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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES O HORIZONTE ENDÓGENO Exploração de Recursos Audiovisuais para uma Poética da Imaginação Material Tiago Lehuby Jordão Dissertação Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais Dissertação orientada pelo Prof. Doutor João Paulo Queiroz 2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

O HORIZONTE ENDÓGENO

Exploração de Recursos Audiovisuais

para uma Poética da Imaginação Material

Tiago Lehuby Jordão

Dissertação

Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Audiovisuais

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor João Paulo Queiroz

2016

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Eu, Tiago Lehuby Jordão, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada “O

Horizonte Endógeno”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo

é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras

listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida

indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, dia 18 de Outubro de 2016

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RESUMO

A partir de uma base temática, conceptual e recursiva, reflectimos sobre a nossa abordagem

audiovisual à imaginação material: delimitamos e apresentamos o tema segundo o desenvolveu Gaston

Bachelard nos seus estudos sobre a imaginação; estabelecemos um princípio conceptual para a natureza da

imagem artística (plástica) segundo a teoria da imagem-nua, de José Gil; expomos a ideia de imagem-afecção, de

Gilles Deleuze, para situar a nossa investigação no âmbito dos recursos audiovisuais proriamente ditos.

Com esta preparação teórica, passamos a analisar o trabalho prático, explorando questões como as

relações entre palavra e imagem, a expressividade do audiovisual e os recursos que a operam: o

enquadramento, o zoom, as sobreposições e o sugestionamento pelo som.

Palavras-Chave:

imaginação; matéria; atmosfera; imersão; fenomenologia.

ABSTRACT

We reflect upon our audiovisual approach to material imagination from a thematic, conceptual and

instrumental standpoint: we demarcate and present our topic in the way it was developed by Gaston

Bachelard in his studies about imagination; we follow José Gil’s theory of the naked-image in order to set a

conceptual basis for the nature of the artistic (plastic) image; we expound Gilles Deleuze’s idea of an image-

affection so we may develop our investigation on the actual field of the audiovisuals. With this mind-set, we

then analyse our practical work through the exploration of questions such as the relations between words

and images, the expressiveness of the audiovisuals and the means which may enable it: framing, zooming,

super-positioning and suggesting through sound.

Key words:

imagination; matter; atmosphere; immersion; phenomenology.

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IV

Agradecimentos

Começo por agradecer à minha família, não só por me possibilitarem estudar sem

preocupações financeiras, mas também pelo interesse no meu trabaho, em especial a minha mãe,

que viu e comentou com interesse cada novo vídeo.

Aos meus colegas e amigos: a Inês Vieira da Silva, a Francisca Manuel, o João Leitão, a

Patrícia Andrade, o Alexandre Alagôa, o Henrique Vieira Ribeiro, a Liliana Fernandes, a Samara

Azevedo, o André Pimpão, o Leonardo Rossetti, e todos aqueles que cederam o seu tempo para

opinar, criticar e conversar.

Também aos meus professores do curso: a Susana de Sousa Dias, que aceitou ver o meu

trabalho mais recente e discuti-lo na aula com os seus alunos, o Rogério Taveira, por um dia nos

ter referido o nome de G. Bachelard, o Alexandre Estrela, pelas referências.

Por fim, agradeço ao meu orientador, João Paulo Queiroz, por ter retomado comigo esta

dissertação após quase dois anos de intervalo, e por tê-lo feito com renovado interesse na

temática da imaginação.

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Índice

1. Introdução: à procura de uma imagem 1

2. Enquadramento do Projecto

a. Tema: a imagem poética da rêverie material, de Gaston Bachelard 4

b. Conceito: a imagem-nua e os movimentos de forças, de José Gil 8

c. Recurso: a imagem-afecção, de Gilles Deleuze 11

3. Discussão do Projecto: I. as questões teórico-práticas centrais

a. A rêverie material enquanto tema: palavra e imagem 15

b. Aspectos expressivos pretendidos: a pregnância da imagem-nua 23

4. Discussão do Projecto: II. operatividade dos recursos audiovisuais

a. Enquadramento e imagem-afecção 27

b. Zoom e transparências: profundidade 29

c. O som enquanto qualidade material 34

5. Perspectivas 39

6. Bibliografia 45

Apêndice: trabalhos audiovisuais realizados no âmbito do mestrado 47

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1. Introdução: à procura de uma imagem

Certas imagens ao longo da nossa vida são acontecimentos fundamentais. Além das

memórias bem contextualizadas, além de outras vagas e sem aparência, além da representação

própria dos factos, sentidos ou apenas testemunhados, há um outro tipo de imagens capaz de

despertar em nós um interesse profundo: a força imprevista de certo reflexo, a expressividade

numa textura, o temperamento de uma nuance de cor. Tais imagens carregadas da substância das

coisas, sem espaço nem duração assinalável, constituem uma ligação absolutamente positiva com

a realidade material que nos rodeia, seja ela natural ou artificial. E se em tranquila solidão com as

nossas imagens porventura sentirmos falta de um pintor que as fixe, então nesse momento

deixámos já de estar em situação com a imagem, entretanto substituída pela sua representação

ideal, embora a possamos reencontrar actualizada por uma pintura, um poema ou outra

manifestação artística; mas então já não será a descoberta da imagem, será a imagem desvelada.

Pessoalmente, intimamente até, compreendemos que o trabalho audiovisual agora

apresentado foi desenvolvido com o intuito de explorar o sugestionamento destas imagens.

Podemos dizer que partiu, antes de mais, de uma necessidade de dar a expressão possível a

qualquer coisa de uma experiência pessoal que elas enriqueceram. Mesmo sendo-nos impossível -

e em todo o caso indesejável - captá-las num estado fixo e imutável, por se darem de maneira

particular a cada vez, ainda assim requerem que se encontre no audiovisual os recursos e a

expressividade própria para evocar a sua força movente. E porque o fazemos segundo o nosso

olhar, segundo o nosso escutar e sentir, esperamos conseguir algo mais do que apontar a sua

qualidade essencial: esperamos dá-la como possibilidade de uma nova maneira de olhar.

Nesta dissertação expomos o processo pelo qual investigação de base fenomenológica e

prática artística se complementaram durante o desenvolvimento de vários trabalhos em vídeo

para a exploração audiovisual deste tipo de imagens. A nossa metodologia reflecte esta

complementaridade, procurando dar consistência à relacão entre teoria e prática. Chamámos-lhe

Tema, Conceito e Recurso.

O tema é a imagem poética e insere-se na temática da imaginação material, ideia proposta e

desenvolvida por Gaston Bachelard, segundo a qual a imaginação é uma faculdade psíquica

fundamental, diríamos um tonificante anímico, que opera a produção própria de imagens a partir

da experiência das coisas, com as coisas e pelas coisas. Sabíamos que o motivo dos trabalhos era as

coisas, porque escolheramos filmá-las à superfície para dá-las a ver em profundidade, mas faltava-

nos um nome e uma contextualização teórica a partir da qual pudéssemos aprender sobre a parte

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destas imagens na nossa existência e na teoria da imagem em geral.

O conceito é a imagem-nua, de José Gil. Conhecer o carácter das imagens, o seu contexto

teórico e o seu alcance não bastava: era determinante a compreensão, no âmbito fenomenológico,

ontológico e estético, dos processos que acompanham a produção de imagens, desde que o olhar

sagaz descobre no mundo algo surpreendente até que o gesto, a palavra ou o movimento

desvelam esse sentido de novidade através de uma obra de arte, que por sua vez irá propôr uma

outra visibilidade para o mundo. O conceito dá ao tema a sua sistematicidade.

O recurso é a imagem-afecção, de Gilles Deleuze. Mesmo dotados do contexto teórico e da

compreensão dos processos da imagem, precisávamos informar a nossa prática das possibilidades

expressivas dos recursos audiovisuais a que recorremos: enquadramento, zoom, travelling,

sobreposição de planos, reverb e outra manipulação sonora, etc. A proposta de Deleuze, de uma

categorização mais ou menos precisa das imagens em movimento, em que refere para cada

categoria os efeitos de cada recurso utilizado, possibilitou-nos aproximar definitivamente teoria e

prática.

Rigorosamente, tema, conceito e recurso constituem não uma metodologia mas uma

estrutura de projecto, estabelecendo as linhas gerais para a dissertação e possibilitando uma

articulação mais consciente dos recursos audiovisuais.

Estes três estudos da imagem têm em comum o facto de provirem da observação de

expressões artísticas: a primeira da poesia, a segunda da pintura, instalação e performance, a

terceira do cinema; também o facto de apontarem para algo a que gostaríamos de chamar um

certo ambiente ou atmosfera particulares da imagem, um horizonte de possibilidades para a intenção

imaginante.

No primeiro capítulo, expomos de forma sintética cada um destes estudos, cingindo-nos

onde possível à nossa temática, recorrendo a contributos de outros autores da fenomenologia

quando necessário esclarecer certos pontos ou situar a discussão num contexto teórico mais

amplo. Se da primeira leitura deste capítulo ficar a sensação de que seria preciso uma revisão mais

demorada dos assuntos para se assimilar a sua complexidade, esperamos que os capítulos

seguintes, mais ricos em citações e em problematização a partir do trabalho audiovisual,

proporcionem o devido alcance ao tratamento dos temas.

No segundo capítulo, «A rêverie material enquanto tema», confrontamos poesia escrita e

manifestação audiovisual no que concerne a sua expressividade ou força evocativa de imagens.

Esta questão é central à nossa investigação teórico-prática: sendo que devemos a Gaston

Bachelard o conhecimento mais aproximado sobre o nosso tema, considerámos necessário ter

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em conta a sua preferência pela literatura e poesia como originadora de imagens poéticas, o que

nos levou antes de mais a questionar a nossa opção pelo audiovisual e a investigar sobre a sua

mobilidade própria. A partir desta discussão, procuramos descrever os aspectos expressivos

pretendidos para as nossas imagens: caracterizamos a sua natureza plástica e o seu movimento,

baseamo-nos no trabalho prático para desenvolver a problemática do afastamento da imagem em

relação ao seu referente, e articulamos com as nossas observações algumas questões de José Gil

tais como a atmosfera de sentido ou a pregnância das formas de forças.

Nos primeiros tópicos das conclusões, analisamos pormenorizadamente cada um dos

recursos audiovisuais utilizados em função da sua expressividade e tendo em vista nossa intenção

para os vídeos. Confrontamos a nossa experimentação destes recursos com os efeitos que

Deleuze propõe para algumas das suas categorias da imagem-movimento, retomando e

aprofundando alguns pontos do primeiro capítulo, em particular a «Imagem-afecção». Dedicamos

ao vídeo Cinestesia de um Quarto (JORDÃO, 2016) uma análise mais demorada para expormos a

nossa busca pelo sugestionamento de uma qualidade material através da experimentação sonora.

Em «Perspectivas», procuramos recuperar e rever as nossas intenções primeiras, o

sentimento que nos moveu à realização destes vídeos - antes mesmo da exteriorização pelo

trabalho audiovisual e da interiorização pela fenomenologia -, e pô-los em relação com os

princípios da terapêutica das imagens de Robert Desoille. Finalmente, apontamos alguns temas

de Bachelard que gostaríamos de ter desenvolvido, tais como a natureza temporal da imagem

poética ou o equivalente audiovisual da ambivalência material, e recorremos aos capítulos finais

de O Ser e o Nada (SARTRE, 1943) e de A Imaginação Material (ARAÚJO, 2000), para propor a

discussão acerca do papel da percepção enquanto veículo para a imaginação, questão

determinante das hesitações e dúvidas quanto à validade dos princípios temáticos, conceptuais e

recursivos do nosso trabalho.

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2. Enquadramento do Projecto

a) Tema: a imagem poética da rêverie material, de Gaston Bachelard

«A imagem poética é (...) essencialmente variacional. Não é, como o conceito, constitutiva»

(BACHELARD, 1957: 3). Não tem uma natureza sistémica nem esquematiza uma função ou

operação. Digamos, por agora, que é um germe de possibilidade: de apresentar uma dada matéria

como potência de poesia a ser experienciada por uma atitude de contemplação activa.

Por matéria, para delimitarmos, devemos entender a substância física que nos rodeia, com a

qual nos relacionamos natural e constantemente, especialmente o conjunto das matérias que são

mais próximas a cada um de nós, e cuja proximidade se faz também no tempo, como uma

superfície de uma fracção de parede cuja imagem percepcionada involuntariamente se nos

entranha na memória pela continuidade dos dias, passando a habitar-nos o imaginário como

habitamos a sala ou o quarto de que ela faz parte:

Se entendermos por aura de um objecto oferecido à intuição o conjunto das imagens que, surgidas da memória involuntária, tendem a agrupar-se em torno dele, a aura corresponde, nessa espécie de objecto, à experiência que o exercício acumula nos objectos de uso (GIL, 1996: 63).

Por poesia devemos entender um sentido pelo qual a imaginação material eleva a nossa

interiorização, a nossa vivência mesmo, dessas matérias a uma dimensão afectiva e valorativa

particular do ser imaginante, através daquilo a que Bachelard chama de rêverie1 ou sonho desperto.

A imagem é considerada poética também pelo seu âmbito, uma vez que, segundo Bachelard,

se proporciona na leitura de poemas, de textos poéticos ou de outros escritos onde de alguma

forma se denote uma certa ingenuidade capaz de sínteses imaginativas. Assim, Gaston Bachelard

reune da poesia e da prosa poética de outros autores inúmeros exemplos para o estudo da

imagem poética das matérias tematizada a partir dos quatro elementos: a água, o ar, a terra e o

fogo2. O autor não procura construir uma teoria definitiva sobre as condições pelas quais se

engendra esta imagem: a sua originação e natureza são estudadas pela acumulação de exemplos

textuais que a possam propiciar.

A base do seu procedimento é fenomenológica: prefere exemplificar para demonstrar do

1 Devaneio é a tradução mais comum do termo nas edições de língua Portuguesa. Não consideramos que

corresponda bem ao sentido da palavra francesa rêverie, pelo que optámos sempre pelo termo francês. Cf.

