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1
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA - UNAMA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA
JOSÉ FERNANDES FONSECA NETO
MEMÓRIA EM CURSO:
CAMINHO SENSÍVEL PELA CIDADE DE BELÉM
BELÉM-PA
2012
2
JOSÉ FERNANDES FONSECA NETO
MEMÓRIA EM CURSO:
CAMINHO SENSÍVEL PELA CIDADE DE BELÉM
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Stricto
Sensu em Comunicação, Linguagens e Cultura, da
Universidade da Amazônia, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Paulo Jorge
Martins Nunes.
BELÉM-PA
2012
2
3
MEMÓRIA EM CURSO
Caminho Sensível pela Cidade de Belém
por
JOSÉ FERNANDES FONSECA NETO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Stricto Sensu em Comunicação,
Linguagens e Cultura, da Universidade da Amazônia, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre, orientada pelo Prof. Dr. Paulo Jorge Martins Nunes.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________ Orientador: Prof. Dr. Paulo Jorge Martins Nunes Universidade da Amazônia (UNAMA)
___________________________________ Membro Externo: Prof. Dr. Gutemberg Armando Diniz Guerra. Universidade Federal do Pará (UFPA)
___________________________________ Membro Interno: Profa. Dr. Mariza Mokarzel Universidade da Amazônia (UNAMA)
Aprovado: _________________________
Belém, ____de _________________2012.
4
Para minha mãe, Dina Oliveira,
pelo companheiro amor
e por iluminar o percurso.
Para outro José Fernandes Fonseca,
meu grande pai e amigo.
Para Daniella, meu amor,
sempre companheira e generosa.
Para Isabel, Teresa e Anna,
minhas filhas, minhas estrelinhas
brilhantes em nossos caminhos futuros.
Para Célia Jacob e Francisco Cardoso,
queridos amigos.
À memória de Alírio e Dina,
sonhadores e construtores de
pontes, vias e estradas.
5
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Paulo Nunes, meu orientador acadêmico,
pela constante atenção amiga e valiosas
contribuições para o desenvolvimento deste trabalho;
Aos Professores Doutores Mariza Morkazel, Gutemberg Guerra e
Luís Heleno Montoril Del Castilho pelas importantes
análises e observações neste percurso;
Aos professores Graça Landeira (in memoriam),
José Akel Fares, Josse Fares, Jorge Eiró e a
Jonise Nunes e toda equipe do projeto Belém da Memória;
À Universidade da Amazônia - UNAMA
e a todos os amigos (professores, colegas e funcionários)
do Mestrado em Comunicação, Linguagens e
Cultura da UNAMA - Turma 2010.
6
Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas,
nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras [...]
(Ítalo Calvino)
Para o autóctone obter a imagem de sua cidade,
são necessárias motivações diferentes, mais profundas.
Motivações de quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado.
Sempre o retrato urbano do autóctone terá afinidade com o livro de memórias,
não é à toa que o autor passou a infância neste lugar [...]
(Walter Benjamin)
De qualquer forma personalizada, Belém vira personagem,
agindo num certo meio, fadada a proceder de certa maneira.
É uma persona dramática, um modo de falar, de gesticular,
de andar, de comer, deitar, de dormir e sonhar.
Já então a cidade se apresenta, ela mesma, como um conjunto legível,
um texto para nossa leitura reflexiva, silenciosa ou em voz baixa.
(Benedito Nunes)
7
RESUMO
A cidade, como rico espaço expressivo, é capaz de desenvolver discursos e
produzir em seus cidadãos impulsos cognitivos e afetivos. Propôs-se, neste
estudo, a partir da observação da cidade, associada à análise bibliográfica
relativa ao tema, estabelecer relações entre teorias e práticas da arquitetura e do
urbanismo e conceitos de pensadores que se debruçaram sobre o estudo das
representações da cidade, bem como as relações entre cidade, memória e
linguagens, tendo como objeto um percurso por Belém do Pará. Neste trajeto,
cujo recorte coincide, espacialmente, com o caminho do Círio de Nazaré,
investigou-se de que forma a paisagem urbana materializa e expressa
polifonicamente, algumas relações estéticas, históricas, econômicas e
socioambientais. O referido percurso será interpretado através das linguagens
verbal e visual e representado em um conjunto de quadros sensíveis. Esta leitura
da cidade teve como suporte o arcabouço teórico-metodológico multidisciplinar
traçado pelos seguintes autores: Benjamin, Bolle, Canevacci e Lynch que
fornecem métodos de percepção e representação do espaço urbano; Danto,
Bourriaud, Le Goff, García Canclini, Argan e Rossi que embasam as relações
estabelecidas entre cidade e arte, memória e patrimônio cultural.
Palavras-chave: Cidade. Belém. Memória. Linguagens. Imagem.
8
ABSTRACT
The city, considered as a rich expressive space, is able to develop speeches and
produce cognitive and affective impulses in their citizens. This study aimed at
establishing, from observation of the city associated with the analysis of the
literature on the topic, relationships between theory and practice of architecture
and urban design and concepts built by thinkers who have focused on the study
of representations of the city, as well as relations between the city, memory and
language, taking a ride through Belém do Pará as object, whose cut coincides
spatially with the route of Cirio de Nazare, we investigated how the urban
landscape embodies and expresses polyphonically, some aesthetic, historical,
economic, social and environmental realtions. That route will be interpreted
through verbal and visual languages and represented in a sensitive frameset.
This reading of the city was to support the theoretical and methodological
multidisciplinary frame by the following authors: Benjamin, Bolle, Canevacci and
Lynch who provide methods of perception and representation of urban space;
Danto, Bourriaud, Le Goff, García Canclini, Argan, and Rossi who underlie the
relations between city and art, memory and cultural heritage.
Keywords: City. Belem. Memory. Languages. Image.
9
LISTA DE SIGLAS
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BM Belém da Memória
CAN Centro Arquitetônico de Nazaré
CDP Companhia Docas do Pará
CNPq Conselho Nacional de Apoio e Desenvolvimento da Pesquisa
DPH Departamento de Patrimônio Histórico do Município de Belém
FUMBEL Fundação Cultural de Belém
MABE Museu de Arte de Belém
MEP Museu do Estado do Pará
PMB Prefeitura Municipal de Belém
SECULT-PA Secretaria de Cultura do Estado do Pará
SEURB Secretaria de Obras e Urbanismo do Município de Belém
UFPA Universidade Federal do Pará
UNAMA Universidade da Amazônia
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Representação, livre e esquemática, do sítio e do
eixo de expansão da cidade de Belém........................
20
Ilustração 2 ‘Desfile’ da paisagem urbana....................................... 20
Ilustração 3 “Cabeça de Peixe”........................................................ 21
Ilustração 4 Baixada de Belém......................................................... 43
Ilustração 5 Reprodução do primeiro layout para placa do Projeto
Belém da Memória. Registro da carta de Mário de
Andrade a Manuel Bandeira, de 1927, e
representação do Grande Hotel, Belém.......................
57
Ilustração 6 Registro da assinatura do convênio entre a Unama, a
PMB e a Marko Engenharia para viabilização das
primeiras placas do projeto...........................................
60
Ilustração 7 Lançamento da primeira placa do Projeto Belém da
Memória. Centro Arquitetônico de Nazaré. Banho de
Cheiro, Eneida..............................................................
60
Ilustração 8 Alguns dos marcos visuais instalados pelo projeto
Belém da Memória em 1999: 1. Marco Visual da
Praça Felipe Patroni; 2. Detalhe da placa da Praça
Felipe Patroni, Hoje e Amanhã, Rodrigues Pinagé; 3.
Centro Arquitetônico de Nazaré. Banho de Cheiro,
Eneida...........................................................................
61
Ilustração 9 Fotos que registram o estado de conservação de
algumas placas do projeto antes de sua recuperação
ou mudança de localização ocorrida a partir do ano
2008: 1/2 - Praça da República. 3 - Praça do Relógio.
4 - Praça das Sereias. 5 - Praça das Mercês. 6.
Praça do pescador........................................................
63
Ilustração 10 Placa retirada da Praça do Operário em São Brás.
Observa-se uma parte do terreno que o morador
destina a placa e como o gradil contorna o marco
visual.............................................................................
65
11
Ilustração 11 Placas instaladas a partir de 2008. A partir deste
momento as placas passaram a ser instaladas em
locais que, embora de visibilidade pública, contassem
com a vigília de instituições. Nos exemplos a seguir
percebe-se a melhora de conservação das peças: 1/2
- Fachada do Hilton Hotel. 2/3 - Fachada da Casa da
Linguagem – FCV – Governo do Estado......................
66
Ilustração 12 Mais placas instaladas a partir da mudança de
critérios para escolha da localização das placas. 1 -
Colégio IEP- Governo do Estado do Pará. 2 - Jardim
externo da Farmácia Big Bem, Doca de Souza
Franco. 3 - Memorial dos Povos, PMB-FUMBEL..........
67
Ilustração 13 Mapa do Percurso Analisado........................................ 75
Ilustração 14 Cabeça de Peixe. Síntese gráfica do sítio urbano........ 76
Ilustração 15 Sobrado do Guaraná Soberano. Rua Siqueira
Mendes.........................................................................
82
Ilustração 16 Solar Barão do Guajará. Atual sede do Instituto
Histórico e Geográfico do Pará.....................................
83
Ilustração 17 Palácio dos Governadores. Atual Museu Histórico do
Pará. A construção data de 1772.................................
84
Ilustração 18 Igreja do Carmo, vista pelo Porto do Sal. Ano de
construção: 1766..........................................................
85
Ilustração 19 Igreja de São João. A construção primitiva data de
1622. O prédio atual teve suas obras iniciadas em
1772 e concluídas em 1777.........................................
86
Ilustração 20 Fragmentos urbanos da Cidade Velha I....................... 87
Ilustração 21 Fragmentos urbanos da Cidade Velha II...................... 88
Ilustração 22 Igreja jesuítica de Santo Alexandre......................... 93
Ilustração 23 Púlpito da Igreja de Santo Alexandre........................... 94
Ilustração 24 A Igreja da Sé, finalizada em 1782............................... 95
Ilustração 25 Mercado do Ver-o-Peso................................................ 99
Ilustração 26 Palafita, habitação ribeirinha......................................... 100
Ilustração 27 Praça Siqueira Campos inaugurada 1931. Conhecida
12
pelos belenenses como Praça do Relógio.................... 101
Ilustração 28 Torre do Mercado de Ferro........................................... 105
Ilustração 29 Mercado Municipal. Vista interna com destaque para
o desenho sinuoso da escada helicoidal......................
109
Ilustração 30 Detalhe do Mercado Municipal. Estrutura interna com
peças pré-fabricadas em estilo art nouveau.................
110
Ilustração 31 Passeio externo da Estação das Docas....................... 112
Ilustração 32 Loja Paris n’América..................................................... 116
Ilustração 33 Círio de Nazaré pela av. Presidente Vargas................. 118
Ilustração 34 Arquitetura da Avenida Presidente Vargas................... 119
Ilustração 35 Torre moderna da avenida Presidente Vargas............. 120
Ilustração 36 Edifício Manuel Pinto da Silva...................................... 121
Ilustração 37 Bar do Parque. Ponto da Boemia................................. 125
Ilustração 38 Pavilhão de Música Santa Helena Magno. Praça da
República......................................................................
123
Ilustração 39 Chafariz das Sereias..................................................... 127
Ilustração 40 Vista da Praça da República......................................... 129
Ilustração 41 Interior do Theatro da Paz............................................ 130
Ilustração 42 Fachada do Teatro Waldemar Henrique....................... 131
Ilustração 43 1 e 2: Prédio do Banco da Amazônia e detalhe do
Hilton Hotel. 3: Grande Hotel........................................
134
Ilustração 44 Túnel de Mangueiras. Largo da Pólvora....................... 136
Ilustração 45 Túnel de Mangueiras.................................................... 137
Ilustração 46 Paisagem.da avenida Nazaré...................................... 134
Ilustração 47 Palacete Bolonha.......................................................... 140
Ilustração 48 Palacete Augusto Montenegro...................................... 144
Ilustração 49 Palacete Passarinho..................................................... 144
Ilustração 50 Fragmentos urbanos. Bairro de Nazaré................................... 145
Ilustração 51 Sede social do Clube do Remo..................................... 146
Ilustração 52 Antigo Arraial de Nazaré............................................... 149
13
SUMÁRIO
I INTRODUÇÃO: o desenhador e a imagem de Belém....... 14
II FISIOGNOMIA, POLIFONIA E IMAGEM DA CIDADE.........
28
2.1 TRAÇO EXPRESSIVO DA CIDADE...................................... 29
2.2 COMUNICAÇÃO URBANA.................................................... 34
2.3 A CIDADE: uma escultura da sociedade?............................. 36
III CIDADE, ARTE E MEMÒRIA................................................
44
3.1 CIDADE E MEMÓRIA............................................................ 50
IV PROJETO BELÉM DA MEMÓRIA: um exemplo ilustrativo..............................................................................
53
4.1 MEMÓRIA DO PROJETO...................................................... 58 4.1.1 Avaliação do projeto............................................................ 62 4.1.2 Relação de marcos visuais................................................. 68 4.1.3 Principais atividades do projeto........................................ 70
4.2 O PROJETO FUTURO.......................................................... 72
V UM PERCURSO SENSÍVEL PELA CIDADE DE BELÉM....
74
5.1 QUADROS SENSÍVEIS DE BELÉM...................................... 77 5.2 CIDADE VELHA: a Senhora que conta histórias................... 78
5.2.1 Feliz Luzitânia....................................................................... 89 5.3 VER-O-PESO, AS PARTES E O TODO................................ 96
5.3.1 Mercado do homem e do peixe........................................... 102 5.3.2 Mercado de carne, o espaço que se revela....................... 106
5.4 CAMPINA............................................................................... 111 5.4.1 Boulevard Castilhos França: onde se queimam os
fogos..................................................................................... 113
5.4.2 Paris n’América.................................................................... 114 5.5 PRESIDENTE VARGAS: o patamar da modernidade........... 117
5.5.1 Praça da República: “idade do ouro”, ascensão e queda do ciclo da borracha.........................................
122
5.5.2 Theatro da Paz...................................................................... 128 5.5.3 Teatro Waldemar Henrique................................................. 131 5.5.4 Grande Hotel, a saudade do que não vivi.......................... 132 5.5.5 Túnel de Mangueiras........................................................... 135
5.6 AVENIDA NAZARÉ/ IGREJA DE NAZARÉ........................... 138 5.6.1 Palacete Bolonha................................................................. 141 5.6.2 Casarões, bangalôs e exemplares modernistas............... 143 5.6.3 Largo de Nazaré................................................................... 147
5.7 CÍRIO DE NAZARÉ................................................................ 150 CONSIDERAÇÕES FINAIS: contribuições para uma percepção da cidade....................................................................................................
153
REFERÊNCIAS...................................................................................... 157 APÊNDICE: outras imagens do percurso sensível .......................... 161
14
I - INTRODUÇÃO:
O DESENHADOR E A IMAGEM DE BELÉM
15
I - INTRODUÇÃO: o desenhador e a imagem de Belém
A cidade é engenho e arte? Um desenho? Um ajuntamento escultórico?
Um livro e seus capítulos? Um espetáculo e seus atos? Ou ainda um
emaranhado campo comunicacional interativo, dinâmico das relações
ambientais, históricas, econômicas e socioculturais do cidadão?
No Atlas, ponto vermelho indica cidade, ou metrópole. Ao me aproximar,
vejo a mancha verde, gigante, sobre a qual este ponto se deita quase sobre a
Linha do Equador. A curiosa vista da infância me fez imaginar, da claraboia do
avião, que a ‘cabeça de um peixe’1 se lançava na água, procurando caminhos
entre estreitas vias de mata (Ilustração 1).
Em outro momento, como por miragem, vi Veneza? Era a imperiosa linha
d’água, a horizontalidade do mar de água doce, dulcíssima, cinza, prateada que
iluminava a silhueta da metrópole em contraste com o local de onde o barco
partira - a Ilha do Combu2.
Residi parte de minha adolescência fora de minha cidade de origem. Na
volta, por curiosidade juvenil, queria andar e reconhecer, ou conhecer minha
localidade. Entretanto, os prazeres das caminhadas não esconderam o divórcio
entre as mazelas da vida cotidiana da cidade e as paisagens, imagens mentais,
afetivas, oníricas talvez, da infância.
Será que é a Santa Padroeira, em seu caminho de cultura e fé, que faz
esta “costura”, religando espaços e pessoas, alimentando e recriando sempre a
identidade do povo e da minha cidade de Belém do Grão Pará?
Adotando como percurso um eixo da cidade de Belém, desenhado por
suas principais ruas e avenidas, segui por diversas vezes o caminho há muitos
anos percorrido pela procissão do Círio de Nazaré3, permitindo-me, entretanto,
1 Associação livre entre esta forma (cabeça de peixe) e a configuração geográfica peninsular do sítio
de implantação da cidade de Belém do Pará. 2 Ilha localizada na margem esquerda do Rio Guamá, em frente à orla de Belém. Possui uma área de
aproximadamente 15 quilômetros quadrados. Sua população é de aproximadamente 200 famílias ribeirinhas, que realizam a pesca artesanal e o extrativismo vegetal. Disponível em: <www.prossiganosestados.pa.gov.br>. Acesso em: 06 abr. 2010. 3 Círio de Nossa Senhora de Nazaré de Belém – Procissão católica realizada na capital do Pará
desde 1793. Reúne, anualmente no segundo domingo de outubro, aproximadamente dois milhões de
16
vagar sem pressa por suas vias paralelas e transversais. No espaço urbano lido,
interpretado e refletido pelos textos e imagens que compõem este trabalho, pude
perceber o caráter, ao mesmo tempo genérico e peculiar, de bairros vizinhos;
percorrer em espaços interiores; estender o olhar que vai de pequenas
manufaturas populares ao horizonte da grande baia do Guajará.
Nesta área formada pelos bairros da Cidade Velha, da Campina e de
Nazaré, justamente os únicos três bairros onde residi em Belém, encontrei
alguns de nossos ícones urbanos mais lembrados - a Igreja da Sé, o Forte do
Presépio, o Ver-o-Peso, o Relógio de Ferro, o Theatro da Paz, a Basílica de
Nazaré - nossos pontos turísticos mais significativos, os principais marcos
históricos do poder político-administrativo, mercados, praças, vias de desfiles,
manifestações e protestos populares, os grandes hotéis e as pequenas pensões,
os prostíbulos e casas noturnas, bancos, lojas, instituições culturais, meios de
comunicação e até as sedes de nossas mais populares agremiações esportivas.
Em outubro, enquanto a cidade estática composta por prédios, sacadas, janelas,
alpendres e calçadas, assiste à passagem do homem multiplicado em mil,
milhões, esse homem vê, em sentido contrário, o desfile de uma cidade
dinâmica, de suas alegorias, de sua paisagem urbana, do grande ajuntamento
escultórico articulado que, por ser escavado, se permite penetrar (Ilustração 2).
Parece não haver dúvida de que a imagem da cidade refletida neste texto
(eixo do percurso Igreja da Sé/Basílica de Nazaré) reúne, mistura e sintetiza uma
série de referências (geográficas, históricas e socioculturais), indispensáveis para
a constituição social da memória e para a formação da identidade na percepção
de grande parte da população da cidade de Belém. Seja por coincidir
espacialmente com o eixo histórico de expansão urbana da cidade (figura1), seja
pela grande concentração de trocas culturais, fluxos e serviços desenvolvidos
neste espaço ou, ainda, por se tratar do cenário de uma das mais significativas
manifestações culturais de nossa região - o Círio de Nazaré.
Esta paisagem condensa, portanto, todos aqueles elementos que segundo
Michael Pollak em referência a Maurice Halbwachs: romeiros em caminhada pelas ruas de Belém. A procissão sai da Catedral de Belém e segue até a Praça Santuário de Nazaré. O percurso total é de 3,6 quilômetros. Fonte: Portal do Círio de Nazaré.
17
[...] estruturam nossa memória e que a inserem na memória da
coletividade a que pertencemos: [...] os monumentos, [...] o patrimônio
arquitetônico e seu estilo, [...] as paisagens, as datas e personagens
históricas de cuja importância somos incessantemente relembrados, as
tradições e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música,
e, por que não, as tradições culinárias. (HALBWACHS apud POLLAK,
1989, p. 3).
Desde quase sempre, me vejo ‘desenhador’ e, hoje, graduado em
arquitetura e urbanismo com Especialização em design, venho seguindo
atividade intimamente ligada ao campo da comunicação visual e das artes
gráficas. Há muitos anos emprego as habilidades e noções adquiridas ao longo
da experiência de vida profissional e acadêmica, tanto em projetos, como na
leitura, reflexão e expressão dos fatos urbanos, especialmente os da cidade de
Belém. Durante o curso de Graduação na faculdade de arquitetura, em estágio
no Departamento de Patrimônio Histórico do município (DFH - FUMBEL)
participei da equipe que realizou o levantamento e a representação gráfica de
todo o conjunto de fachadas da Avenida João Alfredo, antiga Via dos
Mercadores, no centro histórico comercial da cidade4. Ainda na Graduação, fui
bolsista do CNPq, em pesquisa da UFPA que registrou em plantas técnicas e
reproduções em aquarelas diversas edificações remanescentes do período
colonial nas cidades de Óbidos e Bragança (Pará)5. Desde então, ou talvez
desde a infância, mantenho em minha vida, com prazer e labor, estreitas as
relações entre desenho e traço histórico da cidade.
Posso dizer que esta parceria foi significativamente reforçada pelo
cruzamento com outra parceria, idealizada pelos professores de literatura da
Unama, Paulo Nunes e Josse Fares, desta vez firmada entre texto e espaço
urbano - entre a cidade e o olhar da literatura6. Desde os primeiros anos dessa
iniciativa venho tendo a honra e o prazer de fazer parte do Projeto Belém da
Memória7, mais uma vez contribuindo, como retorno, com meu trabalho de
4 Projeto de revitalização urbanística do eixo comercial formado pela Av. Conselheiro João Alfredo e
Rua de Santo Antônio, desenvolvido a partir de 1997 pela Prefeitura Municipal de Belém, 5 Parte dos resultados da pesquisa está na publicação da UFPA “Caderno de Arquitetura 1: Óbidos”
(DERENJI, 1987). 6 FARES & NUNES. Inédito. Mimeo,1998.
7 Projeto de Pesquisa e Extensão da Universidade da Amazônia, em parceria com a Prefeitura
Municipal e empresas e/ou pessoas físicas patrocinadoras. Este projeto, implantado em março de 1999, registra textos literários produzidos sobre a capital do Pará, através de marcos visuais fixados em logradouros públicos e outras formas de divulgação como exposições e publicações.
18
ilustrador. Registrei, desde então, em técnica de bico de pena, mais de 40
monumentos da cidade de Belém. Eles comporiam, ao lado de textos literários
primorosos que tematizaram a capital do Pará, o projeto gráfico de placas fixadas
em marcos visuais instaladas em praças públicas da cidade.
Promovendo uma boa parceria, o projeto procura valorizar, ao mesmo
tempo, a ‘Cidade das Mangueiras’, veiculando informações históricas e culturais
de nosso sítio - visto que a literatura é uma forma de representação simbólica da
história - e a própria literatura de autores nacionais e regionais sobre nossa
cidade proporcionando o acesso de transeuntes às peças literárias em
logradouros públicos, palcos da multifacetada cena urbana.
Finalmente, há poucos anos, procurei, na própria malha da cidade, uma
via de pesquisa para o Mestrado que agora, finalmente, conduz a esta leitura do
sítio de que aqui trato. Verifiquei, examinado a ‘cabeça de peixe’ - forma do mapa
de Belém - que a maioria de pontos urbanos, citados em diversas épocas pelos
autores do projeto Belém da Memória (que doravante pode ser identificado aqui
como BM), uma vez conectados, por um traçado imaginário, em um ‘jogo de ligar
pontos’, formava a representação de uma via concreta, de ruas, avenidas e
bulevares. Era, justamente, o referido percurso urbano do Círio de Nazaré.
Acredito que isto não se dá por acaso8. Que isto ocorre porque a esta verdadeira
espinha dorsal da cidade, formada pelo eixo Av. Boulevard Castilhos França/Av.
