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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Curso de Letras Língua Portuguesa Thiago de Melo Barbosa O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos Belém 2011

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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação

Curso de Letras – Língua Portuguesa

Thiago de Melo Barbosa

O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos

Belém

2011

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Thiago de Melo Barbosa

O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciatura Plena em Letras- Língua Portuguesa,

Universidade do Estado do Pará.

Orientador: Prof. Ms. Wenceslau Otero Alonso Jr.

Belém

2011

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Dados Internacionais de catalogação na publicação

Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA

Barbosa, Thiago de Melo

O antiverso da poesia concreta e seus reflexos. / Thiago de Melo Barbosa.

Belém, 2011.

Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em Letras – Língua

Portuguesa) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011.

Orientador: Wenceslau Otero Alonso Jr.

1. Poesia. 2. Crítica 3. Literatura – Filosofia. I. Alonso Jr., Wenceslau Otero

(Orientador). II. Título.

CDD: 21 ed. 808.1

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Thiago de Melo Barbosa

O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciatura Plena em Letras- Língua Portuguesa,

Universidade do Estado do Pará.

Banca Examinadora:

__________________________________ - Orientador

Prof. Ms. Wenceslau Otero Alonso Jr. Universidade do Estado do Pará – UEPA

_________________________________

Universidade do Estado do Pará – UEPA

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À minha mãe, meu “paimãe”, pelos anos

dedicados à luta de transmitir seu amor pelo

conhecimento aos filhos.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Dilma de Melo, por tudo e mais um pouco.

Aos importantes professores do ensino fundamental e médio, sem os quais estria longe

daqui: Tia Vitória, Prof ª. Eliani, Prof. Alexandre e, especialmente, ao Prof. Elielson,

responsável pelo meu primeiro alumbramento com a Literatura.

Aos professores da UEPA, por me ensinarem a pensar língua (Profª. Jessiléia) e literatura

(Prof. Alonso) de um modo que nunca antes sonhei pensar, por mares nunca de antes

navegados.

Ao mestre Alonso Jr., meu tri-orientador (iniciação científica, monitoria e tcc), pelos inúmeros

conselhos e nenhuma imposição.

A todas as boas pessoas que conheci no curso de Letras: “galera do subsolo”, Janaína e

Luana; “galera do rock”, Estrela, Pedro, Paola, Gih-Jéssica etc; e “as carolas”,

principalmente a Santa Sylvia da UEPA, protetora dos alunos desorganizados.

Ao Vinícius, principal parceiro literato, pelas proveitosas conversas-de-corredor e várias

trocas de referências.

À Layanne Marques, my girlfriend, pela paciência, ajuda e, especialmente, pelas essenciais

horas de relaxamento e descontração.

Ao Alan, meu primo, pelo esforço que fez para me conseguir o livro do Friedrich.

À Thamires, minha irmã, porque sei que ela vai “amar” ter o nome aqui.

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Não há verso livre, para aquele que quer realizar um bom

trabalho.

T. S. Eliot

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RESUMO

BARBOSA, Thiago de Melo. O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos. 2011.

70f. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Letras- Língua Portuguesa) –

Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011.

O trabalho centra-se na questão do “antiverso”, i.e, no discurso de “crise do verso” que no Brasil foi encetado pelos poetas do movimento de poesia concreta. Partindo disso, buscou-se entender como os poetas concretos chegaram a ideia de subversão do verso, de que maneira articularam tal teoria e como esta discussão é encenada pela poesia posterior ao movimento: pelos herdeiros da crise. Para isso, foi feita uma abordagem sincrônica de três momentos históricos, dos quais o concretismo afigura-se no centro, e os outros dois revelam o passado, com Mallarmé e Baudelaire, e o futuro, com a poesia contemporânea, do posicionamento “antiverso” levantado pela poesia concreta.

Palavras-chave: Poesia, Concretismo, Antiverso, Crise do Verso.

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ABSTRACT

BARBOSA, Thiago de Melo. O Antiverso da Poesia Concreta e seus Reflexos. 2011. 70f. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Letras - Língua Portuguesa) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011.

The present paper is centered in the question of the “anti-verse”, that is, in the

discourse of the “crisis of verse” that in the Brazil was started by the poets of the

concrete poetry movement. With this in mind, this study wanted to understand how

the concrete poets reached the idea of the “subversion of the verse”, what was the

way articulated for this theory, and how this discussion is presented by the

subsequent poetry concerning the movement by the heirs of the crisis. To do this

work, a synchronic approach was made into three historical moments in which the

concretism is in the center and the other two reveal the past, with Mallarmé and

Baudelaire, and the future, with the contemporary poetry of the point of view of the

“anti-verse” pointed by the concrete poetry.

Keywords: poetry, concretism, anti-verse, crisis of verse.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 10

2. INÍCIO DA CRISE: BAUDELAIRE E MALLARMÉ 12

2.1 BAUDELAIRE 12

2.2. MALLARMÉ 16

3. CONCRETISMO: DO VERSO AO IDEOGRAMA 23

3.1. PAIDEUMA: UMA OBSSESSÃO 23

3.2. MOVIMENTO, PROGRAMA 29

3.3. IDEOGRAMA & TÉCNICA IDEOGRAMÁTICA 35

3.4. FIM DAS UTOPIAS 43

4. RESTOS DE CONCRETO 50

4.1

4.2

5.

DELIMITANDO AS FRONTEIRAS DO AGORA

ALGUNS HERDEIROS DA CRISE

CONSIDERAÇÕES FINAIS

50

56

67

REFERÊNCIAS 69

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1. INTRODUÇÃO

A questão do verso, entrelaçada com a do metro, sempre foi de grande relevância

para os estudos literários, desde Aristóteles, que tentava classificar as obras pelo metro do

verso, até os pais da poesia moderna, Baudelaire, com seus poemas em prosa, e Mallarmé,

com o seu Un Coup de Dés.

Na Era Moderna, a preocupação com o verso deu um salto exponencial, e passou a

ocupar um lugar de destaque nas transformações formais da poesia. Inúmeros são os

nomes de poetas, alguns poetas-teóricos, que fizeram grandes experiências poéticas para

sanar essa inquietação, que Mallarmé chamou de “Crise do Verso”; tais como fez Pound,

recorrendo aos ideogramas chineses, e.e.cummings, com a fragmentação das palavras, ou

mesmo os poetas do modernismo brasileiro, que encontraram no verso livre, pouco

valorizado na época, o modo de expressar todo coloquialismo desejado.

Como espectadores e ao mesmo tempo autores desta “peça” da poesia moderna,

os poetas concretos tentaram escrever mais um ato, no qual, o verso, apocalipticamente,

teria seu fim. As pretensões do concretismo, que, diga-se de passagem, foi o último grande

movimento literário do Brasil, foram muitas, e uma delas recaia justamente na eliminação do

verso, que nada mais seria do que um signo em crise: uma forma ultrapassada que deveria

ser superada pelas experiências de vanguarda. Conforme pode-se inferir das palavras de

Décio Pignatari, no seu manifesto (que voltará a ser citado no capítulo 3), intitulado “nova

poesia: concreta”:

o verso: crise. obriga o leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude

postiça. não consegue se libertar dos liames lógicos da linguagem: ao tentar

fazê-lo, discursa adjetivos. não dá mais conta do espaço como condição de

nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo, lombar, e

não como elemento relacional de estrutura. antieconômico, não se

concentra, não se comunica rapidamente. destruiu-se na dialética da

necessidade e uso históricos. este é apenas o golpe de misericórdia da

consciência crítica: o primeiro já fora dado, de fato, por Mallarmé, há

sessenta anos atrás - §un coup de dés§. (2006, p. 67)

Toda essa postura “antiverso”, característica do concretismo, é interessante ser

discutida, pois encerra dentro de si um forte debate acerca do valor do verso para a poesia,

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e, mais especificamente, sobre os rumos desse elemento dentro daquilo comumente se

chama de poesia moderna. Fato que ocorre especialmente porque as ideias fundadoras da

“crise do verso” defendida pela poesia concreta partiram de significantes nomes desse

período da literatura, tais como Joyce, Pound, Mallarmé e Cummings, e não raras vezes são

postas pelos principais integrantes do movimento – Décio Pignatari e os irmãos Augusto e

Haroldo de Campos –, como “síntese”, ou mesmo “culminância”, de mais de 50 anos de

discussões, i.e, do final do século XIX até meados do XX.

Diante disso, o presente trabalho versará sobre esta questão fundamental dentro da

teoria da poesia concreta, acreditando que uma reflexão sobre o assunto possa ajudar a se

compreender não apenas um fenômeno que é intrínseco a essa vanguarda, mas também o

discurso de crise que permeia, com maior ou menor intensidade, quase toda a poesia

moderna. Para tanto, centrar-se-á em discorrer sobre o que levou os poetas concretos à

tese de que o verso precisava ser superado dentro do fazer poético, como eles aplicaram a

teoria na prática e de que maneira tal discussão vem sendo tratada pela poesia posterior ao

movimento.

Quanto à estrutura, o texto é composto por três capítulos conteudísticos, “Início da

Crise: Baudelaire e Mallarmé”, “Concretismo: do verso ao ideograma” e “Restos de

Concreto”, que são dispostos sequencialmente de acordo com um critério cronológico, mas

que podem ser vistos – como foram idealmente concebidos – nos moldes das estruturas

planetárias, ou atômicas, no qual as ideias da poesia concreta sobre o verso em crise

ocupariam o centro, enquanto dois planetas, ou elétrons, orbitariam esse núcleo revelando o

passado e o futuro de tais teorias. Acredito que este modo de se ver os capítulos tem valor

na medida em que diminui a quase inevitável impressão de “causa e efeito” imediato que a

disposição cronológica provoca, além de salientar que o trabalho está pautado em cortes

sincrônicos da história literária, afinal, muita coisa pode haver, e realmente há, entre uma

órbita e outra.

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2. INÍCIO DA CRISE: BAUDELAIRE E MALLARMÉ

2.1 BAUDELAIRE

Iniciar um trabalho que tem por base questões concernentes ao movimento

brasileiro de poesia concreta, com um tópico exclusivo para Baudelaire, pode parecer, para

maioria daqueles que já se dedicaram ao estudo deste movimento, algo, no mínimo, pouco

usual. Certamente, o esperado por aqueles, seria que o texto iniciasse por um dos autores

do chamado paideuma (Mallarmé, Pound, e. e. cummings1 e James Joyce) dos poetas

concretos, os quais não serão, e nem poderiam ser, esquecidos, porém aparecerão num

contexto de maior proximidade (ou conformidade) com as ideias intrínsecas do movimento,

enquanto que Baudelaire será visto como influência indireta, ou mesmo como “marco

histórico” para o que aqui chamo de antiverso da poesia concreta.

A escolha de Baudelaire como “influência” ou “marco” para qualquer atitude poética,

inevitavelmente leva à questão: de que Baudelaire se fala? Do pai da poesia moderna, do

esteta, do simbolista, do clássico, do satânico, do cristão... de qual? A vasta crítica sobre

este poeta já apontou para vários lados, e, ao que parece, a revisão desta crítica tende a

atar as pontas das discussões num único nó. Michel Hamburguer, por exemplo, tenta

explicar a origem das visões contraditórias sobre Baudelaire, numa confusão perpetrada

pelo próprio poeta ao “atribuir um significado social, ético e até religioso a preocupações que

eram, na verdade, estéticas.” (2007, p. 30), entretanto o crítico não determina nenhuma face

do escritor, antes reúne todas numa só, e lembra-nos da consciência, ou mesmo defesa,

que Baudelaire fazia “do direito que todos estamos interessados – o direito de contradizer-

se.” (2007, p. 13).

Outro ponto da revisão crítica da obra de Baudelaire – que talvez problematize

ainda mais a associação deste com os poetas concretos –, centra-se numa espécie de

desmistificação da já clássica imagem do autor como pai da poesia moderna ou como um

defensor da poesia pura. De acordo com esta ideia, as palavras de Baudelaire (1995, p.

855) sobre o artista como “especialista, homem subordinado a sua palheta como o servo à

gleba” ou como alguém que “vive pouquíssimo – ou até não vive – no mundo moral e

político”, não estariam inteiras na sua poesia, que, segundo Alfonso Berardinelli, possui uma

sintaxe

1 O nome do poeta Edward Estlin Cummings, sempre que aparecer neste trabalho será grafado como e. e.

cummings, com todas as letras em caixa baixa, tal como ele preferia e assinava seus poemas.

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escrupulosamente clássica, ao passo que os seus temas são violentamente

autobiográficos e confessionais, até atingir um autêntico exibicionismo

moral, e não rumam no sentido da depuração e da despersonalização,

como ocorrerá com os simbolistas (2007, p. 50).

Hamburguer, também procura ver a poesia de Baudelaire muito menos afeita aos

ditames de l’art pour l’art do que se costuma propalar. Contudo, não vai de encontro à visão,

também muito costumeira, do poeta cônscio do seu tempo e, o mais importante, atento as

mudanças que ocorriam na época e a (nova) posição da arte e do artista naquela sociedade:

“Mais do que qualquer outro poeta de sua época, Baudelaire tinha consciência de viver

numa civilização na qual as mercadorias assumiam o comando das coisas, dos preços, dos

valores;” (HAMBURGUER, 2007, p. 12). Tal ideia está em conformidade com o que já na

década de 1970, Hugo Friedriech, afirmava no seu livro Estrutura da Lírica Moderna.

Este é o problema específico de Baudelaire, ou seja, a possibilidade da

poesia na civilização comercializada e dominada pela técnica. Sua poesia

mostra o caminho, sua prosa examina-a teoricamente a fundo. Este

caminho conduz a uma distância, a maior possível da trivialidade do real até

a zona do misterioso; o faz de tal forma, todavia, que os estímulos

civilizados da realidade, incluídos nesta zona, possam se converter em

poéticos e vibrantes. (1978, p. 35)

As citações do parágrafo anterior abrem espaço para um dos pontos que

justificam este tópico, i.e, a ideia de que neste embate do poeta com o seu tempo há algo do

“gérmen” vanguardista que contribuirá para inúmeras experiências poéticas do início do

século passado – e talvez por isso mesmo ainda não esteja, e provavelmente nunca estará,

de todo superada a ideia de Baudelaire como pai da poesia moderna, muito mais ante ao

que afirma Michel Hamburguer: “ele conhecia os encantos de cada uma das direções que os

poetas posteriores iriam tomar” (2007, p. 13).

Desta consciência de Baudelaire sobre a poesia, ou arte de um modo geral, como

um enclave dentro de uma sociedade burguesa e tecnocrata, surge os primeiros indícios da

chamada crise da poesia moderna. O poeta, a partir de então, está ciente da impossibilidade

de praticar sua arte, o que o levará a uma procura constante, uma sempre viva necessidade

de mudança, de experimentação, uma vez que a poesia não mais se comunica com o seu

meio, torna-se necessário encontrar novos caminhos.

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Dentro desta perspectiva de crise, chega-se ao ponto culminante de interesse deste

trabalho para com a ligação aqui pretendida entre Baudelaire e as ideias que levaram os

poetas do movimento concreto à postura antiverso. Especula-se nesse tópico, que o

nascimento – se é possível falar assim – da poesia moderna (com Baudelaire) envolta nas

incertezas sobre sua própria razão de ser no mundo burguês foi decisiva na construção da

crença, ou mesmo da ideologia de poesia como uma arte a beira dum esgotamento; crença

esta que se discute até hoje e que foi de suma importância, como se verá nos capítulos

posteriores, para a teoria da poesia concreta.

