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Re v ista Brasileira d e Educaçã o 5 Introdução Quero agradecer o honroso convite de pro- nunci ar a conferência de abertura da X XI R eunião Anual da ANPEd e cumpri mentar a entida de pela oportuna escolha do tema “Conhecimento e poder: em defes a d a universidade pública” , numa das con- junturas mais críticas e desafiantes da universida- de brasileira e latino-americana. Dentro do tema que propus , “ Universida de e m pers pectiva: sociedade, conhecimento e poder” vou discutir algumas questões centrais da complexa e ampla problemática. De um lado, lançando um olhar retrospectivo sobre a unive rsidade para capturar, na dinâmica de sua história, alguns elementos-chave para a com- preensão da sua natureza institucional. De outro, enfrentando novos problemas que se colocam pa ra a instituição universitária em de- corrência d o des envolvimento cie ntífico e tecnoló- gico produzidos a pa rtir da revolução industrial. A articulação entre essas duas dimensões da problemática visa iluminar as reflexões sobre a uni- versidade da perspectiva da sociedade contempo- rânea. Espero q ue e ssa incursão histórica não nos afaste da refleo necessária sobre a situação crí- tica a que está submetida a universidade pública brasileira. É impe rioso, diant e da estrat égia d o go verno, não apenas manter uma fundamental atitude de re- sistência, mas pensar em proposições alternativas, política e academi camente articul adas, ca pazes de formular novos cenários fundados numa reflexão interdisciplinar que incorpore as contr ibuições sig- nificativas da literatura internacional. Para tant o, é ne ce ss ário d efi nir uma agenda no debate sobre a universidade brasileira que rompa com a iniciativa exclusiva do governo, que inva- riavelmente nos tem levado a reboq ue, e pensar em novas formas de orga nização d o debate e de formu- lação de propostas mobilizadoras da comunidade acadêmica e da socieda de ci vil orga nizad a (Trinda- de e Luce, 1996; Guadilla, 1996). 1 Uni ve r s i da de em pe r s pe c ti va Sociedade, conhecimento e poder Hélgio Trindade  Departamento de Ciência Política, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Conferência de abertura da XXI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998. 1  Este é o principal desafio e a linha d e ação do no ss o Centro Interdis ciplinar de Pes quisa para o Desenvolvimen-

Universidade Em Perspectiva

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  • Revista Brasileira de Educao 5

    Introduo

    Quero agradecer o honroso convite de pro-nunciar a conferncia de abertura da XXI ReunioAnual da ANPEd e cumprimentar a entidade pelaoportuna escolha do tema Conhecimento e poder:em defesa da universidade pblica, numa das con-junturas mais crticas e desafiantes da universida-de brasileira e latino-americana.

    Dentro do tema que propus, Universidade emperspectiva: sociedade, conhecimento e poder voudiscutir algumas questes centrais da complexa eampla problemtica.

    De um lado, lanando um olhar retrospectivosobre a universidade para capturar, na dinmica desua histria, alguns elementos-chave para a com-preenso da sua natureza institucional.

    De outro, enfrentando novos problemas quese colocam para a instituio universitria em de-corrncia do desenvolvimento cientfico e tecnol-gico produzidos a partir da revoluo industrial.

    A articulao entre essas duas dimenses daproblemtica visa iluminar as reflexes sobre a uni-

    versidade da perspectiva da sociedade contempo-rnea. Espero que essa incurso histrica no nosafaste da reflexo necessria sobre a situao cr-tica a que est submetida a universidade pblicabrasileira.

    imperioso, diante da estratgia do governo,no apenas manter uma fundamental atitude de re-sistncia, mas pensar em proposies alternativas,poltica e academicamente articuladas, capazes deformular novos cenrios fundados numa reflexointerdisciplinar que incorpore as contribuies sig-nificativas da literatura internacional.

    Para tanto, necessrio definir uma agenda nodebate sobre a universidade brasileira que rompacom a iniciativa exclusiva do governo, que inva-riavelmente nos tem levado a reboque, e pensar emnovas formas de organizao do debate e de formu-lao de propostas mobilizadoras da comunidadeacadmica e da sociedade civil organizada (Trinda-de e Luce, 1996; Guadilla, 1996).1

    Universidade em perspectivaSociedade, conhecimento e poder

    Hlgio TrindadeDepartamento de Cincia Poltica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Conferncia de abertura da XXI Reunio Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998.

    1 Este o principal desafio e a linha de ao do nossoCentro Interdisciplinar de Pesquisa para o Desenvolvimen-

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  • 6 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N 10

    Hlgio Trindade

    A imagem sugestiva de um reitor francs deque a universidade um dinossauro pousado emum aeroporto parece indicar que a esquizofreniada instituio universitria no mundo contempor-neo no se limita nem ao universo latino-america-no, nem resulta exclusivamente de um processo queatinge seu paroxismo na hegemonia neoliberal.2

    Recente livro analisa os desdobramentos daRevoluo Industrial, que

    se iniciou na produo material no final do sculo

    XVIII, atingiu a produo artstica, criando a inds-

    tria cultural e, atualmente, chega a esfera educacional.

