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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, pp. 31 - 65, 2004 UNIVERSIDADE E DEMOCRACIA: PROPOSIÇÕES PARA UMA PÓS-GRADUAÇÃO CRÍTICA Sérgio Martins* * Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. Sócio da Associação dos Geógrafos Brasileiros (Seção Belo Horizonte) RESUMO: A Universidade, e em particular a pós-graduação nela sediada, tem sido submetida a abordagens não raro limitadas a tratar de aspectos e questões concernentes ao seu crescimento, o que se coaduna com a avaliação instituída, precipuamente devotada à medição do que é produzido, portanto pouco ou nada preocupada em interrogar os sentidos e finalidades dessa produção. Os diagnósticos sobre o ensino e a pesquisa pós-graduada em Geografia também têm permanecido nesse plano, ficando, assim, distantes de uma análise acurada sobre as (im)possibilidades que se colocam ao conhecimento do mundo propiciado pela Geografia. Neste texto, o autor examina o processo de modernização das universidades brasileiras articulado ao processo de modernização da própria sociedade brasileira, o que lhe permite esclarecer as contradições existentes entre a burocratização (que invade, coloniza e corrói as universidades), a configuração da educação, e particularmente do ensino superior, como setor de atuação empresarial e seus (des)encontros com a formação profissional requerida pelos mercados de trabalho, além dos obstáculos que se colocam, nesse contexto, ao desenvolvimento de ciência e tecnologia. A rigor, trata-se de contradições que afastam crescentemente a Universidade de sua substância: pensar o não-pensado. Reorientar as pesquisas nesse sentido, tendo como finalidade assinalar o caminho para a concretização das possibilidades históricas inscritas no movimento da sociedade, conclui o autor, é inescapável para que as universidades se coloquem à altura das exigências do agir democrático, da instituição democrática do social. PALAVRAS-CHAVE: Universidade; Pós-graduação; Modernização; Geografia; Democracia. ABSTRACT: The University and, in particular, its graduate programs, has been submitted to approaches not rarely limited to treating aspects and questions related to its growth. This is well adjusted to the evaluation system that has been institutionalized, which is essentially devoted to measuring what is produced, being therefore little or not worried with inquiring about the meanings and purposes of such production. The diagnoses of the teaching and of the research done in graduate programs in Geography have also been kept on this same level, staying, consequently, very distant from being an accurate analysis of the possibilities and impossibilities that are posed for the knowledge of the world made possible by Geography. In this text the author examines the process of modernization of the brazilian universities articulated to the process of modernization of the brazilian society itself. This makes possible for him to clarify the existing contradictions between the bureaucratization (that invades, colonizes and corrodes the universities), the configuration of

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UNIVERSIDADE E DEMOCRACIA:PROPOSIÇÕES PARA UMA PÓS-GRADUAÇÃO CRÍTICA

Sérgio Martins*

* Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. Sócio

da Associação dos Geógrafos Brasileiros (Seção Belo Horizonte)

RESUMO:A Universidade, e em particular a pós-graduação nela sediada, tem sido submetida a abordagensnão raro limitadas a tratar de aspectos e questões concernentes ao seu crescimento, o que secoaduna com a avaliação instituída, precipuamente devotada à medição do que é produzido, portantopouco ou nada preocupada em interrogar os sentidos e finalidades dessa produção. Os diagnósticossobre o ensino e a pesquisa pós-graduada em Geografia também têm permanecido nesse plano,ficando, assim, distantes de uma análise acurada sobre as (im)possibilidades que se colocam aoconhecimento do mundo propiciado pela Geografia. Neste texto, o autor examina o processo demodernização das universidades brasileiras articulado ao processo de modernização da própriasociedade brasileira, o que lhe permite esclarecer as contradições existentes entre a burocratização(que invade, coloniza e corrói as universidades), a configuração da educação, e particularmente doensino superior, como setor de atuação empresarial e seus (des)encontros com a formaçãoprofissional requerida pelos mercados de trabalho, além dos obstáculos que se colocam, nessecontexto, ao desenvolvimento de ciência e tecnologia. A rigor, trata-se de contradições que afastamcrescentemente a Universidade de sua substância: pensar o não-pensado. Reorientar as pesquisasnesse sentido, tendo como finalidade assinalar o caminho para a concretização das possibilidadeshistóricas inscritas no movimento da sociedade, conclui o autor, é inescapável para que asuniversidades se coloquem à altura das exigências do agir democrático, da instituição democráticado social.

PALAVRAS-CHAVE:Universidade; Pós-graduação; Modernização; Geografia; Democracia.

ABSTRACT:The University and, in particular, its graduate programs, has been submitted to approaches notrarely limited to treating aspects and questions related to its growth. This is well adjusted to theevaluation system that has been institutionalized, which is essentially devoted to measuring whatis produced, being therefore little or not worried with inquiring about the meanings and purposesof such production. The diagnoses of the teaching and of the research done in graduate programsin Geography have also been kept on this same level, staying, consequently, very distant frombeing an accurate analysis of the possibilities and impossibilities that are posed for the knowledgeof the world made possible by Geography. In this text the author examines the process ofmodernization of the brazilian universities articulated to the process of modernization of the braziliansociety itself. This makes possible for him to clarify the existing contradictions between thebureaucratization (that invades, colonizes and corrodes the universities), the configuration of

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education (in particular of superior education) as a sector of entrepreneurial actuation and itssuccesses and failures in meeting the requirements of professional formation demanded by the jobmarkets, besides the obstacles that are posed, in this context, for the developing of science andtechnology. Rigorously these are contradictions that increasingly remove the University of itssubstance: to think the not yet thought. The author concludes that for the universities to placethemselves at the level required by the demands of the democratic acting, of the democratic institutionof society, it is inescapable that they reorient research in this sense, that is, having as purpose tomark the way for the concretization of the historical possibilities inscribed in the movement ofsociety.

KEY WORDS:University; Graduate Programs; Modernization; Geography; Democracy.

“Existem duas maneiras de nãosofrer. A primeira é fácil para a maioria daspessoas: aceitar o inferno e tornar-separte deste até o ponto de deixar depercebê-lo. A segunda é arriscada e exigeatenção e aprendizagem contínuas:tentar reconhecer quem e o que, no meiodo inferno, não é inferno, e preservá-lo,e abrir espaço.” (Italo Calvino, As cidadesinvisíveis)

I - Introdução

No início de setembro de 2003, entre osdias 3 e 5, realizou-se nas dependências daUniversidade Federal de Santa Catarina, emFlorianópolis, o V Encontro da Associação Nacionalde Pós-graduação e Pesquisa em Geografia(ANPEGE). Tratou-se de evento que celebrou oprimeiro decênio de criação da entidade e, comosabemos, conforme a cabala contemporânea,completou-se um período (que não correspondea oito nem a doze, mas justamente a dez anos)que exige um balanço sobre o realizado até aqui.Decerto que arrolar e sistematizar informaçõesfactuais concernentes à sua constituição e àsrealizações efetuadas pelas diretorias que sesucederam é importante para uma descriçãoque procure cotejar os feitos no decênio com ocontexto institucional no qual se desenvolve oensino e a pesquisa em Geografia em nível depós-graduação. Mas isso não nos retira domosaico das superfícies.

E chega a ser perturbador, senãointolerável, que a maioria das abordagens sobre

a pós-graduação em Geografia permaneça nesseplano, no qual proliferam diagnósticos limitadosa abordar aspectos e questões concernentesao crescimento da pós-graduação1 . São textoseminentemente informativos, úteis por oferecerum quadro da evolução da pós-graduação emGeografia no país, desde os pioneiros até osvinte e tantos cursos de mestrado hojeexistentes. Ponteadas por tabelas e gráficos,além de salpicadas de truísmos (como aconcentração regional dos programas, quecomeça a esmaecer em função da massificaçãoque decididamente alcançou a pós-graduaçãono transcurso dos anos 90), em geral asdescrições procuram ser abrangentes. Portanto,não descuram das condições infra-estruturaise institucionais sob as quais vêm seestabelecendo o ensino e a pesquisa em nívelde pós-graduação (no caso dos mestrados emGeografia, sediados, com uma única exceção,em universidades estatais). Referem-se assima problemas que, longe de seremdesimportantes, acometem desigualmente osprogramas: o número de docentes nelesenvolvidos não raro é insuficiente para abrangera amplitude de temas que se pode alcançaratravés da Geografia; os laboratórios, quandoexistem, são ora mal equipados, oradependentes de bolsistas para fazer frente àescassez de pessoal técnico especializado, oraambas as situações ao mesmo tempo; asbibliotecas nem sempre encontram-se bemfornidas do cabedal bibliográfico exigido pelaspesquisas; o número exíguo de bolsas há muitonão acompanha a rápida elevação do número

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de discentes; a maioria dos docentes ressente-se do parco apoio financeiro para desenvolverpesquisas, efetivar intercâmbios e darseqüência a aperfeiçoamentos constantes etc.

Contudo, presos aos aspectos formais daestruturação, ordenamento e funcionamentodos programas, os diagnósticos ficam devendouma análise acurada sobre os (des)caminhosque o conhecimento tem trilhado a partir doensino e da pesquisa de pós-graduação emGeografia. Essa inapetência para reflexões einterpretações compromissadas com a crítica aopróprio campo disciplinar é fator de inquietação,pois os motivos de legitimação para que osprogramas sejam mantidos, ampliados, oumesmo novos sejam abertos, cada vez menospodem ser encontrados no sentido e nafinalidade sociais da Geografia enquantoconhecimento científico, e, por extensão, asrazões de ser da própria universidade não sãodefinidas a partir da sua própria substância.

Todos sabemos que não existem motivospara regozijo diante de verbas minguadas, masos argumentos esgrimidos para não deixar osprogramas de pós-graduação ensombrecidosdiante das agências de financiamento chegama causar estupor. Ou engulhos. Vejam aquantidade de dissertações e teses concluídas!E os índices de produtividade de docentes ediscentes, não justificam a elevação de recursospara a pós-graduação em Geografia? Não épreciso grande esforço para perceber quevárias das abordagens sobre a pós-graduação,além da prosa bocejante, oscilam numa mélangede cantilenas a cânticos de louvor que,inadvertida ou deliberadamente, cortejam a leide bronze do maior número no prazo maisbreve.

Mas agora que uma pletora dedissertações e teses decorreu da imposiçãocategórica de um ritmo fabril à pós-graduação,as conseqüências deletérias ao conhecimento,advindas da imposição de prazosdraconianamente reduzidos para a realizaçãode pesquisas de mestrado e doutorado, estãocomeçando a se explicitar de tal modo quemesmo os seus defensores vêem-se emdificuldades diante das freqüentes alusões à

proliferação de dissertações comparáveis a(sejamos generosos) boas monografias degraduação. Estaria exagerando se afirmasseque estamos próximos do esconjuro, mas chegaa ser interessante ouvir, justamente do atualrepresentante da área de Geografia junto àFundação Coordenadora de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior (CAPES), que emalgumas das comissões de áreas científicasdessa instituição conjectura-se sobre umasignificativa redução da importância relativaatribuída ao tempo médio de titulação naavaliação dos cursos2 , pois vem se constatando,em suas palavras, uma “perda de qualidade”(cuja natureza resta precisar) de teses edissertações.

Diante, pois, da evidência de que seriainsultar a dialética supor que a qualidadesuperior advém do mero acréscimo daquantidade, cabe, ao meu ver, reconhecer as(im)possibil idades que se colocam aoconhecimento do mundo propiciado pelaGeografia nos cursos e programas de pós-graduação. Mas isso exige um escrutínio queesbarra na aceitação, senão na defesafascinada, da avaliação instituída como umconjunto de critérios, normas e preceitos que,devotados a orientar os programas e cursos,acabam por medir, ordenar e hierarquizar a pós-graduação em particular e a universidade emgeral (que, seja dito de passagem, tem semostrado efetivamente capaz disso), emborasejam extrínsecos ao movimento dopensamento em direção ao conhecimentocientífico.

II - A universidade sob a modernização

A rigor, é preciso observar que nestaperiferia do mundo o ensino superior foi mantidoencabrestado pelo Estado desde sempre. Senos embrenharmos, mesmo com brevidade, nanoite dos tempos veremos que o surgimentode universidades nesta margem lusitana doOcidente foi longamente considerado temeráriopelos que detinham as rédeas do poder.Seguramente, um dos capítulos dashostilizações entre a cruz e a espada, após

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desceram a braços das caravelas, pode seratribuído ao cerceamento in limine, quando nãoà literal interdição, às iniciativas dos jesuítasde desenvolver na Colônia um ensinoequiparável ao das universidades portuguesas3 .Na verdade, essa oposição iria explicitar-se naprópria Metrópole por ocasião da reforma daUniversidade de Coimbra, promovida porPombal, que mudou os conteúdos da educaçãocontrolada pelos jesuítas, ocasião em que “aênfase do ensino deslocou-se da teologia e dodireito civil e canônico para a história natural, abotânica, a mineralogia, a química, a física, amatemática.”4 . Em que pese muitos doscientistas egressos daquela instituição teremsido para cá enviados para estudar as riquezascoloniais passíveis de exploração pela Coroa,quando “viam exatamente nas riquezas locaisuma justificativa para a independência [...]perderam o apreço do governo colonial esentiram o peso de sua coerção.”5 . Nessesentido, parece correto compartilhar daafirmação de que, sob o estatuto colonial, “apolítica pombalina deve ser considerada comoa grande forma de se terem bloqueado pela raizas condições de surgimento do ensinosuperior.”6 .

É sobejamente conhecido que por ocasiãoda Independência as “elites nativas”(originalmente agentes militares e econômicosda Conquista ligados à organização daprodução social de riquezas coloniais para aapropriação controlada fiscalmente pela Coroa- ou economicamente pelos agentesinternacionais de financiamento dos elementosfundamentais da produção colonial), ao sevoltarem contra o esbulho colonial, e diante datarefa de criar um Estado moderno (requisitoimprescindível à inserção do país na ordemmundial de então), não se desfizerem dasformas sociais de dominação e de exploraçãotípicas do status quo ante, particularmente aescravidão e a dominação patrimonialista, quesubsistiram praticamente intactas e forammantidas em plena vigência por largo períodocomo componentes viscerais da sociedadenacional7 . Sem pretender revisitar nossa longahistória de sociedade caracterizada pela

exportação de mercadorias e importação deidéias, na qual, por mecanismos que já foramdefinidos como uma desfaçatez de classe8 , otransplante de modelos societáriosflagrantemente desacompanhados dosprocessos que lhes servem de fundamento éapresentado como imprescindível acerto depasso com uma mundialidade na qual, a rigor,nossas “elites nativas” pouco ou nadadeliberam, para a discussão que se persegueaqui é importante considerar que, se é certoque as disposições pombalinas constituíramforte bloqueio ao ensino superior no Brasil, acriação de universidades em momentosubseqüente iria esbarrar ainda na “filtragemideológica”9 intrínseca a essa práxis miméticasecular.

“Foi por considerar a Universidadecomo uma forma de indesejável‘emancipação dos espíritos’, ambiente defermentação de idéias liberais ousocializantes vindas da Europa, que PedroI, seguindo o pensamento de seu pai, ePedro II com sua Corte, sempre seopuseram a tentativas – ocorrentes àsdezenas durante o séc. XIX – de criaruniversidades no Brasil. Por outrosmotivos – já então intransigênciaideológica -, os grupos positivistas, deforte influência no poder desde o últimoquarto daquele século, também repetirama mesma atitude de oposição àUniversidade, apesar de lutarem por umensino plenamente livre. De uma forma oude outra, a constante é que os Governossempre mantiveram para com o ensinosuperior uma política de ‘rédeas curtas’.”10

Apesar das objeções à criação deuniversidades, cursos superiores (de medicina,de direito e de engenharia civil e militar) foramcriados a partir da chegada da Corte ao Brasil.Posteriormente, quando já se fazia notar apresença decisiva dessa “curiosa raça depensadores que foram os positivistas, de aquéme de além mar”11 (que, entre outros aspectos,arrimavam-se na atualíssima noção de “ditadurarepublicana”, isto é, de progresso pela ação doEstado, afil iada à de “modernização

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conservadora”12 ), a criação de novasinstituições de ensino superior, sobresponsabilidade do poder central, deu-se emmarcos que não rompiam, antes aprofundavama dicotomia entre a formação de bacharéis,destinada a habilitar as elites ao exercício daschamadas profissões liberais e aos cargos daburocracia estatal, e o ensino secundário eprimário que, a cargo das províncias, acabarampor atender sobretudo às demandaseducacionais das classes médias de então,chegando a desfrutar de relativo prestígio social(como a preparação para o exercício domagistério), com exceção do ensino de ofícios,sobre o qual recaíam os sentidosestigmatizadores atribuídos aos trabalhosmanuais que se projetavam, mesmo apósinstaurada a república, numa sociedaderecendente a suor escravo. Não obstante, ocontrole estrito sempre foi bastante observado.