Certamente a crise da qual se falou nos parágrafos anteriores tem relação com o

Baudelaire “confuso” que o professor Hamburguer expõe no seu livro, contudo, não há como

negar que mesmo com um posicionamento muitas vezes contraditório, tanto como poeta

como quanto crítico, Baudelaire pensou, também, nas mudanças formais do poema como

um dos caminhos possíveis para a poesia de então. Ainda que se pense no poeta como não

tão esteticista, como faz a crítica já citada anteriormente, é difícil refutar por completo a

teoria defendida por Friedrich de que há em Baudelaire o início de uma “preponderância da

vontade da forma sobre a vontade da simples expressão.” (1978, p. 41).

Outro que fala de Baudelaire de modo análogo a Friedrich é o poeta Paul Valéry

(1995, p. 1009)2, afirmando que “a era dos escrúpulos começa aproximadamente na época

da juventude de Baudelaire” e que isto seria uma consequência, ou reação, ao “sistema, ou

à ausência de sistema, denominado romantismo”. Neste mesmo texto, Valéry discute ainda

a importância da obra de Edgar Allan Poe para as conclusões de Baudelaire acerca da

poesia e do fazer poético. Tendo em vista isso, dentro da obra de Poe, vale ressaltar os

textos A Philosophy of Composition e The Poetic Principle, os quais teriam tido forte impacto

sobre Baudelaire, que teria inclusive tomado o segundo como “um bem seu”; nestes dois

ensaios Poe expõe a concepção de poesia que tanto marcará o poeta francês, e que Valéry

resume da seguinte forma:

Poe compreendeu que a poesia moderna devia se adequar à tendência de

uma época que viu separarem-se cada vez mais nitidamente os modos e os

domínios da atividade, e que ela podia pretender realizar seu próprio objeto

e produzir-se, de alguma forma, no estado puro.

Assim, analisando condições de volúpia poética, definindo através do

esgotamento da poesia absoluta, Poe mostrava um caminho, ensinava uma

2 O texto “Situação de Baudelaire”, de Paul Valéry, encontra-se em BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. Organizado por Ivo Barroso.

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doutrina muito sedutora e rigorosa, na qual se uniam uma espécie de

matemática e mística... (1995, p. 1015).

Na obra máxima de Charles Baudelaire, As Flores do Mal, é possível encontrar tudo

o que foi exposto até o momento. Por mais contraditório que pareça, nos poemas deste livro

está o poeta confessional, de Berardinelli; o confuso, de Hamburguer; o esteta, de

Friedriech, e o místico e matemático de Valéry (via Poe). A riqueza e importância desta obra

para a poesia ocidental é hoje inquestionável, entretanto, para os fins pretendidos pelo

presente trabalho, a incompleta coletânea denominada Pequenos Poemas em Prosa, ou

simplesmente O Spleen de Paris, mostra-se decisiva.

No século XIX, torna-se evidente a preponderância do texto em prosa: o romance,

como a forma literária mais valorizada pela classe dominante, toma o lugar que até então

fora do verso. Diante disso, é possível pensar que a atitude de Baudelaire com os seus

poemas em prosa aponta para uma convergência das linhas de força que o guiaram para a

concepção de crise da poesia, i.e, uma visão histórica das dificuldades da era burguesa que

se entrelaça com as necessidades de novas formas para o texto poético. As palavras do

próprio poeta no prefácio3 de Pequenos Poemas em Prosa atestam – do jeito peculiar de

Baudelaire, logicamente – tanto a convergência de ideias sintetizadas na obra, na qual, de

acordo com o autor, “tudo é ao mesmo tempo cabeça e pé, alternativa e reciprocamente.”

(BAUDELAIRE, 1995, p. 277), quanto as suas ambições, ou esperanças, para com as

potencialidades dos poemas em prosa.

Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma

prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante

rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às

ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência? (BAUDELAIRE,

1995, p.277)

Baudelaire nunca falou diretamente – como fez seu sucessor, Mallarmé – na “crise

do verso”, que bem mais tarde tanto repercutiu nas propostas dos poetas concretos.

Contudo, toda a reflexão crítica sobre o poeta, em conjunto com as suas discussões e

práticas artísticas, revelam que houve, se não uma postura determinada e explícita sobre o

tema, ao menos alguns modos de proceder que conduzam para ele, e que certamente

serviram de ensejo para os debates futuros. Por fim, se é lícito falar de Baudelaire em

3 Na verdade trata-se de uma carta do poeta ao diretor literário (Arsène Houssaye) de La Presse, onde os vinte

poemas inicias do livro foram publicados.

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correlação com o início da crise da poesia moderna, creio ser também válido usá-lo dentro

duma reflexão sobre a crise do verso, uma vez que esta pressupõe aquela.

2.2 MALLARMÉ

Diferente de Baudelaire, a figura do poeta Stéphane Mallarmé, que ainda hoje é

conhecido pelo seu ferrenho esteticismo – e muitas vezes repudiado por isso –, certamente

não parecerá, dentro do presente trabalho, deslocada aos olhos de ninguém que tenha

algum conhecimento teórico sobre o Concretismo. Muito pelo contrário, a importância deste

poeta, que ocupa um lugar central no paideuma dos poetas concretos, é tão grande para o

movimento, que difícil seria não citá-lo.

Durante muito tempo, a obra de Mallarmé permaneceu quase que totalmente

inócua no cenário da poesia brasileira, fato que provavelmente se deve menos às

dificuldades provenientes da sintaxe hermética do poeta, do que ao posto de persona non

grata que lhe foi dado pelo Modernismo; “ostracismo” este que está muito bem simbolizado

(e documentado) no grito de Mario de Andrade: “É PRECISO EVITAR MALLARMÉ” (2010,

p. 54), publicado no seu famoso A Escrava que não é Isaura. Essa postura arredia dos

modernistas para com a poesia mallarmeana, não é surpreendente quando se confronta o

programa4 do movimento com a imagem tradicional que se construiu do poeta, e que pode

ser abstraída nas palavras de Hugo Friedrich:

A lírica de Mallarmé encarna o isolamento total. Não sente necessidade

alguma de tradição cristã, humanística, nem literária. Proíbe a si mesma

qualquer intromissão do presente. Repele o leitor e se recusa a ser humana.

Também com respeito ao futuro, sabe estar só: “o poeta não tem outra

coisa a fazer senão trabalhar misteriosamente, tendo em vista o jamais.”

(1978, p. 139)

Essa poesia “desumanizada” que Friedrich aponta, sem dúvida afigurou-se como

um monstro aos olhos dos modernistas, um verdadeiro retrocesso quando se pensava que

4 Ainda que uma visão simplista do Modernismo Brasileiro como um movimento sem programa continue a ser

propalada, a leitura de um texto como A Escrava que não é Isaura serve para mostrar o quão ingênua é essa concepção do movimento. O livro de Mario de Andrade é uma prova de que o modernismo teve um programa, mesmo que não muito divulgado, mas certamente bem alinhavado.

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os primeiros passos para fora da “torre de marfim” estavam sendo dados. Contudo, alguns

anos depois, esse mesmo monstro que tanto assustou Mario de Andrade e Cia, tornara-se

herói, ou um Deus, a ser idolatrado pelos poetas concretos, que nada temiam a

desumanização e logo trataram de (re)colocar o poeta francês na pauta das discussões

literárias brasileira.

Deve-se dizer que, bem ou mal, uma das dívidas da poesia brasileira para com o

Concretismo foi a “redescoberta” de Mallarmé: muito da popularização do poeta nas últimas

décadas do século passado é fruto do esforço daqueles em traduzir e comentar a obra

desse autor. É nítido que o interesse por Mallarmé, desde o advento da poesia concreta, só

cresceu, e continua crescendo (a exemplo da recente tradução do livro Divagações) dentro

do país. Contudo, é importante não pensar nesses esforços dos concretistas como

gratuidade, mas sim como uma forma de divulgação dos próprios postulados do movimento,

em especial, a ideia de superação do “ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal)”

(CAMPOS, et al., 2006, p. 214).

Para se compreender de que maneira Mallarmé foi utilizado na elaboração do

discurso de crise construído e/ou propagandeado pelo Concretismo, dois trabalhos do poeta

são indispensáveis: Crise de Vers e Un Coup de Dés. O primeiro, muito citado pelos poetas

do concretismo, mas que só recentemente recebeu traduções para o português5, trata-se de

uma espécie de ensaio no qual o autor reuniu, mas não uniu, inúmeras passagens de textos

que publicara anteriormente. O segundo, quase dispensa comentários, foi o último e mais

famoso poema de Stéphane Mallarmé, cuja publicação data de 1897, mas que só recebeu

sua primeira – e até o momento, única – tradução brasileira, em meados da década de 70

do século passado, quando Haroldo de Campos publica “Um Lance de Dados” junto à

coletânea Mallarmé (organizada e traduzida por ele, conjuntamente com Augusto de

Campos e Décio Pignatari) na coleção Signos, da editora Perspectiva.

Em “Crise do Verso”, Mallarmé (2008, p. 150) explicita sua concepção de que a

literatura “sofre de refinada crise, fundamental.”, certamente a mesma crise com a qual

Baudelaire já se mostrava preocupado alguns anos antes. Entretanto, diferente do mestre, o

esteticismo de Mallarmé não lhe permitiu cair no mesmo tipo de “confusão”, entre estética e

moral, que Hamburger aponta em Baudelaire. As preocupações de Mallarmé são sempre

estéticas, poucas vezes, ou mesmo nunca, foge do campo da arte para discutir suas

“crises”, chega às suas conclusões valendo-se da história da literatura e da arte. Um

exemplo disso é o modo como o autor usa a figura de Victor Hugo, “o verso em pessoa”,

5 A primeira tradução de “Crise de Vers” foi feita por Ana Alencar e publicada em 2008 na revista Inimigo Rumor

nº 20. A segunda, feita por Fernando Scheibe, encontra-se na edição brasileira de Divagações, publicado este ano, 2011, pela editora da UFSC.

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para explicar o desencadeamento da crise do verso: “O verso, acredito, esperou com

deferência que o gigante que o identificava à sua mão tenaz e sempre mais firme de ferreiro,

desertasse, para, então ele mesmo, romper-se.” (2008, p. 151).

A reflexão de Mallarmé a respeito da tradição literária continua, em “Crise do

Verso”, com os seus lamentos acerca do mau uso que os poetas daquela época estavam

fazendo do alexandrino (forma métrica mais tradicional da poesia francesa): “Até o

momento, em nenhum dos modelos decaídos, nada, senão reserva e abandono, por causa

da lassidão pelo abuso da cadência nacional; cujo emprego, assim como o da bandeira,

deve permanecer excepcional.” (2008, p. 153). De modo semelhante, os poetas concretos

pensam sobre a tradição do verso, ao afirmarem, num dos seus manifestos, que a poesia

concreta “tende a impor-se à organização convencional cuja unidade formal é o verso (livre

inclusive).” (CAMPOS et al., 2006, p. 72); vale ressaltar ainda, a visão negativa, que aponta

para um esgotamento, que os poetas concretos apregoaram em relação à poesia brasileira,

a qual acusavam de certa “indolência”, alegando que “O artista brasileiro, depois do primeiro

livro, costuma especializar-se em nuances da própria dicção (nos melhores casos). Não é

hábito da literatura brasileira a obra em progresso, mas a obra em reflexo.” (CAMPOS, et al.,

p. 80).

Os pontos de confluência entre o texto de Mallarmé e os dos concretistas são

muitos, não há como negar, entretanto, é importante relembrar, que o discurso dos poetas

concretos é um discurso-manifesto, i.e, que tende a promover uma ideologia, no caso, a da

poesia concreta. Diante disso, mostram-se muito pertinentes as palavras do professor

Marcos Siscar, quando afirma que a poesia concreta “precisou da ideia do esgotamento do

verso, num determinado momento, para justificar o interesse crítico de sua ênfase no

visual.” (2010, p. 105), e adiante, no mesmo ensaio, comentando o texto de Mallarmé (que

ele prefere traduzir por “Crise de Verso” ou “Crise de Versos”): “a crise de verso não designa

um colapso histórico do verso; antes, uma irritação do verso, dentro do verso, e a propósito

dele.” (2010, p. 107).

Coloco aqui a fala de Siscar não a fim de negar relação entre o discurso

mallarmaico e o concreto, mas sim para evitar uma tendência – ou o anacronismo – de se

ler o texto do poeta francês como sendo um manifesto de poesia concreta, como se ele

estivesse a defender uma alternativa visual para a superação do verso em crise. No texto de

Mallarmé é possível encontrar especulações quanto a alguma alternativa à crise, entretanto,

nada nelas levam a crer numa substituição total do verso a favor da visualidade, antes

buscam potencializá-lo, tal como faz no parágrafo em que discorre sobre a ordenação do

livro de versos, o mesmo no qual divaga acerca dum poema em que

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Tudo se torna suspenso, disposição fragmentária com alternância e

contraposição, concorrendo para o ritmo total, o qual seria o poema calado,

com brancos; somente traduzido, de alguma maneira, por cada pingente.

(MALLARMÉ, 2008, p. 158)

O trecho acima, com suas alusões à “fragmentação”, “contraposição” e aos

“brancos”, permite se pensar num dialogo com outro texto do autor, aquele que o poeta

recomendou a não leitura, i.e, o famoso prefácio de “Um Lance de dados”, que, contrariando

as recomendações de Mallarmé, entrou para História da Literatura como parte indissociável

do poema, assumindo uma importância teórica semelhante à de “Crise do Verso”. É nesse

pequeno texto que se encontra a síntese dos pontos essenciais que levaram Mallarmé a

construção do seu “poema-constelar” – como gostam de chamar os poetas concretos – “Um

Lance de Dados”, do qual sinto agora necessidade de reproduzir uma passagem antes de

seguir com a discussão:

(MALLARMÉ, 2002, p. 168-169)

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Acima reproduz-se, em tradução de Haroldo de Campos, uma “página

malarmeana”, ou seja, composta “propriamente de duas folhas desdobradas, onde

as palavras formam um todo e ao mesmo tempo se separam em dois grupos, à

direita e à esquerda da prega central” (2002, p. 178), como a descreve Augusto de

Campos. Nela é possível encontrar quase tudo daquilo que os concretistas

colocaram como pontos determinantes na experiência de Mallarmé, para o que eles

viam como o início de uma superação do verso.

No ensaio Poesia, Estrutura6, Augusto de Campos delimita esses pontos,

justificando-os por meio de citações ao prefácio de Mallarmé a “Um Lance de

Dados”, a saber: emprego de tipos diversos, disposição das linhas tipográficas nas

páginas, os brancos e o uso especial da página. Com exceção do último, já

explicado no parágrafo anterior, os outros três pontos destacados merecem um

esclarecimento, ainda que breve. O primeiro caso, diz respeito às diferenças entre

os caracteres tipográficos, que indicariam, de acordo com Mallarmé, um “motivo

preponderante, um secundário e outros adjacentes” (2002, p. 151); o segundo ponto,

muito em conformidade com o primeiro, estaria relacionado ao subir e descer da

entonação, tal como numa pauta musical; por fim, os brancos, como declara o poeta:

“assumem importância, agridem de início; a versificação os exigiu, como o silêncio

em derredor” (2002, p. 151).

Como é possível notar, todos os aspectos de “Um Lance de Dados”, ressaltados

por Augusto de Campos tem relação com o modo como Mallarmé utiliza os recursos

tipográficos, o que deixa claro que o autor – naquele momento (1955) já tendendo ao

discurso de grupo, i.e, falava como um dos membros-fundadores do concretismo – tinha a

intenção de apresentar o poema de Mallarmé como uma experiência alternativa ao verso.

