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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas DANIEL GOUVEIA DE MELLO MARTINS MINHA CARNE NÃO É SÓ DE CARNAVAL: POR OUTRA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A ATUAÇÃO DOS BLOCOS AFRO DE SALVADOR (ILÊ AIYÊ, MALÊ DEBALÊ E OLODUM) CAMPINAS 2017

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

DANIEL GOUVEIA DE MELLO MARTINS

MINHA CARNE NÃO É SÓ DE CARNAVAL: POR OUTRA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A

ATUAÇÃO DOS BLOCOS AFRO DE SALVADOR

(ILÊ AIYÊ, MALÊ DEBALÊ E OLODUM)

CAMPINAS

2017

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DANIEL GOUVEIA DE MELLO MARTINS

MINHA CARNE NÃO É SÓ DE CARNAVAL: POR OUTRA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A

ATUAÇÃO DOS BLOCOS AFRO DE SALVADOR

(ILÊ AIYÊ, MALÊ DEBALÊ E OLODUM)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos para

obtenção do título de Doutor em Sociologia.

Orientador: PROF. DR. PEDRO PEIXOTO FERREIRA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE A

VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA

PELO ALUNO DANIEL GOUVEIA DE

MELLO MARTINS E ORIENTADA PELO

PROF. DR. PEDRO PEIXOTO FERREIRA.

____________________________________________

CAMPINAS

2017

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos professores

doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 13 de novembro de 2017, considera o

candidato Daniel Gouveia de Mello Martins aprovado.

Prof Dr. Pedro Peixoto Ferreira (orientador)

Profa Dra.Goli Almerinda de Sales Guerreiro

Profa Dra. Maria Suely Kofes

Prof Dr. Luiz Augusto de Souza Carneiro Campos

Prof Dr.Mário Augusto Medeiros da Silva

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida

acadêmica do aluno.

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As mulheres e homens negros que dedicaram suas vidas ao

sonho de uma sociedade mais justa e igualitária.

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AGRADECIMENTOS

Pensando em como se deu minha caminhada ao longo dos últimos anos, não poderia

agradecer outra pessoa em primeiro lugar senão Rayza, companheira de vida, fundamental na

superação de obstáculos, mesmo quando esses pareciam intransponíveis, bem como grande

responsável pelos momentos de poesia, plenitude, amor e paz. Sua força, dedicação e

inquietação foram grandes exemplos que, apaixonado, segui com enorme admiração.

A Pedro Peixoto, meu orientador, por ter acreditado no projeto que agora se

concretiza, quando esse ainda era apenas um apanhado de ideias sem muita organização.

Mesmo não sendo sua área de atuação, tampouco sua literatura referencial, não lhe faltaram

dedicação e entusiasmo, tão preciosos para que eu passasse a acreditar cada vez mais no que

estávamos construindo.

A Sociedade Cultural Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê, em especial Eduardo,

meu primeiro interlocutor, bem como a todos os seus componentes, representados pelas

figuras de Miguel Arcanjo, Josélio, Jany, Claudio, Cesar, Antônio, Dermeval, Ygas e

Givanildo, por me abrirem as portas de sua sede no Abaeté e folhearem comigo as páginas de

sua história.

A Associação Carnavalesca Bloco Afro Olodum, em especial Eunice, meu porto

seguro, bem como a todos os seus componentes, representados pelas figuras de Lazinho,

Gilmário, Antônio, Mara, Ubiraci (in memoriam), Lázaro, Tita Lopes e João Jorge, que

dedicaram parte de seu tempo a me apresentar um pouco do que é ser o Olodum.

A Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, em especial Edmilson, exemplo

prático do que é ser um educador para a cidadania, bem como a todos os seus componentes,

representados pelas figuras de Taiwo, Alana, Cida, Sandro, Hildelice, Jaci e Antônio Carlos

Vovô, que me mostraram um pouco do que é esse mundo negro chamado Liberdade.

A Sérgio Pereira, voz isolada, mas suficientemente importante para a compreensão do

que é conviver com um bloco afro em sua comunidade.

A Vanessa e Paula, pela amizade incondicional e por despertarem em mim a vontade

de conhecer Salvador, sendo minhas primeiras guias por suas praias, praças, largos, ladeiras,

cores, aromas e sabores. A Paula, ainda, pela ajuda na elaboração do corte esquemático.

A Seu Pepe (in memoriam) e Dona Leo, pela repetida e calorosa acolhida em seu lar,

apresentando a mim um pouco do cotidiano soteropolitano, seja no amanhecer ao som do

samba do recôncavo, seja no sabor do feijão, mas, principalmente, por me apresentarem ao

carnaval da Bahia, naquela longínqua noite no Pelourinho.

A Aldenor, Carol, Dulce, Pedro, Conceição, Monique, Marcelo, Juliana, Bruno e

Fernanda, pela receptividade e disposição em me mostrar um pouco de sua cidade, cada qual a

seu modo.

A Goli Guerreiro, referência bibliográfica de primeira hora, pela generosidade de abrir

as portas de sua casa a um desconhecido e oferecer-me toda uma tarde de discussão valiosa

sobre o universo dos blocos afro em Salvador.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, pela oportunidade. Ao

seu corpo técnico-administrativo, em especial Priscila, Daniel e Sônia, pela presteza,

paciência e dedicação aos alunos.

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A professora Gilda Gouvea pelos ensinamentos acadêmicos e lições de vida.

Aos colegas de pós, em especial Carla, Sheyla, Danilo e João, por tornarem melhor a

minha experiência enquanto aluno da Unicamp, a despeito da distância geográfica que nos

separou durante a maior parte desses anos.

Aos professores Mario Medeiros e Suely Kofes pela brilhante participação em meu

exame de qualificação, sendo suas considerações fundamentais para o bom andamento desse

trabalho.

Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),

pela concessão de bolsa, sem a qual a realização desse trabalho não seria possível.

Aos amigos de todas as horas, Rodrigo, Mariana Porto, Mariana Villela, Bruno,

Alisson, Carol, Tulio, Carlos, Alexandre, Miguel, Karina, Alvino, Evelin, Daniela, Alice,

Lidiane, Tiago, Fabrício e Luciano, bem como aos mais recentes, Simon, Vinícius, Thiago,

Dany, Lorena, Luciana, Isis e Alexandra, por terem feito parte desse caminho, cada qual a seu

modo.

A Herkenhoff & Prates, por abrir-me suas portas quando todas pareciam se fechar,

representada especialmente pelas figuras de Cristina e Guilherme. Aos amigos/colegas,

Raíssa, Guilherme Silveira, Danielle, Júlia, Ana Luiza, Nathália, Claudio, Clarice, Bruno,

Raynner, Amanda, Natan, Fernanda, Érica, Geraldo, Carol e Marina, com os quais aprendo

todos os dias e que sempre estiveram generosamente dispostos a me ensinar.

A Ia, pelo querer bem na forma de carinhosa simplicidade.

A Helenice e Lucia, pela acolhida maternal de quem tudo lhe oferece sem pedir nada

em troca. Obrigado pelo constante apoio durante toda a minha trajetória na pós-graduação.

A meu irmão, Mateus, sobretudo por dividir comigo o peso dos dias difíceis, que se

fizeram tão constantes nos últimos tempos.

Agradeço a minha mãe, Heloiza (in memoriam), por ter feito da minha educação um

dos princípios de sua vida. Foi em seu nome e por sua memória que me dediquei para chegar

até aqui.

Agradeço a meu pai, Paulo, que transformou toda sua vida para tentar preencher a

lacuna deixada pela prematura ausência de minha mãe e que, por força do destino, me fez

compreender e valorizar o esforço que envolve ser responsável pela vida de alguém.

Agradeço à vida por permitir que meu pai, a despeito de todos os problemas, resistisse

o suficiente para ver seu filho terminar essa caminhada.

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“E aí chegaram os negros

Com toda a sua beleza, com toda a sua cultura

Com toda a sua tradição, com toda sua religião E tentada, motivada, a ser mutilada

Pelos heróis anônimos da história

Estamos aqui e eles sobreviveram

E no bum bum bum bum do bum bum bum bum bum

No seu tambor, o seu negão vai tocando assim

Pega a Rua Chile, desce a ladeira Tá na Praça Castro Alves ou Praça da Sé

Fazendo seu deboche, transando o corpo, fazendo o seu fricote

E o negão assume o microfone

E na beirada da multidão, em cima do caminhão, ele fala:

- Alô rapaziada do bloco, esse é o nosso bloco afro

Vamos curtir agora o nosso som, a nossa levada Que é a nossa cultura

E segura comigo!

Eu sou negão! Eu sou negão!

Meu coração é a liberdade! É a liberdade!

Sou do Curuzu, Ilê! Sou do Curuzu, Ilê!

Igualdade na cor, essa é a minha verdade! Igualdade na cor, essa é a nossa verdade!

E de repente aparece ao longe um carro todo iluminado É um trio elétrico!

- Que é isso, meu irmão? Venha devagar! Calma! Que é isso, meu irmão? Peraê, peraê, peraê!

Colé, meu irmão? Segura essa aí.

E o cara do trio lá de cima olha:

- Legal, massa!

Pessoal do bloco afro, é uma beleza estar aqui com vocês, Vamos levar um som

E o negão lá de baixo falando:

- Qual é, meu irmão? É nenhuma, rapaz!

Aqui é boca de zero nove! É o suingue da gente!

Vá, pegue seu caminhão e siga seu caminho, Que a gente vai seguindo o nosso, meu irmão!

E na levada!

Eu sou negão! Eu sou negão!

Meu coração é a liberdade! É a liberdade!

Sou do Curuzu, Ilê! Sou do Curuzu, Ilê!

Igualdade na cor, essa é a minha verdade! Igualdade na cor, essa é a nossa verdade!”

“Macuxi Muita Onda”

Gerônimo Santana

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RESUMO

Esta tese nasce da problematização dos blocos afro de Salvador, entendendo-os como

complexas organizações que conjugam ação política e cultural sem, no entanto, ignorar

elementos que os tornam modelos ímpares de associativismo. Assim, o que se objetivou, por

meio de uma pesquisa de campo realizada com os blocos Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê

entre os anos de 2013 e 2016, foi a busca por um esquema interpretativo mais adequado ao

estudo deste tipo de organização. Este esquema é amparado, principalmente, pela

historiografia de João José Reis e Nelson Cadena, bem como pelas teorias de Márcio

Goldman e Jocélio Teles dos Santos, a respeito da forma como o poder se insere na cultura,

assim como a cultura se insere no poder, além de outros referenciais bibliográficos

mobilizados. Chegou-se, assim, a uma abordagem processual da atividade dos blocos afro

soteropolitanos, entendendo-os como uma etapa da trajetória da resistência negra na Bahia,

mas também como a face mais atual de um longo processo de mobilização política negra por

meio do carnaval de rua em Salvador. Defende-se, ainda, a tese de que suas possíveis

contradições internas são fruto de necessários rearranjos, através dos quais articulam suas

diferentes dimensões, bem como determinam seus modelos estratégicos de ação. Trata-se de

contradições ligadas à viabilidade, manutenção e mobilização de recursos necessários para

que sejam levados a cabo os projetos primeiros de tais agremiações, a saber a emancipação

política, econômica e cultural da população negra de Salvador.

Palavras chave: Salvador; Bahia; Carnaval; Ilê Aiyê; Movimentos Sociais; Olodum

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ABSTRACT

This doctoral dissertation arises from the problematization of the blocos afro of

Salvador, understanding them as complex organizations that conjugate political and cultural

action without, however, ignoring elements that make them odd models of associativism.

Thus, the objective of this study was looking for an interpretative scheme more appropriate to

the analyze of this type of organization, through a field research with the Ilê Aiyê, Olodum

and Malê Debalê groups, between the years of 2013 and 2016. This scheme is supported,

mainly, by the historiography of João José Reis and Nelson Cadena, as well as by the theories

of Márcio Goldman and Jocélio Teles dos Santos, regarding how the power inserts itself in

the culture, as well as the culture inserts itself in the power, besides other bibliographical

references. This led to a procedural approach to the activity of the blocos afro of Salvador,

understanding them as a stage in the trajectory of black resistance in Bahia, but also as the

most current face of a long process of black political mobilization through the street carnaval

in Salvador. It is also defended the thesis that its possible internal contradictions are the result

of necessary rearrangements, through which they articulate their different dimensions, as well

as determine their strategic models of action. These are contradictions related to the viability,

maintenance and mobilization of resources necessary to carry out the first projects of such

associations, namely the political, economic and cultural emancipation of Salvador's black

population.

Keywords: Salvador; Bahia; Carnaval; Ilê Aiyê; Social Movements; Olodum

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Brasil - Cor ou Raça x Ano .......................................................................................... 183

Tabela 2 – Salvador - Cor ou Raça x Ano ..................................................................................... 184

Tabela 3 – Cor ou Raça x Ano x Brasil/Salvador .......................................................................... 184 Tabela 4 – Cor ou Raça x Bairros/Salvador .................................................................................. 185

Tabela 5. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2014........................................................ 298

Tabela 6. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015........................................................ 299 Tabela 7. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015 – Blocos afro................................. 299

Tabela 8. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2016........................................................ 301

Tabela 9. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017........................................................ 302

Tabela 10. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015...................................................... 303 Tabela 11. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015...................................................... 304

Tabela 12. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015...................................................... 305

Tabela 13. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017...................................................... 306 Tabela 14. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017...................................................... 307

Tabela 15. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017...................................................... 307

Tabela 16. Ranking de visibilidade x Música do Carnaval............................................................ 310 Tabela 17. Votação por Zona – Joselio do Malê – 2012-2016....................................................... 339

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Circuito Campo Grande - "Osmar"................................................................................. 54

Figura 2. Circuito Barra/Ondina - "Dodô"..................................................................................... 55

Figura 3. Circuitos Campo Grande e Barra/Ondina ...................................................................... 58 Figura 4. Distribuição geográfica dos blocos pesquisados ............................................................ 66

Figura 5. Corte Esquemático – Senzala do Barro Preto (vista lateral) ......................................... 92

Figura 6. Distribuição Espacial dos Terreiros em Salvador – 2006 ............................................. 193 Figura 7. Localização do Blocos Afro .......................................................................................... 201

Figura 8. População Cor ou Raça X Mapeamento De Terreiros .................................................. 203

Figura 9. Mapeamento de Terreiros X Localização dos Blocos ................................................... 204

Figura 10. População Cor ou Raça X Blocos Afro X Terreiros .................................................... 205 Figura 11. Organograma Grupo Cultural Olodum......................................................................... 280

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais TSE Tribunal Superior Eleitoral

TVE TV Educativa

IRDEB Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia UFBA Universidade Federal da Bahia

DEM Democratas

BAHIATURSA Empresa de Turismo da Bahia

LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros FEMADUM Festival De Musica e Artes do Olodum

ACM Antônio Carlos Magalhães

PT Partido dos Trabalhadores MDB Movimento Democrático Brasileiro

PC do B Partido Comunista do Brasil

PSB Partido Socialista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

IPAC Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia

CCPI Centro de Culturas Populares e Identitárias

UNEB Universidade do Estado da Bahia SMEC Secretaria Municipal de Educação

FAMEC Faculdade Metropolitana de Camaçari

MNU Movimento Negro Unificado ONU Organização das Nações Unidas

USIBA Usina Siderúrgica da Bahia

CUT Central Única dos Trabalhadores CONEN Coordenação Nacional de Entidades Negras

FEN Fórum de Entidades Negras

UNEGRO União de Negras e Negros Pela Igualdade

FNB Frente Negra Brasileira UHC União dos Homens de Cor

TEN Teatro Experimental do Negro

MNUCDR Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial MH2O Movimento Hip Hop Organizado

ONG Organização Não Governamental

SBT Sistema Brasileiro de Televisão

BAND Bandeirantes PFL Partido da Frente Liberal

PL Partido Liberal

PV Partido Verde PTN Partido Trabalhista Nacional

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ..................................................................................................................... 6

RESUMO ......................................................................................................................................... 9

ABSTRACT ....................................................................................................................................10

SUMÁRIO .......................................................................................................................................14

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................17

1.DEFININDO CAMPO E OBJETO ................................................................................................20

1.1.QUE BLOCO É ESSE? ...........................................................................................................27

1.2.OBJETIVO .............................................................................................................................30

1.3.METODOLOGIA ...................................................................................................................42

2.NARRATIVAS DE CAMPO .........................................................................................................47

2.1.PRIMEIRA IDA A CAMPO ...................................................................................................47

2.1.1.CARNAVAL 2013 ...............................................................................................................49

2.1.2. VISITA AO OLODUM .........................................................................................................66

2.1.3.VISITA AO ILÊ AIYÊ ............................................................................................................71

2.1.4.VISITA AO MALÊ DEBALÊ...................................................................................................73

2.1.5. APÊNDICE – CARNAVAL 2014 ...........................................................................................74

2.2. SEGUNDA IDA A CAMPO ..................................................................................................81

2.3.TERCEIRA IDA A CAMPO ...................................................................................................96

2.3.1.VISITA AO ILÊ AIYÊ ............................................................................................................98

2.3.2.VISITA AO OLODUM........................................................................................................113

2.3.3.VISITA AO MALÊ DEBALÊ.................................................................................................118

2.3.4.ENSAIO DO OLODUM......................................................................................................123

2.3.5.ENSAIO DO MALÊ DEBALÊ...............................................................................................126

2.3.6.ENSAIO DO ILÊ AIYÊ ........................................................................................................133

2.3.7.CAMINHADA DA LIBERDADE 2014 ..................................................................................137

2.2.1.APÊNDICE – CARNAVAL 2015 ..........................................................................................141

2.4.QUARTA IDA A CAMPO.................................................................................................... 143

2.4.1.VISITA AO OLODUM........................................................................................................144

2.4.2.VISITA AO ILÊ AIYÊ ..........................................................................................................146

2.4.3.CAMINHADA DA LIBERDADE 2015 ..................................................................................152

2.4.4.ÚLTIMAS ENTREVISTAS ...................................................................................................159

2.4.5.APÊNDICE – CARNAVAL 2016 ..........................................................................................162

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3.CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-DEMOGRÁFICA..........................................................166

3.1.SALVADOR E OS CICLOS DO TRÁFICO NEGREIRO .....................................................167

3.2.COMPOSIÇÃO DEMOGRÁFICA SOTEROPOLITANA .....................................................180

3.3.CENTRO E PERIFERIA .......................................................................................................187

3.3.1.OS CANDOMBLÉS ...........................................................................................................189

3.3.2.OS QUILOMBOS ..............................................................................................................194

3.3.3.TERRITÓRIOS NEGROS ....................................................................................................200

3.4.MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA ....................................................................................206

3.4.1.O BANZO E O SUICÍDIO ...................................................................................................206

3.4.2.REVOLTAS .......................................................................................................................210

4.O CARNAVAL DE SALVADOR ...............................................................................................223

4.1.OS AFOXÉS ......................................................................................................................... 227

4.2.OS BLOCOS DE ÍNDIO ....................................................................................................... 234

4.3.OS BLOCOS AFRO ............................................................................................................. 238

5.DIMENSÕES INTERNAS DOS BLOCOS AFRO E SUAS RELAÇÕES ....................................254

5.1.BLOCOS AFRO E MOVIMENTO SOCIAL.........................................................................258

5.2.BLOCOS AFRO E MERCADO ............................................................................................286

5.3.BLOCOS AFRO E POLÌTICA INSTITUCIONAL ...............................................................326

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................345

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................352

ANEXOS........................................................................................................................................370

ANEXO 1. TEMAS DOS CARNAVAIS 1975-2017 ...................................................................370

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INTRODUÇÃO

A FESTA VAI COMEÇAR

Em seu guia de ruas e mistérios da Bahia de Todos os Santos, publicado originalmente

no distante ano de 1944, Jorge Amado, baiano de Itabuna, faz um passeio pelas ladeiras de

Salvador, a qual chamava Cidade da Bahia, apresentando aos leitores suas paisagens,

histórias, costumes, festas, miséria, alegria, santos, orixás e personagens dos mais variados.

Ah! moça, esta Cidade da Bahia é múltipla e desigual. Sua beleza eterna, sólida,

como a de nenhuma outra cidade brasileira, nascendo do passado, rebentando em

pitoresco no cais, nas macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza tão

poderosa que se vê, apalpa e cheira, beleza de mulher sensual, esconde um mundo

de miséria e dor. Moça, eu te mostrarei o pitoresco, mas também te mostrarei a dor.

(AMADO, 2012, p. 16)

É por este cenário que convido o leitor a caminhar em minha companhia,

acrescentando ao enredo do célebre escritor novos personagens. Mulheres e homens nascidos

nas periferias da cidade, que apostaram na mobilização dos seus como forma de contestar a

ordem estabelecida. Mulheres e homens que apresentaram aos próprios soteropolitanos outra

Salvador possível. Para tanto, ao longo deste texto, nos aproximaremos dos chamados blocos

afro, coletivos negros surgidos de um carnaval de máscaras desveladas.

Um primeiro olhar é capaz de reconhecer as cores de tais agremiações, mas é preciso

que se detenha o olhar para perceber que tais cores são resultado da mistura de muitas outras.

Compreender que um bloco afro é formado por camadas que se confundem, que podem ser

reorganizadas a todo o momento. Ao contrário de uma simples união de matizes, é justamente

da relação entre essas cores, gravadas no corpo e na alma de nossos personagens, que nasce

nosso sujeito de pesquisa, sintetizado nos blocos Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê.

Não vamos nos deter no nascimento de cada uma das agremiações que ao longo do

texto serão apresentadas. A existência de consistentes trabalhos acadêmicos que versam sobre

tais momentos, bem como o próprio material produzido pelas instituições, nos deixam mais a

vontade para embarcarmos nessa história que se encontra em movimento, por vezes visitando

o passado para melhor compreender o presente.

O texto apresentado está dividido em uma introdução, cinco capítulos e conclusão. O

primeiro deles, intitulado “Definindo campo e objeto”, traz consigo os primeiros contatos

entre o investigador e aquele que emergiria como seu sujeito de pesquisa, aproximando o

leitor das inquietações iniciais que viriam a se transformar no problema de pesquisa aqui

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abordado. Segue-se com a delimitação teórico-metodológica, demarcando os objetivos e os

meios e métodos utilizados para atingi-los.

O segundo capítulo, o mais extenso desse trabalho, intitulado “Narrativas de Campo”,

apresenta as quatro incursões realizadas a campo, versando sobre o acompanhamento dos

festejos carnavalescos de 2013, visitas às sedes dos blocos pesquisados, realização de

entrevistas, acompanhamento de ensaios e da Caminhada da Liberdade.

O terceiro capítulo, “Contextualização histórico-demográfica”, traz ao leitor alguns

elementos relativos à formação da população de Salvador bem como da constituição da cidade

em si, tomados como importantes em decorrência do que fora visto e vivido nos diferentes

contatos com o campo. Foram revisitadas, ainda, páginas da história negra em Salvador em

que diferentes estratégias de resistência foram levadas a cabo por homens e mulheres que

pretendiam modificar a realidade em que viviam.

O quarto capítulo, “O carnaval de Salvador”, traz um retrospecto da folia momesca na

capital baiana, desde os primeiros préstitos, afoxés e clubes, passando pelos carnavais de trio,

blocos de índio até desembocar nos blocos afro.

“Dimensões internas dos blocos e suas relações”, quinto capítulo deste trabalho,

analisa o papel dos blocos afro como herdeiros e partícipes do movimento negro brasileiro,

erigido ao longo do século XX. Passa ainda pelas estratégias das agremiações

afrocarnavalescas para mobilização popular e em busca de uma autossuficiência que lhes

garanta autonomia de ação, dentre os quais surge a necessidade de se ocupar os espaços

existentes no universo político institucional.

O capítulo “Considerações finais”, dedica-se a conclusão do trabalho, repassando os

principais pontos trabalhados ao longo do texto e apontando para outras possibilidades de

abordagens acadêmicas.

Como estratégia discursiva, foi inserida no corpo do texto uma série de caixas com

informações complementares aquilo que vinha sendo discutido. Uma forma de dar maior

ressonância a elementos que antes ficariam restritos a notas de rodapé ou relegados a um

segundo plano na análise.

Optou-se, ainda, pela inserção de endereços eletrônicos que, quando acessados,

permitirão a audição de algumas das canções mencionadas durante o texto, dando ao leitor a

possibilidade de acionar novos sentidos, recuperando um pouco da experiência do bloco em

um de seus pontos mais importantes, que é a musicalidade. Canções outras, que não de autoria

dos blocos, mas que também se mostram interessantes para a compreensão da atmosfera

soteropolitana, receberam o mesmo cuidado.

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Sabedor de que nem sempre o leitor contará com um computador para acessar os

endereços eletrônicos no momento da leitura, realizar-se-á uma tentativa de amparo nas novas

tecnologias. Os endereços eletrônicos referentes às canções estarão sempre

acompanhados de um código QR (quick response), como o colocado ao lado1, que

poderá ser lido por qualquer celular com câmera, desde que tenha instalado um

aplicativo de leitura QR Code2 e tenha acesso à internet, direcionando de imediato o

leitor para a audição das mesmas.

Por não ser o detentor das páginas acessadas pelos códigos, não há como garantir sua

manutenção. Entretanto, no momento em que esse texto foi concluído, todos os códigos foram

testados e seu funcionamento certificado.

Vale ressaltar que a impossibilidade de audição das canções que possuirão tal recurso,

não acarretará prejuízos para leitura e entendimento do texto, sendo essa uma forma de

ampliar as fronteiras do que se expressou pela palavra escrita, ilustrando o universo musical

soteropolitano com o qual os blocos se relacionam.

1 QR Code: “Macuxi Muita Onda” – Gerônimo. Disponível em www.youtube.com/watch?v=hJS6vFIZugA 2 Existem inúmeros aplicativos de leitura de códigos QR disponíveis para os sistemas Android, iOS e Windows.

Para realizar o download de um destes aplicativos basta visitar a loja online referente ao seu aparelho (Google

Play, iTunes ou Microsoft) e instalá-lo. Tais aplicativos são, em sua maioria, gratuitos.

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1.DEFININDO CAMPO E OBJETO NESSA CIDADE TODO MUNDO É D’OXUM

Tão logo o avião tocou o solo do aeroporto internacional de Salvador, minha

trajetória acadêmica começou a mudar. Naquele agosto de 2006, a única mudança que

conseguia compreender era a de ares. Uma viagem turística que me deslocava das

montanhas de Minas para as praias da Bahia3.

Atravessando a sala de embarque, observei as propagandas turísticas.

Destaques para a figura de uma baiana, em suas vestes tradicionais. Destaque também para

uma igreja, que deduzi ser a do Bonfim. E, finalmente, surgiu uma imagem do carnaval. Trio

elétrico à frente, multidão ao fundo.

A primeira sensação que realmente me fez entender que pisava em solo soteropolitano

foi promovida pelo meu olfato. Assim que as portas automáticas do aeroporto se abriram, fui

tomado por um cheiro que me era totalmente desconhecido. Um odor inebriante. Com certeza,

pertencia a alguma fritura. Não tardou para que o mistério fosse desfeito. Era o dendê, no qual

a baiana fritava bolinhos de feijão para compor o acarajé. Este aroma do dendê ficaria

marcado em minha memória.

Mas era pouco para as expectativas criadas desde o momento em que a viagem fora

confirmada. Outros sentidos deveriam ser estimulados. Salvador deveria se mostrar inteira.

Os dias que se seguiram foram de um turismo totalmente convencional. Degustação de

comidas típicas, compra de artesanato, visita as praias e pontos de referência. Tudo aquilo que

só conhecia de programas televisivos, filmes e livros, sobretudo os de Jorge Amado, ia me

sendo apresentado por meus anfitriões. Aos poucos Salvador ia se revelando.

