrável” que, terrivelmente, sacrificou parte de seu povo, conforme
degolamento público que ocorria no local denominado de “Pedra do Reino”.
Assim sendo, tem-se que o criador do RPR – Suassuna – apresenta a
crença de um povo no mito sebastianista e dá voz à sua principal criatura –
Quaderna –, a fim de que ela se utilize de um discurso que possua passagens
reais de nossa História e que, recorrendo a uma caracterização do
fundamentalismo messiânico típico da região sertaneja, faça referência ao
massacre que se deu em 1838, em São José do Belmonte. Geograficamente
localizado na fronteira da Paraíba com Pernambuco, o local denominado Pedra
Bonita (Pedra do Reino, no RPR) fica na parte do Sertão, conhecida por Pajeú,
sendo palco da morte de 89 pessoas (grupo de 59 adultos e 30 crianças)
durante o período de 14 a 18 de maio daquele ano (1838), em atendimento às
ordens de fazendeiros – entre outras “forças” locais –, os quais motivavam seu
povo a acreditar que, mediante tais sacrifícios, trariam de volta o reinado de
Dom Sebastião4.
É, pois, o messianismo, um assunto recorrente na temática sertaneja e
que, em consequência, não poderia faltar ao RPR a preocupação de Suassuna
com a caracterização típica desse local, que se quer revelar através da tradição
de um povo. Há que se considerar, desta forma, que no RPR, a simbologia da
“Pedra do Reino” possui imensa relevância, sobretudo como sendo o local
onde Quaderna se pretende (auto)coroar como “rei” de um novo império, a
partir de uma sagração “paródica” que, segundo sua própria opinião, se faz
justa e consequente por ser, ele, herdeiro de uma tradição “castanha”. Em se
tratando dessa sua forte presença, a “Pedra do Reino” compõe desde o título
escrito e a ilustração da obra – observados na capa da primeira edição e
4 Séculos depois do desaparecimento do rei de Portugal, Dom Sebastião, e de iniciado o mito sebastianista, o movimento místico acontece no sertão nordestino, onde surge a seita conhecida como Pedra Bonita, ou Pedra do Reino, liderada por João Antônio que logo foi afastado pelas autoridades locais. No seu lugar, assume João Ferreira, defendendo que, para restaurar o reino, era preciso imolar homens, mulheres e crianças e assim que D. Sebastião voltasse, todos ressuscitariam. A matança começa em 14 de maio de 1838 e depois de três dias o local é totalmente destruído. (Fonte: disponível em http://historitura.wordpress.com/2013/08/26/d-sebastiao-e-o-sebastianismo/)
16
também da última –, até os inúmeros momentos em que se é referida durante a
narrativa. Segundo S. Santos:
A gravura da pedra que aparece na capa desta obra, elaborada a partir da fotografia de Vilar, é uma recriação estética do real que apresenta as características das técnicas das xilogravuras encontradas nas obras de Samico, que influenciaram Suassuna. (In: MICHELETTI, 2007, p.117)
Em relação à trajetória do herói-narrador Quaderna, propriamente dita,
após reconstituir as histórias sertanejas de suas famílias, ele dá início ao relato
de seu próprio percurso por aquelas terras, caracterizando-se por ser detentor
de ritos e aventuras. Por meio de uma ardilosa argumentação para conquistar
sua maior batalha daquele momento – que é convencer a todos de sua
inocência –, a narrativa quadernesca impressiona pela fluidez. Por vezes,
entretanto, distancia-se da realidade, caracterizando-se pelos traços irônicos e,
até mesmo, cômicos de seus personagens.
Reiteramos que, neste trabalho, a ironia que se mostra ora com humor,
ora com sarcasmo e ora, ainda, com deboche, por vezes concretizada em uma
linguagem que revela a ideologia e o estilo suassuniano, será nosso principal
foco de análise. Até pelo fato de que a ironia pode, ou não, encerrar-se nela
mesma, tentaremos evidenciar algumas passagens nas quais se identifica a
ironia suassuniana, a fim de analisá-la para além do que foi dito; ou seja, é o
“não-dito” que aqui será apresentado como proposta.
* * *
Faz-se necessário, assim, um levantamento prévio acerca do percurso
histórico frente à abordagem da ironia. E, para tanto, tem-se como base os
estudos de Beth Brait (2008), dentre outros pesquisadores que, tal como ela,
possuem suas concepções em associação às propostas da Análise do
Discurso (AD) e em consonância com o legado proveniente do Círculo de
Bakhtin, cujas pesquisas trataram do interdiscurso e da polifonia – elementos
de que se compõem peças-chave para uma análise do referido fenômeno
(ironia), objeto de análise desta pesquisa.
Já adiantamos que:
17
A busca de uma perspectiva discursiva, que surpreendesse a ironia como conjunção de discurso e, mais especificamente, como forma particular de interdiscurso, revelou-se como um caminho no sentido de descrever e interpretar determinados aspectos ligados a fenômenos linguísticos, caracterizados dentro de uma categoria ampla denominada humor e localizada em diferentes tipos de discurso. (BRAIT, 2008, p.13)
À vista disso, considera-se que dois aspectos serão o cerne deste
trabalho. São eles: a maneira com que a ironia vai se construindo por meio da
enunciação, bem como a importância de determinadas escolhas linguístico-
estilísticas realizadas pelo escritor para a obtenção dessa ironia. Há que
salientar, neste momento, que, para a identificação e análise dessas escolhas
serão utilizados, em associação, os estudos propostos especialmente por Nilce
Sant’Anna Martins, Norma Discini, Maria Aparecida Barbosa e Manuel
Rodrigues Lapa. Ressaltamos que para Martins (2008):
Quanto à significação das palavras – assunto de acentuada complexidade – pareceu-nos conveniente aproveitar o que ensina Tatiana Slama-Cazacu, na obra Lenguaje y contexto: existe em cada palavra, tal como na língua, algo que lhe imprime determinada constância e que impede o seu emprego arbitrário. [....] A autora faz uma distinção entre significado e sentido. O significado existe na palavra pertencente ao léxico da língua, é a noção da palavra e contém latências para casos particulares; no mecanismo concreto da comunicação, a noção se individualiza, torna-se mais precisa pela indicação do caso particular, se enriquece, se completa, torna-se o sentido que a palavra adquire para uma certa pessoa que a emprega em uma situação específica, sentido que se amplia mais ainda pelos diversos elementos afetivos. O sentido é, pois, a realidade que aparece na prática da linguagem, como fato complexo e variável; o significado é uma parte necessária e muito importante dele, mas não é a única. O sentido depende dos diversos aspectos da personalidade de cada um e pode variar em diferentes momentos. (p.77)
E, especificamente relacionando o Romance d’A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta à ironia, alguns trabalhos fazem menção a
ela, mas não se dedicam com mais profundidade ao tema, o que – de certa
maneira – comprovou-nos a relevância de nossa escolha e consequente
responsabilidade para com as análises propostas. Nesse âmbito, além das
considerações iniciais e finais com as quais abriremos e fecharemos este
trabalho, nossas discussões se darão divididas da seguinte maneira:
18
Capítulo 1, “Suassuna e a Cultura Popular”, tentaremos subdividi-lo em
duas subpartes a fim de apontar: 1º) “A “relevância” da Cultura Popular
Sertaneja na composição da literatura suassuniana presente no RPR”; 2º) “As
escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo
suassuniano”.
Capítulo 2, “A Ironia”, será apresentado sob duas subpartes, sendo a
primeira, “O recurso da ironia: breves considerações”, utilizada para se elencar
as concepções de ironia ao longo dos séculos, de modo a apresentar um
percurso da Antiguidade até os dias de hoje; ou seja, a partir das ideias do
filósofo Sócrates – visitado nos escritos de Søren A. Kierkegaard – dar-se-á
início às considerações do fenômeno (ironia), perpassando por outras épocas e
por outras áreas, como a Psicologia, até chegar aos estudos dados em nossa
contemporaneidade, de acordo com as pesquisas de Beth Brait, realizadas no
Brasil, cujas concepções – já dissemos – remetem ao “Círculo de Bakhtin” (e
vale ressaltar, neste momento, que tal percurso norteará as análises a serem
apresentadas no capítulo 3). Em seu livro Ironia em perspectiva polifônica, Brait
esboça que:
[...] uma perspectiva discursiva a respeito de ironia e, não particularmente, da relação existente entre ironia, intertextualidade e interdiscursividade, combinatória escolhida para abordar um ângulo, ao menos, da complexidade do discurso marcado pelo humor e consequentemente pela ambiguidade. (2008, p.22)
Embora não exatamente tratando da ironia, destacam-se, também, os
estudos de Julia Kristeva, os quais foram utilizados nesse trabalho na medida
em que se relacionavam às buscas de nossa pesquisa, uma vez que esta
escritora búlgara se utiliza dos conceitos de Mikhail Bakhtin (1895-1975) –
dentre eles a interdiscursividade –, ao mesmo tempo em que inaugura o uso do
termo intertextualidade na crítica literária.
Aproveitamos para salientar ainda que, quando o panorama do conceito
de ironia estiver mencionando as concepções dadas no campo específico da
Linguística, estudiosos como Dominique Maingueneau – e demais seguidores
da Análise do Discurso de linha francesa – serão mencionados conforme
19
algumas citações que serão apresentadas apenas como ilustração da história
desse referido conceito.
E dando sequência ao Capítulo 2, este se encerra com a subparte “A
ironia presente no RPR”.
Capítulo 3, “Ironia e estilo suassuniano no RPR”, finalmente serão
apresentadas as análises, cujas observações de vocábulos e sintagmas
relacionados ao fenômeno ironia serão realizadas especialmente sob a luz dos
estudos estilísticos aliados aos estudos do fenômeno ironia, sempre
considerando que:
A tonalidade emotiva de um grande número de palavras se deve a associações provocadas pela sua origem ou pela variedade linguística a que pertencem. São as palavras de poder evocativo, conforme as classificou Bally. São os estrangeirismos, os arcaísmos, os termos dialetais, os neologismos, as expressões de gíria, os quais não só transmitem um significado, mas também nos remetem a uma época, a um lugar, a um meio social ou cultural. (MARTINS, 2008, p.80)
Em especial no seu capítulo intitulado A Estilística da Enunciação,
Martins (2008) aborda, brevemente, de que maneira se dá o estudo das figuras
retóricas vistas sob o ângulo da enunciação. E, em relação à ironia e demais
figuras, a mesma declara:
A ironia, o paradoxo, o eufemismo, a lítotes, a hipérbole, por exemplo, só são apreendidos pelo receptor se ele atenta para a violação da relação de verdade entre o que o emissor diz literalmente e aquilo de que ele fala. O conhecimento do referente é indispensável para que se compreenda o sentido que se deve atribuir ao enunciado. Na ironia, o sentido oposto ao literal [...]. (2008, p.217)
20
CAPÍTULO 1
1 SUASSUNA E A CULTURA POPULAR
Arte popular brasileira existe. E não apenas isto: é vigorosa e autêntica, como provam, entre outras manifestações, as xilogravuras populares do Nordeste. E a Literatura popular brasileira também existe, basta o fato de possuirmos, nos folhetos, o maior e mais variado Romanceiro vivo do mundo, para demonstrar esta minha afirmação. [...] Nós, aqui no Brasil, temos, à mão, um material muito mais vasto, rico e variado do que o Romanceiro ibérico, um material que, se caísse, daqui a dois séculos, na mão de um crítico de sensibilidade, encheria toda a sua vida de estudos [...]. (SUASSUNA, 1969, In SUASSUNA, 2008, p.151)
O trecho acima faz parte de um ensaio publicado aproximadamente sete
anos após Ariano Suassuna escrever um artigo, no Recife, dizendo que o
Movimento de Cultura Popular constituía uma contrafação, pelo menos pelo
que o título indicava. Segundo ele, a Cultura popular é feita pelo Povo, pelo
“quarto Estado”, aqui identificado com os analfabetos ou semi-analfabetos
(Idem, Ibidem, p.156).
Sendo os ensaios críticos publicados em periódicos e jornais uma
atividade frequente do escritor desde muito tempo antes de 1971 (ano de
publicação do RPR), o tratamento ao Sertão e suas peculiaridades, sobretudo
ocorridas na literatura sertanista do Brasil, sempre foi um tema recorrente de
seus escritos crítico-reflexivos como no caso da citação acima. Ou seja, desde
o início de sua carreira de escritor, Suassuna vem priorizando tal tematização
em suas discussões apresentadas em publicações ensaísticas. A exemplo,
temos o ensaio “Encantação de Guimarães Rosa”, no qual se trata das
características geográfico-culturais e literárias:
Barroco do litoral nordestino é menos sóbrio e menos áspero do que o sertanejo, que sempre me pareceu brasileiro e nordestino, porém mais aparentado com a Espanha do que com Portugal. O barroco baiano é menos sóbrio do que o nordestino litorâneo [...]. Já o Barroco mineiro, a meu ver, seria mais aparentado com Portugal do que com o austero e sóbrio espírito espanhol.
21
É dentro dessas linhas gerais de pensamento que aproximo João Guimarães Rosa de Euclydes da Cunha. É daí que vêm suas semelhanças, seus parentescos profundos, como também as diferenças que marcam cada um deles dentro da mesma linhagem brasileira e barroca. (SUASSUNA, 1967, Ibidem, p.127)
Por outro lado, caracterizando o “seu Sertão” em comparação com os
“outros sertões”, Suassuna continua:
A mim parece que o Sertão de Minas Gerais é mais parecido com a nossa Zona da Mata do que com o verdadeiro Sertão nordestino. Pelo menos é o que me sugere a paisagem do Grande Sertão: Veredas, cheias de árvores, bosques verdes e rios; [...]. Já o Sertão nordestino, o Cariri, a Espinhara, o Moxotó, o Pajeú, é um deserto pedregoso, povoado de cabras, jumentos, carneiros, répteis e lagartos, carcarás e gaviões, um grande planalto amarelo e castanho, com uma ou outra serra, muito poeira e muito sol. (SUASSUNA, 1967, Ibidem, p.127)
E um pouco mais à frente, ainda no mesmo ensaio, Suassuna discorre
especificamente acerca da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:
A mim, o que mais me entusiasma no Grande Sertão: Veredas é que, sendo tudo isso, dizendo tudo isso, é um grande romance e um grande romance profundamente brasileiro. Uso, de propósito, a palavra romance, que, exatamente por ter muitos significados (desde o rimance em verso medieval até o folheto também em verso do Romanceiro nordestino e a novela em prosa), é a palavra mais apta a expressar a riqueza e profundidade vital dessa grande obra. (Idem, Ibidem, p.134)
* * *
Talvez inspirado pelas leituras que fez dos escritores sertanistas, bem
como indo além de uma apresentação da “cor local” até então realizada pelos
mesmos – cujas obras permearam, ou não, questões sociológicas, além de
descrever o Sertão –, é que Ariano Suassuna parece inovar a partir do
momento em que revela, ao mundo, o “castanho” (a cultura “castanha”) deste
local. Em relação ao tratamento dado ao Sertão nordestino no ensaio Um novo
romance sertanejo, Suassuna afirma que:
O Sertão, com sua terra áspera e sua civilização fechada, com sua Cavalaria do Cangaço vestida de “armaduras de couro”, seus casos de honra e suas rebeliões, sempre exerceu sedução sobre alguns dos melhores espíritos brasileiros do Litoral, dos Engenhos da Zona da Mata e mesmo do Sul do Brasil. (SUASSUNA, 1964, Ibidem, p.75)
22
Desse modo Suassuna frequentemente externava suas ideias e
reflexões, as quais antecipavam determinadas rupturas ao que havia sido feito
até então com a temática sertaneja, assim como oportunizaram a ele uma
experiência crítico-escritora que contribuiu para sua maturidade na redação
daquela que seria sua maior obra: o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe
do Sangue do Vai-e-Volta; segundo suas próprias afirmações. Finalmente
publicado em 1971, o RPR se apresenta em uma narrativa que parece
desconstruir a natureza da condição humana, revelando seus dramas; ou seja,
uma obra que ultrapassa os limites de um regionalismo, pois problematiza o
Homem. Parodiando fatos históricos e passagens consagradas da literatura
universal, bem como projetando em seu RPR, mais do que uma paisagem
sertaneja, Suassuna revela um estilo que também se compõe por elementos
oriundos da cultura popular, em especial àqueles relativos à linguagem. Talvez
se pudéssemos dizer que, reescrevendo o Cariri, então, Suassuna divulga, de
certa maneira, a cultura nordestina para além de seus limites geográficos, a fim
de atingir os mais diferentes leitores de todo o Brasil e do mundo.
Por outro lado, devemos salientar que, posterior a 1971 as discussões
apresentadas por ele em sua literatura crítico-ensaística perduraram e
amadureceram ainda mais, fato este que se dá (continua) até o fim de sua vida.
Em trecho de um ensaio publicado seis anos após o lançamento do Romance,
por exemplo, Suassuna ao descrever a maneira com que “enxergava” a arte
sertaneja, ressalta a modo irônico – entre outros – com que as figuras
presentes nas xilogravuras sertanejas se apresentavam diante dele na
condição em transmitir determinadas peculiaridades da tradição regional deste
local. Vejamos:
Depois de muito olhar e comparar, descobri o que caracterizava e realmente singularizava as nossas xilogravuras populares do Nordeste, em meio ao ambiente exausto, repetitivo e esteticista que, vindo de fora, dominava, naquele tempo, o campo da gravura feita no Brasil. E concluí: [...] eram [...] as figuras monstruosas e fortes, reais, por mais estranho que isso possa parecer, exatamente na medida em que saíam da imaginação ao mesmo tempo irônica, mística, satírica e alucinada do povo nordestino [...] e diga-se de passagem que foi por não encontrar no regionalismo e nos romances neonaturalistas deste movimento um ambiente que nos permitisse recriações à altura desse real-mítico, que procuramos outro, através da Movimento Armorial. (SUASSUNA, 1977, Ibidem, p.215)
23
E é neste contexto, portanto, que se concebe o Movimento Armorial, fruto de
toda essa visão suassuniana na interpretação do popular regional do Cariri, e o
qual vem sendo sistematizado desde os primórdios de seus escritos. Para
Micheletti, em resumo, o Movimento Armorial busca, numa inspiração
semelhante à do Romantismo, uma síntese de elementos populares e
elementos eruditos que se transforme num modelo nacional de Arte (2007,
p.132).
1.1 A relevância da Cultura Popular Sertaneja na composição da literatura suassuniana presente no RPR
A criação artística alimenta-se da variedade de temas e linguagens que integram uma sociedade, uma cultura, um dado momento histórico, seus diálogos com o passado e com o futuro, procurando dar sentido aos mistérios da existência. (BRAIT, In: BRAIT 2013, p.148)
Ao contrário de ser uma narrativa convencional, com começo, meio e
fim, tal como um romance geral e tradicionalmente se apresenta, o Romance
da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta possui uma narrativa
disforme, desafiando o leitor a desvendá-la. Para Micheletti (1997):
O leitor (ou mesmo o crítico), habituado aos romances tradicionais e às novas narrativas contemporâneas, surpreende-se ao iniciar a leitura d’A Pedra do Reino. Defronta-se com uma história apresentada em folhetos, vinculada à tradição dos romanceiros medievais e segmentada conforme às técnicas do folhetim, espécie de romance pequeno burguês que floresceu na França do século XIX. E a perplexidade se avoluma quando, além desses dois aspectos, surgem outras formas épicas que vão compondo o tecido narrativo. (p.27)
A propósito, a maneira como Suassuna apresenta sua grande obra-
prima – por ele mesmo, assim denominada, visto que se um dia todas as suas
obras fossem destruídas e apenas uma pudesse ser preservada, que fosse o
Romance da Pedra do Reino (TAVARES, 2007, p.149) – inova a literatura
brasileira, sobretudo devido à sua completa ‘navegação’ pelos gêneros
textuais.
Ainda segundo Micheletti, tem-se que:
24
As palavras do autor, classificando sua narrativa como “novela”, preferindo chamá-la de “romance” e pretendendo que seja a um tempo epopeia e sátira já lançam o leitor num caldeirão onde fervilham os mais variados ingredientes. Suassuna parece comprazer-se em embaralhar as fôrmas como se estivesse de posse de um baralho propondo um jogo, cujas cartas foram, a priori, por ele marcadas. (1997, p.16)
E, somando-se a tudo isso, incorpora-se um ritmo produzido pelo efeito
da inserção de versos/poemas que compõem uma vasta coletânea que, pouco
a pouco, é apresentada na narrativa do RPR, na qual se identificam as
“homenagens” aos poetas populares nacionais e também aos escritores
consagrados da literatura brasileira e universal, em uma espécie da “releitura”
desses escritos/poemas encontrados em nossa contemporaneidade e
igualmente em outras épocas – das mais recentes às mais remotas possíveis.
Como Idelette Muzart Fonseca dos Santos observou e analisou (Em Demanda da Poética Popular), a escritura de Suassuna é uma reescritura de textos próprios ou alheios. Ela considera o romance de Ariano um texto “grafofágico”, devorador de outros textos, e afirma, ao se referir às “citações falsificadas ou transformadas”: “Estas são muito numerosas no romance; a rigor, todas as citações do romance são falsas ou transformadas.” O autor nunca cita um texto alheio sem interferir nele, sem modificá-lo de propósito, usando para isso o pretexto de ser Quaderna quem faz a citação se amoldar a seu próprio estilo régio. (TAVARES, 2007, p.119)
Frisamos, por essa razão, que muitos desses poemas, inclusive, são
releituras dos cordéis presentes nas feiras populares do Nordeste, oferecendo
ao leitor a possibilidade, por exemplo, de imaginá-los ao som do ritmo
sertanejo, embalado pelos instrumentos típicos, e declamados por algum
repentista, à maneira como se dão nessas feiras repletas de cordéis dentre
outros infindáveis elementos representantes da cultura popular do Sertão.
Assim, o caminho da Arte e da Literatura brasileiras deve ser o da integração, e não o das discriminações. Aliás, nisso, como em muitas outras coisas, a própria atitude dos Cantadores e poetas populares é muito mais aberta, criadora e humana, ao mesmo tempo que singular, peculiar, resistentemente brasileira. Os folhetos, ao mesmo tempo que mantêm a raiz brasileira, não se fecham ao que vem de fora: pelo contrário, acolhem tudo [...]. (SUASSUNA, 1969, In SUASSUNA, 2008, p.159)
No Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta,
por sua vez, ao contar com um cenário sertanejo, Suassuna
25
consequentemente revela um universo popular envolto pela cultura nordestina
e que, na organização estrutural de seu Romance, pode ser representada por
meio de elementos tais como:
- A divisão do romance em folhetos;
- As ilustrações imitando as xilogravuras.