Araújo (2000: 61) para uma descrição da natureza da rêverie. 2 Tal estudo foi desenvolvido em cinco obras: A Água e os Sonhos, O Ar e os Sonhos, A Terra e os Devaneios da

Vontade, A Terra e os Devaneios do Repouso e Fragmentos de uma Poética do Fogo (póstumo); outras duas

obras, A Poética do Espaço e A Poética do Devaneio, contribuem para a compreensão da imagem poética; cf.

capítulo de referências bibliográficas.

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que conceptualizar, pois procura captar a imaginação material na sua essência, no seu ponto de

partida e no seu movimento, reconhecendo que tal captação pode ser apenas a de um fenómeno

efémero. Evita no entanto uma rigorosa fenomenologia da imaginação que, pelo seu carácter

descritivo, pudesse levar a uma pesada elaboração sobre o acto imaginante.

O autor entende também que a filosofia racionalista analisa a imaginação sob princípios que

desvirtuam o seu potencial poético, e que alguma da psicologia3 a sobrecarrega de processos

causa-efeito negadores da sua espontaneidade. Porém, recorre a ambas - reconhecendo que não

pode limitar à fenomenologia o pensamento sobre a imaginação material -, mas apenas na medida

em que permitem pensar a originariedade do rasgo poético:

(...) se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem. (...) a imagem poética é um súbito realce do psiquismo, realce mal estudado em causalidades psicológicas subalternas (BACHELARD, 1957: 2).

Bachelard é claro: viver a imagem poética é privilégio natural do sonhador diurno. Só ele se

permite animar por uma saudável ingenuidade, até certo ponto análoga à da criança4, informada

pelo retorno a um percepcionar primordial, cuja obtenção do mundo não perca a originalidade do

seu ímpeto nas considerações da razão - mas que pelo contributo de uma certa mobilidade da

linguagem se constitua positivamente em contingência: «Queremos admitir que o acto de imaginar

traduziu (...) as respostas originárias que a mente humana projectou no mundo das matérias ao

sentir-se provocada por ele (...)» (ARAÚJO, 2000: 18). Transposta para o adulto, tal imaginação

constitui um desafio de abstracção. Mas esta abstracção, esta retrotracção do saber para o aquém-

saber, constitui um esvaziar que preenche, um recuar que avança, um escavar que constrói. O que

ela assim constrói é espaço no nosso interior, no qual acolhemos um novo sentido das matérias e

o transformamos à medida dos nossos horizontes de rêverie; ainda por via da imaginação material,

ela abre-nos a própria percepção das matérias à dimensão onírica do nosso visar, reconstituindo

de cada vez esses horizontes.

É neste movimento de abstracção que verificamos uma certa lateralidade de Bachelard em

relação à fenomenologia (ARAÚJO, 2000: 126-8): o autor está interessado sobretudo num devir

3 Bachelard é especialmente crítico em relação à psicanálise e a qualquer tipo de psicologia que procure

antecipar a razão às imagens. 4 Dufrenne questiona tal ingenuidade: «Por alguns momentos, ele (Bachelard) é um leitor demasiado bom: quero

dizer, demasiado inocente; ele responde à obra pela fantasia mais generosa e despreocupada: ela é sempre

pretexto para sonhar. O seu sonho, é certo, é um “sonho com”, solicitado pela imagem. Enquanto procura os

semblantes do mundo através dos sonhos da “imaginação material”, Bachelard faz justiça à poesia. Mas que ele

seja prudente ao misturar a sua própria infância com a infância do mundo.» (DUFRENNE, 1966: 192).

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imagem, numa possibilidade de imagem, que se dá antes mesmo de a intenção para a forma

proporcionar a imagem enquanto configuração:

Torna-se, assim, mais clara a premência de uma tematização para além das feições exteriores das coisas. Procuramos o valor material subjacente à configuração, quer dizer, à observação dinâmica como possibilidade contraditória da visão ingénua (ARAÚJO, 2000: 84).

Surge então no seu pensamento a ideia de uma dinamologia (BACHELARD, 1948a: 15-28),

de um «energetismo da imaginação das forças». Numa passagem do seu livro A Terra e os

Devaneios da Vontade (BACHELARD, 1948a: 75-6), que nos oferece uma boa analogia para a

originação da imagem material, Bachelard refere o amassamento - cujo arquétipo identifica no

trabalho do barro - como o acto após o qual a dimensão de possibilidade criativa pode apenas

minguar: enquanto se amassa, continuamente adiando a decisão da forma, todo o gesto conserva

num movimento dinâmico o potencial imaginativo (BACHELARD, 1948a: 81). Assim a imagem

dinâmica das matérias, que encontra o seu movimento interno na valorização contínua da

qualidade substancial (BACHELARD, 1948b: 61-71):

Uma dialética dos valores anima a imaginação das qualidades. Imaginar uma qualidade é dar-lhe um valor que ultrapassa ou contradiz o valor sensível, o valor real. Dá-se prova de imaginação ao refinar a sensação, ao desbloquear a grosseria sensível (cores ou perfumes) para realçar os matizes, os buquês. Busca-se o outro no interior do mesmo (BACHELARD, 1948b: 64).

Embora a capacidade para tal valorização seja um pressuposto do contacto com as matérias

que nos rodeiam, por si só não nos garante as «imagens imaginadas», que Bachelard caracteriza

como sendo «antes sublimações dos arquétipos do que reproduções da realidade»

(BACHELARD, 1948a: 3). Para o autor, é a poesia escrita5 que possibilita produzir-se a imagem

material enquanto sublimação de um arquétipo, o que pressupõe a capacitação abstractiva própria

da linguagem verbal como veículo para uma mobilidade originadora de imagens prenhes de

novidade (BACHELARD, 1948a: 123 e 1948b: 94). O arquétipo preserva sempre a sua

originalidade, sendo vocação do poeta atingi-la, por entre uma imensidão de imagens

desvirtuadas, bastando para tal que uma imprevista nuance num verso nos dirija para o seu

movimento ressurgente.

A partir do capítulo 3 desta dissertação procuraremos questionar e explorar o potencial da

imagem audiovisual, mais propriamente a sua dimensão poética, para o sugestionamento da

5 Ocasionalmente, Bachelard refere-se à poesia vocalizada, principalmente pela importância que a entoação e a

dicção têm na sua correspondência a certas qualidades materiais (BACHELARD, 1948a: 220), a determinada

espacialidade que o poema evoca (BACHELARD, 1957: 201), à «ressonância das palavras profundas»

(BACHELARD, 1948b: 70).

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imaginação material até aqui tida por corolário da poesia escrita. O conceito de imagem proposto

por José Gil, apresentado no próximo capítulo, coloca na relação entre o olhar e o mundo, por

intermédio do gesto e da representação, a problemática do desvelamento dos seus valores

afectivos pela manifestação estética, pelo que aponta possibilidades que nos interessa observar.

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b) Conceito: a imagem-nua e os movimentos de forças, de José-Gil

Com o conceito imagem-nua José Gil propõe a superação das ideias da fenomenologia

husserliana e pontiana para repensar o problema da relação entre a percepção do mundo pelo

artista, a natureza da expressão estética na sua obra, e o que dela influi na percepção do fruidor -

sobre o mundo e sobre a obra de arte -, centrando a discussão na dialéctica entre as dimensões

verbal e não-verbal da percepção.

A imagem-nua dá-se ao nível da sensibilidade para as pequenas percepções, para os

movimentos mínimos, ou tendências de movimentos, a partir dos quais forças de expressão

participam, enquanto fenómenos de limiar, na relação de descoberta entre o ser e o seu meio

físico. Assim, a natureza da imagem-nua depende sobretudo do apelo produzido pelas

características do seu referente, apelo esse que, para acontecer, implica a sensibilidade de quem a

vivencia. Por isso ela constitui a totalidade do seu fenómeno: todo o sentido da imagem-nua lhe é

interno, constituído nela e por ela, pela forma como todos o seus elementos e dimensões se

imbricam e engendram certa inclinação que, enquanto manifestação estética, se autonomiza como

superação da soma das suas partes:

Com efeito, na medida em que oferecem um sentido global, como uma qualidade, e por um feeling, são «positivamente o que são, sem consideração seja pelo que for mais». É uma perspectiva monádica: «a ideia de qualidade é a ideia de um fenómeno parcial considerada como uma mónada, sem referências às suas partes ou componentes, e sem referência seja ao que for mais.» É de facto de um qualisigno que se trata quando encaramos, deste ângulo, as pequenas percepções (GIL, 1996: 109).

Acreditamos que a imagem-nua constitui o carácter pelo qual a obra de arte, a que se faz de

expressão estética em geral, comunica antes de mais pelas suas qualidades intrínsecas,

antecedendo, mas não excluindo, as convenções do mundo da arte. Então, a imagem-nua

constitui na sua natureza um carácter de pregnância, uma capacidade de nos impressionar e de

nos solicitar novas formas de visar, sempre mais profundas, sempre mais movidas pela expressão

que lhe actualiza o sentido.

Constituindo-se em absoluto pelo sentido dos movimentos das suas forças, pelas formas

dessas forças, pelo dinamismo dessas formas de forças - e assim se apresentando à percepção

como esvaziada de extra-sentidos -, a imagem-nua apela duplamente à intervenção da nossa

intenção imaginante: como colmatação, em resposta à manifesta ausência de extra-sentidos, e

como construção, em reacção participativa ao dinamismo da imagem:

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(...) a sua nudez é a condição da sua aderência às camadas expressivas, através das pequenas percepções; da sua mobilidade interna como campo de forças que não páram de agitar-se e de agir sobre a pregnância das formas; movimento que se traduz antes do mais por formas de forças: curiosamente, antes de apreender figuras sensíveis, cores e luzes que se exibiriam na sua superfície, o olhar «apreende» tensões, aberturas e quebras de espaço, movimentos orientados de forças, as suas cargas e as suas potências. A imagem-nua rodeia-se de atmosferas, provoca a agitação das pequenas percepções uma vez que atrai outras imagens-nuas e unidades microscópicas vindas da esfera da linguagem (ritmos, sons); uma vez que na sua atmosfera se esboçam formas que retêm e inscrevem forças (GIL, 1996: 103).

Estes sentidos externos, ou extra-sentidos, de que a imagem-nua se autonomiza, têm na

dimensão verbal do processo perceptivo e cognitivo a sua condição de possibilidade: ao visarmos

determinado objecto, tendemos a apreendê-lo segundo uma estrutura espácio-temporal

objectivada a partir do momento em que, pela acção recíproca dos sentidos e da consciência, o

nosso meio se nos tornou aperceptível. A este tipo de visar chamamos posicional (SARTRE, 1940:

26), necessariamente fundamentado na condição da verbalidade, pois é através dela que tomamos

o mundo enquanto conjunto de noções interrelacionadas. A imagem-nua solicita não o seu

contrário, mas a participação no seu movimento de abstracção:

O céu, o oceano tais como os vemos: a recusa de projectar neles conhecimentos (e fins) deixa aparecer a sua forma (uma vez que a sua matéria não se encontra ligada num conceito); ao mesmo tempo, esta forma surge ao olhar despojada de significação. Por seu turno, a matéria dá-se, de certa maneira, como não ligada, não formada porque tudo, nela, deixa de estar em relação com o conceito que a subsume (GIL, 1996: 122).

Na génese de tal abstracção encontramos uma aporia filosófica: pela linguagem surgem e

ressurgem os sentidos do entendimento das coisas, mas na relação com as coisas a linguagem

surge e ressurge; tal processo dura tanto quanto o tempo da humanidade. Na essência da

imagem-nua encontramos a mesma condição: a sua ausência de extra-sentidos não está ela

própria ausente, isto é, ela manifesta-se, de forma latente. Digamos que contém presente o

sentido pelo qual nos liberta a percepção do seu visar posicional - então, a apreensão do sentido

desta ausência torna-se possível pela influência da linguagem verbal enquanto constituinte do

pensamento -, e a adesão desinteressada a este sentido torna-se possível retrotraindo da

linguagem ao carácter de abertura da ante-verbalidade (GIL, 1996: 19).

A imagem-nua solicita-nos algo como uma «microscopia» da percepção (não apenas da

visão), um tipo de percepção que capta os detalhes no seu movimento para a superação da

unidade dos detalhes, um tipo de percepção constituído por múltiplas pequenas percepções

respondendo aos estímulos de múltiplas formas de forças. Uma tal percepção vai ao fundo da

multiplicidade contida na imagem, ao fundo da forma que se constitui pelo movimento desta

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multiplicidade, e incorpora no seu processo fenoménico um devir-imaginação-livre. Deve aqui

entender-se imaginação livre como uma construção de sentido afectivo ou qualitativo, não-racional,

pela consciência não-posicional, sobre a imagem percepcionada; ou seja, a consciência

imaginante, em contiguidade com a percepção, reage à pregnância da imagem-nua engendrando

pela imaginação livre o seu próprio devir-imagem, o seu próprio acrescento de sentido à imagem-

nua:

(...) a dinânica das forças pulsionais que daqui resulta descreve apenas, no fundo, o apelo ao sentido da imagem-nua: que a representação recalcada atraia outras, que se torne portanto uma espécie de núcleo de fixação e de proliferação de representações associadas formando «rebentos» e «ramificações» do inconsciente; que a cura como «passagem à consciência» e à linguagem, quer dizer, como «devir consciente» da representação inconsciente, implique o reinvestimento da imagem pelo afecto, e que acarrete transformações na vida do sujeito - tudo isto mostra que a imagem-nua aspira ao sentido de que foi despojada (GIL, 1996: 96).

Dir-se-ia que a consciência não se limita a reproduzir para si a imagem-nua, mas que esta

provoca ou faz constituir-se a produção de novas imagens.

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c) Recurso: a imagem-afecção, de Gilles Deleuze

Para explorar a temática bachelardiana da imaginação material no âmbito do audiovisual, à

luz do conceito estético imagem-nua, precisávamos de uma categoria de imagem especificamente

cinematográfica, cujos princípios de operatividade espácio-temporal pudessem ser

experimentados através dos recursos audiovisuais implicados na filmagem, montagem e edição.

