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Funcionalismo em Perspectiva 3

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Revista desenvolvida pelos alunos do curso de Letras, da Universidade Federal do Ceará (UFC), com a orientação da Profa. Dra. Claudete Lima.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Créditos: Fábio Marques

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

CADERNOS DE ESTUDOS

LINGUÍSTICOS DA UNIVERSIDADE

FEDERAL DO CEARÁ

Funcionalismo em perspectiva

Edição nº 3 – 2011.1

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4

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Coordenação e supervisão

Claudete Lima

Revisão

Adriana Campos Sisnando de Lima

Amanda Jozy Paiva Leite

Emílio Araújo da Silva Lídia Barroso Gomes

Mikaelly Paiva Damasceno Mônica de Souza Rocha

Tito de Andréa Machado

Tuyra Maria da Cruz Andrade

Vanessa Silva Almeida

Formatação

Camille Feitosa de Araújo Gabriela Roberto do Vale Alves

Maria de Fátima Lima Portela

Mayara de Souza Ferreira

Raquel Alves da Silva

Tarcianny Cavalcante Brito

Produção

Francisco Fábio Marques da Silva

Madjer Raniery de Souza Pontes

Samuel Freitas Holanda

Ilustração

Francisco Fábio Marques da Silva

Capa

Samuel Freitas Holanda

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5

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................... 6

SEÇÃO 1: ESTRUTURA ARGUMENTAL PREFERIDA .......................................................................... 7

A Estrutura Argumental Preferida (EAP) em editoriais e notícias dos séculos XIX e XX ......... 8

SEÇÃO 2: FUNÇÃO INTERPESSOAL .................................................................................................. 19

A função interpessoal em textos de opinião .............................................................................. 20

SEÇÃO 3: GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO PEGAR ...................................................................... 32

Um estudo sincrônico do verbo pegar ........................................................................................ 33

SEÇÃO 4: INDETERMINAÇÃO DO AGENTE ..................................................................................... 47

A indeterminação do agente no português oral do Brasil ........................................................ 48

Indeterminação do agente em português: estratégias e motivações discursivas ................. 60

SEÇÃO 5: MODALIDADE DEÔNTICA ................................................................................................ 70

A modalidade deôntica nos anúncios publicitários ................................................................... 71

SEÇÃO 6: PLANOS DISCURSIVOS FIGURA E FUNDO EM CORPUS LITERÁRIO ........................... 80

Hilda Hilst: autora de fundos ......................................................................................................... 81

Os planos discursivos figura e fundo no conto “Um Roubo”, de Miguel Torga ..................... 90

Planos discursivos nos contos de Clarice Lispector: uma análise funcional ......................... 101

Transitividade e os planos discursivos figura e fundo, nos contos “A máscara da morte rubra” e “O gato preto” de Edgar Allan Poe ............................................................................. 114

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

APRESENTAÇÃO

Como resultado das pesquisas realizadas na disciplina de

Linguística: funcionalismo, do Curso de Letras da UFC, no semestre

2011.1, apresentamos a 3ª edição dos Cadernos de Estudos Linguísticos

da Universidade Federal do Ceará.

Realizados ao longo quatro meses, o material em questão aborda

os principais conceitos ligados ao Funcionalismo, associados aos seus

principais teóricos, entre eles Halliday, Dik, Hengeveld e Givón.

Vale ressaltar que os artigos apresentados nessa revista vão muito

além do estudo executado em sala de aula, pois é o reflexo de inúmeras

leituras e releituras, longos debates, valiosos erros e satisfatórios acertos.

Deixamos aqui os devidos agradecimentos à professora Claudete

Lima pelo esforço e dedicação com que nos orientou nesse proveitoso

semestre. E esperamos que os resultados obtidos se façam úteis para os

demais estudantes, professores e todos que se dedicam à pesquisa

científica.

Editores

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 1

ESTRUTURA ARGUMENTAL PREFERIDA

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A ESTRUTURA ARGUMENTAL PREFERIDA (EAP) EM

EDITORIAIS E NOTÍCIAS DOS SÉCULOS XIX E XX

Maria de Fátima Lima PORTELA

Mikaelly Paiva DAMASCENO

Resumo: Este artigo tem por finalidade o estudo das preferências de uso dos vários

argumentos dos verbos na linguagem escrita, tanto do século XIX quanto do século XX,

em notícias e em editoriais. Para tanto, nos apoiaremos nas pesquisas de Antônio

(1998), Nepomuceno, Meira, Correia (2005), Ortega (2010) e Cunha (2007). Desse

modo, pretende-se demonstrar que a Estrutura Argumental Preferida (EAP) – sistema de

escolhas utilizadas pelo falante/escritor em determinada situação comunicativa - está

diretamente ligada ao gênero textual, por isso colocaremos em oposição os gêneros

―editorial‖ e ―notícia‖, com a pretensão de confirmar essa informação dada por Kumpf

(no prelo). Observamos, com esta pesquisa, que os verbos transitivos são mais

frequentes que os intransitivos, assim como os lexicais são mais frequentes que os não

lexicais, o que se evidenciou nos editoriais dos séculos XIX e XX, tanto com relação aos

argumentos A quanto O, enquanto os verbos com argumentos S lexicais são mais

frequentes em notícias dos séculos XIX e XX.

Palavras-chave: estrutura argumental; preferida; notícia; editorial.

INTRODUÇÃO

Para a Gramática Tradicional, transitividade é algo que está

intrínseco ao verbo, fazendo parecer que cada verbo teria uma

transitividade específica e fixa. Em uma situação comunicativa real,

porém, percebe-se que isso se torna falho na medida em que um mesmo

verbo pode apresentar diferentes transitividades nos mais diversos

contextos, a depender de determinados fatores. Dessa forma, para a

Gramática Funcional, o conceito de transitividade é algo bem mais

intricado, que pode ser influenciado por fatores sintáticos, semânticos e

até pragmáticos, ou mesmo pelos três concomitantemente.

A transitividade verbal pode fazer com que, numa oração, haja a

presença de um ou mais participantes, também chamados de argumentos

do verbo. Há, comprovadamente, uma estruturação preferida desses

argumentos por parte dos falantes de várias línguas. A esse fenômeno

linguístico dá-se o nome de Estrutura Argumental Preferida (EAP).

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Pode-se dizer que EAP (Estrutura Argumental Preferida) seja um

sistema de escolhas realizadas pelos falantes em uma situação discursiva,

em outras palavras, é uma preferência por determinada configuração

sintática dos elementos linguísticos no discurso.

Conforme uma pesquisa feita por Du Bois (2003), há, nas diversas

posições sintáticas, uma tendência sistemática na distribuição das formas

referenciais nominais que são utilizadas pelos falantes. Esses usam,

geralmente, sintagmas nominais plenos na posição de sujeito de verbo

intransitivo ou de objeto direto de verbo transitivo.

Assim, pode-se dizer que é tradicional analisar a estrutura da

oração como contendo um verbo, cuja estrutura argumental especifica,

gramaticalmente, quantos nomes vão acompanhá-lo e que funções vão

desempenhar na oração.

Já do ponto de vista cognitivo, a estrutura gramatical é ―a

configuração de predicação do verbo‖, ―a configuração de papéis nominais

em relação significativa com o verbo‖, em outras palavras, é ―uma

estrutura de expectativas desencadeada, acionada pelo verbo‖. Um

sintagma nominal pode ser realizado como um sintagma nominal pleno,

um pronome e outros; a escolha entre essas possibilidades é realizada por

fatores extragramaticais. Numa perspectiva formal, essas escolhas são

realizadas de forma livre pelos falantes. Mas, levando em consideração os

aspectos pragmático-discursivos, essa escolha não é exatamente livre,

pois a primeira menção a um referente no discurso é realizada,

geralmente, por um sintagma nominal pleno e as menções seguintes, por

um pronome ou anáfora zero.

Assim, segundo Du Bois (2003), essas alternâncias não podem ser

vistas sem consequências para o discurso.

Dutra utiliza a EAP com o mesmo caráter universal que Du Bois,

pois, para analisar dados do português, partiu de noções propostas por

ele. Uma dessas noções é a visão de que a EAP é um padrão recorrente do

uso da língua, uma generalização sobre o discurso que envolve a

gramática, mas que não pode ser reduzida a ela.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Apesar desse caráter universal, a estrutura argumental não

apresenta limites, pois, dependendo do gênero analisado, podemos

encontrar diferentes resultados, já que os gêneros podem influenciar nos

tipos de ocorrência de sujeito intransitivo, sujeito transitivo e objetos.

Nesse contexto, temos como hipótese que os verbos que são mais

recorrentes na linguagem escrita são aqueles que apresentam dois ou

mais argumentos, ou seja, os transitivos, e quando o sujeito ou o objeto é

lexical, mas tudo pode variar de acordo com o gênero e com a época em

que o texto foi escrito. A partir da análise feita com base em nosso

corpus, tal hipótese será confirmada ou negada.

1. METODOLOGIA

Coletamos, a fim de alcançarmos nosso objetivo principal, -

analisar os padrões dos argumentos verbais em situações reais de

linguagem escrita -, do Projeto VARPORT (Variação do Português), alguns

editoriais na primeira fase do século XIX (1822) e outros na quarta fase

do século XX (1975). Também foram coletadas algumas notícias da

primeira fase do século XIX (1808) e da quarta fase do século XX (1981).

Coletamos um total de cem ocorrências, sendo vinte de notícias do século

XIX, 27 de notícias do século XX, 23 de editoriais do século XIX e 30 de

editoriais do século XX.

A partir dessa coleta, fizemos o cruzamento de alguns dados e

os dispusemos em tabelas, de acordo com as categorias que nos eram

convenientes, no que se refere ao aproveitamento para a pesquisa:

ocorrência (frase analisada), número de argumentos, número de

argumentos novos, codificação do sujeito (sujeito transitivo ou

intransitivo, lexical ou não lexical) e codificação do objeto (objeto

transitivo ou intransitivo, lexical ou não lexical).

A Tabela 1 representa a quantidade de verbos utilizados de

acordo com o número de argumentos exigidos por ele. Assim, dividimos

em zero, um dois e três argumentos e colocamos a porcentagem de

acordo com a recorrência em cada texto.

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11

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A segunda tabela simula a quantidade de verbos que trazem

sujeito intransitivo, lexical ou não lexical. Igualmente a esta é a Tabela 3,

diferenciando apenas quanto à transitividade, já que esta representa os

verbos transitivos.

A Tabela é utilizada para demonstrar a ocorrência dos objetos, que

aparecem ora lexicais, ora não lexicais.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Estrutura Argumental Preferida (EAP), segundo Du Bois (1985),

―não é uma estrutura do discurso, mas uma preferência por uma estrutura

sintática‖ e o desenvolvimento das estruturas gramaticais dá-se,

eficazmente, à medida que elas são mais usadas pelos falantes.

A Gramática Funcional designa argumentos como os termos

obrigatórios, exigidos pelo verbo, e satélites, os que são complementos.

Para esses argumentos, Dixon (1979, apud ANTONIO, 1998) usa os

símbolos S, A (sujeito de verbo transitivo) e O (objeto de verbo

transitivo). Tais símbolos serão aproveitados em nossa pesquisa.

A transitividade dos verbos, para a Gramática Funcional,

diferentemente da Gramática Tradicional, é entendida como uma

propriedade não categórica, contínua e escalar, ou seja, é apresentada em

graus. É um fenômeno que envolve componentes sintáticos e semânticos.

Assim Hopper e Thompson (1980, apud Furtado da Cunha, 2007)

propõem dez parâmetros sintático-semânticos para a classificação do grau

de transitividade de uma oração: participante, cinese, aspecto,

pontualidade, intencionalidade, polaridade, modalidade, agentividade,

afetamento e individuação.

Nessa pesquisa, não nos deteremos à abordagem detalhada dos

graus de transitividade dos verbos, da diferença entre os componentes

sintáticos e semânticos e nem da oposição entre Gramática Funcional

(G.F) e Gramática Tradicional (G.T), pois esse não é nosso objetivo e sim

analisar a preferência das estruturas sintáticas por parte do emissor em

determinado textos. Para tanto, faz-se interessante apenas que

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

apreendamos e discutamos os conceitos e as definições imprescindíveis, a

fim de se seguir uma linha de raciocínio coerente necessária para uma

compreensão satisfatória das teorias que serviram de apoio ao nosso

trabalho.

Na EAP, podem-se observar duas perspectivas, que, por sua vez,

se subdividem em outras duas tendências, no que se refere ao uso dos

argumentos dos verbos: a primeira é a dimensão gramatical, como se

pode constatar com o que diz Ortega (2010):

As duas tendências pelas quais a dimensão gramatical pode ser

expressa se relacionam a presença ou a ausência de Sintagmas

Nominais plenos e lexicais na sentença. Uma delas e a ―Restrição

de um único argumento lexical‖, ou seja, a maioria das orações

apresenta apenas um argumento nuclear lexical. A outra tendência

e a ―Restrição de sujeitos transitivos lexicais‖, segundo a qual o

sujeito transitivo (A) geralmente e expresso por pronomes ou por

anáfora zero. Em outras palavras, e mais comum que o argumento

lexical não seja o (A); possa ser o (O), em uma oração transitiva,

ou o S, em uma oração intransitiva. O exemplo citado também

demonstra isso: no segundo período, usa-se ―Ele‖ no lugar de um

sujeito transitivo (A) lexical. (ORTEGA, 2010, p. 32)

E a segunda é a dimensão pragmática:

Na dimensão pragmática, uma das tendências e a ―Restrição de

um único argumento novo‖, de modo a evitar a inserção de mais

de uma informação nova por sentença. A outra tendência e a

―Restrição de sujeito transitivo dado‖, que diz respeito ao uso do

argumento novo na função de objeto ou sujeito intransitivo; nesse

caso, e difícil encontra-lo como sujeito transitivo. Dessa forma, fica

claro que a hipótese da EAP tem a distribuição sintática

determinada pragmaticamente pelo fluxo de informação

discursivo.

A estrutura argumental preferida é, conforme Pezatti (2002, apud

Ortega, 2010), ―um efeito do grau de pressão informacional‖, podemos

assim dizer que a manifestação de menções novas e lexicais nos papéis de

S e O, e não no de A, está relacionada à função de continuidade tópica.

Desse modo, torna-se satisfatório que haja uma referência em que se

utilize um pronome, algo que retome e substitua o sintagma nominal

pleno da forma pretendida.

Os argumentos na G.F são analisados com fundamento na teoria

de que o verbo corresponde à área central da oração e o nome à área

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

periférica, de modo que é a partir do verbo que se podem averiguar os

traços preferenciais que determinam a EAP, ―uma vez que é a semântica

do verbo que seleciona o número de seus argumentos e determina os

papéis que eles desempenham.‖ (ARAUJO e CUNHA, 2007, p. 29, apud

Ortega, 2010).

A respeito da função semântica do verbo, Cavalcante (n/d) diz que:

O argumento do verbo corresponde sempre a uma função

semântica, embora nada assegure exatamente a qual, de vez que

não há correspondência um a um. A diferenciação sintática é,

assim, mantida e reconstruída no nível semântico, sem que, com

isso, os dois ―módulos‖ de análise se misturem ou percam sua

identidade.

Pezatti, levando em consideração a valência dos verbos, os divide

em: verbos de dois argumentos (V2) e verbos de um argumento apenas

(V1), sendo que esta pode subdividir-se em duas outras categorias: de

verbos intransitivos não existenciais (V1~2), de estado, ação e processo;

e a outra dos verbos existenciais (V1e), ser, ter, existir, surgir (existência

positiva) e pifar, falhar, faltar (existência negativa).

3. ANÁLISE DO CORPUS

Ao analisarmos as orações que foram coletadas para o nosso

corpus, percebemos que há uma presença significativa de verbos com dois

argumentos, principalmente nos editoriais do século XX, conforme nos

mostra a Tabela1.

REFERÊNCIA

NÚMERO DE

ARGUMENTOS

NÚMERO DE

ARGUMENTOS NOVOS

0 1 2 3 0 1 2 3

NOTÍCIA

SÉCULO XIX

(20 ocorrências)

0%

25%

70%

5%

20%

60%

20%

0%

NOTÍCIA

SÉCULO XX

(27 ocorrências)

0%

19%

74%

7%

15%

67%

15%

4%

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

EDITORIAL

SÉCULO XIX

(23 ocorrências)

0%

9%

70%

22%

4%

74%

22%

0%

EDITORIAL

SÉCULO XX

(30 ocorrências)

0%

10%

90%

0%

23%

57%

26%

0%

Tabela 1: Porcentagem da quantidade de argumentos mencionados e novos

coletados no corpus

A partir dessa tabela, podemos notar que não há ocorrência de

verbos que não têm argumento, ou seja, todos trazem consigo sujeito e

objeto, ou apenas um dos dois. Temos também poucos verbos com um ou

três argumentos. Em contra partida, os verbos com dois argumentos e os

com um argumento utilizados pela primeira vez são os de maior número,

principalmente nos editoriais do século XIX (74%).

Nesse contexto, a EAP, segundo uma teoria proposta por Du Bois

(1985, apud Ortega, 2010), apresenta as seguintes restrições: ―evite mais

de um argumento nuclear lexical e sujeito transitivo lexical‖ e ―evite mais

de um argumento nuclear novo e sujeito transitivo como informação

nova‖.

Essa tabela confirma a seguinte restrição: ―evite mais de um

argumento nuclear novo‖, pois a menor recorrência de verbos com

argumentos novos foi a que os verbos têm mais dois de argumentos, de

modo que os de três argumentos só aparecem em notícias do século XX.

Enquanto os de zero e dois argumentos estão com valores aproximados,

apresentando uma variação de 15 a 26 %. A maioria dos verbos como

dois argumentos têm pelo menos um argumento novo, que é, geralmente,

um sujeito que se repete mudando apenas o objeto para dar continuidade

ao texto. Conforme Pezatti (2010, apud Ortega, 2010):

A estrutura argumental preferida é um efeito do grau de pressão

informacional, de modo que o aparecimento de menções novas e

lexicais nos papéis de sujeito intransitivo (Si) e objeto (O), e não

no de sujeito transitivo (St), está relacionado à função de

continuidade tópica, já que protagonistas humanos são

participantes centrais na maioria dos discursos. Sendo assim, é

Page 15: Funcionalismo em Perspectiva 3

15

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

suficiente uma menção mediante o uso de pronome, um afixo de

referência, dispensando a presença de um SN pleno.

A Tabela 2 representa os sujeitos intransitivos tanto lexicais quanto

não lexicais. Podemos perceber que há uma ocorrência muito maior na

utilização de sujeito intransitivo lexical do que não lexical, principalmente

em notícias do século XX, num total de 22% de 27 verbos coletados. E,

praticamente, não se verifica o uso de sujeito intransitivo não lexical,

apenas em editoriais do século XIX. Nesse caso, podemos perceber a

influência do gênero, pois os editoriais trazem menos verbos intransitivos

que as notícias.

REFERÊNCIA

SUJEITO INTRANSITIVO (S)

LEXICAL

SUJEITO INTRANSITIVO (S)

NÃO LEXICAL

NOTÍCIA

SÉCULO XIX (20 ocorrências)

20%

0%

NOTÍCIA SÉCULO XX

(27 ocorrências)

22%

0%

EDITORIAL

SÉCULO XIX (23 ocorrências)

4,3%

4,3%

EDITORIAL SÉCULO XX

(30 ocorrências)

6,7%

0%

Tabela 2: Porcentagem da quantidade de sujeito intransitivo (S) lexical e não

lexical coletados no corpus

A terceira tabela expõe o uso de sujeitos transitivos tanto lexicais

quanto não lexicais. Assim, como na tabela anterior, podemos observar

que há uma maior quantidade de ocorrência de sujeitos transitivos lexicais

que não lexicais, mas, desta vez, em editoriais do século XX. Os não

lexicais são pouco utilizados e não se verifica nenhuma ocorrência em

notícias do século XX, apenas nas do século XIX.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

REFERÊNCIA SUJEITO TRANSITIVO

(A) LEXICAL

SUJEITO TRANSITIVO (A)

NÃO LEXICAL

NOTÍCIA

SÉCULO XIX (20 ocorrências)

75% 5%

NOTÍCIA SÉCULO XX

(27 ocorrências) 77,8% 0%

EDITORIAL SÉCULO XIX

(23 ocorrências)

78,3% 13%

EDITORIAL SÉCULO XX

(30 ocorrências)

83,3% 10%

Tabela 3: Porcentagem da quantidade de sujeito transitivo (A) lexical e não

lexical coletados no corpus

Por fim, a Tabela 4, esta representa os objetos tanto lexicais como

não lexicais. Novamente, podemos observar que elementos lexicais XIX

são mais utilizados do que os não lexicais, principalmente em editoriais do

século XIX com 91 %. No caso do objeto, os não lexicais só foram

utilizados em notícias do século XIX.

REFERÊNCIA OBJETO LEXICAL OBJETO NÃO

LEXICAL

NOTÍCIA

SÉCULO XIX

(20 ocorrências)

70%

5%

NOTÍCIA

SÉCULO XX

(27 ocorrências)

70,4%

0%

EDITORIAL

SÉCULO XIX

(23 ocorrências)

91%

0%

EDITORIAL

SÉCULO XX

(30 ocorrências)

90%

0%

Tabela 4: Porcentagem da quantidade de objeto lexical e não lexical coletados

no corpus

Page 17: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessa pesquisa, considerando que nossa análise foi

executada a partir de um corpus em que se utiliza a linguagem escrita,

conseguimos comprovar que é mais comum a utilização de verbos com

dois argumentos, de modo que um deles seja novo, e é bastante rara a

utilização de verbos sem argumento. Nesse caso, não interessou o gênero

ou época.

Quanto ao fator lexical, pudemos confirmar que se utiliza mais os

verbos com argumentos lexicais, seja ele sujeito ou verbo. Nas orações

coletadas, os verbos lexicais são, em sua maioria, transitivos, já que,

conforme a pesquisa, estes se apresentam em maior número.

Algumas restrições que compõem a EAP puderam ser confirmadas:

―evite mais de um argumento novo por oração, A lexical e A como

informação nova‖. As orações com apenas um argumento novo

predominam no corpus. As orações com mais de um argumento novo, por

sua vez, têm um percentual muito baixo de ocorrências (abaixo de 30%).

O argumento A apresenta menor freqüência de ocorrências lexicais (83%

no máximo) que o argumento O, com 91% das ocorrências. Na introdução

de informação nova, o argumento A apresenta uma frequência mais baixa

de ocorrências do que os outros argumentos O.

Todavia, nem todas as restrições que compõem a EAP puderam ser

confirmadas. A restrição ―evite mais de um argumento lexical por oração‖

não foi confirmada, pois as orações com dois argumentos são as de maior

número, como está representado no esquema abaixo:

Notícia do século XIX: 13 ocorrências com verbo de dois

argumentos;

Notícia do século XX: 19 ocorrências com verbo de dois

argumentos;

Editorial do século XIX: 13 ocorrências com verbo de dois

argumentos;

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Editorial do século XX: 24 ocorrências com verbo de dois

argumentos.

Conclui-se, sem levar em consideração textos falados, visto que

não são de nosso interesse para esta pesquisa, que os verbos transitivos e

com dois argumentos são mais frequentes que os intransitivos, assim

como os lexicais são mais frequentes que os não lexicais, principalmente

nos editoriais dos séculos XIX e XX, tanto com relação aos argumentos A

quanto aos O. Já os verbos com argumentos S lexicais são mais

frequentes em notícias dos séculos XIX e XX.

REFERÊNCIAS

ANTÔNIO, J. D. A estrutura argumental preferida em narrativas orais e em narrativas

escritas. Juiz de Fora: Veredas: Revista de estudos linguísticos., v.3. p. 59-66, 1998.

FURTADO DA CUNHA, M.A.; SOUZA, M.M. de. Transitividade e seus contextos de uso.

Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. Capítulo 2. p. 29-52.

NEPOMUCENO, Arlete; MEIRA, Ana Clara G. A. de; CORREIA, Maria Risolina de F. R.

Um Breve Resumo da Estrutura Argumental Preferida. Belo Horizonte: Arlatorium,

2005.

ORTEGA, Érica Fernanda. Fluxo de Informação e Estrutura Argumental Preferida. In: A

Estrutura Argumental Preferida (EAP) em diversas sincronias do português: um

exercício de análise do verbo-suporte tomar em português arcaico (dissertação de Mestrado).

UEM, 2010.

