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UNIVERSIDADE 54 Ano XXIII - Nº 54 - agosto de 2014 e SOCIEDADE 50 anos do golpe militar: dores, sonhos e resistências – uma história inacabada UNIVERSIDADE e SOCIEDADE #54 ANDES-SN n Ano XXIII - agosto de 2014

UNIVERSIDADE e SOCIEDADE - portal.andes.org.brportal.andes.org.br/imprensa/publicacoes/imp-pub-1078762936.pdf · O Brasil na era da ditadura Palavra de poeta sumário Prosa Memória

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UNIVERSIDADE54

Ano XXIII - N 54 - agosto de 2014

e SOCIEDADE

50 anos do golpe militar: dores, sonhos e resistncias

uma histria inacabada

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Ano XXIII - N 54 - agosto de 2014

e SOCIEDADE

Revista publicada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior - ANDES-SN

Braslia Semestral

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A universidade sob cu de chumbo: a heteronomia instituda pela ditadura empresarial-militarRoberto Leher e Simone Silva

A sobrevivncia do pau de araraClara Versiani dos Anjos

Bira Dantas

O regime de chumbo e o Massacre de ManguinhosRaza Tourinho Lima

Olhando a ditadura pela escotilha da priso Julio Cezar Colvero

Lugar da universidade construo do livre pensar?Karen Nunes Montes DOca e Helena Beatriz Kochenborger Scarparo

Assdio moral entre docentes da Universidade Federal do Piau: sua promoo e seus males na ptria sertanejaDaniel Arruda Nascimento e Franclia Waldlia Cruz Arajo

50 anos do golpe militar: dores, sonhos e resistncias uma histria inacabada

50 anos do golpe militar: dores, sonhos e resistncias uma histria inacabada

Olhar transversal

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Educao e trabalho docente

Entrevista

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Movimento estudantil de servio social e dilemas atuais: o desafio (re)encantar-seMaria Claria Ribeiro Guimares

Canta AmricaTem gente com fome Solano Trindade

Quais so os inimigos do povo?Theotnio Jnior

O Brasil na era da ditadura

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Palavra de poeta

Prosa

Memria em foco

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Debates

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n Publicao semestral do ANDES-SN: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior.n Os artigos assinados so de total responsabilidade de seus autores.n Todo o material escrito pode ser reproduzido para atividades sem fins lucrativos, mediante citao da fonte.

CONTRIBUIES para publicao na prxima edio, ver pgina 101.

Conselho EditorialAntnio Candido, Antnio Ponciano Bezerra, Carlos Eduardo Malhado Baldijo, Ciro Teixeira Correia, Dcio Garcia Munhoz, Luiz Henrique Schuch, Luiz Carlos Gonalves Lucas, Luiz Pinguelli Rosa, Mrcio Antnio de Oliveira, Maria Cristina de Moraes, Maria Jos Feres Ribeiro, Marina Barbosa Pinto, Newton Lima Neto, Osvaldo de Oliveira Maciel (in memoriam), Paulo Marcos Borges Rizzo, Renato de Oliveira, Roberto Leher e Sadi Dal Rosso

Encarregatura de Imprensa e Divulgao Luiz Henrique Schuch

Coordenao GTCACintia Xavier, Joo Francisco Ricardo Kastner Negro, Jos Queiroz Carneiro, Luiz Henrique Schuch e Rondon Martin Souza de Castro

Editoria Executiva deste NmeroAna Maria Ramos Estevo, Jos Queiroz Carneiro e Rondon Martin Souza de Castro

Pareceristas Ad HocDaniel de Oliveira Franco (UFPI), Antnio de Pdua Bosi (UNIOESTE) e Joo Francisco Ricardo Kastner Negro (UFPR)

Reviso Metodolgica e Produo Editorial Iara Yamamoto

Projeto Grfico, Edio de Arte e EditoraoEspao Donas Marcianas Arte e Comunicao - Gabi Caspary - [email protected]

Ilustraes Kita Telles

Capa Gabi Caspary e Pdua Pires (a partir de Monsters and Madonnas, de William Mortensen)

Reviso Gramatical Gigi Silva

Tiragem 5.000 exemplares

Impresso Editora Teatral

Expedio ANDES-SN - ESCRITRIO REGIONAL SO PAULORua Amlia de Noronha, 308 | Pinheiros | SO PAULO - SP | CEP 05410-010 Tel.: (11) 3061-3442 | Tel./Fax: (11) 3061-0940 E-mail: [email protected] www.andes.org.br

Universidade e Sociedade / Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior - Ano I, n 1 (fev. 1991)Braslia: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior.

Semestral ISSN 1517 - 1779

2014 - Ano XXIII N 54

1. Ensino Superior - Peridicos. 2. Poltica da Educao - Peridicos. 3. Ensino Pblico - Peridicos. I. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior CDU 378 (05)

UNIVERSIDADEe SOCIEDADE

54 ENSINO PBLICO E GRATUITO: direito de todos, dever do Estado.Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior - ANDES-SNSetor Comercial Sul (SCS), Quadra 2, Edifcio Cedro II, 5 andar, Bloco CCEP 70302-914 - Braslia - DF - Tel.: (61) 3962-8400 / Fax: (61) 3224-9716 e-mail: [email protected]

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J se disse em uma das reunies do ANDES-SN: ainda estamos juntos! Nesses 50 anos do Golpe Civil-Militar, muitas seriam as razes para que essa pequena frase fosse uma das mais difceis de serem pronunciadas. O 31 de maro, ou primeiro de abril, de 1964 nos traz tristes recordaes, de uma violncia desmedida, de um autoritarismo vivo e constante e um obscurantismo que cobriu a histria recente do pas com a mortalha da triste desesperana. Cada minuto sob a crueldade dura um sculo.

O ANDES-SN nasceu justamente no momento em que todos achavam que a dor no teria mais fim. Sob o AI-5, a categoria docente em meio a uma improvvel greve, anncio de que o autoritarismo estaria caindo de podre, fundou-se a Associao Nacional dos Docentes. Assim mesmo, como associao, com toda a sensibilidade feminina do gnero, que optou por tornar-se masculino no transcorrer e na intensificao da luta nas universidades. Os professores tomaram a srio ter que endurecer sem perder a ternura; em meio ao caos e incerteza, deixaram a marca da luta pelas razes mais essenciais para a construo de um novo pas: a educao, o ensino, a universidade, a referncia pelo pblico, pelo socialmente referenciado.

Nos limites de uma sociedade marcada pela disciplina feita pelas marcas da tortura, dos desaparecimentos, do desrespeito vida, o ANDES-SN inaugurou a era da contestao, de no se esconder e no transigir. No havia mais o que se perder alm da prpria vida.

O Golpe Militar de 64 continua sendo, gradativamente, desvendado. A cada dia, os horrores de todo um perodo de 21 anos nos surpreendem. Como conseguimos sobreviver sendo vtimas de algo to grande e to forte como foi a crueldade que nos cercava? A resposta pode ser: nos recusamos a ser vtimas... no nos entregamos, no evitamos que

Edito

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a palavra nos escapasse da boca. Foi a palavra, essa nossa arma que tambm instrumento de trabalho, que nos salvou da omisso. Foi com a palavra que pudemos nos colocar como referncia, ainda sob a ditadura, mas principalmente agora, podemos contar como donos da palavra que sempre proferimos, com a memria. Dissemos sempre: nunca mais! E isso que marca mais esta edio da revista Universidade e Sociedade. a memria, aquela mesma que quiseram calar e que, agora, nos ensina a enxergar nossas cicatrizes. E mostr-las. A sociedade brasileira ainda sangra de suas feridas, mas as marcas nos colocam em um degrau acima dos daqueles que se entregaram.

Hoje, estamos mergulhados em um meio social que nos mescla com aqueles que nos reprimiram. A memria nos impede de cometermos o temvel erro do esquecimento. Este somente possvel em um mundo onde as mesmas mazelas do passado encontram sua continuidade. Qualquer professor sabe: as palavras so instrumentos independentes do bem ou do mal. Cabe a ns fazermos com que as palavras sejam a herana para uma outra sociedade mais justa e igualitria. Lembrarmos daqueles que se empenharam na consolidao do golpe lembrarmos do papel dos Estados Unidos, dos empresrios, dos militares que se instalaram no poder. lembrarmos o que significou a universidade como trincheira democrtica, de luta contra os desmandos e os nomes dos heris antes annimos, aqueles que foram cassados, aprisionados, desaparecidos e, na melhor das hipteses, aposentados. a palavra hoje deslindando o que foi a caa s bruxas... conscincias compradas com o vil metal ou corpos arrasados em sesses de pau de arara e choques eltricos.

Foram 21 anos de incertezas, muitos no sobreviveram para ver seu fim e muitos agora no sabem o que aconteceu. Nas palavras que marcam esta revista est essa memria, essa marca na pele que nunca sair. No entanto, a boa notcia que estamos juntos e resistimos. Sempre!

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Introduo

Est em curso uma intensa batalha terica sobre o significado da ditadura empresarial-militar. O pre-sente artigo concebe a ditadura no contexto da con-trarrevoluo colocada em marcha pela ao articu-lada de fraes burguesas locais e dos militares com os ncleos imperialistas dominantes. Neste diapaso, o texto sustenta que a reforma universitria de 1968

A universidade sob cu de chumbo:a heteronomia instituda

pela ditadura empresarial-militarRoberto Leher

Professor Titular da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJE-mail: [email protected]

Simone SilvaTcnico-Administrativa da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Resumo: O presente artigo, por meio do mtodo histrico, propugna que a consolidao da pesquisa e da ps-graduao na segunda metade do sculo XX esteve associada s contra-dies provocadas pelo projeto nacional-desenvolvimentista j subordinado ao capitalismo monopolista. A ditadura empresarial-militar, expressando a supremacia do imperialismo, engendrou uma contrarreforma sob a gide da heteronomia, erigindo um sofisticado apara-to de fomento cincia e tecnologia que enredou de modo profundo o cotidiano da vida universitria com a racionalidade da universidade operacional, utilitarista, pragmtica. O estudo realiza um histrico desse processo de heteronomia, discute as formas de represso e de cooptao de quadros universitrios para o projeto da ditadura e faz indicaes sobre as lutas e resistncias que possibilitaram a criao da Associao Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (ANDES).

Palavras-chave: Universidade. Ditadura Empresarial-Militar. Polticas de Cincia e Tecnologia. Represso. Heteronomia. Resistncias.

esteve associada ao capitalismo monopolista sob a gide da heteronomia, erigindo um sofisticado apa-rato de fomento cincia e tecnologia que enredou de modo profundo o cotidiano da vida universitria com a racionalidade da universidade operacional, utilitarista, pragmtica. O estudo realiza um histri-co desse processo de heteronomia, discute as formas de represso e de cooptao de quadros universit-rios para o projeto da ditadura e faz indicaes sobre

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as lutas e resistncias que possibilitaram a criao da Associao Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (ANDES).