Trata-se, frisamos, de uma utilização funcional dos recursos tipográficos,

impotentes, no seu arranjo tradicional, para expressar a nova organização

do poema. A própria pontuação se torna desnecessária, uma vez que é o

espaço gráfico a pontuação essencial, o elemento “negativo” de uma

versificação estrutural que vem a fazer caducar o mero e linear verso-livre.

(2002, p. 179)

6 Os ensaios Poesia, Estrutura e Poesia, Ideograma, de Augusto de Campos, podem ser encontrados no final da

coletânea Mallarmé, que está referenciada neste trabalho.

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Vale ainda dizer que Augusto de Campos coloca Mallarmé como inventor de um

novo processo de organização poética, o qual poderia ser exprimido pela palavra “estrutura”,

que o autor usa no sentindo gestaltiano, ou seja, “de que o todo é mais que a soma das

partes, ou de que o todo é algo qualitativamente diverso de cada componente, jamais

podendo ser compreendido como mero fenômeno aditivo.” (2002, p. 177). Dessa forma,

Augusto de Campos, além de “convocar” Mallarmé para a luta concreta contra a

“organização meramente linear e aditiva” (2002, 178) da poesia em verso, também busca

mostrar como esse poeta antecipou o método, muito caro ao concretismo, da composição

ideogrâmica do poema. Talvez seja interessante dizer de passagem, que tal associação de

“Um Lance de Dados” com o ideograma não é ineditismo dos poetas concretos, isso porque,

segundo Haroldo de Campos, o poeta Paul Valéry já descrevia o poema como um

“spectacle ideographique d’une crise ou aventure intellectuelle”7 (VALERY apud CAMPOS,

H. 187).

Esse direcionamento do olhar para as experiências mallarmeanas, que os poetas-

críticos concretos lutaram para difundir, como algo que inevitavelmente convergiria para o

Concretismo, foi, ao mesmo tempo, uma arma de divulgação e um modo de fundamentar a

postura antiverso do grupo dentro duma determinada tradição literária. Aqui é preciso abrir

parênteses para ressaltar que não só os textos críticos dos poetas serviram como armas,

mas também suas traduções, ou “transcriações”, como preferem, estão impregnadas dessa

atitude militante.

Diante disso, no que diz respeito à tradução de Un Coup de Dés, o texto “Um lance

de dados: Contrapontos à Sinfonia Haroldiana”, de Álvaro Faleiros – que possivelmente

publicará uma nova tradução do poema –, é interessante para se refletir sobre como as

ideias concretas interferem nas escolhas do tradutor. No artigo, Faleiros apresenta vários

exemplos “do tom vanguardista e erudito que Haroldo de Campos adota, e que permeia não

só suas análises, mas também suas escolhas tradutórias” (2007, p. 18), e conclui que

a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e rebuscado do

que o próprio texto mallarmeano, conhecido pela sua ambigüidade e

opacidade.

Por fim, é importante salientar que compreender as escolhas tradutórias de

Haroldo de Campos e situar-se em relação a elas exige uma consciência no

que concerne a historicidade do traduzir. Para Haroldo de Campos, a

tradução do poema deve ser criativa, potencializar as rupturas, sobretudo

formais, que o texto a ser traduzido traz. Esse processo é coerente com a

7 Um espetáculo ideográfico duma crise ou aventura intelectual. (trad. nossa)

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estética das vanguardas, das quais Haroldo de Campos, como um dos

expoentes do concretismo, fez parte. (ibidem, p. 28)

Ter essa visão dos modos de proceder dos poetas concretos durante o período de

militância vanguardista, não significa descartar de todo a ligação das experiências concretas

com as mallarmeanas, mas sim ponderar um discurso que inevitavelmente, pelo momento

histórico em que foi produzido, está impregnado pela ideia de firmação do movimento. É

difícil mensurar, por exemplo, a relevância de “Um Lance de Dados” para a poesia concreta,

talvez a melhor maneira de fazer isso seja utilizando a hiperbólica afirmação de Hugh

Kenner, que os concretistas incorporaram aos seus discursos, a saber: “the fragmenting of

aesthetic idea into allotropic images, as first theorized by Mallarmé, was a discovery whose

importance for the artist corresponds to that of nuclear fission for the physicist.”8 (2002, p.

178)

Por fim, resgatando uma ideia já exposta alguns parágrafos acima, de que as

vanguardas precisaram estabelecer, ou até mesmo criar, uma atmosfera de crise para

justificar suas pretensões transformadoras, e que o Concretismo, enquanto movimento de

vanguarda, também se valeu desse recurso. É perfeitamente compreensível o quase

“louvor” destes poetas para com Mallarmé, principalmente quando se pensa em “Um Lance

de Dados” como o poema que “dramatiza a crise na qual está em jogo o modo de existência

do verso, metonímia do gênero.” (2010, p. 75), tal qual faz Marcos Siscar, no seu livro

intitulado Poesia e Crise, no qual também irá afirmar: “Se há uma ‘crise’(da comunicação, da

poesia, da arte, da cultura), a obra de Mallarmé não é exatamente ou simplesmente o

sintoma dela, mas sua formulação crítico-poética mais evidente.” (2010, p. 85). Diante disso,

pode-se enxergar facilmente o que levou os poetas concretos a tomarem Mallarmé como um

dos “slogans” com os quais sustentaram o movimento, e, por conseguinte, o discurso

antiverso.

8 A fragmentação da ideia estética em imagens alotrópicas, como primeiro teorizou Mallarmé, foi uma descoberta

cuja importância para o artista corresponde aquela da fissão nuclear para o físico. (tradução nossa)

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3. CONCRETISMO: DO VERSO AO IDEOGRAMA

3.1 PAIDEUMA: UMA OBSESSÃO

O que foi exposto no capítulo anterior já dá um tom de como a Poesia Concreta se

relaciona com a tradição literária. Sobre isso, é interessante observar que mesmo sendo o

Concretismo um movimento de vanguarda, não há um iconoclastismo absoluto dentro do

programa concreto, mas antes um diálogo muito intenso com a tradição. É certo, entretanto,

que este diálogo com a tradição não significa uma aceitação passiva do cânone, isto porque,

os poetas antes escolhem autores e/ou obras que sejam interessantes ao movimento, do

que aceitam aquilo está posto. Esta ideia de “tradição-seletiva” está imbricada no conceito

Poundiano de paideuma, o qual os poetas concretos costumam definir como:

“A ordenação do conhecimento de sorte que o próximo homem (ou geração)

possa encontrar da maneira mais rápida a parte viva do mesmo, e gastar o

menos tempo possível com caminhos obsoletos” é a metodologia crítica,

tática ou expressa, que conduz à obra de criação. (POUND, 1935, p. 5,

apud CAMPOS et al, 2006, p. 43)

Ou como Haroldo de Campos, num dos manifestos de Poesia Concreta coloca:

PAIDEUMA

elenco de autores culturmorfologicamente atuantes no momento histórico =

evolução qualitativa da expressão poética e suas táticas:9 (2006, p. 74)

Haroldo continua esta passagem do manifesto, “olho por olho a olho nu”, elencando

o nome, e as qualidades, dos autores que fariam parte do paideuma concreto, a saber:

POUND – método ideogrâmico

9 Apesar da citação não possuir mais de três linhas, optou-se por colocá-la em separata para se preservar,

minimamente, as peculiaridades do texto de origem. Vale ressaltar que os poetas concretos costumam utilizar recursos próprios da sua poesia (espacialização, fragmentação, tipografia peculiar etc.) nos seus textos teóricos, deste modo, sempre que isto ocorrer a citação será feita em separada buscando-se a maior correspondência possível com o original.

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léxico de essências e medulas (definição precisa)

JOYCE – método de palimpsesto

atomização da linguagem (palavra-metáfora)

CUMMINGS – método de pulverização fonética

(sintaxe espacial axiada no fonema)

MALLARMÉ – método prismográfico (sintaxe espacial axiada nas

“subdivisões prismáticas da idéia) (2006, p. 47)

O autor cita ainda as experiências Futuristas e Dadaístas como relevantes para o

paideuma, e além desses, com o passar do tempo, outros nomes vão sendo agregados, tais

como os de Apollinaire e Maiakovski, e os dos poetas brasileiros Oswald de Andrade, João

Cabral de Melo Neto e, por fim, o do poeta romântico Sousândrade, que foi (re)descoberto

pelo Grupo Noigandres10.

Esse manejo da tradição literária ou, como afirma Pedro Lyra, esta “obsessão de

encontrar antecipações assimiláveis e legitimadoras no passado” (1985, p. 140) por parte do

poetas concretos, muitas vezes não é bem vista pela crítica brasileira, que normalmente os

acusam de manipuladores da história literária. Um marcante exemplo desta crítica encontra-

se no polêmico texto, “Marco Histórico”, de Roberto Schwarz, no qual o autor, ao comentar o

poema “Pós-Tudo”, de Augusto de Campos, afirma que este é o

enésimo exemplo de um procedimento-chave dos concretistas, sempre

empenhados em armar a história da literatura brasileira e ocidental de modo

a culminar na obra deles mesmos, o que instala a confusão entre teoria e

autopropaganda, além de ser uma bobagem provinciana. (1987, p. 61)

De modo semelhante, porém menos agressivo, Paulo Franchetti, em Alguns

Aspectos da Teoria da Poesia Concreta, também demonstra ter uma visão bastante

10

Noigandres é nome da revista criada por Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, na qual eles publicaram os poemas e os textos críticos (os manifestos e outros) que lançaram o Concretismo. O título da revista faz alusão a uma passagem do Canto XX, dOs Cantos, de Ezra Pound.

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negativa deste proceder dos concretistas, e ao comentar um dos textos basilares do

movimento, “Poema, Ideograma”, de Augusto de Campos, afirma que

Não é difícil perceber que, na busca de uma linha evolutiva que o conduza

aonde quer chegar, Augusto vai percorrendo referências e alijando do seu

caminho tudo aquilo que perturbe sua trajetória, passando rapidamente da

consideração de um autor à de outro, de um momento literário à outro, sem

uma argumentação que apresente as razões de seus julgamentos ou a

possibilidade de tomar as obras desses autores como uma continuidade ou

um conjunto possível de síntese. Tudo se passa, no texto, como se a

relação fosse dada pelo fato de serem considerados bons autores ou

autores representativos da modernidade. (1993, p. 32)

Por fim, vale ressaltar a crítica de Pedro Lyra, que se diferencia das anteriores, por

se preocupar, não com a “manipulação da história literária”, mas sim com o fato de que o

excesso de influências põe em evidência a falta de novidade do movimento.

o simples registro/reconhecimento das influências e dos precursores já

punha em xeque essa novidade, que acabaria restrita à sistematização que

eles empreenderam desses elementos já trabalhados por outros poetas de

outros países em outra perspectiva (LYRA, 1985, p. 140, grifo nosso)

O comentário de Lyra, apesar de ter algum grau de pertinência, mostra-se perigoso,

pois induz a crença de que poetas como Pound ou Mallarmé já faziam poesia concreta,

quando na verdade esses artistas possuem produções muito ligadas ao verso e nunca

apregoaram uma superação deste por meio da visualidade. Talvez o que levou Pedro Lyra a

construir tal ideia tenha sido uma reflexão muito intrínseca sobre os dizeres dos textos

concretos e pouco ocupada em confrontá-los com os procedimentos reais dos autores

citados – e aqui são inegáveis os perigos da propaganda, ou militância, dos textos

concretistas.

Os outros críticos citados pecam principalmente por exigirem dos textos-manifestos

de um movimento de vanguarda, o mesmo que exigiriam de textos acadêmicos de Teoria ou

História Literária, além disso – e agora refiro-me especialmente a crítica de Schwarz –

parecem mais preocupados em atacar o movimento, ou, mais precisamente, os integrantes

deste, do que refletir de forma lúcida sobre seus procedimentos.

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A “História da Literatura” criada pelos poetas concretos é, antes de qualquer coisa,

a história daquilo que interessa (seja como legitimador ou influência direta) ao movimento,

os poetas, ao escreverem sobre o Concretismo, não buscam proceder como críticos ou

teóricos de Literatura e, se por acaso, em alguns momentos, assim dão a entender, trata-se

de simples pastiche servindo como mais uma arma, dentre tantas outras, na guerrilha

vanguardista. Diante disso, o paideuma pode ser visto como uma tentativa dos poetas

concretos de arquitetar uma história do verso, ou melhor, uma história da poesia na qual o

verso, gradativamente, sofre uma perda de importância por conta dos inúmeros “golpes”

dados por poetas que não se conformavam com as fronteiras rítmico-formais deste

elemento poético. Com isso, eles construíram uma história da literatura em que a evolução

técnica torna-se o principal critério definidor de quem entra, ou sai, dela: muito próximo – e

esta é uma aproximação buscada e ressaltada pelos poetas – do que ocorre no cenário das

artes plásticas e da música.

Ainda sobre a questão do paideuma, creio ser interessante expor pelo menos uma

opinião crítica menos taxativa do que as citadas anteriormente, deste modo, o comentário

abaixo, de Gonzalo Aguilar, no seu Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas na

Encruzilhada Modernista, parece atender bem a tal objetivo.

Com esse conceito (paideuma = aqueles dos quais se pode aprender),

armaram um repertório que, sem recorrer ao “cânone” vanguardista, diferia

claramente do elenco de autores habituais. Os escritores do paideuma

estão nas margens: nem Mallarmé nem Joyce podem ser considerados

vanguardistas integrais, embora de suas poéticas possam derivar-se

práticas de vanguarda. Ademais, a escolha não se baseia tanto em autores

(em suas trajetórias, em suas intervenções culturais), como em obras

(Cantares, de Pound, Un Coup de Dés, de Mallarmé, Finnegans Wake, de

Joyce). Desse modo, os jovens poetas selecionaram uma série de textos

sobre os quais projetaram um critério de vanguardismo artístico, sem que

isso os obrigasse a se comprometer com os movimentos de vanguarda de

princípios do século. (2005, p. 171)

Após essa reflexão acerca do paideuma, para finalizar este tópico sobre tradição e

Poesia Concreta, dois pontos ainda devem ser abordados: o diálogo com a música e a

pintura concreta e o confronto com a poesia brasileira da época (a geração de 45).

A relação do Concretismo com música e a pintura Concreta, apesar de muitas

vezes ser negligenciada pela crítica, está presente de forma explícita desde o princípio do

movimento. A própria denominação “Poesia Concreta”, cunhada pela primeira vez por

Augusto de Campos num texto de mesmo nome, advém desta relação, como demonstra o

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poeta: “Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo ponto,

pela música de vanguarda (concretismo, música concreta), diria eu que há uma poesia

concreta.” (CAMPOS et al, 2006, p. 55), e diante disso, já prenuncia a tendência “plástica”

desta poesia: “Concreta no sentido em que, posta de lado as pretensões figurativas da

expressão (o que não quer dizer: posto à margem o significado), as palavras nessa poesia

atuam como objetos autônomos.” (2006, p. 55).

De acordo com Ferreira Gullar (que, diga-se de passagem, teve participação no

movimento de Poesia Concreta), em Etapas da Arte Contemporânea,

A expressão arte concreta parece ter sido cunhada por Theo Van Deosburg,

em 1930, mas não com o propósito de iniciar um movimento estético. O

intuito de Van Doesburg era dar o que considerava ser o nome exato a uma

arte que se tinha desprendido totalmente da imitação da natureza. (1985, p.