Encontrámos tal imagem em Gilles Deleuze (1983: 167-87): a imagem-afecção, nomeadamente

a sua vertente de espaço qualquer6. Na sua realização plena, o que esta opera é a expressão de uma

qualidade: «A imagem-afecção é o poder ou a qualidade considerados por si mesmos, enquanto

exprimidos.» (DELEUZE, 1983: 151). Ao que por esta imagem se dá podemos também chamar

de primeidade7, pela terminologia de Peirce e ainda segundo Deleuze, «difícil de definir, por ser

mais sentida do que concebida: ela concerne ao novo na experiência, o fresco, o fugaz e porém

eterno»; considerando que a natureza de imediatez da primeidade não se deve confundir com a da

captação de um dado bruto pelos sentidos, e que não se dá ela mesma como pura sensação,

embora se reporte aos sentidos, preferimos dizer que é imaginada8 em vez de sentida:

Não é uma sensação, um sentimento, uma ideia, mas a qualidade de uma sensação, de um sentimento ou de uma ideia possíveis. A primidade é portanto a categoria do Possível: ela dá uma consistência própria ao possível, exprime o possível sem o actualizar mas fazendo dele mesmo assim um modo completo. (DELEUZE, 1983: 152)

Deleuze dá exemplos da imagem-afecção:

(…) a (imagem) de um campo de trigo que se torna ilimitado, «imensidade amarela reluzente» (: …) Qualissigno [ou Potissigno] para a sua (da imagem-afecção) apresentação num espaço qualquer (DELEUZE, 1983: 170).

E refere um exemplo de Balazs:

Alguns filmes de Joris Ivens dão-nos uma ideia do que é um qualissigno: “A Chuva não é uma chuva determinada, concreta, caída algures. Estas impressões visuais não são unificadas por representações espaciais ou temporais. O que aqui é espiado com a mais delicada sensibilidade não é o que a chuva é realmente, mas a maneira como ela aparece quando, silenciosa e contínua, escorre de folha em folha, quando o espelho do charco tem pele de galinha, quando uma gota solitária busca hesitante o seu caminho no vidro, quando a vida de uma grande cidade se reflecte no asfalto molhado… (...)” (BALAZS, citado por DELEUZE,

6 A outra seria a imagem-afecção de rosto (DELEUZE, 1983: 137-67). 7 José Gil (1996: 109-10) explicita o modo como na imagem-nua se actualizam as três categorias de Peirce; mais

adiante, procuraremos enquadrar a imagem-afecção na teoria da imagem-nua. De resto, Deleuze (1983: 151-83)

aponta para como pelo enquadramento se estabelece também a secundidade e a tercidade. 8 Por comparação com concebida.

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1983: 171)

Portanto, a imagem-afecção, seja do campo de trigo, da chuva na cidade ou outra, opera no

espectador um modo de ver que o desvincula de qualquer julgamento consciente sobre o que vê,

e antes o predispõe a uma valorização integralmente qualitativa do referente da imagem9. Deleuze

categoriza vários aspectos expressivos da imagem em que os recursos audiovisuais determinam

esta valorização:

- o enquadramento permite operar a fragmentação, «”(...) indispensável se não se quiser cair

na REPRESENTAÇÃO. Ver os seres e as coisas na suas partes separáveis. Isolar essas

partes. Torná-las independentes a fim de lhes dar uma nova dependência”» (BRESSON,

citado por DELEUZE, 1983: 168)10;

- o princípio de planos fluentes: «uma maneira de tratar o plano médio como grandes planos,

por ausência de profundidade ou supressão da perspectiva. Agora já não é o plano

aproximado mas antes qualquer plano que pode ganhar o estatuto de grande plano: as

distinções herdadas do espaço tendem a desvanecer-se.» (DELEUZE, 1983: 166);

- a cor-superfície, a cor atmosférica e a cor-movimento, esta última «(...) a única que parece

pertencer ao cinema (...) a imagem-cor não se refere a tal ou tal objecto, mas absorve tudo

o que pode (...). A cor é (...) o próprio afecto, isto é, a conjunção virtual de todos os

objectos que ela capta.» (DELEUZE, 1983: 180-1).

Podemos referir outros elementos sobre os quais Deleuze não desenvolve, como as texturas,

pela sua capacidade de prender a atenção do espectador e sugestionar certa disposição como

resposta a estímulos materiais, ou ainda o som, pelo seu poder conotativo.

Tais valorizações pela imagem nutrem-se primeiro nas faculdades dos sentidos, mas logo as

transcendem, promovendo a vivência da imagem-afecção para além dos seus dados imediatos,

através da faculdade mais ágil que é a da imaginação.

Em termos gerais, mas também mais simples, trata-se de produzir um sentido da imagem

que venha a ser inteiramente poético, e que abra o olhar a uma dimensão de invisível (GIL, 1996:

54) pela qual participamos da imagem estabelecendo com ela uma ligação afectiva: o campo de

trigo referido por Deleuze deixa de importar enquanto plantação de cereais utilizados para a

produção de produtos alimentares, situada num espaço e num tempo relevantes para uma

9 Como tal modo de ver se produz em termos práticos, procuraremos desenvolver a partir do cap. 4. 10 A ideia que Deleuze cita de Béla Balázs (1884-1949) parece identificar «representação» com «mimese» ou

«reprodução», contrariando o uso que lhe daremos no cap. 3, segundo Dufrenne, enquanto resultado no qual,

pela expressão, se operou um afastamento do referente.

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qualquer narrativa, passando a importar enquanto, por exemplo, irradiação dourada tonificante ou

ondulação serena de uma nostalgia intemporal. Em suma, desperta no espectador uma reacção de base

sentimental11 cuja plurivalência logo apela à imaginação para que participe na sublimação12 do seu

referente. Esta imagem pregnante (GIL, 1996: 123), cujo estímulo contraria a nossa tendência

para lhe atribuir um sentido objectivamente definido, poderá ser considerada o relativo

audiovisual daquele verso por cuja subtileza se origina uma multiplicação de metáforas

(BACHELARD, 1948a: 253-5).

Cremos que este processo de valorização qualitativa se dará na charneira entre a dimensão

verbal e a afectiva, à maneira do que sucede na modalidade perceptiva que José Gil procura

identificar para a imagem-nua. Se a imagem apela a um preenchimento de sentido, tal não

significa que não o contenha já em potência: a imagem investida de novidade, destituída de uma

espácio-temporalidade reconhecível, de alguma forma desarticula as ligações até então

estabelecidas com a realidade para propor outras, novas (GIL, 1996: 136). Este olhar, este

percepcionar da imagem que assim se subtrai à convenção, não é um irracional, como o da

criança13 nos seus primeiros deslumbramentos. À semelhança do visar ingénuo em Bachelard, é

fundamental na produção da nova imagem o contributo dos processos de linguagem que

possibilitam o pensamento, concreto ou abstracto, especialmente os que se proporcionam a

mobilidade subjacente à realização poética:

O paradoxo do não-verbal é esse: é que por um lado se inscreve num contínuo de sentido que desemboca por vocação interna na linguagem, e por outro conserva um esoterismo de código (ou de não código) irredutível à linguagem. Mas que este último seja assinalável pela linguagem - e assim ganhe um sentido que se acrescenta ao sentido não-verbal -, testemunha que a mais longa distância coabita com o mais próximo afastamento. Por isso, talvez, neste plano, a antiga ideia de que a poesia é a mãe de todas as artes [não verbais] se justifique [mas outros contrários são também verdadeiros: todas as artes tendem para a música, como dizia Walter Pater; e toda a arte é uma escultura [Beuys]; ou ainda, um desenho, um quadro, ou uma coreografia… São todas, em perspectivas diferentes, mães de todas] (GIL, 1996: 19).

Embora a abstracção da figuração, que parece determinar a abstracção do referente, não seja

condição absoluta da imagem-afecção14, como não o é da imagem-nua15, não deixamos de notar

11 Reconhecemos que este tipo de imagem, como outros, pode produzir efeitos de gosto duvidoso, mas, no

âmbito da teoria deleuziana e das intenções desta dissertação, referimo-nos apenas à faculdade do sentimento, e

não a qualquer efeito de sentimentalismo fácil. 12 No sentido do sublime kantiano, da recorrência à imaginação quando o dado da apreensão supera a faculdade

de julgar e até a de reproduzir imagens (KANT, 1790: 138). 13 «Parece-me perigoso estabelecerem como princípio, a identificação pura e simples das formas provisórias ou

abstractas do conhecimento com a experiência elaborada do homem adulto.» (FRANCASTEL, 1983: 161). 14 Deleuze dá o exemplo de Wavelength, de Michael Snow (DELEUZE, 1983: 186-7). 15 Gil (1996: 64-82 e 135-56) analisa a Mariée de Duchamp, e o Quadrado Negro de Malevich.

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em ambos os casos uma tendência recorrente para os exemplos em que há ausência de figuração,

ou figuração muito reduzida na sua legibilidade. Por um processo análogo, a imagem poética de

Bachelard transpõe a forma à superfície das coisas para tender à sua materialidade profunda. Este

é o princípio em torno do qual explorámos os recursos audiovisuais no sentido de produzir

imagens capazes de uma poética material, analisáveis segundo os pressupostos da imagem-nua, e

animadas pelos recursos que operam a imagem-afecção. Algo que desenvolveremos no cap. 4.

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3. Discussão do Projecto: I. as questões teórico-práticas centrais

a) A rêverie material enquanto tema: palavra e imagem

Que carácter assume a imagem material quando tratada pelo audiovisual? De que forma

poderá o audiovisual originar imagens poéticas comparáveis às bachelardianas? Devemos aqui

observar uma questão importante: Bachelard escolheu para estudo a imagem que surge na fruição

da poesia escrita, ou seja, a imagem que resulta directamente, como estado de consciência, do

contacto com a expressão textual ou verbal e não de um dado para os sentidos.

Bachelard «convida o leitor a sonhar através da palavra; a participar pela linguagem; a

imaginar activamente os motivos materiais que nele suscitarão, mais tarde ou mais cedo, uma

resposta temperamental» (ARAÚJO, 2000: 14). Nos seus estudos sobre a imaginação, Bachelard

muito raramente se refere às imagens das artes visuais. Quanto à escultura, a acção

transformadora da matéria que lhe subjaz torna-a familiar à defesa de uma edificação moral e de

uma tonalização por via do contacto directo com o meio físico, mas apenas na medida em que

deste trabalho não surja ainda uma forma. É pela «causa material», e não pela «causa formal», que

se possiblita o potencial do imaginário bachelardiano:

Uma mão ociosa e acariciante que percorre linhas bem feitas, que inspeciona um trabalho concluído, pode ficar encantada com uma geometria fácil. Ela conduz a uma filosofia de um filósfo que vê o operário trabalhar. No reino da estética, essa visualização do trabalho concluído leva naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do real ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde (BACHELARD, 1942: 14)16.

Sem negar categoricamente as valências das artes plásticas e visuais para a suscitação da

rêverie material, Bachelard abstém-se de julgá-las, sendo-lhe suficiente afirmar e demonstrar o seu

interesse pela capacidade evocativa do texto na sua expressividade poética. É que a palavra não

representa, nem é presença ela mesma, mas apela à faculdade de presentificação como se esta

resultasse de um estímulo aos sentidos:

Ler um romance é tomar uma atitude geral de consciência: essa atitude parece-se grosseiramente com a do espectador que, no teatro, vê a cortina levantar-se. Prepara-se para descobrir todo um mundo, que não é o da percepção, mas também não é o das imagens mentais (...).

Ler é realizar nos signos o contacto com o mundo irreal. Nesse mundo há plantas, animais, campos, cidades, homens: em primeiro lugar aqueles de que o livro trata e depois uma porção de

16 Note-se a observação de José A. M. Pessanha na sua introdução a O Direito de Sonhar: «A mão operante e

trabalhadora de que fala é a mão feliz, a serviço de “forças felizes” porque forças criadoras (...). Bachelard trata

do trabalho em sua positividade, não como ação da mão operária sob o jugo da negatividade da alienação»

(BACHELARD, 1970: xxi).

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outros que não são nomeados, mas que estão no fundo e dão espessura a esse mundo. (...) sua existência irreal é correlativa às sínteses que eu opero guiado pelas palavras. É que, essas próprias sínteses, eu as opero à maneira de sínteses perceptivas, e não de sínteses significativas. (SARTRE, 1940: 91)

A imagem que se dá no contacto com o texto poético17 não encontra pela palavra um

referente definido, o que lhe proporciona à partida uma certa vocação para se furtar a qualquer

determinação fenoménica mais imediata. Tal vocação estará na base da sua grande mobilidade de

sentido, da sua capacidade de integrar todo o tipo de nuances, antíteses, multiplicidades,

reverberações, ambiguidades e ambivalências. Também o conceito, para bem sistematizar,

depende do potencial de abertura da palavra a novos sentidos, mas estes, em última análise,

devem coincidir no sentido geral que ele constitui:

Formar imagens verdadeiramente mútuas nas quais se intercambiem os valores imaginários da terra e do céu, as luzes do diamante e da estrela, aí está realmente, como anunciamos, um procedimento que segue caminho inverso ao do processo de conceitualização. O conceito caminha passo a passo, unindo formas prudentemente vizinhas. A imaginação transpõe extraordinárias diferenças (BACHELARD, 1948a: 230).

Assim a palavra acede, ultrapassando a superfície, e por vezes mesmo a materialidade

profunda das coisas, a uma substancialidade originiária que é móvel, porque se constitui

dinamicamente nas possibilidades abertas pelo «jogo amplificante»18 da linguagem verbal poética.

Neste nível, sugestiona uma imaginação sem imagens19, aquém das imagens formadas, porque no

seu acontecimento:

Por isso não hesitamos em dizer que a imaginação é uma função primordial do psiquismo humano, uma função de vanguarda, contanto, claro, que se considere a imaginação com todos os seus caracteres, com seus três caracteres, formal, material e dinâmico. (BACHELARD, 1948a: 308)

A problemática da nossa questão deve então ser desenvolvida explorando as possibilidades

da expressividade audiovisual para, a partir das suas imagens sensíveis, suscitar imagens materiais

dinâmicas. Não se trata de condicionar os recursos expressivos audiovisuais pela natureza da

linguagem verbal - o que seria uma tentativa necessariamente artificiosa de obter imagens

17 Seja em «textos antigos (mitos, cosmogonias filosóficas) como contemporâneos (poemas, romances)»

(ARAÚJO, 2000: 112), e mesmo em textos de propósito científico, Bachelard identifica sempre qualquer

fundamento material motivado mais pela imaginação do que pela razão. 18 Cf. esta ideia de Bachelard (1948a: 224) com a de «jogo de forças» em José Gil (1996: 54). 19 Não à maneira do schema kantiano, como uma lógica procedimental, mas como uma síntese instantânea,

integradora: «Os conceitos negligenciam, por função, os detalhes. As imagens, pelo contrário, integram-nos.»