1.1.1 A divisão do romance em folhetos
Composto por um único volume, o Romance d’A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é dividido em cinco livros e 85 capítulos
(denominados folhetos, por Suassuna), sendo, estes, numerados com
algarismos romanos. A seguir, apresentamos esta organização:
Quadro 1
ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA
(“Antigo” Livro I)
PRELÚDIO – A Pedra do Reino
Capítulo Página 1 FOLHETO I Pequeno Cantar Acadêmico a Modo de Introdução p.31 2 FOLHETO II O Caso da Estranha Cavalgada p.35 3 FOLHETO III A Aventura da Emboscada Sertaneja p.50 4 FOLHETO IV O Caso do Fazendeiro Degolado p.59 5 FOLHETO V Primeira Notícia dos Quadernas e da Pedra do Reino p.65 6 FOLHETO VI O Primeiro Império p.68 7 FOLHETO VII O Segundo Império p.71 8 FOLHETO VIII O Terceiro Império p.73 9 FOLHETO IX O Quarto Império p.81 10 FOLHETO X O Quinto Império p.82 11 FOLHETO XI A Aventura de Rosa e De La Condessa p.84 12 FOLHETO XII O Reino da Poesia p.89 13 FOLHETO XIII O Caso da Cavalhada p.98 14 FOLHETO XIV O Caso do Castelo Sertanejo p.103 15 FOLHETO XV O Sonho do Castelo Verdadeiro p.116 16 FOLHETO XVI A Viagem p.120 17 FOLHETO XVII A Primeira Caçada Aventurosa p.122 18 FOLHETO XVIII A Segunda Caçada Aventurosa p.131 19 FOLHETO XIX O Caso da Coroa Extraviada p.134 20 FOLHETO XX A Terceira Caçada Aventurosa p.139 21 FOLHETO XXI As Pedras do Reino p.145 22 FOLHETO XXII A Sagração do Quinto Império p.149
26
(“Antigo” Livro II)
CHAMADA – Os Emparedados
Capítulo Página
23 FOLHETO XXIII Crônica dos Garcia-Barrettos p.157 24 FOLHETO XXIV O Caso do Filósofo Sertanejo p.164 25 FOLHETO XXV O Fidalgo dos Engenhos p.165 26 FOLHETO XXVI O Caso dos Três Emparedados p.170 27 FOLHETO XXVII A Academia e o Gênio Brasileiro Desconhecido p.181 28 FOLHETO XXVIII A Sessão a Cavalo e o Gênio da Raça p.187 29 FOLHETO XXIX O Gênio Máximo da Humanidade p.191 30 FOLHETO XXX A Filosofia do Penetral p.193 31 FOLHETO XXXI O Romance do Castelo p.195 32 FOLHETO XXXII A Trágica Desaventura do Rei Zumbi dos Palmares p.203 33 FOLHETO XXXIII O Estranho Caso do Cavaleiro Diabólico p.207 34 FOLHETO XXXIV Marítima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro p.214 35 FOLHETO XXXV A Trágica Desaventura de Dom Sebastião, Rei de Portugal e do Brasil p.227 36 FOLHETO XXXVI O Gênio da Raça e o Cantador da Borborema p.232
(“Antigo” Livro III)
GALOPE – Os Três Irmãos Sertanejos
Capítulo Página
37 FOLHETO XXXVII A Teia do Meu Processo p. 245 38 FOLHETO XXXVIII O Caso da Cabeça Involuntária p.247 39 FOLHETO XXXIX O Cordão Azul e o Cordão Encarnado p.253 40 FOLHETO XL Cantar dos nossos Cavalos p.271 41 FOLHETO XLI As Armas e os Barões Assinalados p.281 42 FOLHETO XLII O Duelo p.288 43 FOLHETO XLIII O Almoço do Condenado p.302 44 FOLHETO XLIV A Visagem da Moça Caetana p.305 45 FOLHETO XLV As Desventuras de um Corno Desambicioso p.307 46 FOLHETO XLVI O Reino da Pedra Fina p.320 47 FOLHETO XLVII A Aventura dos Cachorros Amaldiçoados p.324 48 FOLHETO XLVIII A Confissão da Possessa p.331 49 FOLHETO XLIX A Cadeia p.334 50 FOLHETO L O Inquérito p.337 51 FOLHETO LI O Crime Indecifrável p.358 52 FOLHETO LII Os Três Irmãos Sertanejos p.371 53 FOLHETO LIII Meus Doze Pares de França p.380 54 FOLHETO LIV A Parada dos Fidalgos Sertanejos p.390 55 FOLHETO LV De Novo a Cavalgada p.398 56 FOLHETO LVI A Visagem da Bicha Bruzacã p.402 57 FOLHETO LVII Invasão e Tomada da Vila p.412 58 FOLHETO LVIII A Aventura da Onça Mijadeira p.415 59 FOLHETO LIX O Grande Pretendente p.418 60 FOLHETO LX A Furna Misteriosa p.422 61 FOLHETO LXI O Caso do Cego Teológico p.426 62 FOLHETO LXII O Atentado Misterioso p.432 63 FOLHETO LXIII O Encontro de Dois Irmãos p.439
27
(“Antigo” Livro IV)
TOCATA – Os Doidos
Capítulo Página
64 FOLHETO LXIV A Cachorra Cantadeira e o Anel Misterioso p.447 65 FOLHETO LXV De Novo a Pedra do Reino p.459 66 FOLHETO LXVI A Filha Noiva do Pai, ou Amor, Culpa e Perdão p.467 67 FOLHETO LXVII O Emissário do Azul e as Juras de Castidade p.480 68 FOLHETO LXVIII O Caso do Cachorro Mal Comportado p.501 69 FOLHETO LXIX A Estranha Aventura do Cavalo Concertante p.517 70 FOLHETO LXX O Carneiro Cabeludo p.528 71 FOLHETO LXXI O Caso do Jaguar Sarnento p.532 72 FOLHETO LXXII O Almoço do Profeta p.546 73 FOLHETO LXXIII Cavalhadas de São João na Judéia p.559 74 FOLHETO LXXIV A Astrosa Desaventura dos Gaviões Cegadores p.568 75 FOLHETO LXXV O Ajudante de Profeta p.578
(“Antigo” Livro V)
FUGA – A Demanda do Sangral
Capítulo Página
76 FOLHETO LXXVI A Gruta Sumeriana do Deserto Sertanejo p.593 77 FOLHETO LXXVII Cantar do Fidalgo Pobre p.602 78 FOLHETO LXXVIII A Cegueira Epopeica p.610 79 FOLHETO LXXIX O Emissário do Cordão Encarnado p.621 80 FOLHETO LXXX O Roteiro do Tesouro p.653 81 FOLHETO LXXXI A Cantiga da Velha do Badalo p.688 82 FOLHETO LXXXII A Demanda do Sangral p.696 83 FOLHETO LXXXIII O Vinho da Pedra do Reino p.712 84 FOLHETO LXXXIV O Enviado do Divino p.723 85 FOLHETO LXXXV A Sagração do Gênio Brasileiro Desconhecido p.732
O Romance d’A Pedra do Reino¸ formado por cinco livros, constituídos por folhetos, narra as aventuras de Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, os acontecimentos que o levaram à prisão e à sua “demanda novelosa”. O Livro I se abre com um resumo dos episódios e uma invocação à Musa Sertaneja. Em seguida, Quaderna, o narrador-personagem, que se encontra preso, descreve a chegada dos ciganos e do rapaz do cavalo branco a Taperoá, acontecimento desencadeador de fatos que o levaram à prisão. [...] No livro II, segue-se a crônica das famílias envolvidas nos acontecimentos, a apresentação dos dois professores e amigos de Quaderna, Samuel e Clemente, que representam duas correntes político-ideológicas, Direita e Esquerda, respectivamente. No livro III, os primeiros folhetos (XXXVII-XLVIII) versam sobre os antecedentes do interrogatório; o XLIX marca a ligação do narrador e seus amigos com os acontecimentos políticos do período de 1930-1938 [...] Os outros dois capítulos apresentam a sequência do depoimento, sempre entremeado por “histórias” que visam, num plano imediato, distrair a atenção do Corregedor e, num outro, aumentar o suspense que cerca a narrativa. (MICHELETTI, 1997, p.17)
28
A título de curiosidade, devemos dizer que a organização e divisão dos
folhetos que outrora eram distribuídos pelos chamados Livros, a partir de 2006,
com a publicação de sua 8ª edição, os Livros I, II, III, IV e V passam a ser
chamados de “Prelúdio”, “Chamada”, “Galope”, “Tocata” e Fuga”,
respectivamente.
Vale lembrar que os títulos que davam nome aos antigos Livros, foram
preservados neste novo formato, havendo a seguinte mudança:
Quadro 2
MODIFICAÇÃO DA DIVISÃO DA OBRA
“LIVRO 1 – A Pedra do Reino” passa a ser “PRELÚDIO – A Pedra do Reino”
“LIVRO 2 – Os Emparedados” passa a ser “CHAMADA – Os Emparedados”
“LIVRO 3 – Os três Irmãos Sertanejos” passa a ser “GALOPE – Os Três Irmãos Sertanejos”
“LIVRO 4 – Os Doidos” passa a ser “TOCATA – Os Doidos”
“LIVRO 5 – A Demanda do Sangral” passa a ser “FUGA – A Demanda do Sangral”
Verifica-se que na organização relativa à divisão dos folhetos/capítulos e
revelada desde a apresentação do sumário, ao substituir o lexema ‘livro’ por
termos provenientes da teoria musical e relativos à música erudita, Suassuna
parece revelar uma preocupação em apontar para a concretização do
“casamento” entre as culturas popular e erudita, já nas primeiras páginas de
sua obra e de modo explícito.
Segundo Queiroz (1971):
Só comparo o Suassuna, no Brasil, a dois sujeitos: a Villa-Lobos e a Portinari. Neles a força do artista obra o milagre da integração do material popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência, com o toque pessoal de originalidade e improvisação. (In SUASSUNA, 2012, p.16)
29
Sem que nos aprofundemos nestes estudos, de qualquer modo
podemos dizer que há uma certa hierarquização da estrutura organizativa dos
“capítulos”, uma vez que os folhetos – representantes da cultura popular –
encontram-se dispostos dentro de uma macro-organização dada por meio da
divisão da obra em “livros” os quais são identificados por uma expressão
representante do vocábulo musical erudito e apresentam-se por um mecanismo
de gradação se considerarmos a cadência musical conforme a consecução dos
nomes dados a cada um deles (livros).
E para que possamos aclarar o significado de cada um destes termos
utilizados para denominar os títulos dos “livros” que organizam o RPR,
verificamos um dicionário específico da área musical, que é o Diccionario
Musical de Ernesto Vieira5, publicado em 1899 em Lisboa. Segundo ele, tem-se
que:
Quadro 3
PRELÚDIO Música que se executa de improviso, como que servindo de preparativo e
experiência antes de se começar o trecho principal. Pequena peça servindo de
introdução a outra mais extensa.
CHAMADA Sinal empregado na notação para chamar a atenção do executante, advertindo-o
de que deve voltar a ele quando o encontrar pela segunda vez.
GALOPE Dança moderna de sala, em compasso binário simples, andamento muito vivo
(cujo ritmo evoca o galope de um cavalo); dança-se ordinariamente no final de
uma quadrilha de contradanças.
TOCATA Música que se toca em qualquer instrumento; o mesmo que sonata.
(Composição instrumental livre, de caráter brilhante e vivo.)
FUGA
Peça de música em ritmo polifônico, na qual se desenvolve um pequeno tema,
reproduzindo-o em imitações livres. Primitivamente deu-se o nome de fuga ao
efeito das imitações, porque nelas parece sentir-se fingirem as vozes, umas após
outras. Nos séculos XV e XVI, fuga era sinônimo de imitação e de cânon; no
século XVII é que adquiriu o caráter de uma composição especial, desenhada
com certas formas particulares que pouco a pouco se aperfeiçoaram, vindo a
servir de base para as regras que se estabeleceram até então.
1. A fuga pode ser a duas, três ou mais vozes (considerando o termo voz
como sinônimo de parte de harmonia.).
5 Nenhuma referência bibliográfica do estudioso foi encontrada. Sabe-se, porém, que foi um estudioso da música escrevendo livros de teoria e biografia de músicos.
30
FUGA
2. Para se compor uma fuga, começa-se por escolher ou inventar o tema;
este deve consistir numa frase curta, desenhada de modo que se preste
a receber um contraponto interessante, e que se possa dividir em
fragmentos para serem aproveitados no desenvolvimento. O tema
recebe o nome de sujeito.
3. Apresentado o sujeito por uma voz, responde-lhe outra imitando-o à
quinta superior ou à quarta inferior; esta imitação chama-se resposta.
4. Seguidamente outra voz (ou a primeira se for só a duas) repete o sujeito
e ainda outra (ou a primeira se for a três) repete a resposta até que tenha
passado por todas as vozes.
5. Tendo cada uma das vozes feito a apresentação do sujeito ou da
resposta, continua a sua marcha melódica fazendo contraponto com a
outra ou outras vozes.
6. Quando o sujeito com a resposta tem sucessivamente percorrido todas
as vozes, está terminada a parte da fuga que se denomina exposição e
que é como o exórdio de um discurso.
7. Se o sujeito não sabe do tom principal e a resposta se realiza com
intervalos exatos como no cânon rigoroso, ter-se-ia uma fuga real.
No entanto, para o termo ‘galope’ – descrito no quadro acima –,
devemos considerar que especificamente fora da teoria musical e dentro da
teoria de outras áreas, ele possui acepções diversas a esta colocada por
Vieira. De acordo com Aulette eletrônico:
ga.lo.pe sm. 1. O mais rápido movimento da andadura do cavalo e de outros animais. 2. Ver galopada. 3. P.ext. Distância que um cavalo pode percorrer a galope: A igreja fica a um bom galope daqui.4. Passo muito rápido, apressado: Sua tia saiu a galope para comprar o remédio. 5. Dnç. Dança viva, rápida, popular na Inglaterra vitoriana. 6. Dnç. Dança alemã do séc. XIX, muito ritmada e curta. 7. P.ext. Mús. A música para essa dança. 8. Mar. Parte superior de um mastro, sem mastaréu, que recebe a borla. 9. Poét. Martelo de seis pés, sextilha de decassílabos us. pelos cantadores brasileiros; martelo agalopado. [F.: Do fr. galop.]
A área literária, por exemplo, considera ‘galope’, na Literatura Brasileira
Popular, basicamente como gênero de poesia popular que se desenvolve em
versos de onze sílabas.
31
1.1.2 As ilustrações imitando as xilogravuras
A arte armorial define-se, portanto, por uma relação “fundadora” com a literatura popular do Nordeste e particularmente com o folheto de feira, que o artista armorial ergue como bandeira por unir três formas artísticas distintas: a poesia narrativa de seus versos, a xilogravura de suas capas, a música (e o canto) de suas estrofes, literatura do povo, que parece escapar às certezas para suscitar vários questionamentos – e em primeiro lugar o de sua denominação e definição social. (SANTOS, 1999, p.14)
As influências artísticas populares estão presentes no romancista Ariano
Suassuna. Sendo um artista pleno ao transitar naturalmente por entre as Artes
– enveredando por todos os seus vieses: literário, musical, plástico, etc. – e,
além disso, um exímio conhecedor de todas essas áreas, Suassuna, com
extroversão, fez uso de suas xilogravuras na composição do Romance d’A
Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.
Segundo Tavares:
A xilogravura nordestina, da qual o Movimento Armorial se propôs a derivar toda uma estética para as artes visuais, abriu um novo caminho para a literatura de Ariano Suassuna, fornecendo-lhe a inspiração para as ilustrações do Romance d’A Pedra do Reino (certamente um dos romances brasileiros em que ilustrações feitas pelo próprio autor mais dialogam com o texto) [...]. (2007, p.191)
Desse modo, em se considerando o tratamento visual dado por
Suassuna em toda a sua obra – em especial à sua poesia e, igualmente ao seu
RPR, o qual também apresenta trechos em versos – Maria Inês Batista
Campos declara no artigo “Iluminogravuras de Ariano Suassuna: cartografia
com letra e pincel”, que as iluminogravuras suassunianas inauguram um tipo de
produção poética que poderia ser considerada típica do Movimento Armorial6
Para a estudiosa:
6 Na página 21 do livro Em demanda da poética popular, Idelette. M. F. dos Santos declara que: em 18 de outubro de 1970, um concerto era realizado na Igreja São Pedro dos Clérigos, no Recife, por uma orquestra recém-criada, a Orquestra Armorial. Paralelamente, acontecia uma exposição de artes plásticas. Ambas as manifestações tinham sido organizadas pelo Departamento de Extensão Cultural (DEC) da Universidade de Pernambuco. Seu diretor, Ariano Suassuna, no texto do programa, revelava ao público a existência do Movimento Armorial. No ano seguinte, a segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja do Rosário dos Pretos, em 26 de novembro de 1971, confirmava a proclamação de Suassuna. O conceito inaugural do Quinteto Armorial, naquele mesmo dia, testemunhava os primeiros passos da música armorial. A partir desta data, o Movimento Armorial, passava a existir.
32
A denominação “iluminogravura”, inventada por Suassuna, reúne a “iluminura” medieval (ilustrações que ornamentavam os pergaminhos dos mosteiros) e a “gravura”, de letras, desenhos e ornamentos em madeira, metal ou pedra. Na iluminogravura, o autor recupera a tradição poética [...], e a tradição pictórica, na xilogravura típica da cultura popular nordestina. Mas ele também transgride essas formas, fortalecendo as linguagens ao enunciá-las verbo-visualmente. Nesse entrecruzamento, os textos verbo-visuais tornam-se um acontecimento discursivo que surpreende o interlocutor por sua beleza visual [...]. (In: MICHELETTI, 2007, p.191)
Até por não ser muito frequente na Literatura Brasileira a ideia do
romance interligado à imagem, parece poder atribuir a Suassuna a utilização
da xilogravura popular como parte integrante do romance. Desta forma, por
meio de um processo natural de apropriação das características populares,
Suassuna revela, explicitamente, seu olhar criador e cuidadoso para a
manutenção desta cultura.
1.2 As escolhas linguístico-estilísticas e suas funções para a composição do estilo suassuniano
Utilizando-se das concepções trazidas pelo Movimento Armorial,
Suassuna se baseia na tensão entre “fazer o que seja a soma de tudo que foi
feito antes” e “fazer algo que seja novo”, sendo que para ele, os artistas
populares, na sua aparente ignorância das grandes teorias estéticas e das
grandes tradições artísticas, são o melhor exemplo da força intuitiva que
produz a Arte (TAVARES, 2007, p 120).
Segundo Braulio Tavares, em seu livro ABC de Suassuna:
Essa tentativa de fazer do conceito de “armorial” a união de diferentes registros históricos e culturais está presente, mais do que em qualquer outra parte, no tratamento dispensado pelo escritor Ariano à língua portuguesa falada no Brasil. Sua obra no romance é comparada à de Guimarães Rosa pela temática sertaneja e pela amplitude do universo abarcado [...]. A versatilidade do autor lhe permite explorar diferentes vozes narrativas, diferentes registros da palavra escrita, desde o mais simples ao mais erudito. (2007, p.116)
Podendo ser caracterizada do mesmo modo por um viés popular, a
referida obra possui logo na abertura de sua narrativa, uma apresentação da
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história que será narrada, a moda de folheto nordestino, ainda que a narrativa
se trate de um romance. Sendo assim, tal como a disposição dos capítulos em
folhetos, tem-se na abertura da obra, a necessidade de seu criador confirmar
as marcas características do gênero cordel. Neste momento vale salientar que,
de acordo com os estudos de Marcela Cristina Evaristo, o cordel:
Constitui-se de um gênero intermediário entre a oralidade e a escrita. Faz uma espécie de ponte de passagem entre uma cultura popular e outra, literária. Por isso, mantém algumas pistas da oralidade ao ser transposto para o texto escrito impresso. Em termos de dialogicidade, pode-se dizer que as histórias são contadas e recontadas e que o sujeito-narrador dialoga com o já produzido, na medida em que reelabora o que ouviu e acrescenta sua contribuição própria [...]. Predominam, nos textos produzidos, as misturas de elementos da literatura erudita ocidental aliados às características próprias e particularidades históricas do sertão nordestino. (2011, p.120)
Em vista disso salientamos, ainda, que,
No Brasil cordel é sinônimo de poesia popular em verso. As histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e sociais do país e do mundo, as famosas disputas entre cantadores, fazem de diversos tipos de texto em verso denominados literatura de cordel. [...] A expressão “literatura de cordel” foi inicialmente empregada pelos estudiosos da nossa cultura para designar os folhetos vendidos nas feiras, sobretudo em pequenas cidades do interior do Nordeste, em uma aproximação com o que acontecia em terras portuguesas. Em Portugal, eram chamados cordéis os livros impressos em papel barato, vendidos em feiras, praças e mercados. (MARINHO & PINHEIRO, 2012, p.17)
E, em se considerando que a literatura de cordel se fez presente na vida
de Ariano Vilar Suassuna desde criança, quando vivia em Taperoá, todas as
manifestações populares vivenciadas por ele, em menino, favoreceram sua
formação em terras sertanejas e o tornou um exímio pensador da cultura
nordestina especialmente da região do Cariri. Segundo Tavares (2007):
Para Ariano, o cordel é uma forma de expressão que envolve a Literatura, por meio da história contada em versos; a Música, pela toada (a solfa utilizada no Sertão para cantar os versos); e as Artes Plásticas, pelas xilogravuras que ilustram as capas dos folhetos. (p.25)
* * *
E tal como se apresenta o gênero Cordel, devemos lembrar que, antes
mesmo do primeiro capítulo, ou melhor, do primeiro folheto, o Romance d’A
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Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta apresenta um texto de
abertura em uma folha que dá início à narrativa/história.
Partindo, pois, da perspectiva estilística, observa-se que as primeiras
frases do RPR que compõem esta página de abertura, apresentam-se como
sendo frases descritivas nominais curtas (em exceção a uma mais longa),
estruturadas de modo a pôr em evidência o sentido de algumas palavras, já
indicando o estilo suassuniano em sua associação à seleção lexical e ao uso
da pontuação.
Segue abaixo este trecho:
Fragmento 01
Romance-enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso
Rapaz do Cavalo Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do
Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações
sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio! Como seu Pai foi morto
por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o
mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o numa Masmorra onde ele penou
durante dois anos! Caçadas e expedições heroicas nas serras do Sertão! Aparições
assombratícias e proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas
Catingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte!
(RPR, p.27)
Antecipando traços de análise que serão observados ao longo do
Capítulo 3, e considerando os estudos de Martins relativos à Estilística da
Enunciação,
No Dicionário das ciências da linguagem Tzvetan Todorov distingue duas Estilísticas: a do enunciado, que se ocupa do aspecto verbal, suas particularidades fônicas, morfológicas, semânticas, sintáticas; e a da enunciação, que se ocupa da relação entre protagonista do discurso: locutor, receptor, referente. Se se nota no discurso certa ênfase no locutor, tem-se o estilo emotivo; se o locutor dá especial relevo ao referente, tem-se o estilo avaliativo; se o locutor se inclina para a avaliação da verdade do enunciado, tem-se o estilo modalizante. (MARTINS, 2008, p.189)
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identifica-se no Fragmento 01 a presença do estilo avaliativo, uma vez que o
locutor dá especial ênfase ao referente que, neste caso, é a própria história a
ser narrada. E, analisando o fragmento como um todo, tem-se que, quanto às
palavras lexicais, percebe-se uma relação substantivo-adjetivo que, além de
poder ser uma característica do gênero (desse texto de abertura), aponta-nos
para o estilo suassuniano. Ou seja, as escolhas lexicais e tais relações
demonstram o cuidado de seu criador (o Locutor Empírico Suassuna) em, já na
abertura de sua obra, fazer uso de expressões – especialmente dos adjetivos –
que remetem à temática sertaneja (a qual, por vezes, remonta-se à cultura
medieval).
E, há que se destacar que, nas duas últimas frases do fragmento, há
única e exclusivamente a presença de substantivos dispostos entre vírgulas;
sendo que tal pontuação utilizada representa a velocidade “galopante” com que
se dão as informações de ordem publicitária para a “venda” dessa história –
sendo este um texto de abertura. Em relação aos substantivos dessas duas
últimas frases, estes são lexemas que – tais como os anteriores – compõem
um grupo lexical o qual, reiteramos, remete ao misticismo e à cultura da Idade
Média. Eis que, por meio dessas palavras lexicais o estilo suassuniano oferta
ao leitor a possibilidade de representação simbólica mental numa ”enxurrada”
de substantivos que compõem o tropo da história. (Aqui, vale destacar a
palavra morte como sendo o último lexema do trecho e, claro, propõe o
adiantamento de um possível final trágico para o desfecho do enredo.)
Em relação à pontuação aproveitamos para salientar que ela é um
elemento que fará parte das observações de nossas análises, conforme vai se
apresentando representativa nos fragmentos selecionados. Neste Fragmento 01 ela é peça fundamental para a observação, visto que além das especiais
vírgulas presentes nas duas frases finais, devemos destacar, da mesma forma,
o uso das exclamações. Assim sendo, temos que, em exceção às duas frases
iniciais – cujas pontuações finais se dão por meio do uso do ‘ponto final’ –,
todas as outras sete frases são finalizadas com o ‘ponto de exclamação’,
sendo, este, um recurso que aproxima o texto de uma certa oralidade,
procurando um contato maior com o leitor. Ou seja, tais exclamações se
associam à presença do enunciador e ao envolvimento que ele mantém com a
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narrativa que vai apresentar, consistindo numa pontuação emotiva que marca a
presença de um eu, ainda que ele não estivesse nos dêiticos ou verbos. Desse
modo, por meio dessas exclamações, é revelado o indício de um estilo
suassuniano à medida que o Locutor Empírico, Suassuna, vai tratando das
surpresas do mundo da narrativa que se seguirá.
Retomando o fato de termos uma grande quantidade de substantivos e
adjetivos presentes nessas frases de abertura da obra, concluímos que eles
(substantivos e adjetivos) contribuem para despertar no leitor a curiosidade do
que está por vir, já que “carregam” um tom enigmático – traço que se manterá
por toda a história, e que reflete o estilo suassuniano, o qual está diretamente
associado a mistérios e aventuras grandiloquentes. Para Micheletti:
A Pedra do Reino, cujo assunto se origina de elementos regionais, apresenta-se ao leitor como um “romance armorial-popular brasileiro”. Os adjetivos parecem consubstanciar a intenção do autor. Há na narrativa vários traços que a identificam com um nacionalismo ufanista: a megalomania do narrador que pretende criar uma “Obra modelar e de primeira classe” e tornar-se o “Gênio da Raça brasileira”, o caráter narcisista dele e demais personagens; traços culturais da região – permanência do sebastianismo e a figura do cangaceiro; a linguagem apelativa, enfática e hiperbólica; palavras chaves escritas com letras maiúsculas. (1997, p.132)
Conforme a citação acima vale adiantar que, posteriormente ao texto de
abertura – e já a partir das primeiras páginas do primeiro folheto/capítulo – não
menos grandiloquentes serão os vocábulos que lá estão e que tão bem
funcionam na associação com a ironia. Arriscamos dizer que, por meio de uma
proposta irônica “pós-moderna”, a qual expõe a condição humana do drama
sertanejo, identifica-se também a preocupação de Suassuna para com o
tratamento da cultura “mítica” popular, que até hoje pode ser reconhecida pelos
sertões nordestinos afora.
37
Capítulo 2
2 A IRONIA
2.1 O recurso da ironia: breves considerações
Devido à liberdade subjetiva de uma interpretação, eis que a ironia é um
elemento relativizado, pois o significado de uma mensagem necessita do uso
de diversos procedimentos intelectuais, haja vista que se apresenta entre o dito
e o não-dito, o declarado e o não-declarado. A seguir, apresentamos
brevemente alguns dos conceitos de ironia, que vêm sendo utilizados desde a
Antiguidade e, consequentemente, sob o enfoque de diferentes concepções.
Nessa trajetória da Ironia, tem-se que ainda hoje haja muita confusão
em relação ao método que Sócrates criou com o auxílio da figura de linguagem
ironia, uma vez que ele (método) não era realizado para constranger o seu
interlocutor. Tendo como base o verbo que originou a palavra (eirein), que
etimologicamente significa nada mais do que perguntar, a ironia socrática era
na verdade um método de questionar sobre algo em discussão, ou seja, era
uma maneira de delimitar um conceito, contradizendo-o, refutando-o, enfim, era
um processo para, acima de tudo, purificar o pensamento do outro, desfazendo
ilusões. Não tinha, portanto, o intuito de ridicularizar o outro, mas de fazer
irromper da aporia (isto é, do impasse sobre o conceito de alguma coisa) o
entendimento.
Em relação aos estudos relativos à análise da ironia especificamente
apresentados na Literatura, interessante apontar que estes se deram
inicialmente com base nas teorias provenientes da Retórica clássica, as quais
se preocupavam na identificação de determinadas classes de palavras (tais
como advérbios, adjetivos e locuções) que eram analisadas para que
pudessem indiciar o significado irônico, promovendo uma espécie de
lexicalização do fenômeno.
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Por outro lado, e um pouco mais tarde, os estudos do fenômeno ironia
foram deixando de lado essas listas de palavras, a fim de não comprometer a
originalidade das obras, considerando o seu viés implícito representado em um
texto. Independente de seu estado interior ser de difícil delimitação, em 1961,
no livro Contribuições para uma estilística da ironia, Maria Helena de Novais
Paiva defende que, de uma maneira ou de outra, é característica da ironia ser
capaz de atribuir às palavras um significado contrário, ao que usualmente
expressam.