207)

Ainda segundo Gullar, esta denominação foi uma tentativa de redefinição da pintura

figurativa, e ela já era utilizada por artistas como Arp e Kandinsky ainda numa época em que

Arte Abstrata e Arte Concreta não eram tão diferenciadas. Entretanto, esta diferenciação

surgiria de forma mais precisa em 1936, quando o Max Bill – considerado por alguns como o

pai da Arte Concreta – “emprega a expressão arte concreta para designar uma arte

construída objetivamente e em estreita ligação com problemas matemáticos.” (GULLAR,

1985, p. 208). Continuando sua reflexão sobre este assunto, Ferreira Gullar, faz a seguinte

síntese:

a arte concreta não resultou de uma atitude simples em face da arte

contemporânea, não foi tampouco a mera reação de um grupo de artistas à

determinada tendência estética dominante. Trata-se, de fato, de uma atitude

que se insere numa visão geral dos problemas artísticos modernos, numa

espécie de filosofia da arte, que se esboça inicialmente no pensamento do

grupo De Stijl e, mais completamente, no manifesto da Bauhaus. Essa

atitude implica, portanto, de um lado, uma compreensão da atividade

artística como intimamente ligada aos novos meios de produção, às novas

técnicas e noções científicas. Ao contrário das tendências individualistas ou

niilistas da arte contemporânea – expressionismo, dadaísmo, surrealismo,

tachismo –, a arte concreta deriva de um compromisso com a época

moderna, com a sociedade industrial, dentro da qual o planejamento, o

conhecimento teórico e a divisão do trabalho contam como fatores

relevantes. Do movimento De Stijl e particularmente de Mondrian, a arte

concreta herdou algumas idéias críticas básicas a cerca da linguagem da

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pintura. Da Bauhaus, a visão social da arte, o ideal de integração da arte na

cidade, na vida coletiva, e ao mesmo tempo certo sentido experimentalista

implícito no ensino bauhausiano. (1985, p. 231)

O parêntesis aberto nos parágrafos anteriores a fim de abordar, ainda que muito

sucintamente, a arte concreta de um modo geral, serve para ressaltar alguns pontos de

confluência desta com a poesia concreta, tais como a ideia de uma arte que parece

totalmente desprendida da imitação da natureza e a proposta de Max Bill para uma arte

construída “matematicamente”. Não vem ao caso demonstrar todos os pontos de

conformidade entre poesia e pintura concreta, pois isso muito se afastaria dos objetivos do

presente trabalho, entretanto, é pertinente ressaltar que além da simples denominação do

movimento, os procedimentos da arte concreta foram valiosos, principalmente na chamada

“fase matemática” (ou “ortodoxa”), para a construção dos poemas concretos, tanto que no

seu manifesto, Haroldo de Campos fez questão de salientar o parentesco.

POESIA CONCRETA =

poesia posicionada no mirante culturmorfológico ao lado da

PINTURA CONCRETA

MÚSICA CONCRETA (2006, p. 75)

Esta discussão sobre arte concreta pode servir de ensejo para se comentar o

confronto entre os poetas concretos e os da chamada Geração de 45, digo isto porque, de

modo análogo ao embate ocorrido na pintura entre o subjetivismo da arte abstrata e o

objetivismo da concreta, na literatura, os poetas do grupo Noigandres combatiam a

“morosidade” e o “lirismo comedido” e subjetivista dos seus contemporâneos, ou, de alguma

forma, antecessores imediatos. Tal combate é palavra de ordem em algumas passagens

dos manifestos11 do concretismo, como em: “contra uma poesia de expressão, subjetiva e

hedonística.” (CAMPOS et al., p. 218)

A contestação dos poetas concretos à poesia produzida pela Geração de 45 está

baseada numa visão dos modos de proceder dos poetas da época que, irônica, ou

11

Em Teoria da Poesia Concreta, apenas três textos são classificados como manifestos, a saber: nova poesia:

concreta, de Décio Pignatari; poesia concreta, de Augusto de Campos e olho por olho a olho nu, de Haroldo de Campos. Além desses, é importante chamar atenção para famoso plano-piloto para a poesia concreta, assinado

pelos três integrantes do grupo. Este texto não é classificado como manifesto no livro em questão, entretanto, seu caráter de manifesto é indiscutível, principalmente por ser formado por vários trechos dos “manifestos oficiais”.

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paradoxalmente, já estava sendo criticado pelo maior expoente dessa geração, i.e, João

Cabral de Melo Neto, que no Congresso Internacional de Escritores e Encontros

Intelectuais, em 1954, discursa sobre “A Função da Poesia Moderna” e, voltando-se para a

situação da poesia brasileira da época, aponta alguns problemas que mais tarde estariam

no centro do debate entre Concretismo e Geração de 45.

No plano dos tipos poemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos

objetivaram foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo

interior e declaração de princípios, de balbucio e hermenêutica filosófica,

monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento

melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado

indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor

pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de

nenhuma consideração acerca de sua possível função social de

comunicação. O poeta contemporâneo chegou passivamente, por inércia,

simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a

própria ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de

material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e

da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.

(CABRAL, 1957 apud BRASIL, 1975, p. 73)

As palavras de Cabral poderiam estar, sem problemas, em qualquer um dos textos

críticos dos poetas concretos, isto porque, afiguram de modo preciso as censuras destes

poetas ao “lirismo anônimo e anódino, o amor às formas fixas do vago, que explica, em

muitos casos, a ‘redescoberta’ do soneto à guisa de dernier cri” (2006, p. 45), como coloca

Haroldo de Campos, em “poesia e paraíso perdido”. E certamente é isto que leva Paulo

Franchetti a afirmar que as preocupações de João Cabral “já tinham encontrado uma

resposta programática de grande envergadura e radical” (2007, p. 258) quando os Anais do

Congresso foram, em 1957, publicados. Resposta esta centrada no “programa” da poesia

concreta, que fora lançado em 1956, e sobre o qual o próximo tópico deter-se-á.

3.2 MOVIMENTO, PROGRAMA

A conhecida postura modernista do “não sabemos o que queremos, mas sabemos

o que não queremos!”, parece ter sido substituída, no Concretismo, por um “sabemos o que

queremos e o que não queremos!”. O movimento brasileiro de poesia concreta foi

programático, quase que matematicamente calculado: os poetas do Grupo Noigandres

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fizeram questão de demonstrar ter total consciência daquilo que estavam fazendo, para

tanto, além de praticarem a poesia, ocupavam-se em divulgar suas ideias por meio de

inúmeros textos críticos tentando explicar o que seria a poesia concreta. Pensando nisso,

creio que nenhum trabalho sobre o Concretismo pode estar completo sem a “voz-crítica” dos

membros do grupo, até mesmo porque, durante anos, eles foram os únicos responsáveis

por discutirem suas próprias propostas.12

(PIGNATARI, 2004, p. 100)

O poema acima, de Décio Pignatari, além de ilustrar o exposto no parágrafo

anterior, também serve para demarcar o início da exposição das vozes – de maneira mais

direta do que vinha sendo feita até então – dos poetas do Grupo Noigandres neste trabalho.

A escolha do “trio concreto” (os irmãos Campos e Décio Pignatari) como porta-vozes do

movimento vai na esteira da ideia de que “a história da Poesia Concreta é principalmente a

história daquele grupo de poetas da revista Noigandres” (2007, p. 265), como defende

Franchetti, a qual justifica-se pelo fato de que foram eles os principais articuladores do

movimento, os que assinaram os manifestos e os que já estão cristalizados na história da

literatura brasileira como “os poetas concretos”. Entretanto, não se pretende com isso

defender que os três foram os únicos a praticarem poesia concreta no Brasil, até mesmo

12

Algo que pode confirmar esta afirmativa é o fato de que a dissertação de mestrado, Alguns Aspectos da Teoria

da Poesia Concreta, do professor Paulo Franchetti, escrita em 1981, ou seja, mais de vinte anos depois do início do movimento concreto, pode ser considerada como um documento histórico justamente por causa do pioneirismo nos estudos sobre o Grupo Noigandres.

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porque isso seria negar a existência de importantes nomes13 que, com sua produção

poética, serviram para a consolidação do movimento.

Feita estas considerações, acredito que uma última ainda seja necessária, no que

diz respeito à delimitação do assunto, isto porque, apesar de ser possível encontrar diversos

pontos passíveis de discussão dentro do programa da poesia concreta, o que aqui se

pretende é perpetrar um recorte mais preciso possível daquilo que explicita a postura

antiverso do movimento, sem, vale frisar, fazer julgamentos quanto à validade e/ou

aplicabilidade das propostas do grupo.

Diante disso, dois textos de Augusto de Campos, “Poesia, Estrutura” e “Poesia,

Ideograma”, que datam de 1955 – portanto são anteriores ao marco inicial, 1956, do

movimento propriamente dito – mostram-se pertinentes, uma vez que assinalam algo no

sentido daquilo que depois seria sintetizado, ou sistematizado, no Concretismo, i.e, uma

postura vanguardista cuja uma das principais bandeiras seria a superação do “arcaico

verso”. Nesses ensaios, partindo de Un Coup de Dés, Augusto apresenta uma profusão de

artistas14 (é o início da formação do paideuma), nos quais rastreia linhas de forças comuns

que estariam apontando para uma “nova realidade poética” (2002, 177), marcada por uma

“contraposição à organização meramente linear e aditiva tradicional (...) que repele o lento e

monótono silogismo, consagrando o dinamismo do processo de associação de imagens.”

(2002, p. 178).

Quando Augusto de Campos fala em “organização meramente linear e aditiva

tradicional”, por mais que se refira a um fenômeno que percebe em várias artes, não é

descabido fazer a correspondência com o verso, muito pelo contrário, o autor parece mesmo

querer induzir o leitor a esta interpretação, uma vez que, antes de lançar a sentença,

especula acerca da existência duma “nova realidade poética”. As citações são do texto

“Poesia, Estrutura”, que possui uma relação muito próxima com “Poesia, Ideograma” – tanto

que posteriormente, em 1956, seriam reformulados e agrupados num único ensaio,

denominado “pontos-periferia-poesia concreta” –, neste segundo, o autor procede quase

que do mesmo modo que no anterior, e após apresentar várias experiências de diversos

artistas, todas mais ou menos orbitando entorno da questão do ideograma, chega à seguinte

conclusão:

13

Dentre os que de alguma forma praticaram poesia concreta nos anos de atividade do movimento, merecem destaques: Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo, Wladimir Dias Pino, José Lino Grünewald e Pedro Xisto. 14

No texto são mencionados os nomes dos escritores: Mallarmé, Apollinaire, Joyce, Pound, e. e. cummings,

Marinetti e Yeats; dos compositores: Shoenberg, Webern, Boulez, Stockhausen e Michel Fano; e do cineasta Eisenstain.

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A verdade é que as “subdivisões prismáticas da Idéia” de Mallarmé, o

método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal

de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma

ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma

ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim,

silogismo, tendem a desaparecer diante da idéia poético-gestaltiana,

poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA. (2002, p. 186)

Nessa citação, o autor mais uma vez é generalizante, mas, tal como em “Poesia,

Estrutura” deixa margens para se pensar no discurso antiverso. Uma boa maneira de se

entender o que há de antiverso no trecho em questão, é fazendo a comparação entre a

versão apresentada acima, e sua reformulação, abaixo:

A verdade é que as “subdivisões prismáticas da Idéia” de Mallarmé, o

método ideogrâmico de Pound, a apresentação “verbicovisual” joyciana e a

mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de

composição, para uma nova teoria de forma – uma organoforma – onde

noções tradicionais como princípio-meio-fim, silogismo, verso tendem a

desaparecer e ser superadas por uma organização poético-gestaltiana,

poético-musical, poético-ideogrâmica da estrutura: POESIA CONCRETA.

(CAMPOS et al., 2006, p. 186, grifo nosso)

As modificações no parágrafo podem parecer poucas e pontuais, entretanto, são

muito significativas, pois acabam com a generalização da proposição anterior, revelando

que autor agora tem um norte bem definido: a poesia concreta. Logicamente essas

alterações não foram feitas por acaso, e são perfeitamente explicáveis pelo momento

histórico, uma vez que a primeira versão do texto data de um período em que o movimento

de poesia concreta ainda não estava totalmente articulado, logo, não havia necessidade de

se salientar coisas como “verso”, “superação” e, muito menos, “Poesia Concreta”.

Sem dúvida estes textos, apesar das inevitáveis críticas – como a de Franchetti

questionando a “linha evolutiva” que desembocaria no concretismo, citada no tópico anterior

–, são importantes documentos da Literatura Brasileira, visto que marcam o início das

articulações programáticas do movimento de poesia concreta. Posteriormente a eles, no

período dos manifestos propriamente ditos, o discurso antiverso será uma constante; o

manifesto assinado por Décio Pignatari, por exemplo, inicia-se da seguinte forma:

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o verso: crise. obriga o leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude

postiça. não consegue se libertar dos liames lógicos da linguagem: ao tentar

fazê-lo, discursa adjetivos. não dá mais conta do espaço como condição de

nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo, lombar, e

não como elemento relacional de estrutura. antieconômico, não se

concentra, não se comunica rapidamente. destruiu-se na dialética da

necessidade e uso históricos. este é apenas o golpe de misericórdia da

consciência crítica: o primeiro já fora dado, de fato, por Mallarmé, há

sessenta anos atrás - §un coup de dés§. (CAMPOS et al., 2006, p. 67)

A fala de Décio Pignatari é interessante por trazer um dado novo para justificação

da crise do verso: a questão da cultura de massa. Desta forma, o proposto por Décio

tenciona com o discurso de Augusto de Campos, na medida em que este procura explicar a

necessidade de superação do verso baseando-se numa “evolução de formas” que ocorrera

dentro da arte erudita, enquanto aquele ancora-se na ideia duma suposta “inadaptação” do

homem moderno – já muito afeito aos múltiplos estímulos da mass media – às exigências do

verso tradicional, logo, a superação deste deve vir por meio da assimilação de recursos

empregados pela indústria, pela propaganda, pela mídia etc. Essa tensão, ou mesmo

contradição, será uma forte marca do Concretismo, e é ela que legitima o comentário do

professor Paulo Franchetti quando diz que “o poema concreto é produzido como se fosse

um produto industrial; ao mesmo tempo deve ser lido como se fosse herdeiro erudito da

principal linha evolutiva da literatura ocidental.” (2007, p. 264).

Os dois outros manifestos, “poesia concreta” e “olho por olho a olho nu”, pouco

acrescentam ao que já foi exposto até então. No de Augusto de Campos, a abordagem, no

que diz respeito ao verso, é muito semelhante àquela dos seus primeiros textos, a diferença

é apenas que ele enfatiza que o seu discurso antiverso aplica-se também ao verso livre e

que a saída para a “crise do verso” estaria no ideograma. Seguem os pontos do manifesto

em que o poeta discorre sobre essas questões:

— mallarmé (un coup de dés - 1897), joyce (finnegans wake), Pound

(cantos – ideograma), cummings e, num segundo plano, apollinaire

(calligrammes) e as tentativas experimentais futuristas-dadaístas estão da

raiz do procedimento poético, que tende a impor-se à organização

convencional cuja unidade formal é o verso (livre inclusive).

— o poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de

funções.