A expanso da pesquisa e a proliferao de pro-gramas de ps-graduao no Brasil so um processo singular na histria das universidades. Entre as parti-cularidades do caso brasileiro importante destacar que as universidades so instituies tardias, pois cria-das apenas no sculo XX; a constituio das entida-des representativas dos cientistas, como a Academia Brasileira de Cincias (1916) e a SBPC (1948), igual-mente so do ltimo sculo. As primeiras instituies pblicas de fomento cincia e tecnologia, como o Conselho Nacional de Pesquisas (CNP, atual CNPq), foram criadas em 1951, fundamentalmente, objetivan-do o domnio da energia nuclear como conhecimento geopoltico (1951-54) (em 1951, a rea recebeu 65% do seu oramento total, conforme Morel, apud Fer-nandes, 1990, p. 90-91). A CAPES foi instaurada no

mesmo ano para apoiar a formao de docentes para as universidades e institutos de pesquisa.

A principal exceo lgica militarista na cons-truo de uma universidade com pesquisa sistem-tica, desvinculada da razo militar, estava em curso na USP, criada em 1934, orientada pela lgica parti-cularista dos setores dominantes paulistas, derrota-dos em 1932, que compreenderam o alcance de uma universidade com pesquisa para a concretizao da hegemonia burguesa paulistana: da o lema A cin-cia vencer!.

O carter tardio da universidade no a nica particularidade do caso brasileiro. A ps-graduao, antes limitada a raros programas, foi exponencial-mente expandida na dcada subsequente ao golpe empresarial-militar de 1964, passando de 36 pro-gramas em 1965 para 669 em 1976, crescimento que seguiu vertiginoso at o final da ditadura, em 1985, quando foram contados 1116 cursos1. E mais intri-

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gante ainda, a expanso da ps-graduao no se deu em um contexto reformista burgus, nos moldes de uma revoluo burguesa clssica, no bojo da cons-truo de um projeto autopropelido de nao (casos da universidade napolenica e humboldtiana); ao contrrio, a revoluo burguesa, em processo, obje-tivava maior estreitamento com as fraes burgue-sas hegemnicas no capitalismo monopolista, isto , com o ncleo imperialista do capitalismo mundial. Por isso, o caso brasileiro no deixa de ser pleno de elementos desconcertantes, contraditrios e aparen-temente paradoxais: a consolidao da pesquisa e da ps-graduao se deu pari-passu institucionaliza-o da heteronomia universitria imposta por uma severa ditadura empresarial-militar. Assim, mais pesquisa e ps-graduao significaram menos auto-nomia universitria, abarcando as suas trs dimen-ses axiais: didtico-cientfica, de gesto financeira e de meios administrativos para assegurar a liberdade acadmica.

Foi na ditadura que esse processo foi consolida-do, conforme os grandes nmeros da ps-graduao confirmam, mas seria um erro estabelecer uma pe-riodizao em que o pr-1964 fosse considerado

enfrentar os obstculos industrializao e ao desen-volvimento. Ilustrativo deste posicionamento, fsicos ilustres como Jos Leite Lopes, Jaime Tiomno e Lus Marques assessoraram o Conselho Nacional de Eco-nomia, objetivando identificar e solucionar os garga-los tecnolgicos para a industrializao do pas, o que demandaria uma profunda reforma da universidade, com o fim de torn-la coetnea dos desafios da segun-da etapa de substituio das importaes, a produo de maquinaria pesada (Fernandes, 1990, p. 87).

Os obstculos concretos a uma reforma universi-tria inscrita no rol de reformas estruturais ficaram patentes na derrota em 1961 do projeto liberal da LDB em favor do Substitutivo Lacerda, francamente privatista. No havia entre as lideranas da burguesia uma efetiva disposio de empreender uma transfor-mao radical da universidade, como ficaria eviden-te, aps o golpe, no processo de desmonte da UnB, em 1964-1965 (Salmeron, 1999). A falta de apoio das fraes burguesas dominantes locais a tais reformas confirmam a impertinncia (para as fraes bur-guesas vitoriosas no golpe) da substituio das im-portaes e do projeto nacional-democrtico, como supunham ser possvel um arco de foras que reunia o PCB (conforme a Declarao de Maro de 1958), a SBPC, o ISEB, a esquerda trabalhista, movimentos sindicais, estudantis e iniciativas populares como o CPC da UNE, as campanhas de alfabetizao e cons-cientizao em curso no Nordeste etc.

Mesmo no perodo em que se supunham possveis as reformas de base, no caso da reforma universit-ria, a comunidade cientfica organizada na SBPC no contribuiu de modo destacado para constituir uma frente ampla em prol da reforma (Fernandes, 1990, p. 89), preferindo o apoio de empresrios considerados progressistas, leia-se industriais, em detrimento das lutas conjuntas com o movimento estudantil (UNE) e popular (movimentos de alfabetizao popular, sin-dicais, CPC etc.).

Os limites reformistas da comunidade cientfica devem-se, entre outros fatores, forma de financia-mento cincia e tecnologia. No ps-II Guerra, com o desenrolar da Guerra Fria, muito da pesquisa universitria dependeu do financiamento de fun-daes privadas estadunidenses, como a Fundao Ford, por exemplo. Certamente, existiram pesquisas,

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Assim, mais pesquisa e ps-graduao significaram menos autonomia universitria, abarcando as suas trs dimenses axiais: didtico-cientfica, de gesto financeira e de meios administrativos para assegurar a liberdade acadmica.

como um perodo de plena liberdade acadmica, apoio pblico e universal pesquisa, um tempo de florescimento do pensamento crtico em todas as es-feras da universidade, e o ps-ditadura como o mar-co zero da heteronomia.

Como assinalado, as primeiras iniciativas pblicas de maior envergadura em prol da cincia e da tecno-logia estavam orientadas por uma ratio militar (geo-poltica) e pela ideologia do desenvolvimento. Cabe ressaltar que, para os cientistas participantes desse processo, o domnio da fsica nuclear era muito mais amplo, pois poderia abrir caminho para a cincia bsica e para a formao de pessoal capacitado para

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auspiciadas por tais fundaes e agncias de governo, que contriburam para a consolidao da pesquisa no Brasil, a exemplo dos avanos na gentica (Rockefel-ler), na geologia (USAID) etc., o mesmo podendo ser dito de intercmbios com universidades estaduniden-ses em vrios campos do conhecimento. Contudo, o apoio dessas fundaes pressupunha uma universi-dade que no fosse hostil ao imperialismo, inclusive sob a forma do nacional-desenvolvimentismo, ge-rando contradies e tenses, pois, como assinala-do, importantes setores da intelligentsia universitria abraaram tal projeto, a exemplo da UnB e, fora da universidade, da Petrobras. No casualmente, parte relevante dessa intelligentsia foi cassada pela ditadura.

No perodo pr-1964, em que prevaleceu o finan-ciamento das fundaes estadunidenses e da USAID, a tica na produo do conhecimento dependeu, em grande parte, da tica dos pesquisadores envolvidos e, em alguns casos, dos representantes locais das referi-das fundaes, engendrando relaes sociais contra-ditrias entre pesquisadores e doadores e, em certos casos, conflituosas; afinal, no contexto da Guerra Fria no poderia haver apoio desinteressado.

Toda a rea de convnios relacionada com a trans-ferncia de conhecimentos foi acompanhada de perto pelo Departamento de Estado dos EUA, bem como por seus rgos de informao e inteligncia. Tais formas de colaborao, em que pesem benef-cios localizados, no poderiam concorrer plena-mente para forjar um sistema universitrio dotado de autonomia efetiva. Para entender o problema da heteronomia, preciso diferenciar: (i) a ao media-da pelas fundaes estadunidenses e pela USAID em sua cruzada anticomunista (Scheman, 1988); e (ii) o internacionalismo universitrio, presente, por exem-plo, nas misses francesas durante a criao da USP ou no aperfeioamento de professores no exterior, seja em programas de ps-graduao, seja em grupos de pesquisa. Esta distino no significa que tenha inexistido pesquisa eticamente orientada auspiciada na forma apontada em (i) ou, alternativamente, que toda pesquisa advinda de (ii) tenha sido crtica e li-vre das influncias particularistas, em especial pelo contexto de Guerra Fria. As fundaes e a USAID ti-nham objetivos muito claros ao auspiciar a pesquisa no Brasil, ao que envolveu considervel soma de

recursos no perodo anterior ao golpe de 1964. O montante de recursos internacionais permite

dimensionar o quanto a comunidade acadmica era dependente de tais recursos e dos laos criados com as instituies estadunidenses. Em 1965, a Revista Ci-ncia e Cultura publicou informaes do Defense Re-search Office publicizando os investimentos das orga-nizaes americanas no Brasil no perodo 1961-1964. Foram disponibilizados 13.703.576 dlares, cerca de U$ 110 milhes na moeda de hoje, montante que, na poca, pode ser considerado relevante, pois sequer havia oramento para pesquisa no Brasil.

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Tabela 1: Financiamento estrangeiro a pesquisa (1961-1964)

Ford Foundation $ 3.955.000Rockefeller Foundation $ 1.850.983Kelling Foundation $ 592.157U. S. Air $ 313.300United Nations - Technical Assistance $ 6.502.200U. S. Department of Agriculture $ 248.838Nat. Institute of Health $ 132.478Department of Defense $ 96.320Atomic Energy Commission $ 12.300

Desse modo, antes mesmo do golpe, parte da co-munidade acadmica j estava fortemente vinculada ao modelo estadunidense e, como assinalado, no possua vnculos efetivos com os movimentos refor-mistas. Os formuladores das polticas educacionais e de cincia e tecnologia, comprometidos com a prepa-rao e a efetivao do golpe, sabiam que a universi-dade poderia ser um celeiro onde aliados e colabo-radores poderiam ser buscados. Os empresrios, os militares e os tecnocratas (seus tcnicos tteres, na ex-presso de Fernandes, 1984) sabiam que os docentes propensos a apoiar o golpe estavam dispersos e, por isso, centros de pensamento como o IPES-IBAD2 se empenharam em estreitar os laos destes intelectuais com os crculos de tecnocratas envolvidos com a di-tadura empresarial-militar. Certamente, muitos cien-tistas, embora reconhecessem a validade do modelo estadunidense, recusaram colaborar com o regime, buscando o exlio e mesmo resistindo quase que clan-destinamente nos interstcios da universidade e das entidades cientficas.

FONTE: Informaes obtidas na Revista Cincia e Cultura da SBPC, 1965, vol. 17, n 1.