(BACHELARD, 1948a: 206).

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literárias por meios não-literários20 -, mas sim de neles identificar ou descobrir a mobilidade

própria do audiovisual para a expressão material de nuances, antíteses, ambivalências, etc.

Consideremos a problemática das relações entre arte e linguagem:

Logo que se deixe de considerar a obra de arte como uma transposição automática do real sensível, que se deixe de reduzir a arte a uma técnica de transposição, e se passe a vê-la como uma problemática, ela sobe à categoria de uma linguagem e admite-se, por conseguinte, que ela estabeleça a existência da indissolubilidade entre forma e fundo. Se tal acontecer, começa a ver alterar-se a noção de meios. Atrás dela, está a descoberta do problema da imagem (FRANCASTEL, 1983: 28)21.

Embora não estejamos em condições de discordar ou concordar com a categorização da arte

como linguagem, interessa-nos que aí resida o problema da imagem. A afirmação de Francastel

parece ser consistente com a ideia de que a arte dá a ver o invisível através de um perceptível

transcendente do sensível. A arte dá a ver não o mundo que vemos, mas sim o que no mundo

ainda não vimos e que só nos reportando a ela poderemos ver. Ora, se a arte mostra um outro

sentido do mundo, tal solicita-nos uma outra disposição para o receber, que não se esgote na

sensação, que se expanda à sensibilidade que, mesmo não sendo pensada, pressuponha ainda a

inerência de uma faculdade de linguagem apta a intuir sobre a expressividade que o apresenta:

trata-se de uma disposição não interpretativa - pois é de imagens que falamos e não de símbolos -

mas sim participativa, pela nossa adesão e correspondência aos sentidos intuíveis de todas as

camadas não-verbais. Um exemplo que José Gil refere da performance de Beuys, acerca da ideia

de contra-imagem, poderá ser esclarecedor:

(...) a invisibilidade da contra-imagem compreende também, e sobretudo, o universo espiritual; mas a contra-imagem não extrai o seu sentido espiritual do sentido simbólico dos objectos visíveis. Os materiais utilizados - o feltro, o cobre, a gordura, a pedra, a madeira, os animais - tomam, sem dúvida, significações precisas; mas seria melhor dizer: «têm funções precisas na produção de contra-imagens». Se Beuys trabalha com materiais e não com símbolos, é porque se interessa mais pela substância do que pela forma, e mais pela imagem do que pelo seu sentido codificado.

Resultado ela própria de uma acção, a imagem não é, portanto, para interpretar, mas para ser agida. É uma imagem dinâmica, em movimento; pará-la, considerá-la no seu acabamento estático (no fim de uma Acção, por exemplo) equivaleria a traí-la, a falhar o seu alvo próprio que não

20 «É devido ao facto de os elementos que constituem a linguagem figurativa terem um carácter ambíguo, que

resulta de se desenvolverem no espaço-tempo e de combinarem diferentes elementos de elaboração, que não se

pode reduzir o estudo da linguagem figurativa a um caso de aplicação das leis genéricas da linguagem falada.»

(FRANCASTEL, 1983: 100). 21 Cf. «As obras de «poesia dinâmica» não se limitam a traduzir, por simples operação mimética, as coisas tal

como elas são captadas pela sensibilidade. Pelo contrário, qualquer obra que se possa incluir neste género,

converte as coisas num dever-ser, mediante uma preferência, ou simpatia prévia, pelo devaneio material.»

(ARAÚJO, 2000: 85).

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consiste em construir uma significação, mas em suscitar uma força. (...) Cada material é uma substância que contém forças. Segundo a maneira como se manipulam ou dirigem essas forças, cria-se uma «escultura» diferente (GIL, 1996: 205).

Devemos discernir os processos de linguagem reflexivos, que possibilitam descrever a

conscientização de um novo paradigma expressivo, dos processos de linguagem que subjazem à

intuição da possibilidade instaurada pela expressividade do novo paradigma: se, por exemplo,

inferimos na pintura de Cézanne22 a condição de uma nova perceptibilidade - da paisagem como

uma síntese de camadas sem diferenciação manifesta de profundidade, e portanto da natureza

temporal da sua percepção -, deveríamos considerar qual o papel dos processos de linguagem ao

nível da intuição primeira com a qual procuramos responder à sua solicitação. Poderá ser que nos

dois casos se trate dos mesmos processos e que a diferença esteja nos seus graus de consciência,

como quando temos algo muito concreto para expressar mas desconhecemos não só as palavras

mas até como começar a colocá-las; poderá também ser que a este nível primeiro, de limiar de

consciência, se dê uma correspondência mais ou menos fluida entre a nossa aptidão ôntica e a

expressividade particular de tal obra de arte, em que a linguagem simultaneamente se inclua para

lhe dar sentido e se exclua para não o determinar23:

Só a linguagem desliga as coisas da visão, libertando-as do corpo que deixa de ser o referente imediatamente dado: a relação dos objectos percebidos no espaço é agora pensada. Mas enquanto a paisagem permanecer muda, o sentido da percepção dependerá do corpo; como o corpo pertence ao mundo das coisas, e como a sua articulação adere demasiado aos movimentos possíveis do corpo próprio, a percepção corre o risco de aí se atolar (quer dizer, de ver a imaginação do corpo demasiado limitada e limitando, portanto, a própria percepção da paisagem).

Entre a visão muda e a linguagem, o olhar vem suprir a falta de pensamento verbal, escavando buracos na superfície da percepção. Como se na articulação das coisas com o corpo uma força se esboçasse visando uma abertura mais vasta do espaço, como se um apelo à linguagem habitasse já as formas vistas, uma espécie de linguagem não verbal surge então no interior da própria visão: o olhar (GIL, 1996: 51).

Ainda assim, isto pouco nos diz de concreto sobre a natureza de uma eventual linguagem

constituída na expressividade artística. Recuperamos uma citação anterior24 em que José Gil,

referindo-se às artes plásticas em geral, caracteriza a mobilidade interna da imagem-nua por uma

certa tendência para aderir a extratos de sentido verbais e não-verbais, por uma constante

movimentação geradora de atmosferas de pequenas percepções:

22 É significativo que a pintura de Cézanne tenha servido de referência para esta temática em vários autores

relevantes: Sartre (1943: 209), M-Ponty (1960: 32), Dufrenne (1966: 261-2), Deleuze (1983: 128), Francastel

(1983: 70) e Gil (1996: 316). 23 Especular sobre tal simultaneidade de inclusão e exclusão da linguagem poderá contribuir para uma melhor

compreensão da «possibilidade contraditória da visão ingénua» que referimos no cap. 2.a. 24 Cf. 2.b.

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A imagem-nua não é apreendida, pois, como isolada, totalmente separada das outras e da esfera da linguagem (...). Mas nasce envolvida numa nuvem de pequenas percepções que são os traços das suas antigas relações ao sentido verbal (ainda que virtual). Uma imagem-nua não é uma superfície colorida isolada, exilada, ou um gesto que se esgotaria em si próprio; ou um rosto que nada quisesse significar. Pelo contrário, a sua nudez é a condição da sua aderência às camadas expressivas, através das pequenas percepções; da sua mobilidade interna como campo de forças que não páram de agitar-se e de agir sobre a pregnância das formas; movimento que se traduz antes do mais por formas de forças: curiosamente, antes de apreender figuras sensíveis, cores e luzes que se exibiriam na sua superfície, o olhar «apreende» tensões, aberturas e quebras de espaço, movimentos orientados de forças, as suas cargas e as suas potências. A imagem-nua rodeia-se de atmosferas, provoca a agitação das pequenas percepções uma vez que atrai outras imagens-nuas e unidades microscópicas vindas da esfera da linguagem (ritmos, sons); uma vez que na sua atmosfera se esboçam formas que retêm e inscrevem forças (GIL, 1996: 103).

Embora José Gil refira com frequência para a imagem-nua a condição de apelo a um sentido

verbal em aberto, jamais é ela própria considerada como constituinte de linguagem, sendo a sua

natureza caracterizada pelo princípio mais elementar de força ou forma de força; tudo é tendência para

na imagem-nua. As «unidades microscópicas» citadas não parecem ser equiparáveis às da

linguagem verbal25 enquanto sistema. Francastel contribui com algumas comparações centrais à

questão:

Num sistema artístico, as partes são mais significativas, em si, que as articulações da língua. Existem diferentes níveis de articulação, mas não se apresentam apenas como uma divisão do conjunto. Têm a ver com níveis de experiência diferenciados, referem-se a diferentes momentos e a diferentes formas de abordar o passado, utilizando, para mais, processos múltiplos de registo. Uma pintura significa algo, quer devido ao facto de certos signos serem verdadeiros símbolos, ligados a ciclos historicamente determinados, quer porque os meios utilizados, as formas e as cores explicitam directamente experiências e relações saídas da actividade sensorial do olho ou do ouvido, e têm um significado imediato, sem ter de se recorrer ao símbolo ou à alusão. Não basta, portanto, utilizar sistematicamente a imagem, se se quiser confirmar e explicitar a representação dos mecanismos do pensamento, que assente na utilização dos sistemas verbais e nocionais. Deve, ao contrário, desejar-se que se possa desenvolver a problemática ligada às linguagens artísticas, que só viria renovar amplamente o nosso conhecimento da história e do mecanismo das leis do espírito (FRANCASTEL, 1983: 39-40).

Aprofundar a nossa própria problemática dependeria de tal desenvolvimento, mas não cabe

nesta dissertação. Referiremos ainda assim algumas observações com as quais Mikel Dufrenne

esclarece os principais problemas colocados neste capítulo.

Para Dufrenne, comparar a pintura ou o cinema à linguagem verbal implica testar a sua

decomponibilidade em elementos comunicantes e avaliar a sua articulabilidade num sistema

regrado para a transmissão de mensagens através de um código:

25 «(...) as unidades próprias à língua são de duas ordens: as unidades significativas - monemas ou palavras - e as

unidades distintivas - fonemas -.» (DUFRENNE, 1966: 115).

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Como não há um campo sonoro preexistente, igualmente não há um campo pictórico capaz de constituir uma língua para um discurso pictórico, isto é, um sistema de elementos diferenciais ou de termos capazes de se opor e combinar. Como diz Francastel, “a dupla articulação que caracteriza as línguas não se aplica à arte… É impossível decompor uma obra figurativa em seus elementos”.

O que caracteriza os elementos que entram na textura da obra é, em primeiro lugar, que eles não são verdadeiramente significantes: a linguagem das cores pode ser um código, mas a pintura o ignora. E ao depois, na análise, eles não se definem por relações que têm entre si, como as tintas frias e quentes, os vetores horizontais e verticais, as formas abertas ou fechadas, mas pela relação que têm com o todo da obra (...) (DUFRENNE, 1966: 125).

Dufrenne acrescenta que, embora o pintor possa conhecer esses elementos, exercitá-los e

teorizar sobre eles, «pintar não é aplicar uma teoria, também não é tirar os termos de um

conjunto disponível para ordená-los segundo as regras de um código». Também o apelo da obra a

uma sensisibilidade inteligente, cujo estatuto dos processos de linguagem há pouco

questionávamos, não é o apelo a uma leitura minimamente comparável à de um texto:

(...) essa coerência se manifesta no próprio sensível, pois a obra é feita pela mão - uma mão inteligente - para o olhar e não para o entendimento, como o discurso é preparado. Há um pensamento plástico, mas onde o corpo é algo da parte, e cuja mensagem - além dessa decifração morfológica e quando o olhar, por sua vez, se tornou inteligente - é apreendida por uma percepção global (DUFRENNE, 1966: 126).

A mesma análise em relação ao cinema:

Quais são, com efeito, os elementos constituintes do campo fílmico? É necessário tornar a dizer aqui o que dissemos a respeito da música: o cinema não tem nada que corresponda à dupla articulação da língua: nem fonemas nem monemas. Diferentemente do fonema, toda unidade constitui uma “semia intrínseca”, para falar como Buyssens. Diferentemente do monema, o plano constitui uma fase e a sequência um enunciado complexo;

Por conseguinte, a sintaxe não é verdadeiramente sintaxe porque não produz o sentido a partir de unidades primeiramente diferenciais e em si não-significantes; os movimentos codificados de câmara, o encadeamento das imagens, os processos de pontuação só podem colocar em forma um semantismo já dado no objeto fílmico como totalidade e, de resto, pedido pela percepção (DUFRENNE, 1996: 130).

A imagem do cinema reclama, para Dufrenne, por um processo análogo ao da pintura, uma

visualidade que se sobreponha a qualquer legibilidade: «(...) nela não há nenhuma distância do

significado ao significante. Ela mostra porque é aquilo que representa, como ocorre na imagem

pictórica. E isso é suficiente para distinguir o cinema da linguagem.» (DUFRENNE, 1966: 128).

Tal não significa que ao incorporar elementos linguísticos o cinema passe a ser outra coisa, mas

nesse caso a dimensão linguística institui-se ainda pelos signos presentes na imagem e não pela

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expressividade que a montagem confere à imagem:

A sintaxe resplandece ou se reduz verdadeiramente a um processo quando o fluxo sintagmático tem acesso à expressividade: o sistema - paradigmas ou esquemas de construção - só aparece no esforço para conceitualizar posteriormente o que foi criado sem conceito. Na verdade, o cinema não tem língua (DUFRENNE, 1966: 131).

A identificação da montagem com a sintaxe linguística perde validade a partir do momento

em que reconheçamos a impossibilidade de identificar os elementos constituintes da recursividade

do cinema com os da recursividade da linguagem verbal:

O cineasta pode arvorar-se num demiurgo que quer impor, pela montagem, essas implicações à consciência do espectador; ele só será um criador se, em lugar de dispor signos como um enigma, deixar se expandirem imagens em seqüencias emocionantes cujo sentido será para ser sentido de preferência a ser concebido (DUFRENNE, 1996: 130).

