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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FACULDADE DE ARQUITETURA UM ESTUDO SOBRE O FUTURO DO LIVRO Entre Impresso e Digital Eliana Gonçalves Gomes Trabalho de Projeto Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas Trabalho de Projeto orientado pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues 2018

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES … · potencial futuro do livro, assim como as limitações que se encontram no suporte digital e no suporte impresso. Os livros ‘Post-Digital

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

FACULDADE DE ARQUITETURA

UM ESTUDO SOBRE O FUTURO DO LIVRO

Entre Impresso e Digital

Eliana Gonçalves Gomes

Trabalho de Projeto

Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas

Trabalho de Projeto orientado pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues

2018

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Eliana Gonçalves Gomes, declaro que o presente trabalho de projeto de mestrado

intitulado “Um estudo sobre o futuro do livro, entre impresso e digital”, é o resultado da

minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes

consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes

documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo

do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 15 de fevereiro de 18

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RESUMO

O livro é o suporte da escrita; o objeto primordial que contém e preserva o conhecimento e

a informação da humanidade. Pelo menos, assim era até ao advento do meio digital – o digital

veio proporcionar e ampliar a divulgação de informação, tanto em termos temporais como

espaciais, ou seja, passou a ser possível o acesso à informação de uma forma mais imediata e

praticamente em qualquer lugar.

É indiscutível que o suporte que sustenta o livro está em transformação, assim como os

hábitos do leitor. O presente estudo procura compreender a problemática em torno do livro

e da publicação na contemporaneidade, explorando as preferências do leitor entre o formato

impresso e o digital.

Embora não seja o foco primordial desta investigação, a definição do conceito de livro torna-

se essencial para entender o que é um livro e qual a sua importância nas nossas vidas, de

modo a prever como poderá vir a ser no futuro. A análise inicial da história do livro é a base

para a compreensão do livro impresso e de como ocorreu a sua evolução em termos técnicos

e materiais.

A necessidade de investigar o futuro do livro advém da observação comportamental dos

leitores em relação ao livro impresso e ao livro digital; o facto de lermos cada vez mais através

do ecrã de um aparelho eletrónico, seja de um computador pessoal ou de um telemóvel,

significa que estamos a abandonar o papel impresso? Esta e outras questões em relação à

continuidade do livro impresso e se o livro digital o poderá substituir ou não são,

indubitavelmente, o mote para esta investigação.

Em resumo, a presente investigação pretende explorar e abordar as diversas hipóteses de

materialização do livro no futuro. A intenção deste estudo não é provar de forma

experimental o formato que prevalecerá, o impresso ou o digital; o mais importante é, para

já, estudar as semelhanças e as diferenças entre os dois suportes e tentar daí retirar algumas

possibilidades: o digital e o impresso têm, forçosamente, de se anular, ou podem

complementar-se?

Palavras-Chave: Digital; Impresso; Livro; Livro Digital; Leitura

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ABSTRACT

The book is the support of writing, it is the primordial object that sustains and preserves the

knowledge and information of humanity. At least it was so until the advent of the digital

medium - digital has provided and broaden the dissemination of information in both

temporal and spatial terms, that is, it became possible to access information more

immediately and practically anywhere.

It is indisputable that the support that holds the book is in transformation as well as the

reader's habits. The present study tries to understand the problematic around the book and

the publication in the contemporaneity, exploring the preferences of the reader between the

printed format and the digital one.

Although it isn’t the primary focus of this research, defining the concept of a book becomes

essential to understand what the book is to us and how important it is in our lives, and thus

to predict how it might come to be in the future. The initial analysis of the book's history is

the basis for understanding the printed book and how it evolved in technical and material

terms.

The need to investigate the future of the book comes from the observation of readers'

behaviour towards the printed book and the digital book; the fact that we are reading more

and more through the screen of an electronic device, whether it is the personal computer or

the mobile phone, means that we are leaving the printed paper? This and other issues

regarding the continuity of the printed book and whether the digital book will undoubtedly

replace it are the motto for this research.

In summary, this research intends to explore and approach the various hypotheses of

materialization of the book in the future. The intention of this study is not to experimentally

prove the format that will prevail, print or digital; the most important, for the moment, is to

study the similarities and differences between the two mediums and to try to draw some

possibilities from it: do digital and print have to annul each other or can they be

complementary?

Keywords: Book; Digital; Print; E-book; Reading

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AGRADECIMENTOS

A elaboração deste trabalho de projeto só foi possível devido ao apoio, compreensão e carinho de

algumas pessoas, às quais não posso deixar de agradecer.

Agradeço aos meus pais o amor, a dedicação e o apoio para enfrentar as minhas dificuldades até

chegar a esta etapa de conclusão de mais um ciclo de estudos. Obrigada por estarem sempre ao meu

lado quando mais precisei.

Ao meu irmão, embora mais novo, por me saber ouvir e aconselhar. Obrigada por seres um

companheiro de aventuras e pela ajuda que me dás sempre que necessito.

À minha tia que, para além de ser uma irmã mais velha, é quem me ajuda e apoia nestas aventuras

académicas. Obrigada pela paciência na correção de textos e na compreensão das minhas

inquietações.

À minha orientadora Sofia Leal Rodrigues que acreditou nas minhas capacidades para desenvolver

este trabalho. Agradeço-lhe a forma atenciosa e a disponibilidade sempre presente ao longo deste

percurso. Muito obrigada pela confiança que depositou em mim, principalmente numa altura em que

pensei não ser capaz de concluir este trabalho.

E, a todos aqueles que, de uma forma direta ou indireta, contribuíram para que concluísse este

trabalho.

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DEDICATÓRIA

Ao meu avô e padrinho Emídio Castilho,

De quem tenho muitas saudades,

Por me ter incentivado sempre a continuar os estudos.

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ÍNDICE

Introdução ................................................................................................................................. 1

Âmbito e propósito do Trabalho de Projeto ........................................................................................ 2

Metodologia ........................................................................................................................................ 3

Estado da Arte ..................................................................................................................................... 4

Quadro Conceptual .............................................................................................................................. 5

Estrutura do Trabalho de Projeto ......................................................................................................... 6

Capítulo I. O Livro – como o conhecemos e caracterizamos ................................................ 7

Contextualização histórica ................................................................................................................... 8

Como definir o Livro .......................................................................................................................... 14

Capítulo II. O Digital – o que veio revolucionar .................................................................. 17

Invenções anteriores ao digital que rivalizam com o livro ................................................................. 20

Octave Uzanne ................................................................................................................................... 21

Villemard ........................................................................................................................................... 23

Bob Brown ......................................................................................................................................... 24

O que pretende mudar ........................................................................................................................ 26

Capítulo III. Digital vs. Impresso .......................................................................................... 31

Vantagens e desvantagens .................................................................................................................. 33

O futuro do Livro ............................................................................................................................... 36

Capítulo IV. Casos de Estudo ................................................................................................ 40

Dissected Matter – An Experiment .................................................................................................... 40

Traumgedanken ................................................................................................................................. 43

Blink .................................................................................................................................................. 45

Capítulo V. Resultados ........................................................................................................... 48

Apresentação da Componente Prática ................................................................................................ 48

Conclusão ................................................................................................................................ 53

Bibliografia .............................................................................................................................. 56

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Introdução

O livro é uma metáfora para o conhecimento como suporte da escrita. No passado, o

livro impresso tinha outro valor pois era visto como uma fonte de informação e de partilha de

saber, e tudo o que era escrito adquiria importância.

No entanto, o nosso comportamento em relação ao livro foi-se alterando. O livro deixou

de ser a nossa fonte exclusiva de informações e saberes fundamentais ou secundários. Este

processo de leitura e de recolha de conhecimento é realizado, cada vez mais, utilizando também

outros meios e tecnologias.

Atualmente vivemos numa época em que a informação e o conhecimento circulam num

mundo online. Escrevemos num teclado, de forma computacional, aquilo que poderá ser o texto

impresso ou o texto online, texto este que, por sua vez, é escrito num processador de texto

(software) que o converte num código. É possível aceder com rapidez e imediatismo a todos os

conteúdos que precisamos e queremos, em qualquer lugar, através de computadores,

smartphones e tablets. Perante este panorama coloca-se a seguinte questão: porquê continuar a

imprimir?

Esta problemática é o mote para a presente investigação: aferir a materialização do livro

e as suas possíveis soluções futuras, tendo como pressuposto o facto de o suporte que possuímos

e preferimos ler estar em transformação. A questão primordial não é o que é o livro, mas sim

onde o leitor o poderá encontrar.

O tema que pretendemos estudar não era totalmente desconhecido no início desta

investigação. Efetivamente, o livro, tanto no seu aspeto material como imaterial, já tinha sido

abordado em projetos académicos anteriores, quer na licenciatura (na unidade curricular de

Design Editorial II) e no mestrado (na unidade curricular de Projeto em Práticas Tipográficas e

Editoriais Contemporâneas II). O conhecimento adquirido ao longo do desenvolvimento de

ambos os projetos permitiu-nos entender que a temática do livro é extensa e alimentada por

diferentes teorias debatidas por vários autores.

Na verdade, é possível encontrar uma vincada dualidade de opiniões sobre o livro. A

discussão principal opõe o formato digital ao impresso, uma dicotomia que gera controvérsia e

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que suscita a ponderação das potencialidades e dos limites de ambas as hipóteses. Mas teremos

realmente de abdicar de um suporte para usufruir do outro?

Este estudo não pretende dar uma resposta sobre o futuro do livro – se este passará a ser

digital ou continuará a ser impresso. No cerne da presente investigação está o intuito de perceber

quais as possibilidades que estes dois mundos – impresso e digital – têm para oferecer ao futuro

do livro e da publicação, sendo que estes não têm necessariamente de se anular, muito pelo

contrário: podem até complementar-se.

Esta investigação está circunscrita ao livro, o que significa que outros materiais

impressos, como é o caso dos jornais, que estão igualmente a sofrer alterações e a apostar nas

potencialidades do mundo digital, não vão ser abordados neste Trabalho de Projeto de uma

forma pormenorizada, embora possam surgir como exemplos que secundam determinadas

escolhas dos leitores.

A planificação deste projeto teve início na definição do tema e dos assuntos que iriam

ser abordados no corpo do trabalho. Para tal, efetuou-se um levantamento em torno de

bibliografia que abordasse a temática do livro e a sua evolução na era digital. “Pixel and Ink”

(Altena) e “Post-Digital Print” (Ludovico) foram uma base importante para o desenvolvimento

da pesquisa, abrindo portas para novos autores e obras. Com efeito, Altena e Ludovico são dois

dos autores mais profícuos no teor central da investigação, na medida em que procuram analisar,

teorizar e fundamentar a evolução constante do livro, narrando cenários que se assemelham ao

objetivo deste estudo.

Após o desenvolvimento da pesquisa inicial foi surgindo o índice que orientou todo o

projeto. Este é constituído por cinco capítulos: Capítulo I. O Livro – como o conhecemos e

caracterizamos; Capítulo II. O Digital – o que veio revolucionar; Capítulo III. Digital vs.

Impresso; Capítulo IV. Casos de Estudo; Capítulo V. Resultados.

Âmbito e propósito do Trabalho de Projeto

Na atualidade, o futuro do livro é cada vez mais debatido, embora desvalorizado por

alguns que dão como certa a permanência do papel impresso. Na realidade, o papel tem vindo

a desaparecer da nossa vida quotidiana, como acontece com as faturas que ao longo de anos nos

foram chegando através dos correios em cartas impressas. No entanto, a maioria de nós,

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provavelmente, já aderiu às faturas eletrónicas e deixou de receber correspondência nas suas

caixas de correio; estas passaram a ser digitais e as nossas moradas por sua vez, também,

passaram a ser os e-mails.

Este paralelismo entre as faturas e os livros serve apenas para evidenciar um problema,

que não deve ser menosprezado de forma alguma, daí que o propósito desta investigação seja

dar a conhecer autores que justificam estas duas possibilidades de formato do livro, o impresso

e o digital. Não se pretende declarar a morte imediata do papel impresso, nem,

consequentemente, do livro impresso, mas sim perceber as preferências dos leitores e as suas

justificações.

Metodologia

A parte teórica deste estudo utiliza uma metodologia não-intervencionista, que incidirá

numa pesquisa bibliográfica sobre a história do livro e os autores que já investigaram o

potencial futuro do livro, assim como as limitações que se encontram no suporte digital e no

suporte impresso. Os livros ‘Post-Digital Print: The Mutation of Publishing since 1984’

(Ludovico, 2012) e ‘The Mag.net reader 2: Between Paper and Pixel’ (Ludovico e Altena,

2007) foram a base inicial para o desenvolvimento da investigação.

Por sua vez, o trabalho prático utilizou uma metodologia de carácter intervencionista e

exploratório, onde foram aplicados os conhecimentos adquiridos no desenvolvimento teórico.

Como tal as referências bibliográficas mantêm-se, embora a pesquisa em plataformas digitais

– de que é exemplo, a ‘Fast Company’ – seja uma ferramenta essencial para a elaboração prática

devido ao uso de conteúdos multimédia, como o vídeo.

Após a definição e restrição do tema desta investigação ao livro, desenvolveu-se uma

pesquisa que permitisse aprofundar a temática definida.

O primeiro passo levou-nos a olhar para a história do livro e para os acontecimentos que

deram forma ao objeto que hoje conhecemos, para mais tarde averiguar o que este pode vir a

ser no futuro. É necessário perceber o porquê de certas características que o livro possui; para

tal, explanou-se de forma diacrónica as mudanças e evoluções que o livro sofreu ao longo do

tempo. Posteriormente, aprofunda-se a definição de livro e os diferentes sentidos que podemos

usar para determinar o seu conceito.

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O processo seguinte levou-nos a efetuar um périplo pelo mundo digital com o objetivo

de perceber se este meio alterou ou acrescentou algo ao livro, como refere Bolter, apesar deste

ter permanecido sem transformações relevantes durante anos. Aqui estudaram-se inventores

como Octave Uzanne, Villemard e Bob Brown, que foram responsáveis por criações ou teorias

que tentavam rivalizar com o livro; algumas assemelham-se aos e-books, mas são anteriores a

esta invenção atual.

Prosseguimos com a análise comparativa dos dois mundos – o impresso e o digital –

para perceber se podem viver em união, de uma forma complementar, ou se efetivamente

tenderão a anular-se para ditar a sobrevivência apenas de um no futuro; para tal, procurámos

definir o livro através da observação das suas características nos dois suportes em debate e

retirar conclusões com base em fundamentações de outros autores, do que será o suporte de

leitura preferencial no futuro.

Foi também importante selecionar, apresentar e estudar casos práticos, bem como as

análises críticas correspondentes. A seleção dos projetos advém das características visuais e/ou

ideológicas que se assemelham ao tema desta investigação.

Estado da Arte

Na fase inicial deste processo de investigação, a dissertação de Eva Gonçalves, também

estudante da Faculdade de Belas Artes, com o título “Do Códex ao E-book: O Papel do Design

de Comunicação na Remediação da Experiência de Leitura do Livro Digital”, revelou

interessante por tratar de um tema semelhante, embora com objetivos diferentes: este estudo

tenta perceber o papel do designer no futuro do livro e a importância do design no livro digital.