Enfim era chegado o dia de visitar o famoso Mercado Modelo e conhecer de perto a

miscelânea de produtos voltados, principalmente, ao turista que gosta de colecionar

quinquilharias por onde passa. Sem me fazer de rogado, também adquiri meus suvenires. Mas

o que queria mesmo era vencer logo as fileiras de pequenas lojas, todas muito semelhantes,

atravessar o largo que se segue ao Mercado e tomar lugar no curioso Elevador Lacerda. Uma

cidade que se divide em duas. Duas cidades ligadas por um elevador. Coisa que não se vê

todos os dias.

3 QR Code: “É D’Oxum” – Gerônimo. Disponível em www.youtube.com/watch?v=L9alcAEQN80.

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Do elevador aportei no centro histórico. Palácio Rio Branco à esquerda, Prefeitura à

direita. Ao centro, pessoas distribuindo fitas coloridas de Nosso Senhor do Bonfim. “Uma

cortesia”, dizia um deles. Uma estátua de Tomé de Souza completava a paisagem.

Se a obra de Jorge Amado serviu de estímulo para conhecer a Cidade da Bahia, nada

mais natural do que um passeio pelo Pelourinho em busca de seus devaneios. Talvez flagrar

Dona Flor em encontro com Vadinho, Quincas Berro D’água cambaleando ladeira acima,

Pedro Archanjo e Nilo Argolo em uma discussão acalorada. Quem sabe ser tomado de assalto

pelos capitães da areia. Rumei para a Praça da Sé.

A noite já havia caído e o cenário de penumbra tornava mais intrigante aquele casario

colorido, que despencava ladeiras abaixo. Do lado oposto, aos pés do Monumento da Cruz

Caída, a visão da Baía de Todos os Santos, imponente, com Itaparica lhe fazendo moldura ao

fundo. Era, sem dúvida, uma visão hipnotizante. Em meio a este cenário comecei a ouvir um

som que vinha de longe. Soava quase como um convite a lhe procurar Pelourinho adentro.

Na Praça da Sé, turistas estrangeiros acotovelavam-se em busca de melhores ângulos

para fotografar uma roda de capoeira. Em outra calçada, pedintes tentavam, sem muito

sucesso, alguns trocados para matar a fome, a sede ou a saudade. Baianas de acarajé

disputando uma mesma esquina, confundindo o passante distraído que não saberia dizer de

qual delas vinha o mais saboroso cheiro do dendê. Novamente o dendê. Mais adiante o prédio

da antiga Santa Casa de Misericórdia, convertido em museu, defronte a galeria da Fundação

Pierre Verger4. História por todos os lados.

O caminho seguia com uma rua de calçamento antigo, ladeada por pequenas lojas,

onde cafés, lan house, restaurantes, lojas de música e instrumentos musicais marcavam

presença. Aportei em um largo de grandes proporções. Era o Terreiro de Jesus, rodeado por

prédios imponentes e importantes. Ali se encontram a Catedral Basílica, igrejas para São

Pedro dos Clérigos e São Domingos Gusmão e, finalmente, a célebre Faculdade de Medicina

da Bahia, ocupante do prédio que outrora fora o Colégio dos Jesuítas. Faculdade por onde

figuras como Nina Rodrigues5 desfilaram suas teorias.

4 Pierre Verger foi um fotógrafo e etnólogo francês que dedicou parte de sua vida ao estudo da diáspora africana, das religiões de matriz africana e aos fluxos culturais e econômicos realizados entre a África e o restante do

mundo, privilegiando em algumas de suas obras a análise destas questões no Brasil. 5 Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista que elaborou teses a respeito da composição étnico-racial do

Brasil. Herdeiro das concepções defendidas por Cesare Lombroso e sua antropologia criminal, Nina Rodrigues

atribuía características negativas naturalizadas a negros e mestiços, considerando-lhes como indivíduos

degenerados física e mentalmente em função de seu desenvolvimento filogenético. Assim sendo, para o autor, a

mestiçagem entre brancos e não-brancos seria o principal fator que levaria a civilização brasileira ao fracasso. Se

hoje suas ideias são contestadas, a época de sua publicação causaram impacto, ecoando durante muito tempo

mesmo dentro da academia.

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Do outro lado do Terreiro, exatamente oposto de onde me encontrava, uma roda de

pessoas cercava um grupo. Era de lá que vinha o som que havia me seduzido ainda no hall do

Elevador Lacerda. Já era possível identificar bem o que ouvia. Eram tambores.

Atravessei todo o largo com passos decididos. Haveria tempo depois para me deter nos

bucólicos prédios centenários que ali se avizinhavam, bem como no imponente chafariz. Mas

o som, este não havia como saber quando cessaria. O som era urgente. E com essa urgência,

finalmente alcancei o grupo.

Passei a observar aqueles cerca de vinte, trinta músicos. Duas mulheres marcando

presença em meio ao predomínio masculino. Cada qual vestido a sua maneira, os personagens

diferenciavam-se, também, pelas cabeças. Algumas com cabelos trançados, outras com boné.

Era possível ver também um cabelo no estilo Black Power. A frente destes, um homem fazia

movimentos.

Cada um dos tambores era colorido com uma mesma sequencia de cores muito

específica. Verde, vermelho, amarelo e preto. Nesta ordem, se olharmos de cima para baixo6.

No couro dos instrumentos, um símbolo, que lembrava aquele ostentado pelos hippies nos

longínquos anos setenta, e um nome: Olodum.

Estava diante de um inesperado ensaio do grupo Olodum, que conhecia, sobretudo, de

programas televisivos. Lembrava-me também de algumas de suas canções que alcançaram as

rádios do Sudeste do país, assim como da participação de seus instrumentistas em um

videoclipe de Michael Jackson, gravado em terras brasileiras. Para além destas poucas

informações, nada mais sabia sobre aquele grupo de pessoas. Foi quando percebi que a maior

informação que eles poderiam me oferecer estava sendo dada naquele momento através de sua

música.

Eram canções totalmente instrumentais. Não havia qualquer tipo de letra ou canto

envolvido. Apenas o som dos tambores. Entretanto, este foi o suficiente para me atrair ao

interior do Pelourinho e me deter ali, por alguns minutos, apenas contemplando a sonoridade.

Sentia no corpo a força da batida. Acompanhava com os olhos os rápidos e repetidos

movimentos, sem perceber que meu corpo, involuntariamente, fazia o mesmo. A seriedade

dos instrumentistas vez por outra era quebrada por um sorriso. Predominava a atenção total

aos comandos do regente.

6 De acordo com o informe “O que é o Olodum 2012”, obtido junto ao bloco, suas cores possuem significados

específicos. O verde simboliza as florestas equatoriais da África; o vermelho simboliza o sangue da raça negra; o

amarelo simboliza o ouro da África; o preto simboliza o orgulho da raça negra. Haveria ainda o branco, símbolo

máximo da paz mundial. Ainda de acordo com o informe: “Estas são as cores do Rastafarianismo e do

Movimento Reggae. São as cores internacionais da diáspora africana e constituem uma identidade internacional

contra o racismo e a favor dos povos descendentes de África.” (OLODUM, 2012, p. 6)

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Foi quando, por alguns segundos, desviei o olhar sem, no entanto, desviar os ouvidos.

Contemplava o casario que havia deixado para trás. Ele me parecia, então, mais vivo do que

quando o encontrara. Era a música quem enchia de vida aqueles becos, ladeiras, largos e

vielas. Que me fazia sentir certa angústia por saber que aquele mesmo casario, que agora

contemplava calado tal espetáculo dos negros músicos, assistira, também impassível, o

sofrimento de outros tantos negros. Naquele chão de pedras onde agora se derramava o suor

do artista, também fora derramada a lágrima clara sobre a pele escura. Foi a primeira vez em

que a música do bloco Olodum me colocou a pensar.

Dias se seguiram e, tal qual uma criança que completa seu álbum de figurinhas, fui

completando meu álbum de lugares indispensáveis. Visita a Igreja de Nosso Senhor do

Bonfim, tempo para degustar um sorvete na Ribeira, visitar o Farol da Barra e seu interessante

forte/museu e para uma rápida passagem pelo Dique do Tororó, com seus majestosos orixás

que parecem flutuar sobre o espelho d’água. Em meio a tudo isto, paradas estratégicas em

vários tabuleiros de baianas, em diversos pontos da cidade. Os anfitriões de minha estadia

faziam questão de que provasse o acarajé de suas baianas prediletas. Era imperioso que

conhecesse “o melhor acarajé de Salvador”. Tal qual clube de futebol, o soteropolitano

parecia defender sua baiana preferida com bastante vigor.

Prestes a terminar minha viagem, fui perguntado se havia algum lugar que gostaria de

conhecer. Respondi sem pestanejar: Itapuã7. Ao que se seguiram olhares atravessados e

questionamentos. “O que você quer ver em Itapuã?” Confiava em Vinícius, Toquinho e

Caymmi o suficiente para bancar minha ida até lá. Não precisaria passar toda uma tarde

sentindo na pele seu Sol que arde, mas era preciso ir. Respirar o lindo ar de Itapuã.

Chegando lá, deparei-me com um bairro que em nada se parecia com as alegorias

bucólicas que criei ao ouvir a canção imortalizada por Toquinho. Carros e motos disputavam

espaço com pedestres e ambulantes que, sem calçada apropriada, avançavam pela via de

asfalto. Uma profusão de lojas e camelôs dificultava a visão das construções mais antigas. No

ar, nada além da música de algum grupo de pagode que seria sucesso apenas naquele ano.

Com certo quê de decepção, degustei mais um “melhor acarajé de Salvador” e me convenci

de que nada havia demais naquele lugar. Quando num último lampejo, meu cicerone

recomendou uma rápida passagem pelo Abaeté.

7 Em textos, canções e mesmo em dados oficiais, a palavra Itapuã aparece grafada de diferentes maneiras,

variando da citada Itapuã a Itapoã, Itapuan e Itapoan. Convencionou-se para este trabalho o uso da grafia Itapuã,

forma adotada na logomarca do bloco afro Malê Debalê.

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Se me lembrava bem, no Abaeté haveria uma lagoa escura, “arrodeada” de areia

branca. Era o que dizia Caymmi, em uma de suas imortais canções. Resolvi dar um último

crédito ao “Buda Nagô” e conhecer o lugar, o que se mostrou uma sábia decisão.

Em meio a uma vizinhança empobrecida, no ventre de Itapuã, encontrei-me com o

Parque Metropolitano do Abaeté, onde dunas de areia branquíssima erguem-se no entorno de

uma lagoa de águas verdadeiramente escuras, revelando uma visão de rara beleza.

A viagem terminava assim com uma vontade de breve retorno. Tal qual o Abaeté se

esconde no meio de Itapuã, apresentando a poucos todo seu encanto, Salvador deveria ter

muito mais a me mostrar, para além de seus pontos turísticos nacionalmente conhecidos.

Pouco tempo depois, já no ano de 2007, pelos meandros do rio da vida minha

trajetória acadêmica foi modificada, a partir do ingresso no mestrado com um projeto a ser

desenvolvido nesta nova etapa e que acabaria me reaproximando de Salvador.

A dissertação, apresentada em sua versão final no ano de 2009 para a obtenção do

título de mestre em Sociologia, intitulada “Das coisas que aprendi nos discos”, objetivou

decifrar representações da identificação nacional brasileira em seu cancioneiro popular,

através da análise de canções que tiveram considerável exibição em rádios de todo o País,

elencadas entre as cem melhores colocadas em paradas de sucesso entre os anos de 1956 a

2005.

Em meio à análise das mais de três centenas de canções, realizada durante a redação

da dissertação, entre os anos de 2007 e 2008, chegaram as minhas mãos, e aos meus

ouvidos, duas canções do Olodum: “Faraó” e “Madagascar Olodum”8.

Era a primeira vez que ouvia com mais atenção o que era dito naquelas

canções, por aquelas pessoas. Aquele Olodum do Pelourinho, que me afetara com a

potência de seu som, agora me intrigava com suas letras. Ranavalona? Tutankamon? Seth?

Cultura malgaxe? Do que exatamente eles estavam falando?

A análise mais minuciosa das composições me apresentou todo um universo musical

que ignorava. Naqueles idos do final da década de 1980, por meio de narrativas quase

enciclopédicas, tal coletivo buscava na ancestralidade a valorização do negro no presente.

Nenhuma das demais composições analisadas ao longo de toda a dissertação foi capaz

de despertar em mim tamanha curiosidade. Apesar de reconhecer a sonoridade dos tempos de

infância e da audição costumeira de rádio em minha família, as letras me eram completamente

desconhecidas. Não era o que recordava ser o Olodum. Este, em minha memória, era o

8 QR Code: “Madagascar Olodum” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=LZYE-zP7Mk8

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Olodum pós-Daniela Mercury e explosão da chamada Axé Music, no início da década de

1990. Era o Olodum que falava em “requebrar”9. Pela segunda vez, em pouco tempo,

o grupo do Pelourinho me colocava a pensar.

Foi ainda durante o curso de mestrado que realizei minha segunda ida a

Salvador, já em 2008. Nesta nova incursão, acabei por mergulhar um pouco mais no

interior da cidade. Era ainda um mergulho em águas rasas, mas que me permitiu desconstruir

algumas certezas.

Por estar em uma cidade predominantemente negra, ingenuamente esperei encontrar,

finalmente, traços de uma organização social mais próxima de uma democracia racial

preconizada por Gilberto Freyre. Um lugar onde as diferenças raciais/étnicas seriam anuladas

por uma convivência fraternal e equalizadora. Entretanto, o que encontrei foi um local onde o

preconceito racial se mostrou muito mais visível, rotineiro e agressivo. Especulei que a grande

presença negra fazia aflorar o preconceito guardado em muitos de nós, pois é quando o

diferente se faz presente que o sentimento de desconforto aparece. Foi o que presenciei nas

ruas, em cenas de flagrante preconceito, em xingamentos no trânsito, em comentários em

restaurantes. Os eventos se multiplicavam de uma maneira que me impressionou.

Ao andar por áreas menos turísticas de Salvador, fiquei cara a cara com o cotidiano do

cidadão soteropolitano que faz uso do péssimo transporte coletivo, que frequenta o primeiro

andar do shopping Iguatemi ou faz compras na Avenida Sete. Aquele que usa o terminal

Pirajá, que gasta uma hora em um ônibus para conseguir se banhar no mar, que sabe que

Brasil Gás não é necessariamente um local em que se comercializa gás de cozinha, que utiliza

o Pelourinho apenas como uma passagem entre a Baixa do Sapateiro e a Rua Chile. Que

frequenta a feira de São Joaquim, ainda a chamando de Água de Meninos. Aquele que vive a

Salvador do dia-a-dia e que consegue compreender todas estas referências sem maiores

dificuldades.

Pois foi ao me deparar com este universo que me deparei também com minha face

mais preconceituosa. Um misto de vergonha, desilusão e angústia tomou conta de mim

quando percebi que me senti ameaçado por um jovem negro, que vinha sozinho pela calçada,

em direção contrária a minha, com caminhar desenvolto e olhar desinteressado, mas que para

mim transparecia ares de quem estava à espreita, no aguardo por uma oportunidade de tornar

real meu prenúncio da iminente ameaça.

9 QR Code: “Requebra” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=8CdKLhaKMpg

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Percebi também que, ao olhar para a outra calçada, havia outro jovem, igualmente

negro, igualmente ameaçador. Assim como o jovem negro que estava pilotando uma

motocicleta. Como o jovem negro que vendia água aos carros parados no semáforo.

Só então me dei conta de que não havia nada de errado com aquelas pessoas. Quem

estabeleceu um padrão de suspeito, de sujeito ameaçador, no qual elencava entre suas

características ser negro, jovem, usar roupas mais simples, calçar chinelos, fui eu. Acontece

que estávamos em Salvador, uma cidade predominantemente negra, onde o Sol parece

multiplicar-se e o calor, em alguns momentos, chega às raias do insuportável. Onde eu mesmo

optava por roupas simples e chinelos, semelhantes aos dos meus prováveis algozes.

Ao entender aqueles jovens negros como possíveis ameaças, reproduzia um

comportamento que caracteriza o indivíduo negro, sobretudo se homem, jovem e de baixa

renda, como potencialmente perigoso. Comportamento que se reflete, por exemplo, na

construção do perfil de suspeito pelos agentes das forças policiais10

. Luiz Eduardo Soares

(2005) afirma que a suspeita está para a polícia como o medo está para a população,

considerando que nos dois casos, a direção do foco está longe de ser aleatória. Ainda em suas

palavras:

Os objetos do medo e da suspeita tendem a se sobrepor, porque os critérios

empregados para identificá-los são os mesmos. Encobertos pela máscara das

justificativas técnicas ou das alegações digressivas estão os mesmo valores, atavicamente agarrados ao inconsciente coletivo, fundamentalmente enraizados na

cultura brasileira. (SOARES, 2005, p. 11)

A partir daquele episódio, entendi que fazia parte daqueles cuja conduta negativa tanto

me impressionou. Compreendia, enfim, a persistência do passado11

da qual falava Florestan

10 Vários são os trabalhos que se debruçaram sobre a construção da figura do suspeito por agentes policiais,

sobretudo na forma como a questão racial influencia em tal processo. Silva (2009), ao estudar a abordagem da

polícia do Distrito Federal, delineou o tipo ideal que levanta suspeição: “O tipo ideal do indivíduo suspeito, o

peba, é a figura de um homem, pobre, jovem com tatuagem/brinco e negro que traja roupas folgadas com boné.

(...) Quanto mais o indivíduo se aproxima de tal classificação mais ele se torna suspeito, quanto mais ele se

distancia desta tipificação mais se torna não suspeito ou até mesmo uma possível vítima” (SILVA, 2009, p. 98).

Reis (2002) já havia feito trabalho semelhante ao analisar o comportamento de policiais de duas Companhias da

Polícia Militar de Salvador, na caracterização de suspeitos, chegando a resultados também semelhantes: “Entre

os soldados e oficiais entrevistados nas duas Companhias da Polícia Militar em estudo, muitos não tinham o

menor pudor em caracterizar os negros como suspeitos em potencial. O que mais se destacava nos relatos era o cabelo rastafari como um estigma de marginalidade, um jeito de andar meio gingado, tatuagens no corpo e,

ainda, um tipo físico denominado como malhado, com correntes de ouro e/ou brinco na orelha” (REIS, 2002, p.

190). Para mais informações a respeito da construção de suspeitos por forças policiais, ver Sansone (2002),

Amar (2005), Ramos e Musumeci (2005), Flauzina (2008) e Barros (2008). 11“A discriminação existente é um produto do que chamei ‘persistência do passado, em todas as esferas das

relações humanas – na mentalidade do ‘branco’ e do ‘negro’, nos seus ajustamentos a vida prática e na

organização das instituições e dos grupos sociais. (...) A discriminação do ‘negro’ é sutil e dissimulada, pois ele é

confinado ao que os antigos líderes dos movimentos negros de São Paulo chamavam de ‘porão da sociedade’.”

(FERNANDES, 2007, p. 62-63).

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Fernandes. Passado que se fazia presente em mim e nos demais, atualizado em nosso

preconceito escancaradamente dissimulado.

Mais do que qualquer novo lugar que tenha visitado nesta segunda passagem, ou de

qualquer nova experiência que tenha tido, foi justamente esta tomada de consciência do meu

próprio preconceito o momento mais marcante. Descoberta daquelas de deixar um incômodo

amargor na boca e mais pesada a alma. Sensação que encontra respaldo nas palavras de

Fernandes: “O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante do ‘preconceito de

cor’ é a tendência a considerá-lo algo ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem o

pratique).” (FERNANDES, 2007, p. 41).

Descoberta também das posições de privilégio que ocupo por ser um homem branco.

De como observava o mundo através de uma concepção em que o branco é o padrão

normativo. Naquele instante passou a fazer sentido para mim a afirmação de Guerreiro Ramos

(1995) de que a partir do momento em que deixamos de lado o opressor para focar apenas o

oprimido, não estamos tratando de relações raciais, mas sim considerando a opressão como

referente exclusivamente ao oprimido, desconsiderando seu opressor. Também passaram a

fazer maior sentido as palavras de Ruth Frankenberg (1993) a respeito do que viria a ser a

chamada branquitude, caracterizada como sendo o lugar de uma vantagem estrutural e de um

privilégio de raça, um ponto de vista a partir do qual o sujeito branco olha para si mesmo,

para os outros e para a sociedade e um conjunto de práticas estruturais que são usualmente

inominadas e não destacadas12

. Era o choque contra a porta de vidro, metaforizado por Edith

Piza (2000)13

. Um episódio fundamental para que, anos depois, pudesse redigir este texto,

entendendo que não é possível afastar tal posição privilegiada que ocupo na sociedade, a

despeito de minha intenção de ocupá-la ou não. Caberia a mim, como autor dedicado ao

estudo de entidades partícipes do movimento negro, assumir tal condição e saber de qual lugar

redijo estas palavras.

1.1.QUE BLOCO É ESSE?

1212 “First, whiteness is a location of structural advantage, of race privilege. Second, it is a ‘standpoint,’ a place

from which white people look at ourselves, at others, and at society. Third, ‘whiteness’ refers to a set of cultural

practices that are usually unmarked and unnamed”. (FRANKENBERG, 1993, p. 1) 13 “Talvez uma metáfora possa resumir o que comecei a perceber: bater contra uma porta de vidro aparentemente

inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do

vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isto resume, em parte, descobrir-se

racializado”. (PIZA, 2000, p. 61)

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Com o mestrado prestes a ser concluído, veio minha terceira visita a Cidade da Bahia,

em 2009. Desta vez com um objetivo muito claro: brincar o carnaval. Porém, nesta mesma

viagem, ainda antes da folia momesca ter início, pude participar do Festival de Verão de

Salvador, um evento que mistura diferentes estilos musicais e ocorre sempre entre os meses

de janeiro e fevereiro.

Organizado em cinco noites, o festival apresentou atrações para todos os gostos.

Escolhi uma noite que estariam reunidos artistas cujo trabalho aprecio e fiquei especialmente

satisfeito ao saber que também se apresentaria naquela data o Olodum. Depois de ouvi-los

ensaiar no Pelourinho, e ouvir suas canções durante minha pesquisa de mestrado, era real a

possibilidade de ver sua performance completa ao vivo.

Faltando poucos minutos para o início da apresentação, o espaço onde se realizaria o

show (Parque de Exposições) ainda encontrava-se consideravelmente vazio, o que me causou

surpresa, pois esperava um grande público a prestigiar o Olodum.

Fato é que o show transcorreu por completo com um público pouco numeroso. Dentre

este público reduzido, me chamou a atenção o fato de que todas as letras eram cantadas quase

que em uníssono. Músicas que nunca havia ouvido eram entoadas a plenos pulmões. Canção

após canção, umas que reconheci, várias que não, o Olodum ia desfilando seu repertório,

quando como em um comando o vocalista bradou: “Eu falei faraó!”

Neste instante, não só os que se concentravam em frente ao palco, como praticamente

todo o público que se encontrava ao redor do espaço, e que até então pouco parecia se

importar com a apresentação do grupo do Pelourinho, respondeu a aquele chamado: “Ê

faraó!”

Bastou ao vocalista proferir a sentença para que o público de imediato lhe

respondesse. Uma música com mais de trinta anos, ainda se fazendo potente na voz de uma

multidão que se mostrava desinteressada e alheia ao que acontecia no palco. O que teria

naquele chamado para ser capaz de produzir tal efeito? Percebia ali que ainda não conhecia

nada do Olodum, tampouco do poder de sua obra.

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“Faraó (Divindade do Egito)”14

(Composição de Luciano Gomes)

Deuses, divindade infinita do universo

Predominante esquema mitológico

A ênfase do espírito original chu

Formará no Éden o ovo cósmico

A emersão nem Osíris sabe como aconteceu

A ordem ou submissão do olho seu

Transformou-se na verdadeira humanidade

Epopeia do Código de Geb e Nut gerou as estrelas

Osíris proclamou matrimônio com Ísis

E o mau Seth, irado, o assassinou e per-aá

Horus, levando avante a vingança do pai

Derrotando o império do mau Seth

É o grito da vitória que nos satisfaz

Tutankamon, iê iê, Gizé! Akhaenaton, iê iê, Gizé

Eu falei faraó!

Ê, faraó! Clama o Olodum-Pelourinho

Ê faraó! Pirâmide, a base do Egito

Ê faraó! Eu clamo Olodum, Pelourinho

Ê faraó!

Que mara, mara, mara, maravilha ê! Egito, Egito ê!

Faraó, ó ó ó! Faraó. ó ó ó!

Pelourinho, uma pequena comunidade

Que, porém, o Olodum unirá

Em laço de confraternidade

Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil

Em vez de cabelos trançados

Veremos turbantes de Tutankamon

E nas cabeças que enchem-se de liberdade

O povo negro pede igualdade

Deixando de lado as separações

Tive então a certeza de que no carnaval que se avizinhava, a presença do Olodum na

avenida seria um ponto alto para todos. Entretanto, a realidade desafiou minhas convicções e

sequer tive notícia da presença da banda durante todo o período de festa. Não vi seu trio

14 QR Code: “Faraó (Divindade do Egito)” – Olodum. Disponível em

www.youtube.com/watch?v=5cSpCMwlNhk

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elétrico, tampouco reportagens com seus integrantes na mídia local. Não ouvi músicas do seu

repertório nas rádios, mesmo que, vez por outra, um artista qualquer interpretasse uma de suas

canções do alto de algum trio.

Após brincar o carnaval, voltei a Minas, onde segui esperando pelo surgimento de uma

ideia que se mostrasse promissora e suficientemente pertinente para que desta resultasse um

projeto de doutorado. Foi durante essa época que me veio a seguinte questão: seria esse

Olodum, que tanto me inquietou, bom para pensar? Seria o momento de deixar de falar das

coisas que aprendi nos discos e ver a vida acontecendo lá fora? Afinal, como diz o saudoso

compositor cearense, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

1.2.OBJETIVO

Em um esforço preliminar de busca por informações, passei a entender que o Olodum

era um bloco de carnaval categorizado como afro, fundado no ano de 1979. Que tinha como

objetivos a valorização do negro e de sua cultura, um resgate das tradições africanas e a

conscientização e combate dos problemas enfrentados por nossa população negra. Começava

a ficar mais interessante. Aqueles ritmistas que encontrei no Pelourinho, anos antes,

ganhavam em complexidade.

Ao entendê-lo como bloco afro, comecei a tomar conhecimento deste coletivo no qual

o Olodum se insere. Que para além deste, existem outras mais de sessenta agremiações apenas

em Salvador, enquadradas na mesma categoria. E que tudo começara com um bloco chamado

Ilê Aiyê, no distante ano de 1974.

Trabalhos de maior vulto sobre os blocos começaram a surgir nesta revisão

bibliográfica, embora ainda embrionária. Livros, teses e dissertações. Variadas eram as

formas como a academia havia se detido sobre o assunto. A começar pelo trabalho de Antônio

Risério (1981), produzido na alvorada dos blocos afro, acompanhando de perto os primeiros

passos de algumas das instituições que agora já contam com mais de três décadas de história.

Para o autor, o surgimento dos blocos e a reafricanização do carnaval de Salvador deixavam

claro que a festa seguia sendo um espaço privilegiado para a manifestação e afirmação

cultural negra, com as repercussões políticas e sociais implicadas. Para além do carnaval,

Risério via a reafricanização como um processo mais amplo, capaz de atingir todas as esferas

da vida, sendo o carnaval dos afoxés e blocos afro apenas “sua expressão mais densa e

colorida”, mas de maneira alguma restrita à folia momesca.

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Na esteira do trabalho de Risério, outros foram sendo produzidos ao longo das décadas

seguintes, encontrando os blocos em diferentes momentos de sua trajetória, ajudando a

compor assim um interessante quadro de todo o processo.