Presidente Vargas/Av. Nazaré e posteriormente prolongada pela Av. Magalhães
Barata/Av. Almirante Barroso/ Br. 316, está superposta uma grande
concentração de fluxos materiais e simbólicos, econômicos e socioculturais.
Persistindo na analogia entre cidade e organismo, trata-se da coluna
vertebral deste complexo demográfico ao qual se articulam os sistemas capazes
de promover a vida ou processos caóticos geradores da falência deste
organismo. Como metáfora ou manifesto das próprias necessidades, físicas ou
simbólicas da sociedade, são sistemas assemelhados aos orgânicos - desde o
nervoso, o circulatório ao excretor - da cultura, religião e poder constituído ao
transporte e saneamento básico, a cidade necessita de equilíbrio interno
consonante com as relações externas e o meio ambiente. Em Belém, o percurso
8 Percepção semelhante pode ser observada em O Entorno da serpente: um discurso do imaginário
tecido em verso e imagens de Josse Fares em Pedras de Encantaria, 2001.
19
escolhido para observação neste estudo é, historicamente, o maior eixo destas
relações sistêmicas.
A “cabeça de peixe” (Ilustração 3) como metáfora do sítio, do traçado, da
imagem de Belém permite o estabelecimento de várias analogias. A água e o
peixe são elementos essenciais de nosso repertório cultural. Natureza e cultura
se entrelaçam possibilitando a metáfora verbo-visual. A natureza estabeleceu o
limite entre água e terra que desenha o contorno do referido sítio e o homem,
através do tempo, adaptando-se à morfologia natural, gravou as linhas do
traçado que estabelecem o eixo de expansão urbana (Presidente Vargas,
Nazaré, Magalhães Barata, Almirante Barroso) como a coluna mestra, dorsal, e
todas as vias transversais como finas espinhas. Natureza e história dão à cidade
de Belém, a forma, o volume e a estrutura da síntese gráfica do peixe, elemento
mítico, essencial à cultura deste nosso mundo de águas.
20
Ilustração 1 - Representação, livre e esquemática,
do sítio e do eixo de expansão da cidade de Belém.
Fonte: desenho do autor, 2011.
Ilustração 2 - ‘Desfile’ da paisagem urbana.
Fonte: desenho do autor, 2010.
21
Ilustração 3 - “Cabeça de Peixe”. Síntese gráfica do sítio urbano de Belém.
Fonte: desenho do autor, 2012.
22
Na medida em que o percurso foi ao longo de quase quatro séculos,
importante via da expansão histórica do município, atualmente por ele desfila,
também, parte importante da arquitetura, conjuntos históricos da cidade e seus
monumentos, que segundo Jaques Le Goff são “[...] o esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro [...] determinada imagem de si próprias” (2003,
p.525-539).
Neste caminho encontram-se hoje amalgamadas à geografia das vias
atuais tanto a geografia do meio ambiente natural quanto, entre outras cidades
perecidas, a aldeia tupinambá que reaparece mestiçada às culturas africanas e
europeias na fisiognomia9 da metrópole contemporânea através do rico e variado
universo de signos, expresso na língua, nos modos, nos hábitos, na música,
dança, nas manufaturas, culinária, no modo de agir e pensar, na fisionomia de
grande parte de nossa população.
A observação do espaço analisado, ao mesmo tempo em que, revela a
enorme riqueza cultural da paisagem urbana mostra ações - algumas vezes
contraditórias, dos poderes: público e privado e do cidadão - que vão desde o
esforço pela conservação ou revitalização, até atitudes explícitas de descaso e
destruição deste patrimônio.
Também pude observar estas atitudes dúbias em relação aos marcos
visuais do projeto Belém da Memória. As placas (inseridas no contexto urbano
com o objetivo de registrar e expressar o afeto à cidade, ação do Núcleo
Cultural/Casa da Memória da Unama e seus parceiros) contam através de seu
estado de conservação/depredação, como veremos adiante, uma história
ambígua de atitudes de descaso e vandalismo e curiosos atos de defesa do
patrimônio público.
O sociólogo Zygmunt Bauman (2009) escreve sobre o aumento, na
contemporaneidade, da quantidade de barreiras, defesas, grades, enfim;
dispositivos arquitetônicos e urbanísticos que fragmentam o espaço urbano e
isolam grupos sociais. Para Bauman (2009), os muros encimados por cercas
9 Para Walter Benjamin, “escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia” (BENJAMIN,
2006, p. 518). Desta forma, o conceito de fisiognomia remete à possibilidade de conferir a história um determinado ‘rosto’ ou representação. O conceito de fisiognomia será abordado, em seguida, no cap. II, deste estudo.
23
elétricas e câmeras de vigilância separam guetos voluntários, habitados por uma
elite conectada ao universo globalizado, de cidadãos condenados a permanecer
fisicamente no universo local. Penso, entretanto, que o momento atual, ao
mesmo tempo, submete os cidadãos ao contato cotidiano e local com mazelas
geradas por movimentos político-econômicos globais, mas, em contrapartida,
permite o acesso das chamadas classes marginalizadas a signos urbanos
variados de circulação internacional, mesmo que de maneira desigual.
Apesar disso, constato em Belém a validade do alerta de Bauman (2009)
de que a arquitetura das cidades torna-se cada vez mais defensiva, viabilizando,
através de todo tipo de barreira física e simbólica, o cultivo de sentimentos de
exclusão, como bem se pode observar na transformação, nos anos 1980, do
antigo Largo de Nazaré em Conjunto Arquitetônico de Nazaré, quando o seu
perímetro passa a ser gradeado. Ao mesmo tempo penso ser válido seu
conselho a planejadores arquitetônicos e urbanos de busca por uma:
[...] estratégia oposta: difusão de espaços públicos abertos,
convidativos, acolhedores, que todo tipo de cidadão teria vontade de
frequentar assiduamente e compartilhar voluntariamente e de bom
grado. (BAUMAN, 2009, p. 50).
Em afirmação que expressa como a configuração do espaço físico pode
contribuir, funcional e simbolicamente, para possibilitar ou dificultar as relações
sociais, o autor conclui:
[...] A fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá resultar
de uma experiência compartilhada, e certamente não se pode pensar
em compartilhar uma experiência sem partilhar o espaço. (BAUMAN,
2009, p. 51).
Neste cenário acredito que, o debate sobre o modo como conviver,
estudar, pesquisar e tratar de forma democrática o patrimônio histórico e cultural
deveria interessar a todos os moradores de Belém. Para tanto, é necessário
investigar e informar sobre as relações e contradições históricas estabelecidas
na constituição e na conservação deste patrimônio. Considerando que a memória
é indutora de desenvolvimento socioambiental, a alimentação do processo de
24
formação e informação do cidadão, em especial das novas gerações, pode
colaborar para sua participação de forma ativa no debate sobre os usos do
espaço coletivo da cidade. Observo, também, que o estudo das cidades,
enquanto complexos polissêmicos, pode contribuir, mesmo que modestamente,
para um Mestrado que aborda o aspecto multidisciplinar da comunicação, das
diversas linguagens e da cultura.
Meu objetivo principal é, assim, analisar como a imagem da cidade de
Belém, através de seus recortes morfológicos, no percurso anteriormente citado,
materializa e expressa polifonicamente10
relações históricas, econômicas e
socioculturais. Para esta leitura e reflexão acerca do espaço da cidade pretendo
entrelaçar, de maneira multidisciplinar, os referenciais: técnico e teórico, histórico
e literário. Finalmente, pretendo levantar, organizar e tratar os dados até agora
produzidos pelo Belém da Memória e relacionar os pontos eleitos pelo projeto no
percurso que estudo, identificando e propondo estratégias e outros produtos
didáticos e midiáticos que possam somar esforços para ampliar o raio de
comunicabilidade deste programa.
Considero, neste trabalho, a arquitetura como linguagem e a cidade, palco
de ações e transformações sociais, políticas e culturais, como rico campo
semântico, capaz de desenvolver discursos e produzir em seus cidadãos
impulsos cognitivos e afetivos.
No âmbito da comunicação urbana este estudo, portanto, debruça-se
sobre a paisagem urbana polifônica em um percurso pela cidade de Belém. Dada
a complexidade do objeto - a própria cidade - que nos comunica através de
diversos elementos, como a paisagem natural, o ambiente construído e as
relações humanas, se faz necessária, tanto quanto possível, uma abordagem
multidisciplinar que utilize pontos de vista divergentes, de caráter teórico e
empírico.
10
Polifonia – Utilizo neste estudo o conceito de cidade polifônica do antropólogo Máximo Canevacci, segundo o qual “[.,.] a cidade se caracteriza pela sobreposição de melodias e harmonias, ruídos e sons, regras e improvisações cuja soma total, simultânea ou fragmentária, comunica o sentido da obra”. Da mesma forma, uma escolha metodológica igualmente polifônica, “de dar voz a muitas vozes”, seria a mais adequada para a representação deste objeto de estudo. (CANEVACCI, 1993, 18). Este conceito de Canevacci evoca o conceito homônimo de Mikail Bakthin, estudioso da linguagem verbal, conforme se esclarece mais adiante no corpo do trabalho.
25
No conjunto deste pensamento é que trago aqui Walter Benjamin, através
de um ‘álbum de retratos’, conjunto de imagens literárias de capitais europeias
como Berlim e Paris, no qual ele realiza uma extraordinária leitura da grande
cidade, palco da modernidade. O filósofo cunha o termo fisiognomia, que articula
dois termos fisiognomonia (arte de conhecer o caráter das pessoas pelos traços
fisionômicos) e fisionomia (conjunto das feições do rosto). Procura decifrar
através da ‘leitura’ da cidade, espaço de experiência sensorial e intelectual de
seu tempo alguns mitos que cercam a modernidade.
Em seu estudo Fisiognomia da Metrópole Moderna (1994), Wille Bolle,
professor da Universidade de São Paulo, nos proporciona um diálogo imaginário
entre as percepções do escritor alemão e a representação da cena urbana em
escritores brasileiros, agudos observadores da modernidade em uma grande
metrópole da periferia do capitalismo global no século XX.
Passadas várias décadas, a maneira ‘benjaminiana’ de observar e
descrever a experiência da vida urbana moderna ainda me parece valiosa. Neste
trabalho tento perceber e representar a cidade de Belém utilizando como uma
das “estratégias de leitura” a referência à maneira com que Benjamin entrelaça
aspectos importantes, tais como, memória pessoal afetiva, o comportamento
social, a paisagem arquitetônica e o mundo microscópico dos artefatos do
cotidiano, revelando sensíveis imagens de seus espaços e tempo em
transformação, trilhando o caminho do escritor de maneira similar - similar em
relação ao método - jamais em precisão e sutileza.
Outro autor que não poderia deixar de compor este trabalho é Máximo
Canevacci (1993). Ele utiliza o conceito de cidade polifônica, segundo o qual a
“[...] comunicação urbana compara-se a um corpo que canta com uma
multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se
umas às outras, isolam-se ou se contrastam” (p.17). Este conceito, que evoca a
ideia de polifonia narrativa de Bakthin, designaria uma escolha metodológica de
dar “voz a muitas vozes”. Tal enfoque polifônico, criativo e adequado, constitui-se
num modo através do qual se pode representar o mesmo objeto – a
comunicação urbana. Afinal, afirma Canevacci: “[...] A polifonia está no objeto e
no método” (p. 18).
26
Seguindo esta linha de pensamento, pretendo, a partir da observação da
cidade e de análise bibliográfica relativa ao tema, estabelecer relações entre
teorias e práticas da arquitetura e do urbanismo, fontes literárias e históricas, e
conceitos de pensadores que se debruçam sobre o estudo da comunicação e da
linguagem para aguçar a percepção do significativo trajeto em estudo.
Analiso de um ponto de vista atual que, no entanto, procura aliar história e
memória, alguns aspectos da morfologia urbana - estudo da estrutura, da forma e
das transformações das cidades - como uma das categorias a serem observadas
no processo de análise dos discursos expressos pela comunicação urbana,
reveladores das relações e contrastes de poder, vivenciadas na produção e usos
sociais dos espaços da cidade.
Serão evocadas (apenas evocadas) algumas imagens literárias de autores
consagrados, selecionados pelo projeto Belém da Memória, os quais registraram
de maneira aguçada e revelaram com sensibilidade suas impressões destes
espaços em épocas diversas.
Insistindo na exploração do enfoque polifônico, irei também falar da cidade
através de outra linguagem, através de imagens de ‘desenhador’, do recurso
expressivo (embora pouco usual numa dissertação de mestrado) a que estou
habituado. Quiçá seja capaz de contribuir para percepção, representação e
expressão do espaço urbano, como o previsto em meu projeto.
Em uma paisagem urbana convivem diversas camadas temporais
(harmônicas ou desarmônicas) e diversos espaços em um mesmo tempo e a
imagem resultante é a soma de tudo isto mediado pela memória. Pretendo então,
que as representações visuais possam auxiliar a perceber o caráter múltiplo,
polifônico e fragmentado da realidade urbana e ser mais um dado na
comunicação desta percepção.
Com base no exposto, esta dissertação organiza-se em quatro capítulos,
cuja estrutura está delineada no Sumário.
No capítulo II, apresento os aspectos teóricos fundamentais e o percurso
metodológico utilizado nesta pesquisa. Este capítulo analisa, à luz dos teóricos
Walter Benjamin e Willi Bolle (fisiognomia da metrópole), Máximo Canevacci
27
(cidade polifônica) e Kevin Linch (imagem da cidade), métodos de percepção e
representação do espaço urbano.
O capítulo III debate conceitos centrais - arte, arquitetura, memória e
patrimônio cultural - para a abordagem do objeto de investigação, a imagem da
cidade de Belém-PA, no recorte espacial anteriormente descrito. Para
apresentação destes conceitos, observo as referências multidisciplinares de
Arthur Danto, Nicolas Bourriaud, Jaques Le Goff, Néstor García Canclini, Giulio
Carlo Argan e Aldo Rossi.
A discussão do capítulo III é estendida ao capítulo IV, dedicado à análise,
como estudo de caso, do Projeto Belém da Memória. Trata-se do registro e
discussão de uma ação concreta no campo da memória, identidade e educação
patrimonial, com inserção física no espaço urbano.
Finalmente, no capítulo V, descrevo e interpreto o já referido percurso por
esta cidade. Pretendo adotar o enfoque polifônico tanto na utilização de pontos
de vista diferentes, quanto na narrativa do trajeto através das linguagens verbal e
visual. Espero elaborar, ao final do caminho, pela montagem de representações
de fragmentos urbanos, um ‘mapa’ qualitativo deste percurso. Este capítulo, em
consonância com a imagem urbana, será apresentado como uma colagem de
quadros sensíveis ou retalhos urbanos - textos e imagens - que somados, espero
que forneçam uma representação multifacetada, embora sistêmica da cidade.
28
II - FISIOGNOMIA, POLIFONIA E IMAGEM DA CIDADE
29
II - FISIOGNOMIA, POLIFONIA E IMAGEM DA CIDADE
2.1 - TRAÇOS EXPRESSIVOS DA CIDADE
Na primeira metade do século XX, Walter Benjamin (BENJAMIN apud
BOLLE, 1994) construiu uma rica obra11
que heterodoxamente poderia ser
classificada como filosófica e literária. Nela posso constatar o modo como, com
precisão e sutileza, Benjamin percebe os fios que costuram, ao mesmo tempo,
na experiência da grande cidade, a história, a memória pessoal o imaginário
coletivo e as transformações culturais. Suas “narrativas filosóficas” geram, nos
leitores, imagens nas quais estas esferas da realidade aparecem entrelaçadas.
Entretanto, nestes textos, em similitude, à riqueza e à complexidade das ruas de
uma cidade, ocorrem cruzamentos que são projetados de forma múltipla e sutil.
Benjamim a um só tempo, trata de vários tempos e espaços. Descreve a
cidade, a sua cidade, a memória e o futuro que se anuncia, a modernidade que
se instaura nas metrópoles europeias no espaço entre as duas Grandes Guerras
Mundiais.
As imagens de pensamento de Benjamin, gênero misto entre a prosa
literária e a teoria social e histórica, são, “[...] ao mesmo tempo, um meio de auto-
reflexão e de representação da metrópole moderna, o hábitat que influi sobre as
condições de vida e de trabalho do escritor” (BOLLE, 1994, p. 292).
Benjamin elabora uma leitura e expressão das cidades que articula a
percepção instantânea e memória, fina percepção social e a cor pessoal da
memória afetiva, monumentos urbanos e manufaturas cotidianas do período.
Retalhos urbanos, que ‘colecionados’ através da montagem literária, visto que a
cidade é fragmentada apesar de sistêmica ou orgânica, permitem vislumbrar uma
ideia de um conjunto dinâmico, em rápida transformação. Não é somente
Benjamin, no entanto, que aponta nesta direção. O texto de Benedito Nunes,
11
Relação de Willi Bolle de obras do projeto literário de Benjamin: Livro Contramão (1925-1928), Diário de Moscou (1926-1929), Passagens Parisienses (1927-1929), Metrópole Berlim (1929-1930), Crônica Berlinense (1932), Infância em Berlim por volta de 1900 (1932-1938), Obra das passagens (1927-1940).
30
dedicado à Belém e transcrito abaixo, ajuda a visualizar a noção de cidade como
articulação de partes de um todo expressivo:
[...] Ao antigo monumento da igreja jesuítica barroca, aos templos de
Landi, à arquitetura civil lusitana dos sobradões, das lojas e botequins
assobradados, à maneira de Lisboa, e às casas de platibanda com
fachada de azulejos e puxada, construídas por mestres de obras
portugueses, acrescentam-se à arquitetura, os lampadários, os relógios
públicos fin de siècle, as ruas calçadas, ajardinadas, arborizadas,
higienizadas, que reconfiguram a estética metropolitana, remoldando
sua fisionomia. É uma fisionomia multíplice – com sua fisiognomonia, os
seus traços expressivos comuns – repartida entre estilos vários, de
tempos ou períodos diferentes, que convivem em um mesmo espaço e
se harmonizam. Belém perderia a face sem o seu barroco, sem as suas
árvores. Mangueiras, igrejas de Landi, Teatro da Paz e até mesmo a
enseada do Ver-o-Peso de tantos cartões postais [...]. (NUNES;
HATOUM, 2006, p. 29).
Como se percebe, o filósofo paraense enfatiza o conjunto arquitetônico
como algo fundamental para compor a face fisionômica - e diversificada - da
cidade.
Em Fisiognomia da Metrópole Moderna, Willi Bolle assinala que:
[...] O objetivo (de Walter Benjamin) comum de todas estas obras era
representar a grande cidade contemporânea como espaço de
experiência, sensorial e intelectual, da Modernidade. Benjamin mostra a
cidade como palco de conflitos sociais, de revolta e revolução, como
espaço lúdico do flâneur contracenando com uma multidão erotizada,
como labirinto do inconsciente individual e coletivo que ele se propõe a
decifrar. (BOLLE, 1994, p. 271-272).
Canevacci (1993, p.19), por sua vez, afirma que o olhar de Walter
Benjamin lançado sobre Paris é “[...] decisivo para a compreensão de qualquer
metrópole atual e suas polifonias comunicativas”. Mais ainda, o autor de A
Cidade Polifônica (1993) considera que a narrativa da capital do século XIX,
realizada por Benjamin através da collage e da justaposição de fragmentos,
antecipa os métodos mais adequados e atuais para representação das cidades.
Neste trabalho pretendo, como já foi dito, “ler” e narrar a cidade de Belém,
observando algumas referências da obra de Benjamin.
Não se deve esquecer de enfatizar que Walter Benjamin trata da cidade do
séc. XIX, a cidade moderna. Mas não só isso: o filósofo alemão descreve a
31
capital cultural daquele período. Do centro do sistema imperialista, Paris irradia
modelos e padrões estéticos que influenciam, de maneira fundamental, diversas
capitais da periferia global, mundo afora. Com todos os seus prazeres e mazelas,
utopias e pesadelos. É bom lembrar que na época vivia-se em Belém, apelidada
por alguns de a “Paris dos trópicos”, a ilusão de proximidade do centro do
sistema. A cidade era o porto principal de escoamento da produção amazônica
do látex, produto indispensável para expansão da indústria mundial, o que
posteriormente denominou-se ‘Era da Borracha’,
Segundo Paulo Nunes:
[...] a sofisticação da ‘dinastia de gardênia12
’. Implantada pelo intendente
Antônio Lemos, transformou Belém, na virada dos séculos XIX para o
XX, numa cidade próspera, [...] que foi cognominada por alguns
visitantes dentro e fora do Brasil como a ‘Paris n’América’. (NUNES,
2007, p. 159).
Permeava, especialmente em setores de nossa elite, enriquecida pela
economia do látex, a ideia de uma vida urbana glamourosa, moderna e
sofisticada. O objetivo dos setores sociais dominantes e da administração pública
era o reordenamento da cidade com a adaptação do espaço urbano a novos
modelos estéticos e funcionais. Procurou-se inserir a cidade na era da
modernidade, em sintonia com os padrões da sociedade européia, como
demonstra o texto da historiadora Nazaré Sarges:
[...] Da Europa, especialmente da França, é que veio o modelo de
urbanismo moderno, reproduzido em Belém com expressividade durante
a administração do intendente Antônio José de Lemos, através de
construção de boulevards, praças, bosques, asilo, mercados,
calçamento de ruas, bem como de uma rigorosa política sanitarista. [...].
(SARGES, 2010, p. 20).
A lógica da nova ordem econômica, ao mesmo tempo, exigiu ações de
saneamento e embelezamento de diversos espaços da cidade e impôs a
12
“A gardênia era a flor que simbolizava o luxo e a sofisticação de Antônio Lemos. [...] Seus seguidores mais próximos disputavam quem doaria as gardênias para que o intendente de Belém usasse na lapela de seu fato.” (NUNES, 2007, p. 159).
32
transferência de boa parte da população pobre para espaços distantes do centro
urbano. Sarges (2010) esmiuça este processo na referência a seguir:
[...] Nessa cruzada pela reurbanização da cidade, Antônio Lemos baixou
normas rigorosas, proibindo licenças para construção, reparos ou
concertos de cortiços, alertando os proprietários de prédios próximos à
Praça da República que, na impossibilidade de adequar seus prédios à
nova estética da cidade deveriam vendê-los ou abandoná-los. [...] O fato
é que a reforma da cidade [...] representou o desalojamento da
população pobre e a discriminação espacial das classes sociais, embora
essa população marginalizada pelos mecanismos de controle do Estado,
depois de um certo tempo, tenha voltado a disputar com a elite o espaço
de onde fora anteriormente expulsa. (p. 200-201).
O chamado “ciclo do látex” teve seu declínio a partir de 1910 com a queda
dos preços da borracha, gerada pela concorrência asiática. Deixou, entretanto,
marcas significativas vividas e sonhadas ao longo do século XX e, ainda hoje,
não apenas na fisionomia da cidade como também no imaginário de diversos
setores de sua população. Em A Cidade Sebastiana, o historiador Fábio Castro
aponta para uma melancolia coletiva, em nossa sociedade, que ecoa através de
uma memória que romantizou a “Era da Borracha”, convertendo este passado
em uma utopia reversa que propaga a ilusão, especialmente em setores da elite
econômica, de um retorno aos tempos de esplendor que obscurece a imagem do
presente e a construção do futuro (CASTRO, 2010).
O mito de uma era de progresso e modernidade em nossa capital
periférica também é abordado por Willi Bolle, em sua leitura da cidade de Belém,
a partir do romance Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir. Bolle (2008)
também aponta para as contradições em nossa região, marcada por estruturas
de exploração colonialista desde a época da fundação da cidade de Belém, dos
fenômenos de “modernização” como aquele experimentado no auge da
economia da borracha. Com base na observação da cidade e na leitura do
romance de Dalcídio, Bolle (2008) relativiza o contraste entre um período de
esplendor e uma época de decadência:
[...] a queda da borracha no mercado internacional, a consequente crise
econômica e o empobrecimento das famílias [...] talvez tenham sido
apenas fenômenos de fachada, atrás dos quais avultam estruturas
econômico-político-sociais de longa duração, que foram encobertas por
33
um período que se comprazia na ostentação de seu esplendor. São
estes fenômenos – a permanência de estruturas colonialistas e
escravocratas, o extrativismo desenfreado e a impiedosa exploração da
mão de obra – que mostram que a crise se localiza num nível muito
mais profundo. O tempo da decadência e da crise não existe
isoladamente, isto é: não se limita aos fenômenos aparentes dos anos
1920 e 1950. Ele á permanente e estrutural: iniciou-se na época em que
foram fundados o Estado do Grão-Pará e seu baluarte de defesa, a
cidade de Belém, e se estende até o ano da publicação do romance de
Dalcídio Jurandir e, possivelmente, até o tempo atual [...]. (p.112).