Page 19: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 2

FUNÇÃO INTERPESSOAL

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A FUNÇÃO INTERPESSOAL EM TEXTOS DE OPINIÃO

Tarcianny Cavalcante BRITO

Resumo: Esse artigo baseia-se na Teoria da Valoração, de Martin e White, e busca

verificar através da linguagem como se dá o processo avaliativo em textos de opinião,

para assim, visualizar a função interpessoal nesses textos. As bases desse estudo são: as

funções Atitudinais: de afeto, de julgamento e apreciação; o Engajamento; e a Gradação,

que são propostas na teoria acima citada. Essas funções estão relacionadas a um

afastamento ou aproximação do leitor/autor na avaliação das coisas, pessoas, fatos e

também do próprio diálogo estabelecido com o seu ouvinte/leitor. Para a aplicação da

Teoria da Valoração, será analisada uma coluna da revista Época que se intitula: O mito

e o Troféu, publicado no dia 07 de maio de 2011, de Ruth de Aquino, jornalista, que

comenta sobre a morte do fundador e líder da associação terrorista, AL-Qaeda, Osama

Bin Laden.

Palavras-chave: valoração; avaliação; atitude; engajamento.

INTRODUÇÃO

A Teoria da Valoração, de Martin e White (2005), tem sido

largamente utilizada como base para muitos trabalhos nos quais a

avaliação é pertinente para o entendimento das funções interpessoais em

textos de opinião. Isso, porque ela investiga o modo como as pessoas

utilizam a língua ao adotar posições pessoais, em que os sentimentos, os

gostos, os valores (pessoais e sociais) e as emoções estarão diretamente

relacionados às posições de crítica, de elogio, de julgamento, de

aprovação ou desaprovação de uma ideia.

As colunas jornalísticas, que são extremamente variadas em suas

manifestações, constituem um universo de grandes possibilidades para

uma análise sob a ótica da valoração, pois, nelas, há uma mistura de

informações e opiniões, que algumas vezes, nos são mais visíveis, e em

outras, requerem uma análise mais esmiuçada, para perceber o modo

como se dão essas manifestações, daí o porquê de tantos estudiosos

debruçarem-se nesse tipo de gênero. Elas são definidas, segundo Rystrom

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21

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

(1993: 241) apud Cabral e Barros, como: ―artigo interpretativo ou

analítico, que pode revelar o ponto de vista do escritor, embora seu

primeiro propósito seja dar aos leitores informações e previsões, e talvez

levantar questões‖.

O presente trabalho tem por objetivo, ao lançar um olhar sobre a

coluna de opinião, verificar o modo como se dá a função interpessoal

nestas, ancorando a análise com base na Teoria da Valoração (MARTIN e

WHITE, 2005). Será analisada uma coluna da Revista Época, que foi

publicada online no dia 07 de maio de 2002, comentando o fato que tinha

ocorrido cinco dias antes: a morte do líder e fundador da organização

terrorista Al-Qaeda, Osama Bin Laden.

1. TEORIA DA VALORAÇÃO

A Teoria da valoração, proposta por Martin e White (2005) apud

White (2002), surgida a partir da linguística funcional, segundo os

autores, busca visualizar, através da observação da linguagem, como se

dá a valoração em textos.

Ela está dividida em três grandes domínios, de acordo com Martin e

White (2005) apud White (2002): Atitude, que por sua vez também se

subdivide em: afeto, julgamento e apreciação; Engajamento e Gradação.

1.1 ATITUDE

Positiva ou negativamente, as pessoas posicionam-se a fazer

avaliações sobre as coisas, as próprias pessoas, os lugares, os

acontecimentos etc. Esse tipo de posicionamento é denominado como

Atitude, que pode ser pessoal ou social e ainda ser afetado pelo grau de

aproximação ou afastamento de quem está avaliando com aquilo que está

sendo avaliado.

Segundo Martin e White (2005, p. 42) apud Pillon (2007): “atitude

é sistema de significados que mostra como sentimentos são expressos em

textos. Esse sistema trata de três regiões semânticas que se referem aos

sentimentos relacionados à emoção, ética e valores estéticos‖.

Page 22: Funcionalismo em Perspectiva 3

22

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

1.1.1 Afeto

O afeto é um tipo de atitude que está relacionado à maneira como

a pessoa que avalia se coloca afetivamente diante da pessoas e/ou coisas

avaliadas. É um posicionamento pessoal, que avalia positiva ou

negativamente as coisas segundo seus próprios sentimentos e sensações.

Martin e White, apud Cabral e Barros (2006), agrupam as emoções

em três conjuntos: segurança/insegurança, felicidade/infelicidade e

satisfação/insatisfação.

Linguisticamente, o afeto pode ser indicado, segundo Cabral e

Barros (2006), por: verbos da emoção (‗gostar‘, ‗odiar‘, ‗desanimar‘),

advérbios (‗infelizmente‘, ‗amavelmente‘), adjetivos (‗alegre‘, ‗aborrecido‘,

‗satisfeito‘) e nominalizações (‗satisfação ‗, ‗tristeza‘, ‗serenidade‘).

1.1.2 Julgamento

O julgamento é um tipo de avaliação social, em que, um conjunto

de valores, compartilhado por determinados grupos, será o norteador da

avaliação, visível na posição e/ou fala do falante/autor. Essa avaliação,

leva em consideração os conjuntos de normas sociais, os valores morais,

as crenças etc, em que está inserido o avaliador e a pessoa e/ou coisa

avaliada.

1.1.3 Apreciação

A Apreciação, assim como o Julgamento, também é um tipo de

avaliação em conjunto, mas aqui, o norteador será principalmente o valor

estético, pois a apreciação avalia as coisas, as composições, as estruturas,

os conteúdos, os trabalhos humanos. Também pode avaliar pessoas, mas

sob um olhar de objeto estético, de outra maneira seria confundido com o

julgamento.

1.2 Engajamento

O engajamento é uma espécie de diálogo existente entre o

autor/falante e ouvinte/leitor, que pressupõem conhecimentos de mundo

compartilhados e sugere, muitas vezes, a continuidade de temas já

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23

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

tratados. Como há essa aproximação do autor/falante com o

leitor/ouvinte, o primeiro usa termos e construções linguísticas que serão

recuperados e completados pelo segundo. Nesse diálogo, é traçado o

perfil do ouvinte/leitor e, a partir desse perfil, é esperado um determinado

posicionamento dele diante dos temas abordados.

1.3 Gradação

A gradação refere-se às marcas avaliativas, apresentadas no texto,

através das escolhas em uma escala: a gradabilidade dos significados

atitudinais, segundo Martin e White (2005) apud Pillon (2002). Essa escala

apresenta um grau que varia de menor para maior envolvimento.

2. ENFOQUE METODOLÓGICO: PRINCÍPIO DE COLETA E ANÁLISE

DOS DADOS.

O primeiro passo foi procurar em colunas de jornais temas bem

atuais em que pudesse ser verificada a função interpessoal do colunista.

Em seguida, foi escolhida uma coluna que tratou, após cinco dias do

ocorrido, da morte de um dos maiores terroristas do mundo e responsável

pelos atentados às torres gêmeas nos EUA no dia 11 de setembro de

2001: O mito e o troféu, de Ruth Aquino. Nessa coluna foi coletado o

corpus, que são frases e/ou palavras que deixam transparecer a posição

do autor. As frases coletadas foram organizadas e separadas de acordo

com a Teoria da Valoração em: Atitudinais: afeto, julgamento e

apreciação; Engajamento e Gradação. Com a análise nos resultados, foi

verificado o modo interpessoal como a autora se mostra em seu texto.

3. GÊNEROS JORNALÍSTICOS

Albertos, apud Bertocchi, define os gêneros jornalísticos como:

as diferentes modalidades da criação linguística destinada a serem

canalizadas por qualquer meio de difusão coletiva e com ânimo de

atender a dois dos grandes objetivos da informação de atualidade: o

relato de acontecimentos e o juízo valorativo que provocam tais

acontecimentos (ALBERTOS, 1992:213,392).

Page 24: Funcionalismo em Perspectiva 3

24

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

São considerados gêneros jornalísticos: a notícia, a crônica, o

editorial, a coluna etc. Para esse trabalho será relevante apenas a coluna

jornalística.

3.1 COLUNAS JORNALÍSTICAS

É uma das diversas manifestações do gênero jornalístico, que por

sua vez é definida, segundo Melo (2002), como: ―sessão especializada de

jornal ou revista, publicada com regularidade, geralmente assinada, e

redigida em estilo mais livre e pessoal do que o noticiário comum‖.

4. ANÁLISES

A análise, baseada na Teoria da Valoração, será feita em uma

coluna da revista Época: O mito e o troféu, publicado on-line no dia 07 de

maio de 2011, da jornalista Ruth de Aquino.

4.1 ANÁLISE DA COLUNA: O MITO E O TROFÉU

O mito e o troféu foi escrita pela jornalista e editora da sucursal

ÉPOCA no Rio de Janeiro, Ruth de Aquino, que mantém uma coluna

semanalmente (aos sábados) nas páginas on-line da revista. O tema

tratado nessa coluna diz respeito à morte do fundador e líder da

organização terrorista Al-Qaeda e responsável pelos ataques de 11 de

setembro de 2001 nos EUA, Osama Bin Laden, morto no dia 02 de maio

de 2011, em consequência de uma ação de inteligência entre o Exército

norte-americano e o governo do Paquistão, segundo o presidente dos EUA

Barack Obama.

A avaliação desta coluna será feita através dos parágrafos.

4.1.1 Primeira Parte

07/05/11

O mito e o troféu.

Osama está morto. Viva Obama! O acerto de contas foi americano. O

mundo se sentiu vingado num primeiro momento. Todos lembramos o

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25

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

O título ―O mito e o troféu‖, evidencia um julgamento negativo por

parte da autora em relação a Osama, uma vez que ele se tornou um mito,

ou uma lenda, ao praticar atos terroristas, como o do atentado de 11 de

setembro de 2011 aos EUA, onde morreram cerca de três mil pessoas. Ao

mesmo tempo, faz um julgamento positivo da morte dele ao compará-la a

um troféu (algo que merece ser ostentado como vitória).

Ao iniciar o texto afirmando a morte de Osama e logo após

louvando o presidente dos EUA, Barack Obama, tido como responsável por

essa morte, apresenta um julgamento explícito de contentamento por

essa morte, facilmente recuperado em: ‘viva Obama‘, ‘o mundo se sente

vingado‘, ‗não choramos agora pelo terrorista‘.

4.1.2 Segunda Parte

No segundo parágrafo, há, ainda mais fortemente, a presença do

julgamento explícito, e que parece ser geral, sobre a morte do líder da Al-

Qaeda. O julgamento é positivo em relação à morte do terrorista,

inclusive, é afirmado explicitamente com o fragmento de outro autor,

Ferreira Gullar, em que Ruth Aquino parece concordar: ‗acho ótimo matá-

lo‘. Para enfatizar que essa é uma opinião geral, a colunista, expõe as

frases: ‗essa foi a reação normal‘, ‗aliviados com o desaparecimento‘.

―Acho ótimo matá-lo. Quer prender para interrogar o quê? E os 3 mil

que ele mandou morrer?‖, disse nosso poeta Ferreira Gullar. Essa foi a

reação normal. Não só dos ocidentais. Muçulmanos, entrevistados no

mundo inteiro, se disseram aliviados com o ―desaparecimento‖ de

Osama bin Laden. Por um motivo simples: o terror e o fanatismo

distorcem o islã. Osama era o símbolo-mor de uma face cruel e

minoritária do islamismo, que prega o sacrifício de civis inocentes e o

suicídio de jovens mártires como tática de poder na guerra santa.

Carismático, filho de burgueses, Osama incomodava por comandar a

Al-Qaeda nas sombras.

que fazíamos quando, há quase dez anos, um atentado bárbaro matou

cerca de 3 mil inocentes nas Torres Gêmeas. Não choramos agora pelo

terrorista. Mas o que aconteceu na semana passada não enobrece a

democracia. A balbúrdia de contradições oficiais reforça o mito Osama e adia seu sepultamento no inconsciente coletivo.

Page 26: Funcionalismo em Perspectiva 3

26

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

4.1.3 Terceira parte

Na continuação da coluna, verificamos que a morte de Osama

gerou uma promoção na figura do presidente dos EUA, Obama. Há nesse

trecho, um julgamento positivo à atitude do líder americano e ao mesmo

tempo um engajamento (declaração) na frase: ‗deixou de ser um líder

tíbio‘.

4.1.4 Quarta parte

Nesse parágrafo, mais facilmente se percebe o diálogo presente na

relação de autor/falante com o leitor/ouvinte (engajamento), pois a autora

introduz o parágrafo com a pergunta: ‗podemos entrar em outro país para

capturar um terrorista sem autorização local?‘. Ao responder, ‗talvez sim‘,

a colunista apresenta uma posição de engajamento de considerar, pois a

proposição se mostra bastante plausível, já que ferir essa regra do Direito

Internacional, parece não ser tão ruim aplicada ao terrorista. Isso diz

respeito a um julgamento, pois carrega um pensamento moralizador e

social.

Barack Obama era candidato quando prometeu encontrar, prender ou

matar o inimigo que humilhava seu país. Cumpriu a promessa. Sua

popularidade deu um salto. Ele deixou de ser considerado um líder tíbio,

relutante. O povo americano é nacionalista, protecionista e imperialista.

Gosta de demonstrações de força, idolatra a bandeira. Pode ser uma

generalização – mas ela define a média da população nativa e dos

imigrantes naturalizados. Obama foi eleito por uma maré de decepção

econômica. Conquistou jovens e velhos, idealistas e desiludidos, de

ideologias diversas. Seu ótimo slogan ―Yes, we can‖ era vago o bastante

para ser completado da maneira mais conveniente a cada um. Sim, nós

podemos tudo?

Podemos entrar em outro país para capturar um terrorista sem

autorização local? Talvez sim, em raras exceções. Violar essa regra do

Direito Internacional parece mais aceitável do que abrigar um homicida do

porte de Osama bin Laden. Sua fortaleza murada ficava em Abbottabad,

uma cidade de classe média habitada por famílias de militares, a apenas

56 quilômetros da capital paquistanesa. Se um país – no caso o Paquistão

– posa de aliado, mas é suspeito de proteger um terrorista que prega

assassinatos em massa, seria crime ou cautela não alertar o governo de

Islamabad?

Page 27: Funcionalismo em Perspectiva 3

27

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

4.1.5 Quinta parte

Assim como no parágrafo anterior, a jornalística o inicia com o que

seria uma conversa com o seu ouvinte/leitor (engajamento) através de

perguntas, que ela mesma responde com base no julgamento moral. O

engajamento se mostra claro na voz textual de refutar: ‗moralmente,

não‘, ‗eticamente, não‘, ‗claro que não‘. Essas marcações não são em

função do terrorista e sim em função de uma moral social que não

permitiria isso.

Mas ao mesmo tempo em que nega um posicionamento que a

moral não permitiria, afirma outro: ‗ as imagens de Osama morto são de

interesse público‘.

4.1.6 Sexta parte

Podemos torturar presos para chegar ao terrorista? Podemos executar

o terrorista, mesmo que ele não ameace com uma arma? Podemos

jogar o corpo ao mar sem sepultá-lo? Moralmente, não. Podemos

censurar a divulgação da foto do morto? Eticamente, não. Podemos

confundir a opinião pública com uma mentira diferente a cada dia?

Claro que não. Podemos fingir que o mundo estará mais seguro e

melhor a partir de agora? Ninguém acredita nisso. Podemos dizer que

―a justiça foi feita‖? Sim, mas com desvios. As imagens de Osama

morto são de interesse público. A censura provoca mais danos que

benefícios. E a comunicação do Pentágono precisa ser disciplinada –

porque nem eles mesmos se entendem sobre o que realmente

aconteceu.

Entende-se a preocupação dos Estados Unidos em não acirrar a ira de

fanáticos ao exibir Osama morto. Não se entende por que os exímios

atiradores da tropa secreta da Marinha, conhecida como Seal Team 6,

precisaram desfigurar seu rosto a curta distância – ele poderia continuar um

cadáver apresentável, não? Entende-se que tenham preferido matá-lo a

prendê-lo para evitar que, detrás das grades, continuasse a exercer uma

liderança maligna. Entende-se que era melhor matar sem plateia do que

transformar em espetáculo a execução pública de um Osama condenado à

morte pela Justiça. Entende-se que era melhor não criar, com seu túmulo,

um local de culto, peregrinação e manifestações de ódio aos dois lados.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Inicia com um engajamento de declaração: ‘ entende-se a

preocupação‘, e depois afirma essa declaração com uma negação

(engajamento de refutar): ‘não acirrar a ira‘.

Carrega um julgamento (opinião social) ao longo do parágrafo ao

explicar que se entende o porquê te o terem matado ao invés de prendê-

lo, e de no terem feito sem plateia.

4.1.7 Sétima parte

Por fim a autora, Ruth de Aquino, se coloca contrária à opinião

(afeto) de Obama, quando esse diz que Osama não é troféu e nem

querem transformá-lo em mito, afirmando (engajamento de declarar) que

Osama Bin Laden já é um troféu e um mito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na Teoria da Valoração, foi possível concluir que, em

todas as partes do texto, O mito e o troféu, há uma maior frequência dos

recursos da Atitude, principalmente o julgamento, e o Engajamento.

Há a presença de verbos de afetividade, na voz do autor Ferreira

Gullar: ‗acho ótimo‘, usado para reforçar um julgamento de que a morte

de Osama foi boa para todos.

As personas textuais construídas no texto envolvem a autora de

coluna, que avalia eticamente a situação e a julga de acordo com esse

senso comum, o leitor, que parece partilhar da mesma opinião da autora,

o autor Ferreira Gullar, que se posiciona afetivamente feliz com a morte

de Osama e o presidente dos EUA, Obama, que mesmo tendo sofrido uma

promoção com a morte do maior inimigo dos EUA, nega que se deve

ostentar essa morte como um troféu.

―Osama não é um troféu. Não queremos transformá-lo num mito‖, afirmou

Obama, ao justificar a morte sem corpo. Osama bin Laden é um mito e um

troféu, não importa o que se diga agora. E seu desaparecimento no mar,

sem fotos, cercado de sigilo e contradições, só reforça a dupla aura que

Obama deseja evitar.

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29

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

REFERÊNCIAS

AQUINO, Ruth. O mito e o troféu. Época online. Fortaleza, 07 de maio de 2001.

Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EMI231344-

15230,00.html. Acesso em: maio e junho de 2011.

BERTOCCHI, Daniela. Gêneros Jornalísticos em espaços digitais. Universidade de

Minho. Portugal, 2002. Acessado em maio e junho de 2011 no endereço:

<http://www.bocc.ubi.pt/pag/bertocchi-daniela-generos-jornalisticos-espacos-

digitais.pdf>

MELO, J. M. Jornalismo Opinativo. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2002.

CABRAL, S.R.S;BARROS, N.C.A. Linguagem e Avaliação : uma análise de texto

opinativo.

Disponível em: <http://www.pucsp.br/isfc/proceedings/Artigos%20pdf/34ev_cabral_72

2a734.pdf.> Acesso em : maio e junho de 2011.

PILLON, Sameriene Lúcia Lopes. A formação de uma comunidade de leitores. 2007.

Dissertação (Mestrado em Letras-Área de Concentração de estudos linguísticos)

Universidade de Santa Maria, Santa Maria-RS, 2007.

WHITE, P. The handbook of pragmatics. Amsterdan; Filadephia: Jonh Benjamins

Publishing,2002.[ tradução de Débora de Carvalho Figueiredo].

Page 30: Funcionalismo em Perspectiva 3

30

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Anexo

O quadro a seguir esquematiza a análise realizada:

Atitude Engajamento Gradação

O mito e o troféu.

Julgamento

negativo implícito

Osama está morto.

Viva Obama!

Afeto e Julgamento

explícito Afirmação

Não choramos pelo

terrorista. Mas o que

aconteceu semana

passada não enobrece

a democracia.

Afeto e Julgamento

explícito Afirmação

“Acho ótimo mata-

lo”.

Afeto não autoral

positivo

Maior

envolvimento

Essa foi a reação

normal.

Julgamento

positivo

Maior

envolvimento

...”aliviados com o

desaparecimento”.

Julgamento

explícito positivo

Maior

envolvimento.

Ele deixou de ser

considerado um líder

tíbio, relutante. Julgamento

Engajamento por

declaração

Gosta de

demontração de

força, idolatra a

bandeira.

Apreciação

Talvez sim

Engajamento de

consideração

Menor

envolvimento

Moralmente, não.

Eticamente, não

Julgamento de

negativo

Engajamento de

consideração

Maior

envolvimento

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Claro que não.

Julgamento positivo

Osama não é um

troféu.

Afeto não autoral

negativo.

Maior

envolvimento

Osama é um mito e um

troféu.

Afeto autoral

positivo

Maior

envolvimento

Page 32: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 3

GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO PEGAR

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

UM ESTUDO SINCRÔNICO DO VERBO PEGAR

Amanda Jozy Paiva LEITE

Resumo: O verbo pegar tem sido muito utilizado no português brasileiro. Ele sofreu um

processo de gramaticalização, ou seja, perdeu seu sentido pleno e adquiriu aspectos

mais gramaticais, inserido também dentro do contexto da polissemia. O presente artigo

tratará de mostrar um estudo sincrônico do referido verbo, afim de verificar qual de suas

três construções (lexical, discursivo e aspectual) é mais recorrente nas escritas informais

do português brasileiro.

Palavras-chave: pegar, gramaticalização, ocorrências, polissemia, estudo sincrônico.

INTRODUÇÃO

Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo

inquestionável. A história da humanidade é a história de seres

organizados em sociedade e detentores de um sistema de comunicação

oral, ou seja, de uma língua. Dentro dessa perspectiva, a língua é

concebida como entidade social. Variável, dinâmica e heterogênea, a qual

está em constante processo de variação e mudança linguística.

De acordo com essa concepção de língua e linguagem, nos

focaremos no estudo sincrônico dos usos do verbo pegar, com o fim de

verificar os valores e graus de gramaticalização. O tempo verbal analisado

é o pretérito perfeito: peguei (1° pessoa do singular) e pegou (3° pessoa

do singular).

O uso do verbo pegar tem sido muito frequente no português falado

e escrito brasileiro, sob o qual assume significados diferentes em

contextos diferentes. Assim, podemos afirmar que tal verbo apresenta

caráter polissêmico e está presente nos contextos concretos - geralmente,

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

dão a ideia de movimento: a polícia pegou (agarrou) os bandidos - e

abstratos - ligados, geralmente, aos níveis cognitivos: não peguei

(entendi) bem o assunto da aula de hoje. O corpus deste trabalho se

adentrará na modalidade escrita informal em sites de relacionamento.

As construções com o verbo pegar podem ser realizadas de três

maneiras: pegar lexical, pegar discursivo e pegar aspectual.

1. PEGAR LEXICAL

Caracteriza-se estruturalmente por SN (compila um sujeito agente e

experienciador), V (verbo de ação) e SN (objeto e paciente). A construção

SN V SN assemelha-se à estrutura sintática e diverge dos valores

semânticos.

Observemos os exemplos (3), (4) e (5):

(3)- Imagine se eu colocasse mais... peguei o mesmo béquer...

(Diva, Corpus Discurso & Gramática- A língua falada e escrita na cidade

do Natal. pp.16)

(4)- Peguei a vassoura e taquei nas costas dele. (scrap de Orkut)

(5)- Quase que ele pega a vassoura e revida o ataque. (scrap de

Orkut).

Em (3) e (4), o sujeito está implícito (1° pessoa do singular do

pretérito perfeito) seguido de um objeto – béquer (3) e vassoura (4) e um

paciente ou objeto afetado dele (4).

Nestes dois casos, o peguei significa tomar para si, segurar o objeto

em questão dando uma ideia de movimento. Já no (5), o sujeito não é

mais oculto. O verbo coloca, na posição de sujeito, o pronome ele e o

objeto continua sendo vassoura.

Page 35: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Podemos afirmar claramente que os exemplos dados mostram uma

reunião do pegar lexical, que assume funções diferentes na sintaxe, mas

diferenciam-se na semântica e no contexto.

Um fator relevante a ser analisado é a ―ideia de movimento‖,

afirmado acima. Movimento significa o deslocamento de um corpo de um

lugar para outro. Sabemos também, que tal ação é comum a todos os

seres vivos. Porém, quando damos uma acepção e circunstância

linguísticas a esse nome, nos referimos aos seres humanos. Traugott e

Dasher (2005) referem-se à noção de movimento como algo que ajuda o

processo de gramaticalização. Heine (1993) vê o movimento como um

processo básico do homem.

A natureza e noção de movimento e pessoa perpassam as outras

construções do pegar.

2. PEGAR DISCURSIVO

Esse tipo de construção é concebido por dois verbos de ordem fixa:

V1 (verbo pegar) e V2 (verbo de ação ou dicendi).

Observemos os exemplos (6), (7) e (8):

(6)- Pegou e foi pênalti (fala de um jogador de futebol no twitter).