    Este quadro recoloca a questo das relaes entre edu-

    cao e sociedade e exige da universidade uma refle-

    xo sobre sua identidade e sobre as perspetivas de

    interao com as instituies sociais, econmicas e

    polticas, inclusive repondo o problema da autonomia

    universitria (Leopoldo e Silva, 1996, p. 24).

    Se o debate universitrio posterior rebelioestudantil de maio 68 trouxe discusso o confli-to entre a idia da universidade liberal versusuniversidade funcional, neste final de sculo umdos desafios centrais da universidade latino-ame-ricana como estabelecer o equilbrio entre qua-lidade, pertinncia e equidade numa instituio quedeve formar para o desconhecido, como prope oreitor George Brovetto em suas reflexes sobre ateoria e prtica de um modelo universitrio emreconstruo.3

    Se lanarmos um olhar para a dimenso tem-poral da instituio universitria, podemos vislum-brar quatro perodos para os fins de nossa anlise.

    O primeiro, do sculo XII at o Renascimento, o perodo da inveno da universidade em plenaIdade Mdia. Nesse perodo se constitui o modeloda universidade tradicional, a partir das experin-cias precursoras de Paris e Bolonha, que se implantapor todo territrio europeu sob a proteo da Igrejaromana.

    O segundo comea no sculo XV, poca emque a universidade renascentista recebe o impactodas transformaes comerciais do capitalismo e dohumanismo literrio e artstico, que floresce nasrepblicas urbanas italianas e se estende para osprincipais pases da Europa do centro e do norte esofre tambm os efeitos da Reforma e da Contra-Reforma.

    A partir do sculo XVII, marcado por desco-bertas cientficas em vrios campos do saber, e doIluminismo do XVIII, com a valorizao da razo,do esprito crtico, da liberdade e tolerncia religio-sas e o incio da Revoluo Industrial inglesa, a uni-versidade comea a institucionalizar a cincia numatransio para os modelos que se desenvolvero nosculo XIX.

    O quarto perodo que institui a universidademoderna comea no sculo XIX e se desdobra atos nossos dias, introduzindo uma nova relao en-tre Estado e universidade, permitindo que se con-figurem as principais variantes padres das univer-sidades atuais.

    importante salientar que enquanto se desdo-brava na Europa a implantao de uma rede de uni-versidades em todas as suas latitudes da Penn-sula Ibrica Rssia e do sul da Itlia aos pasesnrdicos a universidade aporta nas Amricas.

    Os conquistadores transplantam para o Cari-be, no incio do sculo XVI, a primeira universida-de inspirada no modelo tradicional espanhol e ascolnias norte-americanas da costa Atlntica, apsenviarem seus filhos, entre 1650 e 1750, para estu-dar nas universidades de Oxford e Cambridge, co-piam o modelo dos colgios ingleses adotando-os,

    to da Educao Superior (CIPEDES), cuja vocao a deser um centro internacional de pesquisa numa perspectivacomparativa, compartilhada por especialistas de vrios ho-rizontes disciplinares e que estejam comprometidos com umareflexo aberta, crtica e criativa sobre os grandes proble-mas da educao superior no presente e os seus desafios nofuturo. Homepage: www.ilea.ufrgs.br/cipedes/

    2 O mais recente trabalho sobre a reestruturao dauniversidade francesa intitula-se Pour un modle europendenseignement suprieur, 1998. Ver tambm estudo com-parativo entre universidades francesas e alems feito por doissocilogos das organizaes: Friendberg e Musselin, 1989.

    3 Ver Brovetto.

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    Universidade em perspectiva

    a partir de 1636, em Cambridge (Harvard), Filadl-fia, Yale, Princeton e Columbia (Benjamin, 1964).

    Cabe observar que h um padro marcamentediferenciado no ensino superior da Amrica Lati-na. Na Amrica espanhola, a universidade se im-planta logo aps a conquista e, at fins do sculoXVII, existe uma rede de 12 instituies de norte asul do continente. A primeira de 1538, em SantoDomingo, na Amrica Central; em 1613 funda-da pelos jesutas a sexta universidade, situada emCrdoba, na Argentina. O modelo espanhol trans-plantado no somente o da velha Universidade deSalamanca, mas sobretudo o da nova Universida-de de Alcal, atual Complutense, e at fins do s-culo XVII domina o padro tradicional das facul-dades de teologia, leis, artes e medicina.

    No Brasil, a universidade se institucionalizaapenas no nosso sculo, embora tenha havido es-colas e faculdades profissionais isoladas que a pre-cederam desde 1808, quando o prncipe regente,com a transferncia da Corte para o Brasil, cria oprimeiro curso de cirurgia, anatomia e obstetrcia.A universidade tempor, na expresso de LuizAntnio Cunha, somente se organiza tardiamente,a partir da dcada de 20 de nosso sculo. Comoobserva Ansio Teixeira (1989, p. 98), o Brasil es-teve fora do processo universitrio quando o temaprincipal do debate, na sculo XIX, era a novauniversidade, devotada pesquisa e cincia.