No contexto histórico da modernidade europeia, Benjamin, “leitor” de
Berlim, de Paris e de Baudelaire, evidencia as contradições entre os mitos que
cercam a modernização e o progresso e as reais condições de miséria e
exploração humana como evidencia o texto a seguir:
[...] O século XIX não soube corresponder às novas possibilidades
técnicas com uma nova ordem social. Assim se impuseram as
mediações falaciosas entre o velho e o novo, que eram o termo de suas
fantasmagorias. O mundo dominado por essas fantasmagorias é – com
uma palavra-chave – encontrada por Baudelaire – a Modernidade.
(BENJAMIN apud BOLLE, 1994, p 24).
O método utilizado pelo autor para interpretar e representar sua época,
baseado na collage, na justaposição de retalhos, reúne, em uma montagem
surrealista (BOLLE, 1994), uma constelação de fragmentos urbanos. Em muitos
momentos o autor coleciona e relaciona os resíduos, tudo o que aparentava ser,
na época, de pouca relevância histórica ou secundário: a publicidade, a
fotografia, as mercadorias, a moda, o jogo, o colecionador, a prostituição, o
flâneur, as ruas e galerias. Utiliza, enfim, estes elementos como referência de
percepção e análise crítica, decifrando os traços do presente e indicando o futuro
que se advém.
Assim, não me parece artificial “adaptar” uma fisiognomia benjaminiana na
leitura que se deseja fazer da cidade de Belém, ou de qualquer outra metrópole.
Daí é que se pretende, de algum modo, estabelecer aqui uma fisiognomia, mais
visual do que verbal, da “metrópole equatorial”.
34
2.2 - A COMUNICAÇÃO URBANA
Máximo Canevacci (1993) compara a comunicação urbana a um coro
formado por múltiplas vozes autônomas, com suas diversas regras, estilos e
improvisações. Para o antropólogo, a cidade deve ser lida e interpretada por
meio de pontos de vista diferentes, de caráter teórico e empírico aplicado. Assim,
Canevacci sustenta que:
[...] por meio da multiplicação de enfoques – os “olhares” ou “vozes” –
relacionados com o mesmo tema, seja possível se avizinhar mais à
representação do objeto de pesquisa, que é, neste caso, a própria
cidade. (p. 18).
O autor define “a cidade polifônica” como uma cidade narrada com
diversas técnicas interpretativas diferentes, como:
[...] a abstração epistemológica da forma cidade e as emoções do
perder-se no urbano, a seleção fotográfica de alguns edifícios
arquitetônicos significativos e a linguagem literária da sua
representação, Lévi-Strauss e Walter Benjamin, Sant’Elia e Guimarães
Rosa, Italo Calvino e Gregory Bateson. (p. 18).
Tendo São Paulo como seu objeto de pesquisa, Canevacci (1993) alia às
interpretações das referências já citadas à sua percepção da comunicação no
espaço urbano daquela cidade para desenvolver, com textos e fotografias, uma
‘cartografia’ expressiva da capital paulistana, somando as diversas ‘vozes’ por
ele selecionadas.
Segundo o conceito de polifonia urbana, diversos elementos perceptíveis
na paisagem nos comunicam de alguma forma, através de todos os sentidos.
Entretanto, é nítida a força do caráter visual na comunicação que ocorre nas ruas
das grandes cidades, em especial no contexto latino americano. Assim é que me
vejo incentivado a citar Nestor García Canclini. Segundo Canclini (2008, p.162),
“[...] Na nossa América latina, onde o analfabetismo começou a ser minoritário há
poucos anos e não em todos os países, não é estranho que a cultura seja
predominantemente visual”. Isto pode ser observado quando se verifica que,
mesmo em letreiros, pichações e cartazes, a grafia da palavra é estilizada,
35
reveste-se através da forma, da cor e da composição de valores estéticos
manipulados pela linguagem visual.
No espaço diverso e complexo da comunicação visual na cidade são
identificados alguns elementos como:
- Publicidade no Espaço Público: múltiplas formas de comunicação, mídia
exterior, outdoor, luminosos, painéis digitais etc. que possuem permissão legal
para ocupar o espaço público. Isto não elimina o caráter imperativo, quase
autoritário deste tipo de publicidade que nos interpela em nosso trânsito pela
cidade sem que tenhamos, como cidadãos comuns, qualquer poder de decisão.
O fragmento de Benjamin, citado a seguir, alerta para a “nuvem de
gafanhotos”, já em 1928, e profetiza o crescimento desta “praga” no futuro das
metrópoles:
[...] Nuvens de gafanhotos de escrita, que já hoje em dia obscurecem o
sol do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, tornar-
se-ão mais densas a cada ano que passa. (BENJAMIN apud BOLLE,
1994, p 271).
A vivência em Belém, cidade carente de regulação e controle deste tipo de
publicidade, provavelmente irá fornecer ao leitor inúmeras imagens saturadas e
poluídas. Exemplo ilustrativo é a Rua João Alfredo, no centro comercial, que
outrora tinha uma configuração um tanto europeia.
- Inscrições urbanas, registros marginais: o critério de distinção, em
relação à publicidade, é o fato de que se processam em circunstâncias e
suportes, de certa forma, marginais, fora dos meios institucionais. Pichações,
grafite, inscrições urbanas surgem dos sussurros das periferias sociais e culturais
e se propagam ilegalmente nas “páginas” (muros, paredes, painéis etc.) das
cidades.
- O espaço construído: embora não seja elaborado com finalidade
exclusivamente simbólica, comunicativa, sem que as vezes se perceba, o espaço
construído, nos interpela de diversos pontos de vista. Não é demais lembrar Felix
Guattari (1992, p.158), para quem “[...] Os edifícios e construções de todos os
tipos são máquinas enunciadoras”.
36
2.3 - A CIDADE: uma escultura da sociedade?
Segundo o pesquisador do urbanismo Kevin Lynch (1982, p.11): “[...] a
cidade é uma construção no espaço, mas uma construção em grande escala,
algo apenas perceptível no decurso de longos períodos de tempo”. Entretanto, os
homens, as atividades e as relações sociais desenvolvidas neste espaço são
mais importantes que suas partes fixas ou imóveis. A cidade é o produto de
múltiplos construtores, que constantemente modificam sua estrutura. Na maior
parte das vezes a percepção que os habitantes têm da cidade não é íntegra, mas
parcial, fragmentada, resultado do processo de superposição entre a percepção
imediata e a somatória de memórias e significações resultantes das relações
estabelecidas ao longo do tempo entre os indivíduos e algumas partes da cidade
(LYNCH,1982).
Para este processo de percepção, e, por que não, de comunicação entre o
ambiente produzido - carregado de significações e resignificações - e o cidadão,
envolvem-se os cinco sentidos. E a imagem é o composto resultante de todos
eles:
[...] Tal como esta página impressa, sendo legível, pode ser
compreendida visualmente como uma estrutura de símbolos
reconhecíveis, assim também uma cidade legível seria aquela cujos
bairros, sinais de delimitação ou vias são facilmente identificáveis e
passíveis de agrupamento em estruturas globais. (LYNCH,1982, p.16).
O caráter de ‘tessitura’ urbana como um texto de narrativa não linear, trama
heterogênea composta de dimensões espaciais e temporais diversas, leva Canclini a
sugerir que seu livro, Culturas Hibridas (2008), seja utilizado como uma cidade:
[...] na qual se entra pelo caminho do culto, do popular ou do massivo.
Dentro, tudo se mistura, cada capítulo remete aos outros, e então já não se
importa mais saber por qual acesso se entrou. (p. 20).
Para este processo de percepção e de comunicação entre o ambiente
produzido (carregado de significações e ressignificações) e o cidadão, envolvem-
se os cinco sentidos, além da imagem que é o composto resultante de todos
eles.
37
Na formação das imagens do meio ambiente, é o observador que, a partir
de sua visão de mundo e interesses próprios, elege e estrutura, dotando de
sentido aquilo que vê. Portanto, a imagem da cidade pode e deve mudar a partir
da diversidade dos observadores. Podemos relacionar este conceito com a visão
de linguagem como interação social de Bakthin, em que o Outro desempenha um
papel fundamental na constituição do significado. O interlocutor não seria um
elemento passivo no processo de significação. Sua concepção de signo
linguístico é a de signo dialógico, vivo, dinâmico (BRANDÃO, 2004)
Kevin Lynch (1982) estrutura a imagem da cidade a partir de cinco
elementos morfológicos:
1) Vias: “[...] São canais ao longo dos quais o observador se move: ruas,
calçadas, linhas de trânsito, estradas-de-ferro” (LYNCH,1982, p.58). Seriam os
mais importantes elementos estruturantes da percepção ambiental, pois é ao
longo de seu percurso que o indivíduo percebe e organiza os demais elementos
que compõem a paisagem urbana.
Caminhos d’água: em Belém, antigos caminhos também eram os rios e
igarapés. Hoje, apesar de aterrados e soterrados pelo tempo13
, permanecem
como dado fundamental da memória, expresso nas mais diversas formas de
linguagem - “Por este mundo de águas” (ANDRADE,1927, p. xx) “Este rio é
minha rua” (PAULO ANDRÉ E RUY BARATA)14
.
São imagens que, além da palavra, permeiam a produção artística e
cultural ou ainda, o imaginário e a realidade da população da urbe ou ribeirinha.
2) Bairros (critério perceptivo e não administrativo): são partes
razoavelmente grandes da cidade na qual o observador “entra”, e que são
percebidas como possuindo alguma característica comum, identificadora:
13
De acordo com Antônio Rocha Penteado, o desenvolvimento da cidade é marcado na primeira metade do século XIX pelo “[...] aterro do Piry, baixada alagadiça, que desde as origens de Belém, se destacara como importante elemento da geografia urbana [...]” (PENTEADO, 1968, p.113). A presença de áreas alagadas no sítio de Belém, já havia motivado, em 1771, a elaboração de um plano, nunca posto em prática, de abertura de canais em Belém, idealizado pelo engenheiro militar Gaspar João Gronfelts e apresentado ao governador da época, Ataíde Teive (PENTEADO, 1968). 14
Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/paulo-andre-barata/este-rio-e-minha-rua.html>. Acesso em: 14 maio 2012.
38
texturas, formas, detalhes, símbolos, tipos de edificação, atividades, habitantes
etc. (LYNCH,1982).
Cidade Velha/Cidades Novas: a partir do limite da água Belém nasce na
“Cidade Velha” o bairro de sua fundação e cresce para o interior até construir
inúmeras “Cidades Novas” I,II,III..., que se desenvolvem acompanhando as vias
estruturais da cidade.
A cada articulação dos eixos vai-se penetrando em novos bairros que
também são limites de várias “Beléns” com claros contrastes de qualidade
ambiental. Áreas distantes do centro urbano, ocupadas por grupos de diferentes
padrões socioaquisitivos, têm paisagem absolutamente diferente da imagem que
a cidade apresenta até a primeira légua patrimonial. No entorno de eixos de
expansão como a Br 316 ou a rodovia Augusto Montenegro, Belém tem outra
fisionomia, há muito (tempo e espaço) deixou de ser a cidade das mangueiras e
se assemelha às cidades áridas que crescem a beira de estradas, sem esquinas,
praças, arborização e, principalmente, na minha visão, sem o devido cuidado e o
planejamento que o cidadão merece.
3) Pontos nodais: pontos estratégicos, onde o observador pode entrar.
Funcionam como elementos de articulação entre origens e destinos. Variam em
função da escala do todo que se está analisando podem ser esquinas, praças,
grandes estações, bairros (LYNCH,1982).
Nós desatados: ao longo do percurso a que este trabalho se dedica posso
observar antigos pontos nodais próximos uns aos outros - Largo da Sé, Ver-o-
Peso, Castilhos França esq. com Presidente Vargas, esq. do Ed Manuel Pinto da
Silva. Materialização do tempo em que as pessoas ainda podiam cruzar toda
extensão da cidade a pé ou através da tração animal. Com o crescimento da
cidade, a implantação de novas tecnologias de transporte (bondes e automóveis)
e a expansão da malha viária, os centros são deslocados, distanciados e a
estrutura de pontos nodais e subnodais da urbe é rearticulada.
39
4) Marcos: elementos de diversas escalas, pontuais: torres, domos,
edifícios, esculturas etc. Sua principal característica é a singularidade, algum
aspecto que é único ou memorável no contexto (LYNCH,1982).
Ver-o-Peso: implantado em área de grande riqueza e complexidade
cultural15
, o galpão de ferro do Mercado de Peixe do Ver-o-Peso tornou-se um
marco na paisagem em que está inserido, no entre-lugar entre o espaço
ribeirinho e o continente urbano. A distância, vejo como seu aspecto exterior
possui características volumétricas e topológicas que o destacam e o diferenciam
do entorno: as verticais, pontiagudas e inusitadas torres metálicas, que imitam
campanários medievais, conferem heterogeneidade à forma do galpão em
contraste com o horizonte da Baia do Guajará e a uniformidade e repetição do
casario; no aspecto topológico percebo a localização “solta”, em área livre, que
permite sua visualização, a partir de diversos pontos de vista (da Praça do
Relógio, do Boulevard Castilhos França, da Baia do Guajará), em contraste à
compactação dos sobrados sem recuos laterais. Complementam o efeito de
contrate a cor e a textura das chapas de ferro azul-acinzentado ao lado de
antigas fachadas, recobertas de azulejos. Ao me aproximar e, finalmente, entrar
no galpão, minha atenção se desloca rapidamente da arquitetura para as
impressões polifônicas provocadas pelos cheiros, sons, sabores, movimento
humano e pelas dimensões, cores e formas das espécies amazônicas de peixes
expostas, postas retalhadas, postas à troca.
5) Limites: são elementos percebidos no encontro entre duas áreas
distintas, gerando interrupções lineares na continuidade. Podem ser permeáveis
à circulação ou não. O excesso de limites que funcionam como barreiras, e não
como fronteiras porosas, pode impossibilitar trocas fundamentais dos pontos de
vista social, cultural e econômico para a cidade (LYNCH,1982).
O grande limite: a vista do mapa de Belém permite constatar grandes
limites que conformam historicamente sua expansão urbana: os mananciais, as
áreas institucionais e um grande limite natural poroso à navegação – a Baia do
Guajará. Aqui a natureza se impõe, a “frente” da cidade é encharcada de água.
15
O Mercado de Ferro do Ver-o-Peso foi inaugurado em 1º de dezembro de 1901.
40
Rio ou mar para um visitante? Impressiona o volume e limita
inquestionavelmente a vida da urbe e a vida do “além mar”, do ribeirinho. As ilhas
que, politicamente compõem o conjunto do município, até o presente, têm
realidade cotidiana completamente diferenciada do centro de Belém. Isto se
reflete cultural e economicamente na experiência diária dos cidadãos.
Interessante perceber, também, como limites artificiais como galpões, edifícios,
portos, muros e grades cercaram, ao longo do tempo, a orla da cidade. Apesar
da configuração peninsular do sítio de Belém, o indivíduo que percorre a cidade
dificilmente pode desfrutar das vistas do Rio Guamá e da Baia do Guajará.
Intervenções governamentais urbanas recentes objetivam possibilitar o uso da
orla e estas perspectivas à população.
Outros limites: em seu estudo, Lynch (1982) explora limites urbanos
físicos. Na imagem da cidade podemos refletir também sobre os limites
simbólicos. As cidades, especialmente em sociedades marcadas por graves
desigualdades como a nossa, materializam em sua paisagem grandes diferenças
entre “centro” e “periferia” ou entre áreas ocupadas pela elite e áreas destinadas
à população de baixa renda. A oferta de infraestrutura urbana, os serviços
públicos como segurança, saneamento, investimento em esporte, lazer e cultura
geram no espaço urbano um forte contraste de imagem entre “duas ou mais
cidades” que convivem com mútua desconfiança. Os limites entre estes espaços
podem ser delimitados fisicamente como por muros e portarias vigiadas dos
condomínios, clubes sociais ou simbolicamente pelas atitudes, censuras e
valores estéticos expressos pela arquitetura, vestuário, objetos e até mesmo pela
fisionomia população.
Estes limites são bem representados pela brilhante leitura de nossa cidade
feita pelo escritor paraense Dalcídio Jurandir16
. Em Belém do Grão-Pará, a
personagem Alfredo, alter-ego de Dalcídio, transita entre as duas cidades: da Av.
Nazaré à periferia como os bairros do Reduto17
e do Guamá. Neste romance, as
16
Ver tese de Paulo Nunes, defendida, com orientação de Audemaro Taranto Goulart, na PUC-MG, em 2007. Cf. referências deste trabalho. 17
O bairro do Reduto, à época na qual se desenrola a narrativa de Belém do Grão Pará de Dalcídio Jurandir, era um bairro marcado por atividades portuárias e ocupado, em grande parte, pela classe operária. Atualmente, em razão do crescimento da cidade e das transformações urbanas, constitui-se como um dos bairros mais valorizados de Belém, alvo de forte especulação imobiliária.
41
diferentes facetas da cidade aparecem em consonância com a própria natureza
da personagem que, ele mesmo, filho de mãe negra e de pai de origem
portuguesa, transita e constrói sua identidade entre dois mundos sociais bastante
distintos. Sua primeira moradia em Belém, na Gentil Bittencourt nº 650, situa-se
em um espaço configurado, naquela época, como uma zona de fronteira entre a
cidade das classes marginalizadas e a cidade da elite que, embora decadente
pelo colapso da economia da borracha, ainda aspira pelo status que a
localização da residência na cidade pode conferir (JURANDIR, 2004).
Em Belém, como em outras cidades, a topografia foi fator preponderante
para a ocupação social do solo e, portanto, para delimitação dos limites físicos e
simbólicos. A classe de maior poder aquisitivo e os principais investimentos
públicos concentraram-se nas áreas de cotas topográficas mais elevadas,
justamente na “espinha do peixe” (Av. Presidente Vargas, Av. Nazaré). Os altos
edifícios, construídos a partir da década de 50, geram a vista de uma “muralha”
construída de costas para o rio, justamente na cidade que tanto deve
historicamente a sua relação com as águas. As “bordas” da cidade, áreas de
cotas mais baixas, próximas à água e sujeitas às inundações foram ocupadas
pela população de baixo poder aquisitivo e tratadas sem o devido planejamento e
cuidado do poder público.
As chamadas “baixadas”, apinhadas de moradias de madeira, são um
traço característico de nossa região. Cidade flutuante, suspensa. Conjunto de
traços, planos e volumes em arranjo caótico, palafitas, casebres e estivas se
multiplicam compondo um cenário que, embora insalubre e miserável, produz
algum tipo beleza que advém da espontaneidade, da heterogeneidade de ações
individuais, da textura dos materiais, da proximidade com a água, da
singularidade “regional” desta imagem que incorpora saberes construtivos e
materiais das populações locais amazônicas ou, simplesmente, da brutalidade do
impacto e do “estranhamento” que a visão gera para quem costuma transitar no
“centro da cidade”.
A imagem das baixadas (Ilustração 4) difere radicalmente da imagem das
periferias mais recentes marcada pela monotonia da repetição volumétrica pobre,
de edificações todas iguais. Alguns novos conjuntos habitacionais da cidade
42
expressam a homogeneização de uma massa com poucas possibilidades de
escolha. Nestes espaços, a monotonia do planejamento arquitetônico e
urbanístico comprime e constrange a diversidade e o espírito humano.
Com o crescimento da cidade, os limites são continuamente redefinidos,
transferidos. Zonas há bem pouco tempo periféricas, como o Igarapé das
Almas18
e o bairro do Umarizal, transformam-se em alvos da especulação
imobiliária e em áreas com o solo urbano de custo mais elevado da cidade. Hoje,
o apartamento no bairro do Umarizal, com vista para a baia do Guajará,
representa o grande sonho de consumo da elite da cidade. A orla de Belém
passa a atrair a atenção do poder público e privado e recebe investimentos
recentes que começam a transformar a imagem da cidade como a Estação das
Docas, o Ver-o-Rio e o Portal da Amazônia19
a ser inaugurado.
18
Igarapé das Almas era a denominação do antigo sítio periférico alagadiço no qual se localiza, atualmente, a área de Belém que possui o mais elevado custo do solo urbano – o entorno da Doca de Souza Franco. 19
Novo trecho da orla de Belém, composto por via e passeios públicos, construído às margens do Rio Guamá pela gestão municipal a ser inaugurado neste ano de 2012.
43
Ilustração 4 - Baixada de Belém
Fonte: desenho do autor, 2011.
44
III - CIDADE, ARTE E MEMÓRIA
45
III - CIDADE, ARTE E MEMÓRIA
Quando se trata de analisar relações entre arte e cidade, parece
necessária a observação do aspecto dinâmico da função e do conceito de
atividade artística. Segundo Bourriaud (2009, p. 21): “[...] a atividade artística
constitui não uma essência mutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e
funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais”.
O filósofo Arthur Danto, em Após o Fim da Arte, observa que o
Renascimento teria sido o período no qual o conceito de artista e atividade
artística tornou-se central. Danto considera, valendo-se de análise do historiador
da arte Hans Belting, que as obras ou imagens produzidas pelo Ocidente cristão,
em geral de forte caráter religioso, desempenhavam na vida da comunidade um
papel diferente daquele que as obras de arte passaram a ter quando o “[...]
conceito finalmente emergiu e alguma coisa como relações estéticas vieram a
governar nossas relações com elas. Elas nem eram pensadas como arte no
sentido elementar de serem produzidas por artistas [...]” (DANTO, 2006, p. 5).
Da mesma forma, Danto (2006, p. 5) sugere o passado recente (últimas
décadas do século XX) como momento histórico de outra ruptura ou
descontinuidade “[...] da arte produzida durante a era da arte e a arte produzida
após o término desta”. Importante dizer que Danto (2006) não aponta, entretanto,
para a “morte” da arte, mas para uma forma de narrativa que se completa, uma
história que acaba. “[...] O que havia chegado a um fim era a narrativa, e não o
tema da narrativa” (DANTO, 2006, p. 5).
Embora ainda falte distanciamento histórico para análise, parece que o
sentimento de não pertencer a uma grande narrativa trata-se de um aspecto da
arte contemporânea. Segundo Belting (apud DANTO, 2006, p. 6), a arte
contemporânea “[...] manifesta uma consciência da história da arte, mas não a
leva adiante”. De acordo com Arthur Danto (2006):
[...] A busca incessante pelo novo, o repúdio ao passado é um traço
marcante da modernidade. “A arte contemporânea nada tem contra o
passado, nenhum sentimento de que o passado seja algo de que é
preciso se libertar e mesmo nenhum sentimento de que tudo seja
completamente diferente, como em geral a arte da arte moderna. É
46
parte do que define a arte contemporânea que a arte do passado esteja
disponível para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar [...].
O paradigma do contemporâneo é o da colagem...” (p. 7).
Bourriaud (2009), por sua vez, demonstra a influência para as vanguardas
artísticas do século XX do projeto ideológico moderno calcado na esperança no
progresso das técnicas e das liberdades, na transformação da cultura e das
mentalidades em um processo de emancipação dos indivíduos e dos povos.
Entretanto, os acontecimentos históricos do século XX demonstraram que,
melancolicamente, o progresso das técnicas e da “razão” também propiciaram o
estouro de duas grandes guerras, a substituição do trabalho humano pelas
máquinas, a exploração e técnicas de manipulação mais sofisticadas.
Atualmente, as formas de expressão artística não se apresentam mais
como prenúncios de uma inexorável evolução histórica. Hoje a arte não anuncia
ideologicamente “[...] um mundo futuro, mas apresenta modelos de universo
possíveis” (BOURRIAUD, 2009, p.18). A tarefa da arte e da arquitetura pós-
moderna seria a de “aprender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar
construí-lo a partir de uma ideia pré-concebida de evolução histórica”
(BOURRIAUD, 2009,p.18).