“A intenção controladora sobre aevolução do ensino se manifestavatambém pela proximidade que o Governoqueria manter dos que o dirigiam ouadministravam. De Pombal a D. João VI,os professores deveriam ser credenciadospela Real Mesa Censória, de Lisboa. Noscursos abertos com a vinda do Rei para oBrasil, a Diretoria era exercida pelopróprio governador da Província, queinclusive presidia a Congregação. E, apósa Independência [...] a escolha do diretorsó parcialmente ficou com os própriosprofessores que apresentavam uma listatríplice para a escolha pelo presidente daProvíncia, processo mantido intacto atéhoje. O importante, contudo, a destacar,é que os ‘lentes proprietários’, depois‘catedráticos’, eram rigorosamenteescolhidos por critério de confiança,passando a desfrutar de elevado status,prestígio e regalias especiais que osintroduziam nos círculos próximos aopoder, levando-os a se manterem sempre‘ao lado’ das autoridades.”13

O corolário desse controle imobilizadorresidia no “detalhismo da legislação reguladora

do funcionamento”14 . Quando as primeirasuniversidades começaram a ser criadas, séculoXX adentro, impulsionadas pelo crescimento edesenvolvimento da urbanização, não ficaramdesassistidas de um controle estatalnormativista que, ganhando complexificaçãodesde a criação do Conselho Superior de Ensino,em 189115 , até chegar à Reforma EducacionalFrancisco Campos, em 1931 (Decreto n°19.851,de 11/4/1931)16 , procurava mantê-las “presaspor cima”.

“O excesso de regulamentaçãointerna, e a posição da norma regimentalcomo canal privilegiado da dinâmica dosfatos, faz com que o próprio ensino – emsua unidade de base, a sala de aula –continue sendo, como em décadasanteriores, sobretudo o cumprimento deuma rotina. Aliás, apesar de mencionadaem primeiro lugar entre os objetivosinstitucionais, a pesquisa e criação dosaber (Decreto n°19.851/31, Art. 1°),toda a estruturação das atividades seordena mesmo é para a simplestransmissão do conhecimento, no ensino.

As decisões importantes [...] estãodeslocadas – inclusive quanto à suasimples proposição inicial – das bases deexecução da atividade-fim para escalõesadministrativos mais próximos do GovernoCentral, que se beneficia do alongamentoda cadeia de comando, mantendoestratégica distância das bases, e umcontrole mais fácil através de‘intermediários’ que ele nomeia e comquem dialoga.

Assim, [...] o sistema de controlepode ser dito continuar tipicamenteburocrático: todo poder se organiza e sedifunde de cima para baixo; cada esferade poder gera outra abaixo – devidamenteregulamentada -, mantendo-lhe o controleatravés do vértice da pirâmide, ou seja, achefia. As unidades universitárias são‘amarradas’ através do ConselhoUniversitário, composto em sua maiorparte por pessoas nomeadas pelo

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Governo, e a Universidade como um todoé igualmente vinculada através depreposto também escolhido pelopresidente da República, de lista indicadapelo Conselho: o reitor, cuja posição éagora amplamente reforçada.”17

Este sucinto painel relativo à história dauniversidade brasileira e de suainstitucionalização ficaria incompleto se deixassede mencionar a federalização de universidades,iniciada na segunda metade dos anos 40,contrariando a orientação estadonovista inicial,recomposta diante das exigências dasoligarquias regionais18 . O que, mais uma vez,implicou às universidades um controleadministrativo (e também financeiro) estrito,exercido pelo Executivo Federal através do entãoDepartamento Administrativo do Serviço Público(DASP), que chegou a rivalizar com o próprioConselho Nacional de Educação sobre assuntosadministrativos das universidades federais19 econtornar as limitações que lhes seriamimpostas em decorrência da autonomiaadministrativa concedida pela Lei de Diretrizese Bases da Educação Nacional, de 1961, àsuniversidades federais.

O mais importante, no entanto, é quenaquela quadra histórica passou também a serdesenhado para as universidades brasileiras ofigurino que ganharia contornos melhor definidosnos anos 60, qual seja, o da sua integraçãodecisiva ao processo de modernização dasociedade brasileira. Como é sabido, na esteirados debates e proposições sobre a educaçãobrasileira, que ganharam corpo no transcursodos anos 50 e chegaram a travejar apromulgação da LDB, um marco decisivo foiestabelecido no início dos anos 60 com a criaçãoda Universidade de Brasília, cuja estruturaorganizacional, culminando experiências daquie de fora, foi considerada como um passoimportante para assegurar ampla autonomia àuniversidade20 . É preciso consignar, no entanto,que o modelo institucional que procuravaaprestar a universidade à modernização, aoganhar nitidez já ao final dos anos 40, deixavaclaro que sua definição passaria pela relaçãoíntima com os complexos empresariais21 .

É nesse contexto que se pode observarmelhor os aspectos concernentes maisespecificamente à pós-graduação como chegaaté nós. A criação da Campanha deAperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior(CAPES) e do Conselho Nacional de Pesquisas(CNPq), em 1951, constituiu parte fundamentaldo esforço governamental mobilizado com vistasao desenvolvimento de pesquisas científicas etecnológicas que, em verdade, as universidadespouco albergavam, bem como para a formaçãode pessoal especializado (para empresas e opróprio Estado), o que, num primeiro momento,foi alcançado sobretudo pelo envio depesquisadores para formação pós-graduada emuniversidades européias e norte-americanas22 .Antes, porém, de destacar as linhas gerais dosistema de pós-graduação, não é demaislembrar os embates que se verificaram, no iníciodos anos 60, especialmente, a propósito damodernização do ensino superior no Brasil.

Ninguém desconhece que a modernizaçãodo ensino superior conduzida manu militariincorporou desfiguradamente as experiênciasem curso, porquanto, no plano político, a açãodo regime militar era desprovida de qualqueroutro caráter e propósito que não fosse o desalgar as sementes de construção de umauniversidade pública e democrática23 . De fato,o emaranhado institucional, composto por leis,decretos, portarias, pareceres e circulares,culminando com a chamada reformauniversitária de 1968 e prosseguindo para alémdela (e, não raro, transgredindo sua próprialegalidade), é inequívoco a respeito dosilenciamento imposto. Constituiu umagargalheira que fortaleceu e ampliouenormemente a tradição autoritária do Estado,aperfeiçoando as estruturas administrativas decontrole centralizadas tanto no Ministério dePlanejamento (posteriormente Secretaria dePlanejamento da Presidência da República),quanto no próprio Ministério da Educação eCultura (MEC), chegando a aprofundar apresença dos corpos burocráticos denormatização e controle estrito dentro dasuniversidades a partir dos seus “órgãoscentrais” (reitoria e as então criadas pró-

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reitorias), intimidando e coagindo professores,estudantes e funcionários através de umarcabouço que, com pretensões à onipresença,compreendeu desde o controle sobre viagens,até a dissolução e banimento de entidadesrepresentativas (como no caso da criação daConferência Nacional do Estudante Universitárioque, sob supervisão do MEC, deveria ocupar olugar dos congressos da União Nacional dosEstudantes - UNE)24 . Sem esquecer da coerçãosem rebuços operada pelos “ ‘serviços desegurança interna’ que fiscalizavam e vetavamo recrutamento de docentes considerados‘indesejáveis’ pelos órgãos policiais paraocuparem cargos de chefia e até para receberembolsas para aperfeiçoamento no exterior”25 , oumesmo da violência desabrida que não foidispensada por ocasião das inúmeras prisões,cassações e degredos26 .

Entretanto, apesar da reformauniversitária, amparada nas concepçõesoriundas do Instituto de Pesquisas e EstudosSociais (IPES)27 , ter sido implementada d’en haut,à revelia das frações da sociedade civilinaudíveis a um regime que chegou às raias dototalitarismo, os consultores norte-americanos(que tiveram atuação destacada na formulaçãoe definição da reforma universitária), quandoaqui desembarcaram - por conta dos acordosentre o governo brasileiro (através do MEC) e aUnited States Agency for InternationalDevelopment (USAID) -, encontraram terreno dealgum modo preparado, posto que não só “aconcepção de universidade calcada nos modelosnorte-americanos foi buscada, desde fins dadécada de 40 por administradores educacionais,professores e estudantes [...] como umimperativo da modernização e, até mesmo, dademocratização do ensino superior em nossopaís”28 , como, nos anos 60, o ideário damodernização da universidade ocupava parteimportante da pauta política de associaçõescomo a UNE, uterinamente ligada à idéia dereforma universitária29 .

Tais observações podem sugerir ao leitorque aqui se estaria incorrendo em gravenegligência, posto que não se poderiadesconsiderar que “o grande debate sobre a

educação colocou num novo patamar a questãoda escola pública, da produção científica etecnológica, o papel dos cientistas e intelectuais[...]”30 . Daí os motivos de sua dura interrupção.

Abusando da paciência do leitor (mas coma certeza de convencê-lo da importância destaremissão), é importante ter em conta quemesmo as ações políticas orientadas àstransformações históricas, ou que se proclamamcomo tais, têm seu alcance constrangido pelainsuficiente radicalidade teórica. O que acabapermitindo a acomodação do que épotencialmente disruptivo e transformador noseio do progresso definido e acomodado nosmarcos da ordem, que muda mas não setransforma. Para o movimento estudantil, de fatocolocava-se como imprescindível reformar auniversidade existente, devotada - segundo asveementes pregações de Álvaro Vieira Pinto,cujas idéias foram amplamente abraçadas pelosestudantes - essencialmente a desempenhar opapel de matriz, no terreno ideológico, dodomínio social exercido pelas classesdominantes, onde reinava uma existêncialivresca, “desvinculada das massastrabalhadoras, única origem da verdadeiracultura”, configurando-se, assim, como“caudatária do saber alheio, que repete mal,em lições confusas, em razão do conflito queobscuramente percebe existir entre o que diz eo mundo ao qual pertence.”31 . Ora, a acolhidaque as formulações de um dos intelectuais deproa do Instituto Superior de EstudosBrasileiros (ISEB) recebia de um movimentopoliticamente relevante do espectro das forçaspolíticas de esquerda da época não pode sertomada como desimportante, pois revela nãoapenas a força das formulações ideológicasisebianas, calcadas no ideário do nacional-desenvolvimentismo, como indica otravejamento político colocado pelasperspectivas de resolução dos entravesnacionais ao desenvolvimento através doaprofundamento do capitalismo por umaindustrialização autocentrada, conduzida poruma burguesia nacional supostamente anti-imperialista e comprometida com reformas debase. Informado por uma leitura dual, etapista

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e seqüencial da história, como primorososestudos já demonstraram32 , esse ideárioconclamava os setores progressistas dasociedade brasileira, aqueles engastados noesforço de modernizá-la, a apoiar a tarefahistórica de conceder prioridade ao crescimentoeconômico, que não apenas asseguraria odesenvolvimento social, como, após escoimararcaísmos e atrasos de toda sorte, confluiria...no socialismo. Tarefa para a qual o Estado seriaindispensável, pois aparece “como instânciaracionalizadora, planejadora, mediaçãonecessária para o desenvolvimento”33 , senãocomo o sujeito demiúrgico da História. Essaconcepção não só ecoava dentro e fora dauniversidade, como ainda soa familiar nos diasque seguem, com exceção da promessa dosocialismo vindouro, já démodé.

Postular que esse ideário foi duramentedesmentido pela História porque os setoresmodernos da burguesia nacional abriram mãodas possibilidades e dos desafios da construçãode uma “via brasileira” para o desenvolvimento,seria incorrer nos mesmos equívocos teóricosdo ideário isebiano, que outorgava oprotagonismo das transformações sociais àconsciência das necessidades e condiçõeshistóricas, sem, todavia, ocupar-se de análisesincisivas sobre as determinações objetivamentecolocadas à reprodução social pelo movimentode reprodução ampliada do capital. Quanto aeste último, considerando que a reproduçãocapitalista no Brasil se faz nos marcos de umamundialidade onde, como já mencionado, os quepor aqui a personificam pouco ou nadadeliberam, a desnacionalização da burguesianacional não se refere tão-somente à perdaparcial ou total da propriedade do capital, massobretudo à perda do projeto de nação e,portanto, de hegemonia34 . Por isso amodernização não poderia ser senãoconservadora e heterônoma.

Reatando com o tocante à universidade:operada a “filtragem ideológica” (plasmada nopróprio consenso quanto à necessidade demodernizar o ensino superior), tratar-se-á deadequá-la às diversas exigências da reproduçãoampliada do capital. O que significará, num

primeiro momento, converter a educação emsetor de atividade passível de ampla realizaçãodo processo de acumulação.

A face mais imediata desse processo foi econtinua sendo a extensa mercantilização doensino no país, em todos os níveis, o que foiviabilizado, inicialmente, pelo sucatemento doensino público de primeiro e segundo graus35 ,acompanhado pela insuficiente expansão dasvagas nas universidades estatais para fazerfrente às aspirações de ascensão social nutridaspelo progresso e largamente acalentadas porsetores das classes médias ao sancionarem omito da educação como passagem para aassunção de posições de relevo na estruturaocupacional diversificada pela modernização emcurso (após neutralizado o “radicalismorenovador” do movimento estudantil). Aindaquanto ao ensino superior, não é de menos aprecarização operada, por exemplo, pelaredução do tempo de integralização de cursosnas universidades, primeiro com as licenciaturascurtas e seus currículos “enxutos”, agora com oaligeiramento da pós-graduação, cujos prazoscada vez mais são definidos no leito de custoda duração das bolsas concedidas pelasagências de financiamento das pesquisas. Oquadro se completa com o cínico argumento deque o ensino oferecido nas universidadesestatais é privilégio de poucos e sua“democratização”, que se esconde (mal) nanoção de massificação36 , só seria alcançada peloestímulo à expansão do ensino pago37 .

Resta explicar, então, por que taisargumentos recobram fôlego recorrentemente,prosseguindo no alto do firmamentoideológico38 . Analisando a assunção desabridada educação como prestação de serviço duranteos anos 90, Marilena Chauí dá as chaves para aexplicação: são considerados cidadãos os quepodem pagar mensalidades e, como a educaçãodeixa de ser considerada um direito social, elapassa a ser um ato de benemerência dos ricospara com os pobres. Assim,

“a cidadania, reduzida aopagamento de impostos e mensalidade,e o assistencialismo, como compaixão

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pelos deserdados, destroem qualquerpossibilidade democrática de justiça [pois]a democracia está fundada na noção dedireitos, e por isso mesmo está apta adiferenciá-los de privilégios e carências.[...] A cantilena ‘os ricos devem pagarpelos pobres’ reforça a polarização entreprivilégio e carência e, longe de serinstrumento de justiça social, mantém aimpossibil idade de que esta sejainstituída pela ação criadora de direitosque é a definição mesma da democracia[...]”39

Ao fim e ao cabo, por onde quer que seexamine, observa-se limpidamente que amodernização do ensino superior no Brasilimplicou na constituição da educação comosetor no qual proliferam grupos empresariais.No transcurso desse processo, pôde-seobservar que, açoitadas pela busca do lucro,as faculdades e universidades privadasatuavam (como continuam atuando)preferencialmente nos cursos que requeremmenos investimentos (em geral os de ciênciashumanas)40 , apesar da acumulação no setor játer viabilizado investimentos em cursos querequerem maior aporte inicial de capital (comoos cursos da área de saúde, por exemplo).Como acaba de ser constatado pelo Censo doEnsino Superior realizado pelo InstitutoNacional de Estudos e Pesquisas Educacionais(INEP)41 , entregue aos propósitos daacumulação de capital, o número de cursos degraduação cresceu nos últimos cinco anos aponto de, torturados os números, secontabilizar a criação de quatro deles por dia(se for considerado apenas o ano de 2002,chega-se à média de seis por dia). Não poracaso, hoje as maiores universidades do paíssão grandes empresas que, em seu conjunto,concentram quase 90% (!) das instituições deensino superior e 70% das matrículas emcursos de graduação. Mas agora que ascontradições com as quais esbarra o movimentodo capital no ensino superior se manifestamcabalmente pela redução da relação candidato/vaga nos processos seletivos (há cinco anoshavia 2,2 inscritos por vaga; agora o índice é

de 1,6), pelo aumento da inadimplência (33%)e pelo crescimento das vagas ociosas (36%),revelando o limite da demanda solvável (contrao que as empresas vêm investindopesadamente em propaganda e redução decustos), o capital começa a mudar de pele. Jáse encontra em curso o processo decentralização dos capitais, a expropriação docapitalista pelo capitalista, a transformação demuitos capitais pequenos em poucos capitaisgrandes, que, como demonstrou um filósofoalemão no século XIX, amplia e acelera os efeitosda acumulação. Entre eles, não se pode deixarde mencionar a reprodução de relações deexploração que caracterizam o capital, que nãopor acaso marcaram, por exemplo, os primórdiosda revolução industrial e atravessaram o longo“século do progresso”. O fato é que docentesforam e continuam sendo condenados aextensas jornadas de trabalho sob a condiçãode “aulistas”, de meros retransmissores deconhecimentos de cujo processo de criação edesenvolvimento não participam, que dauniversidade só conhecem bem o giz, o quadronegro e, sem esquecer dos feitos da técnica,algum outro recurso didático tido comomoderno42 . Ao mesmo tempo, os empresáriosdo setor começam a salivar com a perspectivade colher novas generosidades do Estado. Nomomento em que escrevo, o Grupo de TrabalhoInterministerial, recém-criado pelo governofederal para orientar o processo de reforma dauniversidade brasileira, sugere a criação de umprograma através do qual deverão serdestinados recursos orçamentários, via renúnciafiscal, para custear vagas em cursos degraduação mantidos por instituições de ensinoprivadas, cujos beneficiários seriamprioritariamente alunos “carentes” egressos deescolas públicas.

Mas nesse processo em que capitaisgrandes esmagam pequenos, o capital ampliaa escala de suas operações, desenvolvendo-se, segundo uma boa fórmula, em extensão eprofundidade. O que temos agora no ensinosuperior deve, portanto, ser considerado numquadro analítico que tenha em conta o processode centralização dos capitais à escala mundial.