É acima de tudo pela expressão - dada no campo supralinguístico26 -, que a arte se realiza,

seja as artes da linguagem, as artes plásticas ou outras. Mas se identificamos, seguindo Dufrenne,

a pintura e o cinema como manifestações essencialmente expressivas e não discursivas, é com as

formas expressivas, digamos em-si, da linguagem que devemos compará-las27:

Donde vem que se distinguem sempre linguagem verbal e linguagem da arte, como também prosa e poesia? Na primeira, o signo torna-se coisa; na segunda, a coisa torna-se signo. A primeira, com efeito, supõe um em-si da língua; esse sistema de elementos diferenciais tende a se bastar a si mesmo, a eliminar a referência à coisa, a engendrar e realizar o sentido sem essa referência (DUFRENNE, 1966: 146).

Ao seu nível máximo de abstracção, este sentido que a prosa engendra e realiza seria o das

ideias de coisas sem representação. Tal sentido, embora tenda a substituir o seu referente, não

adquire qualquer mobilidade, podendo apenas afastar-se dele até se tornar um conhecimento ou

entidade puros28. Distinta é a abstracção poética: o sistema de elementos diferenciais, ao não

procurar designar, adquire uma outra recursividade e torna-se móvel, afasta-se do referente para o

extrapolar através da expressão:

26 «(...) no qual os sistemas são supersignificantes; eles permitem transmitir mensagens, mas sem código ou, em

todo o caso, tanto mais ambíguas quanto o código é menos estrito: a significação, nesse caso, é expressão.»

(DUFRENNE, 1966: 109). 27 Cf. Dufrenne (1966: 129): «Mas se por aí o cinema se aproxima da linguagem, é da linguagem enquanto

poética, da linguagem que afasta o objeto em lugar de significá-lo.». 28 Por este motivo questionamos a ideia de Agripina Ferreira (2013: 95-6), segundo a qual a poética de

Bachelard tem fundamentos no idealismo platónico: a realidade concreta mais não pode ser que um contexto

desvirtuado no qual as ideias ou formas platónicas jamais poderão realizar-se. Já o sentido poético proposto por

Bachelard depende inteiramente de uma vivência comprometida com o mundo, posteriormente redimensionada

pela poesia.

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Na arte, pelo contrário, é a coisa que se torna signo. A obra afirma-se imperiosamente como objeto; o sensível manifesta-se em sua plenitude, animado por uma necessidade interna e é nele que o sentido se manifesta; a obra não é um amontoado de signos, ela faz signo. Assim, no poema, as palavras reencontram a profundidade do seu sentido com o brilho de sua carne: a carne faz-se verbo (DUFRENNE, 1996: 147).

É pela vertente poética do «em-si da língua», na sua faculdade particular de se antepor ao

referente, que poderemos procurar uma melhor compreensão sobre como a poesia estudada por

Bachelard suscita imagens aquém da visibilidade, e sobre a natureza de tais imagens, que são elas

mesmas produtos não-verbais: realizada a «virtude de expressividade» poética, são enfim imagens

no seu sentido pleno o que experienciamos. Como tal, reclamam ao surgir não um esforço de

interpretação mas a adesão total, pelo afecto ou sentimento29, ao seu movimento emergente. Num

texto precisamente sobre a imaginação bachelardiana, Mikel Dufrenne considera o papel

particular da verbalidade para a natureza desta adesão:

“Pour que l’imagination soit spontanément réfléchie, il ne suffit pas qu’elle soit consciente de soi (...). Il faut qu’elle soit assez docile au cogito qui l’anime pour que ce cogito puisse la governer et se reconnaître en elle. Libre à lui de se laisser compromettre par elle: elle ne le compromettra pas. L’imagination pour Bachelard n’est en effet jamais exigeante, jamais aliénante; si profonde qu’elle soit, elle rest inofensiffe, parque qu’elle est parlée” (DUFRENNE, citado por ARAÙJO, 2000: 248).

Importa reconhecer na poesia uma eventual primazia de vocação para sugestionar a imagem

dinâmica, mas sobretudo importa identificar na expressão essa força volátil, comum à poesia,

pintura ou cinema, que apela antes ao sentimento que ao entendimento. A condição pela qual a

expressividade se realiza numa mobilidade sempre maior, é a capacidade da obra para afastar a

dimensão objectiva do referente em favor da sua redescoberta pelo sensível - que, reiteramos, não

se esgota na acção dos sentidos30. Nos capítulos seguintes analisaremos no trabalho prático os

recursos audiovisuais pelos quais se procurou realizar tal expressividade.

29 «É, de fato, o sentimento que reconhece a necessidade própria do acordo carnal das palavras e que engendra

um novo sentido» (DUFRENNE, 1966: 114). 30 «(...) uma percepção gasta, não-informada, não faz justiça ao objeto estético: é preciso aprender o léxico e a

gramática para compreender uma língua, é preciso ter alguma idéia do código próprio de cada arte para aguçar a

percepção.» (DUFRENNE, 1966: 131)

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b) Aspectos expressivos pretendidos: a pregnância da imagem-nua

Descrever a expressividade pretendida para os vídeos realizados durante o mestrado

equivale a descrever os elementos sensíveis das imagens, segundo o modo como estabelecem

certa relação de redescoberta entre o espectador e o referente.

Até certo ponto, podemos comparar grande parte dos nossos planos a pinturas abstractas

não-geométricas, cujas características visuais dos constituíntes tendem a diluir-se em camadas

mais ou menos homogéneas31 (cf. Figura 1), criando padrões móveis de uma regularidade

impossível de assinalar - comparáveis aos do fogo ou de águas movimentadas. Uma primeira

distinção evidente em relação à pintura, é que nela os movimentos são sugestionados: não

acontecem na tela, mas sim pela percepção. Não nos referimos aqui necessariamente à

representação de movimentos - como em alguma pintura futurista -, nem tanto a marcas de

movimentos - como o rasto do pincel pela tela -, mas sim a uma certa fluidez que, sem recusar

tais recursos, e sobretudo sem dissipar completamente o referente, constantemente nos dirige o

sentido do olhar e nos solicita que refaçamos a imagem do conjunto; o tipo de pintura que nos

coloca na presença não de sentidos definidos mas de atmosferas de sentido:

(...) a atmosfera é um espaço de forças em que a poeira de pequenas percepções, se ainda não esboçaram uma forma [de um clima por vir], se dá como tensão pura, vibração: nela não vemos formas, recebemos a globalidade de um jogo de forças que, enquanto tal, “apresenta” já uma “forma”. Não uma forma figural, mas a pregnância de vectores de forças, de orientações, de qualidades ainda não determinadas, isoladas. Trata-se de facto de “formas”, mas invisíveis só pela visão, apreensíveis pela sensibilidade intensiva do olhar (GIL, 1996: 54).

Mas a expressão em pintura, a sua qualidade evocativa, dá-se sempre por intermédio do

traço, da mancha, da cor: há sempre o gesto que preenche a tela com o material pictórico. O

audiovisual, além realizar o seu próprio movimento prévio a qualquer solicitação à percepção,

apresenta sempre à visão certos aspectos concretos do seu referente: uma textura de parede, uma

fibra de tecido, uma superfície de vidro32. Esta distinção é fundamental, pois se a expressividade

poética implica que se afaste o carácter objectivo do referente, toda a operação de mobilização

nas imagens do audiovisual implicará utilizar os recursos audiovisuais para extrapolar sentidos a

partir do objecto que nelas está presente.

31 É apenas de acordo com esta descrição, e não num dos sentidos possíveis dos vários discursos da arte, que

aqui utilizamos o termo «pintura abstracta». 32 Talvez por isto evite o risco, como na pintura, de um esvaziamento de sentido em virtude da afirmação de uma

autonomia do gesto técnico e da manifestação pictórica. Cf. Dufrenne (1966: 260) em relação à pintura não-

figurativa.

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Figura 1: Tiago Jordão, ‘Planisfério’, 2014.

Estes elementos discerníveis à superfície dos materiais são âncoras para a visão e, por

influência sinestésica, como que relevos e reentrâncias para a adesão pelo tacto. Na prática, o

interesse no apelo ao tacto verificou-se primeiro em experiências audiovisuais33 cujo objectivo era

relevar os aspectos visuais e sonoros dos materiais filmados. Era importante explorar a força

destas sensações assignificantes, porque conhecemo-las desde que temos memória sem no entanto

lhes darmos tanta atenção, porque fazem parte constante e natural da nossa interacção com o

mundo, a não ser se tomarmos por elas um interesse especial e as elevarmos pela sensibilidade,

como fazemos com a visão ao torná-la olhar por influência da paisagem34. Posteriores

experiências, em que renunciámos aos primeiros efeitos da mimese sonora do contacto com os

materiais35, mostraram que os estímulos audiovisuais às faculdades visuais e tácteis confrontavam

o espectador com um aspecto de novidade em relação a referentes que havia conhecido desde

sempre. De resto, os estímulos tácteis não pretendem remeter para uma efectiva experiência do

tacto, mas para uma experiência possível cuja profundidade implica um ponto de partida visual:

33 Cf. os vídeos Natureza Interior e Sem Título, e a primeira parte do 2º Vídeo-Ensaio (JORDÃO, 2013). 34 «O olhar escava a visão, imprime sulcos na paisagem, diferencia-a em múltiplos núcleos de forças, modula a

luz e a sombra, introduz os primeiros filtros selectivos da percepção.» (GIL, 1996: 52) 35 Cf. cap. 4.c., e também o 3º Vídeo-Ensaio (JORDÃO, 2014).

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O olhar escava a visão. A vista é o único sentido que aquire assim uma profundidade interna: o olhar reenvia para o interior do corpo (como para o sem-fundo da alma). A profundidade do tacto depressa se torna superfície; a profundidade do ouvido não existe enquanto tal, mas apenas como engendramento de uma superfície interna, ou de um espaço volumétrico - ambos limitados; a profundidade do olfacto dissolve-se no difuso; a do gosto, esgota-se na assimilação do corpo. Só a vista, através do olhar, penetra até um sem-fundo (GIL, 1996: 49).

É importante que se produza esta profundidade, tanto ao nível espacial - qual sensação de

imersão nas matérias que a imagem põe em movimento -, como ao nível poético - enquanto

ressonância cada vez mais distante do sentido objectivo do referente e cada vez mais próxima dos

novos sentidos abertos pela representação; o espectador deve captar não as matérias em si mas

uma sua representação. Mas nas matérias, no mundo que nos rodeia, a pregnância já se manifesta,

e com ela a potência de solicitação deste olhar que poderemos chamar de estético:

(...) a percepção estética deixa passar muito mais coisas do que uma percepção cognitiva: deixando de estar ligada num conhecimento, a matéria da representação tende a impor-se, a ressaltar mais na visão. O olho vê mais, quando «olha o céu como o vemos». Mas esta matéria não formada, tendo adquirido uma espécie de pregnância perceptiva, mostra uma tendência para se tornar forma: é que a própria forma já não é totalmente formada, tendo a abstracção do conceito do seu fim provocado uma espécie de “desestruturação”. Em estado “livre” agora, a matéria procura “reestruturar-se” pelos seus próprios meios (a imaginação “esquematiza sem conceito”) arrastando no seu movimento a formação da forma (GIL, 1996: 122).36

A que representação nos referimos? Não é a representação do acto imaginativo, nem a de

uma possível interpretação da rêverie bachelardiana, nem mesmo talvez a das qualidades afectivas

das matérias - tudo isto seria apenas ilustrar aspectos do nosso tema. O que tentamos representar

são as matérias mesmo, não numa forma acabada, objectiva, analítica, esgotada na visualidade das

suas características efectivas, mas aberta ao acto imaginativo, à rêverie das suas qualidades afectivas.

Tencionamos dar ao espectador motivos para que vá além das imagens que lhe são propostas -

que estas sejam para si uma sugestão à produção, consciente ou inconsciente, das suas imagens -,

para que ele mesmo imagine com as matérias. É por este motivo que a representação proposta não

pode ser uma do acto imaginativo ou da rêverie em si mesmos, pelo menos não completamente:

ela deve trazer, em forma de sugestão, um pouco da possibilidade de cada um ou, no mínimo, dar

um vislumbre desta possibilidade, não deixando a obra de ser, em todo o caso, uma experiência

completa em si mesma. Por este motivo, o interesse material de Bachelard tem maior

importância: da sua obra - ou da de Husserl, Sartre ou Araújo - não pretendemos apresentar um

36 José Gil refere-se à matéria da representação, não directamente à matéria das coisas físicas. Há sempre um

primeiro sentido da palavra que se refere ao que é trabalhado e expressado pela representação, cujo referente, no

nosso caso, é a matéria das coisas. Dir-se-ia que existe uma série de correspondências felizes entre os

movimentos da matéria física, os da imagem no trabalho audiovisual e os da imaginação.

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conhecimento «completo» do ponto de vista fenomenológico sobre os mecanismos da

imaginação material. Para a finalidade do trabalho, bastam os dados que apontem para a natureza

estética e poética deste tipo de imagens; para o seu carácter espácio-temporal; para a forma como

se passa do contacto com as matérias à emergência da rêverie; para a sua influência sobre as

vivências conscientes do mundo que nos rodeia, enfim, para o seu carácter surpreendente.

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4. Discussão do Projecto: II. operatividade dos recursos audiovisuais

a) Enquadramento e imagem-afecção

Todo o trabalho audiovisual começou por uma ideia que pretendíamos simples: representar

os objectos dados à consciência pela percepção exterior37 abstraíndo-os do seu carácter objectivo.