Por oposição, o foco deste Trabalho de Projeto é tentar abordar o futuro do livro na sua

generalidade.

Relativamente a este assunto especifico existem alguns trabalhos de investigação que

tentam responder a algumas questões, entre eles o trabalho de Vasco Mendes da Silva (aluno

da Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos) e o de Luciana Pinsky (aluna da

Universidade de São Paulo). O objetivo do estudo de Luciana Pinsky é perceber o papel do

editor de livros e o mercado de livros brasileiro e mundial; à semelhança da dissertação de Eva

Gonçalves trata-se de um trabalho de pesquisa e experiência em torno do futuro do livro e de

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como este será. O trabalho de Vasco Mendes da Silva explora a interatividade entre o leitor e o

livro através de jogos visuais e sensoriais, cuja análise culminou na criação de uma proposta de

modelo editorial para um formato mais interativo.

Para definir o livro e analisar a sua história, a pesquisa teórica concentrou-se no livro

‘Books A Living Story’ (Lyon, 2011). Esta obra foi, sem dúvida, fundamental, porque o autor

dedica-se especificamente ao estudo do livro sem se dispersar noutros elementos do universo

literário que, apesar de próximos, podem conduzir a um número sem fim de ramificações. Desta

forma, tornou-se mais claro entender o que é o livro e como este se materializou e evoluiu.

O paralelismo entre livro impresso e livro digital foi explorado tendo por base os livros

‘The Mag.net reader 2: Between Paper and Pixel’ (Ludovico e Altena, 2007) e ‘Post-Digital

Print: The Mutation of Publishing since 1984’ (Ludovico). Ambos estudam extensivamente os

dois suportes, numa análise comparativa constante, através da qual procuram identificar

características semelhantes entre cada um, bem como as suas vantagens e desvantagens.

Quando abordámos a temática da experiência de leitura, a referência teórica em que nos

baseámos teve como foco os autores Waeckerlé e Mieke Gerritzen, designadamente as suas

obras ‘The Book Is Alive!’e ‘I Read Where I Am: Exploring New Information Cultures’.

Quadro conceptual

As hipóteses do que será o livro no futuro são diversas, porque a perspetiva do porvir

nunca é clara. No entanto, se se tiver como base o contexto histórico do livro e as características

que este tem mantido ao longo do tempo, é possível perscrutar o que pode e o que não pode ser

mudado nesta transição.

As alterações do suporte do livro nem sempre são fáceis para o instinto do leitor. Para

assegurar uma boa leitura e legibilidade existem regras que não devem ser quebradas, para que

o leitor consiga concentrar-se no texto e não nos elementos visuais ou técnicos.

Por vezes, existe uma generalização da população e do seu comportamento em relação

ao mundo digital, no entanto as pessoas interagem com os dispositivos eletrónicos de diferentes

formas, tendo em conta os seus conhecimentos, a faixa etária e a capacidade visual, entre outras

características que fazem com que cada leitor seja um indivíduo único.

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A singularidade do leitor e as suas preferências entre o suporte impresso ou digital são

fundamentais para o progresso do estudo do livro no futuro, um problema que será abordado ao

longo desta investigação.

Estrutura do Trabalho de Projeto

A investigação centra-se no livro e equaciona as suas hipóteses de materialização, tanto

em suporte impresso como digital.

Como tal, a componente prática responde à parte teórica do Trabalho de Projeto,

enunciando a problemática do livro e da publicação na contemporaneidade, num projeto

impresso e digital que elenca e sistematiza uma sucessão de temáticas associadas quer às

publicações impressas, quer digitais.

A resposta prática constitui-se numa publicação intitulada ‘Fragmento’ que assenta na

complementaridade entre impresso e digital, uma das hipóteses de criação e materialização do

livro no futuro. A componente impressa e a plataforma digital ‘Fragmento’ são uma síntese em

termos editoriais do panorama da publicação contemporânea.

A parte impressa é constituída por quatro capítulos que se materializam em quatro

cadernos, cada um abordando um tópico diferente (O Livro Material, As Editoras, O Livro

Digital e A Leitura). A componente digital, por sua vez, também se encontra dividida nos quatro

tópicos atrás referidos; no entanto, apresenta material complementar, que possibilita o acesso a

novas características que não estão presentes no papel impresso; exemplo disso é o formato

audiovisual, com recurso a entrevistas que transportam o leitor para outras plataformas digitais

que não o próprio projeto.

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Capítulo I. O Livro – como o conhecemos e caracterizamos

A verdade é que os livros estão a mudar e a forma como os lemos também. Os livros,

tal como os conhecemos, são fisicamente maleáveis e guardam as marcas físicas das nossas

experiências (quando os sublinhamos; ou dobramos uma página; ou escrevemos no canto da

página). No entanto, os livros podem perder algumas características físicas que os transformam

em objetos de desejo, nomeadamente quando o formato passa a ser digital.

O livro impresso é uma representação física do conhecimento que não se cinge apenas

à mente humana ou à comunicação oral. O conhecimento deve ser escrito, perpetuado e dado a

conhecer ao maior número de pessoas possível. Como tal, o livro físico é feito para ser tocado;

é um objeto palpável e com cheiro, motivos que o tornam familiar e desejado.

As definições de livro são extensas e inumeráveis, contudo é uma reflexão muito pessoal

que nos faz pensar no que o livro representa e quais são as nossas primeiras memórias em

relação a este objeto.

O livro é considerado por muitos um bem pessoal. Há uma ideia de posse

intrinsecamente associada ao livro que o transforma num bem físico. Se perder esta

particularidade material deixará de ser o livro que conhecemos, mas não deixará de ser um

«livro». Contudo, há autores, como James Bridle, que defendem que as tecnologias não retiram

nada aos objetos, mas acrescentam outras características que os redefinem:

“When Walter Benjamin wrote that ‘what shrinks in an age where the work of art can be reproduced by technological means is its aura’, he was assuming that the aura diffused, that it was lost to the other reproductions. But digital technologies do not just disseminate, they recombine, and in this reunification of our reading experiences is the future of the book.” (Bridle, 2011; p. 56)1

O que retiramos dos livros, sejam estes impressos ou digitais, é a nossa experiência com

a leitura dos mesmos. A leitura é o conhecimento que adquirimos a partir desta interação com

o objeto livro, contudo apresentamos uma atitude diferente perante os dois suportes do livro, o

impresso e o digital. Em suporte digital temos por hábito ler de uma forma mais rápida e na

1 Tradução: “Quando Walter Benjamin escreveu que ‘o que fica de uma época em que a obra de arte pode ser reproduzida por meios tecnológicos é a sua aura’ assumia que a aura difundida estava perdida para as outras reproduções. Mas as tecnologias digitais não se disseminam apenas, elas recombinam-se, e nesta reunificação das nossas experiências de leitura está o futuro do livro.”

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diagonal, saltando as partes do texto que nos parecem menos relevantes, enquanto no livro

impresso temos a serenidade necessária para usufruir calmamente da leitura do texto.

Este primeiro capítulo destaca a história do livro. O subcapítulo ‘Contextualização

histórica’ aborda as características e os elementos constituintes do livro ao longo do tempo.

Aqui, encontramos um breve enquadramento cronológico de alguns factos que foram

importantes para determinar a evolução do livro e, consequentemente, a forma como o

conhecemos na atualidade. Já no subcapítulo ‘Como definir o Livro’ o foco incide sobre as

diferentes interpretações que existem para a definição de livro, tanto a nível material como

conceptual.

Contextualização histórica

Prever o futuro não é fácil, mas tentar fazê-lo sem perceber e analisar o passado é inútil.

Por isso, entender o contexto histórico do livro é essencial para compreender as grandes

transformações que este pode vir a sofrer.

O livro que conhecemos há cinco séculos, o livro industrializado, é constituído por

folhas de papel impressas que redundam numa sequência de páginas, usualmente divididas em

capítulos e encadernadas num formato fixo. O livro, pelo seu manuseamento, portabilidade e

funcionalidade nunca teve propriamente uma concorrência direta, visto que usufruir da sua

leitura depende apenas da reunião de algumas condições básicas, como a inevitável presença

de luz.

Antes do livro impresso, a humanidade já usava o livro – o formato códice – há dois

milénios e meio, primeiro na sua forma manuscrita e, posteriormente, na impressa, para registar,

administrar, venerar e educar (Lyons, 2011; p.7).

Segundo Jouke Kleerebezem o livro foi progredindo para algo capaz de incorporar

diferentes conteúdos: começou por conter toda a sabedoria desde leis a obras de literatura

clássica e mais tarde passou a ser suporte de expressões visuais para os artistas divulgarem os

seus trabalhos. O autor enumera ainda outras particularidades do livro:

“The book developed steadily to embody the ultimate ideals in wisdom, judicial systems, literature, and a variety of visual expressions. It can be copied, taken apart,

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re-assembled, and easily destroyed if necessary, without leaving a single trace, but a trail of smoke.” (Jouke Kleerebezem, 2007; p. 40) 2

No Antigo Egipto existia uma obsessão pela morte, mais precisamente pela vida para

além da morte. Esta adoração espiritual era feita pelos egípcios através da sua escrita

hieroglífica, profusamente imagética, dirigida aos deuses e aos faraós. Inicialmente

representada em pedra, motivou, mais tarde, a criação do papiro. O papiro veio facilitar a

comunicação entre os mortais, para além da que já era feita para os imortais, agilizando questões

sociais, culturais e religiosas da sociedade egípcia.

O papel, como meio, foi inventado pelos egípcios por volta de 3500 a.C. usando a planta

de papiro (papyrus). O papiro foi a primeira forma de papel utilizada na produção de livros em

diversas civilizações da antiguidade, como a Egípcia, a Grega e a Romana. Como os egípcios

nunca partilharam o segredo do fabrico de papiro, acabaram por deter o monopólio da sua

produção e da sua exportação por todo o Mediterrâneo (Lyons, 2011; p.21).

É difícil, ou impossível, imaginar o livro sem o advento do papel. Este material foi

fulcral para o desenvolvimento das sociedades, tanto a nível burocrático, como comercial. A

partir do conhecimento que era difundido através dos livros começaram a estabelecer-se

hierarquias sociais.

Embora tenha sido uma ferramenta importante para a propagação de conhecimento, o

papiro reagia mal à humidade, o que tornava o seu uso, em algumas regiões europeias, muito

difícil. O pergaminho, fabricado a partir de pele de carneiro, cabra ou ovelha, revelava-se

bastante mais resistente, ao ponto de poder ser dobrado e costurado. Ao contrário do papiro, o

pergaminho apresentava ainda outra vantagem: não tinha de ser importado do Egito (Lyons,

2011; p.22).

O papel como elemento estrutural do livro foi, ao longo dos anos, sofrendo alterações

até chegar ao papel comum que hoje conhecemos e temos nas impressoras ou mesmo nos livros

que possuímos. Estas transformações a que o papel foi sujeito foram importantes para a

evolução do próprio livro, pois sem elas não seria possível todas as outras grandes evoluções

que aconteceram na história.

2 Tradução: “O livro desenvolveu-se de forma constante para incorporar os ideais irrevogáveis de sabedoria, sistemas judiciais, literatura e uma variedade de expressões visuais. Pode ser copiado, desmontado, reconstruído e facilmente destruído, se necessário, sem deixar um único traço, mas um rastro de fumo.”

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Posteriormente, caberia à China redefinir e melhorar o suporte da escrita através da

criação do papel. Com um modo de produção mais prático, sustentável e menos dispendioso

que o do pergaminho, o papel tornou-se bastante mais fino a partir do século II d.C., sendo,

usualmente, apenas utilizado num dos lados. No entanto, mesmo antes da introdução da

impressão tabular (xilogravura), também pelos chineses, o papel revelava-se suficientemente

resistente para suportar a escrita manuscrita deste povo e os materiais com que era produzida.

Os Árabes aprenderam a técnica de fabrico do papel com os chineses e foram responsáveis pela

sua inserção na Europa no século XII (Lyons, 2011; p.22).

Designado de rotulus na Grécia e de volumen em Roma, o rolo, usualmente feito de

pergaminho, foi progressivamente substituído pelo códice3 – o objeto mais antigo que

conhecemos como livro –, nos primeiros séculos da Era Cristã. O formato códice deu ao livro

a forma material distintiva e reconhecível que se mantém até aos dias de hoje (Lyons, 2011;

p.35). O códice tornou o texto mais protegido e fechado. Logo, o escritor e o leitor têm uma

noção de unidade, uma estrutura verbal completa que tem um fim, que se torna real com o

fechar do livro, como refere Jay David Bolter em ‘Writing Space’:

“Writers and readers were encouraged to identify the physical book, which they held in their hands, with the text and to regard the end of the book as the end of the text.” (Bolter, 2001; p. 78)4

Antes da invenção da imprensa com tipos móveis, os escribas tiverem um papel

fundamental na divulgação da palavra escrita na Europa. Ao longo de vários séculos foram

estes que copiaram os textos religiosos em latim, grego ou hebraico – muitas vezes sem entender

o que copiavam, concentrando-se apenas nas linhas e no tamanho das letras, ou seja, na técnica

da escrita manual (Lyons, 2011; p.41).

Existiu uma enorme evolução cultural para além de uma evolução tecnológica na

produção do livro, como explica Roger Chartier (2003) – a mudança do pergaminho para o

códice (cultural) e a invenção da prensa de Gutenberg (tecnológica).

3 Códice – ou códex, trata-se de um volume antigo manuscrito organizado em cadernos, unidos entre si por cosedura e encadernação; tábua encerada usada na Roma Antiga para escrever. Códex in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível na Internet: https://www.priberam.pt/dlpo/C%C3%B3dice 4 Tradução: “Escritores e leitores foram encorajados a identificar o livro físico, o qual eles seguravam nas mãos, com o texto e para considerar o fim do livro como o fim do texto.”

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Na Alemanha, em 1455, Gutenberg usou o chumbo fundido para tornar os tipos móveis

mais resistentes do que os produzidos em madeira e desenvolveu um prelo (ou uma prensa) que

agilizou o processo de produção dos livros. A invenção de Johannes Gutenberg teve um impacto

fortíssimo, porque permitiu a produção de textos em larga escala que deixaram de ser acessíveis

apenas a pequenas elites, o que proporcionou o progresso cultural. Como tal, a partilha de

conhecimento foi facilitada e as cópias de obras puderam ser feitas mais rapidamente.

Uma das obras mais paradigmáticas e referenciais dos primórdios da imprensa é a

‘Bíblia de 42 linhas’ de Gutenberg, publicada em 1455, na Mogúncia, por Johannes Gutenberg,

com o auxílio de Johann Fust e Peter Schoeffer. Esta obra tem características muito especificas,

pois combina a tecnologia inventada por Gutenberg com decorações pintadas à mão, numa clara

aproximação aos manuscritos iluminados.

Gutenberg absorveu muito da caligrafia dos escribas alemães que lhe eram

contemporâneos, um fato que se traduz na escolha da letra utilizada na Bíblia de 42 linhas (na

figura 1). Trata-se de um tipo de letra com uma estrutura retangular, sem curvas finas,

reproduzido de um modo tão exímio que é difícil distingui-lo de uma boa caligrafia (Meggs,

1998; p.72).