    A universidade medieval

    A partir do sculo XII a universidade inven-tada e se institucionaliza apoiada no trabalho doscopistas e tradutores, que preservaram grande partedo legado greco-cristo para formar clrigos e ma-gistrados. Em sua fase urea, esta se organiza atra-vs do modelo corporativo (Universitas scholariumet magistrorum), em torno de uma catedral (AlmaMater), abarcando vrios domnios do saber, como:teologia, direito romano e cannico e as artes.

    A corporao de professores ou estudantes a base da nova instituio, enquanto o termo stu-dium significava o estabelecimento de ensino supe-

    rior. Da ser da essncia da instituio universit-ria medieval o corporativismo, a autonomia e a li-berdade acadmicas.

    A nova instituio estrutura-se, originariamen-te, atravs das corporaes de professores (Paris) oude estudantes (Bolonha), e as repblicas de es-tudantes estrangeiros, organizadas por pas de ori-gem, que chamavam-se naes (Verger, 1990, p.19-69). Havia uma significativa circulao de alu-nos (ingleses, alemes, franceses, italianos, espa-nhis e portugueses) e de professores entre os di-ferentes centros. Inclusive, certos conflitos deramorigem a novas universidades, tais como Orleans,Pdua e Cambridge, a partir de cises em Paris,Bolonha e Oxford.

    Os trs campos de formao que marcam aorigem das universidades medievais so sucessiva-mente a teologia (Paris), o direito (Bolonha) e a me-dicina (Montpellier, sob a influncia de Salerno eda cultura rabe).

    A universidade medieval se constitui de duasformas, ou espontaneamente (consuetudine) ou porbula papal ou imperial. Segundo alguns analistas,aqui termina a fase espontnea da criao das uni-versidades e elas passam a ser o produto de estra-tgias de papas ou imperadores. Como as univer-sidades enfrentavam conflitos com os poderes lo-cais da Igreja ou do governo, sucessivos papas ouimperadores comearam a atribuir privilgios suniversidades para preservar sua autonomia.

    A expanso das universidades d-se ao longodos sculo XII e XIII na Frana (Toulouse), Ingla-terra (Oxford, Cambridge) e Itlia (Siena, Pvia,Npoles), Espanha (Salamanca, Valencia, Vallado-lid) e Portugal (Coimbra). Com a criao da Uni-versidade de Valladolid, o rei Afonso, o Sbio, es-tabelece a primeira legislao universitria elabo-rada por um Estado (DIrsay, 1993, t. I e t. II).

    O que se pode resgatar do modelo medieval uma concepo de instituio universitria com trselementos bsicos: centralmente voltada para umaformao teolgico-jurdica que responde s neces-sidades de uma sociedade dominada por uma cos-moviso catlica; com uma organizao corpora-

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  • 8 Jan/Fev/Mar/Abr 1999 N 10

    Hlgio Trindade

    tiva em seu significado originrio medieval; e pre-servando sua autonomia em face do poder polticoe da Igreja institucionalizada local.

    A universidade renascentista

    Desde o sculo XV, as sociedade europias vi-vero sob o impacto de transformaes que come-am a mudar o perfil da universidade tradicional,atravs de um longo processo de transio para auniversidade moderna do sculo XIX.

    O epicentro da Renascena a Itlia do Quat-trocento e Cinquecento sob a impulso das rep-blicas de Veneza e Florena dos Mdicis e dos Pa-pas. O desenvolvimento das universidades de Flo-rena, Roma e Npoles e da Academia da Neo-Pla-tnica sero centrais para o fim da hegemonia teo-lgica e o advento do humanismo antropocntrico.

    Se na Itlia a ruptura com a Idade Mdia explcita na arquitetura, escultura, pintura e litera-tura, para alm dos Alpes o incio do Renascimentoser mais disperso e a ruptura com a Idade Mdiase far de forma mais lenta.

    O humanismo no atinge com mesma fora aUniversidade de Paris, que se mantm fiel s suasorigens, mas o acontecimento mais marcante sera fundao do Collge de France por Franois I(1530), sob o signo dos novos tempos.

    A universidade que realiza essa transio parao humanismo sem romper a tradio medieval Louvain (1415), situada no encontro entre a civili-zao francesa e a alem. Torna-se um importantecentro do renascimento literrio na Europa, que vaiinfluir nas universidades inglesas, primeiro em Ox-ford e depois em Cambridge, onde Erasmo de Rot-terdam ensina grego e se doutora em teologia.

    O humanismo literrio penetra tambm nasuniversidades alems e, apesar da resistncia de Co-lnia, ser importante em Viena e Basilia, mas so-bretudo em Erfurt e Wittenberg.

    Um trao novo, porm, que aparece na evo-luo da universidade alem no sculo XIX , como desaparecimento do feudalismo, o controle pro-gressivo das universidades pelos poderes dos prn-

    cipes. Essa tendncia, iniciada no sculo XV e con-cluda no incio do sculo XVI, estabelece um dospadres da universidade europia: so instituiesdoravante vinculadas ao Estado e este processo seacentuar com a Reforma protestante.