Tosta (2010) e Dunn (1992) tratam da dimensão festiva dos blocos como uma forma

de resistência. Para Luciano Tosta (2010), os blocos afro têm usado sua música como uma

forma de resistência contra uma ideologia elitista dominante, que permearia não só a

sociedade baiana como a brasileira. Tais agremiações estariam lutando por seu devido espaço

na sociedade, fazendo o possível para que não apenas suas comunidades de origem, como a

população afro-brasileira em geral, encontrasse o caminho da cidadania. Para tanto, os blocos

afro mover-se-iam para o futuro sem jamais se esquecer de suas origens, utilizando suas

músicas para educar as pessoas e chamar a atenção para as questões colocadas para a

sociedade no que tange ao racismo e preconceito contra a população negra.

Christopher Dunn (1992) apresenta os blocos afro de Salvador, centrando-se no

Olodum e Ilê Aiyê. Em constante diálogo com Roberto Da Matta e seu célebre “Carnavais,

Malandros e Heróis”, o autor aponta as diferenças existentes entre as manifestações

carnavalescas carioca e soteropolitana, ressaltando como em Salvador a folia momesca

serviria como palco para uma manifestação de resistência que ganhava corpo no cotidiano da

população negra. Nesse contexto, ressalta o alinhamento panafricanista de tais agremiações e

de que maneira tal posicionamento se refletiria no crescente ganho de consciência da

juventude negra a respeito de sua negritude.

Da Silva (2008), Perrone (1992), Cunha (2000) e Henry (2008) trabalham a temática

sob uma ótica mais ampla da construção de uma identidade afrobaiana.

Francisco Carlos Cardoso Da Silva (2008) elabora uma análise sobre como práticas e

discursos contribuem para a desconstrução construção de identidades étnico-raciais dos

negros em Salvador. Para tanto, elege como objetos de sua análise o Ilê Aiyê e o Movimento

Negro Unificado (MNU), tecendo as tramas existentes na relação estabelecida por tais

entidades entre cultura e política.

Para Charles Perrone (1992), o desenvolvimento musical em Salvador tem envolvido

conceitualizações étnicas e geográficas a respeito da prática musical e da participação em

eventos da cultural popular. Segundo o autor, a atestável consolidação de uma nova estética,

nascida a partir da reafricanização do carnaval da cidade, processou uma identificação social

vital para a parcela negra de sua população, historicamente alijada do centro do poder. Essa

inovação estética passaria pelo desenvolvimento de padrões de bateria idiossincráticos,

distintos daqueles exibidos por afoxés e presentes no samba, sendo este sua fonte fundamental

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de derivação, mas influenciado por estilos outros, principalmente o reggae. Suas canções

exaltavam a negritude, contavam a história da opressão, revelavam injustiças sociais ou

denunciavam o preconceito. Nesse contexto, constantes eram as ligações estabelecidas com

elementos internacionais relacionados à diáspora, podendo ser desde o músico jamaicano Bob

Marley até o apartheid sul-africano e a figura de Nelson Mandela, passando pela Etiópia e o

rastafarianismo. Havia ainda espaço para a apresentação de novas ideias, ou difusão de outras,

consideradas contra-narrativas, como no caso do carnaval em que o Olodum apresentou as

teses do historiador senegalês Cheikh Anta Diop, cujo argumento central era o de que os

negros haviam desempenhado um papel dominante na história egípcia antiga.

Olívia Maria Gomes da Cunha (2000) apresenta uma abordagem segundo a qual a

busca pela formulação de modelos de mobilização baseados em práticas político-culturais

teria permitido movimentos capazes de viabilizar projetos políticos e de construção de

identidade extremamente significativos, bem como a organização política de diferentes

grupos. Para além dessas possibilidades, teria consistido em um momento inicial de

elaboração de um discurso de identidade entre os movimentos negros brasileiros. Como

sujeitos de sua análise, Cunha se debruça sobre os blocos afro de Salvdor (notadamente Ilê

Aiyê e Olodum) e o Grupo Cultural Afro Reggae, do Rio de Janeiro.

Por sua vez, Clarence Bernard Henry (2008) vai examinar como os conceitos

relacionados ao Candomblé foram apropriados e reinventados na música popular brasileira.

Em determinada parte de seu texto, o autor se dedica a análise do samba-reggae, apontando os

elementos musicais e estilísticos que seriam decorrentes da religião afro-brasileira,

argumentando que o chamado “axé” seria a força unificadora, capaz de unificar as diferentes

paisagens musicais, secular e sagrada, na música afro-brasileira.

Tais trabalhos se aproximam do realizado por Morales (1991), já se centrando na

questão dos blocos, e de Sansone (2000), que insere na discussão a temática do consumo,

mercantilização e globalização, caminho semelhante ao escolhido por Pinho (1997).

Partindo de uma análise que contrapõe o Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhi,

Anamaria Morales (1991) afirma que as agremiações negras originadas no Carnaval

soteropolitano, desempenham importante papel no quadro das relações raciais e étnicas de

Salvador. Tais relações seriam, segundo a autora, essencialmente políticas e econômicas, uma

vez que definiriam não apenas a apropriação dos recursos, mas também de espaços sociais

entre os diferentes grupos étnicos em confronto. Ao mesmo tempo, tais apropriações seriam

simbólicas pois envolveriam as representações que os indivíduos elaboram sobre si próprios e

dos demais grupos sociais. Assim sendo, valendo-se do pretenso caráter democrático do qual

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se revestiria o carnaval, setores populares negros de Salvador delimitaram no seu interior um

espaço próprio, onde suas representações, enquanto setor dominado, se fariam presentes,

através dos dados culturais e étnicos de que dispunham. Voltados para o lazer e movidos pela

sociabilidade, tais grupos se tornariam progressivamente entidades capazes de promover uma

identificação coletiva com um território e símbolos de etnicidade.

Segundo Lívio Sansone (2000), as culturas negras sempre foram o resultado da

manipulação cultural e da mercantilização, não sendo a cultura negra moderna a expressão

contemporânea de uma tradição antiga. Ao contrário, existindo uma tradição, ela demonstraria

que as culturas negras estão sempre em mutação por meio de um processo que exigiria a

mercantilização de artefatos negros. A partir dessa premissa, o autor afirma que a centralidade

crescente do consumo na cultura negra baiana moderna cria uma série de novas questões,

sendo a principal delas o fato de que sempre que a negritude moderna é associada ao consumo

de um conjunto de mercadorias, a incapacidade de consumir poderia gerar um sentimento de

exclusão racial. Outra questão seria a incapacidade que tal mercantilização tem de abranger

toda a variedade das culturas negras.

Em seu trabalho, Osmundo Pinho (2007) posiciona o foco de sua análise sobre o

chamado Bar do Reggae, localizado no Pelourinho, considerado o introdutor da cultura do

reggae na capital baiana. Seu objetivo é compreender se um gênero musical de apelo global

(reggae) é capaz de funcionar como um decodificador da experiência da identidade de jovens

negros, alinhando-os a um pretenso fluxo global de uma contracultura da diáspora. Segundo o

autor, processo de produção contradiscursiva são capazes de realizar discursos estruturados de

elaboração da experiência da alteridade, através da resignificação de elementos de uma

cultura popular de caráter transnacional.

Guerreiro (1997), (1999) e (2010), busca traçar um panorama do carnaval de Salvador,

sempre em paralelo a discussões que envolvem territorialização, questões raciais e a temática

da diáspora africana, perspectiva compartilhada por Oliveira (2002).

Goli Guerreiro (1997) faz um breve panorama a respeito do surgimento dos blocos

afro em Salvador, abordando o Ilê Aiyê, Olodum, Araketu, Malê Debalê e Muzenza para, a

partir disso, discutir a criação e recriação de territórios brancos e negros na cidade, com o (na

época) recente trânsito dos blocos por diferentes territórios (geográficos e simbólicos) da

capital baiana. O segundo trabalho aqui referenciado (1999), aborda o processo de invenção

do samba-reggae, demonstrando como sua estética conecta elementos culturais elaborados ao

longo de uma rede atlântica originada da diáspora negra. Sendo assim, teriam contribuído para

esse caldo de cultura do qual emergiria o samba reggae a história musical baiana, a África e o

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Caribe. Haveria ainda espaço para a soul music dos Estados Unidos e o movimento Black

Power, sendo o gênero soteropolitano exemplar das formas estético-comportamentais

híbridas/sincréticas que se modelam e circulam no chamado “Atlântico Negro”, como

nomeado por Paul Gilroy. Por fim, a autora faz uma análise da chamada musicalidade afro-

baiana (2010), voltando aos primórdios da história musical baiana, passando pelo surgimento

dos blocos afro com suas invenções rítmicas e inovações estéticas, elaboradas em constante

diálogo com elementos que circulam por entre o mundo da diáspora negra, em um constante

trânsito de sonoridades e ideias.

Nadir Nóbrega Oliveira (2002), por sua vez, se concentra no que chama de

desempenhos espetaculares dos blocos afro do carnaval baiano, notadamente Ilê Aiyê,

Olodum, Malê Debalê e Bankoma. Seu foco é sobre a dança, música e fantasias apresentadas

por tais agremiações, analisando de que forma essas “criações espetaculares negras”

reconfiguram e elaboram os ideais de negritude, ao mesmo tempo em que ensejam a fundação

das artes negras baianas.

Goldman (2000) e (2001) leva a discussão dos blocos para outro lado, tanto teórico

quanto geográfico, quando opta por discutir política, segmentaridades e o movimento negro

na cidade de Ilhéus, a partir dos blocos, mesmo campo e escopo explorado nos trabalhos de

Silva (1998) e (2004) e Cambria (2002) e (2006).

Marcio Goldman (2000) apresenta uma análise etnográfica da participação de um

segmento do movimento negro da cidade de Ilhéus, situada no sul do estado da Bahia, Brasil,

nas eleições municipais de 1992 e 1996. Para tanto, apresenta um cenário em que o

movimento negro pode ser encarado por duas vertentes: a primeira, de caráter nacional, é

representada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), enquanto a segunda é formada por

um conjunto de grupos autodenominados “movimento afro-cultural”, críticos a atuação

“excessivamente política” do MNU. Vemos a clara oposição entre cultura e política que

pautou disputas internas no movimento negro, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980.

Tomando como sujeito de análise o Grupo Cultural Dilazenze, Goldman elabora uma análise

a respeito da participação no processo democrático eleitoral, explorando conceitos como

reciprocidade e subjetividade. Já em seu trabalho seguinte, Goldman (2001) se debruça sobre

a atuação dos blocos afro e torno da política institucional de Ilhéus, delineando movimentos

de segmentação e de alianças. Para tanto, descreve como as rupturas que dão origem aos

blocos estão, via de regra, relacionadas a desentendimentos entre componentes, com

motivações ligadas a problemas financeiros ou desentendimentos sobre a organização

do blocos, mas também tem raízes no fato de que cada agremiação esteve, está — e

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provavelmente estará de alguma forma ligado a políticos profissionais que participaram de

sua fundação, ou se aproximaram em razão das eleições. O autor ressalta ainda que, apesar

das constantes tentativas de união em torno de candidatos comuns e de uma “tendência

federalizante” (em citação a Agier), alianças laterais com diferentes políticos provocam a

divisão dos blocos no período eleitoral.

Seguindo a trilha desbravada por Goldman, Ana Claudia Cruz da Silva (1998) e

(2004) descreve o que chama de “encontros” responsável pela constituição dos blocos afro da

cidade de Ilhéus. A autora chama a atenção para o fato de que, desde o surgimento do Ilê

Aiyê, em Salvador, na década de 1970, a academia tem privilegiado uma análise centrada no

que se convencionou ser o caráter étnico desses grupos. Entretanto, seu trabalho afirma que,

para além dos desejos de afirmação e diferenciação, relacionados a investimentos na

dimensão étnica da vida social, os mais diferentes encontros estariam articulados a desejos

conectados a outras concepções de vida e do que se entende por blocos afro, sendo esses

desejos igualmente constitutivos das experiências de seus partícipes.

Ainda centrado em Ilhéus, Vincenzo Cambria (2002) e (2006) se dedicou a analisar as

práticas musicais do Grupo Cultural Dilazenze, defendendo que as mesmas devem ser

entendidas como um ‘contexto’ específico onde são construídos e negociados tanto os grupos

quanto suas próprias identidades. Assim sendo, o autor discute características do que chama

de “contexto música”, na forma como é concebido pelos integrantes do Dilazenze bem como

por membros de outros grupos que partícipes da cena afro da cidade, buscando ressaltar sua

importância, seja na elaboração de uma identidade étnica, seja como espaço de negociação

das diferenças, ou ainda, como importante instrumento de ação.

A relação entre os blocos, construções identitárias e a negritude é explorada nos

trabalhos de Béhague (2000), Crook (1993) e Ribard (1999).

Gerard Béhague (2000) parte de um questionamento a respeito da lógica por trás da

invenção do samba-reggae, discutindo se esse seria o resultado musical de um verdadeiro

processo de hibridização cultural, nascido da reafricanização do carnaval e da música da

Bahia. Ao longo do texto o autor passa a defender a tese de que a invenção do samba-reggae

foi o resultado de uma atitude de reivindicação social, econômica e política por parte da

população negra de Salvador, que objetivou criar uma forma de socialização através da

pratica musical, concebendo assim um movimento de afirmação por meio do que chamou de

“estilização da negritude”.

Larry Crook (1993) concebe os blocos afro como sendo organizações que

compreendem o racismo como uma questão cultural a ser resolvida por meio de um ganho de

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consciência a respeito das "raízes" africanas e da história da escravidão negra. Para o autor,

enquanto as entidades eminentemente políticas do movimento negro operavam a partir de

bases sociais bastante estreitas, que compreendiam principalmente profissionais negros,

intelectuais e estudantes universitários de classe média, os blocos afro estariam baseados na

comunidade de negros da classe baixa e trabalhadora, cuja atividade "cultural" se tornou um

mecanismo importante para a mobilização social e política. Para desenvolver seu argumento,

o autor analisa o impacto da atuação dos blocos nas celebrações do centenário da abolição da

escravatura, em 1988, na cidade de Salvador.

Franck Ribard (1999) considera o carnaval baiano um “fato social total”. A partir

dessa conceitualização, o autor propõe uma análise cuidadosa das transformações do carnaval

do século XIX até o presente, destacando seu caráter eminentemente participativo, capaz de

garantir a representatividade em relação à população baiana em uma festa essencialmente

democrática. Tais elementos fariam de Salvador um local que incorpora, no imaginário

brasileiro, o local da realização da propalada democracia racial, onde o espírito de

comunidade e a harmonia social teriam sido preservados. Esta visão idílica, presente nos

escritos de Roger Bastide, Jorge Amado e outros intelectuais baianos, torna-se, segundo

Ribard, a principal característica do "mundo afro", cuja convivência e coesão da comunidade

referem-se a representações sociais provenientes de uma visão de mundo originada nos

terreitos de Candomblé.

Em seu trabalho, Schaun (2002) analisa o que chama de práticas educomunicativas de

grupos afro-descendentes. Por sua vez, Spinola & Spinola (2004) vão se concentrar na esfera

econômica das entidades e na sua relação com a indústria do carnaval de Salvador.

Ângela Schaun (2002), a partir do conceito de edocumunicação, analisa a atuação dos

blocos afro Ilê Aiyê, Olodum e Ara Ketu no que tange a formação de uma perspectiva do que

é ser negro no cenário cultural nacional, realizando, para tanto, uma revisão pormenorizada

das estratégias e tendências de ação percebidas nessas agremiações.

Noelio Spinola e Tatiana Spinola (2004) abordam a chamada economia cultural de

Salvador, colocando em destaque o carnaval. Segundo os autores, o carnaval atual seria

produto de uma política neoliberal, desenvolvida pela Prefeitura Municipal do Salvador,

responsável pela criação das condições pelas quais prosperou uma indústria milionária, em

parte responsável por uma acelerada concentração de renda e poder, representada na figura de

um oligopólio que comanda a festa e elimina as chances competitivas dos pequenos grupos.

Para estes a realidade seria de um constante trânsito entre a formalidade e a informalidade, o

que faz com que qualquer política elaborada para o setor precise, necessariamente, assumir

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contornos multifacetados compostos por projetos que respeitem a cultura específica dos

grupos envolvidos, incluindo seus modelos endógenos de organização empresarial, e sejam

capazes de aceitar a informalidade como um status que, caso seja modificado, pode implicar

na eliminação de atividades dadas as limitações de competências dos envolvidos.

Alguns blocos mereceram maior atenção por parte dos pesquisadores, como no caso

dos trabalhos de Ericivaldo Veiga (1991), (1996) e (1997), sobre diferentes facetas do bloco

afro Muzenza, dentre as quais se destaca seu caráter errante, sendo essa a característica que

mais o distancia dos demais blocos. Para o autor, “ser Muzenza” não implicaria residir na

Liberdade, seu bairro de origem, mas sim adotar determinados valores simbólicos, sendo seu

pertencimento então, antes calcado em uma condição psico-social demonstrável

principalmente nas atitudes e no comportamento, do que em um pertencimento estritamente

territorial. Sua constante peregrinação em busca de lugares para realização de ensaios teria

contribuído para a consolidação de tal característica, fazendo do bloco um “nômade urbano”

que angariava entusiastas a cada nova peregrinação, acumulando elementos de cada pouso em

que se detinha não mais do que por um momento. É nesse ir e vir que o bloco elabora seu

discurso, ancorado em uma identidade cultural dupla, capaz de congregar o moderno e o

tradicional, exibindo nas avenidas e periferias de Salvador um particular processo sincrético.

Sobre o Ilê Aiyê, especificamente, temos o trabalho de Walter Altino de Sousa Junior

(2007), a respeito da relação entre o bloco e o Estado, no qual analisa o processo pelo qual o

movimento político cultural negro, surgido na década de 1970, se relacionou e se relaciona

com a política cultural do Estado, a qual incorpora os símbolos da negritude a uma política

pautada numa construção exótica da chamada baianidade, apontando os limites dessa relação,

considerando a narrativa hegemônica pautada no mito da democracia racial e as estratégias

utilizadas, permeadas por uma cultura política clientelista.

A construção da identidade via atuação do Ilê Aiyê é o objeto de interesse do trabalho

de Joseania Miranda Freitas (1996). A autora detém sua análise sobre a criação do museu do

Ilê Aiyê a partir de suas premissas como o apreço pela ancestralidade e a ligação com a

religiosidade. Desta feita, elabora uma análise que concebe o museu do Ilê Aiyê como um

espaço voltado para a educação e a afirmação étnica, parte fundamental de uma engrenagem

maior de atuação da agremiação que tem como fim a afirmação social, cultural e estética da

comunidade negra soteropolitana.

Rita Maia (2007) versará sobre uma chamada ética estética do bloco, através de uma

análise das múltiplas interpretações em torno das produções culturais do Ilê Aiyê, na

modificação e valoração positiva da imagem dos negros na cidade do Salvador. Para a autora,

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os desfiles de carnaval e os espetáculos promovidos pelo bloco emitiriam uma imagem de

negro diversa da habitual, fornecendo novos modelos e formas para identificação da

população afro-descendente, bem como, influenciando nas estruturas de percepção da

população local, interferindo e transformando, em vários graus, as hierarquias estéticas,

culturais, políticas e econômicas na cidade do Salvador.

Ana Célia da Silva (2006), em seu trabalho sobre o Ilê Aiyê e o Movimento Negro, faz

um resgate da atuação dos antigos afoxés e sua atuação junto a população negra de Salvador

para, na sequência, estabelecer um paralelo em que se evidencia a contribuição do Ilê Aiyê

para o fortalecimento de uma identidade negra baiana calcada na arte, notadamente na música

e na dança, a partir dos quais a agremiação divulgava mensagens de autoafirmação e

valorização das origens culturais negras.

Além estes, temos o trabalho de Michel Agier (2000), que usa o Ilê Aiyê como modelo

para desenvolver sua antropologia do carnaval. Agier analisa a identidade contemporânea e os

processos culturais nas áreas urbanas a partir do estudo do carnaval baiano. Segundo o autor,

haveria uma atestável divisão social do carnaval, mimética da divisão sócio-racial que se

observava no cotidiano da cidade. Alguns espaços, com a Praça Castro Alves seriam lugares

de intensa liminaridade, onde foliões mais abastados encontravam-se com jovens oriundos das

periferias. Foi nesse contexto que surgiu o Ilê Aiyê, sujeito principal da análise empreendida

pelo autor, agremiação que seria responsável por elaborar um modelo de associativismo para

negros ansiosos para afirmar sua identidade racial e torná-la socialmente respeitável. Assim,

após uma primeira fase informal marcada pela participação no carnaval (1975-1981), o Ilê

Aiyê comprometeu-se a uma atuação política mais assertiva, oscilando entre um projeto social

e uma estrutura de negócios privada. Agier explica o sucesso e a durabilidade do grupo

através da sua capacidade de criar identidade e fortes laços sociais por meio de atividades que

mobilizam todo um coletivo para além do carnaval.

Por fim, dois trabalhos singulares. O primeiro deles é o escrito e organizado por Jaime

Sodré, Maria de Lourdes Siqueira, Ana Célia da Silva e Rita Maia (2014), editado pelo

próprio Ilê Aiyê por ocasião da celebração de seus 40 anos, fazendo uma grande retrospectiva

da trajetória do bloco, e o de João Jorge Rodrigues (1983), que se dedica a análise das

músicas do Ilê Aiyê como elementos educacionais. João Jorge, egresso do Ilê Aiyê, é hoje

presidente do Olodum, autor de outra obra (1996) em que reconta parte da trajetória do bloco.

Nunes (1997), Moura (1987), Fernandes (2007), Schaeber (1997) e Armstrong (2001),

vão analisar o Olodum a luz da construção de uma identidade negra em Salvador.

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Margarete Nunes (1997) aborda os movimentos de negritude contemporâneos a luz de

sua relação com a sociedade de consumo. Para tanto, elege como sujeito de pesquisa o

Olodum, recontando sua trajetória a partir do ano de 1987, quando esse escolhe o Egito como

tema de seu carnaval. Sua análise concebe o bloco do Pelourinho como uma "empresa

cultural" que se constitui como um forte representante das identidades negras que seguem

uma perspectiva transnacional. Dessa forma, trabalha a agremiação a partir do que chama de

"produto Olodum" e sua colocação no mercado, levando em conta fatores como a expansão da

música baiana, a profissionalização e exportação do carnaval baiano, o desenvolvimento do

turismo em Salvador e a disputa de poder entre blocos afro e empresas de trios elétricos.

Milton Moura (1987) analisa especificamente o carnaval de 1987 e o surgimento de

“Faraó”, tema do Olodum, apresentando como aquela inovação estético-musical repercutiu

sobre a folia soteropolitana bem como sobre diferentes camadas da sociedade.

Adriana Fernandes (2007) se dedica a análise do Olodum, mas especificamente sua

produção musical, relacionando-a ao conceito de híbrido elaborado por Nestor García

Canclini. Para tanto, percorre a as gravações do bloco de 1987 a 1995, tomando melodia,

ritmo e letras das músicas como signos da posição africana do Olodum.

Petra Schaeber (1997) concebe a história do Olodum como inserida em processos que

culminaram na internacionalização da cultura negra, configurando um movimento de

negritude em diáspora. Nesse sentido, a agremiação do Pelourinho pode ser entendida como

um exemplo de organização que, através de habilidosa e persistente administração da

identidade étnica, colocou-se como representante dessa cultura afro diaspórica na sociedade

moderna, tanto no âmbito nacional quanto internacional, importante ator nos constantes fluxos

realizados pelo Atlântico Negro.

Piers Armstrong (2001) trabalha as letras de músicas Olodum, onde identifica três

imagens recorrentes nas composições: o negro, o Pelourinho e o próprio Olodum. Desta feita,

o autor passa a discutir as cargas metafóricas e outras conotações criativas associadas a esses

termos nas abordagens subjetivas dos letristas. O ponto-chave do interesse hermenêutico é a

forma como são entrelaçadas questões éticas, sociais, materiais e estéticas. O artigo analisa

ainda as justaposições de preocupações comunitárias tradicionais e um ecletismo pós-

moderno e globalizado.

A dimensão educacional do Olodum é o objeto de pesquisa de Santana (2000), Kinga-

Calnek (2006) e Carvalho (1994). Já a dimensão econômica, sob uma perspectiva que observa

o bloco como uma empresa, foi o caminho escolhido para os trabalhos de Dantas (1994),

Nunes (1998) e Fischer, Dantas et al (1993).

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Judith Kinga-Calnek (2006) descreve como o Olodum trabalha o desenvolvimento

comunitário ao investir na educação de uma população historicamente marginalizada, tendo

como parte de seu objetivo maior a preservação da cultura negra e a possibilidade de uma

cidadania plena. Para conduzir sua análise, Kinga-Calnek examina a teoria e a prática da

premissa pedagogia interétnica, uma abordagem única da pedagogia crítica focada

especificamente na incorporação das experiências e valores dos grupos subalternos. Seu lócus

de análise é a Escola Criativa Olodum, de onde observa experiências de aprendizagem,

buscando compreender como educadores e ativistas ajustam periodicamente seus métodos e

consideram seu impacto potencial na sociedade brasileira.

Nadja Miranda de Carvalho (1994) busca compreender o significado das expressões

artísticas no processo de formação de crianças e adolescentes a partir da experiência educativa

desenvolvida pelo Olodum, mais especificamente o projeto Rufar dos Tambores. Partindo

desse projeto, composto por atividades educacionais, artísticas e culturais, a autora procurou

compreender como o Olodum organizou e desenvolveu suas atividades educacionais, e qual o

significado das expressões artísticas nessa experiência. Ao mesmo tempo, objetivou explicitar

a sua importância no processo de formação de uma consciência étnica entre os seus

participantes.

Marcelo Dantas (1994) compreende o Olodum como incluído no universo das

organizações não governamentais, sendo possuidor de características que o distinguiriam do

ordinário para essas organizações pois, ainda que produto da sociedade civil, não se

restringiria a uma atuação de conteúdo social, consolidando, ao longo do tempo, uma vocação

empresarial marcante. Tal mudança marcaria a implementação de uma estratégia que

conceberia o bloco como uma “holding cultural”, atuante, segundo o autor, em três esferas:

afirmação cultural, integração social e lucro econômico. Tal estrutura estaria alicerçada em

uma clara adequação aos objetivos da organização e uma estratégia de reprodução do

imaginário da comunidade negra no contexto do território mais amplo da cidade.

Margarete Nunes (1998) dedica-se a compreensão dos movimentos de negritude

contemporâneos, a partir de sua relação com a sociedade de consumo. Para tanto, toma como

sujeito de pesquisa o Olodum, centrando esforços no que chama de “produto Olodum” e sua

presença no mercado.

Tânia Fischer e Marcelo Dantas (1993) analisam os blocos afro a partir de uma

perspectiva em que tais agremiações são compreendidas como organizações que evoluíram os

modelos tradicionais de associativismo das ONGs, dotando-lhes de uma importante dimensão

empresarial capaz de lhes conferir viabilidade econômica e autonomia de ação.

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Já para o Malê Debalê, a revisão apontou poucos trabalhos. Temos a produção de

Lúcia Lobato (2001) e (2009), e de Carlos Eduardo Santana (2009), coordenador pedagógico

do bloco.

Carlos Eduardo Santana (2009), membro do Malê Debalê, procura demonstrar

possibilidades de compreensão da construção de identidades negras a partir de impressões

vivenciadas no cotidiano do bloco de Itapuã. O autor entende que trazer à luz a experiência de

um bloco afro que há 30 anos vem contando a historia da África e da cultura negra, pode

contribuir fundamentalmente para o debate posto sobre a Inclusão de Historia e Cultura Afro-

Brasileira e Africana nos currículos da Educação básica, a partir da Lei 11645/08.