(7)- Eu peguei e falei que não queria mais nada com ele (scrap de

Orkut).

(8)- Acho na verdade, o amarelo já pegou faz tempo... (scrap de

Orkut).

Notemos que em (6) e (7), a conjunção e aparece entre V1 e V2,

embora as desinências modo-temporais sejam distintas entre os dois

casos e compartilham a mesma ocorrência e o mesmo sujeito, sendo uma

ordem fixa entre V1 e V2 em cada sentença. Nem sempre teremos a

preposição e entre V1 e V2, como é o caso do exemplo (8).

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Já sabemos da relação de movimento existente entre o pegar e a

pessoa (referente). O exemplo (7) denota exatamente essa ―ideia de

movimento‖. O que é movimentado é o discurso, como se existisse um

outro falante.

Em contrapartida, os verbos de ação indicam a ruptura com o

movimento, originando uma mudança situacional.

Afirma-se, com isso, apesar de abstrata, a noção de movimento é

presente, causando aproximação entre o referente e a situação em foco

através do verbo pegar.

3. PEGAR ASPECTUAL

Essas construções são alinhadas pela junção de V1 pegar (exerce

forma finita) e V2 (forma não finita). Essa construção também é

conhecida tradicionalmente de locução verbal com pegar em que o sujeito

sempre precede V1 (Sigiliano, 2008). Na referida construção, V1 pegar V2

é possível ou não haver as preposições a e para entre V1 e V2.

É importante destacar que a perífrase revela o começo inesperado

(movimento repentino) de uma ação que será realizada pelo verbo

principal – V2.

Vejamos os exemplos (9), (10), (11) e (12).

(9)- Não sabíamos o que fazer... a galera pegou a gritar de tanto

medo do assalto (scrap de Orkut).

(10)- Ele pegou para falar do assunto de que tinha me visto

entrando num motel... num carro preto. (scrap de Orkut).

(11)- Não porque Luís pegou e vendeu a casa... e ainda tão barata!

(scrap de Orkut).

(12)- Aí... eu peguei dançar a festa todinha. (scrap de Orkut)

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Nos quatro casos, é nítida a noção temporal, uma vez em que se

grita, se fala e se dança durante algum tempo. Uma pequena diferença é

encontrada em (11), pois o verbo principal vender expressa uma ação

acabada, a priori. Porém, ao analisarmos que antes de vender

concretamente a casa, houve todo o processo burocrático da venda. Com

essa visão, enxergamos a modalidade de tempo, expressa implicitamente

na sentença.

No pegar aspectual, o pegar pode assumir função gramaticalizada

do verbo auxiliar.

Sabemos que, no português brasileiro, se conjuga os verbos

auxiliares e os principais, geralmente vem no particípio, no gerúndio e no

infinitivo. Os verbos auxiliares completam os verbos principais e juntos,

formam locuções verbais.

No tocante à polissemia dessa construção, a ―ideia de movimento‖

pode ser a indicadora da marcação inceptiva presente no verbo, a qual

está intrisicamente ligada ao significado do verbo pegar.

Segundo Bybee (1985), a distinção mais comum encontrada nas

línguas é entre perfectivo (pontual ou momentâneo) e imperfectivo

(durativo ou contínuo). A autora afirma que os sentidos expressos pelas

construções com verbos auxiliares são mais comuns ligados à diferença

habitual/contínuo que a diferença perfectivo/imperfectivo. Outra afirmação

relevante da autora é em relação à observação, pois algumas vezes, a

fonte de um inceptivo é um verbo de movimento, o que confirma as

hipóteses sobre a polissemia da construção com pegar em Sigiliano

(2008) e Araújo (2011). Tal afirmação se faz válida, uma vez que o pegar

pode funcionar como marcados aspectual inceptivo.

Antes de nos adentrarmos no desenvolvimento do pegar lexical,

discursivo e aspectual, façamos um breve estudo sobre a

gramaticalização.

Page 38: Funcionalismo em Perspectiva 3

38

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Em se tratando de língua, existem pelo menos quatro tipos de

variações. São elas: diacrônica, diastrática, diamésica e diatópica. Um

caso muito particular da variação diacrônica é a gramaticalização,

processo em que uma palavra de sentido pleno assume funções mais

gramaticais. Portanto, gramaticalização é uma reivindicação do aspecto

instável da gramática que tende a se processar em aspectos abstratos,

conversacionais e à organização interna do texto.

(Martelotta, Voltre e Cezario, 1996) afirmam que a gramaticalização

envolve os níveis: cognitivos (tendem a passar elementos concretos para

elementos abstratos); pragmáticos (o objeto é fazer com que o ouvinte

entenda o novo sentido de uma determinada palavra na interação face a

face); semânticos (torna-se necessário o conhecimento dos interlocutores

no processo de mudança dos significados de origem) e sintáticos (o

processo de gramaticalização não ocorre somente por conta dos

contextos, mas também, pelos aspectos sintáticos).

O termo gramática passou a designar o conjunto de regularidades

decorrentes de pressões cognitivas e acima de tudo, pressões de uso. As

pressões cognitivas constituem o fato de a gramática apresentar um

aspecto mais regular, pois ela é consequência do modo como os humanos

interpretam o mundo e organizam mentalmente as informações

decorrentes dessa interpretação. Daí o motivo pelo qual a

gramaticalização ser uma reivindicação instável da gramática, ilustrada

acima.

Como vimos, a gramaticalização de uma palavra é feita

sincronicamente em relação às necessidades discursivas e /ou gramaticais

do sintagma nominal.

Nesta perspectiva, faremos um sincrônico do desenvolvimento dos

verbos pegar lexicais, discursivos e aspectuais.

Pode-se analisar diversos meios de pegar, que passa de uma

construção mais lexical a uma mais aspectual.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Kuteva (2001) revela que os auxiliares se desenvolvem a partir de

itens lexicais, sob os quais se originam num processo de gramaticalização.

Heine (1993) defende que ―o desenvolvimento de auxiliares envolve

construções inteiras e não somente uma palavra‖. É o que notamos nas

ocorrências com o pegar. O verbo pleno (pegar lexical, que significa

segurar, tomar para si) seguido por um objeto (complemento nominal),

passa a assumir marcação gramatical seguida de um verbo principal na

estrutura auxiliar resultante (pegar aspectual). Dessa maneira, o

desenvolvimento de auxiliares abrange uma mudança em que uma

construção verbo-nominal passa a ilustrar-se em uma construção

marcadora gramatical seguida de um verbo principal (Kuteva, 2001). É

exatamente essa representação do pegar que estamos abordando nesse

trabalho.

Heine (1993) cita dois processos importantes sofridos pelos verbos

lexicais ao se gramaticalizarem: a dessemantização (processo em que um

item lexical perde seu significado próprio e adquire funções gramaticais

ligadas ao uso) e decategorização (consiste em algumas propriedades

―perdidas‖ pelo verbo com a mudança de regulamento do mesmo). Dentre

essas propriedades, pode-se citar: o complemento verbal deixa de ser um

nome e se compõe na presença de um verbo não finito; o verbo adquire

posição fixa na sentença e não pode ser mais negado separadamente; o

complemento do verbo adquire morfossintaxe do verbo principal, etc.

Todos esses aspectos caracteriza o pegar aspectual. Como pôde ser

observado, essa construção provém da construção pegar discursivo, sob a

qual esporadicamente se assemelha às mais lexicais, embora contenha

características semelhantes com pegar aspectual, como a presença de V1

e V2 compartilhando um mesmo evento e sujeito.

Os aspectos e conceitos de gramaticalização acarretam na diferença

semântica do sintagma nominal. As construções discursivas e aspectuais

atribuímos às diferenças semânticas não só pelo uso, mas também, pela

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40

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

maneira de como as sentenças estão relacionadas entre si. Desse modo,

os verbos lexicais passam a ser discursivos e depois, lexicais.

Observemos os exemplos que se seguem:

(13)- Ele pegou o brinquedo do garoto... (scrap de Orkut)

(14)- Ela pegou e começou a falar rápido... (scrap de Orkut)

(15)- João pegou a falar e foi embora... (scrap de Orkut)

No pegar lexical (13), temos uma sentença simples, em que o pegar

denota uma ação concreta e toma para si o objeto, o brinquedo. O pegar

discursivo (14) compartilha o mesmo sujeito e complemento, porém nem

sempre isso acontece, como é o caso de (16) – Na verdade não sei o que

fazer... mandei ela calar a boca, eu peguei, eu bati e eu sai. (scrap de

Orkut)

Além disso, como se pôde observar neste artigo e na rápida

explicação sobre polissemia verbal, os verbos dessa construção se ligam a

outros (V2) que também apropriam-se de naturezas intrínsecas de

movimento entre referentes, caracterizando assim, um maior grau de

relacionamento semântico entre os verbos dessa construção. Já o pegar

aspectual (15) percebe-se que o grau de gramaticalização já se faz mais

presente e as sentenças não podem ser diferentes e nem tampouco,

separadas. Tal fato, forma a locução verbal e marca a auxiliaridade no

português brasileiro. Essa construção apresenta uma relação máxima

entre V1 e V2, cujo sujeito é o mesmo (V1 e V2) e a delineação temporal

de V2 é determinada pelo V1, indicando o aspecto inceptivo.

O corpus deste artigo foi coletado em sites de relacionamento, como

Orkut e Twitter. No geral, foram analisadas 75 ocorrências (25 de cada

construção) do verbo pegar, sob as quais correspondem às construções

lexicais, discursivas e aspectuais.

Page 41: Funcionalismo em Perspectiva 3

41

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Das 25 ocorrências do pegar lexical, constatamos 14 situações de

fala, em que o pegar sofreu alteração em seu significado pleno. Isso

mostra a produtividade e a importância de pegar que se faz presente em

diversos contextos semânticos e situações comunicativas de fala.

Ocorrências:

1-Você pegou alguma coisa do meu quarto?

2-Não peguei nas coisas dela pq ela naum gosta.

3-Eu peguei catapora.

4-O A polícia pegou os bandidos.

5-Essas sandálias pegou por aqui.

6- Peguei na mão dela.

7-Vc sabia que o Luis pegou a Alana?

8-Não peguei bem o assunto de hj da aula. Vc me ajuda?

9-Peguei a fita!

10-Ela não pegou o dinheiro q tava na sua carteira.

11-Peguei todas hj... kkkkk...

12-Eu peguei minha mulher com outro!!!!

13- Rafael não pegou seu texto.

14-Allan pegou a comida e jogou fora.

15-Eu peguei o gosto por ela.

16-Não peguei suas peças intimas.

17-Peguei uma gripe!!!

19-Na festa, ele naum pegou ninguem.

Page 42: Funcionalismo em Perspectiva 3

42

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

20-Essa moda pegou por aqui!

21-Não peguei nada do seminário de hj...

22-Renata não pegou uma micose por pouco!

23-Ela pegou AIDS.

24-Não peguei no seu celular!

25-Ela não pegou nos documentos.

Foram analisadas 25 ocorrências do pegar discursivo e encontramos

18 situações em que o pegar apontou para um grau maior de integração e

dependência semântica entre V1 e V2, sob os quais representam, juntos

um mesmo evento.

Ocorrências:

1- Peguei e falei q naum queria mais nada com ele.

2- Ela pegou e disse q estava tudo certo!

3- Allan pegou e cortou o mal pela raiz.

4-Amandine pegou e saiu de uma vez!

5-Ela pegou e foi pra casa.

6-Eu peguei e disse q amava ele.

7-Juliene pegou e aconselhou a garota.

8-Sabe o q ela fez? Pegou e traiu!!!!

9-Eu peguei e fui muito grossa com ele.

10- Fiquei com tanta raiva q peguei e dei na cara dela.

11-Aí ela pegou e disse que nunca mais falaria comigo.

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43

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

12-O amor mi pegou e fez da minha vida uma loucura.

13-Pegou e mi tirou do wink tu e muito corno manco mermu.!

Kkkkkk...

14-Aí Luís pegou e saiu na maior cara de pau.

15-Eu peguei e disse que não tinha mais volta.

16-Peguei e chorei muito com a decisão dele.

17-Ela pegou e vacilou feio comigo!

18-Ela pegou e atirou na pobe da cobra.

19-Eu peguei e eu falei eu vou ta certo?

20-Não peguei e não falei mais nada.

21-O amor me pegou e eu não descanso enquanto não pegar aquela

criatura.

22-A gripe me pegou e...selinho!!!

23- Pegou e foi pênaulti.

24-Peguei e nada haver com aquilo q tu tinha mi dito.

25-O bicho já pegou e você já se apaixonou!

Já as 25 ocorrências do pegar aspectual, 08 demonstraram que há

uma hipótese de que essa construção do pegar ainda se encontra em

processo de mudança à auxiliarização, pois apresenta as características

relatadas neste artigo com as construções auxiliares.

Ocorrências:

1-Ele pegou a falar mal dela.

2-Ela pegou para dançar.

3-Pegou e não falou comigo há mais de 3 anos.

Page 44: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

4-Peguei a passar perfume e gastei quasi todo.

5-Peguei a sair da sala.

6-Ela pegou a corta o cabelo da menina. Ela ficou p... de raiva.

7-Joaquim pegou a cochilar e acabou dormindo.

8-Lucas pegou a beijar a dona na festa... q loucura!!!!

9-Amanda pegou e foi dormir na casa de sua mãe.

10- qual o número da fila que vc pegou de mais alto?

11-Ana Cristina pegou e saiu do projeto.

12-A tinta não pegou e meu cabelo ta caindo cada veiz mais.

13-Ela pegou e ta criando um gatinho.

14-Eu peguei o estágio do colégio.

15-Peguei o vírus da colheita feliz!

16-Deu briga... só pq eu peguei o controle primeiro.

17-Ela pegou noijo dele depois da traição.

18-Peguei e fui dormir...

19-A mão dela ficou com tanta raiva que pegou e expulsou a própria

filha de casa.

20-Ela pegou e se apaixonou por outro.

21-Não peguei mais ninguém.

22-O médico disse que eu peguei um tipo de ameba intestinal por

isso que eu fui internada.

23-Peguei uma substancia de porção e pensei vou mi matar...

24-Eu peguei o taxi de madrugada!!

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

25-Hj eu peguei vc ajoelhada posso saber o motivo?

Tabela (1): Comparativo do pegar lexical, discursivo e aspectual:

Ocorrências

analisadas

Ocorrências

encontradas

Porcentagem

Lexical 25 14 56%

Discursivo 25 18 72%

Aspectual 25 08 32%

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que, o verbo pegar, em nosso estudo sincrônico,

apresenta características das mais lexicais às mais aspectuais. Dentro

dessa perspectiva, a construção discursiva é a mais frequente, dentre as

outras. Isso deve-se ao fato de os verbos dessa construção se ligarem a

outros (V2) que também apresentam, categorias intrísecas de movimento

entre referentes. Desse modo, nas situações de escritas informais se

sobressai o pegar discursivo. O trabalho abordou, de maneira satisfatória,

todas as ocorrências, características e os resultados das três construções.

Se colocarmos tais resultados em uma escala de recorrência, teremos o

pegar discursivo em 1° lugar, o pegar lexical em 2° e o pegar aspectual

em 3°, dentro do contexto de escrita informal, vale ressaltar. No tocante

ao pegar aspectual, supõe-se que ele ainda está num processo de

auxiliarização, devido ao fato da baixa porcentagem de ocorrências

encontradas.

Este artigo desenvolveu apenas um pequeno estudo sincrônico que

relaciona a mudança semântica do pegar e seus aspectos de

gramaticalização. É necessária uma análise mais profunda a respeito

desse assunto para que seja confirmada a prosposta de auxiliarização do

pegar aspectual e de maior freqüência do pegar discursivo em situaçõe de

falas informais.

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46

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

REFERÊNCIAS

BYBEE, Morphology: a study of the relation meaning and form. John Benjamins

publishing company: Amsterdan/Filadélfia, 1985.

HOPPER, P. & TRAUGOTT, E. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge Iniversity

Press, 1993.

KUTEVA, T. Auxiliation. An enquiry into the nature of grammaticalization. Oxford

Univesity Press: New York, 2001.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 4

INDETERMINAÇÃO DO AGENTE

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A INDETERMINAÇÃO DO AGENTE NO PORTUGUÊS ORAL

DO BRASIL

Camille Feitosa de ARAÚJO

Samuel Freitas HOLANDA

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as diversas formas de indeterminação

do agente no Português falado do Brasil, e as motivações discursivas que induzem à

realização desse fenômeno em nossa língua. Para tanto, nos baseamos na análise de

dados colhidos entre falantes brasileiros da década de 90. Inicialmente, expomos os

meios, permitidos pela nossa língua e utilizados pelos falantes, para essa indeterminação

e posteriormente, destacamos os casos de agente indeterminado no discurso dos falantes

do nosso corpus. Através da análise realizada, nossa pesquisa identificou um uso

frequente de pronomes e expressões indefinidos e de verbos na 3ª pessoa do plural para

essa indeterminação do agente na nossa língua.

Palavras-chave: indeterminação; agente; funcionalismo.

INTRODUÇÃO

Quando queremos identificar, em um enunciado, aquele que

pratica a ação verbal, normalmente perguntamos ao próprio verbo, pois

foi assim que aprendemos, nas gramáticas tradicionais, a identificar o

agente da ação expressa pelo verbo, ou seja, o sujeito. No entanto,

conforme vamos tendo mais contato com a língua Portuguesa,

percebemos que nem sempre aquele que pratica a ação expressa pelo

verbo é localizável na enunciação, e que também nem sempre coincide

com o sujeito da oração. Assim, observamos que não é apenas o aspecto

sintático que irá determinar o agente de uma oração, mas os aspectos

semânticos e discursivos também deverão ser levados em consideração.

A indeterminação do agente confere um caráter de imprecisão

quanto ao termo que seria aquele que praticaria a ação verbal. Ou seja, a

indeterminação do agente em um enunciado será o meio utilizado pelo

enunciador para não identificar o agente de uma ação verbal, ou por não

saber, ou por não querer identificá-lo. Muitas são as formas de

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

indeterminação do agente encontradas em uma dada situação

comunicativa, e serão algumas dessas formas que pretendemos investigar

e analisar. Assim, o objetivo da nossa pesquisa será, através da análise de

dados, observarmos como o emissor se utiliza dessas possibilidades para

conseguir indeterminar o agente na Língua Portuguesa falada no Brasil.

Não pretendemos aqui exaurir todo o assunto, já que é apenas um

artigo e não abrangemos um número de informantes suficientes para isso.

Mas poderemos, através de artigo, trazer uma boa contribuição para o

estudo da indeterminação do agente na Língua Portuguesa.

1. METODOLOGIA

Para a concretização do presente trabalho, analisamos quatro

entrevistas dadas por falantes do sexo masculino e coletadas na década

de 90. Os informantes falavam uma variedade da língua situada entre o

culto e o informal, pois todos possuíam curso superior e eram de uma

classe social mais culta e erudita. A faixa etária dos entrevistados foi bem

variada, indo dos 31 anos até os 70, o que diversifica ainda mais o nosso

corpus.

Coletamos os depoimentos nos corpora do VARPORT e, em

seguida, selecionamos algumas ocorrências de indeterminação no discurso

dos falantes, para analisarmos quanto a algumas variáveis como o tipo de

indeterminação e a identidade do agente. Após a análise, examinamos

cada caso, tentando identificar suas motivações discursivas e o papel

desempenhado por cada um dentro do discurso.

Para a produção desse artigo, recorremos a autores como Gredson

dos Santos (2006), Tupiná (1984) e Claudete Lima (2005), além de Cunha

e Cintra (2008) e Duarte (2005).

2. A RESPEITO DA INDETERMINAÇÃO DO AGENTE

Iniciaremos, porém, com uma elucidativa explicação sobre a

indeterminação do agente, como o falante pode alcançar esse fenômeno

durante seu discurso e o porquê de usá-lo.

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50

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

O fenômeno da indeterminação do agente vem sendo tema de

investigação de diversos pesquisadores, principalmente aqueles ligados à

Linguística, como os Funcionalistas, por ser um campo de estudo ainda

não totalmente explorado ou explicado pela gramática tradicional. Ainda

há muitas divergências, inclusive de terminologia, como observamos ao

lermos o artigo Questões sobre a “indeterminação” do sujeito, de Gredson

dos Santos. O autor chega a seguinte conclusão:

A partir das considerações de Rollemberg et al e de Bechara, e

admitindo-se como plausível a hipótese de que o sujeito é uma

função sintática que responde às necessidades estruturais do

sistema do PB e que a agentividade está ligada ao aspecto

semântico do sistema, podendo ela ser um traço do sujeito ou de

outro termo sintático, adota-se neste trabalho a posição de que,

na verdade, não faz sentido falar em indeterminação do sujeito em

contextos como os que aqui são analisados, mas sim em

indeterminação do agente da ação indicada pelo verbo – é o que

acontece, por exemplo, num enunciado como eu fui assaltado, em

que a função de sujeito cabe ao pronome, mas o agente não está

especificado. (SANTOS, 2006, p.15)

Assim, reforçamos que o agente nem sempre corresponde ao

sujeito, ou seja, se você indeterminar o agente de uma oração, não

significa que o sujeito será indeterminado. Ainda há muitas outras

divergências, mas não nos deteremos a esse assunto, pois necessitaria de

um artigo inteiro.

Em seu trabalho intitulado Abrangência pessoal dos processos de

indeterminação do agente, Tupiná (1984), sintetiza bem o assunto

abordado:

A indeterminação corresponde ao caráter de indiferenciação, falta

de individualidade ou de especificidade de um termo, capaz de

conferir ao enunciado um teor de imprecisão e generalidade, em

decorrência do ponto de vista do emissor. (TUPINÁ, 1984, p. 63)

Como já ponderamos, o falante disponibiliza de várias formas para

conseguir esse teor de imprecisão em uma oração. Em nossa pesquisa

não conseguimos encontrar todas as maneiras de indeterminar o agente,

ou pela ausência destas, ou por desatenção dos pesquisadores. Evitamos

também considerar casos polêmicos, que precisariam de mais explicações

e exigiriam um trabalho mais extenso e complexo, o que fugiria da nossa

Page 51: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

proposta, que é analisar e refletir sobre o uso desse fenômeno na

oralidade.

3. PROCESSOS DE INDETERMINAÇÃO DO AGENTE E ANÁLISE DO

CORPUS

Veremos agora os principais processos de indeterminação do

agente e alguns exemplos, que quando não encontrados no corpus, foram

retirados de falas e textos do nosso cotidiano. São eles, a nominalização,

o uso de pronomes ou expressões indefinidos, verbo impessoal não-

pronominal, voz passiva analítica, voz passiva sintética, voz média

(pronominal, não-pronominal e perifrástica) e infinitivo.

3.1. Nominalização

A nominalização é quando substantivamos um verbo, o utilizando

na função de sujeito de uma oração.

(1) A saída do jogador abalou a equipe.

3.2. Pronome Indefinido

Alguns autores dividem essa categoria em duas: pronomes

indefinidos (alguém, você) e expressões indefinidas (todo mundo, a gente,

as pessoas). Para esse trabalho, consideraremos todos esses pronomes e

expressões como parte de um mesmo processo, já que possuem

propriedades de uso bem semelhantes. Veja por exemplo esse trecho:

(2) normalmente eu dou preferência pelas praias... apesar de ser

um acampamento pouco mais desgastante... cansa mais... você não

tem... acomodação boa... sal... você fica salgado... você quer tomar

banho e já é mais difícil pra tirar o sal... e... normalmente quando você

está na montanha... você sempre tem um rio... a água é limpa... você

pode tomar banho e ficar sempre... se sentindo melhor... né? com a

água... o acampamento normalmente não é com um grande número de

pessoas... (VARPORT – Oc-B-9c-1m-001, linhas 47-52)

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A forma de tratamento você é bastante usada para a

indeterminação porque desperta o interesse e envolve o interlocutor,

tornando o discurso mais presente e mais vivo (Tupiná, 1984, p.66). É

evidente que o falante não está se referindo somente ao interlocutor

quando usa o você, mas generaliza o agente, na tentativa de indicar que

qualquer pessoa pode ser colocada como agente da ação. Isso acontece

principalmente quando o falante está tentando convencer seu interlocutor,

utilizando a função apelativa da linguagem. Note que, nesse trecho,

poderíamos trocar a forma você pela expressão a gente sem grande

prejuízo de sentido, pois estaria trazendo o interlocutor para participar da

ação juntamente com o emissor. Mais uma vez, temos o uso da função

apelativa. Observe agora esse exemplo:

(3) todo mundo procura conversar com todo mundo... é até uma

data assim... que as pessoas vêem pessoas que não se vêem há muito

tempo...às vezes até se conversam pelo telefone mas não... não se vê... e

realmente nos aniversários a gente encontra várias pessoas e coloca as

conversas em dia...né? (VARPORT – Oc-B-9c-1m-001, linhas 20-23)

Observe o uso de mais três expressões genéricas que o falante

utiliza para indeterminar o agente da oração. Genéricas porque não se

referem a ninguém, de modo específico, mas estende seu significado para

além de qualquer agente.