Trata-se de atuar dentro da realidade existente “[...] sempre se toma o trem
do mundo em movimento” como nos fala Althusser. Ganham relevo as práticas
de bricolagem e reciclagem do dado cultural.
Canclini (2008), por outro lado, observa que, para pensar a
heterogeneidade latinoamericana, complexa articulação de tradição e
modernidade,
[...] é útil a reflexão anti-evolucionista do pós-modernismo [...] Sua crítica
aos relatos onicom-preensivos sobre a história pode servir para detectar
as pretensões fundamentalistas do tradicionalismo, do etnicismo e do
nacionalismo, para entender as derivações autoritárias do liberalismo e
do socialismo. (p.28).
Neste ponto faz-se necessário construir conexões possíveis entre estes
conceitos pós-modernos e as teorias e práticas de valorização do patrimônio
cultural que conduzem a uma tendência mundial observada em diversos espaços
urbanos, de reciclagem e reutilização do patrimônio arquitetônico.
47
Segundo Le Goff (2003), o fim de uma época de esperança ilimitada no
futuro, originada no Iluminismo, tem significativas relações com o atual momento
de valorização do passado. Naquele período, denominado “Era da Razão”, a
sociedade europeia começa a reorientar a sua visão de mundo, antes voltada
para a “grandeza” ou “majestade” do passado histórico, deslocando suas
atenções para “futuro” e o “progresso”. Por outro lado, a não efetivação do plano
de construção de uma sociedade mais justa e fraterna, dentre outras decepções,
minaram o otimismo contido naquela visão de civilização e progresso.
A independência diante da história e o caráter radicalmente livre e reflexivo
marcam a arte dos últimos anos, implicando uma nova relação entre essa e o
mundo. A arte e suas manifestações assumem uma forma plural, se movem num
amplo espaço de atuação. Para Danto (2006), o momento contemporâneo da
arte, chamado por ele de "momento pós-histórico", é de profundo pluralismo e
total tolerância, em que nada é excluído.
Tendo em vista a abertura do conceito de arte, bem como a condição
histórica dinâmica de seus processos e o questionamento (por vezes advindo do
interior da própria arte) de seus critérios de distinção em relação aos demais
dados da cultura, não procuramos, aqui, no percurso urbano analisado, identificar
fatos urbanos específicos como obras de arte ou processos artísticos escolhidos
e separados por determinado critério de valor no contexto urbano. Procuramos
desenvolver uma análise do trabalho de múltiplos construtores ao longo do
tempo, que é a cidade - materialização e manifesto ético e estético de relações
sócio-culturais.
Por outro lado, a vivência e a percepção, mediada pela memória, do
espaço da cidade de Belém, com sua riqueza de referências culturais e
ambientais, pode ser observada como uma das influências fundamentais no
trabalho de diversos artistas contemporâneos da região. A textura cultural
abundante oferece imagens que podem alimentar a palavra, a colagem, o
“congelamento”, o conceito, a criação de novos significados para a leitura da
cidade pelo homem, gerador de cultura.
Giulio Carlo Argan, nos escritos incluídos na coletânea História da Arte
como História da Cidade, reafirma a identidade entre cidade e arte. Vê o espaço
48
urbano de uma forma ampla, parte de um todo e que abrange “[...] também os
ambientes das casas particulares; o retábulo do altar da igreja, a decoração do
quarto de dormir ou da sala de jantar, até mesmo o vestuário e o ornamento com
que as pessoas se movem, recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade”.
O estudioso também considera as extensões da influência da cidade na zona
rural, já que “[...] O espaço figurativo não é feito apenas daquilo que se vê, mas
de infinitas coisas que se sabem e se lembram, de notícias” (ARGAN, 1993,
p.73).
A partir do que foi dito, é de se considerar, no caso de Belém, o volume de
objetos e fatos produzidos com rigor profissional e a espontânea e expressiva
criação e construção popular. Das palafitas da periferia ou das casas ribeirinhas
ao fato social do Círio de Nazaré quando o corso pode ser a cena e, a cidade, o
cenário de nosso grande espetáculo teatral.
Espetáculo de cena e cenário de proporções desmesuradas que se
superpõe ou até transcende o espaço da metrópole. Toda a região é envolvida,
incluindo as ilhas e vias do entorno de Belém e dois milhões de atores participam
do desfile. Teatro e peça gigantesca, mas cuidadosa e sofisticada com os
pequenos detalhes como o manto da santa, o arranjo das flores, as oferendas, o
miriti, a culinária. A cada ano se renova o cartaz que traz a Virgem. Ela é
protagonista há mais de dois séculos.
O aspecto teatral do Círio é observado por Eidorfe Moreira (1971, p. 7) nas
linhas transcritas a seguir: “[...] Esse aspecto lúdico, hoje sensivelmente
atenuado, como já assinalamos, tem levado muitos a ver no Círio uma espécie
de carnaval devoto [...]”.
A multidão que se arrasta como uma cobra, a Cobra Grande, talvez, é
prova cabal da maturidade e civilidade da sociedade. Como partes de um grande
corpo, cultura e fé se mimetizam criando matizes no grande corso.
Argan (1993) também alerta a respeito dos perigos que existem para uma
sociedade que considera seus objetos de arte como fragmentos do passado,
desconectados de um contexto atual. O que faz com que se considere como
obras de arte apenas o que está dentro dos museus, o que, consequentemente,
contribui para que cada vez mais os fatos urbanos não sejam vistos como fatos
49
artísticos. Aí pode-se pensar na flexibilização do conceito atual de museu, aquele
que pode ter em seu espaço expositivo a paisagem externa urbana ou rural
(museu contextual, eco-museu etc.)
Outro estudioso da arquitetura e da cidade, Aldo Rossi (1995), procura
estreitar os laços entre arte e espaço urbano:
[...] Entendo a arquitetura em sentido positivo, como uma criação
inseparável da vida civil e da sociedade em que se manifesta; ela é por
natureza coletiva. Do mesmo modo que os primeiros homens
construíram habitações e na sua primeira construção tendiam a realizar
um ambiente mais favorável à sua vida, a construir um clima artificial,
também construíram de acordo com uma intencionalidade estética. (p.
47).
A intencionalidade estética é, portanto, uma característica estável ou
inseparável da arquitetura e, assim sendo, da constituição coletiva das cidades.
Aldo Rossi (1995) escreve sobre fatos urbanos - igrejas, casa particulares,
monumentos, praças etc. - são singulares, únicos, pedaços de cidades. Podemos
fazer um paralelo com os conceitos de Argan (1993) quando Rossi afirma que:
“[...] na natureza dos fatos urbanos há algo que o torna muito semelhante, e não
só metaforicamente, à obra de arte” (ROSSI, 1995, p. 68). De acordo com o
autor, tal caráter artístico dos fatos urbanos está ligado à sua qualidade e
unicidade. Fatos urbanos são fatos artísticos quando são, coisa humana por
excelência.
A análise de Rossi também articula fatos urbanos e artísticos à memória
coletiva. Para ele, a forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade, e
existem muitos tempos na forma da cidade. A cidade não é por sua natureza,
uma criação que pode ser reduzida a uma só ideia básica.
Para o autor o que enriquece a cidade e os fatos urbanos – tanto antigos,
quanto novos - é a sua constante mutação. Ou seja, os diferentes tempos em um
mesmo núcleo urbano, o que demonstra uma cultura em transformação.
50
3.1 - CIDADE E MEMÓRIA
A Memória, enquanto fenômeno individual e psicológico, se estrutura como
um conjunto de funções psíquicas que conferem ao homem a capacidade de
armazenamento, conservação e atualização de impressões e informações. Neste
trabalho, analiso a memória como elemento essencial da identidade constituída
pelas relações humanas no lugar. Em História e Memória, Le Goff (2003)
observa a relevância da memória para a sociedade:
[...] num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma
perturbação do indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos
graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda,
voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações,
que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva. (p.
421).
Para Denys Cuche (2002, p. 175), a “[...] identidade social de um indivíduo
se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social [...]“.
Importante observar, também, que a dimensão urbana do lugar influencia a
constituição e a afirmação da identidade coletiva. O lugar é o lócus do
intersubjetivo, do coletivo. A memória de uma cidade ou de um lugar é, portanto,
uma memória coletiva.
O espaço urbano é um dos elementos que unem indivíduos e grupos
sociais entre si. A percepção do lugar na paisagem da cidade ancora a memória
dos indivíduos, não permite que suas memórias fiquem perdidas no tempo.
Como já foi dito, no entanto, nas cidades não há um composto de
experiências homogêneas. Uma memória social, que remeta a algum lugar, é
fruto de relações sociais estabelecidas naquele lugar por determinado grupo.
Essas relações têm diversas motivações, naturezas - podem ser de dominação,
de cooperação, de conflito etc. - e variam tanto no tempo quanto no espaço. Uma
mesma cidade abriga inúmeras memórias coletivas.
Tenho em conta também que, segundo Halbwachs (1990), as memórias
coletivas se materializam em registros, em documentos e em formas materiais
inscritas na paisagem. Esses registros transformam memória coletiva em
51
historiografia e preservam a memória da cidade. São eles que nos possibilitam
uma leitura contextualizada dos fragmentos urbanos remanescentes na
paisagem em constante transformação. Convém lembrar, porém, que, como
afirmou Foucault (2009), estes registros e documentos não são uma matéria-
prima totalmente objetiva. Eles são depoimentos, também, do poder da
sociedade sobre a memória e o futuro.
Mais uma vez, me valho de um alerta de Le Goff (2003):
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das
forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e silêncios da história são reveladores
destes mecanismos de manipulação da memória coletiva. (p. 422). .
Observamos uma tendência mundial, relativamente recente nas cidades
brasileiras, de preservação da herança cultural do passado. Além do já citado
descrédito da ideia de transformação radical da realidade, baseada na fé
ilimitada nos progressos científicos, podemos apontar outros motivos para este
movimento:
1. Se por um lado, percebemos a homogeneização do espaço global. Se
a intensificação dos fluxos materiais e simbólicos internacionais está
contribuindo para que todos os lugares sejam parecidos, por outro, ela
também vem dando estímulos para que cada lugar, na busca de
individualidade, procure se diferenciar o mais possível dos demais. Ou
seja, a tendência do aniquilamento da singularidade do lugar reforça
como postura contrária a busca desta última. O passado é uma das
dimensões mais importantes da singularidade. Materializado em formas
urbanas, exposto em espaços museográficos, vivo na cultura e no
cotidiano dos lugares, não é de se estranhar, então, que o suporte mais
sólido a essa postura de diferença venha sendo dado pelo passado.
52
2. Articulado às razões anteriores, o fator econômico identificado por
Poulot (2008). O estudioso demonstra como o turismo, com as
oportunidades econômicas que gera, faz da interpretação do
patrimônio, e mesmo da sua simulação, um significativo instrumento
para o desenvolvimento socioeconômico local.
A noção de George Yúdice (2004) de cultura enquanto recurso demonstra
que esta segunda perspectiva vai além da simples transformação do patrimônio
cultural em mercadoria:
[...] Debate-se - ou até mesmo, acredita-se - que o investimento
(sensível ao gênero e raça) em cultura fortalecerá a fibra da sociedade
civil, que, por sua vez, serve de hospedeiro ideal para o
desenvolvimento político e econômico. (p. 14).
Experimentamos, recentemente, um período de extensão do patrimônio
paralelo à transformação no conceito de cultura, isso conduz a uma abrangência
para diversidade e horizontalidade na abordagem das manifestações culturais,
populares, eruditas e massivas. O texto de Poulot (2008) demonstra o
aprofundamento das iniciativas de preservação do legado histórico:
[...] o patrimônio tornou-se um sinônimo de vínculo social. O imperativo
da conservação da herança, material e agora também imaterial, assume
a cada instante uma caráter mais geral e mais impositivo, encarado por
dispositivos legislativos e regulamentares que ampliam sem cessar seus
domínios de aplicação. (POULOT, 2008, p. 26).
O Projeto Belém da Memória, iniciativa que entrelaça cidade, arte e
memória, será abordado a seguir como um estudo de caso. Nesta ação concreta,
inserida no espaço urbano, a vivência, a crônica social e o sopro do tempo
passado chegam ao transeunte pelas possibilidades expressivas e criativas da
literatura.
53
IV - PROJETO BELÉM DA MEMÓRIA:
UM EXEMPLO ILUSTRATIVO
54
IV - PROJETO BELÉM DA MEMÓRIA: um exemplo ilustrativo
“De qualquer forma personalizada, Belém vira personagem, agindo num
certo meio, fadada a proceder de certa maneira. É uma persona
dramática, um modo de falar, de gesticular, de andar, de comer, deitar,
de dormir e sonhar. Já então a cidade se apresenta, ela mesma, como
um conjunto legível, um texto para nossa leitura reflexiva, silenciosa ou
em voz baixa”.
(Benedito Nunes)
Em 1998, o projeto de pesquisa e extensão Belém da Memória, idealizado
um ano antes pelos professores de literatura da Unama, Paulo Nunes e Josse
Fares, foi lançado. Pretendia, através da veiculação de significativos textos
literários de escritores brasileiros consagrados, garimpados pelos referidos
professores, transmitir as acuradas e sensíveis impressões desta cidade,
percebidas em diversas épocas, às quais foram associadas representações
icônicas da urbe. Mais do que isso, expressava a curiosidade e o afeto por
Belém, tanto pela pena de grandes escritores integrantes da primeira fase do
referido projeto - Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Max Martins, Dalcídio
Jurandir entre outros - quanto pelo corpo docente e administrativo daquela
instituição que concebeu e viabilizou a iniciativa.
Além da valorização crítica de diversos elementos do povo de Belém e seu
patrimônio cultural - dos carregadores da feira do açaí às damas da Belle
Époque; das palafitas ao Paris n’América - que, em conjunto, contraste ou
harmonia, poderiam transmitir uma expressão histórica e estética da cidade,
também procurava, este Projeto, a valorização e a ‘declamação’, de maneira
silenciosa, em locais públicos, de rico acervo literário impresso em placas fixadas
nos marcos visuais a serem instalados em logradouros urbanos elencados pelos
autores e executores do Projeto. Tudo com a devida aprovação da Prefeitura
Municipal de Belém e o apoio de instituições privadas e pessoas físicas dispostas
a apoiar esta iniciativa.
Tive a honra e o prazer de participar da iniciativa como ilustrador e
projetista gráfico. Graças a isso, pude desenhar e, por meio do desenho, ‘ler’ e
representar mais de 40 fragmentos urbanos de minha cidade e ainda observar
55
admirado mais de 40 imagens literárias compostas por escritores que diziam
aquilo que, por vezes, eu mesmo gostaria de saber dizer.
Lembro ainda de minha primeira leitura, coisa que devo ao projeto, da
famosa carta que Mario de Andrade escreveu em Belém20
, no ano de 1927, ao
amigo Manoel Bandeira. A encantadora descrição da cidade, observada de um
terrace do Grande Hotel, “chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí...” me
trouxe duas fortes impressões: o orgulho/vaidade, talvez provinciana, de
perceber minha cidade elevada, sem constrangimento, ao ponto de uma paixão,
por tão ilustre visitante e, logo em seguida, a decepção, a noção do vazio
deixado pela perda irremediável do Bem – O prédio do Grande Hotel, suprimido
da paisagem urbana “[...] ainda sólido e em condições de funcionamento”
(NUNES; HATOUM, 2006, p. 30). A saudade íntima do que não vi, nem vivi, e
que nunca mais impressionará outro Turista Aprendiz21
.
Foi justamente esta carta o primeiro texto reproduzido, ao lado do bico-de-
pena inicial que retratava o ‘perecido’ Grande Hotel, na primeira placa gravada
no ano 1999 (Ilustração 5). Desde então foram selecionados, ilustrados,
impressos e exibidos pelo projeto, no espaço da cidade, muitos outros textos,
que registram outras primorosas visões de Belém. Este ritual se repetiu por mais
de quarenta vezes do Forte do Presépio, ponto inicial do tecido urbano ao Hotel
Farol na Ilha do Mosqueiro22
.
20
Este texto, a partir de sua “publicação” no BM, foi mais difundido e reconhecido por várias instituições da cidade, as quais passaram a citá-lo. Não que o texto fosse inédito, mas, provavelmente, o alcance do projeto intensificou sua veiculação. Casas comerciais e de entretenimento passaram a usar a carta de Mário, como um modo de demonstração de afeto pela cidade de Belém. 21
Referência a obra de Mário de Andrade O Turista Aprendiz (2002). 22 Ilha fluvial localizada na costa oriental do rio Pará, no braço sul do rio Amazonas, em frente à baía do Guajará. Possui uma área de aproximadamente 212 km² e 17 km de praias de água doce com movimento de maré. A Ilha do Mosqueiro é um distrito administrativo do município de Belém. Disponível em: <www. ecoviagem.uol.com.br>. Acesso em: 10 nov 2011.
56
Posso perceber que as impressões dos autores elencados para
emprestarem seus textos ao Projeto, felizmente, são muito variadas, dada a
riqueza e complexidade do próprio espaço urbano observado – a cidade de
Belém – e da lente pessoal-afetiva e histórico-social de cada escritor. Tal como a
fisionomia multifacetada de uma cidade surge da composição, equilibrada ou
não, de seus fragmentos urbanos, a ideia de cidade que depreende do projeto é
um composto de fragmentos literários elaborado em épocas distintas, por um
grupo de indivíduos de variados perfis, origens, idades, formações e valores, por
homens e mulheres, paraenses e visitantes, ficcionistas ou, técnicos.
A partir do relato de seu corpo técnico, do filtro de minha própria memória
como integrante do projeto e de pesquisa documental, faço nas páginas
seguintes uma breve narrativa do caminho do projeto, ainda em curso, de sua
concepção ao momento atual.
57
Ilustração 5 - Reprodução do primeiro layout para placa do Projeto Belém da Memória.
Registro da carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de 1927, e representação
do Grande Hotel, Belém.
Fonte: elaborado pelo autor, 1999. Projeto Belém da Memória
58
4.1 - MEMÓRIA DO PROJETO
Em manuscrito de 1998, Josse Fares, após breve descrição da sua
relação pessoal e afetiva com a cidade, escreve que:
[...] o projeto Belém da Memória começou a tomar corpo em 1997
quando fizemos - eu e o Paulo - uma viagem a Paris. Lá, guiados pelos
amigos Naná e Gutemberg, fomos percorrendo a cidade e percebendo
em cada canto os registros de sua memória. Há casas que contam de
seus moradores, mortos durante a 2ª Guerra, há outras que,
orgulhosamente, falam de quem nelas já se abrigou: Picasso, Balzac,
Jorge Amado, Rilke, Rodin. O Pere la Chaise narra a história de amor de
Abelardo e Heloísa, ou resgata fatos da vida de Chopin. Pois é! O Paulo
e eu, turistas aprendizes como Mário de Andrade, ficamos a pensar: Por
que Belém também não grita sua memória?(FARES, 1998, s/p).
Às vezes, a distância nos faz enxergar fatos e imagens da realidade
cotidiana. A ideia dos dois professores, surgida em viagem à Europa, pródiga em
valorizar sua história, tomou corpo em Belém. De volta ao Brasil, estes
professores elaboraram o projeto batizado de “Belém da Memória: a cidade e o
olhar da literatura”23
.
Sua viabilização contou com a força e o empenho dos professores José
Akel Fares (Arquitetura e Urbanismo), Francisco Cardoso (cine Unama), Célia
Jacob (curso de Letras), Ivone Xavier (Assessoria em Projeto e Antropologia),
Abdias Pinheiro (Fotografia) e Jorge Eiró (Casa da Memória) todos da Unama, e
o incondicional apoio da professora Graça Landeira, à época Pró-Reitora de
Administração da Unama, coordenadora do Núcleo Cultural daquela IES.
Cativada pela proposta, Landeira e sua equipe contribuíram de forma significativa
para os esforços por sua viabilização.
Ao corpo do projeto se somaram outros profissionais da instituição das
áreas de letras, arquitetura e fotografia formando uma equipe multidisciplinar.
Nesta altura, ainda sem vínculos profissionais e acadêmicos com a instituição, fui
convidado por José Akel Fares, coordenador do curso de Arquitetura e
23
Inicialmente, o projeto tinha um subtítulo mais extenso, que foi condensado para melhor ser difundido: ”Belém da Memória: a cidade vista pelo olhar da literatura”.
59
Urbanismo, para contribuir com o desenvolvimento do projeto gráfico dos marcos
visuais e a elaboração de ilustrações.
O passo seguinte deu-se com a parceria firmada com a Prefeitura
Municipal de Belém (PMB) em março de 1999, conforme noticiado no jornal
Comunicado (Ilustração 6). No Palácio Antônio Lemos, sede da Prefeitura, foi
assinado um convênio para a instalação das primeiras 16 placas que contou
também com o apoio de uma empresa privada que financiaria a colocação das
quatro primeiras placas.
Idealizado como um projeto de pesquisa e extensão, a viabilidade do
projeto seria obtida pela articulação de três esferas: o poder público, a academia
e a iniciativa privada.
A Prefeitura permitiria a colocação dos marcos em logradouros públicos,
naquele momento jardins e canteiros das praças de Belém, se estes locais
fossem aprovados, após análise, por seus profissionais da SEURB e do DPH.
A equipe técnica da Unama faria a coordenação dos trabalhos e seria
responsável pela pesquisa, elaboração e seleção de textos e imagens, confecção
das placas e captação dos recursos e proposição dos bens patrimoniais e
localização dos marcos visuais.
Finalmente, empresas privadas ou pessoas físicas interessadas, em
parcerias com a Unama, financiariam os custos do projeto. Em contrapartida, a
justa veiculação de sua identidade visual no rodapé das placas e em todas as
peças gráficas do Belém da Memória.
Em tempo mais curto que o imaginado pela coordenação do BM a
iniciativa prosperou. Após a inauguração de sua primeira placa em 1999,
identificada como - A Festa de Nazaré, texto de Eneida de Morais (Ilustração 7) -
nesse mesmo ano uma exposição na Galeria de Arte da Unama exibia todos os
17 textos e imagens da primeira etapa e celebrava a execução e instalação de
várias placas da primeira etapa do projeto (Ilustração 8).
60
Ilustração 6 - Registro da assinatura do convênio entre a Unama, a PMB e a Marko
Engenharia para viabilização das primeiras placas do projeto.
Fonte: Jornal Comunicado. Ano XX. n. 982. 22/03/1999.
Ilustração 7 - Lançamento da primeira placa do Projeto Belém da Memória. Centro
Arquitetônico de Nazaré. Banho de Cheiro, Eneida.
Fonte: Jornal Comunicado. Ano XX. N. 997. 5/07/1999.
61
Ilustração 8 - Alguns dos marcos visuais instalados pelo projeto Belém da Memória
em 1999: 1. Marco Visual da Praça Felipe Patroni; 2. Detalhe da placa da Praça Felipe
Patroni, Hoje e Amanhã, Rodrigues Pinagé; 3. Centro Arquitetônico de Nazaré. Banho
de Cheiro, Eneida.
Fonte: fotografias de Abdias Pinheiro, 2000.
62
4.1.1 - Avaliação do projeto
Passados os primeiros anos do Projeto, a avaliação da equipe de
pesquisa e extensão é a de que ele teve uma resposta positiva entre a
comunidade o que pode ser percebido pela boa repercussão na mídia, números
de visitantes em exposições, citações em trabalhos acadêmicos e pelo apoio da
iniciativa privada.
Incomodava e ainda incomoda, entretanto, a constatação de que as placas
feitas com o intento de valorizar o patrimônio histórico e, desta forma, somar
esforços para sua conservação e utilização democrática e cidadã passavam logo
a sofrer com suas mesmas mazelas. Estas placas, uma vez inseridas no espaço
público e assim, fazendo parte dele, tornam-se, também, alvos do descaso, do
vandalismo, de atitudes criminosas perante bens e direitos coletivos. Em síntese,
partimos das palavras amorosas à metalinguagem da desilusão.
Então, afirmo que nos dois estados os marcos são representativos da
metrópole atual: conservados e exibindo textos e imagens afetivas da paisagem
urbana; e depredados, como boa parte de uma cidade que submetida à violência
de toda sorte, desrespeita seus cidadãos.