Alguns trabalhos dedicados ao estudo das agremiações optaram por privilegiar análises que

enfocassem uma de suas esferas de atuação, sejam elas a musical, educacional, econômica, estética ou

a social, dentre outras, como o de Lúcia Lobato (2001) e (2009), que enuncia a percepção de que um

bloco afro se estrutura essencialmente em torno da elaboração de uma identidade negra, e que mesmo

quando o que está em destaque é algum elemento de caráter econômico, político ou estético, por

exemplo, tais elementos são justificados necessariamente por esta lógica identitária.

O questionamento que se coloca para esse tipo de enfoque baseia-se no fato de reduzir todas

as relações estabelecidas em um grupo e por este, unicamente ao campo da construção identitária. De

modo algum aqui é proposta a direção inversa, isto é, de se desconsiderar o viés identitário e,

sobretudo, os elementos utilizados para essa construção. Trata-se antes de problematizar como essa

redução costumeiramente realizada impede a compreensão do fenômeno de maneira mais ampla.

Tentar desvendar as tramas que envolvem esse sujeito chamado bloco afro. Havia

encontrado meu projeto. Melhor dizendo, por ele fui encontrado, nas ladeiras de Salvador.

Amadurecido com o tempo, gestado no interior de minhas experiências.

Sendo assim, o que se propõe aqui é abandonar a ideia de que os blocos afro são constituídos

por dimensões apenas justapostas, mas sim pela intersecção destas. Uma lógica baseada na relação e

não simplesmente na soma. Relações estas formadas e transformadas em todo momento. Desse modo,

busco aqui a elaboração de um esquema interpretativo que possa tornar mais compreensíveis tais

associações, centrando foco na relação existente entre as distintas dimensões de atuação dos blocos

afro.

Para responder as questões propostas neste projeto, parece promissor caminhar rumo ao

entendimento de que a análise de associações como os blocos afro, dotadas de multiplicidade,

heterogeneidade e dinamismo, deve partir de uma abordagem que privilegie seu processo de

desenvolvimento e não sua forma acabada.

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Chega-se assim ao objetivo geral desta pesquisa, que consiste em compreender as

organizações concebidas como blocos afro como elementos multidimensionais, capazes de articular

diferentes meios discursivos e de combinar, de maneira muito particular, distintas estratégias de

atuação cultural e manifestação política.

Tal ambição sintetiza-se na seguinte pergunta: quais os percursos práticos e discursivos dos

blocos afro para além da dicotomia entre movimentos sociais ou movimentos culturais?

1.3.METODOLOGIA

Neste contexto, considero interessante avaliar os limites das definições utilizadas para tratar de

organizações sociais como os blocos afro, buscando uma definição adequada às especificidades

destes; observar a estrutura organizacional das agremiações, buscando compreender suas

particularidades; analisar as relações estabelecidas entre blocos, entre blocos e suas comunidades e

entre blocos e o poder público; entender como diferentes esferas de atuação se inter-relacionam

conferindo sentido mútuo a essas.

Apesar de hoje os blocos afro estarem presentes em estados outros que não a Bahia, como Rio

de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, manterei meu espaço de análise circunscrito a cidade de

Salvador, de onde o objeto de pesquisa emergiu.

Para que a proposta aqui descrita pudesse ser levada a cabo, foi necessária a adoção de certos

critérios na eleição dos blocos a serem pesquisados. O primeiro critério estabelecido foi o tempo de

fundação dos blocos. O segundo, a permanência do bloco em atividade em sua localidade de origem.

A partir desses critérios, definiram-se como sujeitos de pesquisa desse texto as seguintes agremiações:

NOME FANTASIA - Ilê Aiyê

RAZÃO SOCIAL - Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê

DATA DE FUNDAÇAO - 1/11/1974

ENDEREÇO - Rua Curuzu, nº 228, Liberdade

PRESIDENTE - Antonio Carlos dos Santos (Vovô)

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NOME FANTASIA - Malê Debalê

RAZÃO SOCIAL - Sociedade Cultural Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê

DATA DE FUNDAÇAO - 23/03/1979

ENDEREÇO - Parque Metropolitano do Abaeté, s/n

PRESIDENTE – Claudio Araújo

NOME FANTASIA – Olodum

RAZÃO SOCIAL - Associação Carnavalesca Bloco Afro Olodum

DATA DE FUNDAÇAO - 25/04/1979

ENDEREÇO - Rua Gregório de Matos, nº 22, Pelourinho

PRESIDENTE - João Jorge Santos Rodrigues

Definidos os blocos, hora de desenhar a metodologia de pesquisa e os passos a serem

seguidos. Primeiramente, ficou decidida a realização de entrevistas semi-estruturadas, registradas em

áudio, com dirigentes e integrantes dos blocos, como método primeiro, a fim de apreender um pouco

da percepção dos mesmos sobre o próprio bloco, seus objetivos, os demais blocos, sua relação com

estes e com a comunidade.

Foi estabelecido um pequeno roteiro comum a todas as entrevistas, segundo o qual o

entrevistado iniciava a conversa se apresentando, contando um pouco de sua trajetória de vida

relacionada ao universo dos blocos afro. Poucas perguntas pré-determinadas compunham os roteiros.

Apenas questões que considerasse indispensáveis a análise pretendida eram propositalmente trazidas à

baila, como a relação entre blocos e poder público. No restante do tempo, foi a própria dinâmica da

conversa a responsável por indicar nosso caminhar, com novos questionamentos surgindo a todo o

momento, a partir de declarações dos entrevistados. Tal expediente permitiu maior fluidez aos

contatos, fazendo com que alguns dos temas pré-determinados surgissem em meio à conversa de

maneira natural, abandonando por vezes a aura de entrevista, substituindo-a, proveitosamente, por um

ar de conversa entre amigos.

Ainda em relação às entrevistas, ao todo foram realizadas dezoito, sendo sete com pessoas

relacionadas ao Malê Debalê, cinco com pessoas relacionadas ao Olodum e seis com pessoas

relacionadas ao Ilê Aiyê, a saber:

Eduardo Santana – Malê Debalê (Abril de 2014)

Lázaro Araújo – Olodum (Abril de 2014)

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Gilmário Marques – Olodum (Abril de 2014)

Maria Aparecida Nunes – Ilê Aiyê (Novembro de 2014)

Antônio de Jesus – Olodum (Novembro de 2014)

Tita Lopes – Olodum (Novembro de 2014)

Sergio Pereira – Morador da Liberdade – Ilê Aiyê (Novembro de 2014)

Miguel Arcanjo – Malê Debalê (Novembro de 2014)

Joselio Araujo – Malê Debalê (Novembro de 2014)

Jany Salles – Malê Debalê (Novembro de 2014)

Cesar Veloso – Malê Debalê (Novembro de 2014)

Givanildo Neris – Malê Debalê (Novembro de 2014)

Sandro Teles – diretor - Ilê Aiyê (Novembro de 2015)

Edmilson Lopes das Neves – Ilê Aiyê (Novembro de 2015)

Hildelice dos Santos – Ilê Aiyê (Novembro de 2015)

Claudio Araújo – Malê Debalê (Novembro de 2015)

Antônio Carlos dos Santos “Vovô” – Ilê Aiyê (Novembro de 2015)

João Jorge Rodrigues – Olodum (Novembro de 2015)

Como forma de seleção dos entrevistados, optou-se pelo método de amostragem não

probabilística conhecido como bola-de-neve (snowball sampling), segundo o qual o pesquisador

estabelece contato inicial com alguns membros do grupo que pretende estudar e adiciona novos

sujeitos a sua amostra a partir de indicações desses sujeitos iniciais. O contato inicial em cada uma das

entidades fez emergir três personagens que seriam os responsáveis pelo rolar da bola-de-neve:

Eduardo Santana, coordenador pedagógico do Malê Debalê, Edmilson Lopes das Neves, coordenador

pedagógico do Ilê Aiyê e Eunice Rodrigues, secretária do Olodum. Foram esses integrantes os

responsáveis pelas indicações de todos os demais entrevistados, a exceção de Sérgio Pereira, morador

do bairro da Liberdade.

O material coletado por meio das entrevistas foi submetido a uma análise de conteúdo,

entendendo-a, como definido por Bardin (2009), como um conjunto de técnicas de análise das

comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das

mensagens. Para tanto, foram estabelecidos grandes temas abordados nas entrevistas, dos quais

derivaram unidades de registro e unidades de contexto, chegando-se assim aos fragmentos do texto

aqui utilizados.

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Ao todo, as dezoito entrevistas resultaram em aproximadamente trinta e oito horas de

gravações, devidamente transcritas para citação no correr do texto. Foi assegurado aos entrevistados o

direito ao sigilo de suas declarações, quando estes considerassem necessário. Tais trechos, apesar de

transcritos, não serão objeto deste trabalho, tampouco mencionados mesmo que de passagem,

contribuindo apenas para um entendimento mais amplo de algumas questões por parte do pesquisador.

Entrevistas concedidas por integrantes dos blocos a variados meios de comunicação e

publicações acadêmicas também foram utilizadas, como fontes secundárias, com o objetivo de

ampliar o alcance de seus discursos. O trabalho contou ainda com a leitura de cartilhas, apostilas,

cartazes e panfletos, bem como de letras de músicas, estatutos e demais documentos produzidos pelos

blocos.

Algumas outras fontes foram consultadas durante a redação deste texto. Dentre elas, podemos

citar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Centro de Estudos Afro-Orientais

(CEAO), Mídia Clipe, Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Governo do Estado da Bahia, além dos

sítios eletrônicos e páginas em redes sociais dos blocos trabalhados.

Impossibilitado de estabelecer residência em Salvador, por questões pessoais, optei por

afastar-me de um modelo malinowskiano do fazer etnográfico, dividindo o período de pesquisa de

campo em quatro viagens de curta duração:

Fevereiro de 2013

Abril de 2014

Novembro de 2014

Novembro de 2015

A primeira, referente ao carnaval de 2013, teria como objetivo o acompanhamento dos

desfiles realizados durante a festa, bem como de outras possíveis apresentações públicas dos blocos,

visando uma maior compreensão dos rituais que envolvem tais manifestações.

Como o propósito da pesquisa é apreender a constituição dos blocos para além do carnaval,

focando as relações existentes entre diferentes dimensões que os compõem, considerei que resumir o

campo apenas ao carnaval seria problemático, pois desconsideraria as demais atividades realizadas ao

longo do ano por essas mesmas agremiações. Assim, outros dois períodos foram selecionados. O

primeiro seria os meses de maço/abril de 2014, englobando o período de aniversário do Olodum. O

segundo seria os meses de novembro de 2014 e 2015, escolhido em função de todas as atividades

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relacionadas ao chamado mês da Consciência Negra, bem como a celebração dos 40 anos de fundação

do Ilê Aiyê (2014).

Entendo que, para uma mais completa compreensão das relações as quais coloco em foco,

seria importante um mergulho no cotidiano dos blocos, nos seus afazeres do dia-a-dia, na experiência

do cotidiano. Entretanto, sendo esse mergulho impossível, foi necessária uma tomada de decisão, a

qual acabou por privilegiar momentos de celebração, conscientemente limitando o alcance da análise

aqui empreendida.

Para que não deixasse de lado os desfiles carnavalescos, foi feita a opção pelo

acompanhamento das festividades soteropolitanas dos anos de 2014, 2015 e 2016, através das

transmissões via internet realizadas pela TVE Bahia, vinculada ao Instituto de Radiodifusão Educativa

da Bahia – IRDEB.

Em se tratando do carnaval de 2013, bem como de outros festejos, ensaios, apresentações e

manifestações públicas das agremiações, optou-se pelo método da observação participante, do tipo

que Patricia Adler e Peter Adler (1987) classificaram como sendo periférica, ou seja, aquela que

implica tomar parte nas atividades do sujeito de pesquisa, sem que, no entanto, se obtenha centralidade

nestas, sendo o pesquisador antes um observador atento do que um participante ativo.

Ainda como parte da definição das técnicas a serem utilizadas, optou-se pela não realização de

uma análise das canções dos blocos afro, seja no tocante as suas letras, seja em relação a sua

musicalidade. A incapacidade técnica do pesquisador para empreender tal tarefa levaria qualquer

tentativa a um resultado superficial e que pouco contribuiria para o que aqui se pretende. Sendo assim,

todas as vezes em que uma letra for mencionada em caixas de diálogo, ou a canção puder ser ouvida

através dos códigos QR, será antes um convite ao leitor a compartilhar com o autor as sonoridades e

palavras decantadas por tais coletivos, permitindo que cada um faça sua própria leitura do que ali se

apresenta.

Por fim, a opção pela forma textual aqui apresentada busca, ao mesmo tempo, tanto

transmitir a experiência do próprio investigador em campo, como mostrar-se uma narrativa

plausível, que permita ao leitor a realização de uma interpretação própria da qual se poderia

dizer "eu posso ver isso acontecendo"15

, como dito por Michael Connely e Jean Clandinin

(1990).

15 “A plausible account is one that tends to ring true. It is na account of which one might say ‘I can see that

happening’.” (CONNELLY e CLANDININ, 1990, p. 8)

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2.NARRATIVAS DE CAMPO

SALVE SALVADOR

Ao longo desse capítulo serão descritas as quatro idas a campo, realizadas entre os

anos de 2013 e 2015. Com caráter fundamentalmente descritivo, o texto que se apresenta é

longo e propositalmente processual, tendo como intuito apresentar o campo, os sujeitos, as

experiências, os caminhos e descaminhos, as questões e as inferências.

2.1.PRIMEIRA IDA A CAMPO

Seguindo o cronograma proposto, rumei para Salvador naquele início de 2013, com a intenção

de acompanhar e registrar o desfile dos blocos naquele carnaval16

.

Festejos e celebrações sempre constituíram um espaço a partir do qual os

negros brasileiros exerceram suas possibilidades de afirmação, contestação e

resistência, sendo o carnaval um exemplar de festa onde essa potencialidade negra

tornou-se proeminente em todo o país.

Sendo assim, desembarquei em Salvador esperando encontrar justamente um cenário

carnavalesco de forte presença negra, uma vez que a mesma se mostrava efetiva em solo

soteropolitano já no final do século XIX e início do século XX.

Entretanto, ao avançar pelo saguão de seu aeroporto internacional, nenhuma das

imagens publicitárias veiculadas por toda a parte servia para reforçar minha certeza. Ao

contrário, a presença negra no carnaval soteropolitano, ao menos neste primeiro contato,

estava confinada na figura de uma mulher negra caracterizada com as vestes tradicionais de

baiana, que entregava fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim aos que desembarcavam,

desejando-lhes uma boa folia.

No trajeto do aeroporto até o local onde me hospedaria, foi possível perceber como a cidade se

fantasiava para brincar os dias de folia. Adereços enfeitavam postes enquanto tapumes cobriam

praças, parques e monumentos, fazendo destas áreas intransitáveis até que o reinado de Momo tivesse

fim.

Quanto menos dias faltavam para que a festa tivesse início, mais pessoas se posicionavam

pelas ruas, conduzindo enormes embalagens de isopor que seriam usadas para o comércio informal de

bebidas. Era necessário marcar território, assegurando pontos estratégicos. Famílias inteiras se

mudavam paras as calçadas dos bairros da Barra e de Ondina, área nobre da cidade e do carnaval.

16 QR Code: “Prefixo de Verão” – Banda Mel. Disponível em www.youtube.com/watch?v=CObCy8qduuo

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Pela Avenida Oceânica, imensos camarotes eram erguidos por homens e mulheres que

dificilmente desfrutariam desta mesma estrutura nos dias que se seguiriam. A polícia também se

preparava, instalando seus pontos de observação privilegiada. O asfalto já trazia gravada uma

interminável e permanente linha azul, marcação sobre a qual os cordeiros17

deveriam manter-se

durante todo o percurso do trio elétrico. Banheiros químicos eram posicionados em vários pontos do

Circuito.

No Campo Grande a situação era a mesma. Os Circuitos Dodô e Osmar praticamente prontos

para a festa. Batatinha, com suas particularidades, seguia pelo mesmo caminho.

Os circuitos do carnaval de Salvador

O carnaval de Salvador está divido em três grandes Circuitos: Campo Grande, Barra-Ondina e Centro

Histórico.

O Circuito do Centro Histórico, ou “Batatinha”, utiliza como palco as praças e ladeiras do Pelourinho.

Em meio aos centenários casarões, pequenas bandas e charangas tocam antigas canções e marchinhas de

carnaval. O nome “Batatinha” foi dado em homenagem a Oscar da Penha, cantor e compositor, detentor da

alcunha, que dedicou a maior parte de sua obra ao samba, tendo suas canções sido imortalizadas por nomes

como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Jamelão, Chico Buarque, Nelson Rufino, Riachão e Paulinho da Viola,

dentre outros.

O Circuito do Campo Grande, também chamado de Avenida ou “Dodô”, é o mais tradicional dentre os

três que compõem o carnaval de Salvador. Começa no Corredor da Vitória, atravessa o largo do Campo

Grande, segue pela Avenida Sete de Setembro, passando pela Praça Castro Alves, de onde retorna para o

Campo Grande. Nos últimos anos o Circuito foi encurtado e o tempo total de desfile dos blocos passou das

cerca de sete horas para algo em torno de quatro horas. Por seu trajeto passam blocos de trios, blocos afro e

afoxés. Em 2014 e 2015, abrigou ainda o Afródromo. O nome “Dodô” foi dado em homenagem a Antônio

Adolfo Nascimento, cuja importância será descrita a seguir, a partir da citação de seu indissociável parceiro

Osmar.

O Circuito Barra-Ondina, conhecido também como Orla ou “Osmar”, surge como resposta a crescente

demanda de foliões e artistas por mais espaço para o carnaval. O percurso liga as praias da Barra a Ondina

através da Avenida Oceânica, em um trajeto de aproximadamente quatro quilômetros. Repleto de imponentes

camarotes, o Circuito conta com o predomínio dos blocos de trio, sendo quase nula a presença de blocos afro e

afoxés. O nome “Osmar” é uma homenagem a Osmar Macedo que, juntamente com Dodô, foram os

responsáveis pelas mudanças que, ainda hoje, marcam o carnaval soteropolitano, como o desenvolvimento do

“pau elétrico”, instrumento musical precursor da guitarra, cuja sonoridade característica segue presente na obra

de vários artistas do carnaval de Salvador. A segunda grande mudança se dá no carnaval de 1950, quando a

Dodô e Osmar, então conhecidos como “Dupla Elétrica”, embarcaram em um antigo automóvel Ford, datado

de 1929, devidamente paramentado com equipamentos para amplificar o som produzido pelos “paus elétricos”.

17 Nome dado ao profissional contratado para carregar durante todo o tempo de desfile a corda que delimita os

blocos, separando seus foliões dos chamados foliões “pipoca”, que brincam o carnaval do lado de fora das

cordas.

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No ano seguinte a dupla passou a ser um trio, com a chegada de Temístocles Aragão. Repetindo o desfile de

1950, saíram pelas ruas de Salvador, apresentando ao carnaval soteropolitano o chamado “Trio Elétrico”. Em

1952 a empresa de refrigerantes Fratelli Vita patrocinou o trio de músicos, disponibilizando a estes um

caminhão para que se apresentassem, o que levou a aposentaria do Ford 1929 e estabeleceu o formato

predominante até os dias de hoje. O nome dado ao trio de músicos passou a ser sinônimo do veículo usado na

condução dos grandes blocos. Por suas contribuições para o desenvolvimento da festa, Dodô e Osmar passaram

a nomear os dois principais circuitos do carnaval soteropolitano.

2.1.1.CARNAVAL 2013

Minha primeira experiência no carnaval de Salvador havia ocorrido anos antes, tendo

sido iniciada no Centro Histórico, nas ladeiras do Pelourinho, as quais subi e desci atrás de

pequenos blocos que, com suas bandinhas, lembravam canções de carnavais de outrora.

Naquele ano ainda ganharia a avenida atrás do trio de Daniela Mercury e viveria a experiência

de observar a festa em um dos camarotes erguidos em Ondina. Mas nada que se comparasse

ao que estava prestes a vivenciar.

QUINTA-FEIRA

Se em todo o país o carnaval começava na sexta-feira, em Salvador ainda estávamos

na quinta-feira e uma multidão de foliões já tomava as avenidas18

. Artistas de renome

nacional, outros não tão conhecidos, revezavam-se em uma sequencia infindável de

trios elétricos, cada qual com seu próprio bloco, devidamente delimitados por uma

corda sustentada por cordeiros, com o intuito de separar foliões. Dentro da área

delimitada pela corda, o abadá19

era o passaporte que permitia uma viagem sem

maiores problemas. Do lado de fora, aperto, criminalidade, violência policial, falta de

estrutura adequada. Uma cidade divida em duas pela topografia que dividia também em dois

seu carnaval. Mas neste caso a separação não tinha origem geográfica.

18 QR Code: “Chame Gente” – Armandinho, Dodô e Osmar. Disponível em www.youtube.com/watch?v=Ivs3SEB8QaI 19 A palavra “abadá”, originária da língua iorubá, referia-se a um tipo de bata ou túnica branca, utilizada por

africanos muçulmanos que desembarcaram no Brasil como escravos. Com o tempo passou a nomear a roupa

usada pelos capoeiristas. Seu emprego no carnaval começa no ano de 1993, quando o bloco carnavalesco EVA,

juntamente com o músico Durval Lelys e com o designer Pedrinho da Rocha, apresentaram ao público uma nova

vestimenta para a festa. Uma simples camiseta, confeccionada em tecido mais leve, geralmente com estamparia

multicolorida, que aos poucos substituiu as populares mortalhas. O nome abadá foi dado por Pedrinho da Rocha

em homenagem a Mestre Sena, antigo capoeirista e amigo do designer. Desde então a vestimenta acabou adotada

por todos os blocos de trio, tornando-se um dos principais símbolos do carnaval de Salvador.

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Era impossível não notar que, para além de um componente econômico, com seus

caros camarotes e abadás, alguns chegando a custar mais de um salário mínimo20

, havia

também um componente racial nesta segregação; talvez por ambos andarem juntos em nossa

sociedade e apenas serem replicados durante o carnaval. Mesmo o mais desatento dos foliões

perceberia a diferença patente no matiz de cores dentro e fora das cordas. A presença negra

era marcante no chamado “folião pipoca”, aquele que aproveita uma festa para a qual não fora

convidado. Predominante também era a presença de mulheres e homens negros entre os

músicos de quase todos os blocos, dentre os que limpavam as ruas após cada passagem de

cortejo, serviam nos camarotes, vendiam bebida com seus isopores, sustentavam os metros de

cordas, policiavam a multidão e aqueles que apanhavam desta mesma polícia, deixando claro

como pretos, pobres, mulatos e quase brancos, “quase pretos de tão pobres”, são tratados,

como fora decantado por Caetano e Gil. Tratamento este dispensado não apenas durante a

folia momesca. Já nas varandas dos imensos camarotes – com um quê de casa-grande - ou

dentro dos cordões de desconcertante homogeneidade étnica, aglomeravam-se foliões

predominantemente brancos.

Observei toda a movimentação a meu redor com o intuito de conhecer um pouco mais

do contexto da festa na qual os blocos se inseriam. Já conhecia o carnaval de Salvador como

folião, mas a perspectiva que tinha agora era outra. A minha própria posição como observador

externo facilitava a percepção de determinados elementos que de dentro me fora impossível.

Entretanto, o primeiro bloco, ao qual de fato me dedicaria, pisaria na avenida apenas na noite

seguinte.

SEXTA-FEIRA

Sexta-feira de carnaval é dia de subir a ladeira do Pelourinho. É o que diz uma antiga

composição do Olodum, em alusão ao percurso do bloco neste seu primeiro dia de folia. Saída

do Pelourinho, onde fica sua sede, percorrendo as ruas do centro de Salvador até alcançar o

Circuito do Campo Grande, onde realizaria o desfile propriamente dito, ainda que, para o

20 Em 2013, o salário mínimo em vigor a partir de 1º de janeiro era de R$ 678,00. Neste ano, para desfilar

durante 3 dias em um bloco conduzido por Ivete Sangalo, o folião deveria desembolsar R$ 1.080,00. Se o bloco

escolhido para 3 dias de folia fosse o “Camaleão”, capitaneado pela banda Chiclete com Banana, o valor a ser

pago seria de R$ 1.870,00. Para brincar o carnaval na noite de sábado no bloco “Nana Banana”, ou a noite de

terça no bloco “Me Abraça”, o valor seria o mesmo: R$ 800,00. Já em se tratando de camarote, o “Salvador”,

localizado no Circuito Barra-Ondina, cobrava pela entrada o valor de R$ 790,00 para homens e R$ 590,00 para

mulheres.

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folião, o desfile começasse no primeiro toque dos tambores, sobre o chão de pedras das

históricas ladeiras.

Como forma de organizar minha observação, optei por eleger um dia para acompanhar

cada bloco. Ilê Aiyê e Malê Debalê na segunda-feira, no Campo Grande, e Olodum no

domingo, entre Barra e Ondina, além de acompanhar o desfile do chamado Afródromo,

também no domingo.

SÁBADO

No sábado, especificamente, haveria um evento singular. É quando tradicionalmente o

bloco Ilê Aiyê sai do Curuzu, na Liberdade, rumo ao centro da cidade para desfilar no Campo

Grande. Definitivamente, não se tratava de uma mera saída, mas sim de uma cerimônia com

raízes no candomblé.

Um ritual interno e reservado a poucas pessoas é realizado no terreiro Ilê Axé Jitolu,

pedindo permissão e proteção a Exu, orixá que governa os caminhos, sendo esta uma prática

bastante difundida entre afoxés e blocos afro. Já a parte pública da saída pode ser

acompanhada até mesmo pela TVE, rede de televisão pública da Bahia, que transmitiu ao

vivo o evento.

Filhas de santo, totalmente trajadas de branco, caminhavam por entre a multidão

jogando sobre esta um verdadeiro banho de pipocas, com o intuito de promover um

descarrego das energias negativas. A pipoca é também um dos pratos ofertados ao orixá

Obaluaê, regente do Ilê Axé Jitolu. O alimento simboliza a energia transformadora da

divindade, através da analogia com a transformação da semente dura do milho em uma flor,

que é a pipoca.

Na sequência, da sacada da casa do terreiro, pombas brancas foram libertadas, para em

seguida ensaiarem um sobrevoo sobre o público, ensejando um pedido de paz.

Nesta mesma sacada era possível identificar, além de Antônio Carlos “Vovô”,

fundador do Ilê Aiyê, Mãe Hildelice, iyalorixá21

do Ilê Axé Jitolu, bem como outros

integrantes do bloco. Foi ainda possível perceber a presença da atriz e apresentadora Regina

Casé, trazendo a cabeça um turbante semelhante ao usado pelas mulheres do Ilê Aiyê, e da

também atriz Camila Pitanga, bem como do cineasta norte-americano Spike Lee, que trajava

uma camiseta branca com estampa do bloco.

21 Iyalorixá é a sacerdotisa e autoridade máxima dos terreiros de candomblé de origem ketu. Comumente

chamada de “mãe de santo”. Seu correlato masculino é o babalorixá ou “pai de santo”.

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O prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM) também pôde ser visto na mesma

disputada varanda, na qual dividia espaço com um grupo de homens negros, vestidos com

ternos escuros, ornados com pequenos lenços com a estamparia do Ilê Aiyê. Tratava-se de

uma comitiva proveniente da Guiné Equatorial, país tema do carnaval daquele ano, liderada

pelo vice-presidente do país, Teodorin Nguema Obiang, filho do atual presidente do país,

Teodoro Nguema Obiang, no poder desde 1979 quando, através de um golpe militar, depôs o

presidente - e próprio tio - Francisco Macías Nguema22

.

Em meio a todo este caldo que misturava filhas de santo, políticos, artistas e uma

multidão de foliões, somava-se a exibição de imensos balões estampando as marcas dos

patrocinadores Itaú e Petrobrás.

Enfim, o bloco estava na rua. Enquanto isso o relógio informava que já era domingo,

dia em que teria um encontro marcado com o Afródromo, controverso projeto que debutaria

na folia soteropolitana no Circuito Campo Grande, logo pela manhã.