3.3. Impessoal não-pronominal

Esse processo é caracterizado pelo uso do verbo na 3ª pessoa do

plural, sem designar o pronome, e deixando o agente da oração

indeterminado. Vejamos um exemplo:

(4) e não tem biblioteca mais... tem biblioteca... mas no

computador... eu não sei pra quê... deram os livros todos... jogaram

(aquilo) fora... mandaram (rasgar... desaparecer) puseram uma pilha

de livros no corredor mandaram os alunos apanhar e escolher...

(VARPORT – Oc-B-9c-3m-001, linhas 47-50)

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Quando usamos a 3ª pessoa para alcançarmos a indeterminação,

protegemos a identificação do agente, ou por desconhecimento ou por não

interessar a especificação. Assim, o verbo pode se referir tanto a grupo de

pessoas, como a uma só pessoa.

3.4. Voz Passiva Analítica

A voz passiva analítica é caracterizada pelo verbo ser ou estar

acompanhado de um verbo principal no particípio. Na voz passiva o

sujeito é paciente. Notemos no trecho abaixo o seu uso:

(5) bom... eu acho que o Rio de Janeiro deve ser visto não só em

um de seus lugares belíssimos... como também nas suas... nos seus

lugares pobres e pelo menos a favela da Rocinha tem que ser visitada...

compreendeu? (VARPORT – Oc-B-9c-3m-001, linhas 2-4)

A voz passiva é usada quando o falante quer dar mais ênfase a

ação do que ao próprio agente. Por exemplo, no trecho acima, o falante

expressa que ―o Rio de Janeiro deve ser visto‖, mas não diz por quem ele

tem deve ser visto. Vemos aí que o mais importante é a ação, ou seja,

para o falante os lugares pobres do Rio de Janeiro devem ser visto por

todos, desde turistas, visitantes, a habitantes, enfim, qualquer pessoa que

quiser conhecer a cidade.

3.5. Voz Passiva Sintética

A passiva sintética, ou voz passiva pronominal, como designam

alguns autores1 se caracteriza pelo uso do verbo transitivo direto na 3ª

pessoa mais o se apassivador. Vejamos um exemplo:

(6) não se reúne muita gente... (VARPORT – Oc-B-9c-1m-001,

linha 16)

3.6 Voz Média

1 cf. TUPINÁ, 1984, p. 64

Page 54: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A voz média causa muita polêmica atualmente porque alguns

autores desconsideram sua existência, outros consideram como subtipo da

voz reflexiva e ainda há aqueles que defendem uma estreita ligação com a

voz passiva. Veja o que diz Claudete Lima sobre isso:

A voz média, por exemplo, mantém com a passiva e a reflexiva

relações tão estreitas em português que, muitas vezes, se

confunde com estas. A descrição que predomina nas gramáticas

tradicionais é reflexo dessa dificuldade, uma vez que os autores

mostram flutuações na classificação de determinadas formas como

exemplos de voz média, de passiva, ou reflexiva. Até mesmo na

lingüística há indícios dessa dificuldade, quando autores, como

Camara Jr. não definem bem a chamada voz médio-passiva,

ilustrada por casos como vendem-se casas, bastante discutidos na

lingüística tradicional e moderna, para as quais têm-se dado

interpretações diversas. (LIMA, 2005, p. 545)

Temos três tipos de voz média:

Média pronominal

(7) A porta se fechou.

(8) Se preparou lá pra fazer o seu vestibular, não é isso?

(VARPORT - Oc-B-9C-3m-001, linha 16)

Média não-pronominal

(9) A porta ficou fechada.

Média perifrástica

(10) A porta está fechada

3.7 Infinitivo

Tupiná define muito bem o papel exercido pelo infinitivo na

indeterminação do agente:

É o verbo no máximo de sua indeterminação e generalidade. A

impessoalidade é propriedade essencial do infinitivo. Não encerra

indicação da pessoa do sujeito, não corresponde a nenhum tempo,

nenhum modo, nem espécie de ação em particular. Apresenta o

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55

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

processo em potência, aproximando-se do substantivo (TUPINÁ,

1984, p.66)

Observe agora um exemplo:

(11) tinha um período específico... de soltar pipa... (VARPORT, Oc-

B-9C-1m-002, linha 13)

4. RESULTADOS DA ANÁLISE

Com base na pesquisa, chegamos a alguns gráficos, os quais

iremos expor e explicar nesse momento. Como se pode observar no

primeiro gráfico acima, dos 68 enunciados analisados por nós, 43

apresentavam indeterminação pelo uso de pronomes indefinidos; nenhum

caso de nominalização identificado; 12 casos de verbos impessoais não-

pronominais foram encontrados; 5 casos de verbos na voz passiva

analítica; 2 verbos na voz passiva sintética; um caso na voz média

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

0

43

12

5 2 1 0 0

5

Gráfico 1: Frequência dos Processos

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56

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

pronominal; nenhum caso na voz média não-pronominal foi encontrado,

assim como também na voz média perifrástica; e 5 casos de verbos no

infinitivo.

Podemos notar no Gráfico 1 o uso frequente de pronomes

indefinidos e, levando em consideração que englobamos pronomes e

expressões nessa categoria, uma grande recorrência da forma de

tratamento você, das expressões a gente, as pessoas, entre outros. Como

já explicamos, o uso dessas expressões causam distanciamento entre o

agente e a ação expressa pelo verbo, pois generaliza o termo utilizado. O

uso de verbos impessoais não-pronominais vem logo atrás e é um dos

meios mais simples de alcançar a indeterminação do agente. Isso porque

o falante só precisa colocar o verbo na 3ª pessoa do plural, se não quiser

ou não for possível identificar o que pratica a ação. Assim, a ação verbal

recai sobre um referente perdido, que não sabemos quem é ou quem são,

pois pode se referir tanto a um grupo de pessoas, como a uma só pessoa.

A voz passiva aparece em 3ª lugar, com a analítica e sintética.

Como vimos, a importância as voz passiva para o fenômeno estudado está

no fato de que ela dá ênfase a ação do verbo, colocando o sujeito apenas

como paciente, e indeterminando o agente. Quanto ao infinitivo, ele

também se apresenta como mais uma ferramenta recorrente na

indeterminação, já que foi encontrado em 5 casos.

Observe no Gráfico 2, construído a partir da análise dos resultados,

o número de vezes que as principais expressões indefinidas foram usadas

pelos entrevistados. Note que a forma de tratamento você e a expressão a

gente são bastante utilizadas, principalmente por causa da função

apelativa, como já explicamos.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Temos ainda um terceiro gráfico que mostra o cruzamento de

dados, entre os processos de indeterminação e a identidade do agente.

Observe:

0

5

10

15

20

você a gente as

pessoastodo

mundooutros

casos

17

10

6

2

8

Gráfico 2: Uso dos Pronomes Indefinidos

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Gráfico 3: Cruzamento de Dados

Vemos o comportamento dos processos e como se dá a

indeterminação do agente em cada um deles. Por exemplo, podemos

perceber que o uso de um verbo impessoal não-pronominal aumenta a

possibilidade de deixar a identidade de um agente desconhecida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo, trabalhamos com as várias formas de indeterminar

um agente num enunciado e quais são suas motivações discursivas. Para

isso, analisamos um corpus composto por 68 orações e analisamos os

casos de indeterminação.

17

4

15 11 2

3

11 1

1

2 1

Inferível Desconhecida

Dada Situacionalmente Dada Anaforicamente

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Tentamos nos esquivar de questões polêmicas, como a voz média,

voz passiva e os pronomes indefinidos – quanto à nomenclatura. Isso por

questão de tempo e espaço, pois não teríamos como desenvolver esses

assuntos nesse artigo.

Finalmente, conseguimos detectar a grande recorrência de

pronomes como você, que generalizam o sujeito do verbo. Por isso,

destacamos aqui a uso cada vez mais frequente, pelas falantes, de

expressões e termos indefinidos para obter a indeterminação do agente na

linguagem oral. Além disso, identificamos também uma grande frequência

de verbos impessoais não-pronominais para se conseguir esse fenômeno.

É evidente que nosso trabalho não consegue explicar todo o

assunto, pois a língua é complexa e os linguistas muitas vezes se

divergem, dificultando a análise de alguns casos. Mesmo assim,

esperamos contribuir de alguma maneira para o estudo da indeterminação

do agente em português.

REFERÊNCIAS

CUNHA E CINTRA, Celso e Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo.

5ª edição. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.

DUARTE, Paulo M. T. A voz média em português: seu estatuto. Estudos em

homenagem ao Professor Doutor Mário Vilela, vol. 2, 2005, pag. 783-794.

Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4606.pdf> Acesso em: 22 mai.

2011.

LIMA, Maria Claudete. Reflexões sobre a medialidade em português. Estudos em homenagem ao Professor Doutor Mário Vilela, vol. 2, 2005, pag.

545-556. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4585.pdf.>

Acesso em: 22 mai. 2011.

SANTOS, Gredson dos. Questões sobre a “indeterminação” do sujeito. Disponível

em: <http://www.inventario.ufba.br/05/pdf/gsantos.pdf.> Acesso em: 22 mai. 2011.

TUPINÁ, Heloísa Marques. Abrangência Pessoal dos Processos de Indeterminação do

Agente: ALFA, Revista de Linguística. Vol. 28, p. 63-69, 1984, São Paulo.

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60

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

INDETERMINAÇÃO DO AGENTE EM PORTUGUÊS: ESTRATÉGIAS E MOTIVAÇÕES DISCURSIVAS

Emílio Araújo da SILVA

Tuyra Maria da Cruz ANDRADE

Resumo: Em língua portuguesa, há diversas formas de indeterminar o agente, seja na

fala ou na escrita. Este trabalho investigou as principais estratégias para marcá-las e

algumas motivações discursivas que podem explicar o seu uso, baseando-se em registros

de informantes do Discurso e Gramática da capital Natal. Analisou-se os gêneros

narrativa de experiência pessoal e relato de opinião, nas modalidades oral e escrita.

Buscamos não só as formas canônicas admitidas pela gramática tradicional, mas também

outras como você, a gente, o indivíduo, entre outras. De todas as estratégias de

indeterminação investigadas, os pronomes indefinidos foram constatados os mais

recorrentes tanto na modalidade oral quanto na escrita. Na fala, o você predominou

sobre os outros pronomes.

Palavras-chave: agente; indeterminação; sujeito.

INTRODUÇÃO

Os objetivos deste trabalho são estudar as várias formas de

indeterminar o agente em português e as motivações discursivas de cada

uma, baseado nos dados coletados do Discurso e Gramática, os da capital

Natal, e restritos aos informantes Carlos e Diva.

Quanto à metodologia, escolhemos os gêneros narrativa de

experiência pessoal e relato de opinião de cada informante. A escolha

desses gêneros textuais deve-se ao fato de ambos propiciarem estruturas

de indeterminação, ao contrário do que se verifica, por exemplo, nas

reportagens.

Para a análise estatística dos dados, foram coletadas 114

ocorrências, organizadas e categorizadas numa tabela, na qual se pudesse

relacionar os fatores entre si e, a partir de então, se chegar aos

resultados.

Alguns trabalhos e estudos linguísticos conduzirão a pesquisa: a

gramática tradicional, pela noção de sujeito indeterminado, os estudos

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61

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

sobre indeterminação de Faggion (2008), Menon (1994 e 2004), Santos

(2006), Marins e Duarte (2006), dentre outros, além de vários trabalhos

sobre indeterminação do agente em Língua Portuguesa, tais como Através

desses procedimentos, pudemos efetivar a análise, descrição e

interpretação dos usos de indeterminação pelos informantes. Inicialmente,

apresentaremos tanto a noção de sujeito indeterminado da gramática

tradicional como a de agente indeterminado por vários linguistas. A

seguir, analisaremos os resultados da pesquisa para chegar a um

resultado geral e considerações.

1. SUJEITO INDETERMINADO x AGENTE INDETERMINADO

Para a gramática tradicional (a partir daqui GT), a noção de sujeito

indeterminado é utilizada quando o falante não sabe ou não quer declarar

quem é o sujeito de alguma ação. Cunha e Cintra (1985, p. 125) explicam

que, para a GT, quando o sujeito não pode ser identificado, põe-se o

verbo na terceira pessoa do plural ou na terceira pessoa do singular, com

o pronome se. Contudo, só ocorre com verbos transitivos indiretos ou

intransitivos, pois com os transitivos diretos a frase estaria na passiva

sintética. Kury et alii (1976, p. 14) mencionam as duas maneiras de

indeterminar o sujeito. O trabalho de Santos (2006) aponta, ainda sobre a

terceira pessoa do singular, que também ocorre indeterminação quando o

se estiver ligado a um verbo de ligação, de acordo com a gramática

normativa. Os dois processos – terceira pessoa do plural e terceira pessoa

do singular mais se – são mencionados também por Bechara (1983),

Rocha Lima (1992) e Cegalla (1998). Este, ainda, aponta o verbo no

infinitivo como outro processo de indeterminação do sujeito. Para esses

gramáticos, a indeterminação é de ordem semântico-pragmática (quando

não se sabe ou não se quer declarar quem pratica a ação).

Mas, é importante frisar que o sujeito indeterminado está

relacionado ao agente indeterminado, mas que ambos são diferentes. O

alvo de nosso estudo é o agente indeterminado, o qual, para

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62

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

entendermos, precisaremos saber alguns conceitos antes de expormos as

análises e nossos resultados.

Yamamoto (2006) estuda a agentividade ligada aos elementos que

lhe dão suporte psicológico – intencionalidade, consciência da ação,

controle, causalidade e responsabilidade. Para ele, a agentividade está

relacionada intrinsecamente ao caráter animado do agente. Por exemplo,

se o agente for humano, ―ele tem consciência de suas ações, porque

possui mecanismos cognitivos e atitudes epistêmicas que lhe permitem

construir uma interpretação do universo cultural (e físico) de que fez

parte.‖ (p. 23) Uma visão do autor é que a agentividade não é

propriamente ―um ato humano e intencional: intencionalidade também

pode ser característica de certos animais – um gato pegando um rato.‖

(ibidem)

Menon (1994, p. 130 - 131) define indeterminação (e a distingue de

indefinição) como

―o caso em que não se pode ou não se quer nomear o sujeito, na

acepção de ‗referente extralinguístico‘. No entanto, o referente é

conhecido pelo locutor (e em alguns casos também pelo

interlocutor, o que torna possível a compreensão mútua) e se ele

quisesse e se isso fosse conveniente ou interessante para ele, ele

poderia nomeá-lo ou descrevê-lo. Um sujeito (ou referente)

indefinido seria então um entre muitos, um representante de uma classe de indivíduos, tendo todos características semelhantes.‖

Luft (1976, p. 25), aponta dois processos de indeterminação: verbo

na terceira pessoa do plural e infinitivo não-flexionado (É preciso lutar),

não registrando o processo com se. Mattoso Câmara, em seu Dicionário de

Linguística e Gramática (1978, p. 229), exclui de sua classificação o

critério semântico. Se tal critério estiver presente, também o sujeito dito

simples pode ser ―indeterminado‖, conforme assinala Kury (1985, p. 24).

Tal critério direciona o pensamento de Câmara (1978, p. 143) ao

considerar como ―sem sujeito‖, ou seja, impessoal, a oração como, por

exemplo, Vive-se bem no Rio, que os autores tradicionais mencionados

acima considerariam como indeterminado.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

2. AGENTES INDETERMINADOS NO DISCURSO E GRAMÁTICA: NATAL

Neste trabalho, procuramos coletar exemplos de, pelo menos, dez

formas através das quais se pode indeterminar o agente da ação verbal.

São elas: nominalização, pronomes de caráter indefinido, impessoal não-

pronominal (terceira pessoa do plural), passiva sintética, passiva analítica,

média pronominal, média não-pronominal, média perifrástica, primeira

pessoa do plural indefinida e termo genérico.

Vejamos o exemplo a seguir:

A privatização dos clubes, seria uma das soluções...

O informante poderia ter organizado essa ideia da seguinte maneira:

Privatizar os clubes seria uma das soluções.

Porém, ele optou pela nominalização do verbo privatizar. O exemplo

citado foi encontrado na escrita, num relato de opinião, e constitui o único

caso desse recurso de indeterminação no nosso corpus. Acreditamos que

a estratégia da nominalização é preferida quando o falante quer enfatizar

não o processo da ação (neste caso, privatizar), mas o ato ou o efeito

disso (a privatização).

Outra forma de indeterminação é a utilização de pronomes de

caráter indefinido, dentre os quais constatamos o ―você‖, ―a gente‖,

―quem‖, ―todo‖, ―algum‖, ―alguém‖, ―qualquer‖, ―ninguém‖ e ―cada‖.

Das 93 frases com pronomes indefinidos, em 73 aparece o ―você‖

genérico. Na amostra abaixo, pode-se perceber a alta frequência do uso

desse pronome, mesmo num trecho curto de um relato de opinião oral.

...pra mim importante é você ter Deus dentro de si... muita gente discute porque

acha errado... você não vai à igreja... você não faz isso... você... mas se você tá:: se

você conhecesse Deus como você quer conhecer... eu acho que isso que é importante...

não é você seguir uma linha...

Alguns fatores podem ajudar a entendermos porque o ―você‖ é tão

utilizado com o propósito da indeterminação. Como já dissemos no início

deste trabalho, no gênero relato de opinião, existe maior possibilidade de

ocorrência de frases com agente indeterminado. Outro motivo é o fato de

que a informante utiliza esse pronome para exemplificar situações. O

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

―você‖ não é, necessariamente, o ouvinte, e sim, qualquer pessoa. Além

disso, essa palavra já é própria do uso coloquial, o que se torna mais

cômodo, para o falante, escolhê-la no momento das construções. Mesmo

sendo uma partícula própria da modalidade oral, ainda foi possível

encontrar uma ocorrência na escrita.

Podemos, assim, construir um gráfico só dos pronomes indefinidos,

para salientar a predominância do ―você‖.

A indeterminação também pode ser indicada pela terceira pessoa

do plural, sendo aceita inclusive pela própria tradição gramatical. Vejamos

os exemplos registrados da fala de um dos informantes:

... colocaram diretores nas escolas...

... então aconteceu que o Atheneu tava numa baderna tão grande que foram

buscar um diretor famoso que tinha lá no Salesiano...

Apenas essas duas frases do corpus apresentaram esse tipo de

recurso. Sabemos que a terceira pessoa do plural é usada indeterminando

o agente, quando o falante tem a ideia de que vários sujeitos praticaram

aquela ação, no entanto, ou ele não os conhece ou não deseja explicitá-

los para o ouvinte.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Uma questão particular é a do pronome se. Um trabalho de Gredson

dos Santos, intitulado ―Questões sobre a ‗indeterminação‘ do sujeito‖ traz

uma discussão sobre o assunto. Santos discorre sobre a opinião de

gramáticos e linguistas em relação à classificação do se.

Em português, o se faz parte de construções como, por exemplo,

voz passiva sintética, voz média e voz reflexiva. Aqui, não temos a

pretensão de discutir a sua classificação. Apenas veremos, segundo o

nosso corpus, as construções onde o agente é indeterminado e tentar

justificar suas motivações discursivas.

A passiva sintética ocorreu mais na modalidade escrita que na oral.

Vejamos um exemplo a seguir.

(...) sabe-se muito bem que esse mal existe (...)

Uma hipótese para a maior manifestação da passiva sintética na

escrita e não na oralidade, talvez seja porque o autor do texto sabe que,

na norma culta, ocorre mais ênclise que próclise. E, por isso, quando

percebia que uma determinada construção podia se feita com a passiva

sintética, assim o fez.

Não podemos falar em passiva sintética, sem falar da passiva

analítica. Esta foi manifestada apenas uma vez na escrita do relato de

opinião, com o propósito de mostrar a extensão do processo verbal. Ei-la:

(...) em provar que está sendo bem remunerado e tem que jogar (...)

A média pronominal foi identificada apenas uma vez, tendo sido

usada na modalidade escrita, no relato de opinião. Observe-a abaixo:

O que se precisa é que a humanidade comece a crer em Deus por si só (...)

A média não-pronominal foi encontrada duas vezes, uma na

narrativa de experiência pessoal falada e outra no mesmo gênero, porém,

na modalidade escrita, conforme mostram os exemplos abaixo:

...aí o menino nasceu... nasceu aparentemente bom né... mas quando foi pro

hospital... morreu no hospital, devido o susto que tomou.

(...) A empregada que estava grávida mais tarde teve o menino lá em casa,

nasceu vivo e depois morreu no hospital, devido o susto que tomou.

Identificamos somente uma média perifrástica, transcrita abaixo:

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

... ficou tão cheio de escoriações nas pernas principalmente... que eu pensava

que num ia andar mais...

Podemos perceber que as médias foram mais raras em nossa

pesquisa, e talvez sejam também em língua portuguesa, mas para sabê-

lo, teríamos que realizar outros estudos.

Os pronomes pessoais, muitas vezes, são destituídos de seu caráter

dêitico específico. O uso não-dêitico dos pronomes pessoais foi objeto de

estudo de Menon (1994), com exemplos variados, provenientes dos dados

do Projeto NURC (Norma Urbana Culta) São Paulo. Segundo a autora, a

imprecisão de alguns pronomes pessoais pode ser explicada pelo caráter

hipotético do discurso, ou seja, quando o falante os utiliza, talvez, por

economia linguística, em vez de uma expressão de indeterminação.

Registramos três ocorrências da 1ª pessoa do plural indefinida como

recurso de indeterminação, todas usadas na escrita, no relato de opinião.

Apresentamos, na sequência, o exemplo dessa estratégia.

Se não tomarmos conta de que terá que haver uma mudança, não vamos sair

do que somos.

Por fim, foi constatado o uso de termos genéricos para a

indeterminação do agente da ação verbal. Observemos as amostras a

seguir:

... uma coisa que marcou muito na minha vida...

... porque quando o homem descobre alguma coisa é porque Deus está ali na sua

inteligência...

Os termos genéricos, como o cara, o homem, o sujeito, nego,

neguinho, fulano, cicrano, beltrano, indivíduo, entre muitos outros, devido

seu constante emprego como indeterminadores de sujeitos agentes ou de

beneficiários, estão em processo acelerado de gramaticalização, embora

uns mais que os outros. Por exemplo, a expressão nego aparece na

função de sujeito geralmente sem artigo, enquanto isso não ocorre com o

cara. É possível que a justificativa seja de origem fonológica, como afirma

Faggion (2008):

... é o de um esmorecimento de intensidade na pronúncia das

vogais, em posição inicial (que, em palavras isoladas e em leitura

poética, configura o fenômeno chamado aférese). Só que ocorreria

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

o mesmo com cara. Pode ser que a freqüência de uso maior cause

a elisão do artigo. (...) Poder-se-ia inferir, a partir disso, que (o)

nego está em processo de gramaticalização mais adiantado que o

cara, pois apresenta erosão fonética mais acentuada.

Para uma visualização geral das análises feitas até aqui, vejamos a

tabela abaixo, que inclui, nas modalidades oral e escrita, os gêneros

trabalhados e as estratégias de indeterminação.

Codificação Oral Total

Parcial

Escrita Total Parcial

Total Geral NEP RO NEP RO

Nominalização 0 0 0 0 1 1 2

Pronome

Indefinido 11 74 85 4 4 8 93

3ª pessoa do

plural 2 0 2 0 0 0 2

Passiva

Sintética 0 1 1 1 3 4 5

Passiva

Analítica 0 0 0 0 1 1 1

Média

Pronominal 0 0 0 0 1 1 1

Média Não-

pronominal 1 0 1 1 0 1 2

Média Perifrástica

1 0 1 0 0 0 1

1ª Pessoa do Plural

Indefinida 0 0 0 0 3 3 3

Termo Genérico 2 1 3 0 2 2 5

A partir da tabela acima, percebemos que, em língua portuguesa, o

uso de pronomes indefinidos constitui a principal estratégia de

indeterminação do agente, sendo predominantes na modalidade oral à

escrita. E nenhuma das formas selecionadas foi desprezada pelos falantes,

embora a maioria delas fosse usada menos de cinco vezes.

Enquanto que na fala não houveram ocorrências em algumas

estratégias, a modalidade escrita do gênero relato de opinião foi a mais

diversificada em estratégias (sete entre as dez elencadas).

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

As médias foram as mais raras em nossa pesquisa, mas não prova

se são as mais raras em língua portuguesa, embora possamos imaginar

que sim. Junto às médias esteve a passiva analítica, que ocorreu uma vez.