A partir desta intenção condicionámos a experimentação com a câmara segundo a convicção

primeira de que seria pelo enquadramento que daríamos a percepcionar, e depois a imaginar, esse

outro aspecto dos objectos (a que chamaremos apenas de matéria38). O primeiro passo foi pôr

dentro de campo apenas alguns aspectos da matéria que considerámos serem essenciais à sua

pregnância visual, e por extensão, táctil e sonora. Assim isolada e feita imagem cinematográfica,

esta porção de matéria passava a valer por si mesma, passava a ser outra coisa que o todo ao qual

pertencia - ainda assim, o seu referente: a relação que com ele mantinha constituía-se agora por

um desvelamento da sua qualidade de afecto. Esta convicção viemos depois a verificá-la na teoria

da imagem-afecção: «(...) a imagem-afecção é (...) a qualidade ou poder, é a potencialidade

considerada por si mesma enquanto exprimida. O signo correspondente é pois a expressão, não a

actualização.» (DELEUZE, 1983: 152). A actualização a que Deleuze se refere é apenas o estado

pelo qual o objecto da imagem se efectiva num espaço-tempo determinado:

É certo que os poderes e as qualidades podem ainda existir de outra maneira: enquanto actualizados, encarnados em estados de coisas. Um estado de coisas comporta um espaço-tempo determinado, coordenadas espacio-temporais, objectos e pessoas, conexões reais entre todos estes dados. Num estado de coisas que os actualizem, a qualidade torna-se o “quale” de um objecto, o poder torna-se acção ou paixão, o afecto torna-se sensação, sentimento, emoção ou até pulsão numa pessoa e o rosto torna-se carácter ou máscara da pessoa (…). Mas neste caso já não estamos no domínio da imagem-afecção, já entrámos no domínio da imagem-acção (DELEUZE, 1983: 151).

Esta definição, sobretudo a ideia de que pela abstracção das coordenadas espácio-temporais

se possibilita a abertura ao carácter afectivo do objecto da imagem, encontra paralelo na ideia de

imaginação livre, não-posicional, ou ainda neutralizante da crença, que E. Husserl coloca da

seguinte forma:

(...) a simples fantasia é presentificação sem posição, sem “exigência”. Que é uma exigência?

Temos a consciência-belief (crença). Muito bem. Mas a ela pertencem respectivamente exigências essenciais. A percepção, a percepção completa, é tambem consciência-belief e a ela apensam-se

37 Cf. noção de objecto exterior em Husserl (1928: 115). 38 «Por falta dessa desobjetivação dos objetos, por falta dessa deformação das formas que nos permite ver a

matéria sob o objeto, o mundo se dispersa em coisas díspares, em sólidos imóveis e inertes, em objetos estranhos

a nós mesmos. A alma sofre então de um déficit de imaginação material.» (BACHELARD, 1942: 13)

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exigências: tem de ter passado um tempo, um tempo deve seguir-se. Se o objecto deve existir, então deve também, primeiro que tudo, haver a possibilidade de um desdobramento temporal (HUSSERL, 1928: 186).

Não tencionamos identificar fantasia com imaginação livre, apenas notar que a condição de

possibilidade de ambas, assim como da manifestação da imagem-afecção, é a abstracção de uma

situação espácio-temporal definida. Esta abstracção não pretende simplesmente deixar fora de

campo o espaço-tempo objectivo, pretende mesmo substituí-lo. Ao fora-de-campo resta então

tornar-se extensão infinita do dentro-de-campo: «(...) a (imagem) de um campo de trigo que se

torna ilimitado, “imensidade amarela reluzente”.» (DELEUZE, 1983: 170).

Uma vez definida a forma como se pretende operar o enquadramento, procuramos analisar

o que ocorre no seu interior:

O grande plano não é uma ampliação e, se implica uma mudança de dimensão, é de uma mudança absoluta que se trata. De uma mutação do movimento, que deixa de ser translação para se tornar expressão (DELEUZE, 1983: 149).39

39 Cf. José Gil (1996: 15): «Na escala das pequenas percepções tudo muda, o repouso torna-se movimento, e o

estável, instável.»

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b) Zoom e transparências: profundidade

Zoom-out

O zoom-out é utilizado com o intuito de revelar progressivamente ao espectador o espaço

audiovisual que «o envolve». Idealmente, o conceito da obra indiciar-se-ia ao se completar o zoom-

out, uma vez que só nesta altura o espectador se conscientiza do referente até então abstraído pela

expressividade da imagem - os materiais que comummente constituem o espaço habitado (cf.

Figura 2). Neste sentido, a última fase do zoom-out tem uma maior componente conceptual e

narrativa latente. Por ter este efeito de retroacção na leitura da obra, teorizar o zoom-out serve-nos

para reflectir nas questões do post-pré-verbal, que José Gil expõe como condição da imagem-nua:

porque embora esta se dê por uma atitude perceptiva antepredicativa, a tomada de consciência do

seu sentido de abertura ao possível depende de uma acção retroactiva da linguagem verbal40.

Assim, pretendemos que o zoom-out sugestione primeiro uma sensação de lenta e hesitante, quase

recorrente, emersão de um meio abstracto estimulador da consciência imaginante, e que, depois,

ao desvelar finalmente o espaço da acção, ao apresentar a matéria no seu contexto objectivo,

sugestione o pensamento, a tomada de consciência sobre a percepção anterior, sobre o ter-estado-

imerso. Pelos diferentes graus de zoom-out ou de afastamento, e pelo aspecto determinante do

último zoom-out, faz-se a passagem de uma imagem-movimento de primidade a uma imagem-

movimento de secundidade. Parece-nos que, havendo uma muito menor duração desta última, o

espectador poderá perceber entre as duas situações uma relação, que constitui o todo, e ainda

assim experienciar na sua autonomia o carácter sensorial-qualitativo da primeira.

Figura 2: Tiago Jordão, ‘Planisfério’, 2014.

40 Cf. 2.b.

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Zoom-out gradual

Embora seja o zoom-out final o momento determinante de desvelamento da acção, cada um

dos planos que o antecedem é composto por um zoom-out com igual duração41, que no entanto

não abrem para uma visão geral do espaço. Estes planos vão surgindo em sequência, por

filmagens iteradas, sobrepostos em diversos graus de transparência: assim que um começa a

predominar no todo da imagem, surge outro que se lhe sobrepõe, e assim sucessivamente (cf.

Figura 3). O seu aparecimento e desaparecimento é feito gradualmente, por variação regular de

opacidade. Chamamos a estes planos encadeados, pelos quais se faz o desvelamento, desde o

começo e ao longo de grande parte da acção.

Figura 3: Tiago Jordão, ‘Natureza Interior’, 2013.

Há momentos em que algum destes pára sem que se note imediatamente o surgimento do

movimento seguinte. A razão disto não é totalmente clara, mas interessa haver momentos de

quase paragem, de sensação de paragem, em que o espectador possa quase firmar a matéria na

imagem e experienciar fugazmente a possibilidade de aí permanecer. A percepção destes

momentos depende dos graus de transparência utilizada, e estes dependem sempre do ecrã

durante a montagem e do projector durante a exibição. Em Planisfério (JORDÃO, 2014) este

recurso passou a ser mais subtil: pretendíamos que sugestionasse apenas uma leve sensação de

41 A duração máxima do zoom da câmara utilizada é 25seg., e alguns segundos de imagem parada se necessário.

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retenção da profundidade, uma momentânea protensão na firmação da imagem.

Acerca do zoom na teoria da imagem-afecção, importa-nos a ideia de «grandes planos

fluentes»:

O découpage afectivo, por sua vez, procede por aquilo a que o próprio Dreyer chamava “grandes planos fluentes”. É sem dúvida um movimento contínuo pelo qual a câmara passa do grande plano ao plano médio ou geral, mas é sobretudo uma maneira de tratar o plano médio como grandes planos, por ausência de profundidade ou supressão da perspectiva. Agora já não é o plano aproximado mas antes qualquer plano que pode ganhar o estatuto de grande plano: as distinções herdadas do espaço tendem a desvanecer-se (DELEUZE, 1983: 166).

A função abstractiva do enquadramento torna-se assim com o zoom-out mais eficaz, neste

caso apenas em relação às coordenadas espaciais. No entanto, não diríamos que estes planos

anulem a profundidade: embora consideremos que suprimam a perspectiva linear determinante

de uma espacialidade efectiva, interessa que os planos em zoom-out provoquem no espectador a

sensação de um lento e ritmado emergir de uma profundidade substancial. Sugerimos que esta

profundidade seja o «espaço qualquer», constituinte do qualissigno próprio do afecto das

matérias:

Um espaço qualquer não é um universal abstracto, em todo o tempo, em todo o lugar. É um espaço perfeitamente singular, só que perdeu a sua homogeneidade, isto é, o princípio das suas relações métricas (...), pelo que as ligações podem fazer-se de uma infinidade de maneiras. É um espaço de conjunção virtual, captado como puro lugar do possível (DELEUZE, 1983: 169).

Por fim, há que notar a acção das sobreposições em transparência em conjunção com os

movimentos de zoom. São elas que, ao pôr em comunicação movente as várias camadas materiais

pregnantes referidas em 3.b., constituem os micro-movimentos intensivos referidos a seguir.

Sobreposições em transparência

As sobreposições de planos constituem, a nível conceptual, um análogo da multiplicidade de

momentos que pela percepção possibilitam a formação de uma imagem. Surge aqui uma questão:

se na percepção efectiva, a que Husserl chama de completa, a recorrência de subtis variantes

constitui a integridade da imagem que se dá à consciência, como encarar o facto de que no

trabalho audiovisual, ao explorar o mesmo princípio, o resultado seja frequentemente o oposto

de uma imagem íntegra, isto é, uma imagem difusa que pretende sugestionar a extrapolação para

outras imagens por via da imaginação? É que da recorrência de subtis variantes que, na percepção

em geral, ocorrem temporalmente, resulta uma síntese cuja fidelidade ao objecto é maior quanto

maior o tempo de observação, mas que nem por isso traduz uma ideia exacta deste tempo. Estas

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Abschattungen (ou Adumbramentos) seguem-se umas às outras na duração da percepção, mesmo

quando não há movimento algum quer do objecto da percepção quer do ser que percepciona

(HUSSERL, 1928: 179). No caso da acção decorrente nos vídeos, dá-se uma outra situação, algo

paradoxal: a sequência de sobreposições em zoom dá-se necessariamente no tempo e constitui um

ritmo regular, mas precisamente ao dar-se em sobreposições tende a chamar a atenção do

espectador para vários «momentos» de profundidade no mesmo espaço-tempo da imagem

audiovisual. Entre o plano actual e a expectativa do seguinte, na indefinição da passagem de um e

do surgimento do outro, dá-se a adesão antecipativa do espectador, preenchendo algo que não

deixará de aparecer, mas cujo aparecimento ainda assim solicita participação. É esta a natureza do

carácter difuso da imagem, pelo qual procuramos dar à experienciação do filme a sua própria

espácio-temporalidade:

Dir-se-á que estes movimentos são cegos; que a sua instantaneidade define, precisamente, a mutação do olhar; que são, portanto, inanalisáveis. (...) Nestes instantes caóticos em que oscila, o olhar não vê o nada ou o vazio, mas um horizonte de ausência e as suas transformações qualitativas - alterações do homogéneo na intensidade, sempre acrescida, do neutro onde lutam e se fundem a fuga das formas e o apelo de uma nova presença (GIL, 1996: 136).

As sobreposições são assim um recurso para provocar a sensação de estar em imersão,

imerso, e depois em emersão: sobrepondo filmagens da mesma matéria em diferentes graus de

zoom procuramos criar profundidade adentro da matéria. Sendo que o zoom da câmara estará

sempre limitado à superfície, este recurso procura contornar a impossibilidade de se «entrar» na

matéria. Neste aspecto, a câmara sofre as limitações da visão, sendo que não é na filmagem, tal

como não é na visão42, que se reúnem as condições para o sugestionamento da rêverie, mas sim na

dinâmica da montagem - ou da imaginação, seguindo a mesma analogia. No entanto, é

importante notar que, segundo nos parece, a possibilidade da rêverie nasce do contacto com uma

imagem na qual se complementem a máxima simplicidade e a maior pregnância.

Se a sobreposição «fluida» de camadas resulta numa estética do difuso que poderia sugerir

uma interpretação algo genérica43 da ideia de rêverie, procuramos responder a este problema

escolhendo filmar os materiais mais comuns, constituindo tal expressão por imagens das matérias

que na nossa vivência diária tendem a ser secundárias à intenção da nossa percepção, e portanto

42 «Olhar - não ver, unicamente - é dizer as coisas - não ainda nomeá-las - , construindo um continuum

articulado na visão maciça; é fazer irromper movimentos impercetíveis entre as coisas, juntá-las em unidades

quase-discretas, amontoados, aglomerados, tufos, abrindo na paisagem brechas imediatamente colmatadas pelas

pequenas percepções que compõem as articulações insensíveis» (GIL, 1996: 52). 43 Já todos vimos a representação do sonho acordado por meio de um certo apagamento da imagem, em

sobreposições, em enevoado, etc.

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insuspeitas do seu potencial para a rêverie.

Relativamente aos dois estados de espaço qualquer referidos por Deleuze, qualissignos de

desconexão e de vacuidade, que estão implicados um no outro, importa testar algumas das suas

características com os recursos visuais do trabalho. Relativamente ao primeiro:

(...) “ela (a fragmentação) é indispensável se não se quiser cair na REPRESENTAÇÃO. Ver os seres e as coisas nas suas partes separáveis. Isolar essas partes. Torná-las independentes a fim de lhes dar uma nova dependência.” (...) É como se o espírito esbarrasse em cada parte como num ângulo fechado, mas gozasse de uma liberdade manual na ligação das partes (DELEUZE, 1983: 168).

Interessa o uso da fragmentação como evitamento da lógica da mimese, propor ao

espectador que efectue as suas próprias ligações entre os planos. Mas poder-se-á considerar que

existe fragmentação ou desconexão nos trabalhos mais recentes do curso? É certo que cada plano

enquadra uma porção de superfície, mas sendo eles postos em comunicação directa numa mesma

sequência pelas constantes sobreposições, o espectador já não terá de os ligar, mas sim de fazer a

sua síntese segundo o ritmo da imagem; resta a hipótese de que também por esta operação de

síntese se possa superar a simples reprodução do visível:

Com efeito, a ligação das partes vizinhas pode fazer-se de muitas maneiras, e depende de

novas condições de velocidade e de movimento, de valores rítmicos que se opõem a toda a

determinação prévia (DELEUZE, 1983: 168).