O renascimento italiano no design gráfico veio acentuar as características mais visuais

e detalhadas do livro. Após a invenção de Gutenberg, multiplicaram-se as casas de impressão

Figura 1: ‘Biblia latina, 42 lines’ (Johannes Gutenberg e Johann Fust, Mogúncia, 1455 in British Library.

Disponível na Internet: https://www.bl.uk/collection-items/gutenberg-bible)

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um pouco por toda a Europa; na Itália começou a estudar-se e a aprofundar-se o desenho da

letra, tanto pelos impressores, como nas escolas.

Um impulsionador do estudo do desenho de letra foi Nicolas Jenson (1420-80) que

estabeleceu a sua casa de impressão em Veneza. Foi enviado para a Mogúncia, em 1458, pelo

rei Carlos VII de França, enquanto mestre do fabrico de moeda francesa, para estudar a

impressão com tipos móveis. Uma das características mais vincadas dos tipos de letra de Jenson

é a legibilidade, assim como a necessidade de criar espaço entre as letras e dentro delas, criando

um tom uniforme em toda a página de texto (Meggs, 1998; p.98-99).

Entre os séculos XVIII e XIX ocorreu a revolução industrial na Europa, que viria a ser

fulcral para o desenvolvimento da sociedade, acima de tudo no que diz respeito ao consumo,

pois através da energia elétrica e dos motores a gasolina conseguiu-se aumentar a produtividade,

um avanço que atingiria igualmente a produção de livros e de materiais gráficos impressos.

O caos próprio do movimento acelerado da revolução industrial deu dinamismo e

exuberância ao design gráfico através de novas tecnologias. Assim, tornou-se possível a criação

de novas formas e funcionalidades abundantes de imaginação, num período em que a

velocidade industrial pôde acompanhar o pensamento inovador.

Outro elemento importante do livro e da sua história é a lombada. A lombada é um

elemento estrutural do livro que serve acima de tudo para proteger a encadernação, sobretudo

a zona em que os cadernos estão cosidos uns aos outros. Esta começou por ser apenas retangular

e totalmente plana para facilitar o ato de abrir o livro e pousá-lo sobre a mesa; era um elemento

desvalorizado e aparentemente sem grande vantagem funcional.

Como a lombada retangular danificava o livro, a sua forma foi arredondada. Esta

solução não foi recebida com agrado, pois fazia com que o livro se fechasse facilmente,

prejudicando a leitura. No entanto, a flexibilidade veio facilitar o manuseamento do livro e a

forma de o transportar. Esta nova característica foi ganhando expressão ao longo do tempo,

principalmente quando o livro deixou de estar sobre a mesa das salas de estudo e das bibliotecas

e passou para as mãos do leitor que o podia transportar para todo o lado.

A primeira metade do século XX foi um período negro que influenciou negativamente

a história do livro industrializado. O deflagrar de duas guerras mundiais, com efeitos

depressivos ao nível da economia, afetou a produtividade de todas as indústrias relacionadas

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com o livro. Só mais tarde, depois da segunda guerra mundial, é que a produção industrial do

livro volta a ganhar expressão. A atenção que recai sobre o livro nasce da necessidade de

exorcizar e de relatar os horrores vividos no período que findara. A tentativa de encontrar

cenários alternativos à realidade levou o público leitor a refugiar-se nos livros, sobretudo nos

de ficção onde podiam viajar para um mundo imaginado, imaginário e se não melhor, pelo

menos diferente.

Ainda assim, assistiu-se a uma fase bastante prolífica na forma de reavaliar o livro

enquanto objeto; veja-se a obra de Sonia Delaunay e Blaise Cendrars – ‘La Prose du

Transibérien et de la Petite Jehanne de France’ (1913), um livro de artista colaborativo no qual

Delaunay ilustra o poema de Cendrars desafiando o formato comum do códice, ao colocar o

texto e a ilustração lado a lado, de forma paralela e complementar. Outros exemplos a

considerar são os livros visuais de El Lissitzky – autor cuja influência se revelou de extrema

importância nas técnicas de produção e nas soluções estéticas do design gráfico do século XX

– e de László Moholy-Nagy – um grande defensor da tecnologia e da indústria nas artes. À

semelhança de Moholy-Nagy, Jan Tschichold na sua 'Die Neue Typographie' (1928) fazia uma

apologia de um livro fruto do seu tempo, que obedecesse aos princípios fixados na sua obra,

como o uso do 'typophoto', da assimetria compositiva e da exploração intencional do branco,

entre outros.

Após a recuperação do livro dá-se a designada “revolução digital”. No mundo digital os

textos passaram a ser computorizados e o advento da internet possibilitou o acesso ao

conhecimento de uma forma imediata e para todos, algo que até então não se tinha

experienciado.

A evolução cronológica do livro e das suas particularidades retrata um aspeto curioso,

por vezes de difícil perceção: não foram as grandes invenções tecnológicas que ditaram o

progresso estrutural do livro, mas sim a mudança no comportamento e na relação que o leitor

estabelece com este objeto. Isto é, quando a produção de conhecimento foi transferida do

convento para a escola, na Idade Média, o livro adquiriu novas características que o marcaram

até aos dias de hoje, como descreve Johanna Drucker5:

5 Johanna Drucker é professora e diretora em Estudos de Media, na Universidade de Virgínia. Tem trabalhos publicados e já deu aulas sobre: a história dos livros de artista; a estética digital; e outros tópicos relacionados com apresentação do conhecimento seja em forma gráfica ou visual. O trabalho referenciado na citação está disponível em: http://www.philobiblon.com/drucker/

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“The replication of such features in electronic space, however, is based on the false premise that they function as well in simulacral form as in their familiar physical instantiation. In thinking towards a design of electronic textual instruments, we would do well to reflect on what the action is that every graphical feature can serve, as well as what informational reference it contains as part of production or reception history.” (Drucker, 2003)6

O facto de existir um território de características comuns ao livro impresso e ao livro

digital ou e-book, faz com que este novo objeto se transforme rapidamente em algo familiar.

Importa compreender se os elementos gráficos que mimetizam o livro físico são efetivamente

úteis na interação que temos com o dispositivo que alberga o livro digital: no caso dos e-books,

os e-readers. A adaptação do livro impresso ao mundo digital foi feita devido à interação que

temos com o livro, por força do hábito, é quase intuitiva e perfeita, como os anos o têm provado.

Com o aparecimento dos objetos eletrónicos, o texto, tal como o conhecemos, mudou de

forma e passou para os ecrãs, através de digitalizações ou escrito em processadores de texto.

Na ausência de todas as experiências que o livro impresso nos transmite – o cheiro do papel e da

tinta, o peso, a possibilidade de tocar nas folhas, etc. –, podemos questionar se o texto em ecrã é, de

facto, um livro?

Como definir o Livro

O livro proporciona uma experiência física para além da transmissão de informação. O

formato, o papel, a encadernação e todos os elementos que constituem o livro tornam-no num

objeto perfeito em termos de usabilidade, porque convocam o nosso olhar a concentrar-se no

seu conteúdo.

A experiência física mencionada é a relação que temos com o livro e essa foi construída

ao longo de anos. Trata-se de uma relação material, com a matéria, que exalta um sentimento

superior se nos recordarmos que o livro é um meio de comunicação que permanece no tempo;

o livro é capaz de atravessar gerações sem perder a capacidade de transmitir a informação, pois

não está dependente de nenhum outro mecanismo para ser lido.

6 Tradução: “A replicação de tais características no espaço eletrónico é, no entanto, baseada na falsa premissa de que elas funcionam tanto em forma de simulação como na instanciação física familiar. Ao pensar nos instrumentos de design do texto eletrónico deveríamos refletir sobre a ação que cada característica gráfica pode ter, bem como a referência informativa que contém como parte do histórico de produção ou receção.”

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O nosso passado, ou melhor a história da humanidade, está intrinsecamente ligado aos

livros. Através destes possuímos uma relação de proximidade com os acontecimentos e as

pessoas que transformaram o mundo naquilo que hoje conhecemos. É esta a ideia que Carlyle

pretende transmitir com a seguinte citação: “In books lies the soul of the whole Past Time: the

articulate audible voice of the Past, when the body and material substance of it has altogether

vanished like a dream.” (Thomas Carlyle, 1840. Heroes, The Hero as Man of Letters.)7.

Podemos definir o livro como uma estrutura contínua determinada pela hierarquia das

páginas e com um fio condutor consistente que une o texto. Este aspeto de união é fundamental

para a definição de livro. Por seu turno, o livro como objeto apresenta propriedades que

despertam vários sentidos, como a visão, o tato e o olfato, através dos pormenores impressos,

da textura do papel, ou do odor característico dos seus materiais.

A forma física do livro não mudou consideravelmente ao longo de séculos: folhas de

papel impressas, dobradas ou cortadas, criam cadernos que são protegidos por uma capa. Aliás,

o livro ganha uma identidade visual própria com a encadernação e a capa, ou seja, um livro

pode ter uma enorme variedade de edições impressas. Estas podem ser comemorativas ou

apenas mais uma edição diferente das já existentes, aguçando o desejo de colecionadores que

por vezes procuram todas as edições de um livro que lhes seja estimado.

O colecionismo é outra característica muito própria da ideia de posse que temos ao

pensar no livro como objeto físico. Existe também um termo em inglês ‘bookworm’8, que

esclarece o conceito anteriormente referido, e este é usado como característica pessoal no

mundo digital, definindo a pessoa como obcecada por ler e consumir livros.

A relação que criamos com o livro é diferente daquela que temos com outro objeto

físico. A esta interação com o livro dá-se o nome de leitura, como é esclarecido por Sofia

Gonçalves, no seu trabalho ‘Página: Espaço de reconfiguração do design de comunicação na

cultura digital’:

7 Tradução: “Nos livros reside a alma de todo o tempo passado: a voz articulada e audível do passado, quando o corpo e a substância material dela desapareceram como um sonho.” 8 Bookworm – pessoa invulgarmente dedicada a ler e estudar; alguém que procura e alcança conhecimento através de livros; é uma pessoa tão fascinada pelos livros que não sabe o que está a acontecer à sua volta. Bookworm in Urban Dictionary. Disponível na Internet: http://www.urbandictionary.com/define.php?term=Bookworm

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“Um livro (quer seja pensado como texto ou como objeto físico) não é um artefacto inerte que existe a priori antes da interação; ele é, pelo contrário, produzido pela atividade de cada nova leitura.” (Gonçalves, 2009; p. 217)

Existe uma outra relação que podemos ter com o objeto livro, que mais uma vez revela

a importância que damos ao sentimento de posse: é a relação estética. O ato de compra de um

livro pode ser motivado pelo seu aspeto, independentemente do seu conteúdo. Por este motivo,

o livro físico revela-se um objeto de consumo, quer pelo apelo da escrita que encerra, quer pelo

carácter estético e decorativo.

Gonçalo M. Tavares, no texto ‘Breves notas sobre o livro’, publicado no catálogo da

exposição ‘Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro se ilimitam’, ao questionar-se sobre o que

é um livro refere: o livro ‘é uma máquina de fazer pensar, de iluminar’. A metáfora entre o livro

e a iluminação, que estabelece ao longo da sua resposta, é uma explicação clara e objetiva do

livro enquanto portador de sabedoria e guia para as perguntas mais complexas da humanidade.

Aliás o escritor aconselha o leitor a abrir um livro ‘quando tudo em redor tiver

escurecido’ pois acredita que o livro o poderá salvar. Este poder salvífico que o autor coloca no

livro revela a sua importância marcante na nossa sociedade. Assim, o livro deixa de ser um

mero objeto de transmissão de conhecimento para passar a ser algo quase intangível, na medida

em que acompanha e apazigua as nossas crenças.

É difícil definir o livro sem fazer outras ligações, isto é, não podemos definir o que é o

livro apenas pela história da escrita ou da invenção da impressão. Existem inúmeras conexões

que podemos fazer em relação ao livro, o que converte este processo numa espécie de tarefa

infinita.

A definição de livro abre imensas janelas levantando a questão do que está correto ou

errado. Mallarmé, por exemplo, insiste numa simples definição: o mínimo do que um livro pode

ser, ou a essência do livro, é a dobragem de uma folha. O simples virar de página e o mistério

que nos faz querer saber o que vem a seguir define o livro; é a curiosidade humana que procura

o conhecimento do passado e o do futuro, sendo que este está vinculado ao livro.

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Capítulo II. O Digital – o que veio revolucionar

A verdadeira transformação do texto em papel impresso para o texto que visualizamos

nos ecrãs, em pixels, dá-se com o advento do hipertexto9 e das possibilidades que este coloca

aos leitores. O texto deixa de ser uma escrita encerrada em si mesma, pois o hipertexto potencia

a ligação aos mais diversos discursos, permitindo uma interação infinita entre subtemas que o

texto inicial aborda. Segundo Chartier, o hipertexto teve inicio entre os séculos XVI e XVII nos

manuscritos, através da marginália.

De acordo com George P. Landow, professor de Inglês e de História de Arte na

Universidade de Brown, o hipertexto é uma das grandes invenções no que se refere à forma

como lemos e escrevemos, a par da invenção de Gutenberg, como refere em ‘Hypertext, the

convergence of contemporary critical theory and technology’:

“Electronic text processing marks the next major shift in information technology after the development of the printed book. It promises (or threatens) to produce effects on our culture, particularly on our literature, education, criticism and scholarship, just as radical as those produced by Gutenberg's movable type.” (Landow, 1992)10

O texto eletrónico proporcionou a flexibilidade, a acessibilidade e a partilha imediata de

conteúdo; o acesso ilimitado aos textos de forma instantânea, tanto em formato escrito como a

imagens ou sons. O hipertexto é mais conhecido pelos leitores, ou utilizadores da internet, por

hiperlinks que conectam os mais diversos conteúdos no universo online, sendo a world wide

web o sistema de hipertexto mais utilizado, mas não o único.

A oportunidade da leitura poder ser feita de forma não-linear altera a forma como os

leitores interagem com o texto. Esta mudança afeta consequentemente o livro físico, que não

consegue competir com a amplitude de ligações permitidas no meio digital e, sobretudo, com a

velocidade da leitura.

9 O hipertexto é definido por Robert Coover, em 1992, no texto “The End of Books” (disponível online em <URL: http://www.nytimes.com/books/98/09/27/specials/coover-end.html/>) como um termo genérico, que foi criado por Ted Nelson, para descrever a escrita feita de forma não-linear ou não-sequencial por um computador. Refere, ainda, que o hipertexto apresenta uma tecnologia divergente, interativa, que favorece a pluralidade entre discursos sobre temas que já definidos e encerrados, permitindo ao leitor libertar-se das exigências feitas pelo autor. 10 Tradução: “O processamento eletrónico do texto marca a próxima mudança importante na tecnologia de informação após o desenvolvimento do livro impresso. Promete (ou ameaça) produzir efeitos na nossa cultura, particularmente na nossa literatura, educação, crítica e estudos, tão radicais como os produzidos pelos tipos móveis de Gutenberg.”

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Os textos em suporte digital, pelo menos a maioria, são produzidos para serem lidos

rapidamente, como as notícias ou publicações em redes sociais (Twitter ou Facebook), sobre os

mais diversos temas. No entanto, quando nos queremos dedicar a um assunto ou prestar mais

atenção ao texto, preferimos o papel, o texto impresso – aquele que podemos rabiscar e

sublinhar.