O Afródromo

Em busca de uma maior visibilidade, um grupo de entidades afro carnavalescas,

capitaneado pelo músico Carlinhos Brown, se reuniu e propôs um projeto intitulado Afródromo. A

ideia era criar um circuito de carnaval exclusivo para este tipo de agremiação já para a festa de

2013. Blocos como o Ilê Aiyê, Cortejo Afro, Muzenza, Filhos de Gandhy e Malê Debalê abraçaram

a causa. Segundo Carlinhos Brown: “O Afródromo nasceu de um movimento ‘afroascendente’

alinhado com o poder da miscigenação, recuperando as cores perdidas do carnaval baiano, sob o

signo da dúplice aliança: a ética e a estética23

”.

Por sua vez, outros blocos, dentre os quais se destaca o Olodum, rejeitaram a proposta, sob

alegação de que um novo circuito nada mais seria do que uma segregação oficializada dos blocos

22 No ano de 2015 o Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor, de Nilópolis, participou do desfile das

escolas de samba do Rio de Janeiro com o enredo “Um griô conta a história: Um olhar sobre a África e o

despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha de nossa felicidade”, com o qual se sagrou campeão.

Grande controvérsia foi gerada a partir da informação de que o regime ditatorial do país africano teria

contribuído com dez milhões de reais para a realização do desfile da agremiação nilopolitana tendo, inclusive, o

Ministério Público Federal instaurado processo para investigar tal doação. Vale ressaltar que o mesmo país fora

tema do Ilê Aiyê no ano de 2013, tendo recebido a visita de representantes do governo da Guiné Equatorial por ocasião de seus desfiles, sem, no entanto, ter gerado nenhuma repercussão, tampouco polêmica ou controvérsia,

o que denota uma certa invisibilidade da agremiação baiana, principalmente se comparada à agremiação

fluminense. Para mais informações sobre controvérsia criada pelo desfile da Escola de Samba Beija-Flor de

Nilópolis, ver Carta Capital, disponível em www.cartacapital.com.br/internacional/beija-flor-guine-equatorial-

2029.html; Portal G1, disponível em g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2015/noticia/2015/02/guine-

equatorial-diz-que-patrocinio-beija-flor-foi-iniciativa-de-empresas.html; e Portal UOL Notícias, disponível em

noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/20/mpf-investiga-doacao-da-guine-equatorial-ao-desfile-

da-beija-flor.htm. 23Disponível em afrodromo.com.br/imprensa/release. Acessado em 29 de junho de 2015.

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afro do restante da folia. Segundo o presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues: “O Olodum tem

brigado muito para sair mais cedo e poder ser visto pela televisão. Para que empresas patrocinem de

forma equitativa os blocos afros. Ao mesmo tempo, eles resolveram fazer algo separado. O que a

sociedade mais quer é que os negros escolham um gueto para ir e se afastem da disputa com eles. É

como se soubéssemos o lugar em que deveríamos ficar, em vez de aparecermos na Barra, no Campo

Grande24

”.

Todavia, mesmo sem a adesão do Olodum, o projeto seguiu. De acordo com este, o novo

circuito teria 2,5 quilômetros de extensão, tendo seu início no Moinho de Salvador, seguindo pela

Avenida da França, na Cidade Baixa. Uma área pouco atraente aos olhos dos visitantes, repleta de

construções degradadas, muitas das quais jazem sem o menor cuidado do poder público.

Uma arquibancada com entrada gratuita para vinte mil pessoas seria montada ao longo do

trajeto. A previsão era de que os desfiles acontecessem durante três dias (domingo, segunda e terça),

em horário mais atraente para o público, e mais cômodo para os integrantes dos blocos, muitos dos

quais moradores de bairros distantes do Centro.

Entretanto, dias antes do início da festa, o Conselho Municipal do Carnaval (COMCAR)

emitiu parecer contrário à criação do novo circuito, tendo sido este acatado pela Prefeitura

Municipal.

Buscou-se então uma solução de compromisso. Para não deixar a ideia morrer por

completo, foi organizado um desfile conjunto de todos os blocos envolvidos, sob a alcunha de

Afródromo. Foi escolhida a manhã de domingo para que o coletivo ganhasse as ruas, no Circuito

Campo Grande. Quase um abre-alas da folia que se seguiria ao longo de todo o dia.

DOMINGO

Já era manhã de domingo e as informações chegavam desencontradas. Não era

possível saber ao certo o horário de início do desfile do Afródromo, nem mesmo se este de

fato aconteceria. A incerteza era o tom predominante.

24Disponível em www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-

sangalo.shtml#_=_. Acessado em 29 de junho de 2015.

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Figura 1. Circuito Campo Grande – “Osmar”

Fonte: Elaborada pelo autor.

Cheguei ao Campo Grande por volta das 11h00min, quando um bom número de

pessoas já se aglomerava ao longo do circuito, enquanto outras dezenas tomavam assento nas

arquibancadas. Tão logo teve início o desfile do Afródromo, minha primeira impressão foi a

de estar acompanhando um desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro, sem a presença dos

carros alegóricos. Era possível perceber um grande contingente de pessoas, organizadas em

grupos com cores predominantes, tal qual alas das agremiações cariocas. Na verdade, tratava-

se dos blocos, organizados em uma fila que parecia não ter critério.

A frente ia Carlinhos Brown. Microfone nas mãos, cocar indígena na cabeça. Os

indefectíveis óculos escuros completavam-lhe o visual.

Um batalhão de fotógrafos, jornalistas e cinegrafistas posicionava-se diante do

coletivo, por vezes atrapalhando sua evolução. Todos ansiando por declarações de Brown, por

vezes obrigado a apelar para que fosse aberta passagem.

Havia também os foliões que, sem pudor, misturavam-se aos integrantes dos blocos e,

assim como os profissionais da imprensa, também eram repreendidos pelo “Cacique do

Candeal”, que tentava sem muito sucesso organizar o desfile.

Como espectador, tinha dificuldade em entender o que presenciava ali. Era tarefa

árdua identificar os blocos, compreender as canções ou mesmo as falas dos que se faziam

presentes. Restou-me fixar posição e acompanhar a passagem.

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De toda esta confusa movimentação restou a beleza multicolorida dos blocos, a

desordem na organização e a promessa do poder público de que em 2014 o novo circuito seria

oficializado. Findado o Afródromo, hora de retornar para Dodô.

Marcado para as 15h00min, sob um Sol de Saara, caberia ao bloco afro Olodum o

início dos trabalhos no Circuito Barra-Ondina. Lembrando que, durante o dia, as redes de

televisão de todo o país transmitem os desfiles dos blocos no Circuito Campo Grande. Barra-

Ondina só passa a ser televisionado por volta das 18h00min.

Figura 2. Circuito Barra/Ondina – “Dodô”

Fonte: Elaborada pelo autor.

Sendo assim, o Olodum iria para a avenida tendo como testemunhas apenas os que ali

se encontravam. Todo o restante do país acompanharia pela televisão a apresentação da Banda

Eva, que desfilava pela Avenida Sete no mesmo horário.

Com o tema “Samba, Futebol e Alegria – Raízes do Brasil”, que inevitavelmente me

remeteu a Sérgio Buarque de Holanda, o Olodum percorreu a Avenida Oceânica, do Porto da

Barra até Ondina, cercado por foliões devidamente vestidos com seus abadás em um misto de

cores que variavam entre verde, amarelo e vermelho. Chamou minha atenção a composição

étnica muito distinta das que vira até então em outros blocos. Desta vez, as pessoas

localizadas no interior do espaço delimitado pelas cordas eram predominantemente negras.

O trio elétrico levou consigo, além dos foliões uniformizados, outro grande

contingente, que seguia ao redor do enorme caminhão, dançando ao som das canções que

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eram tocadas, todas estas pertencentes ao repertório do próprio bloco. No alto dos camarotes,

poucas pessoas pararam para ver a passagem do Olodum25

.

Era difícil observar os músicos, que se posicionavam em cima do trio elétrico.

Apenas de relance era possível ver alguns de seus movimentos. Os três cantores, dois

homens e uma mulher, ocupavam a parte mais alta do trio, logo à frente. Na parte de

trás, crianças carregando bolas de futebol e vestindo uniformes do Esporte Clube Bahia e do

Esporte Clube Vitória, faziam evoluções tímidas, basicamente realizando leves movimentos

com os pés, em deslocamentos laterais curtos, enquanto as mãos erguiam as bolas sobre as

cabeças para, em seguida, retornarem a altura da cintura.

Na lateral do trio era possível ver as logomarcas da cerveja Brahma e do Governo do

Estado da Bahia, bem como a do programa Carnaval Ouro Negro, projeto da Secretaria de

Cultura do Estado da Bahia. Na frente, balões com patrocinadores abriam o desfile.

Novamente Brahma, além de Petrobrás e Coca-Cola.

De repente o desfile começou a acelerar. O bloco que vinha na sequencia pedia

passagem. Era o Camaleão, cujo artista neste dia era a banda Chiclete com Banana, um dos

expoentes da folia baiana, que comercializa alguns dos abadás mais caros e que conta com

ampla simpatia de patrocinadores, público e mídia.

Sem ter muito como resistir, coube ao Olodum acelerar o passo e encerrar sua

participação, materializando a minha frente a narrativa de Gerônimo, escolhida como epígrafe

deste trabalho.

Era, sem dúvida, uma situação curiosa e um tanto quanto melancólica, pois se o bloco

contava com o prestígio junto a alguns dos artistas com os quais dividia o palco de massa

asfáltica, o mesmo não se podia dizer em relação ao público e aos organizadores da festa.

Dezenove outros trios e blocos ainda passariam pela Avenida Oceânica naquele domingo.

Muitos deles entoando canções do Olodum.

Parecia que o Olodum era antes encarado como um obstáculo do que como uma

atração, o que não fazia sentido, ao menos a primeira vista, uma vez que o bloco estava

perfeitamente integrado a lógica ali estabelecida, oferecendo um entretenimento de qualidade

artística atestável, mesmo aos olhos e ouvidos menos treinados, contribuindo fortemente para

o enriquecimento da folia soteropolitana como um todo. O que diferenciava o bloco dos

demais que transitaram por aquela passarela urbana nos dias anteriores (e que a ele se

seguiriam) era, basicamente, seu componente étnico-racial, exibido em letras, cores, sons,

25 QR Code: “É lindo de se ver” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=myEk8380Y0E

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movimentos e corpos, fazendo difícil duvidar da dimensão racial em que estava ancorado o

caráter do tratamento conferido ao bloco.

SEGUNDA-FEIRA

A segunda-feira começou preguiçosa. Mal havia acordado e o primeiro bloco já

iniciava seus trabalhos no Circuito Campo Grande. Pouco mais de onze da manhã e a

impressão que tinha era de que a festa baiana era interminável. Pela janela a rua me mostrava

os sinais de que a folia havia sido grande. Muito lixo sendo recolhido, assim como recolhidas

também eram pilhas de latas de bebidas, sustento dos coletores de material reciclável.

Caminhões despejando litros e mais litros de água com sabão desfaziam o odor característico

do dia anterior, marcado por urina, suor e cerveja. Sentia saudades do perfume do dendê.

Foliões de última hora se encontravam com outros, de primeira. Para uns a festa

parecia não ter hora para acabar.

O roteiro do dia previa ida até o Campo Grande para acompanhar o desfile do Ilê

Aiyê, marcado para 19h05min. Por lá permaneceria para prestigiar o Malê Debalê, previsto

para 21h20min.

Saí de casa com o dia ainda claro. Com ruas fechadas e dificuldade em utilizar o

transporte coletivo, optei por percorrer a pé o caminho que me separava do Circuito. Evitar a

orla foi outra opção, para fugir da folia que já se iniciava. Segui então por dentro do bairro de

Ondina até chegar a Avenida Centenário. De lá uma caminhada de cerca de três quilômetros

me levou até a Avenida Araújo Pinho, já com a noite caindo, trazendo consigo um céu sem

estrelas e com muitas nuvens. Embora o calor pedisse, torcia para que a chuva não

atrapalhasse meus planos.

Era questão de metros até que, finalmente, alcançasse o Largo do Campo Grande. E se

por lá o cenário não destoava muito do encontrado pelas ruas da Barra, com ambulantes e seus

imensos isopores, postos policiais de observação, banheiros químicos e foliões, o clima era

bem diferente. Parecia que estava chegando a uma festa que acabara de terminar. Impressão

reforçada pela grande quantidade de pessoas que passava por mim seguindo em sentido

contrário.

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Figura 3. Circuitos Campo Grande e Barra/Ondina

Fonte: Elaborada pelo autor.

Mais à frente encontrei uma aglomeração de pessoas, com trajes multicoloridos.

Tratava-se do Malê Debalê, cuja logomarca podia ser vista no alto do carro, em um grande

telão.

Ainda não eram 19h00min e o bloco já se posicionava, aguardando sua vez de ganhar

a avenida. Os integrantes iam chegando aos poucos. Muitos abraços e cumprimentos. A

sensação era de estar em meio a uma grande reunião de amigos.

Logo adiante, no mesmo quarteirão, outro trio posicionado aguardando seu momento.

Desta vez o bloco em questão era o Ilê Aiyê26

.

Ilê Aiyê e Malê Debalê em concentração, dividindo o mesmo espaço em uma

rua antiga, estreita e torta, entrada para o Largo do Campo Grande. Era uma grande

oportunidade.

Como o desfile do Ilê Aiyê já havia ultrapassado o horário previsto para seu início,

resolvi me ater à observação deste. Procurei um melhor posicionamento na calçada. A rua era

do bloco.

Mulheres transitavam daqui para ali, com imponentes turbantes a prender os cabelos.

A cor predominante nas vestimentas era o amarelo, com espaço também para o vermelho, o

26 QR Code: “Depois que o Ilê passar” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=VuDeDrtInG0

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preto e o branco. A estamparia trazia formas geométricas, desenhos de búzios e outros

símbolos que naquele momento não fui capaz de identificar, mas que mais tarde descobriria

serem motivos tradicionais da Guiné Equatorial. Pulseiras, colares e enormes brincos

compunham o figurino.

Entre os homens, o padrão da estamparia se mantinha. Calça e camisa

complementadas por lenços, chapéus e turbantes. Muitos optavam por deixar longos cabelos

trançados à mostra.

Um chamado e os ritmistas começaram a se agrupar. Nos tambores, assim como nas

roupas, o amarelo era a cor predominante. Além do nome “Ilê Aiyê”, era possível ler em

muitos deles a frase: “Obrigado, Mãe Hilda27

”.

Do alto do trio elétrico, recados eram passados para o regente que se encontrava no

chão. Os percursionistas mantinham-se posicionados logo atrás do trio. Associados do bloco

seguiam-se a estes.

Um ritmista, que parecia extremamente concentrado, mantinha olhos cerrados e mãos

postadas sobre o tambor. Percussionista e instrumento pareciam ser um só, sendo um a

extensão do outro. Tempos mais tarde, durante sua entrevista, Tita Lopes daria pistas sobre

essa relação:

A pele de que é feito, to falando dos primórdios, era a pele de um animal sagrado que era sacrificado pra atender a um determinado orixá. O restante era comida de

todos que estavam participando. Aquela pele é que era usada pra fazer determinados

instrumentos. No caso do terreiro de candomblé, eles trabalham com os atabaques

rum, rumpi e lé. Essas peles que vão pros instrumentos são utilizadas em sacrifícios

religiosos voltados para orixás. A pele é trabalhada, curtida e usada no candomblé.

Esses instrumentos não podem ser tocados pra qualquer coisa. Não pode tomar um

tombo. Ele passa por um processo religioso de batizado. Nem todo mundo pode

tocar naquilo ali e aí quando você vê aquele instrumento com um pano branco, azul,

a depender do orixá, ele ta pronto pra ser tocado, mas só por alabês, só pessoa que

entende do que vai tocar, pro orixá que vai tocar. Boa parte dos músicos que tocam

nos blocos, são alabês em terreiros de Salvador. Tem toda uma questão de ritual que passa o processo energético. Quem tá tocando aquilo ali, também tá transmitindo a

sua energia. Se for tocado na mão então, mistura o suor, a energia da mão. O tambor

pra nós negros, e pros índios, ele é muito forte. Eu dou aula de dança afro, dou aula

com cd. Já teve aula dos meninos irem tocar, e quando o pau quebrou aluno “virar”

na aula. Em pleno desfile do orixá, o orixá pegar a Deusa do Ébano. Coisa que

acontece quando você faz um trabalho com instrumento tocado na mão, com suor do

tocador. Tudo isso é energia. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de

2014)

27Hilda Dias dos Santos, conhecida como a Mãe Hilda Jitolu, ou simplesmente Mãe Hilda, foi iyalorixá do

terreiro de candomblé jeje, Ilê Axé Jitolu, fundado em 1952, na ladeira do Curuzu. Mãe biológica de Antônio

Carlos “Vovô”, um dos fundadores do Ilê Aiyê, Mãe Hilda era considerada líder espiritual do bloco. Sua ação

social nos âmbitos da educação e cidadania objetivava a preservação e valorização da cultura africana no Brasil,

sendo o grande incentivo para a criação do Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, em 1995. Mãe Hilda

faleceu em 2009, aos 86 anos. Por ocasião de sua morte, foi decretado pela Prefeitura luto oficial de três dias na

cidade de Salvador.

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Deslocando meu olhar, percebi que outro instrumentista aproveitava o tempo restante

para fazer um lanche. Seriam horas de desfile e era preciso estar preparado. Bem próximo a

mim, um dos músicos, atendendo ao pedido, tirava uma série de fotos com um grupo de

turistas asiáticos.

O desfile do Ilê Aiyê e a exclusividade negra

“Em nome do Presidente da entidade, Antônio Carlos dos Santos Vovô, viemos a público

informar que o carnaval, para o Ilê Aiyê, é uma forma de expressão da negritude. Durante o

carnaval divulgamos e valorizamos a cultura negra africana. Temos a nítida consciência que o

carnaval do Ilê Aiyê é um espetáculo a céu aberto onde contamos um pouco da história da

comunidade negra africana e da Diáspora. Entendemos que só é possível expressar essa história com

associados afro-brasileiros. Diante do exposto, ao longo desses 40 anos somos a única entidade afro

de Salvador que continua com a exigência de que apenas afro-brasileiros desfilem no bloco. Além

de tudo que dissemos, também continuamos com essa medida, por entender que essa é uma ação

política e ainda não conquistamos a igualdade total entre negros e brancos.”28

Fui até a frente do trio para ver o que acontecia por lá. Algumas pessoas posicionavam

os balões com patrocinadores Itaú e Petrobrás, os mesmos que pude ver durante a saída do

bloco pelas ruas do bairro da Liberdade, ainda no sábado.

No alto do trio o nome da agremiação acompanhado dos dizeres “39 anos”. Nesse

momento a Deusa do Ébano tomou seu lugar de destaque no carro. Ouvi um estampido. Era o

primeiro tambor a ecoar, ainda de maneira tímida.

Corri para perto dos ritmistas que, já posicionados, escutavam atentamente as últimas

recomendações do regente. Não consegui ouvi-lo, tampouco entender seus sinais, mas isso

pouco importava. O recado havia chegado aos olhos e ouvidos de quem de fato interessava.

Posicionado na parte traseira do trio, o cantor fez um último sinal para o regente e

começou sua exibição. Ainda sem o acompanhamento dos tambores, avisava que o Ilê Aiyê

estava na rua.

Por alguns minutos, dedicou-se a cantar a música que ilustraria o tema do carnaval

2013: “Guiné Equatorial - da herança pré-colonial a geração atual”. Integrantes do bloco

seguiam seu canto. Cantavam também as pessoas que, junto a mim, se posicionavam na

calçada repleta. O espaço era pequeno e parecia ficar cada vez menor, com o público

continuamente se acotovelando em busca de um melhor ângulo para acompanhar a festa.

28 Disponível em www.ileaiyeoficial.com/category/o-mondo/. Acessado em 7 de julho de 2015.

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À minha direita, uma senhora trabalhava como ambulante. Em seu rosto, marcas de

um cansaço indisfarçável. Seus olhos perdidos, fixados em algum ponto no chão. Aos seus

pés um enorme isopor trazia latas e garrafas de toda sorte de bebidas. O forte calor e a tampa

do isopor constantemente aberta faziam derreter o pouco de gelo que ainda resistia.

Ao lado desta senhora, uma garotinha, com seus cinco ou seis anos de idade,

choramingava, buscando sem sucesso o colo da mulher, que agora presumia ser sua mãe.

Enfim os tambores entraram em cena e como eram fortes! Produziam uma sonoridade

diferente da ouvida no ensaio do Olodum, no Pelourinho, anos antes. Diferente também de

todos os demais contatos que tive, até então, com uma bateria de bloco afro. Talvez pela

grande quantidade de percussionistas, talvez pela proximidade de dois metros. Sentia meu

corpo inteiro pulsar a cada batida daqueles tambores. Era impossível ficar parado. E de fato,

nem fiz essa tentativa. Deixei que a conversa entre os tambores e meu corpo se estabelecesse,

sem entraves.

Não era somente eu que parecia estar contagiado. Na calçada as pessoas também se

expressavam corporalmente. Alguns fazendo movimentos semelhantes aos dos rituais do

candomblé. Outros seguiam o ritmo, balançando o corpo para lá e para cá. Outros, como os

amigos orientais, sequer conseguiam seguir o ritmo. Um deles apenas pulava. Mas em sua

curiosa e espontânea tentativa também era possível percebê-los afetados pelo som. Lembrei-

me de uma antiga canção do Araketu que dizia que, quando um bloco afro toca, o corpo

estremece, as pernas desobedecem e as pessoas, inconscientemente, dançam. Não poderia

haver descrição melhor.

A garotinha, que antes choramingava, forçando o colo da mãe, talvez em busca de um

aconchego que a calçada não lhe oferecia, parecia agora outra criança. Dançava com uma

graça toda particular. Ao perceber que a observava, intimidou-se. Escondeu-se atrás da mãe,

enquanto, com o rabo de olho ficou a me fitar. Nem mesmo meu sorriso foi capaz de lhe

devolver a desenvoltura. Apenas a cansada ambulante permanecia impassível.

O cantor fez uma saudação aos profissionais da imprensa ali atuantes. Na sequência,

reverenciou a presença feminina, conclamando todos ao combate da violência contra a

mulher. O combate a toda forma de preconceito foi a próxima bandeira a ser erguida do alto

do carro de som.

Passava das 22h30min quando o desfile, previsto para as 19h05min, finalmente foi

colocado em movimento.

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Apressei meu passo, deixando para trás a calçada com a arredia garotinha e sua

desgastada mãe, para observar a efetiva entrada do bloco no Largo do Campo Grande. E o

quão surpreendente foi minha visão.

Na rua onde os trios se concentravam, o contingente de pessoas me parecia grande.

Talvez a diminuta dimensão da via ajudasse nesta percepção, de que o desfile seria

acompanhado por uma multidão. Mas ao chegar ao Largo, percebi que não era bem assim. Na

verdade, tratava-se de um cenário bem desolador.

Ruas quase vazias. Um pequeno grupo divertia-se com a música que vinha do som de

um carro, estacionado por ali. Outros pequenos grupos pareciam totalmente alheios a chegada

do bloco. Sequer desviavam seu olhar para acompanhar a passagem do “Mais Belo dos

Belos”. Dois homens discutiam, enquanto uma mulher tentava apartar o que parecia um início

de briga. Pessoas caídas, ou jogadas pelas calçadas. Na certa não suportaram todo o dia de

folia.

À frente, grandes arquibancadas totalmente vazias davam um aspecto fantasmagórico

aquele espetáculo. Resolvi tentar me posicionar em uma destas arquibancadas, para ter uma

visão mais ampla da passagem do bloco. Uma vez que o espaço não era gratuito, seria preciso

adquirir um ingresso. Talvez fosse este o motivo do esvaziamento, ou quem sabe uma

possível cobrança abusiva de preços.

Encontrei a bilheteria e, ao pedir um ingresso, fui informado de que estavam

esgotados. Foi-me dito, então, que os ingressos valem para todo o dia e que estes haviam sido

esgotados ainda pela manhã. Em suma, o público adquiriu os ingressos para acompanhar a

passagem dos blocos durante o dia, quando artistas como Banda Cheiro de Amor e Babado

Novo passaram por ali. Entretanto, o interesse da maior parte do público parecia ter

desaparecido juntamente com a luz do Sol. Enfim compreendi o fluxo contrário de pessoas,

quando cheguei ao circuito horas antes. Seu destino era o Circuito Barra-Ondina.

Enquanto isso o Ilê Aiyê fazia sua parte. Aos poucos que restaram por ali foi dada a

oportunidade de acompanhar um espetáculo de rara beleza. Metro a metro, o bloco avançou

pela avenida, passando pelo icônico Teatro Castro Alves para depois fazer uma breve parada

em frente ao camarote Ilê Aiyê/Eva, localizado na esquina oposta de onde o desfile se

iniciara. Era preciso prestigiar aqueles que pagaram pelo espaço promovido pelo bloco.

Em ritmo próprio, de quem não precisa se preocupar com a pressão das horas, o Ilê

Aiyê seguiu seu trajeto. Em uma rápida conta mental, percebi que o Malê Debalê devia estar

prestes a iniciar o seu desfile. Resolvi, então, abdicar de acompanhar o restante da passagem

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do Ilê Aiyê, o que deveria levar cerca de mais duas horas, e percorrer todo o caminho de volta

até o ponto inicial onde esperava que o Malê estivesse29

.

Dito e feito. Lá estava o imponente trio elétrico, posicionado onde antes se encontrava

o trio do Ilê Aiyê. Nas calçadas, poucas pessoas. A vendedora ambulante e a pequena

garotinha também já não estavam mais por ali.

Embora o clima de confraternização entre os integrantes parecesse ser o mesmo, o

cansaço era visível nas feições. Já era quase terça-feira e o desfile marcado para as 21h20min

ainda não havia começado.

As roupas me pareceram mais variadas quando comparadas as do Ilê Aiyê. Mulheres

trajando branco, com vestidos semelhantes aos das tradicionais baianas, complementados por

pulseiras e colares de contas multicoloridas. Também eram quase onipresentes os turbantes

com a estamparia do bloco, nas cores branca, vermelha, preta, amarela e verde, sendo esta

predominante. Búzios e figuras geométricas compunham a estampa.

A ala de dança fazia uso de uma fantasia composta por chapéu estilizado e uma túnica,

nos padrões da estamparia citada. Diferenciava-se por completo do restante do bloco. A

quantidade de pessoas nessa ala chamou minha atenção.

Encontrei, então, os percussionistas. Mais uma vez a roupa seguia o padrão de

estamparia presente nas outras alas, desta feita com o predomínio da cor amarela. Quase todos

os músicos usavam um chapéu semelhante ao modelo “Panamá”, mais simples, com uma fita

azul circundando-o. Reparei em um ritmista com longos cabelos trançados, que não usava o

chapéu. Assim como o regente, com seu boné branco. Mesmo sendo quase madrugada, eram

comuns os óculos escuros.

Nas roupas dos músicos era possível identificar a inscrição do tema do Malê Debalê

para o ano de 2013: “Ceará, terra da luz”.

Perto de mim, um grupo de integrantes conversava sobre futebol. Era possível também

ouvir um diálogo que repercutia a entrevista de João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum,

a Folha de São Paulo, publicada naquele mesmo dia30

. Tive a oportunidade de ler a entrevista

antes de ir para a avenida. Sabia que, na opinião de João Jorge, o carnaval brasileiro seguia

uma lógica discriminatória e segregacionista, sendo mais uma representação da exclusão

social existente no país. E neste contexto, o carnaval da Bahia seria propriedade de Ivete

Sangalo. Para os que dialogavam, João Jorge teria razão.