    A Reforma e a Contra-Reforma introduziramum corte religioso radical entre as universidades. Areforma protestante luterana, com seus desdobra-mentos calvinistas e anglicanos, rompe com a he-gemonia tradicional da Igreja e provoca uma rea-o contrria atravs da Contra-Reforma. A vidaintelectual do sculo XVI ser marcada por essesdois vastos movimentos que determinam o futuroda Europa.

    A ao de Lutero a partir de Wittenberg, nocentro geogrfico da Alemanha, se espalha por to-do o territrio (salvo a Baviera e a Bomia), geran-do as primeiras universidades desde 1544 (Leipzig,Tbiguen, Marburg, Knigsberg e Jena). A divisodos protestantes, porm, favorece a reao do ca-tolicismo, especialmente por meio da Companhiade Jesus.

    A Contra-Reforma teve no Conclio de Trentoseu norte renovador que encontrou na Espanha for-mas variadas de inovao: o barroco, a mstica, afilosofia e a literatura nacional. A ao dos jesu-tas amplia o campo universitrio da contra-refor-ma na Alemanha, Frana, Pases Baixos e Itlia,especialmente com a criao da Universidade Gre-goriana, em Roma (1533).

    Para alm do humanismo renascentista, da Re-forma e da Contra-Reforma, o ltimo elemento a nova relao entre universidade e cincia, que terum novo impacto transformador na estruturao davida universitria.

    Universidade e cincia

    O sculo XVII foi marcado, sobretudo, pelasdescobertas da fsica, astronomia e da matemtica,enquanto no sculo do XVIII o avano foi predo-minante no campo da qumica e das cincias natu-rais. Na transio entre os dois sculos fundam-seas primeiras ctedras cientficas e surgem os primei-

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    Universidade em perspectiva

    ros observatrios, jardins botnicos, museus e la-boratrios cientficos.

    Com a criao das academias cientficas, in-tensifica-se a profissionalizao da cincias, fato quevai permitir sua insero nas universidades por meioda pesquisa.

    At o sculo XVII, o cientista no tem um pa-pel especializado na sociedade, mas a partir da de-sencadeia-se uma mudana profunda no sistema devalores e normas universitrias, reconhecendo-se,no sem conflitos, a legitimidade de uma atividaderelacionada com as cincias em geral.

    A entrada das cincias nas universidades alte-rarar irreversivelmente a estrutura da instituio,limitada anteriormente s cincias ensinadas nasfaculdades de medicina e artes sob a denominaode filosofia natural.

    A Itlia desempenhar um papel central nes-se processo. A presso fora da pennsula itlica eramenos forte, porque nem Kepler, nem Coprnicoeram acadmicos, e as cincias experimentais ain-da retardaro em quase um sculo sua insero nasuniversidades.

    Na Itlia, porm, as condies eram muito fa-vorveis para o desenvolvimento das cincias fsi-cas experimentais e da astronomia, com Galileu,professor de Pisa e Pdua (1592), ou do matemti-co Torricelli, na Universidade de Florena. Com oRenascimento artstico comea tambm a crescer ointeresse pelos estudos de anatomia em Pdua, Bo-lonha, Pisa e Roma.

    O desenvolvimento da universidade renascen-tista resulta de uma profunda transformao, apartir do sculo XV, decorrente da expanso dopoder real, da afirmao do Estado nacional e daexpanso ultramarina. A universidade, como ins-tituio social, haveria de se transformar abando-nando, mesmo nas que se alinham na Contra-Re-forma, seu padro tradicional teolgico-jurdico-filosfico. A universidade renascentista se abre aohumanismo e s cincias, realizando a transiopara os diferentes padres da universidade moder-na do sculo XIX.

    A universidade estatal

    O contexto societrio que engendra a univer-sidade moderna se faz sob forte impulso do desen-volvimento das cincias, do Iluminismo e do Enci-clopedismo, que, no plano poltico e social, encon-trar seu leito nos efeitos radicais da Revoluo de1789, dentro e fora da Frana.

    O sculo das luzes se inicia sob a influncia deNewton, que assegurar s universidades inglesasum avano cientfico proeminente. O movimentocientfico e experimental se difunde por todos ospases e universidades, desde a Universidade de Mos-cou, fundada em 1755, at a de Coimbra, renova-da pela reforma pombalina de 1772, passando pelaUniversidade de Gttingen, na Alemanha, sob a in-fluncia de Leibniz, pelas universidades de Upsa-la, na Sucia, Edimburgo, na Esccia, e Npoles eCatnia, na Itlia.

    A Frana ficar em atraso pela resistncia doracionalismo cartesiano, especialmente na Univer-sidade de Paris, embora as cincias experimentaisse desenvolvam em regies geograficamente perif-ricas: Estrasburgo, Reims, Montpellier, Caen e Pau.Apesar da resistncia da universidade, a Academiaevolui pela ao renovadora dos enciclopedistas.

    O fato relevante para a evoluo dos para-digmas universitrios que, com o Plano de umauniversidade russa, elaborado por Diderot para Ca-tarina II, todas as reformas das universidades pre-conizam estudos mais aprofundados de cincias na-turais e fsicas (DIrsay, 1993).

    Para alm das cincias que se institucionalizamnas universidades tradicionais e novas, se abre umpadro diferenciado na relao com o Estado.