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Como se sabe, em função da articulaçãoperiférica e heteronômica dos interessespróprios da “burguesia nacional” com os dasburguesias dos países centrais, nada ou quasenada se inscreve na agenda estatista brasileirasem que os interesses dos capitais quegovernam a mundialização, mediados pelaatuação de organismos multilaterais (BID, FMI,BIRD, OMC...), estejam amplamentecontemplados. Sabemos também que no últimodecênio a atuação do Estado (especialmente dogoverno federal) na educação, e particularmenteno ensino superior, procurou seguir pari passuas recomendações do Banco Mundial para oensino superior na periferia do mundo43 , que,por sua vez, fazem parte das “reformasestruturais” preconizadas pela estratégia dehomogeneização das “políticas” econômicas depaíses como o Brasil, que se convencionoudenominar de Washington Consensus44 . Por fim,viemos a saber também que em 1998 aOrganização Mundial do Comércio, dada acapilaridade existente entre essas instituições,que se nutrem e retroalimentam mutuamente,definiu regras e princípios para incorporar oensino superior entre os serviços regulados peloAcordo Geral de Comércio e de Serviços(AGCS)45 , tendo em vista salvaguardarinteresses atuantes na “indústria educacional”(segundo a acertada terminologia da própriaOMC), de magnitude estonteante46 .

Porém, vertigens podem advir seatentarmos para o fato de que se trata deendossar e aprofundar o que já vem seconsubstanciando por dentro desse contexto atítulo de acordos, convênios, parcerias (ou sejalá o nome que se der), entre instituiçõesatuantes no ensino superior e grandescorporações cujo fulcro de atuação encontra-seem outros setores. Tomemos alguns exemplos:

“[...] a Universidade dosGovernadores do Oeste (WesternGovernor’s University), foi fundada por 17governadores do Oeste norte-americano,baseada em parcerias com empresascomo IBM, AT&T, Cisco, Microsoft eInternational Thomson. Essa entidadeindependente, declarada não-lucrativa,

acreditada e provedora de grausacadêmicos, não mantém uma atividaderegular de ensino, nem desenvolve cursospróprios. Seu conteúdo origina-se de‘faculty providers contratados por outrasinstituições públicas ou privadas. Alcançaos estudantes através da internet e deoutras tecnologias de educação àdistância. É chamada de universidadevirtual’.”47

“Os grupos de pressão e osorganismos oficiais (OCDE, ComissãoEuropéia) publicam relatórios que seinspiram uns dos outros, preconizando emum primeiro momento a introduçãomassiva de novas tecnologias no ensinoprimário e secundário. Tratar-se-á nãomais de ensinar saberes ou uma cultura,mas da util ização de softwareseducacionais, que vão permitir aos futurosadultos ‘aprender a aprender’ e, emconseqüência, consumir estes softwares.Numa segunda etapa, a conexão cada vezmais estreita do mundo educacional como mundo industrial, permitirá oufavorecerá a transferência do essencialdos serviços públicos de ensino para ostipos de formação alternada dispensadospelas empresas, o que provocará paraestas últimas enormes lucros. Prevê-se umdrible aos diplomas nacionais, queconstituem um sério freio aos projetos dostecnocratas europeus, cuja aprovaçãoconsensual seria longa e cansativa (e,portanto, não-rentável), através de um‘sistema de acreditação dosconhecimentos’ cujas pesquisas já estãobem avançadas, baseado em um cartãomagnético que acompanharia o estudantee, em seguida, o solicitador de empregodurante todo o período de sua carreira.”48

“A idéia é simples. Imaginemos queum jovem contacte vários fornecedorescomerciais de ensino pela internet eobtenha, assim, através de pagamento,‘competências’ em técnica e gestão delínguas. Ao bel-prazer de sua auto-

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aprendizagem, os fornecedores de ensinovão ‘acreditá-lo’ com os conhecimentosque ele adquirir. Essa ‘acreditação’ serácontabilizada e gravada em um disquete(o ‘cartão’), que ele introduzirá em seucomputador que, por sua vez, estaráligado ao sistema de informática de seusfornecedores. Quando procurar umemprego, introduzirá o disquete em seucomputador e se ligará a um sítio de‘ofertas de emprego’ administrado poruma associação patronal. Seu ‘perfil’ seráentão examinado por um software e, sesuas ‘competências’ corresponderemàquelas que busca um empregador, eleserá contratado. Diplomas não serão maisnecessários: o patronato vai gerir seupróprio sistema, sem se preocupar com ocontrole dos Estados e do mundouniversitário.”49

Estamos no terreno dos fatos comerciais,então não surpreendem os casos de vendas detítulos de doutor honoris causa poruniversidades estrangeiras das mais vetustas50 ,nem a atuação de universidades emempreendimentos imobiliários, ou junto aomercado financeiro para captar recursos comvistas à transformação de seus campi emverdadeiros parques de diversões para atrairestudantes, ou melhor, clientela51 . Enfim,condutas em nada destoantes dos inúmeroscasos de venda de diplomas e fraudes de todanatureza que povoam o noticiário da imprensa,sugerindo que se trata de aberrações, quando,em verdade, qualificam, cada qual a seu modo,que a modernização caminha a passos largosnas e pelas universidades a tal ponto que,ampliando o escopo de suas ações mercantispara além do ensino, atuam como agentesdesse processo.

Voltando aos exemplos citadosanteriormente, o inquietante é queaparentemente teríamos de admitir que nãohaveria mais porque sublinhar que a inscriçãoda educação, e particularmente do ensinosuperior, nos circuitos de valorização dos capitaisnão basta para assegurar que haja formaçãode pessoal em sintonia com as demandas do

mercado de trabalho. Ora, mas se o problemada formação profissional em desacordo com osperfis profissionais requeridos pelas empresaspode ser (e é) enfrentado sinergicamente pelocapital (como dá mostras disso, desde os anos40, a Confederação Nacional da Indústria,através do SENAI), considerar centros detreinamento voltados à adequação e reduçãodo custo de formação da força de trabalho comose fossem universidades seria conceder àfamigerada Universidade do Hambúrguer” umestatuto além do de zombaria histórica.

Ademais, seria reduzir a questão se noscingirmos às desarmonias entre a formaçãoprofissional propiciada pelas universidades e asexigências de recursos humanos pelasempresas (o sistema ocupacional, nos termosde Claus Offe). O que não se pode perder devista são as contradições”, para cujo descortínioé fundamental considerar que não se encontrama rigor na universidade em si mesma, poisdevem ser buscadas nas relações a que seencontra articulada, a saber, nas configuraçõesparticulares que a reprodução capitalistaassumiu por aqui.

Em linhas gerais52 , podemos considerarque, no Brasil, os primeiros esforços no sentidode fazer da industrialização o núcleo duro daacumulação capitalista foram realizados nasbrechas da divisão internacional do trabalho,que desde sempre lhe reservava o papel deprodutor de bens primários de exportação, econtra os automatismos de mercado quereforçavam tal “vocação”. A despeito disso, esseprocesso mostrou-se dependente, desde osseus primórdios, da acumulação, nos chamadospaíses centrais, de trabalho morto sob a formade tecnologia. A compra de máquinas eequipamentos nos mercados internacionais, porexemplo, foi (e continua sendo) um expedientelargamente util izado para impulsionar aprodutividade dos capitais industriais aquisediados, mas o cerne da renovação tecnológicase encontra alhures, como resultante doprocesso de luta de classes centrado naindustrialização experimentada desde muitoantes naqueles países. Como se sabe, no inícioda metade do século passado a modernização

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no Brasil (centrada no processo deindustrialização) foi posta em marcha aceleradacom base num padrão de acumulaçãofortemente sustentado na ação do Estado. Dacriação de empresas estatais atuantes no setorde bens de produção e de estruturas definanciamento interno, das quais o BNDE foi apedra angular, à produção de bens de consumoduráveis (que os capitais multinacionais nãodemoraram a controlar) largamente aninhadanum padrão de distribuição da renda cujasiniqüidades foram reforçadas, associada àampliação da capacidade interna de produçãode insumos básicos (como petróleo eeletricidade, chegando a lançar as bases dasindústrias aeronáutica e de informática), foramaspectos determinantes para a configuração deuma estrutura industrial complexa, dinâmica,concentrada em determinados setores eespaços, embora muito distante daquelainicialmente caracterizada pela produção internade bens de consumo não-duráveis, viabilizadasobretudo pelas políticas cambial e tarifária. Noentanto, a incipiente base tecnológica para aacumulação não foi enfrentada na perspectivada empresa privada nacional53 , como tampoucoa atuação das empresas multinacionais,posicionadas nos chamados setores dinâmicos,desenvolveu a capacidade de criação de ciênciae tecnologia, sendo sequer capaz de romper ascaracterísticas estruturais do mercado detrabalho do qual também se nutrem54 . O que,por si, constitui uma contradição com a qualdeve ser confrontado o pressuposto de que àuniversidade cabe formar, em primeiro lugar,senão exclusivamente, pessoal especializado deacordo com as demandas expressas pelomercado de trabalho; pressuposto que, comares de verdade absoluta, alimentou a fórmulada chamada integração universidade-empresa55

(e nos dias de hoje ecoa na defesa dosmestrados profissionalizantes56 ) e, ipso facto,orientou as ações governamentais no sentidode engastar as pesquisas em ciência etecnologia aos setores dinâmicos daacumulação capitalista. De onde os motivos maisgerais para o aporte de recursos à pós-graduação57 .

Não obstante, num quadro em que arelação dos capitais nacionais com odesenvolvimento científico e tecnológicoraramente vai além da compra do que já seencontra desenvolvido (senão obsoleto) noexterior, acrescido da presença de empresasmultinacionais que investem em seus próprioscentros de pesquisa, baseados nos respectivospaíses-sede, a realização de pesquisas emciência e tecnologia por aqui esteou-se nasações do próprio Estado, tanto através dacriação da CAPES e do CNPq, cruciais numprimeiro momento que se caracterizou pelaformação de “operadores de tecnologiaimportada”, quanto nas ações das empresasestatais, colocadas nos lugares-chave da cadeiade relações interindustriais, que passaram afirmar convênios com as universidades,especialmente quando a política governamentalde ciência e tecnologia ganhava novos eimportantes pilares, como a criação do FundoNacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (FNDCT), em 1969, e da Financiadorade Estudos e Projetos (FINEP), em 1971.

“O apoio recebido não foi,entretanto, indiscriminado [...] É patentea preocupação [...] em estimular, não apesquisa em geral, mas sim aqueles‘programas ou projetos definidos comoprioritários’. Evitar-se-ia assim a‘pulverização de recursos’, concentrandoo ‘apoio governamental’ em ‘centros deexcelência’, ‘estimulando a captação derecursos privados’, o que permitiriaconceder uma ‘remuneração condigna’ e‘condições de trabalho às equipes depesquisadores’ e ‘concentrar esforços nodesenvolvimento de tecnologia industrial’.

O tipo de pesquisa a serdesenvolvido tendia a ser determinado,portanto, pelo governo. As decisões eramtomadas em nome de uma racionalidadeeconômica e de imperativos sociais e seconsubstanciavam não em instruções ounormas rígidas mas no oferecimentodiscricionário de recursos que oviabilizavam.”58

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É nesse contexto que se formaramprogramas de pós-graduação (entre os quaisos da COPPE, da UFRJ, por exemplo, sãoarquetípicos) cujas pesquisas resultaram emimportantes avanços tecnológicos aplicados porempresas estatais em seus setores de atuação,apesar da articulação assimétrica entreempresas estatais e multinacionais resultar natransferência dos ganhos de produtividadedaquelas para estas. Das consideraçõesprecedentes, entretanto, a heteronomia dauniversidade integrada à modernização figuracomo uma evidência palmar. Não é precisogrande esforço, por exemplo, para perceber queas pesquisas são pautadas a partir de decisõesgovernamentais. A definição de temas, ou, sepreferir, dos setores de aplicação doconhecimento, assim como o estabelecimentode prioridades, prazos, recursos e finalidadespara a consecução de pesquisas sãoprerrogativas que escapam em muito àuniversidade. Basta acompanhar, nos dias queseguem, as ações visando à criação de novosfundos setoriais de C&T. A decisão final não cabeàs universidades, nem às associaçõescientíficas, nem ao Ministério da Educação,tampouco ao Ministério de Ciência e Tecnologia,mas à Casa Civil da Presidência da República.Sem esquecer que a partir de então consagrou-se a distância entre a pesquisa (através doschamados “centros de excelência”) e o ensino,que não foi convidado para sentar-se à mesana qual foram dispostos os recursos para aspesquisas tidas como prioritárias, nessecontexto constituiu-se uma condição, talvez nãotão evidente, ao menos inicialmente, de grandevulnerabilidade às próprias pesquisas.

De fato, se considerarmos a guinada(iniciada já a partir do governo Kubitschek, eaprofundada sob a ditadura militar) para umpadrão de acumulação financiado externamente(e, portanto, mais exposto aos movimentos doscapitais à escala mundial), e, sobretudo, o modode acumulação predominantemente financeiro,que se explicita no Brasil já a partir da chamadacrise das dívidas externa e interna no transcursodos anos 80, e culmina no decênio subseqüentecom a mobilização de vultosos recursos estatais

para financiar a privatização, de fato e semrebuços, justamente das empresas estatais(face visível da decretação da superfluidade dacapacidade detida pelo Estado, através dasempresas que controlava, de atuar comocondotiere do crescimento econômico, como esobretudo da própria política59 ), o que severificou? Os novos donos das empresas nãoraro deixaram de renovar contratos parafinanciamento de pesquisas junto às instituiçõesbrasileiras de pesquisa, como acabaramfechando os centros de pesquisa das antigasestatais (agora filiais das multinacionais que ascontrolam), reforçando, obviamente, os centrosde P&D das matrizes, onde se concentram asatividades de maior densidade científica, assimrepondo e agravando enormemente adependência tecnológica do país60 , agorareafirmada em bases estruturais, porquanto adefinição do patamar tecnológico daindustrialização brasileira, em brevíssimaconsideração, não reside no movimento própriodos capitais cujos circuitos de reprodução serealizam à escala nacional, mas no movimentodos que governam o processo de mundializaçãoe, por conseguinte, decidem as frações dosespaços periféricos aos quais devem serincorporados avanços tecnológicos em funçãode sua integração hierarquizada ao processode acumulação à escala mundial.

“Como resultado, estreitou-se aindamais o acesso da periferia aoconhecimento e às tecnologias de ponta,uma vez que sua util ização flexívelcorresponde a um controle concentrado,e sua transferência para os espaçosperiféricos é sempre parcial, contribuindomenos que no passado para a criação deuma capacidade endógena de progressotécnico.

Com a ‘internacionalização dosmercados internos’, a periferia que chegoua industrializar-se logrou, ainda que deforma tardia, internalizar a sua segundarevolução industrial, suas técnicas emétodos de produção. Nos tempos deglobalização, só cabe aos paísesperiféricos [...] ‘consumir’ de maneira

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parcial o progresso da ‘terceira revoluçãotecnológica’.”61

Como se não bastasse, subordinados àsexigências da financeirização mundial dareprodução da riqueza, os Estados da periferiaimediata vestiram uma camisa de força tal, que“abdicaram da sua antiga função e capacidadede abrir novos horizontes de expansão para ocapital privado e de atuar como articuladoresde interesses entre os investidores externos eos capitais nacionais”62 , desfazendo assim asexpectativas de um novo ciclo de “fuga parafrente”. É nessa situação em que a destinaçãodos recursos captados pelo Estado é norteadapela bússola do movimento mundial do capitalfinanceiro que se define, por fim, o volume derecursos a serem investidos em ciência etecnologia. Não surpreende, portanto, que sobo contingenciamento de recursos destinados àCAPES e ao CNPq, ou mesmo sob ocongelamento de suas respectivas participaçõesno orçamento federal, o desenvolvimento depesquisas se veja comprometido, pairando comograve ameaça às universidades (refiro-me àsestatais, decerto) que, nesse terreno cediço emque se edificaram as bases do desenvolvimentoda ciência e tecnologia, vêem-se na iminênciade retroagir décadas63 . Ou melhor, manda averdade dizer que os resultados encontram-sepor toda parte. Entre eles, mencione-se, enpassant, o acréscimo de recém-doutores aonosso exército letrado de reserva.

Complementando esse contexto dedeterminação forânea da aplicação de ciência etecnologia enquanto forças produtivas, não sepode esquecer do papel exercido pela legislaçãode propriedade intelectual, que não sódesqualifica as formas de conhecimento e deciência não confinadas ao processo dereprodução do capital, como conspira contra osprincípios constitutivos do próprio conhecimento,arrastando-o para o seu empobrecimento, namedida em que cada vez menos existeminterlocutores, mas concorrentes contra os quaisé preciso precaução64 . Nem poderia ser de outromodo, já que as solicitações de patentesconsistem em ações estratégicas que, aocontrário de proteger os produtos da atividade

científica e intelectual, visam sobretudo impedirque os desdobramentos atuais e futuros dodesenvolvimento científico e tecnológicoescapem das injunções já apontadas65 . Diantedisso, seria exagero considerar que o modelode avaliação institucional dos programas depós-graduação adotado pelas agências defomento, que tão veementemente enfatiza apublicação dos resultados das pesquisas emperiódicos especializados internacionais, o quenão raro acontece antes das solicitações depatentes (tarefa para a qual freqüentementeas universidades brasileiras encontram-sedesestruturadas), consiste em mais um elo daarmadura de ferro moldada para compelir auniversidade ao caminho da servidão?