Belém também exibe lixo nas esquinas, muros e fachadas poluídas por
pichações ou, o que é pior, por anúncios publicitários de todos os tamanhos,
calçadas desniveladas - verdadeiras barreiras para as especiais necessidades, a
calma perdida pelo mais alto volume dos carros-sons e a paz arruinada pela
criminalidade urbana. Exibe, ou esconde? Também, e cada vez mais, seu pior
cenário: os guetos voluntários da elite e da classe média protegidos por muros
altos, cerca elétrica e tropa armada onde se assina o definitivo divórcio entre os
sujeitos da comunidade e se contradiz a natureza e a função histórica da polis,
de convívio com as diferenças.
Conforme atestam algumas imagens dos marcos visuais (Ilustração 9)
alguns vidros de proteção e placas foram roubados e muitos marcos foram
pichados. Para alguns se deu um destino criativo, viraram suporte para
amarração de cabos para camelôs, bancas de comida e base divulgação de
peças publicitárias (Ilustração 9).
63
Ilustração 9 - Fotos que registram o estado de conservação de algumas placas do
projeto antes de sua recuperação ou mudança de localização ocorrida a partir do ano
2008: 1/2 - Praça da República. 3 - Praça do Relógio. 4 - Praça das Sereias. 5 - Praça
das Mercês. 6. Praça do pescador
Fonte: fotografias do autor, 2008.
64
Retomando a metáfora que compara o sítio urbano de Belém à síntese
gráfica do peixe, percebo curiosamente que, assim como o ser humano devora a
carne do animal e despreza as espinhas, a cidade de Belém, maltratada (e não
somente na “espinha do peixe”), segue sendo devorada e descartada a cada dia,
através de atitudes de desamor do cidadão em relação à cidade que lhe serve de
morada.
Há casos também de agressão involuntária, mas culposa, de motoristas
que não deveriam, mas em nossa cidade, sem constrangimento, sobem nas
calçadas e canteiros. Alguns marcos com fundações em concreto armado
resistiram a carros particulares, mas não a ônibus e caminhões - e assim foram a
nocaute.
Isto ocorreu com a placa da Praça do Carmo. Lá foi registrado um texto de
Bruno de Menezes. Um caminhão, segundo disseram alguns moradores, ao
fazer uma manobra criminosa, destruiu a placa. A família do poeta, no entanto,
ao saber do ocorrido (e que a placa havia desaparecido), escreveu para a
professora Graça Landeira, solicitando a substituição imediata da placa, pois a
família de Menezes considerava aquele marco uma das mais belas homenagens
até então prestada a seu patriarca.
Na história do projeto, uma atitude sui generis merece ser narrada. Notei o
sumiço de uma placa da Praça do Operário em São Brás. A encontrei em perfeito
estado de limpeza e conservação em um terreno particular nas proximidades da
praça. Não se trata de um simples caso de apropriação indébita do patrimônio
público. Talvez indignado com a falta de zelo pelo marco, o(s) morador(es)
resolveu (ram) transportá-lo e implantá-lo (seu peso é estimado em 200 Kg) em
seu jardim com o devido cuidado de desviar o curso de seu muro baixo para trás
da placa. Criou um inusitado nicho para a peça e cedeu por vontade própria, um
espaço de seu terreno ao passeio público (Ilustração 10). Crime ou atitude de
amor pela cidade? Quando o caos prospera na vida cotidiana nos faltam regras e
parâmetros para julgar.
A angústia pela incerteza da vida útil de cada peça plantada nos jardins
públicos ganhou um alento com uma mudança de atitude necessária, em 2008,
na escolha dos logradouros para implantação dos marcos visuais do projeto:
65
As placas, sorte ou azar, tiveram de deixar a liberdade e o abandono das
praças para serem fixadas em espaços de visibilidade no passeio público com a
permissão de adoção dada, entretanto, a instituições públicas ou privadas. Assim
estão visíveis e protegidas, as peças da fachada da Casa da Linguagem - FCV,
do jardim do IEP, do Memorial dos Povos da PMB, Ver-o-Rio, Estação das
Docas, Feliz Luzitânia, da entrada da Unama, do Hilton Hotel, da área externa da
Big Ben e Hotel Farol entre outras (Ilustração 11/12).
Ilustração 10 - Placa retirada da Praça do Operário em São Brás. Observa-se uma
parte do terreno que o morador destina a placa e como o gradil contorna o marco
visual
Fonte: fotografias do autor, 2009.
66
Ilustração 11 - Placas instaladas a partir de 2008. A partir deste momento as placas
passaram a ser instaladas em locais que, embora de visibilidade pública, contassem
com a vigília de instituições. Nos exemplos a seguir percebe-se a melhora de
conservação das peças: 1/2 - Fachada do Hilton Hotel. 2/3 - Fachada da Casa da
Linguagem – FCV – Governo do Estado.
Fonte: fotografias do autor, 2010.
67
Ilustração 12 - Mais placas instaladas a partir da mudança de critérios para escolha da
localização das placas. 1 - Colégio IEP- Governo do Estado do Pará. 2 - Jardim
externo da Farmácia Big Bem, Doca de Souza Franco. 3 - Memorial dos Povos, PMB-
FUMBEL.
Fonte: fotografias do autor, 2010.
68
4.1.2 - Relação de marcos visuais
O Quadro a seguir registra a relação completa de escritores, textos,
ilustrações e locais de implantação dos marcos visuais do Projeto Belém da
Memória:
Quadro 1 - Relação de Marcos Visuais do Projeto Belém da Memória
Nº
Autor Texto Local da Placa Ilustração
01 Benedito Monteiro
“A corda da Fé” Praça Frei Caetano Brandão
A corda do Círio
02 Peregrino Júnior “Carimbó” Praça D. Pedro II Feira do Açaí
03 J.J Paes Loureiro “Sobrados” Praça D. Pedro II, em frente ao Solar
Solar do Barão de Guajará
04 Rodrigues Pinagé “Encanto, Magia” Praça Felipe Patroni (16 com João Diogo)
Fonte do Bosque
05 Bruno de Menezes
“Belém e seu Poema”
Praça do Carmo Igreja do Carmo
06 José Ildone “Trova” Praça do Pescador Mercado Bolonha
07 Tavernard/ Waldemar
“Foi Boto Sinhá” Praça Waldemar Henrique
Palafitas
08 Adalcinda/Edir “Bom dia Belém”
Praça da República, em frente a Assembleia Paraense.
Praça da República
09 Paulo e Rui Barata
“Tronco Submerso” Praça da República, junto ao Bar do Parque
Bar do parque
10 Mario de Andrade “Carta e Manuel Bandeira”
Praça da República ao lado do Theatro da Paz
Grande Hotel
11 Dalcídio Jurandir “Gula da Cidade” Praça da República, em frente ao Ed. Manuel Pinto
Os Elétricos da Belém
12 Age de Carvalho “Os quintais” Praça Batista Campos
Fábrica Palmeira
69
13 Inácio de Loyola Brandão
“Crônica Quase Concreta”
Av. Nazaré, em frente a Codem
Túnel das Mangueiras
14 Eneida de Moraes
“Banho de Cheiro” Centro Arquitetônico de Nazaré
Arraial de Nazaré
15 Antônio Juraci Siqueira
“Mangueira” Av. Magalhães Barata, em frente ao Museu
Rocinha do Museu
16 Max Martins “Ver-o-Peso” Praça da Poesia, ao largo do Conj. IAPI
Mercado Ver-o-Peso
17 Manoel Bandeira “Belém do Pará” Praça do Operário, São Braz
Relógio do Ver-o-Peso
18 Abílio Couceiro “O Bonde da Rui Babosa”
Rui Barbosa/ Gov. José Malcher (IPHAN)
Bondinho da Rui
19 Augusto Meira Filho
“Belém-Bragança” Campus BR Estrada de Ferro
20 Osvaldo Orico “Soneto à Terra Natal”
Almirante Barroso, Junto ao Bosque
Pórtico do Bosque
21 Alcyr Meira “Cidade Velha” Braz de Aguiar – Junto ao CREA
Casa Rosada
22 Pasquale Cipro Neto
“Um beijo, Belém” Av. Nazaré, em frente ao Gentil
Colégio Gentil
23 Antonio Tavernard
“Primários” Pça. Brasil Palafita
24 Milton Hatoum “Belém é Bíblica? Pça. Colégio Sto. Antônio
Caixa d’ água
25 Rachel de Queiroz
“Sta. Ma de Belém” Nazaré ao lado da Barraca da Santa
Basílica de Nazaré
26 Euclides da Cunha
“Surpresa” Pracinha da Loja Big-Bem Doca
Igreja da Sé
27 Jorge Eiró “Diney Landi?!” Pracinha de S. João Junto ao Fórum
Capela de São João
28 Júlio Verne “A Jangada” Praça das Mercês Igreja das Mercês
29 Carlos Heitor Cony
“Peixe-Boi” Tv. 9 de janeiro ao lado do Museu Goeld
Aquário do Museu Goeldi
30 Vicente Salles “Lição” Em frente ao Theatro da Paz
Theatro da Paz
70
31 Alonso Rocha “As sereias” Chafariz das Sereias – Praça da Republica
Chafariz das Sereias
32 Ildefonso Guimarães
“Olhares da Cidade” João Alfredo Bondinho João Alfredo
33 Ápio Campos “Trova” Av. Portugal, esquina com João Alfredo
Via dos Mercadores
34 Lindanor Celina “Águas do Guajará” Praça Pedro Teixeira (estação das Docas)
Docas
35 Paulo Chaves “Feliz Lusitânia” Casa das Onze Janelas
Panorâmica Feliz Lusitânia
36 João Carlos Pereira
“As mangueiras de Eneida”
Praça Eneida de Moraes
Mangueiras da Praça
37 Ernesto Cruz “As Ruas do Pinheiro”
Biblioteca de Icoracacy
Chalé Tavares Cardoso
38 Haroldo Maranhão
“Nas Asas da Panair”
Praça do Projeto Ver-o-Rio
Hidroavião
39 Lilia Chaves “Mosqueiro” Pracinha do Hotel Farol
Hotel Farol
40 Jussara Derenji “Museu da UFPA” Museu da UFPA Museu da UFPA
Fonte: elaborado pelo autor.
4.1.3 - Principais atividades do projeto
Além da implantação em logradouros públicos dos marcos visuais, o
projeto de pesquisa e extensão Belém da Memória desenvolveu diversas
atividades no âmbito acadêmico e na comunidade em geral. A seguir relaciono
as mais relevantes:
Exposições
Principais mostras expositivas em espaços de institucionais abertos a
comunidade:
1999 - Galeria de Arte Graça Landeira - Universidade da Amazônia.
71
2000 - Universidade de Brasília (UNB). Simpósio Internacional Brasil: 500 anos
de Descobrimentos Literários.
2003 - Galeria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
Belém-PA.
2005 - Museu de Arte de Belém - Palácio Antônio Lemos. Prefeitura Municipal de
Belém - FUMBEL.
2007 - Exposição da Casa da Linguagem, Fundação Curro Velho (FCV) -
Governo do Estado do Pará.
2009 - Museu de Arte Sacra - Governo do Estado do Pará.
2009 - Hilton Hotel Belém.
2010 - Boulevard Shopping Belém.
Edições
2001 - Asas da Palavra. V.6, n.12, jul. 2001 – Belém: Unama-PA, 2001
2001 - Álbum editado pela Unama contendo textos, imagens e as reproduções
em serigrafia das 17 placas da primeira etapa do projeto.
Atividades Acadêmicas
Aulas externas e percursos acadêmicos dos alunos de letras, turismo e
arquitetura pela cidade que utilizaram os marcos visuais do projeto como ponto
de referência para o debate acerca da literatura, da cidade e do patrimônio
histórico.
- Palestras, workshops, ciclos de debates, monografias e trabalhos de conclusão
de curso.
72
4.2 - O PROJETO FUTURO
A Memória do Projeto registra o lançamento de 40 placas, além de todas
as exposições, produtos e atividades já relacionadas. Entretanto, tal como as
cidades que para manter vivo seu patrimônio cultural precisam continuamente
reinventá-lo, não pode, nem deve se acomodar.
Acredito que a coordenação do projeto esteja correta persistindo na
conservação dos marcos que já estão instalados bem como viabilizando outros
meios e produtos didáticos e midiáticos, enfim, novas vias de comunicação,
expressão e, porque não dizer, participação na comunidade.
Aqui proponho algumas alternativas:
1) Dado o sucesso das exposições do projeto, produzir uma mostra
itinerante, se possível interativa que poderia ser levada a circular em
escolas públicas e outras instituições. Nesta mostra, poderia ser
veiculado, além dos textos literários e imagens já existentes,
informações históricas sobre a cidade e os autores do projeto em
linguagem acessível acompanhada também, de palestras e debates,
nos quais os indivíduos da comunidade pudessem participar de forma
ativa expressando também suas leituras, críticas, aspirações e ideais
de cidade.
2) Veicular, sempre que possível, informações históricas e técnicas que
somadas às literárias proporcionem ao usuário do projeto uma
bagagem que possa contribuir para a sua própria leitura do espaço
urbano.
3) No intuito de estimular o envolvimento comunidade/BM, criar
estratégias para ouvir e registrar através de site, blog, debates,
palestras as críticas, dúvidas e opiniões do cidadão a respeito dos
temas centrais do BM: literatura, cidade e memória.
73
4) Reunir e apresentar o acervo de informações, ao qual se soma parte
desta dissertação, adquiridas nestes anos do programa em um
merecido álbum, organizado pelo corpo acadêmico da Unama (o
primeiro álbum, além de sucinto, traz apenas uma pequena parte do
BM). Este álbum representaria o registro, a meu ver mais duradouro, da
Memória do projeto.
5) Reforçar, através de todo material didático-instrucional ou gráfico de
promoção já citado, a ideia de percurso. Investir na possibilidade de
transformar cada vez mais os marcos visuais em referências de um
caminho por Belém que, como um museu contextual cujo acervo seja a
paisagem urbana da cidade, tenha as placas como ponto de informação
e referência junto a instituições de ensino, associações de comércio,
taxistas, agências de turismo etc.
6) Criar produtos de divulgação e estratégias de marketing, dado o
sucesso dos produtos já circulados, camisetas, cerâmicas, azulejos
decorados, placas etc., que possam tornar o projeto auto-sustentável do
ponto de vista financeiro e ampliar sua divulgação na comunidade.
74
V - UM PERCURSO SENSÍVEL PELA CIDADE DE BELÉM
75
V - UM PERCURSO SENSÍVEL PELA CIDADE DE BELÉM
Ilustração 13 - Mapa do Percurso Analisado.
Fonte: desenho do autor.
76
Ilustração 14 – “Cabeça de Peixe”
Síntese gráfica do sítio urbano de Belém e do percurso analisado
Fonte: desenho pelo autor, 2012.
77
5.1 - QUADROS SENSÍVEIS DE BELÉM
[...] Se dividirmos os retratos existentes de cidades em dois grupos,
conforme o lugar de nascimento do autor, percebemos que os escritos
por autóctones são minoria. O motivo superficial, o exótico, o pitoresco
só atrai os de fora. Para o autóctone obter a imagem de sua cidade, são
necessárias motivações diferentes, mais profundas. Motivações de
quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado. Sempre o
retrato urbano do autóctone terá afinidade com o livro de memórias, não
é à toa que o autor passou a infância neste lugar [...]. (BENJAMIN apud
BOLLE, 1994, p. 316).
Ler e narrar a cidade da infância é se perder e se achar. A cada momento
de recordação um signo evoca outro signo ou “[...] pede à palavra / outra palavra /
outra [...]” (MAX MARTINS24). A lembrança de um cheiro qualquer, faz estalar o
sabor, que ilumina a imagem congelada, que faz ressoar a canção, que remete
ao lugar, que instala num átimo o antigo sentimento, de um tempo distante, no
hoje e no agora. Conceitos, métodos e técnicas são importantes ferramentas de
análise, mas, se ilude quem despreza o gigantesco universo de possibilidades e
artimanhas da memória afetiva, individual e coletiva. Benjamin (apud
CANEVACCI, 1993, p. 15) exalta a importância de se “perder” em uma cidade
como forma de alcançar “novas possibilidades cognitivas”: “[...] Não saber se
orientar numa cidade não significa muito. Perder-se nela, porém, como a gente
se perde numa floresta é coisa que se deve aprender a fazer” (BENJAMIN apud
CANEVACCI, 1993, p. 13).
Perambulando pela cidade, ou pela memória da cidade, encontramos as
surpresas dos fatos passados que iluminam o presente e os antigos sonhos do
futuro nunca realizado. Prazeres, dores e silêncios. Embaralhamos e até
confundimos os caminhos da cidade com os nossos próprios caminhos. As
imagens que seguem, assim como a cidade - ela própria uma superposição de
camadas históricas - são uma montagem de perspectivas polifônicas, quadros
sensíveis que espero, em conjunto, formem um todo analítico e crítico, embora
expressivo e afetuoso.
24
http://www.culturapara.art.br/Literatura/maxmartins/obras1.htm. Acesso em: 13 fev. 2012.
78
5.2 - CIDADE VELHA: a Senhora que conta histórias
A cidade é velha no ponto onde estão guardadas suas mais antigas
histórias? Ou a cidade fica velha quando as pessoas deixam de se comunicar
com ela?
As duas coisas. O sítio histórico de Belém, principalmente no que se refere
ao interior do bairro da Cidade Velha responde, física e socialmente, a estas
interrogações. Em Belém existem oficialmente a cidade velha e as cidades
novas, criadas no sentido da interiorização, abrigando, principalmente, uma
população expulsa pela especulação imobiliária do centro da cidade.
A Cidade Velha é esvaziada e idosa, com seus antigos moradores, cenário
que contrasta com a imensa população das cidades jovens e novas. As duas
cidades configuram a metáfora do desequilíbrio que se observa no respeito ou
desrespeito da sociedade com seus velhos e crianças.
Meu ponto de partida é o local da fundação da cidade de Belém em 1616.
A expedição enviada da cidade de São Luiz destinou-se a afastar a ameaça dos
estrangeiros e garantir a posse efetiva da região para a Coroa portuguesa. No
sítio denominado Feliz Luzitânia, em um ponto estrategicamente escolhido para
permitir a vigília dos invasores, foi erguido um forte de madeira, o Forte do
Presépio, em torno do qual surgiu a cidade de Santa Maria de Belém do Grão
Pará (PENTEADO, 1968).
Sangrentos conflitos entre índios e portugueses marcaram os três anos
seguintes à fundação de Belém. Em 1619, os portugueses empreenderam uma
guerra de extermínio dos Tupinambá, que habitavam a região, destruindo
aldeias, matando e capturando escravos25
.
É fundamental assinalar que:
[...] Na Amazônia pré-colombiana estima-se que havia mais de mil etnias
e línguas indígenas diferentes. É unânime entre os cientistas a
afirmação de que as margens do rio Amazonas tenham sido uma das
regiões mais populosas das Américas, com mais de um milhão de
habitantes. (MEIRELLES FILHO, 2006, p.107).
25
Esta guerra teria sido empreendida como reação a uma tentativa dos Tupinambá, de tomada do forte para expulsão dos invasores portugueses (FAUSTO, 2001, p. 44).
79
Ao longo dos anos, as numerosas sociedades que habitavam as
imediações da, hoje, cidade de Belém foram dizimadas, seja por guerras de
extermínio, seja através da escravidão ou de doenças transmitidas pelos
europeus.
Na área, denominada por sua importância simbólica de “Cidade”, foram
fincadas as principais representações do poder colonial e religioso, o pelourinho
e a cruz, e se concentraram os principais espaços e monumentos onde se
encenavam relações sociais, econômicas e culturais - as igrejas, o forte, a casa
dos primeiros governantes e, ainda antes de 1625, o Ver-o-Peso, posto de trocas
comercias que marcava o limite do sítio urbano (DERENJI, 2009).
A paisagem do atual bairro da Cidade Velha exibe palácios, fortes, igrejas,
ruas, comércios e casarios (Ilustrações 15, 16, 17, 18 e 19) que vão compondo o
ajuntamento que hoje parece velado pelo tempo e o descaso. Em sua
configuração atual persiste o traçado urbano do século XVII. Sem arborização,
ruas e calçadas estreitas seguem um curso livre, orgânico, implantado à “mão
livre”. Ainda restam as badaladas dos sinos, os púlpitos de madeira, referências
de Landi, a graça de São Joãozinho (Ilustração 19), além de outros sinais de
uma época onde as largas paredes de pedra imortalizaram a mão de obra
escrava e indígena.
Na arquitetura ocorre uma somatória de elementos dos séculos XVIII, XIX
e XX (Ilustrações 20 e 21). O casario contracena com gigantescas igrejas e
palácios do século XVIII. Manifestos monumentais das mudanças significativas
ocorridas no período Pombalino. Época na qual as ideias iluministas tornaram-se
referência fundamental nas concepções da elite portuguesa conduzindo a
transformações na paisagem das cidades coloniais (CRUZ, 1973).
A partir de 1751, o governador e capitão geral do Maranhão e Grão Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal comanda
o trabalho de técnicos, entre os quais o engenheiro João Geraldo Gronfelts e os
arquitetos Antônio Landi e Felipe Sturm que elaboram propostas urbanísticas e
arquitetônicas inovadoras para os padrões da época (DERENJI, 2009). Diversos
edifícios como palácios e igrejas, marcos físicos e simbólicos do poder, são
reformados ou construídos. Estas construções, monumentais para a época,
como as igrejas da Sé, do Carmo e das Mercês, erguidas dentro de padrões
neoclássicos vigentes em Portugal, ainda hoje nos surpreendem pelo contraste
de escala em relação ao seu entorno.
80
Quanto à desigualdade em relação à produção e apropriação do
patrimônio cultural, Canclini (2008) observa;
[...] o predomínio numérico de antigos edifícios militares e religiosos em toda a América, enquanto a arquitetura popular se extinguia ou era substituída, em parte por sua precariedade, em parte porque não tinha recebido os mesmos cuidados em sua conservação. (p. 194).
A Cidade Velha é um bom exemplo para o conceito perceptivo de bairro de
Lynch (1980). Toda a área possui características comuns, identificadoras, além
daquelas já citadas de caráter morfológico, nota-se certa sombra, nostalgia ou
valor estético da decadência.
Neste espaço da cidade também se percebe a completa exclusão do
verde, característica apresentada desde o século XVII, materialização do temor e
da dificuldade de convivência com a natureza nos núcleos coloniais. O que
demonstra, talvez, uma relação de medo e aversão à própria floresta e seu povo.
Acompanhando uma tendência mundial de valorização e intervenções de
readequação e reutilização dos centros históricos, o cenário urbano que analiso
nesta pesquisa volta a atrair a atenção do poder público e privado. Percebe-se o
investimento dos órgãos governamentais na restauração de monumentos desta
área da cidade: Forte do Presépio, Projeto Feliz Lusitânia, Museu de Arte Sacra,
Igreja da Sé, Theatro da Paz etc.
Os esforços para revitalização deste espaço poderiam ser, portanto,
analisados pela perspectiva do debate entre modernidade e tradição no contexto
latino americano que elabora Néstor García Canclini. O estudioso argentino tece
considerações a respeito dos usos sociais do patrimônio cultural.
Canclini (2008) assinala que o patrimônio cultural:
[...] conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como
nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos
do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discutí-lo. As
únicas operações possíveis – preservá-lo, restaurá-lo, difundi-lo – são a
base mais secreta da simulação social que nos mantém. (p. 60).
O patrimônio seria o “[...] lugar onde melhor sobrevive a ideologia de
setores oligárquicos [...] grupos hegemônicos na América Latina [...] donos
“naturais” da terra e da força de trabalho de outras classes” (CANCLINI, 2008, p.
160)
81
Ele assinala, ainda, que uma política cultural conservadora costuma
celebrar a redundância. Reduz-se a administração do patrimônio existente e a
reiteração de interpretações estabelecidas.
Canclini (2008) analisa como repensar os usos sociais do patrimônio
cultural. Propõe o patrimônio não como um conjunto de bens estáveis, com
valores e sentidos fixados de uma vez para sempre. Sugere que é possível
introduzir mais liberdade e criatividade nas relações com o patrimônio. Sugere
sua reformulação levando em conta seus usos sociais, com uma visão mais
complexa de como a sociedade se apropria de sua história. Este debate é
fundamental não apenas para os
[...] especialistas do passado. Interessa aos funcionários e profissionais
ocupados em construir o presente, aos indígenas, camponeses,
migrantes e a todos os setores cuja identidade costuma ser afetada
pelos usos modernos da cultura. (p. 203).