29 QR Code: “Fantástico” – Malê Debalê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=gycHLUPp2KA. 30Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-

sangalo.shtml#_=_ Acessada em 29 de junho de 2015.

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Com um rápido sinal o regente fez a bateria começar a se exibir. Tão contagiante

quanto a do Ilê Aiyê, a sonoridade do Malê Debalê também se fez sentir no corpo. Mesmo

sem conhecimento musical relevante, consegui identificar pequenas diferenças no som dos

dois blocos. Uma assinatura que os distinguia musicalmente dos demais blocos. Durante sua

entrevista, o mestre de percussão do próprio Malê Debalê, César Veloso, viria a declarar:

Sobre a questão dos ritmos, cada bloco afro tem um ritmo específico da entidade,

que mantêm de tradição. O Ilê Aiyê, com a questão da África, é na base do samba de

caboclo. O Olodum já é o samba reggae, de mestre Neguinho do Samba, e que hoje

é com Mestre Memeu. O Muzenza é mais pro reggae. O Malê tem um ritmo específico dele, que é o samba afro, que junto com o Ilê Aiyê segue por esse

caminho das raízes africanas, do samba de caboclo. E tem os ritmos que são criados

pelo mestres dos blocos. Tem o ritmo “malês”, que é do Malê Debalê e tem o mais

novo que é o “Desmond Tutu”, que é criação minha. (César Veloso, entrevista

realizada em novembro de 2014)

Voltando ao desfile, apareceu então a voz do cantor, que saudou o público presente -

ou o que restou dele - os profissionais da imprensa e os integrantes do bloco. Começou a

cantar a música tema do ano e o bloco se pôs em movimento. Era o Malê Debalê, enfim,

chegando ao Campo Grande.

Mesmo os grupos alheios ao desfile do Ilê Aiyê já não estavam mais por ali.

Tampouco a turma que se divertia com o som automotivo. Também não via mais o policial

solitário. Um senhor que estava deitado na calçada horas antes, ali permanecia. Dormia

enquanto a música do Malê Debalê embalava seu sono.

Não consegui deixar de pensar que no outro grande circuito do carnaval, milhares de

pessoas dividiam espaço nas ruas e calçadas, seguiam trios ou celebravam em camarotes.

Enquanto isso, no Campo Grande era difícil crer na presença de mais do que algumas

centenas de pessoas, dispersas ao longo da avenida, o que dava a impressão de um vazio ainda

maior. Um espetáculo admirável quase sem plateia.

Apesar da ausência de público, tudo ficou ainda mais interessante quando vi tomar a

avenida uma verdadeira quadrilha de São João. Carnaval da Bahia com ares de festa junina,

celebração tão querida em todo o Nordeste. Acompanhando aqueles homens e mulheres que

evoluíam com movimentos característicos da dança junina, um sanfoneiro começou a se fazer

ouvir. O Malê Debalê levava para a avenida a sonoridade da sanfona para, em conjunto com

os tambores, contar histórias do Ceará, primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão, ainda

em 1884.

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O cansaço começou a tomar conta também de mim. Isto ficou claro ao revisitar as

anotações e perceber como elas perdiam o ritmo com o caminhar do desfile. A atenção aos

detalhes diminuía consideravelmente.

Perguntei a uma funcionária da Bahiatursa31

, o porquê do atraso na programação.

Também com a feição cansada, como parecia ser o caso de todos que por ali ainda restavam, a

funcionária respondeu rapidamente que a culpa era dos blocos que desfilaram antes e que o

acúmulo dos atrasos de cada um deles resultou neste atraso geral. Informou ainda que, depois

do Malê, teríamos o desfile de outros dez blocos e que, segundo a programação inicial, o

último deles deveria começar seu desfile em meia hora, o que, obviamente, não aconteceria.

De imediato me lembrei do Olodum tendo sua passagem apressada pelo bloco

Camaleão, no domingo de Circuito Barra-Ondina, e de como, observando a passagem dos

mais diferentes blocos, percebi que a celeridade não parecia ser um atributo cobrado de todos

de maneira isonômica. Alguns pareciam não se importar com o tempo que levavam para

atravessar todo o circuito, fazendo paradas estratégicas em frente a camarotes e estúdios de

televisão montados ao longo das avenidas. Nestes últimos, a interrupção do desfile chegava a

demorar um tempo considerável. Era o momento da exibição televisiva dos inúmeros

patrocinadores expostos no trio elétrico.

Na primeira curva do Campo Grande, após acompanhar o desfile do Malê Debalê por

algumas centenas de metros, resolvi ir embora. Ainda teria que percorrer a pé todo o caminho

de volta para casa.

Chegando em casa, não conseguia deixar de pensar em tudo o que havia presenciado e

sentido, e na forma como tudo aquilo ilustrava as palavras de João Jorge, em sua entrevista.

Fechava minha participação no carnaval de Salvador corroborando com sua opinião de que se

tratava de uma festa segregacionista e discriminatória. Não saberia dizer se Ivete Sangalo era

mesmo a dona da festa, mas poderia afirmar que se o carnaval de Salvador tem um dono, este

posto não era ocupado por um bloco afro.

Terminada a folia, os dias que se seguiram foram dedicados a visitar as sedes dos

blocos em busca da realização de minhas primeiras entrevistas.

31 Bahiatursa é o nome dado a Empresa de Turismo da Bahia, criada em 1972, pelo então governador Antônio

Carlos Magalhães, e hoje subordinada a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia. Criada com o intuito de

“publicizar a singular herança folclórica africana da Bahia” (SANTOS, 2005, p. 132), o órgão tem hoje como

atribuições principais a promoção e divulgação turística do Estado da Bahia, sendo o carnaval um de seus

principais eixos de atuação.

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Figura 4. Distribuição geográfica dos blocos pesquisados

Fonte: Elaborada pelo autor.

2.1.2. VISITA AO OLODUM

PELOURINHO, PALCO DA VIDA E DAS NEGRAS VERDADES

Em direção a sede do Olodum, rumei para o Pelourinho. Segui pela Rua da

Misericórdia até alcançar a Praça da Sé. A pressa de alguns pedestres contrastava com a

tranquilidade dos que apenas deixavam o tempo passar, sentados em alguns dos inúmeros

bancos espalhados pela praça. A loja de instrumentos musicais preenchia o ar com o som de

Peter Tosh32

.

Mais a frente uma loja de suvenires expunha em sua porta artigos com a logo do

Olodum, que faziam conjunto com uma toalha de praia que emulava uma sequencia de fitas

de Nosso Senhor do Bonfim.

Muitos turistas passeavam pelas ladeiras, compravam artesanato de ambulantes,

fotografavam o casario. A decoração carnavalesca permanecia nos postes, como ecos da folia

recém terminada.

Antes de chegar à sede, alcancei a Escola Olodum, instalada em um sobrado de cor

amarela, com cinco portas verdes. Não bastasse o letreiro, seria fácil identificar que no

sobrado funciona algum empreendimento relacionado ao bloco Olodum. As portas localizadas

32 Cantor e compositor jamaicano, considerado um dos pioneiros do reggae.

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nas extremidades trazem, logo acima de seus batentes, pequenos tambores, idênticos aos

utilizados pelo bloco, enquanto a porta do meio traz quatro logos do mesmo. Acima das

portas, o mesmo número de janelas avarandadas ajuda a compor o edifício.

O espaço inferior do sobrado era ocupado por uma loja oficial, totalmente dedicada ao

comércio de artigos do bloco. Logo fui abordado por Lázaro, o vendedor. Perguntado sobre a

escola, Lázaro informou que a mesma retomaria as atividades a partir de segunda-feira, mas

que me dirigisse a Casa do Olodum e procurasse por Eunice, pessoa que poderia me passar

maiores informações. Aproveitei a presença na loja para adquirir CDs, DVDs e possíveis

livros sobre o Olodum. Apenas um DVD estava à venda. Intitulado “O Povo das Estrelas”,

trazia registro de show realizado pela banda do bloco, no ano de 2010, ali mesmo em

Salvador.

Não havia livros e CDs a venda. Questionado sobre a ausência dos CDs, Lázaro

informou que o bloco estava preparando o lançamento de uma caixa comemorativa, que

reuniria todos os álbuns por eles gravados, celebrando assim seus trinta anos de existência.

Até lá, nenhum CD seria comercializado na loja.

Saindo da Escola Olodum, reparei que, logo em frente, uma pequena loja

comercializava produtos muito semelhantes aos vendidos na loja oficial, mas por uma fração

de seu preço. Nesta loja era possível adquirir CDs falsificados do bloco, bem como registros

amadores de shows do mesmo. Rumei para a sede do Olodum.

Outro sobrado, desta vez de esquina, em tom rubro com alvas marcações de portas e

janelas. Por falar em portas e janelas, estas se dispunham em seis, sendo as segundas

avarandadas. Bem ao centro era possível ler “Casa do Olodum”.

Das seis portas, cinco estavam abertas, todas levando para mais uma loja oficial do

bloco. Os produtos comercializados eram basicamente os mesmos da outra loja, no piso

inferior da Escola, bem como semelhantes eram os produtos faltantes.

Perguntei como deveria fazer para ter acesso à sede propriamente dita e o caminho

apontado foi o da sexta porta, a única fechada. Após tocar o interfone e me identificar de

maneira rasteira, a porta se abriu. Uma escada de metal me levou para um andar

intermediário. A despeito das marcas do passado, evidentes em sua fachada, o interior do

prédio era surpreendentemente moderno33

.

33 O casarão situado na esquina das ruas Gregório de Mattos e Frei Vicente, no Pelourinho, foi erguido no final

do século XVIII. Passou a abrigar a sede do bloco Olodum na década de 1980. Em 1986 o imóvel foi tombado

pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1988, por iniciativa estatal, foi criado um projeto

de intervenção no imóvel, capitaneado pela arquiteta Lina Bo Bardi. A construção encontrava-se em péssimo

estado de conservação. Informações sobre divisão interna dos ambientes, método construtivo e acabamentos

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Apareceu então uma jovem, de nome Maíra, que me recebeu. Expliquei, desta vez de

maneira mais detida, quem eu era e o que pretendia ali. Após um rápido telefonema, Maíra me

encaminhou para o andar de cima, onde pediu para que eu aguardasse. Logo deveria ser

atendido por Eunice, a mesma pessoa recomendada por Lázaro, ainda na loja da Escola.

Já no segundo andar, me deparei com uma sala imensa, em formato triangular.

“Auditório Nelson Mandela”, nomeava uma placa em sua entrada. A minha direita, as janelas

que via da rua eram agora como quadros dispostos na parede, os quais eu observava e que me

revelavam o Pelourinho por outra perspectiva. Entre as janelas, vários discos de ouro e

platina, verdadeiros marcos de expressivas vendas dos álbuns do bloco, sobretudo na década

de 1990.

A minha frente, outra parede repleta de janelas. Acima destas, juntamente com

pôsteres que aludiam ao próprio Olodum, quadros com célebres expoentes do ativismo negro

mundial enfileiravam-se, onde era possível ver referências a Nelson Mandela, Marcus Garvey

e Martin Luther King. Neste coletivo incluo a figura de Deolinda Rodrigues, também

retratada. Havia ainda espaço para artistas como Michael Jackson, Gilberto Gil e Bob Marley,

políticos como José Eduardo dos Santos e Barack Obama e figuras históricas como a

Majestade Imperial Ranavalona III e o Imperador Haile Selassie, Por fim, fotografias de

dirigentes do bloco, representados por João Jorge Rodrigues (atual presidente), Carlos Alberto

Conceição do Nascimento e José Carlos Conceição do Nascimento (ex-presidentes)34

.

originais, se perderam no tempo. O projeto de Lina Bo Bardi previa a restauração do sobrado, adequando ao uso

do bloco. Sendo assim, seu interior, compartimentado em 3 pavimentos, foi dividido da seguinte forma: térreo -

bar, cozinha e depósito; 1o pavimento - biblioteca, secretaria, depósito e sanitários; 2o pavimento - salão, sala de

reuniões e escritório. Com o passar dos anos a divisão interna foi sendo repensada. Como maior mudança temos

a transformação de todo o térreo em loja do bloco. Para mais informações sobre o projeto de intervenção, ver www.institutobardi.com.br/desenhos_simples.asp?Obra_Codigo=40. Existe na sede uma placa alusiva à

inauguração da obra em nome do então Prefeito de Salvador, Fernando José Guimarães Rocha, datada de 25 de

abril de 1991, dia em que também se celebrava o décimo segundo aniversário de fundação do bloco, 34 Nelson Mandela (1918-2013) foi um líder negro sul-africano, principal figura no combate ao sistema do

apartheid implementado no país, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, e presidente da África do Sul entre os anos

de 1994 e 1999. Marcus Garvey (1887-1940) foi um ativista jamaicano, fundador da Universal Negro

Improvement Association (UNIA), tendo sido esta estabelecida em mais de 40 países. Lutou pela formação de

uma consciência e unidade negra universais. Martin Luther King Jr. (1929-1968) foi um pastor protestante e

ativista político norte-americano, bem como um dos líderes do movimento dos direitos civis dos negros nos

Estados Unidos. Foi assassinado em 1968 na cidade de Memphis. Deolinda Rodrigues (1939-1967) foi uma

revolucionária angolana, integrante do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que lutou pela independência do país, conquistada em 1975. Passou por países como Zaire, Guiné e República do Congo,

sempre atuando em zonas de guerrilha. Em 1967, Deolinda foi capturada e executada por membros da União das

Populações de Angola (UPA), grupo anticolonial que, apesar de partilhar o interesse na independência de

Angola, colocava-se como adversário do MPLA. Michael Jackson (1958-2009) foi um artista norte-americano

de múltiplos talentos, que se destacou mundialmente, principalmente, como cantor, dançarino e compositor.

Gilberto Gil (1942) é um cantor, compositor e músico brasileiro, expoente do chamado Movimento Tropicalista.

Em 1979 tornou-se o primeiro negro a integrar o Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Foi eleito vereador da

cidade de Salvador em 1989, cargo que ocupou até 1992. Em 2003 foi nomeado Ministro da Cultura no governo

do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, cargo no qual permaneceu até 2008. Bob Marley (1945-1981) foi um

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Chamou minha atenção a ausência de qualquer alusão a Malcolm X, importante

ativista negro norte-americano, célebre por suas posições mais radicais. A ausência deste, e a

presença de Mandela e Luther King Jr. pareciam ser indicativas da linha de atuação política

seguida pelo bloco.

Na parede à esquerda, era possível observar duas portas e uma série de pôsteres

referentes às apresentações do bloco em festivais de música nas mais diferentes partes do

mundo, além de cartazes do Festival de Música e Artes do Olodum (FEMADUM), acontecido

em janeiro daquele ano, bem como os de edições anteriores.

Ao centro uma grande mesa, coberta com um tecido semelhante ao utilizado na

confecção das fantasias do bloco. De certo, sobra de algum carnaval passado.

Várias foram as pessoas que atravessaram o salão tendo como destino uma das duas

portas que, cerradas, aguçavam minha imaginação. De alguns poucos ouvi breves

cumprimentos. De maioria, sequer uma palavra, o que fazia com que me sentisse totalmente

ignorado. Lembrei-me de Clifford Geertz (1978) e do tratamento a ele conferido pelos

balineses, relatado no célebre estudo sobre a briga de galos. O bloco parecia um mundo

próprio, assim como a aldeia balinesa. E tanto eu quanto Geertz não fazíamos parte de suas

vidas. Era como se não estivéssemos lá.

Eis que, passado algum tempo, a porta da sala se e uma senhora caminhou em minha

direção. Era Eunice.

Tão logo nos apresentamos formalmente, perguntei sobre a possibilidade de

conversarmos, ou me encaminhar para conversa com algum dirigente do bloco a respeito da

pesquisa e me foi dito que aquele não era o melhor momento e que os dias anteriores e

posteriores ao carnaval eram os piores do ano para este tipo de atividade. Os anteriores pela

própria urgência de se colocar o bloco na rua, literalmente lutando contra o relógio. Os

cantor, compositor e músico jamaicano, considerado o maior responsável pela divulgação internacional do

reggae e um dos artistas mais influentes do século XX. Barack Obama (1961) é um político norte americano,

eleito o 44º presidente dos Estados Unidos, sendo o primeiro negro a ocupar o cargo, permanecendo neste entre

os anos de 2009 e 2016. José Eduardo dos Santos (1942) é um político angolano, líder do MPLA. Após a

independência de Angola, o MPLA transformou-se em partido político e foi por ele que José Eduardo saiu

candidato a Presidência do país. Vitorioso no pleito presidencial de 1979, José Eduardo não mais deixou o cargo,

exercendo a presidência do país até os dias de hoje. Majestade Imperial Ranavalona III (1861-1917) foi a

última soberana do Reino de Madagascar. Governou entre 1883 e 1895, quando o projeto colonial francês finalmente venceu sua resistência e passou a comandar o país. Ranavalona III foi exilada na Argélia, onde

permaneceu até sua morte. Imperador Haile Selassie (1892-1975) foi regente da Etiópia entre 1917 e 1928, rei

entre 1928 e 1930, e imperador entre 1930 e 1975. Nascido Tafari Makonnen, casou-se com a filha do então

imperador Menelik II, tornando-se “Ras”, ou príncipe. Ras Tafari tornou-se o 225º imperador da Etiópia em

1930. Neste momento mudou seu nome para “Haile Selassie” (O Poder da Divina Trindade). Sua postura política

influenciou nomes como Nelson Mandela e Martin Luther King Jr. Seu discurso na Liga das Nações, em 1936, é

considerado um marco na luta contra o preconceito racial. Haile Selassie é ainda considerado o símbolo religioso

do Deus encarnado para os seguidores do movimento rastafari. O imperador foi exilado durante a I Guerra

Mundial. Após o conflito, retornou a Etiópia onde governou até ser deposto por um golpe militar em 1974.

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posteriores, pela necessidade de descanso após todo o árduo trabalho durante os desfiles, bem

como pelos acertos que se faziam necessários. Sendo assim, ninguém além dela mesma estaria

disponível para qualquer tipo de conversa. Entendia ali que o carnaval para um bloco afro não

terminava na quarta-feira de cinzas, tampouco se iniciava na quinta-feira. E que a interação

com o bloco não seria tão simples como eu supunha.

Eunice disse ainda que visitas de pesquisadores de universidades eram uma constante

no Olodum. Que por este e outros motivos, o bloco estaria organizando um centro de

documentação e memória, onde os interessados poderiam ter acesso a um vasto material

disponibilizado pela própria agremiação. Entretanto, como o centro ainda era apenas um

projeto, ela mesma me forneceria algumas informações.

Rapidamente Eunice retornou a sua sala e recolheu uma boa quantidade de materiais

para me entregar. Recebi um informativo do FEMADUM, uma apostila em quadrinhos

versando sobre a Revolta dos Búzios, um panfleto com letras das canções inscritas no

FEMADUM e um Jornal do Olodum, de abril de 2011. Ficou ainda a promessa de envio de

informações através de mídia digital, diretamente para meu e-mail.

Retornando para a Sé, de onde sairia meu ônibus, acabei em uma ladeira por mim

desconhecida. Só então me dei conta de que havia reencontrado a Rua das Laranjeiras, onde

ficava a Escola Olodum. Seguindo em direção oposta, encontrei uma pequena casa em mau

estado de conservação. Duas portas e uma pequena janela. Acima o letreiro indicava ter sido a

“Escola Criativa Olodum – Anexo Mário Gusmão”. A aparência era de abandono.

Alguns metros à frente, uma casa no mesmíssimo estilo, mas em ótimas condições,

chamou minha atenção. Era a “Boutique do Ilê Aiyê”. Da janela a jovem vendedora

conversava com uma moça que estava na calçada. Tão logo entrei a primeira veio me atender.

Chamava-se Alana.

Diferente do que aconteceu nas lojas do Olodum, na Boutique do Ilê Aiyê o que não

faltava era literatura. Aproveite para recolher material, adquirindo um livro de fotos cujo tema

era o bloco, bem como todos os doze exemplares dos chamados Cadernos de Educação ali

disponíveis. Trata-se de material didático produzido pelo Ilê Aiyê e que versa sobre a temática

a ser apresentada durante o carnaval. Dentre os adquiridos estava, inclusive, o referente

aquele ano, versando sobre a Guiné Equatorial.

Aproveitei o espaço para perguntar a Alana como faria para chegar até a sede do Ilê

Aiyê, no bairro da Liberdade. Com grande gentileza, a vendedora indicou uma série de ônibus

possíveis, ressaltando que, para quem não conhecia o bairro, o melhor seria um micro-ônibus

cujo ponto final, ou fim de linha como dizem os soteropolitanos, seria já na própria Rua do

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Curuzu, onde fica a sede. Antes de me despedir, uma última recomendação. “Vá de calça

comprida”, disse a jovem olhando para minha bermuda pouco abaixo dos joelhos. Necessário,

segundo ela, por se tratar de um local onde também funciona uma instituição educacional.

Novamente nas ladeiras do Pelourinho, era hora de seguir para casa, reunir todas as

anotações produzidas, bem como organizar o material adquirido. Na segunda-feira meu

destino seria o Curuzu.

2.1.3.VISITA AO ILÊ AIYÊ

LIBERDADE É O BAIRRO QUE A ALMA QUER VISITAR

Tendo como destino a Liberdade, segui para a Praça da Piedade, onde embarcaria no

tal micro-ônibus que me levaria diretamente ao Curuzu. Já no ponto, confirmei o local do

embarque. Bastava esperar. Como o abrigo estava cheio, com as pessoas disputando a

pequena sombra que dele se projetava, restou para mim o Sol em sua plenitude.

Uma hora se passou sem qualquer sinal do micro-ônibus. No ponto, todo o público já

havia mudado. De repente, um rapaz que por ali passava fez um movimento de agilidade

poucas vezes por mim testemunhada e arrancou do pescoço de uma senhora, imediatamente a

minha frente, seu colar. A fração de segundos que levei para entender a situação foi o

suficiente para que o rapaz - agora revelado como ladrão - atravessasse correndo toda a Praça

da Piedade, sumindo nas ruas do outro lado.

De imediato me lembrei da forma como encarei os jovens negros que via pelas ruas,

anos antes, em minha primeira ida a Salvador. Toda a minha constante suspeição e

desconfiança. Meu racismo escancarado. A realidade me dava agora um tapa de luvas. O

ladrão que observei em flagrante tinha a pele tão clara quanto a minha.

Recuperada do susto, a senhora lamentava a perda do colar, que teria apenas valor

afetivo. Depois deste momento, embarcou entristecida em seu ônibus enquanto eu

permaneceria ainda por ali, agora mais atento.

Finalmente, após três horas de espera, apareceu o precário veículo, trazendo consigo

duas certezas: a de que o micro-ônibus de fato existia e a de que seria preciso encontrar outra

maneira de chegar ao Curuzu nas próximas visitas. E lá se foi o pequeno veículo, percorrendo

boa parte da Cidade Baixa.

Uma hora de viagem até que a condução parasse em definitivo. Restavam poucos em

seu interior. Desembarquei e logo perguntei aos ali presentes onde ficava a sede do Ilê Aiyê.

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Precisava ganhar tempo, depois de somar quatro horas no deslocamento. “Poucos metros

abaixo”, foi a resposta dada por uma senhora que também acabara de desembarcar.

Desci o Curuzu e, ainda ao longe, consegui enxergar um grande prédio amarelo. Era

meu destino. Segui para lá, por vezes precisando deixar a estreita calçada, ocupada por mesas

de bar, carros estacionados ou grandes acúmulos de lixo. Estreita também era a faixa de

asfalto, disputada ferozmente por automóveis e motocicletas.

Cheguei, então, em frente ao prédio. “Senzala do Barro Preto”, dizia o enorme letreiro

em mosaico, disposto no alto de sua fachada. Duas torres em amarelo, com desenhos de

quatro búzios em cada, margeavam o edifício que em seu meio era predominantemente

branco.

No piso inferior, a logo do bloco ocupava toda uma parede, também amarela. Três

grandes portas levavam para o interior do edifício, ainda enigmático, uma vez que eu seguia

na calçada e a própria colocação do prédio, em um patamar mais alto, impedia a sua completa

visualização. Além disso, grades e uma escadaria nos separavam. Foi possível enxergar um

senhor bem à direita, no que parecia ser outra porta. Fiz sinal e ele me disse que entrasse.

Responsável pela portaria, Sérgio me ouviu atentamente. Apresentei-me e expliquei o

propósito da minha visita. Sergio então telefonou para alguém a quem informou sobre minha

presença. Passou-me o telefone e comecei a conversar com Rosângela, secretária, que me fez

sabedor da ausência de pessoas da diretoria na sede naquele dia. Ecos do carnaval, semelhante

ao que me fora dito por Eunice, no Olodum.

Rosângela explicou ainda que, de toda forma, seria necessário seguir alguns

procedimentos para conseguir conversar com alguém da diretoria do bloco, sendo

recomendado que retornasse via contato telefônico posterior, para conhecer os trâmites.

Após levar cerca de quatro horas para chegar até a sede do bloco, meu primeiro

contato formal com a instituição Ilê Aiyê não demorou mais do que cinco minutos. Se no

Olodum me lembrei de Geertz e dos balineses, no Ilê Aiyê me lembrava de Malinowski e seus

primeiros momentos em solo papuásio35

.

35 “Lembro-me bem das longas visitas que efetuei as povoações durante as primeiras semanas e da sensação de

desânimo e desespero depois de muitas tentativas obstinadas mas inúteis com o objetivo frustrado de

estabelecimento de um contato real com os nativos ou da obtenção de algum material.” (MALINOWSKI, 1978,

p. 19)

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2.1.4.VISITA AO MALÊ DEBALÊ

ITAPUÃ, TUAS LUAS CHEIAS, TUAS CASAS FEIAS

Restavam-me apenas três dias de campo e muito a ser feito. Era hora de rumar para

Itapuã, visitar a sede do Malê Debalê.

O ônibus que me levou até a zona norte da cidade foi margeando toda a orla de

Salvador, a partir da Barra. Logo foram ficando para trás o Rio Vermelho, com sua colônia de

pescadores e a estátua de Iemanjá, a água azul de Amaralina, os Jardins dos Namorados e de

Allah, a Boca do Rio. Praias que, vazias, evidenciavam ser dia de semana.

Demorou cerca de uma hora até que chegasse o momento de desembarcar. Logo

reencontrei todo aquele burburinho que me marcou na primeira visita a Itapuã, anos antes.

Coqueiro, brisa, fala nordestina e faróis.

Seguindo pela ladeira do Abaeté, finalmente cheguei à frente do Parque Metropolitano

de mesmo nome. Seguia impressionante, como há anos. Do outro lado da rua uma casa

simples, predominantemente amarela, com uma das paredes pintada de verde e outra de

vermelho. Dois amplos portões, semelhantes aos de garagens, permaneciam cerrados. Apenas

uma pequena porta aberta, onde se posicionava um senhor. Ao alto era possível ler “Escola

Municipal Malê Debalê”.

Antônio era o nome do senhor que estava ao portão e, gentilmente, me convidou para

entrar e fugir do Sol. Várias crianças, todas uniformizadas, brincavam no amplo pátio interno.

Bem ao fundo uma grande logomarca do bloco Malê Debalê emoldurava o que parecia ser um

palco.

Após me apresentar e declarar o propósito de minha visita, fui informado por Antônio

de que deveria falar com Dermeval, o secretário do bloco, por quem fui recebido em uma sala

de dois ambientes, com dimensões reduzidas, repleta de referências ao ativismo negro, mas

ainda inferior na quantidade quando comparadas as referências ao próprio bloco. De material

de carnavais passados a troféus, parecia haver de tudo um pouco naquele espaço.

Após me ouvir atentamente e dizer que o bloco estava aberto a cooperar com minha

pesquisa, Dermeval me passou os contatos de Eduardo, diretor de educação do Malê Debalê,

com quem eu deveria conversar primeiro. Pareceu ser a pessoa responsável por responder as

demandas de pesquisadores e afins.