III - A universidade dessubstancializada:crítica à avaliação como fim em si mesmo

“Ainda que seja evidente o muitoque de nuvem há em Juno, não é lícito,de todo, teimar em confundir com umadeusa grega o que não passa de umavulgar massa de gotas de água pairandona atmosfera.” (José Saramago, Ensaiosobre a cegueira).

O modelo de avaliação institucional doscursos e programas de pós-graduação (e dascondições das instituições de ensino superiorpretendentes a abrigar novos cursos) tem sidoenaltecido a ponto de nutrir um novo e maldissimulado ufanismo. Recentemente, asassociações científicas foram exortadas a apoiare garantir a sua continuidade e aprimoramento,posto que se trata “[...] de processo complexo,necessário e importante. Obviamente não éperfeito, mas vem sendo aprimorado a cada ano.Embora sujeita a críticas [...] a atividade deavaliação possui a grande vantagem de serrealizada pela própria comunidade da pós-graduação [...]”66 .

Por que negar-lhe méritos, já que se trata,como se afirma (o que não esclarece), demodelo reputado entre os melhores do mundo?As associações científicas não deveriam se

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engajar nesses esforços? Ações nesse sentidonão faltam. Tomemos um exemplo: desde o seuIII Encontro, em 1999, a ANPEGE passou adiscutir a representação da área de Geografiajunto à CAPES, mediando a relação desta comos programas e cursos de pós-graduação. Oque esse exemplo permite observar, além daobviedade de que, desde então, os pares,respaldados e recomendados pelo quadro deassociados da ANPEGE (os próprios programase cursos), passaram a realizar a avaliação doscursos de pós-graduação? É legítimo considerar,como tem sido bastante sublinhado, que houvesignificativo avanço na relação institucional,outrora obscura, com a CAPES? Decerto,especialmente se lembrarmos que maiorvisibilidade sempre causa dificuldades a umaburocracia ciosa da manutenção de seuspoderios assentes no segredo e noautoritarismo.

Embora parte importante de agênciasgovernamentais como a CAPES e o CNPq (nãopor acaso justamente a que responde pelofomento), continue sob o tacão de umaburocracia estatal pouco afeita ao diálogo sobreo que não lhe convém ou ameaça, poder-se-iaconsiderar abusivo tomá-las como verdadeirascaixas-pretas, haja vista a ampla divulgação quese faz de editais para financiamento depesquisas, dos critérios neles utilizados, omesmo valendo para a avaliação dos cursos eprogramas... Em contrapartida, isso nãoassegura, por si, o enfrentamento de umaspecto essencial, ou seja, a exterioridade daavaliação em relação à universidade. Pois aos“pares” cabe executar um modelo sobre o qualpouco deliberam. É elementar, mas os comitêse comissões científicos dessas agências sãocompostos de professores e pesquisadoresque, embora pertencentes ao corpouniversitário, passam a desempenhar atividadesnuma instituição outra, diferente, em seussentido e finalidade, das universidades, masque a elas se articula e, queiramos ou não, sobreelas exerce controle, tutela e vigilância atravésde regras e critérios estabelecidos a relativadistância da vida universitária. Basta lembrar aassimetria da relação que se estabelece entre

os cursos de pós-graduação e uma agênciagovernamental que controla verbas parapesquisa (e assim vai definindo temas, prazos,recursos financeiros para cada área...) e decidesobre o credenciamento dos cursos para darmoscrédito ao adágio de que a pós-graduação estánas universidades mas não é das universidades.

O relativo, porém, deve-se a que aspróprias universidades, como já exposto,encontram-se estruturadas de modo a ofereceramplo apoio e sustentação à atuação daracionalidade burocrática ordenadora. Os canaisinstitucionais, que vão de pró-reitorias acomissões de toda ordem, são tantos quantosos necessários à burocratização, pois visam nãoapenas a permitir a desenvolta atuação do queé extrínseco, como constituem o próprio solo apartir do qual a burocratização se enraíza navida universitária, corroendo-a. Uma vez quenas universidades aninharam-se processos eestruturas de divisão interna, elas não sãoapenas burocratizadas por algo que vem defora. Pois a burocratização não se resume aosinúmeros afazeres que, por exemplo, exigemdos coordenadores de curso preencherrelatórios com informações demandadas pelaCAPES67 . Em verdade, uma vez que asuniversidades há muito assumiram também parasi o ideal da racionalidade administrativaordenadora, tornaram-se campo fértil onde estase reproduz em extensão e profundidade. Ésobejamente conhecida a figura arquetípica docarreirista, daquele que tem como destaquesem seu currículo os degraus hierárquicos quegalgou na estrutura universitária, alcançandoassim poder, autoridade e prestígio (além,obviamente, de gratificações) em função doscargos que ocupou ou ainda ocupa. O dramático,porém, é que “tem-se a aparência de queninguém exerce poder porque este emana daracionalidade imanente do mundo organizadoou, se preferirmos, da competência dos cargose funções que, por acaso, estão ocupados porhomens determinados.”68 . Daí, que aburocratização deixa de ser percebida nasuniversidades como algo que a invade e coloniza,ao passo que a capacidade de autoinstituir-setem sua morada deslocada para as regras,

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normas e condutas prefixadas, cuja obediênciacristaliza-se como via única para acessar asfontes do agir. Daí também, para retomar oponto, que, objetivamente, nossos pares vêem-se às voltas com um trabalho eminentementeadministrativo, de gerência dos cursos de pós-graduação, exercido em ampla heteronomia, daqual as assertivas resignadas quanto àsescassas margens de manobra que têm frenteao que já se encontra definido e decidido deantemão oferecem uma pálida idéia. Seconsiderarmos, por exemplo, os esforços derepresentantes de áreas do conhecimento juntoà CAPES para fazer com que o modelo deavaliação contemple nuances e variações paraque as especificidades de cada área sejamreconhecidas, permitindo assim aplacarincongruências, podemos observar que a duraspenas procuram atuar de modo a nãocorresponder à condição de executantespassivos de ordens definidas alhures.

Seria ocioso revisitar aqui a trajetória daavaliação institucional da educação superiorbrasileira para expor as concepções deeducação superior fundantes das diversaspropostas e experiências havidas69 . Para o queinteressa sublinhar neste texto, bastaconsiderar que desde meados dos anos 90, atransposição, para as universidades, das noçõese práticas próprias da racionalidade empresarialcristalizou-se como referência nasconsiderações e ações do Estado direcionadasà educação. Quanto às universidades, não édemais lembrar que no final dos anos 80 umalista muito questionável elaborada nosbastidores da reitoria da Universidade de SãoPaulo, e publicada num jornal daquela cidadesob a alcunha de lista dos “improdutivos”,ofereceu à expiação vários professores que emdeterminado período não tiveram trabalhospublicados70 . Ora, esse já remoto episódiopermitiu vislumbrar que a avaliação dasatividades desenvolvidas nas e pelasuniversidades seria cimentada na medição doque é produzido, portanto, pouco ou nadapreocupada em interrogar os sentidos efinalidades dessa produção, porquanto aprodutividade tornou-se um fim em si mesmo71 .

Eis porque nos programas de pós-graduação aredução do tempo médio de titulação assumiuares de vestal intocável e foi levada ao pináculo.Por seu turno, e como conseqüência dadessubstancialização das universidades, aavaliação pôde ser convertida numa técnica paramensurá-las e as comparar.

“ ‘Assessment’, termo que nãoencontra boa tradução em português,representa bem essa prática deinspiração anglo-saxônica e que fazfortuna em várias partes do mundo.Adquirindo formas práticas diversas, nofundo trata-se de medir rendimentos deindivíduos, grupos e outras dimensõesinstitucionais, em comparação comobjetivos e padrões predeterminados. [...]Em virtude do poder fiscalizador, darapidez de atuação e da credibilidadeproduzida pela idéia de objetividade, o‘assessment’ e suas variações são osinstrumentos mais util izados pelosgovernos que fazem questão de controlaros resultados [...] Além disso, nessaperspectiva, impossível considerar tudo oque é complexo e não matematizável.Assim sendo, essa avaliação não abrangea totalidade. Antes, opera umasimplificação e uma homogeneização darealidade, para que esta possa sermedida, quantificada e comparada, ecaiba nos gabaritos de aferição. [...] asavaliações de origem externa [...] visama valoração e a classificação de indivíduosou grupos e, a partir destes, ahierarquização de instituições. O que lhesdá sentido é a idéia de medida. Suagarantia são os instrumentos de distintosmatizes, desde os de mensuração dequantidades físicas até os testes ouexames que permitem conclusõescomparativas [...] Essa avaliação é umpoderoso instrumento de gestão política,um mecanismo importantíssimo para omonitoramento da eficiência dos sistemaseducativos [...]”72

Institucionalizada, a avaliaçãotransformou-se numa técnica que não permite

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decifrar a realidade das e nas universidades.Destinada ao controle, pouco ou nadaconcernida aos fins, pressupondo que asuniversidades encontram-se completamentedeterminadas ao operar através derepresentações construídas extrinsecamente,em verdade é o trabalho do conhecimento daspróprias universidades, de determinação de suasubstância, que se vê embotado. O que, a fortiori,exprime o paradoxo das universidades não secolocarem (por impotência ou recusa) a sipróprias como sujeito e objeto do conhecimento,o que lhes permitiria definir os fins de suasações e os meios mobilizados para os avaliar.Não surpreende, então, que às tarefas exigidaspela avaliação institucional, como opreenchimento de intermináveis relatóriosnecessários para compor relatórios ainda maisextensos, que “não se distinguem de listastelefônicas e com menos utilidade do queestas”73 , docentes e discentes reajam comdesdém, irritação, ou então, com presunçosofarisaísmo, as considerem fundamentais parajustificar à sociedade a existência dasuniversidades, satisfazendo-se quando documprimento dos deveres impostos, por maisestúpidos que sejam.

IV - A universidade e o agir democrático: paraalém da gestão e da cidadania

É tentador o caminho de se pensar que asuperação desse quadro reside no que secostuma considerar como gestão democrática,de um lado, das próprias universidades,fortalecendo a representação de docentes,discentes e funcionários em suas estruturas, e,por outro, das chamadas políticas voltadas àeducação, ciência e tecnologia, para cujaformulação e consecução seria imprescindíveluma participação efetiva das entidadesrepresentativas do “campo educacional”.Quanto à última, parece auspicioso o momentoatual, haja vista que as associações científicas,por exemplo, começam a participar dasdiscussões sobre o montante dos recursosdestinados a título de desenvolvimento deciência e tecnologia, bem como começam asentar-se à mesa em que são definidas as

verbas alocadas nas agências de financiamentoà pesquisa74 . Decerto que existemdessemelhanças em relação à verdadeiraimpermeabilidade à interlocução política comentidades representativas do “campoeducacional” - como ANDES (Sindicato Nacionaldos Docentes das Instituições de EnsinoSuperior); UNE e FASUBRA (Federação dasAssociações Sindicais de Trabalhadores dasUniversidades Brasileiras) -, que tantocaracterizou os governantes do turno anterior,que insistentemente lançavam-lhes a pecha decorporativistas, menos porque asdesconhecessem ou as conhecessem mal, massobretudo porque assim visavam a desqualificá-las para o debate político75 . Afinal, não se podeesquecer que a própria LDB em vigor, aprovadaem 1996 a partir de projeto de lei do entãosenador Darcy Ribeiro, constituiu um duro golpenos debates políticos (nos quais destacou-se aparticipação do Fórum Nacional em Defesa daEscola Pública) que vinham se estabelecendono âmbito do Congresso Nacional desde queum primeiro anteprojeto havia sidoencaminhado à Comissão de Educação daCâmara dos Deputados em 1988, antes mesmoda promulgação da Constituição76 . Seriaingenuidade, entretanto, desconsiderar que asconcepções e ações emanadas de setores-chave do atual governo federal não deixamdúvidas quanto à dissipação da noite em quetodos os gatos são pardos. Basta considerar arecente divulgação, por parte do Ministério daFazenda, de documento (intitulado “Gasto socialdo governo central: 2001-2002”77 ) no qualreafirma-se a negação da educação superiorcomo direito social (já que as universidadesestatais – muito caras aos cofres do Estado -continuam cheias de filhos dos endinheirados...e por aí retoma-se a velha cantilena) e aperspectiva de atuação governamental nosentido da estimulação à “indústria daeducação”. Ademais, se considerarmos as metasde superávit primário estabelecidas pelo atualgoverno em função da manutenção eaprofundamento de acordos com organismoscomo o FMI, não restam dúvidas quanto àsdificuldades que se colocam para a expansão

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do ensino superior mantido pelo Estado, senãoquanto à sua inviabilização nos patamares emque se encontra. Sem esquecer o fim dagratuidade do ensino superior, já admitida a céuaberto no atual governo federal (mesmo noâmbito do Ministério da Educação) paracorresponder às exigências do Banco Mundialpara a liberação de novos empréstimos aogoverno brasileiro.

Não obstante, façamos um rápido exercícioe nos coloquemos a pensar a partir do que, vistodo lugar e do momento em que nosencontramos, chega a parecer um delírioabsurdo. Suponhamos que, bem ao contráriodo contexto atual, inexistissem restriçõesorçamentárias pesando sobre a implementaçãoda política de ciência e tecnologia; que asuniversidades estatais não se encontrassemsob um estrangulamento financeiro recorrenteque as coloca (sobretudo as federais)reiteradamente em situação de insolvência,comprometendo seu funcionamento regular;que os salários de docentes e funcionáriosestivessem bem acima dos níveis vexatórios emque se encontram, assim como as bolsas depesquisa; que não tivéssemos motivos parareclamar de insuficiências infra-estruturaisbásicas das universidades; que, de fato, asuniversidades fossem submetidas a uma gestãodemocrática, onde a representação dossegmentos da “comunidade universitária” emsuas estruturas fosse ampla, associada a umaparticipação efetiva das diferentes instituiçõesrepresentativas do “campo educacional” noestabelecimento das chamadas políticas públicasde educação e de ciência e tecnologia; que asatividades de inspeção de cursos e instituiçõesnão fossem tomadas como o supra-sumo daavaliação da essência das universidades; queas universidades jamais pudessem serconfundidas com o engodo que são oschamados centros universitários, nem que asempresas de (des)educação continuassem aparasitar os recursos do Estado; que auniversidade pública, gratuita e de qualidadefosse, enfim, um direito social assegurado,culminando uma história de duros embates.

Não se quer dizer aqui que ademocratização das universidades e do próprioEstado tenha algo de utopia abstrata, quepossa ser concebida e perseguida como umaquimera. Afinal, o reconhecimento e a ampliaçãodos direitos foi e continua sendo resultado deárduas e não raro dramáticas lutas peloestabelecimento de uma cidadania queexpresse concretamente que o fazer política seprocessa pela criação e recriação de direitos,como é próprio da democracia. Ainda mais numasociedade como a brasileira, ondehistoricamente os direitos sociais têm sidopensados e praticados como se fossem favoresfeitos pelos governantes de turno aos que,despojados de efetivos direitos civis e políticos,mostrem-se obedientes, agradecidos e,portanto, merecedores da integração protetoraao Estado que, assim, os anula politicamente78 .Não pode haver dúvidas de que odesenvolvimento da cidadania para além dasconcessões prévias e preventivas,conseqüentes com o figurino de uma cidadaniacaricata e despolitizante, implica alterações nopadrão de desigualdade social. Em seu clássicotrabalho, Marshall já demonstrara que osdireitos sociais configuram uma participação nariqueza socialmente produzida que impõemmodificações nas situações experimentadaspelas classes sociais, o que dificilmente seriaacessível a partir das condições que determinamas próprias classes79 . Do mesmo modo,observou que os direitos sociais, ao sereminscritos como deveres do Estado, impõem-lhecustos. Mais que isso, poder-se-ia dizer que aconstituição do fundo público como base na qualse travam embates políticos perturba, comefeito, a geometria do poder. Mas, ao mesmotempo, constitui-se num umbral, num limite quecondiciona a democracia, haja vista que esta émais que um regime jurídico-político cujaculminação residiria na configuração econsolidação do Estado de direito onde estariamasseguradas as prerrogativas da cidadaniamoderna, exercida através dos direitos (civis,sociais e políticos, tal como consagrados). Porconseguinte, estes últimos definem uma últimafronteira para além da qual os fundamentos da

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ordem social estariam ameaçados. Destarte, amodificação das situações de classe, enquantofruto da cidadania, não altera os pilares sobreos quais a sociedade encontra-se estruturadae a partir dos quais se reproduz. Auniversalização da educação (aí incluído o ensinosuperior) enquanto direito social, por exemplo,não assegura que deixe de ser concebida comvistas a atender precipuamente as demandasdo mercado de trabalho, definidas, obviamente,pelo movimento específico de reprodução doscapitais. Amplo acesso à universidade nãosignifica, por si, a efetivação de seu potencialno processo ressocializador dos que a elachegam e a vivenciam; não significa queexperimentem condições e situações quepossibilitem o rompimento das barreiras declasse, a superação dos bloqueios e limitespróprios da posição social que ocupam e a partirda qual pensam e praticam o mundo, redefinindoe ampliando, assim, o sentido e as perspectivasde sua participação nele. Para não ir muitolonge: as universidades poderiam ter resolvidaboa parte dos problemas com os quais seembatem para a realização de pesquisas se oschamados fundos setoriais de C&T do CNPqcontassem com fontes asseguradas e estáveisde recursos financeiros em abundância, e aexecução dos orçamentos não fosse objeto deconstrangimentos, como sói ocorrer. Issoencheria os corações e mentes dospesquisadores de entusiasmo. Mas é legítimoindagar se assim estariam revogadas aslimitações que impelem o conhecimentodesenvolvido nas universidades a operar noslimites dos princípios e das formas prescritas ereconhecidas pelo e a partir do Estado. Asuniversidades não continuariam privadas dasiniciativas que lhes cabem e correspondem, acomeçar pela definição dos recortes a partir dosquais a realidade pode ser conhecida? Osfundos setoriais não correspondem exatamenteao que sua denominação alude: escrínios aosquais o conhecimento deve se submeter?