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c) O Som enquanto qualidade material

Num dos primeiros trabalhos do curso, Natureza Interior, o som foi experimentado enquanto

ampliação do som produzido pela interacção humana com os objectos: o ranger da madeira, o

raspar do cimento ou do azulejo, o roçagar dos tecidos, etc. A estes sons juntavam-se por vezes

sons de ambiente: um riacho, vozes, uma máquina. Desde cedo os sons foram manipulados para

tentar obter a sonoridade de certo carácter entrevisto nos materiais e que transcendiam o seu som

natural: uma certa extensão de um ranger para além da sua duração, um certo engrossar dos

tecidos, um certo agudizar dos metais. O objectivo então era o de «dilatar» a percepção dos

materiais para um outro espaço-tempo, não-objectivo. Em EX5_Final (JORDÃO, 2013), todos

os sons resultavam de diferentes manipulações do som de um frigorífico: pretendíamos dar ao

espectador uma expressão diferente do mesmo som consoante a imagem da matéria que o

acompanhasse, ou seja, o som como que «filtrado» por cada material; em A Mancha (JORDÃO,

2013), alguns sons procuravam reforçar certos simbolismos visuais, outros reverberavam para

criar a sensação de espaço «dentro» das matérias - estes, pela artificialidade da manipulação, eram

menos subtis, empobreciam a imagem porque diminuíam as metáforas. Em Planisfério

procurámos uma outra via: filmando um só material, o estuque no tecto do quarto, tentámos

primeiro sonorizar esses planos com sons de areia, de neve, de espuma, de grandes rochas, etc,

até confirmarmos que as possibilidades de um som de material justaposto a uma imagem de

material redundavam nas características físicas do material. Mesmo modificado, o som retém

ainda algo da sua natureza física, e manipulá-lo ao ponto de apagar os vestígios desta natureza

seria um contra-senso, pois se se parte do som do material e se elimina o que o identifica como

aquele material, o que resta é um som sem propósito.

O objectivo é extrapolar a partir da materialidade recorrendo a uma sonoridade feita de três

componentes: algo da cadência do movimento dos planos, algo ainda associável às propriades

físicas da matéria, e algo do afecto a que o material apela; a primeira componente responde a uma

necessidade de consistência da montagem, enquanto que as outras duas respondem ao intuíto

desvelar a qualidade material. Assim, após experimentarmos com vários sons em Planisfério,

optámos pelo som do ronronar de gatos, gravado de muito perto; estendido ligeiramente para o

acertar com o ritmo de zoom e de sobreposição dos planos. Cortámos alguns agudos para o fazer

ressoar como grandes sólidos pedregosos, procurando sempre manter algo da qualidade de

respiração do ronronar, tratar o som da matéria como se fosse um corpo, um organismo que se

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anima de dentro44, como diríamos que o faz a terra, a água, o fogo ou o ar. O desafio desta

utilização do som está em encontrar o que, integrando aquelas três componentes, corresponda

ainda à matéria usada como motivo da obra. As possibilidades são inúmeras, mas o som a

encontrar e a moldar é muito específico. Foi com este intuíto que explorámos o som em Cinestesia

de um Quarto.

O filme é constituído por três fases, não explicitadas na versão final: i. provação, ii.

convalescença, iii. aquietação. Para cada fase há um movimento de câmara que considerámos

adequado à acção: zoom-in, travelling frontal e zoom-out, respectivamente. De forma bastante literal,

imersão, dilação e emersão (cf. Figura 4).

Figura 4: Tiago Jordão, ‘Cinestesia de um Quarto’, 2016.

O zoom-in poderia referir-se ao que numa doença de tipo viral corresponderia à fase de

incubação, mas neste caso pretendemos a alusão mais geral a qualquer situação de adversidade

com repercussões físicas e/ou psicológicas; o travelling, encostado ao tecido, pretende remeter

para uma situação de errância ou de atravessamento em dilação, ainda adversa, que pela sua

duração e repetição irregular evoque um estado de inquietação, de deriva em falta de solidez; o

zoom-out pretende transmitir a emersão, para um estado de tranquilidade e de claridade,

gradualmente, da matéria representada em abstracto para o espaço representado na sua

concretude.

Nos filmes anteriores explorámos o potencial de um só movimento para obter o efeito

pretendido. Neste filme, o recurso aos três movimentos diferentes deve-se ao facto de haver uma

dimensão narrativa mais preponderante: onde antes havia uma acção, algo que se dava e propunha

ao espectador uma espácio-temporalidade situada na dimensão material da imagem, há agora uma

participação do tempo no andamento narrativo, para além do tempo das qualidades materiais.

Cada fase da narrativa implica o seu recurso audiovisual para incorporar a temporalidade própria

da imagem-movimento correspondente - zoom-in para a imersão, travelling para a dilação, zoom-out

44 Talvez se possa especular aqui uma vertente sonora da imagem-afecção de corpo (DELEUZE, 1983: 150), de

tipo intensivo.

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para a emersão -, e a sequência das fases implica uma temporalidade geral própria da narrativa,

que de certa forma articula as referidas temporalidades qualitativas na duração total do filme.

Poder-se-á perguntar os motivos para termos introduzido uma dimensão marcadamente

narrativa após um longo período de produções em que procurámos aproximar o espectador da

experiência da imagem em si mesma. A resposta não é clara, e a mudança de posicionamento

contraria a univocidade do propósito inicial, além de ser talvez temporária.

Embora o fenómeno da imaginação material tenha a sua natureza própria e faça parte da

vida mental em condições normais, houve interesse em explorar os efeitos das influências que o

estado de doença pode ter na actividade imaginante como forma acesso a uma modalidade menos

subtil deste tipo de imaginação; acima de tudo, procurámos explorar uma interpretação

audiovisual da imaginação material quando valorizada por este estado. Tal valorização distancia

ainda o resultado do nosso objectivo inicial, em que procurávamos explorar a valorização pelos

estímulos do próprio material - e não pelos de uma consciência inquieta - para a actividade

imaginante:

São esses princípios contrários que a imaginação recobre com imagens. Toda alma irritada leva a discórdia a um corpo febril. Está então disposta para ler, nas substâncias, as imagens materiais de sua própria agitação (BACHELARD, 1948b: 50).

Ainda assim, trazer a participação de um estado psico-fisiológico para a valorização da

imaginação material teve a vantagem de sugerir a exploração da imagem de cada material

consoante a sua adequação a cada fase desse estado psico-fisiológico: a parede, ou o cimento

solidificado, na sua rígida densidade, foi o material escolhido para uma valorização da

adversidade; o edredom, ou a fibra diáfana do tecido, na sua maciez e leveza, foram escolhidos

para uma valorização da dilação; o vidro, na sua fria transparência cristalina, foi o material

escolhido para a valorização da tranquilidade alcançada.

Tais sentidos atribuídos aos materiais não escapam inteiramente a uma causalidade

psicológica, mas teremos sucedido se pelo menos algo da causa material participar na imaginação

do espectador.

Procedendo das conclusões tiradas da experimentação sonora em Planisfério, procurámos

evocar a qualidade de cada um dos três materiais apresentados: cimento, tecido e vidro, de acordo

com as valorizações atrás referidas.

O cimento deve impôr-se como um obstáculo. Se a imagem em movimento leva o

espectador a «atravessá-lo», a «entrar» por ele, fá-lo não sem o custo de um certo atolamento na

densidade da sua rigidez, para a qual contribui uma monotonia tornada evidente pelo

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alongamento da sequência45. A este sentido corresponde o carácter pedregoso do ronronar de

gatos, cujo som foi utilizado no trabalho anterior. Desta vez houve menos manipulação do som:

nenhum reverb, e menos corte nos agudos para preservar o som rumorejante da respiração; em

geral, foram utilizadas menos iterações do som na mistura. O carácter cadenciado da respiração,

de um ronco fino, húmido e quente, procura remeter para a dimensão orgânica ou corpórea de

algo que vive, sem no entanto ser tão óbvio que se torne numa espécie de zoo-animismo sonoro.

De facto, importa esta conotação anímica da matéria através som, mas, não sendo assimilada pelo

seu aspecto propriamente físico, dá-se uma atribuição arbitrária de sentido por sobreposição do

som à imagem, não se realizando bem a valorização da qualidade material. O som deve propiciar

um afastamento do referente da imagem sem que a dimensão anímica se sobreponha e o elimine,

sob pena de se perder o estímulo material original para a emergência poética.

Procurámos nas duas fases seguintes pôr em prática o mesmo princípio de organicidade pela

respiração. Para a sequência do edredom, foram gravados dois sons: um som de fundo, de

revolvimento do material, e um som mais presente de respiração oral através das fibras do tecido.

O primeiro, para evocar uma certa agitação, um constante enrolar roçagado46; o segundo foi

gravado e trabalhado na mistura para que se ouvisse mais do tecido respirado - das fibras à

passagem do ar - do que da própria respiração. O resultado final apresenta alguns problemas: a

cadência da respiração, e o seu som, mesmo pelo tecido, reforça na imagem um certo aspecto de

isomorfia em relação ao mar47; a memória profunda que temos da respiração tende desviar para

as qualidades humanas a percepção dos referentes materiais do tecido.

Para os planos da terceira fase foram gravadas inspirações e expirações nas aberturas de um

pote e de um globo de vidro fino, procurando o mais possível captar as suas vibrações hialinas

em detrimento dos sons bucais; foi gravado, como fundo, o som da ponta de um dedo

deslizando pela abertura circular do pote; foi adicionado, também como fundo, o som contínuo e

monotónico de uma harmónica de vidro. Também daqui resultam alguns problemas: foi possível

tornar presente o carácter vítreo da respiração, mas com a rigidez de um arrastamento, faltando-

lhe leveza; o som do deslizar remete para a circularidade, e embora seja consistente com o ritmo

da recorrência dos planos, pode contrariar a direcção do seu movimento. Em geral, a dialéctica

45 O carácter algo hipnótico desta sequência não é acidental, mas não é também o objectivo final do trabalho:

deve servir o propósito de reter o espectador num estado de abstracção, pô-lo em situação com a imagem. 46 Foi necessário algum trabalho de manipulação para eliminar aspectos de uma sonoridade semelhante à

ebulição, que, embora consistente com sensação de agitação, afastava-se demasiado do referente da imagem. 47 O primeiro trabalho do curso, Fugas (JORDÃO, 2013), continha várias experiências de isomorfismo que em

geral resultavam no empobrecimento das metáforas, pelo que a sua utilização passou a ser evitada nos trabalhos

seguintes.

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entre a natureza física e as nuances qualitativas do material talvez não se realize sem obstáculos

na segunda e terceira fases.

No plano final, que apresenta o quarto com todos os elementos materiais no seu contexto

quotidiano, deixámos o som ambiente residual gravado no espaço. Neste plano, a imagem deve

ser o mais possível identificada com o seu referente objectivo.

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5. Perspectivas

Gostaríamos de começar pelas nossas intenções primeiras, vagas como eram, e tentar

compará-las com os resultados obtidos, especialmente o trabalho prático.

Antes de se começar a filmar e a montar, antes de se dar uma direcção aos motivos e às

ideias, o potencial imagético por manifestar encerra também uma grande ingenuidade da

possibilidade. Excepto quando sentimos sem dúvida que o trabalho realiza essa possibilidade, ela

permanece como o sentido ainda não encontrado da oportunidade, independentemente da

qualidade do nosso falhanço. Mas algumas intenções tão abertas são que não se descobre o que

reclamam senão quando se começa a trabalhar. Parece-nos que as nossas são assim, e que todo o

esclarecimento sobre o tema, quer a partir do trabalho prático quer do pensamento e da escrita, é

apenas uma construção sobre o apelo inicial à imaginação. Mesmo quando comparamos o efeito

dos versos referidos por Bachelard com o carácter sugestivo das suas descrições do acto

imaginante, ficamos com a sensação de que raramente as expectativas são atingidas. Talvez aí

falte o todo do poema, sem descrições, ou o contexto e a disposição, eventualmente a

naturalidade da língua original. Mas talvez a promessa da imaginação seja mesmo maior antes de

ser expressada, e a fenomenologia sirva para dar uma espécie de certeza objectiva do valor deste

tipo de vivência íntima tão difícil de fixar. Foi realmente porque sentimos nas nossas imagens

imanentes este valor que procurámos manifestar a sua vocação através do audiovisual. Tudo o

que sabemos sobre elas veio depois.

Mais simplesmente, sentimos que havia algo benéfico, algo positivo nestas imagens, que nos

reconfortava. No capítulo final de A Terra e os Devaneios da Vontade, Bachelard (1948a: 311) refere

uma situação notável da terapia de Robert Desoille:

Robert Desoille propõe, por exemplo, que um sujeito aproveite-se de uma fenda para “entrar” nos rochedos, na menor clivagem para “esgueirar-se” dentro de um cristal. Subitamente, o sujeito que faz esse esforço imaginário para entrar numa intimidade da matéria dura descobre no próprio psiquismo, mas sempre na forma de uma imagem, uma espécie de concreção moral, um quisto moral, que será preciso dissolver, dividir. Ao descer pela imaginação numa coisa, o sujeito desceu em si mesmo. Porém nosso resumo didático não expõe bem a situação com imagens, e é preciso um certo número de sessões de sonhos acordados para experimentar como se pode colocar um sujeito em situação com imagens.

Não tendo a pretensão de entrar na complexidade desta psicoterapia, pareceu-nos no

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entanto que esta passagem nos dizia algo sobre os motivos da nossa vontade reconfortante48 de

«entrar nas coisas». Depois, o pressuposto terapêutico de se substituir pelas imagens o peso da

reflexão, de se agir através de si mesmo com as imagens, predispondo-se à «ingenuidade»

necessária para participar pela imaginação, estava em sintonia com o nosso propósito de

proporcionar ao espectador um contexto para a sua própria produção de imagens49.