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— o núcleo poético é posto em evidência não mais pelo encadeamento

sucessivo e linear dos versos, mas por um sistema de relações e equilíbrios

entre quaisquer partes do poema. (op. cit., p. 72)

O manifesto assinado por Haroldo de Campos é o único que não apresenta de

maneira explícita a postura antiverso dos anteriores, entretanto, após um conhecimento das

linhas de força que regem o movimento, não é difícil notar que o discurso duma crise de

versos faz-se presente em sentenças como:

LOGO:

falidos os meios tradicionais de ataque ao OBJETO

(língua de uso cotidiano ou de convenção literária)

um(a) novo(a) meio(língua) de ataque direto à

medula desse

OBJETO (2006, p. 73)

Todos esses recortes, no presente tópico, servem como amostras dos postulados

concretos sobre a questão da “falência”, “crise”, “morte” etc. do verso, contudo, o mais

valioso destas ideias não é o que foi dito sobre o verso, mas sim a maneira como os poetas

irão buscar soluções para estes discursos, i.e, como a poesia irá responder aos postulados.

Como é possível notar, sempre em paralelo à constatação de que o verso está falido, os

poetas concretos tentam apresentar – na realidade apenas citam – soluções de substituição

deste elemento, e é neste momento que a questão do ideograma salta aos olhos, contudo,

como esta é uma discussão um pouco mais complexa do que parece, uma nova seção

torna-se necessária para se discorrer sobre tal assunto.

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3.3 IDEOGRAMA & TÉCNICA IDEOGRAMÁTICA

Um aspecto no mínimo curioso acerca da crítica existente sobre o Concretismo é o

tratamento, geralmente, superficial que é dado ao tema da relação entre ideograma e

poesia, que chegou ao Brasil justamente por conta desse movimento, e que não raras vezes

coloca esta como uma das questões centrais para a compreensão da poesia concreta. Em

nenhum dos livros específicos sobre poesia concreta consultados para este trabalho, por

exemplo, a questão dos ideogramas é discutida de maneira que rompa as barreiras da mera

citação, mesmo num livro bastante completo, como é o Poesia Concreta Brasileira, de

Gonzalo Aguilar, que inclusive mostra o movimento sobre vários ângulos, nas páginas

dedicadas especificamente ao assunto em questão, não vai muito além daquilo que os

próprios poetas concretos já haviam exposto nos seus textos e em nenhum momento o

autor dedica-se a explicar o ideograma em si. A realidade é que a maioria dos críticos

simplesmente apresentam o ideograma como um termo dado.

Frente a isso, acredito que as únicas publicações nacionais que possam jogar um

pouco de luz, possibilitando uma pesquisa mais detalhada sobre esta questão dos

ideogramas chineses (vale destacar, para que não se confunda com os japoneses)

associados à poesia, sejam as de Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem e as do Abc da

Literatura, ambas, diga-se de passagem, organizadas por membros do Grupo Noigandres: o

primeiro por Haroldo de Campos, e o segundo, por Augusto de Campos. Entre os dois

livros, o organizado por Haroldo é de longe o mais relevante (e revelador) sobre o tema,

principalmente por conter o ensaio que foi a pedra fundamental para que Pound, e

consequentemente, os poetas concretos, formulassem suas hipóteses; refiro-me ao The

Chinese Written Character as a Medium for Poetry (“Os Caracteres da Escrita Chinesa como

Instrumento para a Poesia”), do filósofo e orientalista norte-americano, Ernest Fenollosa.

Para se compreender como Fenollosa, Pound e os poetas concretos relacionaram os

ideogramas chineses com a construção poética, torna-se necessário uma noção, pelo

menos básica, de como estes são construídos, para que com isso se possa conhecer suas

características intrínsecas, ignoradas pela maioria daqueles, como nós, que estão

acostumados com as línguas alfabéticas. Pensando nisso, creio ser interessante abrir um

parêntesis a fim de apresentar alguns aspectos do ideograma chinês em si. Para tanto, um

bom modo de se começar talvez seja apresentando os quatro pontos principais na

constituição de um caractere chinês, os quais, segundo Yu-Kuang Chu, em “Interação entre

Linguagem e Pensamento em Chinês”, são:

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Representação pictural

Diagramação da idéia

Evocação por sugestão

Combinação de “radicais”

O primeiro ponto destacado diz respeito aqueles ideogramas cuja ligação com a

imagem do objeto representado ainda é muito forte, i.e, o caractere é como se fosse uma

pintura esquemática da coisa, tal como ocorre com os ideogramas de montanha (figura

abaixo), porta, árvore etc.

15

O segundo ponto corresponde a uma espécie de alternativa pictural para

representar aquilo que não pode ser representado, explico-me: imagine como poderíamos

desenhar a quantidade numérica “um”? Acredito que todos acham a missão um tanto quanto

impossível, não? Contudo, para representar aquilo que não tem correspondente na

natureza, que é pura abstração, os chineses recorreram à diagramação da idéia, como é

notável nos exemplo dos ideogramas de “acima” e “abaixo”.

15

Todos os ideogramas presentes neste trabalho foram retirados do livro Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. Nos exemplos 1, 2 e 4, tem-se os ideogramas nas suas formas primitivas (à esquerda) e nas suas formas atuais (à direita).

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No terceiro princípio, o da sugestão, dois caracteres são colocados juntos para

“sugerir” uma terceira coisa, daí a famosa frase de Fenollosa, muito explorada pelos poetas

do movimento concreto, sobre a escrita chinesa: “Nesse processo de compor, duas coisas

que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre

ambas” (2000, p. 116). Este princípio costuma ser exemplificado, pelos concretistas, com o

ideograma de “Brilho”, o qual é composto pela junção dos caracteres de “Sol” e “Lua”, no

entanto, aqui, até para fugir um pouco dum exemplo já muito citado, uso o ideograma de

lealdade, que creio servir tão bem quanto o de brilho, para o exemplo em questão, segue:

O último ponto, chamado neste trabalho, didática e esquematicamente, de

“combinação de radicais”, é definido por Yu-Kuang Chu como uma “combinação de um

elemento significativo com um elemento fonético” (2000, p. 210). Os ideogramas formados

desse modo se assemelham com a nossa construção de palavras, na qual ligamos

morfemas a um radial. Como exemplo deste princípio, tem-se o ideograma de “oceano”, que

é formado pelo caractere de “água” (funcionando como um “radical” ou parte semântica)

mais o de “ovelha”, que apenas indica a pronúncia da palavra.

A representação pictural e a evocação por sugestão foram as características que

mais chamaram atenção de Fenollosa e Pound, visto que foi nessas que encontraram a

metáfora visual que lhes permitiu uma associação da escrita chinesa com a poesia.

Entretanto, esta supervalorização do aspecto pictórico dos ideogramas foi alvo de duras

críticas dos sinólogos, pois estes afirmam que a maioria dos caracteres da escrita chinesa

são formados por “combinação de radicais”, logo, a metáfora visual é quase inexistente e a

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escrita chinesa seria tão arbitrária quanto as alfabéticas; estes estudiosos ressaltam ainda

que, mesmo diante de ideogramas com caráter mais pictórico, o falante nativo do chinês não

tem noção desta metáfora visual e vê, no dia a dia, sua escrita de modo semelhante como

vemos a nossa, i.e, como signos arbitrários.

Sem entrar no mérito da discussão que encerra o parágrafo anterior, até mesmo

porque não é ambição deste trabalho solucionar questões de linguística chinesa, mas sim,

apresentar, e se possível esclarecer, aquilo que Fenollosa e Pound acreditaram ser

interessante para a criação poética partindo dos ideogramas chineses, ou melhor, partindo

da visão deles desta escrita, portanto, é com essa visão, errada ou não, que devemos lidar

para entender de forma satisfatória o que, daqui por diante, chamar-se-á, bem a gosto dos

poetas concretos, de “técnica ideogramática”.

Alguns conceitos de poesia, em especial os modernos, colaboram para o

desenvolvimento da ideia da produção de poemas ideogramáticos. Um destes é o de função

poética, a qual foi definida por Roman Jakobson como aquela que “visa por em evidência o

caráter palpável do signo”, diante disto, uma das preocupações principais do poeta deve ser

com a materialidade da palavra. Esta valorização do que há de “palpável” no signo, muito

lembra a questão pictural dos ideogramas, logo, acredito ser aceitável colocá-la como uma

primeira justificativa para o desenvolvimento de poemas marcados (de maneira intencional

ou não) por um recurso típico da construção dos ideogramas chineses; tal como fez, em

muitos poemas que compõem sua obra, o poeta norte-americano, e. e. cummings, que, nas

palavras de Augusto de Campos: “Introjeta num idioma moderno ocidental, como o inglês,

procedimentos derivados do ideograma chinês (a figuralidade de origem pictográfica e o

pensamento por analogia)” (2011, p. 14).

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O poema16 acima, de e. e. cummings, é pertinente por aquilo que já foi dito, mas

também por nos remeter a mais uma ideia que corrobora, ou até mesmo abaliza, a técnica

ideogramática, i.e, o conceito, muito caro aos japoneses (vide os famosos haikais), de

poesia como linguagem sintética e condensada. E como defensor desta teoria, são

pertinentes as palavras de Ezra Pound, que define a poesia, no seu ABC da Literatura,

como “a mais condensada forma de expressão verbal.” (2006, p. 40).

Para alcançar a “condensação” mencionada no parágrafo anterior, e. e. cummings

vale-se dum recurso, dentre outros, de montagem paralela, técnica que o cineasta

Eiseinstain definiu como própria do cinema, mas que será vastamente utilizada na poesia

que tende ao ideograma. Contudo, não é de todo correto pensar que o recurso da

montagem foi um empréstimo do cinema à poesia, visto que muitas das conclusões sobre

esta técnica o cineasta chegou ao estudar os haikais e os ideogramas japoneses17.

Dentro da Teoria Literária, as reflexões dos Formalistas Russos – em certos

momentos bastante apreciadas pelos poetas concretos – quanto à língua poética em

oposição à língua do cotidiano muito podem acrescentar a discussão desenvolvida até o

momento, sendo postas num diálogo com a questão dos ideogramas. Nesta “conversa”, o

ponto central deve ser o da significação de língua poética para o formalismo, a qual

Eikhenbaum defende afirmando que

a língua poética não é unicamente uma língua de imagens e que os sons

do verso não são somente os elementos de uma harmonia exterior, que

não só acompanha o sentido, mas que eles próprios têm uma

significação autônoma. (1976, p. 11)

Partindo do exposto acima, conclui-se que os formalistas viam a língua poética, ou

a linguagem literária, como “motivada (não arbitrária), autotélica (e não linear),

autorreferencial (e não utilitária)” (2010, p. 40); da forma que resumiu Antoine Compagnion

ao falar desta corrente. Todas estas características citadas podem ser encontradas nos

ideogramas chineses – lembrando sempre que isso é de acordo com o modo como

Fenollosa e Pound encararam esta língua. No caso da não arbitrariedade do signo, um bom

16

A tradução é de Augusto de Campos e pode ser encontrada em e. e. cummings Poem(a)s (Ed. Unicamp,

2011, p. 145) 17

Os ideogramas japoneses não são exatamente iguais aos chineses, entretanto, como esta língua deu origem aquela, é natural que algumas semelhanças.

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exemplo pode ser visto no poema “Tema A”, de Max Martins, no qual o autor, valendo-se da

metapoesia, discute justamente esta eterna luta do poeta contra a arbitrariedade do signo,

como é nítido nos versos finais (bastante ideográficos, diga-se de passagem) do poema em

questão:

acordo ao peso

do signo imenso pêndulo

p

e

n

s

o

que a lua de sangue espreme

espraia

maré de pêlos

gosma (2001, p. 337)

Todas estas questões os poetas concretos ambicionaram aglutinar nas suas

produções poéticas, principalmente por enxergarem nos poemas ideogrâmicos uma boa

alternativa ao verso, ou seja, a técnica ideogramática seria a forma de converter o discurso

teórico do antiverso, numa prática de poesia. Deste ponto de vista, o posto por Aguilar –

mesmo com as ressalvas feitas no parágrafo inicial – é preciso: “o ‘ideograma’ foi um termo

que sintetizou, com diferentes inflexões, os métodos de composição que os poetas

concretos utilizaram durante os anos em que atuaram como grupo de vanguarda.” (2005, p.

231)

Dentro do movimento, o enfoque na questão do ideograma sempre foi de suma

importância, tanto que nos manifestos dos poetas é possível encontrar afirmações como de

Augusto de Campos, citadas no tópico anterior, que apresenta o poema concreto como

termo equivalente a ideograma. Haroldo de Campos procede de modo análogo a este

quando, em “olho por olho a olho nu”, aponta o poema concreto como uma

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composição de elementos básicos da linguagem, organizados ótico-

acusticamente no espaço gráfico por fatores de proximidade e

semelhança, como uma espécie de ideograma para uma dada emoção,

visando à apresentação direta – presentificação – do objeto. (2006., p.

75, grifo nosso)

Entretanto, acredita-se que só com os poemas da “fase matemática”18 é que os

poetas conseguiram alcançar “uma equivalência total entre ideograma e poema” (AGUILAR,

2005, 195). Os poemas desta fase são os mais característicos do concretismo, eles são

marcantes pela força visual: todos tendem à forma da quadrícula – aqui vale lembrar as

influências da pintura concreta –, buscam a simultaneidade, o despojamento da sintaxe e a

presentificação da “coisa”, do “objeto”, do “assunto” tratado, tal qual o ideograma o faz.

Gonzalo Aguilar, ao comentar o poema “Cristal”, de Haroldo de Campos, afirma algo que

pode facilmente ser aplicado a grande maioria, se não a todos os poemas desta fase, a

saber:

Trata-se de um ideograma – como queria Pound – mas despojado da idéia

de metáfora ou de trama linear. É como o espaço mallarmeano, porém,

regulado segundo os princípios da Gestalt e da geometria. Não há, nesse

poema, nenhuma metáfora: a forma se expõe a si mesma como

materialidade organizada ou ordenada segundo os preceitos da poesia

concreta. (2005, p. 196)

A fim de salientar ainda mais toda essa produção poética concreta caracterizada

pela tentativa, por meio da técnica ideogramática, de rompimento com a lógica-linear do

verso em favor da analogia-sintética do ideograma, seguem abaixo alguns poemas, ou

ideogramas, desta chamada “fase ortodoxa” do movimento.

18

O Concretismo normalmente é dividido em três momentos: fase orgânica, fase matemática e fase do salto participante.

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(CAMPOS, H., 1976, p. 118)

(PIGNATARI, 2004, p. 126) (RONALDO AZEREDO)

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(CAMPOS, A., 2001 p. 103)

3.4 FIM DAS UTOPIAS

Posteriormente a essa fase de produção matemática, dos poemas ideogrâmicos

que encerram o tópico anterior, da chamada “fase ortodoxa”, a poesia concreta prepara-se

para encenar o último ato da sua peça, i.e, prepara-se para dar o que Décio Pignatari

chamou de “salto da onça”, que nada mais é do que o salto para a participação política, para

a poesia engajada.

A onça vai dar o pulo. Até onde pulará para trás, para o êxito do verso? Ou

conseguirá levantar a maldição sartriana, o suficiente, pelo menos, para

prenunciar o fim da “poesia contemporânea” (e esse pode ser o grande

desafio ao seu poder de invenção)? A poesia concreta vai dar, só tem de

dar, o pulo conteudístico-semântico-participante. Quando – e quem – não se

sabe. Nem será percebido, numa sociedade onde a poesia, sobre ser

gratuita, é clandestina. De qualquer forma, é preciso jogar os dados

novamente. O projeto é coletivo também no tempo. (PIGNATARI, 2004, p.