Deveria interessar, portanto, aos moradores deste bairro e a toda cidade,
a discussão sobre como pode ser apropriado, de forma democrática, o
patrimônio cultural da cidade de Belém. Podemos indagar se as intervenções
urbanas no centro histórico não estão concentradas apenas pontualmente em
grandes monumentos. Se os novos usos destinados a estes equipamentos
podem ser usufruídos por todo o conjunto da população, em seus diversos
setores. Se as informações fornecidas pela observação da cidade, entendida
como museu a céu aberto, bem como os discursos materializados pelos
monumentos e museus, realmente, informam a população acerca das
contradições sociais e conflitos presentes na constituição e manutenção deste
patrimônio ou silenciam, conferindo pouca importância a aspectos como os
processos históricos que dizimaram ou modificaram as condições de vida das
populações indígenas.
Cabe ressaltar que a melhor maneira de preservar o patrimônio é mantê-lo
vivo, readequar seu uso às necessidades presentes.
82
Ilustração 15 - Sobrado do Guaraná Soberano. Rua Siqueira Mendes.
Fonte: desenho do autor, 2011.
83
Ilustração 16 - Solar Barão do Guajará. Construção anterior a 1837.
Sede do Instituto Histórico e Geográfico do Pará
Fonte: desenho do autor, 2011.
84
Ilustração 17- Palácio dos Governadores. Atual Museu Histórico do Pará.
A construção data de 1772.
Fonte: desenho do autor, 2011.
85
Ilustração 18 - Igreja do Carmo, vista pelo Porto do Sal. Ano de construção: 1766.
Fonte: desenho do autor, 2012.
86
Ilustração 19 - Igreja de São João. A construção primitiva data de 1622.
O prédio atual teve suas obras iniciadas em 1772 e concluídas em 1777.
O projeto é de Antônio Landi.
Fonte: desenho do autor, 2011.
87
Ilustração 20 – Fragmentos urbanos da Cidade Velha.
Fonte: desenho do autor, 2012.
88
Ilustração 21 - Fragmentos urbanos da Cidade Velha
Fonte: desenho do autor, 2012.
89
5.2.1 Feliz Luzitânia
Foi para consolar suas futuras saudades de Belém que Manuel Bandeira
“inventou” este poema. Os versos transcritos a seguir expressam com carinho a
imagem ainda bem conservada do gracioso e lúdico jogo urbano, cujas peças
materiais e simbólicas, quase arquetípicas, são a praça, os sobrados, a igreja e o
forte da Feliz Luzitânia:
Belém do Pará26
- Manuel Bandeira
… BEMBELELÉM!
Viva Belém!
Cidade pomar
(Obrigou a polícia a classificar um tipo novo de
delinqüente:
o apedrejador de mangueiras)
...............................................
Bembelelém
Viva Belém
Nortista gostosa
Eu te quero bem.
...........................................
Me obrigarás a novas saudades
Nunca mais me esquecerei do teu Largo da Sé
Com a fé maciça das duas maravilhosas igrejas
barrocas
E o renque ajoelhado de sobradinhos coloniais
tão bonitinhos
Nunca mais me esquecerei
Das velas encarnadas/Verdes/Azuis
Da doca do Ver-o-Peso
Nunca mais
E foi pra me consolar mais tarde
Que inventei esta cantiga:
Bembelelém
Viva Belém!
Nortista gostosa
Eu te quero bem.
26
Disponível em:< http://poemasdebandeira.blogspot.com.br/2009/04/belem-do-para.html>. Acesso em: 14 fev. 2012.
90
Ao longo dos séculos foi sendo formado o harmonioso conjunto
urbanístico de grande valor histórico e cultural que hoje conhecemos no entorno
do local de fundação da cidade de Belém, em 1616, a época um ponto de
referência para o domínio português na região. A área, conservada e revitalizada
por intervenções públicas recentes, é pontuada por importantes edificações
históricas que abrigam diversos museus e espaços de lazer e cultura27
.
O atual Forte do Presépio ocupa o mesmo local da paliçada erguida em
madeira no ano de 1616. Recentemente restaurado, permanece como um ponto
de visitação e observação privilegiado do rio, da floresta na margem oposta, do
movimento dos barcos, do Ver-o-Peso, da paisagem natural e histórica da
cidade.
No edifício de onze vãos, dispostos simetricamente, encontra-se hoje o
Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, de arte contemporânea. Construído
para uso residencial passa, a partir de 1768, por adaptações projetadas por
Landi para abrigar um Hospital Militar.
A igreja barroca de Santo Alexandre (Ilustração 22 e 23), mais imponente
monumento jesuíta da Região Norte do País, abriga atualmente o Museu de Arte
Sacra. Foi inaugurada em 1718 ou 1719, mas reformada e ampliada em 1749.
A Igreja da Sé (Ilustração 24) teve suas obras iniciadas na metade do séc.
XVIII, a partir de plantas enviadas de Lisboa. Foi parcialmente inaugurada em
1755 e finalizada em 1782. A obra contaria com a arte e o engenho de Antônio
Giuseppe Landi, arquiteto bolonhês que deixaria sua marca na paisagem urbana
de Belém setecentista registrada em inúmeros monumentos.
As duas igrejas, há quase três séculos dominam o Largo da Sé. Claro
testemunho do grande poder da cruz em outras épocas. O efeito de verticalidade
e variedade que as igrejas produzem é acentuado pela horizontalidade e
27
A área da Praça da Sé e algumas edificações de seu entorno foi objeto de recente intervenção urbana denominada Projeto Feliz Lusitânia, realizada pelo Governo do Estado do Pará de 1998 a 2002. Destaca-se a “[...] inauguração do Museu de Arte Sacra, em 1998, Museu de Arte Contemporânea Casa das Onze Janelas, Jardim de Esculturas Feliz Lusitânia, Museu do Forte do Presépio, dentre outros, em 2002”. (NO ENTREMEIO DA CIDADE VISÍVEL E INVISÍVEL: NÚCLEO CULTURAL FELIZ LUSITÂNIA DE BELÉM DO PARÁ, ROSANGELA MARQUES DE BRITTO, ICA/UFPA. LUIZ CARLOS BORGES, MAST/PPGPMUS, 2010, 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios” – 20 a 25/09/2010 – Cachoeira – Bahia, p. 2794).
91
uniformidade da praça, do horizonte e do casario ao redor. Se hoje
impressionam, posso imaginar o efeito desta visão nos homens do século XVIII.
Percebemos o claro contraste visual, no bairro da Cidade Velha, entre a
arquitetura civil colonial (residencial/comercial) e a arquitetura religiosa. O efeito
de verticalidade e heterogeneidade que as igrejas produzem é acentuado pelo
contraste com a horizontalidade e homogeneidade da praça, da linha do
horizonte e do casario ao redor. Em relação à cor aplica-se a categoria plástica
monocromático vs. colorido para representar a oposição entre as superfícies
‘caiadas’ monocromáticas das igrejas e a variada ‘paleta’ dos antigos sobrados.
Vistas na mesma perspectiva - uma quase ao lado da outra - a primeira
impressão do quadro é de duas formas brancas recortadas sobre o plano de
fundo azul celeste. Em seguida, a proximidade entre as igrejas me permite o
prazer da comparação, da percepção do claro contraste do “desenho” - do
barroco ao neoclássico - expressão plástica da “virada” de mentalidade no séc.
XVIII, e da passagem do tempo. Santo Alexandre possui volume robusto e
ornamentação da fachada com grandes figuras que parecem feitas ‘à mão-livre’,
losango e flor, repetidos de maneira intercalada e volutas ‘sem compasso’. Do
ponto de vista atual, apenas atual, Santo Alexandre, me transmite inocência.
Aprecio hoje, o que a manufatura da época, pouco treinada para este exercício,
nos oferece como exemplar de escultura barroca. Na Sé percebo simetria,
variedade, o traço do planejamento e os meios para realizá-lo com precisão.
Uma característica significativa dos conjuntos arquitetônicos, que os
diferenciam dos textos planares (como a pintura, a fotografia e o design gráfico) e
os aproximam das expressões escultóricas é a sua construção e experiência em
quatro dimensões. Um edifício é uma escultura escavada, penetrável, cuja
imagem se transforma, no tempo, a partir do caminhar ou do movimento do olhar
do observador. No centro geométrico do Largo da Sé, em um ‘giro’ de 360º, a
visão das partes me remete ao quebra cabeça, a colagem graciosa, quase lúdica
da cidade.
A base piramidal do forte, seu volume, suas linhas e quinas retas de
pedras fazem o contraste com as igrejas - quase confrontos - de forma, matéria,
cor, função e tempo entre o poder militar e religioso. Neste novo enquadramento
92
a oposição entre poder religioso e poder militar é expressa pelos contrastes
formais, cromáticos e dos materiais construtivos entre o branco e o marrom, a
pedra e o cal, respectivamente.
Adentro pelas passarelas que transpõem o fosso onde os antigos canhões
apontam para os invasores da ‘boca’ do Amazonas28
.
28
A construção do forte que lhe confere o aspecto atual, foi erguida em 1878. Desde a Praça de Armas, no interior do Forte do Presépio, ao topo da muralha é possível observar a Baia do Guajará. Recente negociação entre o Exército (proprietário do monumento) e o Governo do Estado, permitiu que o forte fosse restaurado. Desde 2002 funciona, no local, o Museu do Encontro, com acervo de cerâmicas tapajônica e marajoara. O local também expõe peças históricas como armamentos, porcelanas e moedas (SOARES, 2009, 110).
93
Ilustração 22 - Igreja jesuítica de Santo Alexandre.
Fonte: desenho do autor, 2011.
94
Ilustração 23 - Púlpito da Igreja de Santo Alexandre.
Fonte: desenho do autor, 2011.
95
Ilustração 24 - A Igreja da Sé, finalizada em 1782.
Fonte: desenho do autor, 2011.
96
5.3 - VER-O-PESO,
AS PARTES E O TODO
Sentindo o peso do tempo continuamos e vias estreitas do antigo sítio nos
conduzem a uma abertura. Abertura neste caso a diversos horizontes. O
espetáculo do Ver-o-Peso que, apesar do relógio29
(Ilustração 27), não tem hora
para começar ou terminar, nos revela a amplitude geográfica, a linha do
horizonte, a outra margem do rio, a visão da água, som, luz e ação humana.
Abertura também à alteridade, o encontro entre a cultura indígena, africana e
europeia. Negro, índio, ribeirinho (Ilustração 26) ou citadino são atores de
dinâmicas relações ali travadas.
O mercado de peixe (Ilustração 25), a feira livre, o comércio, o ir e vir de
barcos, ônibus, caminhões, carregadores e pedestres, além das rádios, auto-
falantes, placas, anúncios e a “locução” dos vendedores, são o ápice do
fantástico burburinho do sítio, do grande mercado cultural. A arquitetura é
graciosa, delicada, não mais do que os barcos e velas.
29
Ícone da cidade de Belém, este relógio foi fabricado, conforme inscrição em seu interior, pela firma J. W. Benson Ltd, Londres. Está instalado no topo de uma torre de ferro de 12 metros de altura construída pela firma escocesa Walter MacFarlane & Company. A torre, por sua vez, ocupa o centro da Praça Siqueira Campos, conhecida como Praça do Relógio, inaugurada em 1931 na administração do intendente Antonio Faciola (SOARES, 2009, p.126).
97
A escala é monumental, menos pela arquitetura, mais pela natureza e sua
cultura. Neste ponto, a cidade está na Amazônia, somos gigantes ao mesmo
tempo e impotentes perante a natureza.
Como síntese é também ponto de convergência, ponto de articulação. A
noção de ponto nodal de Kevin Linch (1980): ponto estratégico de articulação
entre origens e destinos,se adéqua perfeitamente ao complexo do Ver-o-Peso.
Ali a dinâmica da comunicação “povo da cidade”, “povo do interior”, se revela
exuberante.
A hibridação cultural deste lugar que nos envolve sinestesicamente é
descrito no texto de Rachel de Queiroz:
Santa Maria de Belém do Grão Pará30
- Rachel de Queiroz
O nome mais belíssimo do mundo. Ah, chegar a Belém não é
chegar apenas: é voltar, é regressar. Chegar é matar saudades da
infância - dos dois anos mais importantes da minha infância. Rever as
mangueiras, rever as avenidas, as antigas casas onde morei. O
Cemitério da Soledade e, defronte, o Cemitério dos Ingleses, onde um
pastor barbadiano tocava órgão [...] Comer pupunha na rua. Ouvir o
doce sotaque de Belém que rivaliza com o carioca em serem os mais
bonitos do Brasil. Comprar fruta no Ver-o-Peso. Ir ao Bosque, comer
tacacá na cuia. Fazer provisão de cheiro-cheiroso [...]
Belém. A cidade não perdeu sua feição antiga apesar da
intromissão de alguns arranha-céus. Tem sobradões e azulejos que, se
não ganham dos da Bahia, rivalizam com os de São Luís, tão falados.
No Ver-o-Peso, o casario e a arquitetura de ferro europeia contracenam
com a geografia amazônica e com o patrimônio cultural de origem popular:
produtos, cheiros, tradições culinárias, hábitos, trocas culturais que já se
desenvolviam naquele sítio muito antes da instalação do Mercado de Ferro.
Segundo Canclini (2008, p 196): “[...] Os produtos gerados pelas classes
populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados
às necessidades presentes do grupo que os fabrica”.
30
Disponível em: <http://www.unama.br:8080/casaDaMemoria/projeto/lib/pdf/basilica.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2012.
98
Podemos fazer aqui uma relação com os conceitos de Michael Pollak
sobre memórias subterrâneas. Trata-se de memórias que se opõem ao discurso
hegemônico da memória coletiva nacional e “[...] que prosseguem seu trabalho
de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível”, aflorando em
momentos de crise em “sobressaltos bruscos e exacerbados” quando a “memória
entra em disputa” (POLLAK, 1989, p. 3). Este embate se trava pela incorporação
destas memórias silenciadas. É o embate pela afirmação, sobretudo, de
identidades no interior de uma sociedade e nas relações de poder que permeiam
a sociedade humana.
Observa-se, portanto, que em Belém, não são as gigantescas igrejas,
marcos do poder religioso, ou o Theatro da Paz, ícone do luxo da Belle Époque
ou ainda intervenções contemporâneas que são percebidos e eleitos pelo
morador e pelo visitante como o principal símbolo da cidade. O Ver-o-Peso,
acredito, é o elemento com o qual a maior parte da população se identifica
afetivamente.
99
Ilustração 25 - Mercado do Ver-o-Peso
Fonte: desenho do autor, 2010.
100
Ilustração 26 - Palafita, habitação ribeirinha.
Fonte: desenho do autor, 2010.
101
Ilustração 27 - Praça Siqueira Campos inaugurada 1931. Conhecida pelos belenenses
como Praça do Relógio.
Fonte: desenho do autor, 2010.
102
5.3.1 - Mercado do homem e do peixe
Que encanto tem o Ver-o-Peso?
Seria o aspecto lúdico que teria guardado o encanto da infância naquelas
torres de ferro? Ou a tomada de consciência, na juventude, da fundamental
necessidade de forjar a identidade?
Como desenhador e arquiteto, a importância da observação das
perspectivas, do campo visual aberto, das contraposições de formas e cores, da
morfologia urbana, dos conceitos de planejamento, arte, educação, cultura e
ambiente.
Tudo, mas principalmente a beleza e o prazer de contemplar o Ver-o-Peso,
espaço urbano e natural, onde trocas humanas tão diversas são possíveis,
aparelhadas por sabores, cheiros, texturas, sons e imagens, que invadem o
transeunte cidadão como eu.
A distância observo a contracena do Mercado de Peixe, o primeiro plano, a
água, os barcos, o casario, a presença humana que invade e integra todos os
sentidos e a linha do horizonte que, distante e pacífica, costura toda a
inquietação e o prazer do “agora estar presente” no espetáculo.
O Mercado de Ferro, inaugurado em 1º de dezembro de 1901, com seu
perfil característico marcado por suas quatro torres em escamas de zinco
(Ilustração 28), é o marco visual do sítio, referência mais conhecida da cidade.
Construído pelos engenheiros Bento Miranda e Raimundo Viana na gestão do
intendente Antônio Lemos, possui estrutura metálica que foi importada dos
Estados Unidos. O dinamismo da transformação urbana instaurado durante o
chamado Ciclo da Borracha propicia a incorporação da arquitetura do ferro, de
rápida instalação no tecido urbano, na paisagem da cidade.
No Ver-o-Peso, trocas humanas são aparelhadas por sensações diversas
que envolvem e “invadem” os cidadãos.
Lúcia Teixeira (2009, p.51) escreve sobre a experiência da sinestesia,
fenômeno de associação e interação de impressões provenientes de diferentes
domínios sensoriais num mesmo sujeito: “[...] Ocorre num nível profundo, a
síntese de diferentes ordens sensoriais, que se embaralham, misturam e acabam
por produzir um efeito de imersão no objeto”.
103
No interior do edifício, um novo texto se apresenta à ‘leitura’. Podemos
pensar na luta entre vida e morte para representar as relações ali cotidianamente
estabelecidas. As relações entre o ciclo da natureza, o homem, as trocas, a vida,
a fome, a pobreza e a morte aparecem de maneira primorosa na representação
verbal do espaço, no poema Ver-o-Peso31
, de Max Martins:
A canoa traz o homem
a canoa traz o peixe
a canoa tem um nome
no mercado deixa o peixe
no mercado encontra a fome
a balança pesa o peixe
a balança pesa o homem
a balança pesa a fome
a balança vende o homem
vende o peixe
vende a fome
vende e come
a fome vem de longe
nas canoas
ver o peso
come o peixe
o peixe come
o homem?
vende o nome
vende o peso
peso de ferro
homem de barro
pese o peixe
pese o homem
o peixe é preso
o homem está preso
presa da fome
ver o peixe
ver o homem
vera morte
vero peso.
31
Disponível em: <http://poesianasaladeleituravirtual.blogspot.com.br/2008/10/ver-o-peso-de-max-martins.html>. Acesso em: 20 abr. 2012.
104
Como se percebe no poema, no Ver-o-Peso, o ritmo da natureza interfere,
de maneira significativa, na relação de forças entre as práticas humanas. Neste
quadro, síntese da cidade e da região, natureza e cultura se entrelaçam ao longo
dos séculos.
105
Ilustração 28 - Torre do Mercado de Ferro, inaugurado em 1901.
Fonte: desenho do autor, 2010.
106
5.3.2 - Mercado de carne, o espaço que se revela
Quem caminha desavisado pelo largo boulevard e passa pelo grande
prédio neoclássico de alvenaria de volume expressivo, mas de ornamentação
discreta, corre o risco, distraído pelo movimento do Comércio, com suas lojas,
camelôs, carros sons de não conhecer o senhor que o habita. Se estiver
previamente avisado de que precisa conhecê-lo ou, simplesmente, se o acaso
lhe presentear com uma vista despretensiosa que lhe permita observar um
pequeno detalhe Art Nouveau de sua estrutura de ferro certamente será atraído e
ficará surpreso e envolto em exuberante renda metálica.
Em 1867, um ‘novo’ mercado municipal foi construído na orla de Belém no
bairro da Campina, região que concentrava atividades portuárias e comerciais.
Originalmente erguido com apenas um pavimento, assim permaneceu até que no
dia 24 de março de 1905 foi construído seu segundo pavimento conforme as
pretensões do intendente Antônio Lemos. Esse observou que sua configuração
modesta não atendia mais às demandas de funcionamento e principalmente ao
desejo da época de conferir monumentalidade e nobreza aos edifícios da
administração municipal.
Em 1906, Antônio Lemos firma contrato com Francisco Bolonha, um dos
mais importantes construtores da época, para instalação de aparadores no pátio
central, confecção e concessão de exploração por 30 anos dos talhos do
mercado. Em 17 de dezembro de 1908 as novas instalações do mercado foram
inauguradas (DERENJI, 2011).
O mercado, então, ganha uma feição similar a que vemos atualmente com
a substituição, no pátio central, dos antigos barracões que abrigavam os talhos
de carnes por quatro pavilhões de ferro. Colunas em ferro fundido com capitel
coríntio, balcões em mármore, iluminação natural dos pavilhões com clarabóias
de vidro Cathedral, marquises de vidro que circundavam o pátio interno, leve
escada helicoidal (Ilustração 29) de acesso à antiga caixa d’água com delicado
rendilhado em ferro fundido, considerada no texto da edição do referido jornal
como um “mimo da arquitetura” (DERENJI, 2011, p. 115).
107
A reforma de 1908 dotou o mercado das instalações e equipamentos mais
modernos, na época disponíveis, para o bom funcionamento de sua atividade
principal.
A utilização de estruturas de ferro, como já mencionado, segue uma
tendência observada na época em grande parte do Brasil. No caso específico de
nossa região, no auge da economia do látex, seu emprego expressava a
modernidade das obras da época como demonstra o trecho da edição do jornal A
Província do Pará do dia seguinte à inauguração do mercado:
[...] Após a assinatura do termo (de inauguração) o concessionário fez
servir aos presentes uma taça de champagne, tendo Sr. Intendente
Municipal de Belém, empunhando sua taça, proferido algumas palavras,
saudando o engenheiro Bolonha por todos estes melhoramentos com
que acabava de dotar nossa capital às quais agradeceu o Engenheiro
Francisco Bolonha, dizendo que se a alguém cabia essa glória, era
certamente a S. Exc. portanto só a ele deve Belém todos estes
melhoramentos que tornam competidora das mais famosas capitais do
mundo civilizado. (DERENJI, 2011, p. 109).
O material utilizado nos pavilhões de ferro do mercado era proveniente da
fábrica Walter Macfarlene de Glasgow, Escócia, produtora de grande variedade
de peças (Ilustração 30) que podiam ser escolhidas por catálogos disponíveis
aos interessados (DERENJI, 2011).
Passado mais de um século de sua inauguração, a umidade de nossa
região e a falta de manutenção subtraíram da estrutura original alguns elementos
como a claraboia de vidro substituída por telhas cerâmicas, as portas dos boxes,
as balanças na forma de cabeça de boi. Com o passar do tempo ampliou-se o
número de atividades comerciais no mercado (artesanato, polpa de frutas,
alimentação) e, ao mesmo tempo, diminuiu a comercialização de carnes
vermelhas em decorrência da concorrência com outros estabelecimentos como
supermercados e açougues. Recentemente, o mercado foi restaurado pelo
governo municipal com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) (DERENJI, 2011).
Integrante fundamental do conjunto do Ver-o-Peso, o mercado de carne de
ferro verde difere do mercado de peixe, também de ferro, mas azul-acinzentado,
marco visual que se destaca por sua silhueta externa. No Mercado Bolonha é a
108
imagem de seu interior que prevalece e envolve o observador pela exuberância
da ornamentação Art Nouveau. A paisagem da cidade é mais rica se permite a
surpresa, se reúne e contrapõe a diversidade de vistas - dos espaços interiores
às grandes perspectivas externas. Na comparação entre as duas estruturas há a
oposição semântica exterior vs. interior fundamental para o campo das teorias e
práticas arquitetônicas. O Mercado Bolonha permanece impressionando os
visitantes que já o conhecem, ou que têm a chance de descobri-lo, tal como uma
joia sofisticada e exuberante na sóbria caixa que a abriga.
109
Ilustração 29 - Mercado Municipal. Vista interna com destaque
para o desenho sinuoso da escada helicoidal de 1908.
Fonte: desenho do autor, 2012.
110
Ilustração 30 - Detalhe do Mercado Municipal. Estrutura interna com peças pré-
fabricadas em estilo art nouveau
Fonte: desenho do autor, 2012.
111
5.4 - CAMPINA
Muita água corre na Baia do Guajará. A outra margem distante não limita o
horizonte. São as antigas edificações das Docas do Pará que fazem a barragem
visual. O Boulevard Castilhos França é um caminho ladeado pelos Galpões da
Companhia Docas do Pará e por antigos sobrados. A avenida corre em paralelo
à baía em outro eixo de expansão urbana no século XVII, o atual bairro da
Campina. Nesta área, a imagem urbana é estruturada desde estas épocas pela
atividade do comércio. Ali se desenvolveria o porto e, mais tarde, o comércio de
escravos.