Há um terceiro aspecto, essencial à psicoterapia de Desoille, que gostaríamos de ter

desenvolvido. É o princípio da verticalidade, segundo o qual o paciente poderá descer ou subir

em si mesmo consoante o sentido da situação em que se situe pela imaginação50. É a partir deste

princípio, dir-se-ia na vertente poética da sua psicologia, que Gaston Bachelard constata o

acontecimento a que chama de instante poético. Esta ideia acompanha a sua obra, e remete para a

mobilidade vertical possibilitada numa ambivalência de sentido, no sentimento que não se

localiza exactamente num passado nem num futuro:

Deseja-se um estudo de um pequeno fragmento do tempo poético vertical? Que se tome o instante poético do pesar sorridente, no momento mesmo em que a noite adormece e estabiliza as trevas, quando as horas mal respiram, quando somente a solidão é já um remorso! Os pólos ambivalentes do pesar sorridente quase se tocam. A menor oscilação substitui um pelo outro. O pesar sorridente é, portanto, uma das mais sensíveis ambivalências do coração sensível. Ora, com toda evidencia, ele se desenvolve num tempo vertical, já que nenhum dos dois momentos – sorrir ou pesar – é antecedente. O sentimento é aqui reversível ou, melhor dizendo, a reversibilidade do ser é aqui sentimentalizada: o sorrir lastima e o pesar sorri, o pesar consola (BACHELARD, 1970: 187)

Uma das questões mais pertinentes para se pensar a produção audiovisual de imagens

poéticas é então a do tempo poético, mas as nossas reflexões acerca da temporalidade das

imagens audiovisuais não produziram até agora uma conclusão, ou mesmo um ponto de vista

consistente sobre as relações que será possível estabelecer com a natureza do instante poético

bachelardiano. Num primeiro momento, dir-se-ia talvez que a comparação tem pouco

fundamento, já que a imagem em movimento e o som estão implicados numa duração, e os

nossos trabalhos em particular são fluxos contínuos de imagens; para subtrair as nossas imagens

48 Cf. Desoille (1961: 42): «Si les formes sont absentes de ces représentations, celles-si sont parfois très riches

quant aux sentiments vécus: impression profonde de paix et sérénité, disposition à une extrême bienveillance,

etc.» 49 A terapia do sonho acordado dirigido visa a que o paciente substitua pelas imagens a pessoa, o objecto ou a

situação de cuja necessidade de enfrentar não é sequer consciente, para que no acto imaginativo, que se subtrai à

consciência das causas da sua angústia, possa corrigir o seu comportamento perante a generalidade de situações

reais subjacentes à neurose (DESOILLE, 1961: 39-41). A este nível, não fazemos qualquer relação com o nosso

trabalho: gostaríamos de obter imagens bem menos implicadas com qualquer peso do ser. 50 Como a ideia sugere, trata-se de descer ao passado mais profundo ou subir ao mais luminoso sentimento do

porvir (DESOILLE, 1961: 31-2). Cf. com a ideia da amplidão psíquica da casa completa - da cave ao sótão - em

Bachelard (1957: 23-54).

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às coordenadas espácio-temporais do referente, procurámos a espácio-temporalidade própria da

nossa expressividade. Ainda assim, porque considerámos as nossas imagens como numa extensão

infinita do mesmo espaço - um espaço que quisémos interior à matéria -, parece-nos relevante vir-

se a investigar sobre o que possa ser o seu carácter temporal: uma sequência ou conjunto de

instantes, uma dilação, uma estase?...51

As imagens cuja intensidade retemos ao sermos surpreendidos pela força de um pormenor -

as sombras texturadas no interior de uma fissura, o reflexo perdido numa opacidade cerosa -,

parecem concentrar todo o seu valor num só momento52, o qual, embora de efeito talvez

indiferente à duração do olhar, nos solicita a contemplação demorada. Mas aqui referimo-nos a

experiências do quotidiano, momentos ou memórias de situações na vida afectiva do mundo.

Quanto ao audiovisual, poderá passar-se que as sequências de planos em sobreposição resultem

para o espectador na tendência para uma síntese de momentos de pregnantes, ou para uma

sensação de contínua imersão que, a nosso ver, não corresponde naturalmente com o estado de

suspensão vertical a que Bachelard alude.

Ficou também por discutir uma questão derivada desta: a possibilidade de se produzir uma

ambivalência material53 através do audiovisual. Algo que poderia ser pensado primeiro por

confronto com o carácter dual do som no nosso trabalho: retomando o exemplo de Cinestesia de

um Quarto, o som coloca o espectador constantemente entre as dimensões concreta e afectiva do

material. Trata-se não de uma ambivalência material - porque não origina duas tonalizações

distintas da mesma propriedade material -, mas sim de uma ambivalência de situação com a

imagem. Por este motivo, não a confrontámos ao longo da dissertação com a ambivalência

segundo Bachelard, mas cremos que seria de grande interesse reflectir sobre o tema caso

venhamos a explorá-lo em novos trabalhos.

Devemos terminar com a questão mais estimulante: da percepção à imaginação, o que passa?

E o que passa a ser? No primeiro tópico do terceiro capítulo, quisémos dar um resumo possível

das relações entre a palavra da poesia e a imagem audiovisual. Quisémos salvaguardar o potencial

das nossas imagens, ou ao menos questioná-lo. Mas o problema aparece antes, quando

começamos a notar a insistência com que Bachelard secundariza o olhar - e, em geral, a

51 Eventualmente, uma leitura do segundo volume de Deleuze, A Imagem-Tempo, poderá orientar-nos. 52 Incluir diferença fundamental entre instante e momento. 53 A tonalização que oscila entre duas matérias unidas, ou entre duas forças da mesma matéria. Bachelard

desenvolve sobre a lama, equilíbrio instável entre a água e a terra, e que tem a sua expressão máxima quando

basta imaginá-lo a partir das propriedades de uma só delas: «Não há devaneio sem ambivalência, não há

ambivalência sem devaneio. Ora, a água é sonhada sucessivamente em seu papel emoliente e em seu papel

aglomerante. Ela desune e une.» (BACHELARD, 1942: 109)

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percepção pelo sensível -, quando Sartre (1943: 620-1) afirma uma exclusão mútua entre

percepção e imaginação. O nosso interesse pelas imagens valerá sempre, mas isto nada nos garante

em relação a expressá-las.

Concordamos com a ideia de que o preenchimento dos dados sempre incompletos da

percepção não equivalha à produção de uma imagem; podemos concordar inclusivamente que não

haja qualquer preenchimento: «O estudo da imitação nos levou mais a crer que a imagem é uma

significação degradada, decaída no plano da intuição. Não há preenchimento: há mudança de

natureza.» (SARTRE, 1940: 49). Sartre entende que as qualidades das coisas que nos rodeiam não

pressupõem uma modalidade perceptiva especial, nem apelam a certa faculdade imaginante, mas

que constituem intrinsecamente as coisas: as coisas não são um suporte de qualidades, elas são as

qualidades. Como tal, a totalidade qualitativa constituida pelas coisas é-nos acessível a partir dos

sentidos, não como um acto de imaginação mas como um conhecimento vivencial tácito

(SARTRE, 1943: 209-11). De resto, o autor rejeita a ideia de que possamos projectar sobre as

coisas, para além das qualidades assim vividas, a nossa valorização (SARTRE, 1943: 624).

Num comentário ao livro A Água e os Sonhos, Sartre subscreve a importância da «psicanálise

das coisas» proposta por Bachelard, mas recusa o seu método por considerar que não permite

discernir entre o que é valorização subjectiva, da qual depende a imaginação, e o que são os

valores materiais em si, acessíveis a todos nós. O problema central, segundo nos parece, e

seguindo a análise de J. C. Araújo, é que Sartre e Bachelard têm concepções essencialmente

diferentes não só da imaginação mas também do que deve ser o interesse do seu estudo:

Segundo Bachelard, Sartre, em L’Être et le Néant, e de um modo contundente, faz do viscoso, ou do pegajoso, um objecto de estudo filosófico (...). Mais, “Sartre desmascara o viscoso”, escreve Bachelard. Não obstante, a relação eu / coisa notificada pelo “existencialismo da matéria real” difere, por via da dinamogenia material das imagens, da “doutrina da matéria imaginada”, que considera essa mesma relação (ARAÚJO, 2000: 273).

Bachelard defende que a imaginação trabalha antes do olhar (BACHELARD, 1942: 5),

orientando o nosso interesse, mas devemos considerar ainda a função fundamental que Sartre

identifica na percepção para reflectirmos sobre a sua participação num sequente acto

imaginante54: não nos parece possível que se abandone totalmente a imagem reprodutiva, dos

sentidos, em favor da imagem produtiva, da imaginação. Se a expressão poética dos cristais, do

mel ou dos nós da madeira nos propõe o sentido da sua novidade, é porque antes os

experienciámos com os nossos sentidos e o nosso entendimento - a certa altura, o contacto com

54 Embora Sartre (1943: 621) afirme «To perceive does not mean to assemble images by means of sensations»,

tal não implica a impossibilidade de participação dos efeitos da percepção no acto de imaginação.

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eles nos formou o ser. A tonalização poética, numa certa modalidade da consciência que já não se

prende à facticidade, moveu-nos ao reconhecimento da novidade nestes materiais. E se

concordarmos que a imagem poética subrai à sua manifestação qualquer aspecto sensível, parece-

nos que a sua nova natureza dependerá sempre, no sentido da sua dinâmica, da expressão

comunicada pelo estímulo original. Num capítulo sobre as relações entre percepção e imaginação,

Araújo (2000: 234) refere a necessidade, para experiência da rêverie, de não se «perder o universo

do sensível», o que pode acontecer «de dois modos: ou por “deslize” no sonho [nocturno] (...), ou

mediante uma pouco fértil “dispersão” em ténues representações e / ou “caprichos da alma”.»55.

E, num raro exemplo, Bachelard explicita o sensível no ponto de partida para a imaginação

dinâmica:

Uma dialética de torção e de fuso livre fica visível nos jogos da madeira escura e da madeira clara. Como contemplar o desenho dessa madeira íntima? Vamos ver nele apenas belas imagens, apenas uma associação bem feita das fibras? Não, para quem trabalhou um pouco a madeira, o painel de carvalho é um grande quadro dinâmico: fornece um desenho de energia. Então, entre as áreas externas da madeira tenra e pálida e o nó duro e brunido, há mais do que um contraste de cores. Vive-se aí, na própria ordem da imaginação material, uma transposição da teoria dialética da forma e do fundo. A matéria dura é aqui dinamicamente contemplada como um “núcleo material resistente” sobre um “fundo material de massa mole”. (...) queríamos aqui demonstrar que essa dialética do duro e do mole é direta mesmo quando simplesmente reconhecida pelos olhos (...). Através da imaginação material e dinâmica, vivemos uma experiência em que a forma externa do nó suscita em nós uma força interna que deseja a vitória. Essa força interna, ao privilegiar vontades musculares, dá uma estrutura a nosso ser íntimo (BACHELARD, 1948a: 43-4)56.

Há uma considerável diferença na terminologia e nas concepções entre os nossos autores.

No estado actual do nosso estudo, a presente reflexão poderia levar-nos a muitas imprecisões.

Concluiremos com uma passagem de um artigo57 escrito entre 1933 e 1934, citada por Joaquim

Carlos Araújo (2000: 231), em que Gaston Bachelard se exprime positivamente acerca da relação

visão-imaginação: «Qualquer que seja a nossa liberdade espiritual no reino das concepções

abstractas (...), não é menos verdadeiro que é com a retina que se imagina. Não podemos

55 No capítulo 3.b. discutimos a expressividade das «ténues representações» no nosso trabalho audiovisual.

Embora para o modo referido seja muito discutível falar-se em expressividade, por se tratar de um estado de

consciência e não de uma manifestação estética, seria ainda assim interessante confrontar esta crítica de

Bachelard com os nossos comentários desse capítulo. Cf. também Araújo (2000: 104). 56 Araújo (2000: 233-4) refere, segundo Paul Ginestier (1959-), um princípio deformador na concepção

bachelardiana da imaginação. É uma leitura que favorece os nossos propósitos, mas talvez fosse mais rigoroso

chamar-lhe de princípio aformador, uma vez que a Bachelard importa sobretudo um aprofundamento imagético

interior à matéria, a partir da sua densidade, da sua substancialidade, da sua mobilidade, etc. Cf. também a

descrição de José Gil (1996: 123-32) do olhar o fogo, das influências alternadas da forma e da matéria para o que

ele chama de intensificação (da matéria, das sensações, da forma estética). 57 Artigo compilado em Études, recueil posthume de cinq textes présentés par G. Canguilhem, publicado pela

editora Vrin em 1970.

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transcender as condições retinianas da imaginação». Sendo o artigo quase dez anos anterior ao seu

primeiro volume sobre a temática, e repassando pelos volumes seguintes o desenvolvimento do

pensamento do autor, temos algumas reservas quanto à constância da afirmação, mas serve ainda

para reforçar a importância de revermos o nosso trabalho sob uma análise mais comprometida

com o influxo do sensível ao imaginável:

A imaginação, na sua inefável necessidade de seduzir, trabalha sobre as metamorfoses do

material sensível. A cor e os volumes, a harmonia das massas, a superfície e a geometria das formas, dão alento e suscitam, à partida, a capacidade imagética do sujeito imaginante. Por elas, o devaneio pode tornar-se realmente profícuo. Tal acontece quando o sujeito da consciência imaginativa descobre este último, surpreendente, na sua realidade onírica. E à medida que o compreende [do ponto de vista material], a sua razão rejubila, alegra-se com isso. Uma imagem, por mais bem ensaiada [formada] que seja, pouco mais será que um simples jogo formal se não contemplar, ou se, no mínimo, não se adaptar a uma matéria determinada [ontologicamente demarcada] (ARAÙJO, 2000: 70).

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Percepções - Estética e Metafenomenologia [trad. port. Miguel Serras Pereira], Lisboa: Relógio D’Água Editores; 330pp).

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Apêndice: trabalhos audiovisuais realizados no âmbito do mestrado

JORDÃO, 2013 Jordão, Tiago Lehuby (1985-). Fugas [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

https://www.youtube.com/watch?v=rVgFrGLaxTQ ________, 2013 _________________. Natureza Interior [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/naturezainterior.html ________, 2013 _________________. Sem Título [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/semtitulo.html ________, 2013 _________________. Ex5_Final [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/ex5final.html ________, 2013 _________________. 1º Vídeo-Ensaio [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/1vensaio.html ________, 2013 _________________. A Mancha [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/amancha.html ________, 2013 _________________. 2º Vídeo-Ensaio [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/2videoensaio.html ________, 2014 _________________. Planisfério [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/planisferio.html ________, 2014 _________________. 3º Vídeo-Ensaio [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/3videoensaio.html ________, 2016 _________________. Cinestesia de um Quarto [em linha]. [Consult. 18 Out. 2016]. Disponível na Internet <URL

http://www.tiagojordao.com/artemultimedia/cinestesiadeumquarto.html