Para melhor elucidar as inúmeras maneiras com que o fenômeno é
tratado pelos estudiosos, faz-se necessário uma breve abordagem com base
nos conceitos propostos por Sócrates na Antiguidade, apresentados por Søren
A. Kierkegaard. Este dinamarquês do século XVIII expõe que a essência do
fenômeno da ironia é exatamente o seu contrário e, em O conceito de ironia –
constantemente referido a Sócrates, ele:
[...] ocorre no discurso retórico frequentemente uma cofigura que traz o nome ironia; e cuja característica está em se dizer o contrário de que se pensa. Aí já temos então uma definição que percorre toda ironia, ou seja, que o fenômeno não é a essência, e sim o contrário da essência. (KIERKEGAARD, [1841] 2013, p.246)
Continuando com suas considerações, o filófoso Kierkegaard completa
que:
[...] a ironia se mostra como aquela que compreende o mundo, que procura mistificar o mundo circundante, não tanto para ocultar-se quanto para fazer os outros se revelarem. Mas a ironia também pode se mostrar quando o irônico procura levar o mundo circundante a falsas pistas a respeito dele mesmo. (Idem, Ibidem, p.251)
* * *
Na área dos estudos da linguagem, a ironia é abordada em diversas
disciplinas e mencionaremos alguns desses estudos, iniciando por Dominique
Maingueneau que há algum tempo, vem dedicando parte de seus escritos para
abordá-la. O estudioso é um pesquisador que sempre se preocupou com a
construção de uma crítica linguístico-literária e, em seus estudos publicados
sob o título Elementos de linguística para o texto literário, no trecho “Ironia e
polifonia”, ele afirma que a ironia:
39
[...] faz parte tradicionalmente dos “tropos” da Retórica, como a metáfora, a hipérbole, a litotes. Considera-se que há um “tropo” em todos esses casos porque o enunciado deve ser interpretado como portador de um sentido diferente do que ele libera “literalmente”. (1996, p. 94)
Por outro lado existem diversas teorias da ironia que se distanciam
dessa concepção tradicional (MAINGUENEAU, 1996, p.94). Sob a perspectiva
da enunciação irônica, o conceito de polifonia passa a reinar, deixando de lado
a perspectiva da Retórica que considera a ironia uma figura.
Assim, para Ducrot “falar de modo irônico é para um locutor L, apresentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador E, posição de que se sabe, aliás, que o locutor L não assume a responsabilidade e, mais que isso, que ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de vista expresso na enunciação.” [...] Trata-se assim para L de mostrar que ele se distancia com respeito ao ponto de vista absurdo. Ducrot chama “enunciador” essa personagem ridícula cujo ponto de vista é encenado através da enunciação irônica e o opõe ao “sujeito falante” e ao “locutor” (Idem, Ibidem, p.95) (substituir por BRAIT porque ela chega ao discurso)
Em outro trecho da mesma obra, porém, agora, sob o subtítulo de “Ironia
e conotação autonímica”, o estudioso continua:
Qualquer teoria da ironia deve explicar o fato de que o enunciado irônico é diretamente expresso (não é uma citação) sem ser por isso da responsabilidade do sujeito da enunciação. Esta estranha combinação de uma adesão e de uma recusa pode ser tratada em termos de polifonia, mas também de enunciação paradoxal, autodestruidora, na qual o sujeito invalida sua própria enunciação. (Idem, Ibidem, p.99)
Vale lembrar que, dentre os inúmeros seguidores dos estudos iniciados
na França, por Maingueneau, em muitos países espalhados pelo mundo, têm-
se grupos de pesquisadores que se dedicam a linhas de pesquisa provenientes
da Análise do Discurso (AD), sendo muitos deles em associação aos estudos
estilísticos.
No Brasil, Fernanda Mussalim é uma dessas seguidoras que, junto de
colegas – tais como: Anna Christina Bentes e Beth Brait – vem publicando
artigos e organizando publicações que envolvem os estudos da enunciação.
40
Em seu texto “Uma abordagem discursiva sobre as relações entre ethos e
estilo”, ela esclarece que:
No que se refere à noção de ethos, Maingueneau afirma que todo discurso está relacionado a uma “voz” ou “tom”, decorrente de seu modo de enunciação. Esta era uma dimensão bem conhecida da retórica antiga, que entendia por ethe as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, não pelo que diziam de si mesmos, mas pela aparência que lhes conferia o próprio modo de enunciarem seus discursos: o ritmo, a entonação, a escolha das palavras e dos argumentos revelaram determinadas características desses oradores. (2011, p.71)
* * *
Ressalta-se, pois, que a ironia, desde a Antiguidade, apresenta um jogo
que envolve o sentido e o não-sentido, sendo determinante o seu contexto para
que se realize a negação. Nesse momento, devem-se destacar da mesma
maneira os estudos de José Manuel Vasconcelos Esteves que, ao apresentar a
ironia como um jogo, afirma que ela só tem sentido como um convite, um
desafio, uma sugestão, uma sedução ao diálogo conivente, convivente,
cúmplice, numa partida interpares de debate de argumentos (2009, p.42). De
certa maneira o fenômeno da inversão semântica proposto pelo jogo irônico
reserva nesse universo a possibilidade de dar voz explícita àquilo que se quer
dizer implicitamente.
Em Ironia e Argumentação publicado em Lisboa, há aproximadamente
quatro anos, Esteves registra que,
Na verdade, a ironia, em vez de pressupor uma semelhança ou valorização de uma parte em relação ao todo, remete para a negação e para uma desidentificação, o contrário do operado na metáfora, o que lhe gera riscos de má interpretação e ambiguidade que são, apesar da sua dimensão negativa, elementos constituintes e necessários à ironia. (Ibidem, p.23)
Assim sendo – independente das linhas de pesquisa e diferenças
conceptuais que o conceito de ironia vem apresentando ao longo dos séculos –
algo que lhe é peculiar é o fato de ela ser diferente da metáfora; uma vez que a
ironia corre riscos à medida que desidentifica ao invés de pressupor uma
semelhança. Em seus estudos, Esteves revela que a ironia é a expressão de
uma arte de conjecturar, forma determinante do raciocínio e da expressão
41
retóricos (Ibidem, p.63). O que nela (ironia) se prefigura é uma retórica como
encontro de sujeitos, onde o discursivo se encorpa do ethos e do pathos
(Ibidem, p.65). Além disso, ele salienta que
O ironista é um dos que mais penetrou no jogo de sombras da linguagem, o que mais apreendeu a sua mobilidade, as perturbações e os desarranjos que ela provoca; o que mais excede a literalidade, ao ponto de a distender até ao limite e de nela atrever-se quase ao absurdo, já que a ironia é a forma mais extrema da linguagem. (Ibidem, p.85)
Também alinhada a essas concepções da ironia diretamente relacionada
ao discurso e aos sujeitos da enunciação, a área da Psicologia, por sua vez,
vem a contribuir no esclarecimento do seu conceito. Para Adriano Facioli, tem-
se que:
O artista é irônico na medida em que deve estranhar a si mesmo e sua produção, expondo-se à crítica. A produção artística deve ser crítica, ou seja, deve situar-se em regiões limites, nas fronteiras, à beira do abismo de separações históricas, semânticas ou formais, buscando a conjunção de universos usualmente tidos como distantes ou inconciliáveis. Situar-se próximo ao abismo é o que o irônico faz, já que se expõe ao equívoco e ao mal-entendido. (2010, p.23)
Desse modo, em uma espécie de jogo, o sujeito ironista se expressa de
modo a instalar um efeito “contrário” subentendido ao que disse, de modo a
criar uma inteligibilidade partilhada, a partir do momento em que convoca a
inteligência dum outro sujeito, sendo este o próprio ironizado ou aqueles que
comungam da ironia. Mais à frente, ainda, o psicólogo completa:
A interação estabelecida pelo ironista, se levada ao extremo de envolver o seu interlocutor em seu jogo de sentidos, constitui um paradoxo pragmático. O ironista que deixou no ar a indefinição acerca do que estava dizendo provoca no outro a sensação de que dois sentidos estavam sendo veiculados simultaneamente e que não é possível a escolha por um deles. (Idem, Ibidem, p.50)
Na tentativa de nos embasar em uma teoria que pudesse associar o
“romance” à ‘ironia”, recorremos à Kristeva. Em seu livro Introdução à
Semanálise, podemos identificar o que ela define como negação algo
associado ao fenômeno ironia e, portanto, tem-se que:
A oposição inicialmente reconhecida, e que provoca o trajeto romanesco, se vê imediatamente repelida num antes para ceder, num
42
agora, uma rede de realizações que sobrevoam os dois polos opostos num encadeamento de derivações e, num esforço de síntese, se resolvem na figura do disfarce ou da máscara, a negação é, assim, retomada pela afirmação de uma duplicidade; a exclusividade dos dois termos colocados pelo circuito temático do romance é substituída por uma positividade duvidosa [...]. ([1966-67], 2012, p.118)
Mais adiante, Kristeva completa:
O duplo (a ficção, a máscara) que era a figura fundamental do carnaval se torna, assim, o eixo-de-lance dos desvios que preenchem o silêncio imposto pela função disjuntiva do circuito temático-programador do romance. (Ibidem, p.119)
E mesmo que não nos aprofundemos (batido!!!) nas especificidades dos
estudos de Kristeva – além de não termos identificado uma estrita e direta
relação com a ironia – para darmos conta de uma espécie de caráter formador
presente no estilo suassuniano, faremos uso de seus estudos acerca do
verossímil, fenômeno que, de certa maneira, é tangenciado durante as análises
mais à frente, no próximo capítulo.
* * *
Dos pesquisadores brasileiros são os estudos linguísticos
contemporâneos de Beth Brait acerca da ironia, um dos maiores destaques de
alguns anos ‘pra cá.
Vale ressaltar que Brait é uma pesquisadora que, além de já ter
explorado a abrangência teórica do tema, apresenta pesquisas acerca do
fenômeno ironia, recorrendo a estudos de textos literários sobre os quais
realizou ensaios e análises críticas.
Em Ironia em perspectiva polifônica, a estudiosa afirma que com a
ironia, pretende-se que os enunciados proferidos sejam atribuídos ao Outro,
evidenciando que o dito não pertence ao Enunciador que o enunciou, mas está
sendo negado por ele.
Segundo ela,
[...] a ironia é surpreendida como procedimento intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um processo de meta-referencialização, de estruturação do fragmentário, que, como
43
organização de recursos significantes, pode provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Em outras palavras, a ironia será considerada como estratégia de linguagem que, participando da constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que essa polifonia não signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou criados. (2008, p.16)
Ao recuperar duas concepções de ironia – socrática e romântica – as
quais motivaram inúmeras outras reflexões por parte de outros filósofos, como
é o caso, por exemplo, do dinamarquês Kierkegaard, Brait considera que:
De uma perspectiva discursiva, não se pode deixar de aproveitar, por meio de uma releitura, a ideia da presença de marcas da enunciação irônica, detectadas a partir de um discurso literário. Se para Kierkegaard a ironia é uma postura do escritor, do homem que produziu determinado tipo de literatura, para um analista de discurso esse é um dado que só pode ser constatado, analisado e interpretado por meio de textos produzidos por esse autor que – configurando um traço essencial do discurso – permitam caracterizá-lo como “um escritor irônico”, ou mesmo uma “personalidade irônica”. (Ibidem, p.40)
Mais adiante, e após discorrer acerca dos “Percursos e percalços do
estudo da ironia”, cujas considerações se apresentam de modo a traçar um
fidedigno histórico desse fenômeno, Brait parte de um questionamento para
expor sua reflexão:
[...] de que modo é possível saltar de uma concepção retórica da ironia, formulada em termos de frase, para uma outra que dela se distancia na medida em que se propõe a enfrentar o mesmo fenômeno em dimensões completamente diferentes? [...] Na medida em que essa postura é esclarecida e, num certo sentido respeitada, é possível redimensionar o objeto por diferentes prismas, tomando o cuidado de especificar as particularidades desse novo ponto de vista. É nesse sentido que se podem compreender concepções tão diferentes de ironia quanto as que são postuladas pela retórica clássica, por diferentes correntes filosóficas, pelos românticos, pela semântica argumentativa e por tantas outras vertentes de enfrentamento da linguagem e das formas de concepções e representações do mundo. (Ibidem, p.127)
* * *
Sendo assim, para relacionarmos a ironia expressa por meio estilísticos
de seu escritor, recorremos aos estudos especificamente estilísticos. E quando
ironia somada ao estilo está em associação a determinados usos de vocábulos,
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sabe-se que de acordo com a significação das palavras é possível que haja
tantas palavras quantas as significações (LAPA, 1973, p. 17).
Em seu livro Estilística da Língua Portuguesa, o linguista M. Rodrigues
Lapa declara que:
[...] quem escreve e quem fala tem à sua disposição, para traduzir exatamente o pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que acodem ao espírito, para as necessidades da expressão. [...] Com efeito, a arte de escrever repousa especialmente na escolha do termo justo para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos. Por outras palavras: só escrevemos bem, quando, na série sinonímica, escolhermos a palavra ou o grupo de palavras que melhor se ajustam àquilo que queremos exprimir. É nessa escolha que reside, em grande parte, o segredo do estilo. (1973, p.20)
Segundo a Estilística, em nosso poder de apreciação tendemos para
achar boas ou más as coisas, segundo nos causam prazer ou desgosto. E este
fato necessariamente se há de refletir na linguagem. Sabe-se que a língua está
cheia destas expressões, que encerram numa série sinonímica valores
melhorativos ou pejorativos. Sabe-se, também, que as palavras sinônimas
podem evocar certas formas de vida e atividade, certos meios sociais (LAPA,
1973, p. 30-32).
Desse modo salientamos que ao longo de praticamente toda a
apresentação de nossas análises, as expressões suassunianas serão
apontadas na tentativa de destacarmos o discurso irônico presente nos
enunciados. Inclusive relacionando-as (expressões suassunianas) à cultura
popular, quando em se tratando de uma reflexão acerca do “falar” nordestino,
outros determinantes aspectos podem se instalar como propulsores de um
efeito irônico – seja ele realizado por meio da utilização de neologismo,
arcaísmo ou regionalismo/provincianismo. E novamente utilizando os escritos
de Lapa, é como se Suassuna, por vezes, promovesse um exame de
consciência lexical, levando-nos a reconhecer a nossa ignorância em matéria
de vocabulário (1973, p. 60)
Isto posto reitera-se que as análises do corpus contido neste trabalho,
serão realizadas recorrendo aos discursos apresentados na narrativa do
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, nos quais
45
se identificou a utilização de determinadas palavras, expressões e sintagmas
relacionados ao fenômeno da ironia. Para tanto, destacar-se-ão algumas
passagens do enredo, as quais foram assinaladas como compositoras do
universo irônico, criado por Ariano Suassuna.
Há que se salientar que a ironia que permeia o RPR – como em
qualquer outra situação dentro de uma obra ficcional – tem seu cunho inicial
relativo à ambiguidade cujo jogo enunciativo entre implícito e explícito é o que
primeiro se destaca na observação do fenômeno.
Sendo assim, quer considerada como uma figura estilística quer
considerada como fenômeno da enunciação, o intuito dessa pesquisa é
apontar o caráter estilístico da ironia, considerando suas consequentes
possibilidades polifônicas e, claro, reveladora de um estilo ímpar, o qual se
corporifica na expressividade dos discursos presentes durante a narrativa do
RPR, que, por sua vez, envolvem os interlocutores: enunciador/emissor (ethos)
e coenunciador/receptor (pathos).
[...] procura-se, em toda relação de comunicação, convencer o outro de alguma coisa, persuadi-lo, levá-lo a acreditar em algo, a experimentar algo e a fazer o que se quer que ele faça. As estratégias de persuasão do discurso caracterizam o sujeito da enunciação por seu modo de ação. Apresentam-se, sobretudo, como “escolhas” da enunciação de tempo, de espaço e de ator (de pessoa), com a finalidade de convencer o destinatário da verdade (ou da falsidade) do discurso enunciado. […] Para que a manipulação funcione é preciso ainda que o destinatário manipulado interprete a persuasão do outro, acredite no destinador e faça o que dele se espera. (BARROS, in FANTI & BARBISAN, 2012, p.28)
2.2 A Ironia presente no RPR
Embora a palavra estilística já fosse usada no século XIX, é no século
XX que ela passa a designar uma nova disciplina ligada à Linguística. E,
considerando que ela tem um campo de estudo mais amplo que o da Retórica:
não se limitando ao uso da linguagem com fins exclusivamente literários
(MARTINS, 2008) é que os estudos estilísticos identificam o fenômeno da
ironia mais do que uma simples inversão e que uma figura de linguagem.
46
Ou seja, para que aqui se possa identificar o estilo suassuniano, a ironia
será considerada como uma expressão que demonstra liberdade de
pensamento e de linguagem, de modo a introduzir o inesperado sendo um
convite ao diálogo cúmplice, num debate de argumentos entre pares. É uma
negação interna entre o conteúdo explícito e o contexto implícito, gerando um
enunciado bivalente.
* * *
Fundador de uma nova estética, Ariano Suassuna une à cultura clássico-
erudita as expressões populares advindas do Sertão nordestino do Brasil; e o
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é um livro
em que muito se utiliza dessa união. Sem qualquer desmerecimento e muito à
vontade para identificar o lado socialmente grotesco da cultura mítica popular –
reconhecida até hoje, nos sertões nordestinos por meio dos mitos populares –,
Suassuna faz uso de um estilo por vezes caracterizado por uma ironia que
parece estar a serviço de um processo de dessacralização dessa Cultura
Popular.
O RPR revela a ironia da própria realidade de seu criador e o contexto
que a cerca, mediante a criação de D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna.
Bibliotecário e memorialista, este personagem se dirige à Nação brasileira em
confissões que a todo o momento parecem dar voz a seu criador (Suassuna),
chamando atenção (levando à reflexão) para a importância de mantermos viva
a cultura de “seu” Sertão. Na história contada por este narrador-protagonista
Quaderna, tem-se que, tal como os romances de cavalaria – nos quais seus
heróis buscam restaurar alguma ordem perdida –, a espécie de delírio
“quadernesco” em se declarar Rei do Brasil parece revelá-lo como um
“empoeirado” e “castanho” herói sertanejo
Em uma analogia ao que seria a nação brasileira residente no Sertão em
busca por uma identidade, Quaderna parece estar sempre em uma trajetória
(repetitivo!) por uma estrada que representa essa sua busca pela sua
identidade em um passado “glorioso”, na tentativa de apagar suas mazelas;
sendo nítida, durante toda a narrativa, a presença de inúmeros símbolos
47
sertanejos representados por insígnias e brasões. Logo no início, o leitor
identifica que a trajetória deste protagonista inicia-se com a chegada do Rapaz
do Cavalo Branco: o seu primo Sinésio, o Alumioso – uma espécie de
representação das influências portuguesas, das quais se destaca a crença no
mito sebastianista.
Quanto ao chamado “universo irônico” pelos quais iremos tratar
especificamente a partir do Capítulo 3 deste trabalho, pode-se antecipá-lo por
meio da identificação de um Quaderna caracterizado como personagem
cômico-irônico inspirado nos palhaços que compuseram a infância e
adolescência de Suassuna. Para melhor elucidar, tem-se que durante a história
do RPR, aos poucos o protagonista narra sua formação relatando a tentativa
frustrada de seu pai, Pedro Justino, em enviá-lo para o seminário, pois que não
se identificou com a vida religiosa. Na metade do Romance, Quaderna deixa
claro ao leitor a contribuição de seus dois gurus – Samuel, conservador
monárquico; e Clemente, popular e revolucionário –, com os quais conviveu e
formou-se um “Monarquista da Esquerda”. Tanto assim, podemos adiantar o
seguinte fragmento:
Fragmento 02
- Sr. Pedro Dinis Quaderna, dou-lhe os meus parabéns por sua notável
lucidez política e pela - como diremos, Dona Margarida? - pela franqueza com que
vem dando depoimento sobre seus amigos. Espero, agora, que o senhor use, em
relação a si mesmo, da mesma franqueza que usou para os outros. Chegou a sua
vez, Sr. Quaderna! O senhor é extremista da Esquerda, da Direita ou do Centro?
- De nenhum dos três, Excelência! Eu sou Monarquista da Esquerda!
- Como é?
- Monarquista da Esquerda - repeti mais alto, para ele ver que era aquilo
mesmo e não tinha por onde, como dizia minha Tia Filipa.
- O senhor pode me explicar essa posição? O que foi que trouxe o senhor
para ela?
- Os motivos foram vários, Excelência, e o senhor entenderá tudo melhor à
medida que for me conhecendo mais. Um dos motivos mais importantes, porém, é
que eu sou um Epopeieta.
- Um o quê, Bibliotecário Quaderna?
- Um Epopeieta, um poeta épico, um autor de epopeias! (RPR, p. 341)
48
em que é a própria “impossibilidade” de uma posição política “Monarquista da
Esquerda” que torna irônica a fala de Quaderna neste diálogo junto do Juiz-
Corregedor.
E, lembrando que a linguagem de Quaderna é ao mesmo tempo formal e
grandiloquente, como também, carregada de aspectos da oralidade,
aproveitamo-nos deste Fragmento 2 para frisar a primeira aparição da palavra
Epopeieta no RPR. Formada pelo acréscimo sufixal -eta, o vocábulo Epopeita,
é uma criação lexical suassuniana e seu significado pode ser considerado
como sendo relativo ao escritor de epopeias, tal como afirma seu próprio
criador, por intermédio da voz do protagonista do Romance d’A Pedra do Reino
e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, o personagem D. Pedro Dinis Ferreira-
Quaderna. Para além de um surgimento em consequência de uma
necessidade social e linguística, a criação do neologismo “epopeieta” surge
como resultado de intenções estiísticas de um locutor que quer causar certos
efeitos no interlocutor (BARBOSA, 1981, p. 136).
Para Barbosa:
Há, em nossa língua, considerável número de unidades lexicais que são criadas a partir de elementos mórficos – lexêmicos ou gramêmicos – já existentes no universo lexical. Constitui natural tendência dos falantes o recurso a signos linguísticos já existentes, quando da criação de novos signos. (Ibidem, p. 186)
* * *
“Jogando” com as palavras e com a oralidade da língua portuguesa – em
especial, aquela proveniente do Sertão –, o Quaderna irônico pouco a pouco
vai se solidificando na compreensão do leitor, sobretudo por meio de seus
encaixes de apelo que se estendem até o final da história, criando a
proximidade entre enunciador e enunciatário. Assim sendo, uma vez instalado
o jogo entre locutor (Suassuna/Quaderna) e leitor, a ironia necessita dar conta
dos conflitos e das diferenças entre os protagonistas deste processo, revelando
ser uma forma de tolerância ao outro. Mostra um narrador extremamente
consciente que sabe usar os recursos da linguagem a seu favor. Para Tavares:
49
Todo o Romance d’A Pedra do Reino se baseia na ideia de que o Sertão é a mais verdadeira das coisas, e por isso é terrivelmente belo, de uma beleza convulsa, agressiva, medonha, e às vezes destruidora e mortal. [...] Suassuna parece ter colhido da experiência sensorial proporcionada pela vida no Sertão uma grande parte da estética peculiar que inspira seu romance, uma estética em que, mais do que a serenidade, a harmonia, a perfeição de formas, o que conta é a intensidade sensorial e emotiva das experiências, que se vincula a uma paisagem física calcinada, pedregosa e áspera, e a uma paisagem social entretecida de violência e misticismo, contemplação estoica e mutirões solidários, malassombros e catástrofes, tragédias sem desespero e epifanias sem explicação. (2007, p.163)
50
CAPÍTULO 3
3 IRONIA, LÉXICO E ESTILO SUASSUNIANO NO RPR
[...] meu grito final de revolta só ocorreu mesmo no dia em que abri uma Enciclopédia e lá encontrei meu nome escrito como Ariano Suaçuna, que, sem dúvida, mais parece nome de Cobra que de gente. Foi a partir daí que tomei a decisão de só escrever o que quero e como quero. São minhas heranças barrocas, populares e simbolistas que explicam, entre outras coisas, minhas maiúsculas “arbitrárias” e meus hífens “não-autorizados”. (SUASSUNA, 2000, In SUASSUNA, 2008, p.279)
Já na época em que Ariano Suassuna concebe o Romance d’A Pedra do
Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, ele se entrega ao estilo
“libertário”. Em meio às ideias de escrever só o que quer e como quer, deixa
bem confortável o seu fazer poético, ao mesmo tempo em que se vê livre para
criticar ferozmente a sociedade e respectivas instituições, encarando
literariamente de vez, a hipocrisia social a partir de uma postura transgressora.
E para nos referirmos a Suassuna, podemos parafrasear algumas
observações de Discini (2013). Dizemos então que, ao apresentar um “herói”
politicamente não-correto e que de maneira satisfatória sustenta-se na
narrativa, Suassuna relativiza verdades e dogmas na completa
desestabilização de um refinado statu quo. Por vezes, imita e subverte
convenções de ordem autoritária, [na qual] firma-se um ethos oposto ao da
submissão a dogmas, apoiado, portanto, no simulacro do eu livre, libertador e
libertário (p.47). No RPR, Suassuna instala sua arena de conflitos por meio de
uma enunciação irreverente e usa estrategicamente a ironia para arquitetar seu
significado (Idem, Ibidem, p 266).
Buscaremos, pois, neste capítulo, associar esse estilo “libertário”
suassuniano à ironia utilizada nos enunciados do RPR, os quais revelam uma
atmosfera irônica presente em toda a enunciação – neste caso, em toda a
narrativa. No entanto, sendo o RPR uma obra extensa, optamos por centralizar
51
nossas análises em quatro categorias, cujos trechos extraídos deste corpus,
têm como propósito apontar os discursos irônicos de narrador e personagens
por entre suas 754 páginas. São elas (categorias):
- Quaderna e seu discurso irônico de apelo, realizado por meio do
vocativo;
- a ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias
e filosóficas;
- a ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida
Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”;
- Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista.
Tanto assim, considerando que:
O locutor é apresentado como o ser responsável pela enunciação. Isto é, alguém a quem se deve imputar a responsabilidade pela produção do enunciado. Diferentemente do autor empírico, trata-se de uma ficção discursiva, embora geralmente coincida com este no discurso oral. É ao locutor que remetem as marcas de primeira pessoa contidas no enunciado. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.65)
para que possamos ilustrar nossas colocações frente à ironia presente nos
referidos discursos, temos nossas análises realizadas nas quatro categorias já
indicadas, porém a partir da seguinte organização:
Quadro 4
A ironia no discurso em 1ª pessoa do narrador-protagonista Quaderna, sendo:
- Quaderna Narrador = Locutor Zero (Lº)
A ironia no discurso direto dos personagens principais –
Quaderna, Juiz-Corregedor, Samuel e Clemente –, sendo:
- Quaderna Protagonista = Locutor 1 (L¹); - Demais personagens = Locutor 2 (L²), Locutor 3 (L³);
e assim sucessivamente, na medida em que eles aparecem nos excertos.