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Represso e heteronomia

As resistncias existiram e foram relevantes. Os acadmicos mais estreitamente vinculados ao projeto nacional-desenvolvimentista, expresso, por exemplo, na UnB, na SUDENE, no ISEB, na UNE e nos movi-mentos populares, foram prontamente identificados como potenciais inimigos do golpe. No primeiro ano da ditadura, 85 foram cassados, entre os quais se des-tacam Ansio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire. Entidades como a SBPC, que, no momento do gol-pe, mantiveram relativo silncio, em 1965 j expres-savam preocupao com os afastamentos e com os Inquritos Policiais Militares, especialmente na UnB, instituio em que mais de 80% dos seus docentes fo-ram expulsos ou se viram forados a sair (Salmeron, 1999). Represso que atingiu de modo especialmente violento tambm os estudantes, pois mais de 250 fo-ram expulsos em 1969. Objetivando impor o silncio sobre o movimento estudantil, em 1964 foi instituda a Lei Suplicy de Lacerda, criando o Diretrio Nacio-nal dos Estudantes (sob estreito controle e vigilncia das reitorias), proibindo greves e propagandas par-tidrias nas entidades estudantis e, em 1969, foi edi-tado o Decreto 477 voltado mais diretamente para a represso estudantil.

Tais nexos aconteceram de modo institucional, mas tambm de forma sub-reptcia na institucio-nalidade, com a colaborao de reitorias, diretores e chefes de departamentos, a exemplo da demisso de um grande nmero de docentes que no possua vnculos estveis com as instituies e que puderam ser afastados por atos ditos administrativos. Estima-tivas conservadoras confirmam mais de 300 casos de afastamento de docentes universitrios no pas durante a ditadura4, muitos deles indicados em reu-nio de departamentos, como os da Medicina da USP (Fernandes, 1984) ou por deciso de chefes de de-partamento, como Eremildo Luis Vianna, no IFCS--UFRJ; este nmero no compreende os que, por terem suas vidas ameaadas ou no vislumbrarem condies mnimas de liberdade, se viram forados a abandonar a universidade (como os 225 docentes da UnB que saram aps a demisso de 15 colegas). Ademais, inexiste levantamento completo sobre os docentes e os estudantes assassinados, a exemplo da professora Ana Rosa Kucinsky, do Instituto de Qu-mica da USP, e de seu companheiro, o fsico Wilson Silva, e de Vladimir Herzog (Comunicao USP e FAAP), totalizando, entre estudantes, docentes e tc-nicos, 47 mortos na USP5 e, na UFRJ, ao menos 25 pessoas j comprovadas.

Seria um erro compreender que, na perspectiva dos interesses burgueses, o processo de represso a profes-sores e estudantes significou destruio; ao contrrio, cabe aqui a expresso consagrada por Schumpeter de destruio criadora. Ao mesmo tempo em que a re-presso foi recrudescida, o governo e seus apoiadores avanavam na contrarreforma da universidade, um objetivo perseguido de modo diligente desde os pri-meiros meses da ditadura. Como assinalado, a ps--graduao, como lcus da pesquisa sistemtica, era reduzida antes de 1964 e o governo necessitava de nichos capazes de formar pessoal com maior sofistica-o para erigir a infraestrutura indispensvel ao capi-talismo monopolista, em reas como energia, agricul-tura, engenharias, telecomunicaes etc.

Um primeiro passo foi conduzir a ps-graduao ao modelo tido como recomendvel, o estaduniden-se, e gui-la pelo objetivo estratgico da formao de capital humano. Este foi o sentido de sua regulamen-tao atravs do Parecer n 977/65 e o financiamento

Com o AI-5/1968, mais 168 professores universitrios e de institutos pblicos de pesquisa foram cassados, inclusive os 10 cientistas da Fiocruz, no que ficou conhecido como o Massacre de Manguinhos. Paulatinamente, foram sendo erigidas finas teias de relaes entre os aparatos de represso do Estado, como o SNI, DOPS, CENIMAR, e a vida cotidiana das universidades.

Com o AI-5/1968, mais 168 professores universi-trios e de institutos pblicos de pesquisa foram cas-sados, inclusive os 10 cientistas da Fiocruz, no que ficou conhecido como o Massacre de Manguinhos3. Paulatinamente, foram sendo erigidas finas teias de relaes entre os aparatos de represso do Estado, como o SNI, DOPS, CENIMAR, e a vida cotidiana das universidades. A partir de 1970 foram criadas 35 Assessorias Especiais de Segurana e Informaes (AESIs ou ASIs)nas principais universidades do pas.

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oriundo das parcerias com as agncias internacionais foram os caminhos traados para consolidar o ensi-no superior e a ps-graduao no Brasil, o que gerou um crescimento quantitativo. Este parecer no fez nenhuma tergiversao sobre suas intenes. Ttu-lo de um dos tpicos: Um exemplo a ser seguido - a norte-americana.

Sendo ainda incipiente a nossa experincia em matria de ps-graduao, teremos de recorrer inevitavelmente a modelos estrangeiros para criar nosso prprio sistema. O importante que o modelo no seja objeto de pura cpia, mas sirva apenas de orientao. Atendendo ao que nos foi sugerido pelo aviso ministerial, tomaremos como objeto de anlise a ps-graduao norte-americana, cuja sistemtica j aprovada por uma longa experincia tem servido de inspirao a outros pases (PARECER N 977/1965).

A interveno estadunidense neste perodo no era privilgio do Brasil; outros pases da Amrica La-tina tambm conviviam com esse tipo de ingerncia, seja a partir do financiamento e da organizao de golpes militares, seja como no caso do Projeto Ca-melot (Horowitz, 1969), criado em 1964, com recur-sos do Special Operations Research Office-Soro, do Exrcito dos Estados Unidos, porm operado pela American University of Washington, com o objetivo de avaliar a possibilidade de guerras nacionais nos pases da Amrica Latina, a capacidade dos governos de prev-las e a probabilidade de que estes governos pudessem constituir um sistema capaz de obter in-formaes essenciais para o controle da situao.

Criadas as normas para a expanso da ps-gradu-ao, o prximo passo da ditadura foi se apropriar dos anseios sociais, em especial, estudantis, da no-o de reforma universitria, ressignificando o seu contedo e adotando medidas presentes na UnB que, recontextualizadas, poderiam garantir a legitimidade da reforma. A Comisso Meira Mattos (dezembro de 1967) e, a seguir, o Grupo de Trabalho da Reforma Universitria (julho de 1968), como iniciativas que, embora no plenamente coincidentes, tinham como meta fazer o ajuste da universidade brasileira aos re-quisitos do capitalismo monopolista.

Alm de permanentemente acompanhada pelos intelectuais estadunidenses, a Reforma Universitria

foi precedida pelos contratos com os EUA destina-dos ao planejamento da educao e execuo ora-mentria, atravs dos acordos MEC-USAID. Pode-se afirmar que a Lei 5.540, de 28 de novembro de 1968, institucionalizou de modo combinado (pois expres-sa posicionamentos de formuladores brasileiros e estadunidenses) todas essas iniciativas contrarre-formistas.

[...] ao analisar o Relatrio do Grupo de Trabalho da Reforma Universitria. Ao compar-lo com o Relatrio MEC-USAID para o ensino superior, notamos de imediato as grandes semelhanas: a concepo empresarialista da universidade e o paradigma explcito da universidade norte-americana a mostrar o caminho para a brasileira. Em reforo a esse (pr) conceito, o Relatrio MEC-USAID, s publicado em 1969, dizia que a verso preliminar havia sido levada como subsdio ao Grupo de Trabalho da Reforma Universitria (CUNHA, 1988, p. 24-25).

A consolidao e o crescimento quantitativo da universidade e da ps-graduao se do sob a gide autocrtica, desvinculado de um projeto autoprope-lido de desenvolvimento cientfico comprometido com os problemas atuais e futuros dos povos. O cres-cimento acelerado da ps-graduao, por isso, apro-

Criadas as normas para a expanso da ps-graduao, o prximo passo da ditadura foi se apropriar dos anseios sociais, em especial, estudantis, da noo de reforma universitria, ressignificando o seu contedo e adotando medidas presentes na UnB que, recontextualizadas, poderiam garantir a legitimidade da reforma.

fundou a heteronomia da universidade vis--vis ao Estado e ao capital. Ainda que, contraditoriamente, tenha propiciado condies de pesquisa terica rele-vante, especialmente na cincia bsica, contribuindo para a formao de pesquisadores, socializou muitos dos novos pesquisadores em conformidade com uma racionalidade tecnicista, no crtica, frente ao padro de acumulao do capital expropriador e explorador da grande massa popular, difundido como milagre econmico realizado com um enorme custo socio-ambiental, em especial sobre os movimentos do cam-po e sobre os povos indgenas.

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O esforo de ampliao da base de apoio ao pa-dro de acumulao empreendido pela ditadura em-presarial-militar e de expanso da pesquisa, inserida no II Plano Nacional de Desenvolvimento como um objetivo estratgico, exigiria reequilibrar os termos represso-persuaso, ampliando os meios persua-sivos, reduzindo, a partir de 1975, os meios aberta-mente coercitivos, em prol de formas mais sutis de coero, como a imposio de agendas, prioridades, metas, por meio de constrangimentos econmicos (Leher e Silva, 2011). Da a prioridade do governo ditatorial no controle mais estreito e orgnico dos r-gos de fomento.

Os antigos conselhos precisavam se adaptar nova situao do pas. Logo aps o golpe, o CNPq sofreu a tentativa, inicialmente, sem sucesso, de ser transformado em fundao. J a Capes teve seu pa-pel de Campanha transformado em Coordenao e, posteriormente, em rgo executivo das polticas do MEC. O plano quinquenal para a ps-graduao foi institudo a partir do Programa Estratgico de

Desenvolvimento - PED (1968-1970) e tinha como perspectiva principal constituir um instrumento de apoio C&T que pudesse ter expanso nacional. Seu objetivo era formular programas de investigao de temticas que possibilitassem o desenvolvimento do pas nas reas consideradas estratgicas: astrono-mia, matemtica, fsica, qumica e tecnologia, alm de biologia e cincias sociais e de uma preocupao particular com a regio amaznica.

Com efeito, o realinhamento da C&T nas polti-cas do governo militar exigiria recursos financeiros e mecanismos de controle para garantir a eficcia pretendida. A reconfigurao da Capes e do CNPq de autarquia para fundao de direito privado foram decisivas para o estabelecimento de uma nova meto-dologia de financiamento da pesquisa, assim como a criao de outros rgos j com caractersticas cla-ras de agncias de financiamento, como a Fundao de Amparo Pesquisa no Estado de So Paulo (Fa-pesp), o Programa de Expanso Tecnolgica (Pro-tec), rgo do Banco Nacional do Desenvolvimen-to (BNDE), a Financiadora de Projetos (Finep) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento de Cincia e

Tecnologia (FNDCT). Esta ltima pode ser con-siderada a poltica mais definitiva de siste-matizao de financiamento.