Finalmente, cabe observar que nachamada gestão democrática, exercida a partirda noção de representação, a política encontrasua fonte e legitimação justamente na

fragmentação social. Portanto, a democraciaedificada em tais bases reforça os compromissoscom as formas que, parafraseando JacquesRancière, asseguram que a política não deixede ser um caso de polícia80 . Não surpreende,por isso, que a democratização do Estado caiaem descrédito, pois não raro torna-sedegenerescência corporativa.

Tomemos a ajuda de um exemplo, a partirda própria Geografia, e de certo modo prosaico,para reconhecer as limitações que impedem auniversidade de atuar segundo as exigênciasdo agir democrático. Valho-me novamente dotranscorrido durante o V Encontro da ANPEGE:nele o atual presidente da Associação dosGeógrafos Brasileiros (AGB), tendo em vista aiminente reclassificação das áreas deconhecimento utilizadas pelo CNPq, propôs quea Geografia passasse a figurar aglutinada numúnico comitê assessor, ao contrário de sua atualdivisão em Geografia Humana e Geografia Física,cada qual num comitê assessor diferente. Seconsiderarmos ainda que os pesquisadoresenquadrados neste último têm enfrentadograndes dificuldades para obtenção de recursosnum comitê dominado por geólogos, poderíamossupor que as circunstâncias conspiram em favorde tal retificação. Houve mesmo quem aduzisseargumentos à proposição, salientando aunidade da Geografia em que pese a suadiferenciação de áreas temáticas terexperimentado um aprofundamento expressivoem virtude da verticalização das pesquisas. Apartir desse ponto, a argumentação começa afragilizar-se, pois acaba por tornar nítido o quejá se percebe há algum tempo, ou seja, que setem operado uma fragmentação dissolvente nointerior da Geografia enquanto ciência, a pontode não causar estranhamento que algumas desuas áreas temáticas assumam-se (o que nãosignifica que o sejam) como corpoepistemológico particular e distinto.

Que sejam realizados eventos epublicadas revistas científicas nos quais éexposto e discutido o conhecimento que se tem

alcançado devotando-se a áreasparticularizadas da Geografia pode estar

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indicando que os geógrafos têm mobilizado econstituído um formidável arcabouço teórico econceitual no sentido de compreender asmúltiplas determinações concernentes à criaçãoe recriação do espaço, essa síntese dialética decoisas “naturais” e coisas “fabricadas” movidapelo homem e sua história, como dizia ao seumodo Milton Santos. Ora, justamente por isso,essa exuberância não autoriza o encasulamentodo conhecimento em guetos auto-referidos. Aexistência de uma associação científicacomposta por pesquisadores de Geomorfologia,para tomar um caso concreto, seguramente éemblemática desse afastamento, pois revelaque as pesquisas podem até ter origem nocampo próprio da Geografia, mas, ao seensimesmarem, a ele pouco retornam.

O que estaria rondando a Geografia, oumesmo já se instalado intimamente nasentranhas de sua reprodução enquanto corpuscientífico, não seria o estilhaçamento e dispersãodo conhecimento típicos de um mundo que àfalta de imaginação teórico-conceitualconvencionou-se denominar de pós-moderno?Afinal, não se trata de uma peculiaridade dosmodos de pensar e agir pós-modernosprivilegiar a fragmentação e os particularismos,aceitando-os como modos de ser para, assim,conferir-lhes estatutos próprios, obscurecidos,senão negados pela razão moderna, o queexigiria, portanto, o afastamento de suascriações, entre elas as ciências modernas,alcunhadas pelos pós-modernistas, em tom desuspeita e acusação, como grandes narrativas?

Face a isso, uma resposta conservadorae obscurantista propugnaria por um retorno aoslimites acanhados e acabrunhantes daGeografia como a insuficiente e caricatadisciplina das localizações, dos mapeamentosdescritivos daquilo que não se conhece a fundo.Do encasulamento do pensamento geográficodecorrente de sua acomodação ao papel dedisciplina reduzida à descrição enciclopédica dasuperfície terrestre de acordo com as interações

de elementos e fenômenos não raro melhoranalisados por outros campos disciplinares, dasubordinação e obscurecimento dainterpretação geográfica do mundo modernolevada a tal ponto que “ser rotulado degeógrafo era uma maldição intelectual, umaassociação aviltante com uma disciplinaacadêmica tão distanciada das grandes matrizesda teoria social e da filosofia modernas, que seafigurava fora do âmbito da importânciacrítica”81 , enfim, desses geografismos asfixiantesjá sabemos que o melhor que se pode esperaré não esperar nada.

O importante a reter é que a Geografiaaté pode aparecer representada de maneiraunificada no e para o CNPq (como aliás figurana e para a CAPES), mas esse aparecer nãonecessariamente corresponde ao ser, pois o fazeré tendente à fragmentação separadora. Arepresentação, abstrata, dissimula e escondeo movimento real do conhecimento científico quese decompõe através de separações.Formalmente, as partes podem estar ou serreunidas, a partir de uma espécie de détenteacadêmica, mas nada assegura que algo desubstancialmente novo haverá sob o luar, poisisso não permite afirmar que se trata dediferenças orgânicas de uma unidadeepistemológica reconhecida enquanto tal; nãogarante, enfim, que os pesquisadoresespecializados tenham suas pesquisasparticulares referidas ao conhecimento doprocesso de reprodução social do espaço.

Agora, se não nos resignarmos a aceitarcomplacentemente um processo que pareceabsoluto e inexorável, como a especializaçãomíope, ou, o que é pior, o babelismo (primeirosintoma da indigência) teórico-conceitualaviltante, decorrente da adesão intelectual epoliticamente acrítica e preguiçosa aopragmatismo oportunista, é fundamental dar umsentido conseqüente às inquietações quanto àsensação de despedaçamento, o que aobsessão pela transdisciplinaridade só esboçade maneira muito imperfeita. Obviamente, só

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mal-estar e espírito desassossegado sãoinsuficientes. Para mudarmos o curso de algoque não nos é exterior (e só por isso podemospretender fazê-lo), por mais que pareça ser tãoinócuo como querer esvaziar o oceano com umbalde, é preciso dirigir o foco das reflexões sobrea relação de nossas pesquisas com oconhecimento do mundo que se pode alcançarenquanto experiência de pensamento autônomo(balizada, no nosso caso, pela Geografia). E,para ser realista, o pensamento deve considerarque as universidades, para se colocarem à alturadas exigências próprias da democracia, terãoque se libertar das formas que as aprisionam,terão que se confrontar com o Estado, que ascondena a existir somente sob suas formas.

Essa convicção não dispensa demonstraro caminho das possibilidades a ser explorado etrilhado para que as universidades assumam asua essência, qual seja: pensar o não-pensado.Ora, para os atuais mestrandos e doutorandos,coagidos a desenvolver suas pesquisas emprazos que constituem verdadeiros torniquetes,seria pedir-lhes o impossível. Que pesquisador,acicatado pelos prazos imperantes desde queas universidades ajoelharam-sefervorosamente diante do altar daprodutividade82 , pode se arriscar no terreno dasinovações? Receio que uma análise minuciosadas dissertações e teses resultantes daspesquisas realizadas nos programas de pós-graduação, especialmente se consideradas assubmetidas mais fortemente ao aligeiramento,chegaria a resultados estarrecedores, poisrevelaria que a preocupante “perda dequalidade” exprime-se por trabalhos queprivilegiam o exame de questões tópicas,circunscrevendo-se aos limites do já sabido econhecido no âmbito do campo disciplinar, ou, oque é pior, mantendo-se aquém deles. Redefinirprazos é decerto indispensável, mas a questãonão se resume (e portanto não se resolve) aesse importante aspecto. Pelo que já foiexposto, torna-se necessário enfrentar afragmentação e dispersão do conhecimento,que conspira contra o pensamento crítico ecriativo. O que é alimentado pelas agências defomento à pesquisa, que, ao mediarem o

financiamento ao desenvolvimento de ciência etecnologia, determinam a sua orientação (os jámencionados fundos setoriais são emblemáticosquanto a isso). Não obstante, essa demarcação.E divisão do trabalho científico tem raízesprofundas nas universidades, que respondema ela com ou sem mediações. Tomemos, umaúltima vez, a ajuda de um exemplo, aquimencionado de modo bastante pedestre: aindústria automobilística83 .

É inegável a importância dessa indústriano processo de industrialização e demodernização das sociedades. Se é certo queas inovações tecnológicas na indústria têxtil, aolongo da segunda metade do século XVIII,aceleraram a revolução industrial, a indústriaautomobilística pode ser tomada como oepicentro de transformações que atravessaramvisceralmente os modos de vida ao longo doséculo XX, sobretudo quando o automóveldeixou de ser um caríssimo produto artesanalpara transformar-se numa mercadoria produzidamassivamente por uma indústria que, portanto,precisava e continua precisando de mercadosconsumidores igualmente massificados. Desdequando tornou-se indústria, a partir dafabricação do Modelo T pela Ford Motor Co., logoapelidado de tin lizzie (lata barata) graças àprodigiosa redução dos custos de produçãodecorrentes dos brutais ganhos deprodutividade resultantes das inovaçõesorganizacionais e tecnológicas estabelecidaspor Henry Ford, em várias outras atividadesindustriais os processos produtivos foramredefinidos pela adaptação das inovaçõesexperimentadas na e, a partir da indústriaautomobilística. Não por acaso, o termo fordismoé utilizado para designar as reconfiguraçõesimpostas aos processos produtivos (no que foisucedido posteriormente pelo toyotismo) queculminaram com um amplo domínio sobre elesexercido pelo capital84 . Todavia, como se sabe,as práticas levadas a cabo pelo próprio Ford jáantecipavam (basta considerar o controle davida privada a que eram submetidos osoperários contratados) a seu modo que ofordismo corresponderia a um processo muitomais vasto, não circunscrito apenas às inovações

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experimentadas no chão de fábrica, já queimplicaria um novo padrão de acumulação docapital. Mais que isso, fordismo consigna o quechegou a ser denominado de um modo de vidatotal85 . Considerado a partir da indústriaautomobilística, consubstanciou-se portanto umenorme conjunto de atividades, cujo alcance vaimuito além do setor automotivo propriamentedito: das demais indústrias diretamente ligadasà automobilística, aos serviços (aí incluídos osestatais) que se constituíram a partir dela, àreprodução do espaço urbano (e às amplaspossibilidades de negócios e negociatas aíimplicadas) em função das necessidades dereprodução dos capitais envolvidos, até chegarà colonização da vida cotidiana, redefinindo osmodos de uso das edificações, das cidades, dasidentidades, enfim, o automóvel e a indústriaque lhe corresponde tem importância ecomplexidade muito maior que um estudosetorial possa supor. E, não raro, pesquisas emnível de pós-graduação lhes dispensamjustamente um tratamento setorial. Para tomarum caso-limite: mestrandos conduzindopesquisas cujo recorte é o mesmo da empresade engenharia de tráfego (o que não sódetermina o nível de análise, como muitas vezesdemarca a concepção, o método para aformulação das questões), não por acasochegam ao final da pesquisa, com umaingenuidade comovente, com a convicção de queelas auxiliarão as “autoridades” a resolver osproblemas configurados pelo trânsitocongestionado de uma metrópole.

Parafraseando um filósofo francês, aspróprias metrópoles já são uma evidência cabalde que é chegado o dia em que os direitos epoderes do automóvel devem ser limitados86 .Ora, as universidades, a partir das pesquisasque nelas se desenvolvem, poderiam atuar nosentido de propor uma ampla reconversão daindústria automobilística, colocando-se a serviçodo desenvolvimento de ações estratégicas quevisassem desconectá-la tanto dasdeterminações capitalistas, sob as quais milhõesde automóveis são regurgitados anualmentedas fábricas, quanto do poder do Estado, que,imbricado àquelas, esforça-se por administrar

as contradições derivadas. Reorientar aprodução em função de critérios ecológicos e deutil idade social, conjugados com oenfrentamento efetivo dos desafios paraconcretizar a utopia do fim do trabalho (para usara formulação sintética de Alain Bihr, começandopor trabalhar menos para que todos possamproduzir, de outra maneira e outra coisa), exigetransgredir os limites dos interessesconfigurados enquanto setor automotivo (ycompris os do operariado atolado politicamenteno produtivismo característico do compromissofordista), exige conceber uma política detransportes e industrial que observe, ou melhor,que se submeta à organização dos serviçospúblicos, dos equipamentos coletivos, do próprioespaço social, noutras bases, diferentes econtrárias às que são definidas a partir do Estado(amplamente colonizado pelas forças quecomandam o plano econômico da vida social),essa expressão de degenerescência da políticaque, por supostamente encarná-la em seu nívelmais alto e pleno, seria não só a exclusiva, massobretudo a legítima forma unificadora eorganizadora da vida social87 .

Trata-se, na verdade, de colocar em obraa instituição democrática do social, de radicalizara democracia deslegitimando o Estado e opróprio capital através da ampliação do campode atividades sobre o qual podem e devem serfeitas escolhas. Fazer com que a democracia sejaato social, irrigando as demais esferas da vida,implica que a sociedade retome a prerrogativade autoinstituir-se, retome a autonomia parareencontrar a iniciativa e a criatividadeexpropriadas, para reapropriar-se do controledas condições sociais e históricas de existênciae do sentido e finalidade a lhes ser conferido,pois a democracia consiste em assumir seupróprio movimento, encontrar sua existênciaprópria, l ibertando-se das formas que aaprisionam88 .

Diria que à universidade, para atuar emconformidade com a sua substância (pensar onão-pensado) e seu fim, sua finalidade (assinalaro caminho para a concretização daspossibilidades históricas inscritas no movimentoda sociedade), é inescapável reconhecer-se

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como vanguarda. Valho-me, para finalizar, dostermos deliberadamente provocativos de AlainBihr:

“[...] ela deve ter por vocaçãoexplorar o horizonte desse movimento,reconhecer e balizar os terrenos sobre osquais é preciso avançar, elaborarconseqüentemente proposiçõesestratégicas e táticas que ela submete àdiscussão e à deliberação coletivas em seumeio. Mas isso não lhe confere direitoalgum a pretender dirigi-lo, instituindo-secomo comandante-em-chefe para

finalmente substituí-lo. Uma vanguardanão deve, então, procurar dirigir omovimento do qual ela é a ponta-de-lança; ela deve contentar-se em clareá-lo, aconselhá-lo, instruí-lo, mas tambémreciprocamente em ouvi-lo e, em troca,aprender com ele. Pois ‘o próprioeducador tem necessidade de sereducado’... e as vanguardas devempreparar-se para receberem, às vezes,rudes lições do movimento para o qual sesupõe devem abrir caminho.”89

1 Textos dessa natureza podem ser encontrados naRevista da ANPEGE, cujo primeiro número foilançado durante o evento. Cf. Revista da ANPEGE.Ano 1, n.1, Curitiba, 2003.

2 A rigor, na avaliação dos cursos de pós-graduaçãoefetuada pelas comissões de área da CAPES otempo médio de titulação é um item consideradono âmbito de um, entre seis outros quesitos. Paraa área de Geografia, no triênio 2001-2003, é defato o item para o qual atribuiu-se maior peso noquesito correspondente (30%). No cômputogeral, no entanto, o peso desse item fica bastantediminuído. Resta considerar, todavia, que nosdemais arranjos institucionais que incidem sobrea pós-graduação, especialmente os concernidosà destinação de recursos para os programas(para atribuição do número de bolsas depesquisas, entre outras destinações), o tempomédio de titulação chega a ter peso, por exemplo,equivalente ao da nota recebida pelo programa.Por fim, não se pode esquecer que a máximaredução do tempo médio de titulação é algofirmemente introjetado entre os integrantes dosprogramas (discentes incluídos).

3 “A iniciativa dos primeiros grupos de jesuítas,liderados pelo Pe. Manuel da Nóbrega, depromover para brancos e mestiços um ensino de‘línguas e ofícios’ (profissões técnicas) ao ladode um curso regular em filosofia, retórica, ciênciasbásicas e teologia, de qualidade igual à dosministrados em Évora e Coimbra, foi logodesestimulada. O ensino profissional deveria

Notas

cessar, e o curso ‘superior’, que conferia grausde bacharel e mestre com o mesmo ritual dasuniversidades européias, restringir seusobjetivos: foi-lhe recusada a equiparação àsuniversidades portuguesas e recomendado queatendesse sobretudo à formação de sacerdotes.[...] Em 1759, o Marquês de Pombal desativouviolentamente ¾ da rede de escolas montadapelos jesuítas durante dois séculos, inclusive cominfra-estrutura econômica própria, e quase semônus para a Coroa. Implantou uma política quevisava explicitamente a controlar a formação delideranças e bloquear a ascensão social daspopulações rurais e urbanas, bem como transferirpara a Metrópole elites em formação.” (LEÃO DEMATTOS, Pedro Lincoln Carneiro. Quadro históricoda política de supervisão e controle do governosobre as universidades federais autárquicas.Ciência e cultura, São Paulo, v.37, n.7, p.14-38,jun. 1985. p.15).