Nesta via, podemos aplicar o conceito de limite de Kevin Lynch (1980):
elementos percebidos no encontro entre duas áreas distintas, gerando
interrupções lineares na continuidade. Um paredão formado por grades e
galpões de ferro não permitem ao transeunte a observação da Baía. Trata-se,
portanto de um limite impermeável.
Não seria possível passar por este caminho, um generoso boulevard,sem
notar o belo conjunto formado pelo Convento e Igreja das Mercês. Nesta igreja,
iniciada em 1748, de costas à baia e aberta para o antigo Largo das Mercês
(atual praça Visconde do Rio Branco), destaca-se a curvatura, pouco usual, de
seu corpo central
Acompanhando tendência mundial32
de revitalização e reutilização de áreas
portuárias, antigos galpões de ferro, implantados na segunda metade do século
XIX, desde o ano 2000 abrigam novas e diversas funções, especialmente no
setor de lazer e cultura33
. Este local, denominado Estação das Docas (Ilustração
31), constitui-se em um significativo polo turístico e de atração de outros
investimentos públicos e privados que contribuem, aos poucos, para reciclagem
de grandes sobrados à frente da área portuária.
32
Alguns exemplos significativos desta tendência: Puerto Madero (Buenos Aires); Portos de Singapura, Xangai, Hong Kong, Nova York e Lisboa entre outros. 33
A Estação das Docas foi Inaugurada no ano de 2000. Trata-se de um complexo turístico e cultural que congrega gastronomia, cultura, e eventos em 500 metros de orla fluvial do antigo porto de Belém. São 32 mil metros quadrados divididos em três armazéns e um terminal de passageiros. Disponível em: < www.estacaodasdocas.com.br >. Acesso em: 08 abr. 2010.
112
Ilustração 31 - Passeio externo da Estação das Docas. Os guindastes externos
foram fabricados nos Estados Unidos, no começo do século 20.
Fonte: desenho do autor, 2011.
113
5.4.1 - Boulevard Castilhos França: onde se queimam os fogos
A via é um boulevard, de um lado os Mercedários34
e inúmeros altos
sobrados portugueses, do outro, galpões, com estrutura de ferro importada da
Europa. Antigo porto da cidade, às margens do gigantesco volume d’água da
Baia do Guajará. É neste trecho do Boulevard Castilho França, entre a feira do
Ver-o-Peso e a “subida” da Presidente Vargas, que os estivadores fazem sua
manifestação anual à Virgem de Nazaré, em emocionante e volumosa queima de
fogos, que marca uma das mais expressivas tradições cirianas.
Neste espaço, colagem de expressões humanas, históricas, culturais e
simbólicas vislumbra-se um movimento de interesse público e privado no que se
refere à readequação de usos e funções do espaço urbano.
Parece que seria impensável, neste trecho, usurpar a população de sua
identidade. Os fogueteiros poderiam, com a proteção da “Santa Mãe”, continuar
prestando suas homenagens à Virgem que, em seu percurso, guarda a nós e a
nossa cultura.
34
Igreja e convento das Mercês – Esta igreja que teve sua construção iniciada em 1748 é marcada pela curvatura, pouco comum nas igrejas de Belém, do corpo central de sua fachada. Possui púlpitos e retábulo atribuídos a Landi. O conjunto localiza-se no bairro da Campina, na Praça Visconde do Rio Branco, antigo Largo das Mercês.
114
5.4.2 - Paris n’América
As cidades também são feitas de choques e contrastes; sociais, culturais
espaciais e temporais. A torre imponente35
em uma esquina da rua Santo Antônio
com um relógio que se eleva acima dos painéis publicitários (Ilustração 32) pode
passar despercebida pelo transeunte tal o ‘ruído’ desta via comercial do centro
de Belém, tanto visual, gerado pelo caráter impositivo, quase autoritário das
propagandas que cobrem totalmente belas fachadas decadentes e se projetam
sobre o passeio público, quanto sonoro, tamanha a quantidade de “locutores”
que anunciam suas promoções na calçada. O espaço público é o espaço de
ninguém, cada um se aproveita do que pode. A crítica de Benjamin, expressa no
fragmento a seguir, é extremamente atual e aplicável ao cenário da João Alfredo:
[...] O olhar essencial de hoje, o olhar mercantil que penetra no coração
das coisas, chama-se publicidade. Ela desmantela o espaço da
contemplação desinteressada confrontando-nos perigosamente com as
coisas, assim como, na tela de cinema, um automóvel, agigantando-se,
avança vibrando por cima de nós [...] – O que é que, em última instância
torna a publicidade tão superior à crítica? Não é o que diz o luminoso
vermelho – é a poça sobre o asfalto que o espelha, como uma garganta
de fogo. (BENJAMIN apud BOLLE, 1994, p 274).
Ao entrar no edifício, entretanto, o transeunte, livre da poluição externa,
recebe um choque. A escadaria sinuosa monumental em ferro fundido manifesta
o que foi esta loja e este centro comercial em outra época. Em contraste
demonstra a transformação, a mudança e a decadência. Ao mesmo tempo em
que nos revela a memória de uma época que não vivemos; distingue, ilumina de
maneira clara o estado de degradação do espaço urbano e nos mostra com
nitidez a intensidade e a velocidade das transformações culturais. A seguir se lê
um texto de Benedito Nunes (2006) que muito bem ilustra esse fato:
35
A loja Paris n’América foi construída entre os anos de 1906 e 1909. A arquitetura do edifício reproduz claramente a estética e a tipologia das grandes lojas francesas de departamentos. Quase todos os revestimentos e elementos decorativos da casa comercial são importados da Europa (DERENJI, 2009).
115
[...] No seu antigo contorno, quase que inteiramente desaparecido, antes
ladeada pelo Bon Marché, ainda sobrevive, numa esquina da Santo
Antônio, rua do tradicional bairro comercial, decadente em sua atividade
e descaracterizado arquitetonicamente, a outrora casa de roupas e da
moda europeia, Paris n’América. A loja importava tecidos finos, mas
também importou de lá de onde a moda vinha, a cantaria de pedra de
suas paredes, o relógio, que ainda não deixou de badalar as horas, no
seu topo de ardósia e monumental escadaria em ferro fundido, cujos
degraus e corrimãos, lançados em duas sinuosas curvas, se encontram
à altura de um mezanino. (p. 30).
116
Ilustração 32 - Loja Paris n’América.
Fonte: desenho do autor, 2012.
117
5.5 - PRESIDENTE VARGAS: o patamar da modernidade
Talvez seja o desnível mais visível do centro da cidade. “A subida da
Presidente Vargas” e o rebuscado e eclético prédio da Companhia Docas do
Pará (CDP) são marcos de uma mudança significativa na imagem visual. Será a
metrópole do Norte que se descortina, traçada em uma larga avenida já
arborizada com as simbólicas mangueiras?
Ao longo da avenida Presidente Vargas, percebemos a predominância da
arquitetura modernista que chegaria a Belém nas décadas de 50 e 60. Nos altos
edifícios públicos e privados, os materiais construtivos do século XX: concreto,
aço e vidro (Ilustrações 33, 34, 35 e 36). São manifestos não mais do poder
religioso, ou militar, são a materialidade do poder econômico dos bancos,
escritórios, hotéis e grandes lojas que comunicam um novo momento
socioeconômico.
Camelôs e carros sons animam também o corso das oportunidades,
usando e abusando da via que, inerte, se submete à violência urbana. Famosas
também são suas transversais, que alimentam o dia e a noite. Programa dos
sexos, que negociando, se procuram e se acham. Das balaustradas da subida da
Presidente Vargas até o marco “moderníssimo” do Edifício Manuel Pinto da Silva
(Ilustração 36) vive-se a cidade grande com todos os encantos e mazelas.
O texto de Canclini (2008) demonstra o quanto o cenário da Praça da
República/ Presidente Vargas é representativo da modernidade latinoamericana:
[...] Como estudar os ardis com que a cidade tenta conciliar tudo que
chega e prolifera e com que tenta conter a desordem: a barganha do
provinciano com o transnacional, os engarrafamentos de carros diante
das manifestações de protesto, a expansão de consumo junto às
demandas de desempregados, os duelos entre mercadorias e
comportamentos vindos de todas as partes? (p.20).
118
Ilustração 33 - Passagem da procissão do Círio de Nazaré pela Avenida
Presidente Vargas
Fonte: desenho do autor, 2011.
119
Ilustração 34 - Arquitetura da Avenida Presidente Vargas
Fonte: desenho do autor, 2011.
120
Ilustração 35 - Torre da av. Presidente Vargas. Prédio dos Correios de 1940.
Fonte: desenho do autor, 2012.
121
Ilustração 36 - Edifício Manuel Pinto da Silva, inaugurado em 1958.
Fonte: desenho do autor, 2012.
122
5.5.1 - Praça da República: “idade do ouro”, ascensão e queda do ciclo da
borracha
O parêntese no tempo se dá no “Largo da Pólvora'”36
ou Praça da
República/Theatro da Paz. Ali o túnel de mangueiras, a sombra, o vento e a
diversidade humana são a primeira cena do sítio. A calçada limita a borda do
palco, espetáculo do tempo. O espigão do grande edifício Manoel Pinto da Silva,
marco da arquitetura moderna é partner da dança de coretos, lagos, jardins e
esculturas que fazem o passo redondilho do Teatro da Paz. Este é o monumento
mais significativo do período de grande impulso econômico, gerado pela
escalada dos preços da borracha no mercado internacional a partir da segunda
metade do século XIX.
Em carta ao pai, em 1904, Euclides da Cunha não esconde a surpresa em
relação ao que ele encontrou em Belém. A narrativa a seguir, cunhada no auge
da economia do látex, nos transporta ao tempo e ao lugar de sua escritura:
Surpresa37
- Euclides da Cunha
Manaus, 30/12/1904
Meu Pai,
...em todos os pontos onde saltei fui gentilmente recebido graças à
influência de seu grande neto Os Sertões. Realmente nunca imaginei
que ele fosse tão longe. No Pará, tive uma lancha especial oferecida
pelo senador Lemos e alguns rapazes de talento. Passei ali algumas
horas inolvidáveis e nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela
cidade. Nunca S. Paulo e Rio terão as suas avenidas monumentais
largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores
enormes. Não se imagina, no resto do Brasil, o que é a cidade de
Belém, com seus edifícios desmesurados, as suas praças
incomparáveis e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e
36
Largo da Pólvora é uma das antigas denominações do espaço atualmente ocupado pela Praça da República, no centro de Belém. No local, existiu um paiol de pólvora que lhe nominou durante muitos anos. A Praça da República é composta por três ilhas verdes separadas pelas vias do seu perímetro. A praça reúne uma série de edificações e monumentos históricos com efetivo uso pela população, como: o Theatro da Paz, o Bar do Parque, o Teatro Waldemar Henrique, o Núcleo de Artes da Universidade Federal do Pará, o Pavilhão de Música Santa Helena Magno, o Pavilhão de Música Euterpe, um anfiteatro a céu aberto, o monumento à República e o Chafariz das Sereias com esculturas em ferro fundido de sereias em estilo art nouveau. (SOARES, 2009) 37
Disponível em:<http://www.unama.br:8080/casaDaMemoria/projeto/lib/pdf/cadedral_da_se.pdf>. Acesso em: 12 maio 2012.
123
generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem. Na volta hei de
demorar-me ali alguns dias (...)
Muitos e muitos abraços a todos.
Receba saudades do filho e amigo,
Euclides
Esta época, como já foi dito, deixou sinais perceptíveis na estrutura da
cidade e em sua arquitetura. A burguesia emergente utiliza a arte e a arquitetura
como manifestos aparentes da promoção social (BASSALO, 1984). Residências
elegantes, símbolos de luxo, sofisticação e modernidade como os Palacetes
Pinho, Montenegro, Bolonha e Passarinho, lojas, livrarias, cafés, restaurantes e
hotéis são construídos a partir de projetos, muitas vezes inspirados em revistas
europeias. Edifícios públicos monumentais são erguidos pela administração
como a nova sede do poder municipal, conhecido como Palacete Azul.
Pela necessidade da rápida transformação do espaço da cidade, a
arquitetura do ferro, cujo processo de montagem diminui o tempo de instalação
no tecido urbano, é incorporada ao cenário daquela que é hoje considerada pelos
especialistas a cidade brasileira que mais conservou as estruturas metálicas
importadas da Europa e dos Estados Unidos.
Nas administrações estadual de Augusto Montenegro (1900 a 1908) e
municipal de Antônio Lemos (1897 a 1912) desenvolve-se uma progressiva
imposição de demolições das construções de palha e barro da área central para
a abertura de vias largas, arborizadas com mangueiras, avenidas, boulevards,
parques e praças.
Evidente exposição de valores eurocêntricos, a importação do gosto
burguês europeu para a Amazônia da borracha caiu no artificial e aparente, pois
não havia correspondência direta e clara entre a estrutura social da região e as
representações estéticas geradas pelo mundo da Europa industrializada. A fase
de euforia econômica deixaria resultados pouco consistentes e duradouros para
o desenvolvimento local (BASSALO, 1984).
Shohat e Stam (2006) demonstram que, ainda hoje,
[...] o eurocentrismo forma uma corrente da qual poucos se dão conta,
um tipo de mau hábito epistêmico presente tanto na produção cultural
124
dos meios de comunicação quanto na reflexão intelectual sobre essa
cultura. (p.33).
Ainda hoje, a avenida e a Praça da República configuram-se como palco
dos grandes eventos públicos, via/tambor dos apelos e manifestações da
sociedade. Aos domingos, a multidão toma a praça em uma grande feira.
Observa-se a invasão dos produtos chineses, CDs piratas etc. Efeitos visíveis da
globalização, eles chegam a dividir em duas partes o calçadão da praça com as
manufaturas populares. É a mixagem do momento? Canclini (2008) também se
posiciona acerca destes fenômenos:
[...] Como discernir, em meio aos cruzamentos que misturam o
patrimônio histórico com a simbologia gerada pelas novas tecnologias
comunicacionais, o que é típico de uma sociedade, o que uma política
cultural deve favorecer? (p. 197).
125
Ilustração 37 - Bar do Parque. Ponto da Boemia. Quiosque da Praça da República
situado ao lado Theatro da Paz atribuído ao arquiteto Francisco Bolonha.
Fonte: desenho do autor, 2011.
126
Ilustração 38 - Pavilhão de Música Santa Helena Magno. Praça da República
Fonte: desenho do autor, 2011.
127
Ilustração 39 - Chafariz das Sereias com
esculturas em ferro fundido em estilo art nouveau.
Fonte: desenho do autor, 2011.
128
5.5.2 - Theatro da Paz
Joia valiosa e guardada. Esta analogia é evocada pela lembrança deste
monumento arquitetônico. Símbolo de fausto período, exibe a sofisticação de
materiais importados da Europa mas foi erguido aqui, com o esforço da mão de obra
local e requer permanente manutenção. Vive encastoado tendo historicamente
acesso pouco democrático.
Monumento característico do período posteriormente conhecido como “Era da
Borracha”. Palco de grandes temporadas líricas europeias e nacionais, está entre os
mais importantes e tradicionais teatros do Brasil.
O projeto de linhas neoclássicas é de autoria de Tibúrcio Pereira Magalhães.
Inaugurado em 1878, foi inicialmente denominado Theatro Nossa Senhora da Paz
(Ilustração 40).
Sua configuração acompanha as tendências europeias da época. A forma de
ferradura é inspirada no Scala de Milão. A ornamentação luxuosa e sofisticada, que
hoje observamos, é resultado de várias intervenções que moldariam seu interior e
exterior aos padrões da Belle Époque, dotando-o de luxo e requinte. A mais
significativa reforma ocorreria em 1904 durante o governo de Augusto Montenegro.
As influências francesas e o estilo art nouveau são expressivamente adotados. Na
fachada, a fileira de sete colunas é substituída por uma galeria recuada de seis
colunas. São adicionados cinco nichos com bustos representativos da Música,
Poesia, Comédia e Tragédia, além do escudo de armas do Estado no medalhão
central.
No interior do teatro, a sala de espetáculos (Ilustração 41), de excelente
acústica, comporta 1100 lugares. No teto observa-se a representação dos deuses
Apolo e Diana em cenário amazônico, exuberante painel de Domenico de Angelis. O
mobiliário das frisas, camarotes, plateia e varanda é requintado, a Iluminação
suntuosa, o pano de boca, fabricado em Paris, exibe uma alegoria à República.
A casa de espetáculos mantém sua atividade original. Para nossa sorte, a
temporada ainda está aberta ao público.
129
Ilustração 40 - Vista da Praça da República
Fonte: desenho do autor, 2012.
130
Ilustração 41 - Interior do Theatro da Paz
Fonte: desenho do autor, 2012.
131
5.5.3 - Teatro Waldemar Henrique
Experimental, de arena, praticamente no nível do terreno, este espaço é
querido pela categoria dos artistas de teatro.
A fachada principal do prédio (Ilustração 42) apresenta estilo eclético,
decoração art nouveau e seu interior é marcado pelo mezanino de madeira. A
edificação construída no início do século XX já abrigou outras funções, o
espetáculo do teatro só “arrebatou” o edifício em 1979, bravo! As adaptações do
interior foram realizadas com o objetivo de criar um espaço alternativo e
inovador.
Sua escala humana facilita o contato, a interação entre ator e público.
Talvez seja o seu grande charme.
Ilustração 42 - Fachada do Teatro Waldemar Henrique
na av. Presidente Vargas, Praça da República.
Fonte: desenho do autor, 2012.
132
5.5.4 - Grande Hotel, a saudade do que não vivi
Os Quintais38
- Age de Carvalho
...Carrego no corpo a medula da árvore
- bicho de frutos. Batizo a cidade:
Santa Maria de Belém do Grão-Pará.
eu te esquecerei na Praça da República,
longe do Forte e dos canhões,
sem teus ingleses dos alfarrábios da Biblioteca Pública,
perto dos Correios e do funcionário,
na esquina da Riachuelo,
na 1.º de Março,
na zona.
...........................................................
Vagarei pela inexistência da cidade,
por sobre os telhados
(nunca mais pelos da Palmeira,
que recendiam a pão,
e hoje resistem noutra tarde) da cidade,
sobre a vida que transpira na pele da idade
dos meus 20 anos
de poeta,
de aprendiz de arquiteto,
menino de sonho
e ossos no universo de um quintal do Norte.
Nesse poema, Age de Carvalho “vaga” pela “inexistência da cidade” entre
a memória e o esquecimento.
Assim como a Fábrica da Palmeira, lembrada nos versos do
poeta/aprendiz de arquiteto, a perda do Grande Hotel é, também, bastante
destacada entre os bens arquitetônicos suprimidos da paisagem de Belém. É um
desses lugares, citados neste trabalho, que não conheci. No entanto, após ouvir
tantos relatos, chego a sentir sua falta. Na impossibilidade de oferecer a
representação da minha memória presencial, trago aqui a descrição da
configuração física, inicialmente, do Hotel, feita por Benedito Nunes (2006):
38
Disponível em:<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/para/age_de_carvalho.html>. Acesso em:
133
[...] Imagine-se, agora, na rua do lado ocidental do Teatro da Paz, no
mesmo Largo da Pólvora (Praça da República), um edifício de quatro
andares, o piso inferior abrindo-se em portas envidraçadas, os balcões
das janelas superiores em ornamentação clássica, culminando em
ambos os lados de um frontão central, em mansardas semelhantes as
da Rue de Rivoli, em Paris, ponham-se-lhe, em sua calçada fronteira,
com as respectivas cadeiras portáteis, mais de uma dezena de
mesinhas de tampo circular de pedra, cada qual cercado por um aro
protetor de metal amarelo, e teremos o Grande Hotel e sua terrasse,
quarto ícone urbano, construído no fim do século, e que, ainda sólido e
em condições de funcionamento, na mesma década de 1970, quando o
arraial de Nazaré acabou, a especulação imobiliária suprimiu de nossa
paisagem urbana. (p. 30).
Na sequência do mesmo trabalho, Nunes (2006) descreve um pouco das
personagens e da cena urbana vivida neste espaço na primeira metade do
século XX.
[...] Na larga terrasse do Grande Hotel, calçada apetrechada de
mesinhas, ponto mundano de reunião de burgueses, barões da
borracha, fazendeiros, jornalistas, políticos e intelectuais,
desembocavam também, os frequentadores dos diversos teatros em
funcionamento no largo da Pólvora, como o Politeama e o Pálace, e das
vesperais e saraus do cinema Olympia, que se instalara ao lado em
1912. Aí onde Mário de Andrade, em 1927, tomaria sorvetes no calor do
final da tartde, passava o eixo urbano de maior movimentação da vida
intelectual e artística, começando pelo Theatro da Paz e terminado no
Largo de Nazaré.
No perímetro do Grande Hotel, antes mesmo que surgissem o edifício e
sua terrasse, era tal a concentração de casas de espetáculos e
diversões (teatros-revista, cafés-concerto, vaudevilles) que a crônica
jornalística da época apelidou, orgulhosamente, o Largo da Pólvora,
com o seu Olympia, de Montmartre paraense. (p. 33).
Como se sabe o Grande Hotel foi ‘apagado’ do espaço da cidade e
exatamente em seu lugar foi erguido um novo edifício para o desempenho da
mesma atividade econômica. O déficit (incluindo o estético) de capital cultural,
resultado da troca, quando comparamos as imagens do Grande Hotel e do edifício
atual é evidente (Ilustração 43). Observando inúmeros exemplos de edificações
históricas restauradas e adaptadas para usos atuais, podemos apenas lamentar esta
perda e imaginar como este edifício poderia ainda, abrigar atividades que
trouxessem retorno econômico, permanecendo como mais uma interessante peça
da coleção urbana do cidadão de Belém.
134
Ilustração 43 - 1 e 2: Prédio do Banco da Amazônia
e detalhe do Hilton Hotel. 3: Grande Hotel
Fonte: José Fernandes. Projeto Belém da Memória, 1999.
135
5.5.5 - Túnel de Mangueiras
Na metrópole, os túneis ainda não são de concreto, são verdes,
generosos, naturais (Ilustrações 44 e 45). As mangueiras são quase entidades
nesta cidade de Belém do Grão Pará. Entidade estrangeira que veio para se fixar
definitivamente na localidade39
.
Pouco importa, apesar do susto e dor, que possa um fruto despencar em
nossa cabeça, para-brisas de carros estilhaçados, bueiros entupidos que, por
descaso, criam transtornos ou, até mesmo, a queda de árvores no período mais
intenso da chuva. Nada supera a beleza das “guirlandas”, do “passe-partout”
verde que emoldura e alimenta a cidade. E a sombra protetora que faz o andar
do transeunte ser bêbado a persegui-la.
Não existe quem, que por alguma necessidade não tenha pedido o seu
abrigo. Na chuva, no sol ou pela pura delícia da contemplação ela é majestosa
pela sua forma, cor e textura, mas é graciosa quando tilintam as cigarras ao
entardecer ou deixa passar gotículas de raios de luz que vazam por sua copa.
Tão expressiva que dá nome ou codinome a Belém, “Cidade das
Mangueiras”. A seguir, o escritor Ignácio de Loyola Brandão nos presenteia com
sua leitura dos túneis das mangueiras e da influência das “garras da natureza”
sobre o homem da Belém:
Crônica quase concreta40
- Ignácio de Loyola Brandão
... Estávamos em Belém para uma série de palestras na Amazônia.
Como turistas aprendizes. Bebíamos a liquidez da cidade, absorvíamos
a sua lubricidade solar. Lugar avassalador, imponente, estranho,
sedutor, quente, incoerente [...] O que importa quando se caminha
empapado de suor, envolvido por odores rascantes, atraídos por
nomes? Andando entre túneis de mangueiras, sendo algumas velhas e
carcomidas, não sabemos quanto tempo ainda resistirão.
Entrar em Belém é um mistério. É o se deixar penetrar, aderir ou não,
participar. O princípio é sufocante, nos falta o ar, o mal estar é orgânico,
39
A impressão de um verdadeiro “túnel” formado pelas copas de frondosas mangueiras que ladeiam as avenidas do centro da cidade, um dos traços característicos de Belém, é um legado das ações de arborização e paisagismo, desenvolvidas durante a gestão municipal do intendente Antônio Lemos (1897 a 1912), período que corresponde ao auge da economia da borracha. 40
Disponível em: <http://www.unama.br:8080/casaDaMemoria/projeto/lib/pdf/tunel.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2012.