Em 1971, a Finep assumiu a Secreta-ria Executiva do FNDCT, provocando uma grande mobilizao na comunidade cientfica ao financiar a implantao de novos grupos de pesquisa e programas,

a expanso da infraestrutu-ra de C&T e

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a consolidao da pesquisa e da ps-graduao. Sua tarefa foi alm da distribuio de recursos, incluindo a anlise da viabilidade de projetos de investimen-to para o Ministrio de Planejamento. As polticas de C&T sempre estiveram vinculadas ideia de de-senvolvimento, porm, no perodo da ditadura, este processo foi planificado. A cada plano de desenvolvi-mento do pas, desde o PED, foram elaborados planos de desenvolvimento das polticas de C&T. Avanando na poltica de planificao da distribuio dos recur-sos, em 1972 foi criado o Sistema Nacional de Desen-volvimento Cientfico e Tecnolgico (SNDCT) com a meta de incentivar a pesquisa no setor privado. Atu-ando em conjunto com o Ministrio do Planejamen-to, objetivava realizar estudos relativos formao de poltica nacional de desenvolvimento cientfico atravs da realizao de pesquisas por sociedade de economia mista e empresas do setor privado, com a articulao com rgos de pesquisa governamentais.

O I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1972 a 1974) priorizou a orientao de transferncia de tecnologia para o pas, projeto que foi incorpora-do ao Plano Bsico de Desenvolvimento Cientfico e Tecnologia I PBDCT (1973-1974). Submetido ao Ministrio do Planejamento e Coordenao Geral em articulao com o CNPq, dedicava-se ao desen-volvimento de novas tecnologias, basicamente Ener-gia Nuclear e Pesquisa Espacial, novas indstrias na rea de eletrnica, qumica, aeronutica e no forta-lecimento da capacidade de absoro e criao de tecnologia pela empresa pblica e privada. Outro elemento importante no plano era o engajamento do setor produtivo. Foi necessrio o fortalecimen-to financeiro e institucional para a consolidao de infraestrutura de pesquisa cientfica e tecnolgica com o intuito de integrar a indstria, a pesquisa e a universidade. Para tal empreendimento, a dimenso das dotaes oramentrias foi de um grau indito no Brasil. Para avaliar a ordem de grandeza dos va-lores destinados aos programas brasileiros, pode-se mencionar que o programa global de apoio tcnico da ONU ao mundo subdesenvolvido foi de cerca de US$ 320 milhes ou Cr$ 1,9 bilhes anuais, enquanto que o I PBDCT contou com dispndios federais no binio de 1973-1974 na ordem de Cr$ 4,3 bilhes, ou seja, Cr$ 2.150 bilhes anuais (valores de 1973).

O plano seguinte foi brindado com uma impor-tante reformulao no CNPq, em 1974, que passa a ser denominado Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Cientfico e, no ano seguinte, sob justificativa de maior agilidade operacional e sem as resistncias verificadas em 1964, transformado em fundao de personalidade jurdica de direito privado e vincula-do diretamente recm-criada Secretaria de Planeja-mento (Seplan/PR), ligada Presidncia da Repbli-ca, o que significava seu deslocamento para o centro das decises econmicas do pas.

Pode-se afirmar que a Seplan era a representao da consolidao do Estado tecnocrtico. Era ela o centro do poder e da articulao entre os ministrios, empresas privadas e estatais e a responsvel por coordenar e desenvolver, a partir de seus rgos, acessrios como o Ipea Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada, planos de execuo oramentria e projetos, acompanhando-os detalhadamente. Por este quadro e pelo entendimento de que os avanos tecnolgicos do pas tinham uma relao direta com o crescimento econmico e, principalmente, pelas suas caractersticas de centralizao, estabeleceu-se uma vinculao entre o CNPq e a Seplan. Alm desta mudana, o CD Conselho Deliberativo do CNPq foi substitudo pelo Conselho Cientfico e Tecnolgico CCT, rgo mximo de assessoramento do CNPq (SILVA, 2012, p. 103, 104).

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Outro elemento importante no plano era o engajamento do setor produtivo. Foi necessrio o fortalecimento financeiro e institucional para a consolidao de infraestrutura de pesquisa cientfica e tecnolgica com o intuito de integrar a indstria, a pesquisa e a universidade. Para tal empreendimento, a dimenso das dotaes oramentrias foi de um grau indito no Brasil.

Em 1976, o CNPq adotou uma tabela de classifica-o de reas, que aparentemente serviria apenas para avaliar os resultados das polticas de expanso. No entanto, ela serviu como base para o estabelecimento de um critrio hierrquico e supostamente merito-crtico, efetivado pelos comits assessores organiza-dos por reas do conhecimento.

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Retoma-se mais uma vez a questo apresentada por Bourdieu (1983). Os comits assessores so formados por membros do campo cientfico que detm o poder de analisar e propor uma hierarquia entre os campos do saber, entre os cientistas e entre temticas a serem pesquisadas. E que desembocar na preocupao de Merton na composio do Effect Matheus, que aponta o estabelecimento de grupos de pesquisas de primeira classe que tero sempre uma boa avaliao, salvo problemas muito graves, e, portanto, sendo beneficiados com as mais altas quantias de financiamento (SILVA, 2012, p. 106).

O II PBDCT (1976-1979), diferente do I PBDCT, priorizava as polticas industrial e agrcola em detri-mento da pesquisa cientfica. Porm, seguia a poltica de alinhar a universidade, empresas e setores pbli-cos e privados nos trilhos definidos para a atividade de C&T. O III PBCDT (1980-1985) teve sua vigncia no perodo de crise poltica e financeira e direcionou o grosso dos recursos para a EMBRAPA, que, no pe-

Diante da debilidade do III PBDCT, o governo ditatorial encaminhou o I Plano de Apoio ao De-senvolvimento Cientfico - PADCT (1982), criado para facilitar a obteno de emprstimos interna-cionais, concebido como um instrumento de ao complementar s agncias de financiamento e com metas pr-definidas a alcanar. A aprovao final do primeiro emprstimo e a renovao do contrato s ocorreram aps o fechamento dos acordos da dvida externa brasileira. A presena do Banco Mundial, j existente h pelo menos trs dcadas, foi intensifica-da no financiamento e na determinao das polticas de C&T.

Em 1985, foi criado o Ministrio de Cincia e Tec-nologia MCT, constituindo um novo marco para a histria da C&T no Brasil baseado nos mesmos argu-mentos que sempre circundaram a C&T: o fortaleci-mento da educao e da pesquisa como elemento de desenvolvimento do pas sem romper as barreiras da dependncia tecnolgica e cientfica.

As naes capitalistas desenvolvidas e, principalmente, as naes hegemnicas do mundo moderno podem financiar os progressos globais da cincia e da tecnologia avanada (...). As naes subdesenvolvidas precisam pr em primeiro plano seus objetivos nacionais e, portanto, para elas o processo interessa na medida em que, atravs da modernizao ou da racionalizao do ensino e da expanso da pesquisa cientfica e tecnolgica, elas conseguem melhores condies de participao do fluxo do padro de civilizao de que participam. Isto significa que, para elas, o que entra em jogo, na fase da negao e de superao do subdesenvolvimento, o grau de autonomia cultural relativa que alcana (ou pode alcanar) por meio da educao escolarizada, da cincia e da tecnologia avanada (FERNANDES, 1975, p. 88-89).

De forma distinta da busca de autonomia cultural, o aparato de fomento C&T erigido no perodo ditatorial institucionalizou a heteronomia estrutural da universidade frente ao Estado, aos go-vernos e aos interesses particularistas do capital. Difundiu um ethos acadmico, referenciado no prag-matismo e no utilitarismo, que naturaliza a associa-o entre conhecimento e capital humano, inserindo as universidades nos circuitos de regulao da fora

O setor produtivo privado, por sua vez, pouco contribuiu para a absoro do pessoal altamente qualificado e para a instalao de uma nova infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento, confirmando que no a induo a partir da universidade que poderia modificar o padro tecnolgico das empresas, o que, aps 1985, determinar medidas ainda mais diretamente vinculadas ao setor produtivo.

rodo 1981-1984, possua um oramento superior ao do CNPq e, neste, os recursos para cincia aplicada eram cada vez maiores do que os de cincia bsica: em 1984, 40% maiores (Fernandes, 1990, p. 157).

Um balano dos trs PBDCT indica que, apesar de toda a presso por parte do governo, grande parte da pesquisa seguiu localizada nos cursos de ps-gradu-ao. O setor produtivo privado, por sua vez, pouco contribuiu para a absoro do pessoal altamente qua-lificado e para a instalao de uma nova infraestrutu-ra de pesquisa e desenvolvimento, confirmando que no a induo a partir da universidade que poderia modificar o padro tecnolgico das empresas, o que, aps 1985, determinar medidas ainda mais direta-mente vinculadas ao setor produtivo.

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de trabalho. Mesmo a autonomia constitucionalmen-te assegurada posteriormente, em 1988, nasce como letra morta, tal a assimilao da crena de que a hete-ronomia um dado a no ser problematizado.

O abandono do objetivo da autonomia cultural levou a ditadura a optar por uma massificao re-lativa da educao superior, um dos impulsionado-res da contrarreforma de 1968, em virtude das lutas dos chamados excedentes, por meio da expanso da rede privada, preferencialmente, pela proliferao de cursos de curta durao. O GT sobre a Reforma Universitria e, em outros termos, o Relatrio Atcon, convergiram na avaliao de que algumas universi-dades deveriam ser escolhidas como centros de exce-lncia, dotadas de recursos adicionais para a pesquisa e a ps-graduao. Em nenhum momento a ditadura admitiu a ideia de que a presso por mais vagas na educao superior poderia ser assimilada pela ex-panso das universidades pblicas. A opo pelo se-tor privado foi inequvoca. Isenes tributrias foram concedidas para os que tivessem seus filhos matricu-lados nas organizaes de ensino privadas, isenes que se estenderam s prprias empresas, ainda que abrigadas sob o manto da filantropia. Foi aberta uma linha de crdito subsidiado pelo Estado para que os consumidores provenientes de famlias sem recursos pudessem adquirir a mercadoria educacional, por meio do Crdito Educativo. Reunidas, tais medidas impulsionaram de modo extraordinrio a expan-so privada. Em 1975, as privadas j dividiam meio a meio as matrculas com as pblicas e alcanando, no incio dos anos 1980, mais de 60%. A exemplo do Programa Universidade para Todos (2004), a justifi-cativa para tais medidas em favor da privatizao foi a necessidade de democratizao urgente do acesso educao superior, sem que com isso o setor pbli-co necessitasse ser ampliado, pois os poucos centros de excelncia bastariam para dar conta das neces-

sidades de pessoal formado com maior sofisticao cientfica. Desse modo, a exponencial privatizao da educao foi mais um dos acres frutos da ditadura empresarial-militar.