Durante a análise, foram observadas outras conclusões, as quais

nos restringiremos até aqui, com a organização da tabela. O que mais foi

observado será comentado na próxima seção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A língua se serve de recursos lexicais e sintáticos para indicar a

indeterminação do agente, aquele que tem capacidades para realizar a

ação. Às vezes, o agente é realmente um ser indeterminado, outras

vezes, impreciso. Em alguns casos, ele pode ser inferido pela situação ou

pelo contexto. Ele pode já ter sido mencionado e, por economia, o falante

utilizou de alguma estratégia que o indeterminou. Também é fato que o

agente indeterminado geralmente aparece quando o falante não sabe ou

não quer declarar quem é o sujeito de alguma ação.

Na língua portuguesa, o agente indeterminado é mais frequente na

fala, através de pronomes de caráter indefinido, e com a predominância

do você, que é um pronome tradicionalmente pessoal, em relação aos

verdadeiros indefinidos, como alguém ou ninguém.

O pronome se foi o que mais esteve associado à indeterminação,

embora nem sempre como índice de indeterminação do sujeito. Mas o

nosso estudo não apontou nenhuma correlação entre o se e a

indeterminação.

Expomos várias estratégias para indeterminar o agente na língua

portuguesa e diversas motivações discursivas. Esperamos que este

trabalho seja útil para quem deseja saber ou entender mais sobre

indeterminação. Recomendamos aprofundar as leituras na GT e nos

linguistas e estudiosos citados neste artigo.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

REFERÊNCIAS

CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da Língua Portuguesa. 10. ed. Rio de Janeiro:

FAE, 1984.

FAGGION, Carmen Maria. Variação histórica nos usos dos mecanismos de

indeterminação. Disponível em:

<http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_483.pdf.> Acesso em: 4/05/2011, às

13:55.

______________________. A indeterminação em português: Uma perspectiva

diacrônico-funcional. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal dório

Grande do Sul, Bento Gonçalves, 2008.

MARINS, J. E. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Uma análise comparativa das

construções de indeterminação na fala e na escrita. Disponível em:

http://www.filologia.org.br/ixcnlf/15/19.htm. Acesso em: 4/05/2011, às 14:10.

SANTOS, G. Questões sobre a "indeterminação" do sujeito. Inventário (Universidade

Federal da Bahia. Online), www.inventario.ufba.br, v. 5, p. 1, 2006.

TUPINÁ, H. M. Abrangência pessoal dos processos de indeterminação do agente. Alfa,

São Paulo, v. 28, p. 63-69, 1984.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 5

MODALIDADE DEÔNTICA

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

A MODALIDADE DEÔNTICA NOS ANÚNCIOS

PUBLICITÁRIOS

Adriana Campos Sisnando de Lima

Mônica de Souza Rocha

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o uso dos modalizadores deônticos no

discurso publicitário e os possíveis efeitos de sentido obtidos na construção da

persuasão. Dessa forma, procuramos estabelecer relações entre os valores instaurados

(obrigação; permissão sugestiva, permissão autorizada, permissão concessiva; proibição)

e a forma de expressão (verbo pleno, verbo auxiliar modal, adjetivo, substantivo e

advérbio), a fim de compreender qual a maior incidência de valor entre os instaurados e

qual a maior forma de expressão desse valor. Contudo, pretendemos encontrar o porquê

dos resultados obtidos, tendo em vista os propósitos comunicativos dos anúncios

publicitários (impressos e outdoors) e, por acreditar que tais comunicações carregam

consigo uma alta incidência de modalização. Para a análise e agrupamento dos dados,

adotamos o enfoque teórico funcionalista de Halliday (1978) e também a teoria de Lyons

(1977) e Pinto (1994) sobre a modalidade deôntica. A análise dos dados, nesta pesquisa,

é de cunho qualitativo.

Palavras-chave: modalidade deôntica; valores deônticos; discurso publicitário.

INTRODUÇÃO

Adotamos neste trabalho, uma análise sobre os modalizadores

deônticos no discurso publicitário. As modalidades deônticas abrangem

toda expressão que implica referência a uma norma ou a qualquer critério

de avaliação social, individual, ético ou estético, isto é, pertencente ao

registro do dever. Este estudo está ancorado em Lyons (1977) e Pinto

(1994). Para a realização desta análise utilizamos como corpus, textos

publicitários veiculados por anúncios impressos e anúncios de outdoors.

A princípio, exporemos os princípios funcionalistas de Halliday

(1978), mostrando as funções textual, ideacional e com destaque a

interpessoal, tendo em vista que esta é a marca da modalidade. Para

estabelecermos o contato com o nosso interlocutor, precisamos moldar o

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

nosso discurso de acordo com nossa maneira de ver a realidade e nossas

intenções.

Essa pesquisa focalizou os verbos na forma plena de grande

ocorrência no corpus. Portanto uma investigação de cunho funcionalista

deve analisa-los. Pois, essa abordagem parece ser mais adequada pelo

fato de no modelo funcionalista a língua ser vista como um instrumento

de interação social e sua principal função ser a da comunicação.

1. MODALIDADE

Ao estudarmos a modalidade, podemos compreendê-la como o

meio pelo qual o enunciador usa o seu discurso em prol de suas intenções.

A expressão de atitude é a marca desse recurso, pois há uma

preocupação com a forma de se emitir um enunciado para que o locutor

transmita sua mensagem e o interlocutor reaja de maneira positiva ou

negativa em relação àquilo que está ouvindo.

Segundo Halliday (1978), há três tipos principais de funções sociais

envolvidas na comunicação: ideacional, textual e interpessoal. Essas

funções são manifestadas como um modo de transmitir o potencial

significativo das representações linguísticas. A função ideacional expressa

o conteúdo do texto para representar o mundo exterior e interior do

sujeito. A função textual envolve o texto nos seus aspectos estruturais e

de formato, deixando o sujeito demonstrar sua experiência por meio de

textos coesos e coerentes no sistema da língua. A função interpessoal

envolve a participação do sujeito na expressão das ações sobre os outros

no contexto social, desencadeando novas ações.

1.1. MODALIDADE DEÔNTICA

Lyons (1977), a modalidade deôntica não descreve um ato em si,

mas um estado-de-coisas que será obtido, caso o ato seja realizado, em

algum tempo futuro. Portanto, está intrinsecamente ligada com a noção

de futuridade. Também, necessariamente, tem que haver uma pessoa ou

instituição que instaura ou cria uma necessidade ou possibilidade que

recai sobre o alvo deôntico, pessoa ou instituição à qual está dirigido o

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

valor deôntico instaurado. Categoria gramatical. Exprime diferentes tipos,

e em cada tipo diferentes graus, da atitude do locutor relativamente ao

conteúdo proposicional do seu enunciado e ao seu interlocutor. Os valores

modais podem ser subdivididos em deônticos, epistêmicos e apreciativos.

De acordo com Pinto (1994), a modalidade está inserida na função

interpessoal, pois tem como finalidade a expressão de nossas crenças ou

opiniões a respeito de um determinado assunto, como modo de interação

com as pessoas no mundo, mostrando nossos critérios de verdade e valor.

Há que evidenciar, retomando KOCH (2001), que quando

interagimos através da linguagem temos intenções, objetivos a serem

atingidos, pretendemos, quase sempre, causar reações, comportamentos

no interlocutor.

Neste trabalho nos deteremos no valor deôntico. Os enunciados

com valor deôntico exprimem juízos através dos quais o locutor procura

agir sobre o seu interlocutor impondo (ex.1), proibindo (ex.2) ou

autorizando (ex.3) a realização da situação representada pelo conteúdo

proposicional, num tempo necessariamente posterior ao tempo de

emissão do juízo deôntico. A modalidade deôntica é uma modalidade

intersujeito.

1.1.1. Valor de Obrigação

Um enunciado tem valor modal de obrigação quando o locutor

procura agir sobre o seu interlocutor ou, através do interlocutor, sobre

outro alvo deôntico, impondo a realização, ou proibindo a realização de

uma situação representada pelo conteúdo proposicional. Sendo uma

modalidade deôntica, a obrigação seleciona, em princípio, um conteúdo

proposicional [+Dinâmico]. Constata-se, que algumas situações estativas

que representam propriedades - por exemplo, ser cuidadoso, ser

antipático - podem combinar-se com um valor de obrigação: o sujeito

sintático sobre o qual se predica a propriedade é, nestes contextos,

construído como [+Agente] e o estado passa a ser [+Dinâmico],

adquirindo, características de atividade.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

1.1.2. Valor de permissão

O valor de permissão é um valor deôntico pelo qual o locutor

procura agir sobre o interlocutor, ou, através deste, sobre outro alvo

deôntico, eliminando quaisquer restrições à realização, pelo alvo deôntico,

da situação representada pelo conteúdo proposicional do enunciado, ou da

respectiva situação complementar. Ao contrário do valor de obrigação,

em que o locutor define e procura impor um único caminho, no valor de

permissão o locutor constrói a possibilidade de ser o interlocutor a

escolher, entre vários caminhos definidos pelo locutor. Tratando-se de um

valor deôntico, o conteúdo proposicional deve, em princípio, representar

uma situação [+Dinâmica], sendo o respectivo sujeito sintático

caracterizado como [+Agente].

2. ENFOQUE METODOLÓGICO: PRINCÍPIOS DE COLETA E ANÁLISE

DE DADOS

Primeiro, coletamos anúncios publicitários de revistas e por meio

da internet. Dividimos em duas categorias: anúncios impressos e anúncios

de outdoors. Em seguida, com base na apreciação dos números obtidos,

selecionamos recortes para a análise qualitativa da própria materialidade

discursiva do valor deôntico. Definido o corpus, atribuímos uma referência

a cada anúncio publicitário e organizamos os dados em uma tabela.

Categorizamos a ocorrência, o valor deôntico, a forma de expressão e o

gênero. Feito isso, fizemos os cruzamentos dos dados e analisamos os

resultados. Com análise dos resultados descobrimos qual o valor de

modalidade deôntica mais recorrente.

3. VARIÁVEIS DA MODALIDADE DEÔNTICA UTILIZADAS NA

PESQUISA

1. Valor deôntico

1.1. Proibição

1.2. Permissão sugestiva

1.3. Permissão autorizada

1.4. Permissão concessiva

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

1.5. Obrigação

2. Forma de expressão

2.1. Verbo pleno

2.2. Verbo auxiliar Modal

2.3. Adjetivo

2.4. Substantivo

2.5. Advérbio

4. ESCALA DE FREQUÊNCIA DOS FATORES NOS ANÚNCIOS DE

OUTDOORS

1 – Valor deôntico Frequência

1.1 – Proibição 07

1.2 – Permissão sugestiva 48

1.3 – Permissão autorizada 01

1.4 – Permissão concessiva 01

1.5 - Obrigação 02

Resultado: o valor deôntico de permissão sugestiva é

preponderante sobre os demais.

2 – Forma de Expressão Frequência

2.1 – Verbo pleno 46

2.2 – Verbo auxiliar modal 04

2.3 - Adjetivo -

2.4 - Substantivo 07

2.5 - Advérbio 01

Resultado: a forma de expressão de verbo pleno é superior a todas

as outras formas de expressão.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

5. ESCALA DE FREQUÊNCIA CRUZADA NOS ANÚNCIOS DE OUTDOORS

Grupo Frequência

1.2. Permissão sugestiva no

2.1. Verbo pleno 39

1.2. Permissão sugestiva no

2.4. Substantivo 04

1.1. Proibição no 2.1. Verbo Pleno 04

1.2. Permissão sugestiva no

2.2. Verbo auxiliar Modal 03

1.5. Obrigação no 2.1. Verbo pleno 02

1.1. Proibição no 2.4. Substantivo 02

1.1. Proibição no 2.5. Advérbio 01

1.4. Permissão concessiva no 2.2. Verbo auxiliar Modal

01

1.3. Permissão autorizada no 2.1. Verbo pleno

01

Resultado: o valor deôntico de permissão sugestiva expresso na

forma de verbo pleno é de alta frequência nos anúncios de outdoors,

enquanto os demais grupos são de frequência rara (demais grupos da

tabela) ou inexistente (caso dos grupos que não aparecem na tabela por

não existir nenhum caso de ocorrência).

6. CONCLUSÃO ACERCA DO VALOR DEÔNTICO NOS OUTDOORS

A leitura das ocorrências de modalidade deôntica no corpus

apresentado junto às reflexões teóricas, evidencia que existe grande

incidência da modalidade deôntica no valor de permissão sugestiva

expressada no verbo pleno. Este resultado da pesquisa se deve ao fato de

que as marcas de modalidade deôntica na publicidade compreendem a

intenção do anunciante de promover a atitude da concretização do ato de

comprar pelo cliente. Portanto, para persuadir o cliente o anunciante

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77

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

sugere uma necessidade do cliente que deve ser contemplada com a

aquisição do produto ofertado. A melhor forma de expressar a satisfação

de uma necessidade é através do uso do verbo pleno, por isso ele é

predominante na ocorrência de modalidade deôntica na publicidade.

7. ESCALA DE FREQUÊNCIA DOS FATORES

1 – Valor deôntico Total de ocorrências Frequência

1.1 – Proibição 05 Rara

1.2 – Permissão sugestiva 14 Alta

1.3 – Permissão autorizada 08 Moderada

1.4 – Permissão concessiva 11 Média

1.5 - Obrigação 07 Baixa

Resultado: o valor deôntico de permissão sugestiva é

preponderante sobre os demais, porém se constata que o valor de

permissão concessiva é também relativamente expressivo. Enquanto que

o de proibição é relativamente baixo em comparação aos demais.

2 – Forma de Expressão Total de ocorrências Frequência

2.1 – Verbo Pleno 18 Alta

2.2– Verbo Auxiliar Modal 25 Alta

2.3 - Adjetivo - Rara

2.4 – Substantivo 02 Baixa

2.5 – Advérbio - Rara

Resultado: a forma de expressão do verbo auxiliar modal é

superior à todas as outras formas de expressão, porém a forma de

expressão que se caracteriza com o verbo pleno é também bastante

utilizada. Enquanto a forma de expressão caracterizada no substantivo é

usada de forma rara.

8. ESCALA DE FREQUÊNCIA CRUZADA NOS ANÚNCIOS IMPRESSOS

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Grupo Frequência

Permissão sugestiva com verbo pleno 32

Permissão sugestiva com substantivo 16

Proibição com Verbo Pleno 23

Permissão sugestiva com verbo auxiliar

modal 39

Obrigação com verbo pleno 25

Proibição com substantivo 07

Proibição com advérbio 05

Permissão concessiva com verbo auxiliar

modal 36

Permissão autorizada com verbo pleno 26

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura das ocorrências de modalidade deôntica no corpus

outdoor apresentado junto às reflexões teóricas evidencia que existe

grande incidência da modalidade deôntica no valor de permissão sugestiva

expressada no verbo pleno. Este resultado da pesquisa se deve ao fato de

que as marcas de modalidade deôntica na publicidade compreendem a

intenção do anunciante de promover a atitude da concretização do ato de

comprar pelo cliente. Portanto, para persuadir o cliente, o anunciante

sugere uma necessidade do mesmo, que deve ser contemplada com a

aquisição do produto ofertado. A melhor forma de expressar a satisfação

de uma necessidade é através do uso do verbo pleno, por isso ele é

predominante na ocorrência de modalidade deôntica na publicidade.

Dessa forma, procuramos estabelecer relações entre o tipo de alvo

deôntico, o tipo de fonte deôntica, os valores instaurados (obrigação –

permissão - proibição), a posição do enunciador na incidência dos valores

deônticos, os tipos de modalizadores deônticos, bem como a Forma de

expressão no discurso publicitário. Para a análise dos dados, adotamos o

enfoque teórico funcionalista, na tentativa de integrar os componentes

sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Para o exame da manifestação da modalidade dêontica impressa,

utilizamos 20 anúncios publicitários impressos, veiculados em revistas

nacionais. A análise dos dados revelou-nos que a permissão sugestiva é o

valor deôntico mais instaurado nesse tipo de discurso, porém a permissão

concessiva também foi muito utilizada nos impressos. A forma de

expressão mais utilizada foi o verbo auxiliar modal, porém o verbo pleno

também apresentou alta frequência de uso. Quanto ao alvo deôntico,

constatamos que a maior parte dos valores instaurados incide sobre o

indivíduo. A opção por um posicionamento de exclusão do enunciador da

incidência dos valores instaurados foi a que adquiriu maior relevo, uma

vez que, em grande parte, os falantes instauram obrigações, permissões

ou proibições sobre os outros. Sendo assim, a modalidade deôntica se

presta à persuasão do leitor-consumidor como alvo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIK. C. S. The Theory of Funcional Grammar. Vol. 1. Ed by Hengeveld (Kees) Berlin,

1997a.

HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. Baltimore: 2004.

LYONS, John. Semantics. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.

PESSOA, Nadja Paulino. Modalidade deôntica e persuasão no discurso publicitário.

2007.

PINTO, Milton José. As marcas linguísticas da enunciação. Esboço de uma gramática

enunciativa do português. Rio de Janeiro, 1994.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

SEÇÃO 6

PLANOS DISCURSIVOS FIGURA E FUNDO EM CORPUS

LITERÁRIO

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

HILDA HILST: AUTORA DE FUNDOS

Tito de ANDRÉA MACHADO

Resumo: O artigo abaixo tem como objetivo discutir as relações entre figura e fundo na

Literatura contemporânea colocando em comparação os mesmos em relação com a

Literatura tradicional. A partir do romance A obscena senhora D de Hilda Hilst o texto se

constrói querendo demonstrar que o que era chamado fundo na Literatura tradicional,

agora, na contemporânea tornou-se figura: a linguagem, a elocução e o que era figura, o

enredo, a história, transmutou-se em fundo.

Palavras-chave: figura; fundo; Hilda Hilst; literatura; mudança.

INTRODUÇÃO

A arte contemporânea vem lançando novos paradigmas críticos. As

mudanças nas formas de pensar e realizar as obras vem pedindo dos

leitores e críticos que repensem as problemáticas levantadas por essa arte

que se reconstrói (BURRIAUD, 2009). Para a Literatura, é preciso observar

em quê e onde ela se diferencia do que foi.

Discutir a essência da diferenciação entre Literatura contemporânea

e Literatura tradicional, não é o objetivo de nosso artigo, mas tanger a

questão por alguns instantes permitirá solucionar alguns questionamentos

que possam vir a surgir. Contentar-nos-emos, então, em diferenciar

características básicas como as relações de enredo e de construção da

obra.

O enredo fragmentado não é uma invenção da, assim chamada,

pós-modernidade. Não. Machado de Assis (2010), por exemplo, é um

autor de textos fragmentados. Victor Hugo (1997), em seu romance O

último dia de um condenado à morte também constrói um romance

baseado em fragmentos. O que pode-se dizer é que a Literatura

contemporânea aprofundou as relações de fragmentação e nulidade dos

enredos. Essa nulidade é outra característica importante. Houve um

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

esvaziamento das narrativas, houve uma desconstrução dos gêneros

(BLANCHOT, 2011), esses prenúncios literários de fragmentação foram

aprofundados e exacerbados pela Literatura contemporânea.

Ainda sobre esse esvaziamento, é preciso falar das relações da

história que será contada. Literatura é uma forma de criar histórias e

mundos (DELEUZE, 2008, BLANCHOT, 2005). As formas como esse

mundo será criado mudarão bastante nessa transição entre esses períodos

formais e menos formais. O enredo, outrora, para o que estamos

chamando de Literatura tradicional, era o centro de importância, o ponto

de destaque. Lê-se para conhecer a história, saber o que ocorre, penetrar

num mundo de fatos ficcionais, mas fatos. O enredo era a figura e o fundo

para essa construção era a linguagem literária.

A nossa hipótese, aqui, é mostrar que, na vertente literária que está

instaurada em nossa contemporaneidade, a figura, a parte mais

importante do texto, o que se torna mais saliente ao olhar já não é, como

antes, o enredo, mas sim a linguagem. O ―como dizer‖, o ―o que é dito‖,

as estruturas de fala, os jogos linguísticos estabelecidos tornaram-se

ponto principal e figura das narrativas, sendo, finalmente, emolduradas

pela história narrada.

Aprofundemos a discussão:

1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Como foi dito, acima, o objetivo deste trabalho é demonstrar a

diferença entre o que foi figura/fundo na Literatura e o que hoje é. Para

tanto, precisamos de um aparato teórico de duas áreas. Aqui, estaremos

trabalhando com a linguística funcionalista e com a crítica contemporânea.

No que permeia a Literatura, na nossa discussão, nos

fundamentamos na crítica contemporânea, em autores como Deleuze e

Blanchot, que falam sobre o apagamento e o esvaziamento dos enredos e

das novas formas de encarar a Literatura. Sobre essas relações já

discutimos na sessão anterior de nosso trabalho. Passemos para as

discussões linguísticas em si, pois, apesar de estarmos falando sobre

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Literatura, é na Linguística que nossa discussão se aprofunda e é lá onde

travaremos nossa batalha mental.

Usaremos como base de nosso trabalho, os conceitos da Linguística

funcionalista estadunidense, principalmente os conceitos de Gívon,

abordados por Mariangela Rios de Oliveira e Maria Maura Cezario e por

Priscila Thaiss da Conceição, esta em sua dissertação de mestrado e

aquelas em artigo onde tomam essas bases teóricas. Partiremos da visão

das autoras sobre os conceitos teóricos que abordaremos.

Figura e fundo são termos emprestados da Gestalt, corrente da

psicologia que trabalha com a recepção e suas formas. Priscila Thaiss da

Conceição diz que para Koffka: ―figura, destaca alguns elementos em

relação à neutralidade de um outro plano, o Fundo, que serve de moldura

para a Figura, determinando-a.‖ ( 2010, p. 27). Essa citação é bem

oportuna, pois define bem o que pretendemos trabalhar.

A Linguística funcionalista toma esse conceito emprestado e o aplica

a seu objeto de análise, a língua. Figura, dentro dessa perspectiva, seria

então aquilo mais saliente, aquilo mais importante na fala ou no texto e

fundo aquilo que funciona como moldura para o que eu estou falando.

Outro conceito que nos será caro será o da iconicidade. O princípio

prega que o produtor da sentença a produz com o fim de tornar sua

construção mais próxima daquilo que ela decide representar. Por exemplo,

em uma narrativa cotidiana onde contamos como foi o nosso dia, uma

forma de começar a contar os ocorridos seria por sucessão cronológica:

contaríamos primeiro os acontecidos da manhã, depois da tarde, depois os

da noite. Assim, a forma obedece iconicamente ao modo como a coisa

narrada aconteceu.

Outro caminho escolhido seria o de contar por ordem de importância

aquilo que ocorreu. Assim, elegeríamos os itens mais importantes e os

colocaríamos em uma ordem icônica que iria do mais importante para o

menos importante, normalmente.

Essas possibilidades não são imposições, e sim, uma generalização

daquilo que ocorre na normalidade. A iconicidade prova que as

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

construções linguísticas não são caóticas, obedecem a uma lei mais ou

menos maleável que rege a construção do sentido. Dizer isso é dizer que

para fazer sentido nossa linguagem se torna icônica, tomando formas de

complexidade e ordem parecidas com aquilo que queremos dizer.

Essa lei não é eterna e não engessa a língua, podendo ser vertida e

pervertida de acordo com o falante, mas essa perversão da linguagem não

acarreta em caos, como seria com a desregração das leis físicas. Esses

―desvios‖ são conscientes e contribuem para a riqueza da língua.

Para encerrar essa etapa de nossa produção diremos que a

Literatura é a principal construtora dessa desregra. Ela é responsável por

fazer flutuar os significantes e fazer dançar os significados. Para Deleuze

(2008) a Literatura não representa um mundo, o apresenta. Essa

diferença é crucial, pois confere à linguagem um poder criador eterno que

pode fazer o que deseja. O escritor, para Blanchot (DATA), possui apenas

o infinito. Então leis físicas e lingüísticas estão ambas passíveis de delírio

e perversão, veremos.

2. METODOLOGIA

Através da leitura de textos e de sua comparação, pretendemos, no

artigo corrente, desenvolver uma análise qualitativa baseada em

diferentes períodos da Literatura.

Utilizando, como já foi mencionado a Linguística funcionalista, como

base teórica, associada a nossa leitura de diversos autores dos períodos

que pretendemos colocar em comparação, procuramos comprovar as

mudanças de figura e fundo ocorridas na contemporaneidade.

Tomamos aqui, para ser o centro de nosso olhar crítico a autora

brasileira Hilda Hilst – mais precisamente seu volume A obscena senhora

D (2001) –, mas não apenas ela. Tomamo-nos o direito de usar outros

autores para exemplificar a proposta quando nos for oportuno.