4 CARVALHO, José Murilo de. A escola de Minas deOuro Preto: o peso da glória. 2ªed. rev. BeloHorizonte: Editora UFMG, [1980] 2002. p.30.

Para todos os efeitos, a partir de 1750, após a mortede D. João V, até 1777, quando morre D. José I,Sebastião José de Carvalho e Melo (que viria atornar-se conde de Oeiras em 1759 e marquêsde Pombal dez anos depois) foi quem de fatogovernou Portugal e, evidentemente, dispôssobre o império ultramarino correspondente. Sobo absolutismo lógico e seu autoritarismo, Pombalrecentrou e atualizou a raison d’Étatempreendendo reformas que foram da

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reconstrução de Lisboa, após o grandeterremoto de 1755, à instituição de umsistema fiscal e contábil centralizado euniforme, à redefinição completa da estruturaadministrativa presente nas colônias,especialmente no Brasil, passando pelaredução do poder da Inquisição, pelocombate feroz aos jesuítas, até oestabelecimento do primeiro sistemaeducacional financiado pelo Estado. O leitorinteressado estará muitíssimo bem servidose consultar MAXWELL, Kenneth. Marquês dePombal: paradoxo do Iluminismo. 2ªed. Riode Janeiro: Paz e Terra, [1996] 1997.

5 CARVALHO, José Murilo de. Obra citada, p.32.6 LEÃO DE MATTOS, Pedro Lincoln Carneiro. Obra

citada, p.16.7 Cf. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa

no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.3ªed. Rio de Janeiro: Guanabara, [1974] 1987.

8 Cf. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia docapitalismo: Machado de Assis. 4ªed. São Paulo:Duas Cidades: Editora 34, [1990] 2000.

9 A expressão é inspirada em Alfredo Bosi: “Atémeados do século, o discurso, ou o silêncio detodos, foi cúmplice do tráfico e da escravidão. Oseu liberalismo, parcial e seletivo, não eraincongruente: operava a filtragem dos significadoscompatíveis com a liberdade intra-oligárquica edescartava as conotações importunas, isto é, asexigências abstratas do liberalismo europeu quenão se coadunassem com as particularidades danova nação.” (BOSI, Alfredo. Dialética dacolonização. São Paulo: Companhia das Letras,1992, p.217, ênfases do autor).

10 LEÃO DE MATTOS, Pedro Lincoln Carneiro. Obracitada, p.16.

11 CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados:escritos de história e política. Belo Horizonte:Editora UFMG, 1998, p.87.

12 Cf. Ibid., p.88-89.13 LEÃO DE MATTOS, Pedro Lincoln Carneiro. Obra

citada, p.17.14 “Os atos de criação dos primeiros cursos

prescreviam minuciosamente desde as disciplinasaté os locais, épocas e horários em que tudodeveria fazer-se. As coisas ocorriam na faculdade

como uma rotina, um ritual a que todos seentregavam religiosamente.” (Ibid., p.18).

15 “Só em 1891, Benjamin Constant dá alguns traçosde organização ao ensino, cria o ConselhoSuperior de Ensino e o Pedagogium (precursoresdo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos –INEP), estruturado segundo o Bureau of Educationdos EUA.” (Ibid., p.18).

16 “Este decreto federal culmina e encerra a primeirafase de organização da Universidade no Brasil ede redefinição da política de supervisão e controledo Governo Federal em relação a ela. Se nãoestava adiante de seu momento, não nasceudefasado no tempo como a maior parte dalegislação do ensino superior. A prova disso é queele orientará, em grandes linhas, toda a formaçãoe desenvolvimento das universidades por maisde trinta anos, sendo a base de organização deseus estatutos individuais.” (Ibid., p.20).

17 Ibid., p.21.18 “As federalizações, onerosas, não eram, a bem

da verdade, a política delineada no início doGoverno Vargas: a União manteria um controleatravés da normatização já fixada, e teria o CNE[...] para regulamentar, interpretar e fiscalizar aexecução da lei. Teria, além disso, umauniversidade-padrão [Universidade do Rio deJaneiro, depois Universidade do Brasil] para asdemais [...] e transferiria o sistema de ensinopropriamente dito aos Estados e particulares. [...]Em abril de 1934, o Governo Federal haviapassado para o Estado de São Paulo a sua jásecular Faculdade de Direito que se integrava àUniversidade de São Paulo, fundada três mesesantes. [...] A Constituição de 16 de junho de 1934definia, finalmente, de forma clara, as relaçõesentre União e Estados no tocante àinstitucionalização do ensino superior; ossistemas de ensino seriam dos estados, compostospor institutos públicos ou particulares; a Uniãoatuaria apenas supletivamente, cooperandofinanceira e tecnicamente [...].

Já em 16/1/36, para cumprir o dispositivoconstitucional relativo ao Plano Nacional deEducação, a ser elaborado pelo Executivo Federal,o ministro Capanema encaminhara questionáriocom ampla consulta a todos os setores sociaisinteressados no assunto. E o resultado foi que otexto definitivo do Plano (Art.185, §1°) quetramitava no Congresso quando veio o golpe de

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Estado de novembro de 1937, já previaexplicitamente a federalização de universidadesmediante acordo de anexação de unidadesestaduais e particulares. [...]

Reconhecida em 1946, a Universidade do Paraná,que oficiosamente já funcionava desde 1912, oGoverno criou, neste mesmo ano [...] asUniversidades da Bahia e do Recife. Em 1949, aúnica universidade ‘livre’ (particular), a de MinasGerais, é federalizada com todas as suas escolas[...]. E finalmente, em 1950, a Lei n°1.254 de 4/12/50 federaliza, de uma só vez, as outrasuniversidades e suas unidades componentes [...](excetuada apenas a de São Paulo) e mais 24escolas e faculdades isoladas, além das oito jáfederais, à época.” (Ibid., p.23-24, ênfases doautor).

19 “A política de controle das atividadesadministrativas de pessoal, organização deestruturas, administração geral e orçamento (esteaté 67) foi traçada e conduzida emassessoramento direto ao presidente da Repúblicapelo então Departamento Administrativo doServiço Público – DASP, órgão criado em 1938[...]. Instituído e implantado nos moldes doBureau of the Budget, (órgão de assessoramentodo presidente norte-americano), foram confiadasao DASP funções de um ‘departamento deadministração geral’ [...] O DASP caracterizou-se por seu intenso trabalho de racionalização deprocessos. [...] Dutra o prestigiou [...] e, emseguida, Vargas voltou a estimulá-lo. Foi quandoo DASP [...] começou a desempenhar papelrelevante no processo decisório do sistemauniversitário federal. Nota-se, a partir de 1954,um grande número de pareceres do DASP,opinando sobre vários assuntos administrativosdas UFAs, sobre os quais até então se pronunciavao CNE por considerar-se específica a legislaçãodo ensino superior.” (Ibid., p.27).

20 “As idéias que estavam na base do projeto daUnB não eram tão novas, mesmo no Brasil. Desdea criação da Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras da USP (1934), alguns setores deprofessores universitários e pesquisadoresestavam convencidos de que uma verdadeiraUniversidade teria necessariamente de proveruma vinculação orgânica entre pesquisa, ciênciae ensino e que novas unidades deveriam sercriadas para transformar estes elos em realidade.A criação do ITA (1952), com uma estrutura mais

flexível, aprofunda tais convicções. Além disto,muitos dos que apoiavam Darcy Ribeiro haviampassado por treinamento no exterior e, portanto,já haviam sido expostos a padrões modernos detrabalho acadêmico.

Como reconheceu Darcy Ribeiro, o modelo deUniversidade subjacente a seu projeto não erade sua própria invenção, mas o das universidadesamericanas e européias, já testado em váriospaíses. Nesse sentido, foi proposta uma estruturabaseada na integração de dois tipos de unidadesuniversitárias – os institutos centrais e as escolas,tendo como unidade básica de ensino e pesquisao departamento – integradas num espaço físicocontíguo, o câmpus. A Universidade gozaria decompleta autonomia didática, técnica e científica,administrada através de uma estrutura complexade colegiados e sob a estrutura jurídica defundação que a liberava dos entraves burocráticoscolocados pelo DASP e outros órgãosadministrativos federais.” (VEIGA, Laura da.Reforma universitária na década de 60: origense implicações político-institucionais. Ciência ecultura, São Paulo, v.37, n.7, p.86-97, jun. 1985.p.91).

A estrutura da UnB “consistia na radical mudançade organização dos recursos materiais ehumanos da universidade. Ao invés de agrupá-los em função dos produtos profissionais (isto é,nas faculdades), passavam a ser agregados emfunção das economias de escala no uso dosindutos (implicando na estrutura departamental).O conhecimento a ser ensinado se fragmentavaem pequenas unidades chamadas disciplinas, jádescoladas das matérias correspondentes àscátedras. No nível da universidade, a agregaçãodas disciplinas dava origem aos departamentos,por processos indutivos (ao contrário do processodedutivo que originava a cátedra); no nível doestudante, resultava no currículo, mediante umsistema peculiar de contabilidade - o crédito.”(CUNHA, Luiz Antônio. A universidadereformanda: o golpe de 1964 e a modernizaçãodo ensino superior. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1988, p.18).

21 Expressão exemplar disso foi a criação do InstitutoTecnológico de Aeronáutica, cujo projeto previaa existência de uma “escola de engenharia quedeveria oferecer cursos de mecânica, eletrônicae aeronáutica, e de um Instituto de Pesquisa e

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Desenvolvimento, destinado a apoiar a aviaçãocomercial e a indústria, mediante encomendas.

O ITA começou a funcionar em 1947, no Rio deJaneiro e, já em 1950, com todos os anos letivosativados, ocupava sua sede em São José dosCampos, às margens da rodovia Rio-São Paulo.”A descrição das inovações acadêmicas que deramforma ao ITA podem ser conferidas em CUNHA,Luiz Antônio. A universidade crítica: o ensinosuperior na república populista. Rio de Janeiro,Francisco Alves, 1983, p.153-155.

22 Cf. GRACELLI, Aldemir & CASTRO, Cláudio deMoura. O desenvolvimento da pós-graduação noBrasil. Ciência e cultura, São Paulo, v.37, n.7,p.188-201, jun. 1985 e DAGNINO, Renato P. AUniversidade e a pesquisa científica e tecnológica.Ciência e cultura, São Paulo, v.37, n.7, p.133-154, jun. 1985.

23 “A reforma incorporou a estrutura e tentouinviabilizar, a todo custo, um projeto deuniversidade crítica e democrática ao reprimir edespolitizar o espaço acadêmico. Afinal, não setrata de um contexto de ‘democracia populista’,mas da implantação de um Estado de SegurançaNacional de cunho ditatorial.

A reforma universitária do Regime Militarrepresenta, sobretudo, uma incorporaçãodesfigurada de experiências e demandasanteriores, acrescida das recomendaçõesprivatistas de Atcon, dos assessores da Usaid ede outras comissões - como a comissão MeiraMattos - criadas para analisar e propormodificações do ensino superior brasileiro.Conceptualmente, ela tomou por base a ‘teoriado capital humano’ - que estabelece um vínculodireto entre educação e mercado de trabalho,educação e produção - e a Ideologia da SegurançaNacional. Tratava-se de reformar paradesmobilizar os estudantes.” (GERMANO, JoséWillington. Estado militar e educação no Brasil(1964-1985). 2ª ed. São Paulo/Campinas: Cortez/Editora da UNICAMP, 1994, p.23).

24 Cf. LEÃO DE MATTOS, Pedro Lincoln Carneiro. Obracitada, esp. p.32-37.

25 VEIGA, Laura da. Obra citada, p.92.26 “A estratégia repressiva foi acionada tantas vezes

neste período contra a comunidade universitária(e contra outros segmentos da sociedade civil)que se torna difícil manter um registro do queocorreu. Na semana do golpe de Estado, as sedes

da UNE, da Ação Católica, do ISEB e das principaisuniversidades foram invadidas e depredadas pelapolícia e por grupos paramilitares. Professores eestudantes foram presos, seus livros,correspondência pessoal e arquivos apreendidos,as bibliotecas devastadas.

Entre as várias invasões ocorridas nasuniversidades cumpre destacar as da UnB, em 9de abril de 1964 e 9 de setembro de 1965. Aúltima resultou na renúncia coletiva de 210 dosseus 250 professores, após a demissão semdireito a defesa de outros quinze. [...]Similarmente, as outras instituições universitáriastiveram de aprender a conviver com o clima deintimidação e deterioração dos direitos civis.Tivesse ou não base, qualquer acusação contraum membro das instituições de ensino superiorera suficiente para que o acusado fosse submetidoa um IPM ou preso, sem sequer descobrir, namaioria das vezes, do que era acusado.Revelações recentes mostram que ainstitucionalização desses procedimentos abriucaminho para retaliações pessoais, através dasquais colegas aproveitaram-se do momento paraafastar outros que eram percebidos comoobstáculos a suas pretensões profissionais ououtros interesses. [...] o nível de repressão eviolação dos direitos civis variou de universidadepara universidade, dependendo tanto da avaliaçãoque a polícia política fazia sobre a capacidade deresistência de cada uma delas, quanto dasposições ideológicas e acadêmicas dos queocupavam os cargos centrais na estrutura internade poder. Naquelas instituiçõespredominantemente controladas por professoresprogressistas ou moderados, como era o casoda UFMG, procurou-se conter a expulsãodescontrolada de estudantes e professores,invasão de prédios escolares e prisões deestudantes. Em muitas ocasiões, chegou-seinclusive a utilizar mecanismos burocráticos paraimpedir o fornecimento de informações parainquéritos e preservar, assim, na medida dopossível, a autonomia universitária. Em outras,como a USP e a UFRGS, os setores conservadoresfacilitaram a ingerência policial e chegarammesmo a utilizá-la em proveito próprio.” (Ibid.,p.93-94).

27 É importante destacar que “o Programa de AçãoEconômica do Governo - 1964/1966, elaboradosob a direção de Roberto Campos, consistiu no

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detalhamento do projeto que o IPES haviaelaborado para o país antes de 1964, comoalternativa às reformas de base. Apresentado emmaio de 1965, foi nesse plano que a educaçãopassou a ser oficialmente definida como ‘capitalhumano’, razão da sua inclusão como item deum plano de ação econômica, elaborado por umMinistério do Planejamento e da CoordenaçãoEconômica.” (CUNHA, Luiz Antônio. A universidadereformanda, p.70-71, ênfases do autor).

28 Ibid., p.22.29 “Não é exagero afirmar que a União Nacional dos

Estudantes nasceu dentro de um projeto dereforma do ensino superior elaborado pelospróprios estudantes. No II Congresso Nacionalde Estudantes, realizado em dezembro de 1938,no Rio de Janeiro, no qual a UNE foi criada, foiaprovado um Plano de Sugestões para umaReforma Educacional Brasileira.” (CUNHA, LuizAntônio. A universidade crítica, p.207).

Muito depois, em 1962, como resultado do IISeminário Nacional de Reforma Universitáriarealizado em Curitiba, a UNE divulgou a Carta doParaná. Nela a entidade “defendia a reformauniversitária no sentido da eliminação dosentraves ao desenvolvimento do capitalismo noBrasil”, o que, em conseqüência, impunha anecessidade de “modernização” da universidadebrasileira, que deveria estar centrada, entreoutros, nos seguintes pontos: “departamentos aoinvés de cátedras; institutos; cidadesuniversitárias; colégios universitários; matrículapor matéria em substituição ao regime seriadoetc. Vários e longos trechos da Carta do Paranáforam dedicados à exposição das excelências dauniversidade modernizada, segundo os padrõesque já se anunciavam, não faltando, até mesmo,a indicação dos órgãos anexos oucomplementares (biblioteca, museu, etc.,),calcados no plano da Universidade de Brasília.”(Ibid., p.240-241, ênfase minha, SM).

30 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público,destituição da fala e anulação da política: ototalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, Franciscode & PAOLI, Maria Célia. Os sentidos dademocracia: políticas do dissenso e hegemoniaglobal. Petrópolis: Vozes; São Paulo: FAPESP;Brasília: Núcleo de Estudos dos Direitos daCidadania, 1999. p.55-81. p.63.

31 PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade.São Paulo: Cortez/Autores Associados, [1961]1986, p.39. É importante assinalar ainda que esselivro, escrito no início dos anos 60, foi publicadopela editora da UNE, tendo influência decisiva noII Seminário Nacional de Reforma Universitáriapromovido pela entidade.

É questão que transborda em muito os limitesdeste texto, mas o leitor interessado em análisesacuradas sobre o movimento estudantil do iníciodos anos 60 e seu “radicalismo renovadorpequeno-burguês” não pode desconsiderar ostrabalhos resultantes de extensa pesquisa sobreos jovens e a vida universitária e, maispormenorizadamente, sobre as práticasestudantis, realizados por Marialice MencariniForacchi e coligidos em FORACCHI, MarialiceMencarini. A participação social dos excluídos. SãoPaulo: Hucitec, 1982.

32 Aqui, valho-me amplamente dos seguintesestudos: TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábricade ideologias. 2ªed. Campinas: Editora daUNICAMP, 1997 e CHAUÍ, Marilena & FRANCO,Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e mobilizaçãopopular. Rio de Janeiro: Paz e Terra/CEDEC, 1978.

33 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Apresentação.In: TOLEDO, Caio Navarro de. Obra citada, p.22.

34 A este respeito, ver, especialmente, OLIVEIRA,Francisco de. A economia brasileira: crítica àrazão dualista. 5ªed. Petrópolis: Vozes, [1972]1987.