    Por um lado, as universidades inglesas arti-culam-se com os colgios e dobram entre 1700-1750 suas anuidades, tornando-se acessveis apenas nobreza e alta burguesia, criando vnculos es-treitos com o Parlamento e mantendo-se fora dombito estatal (Benjamin, 1964).

    J na Frana, ao contrrio, os rendimentos dasuniversidades e liceus permitem a introduo doensino gratuito, autorizado em 1719, com a redu-

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    Hlgio Trindade

    o dos salrios dos professores, contra a qual seopem os enciclopedistas, temerosos da neglign-cia dos mestres. Com a expulso dos jesutas daFrana (1762), inicia-se o processo de estatizaodo ensino superior pela Revoluo e o Imprio.

    As universidades, pois, no seguem um modelonico e a histria da universidade, a partir do s-culo XVII, se confunde, em grande medida, com asvicissitudes das relaes entre cincia, universida-de e Estado. As novas tendncias da universidadecaminham em direo a sua nacionalizao, esta-tizao (Frana e Alemanha) e abolio do mono-plio corporativo dos professores, iniciando-se oque se pode denominar papel social das universi-dades, com o desenvolvimento de trs novas pro-fisses de interesse dos governos: o engenheiro, oeconomista e o diplomata.

    Aps a Revoluo Francesa, a universidadenapolenica rompe com a tradio das universida-des medievais e renascentistas e organiza-se, pelaprimeira vez, subordinada a um Estado nacional.Num contexto de hegemonia e de expansionismofrancs, Napoleo funda, em 1806, a Universida-de imperial, subdividida em Academias, que se con-figura de forma inovadora, designando um corpoencarregado exclusivamente do ensino e da educa-o pblica em todo o Imprio. Trata-se de umacorporao, mas uma corporao criada e mantidapelo Estado, tornando a educao um monoplioestatal. A universidade napolenica e suas Acade-mias se estendem aos Pases Baixos e Itlia (Ri-beiro, 1975, p. 51-88).

    A universidade napolenica torna-se um po-deroso instrumento para criar quadros necessriospara a sociedade e para difundir a doutrina do im-perador: a conservao da ordem social e a devo-o ao imperador que encarna, primeiro, a sobe-rania nacional e, depois, supranacional. O meca-nismo-chave o poder do governo de nomear osprofessores, assistido por um Conselho, porque oimperador quer um corpo cuja doutrina esteja aoabrigo das pequenas febres da moda; que marchesempre quando o governo dorme e que seja umagarantia contra as teorias perniciosas e subversivas

    da ordem social, num sentido ou noutro (DIrsay,1993).

    Com exceo do Collge de France, a Univer-sidade tornou-se um instrumento do poder imperial.Seu sistema de escolas primrias, colgios, liceus efaculdades profissionais (direito, medicina, cinciastcnicas), denominado Academia nas diferentes re-gies do Imprio, criou ainda as faculdades isola-das com diplomas equivalentes e a cole Normaleque se destinava formao de professores. O novosistema estatal napolenico foi eficiente na forma-o profissional, mas as cincias no tiveram a evo-luo da universidade prussiana de Berlim.

    O impacto da guerras revolucionrias e napo-lenicas afeta fortemente a Alemanha, provocandouma mudana profunda em suas instituies, inclu-sive universitrias. Com a ocupao francesa damargem esquerda do Reno, as universidades de Co-lnia, Mayence e Trier fecham e, depois, desapa-recem mais dezesseis universidades, dentre elas Er-furt. O Estado prussiano concentra seus esforos naUniversidade de Halle, mas com a derrota de Jenateve de renunciar a seus novos territrios. A Prssiaperde toda a sua base intelectual e a criao de umanova universidade se impunha.

    A concepo de uma universidade fundada so-bre o princpio das pesquisas e no trabalho cient-fico desinteressado associado ao ensino amadure-ce sob o impulso do Estado. Com a nomeao dosbio Humboldt, em 1809, para o Departamentodos Cultos e da Instruo Pblica do Ministrio doInterior, a nova universidade nasce da fuso com aAcademia de Berlim, garantindo a liberdade doscientistas e sob a proteo do Estado, da qual de-pendia seu oramento anual.

    O problema da educao nacional colocava-se de forma to central na Prssia, quanto para aFrana napolenica. A diferena era que, na ausn-cia do Estado-Nao, o Estado prussiano era o por-tador potencial da civilizao nacional. Humboldtdistinguia Estado e Nao, sendo a educao par-te da ltima, e a Universidade de Berlim foi conce-bida como o laboratrio da nova Nao e no ape-nas de um Estado territorial legado por Bismarck.

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    Universidade em perspectiva

    Ela se torna o centro da luta pela hegemonia inte-lectual e moral na Alemanha.

    O primeiro reitor da Universidade de Berlimfoi o filsofo Fichte. A nova universidade se or-ganizava no pelas faculdades isoladas napoleni-cas, mas de forma integrada, por meio das faculda-des de medicina, direito e filosofia. A hegemoniametodolgica do seminrio alemo, nascido emHalle e Gttingen, torna-se a pedagogia integrado-ra dos exerccios filosficos, histricos e orienta-listas, em que o sincretismo religioso preponderousobre o confessionalismo protestante ou catlico(DIrsay, 1993).