Como tal, é necessário perceber o quando e o porquê de preferirmos o meio digital. E,

sobretudo, se esta preferência significa o fim do papel impresso ou a sua transformação. Todos

os meios de comunicação em suporte digital, à semelhança, por exemplo, do vinil ou do rádio,

transformaram-se radicalmente desde a sua forma inicial. Apesar de não terem desaparecido

totalmente das nossas vidas, sofreram mudanças e evoluíram devido a requerimentos técnicos

e industriais, mas também como consequência das alterações das nossas necessidades e

preferências ao longo dos anos.

No decurso deste segundo capítulo, sobre o livro em formato digital, enumeram-se as

criações que antecederam a existência do e-book, mas que de certa forma foram testes para o

livro digital que hoje conhecemos. O subcapítulo ‘Invenções anteriores ao digital que rivalizam

com o livro’ apresenta os seguintes autores: Octave Uzanne, Villemard, e Bob Brown; por sua

vez o subcapítulo ‘O que pretende mudar’ relata as possíveis características que o livro em

formato digital vem acrescentar ao livro impresso.

O digital proporcionou uma nova noção de liberdade de informação; antes deste existir,

o conhecimento era divulgado de outra forma e não chegava a um número abrangente de

pessoas. Para além de permitir a divulgação de conhecimento de forma mais rápida e eficaz, o

digital também trouxe consigo outra particularidade – o acesso gratuito à informação, como

salienta Nathalie Fallaha:

“With the advent of the digital age, ink gave way to pixel to a large extent. Odorless, untouchable, remote, the pixel has however brought along with it a huge amount of free information, and has transformed the understanding of access to knowledge and information in many ways.” (Fallaha, 2007; p. 35) 11

Antes do aparecimento do universo digital e de todas as suas facilidades, o rádio, por

ser um meio de comunicação assaz acessível capaz de difundir uma mensagem em tempo real,

11 Tradução: “Com o advento da era digital, a tinta deu lugar ao pixel em grande escala. Sem cheiro, intocável, remoto, o pixel trouxe uma enorme quantidade de informação gratuita e transformou a compreensão do acesso ao conhecimento e à informação de diversas maneiras.”

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transformou, pioneiramente, o modo de transmissão da informação. Até então, os jornais

dominavam a forma como a informação era divulgada e mesmo quando o rádio se transformou

num meio popular, as publicações periódicas continuaram a ser vendidas devido à sua

notoriedade.

O conhecimento difundido pelas emissões de rádio alcançava um público maior, mas

tinha a particularidade de ter de ser ouvido no momento; não havia a hipótese de ouvi-lo mais

tarde, nem tão pouco de preservá-lo, como acontecia com os jornais. As publicações periódicas

tinham a vantagem sobre o rádio de poderem ser lidas quantas vezes o leitor quisesse, enquanto

a emissão de rádio tinha hora marcada e estava dependente de um aparelho para ser transmitida.

Após o frenesim da radiodifusão surgiu outra tecnologia que viria expandir a noção de

transmissão de informação em tempo real – a televisão. A receção por parte do público foi

imediata e surgiu um novo conceito de ‘aldeia global’ definido por Marshall McLuhan na sua

obra ‘A Galáxia de Gutenberg’ (1962). McLuhan defendia que as tecnologias eletrónicas

diminuíram a distância entre as comunidades, fazendo com que o mundo passasse a estar

interligado. Contudo, McLuhan cria juntamente com Fiore os ‘paperbacks’ (livros de bolso) da

Bantam Books12 que tinham o intento de rivalizar com a televisão, e, de certa forma,

conseguiram-no.

O livro impresso não poderia competir com este conceito, ainda para mais numa altura

em que a velocidade e o progresso tinham tanta importância. McLuhan considerou o livro

obsoleto porque atrasava a divulgação da informação, uma ideia prontamente criticada por

Harry J. Boyle que afirmava que McLuhan não devia dar como certa a morte dos livros, quando

estes eram o suporte que privilegiava para transmitir e divulgar as suas inquietações:

"Harry J. Boyle, writing in the Ottawa Citizen, commented: 'He was ridiculed for saying that books were dead even as he used them to convey his ideas. Actually he never said that books were dead but rather that they had been nudged from their central role by other media.'" (Ludovico, 2012; p. 23-24)13

12 Bantam Books é uma editora americana que pertence ao grupo editorial Random House. Foi fundada, em 1945, por Walter B. Pitkin, Jr., Ian e Betty Ballantine, e Sidney B. Kramer. Trata-se de uma editora que começou por ser exclusiva para livros de bolso, inicialmente só foram produzidas cópias, e mais tarde quando aceitaram trabalhos originais de ficção e de não-ficção produziram em todos os formatos. 13 Tradução: “Harry J. Boyle, no jornal Ottawa Citizen, comentou: ‘Ele foi ridicularizado por dizer que os livros estavam mortos quando os usou para transmitir as suas ideias. Na verdade, ele nunca disse que os livros estavam mortos, mas sim que foram diminuídos da função principal por outros meios’.”

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No entanto, a globalização não acabou com a página impressa, pelo contrário: ajudou e

transformou o acesso aos jornais e a outros conteúdos impressos, que passaram a estar

disponíveis em diferentes sítios do mundo ao mesmo tempo.

A nossa experiência com o papel ultrapassa qualquer ideia tecnológica que o possa

substituir, pois este meio sempre esteve presente nas nossas vidas e continua, para muitos, a ser

preferencial.

Invenções anteriores ao digital que rivalizam com o livro

Antes do aparecimento dos meios digitais, mais precisamente do livro digital, já

existiam discursos críticos determinados a declarar o livro físico como extinto, ou em vias de

extinção. No entanto, o que hoje podemos afirmar é que o livro impresso mantém-se presente

na vida quotidiana e continuamos a dar-lhe relevância e poder, por ser um contentor de

conhecimentos que nem sempre encontramos no mundo digital; além disso, as publicações

digitais, dada a rapidez e facilidade de redação e divulgação, bem como a impossibilidade de,

por vezes, nos assegurarmos das suas fontes e/ou autores, transformam-se numa imensidão

instável de conteúdos, cuja legitimidade se pode questionar frequentemente. Assim, mantém-

se a tendência de considerar o papel, e por consequência, o livro impresso, como um suporte

cuja informação veiculada detém maior autenticidade.

Com efeito, o declínio do livro físico já havia sido anunciado mesmo antes da existência

do livro digital. A materialidade do formato impresso sempre foi posta à prova ao longo dos

anos.

Dediquemo-nos agora a autores como Octave Uzanne, Villemard e Bob Brown14, cuja

importância se prende com o facto de terem criado invenções, claramente anteriores ao digital,

que já equacionavam a hipótese de substituição do livro impresso.

14 Estes autores são citados no livro “Post-Digital Print: The Mutation of Publishing since 1894” de Alessandro Ludovico (2012).

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▪ Octave Uzanne

Louis Octave Uzanne (Auxerre, 14 de setembro de 1851 – Saint-Cloud, 31 de outubro

de 1931) foi um homem de letras, editor e jornalista francês. Uzanne trabalhou com Albert

Robida, autor de ficção científica e ilustrador, numa coleção de contos – “Contes pour les

bibliophiles”, que inclui a famosa história “La Fin des Livres”15 (O Fim dos Livros).

Nesta narrativa, o autor refletiu sobre o futuro da publicação e defendeu que esta não

iria passar pela estática página impressa, muito pelo contrário, o seu conteúdo seria transmitido

por voz. Uzanne afirma ainda que a invenção de Gutenberg iria cair em desuso devido ao

progresso da eletricidade e dos mecanismos modernos.

Tanto no meio jornalístico, como nas grandes obras literárias, o texto seria declamado

pelo próprio escritor que, evidentemente, saberia exprimir melhor a emoção e captar o interesse

para os seus textos. As pessoas, em particular as mulheres, passariam a simpatizar mais com

determinado escritor devido à sua voz e não à sua escrita, ou seja, a identificação com o autor

não passaria pelo seu estilo de escrita, mas sim, pelo seu tom de voz sedutor, como o autor

explica no excerto que se segue:

“The ladies will no longer say in speaking of a successful author, ‘What a charming writer!’ All shuddering with emotion, they will sigh, ‘Ah, how this “Teller’s” voice thrills you, charms you, moves you! What adorable low tones, what heart-rending accents of love! When you

15 A história “La Fin des Livres” (O Fim dos Livros) de Uzanne, 1894, encontra-se disponível online em <URL: https://ebooks.adelaide.edu.au/u/uzanne/octave/end/>. Tanto a versão em Inglês como a original, em Francês, estão ainda incluídas as ilustrações de Albert Robida.

Figura 2: ‘Reading on the Limited’, Albert Robida. (“The End of Books”, Louis Octave Uzanne, Scribner’s Magazine, August 1894)

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hear his voice you are fairly exhausted with emotion. There is no ravisher of the ear like him!” (Uzanne, 1894)16

O futuro criado por Uzanne estava condenado a uma proliferação de fios, pois estes

eram fundamentais para transmitir o som, sendo esta a única forma de receber informação. O

autor argumentava no seu texto que ler causava fadiga e apatia, porque os olhos são para ver e

refletir a beleza da natureza, e não para ler textos. Como tal, dever-se-ia dar descanso aos olhos

e deixar os ouvidos absorverem toda a informação, com a rapidez e eficácia que os caracteriza.

Uzanne afirmou ainda que a não obrigatoriedade de ler seria uma felicidade, como referiu neste

trecho do seu texto:

“A few more or less do not amount to very great suffering in the end; but what happiness not to be obliged to read them, and to be able at last to close our eyes upon the annihilation of printed things!” (Uzanne, 1894)17

Neste novo mundo literário as pessoas que não tivessem o equipamento necessário em

casa para receber a informação, teriam de se deslocar até pontos de escuta públicos, como as

bibliotecas que dispunham de salas munidas de aparelhos de áudio para a audição dos livros.

A ideia de que o meio de transmissão de conhecimento por voz poderia substituir o papel

é algo que nos dias de hoje nos parece descabido. Sabemos que muitas outras tecnologias foram

inventadas e que o livro impresso continua a estar presente no nosso dia-a-dia, mas se

pensarmos bem, foi a partir destas invenções e de ideias futuristas semelhantes que as atuais

tecnologias inovadoras singraram e permanecem em constante mudança.

Há cento e vinte anos atrás, Louis Octave Uzanne declarou a morte do livro impresso e

anteviu a criação dos audiolivros18, dos fones e dos dispositivos móveis (os telemóveis ou

tablets). No entanto, enganou-se no que diz respeito aos livros impressos.

16 Tradução: “As senhoras não irão mais falar de um autor bem-sucedido: ‘Que escritor encantador!’. Todas tremendo de emoção, elas suspirarão: ‘Ah, como a voz de ‘Teller’ emociona, encanta, move! Que adoráveis tons baixos, que acentos destemidos de amor! Quando se ouve a sua voz, ficamos exaustas com a emoção. Não há alegria melhor de ouvir como ele!’” 17 Tradução: “Alguns mais ou menos não representam um grande sofrimento no final; mas a felicidade que seria não ter a obrigação de os ler e poder finalmente fechar os olhos devido à aniquilação das coisas impressas!” 18 Audiolivro - gravação sonora, em suporte físico ou formato digital, do texto de um livro. Audiolivro, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível na Internet: https://www.priberam.pt/dlpo/audiolivros

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▪ Villemard

O artista Villemard criou, em 1910, uma série de postais intitulada ‘Utopia’ a ilustrar

uma visão futurista de Paris no ano de 2000. Os postais fazem parte do acervo da Biblioteca

Nacional de França e são impressos em cromolitografia, um método de impressão litográfico19,

de desenhos a cores.

As ilustrações pertencentes a esta série são um testemunho interessante de como o nosso

mundo está em mudança constante, porque normalmente o que imaginamos ser o futuro,

depressa se converte em passado, provando que o futuro tecnológico está inteiramente

relacionado e dependente da nossa imaginação, do nosso poder de imaginar.

Villemard representa, entre muitas outras ilustrações, uma ideia futurista com crianças

numa sala de aula aprendendo as lições através de auscultadores ligados a uma máquina que é

alimentada por livros, colocados por um professor. As aulas ilustradas, na figura 3, eram única

e exclusivamente ouvidas, através daquele mecanismo que transforma todo o conteúdo em

áudio, como explica Ludovico: “Here the concept of one medium (paper) being replaced by

another (audio) is depicted even more explicitly.” (Ludovico, 2012; p. 18-19)20.

Não sendo totalmente igual a esta visão, o ensino nos dias de hoje também faz uso dos

mecanismos eletrónicos para apresentar a maioria dos conteúdos lecionados, seja através de

projeções ou do visionamento de vídeos.

A questão que se pode colocar observando a ilustração “Utopia” de Villemard é se esta

será um prenúncio claro do que poderá vir a acontecer em muitas salas de aula. Villemard acaba

por antever e enaltecer uma forma de transmissão de informação e de conhecimento que se

aproxima de algumas ferramentas de pesquisa contemporâneas, como o Google, um motor de

busca online que fornece toda a informação necessária para os estudantes de hoje realizarem as

suas tarefas académicas. Esta comparação entre o Google e o mecanismo criado pela

imaginação do artista encontra paralelismo ao nível do automatismo que estas ferramentas

19 A litografia baseia-se no princípio químico de que o azeite e a água não se misturam. Na litografia offset, uma placa de impressão de metal flexível envolve o cilindro de impressão. Uma tinta oleosa é aplicada no cilindro, humedecido por rolos de água. A imagem a ser impressa absorve a tinta oleosa, mas as partes húmidas, sem imagens, não provocam a aderência da mesma. As imagens pintadas são depois passadas para um rolo de borracha e, por conseguinte, para uma folha ou rolo de papel. (Gaff, 2003; p. 28) 20 Tradução: “Aqui, o conceito de um meio (papel) ser substituído por outro (áudio) é representado de uma forma ainda mais explícita.”

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proporcionam aos alunos, através dos aparelhos eletrónicos, muito embora a difusão da

informação seja mais veloz com o motor de busca do que aquela feita pelo professor.

Outro contraste identificável prende-se com o facto de as ferramentas de pesquisa serem

usadas de uma forma voluntária e espontânea pelos alunos, não sendo uma ditadura do

conhecimento. Isto é, na imagem que o autor nos apresenta a informação e o seu conteúdo são

da responsabilidade única do professor – que tem o poder de decisão sobre aquilo que os alunos

vão ouvir, enquanto os alunos nos dias de hoje são autónomos nas suas pesquisas e no

conhecimento que querem adquirir.

As ferramentas de transmissão de conhecimento mencionadas são uma ilusão de

acessibilidade e de facilitismo, ainda que úteis, mas não deixam de transparecer uma falsa ideia

de aprendizagem.

▪ Bob Brown

No inicio das primeiras décadas do século XX, os movimentos de vanguarda artística e

cultural abraçaram o drama da aceleração que estava a transformar a vida urbana, resultante da

revolução industrial e do crescente uso de eletricidade.