35 Convém não esquecer que “durante a ditadura, aclasse dominante, sob o pretexto de combate àsubversão, mas, realmente, para servir aosinteresses de uma de suas parcelas (osproprietários das escolas privadas), praticamentedestruiu a escola pública de primeiro e segundograus. Por que pôde fazê-lo? Porque, neste país,educação é considerada privilégio e não direitodos cidadãos. Como o fez? Cassando seusmelhores professores, abolindo a Escola Normalna formação dos professores do primeiro grau,inventando a Licenciatura Curta, alterando asgrades curriculares, inventando os cursosprofissionalizantes irreais, estabelecendo umapolítica do livro baseada no descartável e nostestes de múltipla escolha e, evidentemente,retirando recursos para manutenção e ampliaçãodas escolas e, sobretudo, aviltando de maneiraescandalosa os salários dos professores. Que

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pretendia a classe dominante ao desmontar umpatrimônio público de alta qualidade? Que a escolade primeiro e segundo graus ficasse reduzida àtarefa de alfabetizar e treinar mão-de-obra baratapara o mercado de trabalho.” (CHAUÍ, Marilena.Ideologia neoliberal e universidade. In:OLIVEIRA, Francisco de & PAOLI, Maria Célia. Ossentidos da democracia, p.37-38).

36 Aqui, mais uma vez, as mais argutas observaçõessão da lavra de Marilena Chauí: “Costumamosdizer que houve massificação do ensinouniversitário porque aumentou o número deestudantes e abaixou o nível dos cursos,rebaixamento que se deve não apenas àdesproporção entre corpo docente e quantidadede alunos, mas também ao estado de degradaçãodo ensino médio. O fato de que o elementoquantitativo predomine sob todos os aspectos[...] é suficiente para aquilatarmos a massificação.Porém, há um ponto que nossas análisescostumam deixar na sombra, a saber, que a idéiade massificação tem como pressuposto umaconcepção elitista do saber. Com efeito, se areforma pretendeu atender às demandas sociaispor educação superior, abrindo as portas dauniversidade, e se com a entrada das ‘massas’na universidade não houve crescimentoproporcional da infra-estrutura de atendimento(bibliotecas, laboratórios) nem do corpo docente,é porque está implícita a idéia de que para a‘massa’ qualquer saber é suficiente, não sendonecessário ampliar a universidade de modo a fazerque o aumento da quantidade não implicassediminuição da qualidade.” (CHAUÍ, Marilena.Escritos sobre a universidade. São Paulo: EditoraUNESP, 2001, p.50-51).

37 Há mais de 30 anos atrás, o então ministro deplanejamento afirmava o seguinte: “Apenas 5%da população universitária provêm de gruposeconômicos que não podem pagar educaçãouniversitária; 95% são representadas por classesque podem pagar, porque são de renda alta.

É necessário estudar o problema de modo queaquelas classes que representam 95% paguem,a fim de que com êsse dinheiro possamos criarbôlsas de estudo para uma grande massa deestudantes pobres que não podem chegar aosbancos universitários.” (CAMPOS, Roberto deOliveira. Educação e planejamento. In: BASTOS,Humberto (coord.). Educação para o

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Reper Editora,1966, p.19-20).

38 Examinando os feitos na educação durante operíodo correspondente ao primeiro governo deFernando Henrique Cardoso, Alfredo Bosiescreveu: “No debate sobre o ensino superiorocorrem inversões ideológicas estranhas. O ethosdistributivo, que sempre foi apanágio dasesquerdas, agora se retorce nos cérebros dosnossos tecnocratas liberais (passe o disparate).Dizem estes: - Por que não privatizar também auniversidade oficial? Façamo-lo depressa, porémde um modo beneficente: que paguem todos,menos os mais pobrezinhos a quem, apuradaescrupulosamente a renda familiar, poderiamconceder-se bolsas de estudos.” (BOSI, Alfredo.Uma grande falta de educação. Praga, São Paulo,n.6, p.15-21, set.1998. p.17).

Numa pesquisa sobre a universidade dita públicano Brasil, realizada ao final dos anos 90 no âmbitodo Instituto de Estudos Avançados (IEA) daUniversidade de São Paulo, foram expostos ospés-de-barro de muitos lugares-comuns que,passando por verdades incontestes, embasamproposições voltadas à privatização dasuniversidades estatais. Entre elas, essarepresentação ideológica de que às universidadesestatais chegam, em esmagadora proporção, osfilhos dos endinheirados e, portanto, nada maisjusto que paguem pelo ensino gratuito. A rigor, éde uma evidência palmar que não existe ensino(superior ou qualquer outro) gratuito. Em quepese a proliferação de taxas de toda espécie nasuniversidades públicas poder ser tomada comocobrança não declarada de mensalidades, o fatoé que a sociedade como um todo (obviamentede um modo desigual, mas por motivos que seexplicitam na política fiscal e tributária) arca comos custos das universidades públicas. Ademais,a eventual cobrança de mensalidades nasuniversidades públicas cobriria percentuaisirrisórios de seus orçamentos. Isso não significa,porém, que não exista o fenômeno. Existe e estáse agravando, segundo a pesquisa, embora nãono nível dos dados cabalísticos dos lugares-comuns. Mas a conclusão não poderia ser outra:“[...] o problema existe mas não está no superiore sim no secundário, que foi se deteriorando nasúltimas décadas segundo uma tendênciatristemente inegável.”

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39 CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade,p.181-182.

40 Referindo-se a esta situação, a então presidenteda UNE, em seu depoimento numa CPI doCongresso Nacional realizada em 1993 paradebater a situação em que as universidadesencontravam-se atoladas durante o governoCollor de Mello, denominou sumariamente asuniversidades privadas de verdadeirossupermercados de ensino (Cf. CONGRESSONACIONAL. Comissão Parlamentar Mista deInquérito. A crise na universidade brasileira -relatório final, Brasília, 1993, p.199). Mais adiante,ver-se-á que a filósofa Marilena Chauí submeteua concepção da universidade como supermercadoa uma crítica acerba. Aqui, interessa assinalaralgo ao qual voltarei a aludir, ou seja, que aproliferação de faculdades e universidadesprivadas orientadas pela busca do lucro inscreve,a priori, uma irracionalidade obstaculizadora aqualquer planejamento educacional que sepretenda “sintonizado” com as demandas do queClaus Offe denominou de sistema ocupacional (Cf.OFFE, Claus. Sistema educacional, sistemaocupacional e política da educação: contribuiçãoà determinação das funções sociais do sistemaeducacional. Educação & Sociedade, CEDES,Campinas, 35:9-59, abr., 1990).

41 Cf. http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior42 É esse ensino tristemente rotinizado que a atual

LDB, ao não contemplar uma defesa veementedo regime de dedicação exclusiva preconiza paraas universidades, incluídas as ditas públicas (cf.item III do art. 52, no qual o regime de trabalhodo corpo docente aparece como “regime detempo integral”, o que não correspondeexatamente ao “regime de dedicação exclusiva”).

43 Cf. BANCO MUNDIAL. La enseñanza superior: laslecciones derivadas de la experiencia. WashingtonD.C., [1993] 1995.

44 Cf. FIORI, José Luís. Os moedeiros falsos. 2ªed.Petrópolis: Vozes, 1997.

45 “[...] no dia 23 de setembro de 1998 [...] atravésde um documento sobre os serviços educacionaisqualificado na época como ‘restrito’ (S/C/W/49),o secretariado da OMC, a pedido do Conselho deComércio e de Serviços, definia novas regras enovos princípios para o ensino superior [...] Oserviço educacional relativo ao ensino superior

compreende: serviços de educação pós-secundária técnica e vocacional e serviços quelevam à obtenção de diploma universitário ouequivalente [...] No parágrafo 9 do documento,os autores afirmam que a educação énormalmente vista como um item de ‘atribuiçãopública’, freqüentemente fornecida livre deencargos ou a preços que não refletem o custode sua produção. Os gastos públicospermanecem, então, como a principal fonte definanciamento de muitos países. Com base emdocumentos da Organização para a Cooperaçãoe o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a OMCavança na descrição do tema, dizendo que aeducação existe também como item de‘atribuição privada’, com preços determinadoslivremente pelas instituições provedoras. [...] AOMC [...] toma um atalho, e conclui, através deum sofisma, que, a partir do momento em quese admitem instituições particulares comoprovedoras de ensino, este torna-se comercial,aplicando-se, pois, a ele, as regras da OMC. [...]Nos seus regulamentos, a OMC prevêcompromissos e obrigações gerais que seaplicam direta e automaticamente a todos osmembros e compromissos setoriais, que seriam,em princípio, resultado de negociações. [...] ocerto é que os compromissos são consideradosobrigatórios desde a data em que um acordoentra em vigor, se um Estado não apresentar, naépoca, restrições à sua aplicação. Três anosdepois da entrada em vigor, um Estado podesolicitar modificações, mas se um país seconsiderar prejudicado, pode solicitarcompensações. [...] caso queiramos interpretaro que está preparando a OMC, vamos concluirque, aceita esta decisão, um Estado-Membrodesta organização que não respeite, por exemplo,a obrigação de facilitar o reconhecimento dediplomas estrangeiros que tenham condições desatisfazer as exigências de fundo (normes defond) corre o risco de ser convocado perante aORD (Organe de Règlement des Différends, Órgãode Regulamentação de Disputas) da OMC pordiscriminação ou pelo exercício de uma restriçãodisfarçada ao comércio de serviços. O Estadopode ser condenado a indenizar organizaçõesestrangeiras pelos prejuízos que estas possamalegar. [...] Note-se que os Estados não podemrecorrer das decisões do ORD, que devemprevalecer sobre as decisões dos tribunais

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nacionais.” (DIAS, Marco Antonio Rodrigues.Educação superior: bem público ou serviçocomercial regulamentado pela OMC? In: PANIZZI,Wrana Maria (Org.). Universidade: um lugar forado poder. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002, p.31-109. p.39-58). Ver também, do mesmo autor, AOMC e a educação superior para o mercado. In:BROVETTO, Jorge, MIX, Miguel Rojas e PANIZZI,Wrana Maria. (Org.). A educação superior frentea Davos. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2003, p.45-80.

46 “Devem ser considerados aqui alguns indicadoresimportantes sobre o volume de recursos queestão em jogo. Na realidade, trata-se de bilhõesde dólares. O banco de negócios norte-americanoMerril Lynch calculou o mercado mundial deconhecimento através da Internet em 9,4 bilhõesde dólares no ano de 2000, montante que poderáchegar aos 53 bilhões antes do ano 2003. [...]‘Os serviços comerciais educativos já são umnegócio fundamental em alguns países como aAustrália, o Canadá, a Nova Zelândia, o ReinoUnido e os Estados Unidos’. Nesses documentosse confirma que os Estados Unidos são o maisimportante país exportador nesse campo [...] Osnúmeros são inacreditáveis e, à medida quenovos dados são analisados, se constata quetodos são extraordinários.” (Ibid., p.52-53).

Agora aparece claro que a grande contribuiçãodo ministro da Educação durante os governos deFernando Henrique Cardoso à consolidação daeducação como setor de atividade econômica nãose resumiu às ações institucionais que o cargolhe franqueava. À frente de uma empresa deconsultoria voltada à captação de investimentospara a “indústria do conhecimento”, compraz-seo ex-ministro em (não resisto ao trocadilho)propiciar boas compras aos investidoresinternacionais.

47 DIAS, Marco Antonio Rodrigues. Educaçãosuperior: bem público ou serviço comercialregulamentado pela OMC?, p.42.

48 Barbaroux, Paul e Belhassem, Serge (1999).Europe: mais basse sur les services publicsd’enseignement. Apud DIAS, Marco AntonioRodrigues. Obra citada, p.59.

49 de Sélys, Gérard (1998). L’école, grand marchédu XXI Siècle. Le Monde Diplomatique, Paris, juin,1998. Apud DIAS, Marco Antonio Rodrigues. Obracitada, p.60.

50 “A última invenção do modelo inglês foi reveladapor uma investigação do Sunday Times, em 25de julho de 1999. A política de vínculos com aindústria na Inglaterra deu como resultado que,agora, homens de negócios podem comprartítulos de doutor honoris causa por 10 mil libras.Nem mesmo as grandes e tradicionaisuniversidades escapam ao sistema, só que opreço, segundo o Sunday Times, é mais caro.Em Oxford, é de 250 mil libras.” (DIAS, MarcoAntonio Rodrigues. Obra citada, p.68).

51 É impossível acompanhar os feitos das instituiçõesde ensino superior no mundo das mercadorias.Destaco duas notícias ilustrativas a esse respeito.Em abril de 1997 um jornal de grande circulaçãonacional divulgou que duas universidades de SãoPaulo iriam investir pelo menos 101 milhões dereais em empreendimentos comerciais quecomeçariam até o meio daquele ano. A USF(Universidade São Francisco) iniciaria em junhoum projeto que prevê a construção de um bairroem frente ao campus, em Bragança Paulista, comprédios residenciais e comerciais, clubes e umshopping. A Unimep (Universidade Metodista dePiracicaba) previa obras, já em maio, de umminishopping no campus Taquaral. Os doisreitores, afirmava o jornal, asseguravam que asiniciativas, embora comerciais, não estãodesvinculadas do ensino. (Cf. Universidadesinvestem em empreendimentos comerciais. Folhade S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1997).

Recentemente, noticiou-se que universidadespúblicas e privadas norte-americanas captaramUS$ 12 bilhões no mercado financeiro nos trêsprimeiros trimestres de 2003 para financiar obrasvultosas em seus campi. Entre elas destacam-sevárias que buscam tornar as universidades“atrativas” aos estudantes, como a instalação debanheiras de hidromassagem, de cascatas eescorregadores em piscinas, indo até aconstrução de paredes de alpinismo de cincoandares, “que parece ter sido tirada do ArchesNational Park”. O presidente da Associação deUniversidades Independentes de Massachusettsdizia que “é uma corrida armamentista. Do ladode fora, parece totalmente louco, mas do ladode dentro parece ser necessária e urgente.”(Universidades travam guerra de luxo por alunos.O Tempo, Belo Horizonte, 8 out. 2003, p.A2).

52 Aqui valho-me amplamente dos estudos deFrancisco de Oliveira, em especial os que

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consubstanciaram a sua já clássica crítica à razãodualista, como também os capítulos 3 e 4 de Aeconomia da dependência imperfeita. 2ªed. Riode Janeiro: Graal, 1977.

53 “[...] pode-se pensar que, assim como o Estadoatuou deliberadamente no sentido de privilegiaro capital, poderia ter atuado transferindotecnologia para as empresas de capital nacional.[...] Não se encontra nos atos de políticaeconômica de todo o período pós-anos 30nenhuma disposição tendente a propiciar atransferência de tecnologia para empresasnacionais que tivesse a intermediação do Estado.Inclusive as políticas científica e tecnológica deinstituições como as universidades eramcompletamente desligadas da problemática maisimediata da acumulação de capital.” (OLIVEIRA,Francisco de. A economia brasileira, p.50).

54 “A implantação dos novos ramos industriais, oschamados ramos ‘dinâmicos’, não altera emmuito esse quadro. Uma pesquisa efetuada noMunicípio de São Caetano do Sul, que faz parteda área metropolitana de São Paulo, revelou, àbase de dados do SENAI para 1968, que emboraos ramos ‘dinâmicos’ da classificação do SENAIsejam os que mais empregam mão-de-obraqualificada [...] a porcentagem dos não-qualificados (trabalhadores braçais) e adestrados(semiqualificados) é de 50% sobre o mesmototal; tomando-se apenas o nível ‘braçal’ (não-qualificados), os ramos ‘dinâmicos’ não diferemmuito dos chamados ‘intermediários’ e‘tradicionais’: aqueles tinham 11% de sua forçade trabalho como ‘braçais’, enquanto osseguintes tinham 15 e 13%, respectivamente.Isto significaria dizer que as indústrias‘dinâmicas’ não podendo, até certo ponto,quebrar a ‘função técnica de produção’ para tantonecessitando de pessoal qualificado, utilizam,imediatamente após satisfazer aquele requisito,abundantemente, mão-de-obra semi e não-qualificada, em proporções semelhantes àsindústrias consideradas tradicionais, servindo-se, assim, do imenso ‘exército industrial dereserva’ para os fins da acumulação. [...] amesma pesquisa em São Caetano revelou queas indústrias ‘dinâmicas’ empregavam 5,5% demenores em seu total de empregados, enquantoas ‘intermediárias’ e as ‘tradicionais’ o faziamem porcentagens correspondentes a 10,8% e7,8%, respectivamente. Uma pesquisa do

DIEESE, realizada em 1971, constatava que noramo químico do Estado de São Paulo, ‘moderno’e ‘dinâmico’ portanto, o grupo de trabalhadoresmenores de 16 anos constituía 3,5% do total detrabalhadores químicos [...]” (Ibid., p.54-55).

55 Em sua participação no Fórum “A educação quenos convém”, organizado pelo IPES no final dosanos 60, a mesma personagem de proa do regimemilitar citada anteriormente destacava como“defeitos genéricos” da educação brasileira o seuplanejamento “com bases predominantementeem critérios demográficos. O que se objetivava,até recentemente, era dar educação adeterminada faixa ou grupo etário. [...]. Grandeprogresso tem sido feito recentemente emsubstituir o planejamento, que se poderia chamarde demográfico, pelo planejamento do mercado”.(CAMPOS, Roberto de Oliveira. Educação edesenvolvimento econômico. In: IPES. Aeducação que nos convém. Rio de Janeiro, APECEditôra, 1969, p.75).