136
combatido por um fascínio que acaba vencendo [...] E se nas grandes
cidades nos sentimos esmagados pelos arranha-céus, nesta aqui
percebemos a garra da natureza, o seu domínio que não é somente
físico mas sobrenatural. Natureza que influencia as pessoas, determina
atitudes, meio de vida, comportamento, loucuras e genialidades [...]
porque Belém convida a se abandonar: nenhum limite ao sonho, convite
permanente à invenção [...]
Santa Maria de Belém do Grão Pará. Local de todos os mitos, onde as
lendas se encontram, as histórias se cruzam...
Ilustração 44 - Túnel de mangueiras. Largo da Pólvora/Praça da República.
A Praça da República foi o principal cenário da Belle Époque
Fonte: desenho do autor. Projeto Belém da Memória, 2000.
137
Ilustração 45 - Túnel de mangueiras do calçadão
da Praça da República. Feira de domingo
Fonte: desenho do autor, 2012.
138
5.6 - AVENIDA NAZARÉ / IGREJA DE NAZARÉ
O edifício Manuel Pinto da Silva é o marco visual que reorienta o percurso
que segue pela Avenida Nazaré. E é neste ponto de confluência que acontece
um grande desafio de acotovelamentos, durante a passagem da procissão do
Círio de Nazaré. Nesta “quebra” ou articulação da “espinha dorsal”, há uma
parada obrigatória e imagens de celebração e fé, quando, do alto do edifício
branco41
despencam chuvas de papel branco picado como luzes do céu. A
Virgem então, entre túneis de mangueira, segue majestosa pela avenida Nazaré.
A antiga estrada que conduzia ao que era o subúrbio da cidade nos
séculos XVIII e XIX, hoje, é absolutamente central. Grandes residências,
expressão do status de famílias mais abastadas, foram sendo substituídas por
condomínios por toda cidade. Belém experimenta um período de intensa e
repentina verticalização. O casario da Avenida Nazaré sofre mutações e
mutilações. Empresas, escritórios, aos poucos, ocupam a via (Ilustração 46).
A aristocrata família já não enfeita mais seus parapeitos no dia do Círio. O
hábito europeu, usado para reverenciar a passagem da Santa, não é mais
possível.
O fluxo dos anos é sentido no percurso pela via/medula da cidade. O túnel
de mangueiras é também “túnel do tempo”. A vista das transformações na
avenida que confronta repetidos flashs com a justaposição de arranha-céus ao
lado de “casarões da borracha” que sobreviveram na avenida expressa parte das
transformações da urbe. No ponto de chegada de nosso percurso temos a
imagem do conjunto de torres que competem em altura por trás do terreno do
arraial ao lado da Igreja de Nazaré.
O poema de Milton Hatoum transcrito a seguir, descreve o medo da
dissipação das imagens, cheiros e sons de uma memória afetiva, ao mesmo
tempo coletiva e individual, pelas transformações presentes e futuras. Ao tempo
do agora, em que se processam velozes mudanças movidas pela ganância, o
poeta contrapõe um tempo bíblico, mítico, que o próprio nome da cidade evoca.
41
Edifício Manuel Pinto da Silva.
139
A imagem atual da antiga Estrada de Nazareth poderia expressar o receio e a
esperança do autor:
Belém é Bíblica?42
- Milton Hatoum
Alguém que passou por aqui
Sentiu o calmo andamento do Tempo
E vislumbrou a paisagem do que restou
Do paraíso da infância
Em alguma noite distante
Serei esse passeante
que sonhará contigo.
O tumulto e a ganância do futuro
Vão dissipar teus cheiros misturados
Da Orion das flores do Oceano?
Apagar o riso das moças
vestidas para o olhar?
Teus bosques tuas praças
telhas e igrejas?
Tua altiva belle époque
Ou bela simplesmente?
Tem o inferno do futuro
Que já se insinua no presente
Será a eterna cidade do Círio?
Belém é bíblica?
Assim espero.
42
Texto, até então inédito, produzido pelo autor amazonense para o projeto Belém da Memória.
140
Ilustração 46 - Paisagem da avenida Nazaré:
antigos casarões ao lado de condomínios verticais
Fonte: desenho do autor, 2012.
141
5.6.1 - Palacete Bolonha
Exemplo singular da arquitetura residencial da Belle Époque, período no
qual a burguesia emergente utiliza a arte e a arquitetura como manifestos de
promoção social. Os Palacetes Bolonha (Ilustração 47), Pinho, Montenegro, Bibi
Costa, Bolonha e Passarinho entre outros, chamados “Palacetes da Borracha”,
são referências do período. Símbolos de luxo, sofisticação e modernidade.
Residência particular do engenheiro Francisco Bolonha, o palacete,
construído em 1915, expressa o ecletismo, tendência arquitetônica europeia do
séc. XIX e início do séc. XX adotada pela elite de Belém da época.
Em sua abundante decoração convivem azulejos art nouveau, relevos com
temáticas greco-romanas, ardósia importada da Europa, lâminas de cristal nas
janelas, reproduções de mosaicos de Pompeia, mármores, ferro fundido,
materiais que, por vezes, trazem gravadas as iniciais do proprietário.
Admirador de Eiffel, Bolonha viaja com certa frequência à Europa e, como
projetista e construtor bastante atuante, reproduz em construções públicas e
particulares os padrões estéticos europeus do período. (BASSALO, 2008)
Observa-se, também, como marcas características do palacete, a
assimetria, a presença das torres e a acentuada verticalização - ‘castelo rendado’
- que surge inusitadamente na Avenida Governador José Malcher.
142
Ilustração 47 - Palacete Bolonha (1915) na avenida
Governador José Malcher, bairro de Nazaré.
Fonte: desenho do autor, 2012.
143
5.6.2 - Casarões, bangalôs e exemplares modernistas
Desde a segunda metade do século XIX até o início do século XX,
imponentes sobrados e palacetes residenciais surgem nas ruas e travessas da
cidade. Os modelos estéticos europeus são adotados e a ornamentação eclética
que satisfaz o desejo de luxo e sofisticação da elite da época aparece nas
fachadas de construções de tipologias neoclássicas.
Estas edificações possuíam, em geral, dois pavimentos, porão alto e
alpendre lateral, marcação da fachada pelo ritmo de cheios e vazios, esquadrias
em acapu, ornamentos em frisos em semicírculos e molduras em caneluras,
guarda-corpos da fachada em balaústres, assoalho de madeira em acapu e pau-
amarelo. Ao longo da av. Nazaré, dividindo o espaço com grandes edifícios ainda
restam exemplares desta tipologia arquitetônica (Ilustração 48).
Um salto no tempo e ainda restam os grandes bangalôs, volumes que se
assemelham aos chalés com grandes telhados e ornamentos art nouveau e art
deco como o Palacete Passarinho43
(Ilustração 49).
Entretanto um grande contraste se dá na comparação com monumentos
como sede social do Clube do Remo44
(Ilustração 51) com risco modernista
abusado.
Mas recentemente a sede do tribunal de Contas do Município surge como
um “gigante negro” contrastando com a grandiosidade da torre branca e dos
detalhes ecléticos da atual sede de um banco privado e de outras edificações
antigas do entorno como o prédio da CODEM.
Tudo isto no largo do redondo usado pelo planejamento como uma área de
“respiração” do logradouro.
43
Prédio em estilo eclético, antiga residência da família César Santos Passarinho, situado na avenida Magalhães Barata, prolongamento viário da avenida Nazaré. Atualmente, funciona no local um restaurante. 44
Edifício em estilo modernista que abriga a sede social do Clube do Remo.
144
Ilustração 48 - Palacete Augusto Montenegro. Construído para ser a residência do
governador do estado entre 1903 e 1909. Atual museu da UFPA
Fonte: desenho do autor, 2012.
Ilustração 49 - Palacete Passarinho na avenida Magalhães Barata.
Fonte: desenho do autor, 2012.
145
Ilustração 50 - Retalhos urbanos. Bairro de Nazaré.
Fonte: desenho do autor, 2012.
146
Ilustração 51 - Arquitetura modernista na Avenida Nazaré.
Sede social do Clube do Remo.
Fonte: desenho do autor, 2012.
147
5.6.3 - Largo de Nazaré
A recordação do largo de Nazaré, ainda com coreto, barracas e
brinquedos, é deliciosa para os que desfrutaram a experiência deste espaço. Em
uma intervenção urbana recente o arraial foi retirado dali. Em seu lugar foi
construída a Praça Santuário, pátio solar e gradeado.
Na década de 1980, a Diretoria da Festa de Nazaré comandou a completa
reestruturação da área frontal à Igreja de Nazaré. O antigo Largo de Nazaré com
todos os seus encantos foi suprimido. Durante anos, ele foi o local do arraial
profano que complementava as festividades do Círio de Nazaré. Após a reforma,
o arraial foi transferido para um terreno, de localização bem menos destacada,
ao lado da igreja. No local foi erguido o Centro Arquitetônico de Nazaré (CAN).
Para os da minha geração, não há memória presencial, deste espaço,
anterior a referida transformação urbana. Nos resta, entretanto, a nítida
percepção da saudade dolorosa do perecido Largo de Nazaré nos relatos das
pessoas de outras gerações que frequentaram o arraial, como demonstrado pelo
texto de Benedito Nunes, citado a seguir:
[...] Quando o conheci, o quadrilátero da praça, com barraquinhas de
comida, sortes e divertimentos vários, além de brinquedos mecânicos,
como um carrossel e uma ola giratória, já tinha sido remodelado: em
cada canto um coreto para retretas, no meio o pavilhão de Flora,
colunatas circulares, para recitativos e música, e, na calçada fronteira ao
templo, um relógio de mostrador redondo, encimado por ornamentação
floral a ferro, traço do Art Noveau. Em torno da quadra, prosperavam
casas de espetáculos, cinemas e teatrinhos. Tudo isso desapareceu,
tragado por uma austera e ascética concepção da festa, que vingou a
partir de 1970; sumiram os coretos, o relógio, o pavilhão. Na praça,
agora toda cercada por um gradil, prolongou-se o santuário. No entanto,
era no arraial que estava o juvenil assomo de vida, a impulsividade
dionisíaca, transbordante, ainda hoje, do Círio, como vigorosa forma de
devoção popular. (NUNES; HATOUM, 2006, p. 30).
Entre outras transformações urbanas, a perda do Largo de Nazaré parece
ser uma das mais sentidas. Nos exemplos do Grande Hotel e da Fábrica
Palmeira, a perda do patrimônio arquitetônico, também por muitos lamentada, é
mais expressiva. No Largo de Nazaré, é mais significativa a perda do espaço
148
popular de convívio, lúdico, e a saudade das atividades humanas é mais
marcante (Ilustração 52).
Também colabora para a mágoa referente à perda do largo de Nazaré a
configuração arquitetônica do CAN. Em substituição a um espaço aberto à
utilização popular, razoavelmente democrático, foi construída uma praça cercada
por um gradil, único exemplar em Belém de praça com esse tipo de isolamento,
somente acessada por um portão ‘aberto’ e ‘vigiado’ pela Igreja.
Kevin Lynch (1980) aponta para o papel negativo desempenhado pelo
excesso de limites impermeáveis nos espaços urbanos. Neste caso, podemos
acrescentar o aspecto simbólico das grades que inibem o livre acesso da
população à praça por todas as laterais. Parecem dizer que o uso do espaço
precisa ser “autorizado” pelo poder que lhe administra. Trata-se de uma
intervenção urbana autoritária, que privilegia a manutenção asséptica do lugar
em detrimento do convívio humano que toda a praça deveria possibilitar.
No lugar dos equipamentos de efetivo uso, destinado à cultura e ao lazer,
foram edificados monumentos ‘modernos’ de apelo simbólico/religioso. A
paisagem árida da praça de altar envidraçado e piso de mármore, além do
referido gradil, sinalizam a autoridade do poder constituído.
Belém também é assim: toda gradeada, são as “cicatrizes” da violência
urbana manifestada. Entretanto, a análise deste percurso nos leva a pensar que
isto não inibe a liberdade de criação de nossa sociedade inserida em um
contexto socioambiental particular e diverso como o amazônico.
No momento da conclusão deste estudo, esperamos novamente outubro45
para que os portões sejam abertos.
45
Todos os anos, no segundo domingo do mês de outubro, acontece a procissão do Círio de Nazaré.
149
Ilustração 52 - Antigo Arraial de Nazaré
Fonte: representação do autor. Projeto Belém da Memória, 2000.
150
5.7 - CÍRIO DE NAZARÉ
A Corda da Fé46
- Benedicto Monteiro
A corda
é uma oração de pés e braços
de mãos seguras
em corpo-a-corpo e desespero
mil almas amarradas e libertas
unidas e desunidas em mil cores
mil caras de mil partes
mais de mil portes
mais de mil faces
mais de mil preces
mais de mil pedidos explodindo em êxtase
explodindo em olhos
em poros, pêlos e apelos
.................................................
A corda é um rio que leva na viagem
é água que lava tudo e todos numa chuva.
Nada comove e impressiona mais do que a massa humana viva e
compacta, como um só gigantesco organismo vivo. Sua força brutal em
movimento, invadindo os canais da cidade, em contraste, ilumina e (e)leva a
delicadeza da berlinda. A virgem pura, pequena e poderosa, gravita mágica
sobre uma multidão de pecadores. Mas esta beleza vem do azul ou do chão?
Humilde e dadivoso pode ser o próprio homem e a luz que a imagem irradia são
os feixes luminosos que condensam as melhores ações e intenções deste “mar
de gente”.
Salvas, palmas e cânticos são entoados e, por instantes, o estado de
espírito de graça, que arrepia os pelos do corpo em transe, nos aproxima de
nossos irmãos. Bom seria, com a graça dos homens, se este sentimento não se
esgotasse, em meio às nossas vaidades cotidianas.
46
Disponível em: <http://benedictomonteiro.blogspot.com.br/2010/11/discurso-sobre-corda-debenedicto.html>. Acesso em 14 abr. 2012.
151
Na Visão Geo-Social do Círio, Eidorfe Moreira observa a importância e a
abrangência da festa:
[...] Pelo fervor e vibração da massa, como pelas proporções que
assume como deslocamento humano no espaço, o Círio transcende aos
aspectos formais de uma procissão, embora por certas aparências
litúrgicas possa ser considerado como tal. A grandeza do espetáculo,
contudo, impõe ao espírito categorias ou qualificações mais amplas.
(MOREIRA, 1971, p. 5).
Somos dois milhões. Se nesta massa há identidade, não faltam diferenças:
espectadores anônimos, estrangeiros perplexos, políticos acenando nos puleiros,
discretos batedores de carteira “fazendo a festa”, flertes, encontros e
reencontros, sinceros agradecimentos, pedidos de perdão, culpas aplacadas, o
exibicionismo da “fé”, machos com corpos colados aos milhares e até os 10
minutos de fama do Homem Caranguejo. Moreira (1971) analisa o exuberante
envolvimento da população com a procissão:
[...] Desde as suas origens [...] a nova procissão se destacou pela sua
extrema popularidade, [...]. A procissão de Nossa Senhora de Nazaré
representa assim o predomínio de uma romaria de origem popular sobre
as fórmulas tradicionais de origem oficial, as procissões ou festas reais,
impostas por lei. Ao contrário destas, que se firmaram em consequência
do prestígio oficial que as cercava, o Círio se impôs por si mesmo, em
virtude da sua popularidade. Em planos diversos e maneiras diferentes,
o Círio e a Cabanagem são os dois maiores exemplos do poder
afirmativo das massas na história paraense. (p. 15).
Elemento marcante da procissão “a corda da fé” é um símbolo
fundamental de união, mas também de luta, resistência e participação popular:
[...] a “Corda” tem grande significação no contexto da procissão. Material
e simbolicamente, é o traço de união entre o povo e a imagem da Santa.
Na história do Círio ela tem sido o ponto crítico das relações entre as
autoridades eclesiásticas e os devotos, havendo mesmo alguns bispos
tentado suprimi-la. [...]. (MOREIRA, 1971, p. 11).
Alguém já disse: “Deus está nos detalhes”. A beleza do espetáculo se
manifesta através do capricho e engenho humano, pelo que o povo cria na
152
procissão dos séculos. Bastaria um barquinho colorido de miriti, mimosa
maquineta híbrida feita em levíssima madeira regional47
para o nosso lúdico
encantamento. Mas a criatividade do povo não se esgota. “Tenho mais ideia na
cabeça do que letra em jornal” me disse um velho caboclo quando eu era
criança. Além de inúmeros brinquedos tradicionais: reco-reco, serrador,
passarinho, guirlanda, casal de namorados, cobra, etc. surgem os miritis high-
tecs, DVDs, carros, aviões.
Maceração, depuração, combinação, cozimento. O máximo da sofisticação
e do refinamento cultural. Nossa culinária é um continente com rico conteúdo de
técnicas e alquimias. Mistura borbulhante de tempos e lugares ancestrais. A
sedução é sinestésica e polifônica. Depois das orações, maniva, tucupi, jambu,
cheiros e sabores sensuais - quase sexuais - fazem pupilas e narinas dilatar, a
língua tremer e o corpo extasiado suar.
A cidade toda se enfeita, se veste, se reveste, se maquia. Ainda vemos
nos parapeitos dos sobrados poucos lençóis rendados, mas são inúmeros os
outdoors, backdrops, frontlights. Palanques, arquibancadas, cenários, pintura
renovada nas fachadas, arcos, faixas, cartazes, fitas, balões, se misturam às
obras “para inglês ver” do poder público. Por vezes, a produção é excessiva e o
visual se torna carregado.
Uma procissão de santas. A virgem, ela própria uma imagem, na era de
sua reprodutibilidade técnica48
se multiplica. No círio talvez desfilem mais virgens
do que mortais. Multiplicadas em tranfers, silk-screen, plotters as imagens das
santas, (hiper realistas, expressivas, estilizadas em 2 e 3D) ao mesmo tempo
seguem o corso enquanto outras, algumas gigantecas, as observam nas
fachadas dos prédios, em painéis, em cartazes, em arcos etc. Nas telas da TV
aberta, a cabo e pela internet ganham o mundo.
47
O Miritizeiro é uma palmeira, tipicamente amazônica, encontrada em áreas de várzea. Seu nome derivado do tupi guarani significa o que contém água. As sociedades indígenas foram as primeiras a fazer uso do miritizeiro na fabricação de utensílios e brinquedos para as crianças como miniaturas de embarcações, bonecas e animais. Os brinquedos atuais de miriti são resultado de hibridação cultural. Com a chegada dos portugueses estas manufaturas sofreram influência dos brinquedos europeus incorporando mecanismos de articulação entre as partes. (FUNDAÇÃO CURRO VELHO, 2006). 48
Referência a obra de Walter Benjamin, intitulada A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica.
153
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PERCEPÇÃO DA CIDADE
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS: contribuições para uma percepção da cidade
Na conclusão de um belo ensaio sobre Belém e sua história, Benedito
Nunes observa a formação de uma nova sociedade, nesta capital, composta por
uma elite econômica, desligada afetivamente do solo urbano, ligada às
especulações de capital e ao lucro individual e, por uma “[...] massa anônima
incrustada numa população de mais de 1.300.000”. A cidade, teme o filósofo,
“com o risco de apagamento dos ícones que guardam a sua memória, garantindo
a continuidade do passado no presente [...] estaria sob a ameaça de perder sua
própria identidade sócio-cultural” (NUNES & HATOUM, 2006, p 40)
A visão da clara degradação da área que corresponde à primeira légua
patrimonial, que, a meu ver, reúne os ícones urbanos que, ao longo dos séculos,
colaboraram, de alguma forma, para construção desta identidade (o povo, o rio,
as mangueiras, o Ver-o-Peso, os sobradões e as igrejas, o legado da Belle
Époque, o Círio de Nazaré) e a má qualidade, estética e funcional, do espaço
urbano produzido em épocas mais recentes, distante desta área central, que
revela uma paisagem árida, dominada pela poluição ambiental, pelo caos viário,
e fragmentada pelas barreiras físicas e simbólicas que materializam a cisão
social e a desconfiança entre as classes sociais parecem dar fundamentos ao
temor do filósofo.
Por outro lado, muitos estudos demonstram o equívoco do pensamento
maniqueísta que considera períodos passados como épocas de Ouro/esplendor
e vê o momento atual com total desconfiança. Nazaré Sarges alerta para o
aspecto elitista da política de reordenamento urbano Lemista durante o auge da
economia do látex (SARGES, 2010). Célia Bassalo demonstra que o período não
trouxe reflexos duradouros para o desenvolvimento local (BASSALO, 1984) e
Fábio Castro analisa a construção pelo imaginário coletivo de uma ilusão que
envolve a chamada “Era da Borracha” e ofusca presente e futuro (CASTRO,
2010). Bolle, que lê Belém também através do texto de Dalcídio Jurandir,
observa que o desenvolvimento da cidade sempre esteve, também, atrelado a
sua própria decadência. Inevitável herança do processo de exploração colonial
155
em meio ao qual foi fundada e se desenvolveu a custa de empenho e
criatividade, mas também de exploração da mão de obra (BOLLE, 2008).
A cidade é palco e manifesto histórico de sua sociedade. É expressão de
poder e opressão, mas também, de luta e resistência, avareza e ricas trocas,
heranças, temores e esperanças futuras. O que a natureza, a cultura e o tempo
legam como morada urbana às futuras gerações é um grande patrimônio. Este
patrimônio deve ser estudado, avaliado, criticado, mas não deve ser ignorado.
Por mais que grandes boulevards, praças, igrejas e palácios revelem a injustiça
das desigualdades sociais e tenham suprimido da paisagem outros cenários
perecidos (arquitetura popular, sociedades indígenas), eles são o testemunho de
relações sociais que precisam ser conhecidas pela população e fazem parte de
seu capital cultural, estético, econômico. O espaço público deve ser de todos e
seus usos sociais devem ser fruto de decisões democráticas. Neste ponto é que
o legado urbano precisa ser cuidado, democratizado e adaptado às
necessidades atuais.
O cidadão - informado sobre as circunstâncias históricas que definiram a
produção e a utilização do espaço urbano, convidado a ler, refletir e discutir
sobre a imagem física e simbólica da cidade e finalmente com o devido e
esperado acesso aos espaços, aos serviços, à cultura e ao lazer que só a cidade
pode proporcionar - estará muito mais apto a participar de forma cidadã do
debate e das ações para transformação da vida futura.
É necessário educação, informação, crítica analítica e profunda, mas
também participação, envolvimento e afeto.
E aí me coloco como rápido passageiro do tempo nesta corrida de
bastões.
Ao me envolver no projeto Belém da Memória, entrei em contato com
declarações amorosas, delicados relatos de viajantes, autores da criação literária
que sem medo expressam sua incondicional paixão por esta cidade.
Tomei coragem e me aventurei a remexer as histórias que ouvi e sempre
quis entender mais. Contaram-me sempre de uma linda João Alfredo, uma
escultórica caixa d’água, um glamouroso Grande Hotel, além do jeito hospedeiro
156
e cavalheiro de ser da gente desta cidade que, menos violenta, levava as
pessoas a conversar em roda nas calçadas no final da tarde.
Talvez o que reste, desta imagem, seja pouco, mas este é o meu tempo. E
como outros, posso dizer da textura cultural invasiva, exuberante e sensual, que
faz transpirar diariamente o calor desta terra, deste ponto vermelho no meio da
Amazônia, na linha tórrida do Equador que desde a infância localizo nos mapas
escolares, a minha Belém.
Não me dispus a chorar, a lamentar, mas a contribuir, estudando e
analisando a cidade como arquiteto e cidadão.
Se erros e acertos ocorreram, que novos usos e significados, estamos
dando ou propondo à cidade? Acesso democrático ao espaço público?
Sustentabilidade, como vigilantes guardiões da natureza como fonte de
desenvolvimento humano? Educação e informação gerando consciência, espírito
crítico e responsabilidade para com o nosso tempo e as gerações futuras?
Talvez, atentos a estes elementos, possamos fortalecer valores éticos e estéticos
de uma sociedade mais digna e justa.
157
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