Obs.: Sempre considerando, também, o Lº (“Quaderna Narrador”).
52
A ironia no discurso direto de determinados personagens, a qual, na sequência, é
explicitamente indicada pelo discurso em 1ª pessoa do narrador-protagonista Quaderna:
- Quaderna = Locutor Zero (Lº) & Quaderna Protagonista = Locutor 1 (L¹); - Demais personagens = Locutor 2 (L²), Locutor 3 (L³);
e assim sucessivamente, na medida em que eles aparecem nos excertos.
Há que se lembrar que nossas análises serão realizadas, sobretudo, a
partir dos estudos de Nilce Sant’Anna Martins, Maria Aparecida Barbosa,
Norma Discini e, até mesmo, Manuel Rodrigues Lapa. E, conforme já
apresentado no Quadro 4 da página anterior, faremos uso da abreviação “L”
de Locutor, tal como Martins o fez em suas discussões e análises de
Introdução à Estilística. Desse modo, vale lembrar que para ela:
O emissor (Lº) transcreve o enunciado de outra pessoa (L¹) tal como foi formulado ou como se imagina ou simula que o foi, mantendo todos os seus traços de subjetividade: interjeições, exclamações, blasfêmias, interrogações, ordens, expressões de desejo, enfim, sugere-se o enunciado vivo, como saiu ou deveria sair da boca daquela outra pessoa. (2008, p.32)
Porém nossa maior fonte de referência são os estudos de Beth Brait
publicados sob o título Ironia em perspectiva polifônica. De todo modo não nos
apropriaremos das várias abreviações utilizadas pela mesma, como, por
exemplo, A¹ para o locutor que dirige um certo discurso irônico para um
receptor (A²), para caçoar de um terceiro (A³) (BRAIT, 2008, p.78).
Embora fosse interessante considerarmos que:
[...] os três actantes envolvidos podem coincidir no todo ou em parte, dependendo do tipo de discurso em que aparecem. No caso de um solilóquio irônico há a coincidência entre A¹ e A³. Há ainda a possibilidade de o receptor ser tomado como alvo, o que implica uma coincidência entre A² e A³ ou, ainda, um caso de solilóquio autoirônico em que coincidem A¹/A²/A³. (BRAIT, 2008, p.78)
e sendo abreviação “A” de Actante relativa às análises do discurso irônico (no
caso, uma abreviação pertencente ao que Brait aponta de trio actancial
53
proposto por Greimas), de qualquer maneira a deixaremos de lado, optando,
como já esclarecido acima, pela abreviação “L” e tão somente.
3.1 Quaderna e seu discurso irônico de apelo realizado por meio do vocativo
O ironista, o produtor da ironia, encontra formas de chamar a atenção do enunciatário para o discurso e, por meio desse procedimento, contar com sua adesão. Sem isso a ironia não se realiza. O conteúdo, portanto, estará subjetivamente assinalado por valores atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de forma a exigir a participação do enunciatário, sua perspicácia para o enunciado e suas sinalizações, por vezes extremamente sutis. Essa participação é que instaura a intersubjetividade, pressupondo não apenas conhecimentos partilhados, mas também pontos de vista, valores pessoais ou cultural e socialmente comungados ou, ainda, constitutivos de um imaginário coletivo. É a organização discursivo-textual que vai permitir esse chamar a atenção sobre o enunciado e, especialmente, sobre o sujeito da enunciação. (BRAIT, 2008, p.138)
Embora se pudesse defender que todo o Romance da Pedra do Reino e
o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta fosse uma narrativa de apelo, isto é, um
“total” discurso de apelo do Lº (“Quaderna Narrador”), o objetivo, nesta parte
inicial de nossas observações, é indicar quais são as ocorrências específicas
de apelo do Lº, dadas por meio do vocativo.
Para a análise propriamente dita, recortamos um único trecho em que
possamos não apenas apontar e analisar o vocativo, mas apontar e analisar
cada uma das passagens do fragmento, as quais apresentam, no enunciado,
expressões que revelam mais claramente a ironia deste Lº. O recorte para
compor nosso primeiro fragmento é, também, o primeiro trecho de ocorrência
do vocativo, que se dá logo no início do enredo, na quarta página da história
(página 34 do livro).
Por meio do discurso do Lº, a narrativa do RPR se inicia no momento em
que narra estar preso em Taperoá, na data de 09 de outubro de 1938, acusado
pela morte de seu Padrinho e pelo desaparecimento de seu primo. E, logo em
uma das primeiras páginas do Romance, no Folheto I, há o apelo dirigido ao
público, cujos integrantes/componentes – segundo este Lº – são todos os
54
Brasileiros, sem exceção (SUASSUNA, 2012, p.34). Verifiquemos este recorte
abaixo:
Fragmento 03
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e
gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso, o mundo me
pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos Reis de Ouro com
castanhas Damas de Espada, onde passam Ases, Peninchas e Coringas, governados
pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. É por isso também
que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 - faminto,
esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos quarenta e um
anos de idade - dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção (01); mas
especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados - toda essa
raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim, aos
escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-Escrivães e Acadêmicos
fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui, expressamente, por
intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras.
Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual estou
sendo submetido por decisão da justiça, este é um pedido de clemência, uma espécie
de confissão geral, uma apelação - um apelo ao coração magnânimo de Vossas
Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm sempre o coração mais
brando, esta é uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de
Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem.
Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha
terrível história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de sensualidade e
violência; de enigma, de morte o disparate; de lutas nas estradas e combates nas
Catingas; história que foi a suma de tudo o que passei e que terminou com meus
costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos
Cariris Velhos da Capitania e Província da Paraíba do Norte
(RPR, p.34-35)
De acordo com a passagem 01, há que se considerar o fato de que,
dirigir-se a todos os brasileiros, sem exceção, torna o Lº deveras pretensioso;
razão pela qual parece adiantar um ar irônico – que se perpetuará durante toda
a narrativa –, na medida em que se tem, neste cenário, todo um povo (todos os
brasileiros) “aos pés” do relato que está a ser proferido por seu enunciador.
55
[...] já no primeiro folheto, Quaderna esclarece que sua narrativa é um memorial, o que prepara e justifica o reiterado apelo que o narrador dirige “aos nobres Senhores e belas Damas”. Por outro lado [...] Quaderna consegue que seu discurso seja um verdadeiro apelo a seus ouvintes, à “Nação Brasileira”. Para isso monta uma representação: seu “romance-epopeico” é a transcrição do seu depoimento ao Corregedor; portanto, um discurso preso à oralidade. (MICHELETTI, 1997, p.138)
Conforme o discurso avança e se desenrola neste Fragmento 03,
percebemos o movimento de uma crescente (cadência/ritmo) irônica, tornando
o fenômeno ainda mais nítido. Arriscamos dizer que nada tão irônico até então
(ou, quem sabe, nada tão explicitamente irônico), havia sido declarado por este
Lº, uma vez que, basicamente, tem-se nas páginas antecedentes apenas uma
apresentação descritiva do cenário e de algumas concepções quadernescas –
mesmo que determinadas críticas já tenham sido expostas por meio de
expressões tais como: indomável Vila sertaneja e Raça piolhosa dos homens.
Assim sendo apresenta-se a ironia quadernesca em todo o discurso deste
Fragmento 3 e, por conseguinte, daí por diante a atmosfera da história já pode
se tornar, toda ela, irônica.
Salientamos que o Lº – na sequência ao dizer que se dirige a todos os
Brasileiros – restringe este seu público, declarando que se dirige,
especialmente, aos magistrados e soldados, e também aos escritores
brasileiros. Encerra sua restrição referindo-se até mesmo, às esposas destes
homens anteriormente citados (magistrados e soldados e escritores
brasileiros), e, após uma explicação/justificativa plenamente irônica para com
os “brandos corações” dessas mulheres, finalmente o Lº se utiliza de um
vocativo que irá se repetir ao longo de toda a narrativa.
Tanto assim, o Lº dirige-se a seu público, por meio da invocação nobres
Senhores e belas Damas de peitos brandos, pedindo para que este (público)
não fuja ao que está por vir, escutando sua terrível história.
O conceito para o fenômeno que põe em destaque entre vírgulas, a
pessoa a quem se fala, é um termo denominado vocativo que está, segundo
Martins (2008):
56
[...] à parte da estrutura da oração, que pode ele próprio ser uma frase, assim como permite várias colocações (início, meio e fim da frase), presta-se a várias funções da comunicação do esquema de Jakobson. Na nossa vida diária, estamos constantemente a usá-lo; na função apelativa, chamando um interlocutor, provocando-lhe a atenção, e, ao mesmo tempo, renovando o contacto com ele, o que já é da função fática; mas ele é também afetivo, pois revela o sentimento do falante em relação ao interlocutor, podendo assumir tonalidades várias, que vão da ternura à rispidez. (p.214)
Separadamente, agora, segue cada um dos três parágrafos do
Fragmento 3, a fim de levantarmos específicos trechos irônicos.
1º Parágrafo do Fragmento 03
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo grotescos e
gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso, o mundo me
pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos Reis de Ouro com
castanhas Damas de Espada, onde passam Ases, Peninchas e Coringas, governados
pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. É por isso também
que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938 - faminto,
esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos aos quarenta e um anos de idade (02) - dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção; mas
especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados - toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros (03). Dirijo-me,
outrossim, aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-Escrivães
e Acadêmicos fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço aqui,
expressamente, por intermédio da Academia Brasileira, esse Supremo Tribunal das Letras (04).
(RPR, p.34)
Conforme destacado, neste 1º Parágrafo identificamos três passagens
explícitas de ironia. Na passagem 2, tem-se o modo inflamado com que o Lº
discursa acerca de sua fragilidade.
Procurar-se-á então entender como e por que um estilo [...] Trata-se de “formas de ‘heterogeneidade mostrada’, que inscrevem ‘o outro’ no fio do discurso — discurso direto, aspas, formas interpretativas ou explicativas, discurso indireto livre, ironia”, como diz Authier-Revuz (1984: 98) (DISCINI, 2013, p.224)
* * *
57
Estendendo as formas de “heterogeneidade mostrada” citadas acima,
entendemos que, colocada entre travessões a passagem 02, observa-se a
ênfase que o Lº pretende dar à descrição de sua condição física por estar
vivendo encarcerado. E mesmo que demonstrando (ou simulando) total
debilidade, engana-se aquele (Leitor Empírico) que acredita na fragilidade do
Lº e o compreenda como um “coitadinho”.
Pelo contrário, o Lº concretiza a ironia no enunciado por meio de sua
esperteza. Dessa maneira, mesmo franzino, o Lº, Quaderna, está longe de ser
alguém fraco, uma vez que ele é pleno de esperteza e, inclusive por isso, faz-
se irônico na tentativa de se representar como uma espécie de “pícaro”; porém,
é claro, nada há de ingênuo e puro nele, quando analisada e caracterizada sua
argumentação bastante persuasiva.
Tem-se, pois, na passagem 2 uma ironia instalada: ao querer se valer
das mazelas próprias daquele que está preso, o leitor atento deve observar a
malícia irônica com que o Lº pretende se aproveitar dessa situação.
Já na passagem 03 tem-se a acidez do Lº ao referir-se a magistrados e
soldados. Quando declara toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e
prender os outros, nitidamente ironiza este grupo de profissionais. Na
expressão toda essa raça ilustre, o uso do substantivo ‘raça’, além de ser um
elemento que comumente é utilizado para diminuir o referente (magistrados e
soldados, no caso), quando acompanhado do adjetivo ‘ilustre’ torna essa
expressão ainda mais irônica, se considerarmos a ironia como sendo
construída e firmada/concretizada a cada termo acrescentado a um sintagma
(por exemplo) como este – neste caso, o acréscimo final do irônico
“desqualificador” ilustre.
Aqui vale o parêntese para o fato de que tal expressão raça ilustre –
dentre outras ocorrências iniciais do RPR dadas no Folheto I – foram
anteriormente comentadas por Micheletti em seu texto “Fórmulas de cortesia e
efeitos irônicos em A Pedra do Reino, de A. Suassuna”.
Segundo a pesquisadora:
58
Embora palavra raça venha acompanhada do qualificativo ilustre, o pronome demonstrativo essa que a precede, nesse contexto, carrega um valor depreciativo. Como sublinha Rodrigues Lapa (1977, p. 167), o demonstrativo exprime valores afetivos, muitas vezes pejorativos. Esse traço pejorativo se constitui do poder que os referidos por essa raça ilustre têm sobre os demais, inclusive sobre o depoente que está preso. Poder esse que torna o adjetivo “ilustre” irônico. Na ironia, utilizada por Quaderna há um certo humor que visa a criar uma empatia com seus leitores, os seus “ouvintes’. (2014, p.4)
Aprofundando, então, a análise para a expressão raça ilustre,
observamos que ela, quando acompanhada dos termos toda essa, por sua vez,
ao mesmo tempo em que ‘toda’ parece generalizar o grupo de magistrados e
soldados – visto que, para os pronomes indefinidos:
A própria denominação diz o suficiente sobre o tom de imprecisão e misteriosa vaguidão que caracterizam este pronome. Os grandes escritores têm ainda o poder de refugir aos consagrados esquemas gramaticais e, pelo uso de locuções, acentuarem o indefinido das coisas e das circunstâncias. (LAPA, 1973, p.133)
– ‘essa’ parece conferir uma especificação à expressão raça ilustre. Por isso,
enquanto ‘toda’ compreende o universo completo de magistrados e soldados
desse mundo (de onde não se escapa nenhum deles), ‘essa’ parece
representar ironicamente a imagem de um dedo em riste apontado para este
grupo e antecipando as ações de seus integrantes, as quais não são aceitas
pelo Lº – ações essas, representadas na sequência do sintagma pelo trecho
que tem o poder de julgar e prender os outros. Assim, temos ‘essa’ remontando
àquilo de que já se conhece, que já se sabe, embora:
Nos estudos linguísticos, grosso modo, os pronomes demonstrativos são definidos como tendo a função de situar a posição de um ser ou objeto no tempo e no espaço, tendo como referente os participantes da interação. (RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.109)
Para além, portanto, deste conceito supracitado, nos estudos do texto,
eles [pronomes demonstrativos] são analisados na abordagem da progressão
textual (Idem, Ibidem, p.109). Segundo Lapa (1973), o demonstrativo pode
exprimir valores afetivos e claro que a atmosfera e a entoação desempenham
neste caso um papel importante; são elas que imprimem à expressão o
verdadeiro significado (p.130).
59
Sendo assim, irônica e estilisticamente, ‘essa’ abandona sua função
primeira de referência ao posicionamento real do enunciador, para referir-se a
um posicionamento pejorativo diante daquele grupo. Mais do que a
representação de uma mão em movimento desdenhando o grupo, o emprego
de ‘essa’ possibilita – como já dissemos – imaginarmos o “dedo em riste” firme
e acusador do Lº apontando e balançando em direção daqueles integrantes
que estão situados próximos a ele. Ironicamente, tem-se a inversão dos réus,
na medida em que o grupo é “difamado” pelo Lº, conforme revela-nos a ironia
da expressão.
À vista disso, elucida-se a maneira como o Lº conhece e reconhece esse
grupo e, claro, não aceita suas ações. No plano da enunciação como um todo,
percebe-se o deboche instalado para com a instituição dos magistrados e
soldados, uma vez que ele próprio, Lº, ironicamente se encontra no direito de
julgar aqueles que o julgam; aqueles – que têm o dever de julgar e fazer
cumprir a condenação dos criminosos – parecem ser os próprios condenados,
em se considerando essa ironia.
Na mesma passagem 03, ao final, tem-se a ocorrência do pronome
‘outros’ que é uma referência a ele próprio – ao Lº (Quaderna) – e a todos os
membros da sociedade em oposição aos magistrados e soldados. Embora
novamente generalizando, ‘outros’ é mais um pronome indefinido utilizado
estilisticamente para corroborar o efeito irônico, de modo que nesta progressão
textual, o Lº confia neste vocábulo a responsabilidade em generalizar do
mesmo modo todas as ações dessa raça, pondo em xeque seus julgamentos e
dando a entender que – independente da necessidade da absolvição dele, e,
quem sabe, de todo e qualquer cidadão que se veja em mesma situação –
ninguém pode ter o poder de julgar e prender o outro. Sendo assim, o Lº põe
em xeque a arbitrariedade com que a instituição do Supremo Tribunal,
representada na figura de seus magistrados e soldados, julga e sanciona um
condenado.
Reiteramos que, ironicamente, aqueles que devem ter o poder de
defender a sociedade e prender os criminosos, na visão do Lº não deveriam
fazê-lo. (A impressão/sensação que a ironia transmite, neste caso, é de que –
60
no geral, entre todas as pessoas desse mundo – ninguém poderia julgar o
outro.)
Por sua vez a passagem 04, finaliza a crítica direta às figuras
masculinas, que, mais tarde – ou melhor, na sequência –, o Lº irá chamar
ironicamente é claro de nobres Senhores. Já no momento em que se refere à
Academia Brasileira, por meio da expressão Supremo Tribunal das Letras, o Lº
apresenta uma ironia que expõe sua opinião acerca do que imagina serem as
arbitrariedades, também realizadas por esta instituição (Academia). Associada
a um “Supremo Tribunal”, digamos que a Academia é rebaixada de sua
categoria, porém “elevada” ironicamente ao órgão máximo de poder, sendo
delegada a ela (a partir desse momento) a responsabilidade por todo e
qualquer julgamento que se faz necessário, quando ameaçado seu caráter de
ordem.
É como se a ordem linguística e literária retirasse a liberdade linguístico-
literária da comunidade de escritores, tolhendo a tudo o que se apresenta de
contrário às suas normas. Nesta passagem 04, o Lº não se preocupa em medir
consequências ao usar o que parece ser a mais forte e presente ironia do
Fragmento 03, pois que o caráter metalinguístico revelado é relativo ao seu
fazer poético e à narrativa (história) que se segue.
Vale destacar, além disso, que novamente temos o demonstrativo ‘esse’
que se faz irônico. Reforçando a ideia de especificação/caracterização desse
grupo, mais uma vez revela que o Lº conhece bem aqueles que ocupam as
cadeiras da Academia, sendo, então, alvos de suas críticas.
Corroborando a ironia na passagem 04, o Lº faz uso do termo ‘das’ para
Supremo Tribunal das Letras, em lugar de Supremo Tribunal de Letras.
Estilisticamente optando pela preposição ‘de’ acompanhada de artigo definido
‘as’ (de + as), o Lº nitidamente retira do campo “Letras” um recorte, ou seja, faz
uma restrição ao campo, referindo-se a uma parte dele e, de maneira irônica, a
rebaixa; enquanto a outra parte é implicitamente preservada é, no caso, a parte
em que ele se inclui. Nos estudos do artigo e os nomes próprios, Lapa faz a
seguinte explicação, seguida de exemplo:
61
Contudo a demasiada familiaridade com um homem pode trazer como resultado um aviltamento das suas qualidades. Por isso se diz hoje, não apenas com intimidade, mas com certo sentido displicente: o Camões, o Bocage, etc. No seu célebre soneto a Eurico, a personagem do romance de Herculano, Guerra Junqueira escreveu: “Beija a Hermengarda, a tímida donzela”. O verso ficaria talvez melhor sem aquele primeiro artigo; mas o autor quis dar à figura da irmã de Pelágio um aspecto familiar e cidadão. Aquele artigo definido é pois intencional e até irônico. (LAPA, 1973, p.95)
Da mesma forma da citação acima, o mesmo se dá com a composição
de + as para a expressão das Letras em lugar da opção de Letras, neste caso.
Observando qual o efeito deste modo de escrever, Suassuna parece verter um
desprezo, uma vez que adornando a expressão com o artigo ‘as’ carrega-a de
intenção pejorativa (Idem, Ibidem, p.95).
Não poderia, portanto, fazer uso de um “solitário” ’de’ porque estaria ele
– e todos os demais escritores – presentes em um campo de Letras pleno e
único. Por conseguinte nem todas as “Literaturas” – que parecem se dividir em
repulsivas e não repulsivas na ironia quadernesca – encontram-se como fruto
dos escritores do grupo da Academia. Pelo contrário, lá estão somente as
repulsivas.
Conclui-se que, grosso modo, na visão do Lº, pode-se dizer que nem
tudo está perdido, visto que uma parte da Literatura se salva; é uma Literatura
“libertária” e que está fora da Academia; é a sua Literatura, a Literatura
quadernesca.
2º Parágrafo do Fragmento 03
Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual estou sendo submetido por decisão da justiça (05), este é um pedido de
clemência, uma espécie de confissão geral, uma apelação - um apelo ao coração
magnânimo de Vossas Excelências. E, sobretudo, uma vez que as mulheres têm
sempre o coração mais brando, esta é uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas de Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres que me ouvem (06).
(RPR, p.35)
62
Toda a declaração do Lº, presente no 1ª Parágrafo, é nitidamente
reforçada no início deste 2º Parágrafo, conforme sua primeira palavra – sua
primeira expressão Sim! – tem o poder de recuperar o parágrafo anterior.
Quando declara Sim! Neste estranho processo, a um tempo político e literário,
ao qual estou sendo submetido por decisão da justiça, na passagem 05, ‘sim’
comprova a preocupação do Lº em sanar qualquer dúvida que o público possa
ter levantado frente à justiça – ou melhor, injustiça – pela qual ele vem sofrendo
quando se tratam de instituições políticas e literárias, tal como se expressa por
meio de tempo político e literário. E claro que a expressividade estilística de um
‘sim’ em um contexto irônico como este, sempre remete a um reforço imediato
e quase que de um efeito “enlouquecido” que o enunciador possui para
interromper o discurso, na tentativa de reforçar o que se diz.
Na passagem 06, observa-se o sarcasmo do Lº, sobretudo ao reduzir
todo o público feminino – que inicialmente apareceu como parte integrante do
grupo de todos os Brasileiros – às mulheres de Vossas Excelências.
“Descaradamente” também reduz a feminilidade à fragilidade de quem tem a
pureza e facilidade de manipulação, dado que se apresenta com o coração
brando, ou seja, brandos peitos, brandas excelências. Quando diz de todas as
mulheres, entende-se que todas têm o peito brando.
Destacamos que há um tom “’prá lá” de irônico, quando se percebe o
humor (comicidade) proveniente da expressão brandas excelências, dado que
o termo ‘excelências’ remete diretamente aos seios (busto feminino),
transformando-se em referente sinonímico para este órgão feminino
acompanhado do adjetivo brandas, o que requer a possibilidade humorística de
delegar ao busto (às excelências) o conforto brando para acalentar este
locutor; ao que outrora tenha sido o acolhimento a seus aleitados filhos, quem
sabe agora possam acolher ao “coitadinho” deste Lº, Quaderna.
Subvertendo, desse modo, a instituição família, por sua vez, esta
passagem 06 apresenta, em sua ironia, aquela que serve para que possa se
acalentar, tal como os filhos de outrora; ou ainda, sexualmente falando, tal
como se desfrutam delas (excelências) seus respectivos esposos.
63
3º Parágrafo do Fragmento 03
Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos (07), minha terrível história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de sensualidade e
violência; de enigma, de morte o disparate; de lutas nas estradas e combates nas
Catingas; história que foi a suma de tudo o que passei e que terminou com meus
costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos
Cariris Velhos da Capitania e Província da Paraíba do Norte.
(RPR, p.35)
No 3º parágrafo e último do Fragmento 03, os pronomes de tratamento
escolhidos para o vocativo nele presente, embora possam remontar à cultura
medieval (em atendimento, inclusive, ao gênero Cordel, visto que se localiza
logo nas primeiras páginas da narrativa, na sequência ao trecho de abertura,
cujas características já foram apresentadas anteriormente, em nossa
Introdução deste trabalho), concretizam o tom irônico do Lº nesta passagem 07. Por isso o mecanismo da ironia se vê mais forte e agressivo no Lº,
conforme outros elementos se inserem neste sintagma, colaborando para o
efeito pretendido.
* * *
Realizado este apelo inicial na passagem 07, começa o relato
quadernesco de histórias repletas de aventuras por meio de uma ardilosa
argumentação para que se possa convencer a todos. Além dos traços irônicos
mais e menos explícitos, caracterizados pela fluidez da argumentação, por
vezes o relato se distancia da realidade, revelando igualmente determinados
efeitos humorísticos. Segundo Micheletti, na ironia utilizada por Quaderna há
um certo humor que visa a uma empatia com seus leitores, os seus ouvintes
(2014).
Salientamos que este chamamento apresentar-se-á em inúmeros outros
momentos ao longo da narrativa, reforçando o pedido quadernesco de “preste
atenção, por favor”, mesmo que em tom irônico. Isto é, em todos os momentos
em que o Lº percebe a necessidade/importância de chamar atenção de seu
público, ele o faz. É preciso salientar que nem sempre o sintagma central
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nobres Senhores e belas Damas irá se repetir acompanhado de peitos
brandos. Ao todo são mais de vinte passagens em que o Lº dialoga
diretamente com seu público, dirigindo-se a este por meio do referido sintagma.
Nobres Senhores e belas damas: um vocativo mais que irônico; um sintagma polivalente.
Embora muitos fenômenos, como o sintagma, são ora relacionados ao
campo da gramática, ora ao campo da estilística, como se fosse borrada a
fronteira entre os dois campos devemos, sim, sempre levar em conta que a
escolha de uma determinada forma gramatical pelo autor é um ato de estilo
(RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.107). Para Bakhtin (2003ª):
Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer fenômeno concreto da linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto [totalidade] de um enunciado individual ou do gênero do discurso já se trata de fenômeno estilístico. (apud RODRIGUES, In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.107)
Além do acompanhamento de seios brandos para as belas Damas,
outras formas estarão – ou não – junto deste sintagma. Ou não, porque, na
maioria dos casos, ele (sintagma) ocorrerá sozinho, sem qualquer outra
referência, apresentando-se apenas como nobres Senhores e belas Damas. E
vale lembrar que, por mais que puramente apresentado como nobres Senhores
e belas Damas pudesse, sozinho, trazer a sensação de elevação da posição
social do público a quem o Lº se dirige, devemos reconhecer que,
contrariamente/ironicamente é o ocorre. Portanto todas as passagens que
contam com a presença deste sintagma – seja ele sozinho, ou não –
expressam a ironia do Lº para com seu público.