Seria necessário este contato prévio com Eduardo, pois o mesmo não teria data certa

para comparecer a sede. Após a tensão do carnaval veio o relaxamento, também no Malê.

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Além disso, Dermeval ressaltou que, durante quase todo o ano, a prioridade daquele

espaço é ser a Escola Municipal Malê Debalê. O carnaval só voltaria a ser senhor daquele

território no final do ano.

Aproveitei a oportunidade e perguntei sobre a possibilidade de adquirir material do

bloco, tal qual adquiri dos demais. Entretanto, não existe loja do Malê Debalê junto à sede,

tampouco Dermeval contava com qualquer tipo de material que pudesse me ceder. Voltei de

mãos vazias.

Ao retornar para casa, aproveitei para contatar o Ilê Aiyê por telefone e, finalmente,

saber quais procedimentos deveria adotar. Conversando com a secretária do bloco, foi dito

que seria indispensável a apresentação junto ao bloco de um ofício da universidade a qual me

vinculava, assinado pelo coordenador do curso, bem como por meu orientador, informando da

ciência da minha pesquisa e dos meus propósitos ao visitar o bloco. Somente o recebimento

deste ofício me credenciaria a tratar pessoalmente com os responsáveis pela agremiação. O Ilê

Aiyê contrariava de vez todas as minhas expectativas de informalidade de tal tipo de

agremiação.

Tão logo cheguei em casa, encontrei e-mail a Eunice, do Olodum, com um arquivo

com um quase dossiê sobre o Olodum. Era a informação em formato digital que ela havia me

prometido.

Retornei para Minas Gerais com algumas posições sólidas completamente

desmanchadas no ar, outras dezenas de dúvidas criadas e a certeza de que uma pesquisa como

a proposta está sujeita ao regime de marés da natureza humana. Que viveria dias de calmaria,

mas que em vários outros o velejar seria determinado por tormentas e ressacas. Ou como diz

Roberto Da Matta, "dependendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos

os outros ingredientes das pessoas e do contato humano." (DA MATTA, 1978, p. 3).

2.1.5. APÊNDICE – CARNAVAL 2014

Sem a possibilidade de acompanhar in loco o carnaval de 2014 em Salvador, acabei

prestigiando a folia através da cobertura televisiva da TVE, já mencionada rede de televisão

pública da Bahia, disponibilizada online em seu portal de internet. A emissora baiana foi a

única a se dedicar a passagem dos blocos afro e afoxés pelas ruas da capital baiana.

Acompanhar o carnaval via cobertura televisiva representou a oportunidade de

enxergar a festa por outro ângulo, diferente do que a presença física me permitira um ano

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antes. Para quem seguiu os blocos pelas ruas e avenidas, restringir-se ao áudio e imagens da

transmissão televisiva trazia consigo a angústia de querer ver e ouvir mais, mas ter de se

conformar com o que me era oferecido. Afinal, quem decidiria onde deteria meus olhos e

ouvidos não era mais eu, mas sim o operador de câmera e a edição da transmissão.

A experiência de acompanhar os desfiles através da transmissão televisiva não se

compara, de forma alguma, com a experiência de vivenciar o carnaval dos blocos in loco. Por

mais que os jornalistas se esforcem para fornecer informações relevantes, e que os

cinegrafistas busquem os melhores ângulos para capturar as imagens da folia, acompanhar a

passagem dos blocos tendo a mediação da televisão impede sua plena vivência. Aquilo que

tanto me afetou no ano anterior. A possibilidade de observar a concentração de um músico, o

cansaço de uma vendedora ambulante ou a felicidade de um espectador. Sentir na pele,

literalmente, a batida dos tambores. Como disse Miguel Arcanjo, um dos fundadores do Malê

Debalê, em entrevista:

Se um cara estiver tocando um surdo, quando bate você sente batendo no

coração, fazendo tum, tum, tum. E ele parece que acompanha, né? E as vezes o

coração acompanha ele também, né? É por isso que o cara não pode nem acelerar

muito, porque quem está ouvindo pode ter um infarto. De repente o coração se

descompassa, se torna independente, começa a acompanhar a batida do tambor e seu

corpo não aguenta. (Miguel Arcanjo. Origem dos instrumentos de batuque - Malê

Debalê)36

De toda forma, e com todas as limitações existentes, foi possível observar alguns

aspectos do desfile.

OLODUM - O povo Ashanti - O Trono Dourado - a Rainha Mãe Yaa Asentewaa

Naquele ano, dentre as agremiações pesquisadas, coube ao Olodum a primazia nos

desfiles, ganhando o Campo Grande na sexta-feira, as 19h00min, para apresentar a história da

etnia Ashanti, originária de Gana, bem como a tradição da metalurgia e ourivesaria africanas

desde tempos remotos, além de um vislumbre da figura da rainha Yaa Asentewaa.

Patrocinadores estampados em enormes balões e nas laterais do trio, como no ano

anterior ganhavam certo destaque. Acima, os cantores, três homens e uma mulher, trajados

com abadás essencialmente brancos, tingidos com alguns pontos coloridos que lembravam o

salpicar de tinta, ora revezavam-se na condução das canções, ora cantavam em uníssono.

36YouTube. “Origem dos instrumentos de batuque - Malê Debalê”. Vídeo (4min01s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=uzjyCtUxG-Q>. Acesso em 10 de junho 2015.

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O grupo de músicos também estava dividido. A maior parte seguia do asfalto, com

roupas marcadas por grafismos em preto e branco. A outra parte, composta pelos músicos que

fazem parte da Banda Olodum, acompanhou os cantores no alto do trio. Suas roupas em tons

de amarelo, laranja e verde limão, diferenciavam-se por completo da utilizada pelos

percussionistas de solo.

Entre os foliões o abadá ganhava o predomínio da cor amarela, com algumas listras

nas cores verde, vermelho e preto, alusivas ao próprio Olodum e ao continente africano. Era

perceptível a presença de alguns diminutos elementos gráficos nestes abadás, sendo, no

entanto, possível identificar somente o símbolo do bloco, destacado ao centro.

Ao passar pelo circuito da orla, o Olodum assemelhava-se aos demais blocos de trio

que por ali também passavam, sendo basicamente um trio elétrico com cantores e músicos

seguido por um conjunto de foliões trajados com abadás e com espaço delimitado por cordas.

Já no circuito do centro da cidade, o Olodum passava a compartilhar da mesma organização

observada nos demais blocos afro, contando com um grande número de percussionistas no

chão, a amplificar a sonoridade produzida pelo trio, bem como a presença de ala de dança

coreografada, sendo esta composta por homens e mulheres trajados com uma túnica branca

repleta de símbolos dourados e trazendo um lenço branco a cobrir parte de suas cabeças.

Em suma, ficava patente a metamorfose que sofre o Olodum ao alternar entre os dois

principais circuitos do carnaval soteropolitano. Embora dotados da mesma essência, a forma

escolhida para apresentar o mesmo tema nos distintos locais era consideravelmente diferente,

demonstrando capacidade de adaptação do bloco aos dois contextos carnavalescos, sem

perder de vista o mote escolhido para o desfile.

MALÊ DEBALÊ - Malê Debalê: 35 anos quebrando paradigmas

O sábado foi novamente dedicado à observação televisiva da passagem dos blocos

pelo Circuito Osmar. O primeiro a ganhar o largo do Campo Grande foi o Malê Debalê, as

18h00min.Completando 35 anos de fundação, o bloco optou por apresentar sua própria

história na avenida.

O trio do bloco trazia três cantores, sendo dois homens e uma mulher, conduziam as

canções quase sempre em uníssono. Trajavam uma túnica predominantemente vermelha, com

uma estamparia central em padrão tradicional do bloco, e os dizeres “quebrando paradigmas”.

Seguido ao trio veio a ala dos músicos. Dezenas de percussionistas trajando calças

vermelhas e túnicas no padrão de estamparia do bloco. Era possível identificar, tanto por

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imagem como por sonoridade, a presença de surdos, caixas, repiques e timbais, todos

caracterizados com o símbolo do Malê, dentre os quais vários carregavam os dizeres “Malê

Afro Beat”.

Um segundo trio elétrico trouxe duas figuras em destaque. Na parte da frente do trio,

uma mulher trajando um suntuoso vestido em branco e dourado, com detalhes em palha, fazia

graciosos movimentos. Era a “Rainha do Malê”, cuidadosamente anunciada através de uma

música específica em sua honra.

Na parte de trás do trio um homem recebia semelhante destaque. Trajado com roupa

que seguia o mesmo padrão da usada pela Rainha, era este o “Negro Malê”, também

responsável por elegantes movimentos perfeitamente alinhados com o toque dos tambores.

A passagem do bloco seguiu com um grande número de foliões, que também trajavam

vestes baseadas na estamparia já mencionada, bem como uma grande quantidade de alas de

dança. A multidão que compunha estas alas era tão impressionante que a transmissão

televisiva optou por apresentá-la sempre em ângulo aberto, tentando dar cabo de todo aquele

contingente.

A jornalista responsável por conduzir a transmissão ressaltou, por mais de uma vez,

que o bloco era composto por mais de quatro mil componentes. O tamanho do Malê Debalê

impressionava a imprensa e a mim mesmo que, um ano antes, pude sentir a pulsação de suas

batidas, mas não consegui mensurar corretamente sua dimensão.

A abertura do ângulo de câmera, além de proporcionar uma perspectiva mais geral da

passagem do bloco, permitiu perceber um pouco do entorno, onde se estabelecia o público. O

quadro me pareceu um pouco menos desolador quando comparado com o ano anterior.

Mesmo as arquibancadas, completamente vazias durante a passagem do Malê Debalê, em

2013, desta vez contavam com um pequeno, mas presente, público. Provavelmente a

ocorrência do desfile em horário antecipado privilegiou o bloco.

Durante a transmissão do desfile do Malê Debalê, por vezes a locutora lembrou aos

telespectadores que em alguns minutos a emissora passaria a transmitir a saída do Ilê Aiyê de

sua sede, na Liberdade, o que de fato se concretizou com o Malê Debalê ainda na avenida.

AFRÓDROMO

A segunda-feira seria concentrada no Circuito Osmar, com o ressurgimento do

chamado Afródromo. Diferente do que ocorrera em 2013, quando os blocos foram

aglomerados em um desfile único, realizado as 11h00min, onde a desorganização e a falta de

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cooperação de parte do público e imprensa deram o tom, o Afródromo agora ganhava novos

contornos.

A primeira mudança foi de horário. Abandonou-se a manhã em favor do desfile

noturno, a ser iniciado às 18h30min. A segunda mudança foi o desmanche do grande e amorfo

bloco que ganhou as ruas no ano anterior, passando a contar com a apresentação de cada

entidade de maneira individual, obedecendo a uma ordem pré-estabelecida. No entanto, para

os desavisados, ou desatentos, nada havia de visível que diferenciasse o desfile do Afródromo

dos demais desfiles recorrentes no Circuito Campo Grande. Seria a mera continuação da

ordem de passagem dos blocos, iniciada tão logo a tarde se apresentou.

Quando o projeto do Afródromo surgiu, ainda em 2013, havia entendido que se tratava

de uma forma de luta legítima por mais espaço e prestígio para os blocos afro e afoxés dentro

do carnaval de Salvador. Por isso mesmo, contava com uma participação maciça destas

agremiações, a despeito de algumas posições contrárias como a assumida pelo Olodum.

Entretanto, não foi o que pude observar neste ano de 2014. Salvador conta com mais

de sessenta blocos afro e menos de uma dezena destes se viu representado na avenida. Em

geral, os que ganharam as ruas sob a chancela do Afródromo foram os que sempre tiveram

espaço, mesmo que periférico. Se a organização dos circuitos, ao enfileirar blocos,

privilegiava os de trio aos afros e afoxés, estes também definiam prioridades ao organizar seu

próprio desfile.

Nos três dias de desfile do Afródromo (domingo, segunda e terça), passaram pelo

Campo Grande os blocos Ilê Aiyê e Malê Debalê, protagonistas deste estudo, bem como

Muzenza, Okambi e Cortejo Afro. Também tiveram espaço os afoxés Filhos de Gandhy e

Filhas de Gandhy, bem como os blocos de índio Comanche (acompanhado dos grupos Viola

de Doze/Filosofia de Quintal) e Apaches do Tororó, sob regência do cacique Carlinhos

Brown, idealizador do projeto. Segundo palavras do próprio Brown: "A gente passa a ter um

Circuito. Conseguimos ordenar algo que estava perdido. O carnaval precisa passar por isso.

Nós precisávamos disso, encontrar um lugar, trazer os blocos37

".

ILÊ AIYÊ - Do Ilê Axé Jitolú para o Mundo – Ah se não fosse o Ilê Aiyê

37 "Carnaval 2014 terá Vila Infantil e 3 dias de Afródromo: veja novidades". (Disponível em

g1.globo.com/bahia/carnaval/2014/noticia/2013/11/carnaval-2014-tera-vila-infantil-e-3-dias-de-afrodromo-veja-

novidades.html. Acessado em 9 de junho de 2015.)

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Na segunda-feira, coube ao Ilê Aiyê a primazia nos desfiles do Afródromo.

Oportunidade para tentar observar tudo aquilo que não fora possível na cobertura televisiva de

sua saída do Curuzu, ainda no sábado.

Logo após os balões com os costumeiros patrocinadores, foi a ala de dança a primeira

face que o Ilê Aiyê apresentou. Com um bailado nitidamente coreografado, mulheres

evoluíram na avenida, trajando vestidos em tons de amarelo e dourado, bem como os

indefectíveis turbantes, uma das marcas do bloco.

Na sequência um pequeno grupo de senhoras, todas vestidas como as tradicionais

baianas - ou como as iyalorixás do Candomblé - avançou pelo circuito, resguardadas por

grandes sombrinhas que funcionavam como alegoria, já que nem o Sol, tampouco a chuva, se

faziam presentes.

Mesmo antes da chegada do primeiro trio elétrico, já era possível observar um bom

número de foliões. A roupa deste ano era basicamente branca e amarela, sendo este rajado por

preto, o que fazia, por vezes, lembrar uma alcateia de tigres.

Abro espaço para um breve comentário que se faz necessário. A transmissão da TVE

contava com a participação de duas mulheres, sendo uma responsável pela apresentação e a

outra pelos comentários a respeito do desfile. Ambas utilizavam em suas vestimentas tecidos

com a mesma padronagem exibida pelo Ilê Aiyê, provavelmente oriundos do próprio bloco.

Entretanto, mais interessante do que observar o compartilhamento de signos entre bloco e

imprensa, foi ouvir a fala de Juliana Ribeiro, cantora e responsável pelos comentários, ainda

nos primeiros momentos da passagem do Ilê Aiyê:

É bacana a gente se sentir identificado, refletido, porque a beleza desse povo é

também a nossa beleza. Abre caminhos para que hoje, por exemplo, a gente esteja

transmitindo ao vivo, com a nossa cara, com nosso jeito, com a nossa estética, que é

tão identificada com eles. Somos nós. (Juliana Ribeiro. Transmissão do Carnaval.

Salvador: TVE Bahia, 3 de março de 2014. Programa de TV)

Mais do que simplesmente ostentar signos do bloco, a comentarista apresentou-se

como parte daquele universo. Demonstrou um sentimento de pertencimento a um coletivo

maior do que a própria agremiação, coletivo do qual ela e os foliões eram partícipes. Juliana

fala em um “nós” que pode ser entendido como “negros”, e não só de Salvador. Considerei tal

passagem digna de nota, uma vez que uma das propostas centrais dos blocos afro é atuar

positivamente sobre a autoestima da população negra, conclamando-a a superação de

problemas comuns.

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Retomando o desfile propriamente dito, surgiu o primeiro trio, trazendo em destaque

um letreiro no qual era possível ler: “Ilê Aiyê 40 Anos”. Ainda na parte frontal do carro, sobre

os dizeres mencionados, destacava-se a figura da “Deusa do Ébano” do ano de 2014, em

longas vestes amarelas, com detalhes rajados, seguindo o padrão assumido para todo o bloco,

bem como detalhes em palha nos braços e cabelos. No mesmo trio, em sua porção mais

central, outras quatro mulheres também dançavam, cada qual utilizando trajes

individualizados, mas que não destoavam de todo o conjunto.

Entre o primeiro e o segundo trio elétrico, apareceu o conjunto de percussionistas,

predominantemente trajados de amarelo, trazendo a roupa uma amarração no ombro direito, o

que lhe conferia ares de túnica.

Já no segundo trio foi possível observar, sem muito esforço, um enorme telão que

alternava imagens alusivas aos patrocinadores e a história do próprio bloco, trazendo para a

avenida a memória de carnavais passados. Deste segundo trio, em determinado momento do

desfile, surgiu uma surpresa. Instrumentos de sopro pontuaram a marcação dos tambores, o

que não era usual.

Os demais integrantes do bloco trajavam primordialmente branco, associado com a

estamparia proposta para aquele ano. Entre as mulheres, gargantilhas, colares de contas,

pulseiras e brincos chamavam a atenção, assim como os belos cabelos trançados, lenços,

turbantes que desafiam nossa compreensão e surpreendentes leques, em variadas cores e

modelos, que, tal qual um sorvete da Ribeira, ajudavam a aplacar o calor tão típico do verão

soteropolitano. Entre os homens era possível ver o uso de chapéus e também de turbantes,

bem como variados colares de contas.

Com um percurso de aproximadamente quatro quilômetros, percorrido em cerca de

cinco horas, ficava impossível para a televisão acompanhar toda a passagem de um bloco,

uma vez que bastava este dobrar a primeira esquina para que o segundo já iniciasse seus

preparativos. E assim foi feito. Depois de cerca de uma hora de transmissão, a TVE passou a

se dedicar a transmissão do desfile do bloco Muzenza.

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2.2. SEGUNDA IDA A CAMPO

DE TODOS OS SANTOS, ENCANTOS E AXÉ

Cheguei a Salvador no final do mês de abril. Logo seria comemorado o aniversário de

35 anos do Olodum. Uma boa oportunidade para encontrar reunidos os integrantes do

bloco e tentar estabelecer um contato maior com estes38

.

Já no dia da celebração, segui para o Pelourinho. A sede da agremiação estava

enfeitada com faixas coloridas. Em frente ao prédio, especificamente na calçada,

estava montada uma grande mesa, também decorada. Pessoas entravam e saiam a todo o

momento do antigo casarão, pela porta que leva aos andares superiores. Nenhum rosto que me

fosse familiar.

Cada uma das portas da sede tinha seus marcos decorados com balões nas cores

vermelha, verde, amarela e preta. Uma faixa, fixada entre o prédio e o casarão localizado logo

a frente trazia os dizeres: “Olodum. A batida que pulsa o coração. 2014 - 35 anos”.

Compunham a fachada, ainda, bandeiras do Brasil, Bahia, Salvador e África do Sul.

Eis que surgiu um enorme bolo amarelo com o símbolo do bloco, dividido em bolos

menores, que foi sendo montado na mesa disposta em frente à sede.

Resolvi procurar por Eunice, minha referência junto ao bloco. Como a porta da sede

estava aberta, em função do entra e sai já mencionado, não me fiz de rogado e também entrei.

Tão logo me viu, veio me cumprimentar com um sorriso no rosto. Eunice se

comprometeu a agendar entrevistas com dirigentes do bloco, bem como músicos e

fundadores.

Começou então a ecoar pelas ladeiras do Pelourinho o barulho de tambores. Eunice me

informou se tratar dos alunos da Escola Olodum, que se apresentariam em frente à sede.

Chamada de Banda Olodum Mirim, o grupo de dezessete jovens, trajados com calças

brancas e camisetas amarelas, sob a regência de um mestre, se deteve no meio da rua e

começou a fazer soar os instrumentos percussivos. A cada novo movimento do regente

correspondia uma mudança na sonoridade. Clara demonstração de talento e disciplina.

Uma repórter da TV Bahia, acompanhada de um cinegrafista, observava a tudo

atentamente da calçada do outro lado da rua, assim como faziam vários transeuntes. A maioria

destes, claramente turista, lançava mão de máquinas fotográficas e telefones celulares para

registrar o momento.

38 QR Code: “Protesto Olodum” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=APiX-8NI6Lc

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De repente o som cessou e a repórter se dirigiu ao mestre da percussão, que trajava

uma camiseta branca estampada com a logomarca do Olodum e a efígie de Nelson Mandela.

Uma rápida troca de palavras que se transformou em entrevista formal, com imagens

capturadas pelo cinegrafista. Nada que durasse mais que três ou quatro minutos.

O regente, então, fez um novo sinal e os percussionistas retomaram suas posições. Em

seguida recomeçou a música. O cinegrafista passeou por entre as fileiras de jovens musicistas,

angariando imagens para ilustrar a reportagem. Tão logo este fez sinal de que estava satisfeito

com o que havia registrado, o mestre também faz um sinal, desta feita para os jovens que

novamente cessaram a sonoridade. Ficava claro que esta última e rápida apresentação teve

como objetivo apenas a satisfação da equipe de reportagem.

O grupo começou a descer a rua, provavelmente em direção à sede da Escola,

enquanto boa parte dos que estavam nas calçadas do Pelourinho, admirando seu talento,

também se dispersou. Finalmente o bolo foi repartido e distribuído de maneira organizada

entre todos aqueles que ainda restavam por ali.

Reencontrei Eunice, que perguntou minha opinião a respeito da Banda Olodum Mirim.

Diante do meu contentamento com o que pude assistir, Eunice informou que este se tratava de

um dos principais projetos do bloco, reunindo crianças e jovens entre sete e quinze anos de

idade.

Era patente o conhecimento que Eunice detinha sobre toda a estrutura e atividade do

Olodum. Sem dúvida uma figura interessantíssima para se entrevistar. Entretanto, relutava

veementemente a qualquer ideia de ser protagonista de uma entrevista. Dizia limitar sua

atuação apenas aos bastidores, sendo mediadora de meus contatos, mas que de forma alguma

seria ela própria a entrevistada.

Eis que Eunice me informou que naquela noite seria realizado um coquetel na sede,

em comemoração ao aniversário do bloco, reunindo integrantes, fundadores e colaboradores.

Antes que pudesse pleitear minha presença no evento, Eunice me convidou a tomar parte na

celebração.

No horário marcado estava de volta ao Pelourinho, de ânimo e aparência renovados.

Tão logo entrei na sede, recebi uma sacola com um abadá, algumas apostilas e um vale-livro,

e fui encaminhado para o auditório Nelson Mandela. Aos poucos as pessoas foram chegando.

Um ou outro rosto conhecido à distância. As janelas logo se tornaram o espaço mais

disputado do salão, revelando que o incômodo com o calor não era uma prerrogativa minha. E

foi justamente a busca pela brisa que entrava pelas janelas, a responsável pelos meus

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primeiros contatos naquela noite. Conversas corriqueiras que serviram para tornar menores as

barreiras que, inconscientemente, estabeleci entre eu e as pessoas que ali estavam.

Toda desinibição e entrosamento que me faltavam, parecia sobrar nos demais

convidados. Não foram raros os abraços calorosos de pessoas que aparentavam ser amigas

que há muito não se viam. Rodas de conversa se organizaram intuitivamente por todo o salão.

Neste momento, meu interlocutor era um senhor curioso de nome Martins, que reclamava de

fome e do fato do garçom só ter lhe oferecido refrigerante, quando sua predileção era por uma

boa dose de uísque. Eis que avistei Eunice entrar pelo salão e logo sumir por entre um grande

grupo de pessoas. Percebi que em seguida ela circularia por várias daquelas rodas de

conversa.

A noite prosseguiu até que uma das portas existentes no salão se abriu e de lá saiu um

pequeno grupo de pessoas, dentre as quais João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum.

Aquela noite seria uma oportunidade ímpar para me apresentar e tentar combinar diretamente

com ele uma posterior entrevista.

Desloquei-me pelo salão, a fim de buscar um melhor lugar para ouvir o que seria dito

nos discursos que se anunciavam.

João Jorge começou seu pronunciamento agradecendo a presença de todos e fazendo

uma breve recapitulação da trajetória do Olodum e de sua importância. Após relembrar fatos

pitorescos da longa caminhada de 35 anos do bloco, o presidente anunciou que naquela noite

seriam nomeados os membros de um Conselho Consultivo, a ser formado por pessoas que

contribuem ou contribuíram para a história do Olodum. Tal nomeação seria ainda, marcada

pela entrega de certificados aos escolhidos.

Um a um os novos conselheiros foram sendo chamados. Pose para foto ao lado de

João Jorge, certificado em mãos, microfone aberto para agradecimentos.

Em geral os agradecimentos seguiram a formalidade requerida, prestigiando a figura

do presidente, bem como a toda diretoria. Alguns dos novos conselheiros se emocionaram ao

relembrar passagens de sua trajetória pessoal junto ao bloco. Um dos mais aplaudidos foi

Gilmário Marques, musicista, membro da Banda Olodum, partícipe do bloco desde a infância

e que, com os olhos marejados, trouxe a memória de todos os episódios de violência praticada

contra integrantes do Olodum e moradores do Maciel-Pelourinho, bem como contra ele

próprio, ressaltando a importância do bloco na sua formação como cidadão.

Também foram recorrentes os discursos de agradecimento que faziam questão de

ressaltar que, embora nascido em 1979, o Olodum teria renascido em 1983, quando João

Jorge e outros se juntaram ao bloco, dando forma ao que ele é hoje. Mais do que sua natural

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importância por ser o atual presidente, João Jorge era apontado como figura essencial na

história da agremiação.

Nomeado conselheiro, o cantor e compositor Tonho Matéria era um dos poucos rostos

conhecidos que via por ali. Em seu agradecimento, entoou antigas músicas do bloco, cantadas

por quase todos os presentes. Outro rosto que me era familiar era o do economista Sérgio

Gabrielli, presidente da Petrobrás entre os anos de 2005 e 2012, tendo sido então

recentemente substituído por Graça Foster. Filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT),

ocupava agora o cargo de Secretário de Planejamento do Estado da Bahia.

Também foram nomeadas ao Conselho Consultivo, Lídice da Matta39

, ex-prefeita de

Salvador e atual senadora pelo Estado da Bahia, e Alaíde da Conceição, carinhosamente

chamada de Alaíde do Feijão40

, renomada quituteira de Salvador e proprietária de um

concorrido restaurante no Pelourinho.

Por mais que não conhecesse todas as pessoas nomeadas como conselheiras naquela

noite, era possível perceber que se tratava de um conjunto heterogêneo. Ao reunir musicistas,

cantores, políticos e lideranças sociais, restava claro estar diante de uma pequena amostra do

alcance social e influência do bloco.