Bob Brown (Chicago, 1886 – 1959) escreveu no seu manifesto ‘The Readies’, em 1930,

o seguinte: “the written word hasn’t kept up with the age”21. Brown tentou, assim, revolucionar

a forma como lemos através da criação de uma máquina elétrica portátil que possibilitava a

leitura de inúmeros livros. A máquina de leitura nunca chegou a existir na realidade, apesar de

Brown ter escrito três livros (‘The Readies’, ‘Words’ e ‘Readies for Bob Brown’s Machine’)

para serem lidos na sua invenção. O objetivo desta máquina de leitura era criar uma linguagem

eletrónica que modificaria a forma como lemos.

O manifesto do autor sugere aos leitores que vejam as palavras através da máquina e

apela à libertação dos livros da página impressa (Bob Brown, 1930; p.37). Apesar da sua ideia

nunca ter sido posta em prática, abriu a discussão para um tema de estudo que mantém a sua

pertinência na contemporaneidade e que está relacionado com as alterações que a ‘máquina’

introduziu no processo de leitura.

21 Tradução: “a palavra escrita não acompanhou a época”

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Contudo, a máquina de leitura de Brown não está longe da forma como lemos

atualmente, seja no ecrã de um computador, num telemóvel, num tablet ou nos e-readers

(Kindle, etc.), como podemos depreender pela sua explicação: “A simple reading machine

which I can carry or move around, attach to any old electric light plug and read hundred

thousand word novels in ten minutes if I want to, and I want to” (Brown, 1930; p.28)22.

Num artigo publicado pelo ‘The New York Times’ da autoria de Jennifer Schuessler, a

8 de abril de 2010, Bob Brown é intitulado de padrinho do e-reader (‘The Godfather of the E-

Reader’) pois conseguiu prever o futuro da publicação impressa que passa pelos dispositivos

móveis que contêm o texto em formato digital.

Na máquina de leitura de Brown, a página seria substituída por uma película de filme

em que a velocidade de apresentação do texto poderia ser controlada (para o seu inventor quanto

mais rápido melhor) e o tamanho do tipo de letra podia ser ajustado pelo leitor. Foi criado um

simulador online (http://readies.org/) da máquina de leitura de Bob Brown, onde é possível

escolher o texto que queremos ler e entender melhor a ideia e a importância da velocidade para

a época da invenção.

No entanto, a máquina de leitura de Bob Brown não foi a única invenção relevante na

época. Bradley Fiske (1854–1942), um oficial da Marinha dos Estados Unidos da América com

22 Tradução: “Uma máquina de leitura simples que posso transportar ou mover por todo o lado, ligando-a a uma qualquer tomada de luz elétrica antiga e ler centenas de romances, de palavras, em dez minutos, se eu quiser, e eu quero”

Figura 3: ‘Fiske Machine’, Bradley Fiske, 1926. (Disponível na Internet: https://www.shorpy.com/node/14995/)

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uma capacidade extraordinária para invenções tecnológicas, desenvolveu, em 1926, a máquina

Fiske com um conceito muito semelhante ao da máquina ideada por Brown. O mecanismo de

leitura criado por Fiske, fabricado com uma produção limitada, era constituído por um aparelho

de mão que se colocava perto dos olhos para possibilitar a leitura do texto, como se pode

observar na figura 4.

Apesar destas invenções, inclusive a que deu azo ao aparecimento do e-book,

continuamos presos às restrições da página impressa. Até então, não conseguimos superar e

abandonar tudo aquilo que caracteriza a célebre página impressa, de tal forma que a replicamos

nos meios digitais através das características funcionais do texto e da ordem dos conteúdos.

O que pretende mudar

El Lissitzky, um autor essencial no estudo do design gráfico, sobretudo no que diz

respeito ao contexto da edição, refere em 1926 que o livro não tinha sofrido alterações no seu

formato durante anos e começa nessa época a discutir o futuro do livro e de como este deveria

ser:

“Today we have two dimensions for the word [book]. As a sound it is a function of time, and as representation it is a function of space. The coming book must be both. (…) At the very beginning we said that the expressive power of every invention in art is an isolated phenomenon and has no evolution. (…) we rejoice at the new media which technology has placed at our disposal. (…) with all these new assets, we know that finally we shall give new effectiveness to the book as work of art. Yet, in this present day and age, we still have no new shape for the book as a body; it continues to be a cover with a jacket, and a spine, and pages 1, 2, 3…” (Lissitzky, 1926, p.28, pp. 30-31)23

Compreender todas as características do livro e da sua história permite perspetivar o que

o futuro lhe reserva com maior facilidade. Neste momento, será difícil imaginar um futuro para

o livro que não passe pelo ecrã; aliás, já somos confrontados atualmente com os e-books24.

23 Tradução: “Hoje temos duas dimensões para a palavra [livro]. Como som é uma função de tempo, e como representação é uma função do espaço. O livro que vem deve ser ambos. (...). No início, dissemos que o poder expressivo de cada invenção na arte é um fenómeno isolado e não tem evolução. (...) rejubilamos com os novos media que a tecnologia colocou à nossa disposição. (...) com todas estas novas capacidades, sabemos que, finalmente, devemos dar novos poderes ao livro como obra de arte. No entanto, neste presente dia e ano, ainda não temos nenhuma nova forma para o livro como um corpo; continua a ser uma capa com uma sobrecapa, e uma lombada, e páginas 1, 2, 3 ...” 24 A definição universal de e-book é de difícil acordo devido à existência de diversos e-books, diferentes opções de acesso e mudanças constantes nos desenvolvimentos tecnológicos. Contudo, alguns investigadores e fornecedores de e-books referem-se a estes como sendo objetos digitais interativos e/ou equipamentos de leitura (Grenina, 2012). Outra definição utilizada por JISC (Joint Information Systems Committee) (Armstrong &

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Contudo é importante salientar o que o e-book ou os textos em formato digital vieram

acrescentar; por exemplo, em termos visuais as alterações não aparentam ser muitas: verifica-

se apenas o facto de o texto deixar de ser lido à medida que viramos as páginas para passar a

ser feito em scroll25 infinito, isto no caso de o texto estar inserido numa página da Internet ou

em formato PDF, no entanto se o livro em formato digital estiver no contexto de uma aplicação

ou de um software, como acontece nos iPads ou nos tablets, é possível mimetizar o virar da

página.

Outro aspeto significativo é a facilidade de partilha e de acesso que temos aos conteúdos

em formato digital. Este novo mundo veio possibilitar e massificar a difusão de informação,

que no passado era muito mais reservada a elites com poder cultural e económico.

Tendo como fundamento a partilha de livros, Michael Hart começou o projeto

Gutenberg26, transformando o texto do papel impresso dos livros em conteúdo digital, passível

de ser pesquisado e organizado numa biblioteca digital gratuita e acessível a todos, sendo a

mais antiga biblioteca digital fundada em 1971.

A tecnologia digital adicionou novas funções ao livro que já conhecíamos, tais como: a

possibilidade de qualquer texto neste formato poder ser hipertexto e a capacidade de

armazenamento num só objeto de uma variedade de livros. Esta última particularidade é

importante atualmente, pois valorizamos o espaço que nos rodeia de uma outra forma. Por

vezes, é incompatível a quantidade de livros que precisamos de ler ou consultar com o espaço

que temos para os guardar, ou com o espaço que nos rodeia; de outra forma seria improvável

que pudessem estar todos condicionados num único espaço físico para consulta pessoal.

O dispositivo de conservação de informação não precisa de ser um e-reader, pois

qualquer computador pessoal pode ser tido como um livro novo e melhorado: o próprio termo

Londsdale, 2003) considera o e-book como “uma versão online de um livro impresso, acessível via Internet” (Golf Leaf, 2003: 17). 25 Scroll – barra horizontal ou vertical na parte lateral ou inferior do ecrã, que permite o deslocamento com o rato na área ativa; barra de deslocamento. Scroll in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto: Porto Editora, 2003-2017. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/scroll 26 O projeto Gutenberg é uma plataforma que permite o download gratuito de livros em formato digital (HTML, EPUB e Kindle), até ao momento tem cerca de 54 mil livros incluindo a literatura mais antiga cuja os direitos de autor já expiraram. Mais informação online em <URL: https://www.gutenberg.org/>.

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‘notebook’ tornou-se uma designação banal para caracterizar os computadores pessoais, ou os

portáteis (Bolter, 2001; p. 79).

Transformar o e-book num objeto desejável é a prioridade, que passa por atribuir-lhe

características que o valorizem aos olhos dos leitores que ainda não aderiram a esta tecnologia,

por não a considerarem suficientemente apelativa, funcional e diferenciadora. Para tal é

necessário unir aspetos visuais, auditivos e outras possibilidades inerentes aos meios digitais,

de maneira a criar uma experiência diferente e única que nunca poderia ser vivida num simples

livro impresso.

Na introdução ao livro ‘The book is alive!’, Emmanuelle Waeckerlé refere como

exemplo o e-book “Titanic Calling”27 desenvolvido por MAPP Editions, na comemoração do

centésimo aniversário do naufrágio do Titanic. Esta aplicação (ou livro digital), representada(o)

na figura 5, possibilita uma visão das horas finais do Titanic, através de um processo de leitura

que é acompanhado da audição dos sinais em código Morse transmitidos entre os navios que se

aproximavam, e a visualização de um mapa do Oceano Atlântico que mostra, simultaneamente,

a trajetória desses navios e o percurso do Titanic em direção ao local da tragédia.

Neste livro digital experimenta-se o apelo suscitado pela união de novas particularidades

destinadas a captar a atenção e a convencer o leitor de que este universo tem mais a oferecer. A

27 Mais informações sobre o e-book “Titanic Calling”, desenvolvido por MAPP Editions, estão disponíveis online em <URL: http://mappeditions.com/publications/titanic-calling/>.

Figura 4: Titanic Calling, MAPP Editions, 2011.

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fuga às convenções do livro impresso (títulos, subtítulos, notas de rodapé, entre outras) é

indesejável pois estas funcionaram durantes anos e ajudaram a organizar o pensamento do leitor

ao longo do texto, quer em formato digital ou impresso.

As maiores críticas que o livro digital recebeu quando surgiu prenderam-se com o

simples facto de emular o livro convencional e de não trazer nada de novo. Atualmente este

panorama de mimese já começa a mudar, sendo que as editoras focadas no universo digital

estão a inovar e a criar novas interações do leitor com o livro digital. No futuro, o ideal será

tentar manter um equilíbrio entre os elementos convencionais do livro e a exploração das

características únicas do meio digital. Quanto mais funções e novidades o livro digital, e-book

ou outro, apresentar, mais leitores passarão a ver nestes livros objetos de desejo.

Outro e-book que representa as inúmeras funcionalidades que os meios digitais vieram

conceder ao livro é ‘Al Gore – Our Choice: A Plan to Solve the Climate Crisis’28, uma aplicação

interativa e intuitiva que deixa o leitor navegar por hiperligações diversas, podendo visualizar

um infográfico interativo ou um documentário, e em seguida retornar ou saltar para um texto.

Esta interface permite ao leitor explorar conteúdos de uma forma única. A experiência interativa

que este e-book suscita não se assemelha em nada àquela que temos com o livro impresso,

devido à quantidade de informação apresentada e, acima de tudo, ao formato em que esta se

encontra.

Os meios digitais proporcionaram outros fenómenos associados ao livro, para além da

transformação do suporte em que o lemos; entre eles, estão os negócios de publicação que se

transferiram também para o mundo online. Exemplo disso são as plataformas digitais que

permitem a criação e a publicação de livros, quer em formato impresso, quer em e-book. A

primeira plataforma deste género foi criada em 2006 por Eillen Gitttins, a Blurb29, que

transformou a publicação independente, tornando-a mais acessível e imediata, como tudo o que

acontece no espaço virtual.

28 ‘Al Gore – Our Choice: A Plan to Solve the Climate Crisis’ é um livro digital publicado por Push Pop Press, e só está disponível na App Store para aparelhos com o sistema iOS, isto é, a aplicação foi desenhada para iPhone e iPad. Mais informação online em <URL: http://pushpoppress.com/ourchoice/>. 29 A Blurb é uma plataforma de publicação de livros que permitiu a criação do livro a qualquer pessoa sem ter de passar por uma editora, acedendo a esta plataforma o autor do livro tem a possibilidade de fazer e ter o livro que idealizou. Mais informação online em <URL: http://www.blurb.com/>.

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Estas plataformas de criação de livros são as editoras independentes do mundo virtual e

têm vindo a multiplicar-se. Em Portugal, temos o exemplo da Editora Épica30 que fornece o

serviço de auto-publicação em troca de um valor previamente apresentado ao autor, ou seja,

quem pretende ter um livro publicado tem de pagar todos os custos, mas é livre de controlar

tudo o que diz respeito à publicação. Desta forma, um autor que deseje publicar um livro, tem

a vantagem de não depender da aceitação de uma editora convencional e de estar sujeito às suas

exigências.

As mudanças que o digital proporcionou ao livro, e a tudo o que com ele se relaciona,

foram muitas, mas é de relembrar que todas foram aceites pela sociedade, umas de forma mais

imediata do que outras. No entanto, todos nós fazemos uso deste meio que revolucionou o

quotidiano do leitor e lhe garantiu o acesso a um número ilimitado de livros.

A exploração deste meio mantém-se em crescimento e vai continuar a surpreender os

utilizadores de plataformas digitais assim como os leitores, estejam estes mais direcionados

para o livro impresso ou para o digital, pois no futuro os dois formatos vão acabar por se fundir

e encontrar uma maneira de se completarem, oferecendo ao leitor novas experiências.

30 A Editora Épica pertence ao grupo editorial Saída de Emergência, uma das maiores editoras independentes em Portugal. Mais informação online em <URL: http://www.editoraepica.pt/>.

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Capítulo III. Digital vs. Impresso

O ideal seria os dois mundos – o digital e o papel impresso – conseguirem viver numa

união perfeita, onde se poderiam completar. Embora pareça uma utopia, essa relação iria

permitir ao papel impresso adaptar-se e evoluir, em vez de desaparecer por completo como

muitos preveem que ocorra.

A coexistência destes dois suportes tem um período de tempo ainda breve, mas a

tecnologia progride velozmente; assim, existe uma enorme necessidade de estudar o impacto

económico, social e cultural que a escolha de um meio em detrimento de outro iria provocar na

sociedade.

Este terceiro capítulo coloca lado a lado os dois mundos do livro, o digital e o impresso,

e pretende ser uma busca pelo interesse do leitor. Como tal, no subcapítulo ‘Vantagens e

desvantagens’ são analisadas e comparadas as características dos dois formatos em discussão.

O subcapítulo seguinte, ‘O futuro do livro’, concentra todas as reflexões enumeradas ao longo

desta investigação, introduzindo uma conclusão do que poderá ser o livro no futuro.