Resistncias e lutas

As resistncias das universidades, de seu movi-mento docente, estudantil e tcnicos e administrati-vos foram de crucial importncia nas lutas contra a ditadura, mas, como lembra Fernandes (1984), no podem ser vistas de modo desvinculado das lutas de-cisivas empreendidas pelos trabalhadores, desde as greves de Osasco em 1968 que inspiraram, inclusive, a organizao da Associao Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior (ANDES) em 1981 e, antes, das Associaes de Docentes. Flores-tan Fernandes (1984, p. 19) considerou o surgimen-to da ANDES como um bom salto na direo de uma maior articulao das lutas universitrias com as lutas por outro projeto de universidade afim aos anseios dos trabalhadores.

A expanso das universidades ainda que mui-to modesta frente s necessidades da juventude e a despeito do deslocamento crescente da demanda reprimida por vagas para as organizaes privadas possibilitou considervel ampliao do corpo do-cente das Federais, das Estaduais e das privadas e o nmero de estudantes saltou de pouco mais de 140 mil em 1964 para mais de 1,4 milho em 1985.

A partir das manifestaes da crise econmica do capitalismo mundial na segunda metade dos anos 1970, os docentes que lutavam contra a ditadura passaram a se organizar nas Associaes de Docen-tes com reivindicaes concretas, como: concursos pblicos; efetivao dos docentes que no puderam realizar concursos (em virtude da inexistncia dos

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mesmos e dos famigerados atestados de bons ante-cedentes ideolgicos fornecidos pelo DOPS que im-pediam qualquer docente inconformista, crtico ao modelo em curso, de se inscrever nos concursos); e, finalmente, unificao da carreira dos docentes das universidades autrquicas e fundacionais. De uma entidade associativa, a ANDES incorporava o mtodo de luta da classe trabalhadora, por meio de greves, manifestaes e congressos orientados por anlises de conjuntura crescentemente classistas, lu-tas que aconteceram ainda na vigncia da ditadura, que possibilitou crescente conscincia poltica em seus militantes, processo que levar a embates sobre a natureza sindical (centrada no trabalho) ou asso-ciativa (parte da sociedade civil liberal-democrtica), que, aps a Constituio de 1988, possibilitou a sua converso em Sindicato Nacional (1991).

Em meio reorganizao das lutas dos professo-res, estudantes e da prpria comunidade cientfica na SBPC, comearam a surgir os primeiros dossis sobre a ditadura. A Associao dos Docentes da USP publicou O livro negro da USP: o controle ideolgi-

cassados (readmisso automtica e imediata dos pro-fessores cassados), luta que foi ampliada posterior-mente na forma da consigna Anistia Ampla, Geral e Irrestrita!, enfrentamento necessrio tendo em vista as restries anistia pretendidas pelo governo Gei-sel, situao denunciada em 1978 pela ADUFRJ com apoio da Sociedade Brasileira de Fsica. Em 1978, a reunio anual da SBPC abrigou o encontro que pos-sibilitou a criao da Associao Nacional de Docen-tes das Instituies de Ensino Superior, formalmente criada em 1981 (Fernandes, 1990).

As fraturas entre os setores burgueses que apoia-ram a ditadura foram alargadas pelas lutas, manifes-taes, greves e jornais dos sujeitos que at ento esta-vam sob o controle repressivo e poltico da ditadura, eclodindo o Novo Sindicalismo e a reorganizao de movimentos camponeses, estudantis e urbanos. No incio dos anos 1980, percebendo o ascenso das lutas sociais, os setores dominantes lograram estabelecer como narrativa a dita teoria do autoritarismo que encontrou eco em meios acadmicos, nos meios de comunicao que at ento estavam a servio da dita-dura, entre brasilianistas e no MDB e que alcanou hegemonia sobre quais as tarefas da dita transio. Esse movimento possibilitou uma transio pelo alto, situao que manteve inalterados os principais pila-res da poltica educacional e de cincia e tecnologia. A heteronomia seguir como a marca do capitalismo dependente no cotidiano das universidades.

Na universidade, o contraponto frente ao suposto consenso sobre a necessidade de superar o autorita-rismo, via abertura democrtica, mas sem alteraes econmicas e polticas que fizessem o acerto de con-tas com o capitalismo dependente, passou a ser orga-nizado principalmente na ANDES, na UNE e na FA-SUBRA. O aparente consenso da reforma do governo Sarney, por meio do GERES, confirmava a fora da permanncia dos fundamentos do modelo estaduni-dense recontextualizado pela ditadura. Desde ento, uma tarefa histrica da luta dos trabalhadores resta em aberto: a reforma radical das universidades.

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As fraturas entre os setores burgueses que apoiaram a ditadura foram alargadas pelas lutas, manifestaes, greves e jornais dos sujeitos que at ento estavam sob o controle repressivo e poltico da ditadura, eclodindo o Novo Sindicalismo e a reorganizao de movimentos camponeses, estudantis e urbanos.

co na universidade (1978), os professores da UFMG publicaram o texto UFMG: resistncia e protes-to (1979) e a Associao de Docentes da UFRGS, o texto Universidade e represso: os expurgos na UFRGS (1979). A Associao de Docentes da UFRJ reintegrou os docentes cassados na Associao, em ato marcadamente poltico.

A luta dos docentes para lograrem representao prpria foi possvel, em grande parte, em virtude da massificao das reunies da SBPC a partir da segun-da metade da dcada de 1970, especialmente aps a incluso das cincias sociais e humanas. Nestas reu-nies fervilharam os debates e, a partir de 1978, en-trou na agenda a anistia aos cientistas e professores

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1. Capes - Situao atual da Ps-Graduao, Apndice B Sries Histricas. Disponvel em: < h t t p : / / p d i . u f a b c . e d u . b r / w p - c o n t e n t /uploads/2011/09/Plano-Nacional-de-P%C3%B3s-Gradua%C3%A7%C3%A3o-2011-2020-Volume-I.pdf>.

2. IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e IBAD Instituto Brasileiro de Ao Democrtica criados em 1961, objeto do clssico estudo de Dreyfuss: 1964, a conquista do Estado.

3. O nmero de professores cassados, levantados por Morel (apud Fernandes, 1990, p. 135), parcial. Muitos outros foram forados ao exlio, outros foram demitidos, pois tinham contratos precrios, como muitos na UnB, na UFRJ etc. As comisses da verdade, recentemente institudas nas universidades, podero atualizar essas informaes cruciais.

4. Algumas instituies e unidades foram severamente atingidas aps o AI-5. A Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP perdeu catedrticos como Florestan Fernandes e seus assistentes, tais como Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni (represso que alcanou outros pesquisadores com trabalhos vinculados a Florestan, como Miriam Limoeiro Cardoso, IFCS-UFRJ), e, tambm, na rea de filosofia, Bento Prado Jr. e Jos Arthur Giannotti. Antes, em 1964-65, sete professores da Faculdade de Medicina da USP foram afastados, como Erney Plessmann de Camargo, Thomas Maack, Michel Rabinovitch, Isaias Raw, Luiz Rey e Pedro Henrique Saldanha.

5. Marcos Pivetta, O impacto na academia Pesquisa FAPESP, Edio 218 - abril de 2014. Disponvel em: . Acesso em: 6 maio 2014.

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referncias

notas

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Resumo: O artigo apresenta reflexo a respeito da sobrevivncia da tortura no Brasil aps os 50 anos do golpe que deu incio ditadura militar, esta encerrada h 30 anos. Evidencia o vis autoritrio como parte do carter nacional manifestando-se na omisso ou apoio de parte expressiva da sociedade violncia policial e constituindo-se em obst-culo para o desenvolvimento de uma cultura cvica que enfatize os direitos e liberdades individuais.

Palavras-chave: Pau de Arara. Autoritrio. Tortura. Brasil.

A sobrevivncia do pau de arara

Clara Versiani dos AnjosProfessora da Universidade Santa Ceclia e Universidade Metropolitana de Santos - SP

E-mail: [email protected]

Em livro de 1993, Trajetria poltica do Brasil, o historiador Francisco Iglsias, justificando o recorte de tempo de sua obra (1500 -1964), argumentou que, a despeito da histria de tempo presente ou recente ser vlida, o processo que comeou com o golpe de 1964 representara uma inflexo tal, que para quem o houvesse vivido no havia chance de trat-lo de ou-tro modo que o excessivamente subjetivo e pessoal (IGLESIAS, 1993). Cinquenta anos depois, talvez seja possvel conduzir anlises menos carregadas de sub-jetividade e que estabeleam melhor o significado do golpe e da ditadura que a ele se seguiu, avaliando, por exemplo, aspectos da nossa histria que ajudaram a formar o vis autoritrio que no s deu a base de legitimidade necessria ao movimento e regime mi-litares, como legitima porque tolera, at hoje, o pau de arara.

Ao longo desses cinquenta anos, no foram pou-cos os intelectuais de diversas linhas de formao que pesquisaram, refletiram e discutiram sobre 31 de maro de 1964 e o regime que a ele se seguiu, fazendo avanar a pesquisa e o conhecimento sobre a nossa histria.

No foram poucas as obras que enfatizaram o evidente protagonismo dos militares e tambm a in-fluncia das multinacionais, do governo norte-ame-ricano, bem como do alto empresariado nacional na articulao do golpe, assim como de parcela impor-tante das classes mdias urbanas com sua participa-o emblemtica nas Marchas da Famlia, mas no s nelas.

Atualmente a nfase recai no apenas sobre a par-ticipao e articulao de tais setores para a derruba-da de Joo Goulart e de seu governo. O que alguns

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Pesquisa Datafolha, publicada em 30 de maro deste ano, registrou o apoio de 62% dos entrevistados democracia, mas revelou tambm que: 56% acredi-tam que melhor que o governo vigie a sociedade; 31% consideram que direitos humanos no devem valer para criminosos; 21% acham que a tortura deve ser praticada se for a nica forma de conseguir pro-vas; 68% consideram que a corrupo hoje pior do que no tempo dos militares; e para a segurana, 51% julgam que hoje pior (DATAFOLHA, 2014).

Outros dados, estes do relatrio da Anistia Inter-nacional publicado em maio de 2013, mostram que, no Brasil, denncias de torturas no sistema carcer-rio continuam sendo feitas; e assassinatos cometidos por policiais so registrados como autos de resistn-cia ou resistncia seguida de morte. Entre janeiro e setembro de 2012, somente nas cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, 804 pessoas foram mortas em

pretendem discutir o quanto a sociedade supor-tou o regime no sentido de formar a sua base de le-gitimidade.

O cineasta Renato Tapajs, diretor e escritor do filme Corte Seco, lanado este ano, citando o jor-nalista Alpio Freire, ex-militante de organizaes de esquerda durante o perodo da ditadura, considera que, assim como eles, o pau de arara tambm sobre-viveu (FERRAZ, 2014).