A proposta então se configura em – como já dissemos – uma análise

qualitativa das questões de figura e fundo partindo da Literatura,

principalmente de Hilda Hilst (2001), usando seu romance, para

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

demonstrar a mudança de perspectiva que a Literatura contemporânea

vem tomando ao colocar como parte mais saliente de sua produção a

própria linguagem e deixar, como moldura, a história em si.

Iniciemos:

3. ANÁLISE

A idéia que pretendemos desenvolver aqui parte, como já foi dito,

de que há uma diferença entre o que decidimos chamar de Literatura

tradicional, onde o enredo é o centro, a principal coisa observada, a

figura, daquilo que está sendo contado e a linguagem, a forma de contar é

a moldura, margem, fundo da narrativa.

Em autores tradicionais como Balzac (1995), por exemplo, em seu A

mulher de trinta anos, podemos perceber claramente o objetivo formal da

história que quer ser contada. O enredo complexo, os muitos dilemas dos

personagens, tudo é demonstrado a partir da rica escrita do autor, que

usa sua linguagem como fundo para sua escrita. O importante ali é,

também, como Balzac conta sua história, mas não é o central, a história

contada é o mais importante. O que ocorre? Como ocorre? Com quem

ocorre? As respostas dessas perguntas salientam a figura.

Na Literatura tradicional há, pois, um modelo tradicional de

romance, com começo, meio e fim, com personagens vivendo algo. O

modelo aristotélico de literatura, que a compreendia como mímesis, como

uma forma de mostrar o real – mesmo que inventado –, que propunha

uma peripécia, algo que devesse ser vivido.

Dentro dessa perspectiva de arte, podemos dar como exemplo a

pintura, as cores, numa perspectiva clássica, são o fundo para a imagem

que surge, obviamente a figura. O objetivo, dessa pintura que

imaginamos, é mostrar a imagem final, o produto: a pintura. Hoje, na

pintura – assim como na Literatura – há uma inversão, artistas como

Jackson Pollock dão às cores um espaço central, ao desconstruir a idéia

que a pintura precisa passar uma imagem.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Voltemos nosso olhar à Literatura e percebamos que essa inversão é

verdadeira, também aqui. O enredo se esvazia e perde sua importância,

questiona-se a idéia de que é preciso contar algo ou que a arte serve para

demonstrar ou espelhar a realidade. Deleuze (2008) diz que a Literatura é

uma forma de construir, a partir da linguagem, um mundo novo, mas não

para chegar ao ―mundo real‖ à ―memória‖ e sim para instituir e apresentar

esse novo mundo. Blanchot (2005) compara a linguagem literária ao

canto das sereias que leva o homem atento e apaixonado ao afogamento

e seu eventual devoramento pela sereia-linguagem-literatura, é preciso

abandonar o mundo e se envolver se deixar levar, esquecer.

O que ocorre, então, é uma destruição do padrão vigente, mas não

tomamos destruição aqui no sentido popular cotidiano do termo, tomamos

o conceito de Heidegger (2009) que diz que destruir algo não é deixá-lo

em ruínas, mas sim abri-lo para uma nova forma de observação, permitir

que fale de uma nova forma. Tomando esse olhar destruidor, colocamos

em foco a Literatura que não quer mais dizer uma coisa, não quer mais

ensinar nada, não se presta a construção de um saber, não pode mais ser

tangida por explicações (BARTHES, 2004).

Dizíamos que, em Literatura, o que a linguística funcionalista

chamou de figura e fundo, vinha sendo este a linguagem e aquele o

enredo. Mas, com as mudanças ocasionadas com as fragmentações que a

pós-modernidade causou como a perda de contornos e a incapacidade de

se situar como um ―eu‖ único e formado (BAUMAN, 2004) e a

possibilidade de ―não-lugares‖ (AUGÉ, 2004) locais de trânsito com os

quais não se estabelece vínculo, a Literatura destruiu os enredos e os

acontecimentos miméticos. O importante agora é mostrar o delírio,

construir um mundo da linguagem e não um com ela.

Os enredos então se tornam forma de justificar aquela linguagem,

aquela desconstrução. O enredo passa a ser moldura, ele é o que constrói

o mundo onde se espraia e se mostra a linguagem, agora em destaque,

agora figura. Tomemos, agora, o exemplo de Hilda Hilst (2001).

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Nele, a autora constrói uma história voltada para o delírio e para a

desconstrução. A história, por si só, é bastante simples, Hillé, a

personagem principal perde o contato com a realidade e passa a procurar

pela razão das coisas debaixo do vão de sua escada, lugar aleatório tão

bom quanto qualquer outro para iniciar uma busca, após a morte de seu

marido Ehud, seu quadro piora e ela passa a, definitivamente morar lá,

debaixo da escada que liga a porta de entrada à casa propriamente dita.

Hillé passa a morar então nesse espaço de transição, o vão da porta e da

escada, onde confecciona máscaras que usa para assustar vizinhos que a

incomodam.

O enredo vai-se mostrando aos poucos, mas é de fácil inferência e a

ele cabe a justificativa àquele discurso. O discurso de Hillé, sua fala louca,

sua perturbação, sua insanidade, seus devaneios são aquilo que se coloca

em foco.

O fundo serve para dar o contorno daquilo que é mais importante,

de essencial. Nesse caso, da narrativa da escritora, percebemos

nitidamente que o mais importante ali é o que está sendo dito, a forma

como a coisa está sendo dita, o devaneio poético, a linguagem sedutora, o

canto de sereia maligno que leva à loucura de Hillé e do leitor tragado

pela leitura.

A linguagem é a figura, é nela que nos deleitamos, é ela que nos

confunde, que nos prega peças, que nos faz pensar. É a linguagem de

Hillé, a personagem principal da trama, sendo Hillé apenas uma desculpa

para que aquele discurso poético se concretize, Hillé torna-se sua

linguagem, sua loucura, sua nudez poética demonstrada em discurso

destruído, derrelido.

Percebemos então uma mudança visível entre as duas formas de

conceber e de tratar o texto literário. Numa perspectiva tradicional a

linguagem se configura como o fundo, aquilo que sustenta o que é dito,

aquilo que permite uma saliência. Por sua vez, a Literatura

contemporânea – pós moderna – se mostra como esvaziadora dos

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

sentidos, dos saberes, dos enredos quando os transfere para o fundo e dá

o local de destaque para a elocução e o delírio literário.

4. DISCUSSÃO

Retomando o que foi dito, esse trabalho tem o objetivo de abrir

portas para uma discussão a respeito da questão figura e fundo na

Literatura contemporânea, a partir da idéia de uma revolução no que se

convencionara perceber como fundo e figura na Literatura tradicional.

A idéia de que, nos textos tradicionais, Balzac (1995), por exemplo,

o centro é a história, a vida dos personagens, o que pensam e o que

fazem. Sendo aí, a elocução apenas a forma de transmitir isso, assim

como na pintura clássica, as cores eram apenas mecanismos para a

construção da imagem pictórica final. Hoje, podemos perceber, haver uma

mudança na questão da forma artística e a Literatura não fica de fora

desse sistema. A mudança operada é a da saliência. A base da Literatura,

a língua, as palavras, a construção, o discurso poético, torna-se o foco, a

figura. O enredo passa a ser aquilo que justifica o surgimento dessa

linguagem, dessa fala.

No texto de Hilda Hilst (2001) temos um plano de fundo bem

simples do ponto de vista aristotélico, há pouca ação, uma mulher louca

debaixo da escada assustando, esporadicamente, os vizinhos. O texto se

aprofunda e se mostra colorido, nas palavras da personagem, no seu

conflito com Deus e com a loucura, nos tratos com o marido morto, enfim,

na forma como se expressa.

Podemos então perceber, aí, esse câmbio entre figura e fundo e não

esperamos, aqui, encerrar a discussão, mas abri-la, expandi-la e construir

mais questionamentos para que possamos melhor elucidar o assunto.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Volume 2. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural,

1991.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril, 2010.

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89

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 4ª ed.

Campinas, SP: 2004.

BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos. São Paulo: Nova cultural, 1995

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008

BAUMAN, Zygmunt, Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de

Janeiro: Zahar, 2004.

BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

BLANCHOT, Maurrice. O livro por vir. São Paulo: Martin, 2005

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.

CONCEIÇÃO, Priscila Thaiss. Planos discursivos em diferentes níveis de

escolaridade: estudo de recontagem de Figura e Fundo. Dissertação de Mestrado em

Linguística apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de

Letras da UFRJ, 2010,

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 2008

HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia; Identidade e diferença. 2 ed. –

Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.

HUGO, Victor. O último dia de um condenado à morte. Rio de Janeiro: Newton

Compton Brasil ltda, 1997.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

OS PLANOS DISCURSIVOS FIGURA E FUNDO NO CONTO “UM ROUBO”, DE MIGUEL TORGA

Lídia Barroso GOMES

Madjer Raniery de Souza PONTES Vanessa Silva ALMEIDA

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar os planos discursivos Figura e Fundo

no conto ―Um Roubo‖, contido no livro Contos da Montanha, do escritor português

regionalista Miguel Torga. Para isso, selecionamos um número de 105 orações dentro do

conto e analisamos segundo os conceitos de transitividade da gramática funcional

propostos por Hopper e Thompson (1980), Silveira (1990), Silva (2007) e Conceição

(2010). O motivo pelo qual nos apoiamos nestes autores é o fato de os planos

discursivos Figura e Fundo terem estreita relação com os conceitos de transitividade da

Linguística Funcional. Cinco variáveis foram consideradas na análise do corpus: estrutura

narrativa, plano discursivo, aspecto verbal, modalidade e tipo de predicado. Observamos

que em textos narrativos as cláusulas-fundo ocorrem mais frequentemente do que

cláusulas-figura, pois a Figura constitui a estrutura básica da narrativa contendo mais

verbos perfectivos na modalidade realis, enquanto que o Fundo é constituído por verbos

imperfectivos na modalidade irrealis e desenvolvem a Figura.

INTRODUÇÃO E OBJETIVOS

A comunicação humana, ao longo do século XX, especificamente a

partir do Circulo Linguístico de Praga, vem sendo um dos temas mais

discutidos no campo da Linguística. A língua, sob a perspectiva

funcionalista, passa a ser tratada com mais dinamicidade, por levar em

consideração não apenas o uso da norma culta no ato comunicativo, mas

também elementos que outrora não eram considerados como relevantes

em seu estudo, como por exemplo, o uso que os falantes fazem dela, a

intenção do emissor ao produzir uma mensagem dentre outros. Motivados

por estas questões é que nos propomos a tratar sobre os planos

discursivos Figura e Fundo.

Os planos discursivos Figura e Fundo têm sido amplamente

discutidos nos estudos de Linguística Funcional. Autores como Hopper e

Thompson (1980) e Silveira (1990) se dedicaram ao estudo desses fatores

como sendo recorrentes na língua considerando o seu uso real.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Hopper e Thompson (1980) relacionam os planos discursivos Figura

e Fundo com a transitividade (esta envolvendo todos os componentes da

oração, diferentemente da Gramática Tradicional, que concebe a

transitividade como uma característica somente do verbo). Silveira

(1990), por sua vez, amplia o conceito de Figura e Fundo concebido por

Hopper e Thompson (1980) e estabelece 5 níveis diferentes para o plano

Fundo, que vão do mais próximo da Figura ao mais distante.

Segundo Silveira (1990), a Figura é o plano mais saliente da

narrativa e Fundo é o que funciona como uma moldura para a Figura, ou

seja, o que está em volta dela apresentando circunstâncias, cenários,

personagens, falas, etc.

Esses planos discursivos são significativamente estudados em

narrativas tanto orais como escritas. Nesse sentido, nosso trabalho se

debruçará sobre a narrativa escrita e tem o objetivo de analisar a

configuração dos planos discursivos Figura e Fundo no conto ―Um Roubo‖

do escritor português Miguel Torga.

1. METODOLOGIA

Para realizar este trabalho, fizemos a leitura do conto ―Um Roubo‖,

de Miguel Torga e selecionamos um número de 106 orações para compor

o nosso corpus. De posse do corpus, elaboramos uma tabela com todas as

orações enumeradas a partir do número 1 ao 106 e estabelecemos as

variáveis sob as quais as orações foram analisadas. As variáveis foram:

estrutura narrativa (orientação, complicação, ação e resolução), plano

discursivo (Figura e Fundo), aspecto verbal (perfectivo e imperfectivo),

modalidade (realis e irrealis) e tipo de predicado (ação e não-ação).

Após classificarmos todas as orações dentro das variáveis

supracitadas, calculamos as frequências simples de cada grupo de fatores,

relacionamos esses fatores entre si e organizamos os resultados em

tabelas que serão gradativamente mostradas no decorrer deste trabalho.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Este trabalho está fundamentado nos conceitos de Hopper e

Thompson (1980; apud SILVA, 2007; CONCEIÇÃO, 2010), Silveira (1990;

apud SILVA, 2007; CONCEIÇÃO, 2010).

3.1 Figura e Fundo

Hopper e Thompson (1979; apud CONCEIÇÃO, 2010) considera

Figura como sendo o plano mais saliente da narrativa, ou seja, o mais

simples morfossintaticamente e, consequentemente, mais simples para o

ouvinte/leitor identificar. O plano de Fundo, por sua vez é, ainda segundo

Conceição (2010), o mais periférico, que apresenta uma estrutura

morfossintática mais complexa.

Determinados aspectos caracterizam Figura e Fundo, como por

exemplo: a presença de verbos punctuais, afirmativos e no aspecto

perfectivo caracterizam Figura, enquanto verbos durativos e estativos,

que indicam ações incompletas (aspecto imperfectivo) caracterizam

Fundo.

Além desses aspectos, outros são considerados quando os planos

discursivos Figura e Fundo são discutidos. Hopper e Thompson (1980;

apud SILVA, 2007) associam esses planos com a transitividade das

orações. Segundo esses autores, quanto mais transitiva for a cláusula,

mais efetiva é a ação e sendo a ação mais efetiva, tende a funcionar no

plano da Figura. As cláusulas que funcionam no plano de Fundo são

menos transitivas.

É importante observar que Hopper e Thompson (1980; apud

SILVA, 2007) demonstram que uma oração inteira pode ser mais ou

menos transitiva, o que difere da abordagem tradicional, que considera

somente os verbos como sendo dotados de transitividade. Assim, para

estes autores, todos os componentes da oração são considerados dentro

da noção de transitividade.

A noção de transitividade em Hopper e Thompson (1980; apud

SILVA, 2007) envolve uma série de fatores que influenciam o conceito de

Figura e Fundo, tais como participantes, cinese, aspecto verbal,

Page 93: Funcionalismo em Perspectiva 3

93

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

punctualidade, volitividade, agentividade, modalidade, polaridade,

afetamento do objeto e invidualização do objeto.

Segundo as definições de Hopper e Thompson (1980; apud SILVA

2007), Silva (2007: 53) organiza a tabela a seguir para demonstrar as

características de cada um desses fatores em relação à efetividade da

ação, e consequentemente, aos planos de Figura e Fundo.

COMPONENTES ALTA

TRANSITIVIDADE

BAIXA

TRANSITIVIDADE

Participantes Dois ou mais (Agente e

Objeto) Um

Cinese Ação Não-Ação

Aspecto Télico Atélico

Punctualidade Pontual Não-Pontual

Volitividade Proposital Não-Proposital

Polaridade Afirmativa Negativa

Modalidade Realis Irrealis

Agentividade Mais Agente Menos Agente

Afetamento do

Objeto

Objeto totalmente

afetado

Objeto parcialmente

afetado

Individualização do Objeto

Objeto muito individualizado

Objeto pouco individualizado

A alta transitividade está, portanto, associada ao plano da Figura e

a baixa transitividade, por sua vez, ao plano de Fundo.

Conceição (2010) formula diferenças entre Figura e Fundo. A

autora defende que ―os eventos de Figura se sucedem uns aos outros na

narrativa na mesma ordem em que os fatos se sucederam no mundo real

(...) [e] os eventos de Fundo concorrem com os de Figura, ampliando-os

ou comentando-os.‖ (CONCEIÇÃO, 2010: 29)

Esta diferença diz respeito à sequencialidade das ações. Porém,

Hopper e Thompson (1979; apud SILVA, 2007; CONCEIÇÃO, 2010)

destacam ainda que eventos de Figura são mais dinâmicos, sendo os

verbos pontuais e perfectivos mais predominantes. Eventos de Fundo, em

contrapartida, são menos dinâmicos e possuem verbos durativos ou

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94

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

estativos e imperfectivos. Além disso, propõem que eventos de Figura são

narrados, enquanto eventos de Fundo não os são.

Conceição (2010: 30) elabora uma tabela na qual diferencia os

planos de Figura e Fundo:

FIGURA FUNDO

Perfectivo Imperfectivo

Sequência cronológica Simultaneidade e superposição

cronológica de uma situação C com o

evento A e/ou B

Visão do evento como um todo, do qual a completude é um pré-

requisito necessário para o evento subseqüente.

Visão de uma situação ou acontecimento

do qual a completude não é um pré requisito necessário para os eventos

subsequentes

Identidade do sujeito com cada

episódio discreto. Frequentes mudanças de sujeito

Distribuição não-marcada do foco na oração, com pressuposição do

sujeito e asserção no sujeito e seus complementos imediatos

Distribuição do foco marcada, por

exemplo, foco no sujeito, foco na

sentença adverbial

Tópicos humanos Variedade de tópicos, incluindo

fenômenos naturais

Eventos dinâmicos, cinéticos Situações estáticas, descritivas

Realis Irrealis

Além de todos os fatores mencionados acima, Silveira (1990; apud

SILVA 2007; CONCEIÇÃO, 2010) amplia a noção de Fundo de Hopper e

Thompson (1979). Segundo a autora, nem todos os tipos de fundo podem

ser considerados em um mesmo nível. Há aqueles que se aproximam mais

do plano de Figura e outros que se aproximam menos. Sendo assim, a

autora estabelece cinco níveis diferentes para o plano de Fundo, que vai

do mais próximo da Figura ao mais distante.

Silva (2007) comenta os cinco níveis estabelecidos por Silveira

(1990), dizendo que o 1º nível está mais próximo da Figura, por conter

Page 95: Funcionalismo em Perspectiva 3

95

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

informações concretas sobre o evento, como a apresentação do evento,

do cenário, dos participantes e da fala dos participantes. O 2º nível é um

pouco mais abstrato do que o 1º e apresenta o âmbito em que os fatos

ocorreram através de circunstâncias (tempo, modo e finalidade). O 3º

nível é onde ocorre a especificação de referentes e de processos-ação.

Este nível é mais elaborado linguisticamente e é comum a presença de

orações subordinadas adjetivas e orações subordinadas substantivas. O 4º

nível engloba as inferências dos fatos que estão sendo narrados (causa,

consequência e adversidade). Afastam-se do evento pelo fato das

inferências de cada ouvinte/leitor serem diferentes. O 5º nível, por fim, é

o mais abstrato de todos e diz respeito às interferências do falante na

narrativa (expressão de opinião, resumo, dúvida, conclusão e canal2).

Conceição (2010: 32) organiza esses conceitos de Silveira (1990)

em uma tabela na qual especifica os cinco níveis de fundidade

estabelecidos por Silveira (2010):

Categoria

Grau de

Objetividade (do mais icônico

para o menos icônico)

Como são

Tipo de cláusula-Fundo (relação

funcional entre as cláusulas

Fundo 1

mais próximo do

real, mais

concreto

cláusulas-Fundo que apresentam

informações

concretas sobre o evento

Apresentação do evento;

Apresentação do cenário;

Apresentação dos

participantes; Apresentação da

fala dos participantes.

Fundo 2

ainda próximo do

real, mas mais abstrato.

cláusulas-Fundo que, através de

circunstâncias, especificam o

âmbito em que

Especificação de tempo;

Especificação de modo;

Especificação de 2 De acordo com Silva (2007) o falante/narrador tenta atrair a atenção do ouvinte para o que está sendo

narrado por meio de perguntas que inserem o ouvinte/leitor na narrativa.

Page 96: Funcionalismo em Perspectiva 3

96

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

os fatos se deram

finalidade.

Fundo 3

Próximo da

estrutura do texto (mais abstrato e

Elaborado linguisticamente)

cláusulas-Fundo que especificam

vocábulos da

cláusula anterior

Especificação de referente;

Especificação de

processo/ação

Fundo 4

Próximo da interpretação do

falante ao assistir ao evento

cláusulas-Fundo que especificam

relações inferidas dos fatos

narrados

Especificação de

causa; Especificação de

consequência; Especificação de

adversidade.

Fundo 5 próximo do ato de

narração

cláusulas-Fundo

que apresentam interferências do

falante no evento

que está narrando

Apresentação de

opinião; Apresentação de

resumo; Apresentação de

dúvida;

Apresentação de conclusão;

Apresentação de canal.

Todos esses aspectos e conceitos serão levados em consideração

no momento da análise do corpus da nossa pesquisa.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Observamos no corpus analisado que os planos discursivos Figura e

Fundo se apresentam da seguinte maneira: Figura apresenta menor

predominância em todo o conto, das 105 ocorrências, apenas 27,62% são

Figuras, o que confirma nossa hipótese inicial em que supomos que por

ser a estrutura básica do texto, ocorreria com menos frequência. Com

relação ao plano discursivo Fundo vemos que este apresenta maior

predominância por ser aquilo que se desenvolve a partir da Figura, ou

seja, 72,38% do total de ocorrências representam Fundo.

Com relação a nossa primeira variável, que é a estrutura narrativa,

percebemos que a ação comporta o maior número de ocorrências dos

planos discursivos tanto Figura quanto Fundo. Os resultados podem ser

visualizados na tabela 1:

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Tabela 1: Estrutura Narrativa

Ocorrên

cias

Orientação (Total/Perce

ntual)

Complicação (Total/Perce

ntual)

Ação (Total/Perce

ntual)

Resolução (Total/Perce

ntual)

Figura 3 (14,28%) 7 (43,75%) 15 (25,87%) 3 (30%)

Fundo 1 5 (23,80%) 1 (6,25%) 11 (18,96%) 3 (30%)

Fundo 2 3 (14,28%) 1 (6,25%) 8 (13,80%) 3 (30%)

Fundo 3 5 (23,80%) 3 (18,75%) 8 (13,80%) 0 (0%)

Fundo 4 1 (4,76%) 0 (0%) 2 (3,44%) 1 (10%)

Fundo 5 4 (19,04%) 4 (25%) 14 (24,13%) 0 (0%)

Total 21 (100%) 16 (100%) 58 (100%) 10 (100%)

Considerando que a orientação, a complicação e a resolução são as

partes mais curtas da estrutura narrativa podemos observar que os

resultados são proporcionais, enquanto a ação por ser a parte mais

central da narrativa, consequentemente mais longa, comporta mais

ocorrências.

Considerando a variável aspecto verbal percebemos que a presença

de verbos imperfectivos é muito mais recorrente devido ao número de

cláusulas-fundo ser maior, pois de acordo com Silveira (1990), nas

narrativas por serem apresentadas sequências de eventos o discurso

impõe uma interpretação perfectiva em eventos-figura.

Consequentemente, os verbos perfectivos aparecem com menos

frequência.

Porém, observamos que as cláusulas de Fundo 1 ou Fundo 2

podem aparecer com verbos perfectivos por estarem mais próximos da

Figura3, como no exemplo abaixo:

(1) “Foi numa noite medonha, cheia de água e gelada4 que o

Faustino assaltou a Senhora da Saúde.” (TORGA, 1996: 27)

A parte grifada representa Fundo 2. De acordo com Silveira (1990),

Fundo 2 ainda está próximo à Figura, porém, um pouco mais abstrato. No

3 Destacamos que ocorrências deste tipo são raras.

4 Grifo nosso.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

exemplo acima vemos que apesar do verbo ―foi‖ está no pretérito perfeito,

e por isso perfectivo, a oração não é uma cláusula-figura, mas uma

cláusula-fundo. A cláusula-figura é a oração posterior.

Em relação à variável modalidade observamos que ela tem

intrínseca relação com o aspecto verbal, sendo que as ocorrências de

verbos imperfectivos equivalem as ocorrências de modalidade irrealis e as

ocorrências de verbos perfectivos equivalem as ocorrências de modalidade

realis.