117)

O salto participante é o momento do Concretismo que mais facilmente pode ser

justificado com base no contexto histórico-social, isto porque representa claramente uma

tomada de posição diante das tensões políticas no Brasil dos anos de 1960. Isto não quer

dizer, contudo, que a poesia concreta anterior a este período esteve isenta das influências

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sociais; muito pelo contrário, pode ser até esclarecedor observar, por exemplo, o quanto o

movimento de poesia concreta é fruto de um momento extremamente favorável às utopias,

uma vez que nasce justamente na época do Brasil dos “50 anos em 5”, i.e, o Brasil marcado

pelo desenvolvimentismo do governo de Juscelino Kubitschek, que o próprio Haroldo de

Campos, mais tarde, reflete como sendo este período “um dos raros de plenitude

democrática que foram dados viver à minha geração.” (1997, p. 267).

Todo esse clima de “desenvolvimento” e “liberdade” no contexto social não passou

sem deixar marcas no movimento: não é à toa que o manifesto mais conhecido do grupo

chama-se “Plano-Piloto da Poesia Concreta”, numa explicita alusão ao “Plano-Piloto de

Brasília”, o maior símbolo do desenvolvimentismo. Vale lembrar ainda, que os anos do

governo JK representaram o ápice dum processo de modernização brasileiro que já vinha

ocorrendo desde o Estado Novo (1930 - 1945), marcado por muitos pontos favoráveis a

difusão da literatura (vide o grande boom que foi o chamado Romance de 30) e da cultura

erudita dum modo geral, isto graças às inúmeras transformações pelas quais o Brasil estava

passando, tais como: melhoria na educação, redução do analfabetismo, aumento do público

leitor e da produção de livros, criação de órgãos de preservação e difusão da cultura,

proliferação das instituições de ensino superior etc. Diante destes sedutores dados, ou

melhor, envolto por eles, o movimento de poesia concreta foi articulado, construído sobre o

sonho dum Brasil do futuro, duma ideia de país que logo superaria o subdesenvolvimento;

deste ponto de vista, uma crítica como a de Heloísa Buarque de Hollanda mostra-se

pertinente:

o cálculo político-econômico da vanguarda concretista não percebe o

caráter estrutural do subdesenvolvimento no sentido de sua integração ao

sistema capitalista internacional (...) Caía então a vanguarda na armadilha

desenvolvimentista: a crença que o país estaria ultrapassando o

subdesenvolvimento. A modernização que de fato ocorria – mas para

adequar a economia brasileira a uma nova etapa de dependência, marcada

pela integração ao capital monopolista – era mal avaliada e mitificada.

(1992, p. 41)

Indubitavelmente, a reflexão entre poesia e política, ou entre vanguarda e

subdesenvolvimento, esteve ausente da maior parte do movimento de poesia concreta, e

em alguns momentos foi até mesmo repudiado por meio das várias citações do texto

sartreano, no qual o filósofo comenta que “tolice seria exigir-se um alistamento poético”

(SARTRE apud CAMPOS et al., 2006, p. 46), ao falar sobre a questão do engajamento

político em literatura. Contudo, nos anos de 1960, os poetas concretos refletem sobre suas

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45

próprias obras e parecem chegar a uma conclusão muito semelhante a de Heloísa Buarque

de Hollanda na citação acima, e com isso decidem agir.

A ação concreta, como já foi dito anteriormente, é pelo engajamento, entretanto, é

interessante observar que o discurso de valorização da técnica poética não esmorece

mesmo diante da preocupação “conteudística”, pois, como afirmou Haroldo de Campos, a

ideia dos poetas na fase do salto participante era a de fazer uma “poética para, capaz de

utilizar, na perspectiva do engajament, as conquistas técnicas da poesia pura.” (1997, p.

268). Diante disso, a reflexão sobre a crise do verso, bem como o discurso antiverso,

continuam; todavia, justificando-se menos como uma evolução de formas artísticas do que

como sintoma da crise social, econômica, política e ideológica, i.e, o rompimento do verso,

de acordo com a nova postura, seria uma espécie de reflexo das transformações e tensões

sociais pela qual o mundo vinha passando, tal como é notável na seguinte fala de Décio

Pignatari, em “A Atual Situação da Poesia no Brasil”:

O que é importante esclarecer, desde logo, é que a crise da poesia, em

qualquer dos aspectos que a tomemos, corresponde isomorficamente – e

simplesmente – à crise do verso, tratando-se, como se trata, de uma única e

mesma crise, ela mesma parcela de uma crise muito mais vasta: a crise do

artesanato face à revolução industrial (econômica, social e ideológica), que

se manifestou e ainda se manifesta em todos os setores artísticos, para

ficarmos, por ora, apenas neste terreno. Seria ingênuo pensar, aliás, que o

advento da burguesia ao poder, a revolução industrial, a exacerbação

contraditória do individualismo lastreado na divisão da propriedade e dos

interesses, os avanços da ciência e da técnica e a consciencialização da

luta de classes deixariam intatos, por verdade superior e supra ou a-

histórica, o verso e/ou a poesia, e a arte, e os seus conteúdos herdados.”

(2004, p. 100-101)

Apesar do “salto participante” ainda representar uma decisão comum do Grupo

Noigandres, a realidade das produções poéticas dos participantes do movimento são cada

vez mais diversas: é a partir deste momento que se torna cada vez mais difícil encontrar

denominadores comuns entre os três noigandres. Enquanto Haroldo de Campos, por

exemplo, retorna ao verso (e nunca mais o abandonará, exceto pela experiência da prosa

poética de Galáxias) com o poema “Servidão de Passagem”

poesia em tempo de fome

fome em tempo de poesia

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46

poesia em lugar do homem

pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia

nome em lugar do pronome

poesia de dar o nome

nomear é dar o nome

nomeio o nome

nomeio o homem

no meio a fome

nomeio a fome (1976, p. 126)

Décio Pignatari e Augusto de Campos, por outro lado, optam por uma radicalização

ainda maior – no sentido da visualidade – do que haviam perpetrado na “fase matemática”,

este é o caso dos chamados “poemas semióticos” do primeiro, e dos “popcretos”, do

segundo. Os dois poemas abaixo, “Pelé” e “PSIU!”, exemplificam, respectivamente, ambas

as tendências citadas anteriormente.

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(PÌGNATARI, 2004, p. 169)

(CAMPOS, A., 2001, p. 133)

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No ensaio “Poesia e Modernidade: da Morte da Arte à Constelação. O Poema Pós-

Utópico”, Haroldo de Campos defende que toda essa desagregação, essa falta de unidade

que caracterizou o período engajado da poesia concreta, seria o desfecho natural de toda

vanguarda, uma vez que num contexto de profundas crises de ideologias, no qual o mundo

encontrava-se repartido entre o capitalismo imperialista-predatório e o estado-burocrático

repressor socialista, i.e, num contexto em que a desconfiança contra qualquer “aglutinação”

em torno duma ideologia é a opção mais sensata, torna-se difícil manter um plano comum,

agregador, tal qual deve ser um movimento de vanguarda, visto que “em seu ensaio de

totalização a vanguarda rasura provisoriamente a diferença, à busca da identidade utópica.”

(CAMPOS, H., 1997, p. 266). É nestes termos que Haroldo de Campos desenvolve sua ideia

de momento pós-utópico da poesia:

Entendendo o momento que a atualmente vivemos – momento que estamos

vivendo desde, pelo menos, o fim dos anos 60, quando se concluiu,

segundo penso, o processo de poesia concreta enquanto movimento

coletivo e experimento em progresso – não é propriamente um momento

pós-moderno, mas, antes, pós-utópico. (1997, p. 265)

Como visto, o início da “era pós-utópica” é o fim do movimento de poesia concreta,

ou vice versa. Esta ideia proposta por Haroldo mostra-se bastante interessante na medida

em que é notório que a atual poesia brasileira realmente carece de um projeto comum, não

houve, desde o fim do Concretismo, nenhum outro movimento marcado por esta perda da

individualidade em favor duma “união utópica”, muito pelo contrário, as experiências

posteriores aos anos 60 do século passado são marcantes pela pluralidade individualista.

Contudo, é importante dizer que as ideias e experimentações propostas pelo Grupo

Noigandres não estão “mortas e enterradas”, mas sim, diluídas em inúmeras manifestações

poéticas da atualidade, e isso pode ser observado uma vez que se entenda, como Gonzalo

Aguilar, que “a poesia concreta, que em seu início era um programa, passou a ser um

procedimento” (2005, p. 243).

É pensando no que foi abordado no parágrafo anterior que o próximo capítulo do

presente trabalho será desenvolvido. Neste, buscar-se-á refletir sobre a poesia

contemporânea que de alguma forma é influenciada pelas experiências poéticas e/ou pelo

discurso teórico dos poetas concretos, especialmente, no que diz respeito ao discurso de

“crise do verso” e, logicamente, os procedimentos que encenam tal discurso, em suma,

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tratar-se-á de verificar como os novos poetas, herdeiros do concretismo, estão lidando com

esta herança.

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4. RESTOS DE CONCRETO

4.1 DELIMITANDO AS FRONTEIRAS DO AGORA

Após o fim do movimento de poesia concreta, inúmeras e variadas experiências

poéticas tomaram conta do cenário literário brasileiro. Como “herdeiros” diretos e imediatos

do concretismo, se costuma citar o advento do neoconcretismo, da poesia práxis e do

poema processo, entretanto, tais movimentos mais podem ser visto como desdobramentos

de pouca expressão daquela vanguarda do que como sucessores propriamente ditos: todos

estão inseridos dentro da mesma conjuntura vanguardista que dominou a produção poética

do Brasil nos anos de 1950 e 1960.

Para além das tendências supracitadas, dos anos de 1970 até os atuais fica cada

vez mais difícil pensar numa “linha mestra” para poesia brasileira, visto que após o

concretismo nenhum grupo de poetas se predispôs a assinar e/ou defender qualquer

movimento. Talvez somente as produções da chamada “poesia marginal”, que teve grande

relevância na década de 70, e parte da de 80, do século passado, tenha se aproximado de

algo como um movimento literário, contudo, este pensamento corre sérios riscos de entrar

num contrassenso com a característica anárquica dos poemas marginais, que, se realmente

possuem um denominador comum, é certamente o de defesa da liberdade nos moldes

ideológicos da contracultura. Além do mais, os próprios poetas tidos como “marginais”

evitavam pensar num projeto comum para seus poemas e algumas vezes chegavam mesmo

a valerem-se de técnicas poéticas bastante distintas em suas obras. Essa falta de unidade é

encontrada até entre os nomes mais expressivos dessa poesia, como Chacal, Cacaso,

Francisco Alvim, Ana Cristina Cesar e, principalmente, Paulo Leminski, que muito

comumente não é nem tido como poeta marginal.

É importante ressaltar, ainda acerca da poesia marginal, que a fragilidade técnica19

desta, indicada por muitos críticos, contribuiu para uma grande produção, porém com pouca

expressividade em termos qualitativos. No que diz respeito a isso, a própria Heloisa Buarque

de Hollanda – conhecida pelos seus estudos sobre poesia marginal – ainda em 1975, já

19

A poesia marginal está cheia de repetições de experiências modernistas, especialmente no que tange a primeira geração, e é comum o uso dum verso livre pouco reflexivo que muitas vezes não difere em nada do prosaico, o qual serve apenas para transmitir confissões da vida cotidianas com certo tom humorístico. Sobre isso, Paulo Franchetti, comenta: “o valor individual da vasta produção ‘marginal’ do período parece pequeno ou nulo (...) animada pela desqualificação e facilitação literária, e apoiada na proposição de que a expressão direta do cotidiano e das angustias juvenis era uma forma de protesto político” (2007, p. 285).

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apontava na direção dos perigos de tal “facilidade poética”, quando no prefácio da sua

célebre antologia, 26 Poetas Hoje, afirma que

Parte significativa da chamada produção marginal já mostra aspectos de

diluição e de modismo, onde a problematização séria do cotidiano ou

mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo,

constituindo-se em mero registro subjetivo sem maior valor simbólico e,

portanto, poético. (2007, p. 13)

Em paralelo à poesia marginal, que muito tem de resgate do modernismo de 22, é

notório como várias produções poéticas da época (e também posteriores) possuem certo

caráter revival, i.e, de volta a estéticas já consagradas pela história literária, diante disso,

proliferam-se os “neo’s”: “neoparnasianos”, “neoromânticos”, “neobarrocos” etc. Alfredo

Bosi, na sua História Concisa da Literatura Brasileira, parece conseguir, até certo ponto,

aglutinar boa parte dessa produção refletindo sobre aquilo que ele coloca como “veio

existencialista” da poesia brasileira, e que percebe em poetas situados entre uma

concepção moderna e tradicional de lírica, e nos quais estão presentes

o discurso metrificado e o imaginário romântico ou surrealista com a

presença, hoje quase indefectível, de uma forte autoconsciência literária.

Muitos dos seus textos acordam em nós ecos musicais de Cecília Meireles,

de Jorge de Lima, de Vinícius de Moraes, cortados por uma ou outra nota

mais ríspida de Drummond ou de João Cabral. (BOSI, 2003, p. 485)

Como representantes dessa poesia de “veio existencialista”, Bosi cita autores

como, dentre outros, Walmir Ayala, Bruno Tolentino, Carlos Nejar, Ivan Junqueira, Adélia

Prado e Alcides Villança. E por fim, defende a ideia de que “a poesia deste fim de século

parece ter cortado as amarras que pudessem atar qualquer ideal de unidade, quer ético-

político, quer mesmo estético, no sentido moderno de construtivo de um objeto artístico.”

(2003, p. 488).

Toda essa profusão de tendências poéticas está em conformidade com conceito –

já citado no final do capítulo anterior – de “momento pós-utópico”, que Haroldo de Campos

usou na tentativa de explicar o esgotamento das vanguardas, incluindo aí, o concretismo, e

o surgimento da era do “poema pós-utópico”, que seria marcado, principalmente, pela falta

de qualquer ligação com um projeto coletivo. Haroldo de Campos defende sua teoria

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valendo-se do contexto sócio-político da época, chamando atenção para o fenômeno da

“crise de ideologias” pelo qual o mundo polarizado do pós-guerra estava passando.

Na esteira desse pensamento haroldiano, é possível especular que, se realmente a

“crise de ideologias” está diretamente relacionada com o fim das utopias, e isso resulta na

poesia pós-utópica, então, é certo que esse estado da poesia sofreu um aumento

exponencial, uma vez que as crises ideológicas, dos anos de 1970 para cá, apenas

aumentaram, especialmente após a queda do muro de Berlim e do fim da URSS. É provável

que seja por refletir desta maneira, que Marcos Siscar, inicia seu ensaio, “A Cisma da

Poesia Brasileira”, com a afirmativa de que “Diferente dos momentos que a precederam,

quando as questões poéticas e políticas estavam bem definidas para seus autores, a poesia

posterior ao período militar mantém-se sob uma luz difusa.” (2010, p. 149), e, reforçando, no

parágrafo seguinte, comenta:

Ao primeiro olhar, de fato, a poesia brasileira publicada a partir dos anos de

1980 apresenta, antes de mais nada, algumas marcas da ausência de

forças mestras. Não seria incorreto concluir que ela tem um aspecto de um

movimento de tração ou de refluxo com relação as tensões da décadas

anteriores. (2010, p. 149)

A fala de Siscar é interessante por acrescentar ao que já vinha sendo dito, tanto por

Bosi, quanto por Haroldo de Campos, a questão do fim da ditadura militar como um

agravante para as incertezas político-ideológicas no Brasil. Com isso, o autor traz para mais

perto a marcação do momento inicial de produção desta poesia “difusa” e/ou “pós-utópica”,

que não mais estaria situada no fim do movimento concreto, como sugeriu Haroldo de

Campos, mas sim no início dos anos de 1980.