Este artigo pretende refletir sobre tal sobrevivn-cia, a da tortura, do ponto de vista do quanto cin-quenta anos depois do golpe, trinta anos do fim da ditadura, ela continua sendo legitimada por parte ex-pressiva da sociedade brasileira que, se no se mani-festa publicamente a favor dela, tampouco a condena, dada a tolerncia com relao aos mtodos emprega-dos pelas foras de segurana do Estado na represso aos de baixo .

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circunstncias dos chamados autos de resistncia. Mais dados da mesma organizao, e para o mesmo ano, revelam a ao de grupos de extermnio com a participao de policiais civis e militares nos estados do Rio de Janeiro, Gois e So Paulo. No Maranho, de 2007 a 2012, 94 foram os mortos sob deteno no estado (AMNESTY INTERNATIONAL, 2012).

Dados de 2010 do relatrio da pesquisa Atitudes, normas culturais e valores em relao aos direitos humanos e violncia, do Ncleo de Estudos sobre Violncia-NEV, da Universidade de So Paulo - USP, que abrangeu 11 capitais, mostram que: 31,7% das pessoas entrevistadas concordam totalmente com a frase O Judicirio se preocupa demais com os direi-tos dos acusados, sendo que outros 33,2% concor-dam parcialmente. A pesquisa ainda revela que 39% dos entrevistados concordam com a afirmao Di-reitos Humanos so direitos de bandidos.

A respeito da tortura, na mencionada pesquisa, 1/3 dos entrevistados acha que legtimo que a po-lcia faa uso de algum tipo de ao assim tipificada

para obter informaes de suspeitos de crimes como roubo ou trfico de drogas (CARDIA, 2012). No re-gime democrtico, apoiado pela maioria, o pau de arara sobrevive.

O objetivo de tal reflexo tem sido discutir com os alunos dos cursos de Administrao de Empresas, Cincias Contbeis e de Licenciatura em Histria o quanto tal inverso, alm de outros fatores, atrasa o avano da real fruio dos direitos institudos pela Constituio de 1988 entre ns. O quanto a falta de garantias, tanto para exerccio das liberdades indivi-duais quanto dos direitos sociais, faz com que viva-mos, at hoje, numa sociedade de cidados de pri-meira, segunda e terceira classes.

Ainda, o quanto este atraso responsvel por ou-tros, como ressalta Amartya Sem (2010), na medida em que h uma estreita ligao entre a garantia de tais direitos e o desenvolvimento.

A reflexo proposta neste artigo de natureza histrica, partindo da premissa de que nosso vis autoritrio que permitiu e permite a tolerncia da sociedade com aes de agentes do Estado tipifica-das como tortura constituiu-se historicamente como parte do carter nacional.

tambm uma reflexo que busca evidenciar a banalidade do mal. O quanto a nossa tolerncia cotidiana com as diferentes formas de opresso dos outros, a ignorncia da histria ou ainda a resistn-cia em encararmos a nossa participao, pela ativida-de ou omisso, permitiu/permite a sobrevivncia do pau de arara.

A formao do Estado brasileiro marcada pela permanncia do trao patrimonial, herdado da ad-ministrao portuguesa. A estrutura patrimonial de poder tambm havia na Amrica espanhola, o que explica, sob muitos aspectos, as semelhanas que podemos encontrar entre as sociedades latino-ame-ricanas no que se refere s limitaes da fruio do conjunto de direitos e de participao poltica; na di-ficuldade em adotar na vida cotidiana como princ-pio, fundamental para o exerccio pleno da cidadania e das liberdades na modernidade, o reconhecimento de ns mesmos e dos outros como iguais.

O Estado que surgiu com a Independncia apre-sentava, em comparao com o restante da Amrica ibrica, ainda menos mudanas com relao estru-tura pr-existente. O processo conduzido de forma negociada com os membros da elite mercantil por-tuguesa residente no Brasil, inegavelmente condu-zido pelo prncipe regente portugus, garantiu uma

A respeito da tortura, na mencionada pesquisa, 1/3 dos entrevistados acha que legtimo que a polcia faa uso de algum tipo de ao assim tipificada para obter informaes de suspeitos de crimes como roubo ou trfico de drogas (CARDIA, 2012). No regime democrtico, apoiado pela maioria, o pau de arara sobrevive.

A atuao da pesquisadora como docente em ins-tituies particulares de ensino superior, frente de disciplinas relacionadas Histria e Cincia Polti-ca, fez com que se dedicasse reflexo sobre o con-ceito de cidadania no Brasil. A perspectiva adotada a proposta por Jos Murilo de Carvalho, que, ao avaliar tal processo, constata a sua inverso entre ns se tomados como referncias o processo clssico proposto por Marshall (apud CARVALHO, 2001) e tambm o apresentado por Bobbio (1992).

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libertao moderada, de meio-termo.Neste Estado que se formou, o liberalismo, ideo-

logia fautora do princpio da igualdade e das liber-dades individuais, tampouco teve muito lugar. Como coloca Morse,

[...] Na Ibero-Amrica o liberalismo e a democracia no interagiram diretamente, sendo assimilados de forma independente, e em verdade intermitente, a uma cultura poltica que ambos podiam afetar, mas nenhum podia suplantar. Se na Anglo-Amrica a coexistncia de ambos levou adiante a antiga dialtica liberdade-ordem, na Ibero-Amrica eles foram integrados dialtica mais antiga entre clculo do poder e bem comum, entre poltica com arte ou cincia e o Estado como incorporativo e tutelar. [...] Nesse processo, o liberalismo europeu na Ibero-Amrica tornou-se, sob diferentes amlgamas, propriedade tanto de partidos ou regimes liberais quanto conservadores, e perdeu muitas das conotaes liberais adquiridas desde a poca de Locke (MORSE, 1988, p. 88-89).

Muito embora o liberalismo no Brasil, e na Am-rica Latina como um todo, tenha sido capaz de de-senvolver uma racionalidade modernizante, o que conduziu vinculao das economias locais s do Ocidente, ou mesmo ao surgimento de um certo ta-lento empresarial, a ideologia liberal que floresceu

aqui era, e parece ainda ser, compatvel com a hie-rarquia e a subordinao (Id. ibid., p. 92).

O autoritarismo enviesado neste processo de for-mao do Estado foi ainda mais fortalecido com os elementos positivistas. Estes acabaram por integrar a identidade da nao refundada com a Repblica.

Ainda que o positivismo tenha surgido na Frana como expresso da modernidade, de uma sociedade industrial e contempornea, na Amrica Latina, es-pecialmente no Brasil, sua viso orgnica encontrou correspondncia na primazia do Estado sobre o indi-vduo, na ausncia ou pouco desenvolvimento do in-dividualismo, como destaca Carvalho (1987), tpico das sociedades ibricas e herdado por ns. O positi-vismo aqui seduziu fortemente os militares (CARVA-LHO, 1990).

O Estado surgido depois da independncia e re-fundado na Repblica, correspondendo ao trao es-sencial da sociedade, era conservador. A sociedade foi seduzida pelas ideias de uma minoria que gover-nava para modernizar, mantendo as massas sob con-trole, o progresso com ordem.

O carter conservador da primeira Repblica pode ser avaliado, por exemplo, pela ausncia na Constituio de 1891 do direito educao, ou seja, a no incorporao pelo Estado deste compromisso. A educao, um direito social, de segunda gerao

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(BOBBIO, op. cit.), considerada essencial para o exerccio dos demais direitos e liberdades individu-ais. Fundamental para a formao e desenvolvimento da cidadania.

Apesar da reviso da vida nacional (IGLESIAS, op. cit, p. 233) depois da Revoluo de 30, o vis autoritrio permaneceu. Ainda que a Constituio de 1934 expressasse o reconhecimento de uma nova ordem social (Id., p. 236), tal reconhecimento disse respeito somente s cidades e aos trabalhadores ur-banos, mantendo a influncia e o poder dos grupos oligrquicos. O golpe de 1937, que deu incio fase autoritria nacional-populista, alimentou ainda mais a nossa natureza resistente aos outros.

A derrubada de Vargas e uma nova Constituio, a redemocratizao iniciada no governo Dutra, os avanos da indstria e urbanizao dos anos JK no nos tornaram politicamente modernos. O vis se manteve e deu o tom para o discurso moralista de Jnio Quadros, garantindo sua eleio.

A forte crise desencadeada quando da renncia de Jnio e a posse de Joo Goulart e a oposio de diversos setores ao governo instalado so evidncias do conservadorismo que alimentava o medo dos outros, dos de baixo e dos de fora.

no Brasil. Mas, por outro lado, produziram alguns avanos. Estes, no entanto, como enfatiza Carvalho (2001), deram-se, a exemplo do que ocorreu no Es-tado Novo, na ampliao dos direitos sociais. Mas os direitos polticos, assim como os civis, permanece-ram limitados.

O fim da ditadura militar no significou do pon-to de vista da cidadania uma profunda alterao no quadro, pelo menos no para a maioria. Mesmo com a recuperao dos direitos polticos e, aps 1985, dos direitos civis. A tortura s foi criminalizada em 1997.

A questo que neste ponto se coloca o quanto a inverso no processo de formao da cidadania no Brasil e o atraso no desenvolvimento dos direitos, so-bretudo os individuais, contriburam para a sobrevi-vncia do pau de arara.

No que se refere inverso, possvel relativiz-la, uma vez que consideremos as singularidades hist-ricas, ou seja, de que no h um nico caminho na direo da construo da cidadania e de uma socie-dade em que todos se reconheam como iguais em direitos. Ainda, mesmo em sociedades consideradas desenvolvidas sob este aspecto, que no conheceram a inverso no processo clssico de formao da cidadania, sociedades nas quais os direitos civis for-mam a base da pirmide, a intolerncia, a desigual-dade socioeconmica e poltica, a negao do outro, o preconceito, as manifestaes racistas, a violncia urbana e policial tm lugar em maior ou menor grau.

No entanto, entre ns, tais aspectos, sobretudo os que se referem violncia, assumem contornos trgi-cos. Dados do documento Homicdios e juventude no Brasil, divulgado em 2013 e distribudo pela Se-cretaria Geral da Presidncia da Repblica, mostram que, de 1980 a 2011, houve uma evoluo das taxas de homicdio de 132,1%. O relatrio mostra ainda que o homicdio a principal causa de mortalidade entre os jovens no pas (39,3%). Na comparao com regies em guerra, registrou-se aqui, entre 2008 e 2011, um total de vtimas de homicdios de 206.005, pouco abaixo do nmero de todas as mortes somadas nos principais conflitos armados do mundo, entre 2004-2007 (208.349 vtimas) (WAISELFSIZ, 2013). No caso dos nmeros divulgados pelo documento mencionado, no h a separao, no entanto, entre as motivaes, ou seja, os causados por disputas entre

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No entanto, entre ns, tais aspectos, sobretudo os que se referem violncia, assumem contornos trgicos. Dados do documento Homicdios e juventude no Brasil, divulgado em 2013 e distribudo pela Secretaria Geral da Presidncia da Repblica, mostram que, de 1980 a 2011, houve uma evoluo das taxas de homicdio de 132,1%.