Abaixo, relacionamos o aspecto verbal e a modalidade na tabela 2,

por termos obtido os mesmos resultados para as ocorrências de ambos:

Tabela 2: Aspecto Verbal e Modalidade

Aspecto

Modalidade

Ocorrência Percentual

Perfectivo

Realis

36 34,28%

Imperfectivo

Irrealis

69 65,71%

Total 105 100%

Finalmente, temos a variável tipo de predicado. Observamos que

69,52% do total de ocorrências são predicados não-ação, o que

demonstra que por se tratar de uma narrativa os eventos acontecem em

sequência e as situações são apresentadas em progresso. Vejamos os

exemplos abaixo:

(2) ―Há tempos já que a ideia desse roubo o obcecava (...)‖

(TORGA,1996:27)

(3) ―Infelizmente, a Senhora da Saúde não ficava logo ali.‖

(TORGA,1996:30)

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

(4) ―A caixa das esmolas estava ao fundo, enterrada na parede

(...)‖ (TORGA, 1996:33)

(5) ―(...) caminhava5 pela capela abaixo com a indignada razão.‖

(TORGA, 1996:34)

Observamos que todos os verbos nos exemplos acima estão no

pretérito imperfeito o que indica um evento em progresso, caracterizando

um predicado não-ação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma pudemos concluir que nas narrativas as cláusulas-fundo

são mais recorrentes e, consequentemente, tudo que se relaciona com as

cláusulas-fundo. A Figura, por constituir a base da narrativa, ocorre com

menos frequência e é caracterizada por verbos de ação, sendo esses

verbos perfectivos na modalidade realis, enquanto que no plano discursivo

Fundo ocorre o inverso: é caracterizado por verbos de não-ação,

imperfectivos na modalidade irrealis. Porém, houve uma ocorrência em

nosso corpus de o verbo ser perfectivo na modalidade realis e funcionar

como Fundo, como no caso do exemplo 1.

Esperamos com este trabalho contribuir para futuras pesquisas a

respeito de planos discursivos em narrativas literárias, pois consideramos

a interdisciplinaridade entre Linguística e Literatura de fundamental

importância para o estudo do funcionamento da linguagem.

REFERÊNCIAS

CHEDIER, Carolina Moreira. Perfil de figura fundo em crianças com e sem queixas

escolares. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras) - Centro de Humanidades,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

CONCEIÇÃO, Priscila Thaiss. Planos Discursivos em Diferentes Níveis de

Escolaridade: Estudo de Recontagem de Figura e Fundo. 2010. Dissertação

(Mestrado em Letras) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

2010.

SILVA, Anderson Godinho. Orações modais: uma proposta de análise. Rio de Janeiro,

Faculdade de Letras/UFRJ, 2007. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa.

5 Grifos nossos.

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100

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

________. A Transitividade e os Planos Discursivos Figura e Fundo nas Orações

Subordinadas Adverbiais Modais. Cadernos do CNLF, Série X, nº10, s/d.

SOARES, Paulo Monteiro. Planos Discursivos em Sambas de Enredos Numa Perspectiva

Histórica. Cadernos do CNLF, anais, nº 5, s/d.

TORGA, Miguel. ―Um Roubo‖. In: Contos da Montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1996.

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101

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

PLANOS DISCURSIVOS NOS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR: UMA ANÁLISE FUNCIONAL

Gabriela Roberto do Vale ALVES

Mayara de Souza FERREIRA

Resumo: Esse artigo irá analisar planos discursivos a partir da oposição Figura e Fundo

nos contos ―Tentação‖ e ―A Solução‖, inclusos no livro A Legião Estrangeira (1980) de

Clarice Lispector. Valemo-nos de teóricos como Labov (1967) e Adam (1984) a fim de

obtermos os conceitos e definições de sequência narrativa numa perspectiva funcional.

Recorremos também a Hopper (1979), para fundamentar o conceito de Figura e Fundo.

Nosso objetivo é identificar que plano discursivo predomina na narrativa, em que

estruturas do conto (orientação, complicação, ação, resolução e moral), proposições

nomeadas por Labov (1967), são mais frequentes planos de Figura e/ou Fundo. Para

isso, realizamos uma análise qualitativa, classificando o conto em quatro variáveis:

estrutura, plano discursivo, aspecto verbal e modalidade. Partindo da análise dos dados,

percebemos os diferentes modos pelos quais a escritora Clarice Lispector utilizou os

planos discursivos para construção dos contos e que em proposições de ação e resolução

há mais presença de Figura. Concluímos que a Fundo, ocorre com mais frequência que a

Figura, pois as clausulas Fundo dão suporte ao elemento central e desenvolvem-se a

partir dele.

PALAVRAS-CHAVE: conto; clarice lispector; plano discursivo

INTRODUÇÃO

Quando contamos uma história, seja uma situação corriqueira ou

até mesmo narrativas retiradas de um livro, procuramos estabelecer a

ordem das informações de acordo com a nossa percepção acerca do fato.

Assim, buscamos colocar em evidência aquilo que consideramos como

ponto principal da história, ou seja, o que é mais acentuado, que segundo

Hopper, é classificado como Figura. Já o que avaliamos como ações

secundárias, isto é, ações menos salientes compõe o plano Fundo.

A narrativa, por sua vez, também passa por esse processo, o autor

pode utilizar diferentes formas para contar uma estória. Dessa forma o

escritor pode privilegiar uma leitura de fácil compreensão, utilizando o

plano Figura com mais frequência, que por ser mais saliente e pode

possuir codificação mais simples, ou Fundo para tornar mais difícil, pois as

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

clausulas Fundo apresentam uma compilação morfossintática mais

complexa, com eventos não necessariamente completos.

Segundo Givón (1979 e 1995) quanto mais planejado o discurso,

menos orações justapostas, menos repetições, menos construções tópico-

comentário há no discurso e vice-versa. Assim, textos escritos planejados

podem ser ainda mais difíceis para a compreensão do que textos orais no

que fere aos planos discursivos.

Desta forma, procuramos trabalhar com o conceito de Figura e Fundo,

segundo Hopper, dentro da narrativa. Utilizaremos também Silveira

(1997) com a Hierarquia de Funidade. Para isso, utilizaremos dois contos

de Clarice Lispector, ―A solução‖ e ―Tentação‖ retirados da obra A Legião

Estrangeira para verificar, se de fato, a autora segue alguma

normalização. Partindo da análise funcional, utilizaremos o conceito de

estrutura narrativa proposto por Labov (1967, p. 27), no qual ―a narrativa

possui uma dimensão cronológico-sequencial que ordena os elementos um

após o outro‖, como também de Adam (1984) que parte do princípio de

que o processo narrativo apresenta uma situação lógica na qual atuam

três papéis básicos: vítima, agressor e ajudante.

1. A PERSPECTIVA FUNCIONAL DA SEQUÊNCIA NARRATIVA NOS

CONTOS

Segundo Labov (1967) a narrativa é definida como um método de

recapitulação de experiências passadas comparando uma sequência verbal

de proposições com a sequência de eventos que de fato ocorreu. Segundo

Labov (1967), a narrativa vai ter duas funções fundamentais: de

referência e avaliação. A função de referência aparece na transmissão de

informações que encontramos na narrativa, sendo estas de lugar, de

tempo, de personagens, de eventos (o que, o onde e o como os fatos

ocorreram) e da sequência temporal das ações ou dos episódios. A função

de avaliação transmite ao ouvinte o motivo da narrativa ter sido contada,

tanto na forma da expressão explícita da importância da história para o

narrador, como na dos juízos de valor emitidos ao longo da narrativa.

Page 103: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Assim, Labov e Waletzky (1967) centram suas definições de núcleo

narrativo menos sobre a organização temporal e sobre o esqueleto dos

eventos objetivos do que sobre a dimensão avaliativa que precisa o ponto

central da narrativa, e colocando o acento sobre os eventos mais

importantes.

(...) uma narrativa mínima como é uma sequência de duas

proposições narrativas restritas, temporalmente ordenadas, de

maneira que uma mudança em sua ordem resultará na mudança

na sequência temporal da interpretação semântica original.

(LABOV E WALETZKY, 1967 p. 27).

Tal esquema divide a narrativa em cinco macro-proposições. Um

texto narrativo inicia a partir de uma Orientação na qual são definidas as

situações de espaço, tempo e características das personagens. Em

seguida, ocorre uma Complicação através de uma ação que visa modificar

o estado inicial e que dá início à narrativa propriamente dita. A narrativa,

então, culmina no momento em que uma Ação transforma a nova situação

provocada pela complicação ou em que uma Avaliação da nova situação

indica as reações do sujeito do enunciado. Desse modo, a narrativa chega

a um Resultado em que é estabelecido um novo estado, diferente do

estado inicial da estória. O final da narrativa se dá no momento em que é

elaborada uma Moral, a partir das consequências da estória. Todorov

(1971), a partir da crítica literária, proporá uma definição da narrativa que

também aponta para os 3 conceitos de macroestrutura narrativa e de

macro-proposição narrativa foram cunhados por Adam (1984 e 1985) e

aplicado às teorias do enunciado narrativo de diversos autores.

Para Adam, a sequência narrativa se caracteriza por apresentar:

sucessão de eventos, uma unidade temática, predicados transformados,

um processo, uma intriga e uma avaliação final.

Para que um grupo de proposições narrativas forme uma

seqüência é preciso não somente que um mesmo ator as unifique

atravessando-as, mas também que haja uma transformação

(ADAM, 1985, p. 54).

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Dentro desse panorama, o esquema prototípico da sequência

narrativa pode ser descrito a partir de cinco macro-proposições que são:

situação inicial, complicação, (re)ações, situação final e moral.

2. LINGUÍSTICA FUNCIONAL NORTE AMERICANA

O Funcionalismo é uma corrente linguística que se preocupa em

estudar a relação entre a estrutura gramatical das línguas e os diferentes

contextos comunicativos em que elas são usadas. A língua não constitui

um conhecimento autônomo, independente do comportamento social, ou

seja, é uma estrutura maleável que está suscetível a pressões oriundas

das diferentes situações comunicativas em que está envolvida. O

funcionalismo, portanto, trabalha com a hipótese de que a forma deve

refletir, em alguma medida, a função que exerce.

A abordagem funcionalista procura explicar as regularidades

observadas no uso interativo da língua analisando as condições

discursivas em que se verifica esse uso. Os domínios da sintaxe,

da semântica e da pragmática são relacionados e independentes.

(FURTADO DA CUNHA, OLIVEIR; MARTELOTTA, 2003, p. 48)

A escola funcionalista possui mais de uma vertente, como a escola

de Londres, na qual se sobressai Halliday, como também o grupo

holandês representado por Simon Dik e a Norte Americana, na qual

destaca-se desta os linguistas Givón, Sandra Thompson e Paul Hopper.

A linguística funcional norte americana defende uma investigação

baseada no uso, observando a língua do ponto de vista do contexto

linguístico e da situação extralinguística. Dentre os princípios e as

categorias centrais do funcionalismo norte-americano estão:

informatividade, iconicidade, marcação, transitividade, planos discursivo e

gramaticalização.

O princípio da informatividade focaliza o conhecimento que os

interlocutores compartilham, ou julgam que compartilham, na interação

verbal. Já o princípio da iconicidade é definido como a correlação natural e

motivada entre forma e função, isto é, entre o código linguístico e o seu

significado. O fenômeno da marcação ocorre quando dois elementos que

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105

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

se opõem, apresentam propriedades ausente em um dos elementos,

considerado não-marcado. Segundo Hopper (1995, p. 00), ―a

transitividade é uma propriedade escalar que focaliza diferentes ângulos

da transferência da ação de um agente para um paciente em diferentes

porções da situação‖.

Os planos discursivos distinguem as informações centrais das

periféricas, classificando-as em figura ou fundo. A gramaticalização é um

fenômeno relacionado à necessidade de se refazer que toda gramática

apresenta. Gramaticalização designa um processo unidirecional, segundo

o qual itens lexicais e construções sintáticas, em determinados contextos,

passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados,

continuam a desenvolver novas funções gramaticais.

2.1 FIGURA E FUNDO

O modo como o falante organiza seu texto é determinado, em

parte, pelos seus objetivos comunicativos e, em parte, pela sua percepção

das necessidades do seu interlocutor Hopper (1979) percebe que há, nas

narrativas, uma distinção entre a linguagem utilizada para codificar os

fatos que se encontram na linha principal de eventos e a linguagem dos

fatos que servem de suporte para esses eventos principais.

Ao primeiro, ou seja, às partes que relatam os eventos seguindo

uma estrutura base do discurso (skeletal structure), Hopper denominou

como Figura (foreground). Ao segundo, ou seja, ao que dá suporte a essa

estrutura, designou de Fundo (background).

A figura corresponde por apresentar os pontos principais da narrativa,

caracterizado por mostrar uma sequencia cronológica; uma visão do

evento como um todo, do qual a completude é um pré- requisito

necessário para o evento subsequente.

Apresenta também eventos dinâmicos, cinéticos, realis; exibem

verbos perfectivos, sequência cronológica; sujeitos previsíveis (tópicos),

humanos e agentivos. Já o plano fundo expõe elementos periféricos da

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

narrativa, eventos simultâneos; eventos não necessariamente completos e

irrealis; situações estáticas, descritivas; situações necessárias para

compreensão de atitudes (subjetividade); frequentes trocas de sujeitos;

verbos imperfectivos.

Assim Figura (foregrounding) estabelece a parte principal da

narrativa, eventos dinâmicos e ativos, já o plano Fundo (backgrounding)

apresenta os comentários, as avaliações ou ações secundárias.

A tabela abaixo resume as diferenças e propriedades da Figura e do

Fundo.

Quadro (1) Propriedades de Figura e Fundo.

FIGURA FUNDO

Perfectivo Imperfectivo

Sequência cronológica

Simultaneidade e superposição

cronológica de uma situação C com o evento A e/ou B

Visão do evento como um

todo, do qual a completude é

um pré-requisito necessário para o evento subsequente.

Visão de uma situação ou acontecimento

do qual a completude não é

um pré-requisito necessário para os eventos

subsequentes.

Identidade do sujeito com cada

episódio discreto.

Frequentes mudanças de

sujeito.

Distribuição não-marcada do

foco na oração, com pressuposição do sujeito e

asserção no sujeito e seus complementos imediatos.

Distribuição do foco marcada, por exemplo, foco no sujeito,

foco na sentença adverbial.

Tópicos humanos Variedade de tópicos, incluindo

fenômenos naturais.

Eventos dinâmicos, cinéticos. Situações estáticas,

descritivas.

Realis Irrealis

Para Silveira (1997), o Fundo é dividido em categorias de

Fundidade, mediante a sua aproximação com o plano da Figura. Estes

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

fundos foram divididos em cinco: fundo um (mais próximo do real, mais

concreto), fundo dois (também próximo do real, só que mais abstrato),

fundo três (mais abstrato e elaborado linguisticamente), fundo quatro

(próximo da interpretação do falante ao assistir o evento) e fundo cinco

(próximo do ato da narração). Segundo Silveira (1997) essa hierarquia

está organizada em uma gradação que vai do nível mais relevante, ou

seja, a Figura, até um Fundo com menor grau de Relevância.

3. SOBRE CLARICE LISPECTOR

Clarice Lispector trabalha em seus romances temas de caráter

existencial, inovando a literatura, seja pelo estilo livre, elíptico e

fragmentário, tornando-se característica da escrita da autora. Outra

grande e importante técnica usada por Clarice em suas obras é a chamada

epifania, ou fluxo de consciência que é uma súbita sensação de

descoberta de algo ou alguém pelos protagonistas.

Como já dissemos, os contos trabalhados neste artigo: ―Tentação‖ e

―A solução‖ foram retirados do livro A Legião Estrangeira, cuja primeira

edição data de 1964, composto de 13 contos e crônicas, que tratam do

cotidiano familiar, da perversidade infantil e da solidão.

No conto ―Tentação‖ narra-se a estória de uma menina ruiva com

sua alma gêmea, um cachorro. Nesse conto, predomina o discurso

indireto livre, ou seja, o discurso em que a fala do personagem se mistura

com a do narrador, predominando a terceira pessoa. Já o conto ―A

Solução‖ fala sobre a amizade de duas jovens. Enquanto uma gostava

muito da amiga, a outra não sentia nada. O clímax se dá quando um das

amigas fere a outra com um garfo. Neste conto temos a presença de três

discursos: direto (fala dos personagens), indireto (resumo da fala dos

personagens) e indireto livre.

4. DA DESCRIÇÃO DO CORPUS

Utilizaremos as características acima elencadas para classificar as

orações dos contos ―Tentação‖ e ―A Solução‖ em Figura e Fundo. Para a

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

análise do corpus empregaremos as proposições narrativas de Labov

(1967), a estrutura de plano discursivo de Hopper e Thompson (1979) e a

Hierarquia de Fundidade alvitrado por Silveira (1997), a última servirá

apenas como suporte, pois não contará nos resultados.

Iniciamos a análise dividindo o conto em partes, qualificando as

estruturas da narrativa em orientação, complicação, ação, resolução e

moral. Em seguida, dividimos o conto em frases para a classificação dos

planos discursivos. Consideramos também o aspecto dos verbos das

frases em perfectivo e imperfectivo e, por fim, avaliamos a modalidade

das ocorrências em reallis e irrealis. Depois de formulado a tabela com a

divisão do conto em frases, calculamos as frequências simples de cada

grupo de fatores, relacionamo-los entre si e analisamos o contexto em

que aparecem.

4.1 DOS RESULTADOS

De acordo com a análise do corpus, coletamos no primeiro conto,

―Tentação‖, 50 ocorrências e, desse total, temos 14 Figuras (28%) e 36

Fundos (72%). Assim, podemos observar que há uma predominância do

plano discursivo Fundo, e de acordo com Hopper (1979), Fundo completa

o evento principal, ou seja, a Figura. Concluímos que o plano Fundo

apresenta-se em maior quantidade por desenvolver-se a partir da Figura,

pois o mesmo dá um suporte em relação a apresentação do evento, do

cenário, do tempo, da especificação de consequência, entre outros.

No segundo conto, ―A Solução‖, encontramos 62 ocorrências, as

quais correspondem a 16 Figuras (25,8%) e 46 Fundos (74,2%). Notamos

que esse conto também segue a regularidade de apresentar a maioria dos

planos com cláusulas Fundo, que como Hopper (1979) propõem Fundo

concorrem com os de Figura, ampliando-os ou comentando-os, motivo por

ser predominante.

Na análise avaliamos também a predominância dos planos

discursivos nas proposições da estrutura narrativa segundo Labov (1967).

Abaixo, seguem os resultados da análise:

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109

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Gráfico (1): Frequência de Plano Discursivo.

Quadro (2): Resultado da frequência de Figura e Fundo no conto ―A Tentação‖

Quadro (3): Resultado da frequência de Figura e Fundo no conto ―Solução‖

Estrutura Figur

a

Fund

o 1

Fund

o 2

Fun

do 3

Fund

o 4

Fund

o 5

Orientação

1/6,2%

10/80%

0/0% 2/50%

2/28,5%

13/59%

Complicação

4/25%

0/0% 1/100

% 1/25%

1/14,2%

1/4,5%

Ação 9/56,

2%

2/20

% 0/0%

1/25

% 0/0%

3/13,

6%

Resoluçã

o

2/16,

6% 0/0% 0/0%

0/0

%

4/57,

1%

5/22,

7%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

120%

ATentação

Solução

Fundo

Figura

Estrutura/

Plano Discursiv

o

Figu

ra

Fund

o1

Fund

o 2

Fundo

3

Fund

o 4

Fundo

5

Orientação

0 /0%

9/60%

0/0% 2/40% 0/0% 3/25%

Complicação

2/14,2%

2/13,3%

0/0% 1/20% 0/0% 1/8,3%

Ação 7/50

%

4/26,

6%

3/10

0% 1/20%

1/10

0%

8/66,6

%

Resoluçã

o

3/21,

4% 0/0% 0/% 1/20% 0/0% 0/0%

Moral 2/14,2%

0/0% 0/0% 0/% 0/0% 0/0%

Total 14 15 3 5 1 12

Page 110: Funcionalismo em Perspectiva 3

110

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Moral 0/0% 0/0% 0/0% 0/0%

0/0% 0/0%

Total 16 12 1 4 7 22

Observamos que as estruturas ação e resolução exibem maior

quantidade de plano discursivo Figura. Nas passagens destacadas de

Figura, notamos a presença de eventos dinâmicos e ativo, verbos pontuais

e perfectivos, características de Figura postulado por Hopper (1979).

Assim as proposições de Complicação temos uma ação que visa modificar

o estado inicial e que dá início à narrativa propriamente dita, Ação

transforma (mudança) a nova situação provocada pela complicação e

Resolução em que é estabelecido um novo estado, diferente do estado

inicial da estória. Notamos que todas essas proposições pedem verbos de

ação.

(1) A menina abriu os olhos pasmada.

(2) Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela.

(3) Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer

tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

(4) Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o

trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão.

(5) Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não

a viu.

(6) — Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo

Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é

que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! Agora

está contente, sua gorda?

Nas orações, ―Um grande soluço sacudiu-a desafinado‖ , ―Ele nem

sequer tremeu”, ―Também ela passou por cima do soluço‖ e ―e

continuou a fitá-lo‖ possuem verbos perfectivos, sequência cronológica,

eventos completos, apresentam eventos dinâmicos e cinéticos, sujeitos

Page 111: Funcionalismo em Perspectiva 3

111

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

tópicos, humanos, e são orações realis, configurando-se, portanto, como

orações Figura.

Já as cláusulas Fundo tem predominância nas proposições de

orientação. Segundo Labov (1967) e Adam (1967) a Orientação apresenta

situações de espaço, tempo e características dos personagens.

Destacamos algumas ocorrências para exemplificar:

(7) E como se não bastasse a claridade das duas horas, /ela era

ruiva.

(8) Na rua vazia as pedras vibravam de calor /- a cabeça da

menina flamejava.

(9) Sentada nos degraus de sua casa,/ ela suportava.

(10) Chamava-se Almira e engordara demais.

(11) Alice era a sua maior amiga.

(12) Alice era de rosto oval e aveludado.

(13) Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a bater

a máquina.

Relacionando os fatores da estrutura narrativa com Fundo,

observamos que as ocorrências possuem verbos imperfectivos;

apresentam indicações de lugar ―Na rua vazia‖, ―Sentada nos degraus‖;

caracterização de personagens ―ela era ruiva‖, ―Chamava-se Almira‖; não

são completas e a maioria não apresenta uma ação; apresentam situações

estáticas ―Alice era pensativa‖, ―ela suportava‖ e descritivas.

Outra variável observada é o aspecto verbal, devido às cláusulas

Fundo predominarem no conto, o imperfectivo também predomina. A

modalidade também segue a mesma regra, o fato de modalidade irrealis

caracterizar o plano discursivo Fundo, temos uma frequência maior de

eventos irrealis.

Quadro (4): Resultado da frequência do aspecto verbal no conto ―Tentação‖

Aspecto Total 61 Porcentagem

Perfectivo 17 27,8%

Imperfectivo 44 72,2%

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Quadro (4): Resultado da frequência do aspecto verbal no conto ―A Solução‖

Aspecto Total 96 Porcentagem

Perfectivo 39 34,3%

Imperfectivo 57 65,7%

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nosso artigo trabalhou com a distinção de Figura e Fundo nas

narrativas de Clarice Lispector. Os planos discursivos fazem parte da

percepção de mundo do falante, deixamos o evento principal, que conduz

a narrativa, mais perceptível e relevante. Já as informações que

complementam o evento principal são conduzidas de maneira mais

subjetiva. A Figura é mais saliente, o Fundo é o complemento da Figura.

Nosso objetivo foi calcular a frequência de cada plano discursivo.

Conforme as definições de Hopper (1979), o plano Fundo é mais

predominante nos contos por desenvolver e completar o evento principal.

Trabalhamos também com a estrutura narrativa de Labov (1967) e

reformulado por Adam (1984) do conto e observamos que em cada

proposição predomina um plano discursivo, concluímos, dessa forma, que

Clarice Lispector opta por uma escrita mais complexa e com informações

mais subjetivas, que conforme preconiza a linha funcionalista, o

falante/locutor vai organizar as informações linguisticamente de acordo

com sua percepção do fato ou sua intenção comunicativa. Percebemos

também que mesmo a escritora apresentar como característica da sua

escrita o fluxo de consciência, que escreve a partir das sensações, não

encontramos modificação da caracterização de Figura e Fundo. Desse

modo, esperamos abrir novos caminhos para pesquisas de planos

discursivos em obras literárias.

REFERÊNCIAS

ADAM, J-M. Le récit. Paris: Presses Universitaires de France, 1984.––––––. Le texte

narratif. Paris: Nathan, 1985.

BREMOND, C. La logique des possibles narratifs. Communications, 1966.

Page 113: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

CONCEIÇÃO, Priscila Thaiss. Compreensão de Figura e Fundo em Textos

Literários. Relatório Técnico-Científico apresentado ao CNPq. Rio de Janeiro: Faculdade

de Letras/ Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008, mimeo.

LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

HOPPER, Paul J. Aspect and Foregrounding in Discourse. In: Discourse and syntax.