56 Uma defesa dos mestrados profissionalizantespode ser verificada em GATTI, BernardeteAngelina. Reflexão sobre os desafios da pós-graduação: novas perspectivas sociais,conhecimento e poder. Revista Brasileira deEducação, n.18, p.108-116, set.-dez. 2001.

57 “A escassez de pessoal qualificado, se eraproblemática do ponto de vista do setor produtivo,no que tange à operação da tecnologia importada,era tanto maior, dada a formaçãoprofissionalizante inadequada para atividades depesquisa, quando se colocou como necessidadeo desenvolvimento de ciência e tecnologia no país.

[...] Os recursos alocados ao ensino de pós-graduação eram compatíveis com as diferentesnecessidades, justificando-se por três vias. O pós-graduado era necessário à medida que, comoprofessor mais bem qualificado, iria formar novosprofissionais que deveriam incorporar-se àindústria em expansão; como pesquisadoruniversitário, poderia desenvolver algumaatividade de pesquisa ou de apoio à indústria;como profissional, assumiria cargos tradicionaisde liderança ou impulsionaria, internamente àsempresas, as atividades de P&D e transferênciade tecnologia.” (DAGNINO, Renato P. Obra citada,p.135).58 Ibid., p.135-136.

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62 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 MARTINS, S.

59 Cf. OLIVEIRA, Francisco de. A economia dadependência imperfeita. Loc. cit.; Os direitos doantivalor: a economia política da hegemoniaimperfeita. Petrópolis: Vozes, 1988, p.167-168 eOLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público,destituição da fala e anulação da política.

60 “Na esfera tecnológica, a desnacionalização tendea comprometer cada vez mais o sistema nacionalde inovações. [...] Na medida em que a empresaestrangeira tem preferência revelada por seusfornecedores globais, os efeitos de spill overtecnológico no sistema produtivo nacional tendema se reduzir com a desnacionalização. O resultadoé o aumento da dependência tecnológica.”(GONÇALVES, Reinaldo. Capital estrangeiro,desnacionalização e política externa. Praga, SãoPaulo, n.9, p.69-80, 2000. p.74).

61 FIORI, José Luís. Brasil no espaço. Petrópolis:Vozes, 2001, p.126.

62 Ibid., p.127.63 Casos como os da pesquisa que levou à

decodificação do seqüenciamento genético dabactéria Xylella fastidiosa, que acomete pomaresde laranjeiras com a chamada praga doamarelinho, financiada pela Fundação de Amparoà Pesquisa do Estado de São Paulo, não podemser tomadas, a exemplo da própria FAPESP (muitomal clonada país afora), como honrosas exceções,pois, considerando o que foi exposto até aqui,trata-se de notórias exceções que confirmam aregra.

64 A física indiana Vandana Shiva qualificou osdireitos de propriedade intelectual (DPI) como aforma contemporânea da pirataria ocidental.Segundo a autora, “A liberdade que as empresastransnacionais estão reivindicando por meio daproteção aos DPI, no acordo do GATT sobre osDireitos de Propriedade Intelectual Relacionadosao Comércio (Trade Related Intellectual PropertyRights, TRIPs), é a liberdade que os colonizadoreseuropeus usufruíram a partir de 1492. Colomboestabeleceu um precedente quando tratou alicença para conquistar povos não-europeuscomo um direito natural dos europeus. Os títulosde terra emitidos pelo Papa por intermédio dosreis e rainhas europeus foram as primeiraspatentes. [...] A mesma lógica é agora utilizadapara tomar a biodiversidade dos proprietários einovadores originais, definindo suas sementes,

plantas medicinais e conhecimento médico comoparte da natureza, como não-ciência, e tratandoas ferramentas da engenharia genética como opadrão de ‘melhoramento’. [...] No coração da‘descoberta’ de Colombo estava o tratamento dapirataria como um direito natural do colonizador,necessário para a salvação do colonizado. Nocoração do tratado do GATT e suas leis de patentesestá o tratamento da biopirataria como um direitonatural das grandes empresas ocidentais,necessário para o ‘desenvolvimento’ dascomunidades do Terceiro Mundo.” (SHIVA,Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza edo conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001. p.24-28).

“Como justificativa para os DPI [prossegue aautora], alega-se que eles estimulam erecompensam a criatividade intelectual.Conhecimento e criatividade foram, todavia,definidos de maneira tão estreita no contexto dosDPI, que a criatividade da natureza e dos sistemasde conhecimento não-ocidentais é totalmenteignorada. DPI teoricamente são direitos depropriedade de produções da mente. Por todaparte, pessoas inovam e criam. Se os regimesde DPI refletissem a diversidade das tradiçõesde conhecimento que respondem pelacriatividade e inovação nas diferentes sociedades,seriam necessariamente pluralistas – refletindotambém os estilos intelectuais de outros sistemasde propriedade e de direitos – levando a umaincrível riqueza de permutações e combinações.

Da maneira como são discutidos atualmente [...]os DPI são a prescrição para a monocultura doconhecimento. Esses instrumentos são usadospara universalizar o regime de patentes norte-americano por todo o mundo, o queinevitavelmente levaria a um empobrecimentointelectual e cultural, ao sufocar outras maneirasde saber, outros objetivos para a criação doconhecimento e outros modos de compartilhá-lo.[...] Isso nega a criatividade científica daquelesque não são estimulados pela busca do lucro.Nega a criatividade das sociedades tradicionaise da comunidade científica moderna, onde a livretroca de idéias é a própria condição decriatividade, não sua antítese. [...] as patentesnão são necessárias para gerar um clima deinvenção e criatividade. Elas são mais importantescomo ferramentas de controle de mercado. De

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fato, a existência de patentes enfraquece acritatividade da comunidade científica reprimindoo intercâmbio livre entre cientistas.” (Ibid., p.31-36).

65 Em suas observações a respeito das implicaçõesda lei de patentes aprovada no Brasil em 1996,“nos moldes que os Estados Unidos exigiram”,César Benjamin sublinhou que “desde então, maisde 95 por cento dos pedidos de patentes servemapenas para impedir a produção local,engessando uma divisão internacional do trabalhoque nos condena a ficar para trás. Olhem osnúmeros: no ano passado [2001], o Brasil solicitouo reconhecimento de 120 patentes junto àOrganização Mundial do Comércio; os EstadosUnidos solicitaram 39 mil.” (BENJAMIN, César.Recordar é viver. Caros Amigos, São Paulo, ano6, n.62, p.11, mai. 2002.

66 ABREU, Maurício de Almeida. A avaliação da pós-graduação no Brasil: alguns pontos para suacompreensão e discussão. Revista Brasileira deEstudos Urbanos e Regionais, v.4, n.1/2, p.37-41, mai./nov. 2002.

67 Durante o I Encontro Nacional de Pós-graduaçãoem Geografia, organizado em 1984 pelo entãoInstituto de Geografia e pelo Departamento deGeografia da Universidade de São Paulo e aindapela Seção São Paulo da Associação dosGeógrafos Brasileiros (culminando, assim, umainiciativa de estudantes de pós-graduaçãodaquela universidade), esse aspecto eramencionado em tom de crítica a um modelo (queé o mesmo até hoje) centralizador e autoritárioque constrange os cursos. (Cf. ENCONTRONACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA,1., 1984, São Paulo, Anais... São Paulo:Departamento de Geografia USP/Instituto deGeografia USP/ Associação dos GeógrafosBrasileiros, 1984, 436p.). Durante o V Encontroda ANPEGE esse mesmo aspecto daburocratização da vida universitária foiconstatado em tom de queixa, quase resignação.Um dos coordenadores de curso ali presentesintetizou, em tom de anedota, que as exigênciasde informações pela CAPES (referia-se emparticular ao preenchimento do relatório Data-CAPES) demandam tanto tempo do responsávelpela coordenação que, em determinados

momentos, ele se sente como se estivessecasado com a CAPES.

68 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discursocompetente e outras falas. 7ªed. São Paulo:Cortez, 1997, p.9-10.

69 A esse respeito, o leitor interessado poderiaconsultar BELLONI, Isaura. A GED no contextoda avaliação institucional. Universidade eSociedade, São Paulo, ano 8, n°17, p.52-56, nov.1998 e SOBRINHO, José Dias. Avaliaçãoinstitucional da educação superior: fontesexternas e fontes internas. Universidade eSociedade, São Paulo, ano 8, n°17, p.57-61, nov.1998.

70 A respeito da alcunha “improdutivos” e dospressupostos e concepções de universidade quegovernaram tal episódio, cf. CHAUÍ, Marilena.Produtividade e humanidades. Tempo Social, SãoPaulo, Departamento de Sociologia da USP, ano1, n.2, p.45-71, 2ºsem., 1989. Esse texto foirepublicado em CHAUÍ, Marilena. Escritos sobrea universidade.

71 Como mencionei anteriormente, Marilena Chauíreferiu-se ironicamente aos esboços desseprocesso como a transformação da universidadeem supermercado, numa acepção mais amplaque a da “fábrica de diplomas”. Dizia ela oseguinte: “Lê-se numa das propostas demodernização que a universidade não é o templodo saber, mas ‘uma espécie de super-mercadode bens simbólicos ou culturais’ procurados pelaclasse média. Se a universidade for um super-mercado, então, teremos uma resposta para oscritérios de produtividade. [...] Se o for, nossaprodutividade será marcada pelo número deprodutos que arranjamos nas estantes, pelonúmero de objetos que registramos nas caixasregistradoras, pelo número de fregueses quesaem contentes, pelo número de carrinhos quecarregamos até aos carros do estacionamento,recebendo até mesmo gorjeta por fazê-lo. Maisdo que isso. Por que a universidade não foicomparada às fábricas nem às bolsas de valores,nossa produtividade é bastante curiosa, pois numsuper-mercado nada se produz, nele há circulaçãoe distribuição de mercadorias, apenas. Nossaprodutividade seria improdutiva, em si, eprodutiva apenas em relação a outra coisa, ocapital propriamente dito.” (CHAUÍ, Marilena.Produtividade e humanidades, p.69-70).

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64 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 MARTINS, S.

72 SOBRINHO, José Dias. Obra citada, p.59.73 CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade,

p.125.74 No momento em que escrevo, a Sociedade

Brasileira para o Progresso da Ciência acaba dedivulgar uma carta aberta ao Presidente daRepública, cujo objetivo central é o de salientara necessidade de ampliar (e descontingenciar) omontante de recursos disponíveis para aconsecução da política de C&T (para que cheguemao correspondente a 2% do PIB, ao contrário dosquase 1% dos dias que seguem). Apesar disso, acarta destaca a recente reativação do ConselhoNacional de Ciência e Tecnologia como momentopolítico talvez único na história brasileira de umaassociação amplamente representativa da“comunidade científica” participar diretamente do“mapeamento” dos recursos existentes naintrincada máquina burocrática do governo federaldisponíveis para investimentos em C&T. Cf. http:// w w w . j o r n a l d a c i e n c i a . o r g . b r /Detalhe.jsp?id=14115

75 No caso específico das universidades destaco aquium caso exemplar do que estou dizendo: numdebate realizado em setembro de 1996, a entãopresidente da ANDES relatou que “desde oprimeiro dia do mandato do ministro Paulo RenatoSouza a Andes foi recebida em audiência duasvezes. A primeira audiência durou dezesseteminutos, interrompida por quatro telefonemas.A segunda, no início deste ano, foi demorada,mais de uma hora, e o ministro se comprometeua abrir canais de discussão, mas até hoje não seconseguiu deflagrar nenhum processo dediscussão. Recentemente comunicamos o términode uma greve e solicitamos várias vezes umaaudiência, mas não tivemos resposta. Essadificuldade não é restrita à Andes, amplia-se àFasubra e à UNE.” (CENTRO BRASILEIRO DEANÁLISE E PLANEJAMENTO. Crise e reforma dosistema universitário (debate). Novos Estudos,São Paulo, CEBRAP, 46:143-168, nov., 1996,p.150). Na seqüência do debate, a secretária depolítica educacional do MEC ali presente afirmoucom toda a desfaçatez o que segue: “A visão deensino superior centrado na universidade mudoumuito pouco desde 1968. É preocupante que naprópria universidade não tenham surgido projetosinovadores.” (Ibid., p.154). Isso logo depois darepresentante do movimento de docentes ter

lembrado que as demais entidades participantesda vida universitária têm apresentado propostasreferentes à sua reestruturação, e ter ressaltado,em particular, que a entidade da qual é presidenteapresentou sua proposta para a universidadebrasileira já em 1982, como produto de amplasdiscussões em simpósios, reuniões, congressose assembléias sobre a reestruturação dauniversidade, tendo sido seguidamenteaperfeiçoada desde então envolvendo outrasentidades, como, por exemplo, a SBPC. (A esterespeito, cf. SINDICATO NACIONAL DOSDOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINOSUPERIOR. Proposta da ANDES/SN para auniversidade brasileira. Cadernos ANDES, 2,edição especial atualizada e revisada, Brasília,ANDES, jun., 1996).

76 Cf. PINO, Ivany. A Lei de Diretrizes e Bases daEducação: a ruptura do espaço social e aorganização da educação nacional. In:BRZEZINSKI, Iria (org.). LDB interpretada:diversos olhares se entrecruzam. São Paulo:Cortez, 1997. p.15-38.

77 Disponível no sítio http://www.fazenda.gov.br78 A esse respeito, cf. CARVALHO, José Murilo de.

Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil.México: El Colegio de México/Fideicomiso Historiade las Américas/Fondo de Cultura Económica,1995.

79 Cf. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social estatus. Rio de Janeiro: Zahar Editores, [1950]1967.

80 Rancière propôs “uma reformulação do conceitode política em relação às noções habitualmenteaceitas. Estas designam com a palavra política oconjunto dos processos pelos quais se operam aagregação e o consentimento das coletividades,a organização dos poderes e a gestão daspopulações, a distribuição dos lugares e dasfunções e os sistemas de legitimação dessadistribuição. Proponho dar a esse conjunto deprocesso outro nome. Proponho chamá-lo polícia,ampliando portanto o sentido habitual dessa noção[...] ao considerar as funções de vigilância e derepressão habitualmente associadas a essapalavra como formas particulares de uma ordemmuito mais geral que é a da distribuição sensíveldos corpos em comunidade.

Nem por isso o que chamo polícia é simplesmenteum conjunto de formas de gestão e de comando.

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Trabalho enviado em junho de 2004.

Trabalho aceito em setembro de 2004.

É, mais fundamentalmente, o recorte do mundosensível que define, no mais das vezesimplicitamente, as formas do espaço em que ocomando se exerce. É a ordem do visível e dodizível que determina a distribuição das partes edos papéis ao determinar primeiramente avisibilidade mesma das ‘capacidades’ e das‘incapacidades’ associadas a tal lugar ou talfunção.” (RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In:NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1996, p.372.)

81 SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas: areafirmação do espaço na teoria social crítica.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, [1989] 1993,p.28.

82 Escrevo considerando não apenas o prazo limitede 24 e 48 meses (prorrogável, em casosexcepcionais, por mais 6 meses) para a realizaçãode dissertações de mestrado e teses dedoutorado, respectivamente, que vigora noprograma de pós-graduação no qual atuo, mastambém a forte tendência de redução dos temposmédios de titulação, em direção a prazos próximosàqueles, para os demais programas de pós-graduação em Geografia, como tem sido apuradapela respectiva comissão de avaliação da CAPES.

83 A metáfora chega a ser inapropriada ao que setoma para exemplificar, mas serve para ressalvara modéstia do que será exposto frente às viasde renovação (nas quais se inscreveria umprojeto de reconversão da indústriaautomobilística) como brilhantemente formuladaspor Alain Bihr, nas quais me apóio aquiamplamente. Cf. BIHR, Alain. Da grande noite àalternativa: o movimento operário europeu emcrise. 2ªed. São Paulo: Boitempo Editorial, [1991]1999, esp. parte III.

84 A esse respeito, cf. o clássico BRAVERMAN, Harry.Trabalho e capital monopolista: a degradação dotrabalho no século XX. 3ªed. Rio de Janeiro:Zahar, [1974] 1981.

85 Cf. HARVEY, David. A condição pós-moderna: umapesquisa sobre as origens da mudança cultural.São Paulo: Edições Loyola, [1989] 1992. esp. parteII. Cf. também, BIHR, Alain. Obra citada, sobreo que denominou de compromisso fordista entreburguesia e proletariado.

86 Cf. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. BeloHorizonte: Editora UFMG, [1970] 1999, esp. cap.1.

87 É importante observar que a democracia enquantoato social deve radicalizar a democratização doEstado a ponto de expor a contradição entreEstado e democracia. Portanto, não pode limitar-se a esse importante, mas embrionário momento,sob pena de paralisar-se, frustrando-se no iníciodo caminho. Para ficar no exemplo da indústriaautomobilística, o agir democrático exige umacrítica política mais incisiva que a efetuada porestudos como o coordenado por Francisco deOliveira, que, mesmo escapando de análisesconfinadas às contradições da reproduçãocapitalista que configuram o estritamente setorial,não chegaram a romper com as formas daeconomia política. Cf. OLIVEIRA, Francisco eequipe. Quanto melhor, melhor: o acordo dasmontadoras. Novos Estudos, São Paulo, n°36, jul.1993.

88 A este respeito, cf. ABENSOUR, Miguel. Ademocracia contra o Estado: Marx e o momentomaquiaveliano. Belo Horizonte: Ed. UFMG, [1997]1998.

89 BIHR, Alain. Obra citada, p.243.