    O movimento iniciado com a Universidade deBerlim produz a recuperao progressiva das uni-versidades alems entre 1810 e 1820, dentro de umaconcepo de universidade que se estrutura pelaindivisibilidade do saber e do ensino e pesquisa,contra a idia das escolas profissionais napoleni-cas (Weber, 1989).

    Resta referir que a fundao da Universidadede Londres como uma universidade livre, em 1828,por um grupo de liberais, tem como resposta acriao do Kings College (Londres), em 1831, sen-do que Oxford e Cambridge se opem a que a no-va universidade seja constituda por carta real. Deum compromisso entre as duas partes, em 1836, seconstitui como corporao de direito pblico a no-va universidade de ensino e pesquisa sob a influn-cia de Berlim, que vai desencadear reformas nasduas universidades tradicionais em meados do s-culo XIX.

    Estabelecem-se assim as matrizes da universi-dade moderna estatal ou pblica, influenciando adinmica das universidades na Europa e nas Am-ricas, a qual at nossos dias traz para o centro dainstituio universitria as complexas relaes en-tre sociedade, conhecimento e poder.

    Sociedade, conhecimento e poder

    A complexa problemtica universidade, so-ciedade, conhecimento e poder tem seu pontocrtico nas novas relaes entre cincia e poder. Tan-

    to mudaram os paradigmas cientficos como suasrelaes com o Estado e a sociedade, a partir de suaeficcia em termos econmicos e militares. Da mes-ma forma, as universidades, inseridas na produocientfica e tecnolgica para o mercado ou para oEstado, tanto nas economias capitalistas como so-cialistas, ficaram submetidas a lgicas que afetaramsubstantivamente sua autonomia acadmico-cien-tfica tradicional. Esta a problemtica que vamosabordar nesta parte final de nossa exposio.

    Uma anlise histrica mais detalhada mostra-ria, por exemplo, que na Frana revolucionria,aps a fase em que os aristocratas do saber soperseguidos durante o Terror e a Academia de Cin-cias e a prpria universidade so fechadas, a cincia reabilitada. Um minuncioso livro sobre o perodo,do historiador da cincia Jean Dhombres (1989),comprova que nesse perodo se assiste ao nasci-mento de um novo poder. Nosso foco, porm, vaise restringir a essas relaes no ps-Segunda Guer-ra Mundial.

    Tanto nas sociedades industriais avanadasquanto nas universidades, a cincia e sua organiza-o tornaram-se um problema eminentemente pol-tico. A idia de que todo o saber eficaz , ao mesmotempo, poder, segundo Ladrire, muito antiga. Acincia perdeu a inocncia no massacre apocalpti-co de Hiroxima e, mais recentemente, com as in-quietantes perspectivas da militarizao do espao.

    Na sociedade moderna seria ingnuo imaginarque o sistema cientfico se organiza e se desenvol-ve de forma autnoma. O ideal da auto-organiza-o da cincia confronta-se cotidianamente com asinjunes da poltica cientfica governamental, sobpena de inviabilizar-se em funo do alto custo desua realizao.

    O fulcro do problema que hoje no se podefalar de cincia em abstrato, mas do que os homensfazem em nome da cincia, por meio dela ou visan-do seu desenvolvimento. E, na medida em que acincia tambm est submetida ao jogo do poder,transforma-se, segundo Habermas, no s num ins-trumento nas mos dos membros dos poderes eco-nmicos e polticos, mas tambm no invlucro ideo-

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    Hlgio Trindade

    lgico de todo sistema poltico avanado (Trinda-de, 1985, p. 2-5).4

    O que visam, em ltima instncia, as polticascientficas que se generalizam em todos os pasesseno colocar nas mos do Estado ou de empresasmultinacionais a definio de prioridades estratgi-cas e da alocao dos recursos financeiros que esta-belecem os parmetros da pesquisa cientfica e tec-nolgica? Torna-se imperioso reintroduzir a ques-to tica, seja sob a forma de uma tica do pesqui-sador, seja, sobretudo, de uma tica da comunida-de cientfica em todos os seus ramos a propsito dacincia, de sua utilizao e de sua responsabilida-de social.

    Em recente obra coletiva, Science et pouvoir,publicada pela UNESCO, Ferraroti (1996, p. 54-9) mostra como o quadro ideolgico-conceitualdo sculo XVIII da cincia tornou-se obsoletoe que a cincia e os cientistas esto freqente-mente a servio do poder constitudo [...], fazen-do evoluir a natureza do poder e dos que o exer-cem. A cincia e o poder tm uma influncia cres-cente sobre a fonte do poder e sobre as formas deseu exerccio.

    Dessa perspectiva, King, conselheiro do go-verno ingls e diretor-geral da OCDE, explicita es-sas novas relaes entre sociedade, cincia e poder.Chama ateno para o fato de que a atitude geralda opinio pblica diante da cincia oscilou en-tre a venerao dos mistrios da cincia e o desprezoem face do seu poder malfico.