Formado pela base nobres Senhores e belas Damas, ao todo são quatro
diferentes formas de ocorrência deste vocativo ao longo da narrativa; sendo
uma delas (a 3ª) a ocorrência sem qualquer acréscimo e a que se apresenta
mais frequente. Vejamos todas elas abaixo:
65
Quadro 5
...nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos...
1º sintagma7, ocorrido pela primeira vez na página 34
e que se repete duas vezes ao longo da narrativa.
...nobres Senhores e belas Damas de peitos macios...
2º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página 47
e que também se repete três vezes ao longo da
narrativa.
...nobres Senhores e belas Damas...
3º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página 59
e o que mais se repete ao longo da narrativa. No
total são dezesseis vezes em que ele é repetido.
...nobres Senhores e belas Damas que me ouvem...
4º sintagma, ocorrido pela primeira vez na página
291 e que se repete duas vezes ao longo da
narrativa.
Como não iremos nos estender nas análises recortadas de cada uma
dessas ocorrências, todas elas estão devidamente representas, em anexo, ao
final deste trabalho, conforme a indicação dos fragmentos descritos acima; em
exceção, é claro, ao 1º sintagma, visto que já foi apresentado e vem sendo
aqui analisado, neste trecho de nosso trabalho.
* * *
Em se considerando, pois, a permanência do vocativo por toda a
narrativa, bem como a continuidade à ironia travada contra as instituições
Supremo Tribunal de magistrados e soldados e Academia Brasileira de Letras,
reiteramos que o Fragmento 03, dado no início da narrativa, apresenta-se
como uma espécie de justificativa a tudo o que está por vir.
E, mesmo que sem definir exatamente este Lº, Quaderna, é possível
verificar que sua postura discursiva revela determinadas características que
impossibilitam sua associação a um pícaro. À vista disso, é como uma espécie
7 Nas edições anteriores, a primeira ocorrência do sintagma se dá já na primeira página do Romance (em sua folha de abertura), na forma nobres Damas e Senhores.
66
de palhaço que o Lº revela seus traços ironicamente inocentes, porém o leitor
atento percebe este farsante. Por outro lado, podemos dizer que, conforme o
enunciatário se vê na perfeita condição em traduzir o discurso estilisticamente
proferido – e irônico – em uma representação mental de “movimentos”
característicos a um palhaço eufórico que não “mede” seu discurso, já nos
parece possível que o Lº seja reconhecido como a própria vítima de sua
argumentação, como o próprio farsante palhaço que cai em sua própria
armadilha que é a ironia.
Para Lemos, não à toa, Quaderna possui trejeitos típicos de um palhaço:
O personagem-narrador Quaderna [...] é ao mesmo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, religioso e satírico, sangrento cheio de gargalhadas. Do risível e cômico ao dramático e trágico, Quaderna, nesse ponto, transparece a voz de seu criador Suasuna e é um maestro conciliador de suas contradições e das tensões de pensamento que provoca com o seu discurso. Regente de tensões opostas. (2007, p.13)
Abrimos aqui um parêntese para o fato de que a figura do palhaço, e
consequentemente do circo, sempre fizeram parte da vida de Suassuna, sendo
o interesse deste Locutor Empírico revelá-la em sua obra; em seu estilo. Desse
modo, com base nessa caracterização cômico-irônica do personagem
Quaderna, o próprio Suassuna diz:
Um personagem meu, Quaderna, o narrador d’A Pedra do Reino, fala assim a certa altura para o Juiz Corregedor que o interroga: “Desde menino que eu era entusiasmado com circo [...].” E depois, quando ele chama seus amigos Clemente e Samuel para organizarem uma expedição que vai procurar um certo importantíssimo tesouro, é sob a forma de Circo que ele planeja a viagem. Diz ele: “Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa! [...]” Assim, como se vê, a visão do Circo é fundamental para se entender não só meu Teatro mas toda a poética que se encontra por trás dele, do meu romance, da minha poesia e até da minha vida, como um dia talvez venha a revelar melhor. (In SUASSUNA, p.211)
Não podemos negar que a “animação” do Lº para os inúmeros
chamamentos nobres Senhores e belas Damas pode ser identificada por seu
tom circense, uma vez que se percebe uma analogia ao chamamento do
público frequentador do circo, para os grandes momentos do espetáculo. Tal
como no circo, no RPR o Lº realiza este vocativo para chamar a atenção de
seu público para os momentos mais “espetaculosos” a serem apresentados
67
durante a história. Imbricam, pois, ironia e comicidade, mesmo que sejam
fenômenos não exatamente paralelos. E, embora seja possível tal associação
entre ironia e comicidade, devemos aqui lembrar que:
Em meios aos aspectos que provocam as sérias divergências existentes entre os diversos grupos de pesquisadores estão as diferenças ou semelhanças que abrangem termos como ironia, sátira, humor, cômico, paródia, riso e outros tantos constantemente invocados, mesmo nos estudos que se propõem a tratar especificamente da ironia. [...] É somente a partir de um posicionamento que se pode focalizar um desses termos e, por exemplo, alinhar e definir todos os outros, ou estabelecer novas séries que excluem a possibilidade de abranger todos numa única. (BRAIT, 2008, p.73)
A singular narrativa quadernesca deste Lº impressiona pela fluidez,
todavia por vezes, distancia-se da realidade, haja vista que se apresentam os
traços irônicos e caracterizados ora com humor, ora com sarcasmo e ora,
ainda, com deboche. À vista disso todas as passagens que contém o alusivo
sintagma, primeiramente ocorrido na passagem 07 – seja ele sozinho, ou não
–, expressam a ironia do Lº para com este seu público. E já se começando
assim, dirigindo-se ferozmente a seu público com esta ironia, mesclada por um
cinismo “inocente”, o que se esperar de toda a história a ser narrada por este
Lº? Eis que todo o contexto é irônico.
A partir de então, enunciador e enunciatário se fazem cúmplices, sendo
atribuída à ironia a responsabilidade por esta cumplicidade visto que diminuem
as distâncias entre estes protagonistas da enunciação (enunciador e
enunciatário), firmando-se, portanto, a direção argumentativa da ironia e
fazendo-se recorrente, ou melhor, total.
* * *
Podemos dizer que, realizado seu apelo inicial, o Lº, Quaderna, discursa
acerca de seus antepassados e sempre, sempre, com ironia. Retomando as
histórias vividas por ele mesmo e/ou por seus ascendentes, ressaltamos que o
Lº mescla um discurso clássico-filosófico a uma linguagem peculiar do Sertão,
para que possa se defender. Inicialmente, recupera a história de seu
antepassado relativa a quatro impérios do Sertão, remontando à Primeira
notícia dos Quaderna, incluindo-se a história de “Dom Ferreira-Quaderna, o
68
execrável” que, terrivelmente, sacrificou parte de seu povo, conforme
degolamento público ocorrido no local denominado de “Pedra do Reino”. Por
considerar-se herdeiro dessa tradição (de uma raça “castanha”), é neste local
onde o Lº declara pretender (auto)coroar-se como “rei” de um novo império, a
partir de uma sagração paródica.
Ao longo de sua narrativa, então, o Lº reconstitui as histórias sertanejas
de suas famílias e relata o seu próprio percurso por aquelas terras, em meio a
ritos e aventuras, além, é claro, de realizar tudo isso por meio de uma
argumentação a serviço de sua defesa e do convencimento de todos de sua
inocência.
3.2 A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias e filosóficas
O que eu sei é que o Quaderna nos impõe e nos arrasta a ele e a nós pelos seus mundos alucinados, através dos seus delírios genealógicos e seus mistérios e enigmas nem sempre decifrados. (QUEIROZ In: SUASSUNA, [1971] 2012, p.17)
Já aproximados e cúmplices – desde a primeira ocorrência do vocativo
nobres Senhores e belas Damas,–, enunciador e enunciatário parecem
conviver, desde esse momento, em uma relação de comunhão estabelecida na
proposição de uma narrativa caracterizada pela ironia. Ou seja, onde há ironia,
certa sobrecarga de cumplicidade atravessa o sujeito da enunciação,
diminuindo as distâncias entre enunciador e enunciatário (DISCINI, 2013,
p.124).
Tanto assim, na sequência da apresentação inicial quadernesca
introduzindo didática e metodologicamente sua ironia frente a algumas
instituições e seus concernentes representantes, é durante os momentos de
embate entre os discursos de Clemente e Samuel que a atmosfera irônica mais
possui seu viés “ferino”. Posterior ao que foi uma espécie de
explicação/justificativa do Lº – já descrita em nossa análise anterior deste
trabalho –, a proposta narrativa quadernesca firma-se irônica podendo ser
69
observada nos momentos em que este Lº revela por meio de seus relatos, o
conflito entre as ideias destes dois personagens. Discussões que tratam da
figura de Homero, das características do gênero Epopeia, ou mesmo dos
estudos filosóficos, serão aqui analisadas a partir de alguns fragmentos
escolhidos para tal; pois que é por meio do discurso direto tanto de Samuel
quanto de Clemente, que Quaderna parece assegurar o ritmo de seu relato,
podendo – pouco a pouco – comprovar suas ideias e concepções acerca de
determinados pontos a serem corroborados pelas vozes destes dois
personagens.
Segundo Micheletti (1997), tem-se que no RPR:
Tal como no folhetim, o papel social e a postura das personagens são facilmente identificáveis, porque estas se apresentam tipificadas. Dessa forma, as personagens que encarnam duas correntes políticas contrárias: o Comunismo e o Integralismo, respectivamente, o Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio e o Doutor Samuel Wandernes, bem como o narrador, que se pretende numa posição intermediária, caracterizam-se por atitudes, traços físicos e vestimentas que lhes conferem um aspecto caricatural [...]. (p.31)
Destacamos que antes da página 181 –, na qual a história prevê a
primeira conversa a ser travada entre os personagens Quaderna, Samuel e
Clemente –, o Lº, Quaderna, remete-se aos outros dois em inúmeros
momentos de seu discurso narrativo ao longo de seu relato. Assim sendo,
analisaremos dois trechos retirados da apresentação de cada um destes dois
personagens, mesmo que sem o recurso do discurso direto.
Apresentação dos personagens Samuel versus Clemente por meio do discurso narrativo do protagonista Quaderna (Quaderna Narrador = Lº)
Considerando que a expressividade é
[...] o meio do qual o falante se vale para alcançar seu objetivo de exteriorizar seus pensamentos, imprimindo suas marcas de singularidade. Ela ocorre sempre em relação a um outro falante, real ou imaginário, individual ou coletivo. Através desse mecanismo, o falante atua por meio da linguagem, fazendo um uso pessoal da língua, recriando-a constantemente. O procedimento que gera a expressividade não é nem automático, nem infalível. (In: FLORES et al 2009, p.118)
70
e sendo neste trabalho observada a ironia como produto dessa expressividade,
percebe-se a importância de uma análise frente aos momentos de discurso
exclusivamente narrativo do Lº para com a caracterização física e psicológica
dos importantes personagens Samuel e Clemente.
Temos, assim, que a primeira aparição de Samuel, dada no segundo
parágrafo do Folheto II “Caso da Estranha Cavalgada”, já prevê um instantâneo
retrato deste personagem na passagem: o Doutor Samuel Wandernes, homem
intelectual, Poeta e promotor da nossa Comarca (SUASSUNA, 2012, p.35).
Clemente, por sua vez, embora apareça primeiramente junto de Samuel na
página 44, sua primeira efetiva caracterização acontece somente na página
164, conforme fragmento que se segue:
Fragmento 04
Nós vivíamos, na "Onça Malhada", sob os cuidados de um preceptor, o
Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (08), "um Filósofo, um bacharel, um historiador, um luminar, uma sumidade (09)", como era voz corrente no Sertão.
Era filho de pais incógnitos (10). Sabia-se que era da Vila do Patu, no Rio Grande do Norte (11). Em menino, "era um negrinho bonito, de cabelo bom (12)", deixado na porta do célebre latinista sertanejo (13), Antônio Gomes de Arruda Barretto, em
Brejo da Cruz, Paraíba, perto da fronteira do Rio Grande do Norte. O humanista
Antônio Gomes tomara o menino e educara-o no seu famoso "Colégio Sete de
Setembro", onde Clemente foi aluno brilhante (14). Aproveitando os fumos liberais
do Segundo Império e de Dom Pedro II, o moleque exposto fez os preparatórios e
ingressou, depois, na Faculdade de Direito do Recife (15). (RPR, p.164)
Este Fragmento 04 é o segundo parágrafo componente do Folheto
XXIV, intitulado “O Caso do Filósofo Sertanejo” cujo conteúdo é todo ele para a
apresentação deste personagem, Clemente. Já devemos observar, aqui, o fato
de Quaderna parecer querer justificar a grandeza do ser humano Clemente –
da pessoa Clemente –, conforme a preocupação em apresentar suas
características psicológicas anteriormente a qualquer uma de suas
características físicas. Na sequência da apresentação de seu nome e
sobrenome junto ao título Professor (passagem 08), Quaderna descreve
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Clemente como sendo um Filósofo, um bacharel, um historiador, um luminar,
uma sumidade (passagem 09). Podemos dizer que, nesta passagem 09,
observa-se o cuidado do Lº para com uma intencional gradação, revelada
estilisticamente por um ritmo oportunizado pela sequência dos substantivos
(nomes) acompanhados de artigos indefinidos e separados por vírgulas.
Quanto ao papel fundamental da repetição expressiva do artigo
indefinido, devemos ressaltar que além de produzir um belo efeito estilístico,
uma vez que, segundo Lapa, o (artigo) indefinido serve para traduzir a
indeterminação e o mistério, sabemos que sem eles este ritmo, esta gradação,
não seria possível. Se o Lº tivesse reproduzido os substantivos ‘filósofo,
bacharel, historiador, luminar, sumidade’ absolutamente sem qualquer outro
elemento – que não a vírgula –, não atenderia ao mesmo efeito.
Ora a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimentos da sensibilidade. É por isso que o artigo indefinido traduz muitas vezes os sobressaltos da alma, a intensidade obscura dos afetos. É um instrumento precioso para exprimir a complicação da alma moderna, o seu caráter impressionável. (LAPA, 1973, p.96)
Isto posto ressaltamos que o artigo indefinido dramatiza o caso,
reforçando ao mesmo tempo a intensidade da representação. Eis porque esse
morfema se emprega muitas vezes como uma espécie de superlativo, e que é
o que ocorre neste caso da passagem 09. Entre o artigo e o nome
subentende-se qualquer coisa como “grande”, “enorme”, sendo bem visível que
o morfema valoriza intensamente o nome a que se refere. (Idem, Ibidem, p.97)
Ao contrário de encerrarmos a análise da passagem 09, optamos por
estendê-la um pouco a mais essa nossa espécie de “produtiva divagação
analítica”, para que possamos consultar o uso das aspas, visto que elas
oportunizam a observação da ironia deste enunciado.
Ou seja, por mais que o discurso seja do próprio narrador da história –
Lº, Quaderna –, este parece querer jogar a responsabilidade de sua descrição
a outrem, pois que, ao fazer uso das aspas, promove um certo esclarecimento
de que aquelas não seriam palavras suas, e sim reproduzidas de acordo com o
72
que está na “boca do povo”, traduzindo o que o “povo” diz de Clemente;
reportadas como o “povo” caracteriza Clemente.
Para Bakhtin, não existe um objeto de discurso que já não seja dialógico, pois não há uma fala original. No dito coexiste o já-dito. A ideia de compreensão ativa é particularmente ilustrativa desse aspecto. A transmissão da palavra de outrem, como objeto de transmissão interessada, é sempre parcial. A consciência de si está sempre presente na consciência que o outro tem do locutor. O “eu para si” no qual as vozes constituem a consciência do sujeito e que este, por sua vez, fala a partir do discurso do outro, com o discurso do outro e para o discurso do outro. Na voz do sujeito, está a consciência que o outro tem dele. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.59)
Por esta razão, temos o que o próprio trecho subsequente como era voz
corrente no Sertão, vai confirmar; revela o discurso do outro – o “povo”, o
senso comum – que é exatamente o responsável por tal designação, já que o
Lº somente reproduz o que se diz “por aí”. Não apenas nesta passagem 09,
mas em outras é o que acontece. É, assim, uma espécie de discurso indireto,
em se considerando que:
Com o discurso indireto não se usam, normalmente, os sinais diacríticos que destacam o discurso direto, a saber, dois pontos, aspas, travessão, ou ainda outras formas de realce como grifo, itálico ou negrito. Contudo, em casos especiais, o enunciado transcrito, ou apenas parte dele, pode receber alguma dessas marcas, seja pela intenção de demonstrar fidelidade, seja para dar ênfase ao que foi dito, seja por ironia ou dúvida do citador. (MARTINS, 2008, p.195)
Reafirmamos que queremos dizer que o que temos na passagem 09 é
um Lº que, ao dar voz ao “povo” para a sua descrição de Clemente, não se
responsabiliza pela citação. Quer esteja em acordo, quer esteja em desacordo
com a “voz corrente”, sutil e ironicamente o fato é que o Lº parece não querer
dar o braço a torcer das mesmas opiniões relativas às qualidades de Clemente.
Desse modo, mesmo que seu discurso tenda favorável a um enaltecimento
desse personagem, há indícios de que na verdade seja exatamente o contrário;
ou melhor, ironicamente tem-se um sentimento de orgulho que o Lº tem em
não querer trazer, ele próprio, os elogios àquele que muito já contribuiu e
influenciou em sua formação intelectual. Ele o faz apenas por intermédio dessa
“voz corrente”.
73
E aqui já podemos adiantar que, aos poucos, o Lº vai deixando
transparecer que – mais do que nunca – Clemente pode ser um rival em
potencial, dado que ele – Lº – se vê acima de tudo e de todos, e por que não,
inclusive daqueles que outrora foram seus mentores intelectuais; no caso aqui,
Clemente, um destes dois mentores/tutores.
* * *
Ainda que o Lº tenha somente reproduzido o senso comum na descrição
de ordem psicológica de Clemente (passagem 09), não devemos
desconsiderar o fato de que a maneira com que os cinco substantivos
engrandecem Clemente é algo que veio inicial e propositalmente, para que o Lº
pudesse se encontrar mais “confortável” em declarar que Clemente [em
menino] era um negrinho bonito, de cabelo bom (passagem 12). Esta
passagem 12 funciona como ponto de chegada após todo um cuidado do Lº
em anteriormente engrandecer o personagem. Porém, além de ponto de
chegada esta mesma passagem 12 funciona ao mesmo tempo como ponto de
partida se considerarmos que vem anterior à deixado na porta do célebre
latinista sertanejo (passagem 13).
Sob a luz deste enfoque, fica cada vez mais claro para nós que o Lº quer
justificar o fato de uma ilustre família (branca, ao que tudo indica) acolher em
seu seio familiar um menino negro deixado junto de sua porta. O Lº se
preocupa excessivamente em chamar a atenção para as questões de ordem
étnico-racial e suas respectivas implicações em nossa sociedade, uma vez que
parece querer fazer-se compreender pelo seu público (leitor/enunciatário/
receptor) que, por sua vez, deverá perceber a necessidade dos cuidados
quadernescos para, enfim, declarar a questão da adoção; de tal maneira que o
Lº constrói uma situação confortável para conduzir o pensamento de seu
receptor acerca da possibilidade aceitável de um menino bonito e de cabelo
bom, mesmo sendo negro, poder ser educado como um ente de uma família
branca e abastada.
É como se o Lº pudesse preservar a pessoa de Clemente sem dar
qualquer chance a uma possível discriminação a ser sofrida por ele. Porém é
74
mais do que isso; é, nesse caso uma ironia. A maneira como esta situação se
instala gera no público (leitor) a sensação dos cuidados excessivos do Lº, ou
seja, é irônico o fato do Lº fazer-nos pensar que ele se preocupa em deixar
claro que pretende preservar Clemente de alguma possibilidade de
discriminação. Porém, ao mesmo tempo levanta – com extrema ênfase – uma
abordagem preconceituosa com a qual convivemos em nossa sociedade,
levando-nos consequentemente à reflexão. Ao contrário de ser algum
preconceito por parte do Locutor Empírico Suassuna revelado no discurso do
Lº, o que temos – reiteramos – é exatamente a revelação do preconceito
existente em nossa sociedade.
De todo modo, adentrando a toda essa situação étnico-racial, devemos
salientar que há, portanto, o levantamento da possibilidade de que o senso
comum poderia partir da premissa de que ‘negrinho’ encontra-se em oposição
a ‘bonito’. Da mesma maneira poderia ser observado que embora o cabelo de
Clemente fosse bom, não é o que deva acontecer com a maioria dos cabelos
dos ‘negrinhos’; tudo isso, conforme o discurso proveniente do senso comum, a
saber, um senso comum “carregadíssimo” de preconceito. Eis que as
expressões ‘negrinho bonito’, e de ‘cabelo bom’ revelam o preconceito
embutido no discurso de senso comum presente em nossa “real” sociedade –
por meio do uso das aspas que delegam a responsabilidade ao “povo” – e,
claro, revelados pelo Locutor Empírico, por meio do discurso de sua criatura
Quaderna (Lº).
E, mesmo que a abordagem étnico-racial ligada às possibilidades
discriminatórias e/ou preconceituosas levantadas por meio do discurso
quadernesco não tivesse se dado em um processo explícito para com a
apresentação de Clemente, temos que considerar, neste momento, que em
uma contraposição direta entre as apresentações de Clemente e de Samuel,
tudo pode ficar mais claro para que se comprove a intenção do discurso
quadernesco.
Tem-se, pois, que no Folheto XXV, “O Fidalgo dos Engenhos” –
subsequente ao folheto da apresentação de Clemente –– Samuel também tem
a chance de ser melhor caracterizado pelo Lº no decorrer deste fragmento:
75
Fragmento 05
Durou essa posição soberana de Clemente até 1906 ou 1907, quando, entre
nós, apareceu outro personagem, também importantíssimo em nossa história, o
Doutor Samuel Wandernes (16). Este não era negro (17), nem do Sertão, nem do Rio Grande do Norte (18). Era branco e fidalgo (19), "um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos" (20), como costumava dizer. Segundo nos disse, seu
Pai, Senhor arruinado do Engenho "Guarupá", tornara-se corretor-de-açúcar no
Recife, onde "vivia à larga, à moda fidalga". Ele, Samuel, "Morgado do Guarupá",
também formado na Faculdade de Direito (21), era, porém, não um radical (22), como Clemente (23), mas "um poeta do Sonho e pesquisador da Legenda" (24). Nessa qualidade, planejara, também, um livro, uma obra-de-gênio intitulada O Rei e a
Coroa de Esmeraldas.
(RPR, p. 165)
Observa-se que, embora tanto Clemente quanto Samuel sejam
bacharéis em Direito, não são referidos pelo mesmo título. Ao contrário de
Clemente que leva o título de Professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio
(passagem 08), a Samuel é efetivamente dado o título de Doutor Samuel
Wandernes (passagem 16). Eis que ironicamente o Lº cuida para que se preze
por um distinto tratamento entre estes dois oponentes.
Adiantamos que a ironia relacionada às passagens dos Fragmentos 04 e 05 se dá desde as diferenças linguísticas dos nomes e sobrenomes de cada
um deles, porém, para além da escolha suassuniana, ou seja, para além da
escolha estilística do Locutor Empírico Suassuna quando da criação desses
nomes e suas relações possíveis. À vista disso, fora do empírico e dentro da
ficção, a impressão que temos é que Clemente – certa vez, dentro do campo
dessa ficção – teve total liberdade de escolha de seu sobrenome, visto que não
carrega o sobrenome da família que o criou/educou (representada na figura de
Antônio Gomes de Arruda Barreto). Porém isso se dá de maneira irônica, de
modo que não exatamente seria a liberdade de Clemente, e sim a não
possibilidade dele possuir um sobrenome tão abastado como ‘Gomes de
Arruda Barreto’, mesmo sendo, este, o sobrenome daquela que foi a família
que o criou. Isso é algo que muito chama a atenção, sobretudo pela crueldade
76
exposta à frente de nossos “olhos” quando deste possível impedimento de
ordem preconceituosa.
Tal como ocorre no Fragmento 04, ao longo do Fragmento 05 tem-se
novamente o uso das aspas e sempre utilizadas estilisticamente para o mesmo
efeito expressivo já tratado anteriormente: a não responsabilidade de Quaderna
quanto às características apresentadas por ele; ainda que tenham sido
escolhidas por ele indicam que este Lº poderia não partilhar das mesmas
opiniões advindas do senso comum (“povo”).
Sendo Assim, apresentamos a seguir, um quadro que contrapõe cada
uma das características enumeradas acima, para que possamos aclarar os
pontos divergentes apresentados pelo discurso quadernesco, o qual confirma a
classe/posição social destes dois atores do enunciado.
Quadro 6
CLEMENTE
SAMUEL
- [...] Professor
Clemente Hará de Ravasco Anvérsio. Passagem 08
FRAGMENTO 4
- [...] Doutor Samuel Wandernes.
Passagem 16 FRAGMENTO 5
- [...] um Filósofo, um bacharel, um
historiador, um luminar, uma sumidade. Passagem 09
FRAGMENTO 4
- [...] um gentil-homem dos
Engenhos pernambucanos, Passagem 20
FRAGMENTO 5
- [...] um poeta do Sonho e
pesquisador da Legenda. Passagem 24
FRAGMENTO 5
- [...] filho de pais incógnitos. Passagem 10
FRAGMENTO 4
-[...] era (branco e) fidalgo, Passagem 19
FRAGMENTO 5
- [...] era da Vila do Patu,
no Rio Grande do Norte. Passagem 11
FRAGMENTO 4
- [...] (não era) nem do Sertão
nem do Rio Grande do Norte Passagem 18
FRAGMENTO 5
77
- [...] (em menino) era um negrinho
bonito, de cabelo bom, Passagem 12
FRAGMENTO 4
- [...] não era negro Passagem 17
FRAGMENTO 5
- [...] deixado na porta do
célebre latinista sertanejo. Passagem 13
FRAGMENTO 4
-
- [...] foi aluno brilhante. Passagem 14
FRAGMENTO 4
-
- [...] ingressou (depois) na
Faculdade de Direito do Recife. Passagem 15
FRAGMENTO 4
- [...] também formado
na Faculdade de Direito, Passagem 21
FRAGMENTO 5
- (como Clemente = era um radical) Passagem 23
FRAGMENTO 5
- [...] era (porém,) não um radical,
(como Clemente) Passagem 22
FRAGMENTO 5
Para completar o retrato físico e ainda psicológico de Samuel e de
Clemente, bem como preencher ainda mais o quadro acima, poderíamos
recorrer a outros tantos trechos de narração/descrição de Quaderna (Lº) que
ilustram esta posição oponente firmada entre os dois personagens. Porém
deixaremos para retomá-la (oposição) mais adiante, quando das análises do
discurso direto proferido por cada um deles.