Blauvelt, diretor de design e curador do ‘Walker Art Center’ em Minneapolis, defende

que no futuro os livros impressos serão mais caros que os e-books, pois estes passarão a ter uma

presença constante nas nossas vidas. Algo semelhante já acontece hoje em dia: os e-books são

mais baratos, pelo menos a sua maioria, por isso muitas editoras continuam a publicar livros

impressos para garantir mais lucro, embora estes também tenham mais custos de produção

(materiais, impressão, distribuição, etc.). O autor explica, também, que o livro se traduz cada

vez mais numa experiência de leitura que ultrapassa o mero suporte de texto:

“In a reversal of the publishing process, digitization converts an image of a book page back into language – searchable, retrievable, scalable, and translatable text. This linguistic alchemy transforms atoms into bits, the fixed materiality of a book into fungible texts. In the future, most designers will be creating reading experiences not book designs. However, the codex survives for much longer than we think. To paraphrase Kenya Hara, the physical book becomes an information sculpture – a unique, haptic, three-dimensional reading experience. Counterculture guru Stewart Brand once remarked that information wants to be free, but he also noted that it wants to be expensive because it can be valuable. In the future books will

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be more expensive while eBooks will be ubiquitous – their texts having already been liberated from the codex will want to be free.” (Blauvelt, 2011; p. 53)31

Martyn Lyons, historiador britânico, explica no início do seu livro ‘Books: A Living

History’ que os leitores, por norma, defendem o livro impresso por este não estar dependente

de elementos exteriores para ser lido em qualquer altura e lugar:

“Embattled book lovers often insist that books do not need batteries, they do not get infected by viruses and when you close a book you never need to ‘save’ because you will never lose your data. The book has always been much more than a useful gadget.” (Lyons, 2011; p.7)32

As razões apontadas por Lyons são oportunas, pois o que justifica o livro impresso como

um objeto físico de superior importância é o facto de não necessitar de muito para ser lido; basta

apenas a existência de luz solar ou artificial para poder ser apreciado pelo leitor. Por seu turno,

os livros digitais vão continuar a depender de eletricidade e de outros componentes

computacionais para poderem ser lidos.

Chartier (1997), por sua vez, contribuiu para a perceção de que a construção do livro,

ou melhor a sua criação/elaboração não é da responsabilidade do autor, ou seja, o autor escreve

o texto e não o livro – o texto transforma-se posteriormente em livro e este objeto pode ser

escrito, manuscrito, gravado, impresso ou informatizado (como no caso dos livros digitais).

Há vinte anos atrás já era percetível que o livro poderia ser mais do que o objeto

impresso, sendo de ressalvar que hoje o mundo digital oferece mais oportunidades ao livro

digital, nomeadamente a possibilidade de atribuir características e funções interativas que

anteriormente eram impensáveis nos aplicativos digitais.

As questões que se impõem são: porquê manter o papel? Qual é a importância do papel

impresso como meio? Um suporte material fará sentido numa época que se denomina tão

imaterial?

31 Tradução: “Numa inversão do processo de publicação, a digitalização converte uma imagem de uma página do livro de volta em linguagem - texto pesquisável, recuperável, escalável e traduzível. Esta alquimia linguística transforma os átomos em bits, a materialidade fixa de um livro em textos fungíveis. No futuro, a maioria dos designers criará experiências de leitura e não o design dos livros. No entanto, o códice sobrevive há muito mais tempo do que pensamos. Parafraseando Kenya Hara, o livro físico torna-se numa escultura de informação - uma experiência de leitura única, háptica e tridimensional. O guru da contracultura, Stewart Brand, afirmou que a informação quer ser gratuita, mas também observou que quer ser dispendiosa porque pode ser valiosa. No futuro, os livros serão mais caros, enquanto os e-books serão onipresentes - os textos que já foram libertados do códice quererão ser gratuitos.” 32 Tradução: “Os apaixonados por livros muitas vezes insistem que os livros não precisam de baterias, eles não ficam infetados por vírus e quando fechamos um livro, nunca precisamos de ‘guardar’ porque nunca iremos perder os dados. O livro sempre foi muito mais do que um dispositivo útil.”

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Vantagens e desvantagens

A escolha entre o livro impresso e o digital é influenciada pelas atitudes e necessidades

dos leitores. Como tal, indicar as vantagens e as desvantagens exige uma análise pormenorizada

e a consequente comparação entre os dois mundos.

O suporte digital oferece uma poupança de custos em relação ao papel impresso; este

exige a passagem por um processo de impressão, de encadernação e de distribuição, cujos

dividendos são necessários para a sobrevivência de muitas editoras. Mas esta poupança de

custos também se alarga ao leitor, dado que um e-book é mais barato que um livro impresso.

A passagem radical do livro para o meio digital pode suscitar o desaparecimento do

papel impresso e, consequentemente, da indústria que depende da produção e distribuição do

mesmo, levantando a questão da morte do livro impresso. Quando pensamos no papel e no

futuro do livro devíamos ter em conta que a produção de tudo o que envolve o livro impresso

move muitas indústrias que dificilmente estagnarão.

Ainda assim, também existem inconvenientes no meio digital, principalmente no que

diz respeito à variedade de e-readers existentes – cada marca de artigos tecnológicos tem um

dispositivo eletrónico de leitura e como tal existem diferentes lojas que fornecem livros digitais,

ou e-books. Perante esta multiplicidade de escolha o leitor é obrigado a possuir um e-reader

específico, que apenas lê um determinado formato. Como não existem, ainda, e-readers

‘universais’, muitas vezes o leitor tem de esperar que certos livros digitais sejam publicados

posteriormente no formato do dispositivo que possui.

Outro motivo que invalida a utilização destes dispositivos de leitura é o facto de os

leitores não estarem habituados a ler textos longos num ecrã pequeno, como por exemplo nos

telemóveis. Embora o ecrã dos tablets ou dos e-readers seja superior, não dispõe do mesmo

espaço que o livro impresso. Apesar dos ecrãs apresentarem uma dimensão mais pequena do

que a de uma página de um livro, permitem a hipótese de ampliar e de reduzir, de tal forma,

que o usual bloco retangular de texto pode passar a ser visualizado em parcelas pormenorizadas,

o que pode ser muito útil ou profundamente distrativo para o leitor.

Autores como Lyons defendem que os e-readers competem diretamente com o livro

impresso, no que diz respeito à forma, ao peso e ao tamanho. Os e-readers têm, ainda, uma

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caraterística diferenciadora que os livros tradicionais não conseguem alcançar – suportam uma

quantidade variável de livros num só objeto físico, como o autor explica na seguinte citação:

“Handheld reading devices compete with the traditional codex, and the utopian fantasy of a single book containing all the knowledge of the world within its covers may one day literally be within our grasp.” (Lyons, 2011; p. 167)33

Para além da capacidade de armazenamento, os e-readers, como o Kindle, o iPad ou os

tablets, permitem ampliar o texto, pesquisar, aceder a hiperligações e inclusive, em alguns

casos, oferecem a possibilidade de escolher o tipo de letra que se prefere para a leitura do texto

em ecrã. Embora venha predefinido em alguns sistemas de leitura digital um tipo de letra com

serifa, o mais aconselhado para uma boa legibilidade em ecrã é um tipo de letra sem serifa.

No entanto, existem autores como Gisler & Muller (2005) que refutam a ideia de a

leitura em ecrã ser prejudicial ou cansativa, pois defendem que o ecrã é luminoso, puro, e limpo

e, como tal, apelativo para os nossos olhos, simplificando a leitura. O ecrã é aprazível, não tanto

pelo seu brilho, mas sim pelo facto de estar incorporado num dispositivo que pode ser

facilmente transportável e adaptável às mais variadas situações.

A importância que o livro digital adquiriu em tão pouco tempo é notável. Basta recordar

que os e-readers, durante a sua curta existência, já sofreram as mais diversas intervenções para

se adaptarem às necessidades dos leitores e acompanharem a crescente evolução do meio

digital.

Como tal, as opiniões dividem-se no que diz respeito ao livro no suporte digital.

Enquanto uns defendem a transição para o digital, outros apontam os inconvenientes dessa

passagem. Bolter34, por exemplo, refere que o livro no mundo digital perde tudo o que ganhou

com o códice, porque a perspetiva de que algo termina quando se acaba e fecha um livro deixou

de existir. Segundo este autor, a ideia de continuidade é alimentada por múltiplas referências

do mundo digital que conduzem os leitores para outros textos ou conteúdos multimédia, como

o vídeo.

Efetivamente, o livro digital não se encerra em si mesmo, como acontece com o livro

físico. O livro digital disponibiliza um amplo conjunto de opções que permite ao leitor uma

33 Tradução: “Os dispositivos de leitura portáteis competem com o tradicional códice, e a fantasia utópica de um único livro conter todo o conhecimento do mundo dentro das suas capas poderá um dia, literalmente, estar ao nosso alcance.” 34 Jay David Bolter em ‘Writing Space, Computers, Hypertext and the Remediation of Print’ (2001).

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maior liberdade e autoridade sobre o percurso de leitura. Por vezes, as possibilidades são

sugeridas no próprio livro digital ou são remetidas para hiperligações que convocam o leitor a

prosseguir num novo sentido ou descoberta audiovisual.

Por sua vez, Douglas (2000) afirma que, apesar da leitura ser feita de forma mais

recorrente no meio digital, este dificilmente substituirá o estágio de evolução do livro físico,

apoiado pelos avanços tecnológicos com que é produzido. O autor refere ainda que o livro é um

fruto requintado, apurado da tecnologia, como pode ler-se na seguinte citação: “If the book is

a highly refined example of a primitive technology, hypertext is a primitive example of a highly

refined technology, a technology still at the icebox stage.” (Douglas, 2000; p. 15)35.

No entanto, Bolter evidencia aspetos positivos nos e-readers: são leves e fáceis de

transportar, permitem a possibilidade de usufruir das potencialidades do hipertexto, através da

pesquisa específica de palavras ou de frases presentes ao longo do texto, e podem ser

continuamente recarregados com conteúdos disponíveis em plataformas digitais, o que os torna

muito diferentes do livro impresso.

Os dois formatos – o impresso e o digital – podem coexistir e dessa forma abrir caminho

para mais leitores, pois quem não conseguir usufruir de um dos formatos, dispõe do outro.

Ainda assim, há autores e editoras que continuam a não publicar nos dois formatos e optam

sempre por apenas um. Muitos não concordam com a venda em meio digital e justificam a sua

escolha devido ao baixo valor a que os e-books são vendidos, pois na opinião de certos autores,

os livros valem mais impressos e obtêm mais com as vendas (Michael S. Rosenwald, 2015).

Os autores independentes (os que estão livres das obrigações das grandes editoras)

preferem a publicação digital pois conseguem abranger um número incalculável de leitores

através da Internet. A publicação digital acarreta múltiplas vantagens: isenção dos custos de

distribuição, espaço físico de publicação ilimitado, entrega quase direta (através de download)

e a possibilidade de a leitura poder ser feita em qualquer sítio, sem a necessidade de luz solar

ou artificial.

As editoras defendem o livro impresso porque acreditam que os leitores são mais

aliciados pelo livro físico – aquele que podem tocar, sentir o peso e cheirar o papel, ou até

35 Tradução: “Se o livro é um exemplo altamente refinado de uma tecnologia primitiva, o hipertexto é um exemplo primitivo de uma tecnologia altamente refinada, uma tecnologia ainda no estado de congelação.”

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36

mesmo marcar as páginas. Outro fator importante para quem compra livros é o colecionismo,

ou seja, poder ampliar e enriquecer a sua biblioteca pessoal.

A manifestação de posse deixa de ser visível no mundo digital, assim como a

possibilidade de emprestar um livro, sobretudo devido à incompatibilidade de formatos de

determinados e-readers. Embora os livros em formato digital sejam partilhados no meio virtual

por diversas pessoas, esse sentimento de troca e de partilha não se iguala ao de emprestar um

livro físico. E, por último, a sensação de entrar numa livraria e de partir à descoberta de novos

livros e de poder folheá-los antes de os adquirir, torna, por comparação, a compra de um livro

digital em algo automático, frio e distante.

O futuro do Livro

As nossas mentes tiveram séculos para se habituarem ao livro como objeto, por isso

muitas vezes não sabemos como manusear um e-reader, ou qualquer aparelho eletrónico de

leitura de texto. Isto é, não temos a concentração necessária para os nossos olhos se focarem no

ecrã dos leitores de texto. Muitas vezes sentimos a necessidade de ampliar o texto para ler

melhor, e de repente, temos uma imagem de um texto, sem margens, que ocupa todo o ecrã e

que nada tem a ver com o formato convencional da página. Esta ampliação do texto é uma

distorção da constituição do livro como o conhecemos e provoca-nos uma sensação de

desorientação em relação ao espaço que o texto deve ocupar visualmente para uma boa leitura.

É preciso existir uma forma de leitura diferente, ou seja, criar uma navegação virtual

capaz de transmitir orientação ao leitor para que este não se sinta sobrecarregado de informação.

Não precisamos de descartar as convenções até então estabelecidas pela página impressa,

podemos aceitar que se trata de uma mimetização que ajuda o reconhecimento funcional do

texto digital e a sua leitura em ecrã; no entanto, existe a possibilidade de implementação de

novos conteúdos interativos ao longo do texto digital que não têm necessariamente de

prejudicar a leitura, mas sim acrescentar-lhe valor e dinamismo.

A natureza do livro não se prende ao objeto em si, à forma material, nem à tecnologia

que o suporta. O importante é o seu conteúdo, e este sim deve ser valorizado para não se perder

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37

no caos das transformações que o formato livro tem sofrido. Aliás, Emmanuelle Waeckerlé

refere que o e-book não é um livro, mas sim algo que contém dados num objeto de hardware36:

“Digital technology is a means to an end; an end that can be a book or an e-book – Sarah Bodman speaks of ‘e-paper as opposed to paper’. An e-book has no physical boundaries; it is not a book. It is a virtual container of data contained in a three-dimensional hardware object, which often emulates the form of a book.” (Waeckerlé, 2013; p. 9)37

A essência do livro enquanto veículo que suporta o texto é também defendida por Bolter,

que explica como o digital nos separa do texto através dos componentes físicos que os métodos

computacionais colocam e do texto encriptado. Isto é, o texto, cada vez mais, afasta-se do autor

e do leitor e é difícil perceber onde este realmente se encontra. Enquanto no livro impresso o

texto é facilmente identificável, quando se encontra na memória de um dispositivo, como um

disco rígido ou uma pen drive, não é imediatamente reconhecível.

A aceitação do livro digital, num período em que todas as novidades tecnológicas são

aceites e experimentadas de imediato, sobretudo pelos mais novos (embora alcancem todas as

faixas etárias) foi feita paulatinamente.

Na atualidade, os mais jovens fidelizaram-se de tal modo ao formato digital que existe

um serviço38 online, em determinados países, que permite descarregar livros das bibliotecas

locais para e-readers, como o Kindle. Trata-se de um processo simples: no site da biblioteca

existe a opção de adicionar determinados livros ao e-reader, que deixam de estar disponíveis

ao leitor, depois de esgotado o período de leitura. Será que esta ferramenta constitui o futuro

dos livros nas bibliotecas? Se assim for, requisitar livros físicos pode deixar de ser uma

realidade devido à facilidade que estas novas opções digitais acarretam.