    King destaca vrias fases na evoluo dessas no-vas relaes no ps-guerra: numa primeira fase, apsa crena num futuro construtivo e pacfico, as con-sideraes estratgicas gerais e a emergncia da guer-ra fria orientam em grande parte o esforo de pes-quisa e de desenvolvimento para o esforo militar.

    No final dos anos 60 uma nova fase se abre,marcada por uma expanso sem precedentes nospases capitalistas centrais e no Japo, e crescem os

    esforos para explorar as relaes entre cincia,tecnologia e produo. A dominao dos EstadosUnidos inquieta fortemente a Europa e a distnciatecnolgica pe perigosamente em risco sua com-petitividade. Apesar da ameaa nuclear e do fossoque abre com a periferia do sistema capitalista, atri-bui-se esse problema m orientao ou a apli-caes erradas da cincia.

    A terceira fase uma poca de desiluso comrelao cincia e tecnologia e os cientistas soconsiderados como instrumentos do poder militare econmico e insensveis aos graves problemas so-ciais e ecolgicos que os rodeiam. Esse desencan-tamento afeta tambm a indstria de alta tecnolo-gia, especialmente a multinacional, e o crescimentoconstante no domnio da pesquisa comea a dimi-nuir seu ritmo.

    A ltima fase, que se inicia nos anos 70 comos choques do petrleo, um perodo de fraco de-senvolvimento econmico e cheio de incerteza. Aindstria pesada entra em crise e o Japo se expandena indstria automobilstica e eletrnica, inician-do-se a era da microeletrnica, da automatizaoe da robotizao da sociedade ps-industrial. O ba-lano do autor de que a pesquisa cientfica apa-rece como hipergeradora de poder, capaz de aumen-tar ainda o poderio dos mais poderosos (King,1996, p. 66-77, 99).

    A dependncia da cincia com relao ao Es-tado mudou radicalmente no ps-guerra, especial-mente pela estreita interao entre cincia bsica ea cincia aplicada voltada para a utilizao civil oumilitar. Nos Estados Unidos, com a guerra da Co-ria e do Vietn, o eixo tecnolgico-militar maisavanado passou para a costa do Pacfico. Sem osfinanciamentos federais macios nas universidadesde maior prestgio, no teria havido o elo entre pes-quisa e alta tecnologia, especialmente na rea deinformtica, que viabilizou o fascinante terror dovideogame da Guerra do Golfo.

    O Vale do Silcio, com as mais avanadas em-presas de informtica concentradas entre Palo Altoe San Jos, na Califrnia, no teria se tornado o plomais dinmico do mundo sem financiamentos as-9 Ver tambm Trindade, 1996.

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    Universidade em perspectiva

    sociados guerra fria e conquista espacial. Recen-te livro sobre a Universidade de Stanford e a guer-ra fria tem um captulo intitulado Stanford vai guerra, no qual est descrita essa relao comple-xa entre a universidade, seus departamentos dasreas cientficas e tecnolgicas e os financiamentosgovernamentais para o desenvolvimento de pesqui-sas (Lowen, 1997).

    Como observa Federico Mayor, diretor-geralda UNESCO, o sucesso da cincia tornou as rela-es entre a comunidade cientfica e o Estado maiscomplexas que antes, mostrando a contradioentre os cientistas que dependem crescentementedos recursos do Estado mas no querem ser gover-nados por ele e os governos que querem planejar apesquisa e orient-la para os setores economicamen-te mais promissores (Mayor, 1996, p. 142).

    At aqui falamos das cincias duras e de suarelao com a sociedade e o poder. E o que se pas-sa nas cincias sociais e aplicadas?

    Este tema abordado por Brunner e Sunkel(1993), no livro intitulado Conocimiento, sociedady politica, no qual afirmam que os pesquisadoressociais recolhidos em seus domnios tradicionaisde produo departamentos ou centros de pes-quisa se encontram cada dia em maior desvan-tagem com relao aos analistas simblicos quecumprem as mesmas funes em novos domnios(consultorias privadas, assessoria legislativa, agn-cias de anlise e organismos internacionais).

    Trata-se de reconhecer o fato de que se estconstituindo um sistema que parece cada vez maisum contexto de mercado dentro do qual se organi-zam os servios desenvolvidos pelos analistas sim-blicos, no qual se valoriza o servio final maisdo que o conhecimento. Utilizando-se do conhe-cimento disponvel das cincias sociais, o que inte-ressa o servio que o manipula, operando os efei-tos prticos buscados.

    Os autores consideram que esse novo quadrode globalizao do mercado de analistas simbli-cos cria novas formas de financiamento em expan-so e torna obsoletas as formas que no passadopermitiam o desenvolvimento das universidades,

    uma vez que as atividades acadmicas de pesquisasocial acadmica parecem no ingressar no circuitoefetivo de sua utilizao e muito menos nas are-nas de deciso dos assuntos relevantes.

    Assim, as complexas relaes entre conheci-mento e poder interpenetram a sociedade contem-pornea em todos os nveis, da esfera pblica aomercado, recolocando uma questo central de na-tureza tica.