* * *
Continuando, então, na análise de trechos narrativos, não poderíamos
deixar de notar que Samuel também é tratado com ironia pelo Lº, o qual se
utiliza apenas do que lhe é conveniente. Mesmo com todas as diferenças
travadas entre Samuel e Clemente, Quaderna sempre os coloca numa posição
irônica, uma vez que ambos são extremistas tanto no sentido da distância
ideológica que há entre um e outro, bem como extremistas no sentido de que
ambos são irredutíveis. E sem que nos estendamos demasiado, cumpre-nos
78
fazermos proveito do próprio fragmento anterior (5) para salientar alguns
destes pontos que apresentam a ironia quadernesca para com a figura de
Samuel. Ao contrário de Clemente que é o dito “Professor” - e quem sabe, o
mais “intelectual” dos dois – Samuel, por sua vez, na voz do Lº, é dado como
Doutor, conforme passagem 16. Sabe-se que no português falado no Brasil, o
termo “doutor” tem em uma de suas acepções àquela relativa ao campo do
pejorativo e que é referente à classe dominante, chamada hoje de minoria
favorecida socialmente. Se pensássemos da mesma maneira em sua variante
“doutô”, lembraríamos que o termo basicamente representa um pronome de
tratamento utilizado/“pronunciado” por determinados falantes brasileiros que se
auto classificam como inferiores àqueles com que eles chamam de “doutô”. Tal
variante é, portanto, algo que se refere àquele que tem um poder social maior,
ou seja, uma posição social mais elevada – sempre em relação/comparação a
outrem – comumente de alto padrão em relação à maioria desfavorecida sócia
e culturalmente. É, pois, a palavra “Doutor”, aqui utilizada ironicamente no
discurso do Lº e representando o status quo de uma sociedade injusta que é a
sociedade brasileira.
E, em se considerando toda essa discussão dada sob o enfoque da
ironia quadernesca, podemos ressaltar que Samuel é branco e fidalgo
(passagem 19), vindo de um lugar que não fica no Sertão, nem no Rio Grande
do Norte, de acordo com a passagem 18, mas sim – ao que tudo indica – de
um local muito mais “abastado”. Digamos que este lugar seria Pernambuco,
visto que é um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos (passagem 20).
No discurso irônico do Lº percebe-se que Samuel é capaz de ser tão
fino/elegante que não chega a ser considerado um radical no discurso presente
no enunciado, porém toda a enunciação confirma a ironia quadernesca, dado
que efetivamente Samuel é sim um radical de ideologia irredutível.
Também nos compete dizer que – tal como já apresentado,
anteriormente, em outros momentos deste nosso capítulo – mais uma vez
temos o uso das aspas em duas das passagens destacadas neste Fragmento 05. São elas: “um gentil-homem dos Engenhos pernambucanos” (passagem 20); “um poeta do Sonho e pesquisados da Legenda” (passagem 24),
reforçando o estilo quadernesco de ironicamente colocar suas opiniões a partir
79
do uso das falas pré-concebidas e ideologicamente já constituídas por uma
maioria (toda uma sociedade), chamada de “senso comum” – já apontado
desde a primeira análise das aspas neste trabalho.
A ironia no discurso direto dos personagens Quaderna (L¹), Samuel (L²) e Clemente (L³)
Utilizando-nos de trechos das falas destes personagens registradas por
meio do recurso do discurso direto, oportunizado pelo narrador, temos que
finalmente na página 181 do Folheto XXVII “A Academia e o Gênio Brasileiro
Desconhecido” dá-se a primeira ocorrência do discurso direto dos três
personagens. Então, separamos abaixo este trecho, mesmo que ele não
possua o embate entre os oponentes Samuel versus Clemente:
Fragmento 06
Colei de novo, cuidadosamente, os envelopes e, três dias depois, procurei
meus dois rivais e Mestres (25). Fingi que ignorava tudo e falei assim:
- Olhem, vocês dois aí! (26) De uns tempos para cá tive uma ideia que
poderia trazer vantagens importantíssimas para nós: seria entrarmos, nós três, para o
"Instituto Histórico e Geográfico Paraibano"!
Os dois me olharam, tensos, mas nada disseram e eu continuei:
- Com meu espírito de sacrifício, resolvi tentar minha entrada na frente, para
desbravar o caminho, mas fui recusado! Estou comunicando isso, porque, como vocês dois são Doutores (27), talvez o caminho que devamos seguir seja o oposto:
vocês se candidatariam e, depois de aceitos, patrocinariam minha candidatura!
Só se vendo o desprezo com que Samuel comentou para Clemente:
- Ah, era o que faltava, Clemente! Você ouviu? Rebaixarmo-nos desse jeito, dando, servilmente, ao Sr. Instituto, a honra de solicitar-lhe que nos aceite entre seus ilustres membros! Era o que faltava! (28)
- Era o que faltava! – ecoou Clemente com o mesmo riso falso. - Quaderna, se o Instituto nos quer, eles que nos aclamem por unanimidade, sem iniciativa nossa! E veja lá: nós concordaremos ou não, depois de pesar as vantagens e desvantagens que existem em ser membro do Instituto! (29)
(RPR, p. 181)
80
Pelo contrário, o que há nesta primeira passagem (Fragmento 05) é um
outro embate: o embate entre Quaderna versus Samuel & Clemente. O Lº ao
disponibilizar o discurso direto para dar voz aos dois personagens Samuel (L²)
e Clemente (L³), promove um momento em que, ironicamente, ambos estão em
acordo; em comunhão de ideias. É como se o fato deles se unirem na
contraposição à opinião de Quaderna, fosse algo que desconstruísse o já
constituído; ou seja, dois antagônicos personagens, Samuel versus Clemente –
que vinham até este momento sendo apresentados ao público a partir de suas
diferenças físicas e psicológicas e, claro, a partir de suas diferentes
concepções e opiniões acerca do mundo em sociedade – são, agora, dois
personagens “iguais” no que concernem suas opiniões relativas ao modo de
entrada ao Instituto.
Devemos observar que antes da utilização da primeira ocorrência do
discurso direto neste Fragmento 05, há no discurso do Lº a passagem 25, a
qual ele (Lº, Quaderna) refere-se a Samuel e Clemente por meus dois rivais e
mestres colocando-os intelectualmente lado a lado e distantes dele próprio.
A passagem subsequente, que já é o próprio discurso direto do L¹
(Quaderna Personagem), permite-nos observar que tanto quanto
espacialmente (ainda que virtualmente) Samuel e Clemente também estão
dispostos lado a lado (juntos) em local contrário/oposto ao de Quaderna. Por
meio do termo ‘aí’, tem-se nesta passagem 26 a comprovação dessa oposição
espacial a qual instala a situação “Quaderna versus Samuel & Clemente”, ao
mesmo tempo, em que revela ainda uma virtual oposição intelectual de mesma
natureza: ideais/opiniões quadernescas versus ideias/opiniões de Samuel &
Clemente.
Voltando para a narrativa do Lº, tem-se na passagem 27 mais uma clara
aproximação entre as figuras de Samuel e de Clemente, pois, ao dizer como
vocês dois são Doutores, o L¹, Quaderna, utiliza-se do título Doutor, da área do
Direito, para referir-se tanto a um quanto ao outro, uma vez que ambos são
bacharéis desta Área. Diferentemente de toda a apresentação narrativa
anterior, a qual descreve Samuel como Doutor e Clemente como Professor,
81
nesta passagem 27 Quaderna coloca-os na mesma posição
“social”/profissional.
O curioso é podermos delegar tudo isso à própria ironia presente na
enunciação. O que queremos dizer é que o fato dos dois personagens terem
sido, até então, apresentados com características divergentes no discurso do
Lº, é agora no Fragmento 05 por um mecanismo convergente que ambos se
unem no combate à opinião de Quaderna, neste primeiro trecho de conversa
entre os três. É uma ironia se pensarmos por este prisma e, claro, se
pensarmos por que razão Quaderna, após exibir suas divergências, coloca-os
em convergência para um embate de ideias em que ambos – unidos – travarão
com ele.
Devemos admitir, porém, que não se trata exatamente de que o Lº tenha
se utilizado de um total estranhamento, tal como Pereira (2012) esclarece que
seja esta estratégia discursiva,
O estranhamento – estratégia discursiva que expõe o conflito entre posições e consiste na apresentação de elementos intradiscursivos – palavras, expressões e/ou orações – e interdiscursivos, da ordem do ex-cêntrico, isto é, daquilo que se situa “fora” do que está sendo dito, mas que incide na cadeia significante, marcando uma “desordem” no enunciado. Aqui pode se dar aquilo que, em análise de discurso, denomina-se efeito de “pré-construído” através do qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado “antes, em outro lugar, independentemente”, rompendo (ou não) a estrutura linear do enunciado. Possui como características a imprevisibilidade, a inadequação e o distanciamento daquilo que é esperado. (In: FANTI & BARBISAN, 2012, p.99)
mas, se considerarmos a crescente, a gradação descritiva relativa ao retrato
dos dois personagens em oposição, o fato de estarem, agora, em total paralelo,
prova a ironia quadernesca de que ambos, embora sejam diferentes ao grau
máximo de oposição, são – juntos – contrários às ideias quadernescas.
Adianta-se a conclusão de que no discurso narrativo, o Lº deixa clara a
sua visão frente à oposição entre Samuel e Clemente; porém no seu discurso
direto, o L¹ Quaderna, por sua vez, não prevê em seu discurso esta mesma
distinção. Parece que o discurso direto do L¹, Quaderna, quer garantir durante
a conversa com os outros dois personagens, que a posição deles (seus
mentores e opositores) deva ser acima da dele próprio, dado que Samuel e
82
Clemente foram – e são – seus mentores intelectuais. Porém isto não é o que
garante a ironia presente na enunciação. Ou seja, por mais que haja uma
situação instalada pelo enunciado quadernesco – e aqui tem-se a soma do Lº
ao L¹ – a ironia deste enunciado é garantida pela enunciação visto que, na
verdade, ironicamente Quaderna (“gênio máximo”) vê-se acima de Samuel &
Clemente; que são consequentemente colocados abaixo dele (Quaderna).
Com isso, o Lº parece querer firmar ao público que as opiniões
quadernescas são as corretas, as adequadas; persuasivamente declaradas a
nós e nos fazendo “acreditar” de que são as melhores e/ou as mais
“corretas”/”adequadas”. Ironicamente falando, é a superação intelectual
quadernesca quando em comparação à intelectualidade de seus mentores.
Para elucidar toda esta discussão proveniente da análise do Fragmento 05, destacamos, ainda, as duas passagens de discurso direto: o discurso direto
do L² (Samuel) e o discurso direto do L³ (Clemente). Na passagem 28, tem-se
que Samuel (L²) dirige-se a Clemente e diz:
Passagem 28 do Fragmento 06
- Ah, era o que faltava, Clemente! Você ouviu? Rebaixarmo-nos desse jeito, dando, servilmente, ao Sr. Instituto, a honra de solicitar-lhe que nos aceite entre seus ilustres membros! Era o que faltava! (28)
(RPR, p. 181)
Clemente L³, concordando com Samuel, responde, de acordo com a
passagem 29:
Passagem 29 do Fragmento 06
- Era o que faltava! - ecoou Clemente com o mesmo riso falso. - Quaderna, se o Instituto nos quer, eles que nos aclamem por unanimidade, sem iniciativa nossa! E veja lá: nós concordaremos ou não, depois de pesar as vantagens e desvantagens que existem em ser membro do Instituto! (29)
(RPR, p. 181)
83
Vale observar nesta passagem 29 que durante o discurso direto do L³,
há a intervenção do Lº, que vai além do uso comum de um verbo dicendi.
Neste caso, além do fato da opção crítico-estilística do Lº pelo dicendi ‘ecoou’
já antecipar a crítica quadernesca em relação à fala de Clemente, tem-se
também que toda a frase de intervenção narrativa dentro do discurso direto –
ecoou Clemente com o mesmo riso falso – mais uma vez corrobora para a
convergência entre as atitudes de Samuel e Clemente, pois que os dois –
segundo o Lº – estão com “aquele riso falso” sobre ele; ou melhor sobre
Quaderna.
Devemos frisar que, mais do que nunca, o verbo ‘ecoou’ representa na
ironia quadernesca do Lº, a falta de criatividade e a reprodução/repetição
daquilo que já foi havia sido pronunciado por Samuel. É mais uma dessas
representações que alinham Samuel e Clemente.
Temos, então, neste caso, Quaderna versus Samuel & Clemente, de
modo que estes dois comungam da mesma ideia ao contraporem as
colocações do protagonista frente às suas visões de mundo, neste caso, em
relação à inscrição para o Instituto.
* * *
Devemos lembrar, no entanto, que neste segundo momento de análise –
“A ironia de Quaderna para com obras clássicas e instituições literárias e
filosóficas” – interessa-nos apontar a ironia embutida nos discursos dos
personagens, que se dá por meio do discurso direto. É, assim, um momento
em que privilegiamos nos próximos fragmentos (7, 8 e 9), as conversas e
diálogos, os quais apresentam o debate acerca:
- da figura de Homero;
- da Filosofia Clementina do Penetral;
- do gênero Epopeia.
E claro, não podemos deixar de considerar a peculiaridade do discurso
direto que é a fidelidade dada à citação do falante/locutor. Segundo Martins
tem-se que:
84
Enquanto no discurso indireto predomina a interpretação, a adaptação, no discurso direto predomina a reprodução fiel, a imitação. No indireto reduz-se a subjetividade do L¹, sendo o Lº o responsável pelo enunciado; no discurso direto o Lº é um mero intermediário que se submete à emotividade do L¹. Diz-se que o discurso direto escrito é objetivo porque cita com fidelidade as próprias palavras de um falante. (MARTINS, 2008, p.196)
3.2.1 O debate acerca da figura de Homero
Dois folhetos à frente daquele em que se encontra a primeira conversa
entre Quaderna, Samuel e Clemente, temos extraído nosso sétimo fragmento
dado no início do Folheto XXIX “O gênio Máximo da Humanidade”:
Fragmento 07
Aquilo também me interessava profundamente, pelo que, sem querer, dei uma
esporeada no vazio de "Pedra Lispe", que deu uma poupa. Reequilibrei-me e falei:
- Como é? E o cargo de "Gênio Máximo da Humanidade" também ainda está
vago? Pergunto, porque, no "Seminário da Paraíba", a gente estudava Retórica num
livro do Doutor Amorim Carvalho, as Postilas de Retórica e Gramática. Esse Doutor
era "Retórico do Imperador Pedro II", de modo que sua palavra não é brincadeira, e
ele afirma que, de todos os Poetas, "o primeiro, no tempo e na glória, é Homero"!
- Discordo inteiramente, porque está absolutamente errado! - disse Clemente. - Essa ideia da autoria individual das obras é reacionária e está ultrapassada! Hoje, está provado que Homero nunca existiu! Os dois poemas que são a "obra da raça grega" foram compostos aos poucos, pelo Povo, e reunidos depois pelos eruditos! (30)
- A autoria da obra é sempre trabalho de um homem só! - disse Samuel, já se irritando. - Homero não foi o "Gênio Máximo da Humanidade", mas o motivo principal disso foi a vulgaridade, a grosseria que o levou a lançar mão daquelas horríveis histórias populares! (31)
Eu procurei, de novo, desviar a briga. Interrompi:
- Bem, o importante é que já estão demonstradas três teses essenciais!
Primeiro, que o "Gênio da Raça" é um escritor. Segundo, que o cargo de "Gênio da
Raça Brasileira" está ainda vago. E terceiro, que ainda está vago, também, o de
"Gênio Máximo da Humanidade", porque o único candidato apontado até agora,
Homero, além de não existir, era grosseiro e vulgar! Tudo isso constará da nossa ata,
recebendo, assim, o selo oficial e acadêmico que lhe dará certeza! Mas existe ainda
um problema importante: qual deve ser o assunto da Obra nacional da Raça
Brasileira? (RPR, p.191)
85
Aproveitaremos deste Fragmento 07, para a abordagem de dois
aspectos.
São eles:
1. a oposição entre os discursos direto de Samuel (L²) e Clemente (L³);
2. a ironia quadernesca para com a instituição “Homero”.
Desse modo, temos que a passagem 30 em oposição à passagem 31
revela as opiniões contrárias à existência de Homero, porém a crítica a este
personagem da História da Literatura é nítida e feroz de ambos os lados.
Ao dizer que Homero nunca existiu, Clemente já coloca em descrédito
toda a sua figura histórico-literária, ao mesmo tempo em que rebaixa a
qualidade de sua suposta obra. Samuel, por sua vez, em embate contra
Clemente acredita, sim, na existência de Homero, porém o concebe como
sendo uma figura grosseira e vulgar.
Portanto, ao colocarem em descrédito tanto a veracidade do fato de
Homero ter sido um escritor real – sendo a sua existência uma farsa realmente
possível –, bem como desqualificando toda a sua suposta obra revelam a linha
quadernesca dada pela condução do Lº na enunciação no que tange à sua
ironia crítica às instituições, sobretudo àquelas relativas à Literatura, pois que é
por meio dela (Literatura) que ele se pretende – ironicamente – consagrar-se
em uma posição jamais vista na História da humanidade.
3.2.2 O debate acerca da Filosofia Clementina do Penetral (Tratado de Filosofia do Penetral)
Conforme já citada na última linha do folheto anterior, quando do
discurso direto de Clemente, “A Filosofia do Penetral” é o título do Folheto XXX,
cuja preocupação é tratar deste assunto em suas quatro páginas. Extraímos o
primeiro trecho deste folheto, em que Clemente, quando indagado por
Quaderna, explica a este a sua “Filosofia do Penetral”:
86
Fragmento 08
Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia
clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito,
e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que
quer dizer "penetral", hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. (32) Naquele dia, indagado assim,
respondeu:
- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do
penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a
união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do
deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente?
- Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é "o único-amplo"!
Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da
"desconhecença" para a "sabença"?
- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gaviônico de conhecimento
penetrálico, feche os olhos!
- Fechei! - disse eu, obedecendo.
- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
- Em que é que você está pensando?
- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de
catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na
poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
- Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você
pensou?
- É o mundo!
- É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido", aquilo que foi
deferido a você, como "íncola"! É "o insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas
partes: a "confraria da incessância" e "a força da malacacheta", representada, aí no
que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence
ao penetral?
- Não sei não, Clemente, mas pela cara que você está fazendo, parece que
pertence.
- Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no
penetral! Entretanto, para completar "o túdico" você, na sua enumeração do mundo,
87
deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e
que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
- Sei não, Clemente!
- Foi você mesmo, “o faraute”!
- O Faraute não, o Quaderna! - disse eu logo, cioso da minha identidade.
- O Quaderna é um faraute! - insistiu Clemente.
Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
- Epa, Clemente, vá prá lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute
uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
(RPR, p.193)
Se:
Na literatura, são sobretudo os romancistas que se utilizam de expressões dialetais, seja porque lhes ocorrem espontaneamente, seja porque têm a intenção de imprimir a chamada cor local às suas narrativas. (MARTINS, 2008, p.88)
observa-se que na passagem 32, o Lº ao declarar que a linguagem de
Clemente, por vezes, faz uso de “vulgaridades” e “plebeísmos”, parece justificar
a maneira como este personagem irá discursar adiante acerca de sua
explicação sobre o que seja a Filosofia do Penetral.
Vale destacar que tal justificativa quadernesca para com a linguagem
clementina é dada com base nas constatações de Samuel, algo que, inclusive,
torna este personagem presente no contexto deste trecho em que consta o
diálogo travado entre Quaderna e Clemente. Ou seja, por mais que Samuel
não esteja participando da conversa neste momento, sua opinião acerca da
linguagem de Clemente está presente no discurso narrativo do Lº. Para
Martins:
Sendo uma convenção estabelecida, cujas regras precisamos aprender e adotar, a ortografia é exterior à Estilística. Contudo, sempre é possível abrir algumas brechas, aproveitar alguma vacilação no uso, violar de algum modo a norma. (p.64)
Porém, mais do que uma violação possível, Clemente faz questão de
afirmar suas raízes populares durante este seu discurso. Desse modo, ainda
segundo Martins tem-se que:
88
Os regionalismos – permitem a evocação de certos aspectos de determinada parte do País, produzindo efeitos diferentes conforme o ouvinte ou leitor seja ou não dessa região. Se for, o regionalismo, por comum e natural, pode passar despercebido; caso ele esteja distante do seu torrão, ouvindo a expressão aprendida na infância, poderá ela despertar-lhe várias reminiscências. Se o ouvinte-leitor não foi da região, ouvindo a expressão que não lhe é habitual, sentirá o sabor de algo pitoresco ou exótico. (2008, p.87)
É realmente cômica a maneira como a linguagem clementina é usada
para “dar conta” de uma explicação um tanto quanto mais “adequada” possível
para descrever a Quaderna o que seja essa filosofia. Torna-se engraçado,
então, todo o conjunto de explicação desta filosofia, em se considerando cada
uma das palavras e expressões da oralidade e de ordem “vulgar” utilizadas por
este personagem.
Ao longo de todo o Fragmento 08, são inúmeras estas palavras e
expressões, dentre as quais podemos destacar: de lascar; rodopelo; o torvo
torvelim; subjunção da relápsia; "desconhecença"; "sabença"; processo
gaviônico de conhecimento penetrálico; "o côisico"; "confraria da incessância";
"o túdico". E, embora o Lº nos adiante que o discurso de Clemente se vale
muitas vezes de “vulgarismos” e “plebeísmos”, poderíamos pensar em
aprofundar nossa pesquisa em uma verificação, a qual indicasse com mais
precisão se tais expressões clementinas seriam arcaísmos ou regionalismos,
quem sabe. Porém tal averiguação não será aqui realizada. O que podemos
considerar é que tais “vulgarismos” e “plebeísmos”, em especial aqueles
identificados pelo Lº, por meio do uso das aspas, são termos dentro de um
grupo de vocábulos que estão fora de nossos dicionários. Levaremos, pois, em
consideração apenas o caráter de ordem neológica presente nestes termos. Ao
tratar da “Aceitabilidade do neologismo” em Léxico, produção e criatividade –
processos do neologismo, Maria Aparecida Barbosa afirma que:
Numa primeira etapa, os membros de um grupo tomam conhecimento dessa produção, depois eles mesmos começam a empregá-las e, assim, vai-se passando a sua difusão. [...] É no meio social que se processa o julgamento da aceitabilidade, e isso depende não apenas da vontade de cada falante, como também de um consenso social e cultural, que populariza ou faz rejeitar certas novidades. Uma das primeiras condições para que elas sejam aceitas é, pois, o seu emprego por vários locutores. A repetição do emprego do neologismo e o sentimento de que é compatível com a língua, acabam por impô-lo. (BARBOSA, 1981, p. 144)
89
Isto posto, por meio dos discursos presentes no RPR, tem-se que o
Locutor Empírico, Suassuna, parece revelar a oralidade do Sertão; e mesmo
que tais expressões não fossem possíveis fora da ficção suassuniana, essa foi
uma maneira deste autor em retratar a cultura popular por meio de sua
oralidade. Eis que tais termos poderiam ser classificados como neologismos
possíveis de locução – mesmo que nunca tivessem sido pronunciados no
mundo real/empírico – uma vez que fazem uso de sufixos justapostos a
palavras já existentes em nossa língua.
Para o caso especifico dos termos “desconhecença” e “sabença”, tem-se
que:
A substituição de um sufixo, já normalmente agregado a um lexema, por outro pode servir a um fim humorístico ou também lírico, o que tem sido um procedimento muito frequente nos autores modernos. (MARTINS, 2008, p. 117)
É, portanto, o viés humorístico, neste caso. Se considerarmos que o
vocábulo ‘desconhecimento’ foi substituído pelo não dicionarizado termo
“desconhecença”, e que sabedoria, por sua vez, o foi por “sabença”,
observaremos os interesses suassunianos. Ou seja – para além dos interesses
discursivos dentro da ficção – fora dela (ficção), constata-se o interesse do
Locutor Empírico Suassuna em oportunizar a divulgação dessas palavras que
podem ser, ou não, atualmente utilizadas pelo povo sertanejo em sua
oralidade.
Dessa maneira, o estilo suassuniano vai sendo identificado, ao mesmo
tempo em que se observam tais ocorrências de ordem neológica. Lembrando
que a união entre a cultura erudita e a popular faz parte das preocupações de
Suassuna, tal união é revelada também por meio da linguagem sertaneja; a
qual não poderia, claro, faltar da obra suassuniana, neste caso do RPR.
Quanto ao uso – ou não – das aspas, mais uma vez, devemos
considerar que ela tem relação com a responsabilidade do discurso, tal como já
discutido em análises anteriores. Ou seja, o fato de uma palavra se apresentar
com aspas, embora ilustre e corrobore a linha de pensamento do discurso
proferido pelo falante/locutor – neste caso do L³, Clemente – na verdade retira-
90
lhe a responsabilidade, deixando o cargo da “vulgaridade”/”plebeísmo” das
palavras/expressões utilizadas por outrem, a saber: o povo. O povo é, assim, o
responsável pelas expressões que se seguem em aspas.
* * *
É, porém, da voz do personagem Quaderna (L¹), em seu discurso direto,
que saem as palavras mais vulgares de todas as presentes no Fragmento 08.
O uso de dois termos de ordem sexual – ‘trepando’; ‘porra’ – vão além
da vulgaridade própria da oralidade, beirando ao chulo, visto que Quaderna –
ao discordar de Clemente, na verdade pensando que ele pudesse estar usando
de alguma safadeza – quer atacá-lo, mas isso não chega exatamente a ser um
insulto propriamente dito a seu oponente.