Independentemente dum marco inicial, o fato é que após o concretismo e até os

dias atuais, o discurso teórico sobre poesia brasileira aponta na direção duma poética da

variedade sem uma única linha de força condutora. Certamente os estudiosos tem razão ao

afirmarem que não há mais uma linha mestra, entretanto, acredito ser possível rastrear

algumas linhas de forças dentro da produção nacional, e não restam dúvidas, por conta das

pesquisas que foram feitas para o presente trabalho, de que uma dessas está ancorada no

discurso concretista.

Esta influência da poesia concreta, dentro da tão difusa poesia que vem sendo

produzida posterior a 1960, mostra-se de maneira mais nítida – e algumas vezes até

declarada – nos poetas que vem produzindo a partir dos anos de 1980. Esta ligação com o

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concretismo não se deu por acaso, e pode ser entendida como fruto da grande, e relevante,

participação dos membros do Grupo Noigandres no cenário da literatura brasileira, como

revela, o professor Maurício Salles Vasconcelos, ao explicar um dos fatores que teria

contribuído para certa “hegemonia concreta” que ele defende como existente na poesia

brasileira:

Outro fator importante para o entendimento desta hegemonia da vanguarda

no Brasil está no papel cultural desempenhado pelos irmãos Campos, porta-

vozes muito bem aparelhados da arte não apenas poética, e não apenas

moderna, do pensamento crítico-teórico existente sobre o critério da

invenção. (1999, p. 19)

Vasconcelos não se engana ao dizer que os irmãos Campos eram muito bem

aparelhados, afinal, é notória a ligação dos poetas com grandes editoras, universidades e

jornais; além disso, a forte atuação como tradutores lhes proporcionou importantes contatos

com poetas e críticos internacionais, tais como Roman Jakobson, Derrida, Umberto Eco, e.

e. cummings, Cortazar, Octávio Paz e muitos outros. Todo este “aparelhamento” foi de suma

importância para propalar aquilo que Marcos Siscar chama de “pedagogia concreta”, a qual,

evidentemente, divulga as ideias concretistas, e que, de acordo com o autor, “pode ser

descrita como um ‘terremoto’ do qual ainda não estamos nos recuperando.” (2010, p. 105).

Diante disso, não é de se estranhar que uma parte significativa das produções

poéticas dos anos de 1980, 1990 e as do início do século atual, estejam relacionadas com

vários paradigmas do concretismo, como é evidente nas palavras do poeta Claudio Daniel

no seu prefácio à antologia Na Virada do Século: poesia de invenção no Brasil, organizada

por ele em conjunto com o também poeta, Frederico Barbosa:

Ao longo dos anos 80 e 90, a descida de Orfeu aos infernos, que é reflexão

sobre os processos de linguagem, estimulou a releitura de autores

“obscuros” ou “herméticos” de uma antitradição, como Lezama Lima, Paul

Celan, Francis Ponge e Robert Creely, numa saga de ampliação do

repertório. Do mergulho vertical até o ignorado surgiu uma poemática

concisa, elíptica, fragamentária e metafórica que por vezes sobrepõe o som

ao sentido, ou antes cria novos sentidos para as palavras da tribo. Essa ars

poética, que já foi chamada pós-concreta, parte da crise do verso de

Mallarmé, mas procura soluções construtivas diversas de Noigandres.

(2002, p. 23)

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De acordo com o que diz Daniel, é possível perceber o diálogo desta poesia do final

do século XX com o movimento de poesia concreta, desde o momento que o prefaciador

fala do gosto dos poetas por autores obscuros e herméticos, porém revela-se mesmo em

definitivo quando o autor salienta que a questão da “crise do verso” é encarada como algo

que merece grande atenção por parte daqueles poetas. É interessante ainda observar como

neste prefácio há um tom de unidade no discurso, entretanto, o próprio Claudio Daniel

explica que não escreve como membro de um movimento, pois não acredita que este exista,

e defende que apenas há um “sentimento comum”, algo como um “espírito de época”,

conforme a seguinte passagem:

Não podemos falar de um movimento, já que não existem manifestos,

ensaios teóricos ou a defesa, em bloco, das mesmas teses normativas (...)

Podemos falar, talvez, de um espírito de época. Neste sentido, é importante

notar que os poetas da nova geração, em especial nos grandes centros

urbanos, muitas vezes sem terem contato uns com os outros, obtiveram

resultados similares pela coincidência de leituras e pesquisas formais;

podemos falar, então, de sincronicidade. (2002, p. 24)

Pensando nesta “sincronicidade” defendida por Daniel, revela-se – e de certo modo

se justifica – o interesse deste trabalho pela poesia produzida a partir de 1980, uma vez que

é nela que se encontra a maior proximidade com o concretismo, ou, mais especificamente,

com a questão do antiverso: não é absurdo enxergar nos autores deste período um trabalho

com a herança deixada pela poesia concreta, i.e, vê-los como herdeiros do discurso de

“crise do verso” que foi encetado por aquele movimento. Contudo, além desse recorte

temporal, é preciso ressaltar a necessidade de outro, de ordem qualitativa (no sentido mais

etimológico do termo), em vista da profusão de linhas de forças – discutida no início desta

sessão – que regem a poesia contemporânea, e que impedem qualquer tomada de posição

muito rígida por parte do estudioso, uma vez que, do mesmo modo que se pode falar numa

poesia, do período em questão, descendente do tronco concretista, é possível falar numa

que tem origem no modernismo, na geração de 45, na poesia marginal etc.; destarte, o corte

qualitativo aqui feito, deve ter por base, exclusivamente, aquela que herda os “dramas” da

poesia concreta e os adota como força motriz para construção poemática, pois é nesta

poesia que se encontrará o resultado dos anos de discurso antiverso ao qual os concretistas

se dedicaram.

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Desta poesia que, em termos históricos, ainda é muito recente, já se tentou mapear

algumas características generalizantes, como fez, no seu artigo intitulado “Poesia

Contemporânea Nacional: Reincidências e Passagens”, Maurício Vasconcelos:

Brevidade, autoreferencialidade, secura expressional, conceitualismo no

sentido abstratizante, tautológico (o não-sujeito legado pela poesia de

Cabral se ressente, no caso contemporâneo, da ausência de um solo

orgânico, territorial, do qual se possa nutrir): essas são as marcas

predominantes do poético agora, tal como perseguidas por um grande

número de novos autores, sob auxílio da mídia impressa – como também da

universidade –, hegemonicamente comandada por muitos desses poetas.

(1999, p. 22)

O que o autor revela tem bastante fundamento, e só pelos pontos apresentados é

possível rastrear boa parte dos modos de ser da poesia contemporânea20, entretanto, não

discorre acerca da herança que permeia tal poesia, e que, de acordo com Marcos Siscar:

não é senão aquela fundada no cisma da oposição entre a poesia

concretista, semiótica, tecnológica, formalista de um modo geral, e a poesia

do cotidiano, a poesia que busca inspiração na língua e na cultura popular,

marginal editorialmente, crítica no que concerne ao papel conservador da

modernização no Brasil. (2010, p. 153)

A reflexão de Siscar, somada com a de Vasconcelos, já são suficientes para se

começar a andar no terreno, ainda um pouco alagadiço, desta poesia que nem mesmo foi

batizada. Apesar disso, não deixa de ser interessante citar mais uma vez o prefácio de

Claudio Daniel, visto que este, guardado as proporções, pode ser tido como um dos raros

momentos em que é possível se encontrar uma fala que revela certo sentimento de unidade

dentro da poesia contemporânea. Deste modo, a fim de também somar com os outros

autores citados, segue o trecho no qual o poeta caracteriza a poesia em questão:

A desarticulação sintática e a mestiçagem semântica que verificamos

nesses autores [os antologiados] sugerem uma relação especular ou icônica

com o tempo ruidoso, inquieto e fragmentário em que vivemos. O império do

pós-moderno, que vaticinou o fim da história e o eclipse das utopias, sob a

20

Daqui por diante, toda vez que se usar o termo “poesia contemporânea” neste trabalho, será fazendo referência àquela poesia produzida a partir dos anos de 1980 e que mantém um forte diálogo com o concretismo.

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hegemonia do capitalismo predatório neoliberal, só poderia mesmo conduzir

a dois caminhos opostos: o da negação da idéia de vanguarda e o da

(re)afirmação dos conceitos de invenção e pesquisa estética. (2002, p. 26)

As três citações (Vasconcelos, Siscar e Daniel), postas como complemento uma

das outras, delineiam uma parte das fronteiras da poesia contemporânea, contudo, para

atingir por completo as ambições do presente trabalho, se faz necessário um

aprofundamento no que diz respeito à questão encontrada, principalmente, na citação de

Marcos Siscar, i.e, a questão da herança concreta. É preciso verificar, nos poemas e no

discurso dos poetas, como a “crise do verso” está sendo encenada e, para isso, um novo

tópico, é indispensável.

4.2 ALGUNS HERDEIROS DA CRISE

Um dos grandes problemas – ou desafios – de se estudar poesia contemporânea,

está justamente no fado desta ser contemporânea, i.e, recente, com pouco tempo de

existência e sem as “certezas” proporcionadas pelo tempo: em poesia, quanto mais próximo,

mais difícil é de se ver. Além do crivo crítico-teórico que apenas o passar dos anos

proporciona aos novos poetas, existem também inúmeros fatores, de ordem mais prática,

que contribuem para dificultar o acesso às novas produções, dentre estes, merece destaque

a política editorial brasileira que, com raríssimas exceções, apregoa a não publicação dos

chamados “novos autores” e, muito menos, de livros de poesia.

Os argumentos para este modo de proceder das editoras é estritamente comercial,

afinal, uma editora é, antes de tudo, uma empresa que precisa vender livros para ter lucro e,

poesia, como muito comumente se fala – não sem razão – é algo que não vende. Diante

deste contexto, duas declarações mostram-se extremamente pertinentes, a primeira, de

Heloisa Buarque de Hollanda, ao afirmar que para uma editora, “publicar autor novo é gesto

de caridade”.21 e a segunda, de Décio Pignatari, ao dizer que a poesia é “a menos

consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada(muitas vezes, às

escondidas). Uma das maiores raridades do mundo é o poeta que consegue viver só de sua

arte." (2005, p. 9).

21

Entrevista com Heloisa Buarque de Hollanda, disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=6Bx-yOlmKUo> acessado em 14 de Dezembro de 2011.

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Frente a esta postura editorial, resta àqueles que tenham interesse por conhecer o

trabalho de novos poetas peneirarem em revistas, antologias, publicações independentes,

sites especializados, blogs etc. Quanto a estes meios de publicação, vale chamar atenção

para o advento da internet, uma vez que esse é um importante paradigma com que os

poetas, e os estudiosos da literatura vêm se confrontando nos últimos anos: não é

irrelevante o fato de um site como o “recantodasletras.com.br”, por exemplo, ter mais de um

milhão de poesias hospedadas no seu domínio, ou que “jornaldepoesia.jor.br” tenha “Muito

mais de não sei quantos mil poetas, contistas e críticos de literatura.”22

Toda essa questão acerca da editoração e das alternativas de publicação da poesia

contemporânea é tão vasta que, para ser estuda de forma satisfatória, seria necessário uma

nova pesquisa. Por conta disso, aqui ela é apenas citada para ressaltar alguns caminhos

que foram trilhados para se chegar aos autores que serão abordados mais adiante. Vale

dizer ainda que optou-se, no presente trabalho, por se falar apenas daqueles autores que já

tiveram suas poesias publicadas em livros e que, de algum modo, já passaram por certo

crivo da crítica literária, isto por que - mediante as incertezas, inclusive quanto a autoria,

que permeiam as produções difundidas exclusivamente na internet, - um estudo desses

poetas requereria um fôlego muito maior do que o despendido nesta pesquisa.

Esclarecidos os critérios acima, um primeiro nome que acredito ser relevante para

se discutir a herança concreta – nos termos expostos no tópico anterior – é o de Adriano

Espínola, principalmente por conta do seu poema “Táxi ou poema de amor passageiro”.

Nesta espécie de “épico-moderno”, o poeta, valendo-se de quase mil versos, transforma a

narrativa de uma simples viagem de táxi pela cidade de Fortaleza, numa verdadeira

excursão aos vários caminhos trilhados pela poesia brasileira desde o modernismo até a

poesia contemporânea. Desta forma, as experiências com o verso empreendidas por

Espínola, em “Táxi ou...”, abrangem desde o verso livre, com dicção drummoniana, como

em: “Depois de tirar e enrolar no bolso minha gravata colorida; /depois do pique,

atravessando ruas & portas, /bebendo a luz da tarde refletida em caras que nunca mais

verei;” (1996, p. 23); passam por sutis tentativas de “caligramas”, em

Tudo isso se encontrando

numa noite tão próxima e primitiva,

na encruzilhada

22

Disponível em < http://www.jornaldepoesia.jor.br/>. Acesso em: 15 de Dezembro de 2011.

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58

m

á

g

da vida & da morte

c

a

(1996, p. 23)

E, por fim, nos momentos de maior proximidade com as técnicas típicas do

concretismo, chega quase à pulverização do verso, o qual é fragmentado em palavras soltas

que ressaltam o branco da página, como é o caso do seguinte trecho:

sacolejos poeira de luz

palpitações

sombras vertigens

(1996, p.61)

A vantagem de se iniciar a discussão sobre poesia contemporânea com o texto de

Adriano Espínola está no fato de que com um único poema é possível perceber várias

tendências desta poesia tão “plurifacetada”. Esta mesma proposição não poderia ser feita

acerca duma obra como a de Josely Vianna Baptista, por exemplo, que, embora seja

contemporânea de Espínola, buscou outro modo de trabalhar com as vicissitudes do verso:

mais afeita à contensão do que a expansão.

Em Josely Baptista é mais perceptível aquele “espírito de época” do qual falou o

poeta Claudio Daniel: suas experiências poéticas são marcadas pela influência da

“pedagogia concreta”, pelo gosto por imagens obscuras e pelo verso tenso e fragmentado.

Seus poemas, a primeira vista, parecem muito com os da fase matemática da poesia

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concreta, contudo, isto é apenas uma “ilusão de ótica”, visto que a única semelhança real

dos poemas de Josely com aqueles da fase ortodoxa do concretismo, está na disposição

das palavras numa quadrícula; fora isso, são, em geral, textos discursivos que poderiam ser

postos em versos tradicionais sem grandes problemas, como se pode perceber pelo

pequeno poema abaixo.

(1991, p. 9)

É interessante observar como o texto de Josely está totalmente ancorado numa

técnica de quebra aleatória da linha, fazendo com que o verso seja tomado pelo receptor

como um “não-verso”, revelando um confronto com o verso tradicional baseado no metro

e/ou no ritmo sintático (como é o caso do livre modernista): os versos de Josely são, antes

de tudo, arbitrários, e obedecem apenas as vontades do artista. Este modo de proceder

pode ser encontrado também em algumas obras do poeta contemporâneo, Frederico

Barbosa, tal qual ocorre em “Sobporos”:

(2002, p. 21)

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Não é difícil perceber as semelhanças do poema acima com o de Josely: ambos

valorizam a quebra aleatória dos versos, que são dispostos de modo quadrangular.