A ideia de criar bibliotecas digitais foi abordada, pioneiramente, no projeto Gutenberg,

iniciado por Michael Hart. Esta plataforma sugere uma acessibilidade mais imediata aos livros

36 Hardware – conjunto dos elementos físicos de um computador, que engloba o dispositivo principal e periféricos, como o teclado, o visor, e a impressora, por oposição aos programas, regras e procedimentos utilizados; equipamento informático. Hardware in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto: Porto Editora, 2003-2017. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/hardware 37 Tradução: “A tecnologia digital é um meio para alcançar um objetivo; o objetivo pode ser um livro ou um e-book - Sarah Bodman fala de ‘e-paper em oposição ao papel’. Um e-book não tem limites físicos; não é um livro. É um contentor virtual de dados num objeto de hardware tridimensional, que muitas vezes imita a forma de um livro...” 38 OverDrive é uma aplicação que permite fazer download de livros pertencentes a uma biblioteca, e que desta forma podem ser requisitados e lidos, num dispositivo de leitura, em qualquer altura ou lugar. Disponível online em: https://www.overdrive.com/

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38

de qualquer biblioteca, no entanto, por oposição ao serviço online, defende que os livros

descarregados devem ficar permanentemente no dispositivo de leitura.

Apesar da proliferação de plataformas que giram em torno do livro digital, a queda nas

vendas dos e-books tem vindo a ser notada e noticiada39. Talvez este declínio dos e-books, ou

livros eletrónicos, esteja relacionado com a falta de inovação e vantagens que muitos

apresentam em comparação com os livros impressos. Num período em que vivemos

submergidos em dispositivos eletrónicos, como os telemóveis, a leitura de um livro físico pode

constituir um escape positivo a essa realidade. Assim, para nos distanciarmos dos ecrãs

voltámos a dar valor ao papel impresso e aos momentos intocados pela velocidade imposta pelo

mundo virtual.

O livro no futuro, seja em que suporte for, terá de acompanhar as mudanças a que hoje

assistimos, contudo Erik Spiekermann40, que se assume como defensor do livro impresso, refere

algo oportuno: “As long as our brain and eyes have to compensate for technical and

typographic defects instead of dedicating all our brainpower to the comprehension of content,

we’ll need books.” (Spiekermann, 2011)41.

A verdade é que o livro terá de continuar a acompanhar as necessidades dos leitores e a

forma como estes interagem com o texto. Henri-Jean Martin, em 1993, concluía, numa

conferência na Academia das Ciências Morais e Políticas, em Paris, que o livro tinha deixado

de exercer poder sobre nós, tendo em conta os meios de informação e comunicação existentes;

se há vinte e quatro anos atrás já se debatia a influência crescente do mundo digital, hoje, o seu

dinamismo é tal, que é impensável não usufruir da acessibilidade dos textos disponíveis no

mundo virtual.

De certo modo podemos comparar esta situação com o simples facto da eletricidade nas

nossas casas ser um bem que nos é dado como garantido e quando este nos falta não sabemos

lidar com a situação. O mesmo se irá passar no futuro do livro digital: se por algum motivo

39 A queda na vende de e-books foi recentemente noticiada por Mark Sweney, para o jornal ‘The Guardian’. Sendo que esta notícia se refere mais precisamente ao declínio apresentado nas vendas no Reino Unido e de como os leitores têm preferido os livros impressos. É ainda referido que a preferência pelo impresso está relacionada com o facto de as pessoas gostarem de oferecer livros, e de como os livros impressos mais vendidos não têm influência na vendo dos e-books. Disponível online em <URL: https://www.theguardian.com/books/2017/apr/27/screen-fatigue-sees-uk-ebook-sales-plunge-17-as-readers-return-to-print/>. 40 Erik Spiekermann é tipografo e designer gráfico alemão, assim como cofundador da agência MetaDesign. 41 Tradução: “Enquanto o nosso cérebro e os nossos olhos tiverem de compensar os defeitos técnicos e tipográficos em vez de dedicar todo o nosso poder intelectual à compreensão do conteúdo, precisaremos de livros.”

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alheio, o dispositivo que contém os livros digitais deixar de os apresentar e não existirem mais

livros impressos, o que acontecerá? O digital pode falhar, mas o livro impresso será sempre um

contentor estável e fiável, ao qual podemos sempre retornar.

O livro continuará sem dúvida a ser impresso. Embora o fim do livro impresso tenha

sido anunciado diversas vezes ao longo da história, continuamos até aos dias de hoje

dependentes deste objeto. Simultaneamente, o livro digital cresce e desenvolve-se num percurso

paralelo ao do livro impresso.

Os dois suportes do livro – o impresso e o digital - encontrarão forma de colaborarem

um com o outro no futuro. Hoje, coabitam num processo experimental que não está isento de

erros, como refere Waeckerlé (2013); é um processo interativo que evolui com a contribuição

de todos os atores envolvidos – desde os autores aos leitores, passando ainda pelas editoras – e,

como tal, encontra-se numa fase de permanente mutação, numa lógica de tentativa/erro

constante.

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40

Capítulo IV. Casos de Estudo

'Dissected Matter – An Experiment'

O livro ‘Fully Booked: Cover Art and Design for Books’ enaltece uma variedade de

trabalhos impressos que conseguiram comprometer-se com as exigências do mercado, no que

diz respeito à legibilidade, sem abdicar de originalidade e inovação. Os projetos editoriais que

este livro apresenta combinam a criatividade com a habilidade de manusear os materiais, dando

origem a publicações incomuns e experimentais. Este livro foi publicado em maio de 2008 por

Matthias Hübner, autor e editor, e Robert Klanten, também editor; ambos são responsáveis pela

criação de um volume que é divido em duas partes distintas: uma apresenta projetos em que se

valoriza a capa do livro, enquanto a outra analisa os conceitos por detrás de cada livro. A

orientação do livro muda conforme a divisão dos temas mencionados, isto é, temos de girar o

livro a 180º graus quando chegamos ao fim de uma das partes e queremos iniciar a outra.

Figura 6: ‘Dissected Matter – An Experiment’, Marion Mayr, 2006.

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41

Um dos projetos divulgados neste livro é o ‘Dissected Matter – An Experiment’42 de

Marion Mayr. Tal como o título indica, o trabalho remete o leitor para um ensaio experimental

em torno da materialidade do livro. Segundo as palavras da autora, a ideia da criação deste

objeto surgiu de uma reflexão sobre a tipografia a três dimensões.

A autora desta publicação foi diretora de arte e designer freelancer em vários estúdios

e trabalhou para diversos clientes, incluindo: Stefan Sagmeister, Aboud Creative e Alessandri

Design. Marion Mayr estudou ‘Die Graphische’ na Universidade de Artes Aplicadas (Viena,

Áustria) e concluiu o Mestrado em Design de Comunicação na ‘Central Saint Martins College

of Art and Design’ (Londres, Reino Unido).

Mayr afirma que ‘Dissected Matter’ tem por objetivo principal criar uma ilusão

escultural e arquitetónica da tipografia na superfície da página e no interior do livro:

“By hijacking technology, I am treating the book as a sculpture and transforming typography into a new entity with a conscious connection to architecture. This works intention is to be a journey inside a page or a book. I allow the viewer to perceive typography from a different angle and to look into ‘nonexistent spaces’.” (Mayr, 2006)43

O trabalho de Marion Mayr, integrado no livro 'Fully Booked’, revela-se importante para

o desenvolvimento da presente investigação em torno do futuro do livro porque efetua uma

desconstrução do livro através da tipografia.

A reflexão sobre a desconstrução do livro através da tipografia envolve um estudo

prévio do que é a representação do livro, neste caso a designer concentra-se no livro físico (no

códice) e joga com a importância que a tipografia tem no livro para criar estudos experimentais

que se transformam em obras escultóricas e visualmente apelativas.

Na experiência de Mayr, o livro deixa de ser um mero produto convencional de

consumo, para se converter num objeto de estudo e de experimentação. A acessibilidade e a

democratização da produção do livro, quer através de ferramentas digitais e/ou analógicas, foi

outro aspeto que ajudou a dar forma à ideia de ‘Dissected Matter’.

42 Este objeto editorial, ‘Dissected Matter – An Experiment’, pode ser encontrado e explorado na página 27 do livro anteriormente enunciado, “Fully Booked: Cover Art and Design for Books” (2008). 43 Tradução: “Ao apropriar-se da tecnologia, estou a tratar o livro como uma escultura e transformar a tipografia numa nova entidade com uma conexão consciente com a arquitetura. A intenção deste trabalho é ser uma jornada dentro de uma página ou de um livro. Permito ao espectador perceber a tipografia de um ângulo diferente e olhar para os ‘espaços inexistentes’.”

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42

O livro ‘Dissected Matter – An Experiment’ consiste na representação tridimensional

numa página de uma frase de um outro livro, o ‘Flatland’ de Edwin Abbott: “Sphere: ... I am

not a plane Figure, but a Solid. You call me a Circle; but in reality I am not a Circle, but an

infinite number of Circles, (...), one placed on the top of the other. When I cut through your

plane as I am now doing, I make in your plane a section which you, very rightly, call a

Circle....”44.

A página em questão é cortada em trezentas secções e cada uma representa uma página

do livro. O livro é então dividido em onze capítulos que incluem letras tridimensionais da

citação, sendo que a profundidade de cada letra corresponde ao seu tamanho, permitindo ao

leitor perceber e identificar o caracter em diferentes ângulos.

Ao longo do presente estudo a definição do que é um livro vai-se alterando e construindo

por muitos autores e opiniões críticas. Para Emmanuelle Waeckerlé (2013) o livro é nada mais

do que um contentor de recolha de informação, não importando o formato em que se apresenta

ao leitor. Tendo como base esta afirmação podemos concluir que o trabalho experimental de

Mayr é um livro, pois contém toda a informação que a autora quer transmitir aos seus leitores.

44 Tradução: “Esfera: ... Eu não sou uma figura plana, mas um sólido. Chamas-me Círculo; mas na realidade eu não sou um círculo, mas um número infinito de círculos, ... um colocado no topo do outro. Quando corto através do teu plano como estou a fazer agora, eu faço no teu plano uma seção que tu, com toda a razão, chamas de círculo...”

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‘Traumgedanken’ (‘Thoughts on Dreams’)

O livro ‘Traumgedanken’ de Maria Fischer45 explora a ideia de sonho numa narrativa

que articula múltiplos fragmentos de textos científicos, filosóficos e literários que abordam o

tema.

A autora desta obra é ilustradora e designer na Alemanha, atualmente trabalha como

diretora de arte de uma agência em Munique, Rose Pistola46. Muitos dos seus trabalhos utilizam

a linha como elemento preferencial de comunicação de uma forma única. Como podemos ver

na figura 7, a linha cria uma representação visual de teia de aranha que metaforiza as sensações

de confusão e de fragilidade típicas dos sonhos.

Ludovico (2012) refere o livro de Maria Fischer, curiosamente, no capítulo em que

aborda o modo como o conteúdo eletrónico pode ser apresentado e sentido no impresso. Este

destaque é feito devido à forma de construção do livro, criando hiperligações textuais físicas

no objeto através da linha, transformando uma realidade virtual, o hiperlink, numa experiência

45 O site de Maria Fischer, assim como a respetiva apresentação do seu trabalho está disponível online em <URL: http://www.maria-fischer.com/project-5.html/>. 46 Rose Pistola é uma agência de design, cujo o nome relembra o nome de uma pessoa, foi fundada em 2002 por Holger Felten e Karin Hoefling tem sede em Munique e uma filial em Hamburgo. Mais informações disponíveis online em <URL: http://www.rosepistola.de/>.

Figura 7: ‘Traumgedanken’, Maria Fischer, 2010.

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material palpável e visível fora do ecrã, como podemos perceber pelas palavras de Ludovico na

seguinte citação:

“In the process of writing about dreams, with all their apparently scattered but interconnected elements and possible interpretations, the designer came up with a solution which is very much a physical transposition of the hyperlink: she connected keywords and passages across the book using threads of various colours, creating a unique prototype of a physically interlinked text.” (Ludovico, 2012; p.94-95)47

A presença do projeto de Fischer neste estudo prende-se com a forma como a designer

superou a impossibilidade de criar hiperligações imediatas no texto impresso, como as que os

suportes digitais dispõem, através de uma linha física que liga os conteúdos, de uma forma

prática e bem-sucedida. O conceito da designer é elucidativo do que podemos fazer com o livro

impresso e de potencial exploratório deste objeto.

Outra plataforma digital, a Fast Company48, refere no texto da autoria de John Pavlus

que o livro ‘Traumgedanken’ não tem o propósito de ser uma representação da hiperligação,

mas sim uma metáfora da lógica imprevisível e incompreendida dos sonhos. No entanto, Pavlus

conclui e concorda com a inevitabilidade de comparar as conexões criadas com a hiperligação,

ou melhor com o hipertexto, pois visualmente este objeto remete-nos imediatamente para o

universo digital.

A comparação deste livro com o hipertexto é representada, segundo o texto referenciado

anteriormente, através da linha que sublinha determinadas palavras-chave e encaminha o leitor

para outro texto; enquanto isso acontece, a cor da linha altera-se, tal como acontece no digital

quando carregamos numa hiperligação.

Os dois mundos – o digital e o impresso – são reinventados nesta ideia de representação

do sonho, sendo que o sonho por si só é um tema de difícil reprodução, assim como o livro.

Logo, este livro de Maria Fischer é uma materialização única e objetiva das inúmeras

possibilidades que temos de criar objetos inovadores e atrativos.

47 Tradução: “No processo de escrever sobre os sonhos, com todos os elementos aparentemente dispersos, mas interconectados e as possíveis interpretações, a designer apresentou uma solução que é nada mais do que a transposição física do hiperlink: ela conectou as palavras-chave e os excertos do livro através de fios de diversas cores, criando um protótipo exclusivo de um texto interligado fisicamente.” 48 A Fast Company é uma plataforma digital com um foco editorial na inovação tecnológica. Foi lançada em 1995 por Alan Webber e Bill Taylor. Mais informações online em <URL: https://www.fastcodesign.com/1663217/a-book-about-dreams-with-hyperlinks-made-of-thread/>.

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45

‘Blink’

O projeto ‘Blink’ de Manolis Keladis é denominado desta forma por explorar o conceito

de livro e de link, num livro que é conectado a uma rede permitindo a ligação entre os conteúdos

impressos e digitais.

Manolis Keladis é designer e engenheiro; realizou conferências no Royal College of Art

em Londres e estudou no Imperial College Tanaka Business School em Londres. O seu trabalho

mais reconhecido e discutido é o ‘Blink’, mas já esteve envolvido em exposições para a Sony

como designer e, também, como investigador para o Instituto Federal de Tecnologia (ETH), em

Zurique.

Além do gosto pela tecnologia, Keladis é um admirador de livros, sobretudo os que são

feitos em papel. Foi no seguimento do seu mestrado no Royal College of Art, em 2006, que

iniciou o projeto ‘Blink’ tendo como ponto de partida para o seu desenvolvimento o interesse

que o designer demonstra pelos livros, mais precisamente as emoções que estes provocam na

interação com os leitores, deixando de ser meros produtos comerciais, pois no seu ponto de

vista estes transmitem memórias e ligações familiares. Partindo deste ideal de que o livro não

precisa de ser alterado, no que diz respeito ao seu formato, para subsistir no mundo tecnológico,

surge este projeto que desafia o nosso pensamento sobre o futuro do livro, como explica na

seguinte citação presente na sua plataforma digital49:

49 Manolis Keladis apresenta o seu projeto numa plataforma digital, disponível online em <URL: http://manokel.com/blink/>.