Cumpre-nos destacar que o uso desses dois termos chulos poderiam ser
analisados à luz dos estudos de Bakhtin (2010) tratados em Cultura na Idade
Média e no Renascimento, tal como o fez este estudioso ao analisar a obra de
Rabelais
Se Rabelais é o mais difícil dos autores clássicos, é porque exige, para ser compreendido a reformulação radical de todas as concepções artísticas e ideológicas, a capacidade de desfazer-se de muitas exigências do gosto literário profundamente arraigadas, a revisão de uma infinidade de noções e, sobretudo, uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular que têm sido tão pouco e tão superficialmente explorada. (BAKHTIN, 2010, p.03)
Por mais que os estudos de Bakhtin tenham sido abordados pelo caráter
escatológico – e não especificamente pelo caráter de ordem sexual – temos a
característica popular relativa à comicidade que é o que ocorre em inúmeras
passagens do RPR e, então, pensamos que esta associação deva colaborar
com nossas observações.
3.2.3 O debate acerca do gênero Epopeia
Dando sequência ao Folheto XXX “A Filosofia do Penetral”,
91
Fragmento 09
- Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? - perguntei. - Em
verso ou em prosa?
- A meu ver, em prosa! - disse Clemente. - E é assunto decidido, porque o
filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses
intelectuais e emocionais da humanidade"!
Samuel discordou:
- Como é que pode ser isso, se todas as "obras das raças" dos Países
estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?
- O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas-nacionais são,
sempre, autores de Epopeias! - tive eu a ingenuidade de dizer.
Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:
- Uma Epopeia! Era o que faltava! - zombou Samuel. - Vá ver que Quaderna
anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será
sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que ele andou metido? Não se meta nisso
não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias de heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando golpes em cima de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo! (33)
Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
- Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopeias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopeia foi substituída pelo Romance! (34)
(RPR, p.196)
Nesta conversa (Fragmento 09) entre os personagens Clemente (L²) e
Samuel (L³), acompanhada de Quaderna (L¹) pode-se observar o embate
ideológico, o qual opõe os dois primeiros. E, na sua condição de Lº, Quaderna,
mais uma vez – e ironicamente – coloca os dois oponentes em situação
convergente, o que os torna unidos para se posicionarem contrários às ideias
quadernescas. Desenha-se, novamente, portanto, o embate: Quaderna versus
Samuel e Clemente.
Embora inicialmente tenhamos um conflito ideológico entre Clemente
(L²) e Samuel (L³) quanto ao gênero da redação da Obra da raça brasileira –
92
pois que Clemente é adepto do texto em prosa, enquanto Samuel prefere em
versos – um pouco mais adiante os dois estarão unidos e alinhados para
debocharem do protagonista.
Eis então que Quaderna, na sua condição de L¹, após expressar sua
opinião a seus oponentes Samuel e Clemente, o mesmo Quaderna, porém,
agora, na condição de Lº, declara que os dois [Samuel e Clemente]
começaram a rir ao mesmo tempo. Para a identificação deste deboche com
que estes dois personagens se dirigem a Quaderna, temos, ainda, a afirmação
de Lº, zombou Samuel, em que novamente aproveita-se de sua intervenção
narrativa para marcar a situação em que se encontra, colocando-se –
ironicamente – como vítima de seus mentores.
Ao irem contra a Epopeia sugerida por Quaderna, ambos opositores
deste personagem se colocam radicalmente críticos em relação a esse gênero,
de modo a depreciá-lo, mesmo que ele seja um gênero genuinamente
constituído como um clássico já consagrado. E é neste sentido que se constitui
a ironia; ou seja, a possibilidade de debochar de um gênero consagrado que é
a Epopeia. As passagens 33 e 34 apresentam termos que desvalorizam a
Epopeia. Para tanto, podemos destacar as expressões: heróis cabeludos e
cabreiros fedorentos e cavalos empastados de suor e poeira, para a passagem 33. Já a passagem 34 apresenta a epopeia como superada e obscurantista,
além de apontar que ela de modo lapidar foi substituída pelo Romance – o
termo “lapidar”, aqui, remete à ideia de que a Epopeia está ultrapassada, ao
mesmo tempo em que o Romance é seu melhor “descendente”.
3.3 A ironia de Quaderna para com demais instituições: o “Duelo”, a “Vida Casta”, a “Monarquia”, a “Igreja” e a “Língua Portuguesa”
Conforme já apresentado no Fragmento 03, o Lº, Quaderna, inicia sua
ironia para com as instituições já nas primeiras páginas do RPR, quando
justifica/explica para quem se dirige seu discurso, ou seja, quando declara qual
é o seu público alvo. E vale lembrar que, neste início do Romance, ele critica e
subverte as seguintes instituições:
93
- Supremo Tribunal de magistrados e soldados;
- Academia Brasileira de Letras;
- Esposa (mulher)/Família.
Porém são incontáveis os trechos subsequentes, nos quais a ironia
quadernesca para com instituições se faz presente. Além da permanência de
uma ironia frente à Academia Brasileira de Letras, quando se trata da
Academia de Letras dos Emparedados, outras tantas instituições são vítimas
da ironia que se seguem ao longo da narrativa, dentre as quais, destacamos:
- o Duelo (Folheto XLII);
- a “Vida Casta” (Folhetos XLIII e LXVIII);
- a Monarquia e a Igreja (Folheto LXV);
- a Língua Portuguesa (Folhetos LI, LXII e LXXV).
3.3.1 O “Duelo” e a ironia no discurso do Lº
Considerando as palavras de Brait:
Em meios aos aspectos que provocam as sérias divergências existentes entre os diversos grupos de pesquisadores estão as diferenças ou semelhanças que abrangem termos como ironia, sátira, humor, cômico, paródia, riso e outros tantos constantemente invocados, mesmo nos estudos que se propõem a tratar especificamente da ironia. Não é preciso dizer que [...] é necessário que o estudioso se coloque numa determinada posição, num espaço teórico definido. (2008, p.73)
e embora não seja nosso foco relacionar diretamente o efeito irônico a seus
demais efeitos associados – humor, comicidade, sarcasmo, deboche, entre
outros –, devemos levar em conta que em determinados momentos o efeito
humorístico faz parte das passagens do RPR.
A fim de elucidar mais uma dessas passagens, portanto, optamos por
aquela que contempla a ironia quadernesca em comunhão ao efeito
humorístico oriundo da escolha lexical garantida pelo estilo suassuniano.
94
Desse modo identificamos um fragmento que possui o vocábulo “penico”
(igualmente chamado de “cuba”) que aparece no último parágrafo do Folheto
XLII “O Duelo”, quando de sua associação a uma coroa:
Fragmento 10
O mais elegante, porém, era, sem dúvida, Samuel. É que o Professor
Clemente ia de manto mas de cabeça descoberta. E o outro, com o penico (35) à
guisa de elmo, mitra ou coroa imperial, com seu manto Azul com Cruz de Ouro às
costas, apresentava, de fato, um perfil régio e heróico, envolvido radiosamente pela
deslumbrante luz do ardente sol sertanejo.
(RPR, p.302)
Tal Fragmento 10 é o trecho final do referido folheto, cujo acontecimento
principal é o evento (duelo) travado entre Samuel e Clemente, motivados
ardilosamente por Quaderna. Ironicamente é um duelo “às avessas” cujo
vencido não é morto e sim coroado.
Temos que o objeto penico, onde são depositados os excrementos das
pessoas que o utilizam, quando colocado na cabeça do personagem Samuel
passa ironicamente a constituir a imagem de uma coroa. E devemos
considerar, no entanto, que antes de sua utilização como instrumento de
coroação, o mesmo objeto penico foi utilizado como arma para o referido duelo.
A ilustração que representa este evento aponta muito bem isso: Samuel versus
Clemente, cada um sobre seu cavalo e erguendo sua arma, ou melhor,
erguendo seu penico.
Tamanha importância deste evento “duelo” na composição do romance,
sua representação se faz imortalizada na ilustração que compõe a capa do
RPR desde a sua 8ª edição. Lembrando que é deveras expressiva a
simbologia que o Duelo pode representar, não apenas o embate entre Samuel
e Clemente está em cena, mas, também, todo e qualquer caráter maniqueísta
a eles relacionado.
Segundo I. Santos (1999):
95
À esquerda está o homem branco e à direita, o canhoto, o sinistro, o homem negro. Como a obra carrega marcas profundas de uma simbologia cristã, há uma inversão, o estabelecimento de um discurso irônico e satírico ao se colocar à direita o negro e à esquerda o branco. A instauração dessa antítese pelas imagens conclama nossa memória discursiva para o entendimento, para a instauração do sentido da enunciação. Remete à dualidade Barroca. Se na simbologia cristã à direita fica o Bem e à esquerda fica o Mal, o sinistro, o canhoto, então isso constituiu uma polifonia, os muitos discursos, as muitas vozes evocadas para significar a imagem, por meio do discurso cristão, religioso, político, filosófico etc. Essa antítese não se restringe à esfera da religiosidade, mas a todos os discursos que podem ser levantados dessa representação emblemática. (p.118)
Dessa maneira, este Fragmento 10 no qual o Lº descreve a cena final
do duelo travado entre Samuel e Clemente, mais uma vez apresenta o lexema
penico (passagem 35) que se faz presente desde o início do referido folheto.
Todo ele, Folheto XLII, caracteriza-se na desconstrução do que seria um duelo
típico medieval, subvertendo tudo aquilo que compete ao duelo, desde sua
indumentária e o trato aos cavalos, até o compromisso heroico de seus atores,
uma vez que a sabotagem promovida por Quaderna faz parte, ainda, daquilo
que poderíamos denominar de um “ritual quadernesco”.
Eis que, em um duelo sem mortes, são as trapalhadas e discursos
caricatos de seus personagens participantes que garantem o efeito humorístico
para além da ironia. Transgredindo as possibilidades de um duelo e
subvertendo a coroação de um momento tão solene revelam, em
consequência, a crítica e o estilo suassunianos.
Diante de tal contexto, o penico, por se tratar de um objeto relativo à
ordem escatológica, exerce uma importante função na promoção do efeito
humorístico e respectiva ironia, apresentando-se como uma espécie de
protagonista da ironia quadernesca. Ou seja, ironicamente o instrumento
penico utilizado como arma, cumpriu esse seu papel. De certa maneira
apunhalado por esta arma (penico) rival, um dos duelistas – Samuel, no caso –
parece ironicamente atingido; embora ele não se veja ferido, mas sim coroado.
Além disso, ironicamente vivo, o derrotado declara em determinado trecho do
folheto, preferir a morte àquela situação jocosa.
96
3.3.2 A “Vida Casta” e a ironia nos discursos de Quaderna Narrador (Lº) e Quaderna Personagem (L¹)
Dando sequência à comunhão entre ironia e humor, não podíamos
deixar de citar a instituição “vida casta”, dado que Quaderna, na condição de
narrador (Lº), inicialmente apresenta a personagem Dona Carmen Gutierrez
Torres Martins, mãe de Margarida e “Presidente-perpétuda” d’“As Virtuosas
Damas do Cálice Sagrado de Taperoá”, para, posteriormente, “gastar” toda a
sua ironia para com a descrição da mesma, na condição de personagem (L¹)
depoente. É como se uma espécie de efeito em que suspende a intenção
irônica do primeiro enunciado, possa ser recuperado conforme a ironia mais
explícita observada no segundo (enunciado). Vejamos a seguir o fragmento do
discurso do Lº, presente no Folheto XLIII:
Fragmento 11
Era a ala feminina da "Ordem dos Cavaleiros da Esfera Armilar", e chama-se "As
Virtuosas Damas do Cálice Sagrado de Taperoá". Entretanto, é mais conhecida por
seu endereço telegráfico e chamada abreviadamente "A Vidacasta" (36), nome que
"sendo mais fácil de gravar, resume ainda por cima um programa de moral e religião,
vida casta", como gosta de explicar Dona Carmem Gutierrez Torres Martins, mãe de
Margarida, mulher intelectual e Presidenta-perpétua da organização.
(RPR, p.304)
Em comparação, agora, vejamos, por sua vez, o discurso de L¹, no
Folheto LXVIII:
Fragmento 12
Era magra, de pernas finas e arqueadas. Usava uma franja que lhe vinha até os olhos.
O resto dos cabelos, pretos e estirados, cortados à nazarena, ladeavam-lhe o rosto
formando dois arcos negros que, partindo do alto da cabeça - onde se repartiam por
uma risca - vinham até o meio das bochechas. Tinha o rosto e todo o corpo finos e
magros, os olhos grandes, pretos e meio aboticados. E, como os braços eram,
também, finos e arqueados, ladeando o busto magro, Dom Eusébio Monturo, homem
de língua solta e irreverente, dizia que o enorme medalhão que Dona Carmem fazia
pender sempre do pescoço de uma longa corrente de prata destinava-se a indicar às
97
pessoas se ela estava de frente ou de costas. Eusébio costumava acrescentar:
"Aquela mulher é toda entre parênteses! Tem a cara entre parênteses, por causa do cabelo. Tem o corpo entre parênteses, por causa dos braços de macaco raquítico. E, por causa das pernas finas, cabeludas e meio arqueadas para dentro, tem, até, a perseguida entre parênteses!" (37)
(RPR, p.510)
Algo que aproveitamos para chamar atenção, neste momento, é a
peculiaridade do discurso direto de Quaderna, o qual se encontra repleto de
outros citações. Ou seja, durante toda a enunciação narrativa, há determinados
trechos de discurso direto que se encontram dentro do próprio discurso direto
de Quaderna. Um exemplo é a passagem 37 cujo autor da citação é Dom
Eusébio Monturo.
Se pudéssemos representar organizacionalmente tal peculiaridade,
poderíamos dizer que no Fragmento 12 tem-se:
1º) uma narrativa “global” (NG) que é a própria história do RPR (Lº =
Quaderna Narrador);
2º) o discurso direto (DD) de Quaderna (Personagem Protagonista)
dentro dessa narrativa “global”;
3º) outra narrativa “menor” (NM) dentro do discurso direto de Quaderna;
e, finalmente
4º) o discurso direto (DD) de Dom Eusébio dentro uma narrativa “menor”
de Quaderna (Personagem Protagonista).
Como se fosse: NG < DD de Quaderna < NM < DD de Dom Eusébio
E, neste caso, a pontuação é um elemento fundamental para
representação dessa polifonia. Eis que as aspas garantem o discurso direto de
Dom Eusébio, que se encontra dentro do discurso direto de Quaderna, que, por
sua vez, é garantido pelo travessão colocado no início de sua longa fala, a qual
termina com o Fragmento 12.
Retomando, pois, a ironia, ressaltamos que à maneira do que já havia
sido feito por Quaderna Narrador (Lº), novamente agora, Quaderna
98
Personagem (L¹) se utiliza de uma gradação ao descrever a personagem Dona
Carmen, sem que se responsabilize da descrição, a mais sarcástica possível. A
propósito, ainda que seja por meio da voz do L¹, Quaderna, intensifica-se a
ironia se considerarmos que a passagem 37 tenha sido proferida no discurso
direto de um componente da Igreja Católica – um Dom, no caso. Sendo assim,
não apenas o vocábulo “perseguida” tem seus próprios efeitos expressivos,
mas o próprio fato de quem o proferiu é algo estritamente irônico. E
dessacralizando a instituição “vida casta” quer seja por meio da descrição de
uma beata, quer seja por meio de um casto componente da Igreja Católica, o
Lº mais uma vez representa a feroz voz de seu criador Suassuna.
3.3.3 A “Monarquia”, a “Igreja (Católica)” e a ironia no discurso de Quaderna personagem (L¹)
Na mesma linha crítica descrita acima, podemos apontar – porém,
agora, mais precisamente – um outro fragmento para demonstrar a ironia de
Quaderna para com a Igreja, e também para com a Monarquia, quando do
diálogo entre ele e o Corregedor:
Fragmento 13
- E o senhor, mesmo pensando assim, é monarquista?
- Sou, sim senhor! Sou da Esquerda régia, ou, se Vossa Excelência
prefere, um Monarquista da Esquerda!
- Por que essa contradição?
- Porque acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, Brasões, desfiles a cavalo, bandeiras, punhais, Cavaleiros e Princesas, como no folheto de Carlos Magno e os Doze Pares de França! (38) É por isso que meu parente Dom Silvestre José dos Santos foi Rei do
Brasil, na Serra do Rodeador, em Pernambuco, com o nome de Dom Silvestre
I, o Enviado. Na Pedra do Reino, estiveram juntos, reinando, os dois ramos da
família, os Vieira-dos-Santos e os Ferreira-Quadernas. [...] Mas os dois ramos
terminaram se unificando, porque meu bisavô casou-se com as duas irmãs,
primas dele, a Rainha Josefa o a Princesa Isabel!
99
- Casou-se com as duas irmãs de uma vez?
- Sr. Corregedor, Vossa Excelência já deve ter notado que o Catolicismo Sertanejo tem suas leis e seus mandamentos próprios! A poligamia, o pensamento socialista-sertanejo e monárquico, a devora dos proprietários por Cachorros degolados e ressuscitados como Dragões eram alguns dos itens do nosso credo da Pedra do Reino! (39)
(RPR, p.462)
Em relação à ironia quadernesca dispensada para com a instituição
Monarquia, podemos observar que única e exclusivamente o fato de uni-la ao
comunismo – representado pela palavra “Esquerda” – seria o suficiente para
comprovar a crítica suassuniana. No entanto, para além da “não possibilidade”
de tal comunhão, quando questionado pelo Juiz-Corregedor (L²), o L¹ reforça
mais significativamente sua ironia.
Desta vez, o fato de L¹ não possuir argumentos contundentes que
pudessem revelar os motivos pelos quais ele tenha criado a Monarquia da
Esquerda, é algo que nos chama atenção. Ou seja, a maneira trivial como trata
do assunto, desconsiderando a não possibilidade da união entre os regimes, e
também desconsiderando a importância de uma argumentação, o L¹
praticamente banaliza a indumentária e adereços monárquicos, entre outros,
conforme a Passagem 38, na tentativa de elucidar ao L² o porquê de uma
Monarquia da Esquerda. O fato é que a argumentação para esse caso não
acontece e ele (L¹) apenas alcança o que lhe é peculiar: a ironia. Poderíamos,
inclusive, apontar o tom debochado com que o L¹ faz tudo isso. É como se
apenas os ritos e símbolos monárquicos fossem suficientes para sustentar a
força de um regime; quiçá, ainda, em comunhão com um outro (regime);
comunismo, no caso. Porém no Fragmento 13, o L¹ não transgride apenas
contra o regime monárquico, mas igualmente o faz contra as “leis” da Igreja.
Quanto à ironia sofrida mais uma vez pelo Catolicismo, na passagem 39, o L¹ brevemente enumera as leis e os mandamentos daquilo que ele chama
de “Catolicismo Sertanejo”. Devemos lembrar, entretanto, que em outros
momentos da história, o próprio Quaderna, em sua condição de Lº, já havia
100
garantido em sua narração, como se apresenta o Catolicismo Sertanejo, criado
por ele, cujo Diabo se faz pertencente à Santíssima Trindade e o Espírito Santo
é representado por um gavião.
Nesta passagem 39, dentre todas as ações nela contidas, inicialmente
parece-nos que a poligamia merecesse um destaque maior no discurso
quadernesco, uma vez que foi o tema gerador do questionamento do L²,
posterior ao L¹ contar que seu bisavô casou com duas irmãs de uma só vez.
Por outro lado, percebemos a genialidade do L¹ em, intencionalmente, querer
traduzir a leveza com que encara o que seriam as transgressões católicas.
Para tanto, estilisticamente, ele faz uso da enumeração das ações relativas ao
Catolicismo Sertanejo e, ironicamente, mais uma vez, atinge seu objetivo, qual
seja: tornar trivial toda a situação e, além disso, descartar todas as “não
possibilidades”.
Mais uma vez o tratamento trivial do L² dado em sua resposta, não
considera a relevância do fato: eis a ironia alcançada. A partir do momento em
que o L² traduz a leveza com que considera tudo muito normal, além de tudo
isso, nos é transmitido a sua ironia. É como se, propositalmente, o L² criasse a
leveza em seu discurso para revelar suas transgressões.
3.3.4 A “Língua Portuguesa” e a ironia nos discursos dos personagens Quaderna (L¹) e Juiz-Corregedor (L²)
Finalizando o levantamento das instituições “vitimadas” pela ironia
quadernesca, desta vez a instituição “Língua Portuguesa” será o nosso
enfoque, conforme fragmentos extraídos dos Folhetos LI e LXXV. No entanto,
cumpre-nos adiantar que, para além da ironia quadernesca, os enunciados
proferidos na voz do L² (Juiz-Corregedor) também, agora, apresentarão um tom
irônico, na medida em que realiza seus questionamentos linguísticos dirigidos
ao L¹ (Quaderna).
No primeiro Fragmento (14), tem-se o questionamento do Juiz-
Corregedor (L²) ao “falar errado” de Quaderna (L¹):
101
Fragmento 14
- Sr. Quaderna, tenho que fazer, agora, uma observação contrária à de ainda
há pouco! Eu disse que às vezes o senhor dava para falar difícil: agora, devo
observar que, para um Epopeieta, o senhor de vez em quando dá para falar errado! Agora mesmo, o senhor disse "soterranho", em vez de "subterrâneo", e disse, também, duas vezes, "Prinspo" em vez de "Príncipe"! (40)
- Não é erro não, Excelência, é o Português pardo, leopardo, garranchento e pedregoso da Catinga (41), como diz o genial Gustavo Barroso!
Quando falo de Dom Sinésio, o Alumioso, eu prefiro dizer "Prinspo" porque é assim
que escrevia o genial E. P. Almeida, guerrilheiro do "Império do Belo Monte de
Canudos", na carta que foi encontrada em seu bornal de balas, em 1897!
(RPR, p. 369)
Ao quebrar o ritmo do diálogo, caracterizado pela narração em discurso
direto do L¹ (Quaderna), a qual se caracteriza por ser repleta de aventuras
genealógicas, percebe-se que o L², exclama o destacado na passagem 40,
abandonando/interrompendo os questionamentos que tangem ao inquérito,
para chamar a atenção do L¹ quanto ao seu uso “indevido” da língua
portuguesa. Ou seja, o L² aponta o “erro” linguístico do indiciado, o que parece,
nesse caso, um questionamento motivado por uma atmosfera irônica, pondo
em xeque as qualidades de um Epopeieta, pois que – segundo a visão deste L²
– há a estrita necessidade de um “falar correto” pelo L¹, sendo ele um escritor,
um Epopeita.
Por outro lado, a subversão da língua portuguesa igualmente acontece,
e – tal como ocorrido com as demais instituições já apresentadas neste
trabalho – é nítida a ironia quadernesca a qual representa a crítica e o estilo de
seu Locutor Empírico, Suassuna, a partir do momento em que transgride a
norma padrão e inova a mesma (língua portuguesa) por meio de uma
linguagem que acolhe determinadas peculiaridades da oralidade, oriundas
principalmente da região sertaneja do Brasil. Considerando que a língua escrita
é, por sua natureza, distinta da língua falada, emprega palavras diferentes, de
caráter mais antiquado, quando se trata de estilo narrativo (LAPA, 1973, p. 53),
para dentro da obra ficcional narrativa, e dando ênfase à expressividade das
102
palavras lexicais, quando estas são identificadas como sendo desatualizadas
(arcaísmos, por exemplo), tem-se que:
A expressão, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontramos em livros velhos. Trata-se pois de um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprego choca-nos, evocando logo em nós um ambiente conservador e certa afetação literária. É a isto que se chama o “efeito por evocação” das palavras. (LAPA, 1973, p.32)
Para frisar a realização do jogo verbo-irônico suassuniano, aproveitamos
deste momento para reafirmar que o sentido arcaico de uma palavra, por ser
coisa velha e pouca usada, tem certa graça cômica (LAPA, 1973, p.50) e, por
isso, é que Suassuna o emprega, conforme a utilização dos vocábulos
soterranho e prinspo (passagem 40). O uso das palavras garranchento e
pedregoso, na passagem 41, por sua vez, pode ser caracterizado, segundo
Lapa (1973), como provincianismo, uma vez que:
Quando falamos em “povo”, não podemos razoavelmente circunscrever este termo à população que habita nas cidades, onde se desenvolvem, por via de regra, a gíria e o calão. O povo das aldeias também fala a sua língua, que, na escolha do vocabulário, na alteração fonética da palavra e na construção da frase, se afasta não pouco do idioma da cidade. Os dicionários correntes não trazem todos esses termos e locuções; mas os escritores mais impregnados de vida regional colhem às mãos-cheias nessa abundante e pitoresca seara de modismos provincianos. (p.58)
Nesta passagem 41, ao observarmos a resposta do L¹, as justificativas
apresentadas finalmente parecem querer explicar o uso dessa peculiar
linguagem, visto que, posterior a tantas outras passagens de uso da oralidade
por Quaderna no RPR, a partir desse momento (Fragmento 14, passagem 41), o L¹ chama a atenção de que prinspo e soterranho, neste caso, não são
“erros”, nem tampouco escolhas “indevidas”. Verifica-se, portanto, que tais
explicações parecem revelar a voz de um Locutor Empírico (o escritor Ariano
Suassuna) preocupado em ofertar justificativas ao mesmo tempo em que
favorece as “reflexões” linguísticas. Tem-se, pois, a explicação das
possibilidades linguísticas para a mescla da linguagem popular com a erudita.
Estendendo ao que seriam os interesses desse Locutor Empírico, observa-se,
além disso, que para o que até então havia sido apresentado sem qualquer
“pudor”, nesse Fragmento 14, e a partir dele, Suassuna nos revela o que é
103
necessário considerar: a valorização da linguagem popular. Também se
observa que tais discussões/diálogos entre Quaderna e o Juiz-Corregedor
podem espelhar o jogo entre enunciador e enunciatário travado entre narrador
e leitor. Parece um metadiscurso que reflete esse jogo, ou seja, nesse
momento da narrativa, em relação à linguagem – que o tempo todo pode ter
sido questionada/repensada pelo leitor – Quaderna afirma que essas escolhas
linguísticas, ao contrário de não serem bem pensadas, foram na verdade
muitíssimo bem pensadas por ele. Sendo assim, considera-se que durante toda
a narrativa, as escolhas lexicais de Suassuna podem despertar um discurso
metalinguístico e reflexivo.