Ed. By Talmy Givón. New York: Academic Press, 1979, p.213-41.

_____________ & THOMPSON. Transitivity in Grammar and discourse. Language,

56 (2): 251-299, 1980.

FURTADO DA CUNHA, M.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELOTTA, M. (Org.). Linguística

funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

FURTADO DA CUNHA, M.; VOTRE, S. A lingüística funcional no contexto da linguística

aplicada. In: PASSEGI, L. (Org.). Abordagens em linguística aplicada. Natal:

EDUFRN, 1998, p.55-82

LABOV, W. & Waletzky, J. Narrative analysis: Oral versions of personal experience. In:

PROPP, V. Morfologia do conto. Tradução de J. Ferreira & V. Oliveira. Lisboa: Veja,

1983.

MARTELOTTA, M. E. Manual de Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

MARTELOTTA, M; AREAS, E. A visão funcionalista da linguagem no século XX. In:

CUNHA et al. (orgs.). Linguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A,

2003.

THOMPSON, S. & HOPPER, P. Transitivity and Clause Structure in Conversation. In:

BYBEE, J. & HOPPER, P.(Org.) Frequency and the emergence of linguistic structure.

Amsterdan/Philadelphia: John Benjaming Company, 2001.

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114

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

TRANSITIVIDADE E OS PLANOS DISCURSIVOS: FIGURA E FUNDO, NOS CONTOS “A MÁSCARA DA MORTE

RUBRA” E “O GATO PRETO” DE EDGAR ALLAN POE

Francisco Fábio Marques da SILVA

Raquel Alves da SILVA

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a transitividade e os planos

discursivos (figura e fundo) nos contos: A máscara da morte rubra e O gato preto de

Edgar Allan Poe. A pesquisa fundamenta-se na proposta de Hopper & Thompson,

Transitivity in grammar and discourse (1980), que utiliza 10 parâmetros sintático-

semânticos que indicam o grau de transitividade de orações e possibilitam a identificação

dos relevos discursivos figura e fundo. Neste trabalho foram selecionados trechos

correspondentes à estrutura da narrativa (exposição, complicação, clímax e desenlace)

de cada conto e avaliado o grau de transitividade (alta e baixa transitividade),

pretendendo assim, verificar a ocorrência de orações de alta transitividade (parte figura),

em trechos localizados na exposição, clímax e desenlace do conto, e orações de baixa

transitividade (parte fundo), na complicação da narrativa, de acordo com uma oração

escalar, mais transitivo e menos transitivo. Após analisar 40 orações, consideradas como

relevantes do ponto de vista do enredo e para a análise da transitividade, concluímos que

as mesmas apresentaram diversos graus de transitividade nas orações, desde 0, o que

caracteriza cláusulas-fundo com baixo nível de transitividade, até 10, cláusulas-figura

com alto nível de transitividade.

Palavras-chave: transitividade; planos discursivos; estrutura da narrativa.

INTRODUÇÃO

Apresenta-se neste trabalho uma análise dos contos A máscara da

morte rubra e O gato preto, de Edgar Allan Poe, a partir da concepção de

plano discursivo da teoria funcionalista norte-americana, calcada sobre os

princípios da transitividade de Hopper & Thompson (1980), que leva em

conta a transitividade não como propriedade intrínseca do verbo enquanto

item lexical, mas como um complexo de dez parâmetros sintático-

semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da

transferência da ação em uma porção diferente da oração.

O escritor norte-americano, Edgar A. Poe, diferentemente da

maioria dos autores de contos de terror (que se concentravam no terror

externo, visual, valendo-se apenas dos aspectos ambientais), usa uma

Page 115: Funcionalismo em Perspectiva 3

115

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

espécie de terror psicológico em suas obras, vindo do interior dos

personagens, que oscilam entre a lucidez e a loucura, quase sempre

cometendo atos infames ou sofrendo de alguma doença. As obras mais

conhecidas de Poe são Góticas, entrando para a literatura sobrenatural

(Maravilhoso e Fantástico), e seus temas mais recorrentes lidam com

questões do fantasmagórico, da morte, incluindo sinais físicos dela, os

efeitos da decomposição, interesses por putrefação, a reanimação dos

mortos e o luto.

A máscara da morte rubra e O gato preto são os contos escolhidos

nesse estudo por apresentarem uma intriga linear e objetiva, resumindo-

se a um único núcleo narrativo, onde a grande força se concentra no

desenlace (desfecho). Edgar A. Poe atinge uma gradação, visando o ponto

culminante, inicialmente de maneira vaga, a seguir mais e mais

diretamente. Assim, tal característica contribui para o nosso objetivo aqui

proposto, que é comprovar a presença de cláusulas-figura com alto nível

de transitividade no clímax e desenlace dos contos.

1. FUNDAMENTAÇÃO

A transitividade de Hopper & Thompson (1980) difere da noção de

transitividade presente na gramática tradicional. Enquanto que esta

associa o termo apenas a verbos, os teóricos funcionalistas americanos

consideram não só o verbo presente em uma sentença, mas a todos os

termos que a compõe. Os verbos são agrupados em transitivos e são

tratados como se fossem iguais, ou seja, da mesma natureza, o que não

ocorre na gramática tradicional, onde se tem a ocorrência dos três

elementos, sujeito, verbo e objeto.

A transitividade é formulada como uma noção contínua, escalar,

não-categórica e escalar, expresso em um componente sintático e um

componente semântico ligado à efetividade com a qual uma ação ocorre.

O termo ―transitividade‖ é usado porque se trata de uma ação que

―transita‖ do agente para o paciente, por isso, quanto mais trânsito,

quanto mais efetiva e mais individual é a ação, mais transitiva é a

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116

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

sentença.

O objetivo desses autores é mostrar que as propriedades que

definem a transitividade são determinadas discursivamente e que a

transitividade é uma relação crucial na língua, envolvendo um número de

consequências previsíveis universalmente na gramática.

A transitividade é expressa de acordo com dez parâmetros, estes

por sua vez são independentes (no entanto funcionam juntos e articulados

na língua), representam propriedades semânticas, focalizam diferentes

ângulos da transferência da ação em uma porção diferente da oração e

são divididos em alta transitividade e baixa transitividade, conforme

mostra o quadro 1 a seguir:

Quadro (1): Componentes considerados em relação à Transitividade

PARÂMETROS TRANSITIVIDADE

ALTA

BAIXA

TRANSITIVIDADE

1. Participantes Dois ou mais Um

2. Cinese Ação Não-ação

3. Aspecto do verbo Perfectivo Não-perfectivo

4. Pontualidade do verbo Pontual Não-pontual

5. Intencionalidade do

sujeito Intencional Não-intencional

6. Polaridade da oração Afirmativa Negativa

7. Modalidade da oração Modo realis Modo irrealis

8. Agentividade do sujeito Agentivo Não-agentivo

9. Afetamento do objeto Afetado Não-afetado

10. Individualização do

objeto Individuado Não-individuado

Acerca dos parâmetros acima podemos ter tais aspectos:

Participantes: não pode haver transferência a menos que dois

participantes estejam envolvidos.

Cinese: ações podem ser transferidas de um participante para outro,

enquanto que estados não.

Aspecto: uma ação é mais afetivamente transferida quando é vista como

completa do que quando está em progresso.

Pontualidade: ações que se dão sem uma fase de transição são mais

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117

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

efetivas que as que envolvem uma duração maior. Dessa maneira, um

verbo como "chutar" é pontual e um verbo como "carregar" é não-

pontual.

Intencionalidade do sujeito: quando o agente tem o propósito de fazer

algo, a ação se dá mais efetivamente do que quando não há uma intenção

definida.

Polaridade da oração: sentenças afirmativas indicam que as ações de

fato ocorreram, enquanto que sentenças negativas indicam que as ações

não se efetivaram.

Modalidade da oração: uma ação que não ocorreu ou que é possível de

ocorrer é menos efetiva que uma que ocorreu ou que corresponde a um

evento real.

Agentividade do sujeito: um participante que é mais ativo pode

transferir uma ação mais efetivamente que um participante não tão ativo

assim.

Afetamento do objeto: uma ação é transferida num grau maior se o

objeto é afetado completamente do que se ele é parcialmente afetado.

A cerca da Individualização do objeto, Hopper & Thompson

(1980) consideram os fatores presentes no quadro 2 a seguir:

Quadro (2): Fatores considerados na Individuação do Objeto

Individuado Não-individuado

Próprio Comum

Humano, animado Inanimado

Concreto Abstrato

Singular Plural

Contável Incontável

Referencial, definido Não-referencial

Orações com objetos mais individuados são mais transitivas do que

aquelas com objetos mais gerais, ou seja, uma ação pode ser transferida

mais efetivamente para um paciente individuado do que para um não-

individuado, estando, portanto, relacionado ao penúltimo parâmetro,

afetamento do objeto.

Page 118: Funcionalismo em Perspectiva 3

118

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Hopper & Thompson (1980) atribuem pontuação 1 para cada

componente que confere alta transitividade à cláusula e pontuação 0 para

cada componente que confere baixa transitividade à cláusula. É então a

partir da baixa ou alta transitividade que é possível enquadrá-los nos

planos discursivos figura e fundo.

Figura (foreground), segundo Hopper (1979), é tudo aquilo que é

mais importante para as metas do falante/escritor, podendo ser

comparada ao ―esqueleto‖ de um texto, ou seja, à sua estrutura base do

discurso, seu plano mais saliente. Têm-se ainda como principais

características uma sequência cronológica, com eventos reais, dinâmicos e

completos, assim como sujeitos previsíveis (tópicos), humanos e

agentivos. Sua codificação morfossintática caracteriza-se por apresentar

orações coordenadas, principais ou absolutas, além de formas verbais

perfectivas.

Ao contrário de fundo (background), que seria aquilo que serve de

cenário, ajudando, amplificando ou comentando o que é mais importante

em um texto, sendo um plano discursivo que dá suporte para o que está

sendo relatado pela figura, não representa a sequencialidade da narrativa

e, por isso mesmo, constitui as ações que ocorrem de modo concorrente

às ações de figura. O fundo tem também como principais características

os eventos simultâneos, não necessariamente completos e reais; com

situações estáticas e descritivas, igualmente como situações necessárias

para a compreensão de atitudes (subjetividade), além de frequentes

trocas de sujeitos. Sua codificação morfossintática caracteriza-se por,

frequentemente, conter orações subordinadas e verbos não-perfectivos,

sem deixar de ressaltar que, o fundo também pode ser codificado por

orações coordenadas, absolutas e principais.

Sobre a noção de figura e fundo Martelotta e Palo Mares (2009, p.

184) afirmam: ―alinhamento de figura e fundo diz respeito à maior

proeminência que nós atribuímos a um dos elementos de uma cena,

colocando-o em primeiro plano de nossa atenção, ou seja, em figura.‖. É

necessário salientarmos a importância da parte fundo (segundo plano,

Page 119: Funcionalismo em Perspectiva 3

119

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

secundário), que às vezes é confundido como menos importante, porém é

de grande utilidade para a fundamentação do texto, porque, como já

destacamos, é ela que define a noção de figura.

Assim como a transitividade, Hopper e Thompson (1980) faz um

ressalvo a respeito de ―figura‖ e ―fundo‖, estes também devem ser

analisados a partir de um conjunto de propriedades, e não de forma

separada, independente.

2. METODOLOGIA

Propondo-nos neste capítulo fazer a descrição dos métodos e

procedimentos da pesquisa adotada para a análise da transitividade e dos

planos discursivos nas orações dos já referidos contos de Edgar A. Poe.

Para melhor visualização, organização e compreensão do conteúdo

do corpus, oferecemos um modelo tradicional, no qual, antes de tudo, é

possível observar e conhecer o desenvolvimento do enredo e como este se

divide na estrutura narrativa.

―A máscara da morte rubra‖

1.Exposição - O problema apresentado, o da morte rubra, peste terrível e

fatal como jamais se vira. Os personagens são o príncipe Próspero e seus

súditos. O ambiente soturno se dá na abadia fortificada no príncipe, onde

os personagens tentam se proteger da morte rubra.

2.Complicação - O badalar do relógio que anuncia algo ruim. A chegada do

indivíduo estranho, vestido de morte rubra.

3.Clímax - Perseguição do príncipe Próspero por parte do estranho através

dos salões da abadia.

4.Desenlace - O príncipe morre, logo após todos os foliões caem atingidos

pela morte rubra, o fantasma esvanece no ar e a morte rubra pousa sobre

todas as coisas.

―O gato preto‖

Page 120: Funcionalismo em Perspectiva 3

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

1.Exposição - O problema apresentado, o narrador imaginando que iria

morrer no dia seguinte, e querendo deixar à posteridade os seus

pensamentos mais pesados, conta uma série de fatos ―estranhos‖ que lhe

aconteceram. O ambiente se passa na própria casa dos personagens, que

são o narrador, sua esposa e o gato Plutão.

2.Complicação - O olho de Plutão ter sido arrancado e logo depois sua

brutal morte a sangue-frio.

3.Clímax - A polícia vai à adega investigar a morte da esposa e quando

estão saindo ouvem gemidos e gritos da parede onde estava o corpo.

4.Desenlace - Os agentes desmantelam a parede e sobre a cabeça do

cadáver, já decomposto, veem o gato.

Dentro desse desenvolvimento e dessa estrutura narrativa, foram

selecionadas 40 orações e depois analisadas de acordo com a proposta

defendida por Hopper & Thompson (1980), na qual se utiliza de 10

parâmetros sintático-semânticos que indicam o grau de transitividade das

orações e possibilitam a identificação dos relevos discursivos figura e

fundo.

Ainda dentro da relação figura e fundo, Silveira (1990) propõe uma

revisão do conceito Fundo, proposto por Hopper & Thompson (1980).

Segundo a autora, as funções das cláusulas Fundo – ampliar e comentar

as afirmações feitas pela Figura – são muito amplas e poderiam ser mais

bem especificadas. Assim sendo, ela propõe uma Hierarquia de Fundidade.

Essa hierarquia está organizada em uma gradação que vai da

Figura (nível mais relevante) até um Fundo com menor grau de

Relevância. Em resumo, o Fundo é que estaria elencado em mais de um

nível, uns mais próximos da Figura, sendo mais objetivos, icônicos, e

outros mais distantes.

Ainda nesse tema a autora faz outra observação a respeito do

relacionamento funcional que se estabelece entre alguns tipos de fundo.

Sendo assim, Silveira (1990) postulou cinco níveis de Fundo:

Page 121: Funcionalismo em Perspectiva 3

121

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Hierarquia de Fundidade

Categoria

Grau de

objetividade

(do mais para o

menos icônico)

Como são

Tipo de cláusulas-

Fundo (relação

funcional entre as

cláusulas)

Fundo 1

Mais próximo do

real, mais

concreto.

Cláusulas-Fundo que

apresentam

informações concretas

sobre o evento.

Apresentação do

evento;

Apresentação do

cenário;

Apresentação dos

participantes;

Apresentação da

fala dos participantes.

Fundo 2 Ainda mais

próximo do real.

Cláusulas-Fundo que

através de

circunstancias,

especificam o âmbito

em que os fatos se

deram.

Especificação do tempo;

Especificação de modo;

Especificação de

finalidade.

Fundo 3

Próximo da

estrutura do

texto (mais

abstrato e

elaborado

linguisticamente)

Cláusulas-Fundo que

especificam vocábulos

da cláusula anterior.

Especificação do

referente;

Especificação de

processo/ação.

Fundo 4

Próximo da

interpretação do

falante ao

assistir ao

evento

Cláusulas-Fundo que

especificam relações

inferidas dos fatos

narrados.

Especificação de causa;

Especificação de

consequência;

Especificação de

adversidade.

Fundo 5 Próximo do ato

de narração.

Cláusulas-Fundo que

apresentam

interferências do

falante no evento que

está narrando.

Apresentação de

opinião;

Apresentação de

resumo;

Apresentação de

duvida;

Apresentação de

conclusão;

Apresentação de canal.

A partir das cinco categorias que compõem a Hierarquia de

Fundidade, proposta por Silveira (1990), decidimos, para essa pesquisa,

reorganizá-las em três categorias, considerando níveis de fundidade.

Nessa reorganização tivemos como baseamento à maneira da

estrutura na qual Anderson Godinho Silva trabalha em Orações modais:

Uma proposta de análise (2007). No entanto em nossa pesquisa essa

estrutura vai sofrer mais uma mudança, pois no trabalho de Godinho foi

possível observar apenas modais com grau de transitividade 0 a 7, o que

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122

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

não ocorreu em nossa análise, verificamos orações com grau de

transitividade 2 a 10.

Grupo 1 (Fundidade Máxima): são as orações que se afastam

mais do plano da figura. Elas recebem graus 0, 1, 2 e 3 de transitividade;

Grupo 2 (Fundidade Intermediária): são as orações que se

aproximam um pouco mais do plano da figura, mas ainda carregam um

grau intermediário de transitividade. Elas recebem graus 3, 4, 5 e 6 de

transitividade;

Grupo 3 (Fundidade Mínima): são as orações que se aproximam

mais do plano da figura. Elas recebem graus 7, 8, 9 e 10 de

transitividade.

Resolvemos fazer assim desse modo, pois desta forma facilitará a

análise de figura e fundo no âmbito da estrutura narrativa dos contos em

questão.

3. ANÁLISE E DISCURSÃO DOS RESULTADOS

Trataremos neste capítulo a apresentação dos resultados da

análise dos contos: A máscara da morte rubra e O gato preto, de Edgar

Allan Poe, análise essa pautada na teoria da transitividade dos

funcionalistas teóricos norte-americanos Hopper & Thompson (1980). E

para conclusão, a apresentação de uma tabela que mostra de forma clara

e sucinta o resultado final de toda nossa pesquisa.

Após termos analisados as 40 orações, verificamos na estrutura

narrativa a ocorrência de orações com grau de transitividade 2 até 10,

caracterizando-se como cláusulas-fundo com baixo nível de transitividade

e cláusulas-figura com alto nível de transitividade.

Ainda tomando como sequencia a estrutura narrativa, mostraremos

agora exemplos de orações com alta transitividade (figura) e baixa

transitividade (fundo), e enquadrando-os na hierarquia de fundidade.

I. Exposição –

Sequencia: 9-7-8-9-2-2-7-7-6-7.

Das dez orações analisadas, seis apresentaram alto nível de

Page 123: Funcionalismo em Perspectiva 3

123

Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

transitividade, aproximando-se mais do plano da figura, e se esquadrando

na Hierarquia de Fundidade Mínima, grupo 3.

Exemplo 1 de oração com grau 9. (A máscara da morte rubra):

1. Ao perceber o despovoamento de seus estados [convocara um

milheiro de amigos alegres e sadios, cavalheiros e damas da corte]

(...).

Participantes (1): o sujeito pode ser resgatado em orações anteriores e

o verbo exige um agente, ―convocara‖;

Cinese (1): sendo o verbo ―convocara‖ de ação;

Aspecto (1): a ação é vista como completa, ―ele convocou‖;

Pontualidade (1): a ação é vista como pontual dentro da oração

―convocar os amigos‖; Intencionalidade (1): ―convocar‖ exige uma

intenção;

Polaridade (1): é uma sentença afirmativa;

Modalidade (1): a sentença é real, tendo efetivamente o ocorrido;

Agentividade (1): o agente é humano e tem condições de exercer a ação

de ―convocar‖; Afetamento do objeto (1): ―os amigos‖ são totalmente

afetados pela convocação;

Individuação do objeto (0): ―um milheiro de amigos‖ é comum, plural,

incontável e não determinado.

II. Complicação –

Sequencia: 3-3-4-5-9-4-4-3-5-3-6-5-10-9-9

Das quinze orações analisadas, dez apresentaram baixo nível de

transitividade, aproximando-se um pouco mais do plano da figura, mas

ainda carregam um grau intermediário de transitividade, se esquadrando

na Hierarquia de Fundidade Mínima, grupo 2.

Exemplo 2 de oração com grau 5. (O gato preto):

2. Uma fúria diabólica apossou-se instantaneamente de mim.

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

Participantes (0); Cinese (0); Aspecto (1); Pontualidade (1);

Intencionalidade (0); Polaridade (1); Modalidade (1); Agentividade

(0); Afetamento do objeto (1); Individuação do objeto (0).

III. Clímax –

Sequencia: 8-10-9-8-7-10-8-8-7-9

Das dez orações analisadas, todas se apresentaram no alto nível de

transitividade, aproximando-se mais do plano da figura, e se esquadrando

na Hierarquia de Fundidade Mínima, grupo 3.

Exemplo 3 de oração com grau 10. (A máscara da morte rubra):

3. Identificou-se então [a presença da Morte rubra, que ali entrava

como ladrão noctivago e fugitivo]

Participantes (1); Cinese (1); Aspecto (1); Pontualidade (1);

Intencionalidade (1); Polaridade (1); Modalidade (1); Agentividade

(1); Afetamento do objeto (1); Individuação do objeto (1).

IV. Desenlace –

Sequencia: 9-8-7-6-10

Das cinco orações analisadas, quatro apresentaram alto nível de

transitividade, aproximando-se mais do plano da figura, e se esquadrando

na Hierarquia de Fundidade Mínima, grupo 3.

Exemplo 4 de oração com grau 10. (O gato preto):

4. Eu havia emparedado o monstro no túmulo.

Participantes (1); Cinese (1); Aspecto (1); Pontualidade (1);

Intencionalidade (1); Polaridade (1); Modalidade (1); Agentividade

(1); Afetamento do objeto (1); Individuação do objeto (1).

A partir dos resultados obtidos, podemos afirmar a presença de

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

cláusulas-figura, com maior frequência na exposição, clímax e desenlace

do conto.

Ainda na estrutura narrativa dos contos, observamos no desfecho a

predominância da presença dos verbos de ação, agente e paciente,

sequencia cronológica, eventos reais, dinâmicos e completos Na

complicação vemos que as situações estáticas, descritivas, com longos

parágrafos, descrição do ambiente e comentários do escritor narrador tem

uma forte influencia.

E para a conclusão desse capítulo, tem-se apresentação de uma

tabela que mostra de forma clara e sistemática o resultado final de toda

nossa pesquisa.

Estrutura

Transitividade

Exposição Complicação Clímax Desenlace

0-3 02 04 - -

4-6 01 07 - 01

7-10 07 04 10 04

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi analisar a transitividade e os planos

discursivos (figura e fundo) nos contos: A máscara da morte rubra e O

gato preto de Edgar Allan Poe. A pesquisa fundamentou-se na proposta de

Hopper & Thompson, Transitivity in grammar and discourse (1980), que

em sua teoria utiliza 10 parâmetros sintático-semânticos que indicam o

grau de transitividade de orações e que possibilitam a identificação dos

relevos discursivos figura e fundo.

Selecionamos 40 orações correspondentes à estrutura da narrativa

(exposição, complicação, clímax e desenlace) de cada conto, avaliamos o

grau de transitividade (alta e baixa transitividade) e verificamos a

ocorrência de orações de alta transitividade (parte figura) em trechos

localizados na exposição, no clímax e no desenlace do conto, e orações de

baixa transitividade (parte fundo) na complicação da narrativa, de acordo

com uma oração escalar, mais transitivo e menos transitivo.

Devido à complexidade e a quantidade de orações que compõe o

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Cadernos de Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Ceará

corpus, salientamos que este estudo teve apenas o objetivo de contribuir

com a formação da análise do ponto de vista funcionalista por meio de um

conceito da Análise do Discurso, e não como um modelo infalível.

Variações podem ocorrer tanto quanto a um autor específico como a um

conto diferenciado, mesmo seguindo o gênero em questão, que é o

suspense.

A transitividade não é um fenômeno perfeito, mesmo porque

há muitas divergências de autores quanto à definição ou a importância da

pontuação transitiva e de um ou outro parâmetro. Por exemplo, Hopper &

Thompson (1980) consideram apenas as pontuações zero e um, já Silveira

(1990) determina escalas que vão de zero a cinco. Além disso, a autora

elimina o parâmetro polaridade e opta por unir os parâmetros

Agentividade e Individuação do objeto em um único parâmetro:

Individuação do Agente/Individuação do Objeto.

No entanto deixamos registrada a importância desse estudo por

acreditar que tal abordagem procura identificar questões a cerca da

competência linguística do escritor ao elaborar seu texto/discurso.

Resta-nos esperar que novas hipóteses semelhantes, bem ou mal

sucedidas, sejam lançadas, pois conforme Popper (apud, SIQUEIRA, 2004,

p.430):

A ciência não é um sistema de enunciados certos e bem-

estabelecidos... Nossa ciência não é conhecimento, nunca pode ter

afirmado ter alcançado a verdade, ou mesmo um substituto para

ela, tal como a probabilidade... Não conhecemos: somente

podemos conjecturar.

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