O vis permitiu a formao da elite orgnica, apontada por Dreifuss (1981), que, alm dos repre-sentantes das multinacionais, militares e empres-rios, era integrada tambm por membros dos seto-res mdios, da Igreja e por intelectuais. Dentre os documentos pesquisados pelo autor, destaca-se, por exemplo, uma lista com nomes de lideranas sindi-cais que, entre 1961 e 1964, participaram de cursos de treinamento nos Estados Unidos.

Os 30 anos de ditadura produziram, sem dvi-da, atrasos no processo da formao da cidadania

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criminosos, os provocados por autoridades policiais ou os passionais. Mas dados de outros documentos reforam a percepo da persistncia e trgica pre-sena da violncia policial e da omisso da justia.

Muito embora o Brasil seja signatrio dos princi-pais tratados e declaraes internacionais a respeito dos Direitos Humanos, apesar dos protocolos e pro-gramas nacionais e regionais de combate tortura, como destacado tambm no relatrio do NEV, os passos tm sido lentos (JESUS; JESUS FILHO, 2012). Quando da Reviso Peridica Universal - RPU, ava-liao da ONU sobre a situao dos direitos humanos nos pases signatrios da Declarao, observou-se que, em 2012, com uma populao de detidos de 500 mil, 36% estavam presos provisoriamente, ou seja, sem julgamento (JESUS; JESUS FILHO, 2012, p. 95).

parte de o senso comum considerar que a fal-ta de educao ou os problemas do sistema pblico de ensino, ou as desigualdades econmicas, seriam os responsveis pela violncia, esta mencionada as-sim, quase como uma categoria abstrata de to geral, sem que se estabelea precisamente de onde, afinal, ela parte. No entanto, a reflexo proposta, sem des-considerar a importncia dos fatores mencionados, de que a violncia resultado tambm do nosso vis autoritrio, este, por sua vez, nascido do pouco desenvolvimento de uma cultura cvica em que nos vejamos como iguais.

No processo de inverso do alcance dos direi-tos que compem a noo moderna de cidadania destacado por Carvalho (2001), podemos verificar a ocorrncia no Brasil de uma nfase maior em direi-tos sociais, sobretudo durante governos autoritrios, ou mesmo o alcance de outros direitos como os po-lticos, por exemplo, sem que houvssemos alcana-do ou adquirido uma vivncia dos direitos civis. O surgimento ou afirmao posterior dos direitos civis no Brasil produziu uma noo de cidadania bastante ciente dos poderes que os direitos sociais conferem, mas numa sociedade pouco consciente das liberda-des que os direitos civis garantem.

Sen (2010), na anlise que faz da relao entre di-reitos humanos e desenvolvimento, mostra a inter--relao entre os direitos civis, os polticos e os di-reitos sociais. A alta intensidade de necessidades econmicas, segundo ele, aumenta a urgncia das

liberdades polticas, em funo: da importncia para a vida humana que direitos civis e polticos tm; o papel instrumental que tm no sentido de garantir aos indivduos a possibilidade de serem ouvidos; e o quanto contribuem para a compreenso das reais necessidades econmicas num certo contexto social. Ao analisar, por exemplo, os episdios de fomes co-letivas na Irlanda, em Bengala, na Etipia, no Sudo e na Somlia, Sen destaca o quanto uma ideia de su-perioridade cultural e/ou a assimetria de poder po-ltico, ou seja, o no reconhecimento do outro como igual e sua excluso da possibilidade de participao, conduzem indiferena, ou responsabilizao dos inferiores, dos de baixo, daquela gente pela si-tuao.

Nos ltimos anos, h uma profunda nfase e con-sidervel esforo na implementao de polticas p-blicas para reduo das desigualdades sociais. Para alguns, uma dcada de esforo, para outros, mais de uma, dependendo da lente poltico-partidria.

No entanto, os dados a respeito dos abusos dos agentes de segurana do Estado, as denncias de tortura, as prises sem julgamento e as mortes provocadas em autos de resistncia cedem pouco ou quase nada.

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Muito embora o Brasil seja signatrio dos principais tratados e declaraes internacionais a respeito dos Direitos Humanos, apesar dos protocolos e programas nacionais e regionais de combate tortura, como destacado tambm no relatrio do NEV, os passos tm sido lentos (JESUS; JESUS FILHO, 2012).

Ao final da obra na qual analisa a trajetria da ci-dadania no Brasil, Carvalho coloca o quanto a desi-gualdade corri a nossa vida cvica (Op. cit. p. 229). Treze anos depois dessa concluso, podemos obser-var, pelos dados dos documentos aqui mencionados, que ela continua corroendo.

Sem desconsiderar a importncia dos esforos na diminuio das desigualdades econmicas a partir de polticas pblicas, a esta altura da nossa histria, mais importante ainda o esforo da sociedade civil em produzir uma cultura dos direitos e liberdades, que incorpore, por fim, os outros. Tal cultura s

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se desenvolver na medida em que continuemos a nos encarar, a concentrarmo-nos menos nas cele-braes e voltarmos os olhos para o que criamos a partir de ento e o longo caminho a seguir.

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AMNESTY INTERNATIONAL. Informe 2012 O estado dos direitos humanos no mundo. Disponvel em: . Acesso em: 12 abr. 2014.BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.CARDIA, Nancy. Direitos humanos segundo a pesquisa Atitudes, normas culturais e valores em relao aos direitos humanos e violncia. In: 5 Relatrio sobre direitos humanos no Brasil So Paulo: NEV / USP, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 12 abr. 2014.CARVALHO, Jos Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.______. A formao das almas: o imaginrio da repblica no Brasil. So Paulo: Cia das Letras, 1990.______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a repblica que no foi. 3 ed. So Paulo: Cia das Letras, 1987.DATAFOLHA INSTITUTO DE PESQUISAS (So Paulo). Brasileiros preferem democracia, mas so crticos com seu funcionamento. 31 mar. 2014. Disponvel em: . Acesso em: 12 abr. 2014.DREIFUSS, Ren Armand. 1964: A conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe. 3. ed. Petrpolis-RJ: Vozes, 1981.FERRAZ, Lucas. Tortura protagoniza primeiro filme de fico de Renato Tapajs. Ilustrada, Folha de So Paulo, 27 mar. 2014. Disponvel em: . Acesso em: 12 abr. 2014.HOLANDA, Srgio Buarque de. Viso do paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil. So Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro).IGLESIAS, Francisco. Trajetria poltica do Brasil: 1500-1964. So Paulo: Cia das Letras, 1993.JESUS, Maria Goretti Marques de; JESUS FILHO, Jos. Uma dcada pouco: tortuosos caminhos para a consolidao de uma poltica de combate e preveno tortura no Brasil. In: 5 Relatrio sobre direitos humanos no Brasil So Paulo: NEV / USP, 2012. Disponvel em: . Acesso em: 14 abr. 2014.MORSE, Richard. O espelho de Prspero: cultura e ideias nas Amricas. So Paulo: Cia das Letras, 1988.SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. So Paulo: Cia das Letras, 2010.WAISELFSIZ, Julio Jacobo. Mapa da Violncia 2013: homicdios e violncia no Brasil. Braslia-DF: Secretaria Nacional da Presidncia da Repblica / Secretaria Nacional da Juventude, 2013. Disponvel em: . Acesso em: 14 abr. 2014.

No possvel voltar atrs e tambm no poss-vel apagar os anos de chumbo, porque s a lcida conscincia das coisas nos permitir afastar os de-mnios do presente (HOLANDA, 2000).

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O regime de chumbo e o Massacre de Manguinhos

Raza Tourinho LimaMestranda da Fundao Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz)

E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo resultado de um esforo para elucidar um pouco mais os impactos que a represso exercida pelos governos militares ditatoriais obteve sobre a sade brasileira, especialmente diante da coero dos pesquisadores do campo da Sade. Assim, abrangeremos apenas a primeira dcada dos 21 anos de regime militar, evidenciando as polticas de sade adotadas no perodo, a relao do Estado com as universidades e, por fim, o conhecido episdio do Massacre de Manguinhos, que, sem diretamente derramar uma gota de sangue, assassinou durante anos a pesquisa brasileira na rea de Sade.

Palavras-chave: Ditadura Militar. Pesquisa Cientfica. Sade. Massacre de Manguinhos. Comisso da Verdade da Reforma Sanitria.

Introduo

H uma tendncia do senso comum de dicotomi-zar certos fatos histricos, evidente na prpria termi-nologia conferida aos acontecimentos do passado. Em artigo opinativo publicado na edio brasileira do El Pas, Laurentino Gomes questiona o porqu de nos referirmos a 1889 como Proclamao da Rep-blica, a 1930 como Revoluo de 30 e a 1964 como Golpe Militar, uma vez que nas trs ocasies os militares subiram ao poder mediante o uso da fora, afastando as lideranas civis. Ele prprio ensaia uma resposta:

Em resumo, 1889 passou para a Histria como Proclamao porque a sociedade assim o quis, tanto quanto 1930 entrou para os livros didticos como Revoluo e 1964 como Golpe e Ditadura. De certa forma, essas nomenclaturas refletem tambm uma certa evoluo poltica da sociedade brasileira. No passado, intervenes violentas nas instituies e no processo poltico tendiam a ser aceitas de forma mais natural como ocorreu em 1889 e 1930. Isso j no aconteceu em 1964, ano em que, embora uma parte da sociedade civil tenha aceito e at instrumentalizado as foras armadas para a tomada do poder, uma outra parte, hoje majoritria, no sancionou a interveno (GOMES, 2014).

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O regime militar brasileiro, que vigorou entre 1964 e 1985, foi um perodo marcado por contradi-es. Ao mesmo tempo que escavou um profundo poo de retrocessos nas polticas de sade, atravs de uma perspectiva privatizante do setor e o sucate-amento do aparelho estatal, modernizou as universi-dades, criou centros de pesquisa e estimulou o desen-volvimento da cincia e tecnologia nacional.

A represso existente durante a ditadura militar, contudo, deixou marcas muito mais profundas do que o comumente citado saldo de torturas e homi-cdios. Meio sculo depois de sua implantao, a sociedade brasileira ainda possui uma compreenso incipiente da real dimenso da represso poltica e seus impactos sobre a cincia brasileira.

Descortinar as nuances ainda pouco estudadas

desse perodo da histria do Brasil fundamental para que se reconheam hodiernamente os resqu-cios que a ausncia de democracia cravou na socieda-de brasileira. Deste modo, este artigo resultado de um esforo para explicitar os impactos que a repres-so exercida pelos governos militares obteve sobre a sade brasileira, especialmente diante da coero dos pesquisadores do campo da Sade.