Contudo, O autor do “Sobporos” merece destaque não só pela sua produção poética, mas

também pela sua posição de “articulador”, bastante empenhado em fomentar contatos entre

os poetas da nova geração. Não há duvidas de que o nome de Francisco Barbosa é dos

mais influentes da sua geração, o que torna uma declaração dele (citação abaixo), sobre

seu próprio fazer poético, algo que pode ser levado em consideração para a melhor

compreensão desta poesia contemporânea.

Partindo da influência, basicamente, da poesia concreta e de João Cabral,

eu procurei fazer uma poesia que não é concreta, porque é em versos,

porque trabuza realmente o verso tradicional, mas que procura sempre tá

atento ao... às mínimas particularidades da sonoridade, do significado... eu

sempre procuro trabalhar de uma maneira extremamente consciente, seja

com os significados, seja com o sentido...23

As palavras de Frederico Barbosa são sintomáticas, na medida em que revelam um

dos grandes dilemas dessa poesia contemporânea de herança concreta, que é o de fazer

poemas em versos ao mesmo tempo em que se dialoga com o discurso de crise do verso. E

numa busca por solução para tal dilema, não é despropositado pensar, como Paulo

Franchetti – mediante, também, aos poemas expostos – que “o verso contemporâneo abusa

do rejet e da quebra aleatória da linha.”24

O “abuso”, do qual fala Franchetti, é inegável, e para percebê-lo basta atentar para

as antologias de novos poetas e verificar a quantidade de vezes que os recursos citados

pelo autor são utilizados – estou certo de que eles serão encontrados em praticamente

todos os poetas da antologia. Ambas as técnicas, na realidade, tem como base “o corte”

arbitrário do verso, a diferença é que o rejet, ou enjambement, está relacionado com a falta

de unidade sintática da oração que compõe o verso, i.e, o verso começa uma ideia que só é

encerrada no seguinte, como pode ser notado de modo bastante explícito, na seguinte

passagem do poema “A uma Passante Pós-Baudelairiana”, de Carlito Azevedo:

23

Entrevista com Frederico Barbosa – Encontros de Interrogação, disponível em <http://fredbar.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 15 de Dezembro de 2011. 24

Disponível em: < http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=3622>. Acesso em: 15 de Dezembro de

2011.

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61

2.

talvez um

poeta afogado num

danúbio imaginário dissesse

que seus olhos são duas

machadinhas de jade escavando o

constelário noturno:

a partir do que comporia

duzentas odes cromáticas

— mas eu que venero (mais que o ouro-verde

raríssimo) o marfim em

alta-alvura de teu andar em

desmesura sobre uma passarela de

relâmpagos súbitos, sei que

tua pele pálida de papel

pede palavras

de luz (2002, p. 82)

Como se vê, os versos do poema acima são tão “fragmentados” quanto os de

Josely Baptista e de Frederico Barbosa citados anteriormente. É certo que há diferenças

entre estes e aqueles, entretanto, o importante é entender que as duas maneiras culminam

na principal estratégia encontrada pela poesia contemporânea para encenar a crise do verso

que herdou do concretismo. Contudo, é importante dizer que a repetição exagerada destes

recursos, já assinala na direção dum esgotamento, que não passa despercebido pela crítica,

como pode-se ver na afirmação de Paulo Franchetti:

a quebra arbitrária da frase, sem que se perceba na quebra mais do que o

desígnio de quebrar, é o recurso mais abusado da poesia contemporânea.

Ou, dizendo de outro modo: uma das estratégias mais características (e

banalizadas, tenho de dizer) da poesia pós-concreta de interesse – isto é,

da poesia contemporânea que se contrapõe à facilitação dominante no

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âmbito da neo-geração-de-45 – é a operação sobre o verso a partir do

corte.25

Voltando aos poetas, vale destacar que Carlito Azevedo, tal qual Frederico

Barbosa, também possui forte expressividade dentro do atual cenário da poesia brasileira,

isto se deve, principalmente, pela sua relevante participação na publicação de autores

contemporâneos, que se deu, primeiramente, por conta da sua posição de editor da revista

literária Inimigo Rumor e, mais recentemente, pela sua função como coordenador da

coleção Ás de Colete, da editora paulista, Cosac Naify, em parceria com a carioca, 7Letras.

Nos dois casos, Carlito Azevedo contribuiu – e ainda contribui – para a divulgação do

trabalho de poetas contemporâneos de várias vertentes, mas, em maior parte, daqueles cuja

dicção poética se aproxima da que está sendo discutida neste trabalho.

Dentre os “editados” por Azevedo, está o poeta Age de Carvalho, que, apesar de já

ter livros publicados desde a década de 1980, só começou a ganhar maior notoriedade no

cenário nacional a partir da publicação dos seus livros na coleção Ás de Colete: o poeta, até

o momento, possui dois livros nesta coleção, Caveira 41, lançado em 2003, e Trans,

lançado em fevereiro deste ano. A poesia desse autor, em termos de experimentação com o

verso, se alinha com as dos outros poetas referidos neste tópico, especialmente, com a de

Carlito Azevedo, porém, vale dizer, com o uso um pouco mais “moderado” do enjambement,

e, em alguns casos, com certas sutilezas visuais, como ocorre com o poema “Negro O”, em

que circularidade da vogal “O” é posta em evidência e acaba por acrescentar nas

potencialidades semânticas do poema.

NEGRO O. Ainda aqui falo

o abismo,

o instante

dentro da queda

mas

já não guardas

o osso,

25

Idem.

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o parente óleo noturno

carregando um destino,

o nome

mancha

que no centro

assombrado do corpo

amadurecia a dúvida —

ela, em si

a resposta (1990, p. 22)

Neste poema, é possível notar que a letra “O” percorre quase todo o texto

carregando a carga significativa que ganhou logo no título – que também é o início do

primeiro verso –, carga esta que é adquirida graças à quebra de expectativa que este “O”,

posto depois de “NEGRO” e antes de um ponto provoca, uma vez que, nesta posição o “O”

deixa de ser um artigo e passa e ser visto, ou como um substantivo, ou como um desenho,

um “círculo negro” que passeia pelo poema. Com este modo de salientar a materialidade do

signo por meio do seu aspecto visual, Age de Carvalho, procede, sem dúvida, bem ao gosto

do concretismo, contudo, é importante ressaltar que o poeta, como a grande maioria dos da

sua geração, não rompe com o verso a favor da visualidade. Isso deve ser dito, pois trata-se

de uma realidade da poesia contemporânea que, mesmo herdeira da poesia concreta,

quase nunca abandona o verso – o que não quer dizer, de forma alguma, que não haja

experiências com poesia visual na atualidade.

Pensando nesta questão dos poemas visuais, que, por conceito, nunca deixarão de

serem representativos da postura antiverso, vale destacar o nome de Arnaldo Antunes,

poeta declaradamente herdeiro do concretismo, que, apesar de ter a maior parte de sua

obra feita em versos, não raras vezes produz poemas com forte caráter visual, como os

seguintes26:

26

Arnaldo Antunes, apesar de publicar seus poemas em livros, costuma também divulgar alguns, principalmente os visuais, no seu próprio site, “www.analdoantunes.com.br”. Diante disso, vale dizer que os poemas aqui apresentados (“vôo” e “o cabelo”) pertencem ao livro Tudos, de 1990, mas foram retirados do site do autor, de acordo com o referência: Disponível em < http://www.arnaldoantunes.com.br/sec_livros_view.php?id=2>. Acesso em 15 de Dezembro de 2011.

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Qualquer um que se detenha nestes poemas de Arnaldo Antunes logo notará a

ligação com a poesia concreta, especialmente com as experiências de Décio Pignatari e

Augusto de Campos na última fase do movimento: os poemas semióticos e os popcretos.

Diante de tais obras, não resta dúvida de que o autor incorporou o discurso concretista de

crise do verso, todavia, as soluções encontradas para sanar a crise – baseadas na saída

visual – mostram-se tão próximas daquelas empreendidas pelos próprios poetas concretos,

que acabam por pouco, ou nada romper com as barreiras do mero pastiche, deste ponto de

vista, os poemas de Arnaldo Antunes parecem menos poesia contemporânea do que poesia

concreta feita contemporaneamente.

Para finalizar esta sessão sobre os “herdeiros da crise”, sinto o dever, quase ético,

de sair do “script” para citar um poeta que não está dentro do recorte temporal proposto,

visto que publicou seu primeiro livro em 1952, ou seja, ainda antes do advento do

concretismo. Trata-se de Max Martins, autor paraense, muito pouco conhecido fora do seu

estado, mas cuja poesia nunca caiu num provincianismo regionalista: o poeta jamais limitou

suas pesquisas poéticas a qualquer fronteira que seja.

É justamente por causa desta inquietação – pesquisa-inquientante – característica

do poeta que acredito na possibilidade de alinhá-lo com os poetas contemporâneos, isto

porque, graças ao seu amor pela pesquisa de novas técnicas poéticas, Max Martins

consegue transitar, no seu percurso de mais de 50 anos de poesia, pelas mais diversas

experiências estético-formais, que vão, desde a poesia neoparnasiana até a poesia pós-

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concreta. É importante ressaltar que maioria das mudanças a qual o poeta se propôs fazer

foram efetivas, e não apenas experiências esparsas, i.e, marcaram realmente rupturas

dentro da sua própria obra, deste ponto de vista, Max Martins está muito longe daquele

artista brasileiro que Haroldo de Campos critica por costumar “especializar-se em nuanças

da sua própria dicção.” (2006, p. 80)

Diante do exposto acima, é preciso dizer que a poesia de Max Martins que merece

o interesse deste trabalho é toda aquela que o autor escreveu depois de 1971, ou seja,

depois do ano de publicação do livro H’Era, no qual torna-se latente as preocupações do

poeta com as experiências feitas pelo Grupo Noigandres alguns anos atrás. Pode-se dizer

que é nesta obra o autor inicia, de modo consistente, sua adesão aos versos fragmentados

e a espacialização como recurso funcional, e, daí por diante, nunca mais abandonará as

preocupações com as possibilidades espaciais do poema, como comprova o texto abaixo,

publicado no livro Colmando a Lacuna, de 2001.

Grão-Dia

Ao redor da pedra

— do futuro

alguns amigos

e este dia – Os anos

deste dia

20

e tantos

danos

ganhos : O amor se esfez

e a hera

dilacera o grão

o grão – teu número

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que reverencia a morte

deste dia

— o único (2001, p. 63)

Como é possível perceber no poema, os versos de Max Martins não deixam nada a

desejar – do ponto de vista de encenação da crise – ao dos poetas contemporâneos que

foram apresentados aqui. Logicamente, um estudo mais aprofundado da sua obra revelaria

algumas peculiaridades que o fazem diferir daqueles autores, como por exemplo, o fato de

que o poeta muito mais se apropriou do discurso antiverso dos concretistas como algo que

lhe forneceria maiores possibilidades para experimentar dentro da linguagem poética que

ele já conhecia, do que propriamente viu isto como um paradigma da poesia, i.e, valeu-se

dos recursos da poesia concreta como o poeta tradicional que descobre outro metro. Por

outro lado, o autor tem o grande mérito de ter sido um dos poucos que conseguiu casar, de

modo bastante natural, diga-se de passagem, a poesia de veio existencialista-reflexiva com

a poesia formalista das vanguardas, e por isso – sem arrependimentos pela fuga do roteiro –

, acredito que descartar o nome de Max Martins da poesia produzida após o concretismo

seria, indubitavelmente, uma grande falha, pois significaria abrir mão de um dos mais

talentosos poetas que este período teve.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O passeio histórico, dado em largos saltos, pelo passado e futuro do discurso

“antiverso”, ou de “crise do verso”, que foi articulado – mas, como se viu, não foi exatamente

inventado – dentro do movimento de poesia concreta, dá a ilusão de que se falou de mais

ou menos um século de poesia, afinal, o texto inicia nos elegantes “salões de parisienses”,

com Mallarmé e Baudelaire, e finda nas ruas congestionadas das grandes cidades

brasileiras, com os versos truncados e ar de incompletos dos poetas contemporâneos.

Contudo, o mais correto seria dizer, e por isso ressalto a questão da “ilusão”, que se falou

de alguns poetas que atuaram, e/ou ainda atuam, em determinados momentos da história

da poesia que vai do final do século XIX até o final do XX, passando um pouco para o início

do atual.

Acredito que estes recortes históricos mostraram-se necessários, na medida em

que o objetivo principal do presente trabalho foi o de discutir a questão da crise do verso sob

a ótica concretista, demonstrando como o discurso antiverso foi concebido, articulado e

propalado por este movimento. Diante disso, atar as pontas da linha que passa pelos três

momentos destacados era algo que não poderia deixar de ser feito.

Tendo em vista esse objetivo, no capítulo “Início da Crise: Baudelaire e Mallarmé”,

como o próprio título sugere, buscou-se rastrear o surgimento da ideia de verso em crise, a

fim de entender de onde veio o discurso central da poesia concreta. Nele, verificou-se que a

“semente” para a tese concretista havia sido plantada por Baudelaire, com suas

preocupações com o estado do artista dentro duma sociedade burguesa em ascensão e

com a perda de força do texto em verso frente à consolidação do romance, porém, tal

semente só foi “adubada” por Mallarmé, com seus importantes textos – Crise de Vers,

enquanto reflexão teórica, e Un Coup de Dés, como experiência poética –, nos quais o

poeta chega muito próximo daquilo que os concretistas desejavam fazer, e, por causa disso,

acabou por ser tomado pelo movimento como o principal antecessor das ideias antiverso.

O capítulo seguinte, “Concretismo: do verso ao ideograma”, concentrou-se no

movimento de poesia concreta, desde o seu surgimento até o seu declínio, no intuito de

entender como o discurso de crise do verso foi articulado e quais saídas encontraram para

tal crise. Para tanto, as propostas teóricas dos irmãos Campos e Décio Pignatari,

fundadores e principais representantes do movimento, foram analisadas destacando-se os

pontos em que os autores falavam diretamente da questão do verso e de suas ideias para

uma alternativa a este. Demonstraram-se então as várias nuances do discurso concretista e

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as transformações pela qual este foi passando conforme o movimento caminhava para o

fim, bem como se discorreu acerca da principal experiência poética – a técnica

ideogramática – desenvolvida pelos integrantes do movimento no intuito de por em prática

aquilo que discutiram e propagandearam nos seus manifestos.

Por fim, no capítulo “Restos de Concreto”, foi ensaiada uma possível resposta para

os questionamentos sobre os frutos do discurso concretista, na qual se demonstrou que a

poesia contemporânea produzida a partir dos anos de 1980 é a principal herdeira das

experiências concretas. Alguns poetas dessa geração foram lidos, e se chegou à conclusão

de que mesmo sem abandonar o verso, estes autores continuavam a encenar a ideia de

“crise do verso”, por meio de poemas bastante fragmentados que abusam da técnica do

enjambement.

Os três capítulos citados acima representam o corpo deste trabalho de conclusão

de curso, que agora se encerra sem nenhuma outra “moral da história” que não seja a de

entender um pouco melhor as ideias centrais do movimento brasileiro de poesia concreta.

Certamente o texto possui falhas, entretanto, não sem algum orgulho o termino, pois ele

simboliza, de alguma forma, uma luta pessoal para conseguir sanar a curiosidade de

conhecer a poesia que não nos é apresentada na escola – pois para esta, a poesia acaba

em 45, e eu nunca aceitei a morte da poesia.

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