Figura 8: ‘Blink’, Manolis Keladis, 2006.

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“The challenge laid in the underlying conflict between the archetype human perception of what books are, how they are manufactured, distributed and used and the dawn of the e-book era. Digitalization offers numerous advantages and countless possibilities, but can it be utilised without alienating the reader from his century old habit of reading?” (Keladis, 2017)50

A materialização deste projeto é concretizada no protótipo ‘blueBook’ impresso no

Royal College of Art; trata-se de um livro que nos remete para a produção tradicional através

de métodos de impressão e encadernação simples. No entanto, explora o suporte impresso como

elemento de ligação ao meio digital, sendo simultaneamente composto por componentes

elétricos invisíveis ao leitor. As páginas deste protótipo foram impressas com tinta normal para

o texto, mas para criar os elementos de interação com o meio digital foi necessário a impressão

de tinta condutora51, que cria as hiperligações no livro físico e transmite um sinal, através de

um sistema em rede, para um computador onde é iniciada uma pesquisa sobre a palavra que

estava sujeita à hiperligação.

O projeto de Manolis revela-se interessante para a presente investigação na medida em

que explora a temática do futuro do livro, nomeadamente de como os dois suportes (impresso

50 Tradução: “O desafio colocado no conflito subjacente entre a perceção humana do arquétipo daquilo que são os livros, como são fabricados, distribuídos e usados e o início da era do e-book. A digitalização oferece inúmeras vantagens e possibilidades, mas pode ser utilizada sem alienar o leitor do seu antigo hábito de leitura?” 51 É na sua plataforma digital que Manolis Keladis explica a constituição da tinta condutora, definindo-a como uma tinta normal que conjuga partículas condutoras elétricas, permitindo a criação de circuitos elétricos e de botões sensíveis ao toque impressos no papel. Mais informações disponíveis online em <URL: http://manokel.com/blink/>.

Figura 9: ‘Blink’, Manolis Keladis, 2006.

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47

e digital) se podem unir e possibilitar uma experiência de leitura diferente, abordando assim os

limites impostos por estes suportes e até onde é que estes podem ser analisados.

O livro defendido e desenvolvido neste projeto pode ser materializado de duas formas:

‘networked book’ – onde o livro impresso possui um dispositivo invisível para o leitor que

comunica em rede com um computador ou um aparelho eletrónico, fazendo a ligação para o

conteúdo digital disponível num website ou na memória do aparelho; e o ‘autonomous book’ –

todo o conteúdo digital, como sons e músicas está alojado num chip (circuito integrado) dentro

da capa, ao qual se acede através de headphones. Este projeto valoriza o livro impresso que é

simultaneamente um objeto eletrónico, embora não seja evidente a existência de uma interface

eletrónica.

O ‘Blink’ ganhou diversos prémios e tornou-se de tal forma conceituado que recebeu,

em 2008, um investimento da ‘Design London’ para comercializar a tecnologia desenvolvida

por Manolis Keladis. Contudo, este projeto não necessita de validação comercial, isto é, não

precisa de alcançar sucesso nos meios industrial e comercial, pois o mais relevante é o facto de

evidenciar que no futuro será possível converter o livro num contentor de conteúdos impressos

e digitais. Desta forma o projeto de Keladis demonstra que o livro impresso e o livro digital não

têm de se anular; projetos como este são a prova de que o futuro do livro poderá passar por um

objeto híbrido que coloca os dois suportes em união.

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48

Capítulo V. Resultados

Apresentação da Componente Prática

O projeto prático assume-se como um complemento da investigação. Ao longo deste

estudo abordou-se o livro no passado e no presente para equacionar o seu futuro. Prever o futuro

do livro não é uma reflexão simples nem objetiva. Este estudo não tem como propósito

responder de forma assertiva e definitiva à questão – o livro permanecerá impresso ou irá

transitar irreversivelmente para o digital? – mas sim, entender e questionar as hipóteses que o

livro tem se os dois formatos se unirem e conseguirem oferecer ao leitor novas experiências.

A importância do livro sempre foi a propagação de conhecimento e é isso que importa:

o seu conteúdo e o que este transmite ao leitor. A relação com o leitor não pode ser perdida,

independentemente do suporte em que este se concretiza, pois o livro continuará a ser sempre

fundamental para quem o possui.

Contudo, se é certo que podemos contar com o livro impresso, o mesmo não acontece

com o digital, que depende de elementos exteriores, não controláveis pelo leitor, como a

eletricidade ou a internet, para ser lido.

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49

A componente prática do trabalho tem os seguintes objetivos: aprofundar as capacidades

do livro, a forma como se comporta em formato impresso e em suporte digital, e aferir se existe

uma hipótese de complementaridade, sem perda de identidade, entre ambos os meios.

O projeto é constituído por quatro capítulos, materializados num caderno individual,

dedicado a uma temática específica; esta surge do conceito geral do estudo – o livro –, e de

como o leitor pode interagir com este objeto (físico/ digital) de uma forma pormenorizada. Os

quatro capítulos que compõem a publicação impressa do projeto são: o livro material, as

editoras, o livro digital e a leitura.

No capítulo intitulado ‘O Livro Material’ aborda-se autores que defendem

fundamentadamente o livro impresso, como Erik Spiekermann que no seu texto ‘Books’,

patente na obra ‘I Read Where I Am’, refere que o livro não é uma interface e que os livros vão

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continuar a existir enquanto o nosso cérebro precisar de se adaptar ao livro digital e às suas

falhas técnicas.

No capítulo ‘As Editoras’ aborda-se o facto de existirem grandes grupos editoriais que

têm o domínio de várias editoras e como as editoras independentes têm sobrevivido nesta luta

com as grandes editoras e com o crescente envolvimento do digital. Neste capítulo são ainda

apresentadas editoras independentes e os seus fundadores, assim como as razões que os levaram

a criar uma editora.

Por sua vez em ‘O Livro Digital’ desenvolve-se uma contextualização sucinta de como

podemos definir o livro digital e quais as suas vantagens. Aqui, tenta-se, igualmente, dar

resposta à seguinte pergunta: se os e-books são mais baratos que os livros impressos, por que

razão não são os mais vendidos? Encerra-se este capítulo com uma referência às lojas e às

plataformas onde podemos adquirir livros digitais.

O capítulo ‘A Leitura’ consiste numa exposição e reflexão sobre a forma como lemos

atualmente. Aqui, equaciona-se se este período de transição do papel impresso para o ecrã tem

influenciado a leitura; e se preferimos o livro digital por este oferecer oportunidades únicas e

uma leitura mais rápida, ou se o livro impresso continua a ser o escolhido. A leitura é o que os

leitores retiram do livro, seja este impresso ou digital; é o ato de ler que nos faz reunir e guardar

as informações.

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A definição possível de livro, referida na investigação, é a de livro como suporte de

conteúdo textual ou visual, conteúdo este que pode ser em formato digital ou impresso. Abordar

o livro como contentor de informação permite-nos explorar e criar novos objetos editoriais,

também eles designados de livro.

Tendo como base o fundamento referido anteriormente podemos assumir que o presente

projeto redunda numa publicação que pode ser designada de livro, a que demos o título de

‘Fragmento’. A escolha do título é justificada pelo simples facto da publicação estar dividida

textualmente e fisicamente em cadernos, e ainda se completar numa plataforma digital52 que

pode ser vista em simultâneo com o objeto impresso.

A publicação impressa complementa-se com os conteúdos disponíveis no site, que

podem levar o leitor a mais conteúdos exteriores e autores diversos.

A plataforma digital é desenvolvida de acordo com a divisão do objeto impresso,

podendo o leitor aceder quando tem acesso ao objeto ou quando já está afastado do mesmo,

tornando o processo de leitura e exploração da plataforma numa experiência de união ou de

separação do objeto. Embora o leitor não tenho acesso aos mesmos conteúdos nos dois

formatos, as categorias e o conceito geral mantêm-se em ambos.

52 Plataforma ‘Fragmento’ disponível online em <URL: https://tinyurl.com/plataforma-fragmento/>.

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A elaboração material deste projeto visa o carácter de autonomia que o autor de um livro

pode ter nos dias de hoje. Existem plataformas digitais que fornecem serviços de impressão e

de publicação de livros, como se de uma editora independente se tratasse; o propósito desta

criação remonta à ideia de livro ao alcance de qualquer pessoa – aliás, todos nós podemos fazer

os nossos próprios livros – tendo os conhecimentos e os meios necessários, é uma tarefa simples

e rápida.

Embora a finalidade deste projeto não seja a elaboração de um livro independente, é este

conceito que o distingue e diferencia. Este projeto editorial expõe o que é o livro, tanto a nível

textual (os textos e os excertos apresentados na publicação) como visual (a forma de impressão

e produção do livro); o que este pode vir a ser, ou melhor o que continuará a ser, pois o futuro

do livro explorado por muitos autores e investigadores já é vivido nos dias de hoje por todos

nós. O livro continuará a evoluir e a forma como o materializamos vai se alterando com a sua

evolução.

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Conclusão

O livro impresso e toda a sua história, desde as evoluções técnicas e tecnológicas até ao

livro que conhecemos hoje, não era algo totalmente desconhecido quando esta investigação se

iniciou. Contudo, o estudo pormenorizado da temática do livro permitiu adquirir novos

conhecimentos e uma nova perspetiva de como deveríamos valorizar o livro, pela sua

importância como objeto cultural, na divulgação de saberes de geração em geração.

Embora não tenha tido o destaque merecido, como a história das ciências ou a história

da arte, a história do livro é um campo vasto que nos pode ajudar a compreender muitos aspetos

da sociedade: como esta evoluiu lado a lado com o livro e de como este foi fundamental na

propagação de conhecimento.

Compreender a história do livro foi um dos primeiros incentivos para o desenvolvimento

da investigação; trata-se de um mundo labiríntico e onde nos podemos perder com facilidade,

se nos depreendermos em pormenores técnicos ou menos significantes para a perceção do livro.

Assim, o caminho de reflexão da contextualização histórica procurou seguir a evolução do livro

não apenas na sua vertente técnica, mas privilegiando a sua vertente cultural e a sua ramificação

na sociedade.

O livro continuará sempre a ser fundamental para quem o possui. E ainda hoje é no livro

físico (convencional), no papel impresso, que depositamos maior confiança e legitimidade.

Se fizermos um exercício de memória, conseguimos recordar que ainda há não muito

tempo atrás vivíamos sem a tecnologia que nos rodeia e conseguíamos efetivamente viver sem

ela, fosse em hospitais onde o registro dos pacientes era feito manualmente (escrito à mão) ou

nas instituições bancárias em que existiam, provavelmente, mais trabalhadores a exercer

funções que hoje são realizados por mecanismos computacionais automáticos.

Ao longo do presente Trabalho de Projeto a procura de elementos que justificasse a

relação entre o livro impresso e o livro digital foi feita através do enquadramento histórico que

permitiu entender as características do livro e as necessidades do leitor, até chegarmos ao

advento do mundo digital e do que este trouxe de novo ao livro. O envolvimento e a perceção

do livro e de como este foi transitando para o meio digital levanta a questão que muitos autores,

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como Alessandro Ludovico, têm vindo a explorar: se o livro impresso estará mesmo a acabar e

se pode ser substituído pelos meios digitais.

A análise e a consequente comparação feita entre o livro impresso e o livro digital ao

longo deste estudo aborda opiniões e fundamentações diversas, com defensores de um suporte

ou de outro; é o caso de Bolter que nos remete para o contexto da leitura não-linear resultante

da narrativa em suporte digital e de como nos afastamos de tudo o que o códice nos conseguiu

transmitir, nomeadamente, a sensação de encerramento e conclusão quando fechamos um livro.

O paralelismo feito entre os dois suportes do livro leva-nos a concluir o que resulta

melhor no livro impresso por oposição ao livro digital e vice-versa. O resultado desta análise

revela que, embora a preferência do leitor recaia sobre o livro impresso quando necessita de

fugir aos ecrãs dos dispositivos eletrónicos, nestes últimos o leitor valoriza a capacidade que

têm de armazenar uma quantidade incontável de livros num único objeto.

A evolução tecnológica é necessária e aceite de forma quase imediata, mas não devemos

esquecer o nosso passado enquanto sociedade e as privações a que podemos estar sujeitos no

futuro. Por isso, os dois suportes de livro não têm de se anular: podem coexistir como até agora

e assim transmitir novos conhecimentos e alcançar mais e novos leitores.

A primeira questão proposta para o desenvolvimento e elaboração do presente estudo

foi: porquê continuar a imprimir? No decorrer da pesquisa seguiram-se novas inquietações:

onde vamos encontrar o livro? Será necessário abdicar de um suporte para usufruir de outro?

Procurámos dar resposta a estas interrogações ao longo da investigação e dos seus capítulos.

No entanto, será difícil chegar a um conjunto inabalável de soluções para o futuro do livro, mas

podemos desde já excluir a ideia de que o livro tem de se materializar num só suporte e de que

só esse irá vingar no futuro.

O livro continuará a estar presente em ambos os suportes, poderá existir uma união que

irá evidenciar a possível coexistência do digital e do impresso. Este é o principio base para o

desenrolar do projeto prático que completa este estudo: ‘Fragmento’ – uma publicação que

expõe os temas debatidos e outros que se relacionam com o futuro do livro. Aqui, equacionam-

se uma série de temáticas, a saber: como será o futuro do livro e que suporte/meio o sustenta; o

papel das editoras nos dias de hoje; a sobrevivência de algumas editoras independentes perante

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a crescente proliferação do digital e o predomínio dos grandes grupos editoriais; e a leitura

como resultado da interação do leitor com o livro, seja este impresso ou digital.

A componente prática desenvolve-se não só no objeto impresso, na publicação, mas

também numa plataforma digital que segue as mesmas categorias da publicação, mas com

conteúdos diferentes. O conceito, apesar de ser o mesmo, é apresentado ao leitor de uma outra

forma, com características que potenciam a descoberta de novos elementos textuais e

audiovisuais exteriores à plataforma e, consequentemente, também se afastam da publicação

pois recolhem mais informações que poderão vir a relacionar-se mais tarde com os conteúdos

expostos no objeto editorial.

Até então, o livro não tem sido explorado de forma híbrida; os dois suportes não foram

suficientemente examinados para criar um livro com novas características, que procure

simultaneamente ultrapassar os limites de cada formato e assim redirecionar, através da leitura,

do livro impresso para o digital e vice-versa. O futuro poderá passar pela conjugação daquilo

que de melhor existe no impresso e no digital, conciliando as suas vantagens intrínsecas e

procurando eliminar, o mais possível, as suas limitações.

O estudo desenvolvido não se limita a descrever conclusões definitivas; antes pelo

contrário, sugere uma possível direção que se concretiza na publicação e na plataforma digital,

o que poderá ser visto como ponto de partida para novas investigações e futuras deliberações

sobre o futuro do livro e possíveis soluções para os problemas com que nos poderemos vir a

deparar. É uma investigação que não se encerra em si mesma, está sempre em aberto, e importa

manter a discussão ativa e assim acompanhar em continuidade, o processo de transformação

que o livro pode alcançar.

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