    O desafio da universidade

    Neste complexo contexto, o que se espera dauniversidade? Primeiro temos de ter conscincia deque, para alm do pblico e do privado, a prpriainstituio universitria est em crise. Pela primei-ra vez na histria, a crise da universidade a criseda prpria instituio multissecular na sociedadede conhecimento em que os mecanismos seletivosdesenvolvidos, de financiamento da pesquisa cien-tfica ou social, bsica ou aplicada, querem restrin-gir a universidade sua funo tradicional de for-mar profissionais polivalentes para o mercado.

    O Ataque universidade, ttulo de um clssi-co livro de um especialista ingls em educao su-perior sobre o poder exterminador da era Tha-tcher, confronta-se com a tradio de que a uni-versidade tem de cumprir sua misso pblicanuma sociedade em que o espao pblico se trans-nacionaliza.

    Uma das vertentes da viso neoliberal em edu-cao superior uma concepo terica sustentadapor alguns especialistas em economia da educaoe gesto do ensino superior ligados ao peridicoPolicy Perspective, da Universidade da Pensilvnia,e que resultou de um conjunto de seminrios inter-nacionais. A lgica do modelo de que a universi-dade deve responder a diversas necessidades quelhe so externas, tornando-se cada vez mais umaorganizao multifuncional, indispensvel e utili-tria. Este novo modelo internacional, vlido in-clusive para os Estados Unidos, deve ter uma fortenfase na graduao e ser cada vez mais seletivo napesquisa, fazendo com que a prestao de servios

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    econmicos e sociais faa parte em igualdade coma pesquisa de novos conhecimentos.5

    No livro Reinventando o governo, de Osbornee Gaebler, os autores apresentam o exemplo da Fa-culdade Tcnica Fox Valley em Wisconsin, com 45mil alunos, como a instituio pblica mais com-pletamente voltada para o cliente. A proposta dosautores de que a nica e melhor maneira de fa-zer com que os prestadores de servios pblicos res-pondam aos seus clientes colocar os recursos nasmos dos clientes e deix-los escolher. E concluemsem rodeios: se os clientes controlam os recursos,so eles que escolhem o destino e a rota (Osbornee Gaebler, 1994, p. 190).

    Essa a problemtica dentro da qual preci-so repensar as sadas para a universidade enquan-to instituio social e, de modo especfico, os dile-mas da universidade pblica brasileira.

    Sem fugir do debate brasileiro, devemos rom-per seus limites. O debate atual tem uma agendaproposta pelo governo e ficamos circunscritos auma atitude meramente reativa. A problemtica latino-americana e, mesmo nos pases com fortetradio de ensino pblico hegemnico, como M-xico, Argentina e Uruguai, a expanso do ensinoprivado um fato significativo, indicando uma novatendncia. Do privado sob a hegemonia do pbli-co (Daniel Levy, anos 70) passamos progressiva-mente para o pblico submetido expanso des-controlada do privado (Levy, 1980).6

    Por isto professores e pesquisadores compro-metidos com os destinos da universidade pblicabrasileira precisam se aglutinar em fruns, centrose ncleos fora do governo para pensar alternativase retomar a iniciativa de uma agenda poltica para

    o ensino superior. Um bom exemplo o Manifes-to Por uma reforma urgente para salvar a univer-sidade pblica, lanado por um grupo pluralistade pesquisadores (Vrios, 1998).

    Outra iniciativa da qual fao parte, juntamentecom uma rede de pesquisadores de vrias univer-sidade, o CIPEDES, nascido no bojo da revistaAvaliao e da conscincia de que preciso enfren-tar a questo de forma interdisciplinar e levando emconta a vasta literatura internacional que tem de-batido este problema crtico das sociedades atuais:o destino da universidade.

    Federico Mayor, concluindo o livro Science etpouvoir, dir que o conhecimento o poder, maso poder de criar, de prever e de evitar. Aplicar esteconhecimento para o bem da humanidade a sabe-doria. Conhecimento e sabedoria so as duas garan-tias de um futuro comum melhor (Mayor, 1996,p. 142, 177). Conclui citando esses versos profti-cos do poeta espanhol Otto Ren Castillo:

    Un dia los intelectuales apoliticos de mi pais seran

    interpelados por el hombre sencillo de nuestro pueblo.

    Se les preguntara sobre lo que hicieran

    cuando la patria se apagava lentamente

    como una hoguera dulce, pequea y sola.

    HLGIO TRINDADE professor titular do Depar-tamento de Cincia Poltica do Instituto de Filosofia, Cin-cias e Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Ex-reitor da UFRGS e ex-presidente da Associao dos Di-rigentes de Instituies Federais de Ensino Superior (ANDI-FES), realizou seu ps-doutorado na Universidade de Stan-ford, Califrnia.

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    5 Ver o peridico Policy Perspective, do Institute forResearch on Higher Education, Universidade da Pensilv-nia, especialmente os nmeros de 1993: The TransatlanticDialogue e Na Uncertain Terrain.

    6 Vide revista Avaliao, ano 2, v. 2, n 4 (6), dez.1997, que avalia a questo do pblico e o privado na edu-cao superior na Amrica Latina.

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