Para tanto, nos contentaremos em focar apenas a primeira dcada dos 21 anos de regime militar no Brasil, evidenciando as polticas de sade adotadas no perodo, a relao do Estado com as universida-des e, por fim, o conhecido episdio do Massacre de Manguinhos, que, sem diretamente derramar uma gota de sangue, assassinou durante anos a pesquisa brasileira na rea de Sade.

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As polticas de sade do regime

A primeira dcada da Ditadura Militar no Brasil (1964-1974) foi marcada pelo otimismo do Milagre Econmico. As altas taxas de crescimento da econo-mia, com o PIB apresentando mdias anuais de 10% de elevao, ajudaram a mascarar a represso e a cen-sura, alm de conquistar o empresariado e os seto-res mdios da populao, at ento condescendentes com a ditadura. A coero do regime se tornaria es-pecialmente forte durante os anos de chumbo, per-odo ps AI-5 (1968) no qual a tortura de presos pol-ticos foi mais aguda. O preo do milagre foi medido no s em violaes, bem como com o aumento do endividamento externo e da desigualdade social.

Escorel (2012) lista o que significou essa poltica em um panorama geral: O saldo dos dez anos de regime militar foi a concentrao de renda, o arro-cho salarial, com perda do poder aquisitivo do sal-rio mnimo, o aumento dos preos, a diminuio da oferta de alimentos, o colapso dos servios pblicos de transporte e de sade, enfim, as precrias condi-es de vida de uma grande parcela das populaes urbanas (p. 325-326).

Os retrocessos listados por Paim (2014) so refor-ados por Escorel (2012). Para ela, estes foram con-figurados nesse perodo por um modelo de sistema de estatal sade caracterizado pela duplicidade de responsabilidades federais no campo da sade, que mantinha um rgo voltado para a sade pblica (o Ministrio da Sade, basicamente reduzido pro-moo de campanhas preventivistas) e outro para a assistncia sade (a Previdncia Social, cujo mode-lo de ateno era destinado a uma pequena parcela da populao, assalariada e com registro em carteira profissional).

O fortalecimento do modelo previdencirio ocor-reu por meio da concentrao de recursos no setor, cujas despesas apenas com programas de sade che-gava a ser 16 vezes maior do que o oramento do Mi-nistrio da Sade em meados dos anos 70. Em junho de 1974, o Ministrio da Previdncia e Assistncia Social tornou-se o maior oramento da burocracia federal, s superado pelos recursos destinados pr-pria Unio.

A poltica implantada pela previdncia durante o perodo adota abertamente uma perspectiva priva-tizante da sade, com fortes incentivos criao de um complexo mdico-industrial voltado acumula-o do capital nas corporaes de medicamentos e equipamentos, alm do desenvolvimento de um pa-dro de prtica mdica orientado para a lucrativida-de (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986, apud ESCOREL, 2012).

O estmulo iniciativa privada percebvel no au-mento do nmero de leitos lucrativos, pagos pelo Es-tado: de 14,4% em 1960 para 44% em 1971. Enquanto isso, os demais cidados que no contribuam para a previdncia social obtinham ateno sade em cen-tros e postos de sade pblica, desde que integrassem o perfil dos programas (materno-infantil, controle de tuberculose, da hansenase etc.), em servios de sa-de filantrpicos, como as Santas Casas, ou em con-sultrios e clnicas privadas, desde que tivessem esse poder aquisitivo (p. 327).

Escorel et al (2005) explica que esse quadro gerou uma sade pblica ineficiente e conservadora, res-trita a campanhas de baixa eficcia. Com recursos escassos, que no chegavam a 2% do PIB, a sade pblica possua:

De acordo com o doutor em sade pblica Jairnilson Paim, professor de Medicina da Universidade Federal da Bahia (por entrevista), [...] Houve muitos retrocessos nas condies de sade da populao, especialmente entre 1964 e 1973, ao lado de um intenso processo de privatizao e mercantilizao da sade, estruturando um sistema de sade insuficiente, mal distribudo, descoordenado, inadequado, ineficiente, ineficaz, centralizado, corrupto e injusto.

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De acordo com o doutor em sade pblica Jair-nilson Paim, professor de Medicina da Universidade Federal da Bahia (por entrevista), esse perodo do regime militar foi o mais emblemtico para a rea da sade: Houve muitos retrocessos nas condies de sade da populao, especialmente entre 1964 e 1973, ao lado de um intenso processo de privatizao e mercantilizao da sade, estruturando um sistema de sade insuficiente, mal distribudo, descoordena-do, inadequado, ineficiente, ineficaz, centralizado, corrupto e injusto.

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um quadro de penria e decadncia, com graves consequncias para a sade da populao. Os habitantes das regies metropolitanas, submetidos a uma poltica concentradora de renda, eram vtimas das pssimas condies de vida que resultavam em altas taxas de mortalidade. Esse quadro seria ainda mais agravado com a represso poltica que atingiu o campo da sade, com cassaes de direitos polticos, exlio, intimidaes, inquritos policial-militares, aposentadoria compulsria de pesquisadores, falta de financiamento e fechamento de centros de pesquisa (p. 61).

Posteriormente, a situao s se agravaria. Ponte e Nascimento (2010) afirmam que os emprstimos concedidos a partir de 1974, com a criao do Fun-do de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), as empresas do setor de sade passaram a contar com financiamento estatal para construo, ampliao e compra de equipamentos. Com recursos da Loteria Esportiva, o FAS desembolsaria em cinco anos sete bilhes de cruzeiros (moeda de ento) para a sade, dos quais 70% foram destinados a hospitais particu-lares situados no eixo Rio-So Paulo.

Tais emprstimos, em sua maior parte, foram realizados em condies vantajosas para os empresrios, ou seja, com longos prazos de carncia, juros subsidiados e correo monetria abaixo da inflao. Instala-se, assim, um verdadeiro processo de drenagem dos recursos pblicos que passam a capitalizar as empresas de medicina privada, transformando a sade em um negcio bastante lucrativo. Nessa perspectiva, a prioridade conferida medicina curativa, o financiamento pblico e o

crescimento dos grupos privados no setor sade so as engrenagens de um processo em que a capitalizao e expanso da rede privada, por um lado, e a degradao dos servios pblicos e a sangria dos recursos do Estado, por outro, so faces da mesma moeda (p. 187).

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A censura tambm foi um fator estratgico na poltica de precarizao da sade pblica adotada durante o regime militar. Sob a justificativa de que a informao pode ser mal gerida e tornar-se pre-judicial, os censores da Polcia Federal no Paran emitiram um parecer desfavorvel ao livro didtico Programa de sade: projetos e temas de higiene e sa-de, em 1978.

Destinados a estudantes do ento segundo grau, atualmente ensino mdio, Reimo (2013) explica

Figura 1: charge de Carlos Xavier (Caco) sobre o crescimento da sade privada no Brasil

FONTE: Jornal da Reforma Sani-tria, n. 25, jan. 1991. Acervo do Programa Radis/Fiocruz.

Figura 2: charge de Aristides Dutra sobre a perspectiva da sade voltada ao lucroFONTE: Radis, n. 19, mar. 1994. Acervo do Programa Radis/Fiocruz.

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que o livro acreditava na participao ativa e criativa do aluno para buscar, gerir e avaliar conhecimentos, at sobre drogas. Foi justamente diante do teor do contedo sobre drogas que os tcnicos de censura apoiaram o parecer. Ao decorrer de trs pginas, eles explicavam que somente podero ministrar cursos antitxicos pessoas qualificadas pelo MEC e com car-tas de credenciamento fornecidas pelo referido Mi-nistrio, sendo assim perigoso liberar sua utilizao por professores no qualificados.

Figura 3: capa do livro Programa de Sade

Um caso de censura com possveis consequn-cias mais graves para a sade pblica, entretan-to, ocorrera anos antes, j sob o comando do general Ernesto Geisel. Foi em 1974, quando uma epide-mia de meningite menin-goccica assolou o pas. Sem preparo para enfren-

tar a epidemia e diante da impossibilidade da im-portao em curto prazo de uma grande quantidade de vacina, o governo Geisel (1974-1979) achou por bem abafar o caso, proibindo a meno epidemia. A censura funcionou enquanto a doena se man-teve nas reas mais carentes do Rio e de So Paulo. Contudo, a notcia vazou quando a meningite co-meou a assolar nos bairros nobres, ocasionando em grande presso pblica.

Para acalmar os nimos e responder aos anseios populares, o governo militar acordou a transfern-cia da tecnologia de produo do imunizante com o Instituto Mrieux e criou, dois anos depois, o Insti-tuto de Tecnologia em Imunobiolgicos Bio-Man-guinhos, na Fundao Oswaldo Cruz. O Instituto passou assim a produzir vacinas contra a meningite meningoccica A e C, com uma tecnologia baseada em polissacardeos que utiliza pedaos de micro--organismo e no a bactria inteira, produzindo as-sim menos efeitos colaterais (CCMS, s.d.).

Os dois casos, porm, ocorreram durante o Go-verno Geisel, perodo no qual os militares sinaliza-ram a possibilidade de uma reabertura democrtica, pressionados pelo amargor dos altos nveis de im-popularidade e insatisfao da populao em geral. Uma das primeiras medidas desse processo, que foi denominado de distenso lenta, gradual e segura, foi justamente o abrandamento da censura, embo-ra a abolio completa desta s viesse a ocorrer aps 1985 (ESCOREL, 2012).

O perodo Geisel mostrou-se aparentemente contraditrio: enquanto se esboava um projeto de distenso e liberalizao, a represso estava solta, aumentando a violncia e o nmero de desapare-cidos e mortos por tortura, diversificando o terro-rismo, lanando bombas em bancas de jornais, nas sedes de jornais alternativos e nos centros acadmi-cos, invadindo universidades (BRESSER PEREIRA, 1985 apud ESCOREL, 2012).

Vale ressaltar que a durao de mais de uma dca-da do processo de distenso e ausncia de uma rup-tura clara entre a ditadura e a democracia enraizaria uma certa naturalizao das polticas instauradas durante o regime, cujos resqucios so perceptveis ainda hoje a exemplo da forte presena dos planos de sade na sociedade brasileira e o consequente su-cateamento do Sistema nico de Sade, apesar da legislao avanada.

A lentido do processo de transio no Brasil foi um elemento fundamental da estratgia de institu-cionalizao do regime, para tornar constitucional o aparelho montado por meio dos atos inconstitucio-nais e permitir, legal e politicamente, a continuidade, em mdio prazo, do regime militar e, em longo pra-zo, do regime autoritrio-burocrtico militarizado (REIS; ODONELL, 1988; BRIGAGO,1985 apud ESCOREL, 2012).

Cincia e o regime: desenvolvimento e represso

A adoo do regime militar de uma perspecti-va que Silva (1990, apud MAIA, 2011; ESCOREL, 2012) denominou de modernizao autoritria comportou algumas de suas aparentes contradies:

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31 ANDES-SN n agosto de 2014