* * *
A fim de comprovarmos que as peculiaridades do uso da língua
portuguesa pelo L¹, Quaderna, seja algo que realmente perturbe o L², Juiz-
Corregedor, apresentamos mais um fragmento antes de encerrarmos esta
parte de nosso capítulo de análise:
Fragmento 15
- Sr. Quaderna, quando fizer a sua Epopeia, tenha cuidado com os tratamentos. Agora mesmo, aí na frase de Lino, o senhor usou um tratamento todo solene no começo, depois passou para "você" e finalmente para "tu"! Cuidado, porque isso é um descuido grave, num Epopeieta! (42)
- Não senhor, não foi descuido não, o senhor está enganado! Os pronomes de tratamento que venho empregando são escolhidos com todo cuidado! (43) Para que o senhor entenda bem certas particularidades que Lino
usava no seu tratamento para comigo, é preciso que eu lhe explique certas coisas.
Primeiro, eu tinha procurado ensinar aos Cavaleiros da Ordem da Pedra do Reino
algumas fórmulas cerimoniosas tiradas dos romances de José de Alencar e de
Zeferino Galvão, este um genial escritor pernambucano e sertanejo, da Vila de
Pesqueira, autor de O Mosteiro de Nîmes e de Heloísa d'Arlemont. Aquele "Dom
Pedro Dinis Quaderna, meu Rei e meu Senhor" que Lino me dera no começo vinha
daí. Mas, ao mesmo tempo, meus familiares me tratavam por Dinis. Ora, Lino tinha
sido meu companheiro na "Onça Malhada" e meu colega na "Escola de Cantoria" de
João Melchíades, de modo que, ora usava o tom cerimonioso e régio, ora o familiar.
Aliás, essa mistura de tratamentos era e é tradição da nossa Casa (44). [...]
(RPR, p. 582)
104
Neste Fragmento 15, por sua vez, o questionamento do L² em relação à
linguagem de L¹, dá-se na crítica ao uso dos pronomes de tratamento. E tal
como já ocorrido no Fragmento 14, novamente neste Fragmento 15, o L²
pede para que o L¹ prossiga narrando os acontecimentos, sem que se
estendam e se aprofundam as questões linguísticas. Nesse sentido podemos
dizer que a ironia por si só se ocupa da necessidade de reflexão acerca da
língua; delicadamente e com uma de suas (da ironia) principais características,
que é a concisão do texto.
Eis que, em tão poucas linhas, a atmosfera irônica de reflexão sobre a
língua sustenta o estilo suassuniano. Isso é o que acontece nos enunciados.
Por outro lado, na enunciação como um todo – que é o próprio RPR por
completo, digamos assim – quem sabe a ironia esteja, além disso, permeando
todo o momento de embate linguístico, inclusive na possibilidade do
distanciamento entre um Epopeieta e sua respectiva linguagem – que é posta
em questionamento pela segunda vez.
Na passagem 42 temos um L² inconformado com a linguagem de um
escritor, de um Epopeieta. E, mais uma vez, na maior tranquilidade,
entendemos que o L¹ externa ser a coisa mais normal do mundo, trazendo
seus próprios critérios com os quais o L² deve passar a entender, conforme os
motivos plausíveis apresentados pelo L¹ em toda a sua resposta iniciada pela
passagem 43 e terminada pela passagem 44. Nessa resposta exibida entre as
passagens 43 e 44, ainda devemos salientar, a fala-resumo, que revela a
comunhão entre o clássico e o popular, representados pela tradição da
linguagem oral familiar utilizada concomitantemente com a linguagem mais
rebuscada.
Na passagem 44 notamos o uso de maiúsculas pelo L¹ o que é um
aspecto recorrente na linguagem quadernesca, neste caso tem-se o emprego
de maiúscula na composição da palavra “Casa”. Segundo Martins,
O emprego das maiúsculas, fora dos casos regulamentados pelo Acordo Ortográfico, pode sugerir respeito, admiração, sentimento religioso ou cívico, acatamento da autoridade (Pai, Mestre, Sacerdote, Pátria, Presidente, Senador, etc.). [...] A maiúscula pode ainda sugerir uma personificação, uma idealização, ou a intenção de uma profundeza metafísica. (2008, p.65)
105
E, em relação a este aspecto, devemos lembrar, neste momento, que o
emprego de maiúsculas em toda a obra suassuniana vem sendo constituído no
estilo deste escritor desde os seus primórdios, pois que, antes mesmo da
publicação do RPR, o proposital emprego estilístico delas (maiúsculas) por este
escritor, esteve sempre presente, consideravelmente, até mesmo em seus
escritos ensaísticos e críticos.
3.4 Quaderna versus Juiz-Corregedor e a ironia sofrida pelo protagonista
Seguindo a linha dos apontamentos relativos não apenas à ironia
quadernesca que se faz presente em toda a enunciação, mas também à ironia
utilizada pelo L² (Juiz-Corregedor), apontaremos, nas próximas duas últimas
análises, os momentos em que o próprio Quaderna identifica a ironia sofrida
por ele, segundo sua própria interpretação, a qual nos é revelada por meio das
intervenções narrativas inseridas pelo Lº (Quaderna Narrador), durante o
diálogo entre o L¹ (Quaderna Personagem) e o L² (Juiz-Corregedor).
Desse modo, lembrando que
Os sinais de pontuação ajudam a reconstituir a entoação que o autor pode ter pretendido para o seu texto [...] Dado o seu valor afetivo, além do exclusivamente lógico, ligado à sintaxe, a pontuação não segue regras absolutas, e varia muito com os escritores, sendo alguns mais pródigos e outros mais econômicos com relação a esses sinais. (MARTINS, 2008, p.62)
dividimos em duas partes, a ironia presente na fala do:
- L², dirigida ao L¹ por meio de colocação exclamativa (Fragmento 16);
- L², dirigida ao L¹ por meio de colocações interrogativas (Fragmentos 17
e 18).
3.4.1 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de colocação exclamativa (Fragmentos 16)
106
Fragmento 16 O Corregedor cortou, com ar incrédulo e irônico (45): - Quer dizer que, na sua opinião, aquele Rapaz-do-Cavalo-Branco era
uma espécie de Anjo de candura, inocente e inofensivo! (46)
- Não, Sr. Corregedor! Um Anjo é uma coisa muito diferente do que as
pessoas pensam! O senhor, não tendo sido discípulo de Samuel e Clemente, não
pode conhecer a tríplice natureza da Onça do Divino, dividida em quatro partes: a
Onça-Pintada, a Onça-Negra, a Onça-Parda e o Gavião-de-Ouro. Ou, em outras
palavras, a Esmeralda, a Granada Negra, o Rubi e o Topázio. Os Anjos, sendo
ligados ao Pai, à Onça Malhada, ao sopro do Sertão - o vento incendiário do Deserto
- e à Sarça Ardente da Pedra Lispe, são seres de fogo, armados de espada e
terrivelmente perigosos!
(RPR, p. 401)
Como já dissemos anteriormente, observa-se em todo o Fragmento 16 a atmosfera irônica que paira sobre o diálogo entre L¹ e L². O que é inegável é
o formato inaugural de intervenção do Lº explicitamente colocando a maneira
irônica no tratamento dirigido pelo L², conforme a passagem 45 em que se
destacam as sucessivas expressões “incrédulo” e “irônico”. É como se elas
(expressões) pudessem resumir a maneira céptica com que o L² se apresentou
a todo o momento, perante o inquérito do L¹. Embora sejam as impressões do
Lº ali apresentadas, devemos observar que sua tal intervenção venha a somar
na gradação a qual aponta para uma desconfiança de L² cada vez maior, se
considerarmos todo o plano da enunciação.
Ainda que o Lº constatasse aquilo que pode ser a verdade,
estilisticamente representados, incredulidade e pontuação, juntos, combinam-
se na constituição da ironia. Ou seja, a associação entre o termo ‘incrédulo’ na
voz do Lº e o ponto de exclamação colocado ao final do discurso do L²
enfatizam a ironia sofrida pelo L¹.
Em relação às expressões empregadas, destacamos a locução adjetiva
‘anjo de candura’, que precede outros dois adjetivos ‘inocente’ e ‘inofensivo’, e
é ironicamente proferida pelo L² ao se referir ao Rapaz-do-Cavalo-Branco.
107
3.4.2 A ironia presente na fala do L², dirigida ao L¹ por meio de colocação interrogativa (fragmento 17 e 18):
Fragmento 17 - O senhor pretende ser o Gênio da Raça Brasileira? (47) - indagou,
irônico, o Corregedor. (48) - De fato, mesmo, já o sou, mas pretendo sê-lo também de direito,
oficialmente declarado pela Academia Brasileira de Letras! Se eu for condenado
neste Processo, mandarei tirar duas cópias de meus depoimentos, mandando uma
para o Supremo Tribunal, como Apelação, e outra para a Academia, a fim de que os
Imortais me deem, oficialmente, o título, nem que seja por levar em conta que eu
criei um gênero literário novo, o "Romance heróico-brasileiro, ibero-aventureiro,
criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor
legendário e de cavalaria épico-sertaneja"!
(RPR, p. 420)
Mais uma vez no Fragmento 17, a intervenção do Lº se faz presente ao
apontar a ironia no discurso do L². Porém o L² marca sua interrogação, o que
reforça sua ironia. E, em mais um fragmento (último) a ser apresentado neste
trabalho, tem-se os mesmo recursos: intervenção do Lº na identificação da
ironia do L² e o modo interrogativo com que L² se coloca frente ao L¹. Vejamos
a seguir:
Fragmento 18
- Pelo comum dos mortais? E o que é o senhor? Algum Iluminado, ou alguma Divindade tapuio-sertaneja, por acaso? (49) - disse o Corregedor,
irônico. (50)
- Eu não chegaria a dizer tanto, por modéstia e humildade cristã! No máximo,
o que me aconteceu foi um decreto insondável da Providência Divina, que não podia
permitir que o "Gênio da Raça Brasileira" fosse inferior, em nada, ao "gênio da raça
grega"! Minha cegueira seria muito parecida com a cegueira poética e profética de
Homero, caso tivesse existido, mesmo, esse mavioso e distinto Poeta, autor das
traduções gregas da Ilíada e da Odisseia - o que digo porque, como Samuel já
provou, o autor, de fato, dos originais brasileiros dessas duas obras foi o genial
Bardo nordestino, Doutor Manoel Odorico Mendes. Acredito, também, que foi mais
108
ou menos no estado de cegueira e iluminação em que me encontro que Ezequiel, o
renomado Poeta judaico-sertanejo de que lhe falei há pouco, teve aquela sua
"visagem do campo de ossos" e aquela outra, precursora da Mitologia Negro-Tapuia,
na qual lhe apareceram umas águias, uns grifos e uns touros, sustentando o trono
do Divino, visagem que eu tive logo o cuidado de assertanejar mais, transformando
as águias em Gaviões, os grifos em cruzamentos de Onça com Seriema, e o leão do
Divino na Onça do Divino!
(RPR, p. 575)
Tal como o emprego do ponto de exclamação no Fragmento 16, nas
duas vezes em que temos o ponto de interrogação nos demais Fragmentos
(17 e 18), observamos a perplexidade com que o depoimento do L¹ causa no
L². E, mesmo que estes pontos sejam apenas a indicação da entonação como
o enunciado foi proferido, eles (pontos) acentuam sobremaneira a ironia dos
discursos, uma vez que são imbuídos de um efeito surpresa, construído e
confirmado a partir da intensidade enunciativa.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura é um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação das relações entre linguagem cotidiana. Ela constitui uma das possibilidades de exploração da língua, como forma criativa e atuante de mobilização de palavras e estruturas linguísticas, apontando para inúmeros fins, para diferentes propósitos. Artisticamente arquitetado, o texto literário é objeto de estudo de diversas vertentes das teorias literárias e linguísticas, as quais têm contribuído para caracterizar a natureza diferenciada das articulações língua-literatura, pontuando as mudanças de acordo com diferentes momentos históricos, povos, línguas, culturas, variantes culturais e linguísticas dentro de um mesmo país. (BRAIT, 2013, p. 41)
Ao nos propormos a estudar a ironia em um corpus proveniente de uma
obra específica da Literatura Brasileira, inúmeras foram as possibilidades de
análise com as quais nos deparamos ao longo do processo, visto que o
Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano
Suassuna, apresentou-se como fonte inesgotável de pesquisa.
Por um lado, o enfoque escolhido aliou a atmosfera irônica presente na
enunciação às ocorrências pontuais identificadas dentro dos enunciados. E
somado a isso, observamos a revelação do estilo suassuniano por meio das
escolhas linguístico-estilísticas dos discursos presentes na narrativa.
Por outro, pudemos salientar diante desses aspectos levantados, a
característica do fazer poético de Suassuna, relativo à valorização da cultura
popular nordestina sertaneja, dado que as raízes e tradições alusivas a ela
(cultura) sempre fizeram parte da obra desse escritor. A exemplo,
aproximadamente sete anos antes da publicação do RPR, ele escreveu:
Não conheço nenhum país além do meu, e, mesmo dentro do Brasil, só posso dizer que conheço verdadeiramente o Nordeste, o sertão nordestino. Pressinto, porém, que aquilo que meu sangue – tão ligado à áspera, seca e pedregosa terra sertaneja – me sopra em relação à arte em geral e ao teatro em particular tem seus equivalentes e suas respostas em outras regiões além do Nordeste e em outros países além do Brasil. (SUASSUNA, 1964, In: SUASSUNA 2008, p.63)
110
Procuramos, pois identificar na enunciação do RPR, a construção de um
discurso irônico realizado por meio das marcas estilísticas as quais refletem as
próprias preocupações e convicções do escritor Suassuna.
* * *
À vista disso, e considerando a importância da obra suassuniana e seu
reconhecimento pela comunidade literária nos últimos anos – desde o final do
século XX –, é que buscamos estabelecer um valor cultural e social para essa
pesquisa. Pretendemos analisar uma obra que se contextualiza no Sertão,
especificamente na região do Cariri (Sertão do Cariri), em meio às mazelas e
misérias sertanejas, identificando no discurso do RPR, um estilo que se revela
irônico. Segundo Micheletti:
O caráter nacionalista que impregna toda a narrativa está presente na expressão de todas as personagens e encontra-se acentuado em três delas: Quaderna, Clemente e Samuel. Três discursos diversos ideologicamente, mas centrados nos destinos da nação, pois há, neles, um traço comum: o desejo de descrever o brilho e a grandeza do Brasil. (MICHELETTI, 2007, p.64)
O RPR promove uma reflexão acerca das contradições e equívocos
relacionados a uma possível discriminação sofrida por essa “gente” – seu falar,
seu vestir, enfim –, sendo o recurso da ironia algo que parece dessacralizar as
convenções e, claro, criticar a sociedade brasileira; por vezes entendida como
uma sociedade hipócrita. Ao explicitar as representações de um povo por meio
de suas tradições, este Romance engrandece a valorização da cultura
sertaneja na medida em que vincula seus costumes e história local, os quais,
por vezes, restringem-se aos limites geográficos dessa região.
Nesse sentido, em especial no discurso do enunciador do RPR,
Quaderna (Lº) – pôde ser observado o sentimento peculiar de uma nação,
sentimento peculiar, este, que revela o sentimento universal próprio de
‘qualquer’ povo – seja o povo do Sertão, o povo brasileiro ou qualquer um povo
de outra região e/ou país por esse mundo afora. Ou seja, por meio de um
espírito regional tragicômico – que nada mais é, portanto, que o próprio espírito
tragicômico nacional e também universal – o discurso irônico quadernesco se
conflui com a ironia suassuniana. Esta ironia suassuniana, por seu turno,
111
desconstrói estereótipos criados pelo senso comum na medida em que nos
apresenta um enunciador (Quaderna) apegado às transgressões sociais, e que
por vezes alia o humor à ironia.
Um exemplo imediato pode ser tirado das diferenças existentes entre riso e cômico [...] se levada em conta a separação feita por vários estudiosos que colocam o riso como um fenômeno fisiológico e o cômico como uma construção de linguagem. Esse é também o caso da ironia, se tomada de um ponto de vista da retórica clássica, lugar em que vai fazer par com outras figuras de linguagem, ou da sátira, se vista como forma teatral. Considerados esses dois pontos de vista como pertinentes, sátira e ironia estarão excluídas de uma mesma série. Aceitando-se a tipologia estabelecida por Denise Jardon (1988), a ironia e a sátira, assim como o humor e a paródia, passam a fazer parte do que ela chama de “tipos de discursos cômicos”, com base numa perspectiva que privilegia a abordagem linguística, bem como o fato de esses quatro tipos de discurso estarem de alguma maneira relacionados ao riso. (BRAIT, 2008, p.73)
Sendo assim, na medida em que este enunciador do RPR vai se
revelando uma espécie de palhaço por detrás de sua ironia, o Locutor
Empírico, Suassuna, promove-nos a partir do discurso quadernesco, momentos
de riso, porém momentos de incômodo com os quais vai deixando sua marca e
“carimbando” seu estilo. Este Locutor Empírico, objetivando tanto o
questionamento quanto o riso, dessacraliza qualquer que seja seu alvo,
revelando, por fim, as mazelas de uma sociedade em cacos que é a sociedade
brasileira.
Defendemos, então, que a ironia suassuniana é um fenômeno que está
presente em toda a enunciação do RPR, uma vez identificado por meio de uma
atmosfera irônica com a qual permeia toda a narrativa, dado que:
Não é de hoje a interação entre enunciação e literatura. Essa relação deve, sem dúvida, figurar entre as mais férteis em termos de produção teórica. Articular os mecanismos de enunciação com a linguagem literária constitui propriamente o objetivo de alguns autores antes estudados e pode ser verificado em trabalhos clássicos como os de Bally, de Jakobson e de Bakhtin. Em todos, percebe-se constante presença do texto literário como objeto de análise. As vozes dos personagens, autores e narradores sempre tiveram lugar na reflexão linguística. (FLORES & TEIXEIRA, 2013, p.89)
E é neste sentido que buscamos associar o fenômeno ironia às palavras
e expressões utilizadas, sobretudo pelo referido enunciador, com as quais
112
associamos, apontamos e analisamos determinadas escolhas linguísticas
identificadas nos discursos que se apresentam no RPR e que sejam
reveladoras de um estilo, na medida em que a narrativa leva o receptor/leitor à
reflexão, de modo a desconstruir estereótipos criados pelo senso comum. À
vista disso pretendemos identificar a ironia conforme a utilização de
determinados trechos que apresentam expressões enquadradas na crítica
suassuniana, ainda que algumas palavras apontadas sejam vocábulos de
impacto – quer por sua origem ‘vulgar’ da oralidade (sua procedência e
também permanência dadas na língua falada), quer por serem, determinadas
vezes, pejorativas e/ou chulas. Sendo assim, a partir de uma seleção de
palavras, expressões e sintagmas apontados por fragmentos que compuseram
nosso corpus, pudemos indicar que além dessas passagens colaborarem na
construção do efeito irônico, do mesmo modo fortalecem a identificação da
sociedade sertaneja, resgatando elementos que marcam suas tradições.
Para tanto teria sido impossível dissociar a obra de Suassuna do caráter
do Movimento Armorial – iniciado um ano antes da publicação do RPR – o qual
tem por objetivo recuperar e divulgar a aludida cultura popular que, por sua
vez, o vem acompanhando desde seus primeiros escritos. Reiteramos que:
Publicado poucos meses após o lançamento do Movimento Armorial, o RPR torna-se porta-bandeira deste, e ostenta um subtítulo genérico: romance popular brasileiro. A palavra “armorial”, sendo ainda um neologismo literário – pelo menos na acepção que lhe confere o movimento –, Suassuna explicita-a e completa-a com “popular” e “brasileiro”, A pedra do reino preenche perfeitamente seu papel de modelo literário e cultural para o Movimento Armorial: inspira composições musicais, poemas e quadros; torna-se o livro de cabeceira de jovens artistas e escritores armoriais. (SANTOS, 1999, p. 51)
Vale lembrar que mesmo o Movimento não tendo sido parte específica
na composição do nosso objeto de pesquisa, não tínhamos como dissociá-lo.
No RPR, Suassuna genuinamente se deixa levar pelas concepções
instauradas por esse Movimento, cujas características se fizeram necessárias
na composição do Romance sobre a qual se faz presente por entre os
discursos.
* * *
113
Salientamos que dois principais aspectos puderam ser observados neste
trabalho: 1º) a maneira com que a ironia construída ao longo da enunciação
contribui na identificação da ironia nos enunciados; 2º) as determinantes
escolhas linguístico-estilísticas realizadas pelos protagonistas do discurso para
a manutenção desse universo irônico. E lembramos que tais observações
partiram de conceitos e concepções provenientes de um estudo cuja
perspectiva estilística contemplou a associação entre as teorias de Brait e
Martins, aliando sobretudo os estudos previstos em Ironia e perspectiva
polifônica e Introdução à Estilística: A expressividade da língua portuguesa,
respectivamente.
Além disso, pudemos perceber, também, que ao longo de nossos
estudos, sobretudo as instituições pré-concebidas e já consagradas em nossa
sociedade por meio das “verdades” oriundas deste senso comum, foram o alvo
mais acertado no RPR pela crítica suassuniana, propagada pela contribuição
crucial da ironia. E, à medida que selecionávamos e analisávamos fragmento
por fragmento, constatávamos – gradativamente – que a ironia suassuniana
tem, na obra, um papel altamente subversivo, em se considerando seu modo
dessacralizador, o qual impõe a apresentação de instituições às avessas.
Para concluir, cabe lembrar que é na perspectiva da análise linguística e
discursiva que é possível ao leitor compreender, por meio da estratégia
enunciativa construída pelo autor e efetivada pelo locutor, as pistas deixadas
por estes no momento da enunciação. Enfim, de que maneira o enunciado
“absurdo” expresso pelo enunciador pode indicar o caminho para identificação
do enunciador que se faz “sério”, sendo constituída, nesse processo, a
perspectiva polifônica. É como se esta ironia se revelasse para além da
materialidade linguística, uma vez que é no discurso que as ideologias
subjacentes tem o poder máximo na instauração do irônico em cada uma das
vozes dadas no RPR; sendo assim a ironia foi analisada de modo a identificar-
se o quão ela igualmente se torna um dos meios mais reveladores dos traços
do estilo de Suassuna.
* * *
114
Isto posto, quem sabe as análises apresentadas por esta dissertação
apontem a um caminho já iniciado, porém a ser estreitado – cada vez mais –
na verificação da ironia de Ariano Suassuna associada ao seu estilo, o qual se
apresenta peculiar em se considerando seu processo natural de valorização da
cultura popular sertanejo-nordestina. Inclusive a oralidade proveniente da
linguagem sertaneja – brevemente apresentada neste estudo – seria algo com
que pudéssemos aprofundar nossas análises, visto que o autor do RPR, ao
contrário de expor uma oralidade daqueles que não dominam a língua escrita
(compondo algo que pudesse se caracterizar por primitivo), ao contrário, leva-
nos a refletir acerca de nossas próprias raízes brasileiras advindas de uma
língua que é fruto do Latim Vulgar. São, porém, infinitas as ocorrências de
“desvios”, repetições e pontuação que poderiam ser apontadas posteriormente.
Para tanto, a satisfação de termos encontrado uma linha de raciocínio, a mais
adequada possível, também seria um aspecto a ser garantido e mantido em um
novo grau de estudo.
De todo modo, estamos certas, também, ao apontar em que medida
alcançamos os objetivos a que nos propusemos em não isolar a obra para
estudo puramente específico, uma vez que o discurso se articula com o léxico
e vice-versa. Ou seja, a questão estética relativa ao linguístico-discursivo, traz
à tona uma análise estilística que se sustentou por meio de seus pensadores e
também considerou o Movimento Armorial como fenômeno cultural estético,
para além do fenômeno social e em favor de uma análise mais precisa, neste
aspecto. Sabemos, também, que ao analisarmos o RPR apresentando a
materialidade linguística, aliávamos a questão discursiva a partir das vozes que
se fizeram presentes nos excertos selecionados na composição de nosso
corpus.
115
REFERÊNCIAS
Bibliografia
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ANEXOS
1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas de peitos macios
De fato, nobres Senhores e belas Damas de peitos macios, o
escudo que acabei de descrever era o Brasão familiar do Donzel, como o
Doutor Pedro Gouveia explicaria logo mais. Mas não deixa, também, de ser
"uma coincidência epopeica, astrosa e fatídica", que o timbre desse Escudo
fosse exatamente "uma Dama de cabelos soltos e com as mãos cobertas":
porque a moça Heliana, aquela que veio a ser o grande amor e o segredo da
sua vida, vivia sempre com as mãos cobertas, não se conhecendo notícia de
homem nenhum a quem ela, conscientemente, consentisse desvendá-las -
com exceção dele, é claro. (RPR, p.47)
1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas
Pode-se dizer, nobres Senhores e belas Damas, que houve duas
causas próximas para minha prisão. A primeira, foi a chegada, a Taperoá, do
rapaz do cavalo branco. A segunda, estreitamente ligada a ela, foi o
assassinato, por degolação, de meu tio e Padrinho, o fazendeiro Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barretto. Meu Padrinho foi encontrado morto, no dia 24 de
Agosto de 1930, no elevado aposento de uma torre que existia na sua
fazenda, a "Onça Malhada". Essa torre servia, ao mesmo tempo, de mirante à
casaforte, o de campanário à capela da fazenda, que era pegada à casa. Seu
aposento superior era um quarto quadrado, sem móveis nem janelas. O chão,
as grossas paredes e o teto abobadado desse aposento eram de pedra-e-cal.
Por outro lado, meu Padrinho, naquele dia, entrara só no aposento e trancara-
se lá em cima, dentro dele, usando, para isso, não só a chave, como a barra
de ferro que a porta tinha por dentro, como tranca. Outra coisa misteriosa: no
mesmo dia, Sinésio, o filho mais moço de meu Padrinho, desapareceu sem
ninguém saber como. Dizia-se que fora raptado, a mando das pessoas que
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tinham degolado seu Pai, pessoas que odiavam o rapaz porque ele era amado
pelo Povo sertanejo, que depositava nele as últimas esperanças de um
enigmático Reino, semelhante àquele que meu bisavô criara. Sinésio fora
raptado e, segundo se noticiou, morrera também de modo cruel e enigmático,
dois anos depois, na Paraíba, o que não impedia o Povo de continuar
esperando a volta e o Reino miraculoso dele. (RPR, p.59)
1º Ocorrência de nobres Senhores e belas Damas que me ouvem
Não vou mais transgredir as leis de Deus contando o que se passou.
Seria arriscar-me demais perante o juiz, o Delegado e os nobres Senhores e
belas Damas que me ouvem. (RPR, p.291)