Com a atenção novamente voltada para o evento, presenciei, ao final, a distribuição

dos livros ali dispostos. Tratava-se de uma valiosa coletânea de letras de todas as canções

compostas pelo bloco ao longo de seus 35 anos de atuação. Entretanto, a gráfica responsável

pela editoração não foi capaz de entregar o número de exemplares necessários para aquela

39 Além de Prefeita de Salvador, Lídice da Matta foi também vereadora do município, deputada estadual e

deputada federal. Integrou o Movimento Democrático Nacional (MDB), o Partido Comunista do Brasil (PC do

B) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Atualmente é Senadora pelo Partido Socialista

Brasileiro (PSB). Pouco tempo após sua nomeação para o Conselho Consultivo do Olodum, Lídice lançou a sua candidatura ao governo da Bahia nas eleições de 2014. No pleito alcançou a terceira colocação, com 6,62% dos

votos válidos. Foi durante a administração municipal de Lídice que se oficializou o Circuito Barra-Ondina do

carnaval de Salvador. 40 Filha de uma quituteira que possuía uma banca na Praça Cayru, no bairro do Comércio, Alaíde herdou o ofício

e negócio da mãe. No início da década de 1990 abriu seu primeiro restaurante no Pelourinho. Logo o

estabelecimento começou a ser frequentado por personalidades e formadores de opinião, convertendo-se em um

dos espaços de maior relevância cultural para o Centro Histórico de Salvador. Em 2015 o Instituto do Patrimônio

Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), com o apoio institucional do Centro de Culturas Populares e Identitárias

(CCPI), viabilizou, em conjunto com a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, o reconhecimento institucional

do “Restaurante Alaíde do Feijão”, como espaço cultural, objetivando promover a sustentabilidade e

continuidade de suas atividades, em um esforço de promoção da ocupação permanente dos imóveis do Centro Histórico. (Para mais informações ver www.ipac.ba.gov.br/noticias/ipac-atende-demanda-historica-ao-

possibilitar-novo-espaco-para-alaide-do-feijao). Alaíde foi, ainda, uma das agraciadas no ano de 2010 com o

Troféu Palmares, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, por

seu trabalho em benefício da sociedade brasileira. Vencedora no campo social da premiação, Alaíde recebeu o

troféu das mãos de Antônio Carlos Vovô, presidente do Ilê Aiyê. Segundo palavras do próprio Vovô: “Estou

muito feliz por entregar este símbolo da Palmares para uma conterrânea! Alaíde é importante não só pela

culinária que pratica, mas por tudo que já fez pelo movimento negro, que, ao longo dos anos, alimentou não

apenas com seu famoso feijão, mas com ideias e coragem”. Disponível em www.palmares.gov.br/?p=4272.

Acessado em 24 de junho de 2015.

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noite. Sendo assim, a preferência no recebimento dos exemplares foi dada aos novos

conselheiros, bem como a antigos membros e colaboradores do bloco. Restou-me a promessa

de que, guardando meu vale-livro, no futuro receberia meu exemplar.

Aguardei até que João Jorge se despedisse de seus convidados e tirasse mais algumas

fotos para poder lhe falar. Quando a oportunidade surgiu, rapidamente me apresentei,

apresentando também meu propósito. João se mostrou disponível para uma conversa e pediu

para que eu a agendasse justamente com Eunice, que já havia me prometido o mesmo.

Dois dias após o evento na sede do Olodum, fui ao encontro de Carlos Eduardo

Santana, do Malê Debalê, que me enviou mensagem propondo a realização de uma entrevista

em um de seus locais de trabalho. Uma escola municipal, situada no bairro do Cabula.

Depois de rápido cumprimento e comentários corriqueiros, seguimos para uma

pequena biblioteca, no segundo andar do prédio. Estava prestes a finalmente realizar minha

primeira entrevista para esta pesquisa.

Eduardo logo de início apresentou suas credenciais. Coordenador Pedagógico do Malê

Debalê, doutorando em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia

(UNEB) e Mestre em Educação e Contemporaneidade pela mesma instituição. Além de sua

função no Malê, Eduardo atuava também como Coordenador Pedagógico da Secretária

Municipal de Educação (SMEC) e professor do curso de Pedagogia e Comunicação Social da

UNIBAHIA e do curso de Pedagogia na FAMEC. Somavam-se a este currículo seus quase

vinte anos de vivência no bloco Malê Debalê e um passado de militância em movimento

estudantil, aproximação com o movimento sindical e filiação partidária41

. Eduardo

apresentava-se como uma figura realmente interessante. Um bom ponto de partida. Nas

palavras do próprio:

Hoje eu tenho 42 anos e desses 42, praticamente 20 eu estou lá participando desta

história do Malê. Eu cheguei no Malê em 1994. Quando eu chego em 94, começo

folião, alguém que vai pro ensaio, alguém que compra fantasia. Em 97 é que eu sou

convidado pra ministrar aulas em um curso que o Malê tinha na antiga escola técnica

da Bahia, num projeto de alguns professores da escola técnica, de instrumentalizar

os jovens dos blocos afro pra cursar alguns cursos na área técnica. Depois passei a

ser o coordenador do projeto e ai daí pra frente surgiram algumas situações. Eu já

deixei de ser só o folião, comecei a fazer parte dessa parte mais da formação. Eu já

tava na graduação. Já tinha saído de Biologia e já tava fazendo Pedagogia. Então

tudo ajudou. Então vou me afastar do Malê em 99, quando eu começo as pesquisa

relacionada com o que eu trabalho até hoje, que são as comunidades quilombolas.

41 No final da década de 1980, Eduardo cursou História na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em

Alagoinhas, onde fez parte do Diretório Central dos Estudantes. Já no início da década de 1990, mudou-se para

Rondônia, onde se aproximou do movimento sindical e filiou-se ao PC do B, chegando a integrar seu diretório

municipal.

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2002 entro no Mestrado também discutindo comunidades quilombola em Educação,

aqui pela UNEB. Volto ao Malê em 2004, já como Diretor de Educação. Agora

entrei no Doutorado em Educação,o também discutindo comunidades quilombolas.

Então na verdade, a minha trajetória se confunde com o Malê, primeiro na questão

do gosto e depois por entender o que era essa movimento político, o que era esse

movimento do Malê. (Eduardo, abril de 2014)

Mesmo estando em seu ambiente de trabalho, Eduardo mostrou-se totalmente

disponível para a entrevista, sendo de uma presteza singular. Por quase duas horas

conversamos sobre sua trajetória, a história do Malê Debalê, a relação do bloco com os

demais blocos bem como o poder público. Importantes apontamentos foram surgindo em sua

fala. Desta entrevista também emergiram questões que até então não se colocavam como

centrais, mas que a partir da fala de Eduardo, demonstraram ser essenciais na compreensão

dos blocos, e do Malê Debalê especificamente. O marginal ganhava contornos de

centralidade.

Terminada a entrevista, nos despedimos. Entreguei a Eduardo o ofício, assinado por

meu orientador e pelo coordenador do curso, atestando a conformidade da universidade com o

estudo que ali desenvolvia. O já mencionado ofício requerido pelo Ilê Aiyê e estendido por

iniciativa própria aos demais blocos. De sua parte, Eduardo me deixou com a promessa de que

um material seria selecionado e estaria a minha disposição na sede do bloco, em Itapuã,

dentro de alguns dias.

Ao chegar em casa encontrei uma mensagem de Eunice em meu correio eletrônico,

agendando três entrevistas com integrantes do bloco. Um cantor, um percussionista e o

presidente, João Jorge. Seriam todas realizadas na tarde seguinte, na sede do Pelourinho.

Já no dia seguinte, organizei meus pertences e voltei ao centro histórico. Uma chuva

fraca pintava uma aquarela soteropolitana com tintas que não me eram familiares. Uma

Salvador mais acinzentada, para desgosto dos turistas e moradores que ocupavam trechos do

Porto da Barra, ansiando por um respingo de Sol.

No Pelourinho o cenário também era diferente. Ruas mais vazias, contrastando com o

costumeiro vai-e-vem de turistas, comerciantes e moradores. Nem mesmo o início da

decoração do centro histórico para a vindoura Copa do Mundo de futebol dava ares mais

alegres aquele dia chuvoso.

Antes mesmo de seguir para a sede do Olodum resolvi realizar uma nova visita a

Boutique do Ilê Aiyê. Desta feita quem me recebeu foi o jovem Taiwo. Nada de novo dentre

os produtos a venda, aproveitei para comentar sobre minha pesquisa. Taiwo recomendou,

então, que procurasse diretamente por Edmilson, que seria esta a pessoa mais indicada para

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um primeiro contato. Nome devidamente anotado, despedi-me agradecido, seguindo meu

caminho rumo ao Maciel de Baixo.

Chegando a Casa do Olodum, me encontrei com Eunice, que logo me explicou quais

seriam os procedimentos a serem seguidos. Primeiramente me reuniria com João Jorge para

uma “conversa” com tempo determinado. Nada que ultrapassasse quinze minutos, tendo em

vista que o entrevistado estava repleto de afazeres. Na sequência entrevistaria Lazinho e

Gilmário, cantor e percussionista da Banda Olodum, respectivamente. Aproveitei para lhe

entregar o ofício prometido meses antes.

Eunice pediu que aguardasse um pouco, enquanto anunciaria para João Jorge a minha

chegada. Naqueles poucos minutos que me separavam de tão esperado encontro, me lembrei

de Raymond Firth (1998) e sua incursão as Ilhas Salomão. Em como o etnólogo neozelandês

venceu seu drama de chegar ao longínquo país ao se encontrar com o chefe dos Tikopia. Na

maneira como o encontro com a autoridade parece nos conferir a segurança necessária para o

desdobramento de todo o trabalho. De modo consciente, ou não, conferia a João Jorge, assim

como aos demais presidentes dos outros blocos pesquisados, uma centralidade que lhes

tornava figuras essenciais ao que propunha. Como se de suas palavras dependesse toda a

credibilidade de meu trabalho.

Finalmente fui chamado por Eunice. Atravessei todo o salão do segundo andar, em

direção à segunda porta. Ao entrar na sala encontrei João Jorge sentado a sua mesa, repleta de

livros e documentos, atestando ser real sua atarefada jornada. Ao fundo, uma foto de Malcolm

X, a qual senti falta no panteão do salão ao lado.

Comecei então a explicar para João Jorge o propósito de minha presença. Informei que

havia encaminhado por e-mail, e entregue pessoalmente a Eunice, um documento

oficializando a pesquisa.

João Jorge começou a falar um pouco sobre a questão do negro em Salvador e no

Brasil de uma maneira mais ampla. De toda a diferença de tratamento existente entre negros e

brancos em nosso país. Seguiu apresentando suas credenciais acadêmicas de bacharel em

Direito e mestre em Direito Público, pela Universidade de Brasília (UnB), para em seguida

levar a diante a discussão pelo viés da cidadania. Foi quando bateram a sua porta.

Era Eunice, anunciando a chegada de pesquisadores. João Jorge me explicou que se

tratava do grupo de pesquisadores responsáveis pelo estudo que embasaria a criação de todo o

enredo do Olodum para o ano de 2015. O foco seria a Etiópia. Fui informado, ainda, que o

próprio João, acompanhado de outros integrantes do bloco, havia empreendido uma viagem

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recente ao país africano para conhecer de perto a cultura etíope e embasar a escolha da

temática.

Meus quinze minutos já haviam se passado e muito pouco havia conseguido. Restava

me despedir e informar que no futuro faria uma nova tentativa de entrevista, com mais tempo,

para que pudéssemos aprofundar algumas questões que me interessavam, bem como dar

espaço para que ele pudesse colocar em cena aspectos que considerasse relevantes. João me

passou seu contato e disse que poderia lhe enviar perguntas pelo correio eletrônico. Agradeci,

pensando comigo que este seria meu último recurso. A preferência era pela entrevista

presencial.

Saí da sala e, passados pouco mais de vinte minutos, chegou Lázaro Araújo dos

Santos, ou simplesmente Lazinho, como apresentado por Eunice, que me informou, ainda, que

eu teria cerca de vinte minutos para entrevistá-lo, até que Gilmário, o outro entrevistado,

chegasse.

Antigo morador do Pelourinho, Lazinho participava do Olodum desde sua fundação,

em 1979, tendo assim acompanhado de perto toda a trajetória do bloco até os dias de hoje. Foi

um dos cantores do bloco em seus primeiros momentos e sucessos, tendo se afastado por um

tempo. Anos depois retornou a agremiação, reassumindo seu posto ao lado dos também

cantores Matheus Vidal, Narcisinho Santos e Sátira Carvalho. Na passagem a seguir, Lazinho

conta um pouco de como essa história começou:

Foi por acaso. Eu já nasci com dom, mas não tinha sido testado. Na verdade os

ensaios do Olodum começavam de manhã e precisava passar o som. Então,

geralmente, todo domingo era feito uma equipe de arrumação. Tinha um técnico de

som chamado Orelha que dizia: “Lazinho, passe o som aí”. Aí nessa história toda

começou. Ficava cantando. O Olodum foi fundado depois do carnaval, então o carnaval de 1980 foi o primeiro. Aí, por falta até de experiência, imagine você, ir no

Campo Grande, retornar. Um bocado não aguentava. E aí eu dormindo, Geraldão

diz: “Lazinho, pelo amor de Deus, agora só você pra cantar. Cante o que você sabe”.

E eu vim cantando duas músicas de lá do Campo Grande até aqui. Aí pronto.

Quando foi na reunião depois do carnaval, Geraldão disse: “Olhe, a partir de hoje,

Lazinho é o cantor do Olodum”. Comecei cantando em 1980. Aí eu comecei a me

interessar, já que eu fazia parte. Fui aprender músicas, não errar tanto. Mas foi por

um acaso. Olha que já tinha uns caras considerados bons. Tinha Bobô. Tinha um

cara chamado Haroldo Medeiros. Todo mundo, até por não ter compromisso, nos

primeiros anos pegava lá e dizia “também vou cantar”. Cantava o que sabia e pronto.

De 1984 em diante, começou a mudar. De 1987, aí mudou de vez. O Olodum

chegou a ter 14 cantores. Na gravação do disco [Egito/Madagascar] fui eu, Tonho Matéria, Nego, Beto do Carmo, Betão... (Lazinho Araujo entrevista realizada em

abril de 2014)

Sua entrevista jogou luzes em questões que ainda me pareciam nebulosas, tanto sobre

a história do próprio bloco como a respeito do lugar do negro na sociedade soteropolitana.

Valiosas também foram suas contribuições no que tange ao universo musical do Olodum.

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Terminada a entrevista com Lazinho, procurei por Eunice para saber sobre Gilmário.

Após aguardar por um breve período, encontrei Gilmário chegando à sede. Já era noite na

Cidade da Bahia. A chuva, que foi intermitente durante todo o dia, finalmente dava uma

trégua.

Se Lazinho participava do Olodum desde sua fundação, Gilmário Marques fazia parte

do grupo desde que se tornou integrante do projeto Rufar dos Tambores, aos quatorze anos de

idade, o que faz com que sua trajetória de vida se confunda com a trajetória do bloco.

Gilmário acompanhou de perto o crescimento da agremiação enquanto instituição, ao

mesmo tempo em que crescia como cidadão. Hoje músico profissional, integrante da Banda

Olodum, o percussionista tem no currículo apresentações em mais de duas dezenas de países.

Também morador da região do Maciel-Pelourinho, Gilmário conviveu de perto com a

violência e o preconceito que eram imputados aos seus moradores, tendo o próprio passado

por momentos de violência policial injustificada. Por estes e outros motivos, sua entrevista foi

extremamente rica, apresentando a perspectiva de alguém que se beneficiou diretamente da

proposta de educação e cidadania oferecida pelo Olodum. Nas palavras de Gilmário:

Eu tinha 10 anos quando o Olodum foi fundado. Eu nasci em 1969 e vim entrar no

Olodum depois, mas eu ouvia muita história. Entrei no Olodum em 1984, no projeto

Rufar dos Tambores. Nascido e criado dentro do Maciel Pelourinho. Entrei no

Olodum com a finalidade de aprender música. Nós não tínhamos condições de sair

em bloco de carnaval. A comunidade em si, de um modo geral. Então um grupo de moradores resolveu montar esse grupo para poder dar essa oportunidade às pessoas,

que moravam numa área altamente discriminada, marginalizada até. Quando eu ouvi

pela primeira vez, e vi os meninos tocando, eu disse: “poxa”. Como a gente sempre

fala, foi amor à primeira vista. Entrei com 14 e estou no Olodum há 30, 31 anos.

Meu pai era comerciante, me deu toda a estrutura. Eu praticamente abandonei minha

casa, não porque o Olodum quisesse, mas antigamente quem tocava tambor era tido

como batuqueiro, ou senão como desocupado, vagabundo. Isso aqui não ia dar em

nada. Daí meu pai não aceitava e eu procurei seguir. Teve um tempo que eu fiquei

morando dentro de um carro, no Terreiro de Jesus, contrariando meu pai. Lavava

carro no Terreiro de Jesus, carregava laranja, carregava cestos de pão, pra todo dia

eu ter meu alimento. Hoje estou aqui. Praticamente minha vida toda dentro do

Olodum. Conheci vários países, conheci várias culturas, conheci vários artistas. Fizemos várias gravações com Michael Jackson, com Paul Simon, Watanabe, um

dos maiores saxofonistas japoneses, Tracy Chapman, Caetano Veloso, Gilberto Gil,

Gal Costa, Maria Bethânia... Um infinito de gente. Aprendi também a ser homem. A

agir de modo diferente. Aqui dentro do Olodum, eu aprendi a ser cidadão. É a vida.

Foi o que escolhi. O sustento de toda a minha família é o Olodum. Eu to nessa

batalha e vou continuar até onde der. (Gilmário Marques, entrevista realizada em

abril de 2014)

Após o término de nossa conversa, agradeci e deixei a sede com um misto de

sensações. Extremamente satisfeito com as entrevistas realizadas e decepcionado com a

rápida conversa com João Jorge. Não com a tentativa de entrevista em si, mas comigo mesmo,

por concentrar tantos esforços e atenção na figura do presidente, sendo que as entrevistas com

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Lazinho e Gilmário, bem como com Eduardo, em se tratando de Malê, mostraram-se

extremamente ricas.

A oportunidade de conversar com os presidentes seria, sem dúvida, de grande valia,

mas percebi que não poderia priorizá-las em detrimento da oportunidade de conversar com

outras pessoas, que possivelmente me mostrariam outras visões sobre o bloco, outras formas

de vivê-lo e de com ele se relacionar. Ficava claro que, tão importante quanto ouvir as vozes

das diretorias, seria ouvir as vozes dos músicos, dos foliões ou da comunidade.

Tendo esta percepção em mente, ainda caminhando pelas históricas ladeiras do

Pelourinho, decidi que no dia seguinte seguiria para a Liberdade.

Saindo do prédio onde estava instalado, resolvi perguntar para o porteiro se este sabia

me indicar qual ônibus pegar para chegar a Liberdade. Por obra do acaso, ou um simples

lance de sorte, Sérgio, porteiro do edifício, era morador da Liberdade.

Seguindo as indicações de Sérgio, rumei para a Praça da Piedade, mesmo local onde

embarquei no micro-ônibus, desta feita, do outro lado da rua. Teria duas opões. Uma que me

deixaria na Avenida General San Martin, e outra que me deixaria na Estrada da Liberdade.

Sendo que o Curuzu começa em uma e termina na outra, ambas as opções seriam da minha

serventia. E eis que veio o ônibus que me levaria a Estrada da Liberdade.

Ao longo do seu percurso, entendi a diferença de sentido quando comparado ao micro-

ônibus. O primeiro trafegava por vias mais expressas, enquanto o segundo se perdia em um

zigue-zague sem fim pelas ruas da Cidade Baixa. Em cerca de quarenta minutos já estava

desembarcando na Estrada da Liberdade, próximo a um supermercado, localizado na esquina

entre Estrada da Liberdade e Curuzu.

Ao optar pelo micro-ônibus em minha última visita ao Ilê Aiyê, acabei desembarcando

já no Curuzu, há poucos metros da sede do bloco. Desta vez, desembarquei no início da rua,

precisando percorrer quase toda sua extensão para que alcançasse a sede, o que acabou se

mostrando valioso, uma vez que permitiu uma observação mais acurada da área onde o bloco

está situado.

Logo no início, a minha direita, pude observar a casa sede da “Associação de Terreiros

da Liberdade e Adjacências – Egbé Axé”. Na sequência, uma série de pequenos

estabelecimentos comerciais. A ladeira do Curuzu possui várias edificações residenciais, mas

também um sem número de bares, restaurantes, padarias, armazéns, cabeleireiros, manicures,

lojas de calçado e vestuário, dentre outros.

Vários metros Curuzu a dentro, encontrei uma casa cuja placa instalada na fachada

informava ser a sede do Movimento Negro Unificado (MNU), em sua seção baiana.

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“Construindo o projeto político do povo negro para o Brasil”, era a frase em destaque, na

mesma placa.

Mais a frente, finalmente cheguei ao fim de linha do micro-ônibus, junto a uma

bifurcação que divide o Curuzu em dois. A esquerda permanece Curuzu. A direita passa a ser

Rua Progresso.

Pronto para seguir a esquerda, reparei em um detalhe que me passara despercebido na

primeira visita. Exatamente no início da Rua Progresso existe uma unidade básica de saúde de

competência do governo estadual, nomeada como “Unidade de Pronto Atendimento Mãe

Hilda”, em homenagem a iyalorixá do terreiro Ilê Axé Jitolu, líder espiritual do bloco Ilê

Aiyê.

Mais alguns metros e finalmente cheguei ao número 228 da Rua do Curuzu. Edifício

“Antônio Carlos Vovô”, ou simplesmente “Senzala do Barro Preto”, como apresentava o

imenso letreiro em sua fachada. Sede do Ilê Aiyê.

Ainda na calçada foi possível avistar duas crianças no topo da escadaria que dava

acesso as dependências do bloco. Trajando uniformes escolares, pareciam compartilhar um

mundo só delas.

Já na portaria, me identifiquei. Perguntado se estava à procura de alguma pessoa

específica, lancei mão do nome de Edmilson, como havia sugerido Taiwo. Enquanto o

porteiro entrava em contato com Edmilson, para saber se este poderia me receber, observei na

parede um corte esquemático do edifício sede, ali chamado de Centro Educacional Senzala do

Barro Preto.

Da rua, ou mesmo já na portaria, a impressão que passava era de que se tratava de um

edifício de três ou quatro andares. Surpreendi-me ao constatar, através do corte esquemático,

que a sede contava com nove pavimentos.

Aproveitando-se da topografia do terreno onde se localiza, foi erguido um edifício que

vai ganhando novos andares à medida que avança no lote, sendo quatro os andares localizados

abaixo do nível da entrada principal.

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Corte Esquemático – Senzala do Barro Preto (vista lateral)

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Fonte: Corte esquemático elaborado pelo Ilê Aiyê, reelaborado pelo autor para esse trabalho

LEGENDA

1.Foyer – 2.Serviços de Apoio – 3.Diretoria – 4.Administração – 5.Secretaria – 6.Cabine de Som – 7.Exposições/Recepções – 8.Varanda - 9.Acesso Camarotes – 10.Cozinha – 11.Cantina

12.Recreio – 13.Restaurante – 14.Sala de Aula – 15.Auditório/Salão de Festas – 16.Camarotes – 17.Palco 18.Camarim – 19.Lazer – 20.Biblioteca – 21.Almoxarifado – 22.Oficina Músicos –

23.Oficina Gráficos – 24.Oficina Costureiras - 25.Departamento de Instrumentos Musicais – 26.Oficina de Dança – 27.Estúdio de Som - 28.Músicos

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A entrada principal, no topo da escadaria vinda da rua, de onde era possível avistar a

quadra, era chamada de foyer. Seguindo por ela era possível alcançar a quadra, nomeada

como auditório/salão de festas. No final deste espaço fica o palco e os camarins. Todo o salão

é rodeado por uma varanda, destinada aos camarotes.

Elevadores e escadas fazem a transição entre os diferentes andares. Subindo, encontra-

se, no andar imediatamente superior, um espaço destinado a recepções e exposições. Subindo

mais um, chega-se a sala da diretoria, secretaria, administração, bem como a cabine de som

reservada a sonorização do palco do salão de festas.

Retornando ao foyer, descendo para o andar imediatamente abaixo, encontra-se uma

área para serviços de apoio, cozinha, cantina, área para recreio e salas de aula, bem como

espaço de lazer e biblioteca. No andar abaixo deste é possível observar a existência de um

almoxarifado, oficinas musicais, oficinas gráficas, área de lazer e oficina das costureiras.

O andar inferior conta com o departamento de instrumentos musicais e a oficina de

dança. Descendo mais um temos o estúdio para gravações musicais e por fim, no último piso

do edifício, uma sala destinada aos músicos.

Ainda entretido com a observação do corte esquemático, tentando reproduzi-lo em

meu bloco de anotações, fui avisado pelo porteiro de que minha entrada estava autorizada.

Devia subir as escadas e, na primeira porta a esquerda, procurar por Edmilson.

Seguindo as instruções dadas, cheguei a uma grande sala, rodeada por sofás cuja

estamparia parecia ser oriunda de sobras de tecido de algum carnaval passado. Os sofás eram

ainda recobertos por um plástico transparente, provavelmente com o intuito de preservar o

estofado por mais tempo.

Nas paredes observava-se a presença de estantes e prateleiras repletas de placas,

troféus e afins. Cartazes do bloco dividiam o restante das paredes com reportagens e

fotografias de Mãe Hilda, bem como de Antônio Carlos Vovô e Apolônio de Jesus,

fundadores do Ilê Aiyê.

Do lado direito, uma porta levava a outro ambiente onde era possível ver uma grande

mesa. Do lado esquerdo, três portas. A do meio levava a um terraço, posicionado na fachada

do edifício. As portas laterais levavam a dois pequenos escritórios. E justamente em um

destes, localizado no cômodo de porta mais a esquerda, encontrei Edmilson Lopes das Neves.

Recebido por Edmilson, sentei-me a sua mesa e comecei a explicar o porquê de minha

visita, bem como meu propósito junto ao bloco. Aproveitei para entregar-lhe o ofício

requerido um ano antes e também já remetido digitalmente.

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Fui avisado por Edmilson que a conversa teria de ser rápida, pois o mesmo estava

atarefado e logo teria de deixar a sede para resolver pendências. Aquela altura já estava

satisfeito simplesmente por ter sido recebido e poder apresentá-lo meu projeto.

Edmilson perguntou, então, sobre minha formação, o porquê de meu interesse pelo

estudo do bloco, meu interesse pela Bahia, dentre outras questões.

Por ser aluno da Unicamp, Edmilson deduziu que eu era paulista. Aliás, fato

corriqueiro em terras baianas. Nem mesmo o sotaque mineiro, que parece aflorar com mais

força em outras paragens, era suficiente para me credenciar como oriundo das Gerais.

Edmilson se surpreendeu quando lhe disse ser mineiro. Notei uma leve mudança na forma

como ele me encarava. O tom sóbrio que pautava sua feição ficou um pouco mais leve.

Aproveitei o ensejo para fazer referência ao tema do Ilê Aiyê para o ano de 2011:

“Minas Gerais – símbolo de resistência negra”. Contei que havia adquirido o Caderno de

Educação referente a este ano e que me surpreendi ao ver que nele havia referência a

comunidade quilombola dos Arturos, localizada em Contagem, município vizinho a Belo

Horizonte. Comunidade esta que havia visitado pouco tempo antes. E foi justamente este o fio

que desenrolou todo um novelo. Passamos a conversar sobre a importância do negro na

formação de Minas, bem como sobre inúmeras manifestações dos mesmos, como a congada.

A esta altura, a feição de Edmilson já não lembrava mais a seriedade apresentada logo que

cheguei. Um sorriso grande tomava conta de seu rosto. Senti que havia sido aceito.

Sem dispor de muito tempo para seguir com a conversa, Edmilson me pediu para

acompanhar-lhe até o andar superior, onde reuniria material para me entregar. Já no outro

piso, encontrei uma sala grande, dividida em pequenos compartimentos. Edmilson me

apresentou aos que ali estavam, dizendo ser um pesquisador que iria se dedicar ao Ilê, e

começou a perguntar por alguns materiais.

Edmilson retornou com uma série de Cadernos de Educação, cartazes, jornais,

apostilas e toda sorte de material disponível. Dei uma rápida olhada e devolvi os exemplares

dos Cadernos de Educação que já havia adquirido, mantendo aqueles que me eram inéditos.

Retornamos para o piso inferior.

De volta a sua sala, Edmilson disse que poderia contar com sua cooperação para tudo

o que precisasse, e que o Ilê Aiyê estava de portas abertas para mim. Despedimo-nos e

descemos juntos as escadas em direção à rua.

De volta ao prédio onde estava hospedado, procurei por Sérgio, o porteiro que me

indicou como chegar ao Curuzu. Como morador da Liberdade, considerei ser interessante

ouvir um pouco do que ele teria a dizer sobre o Ilê Aiyê.

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Ao encontrá-lo, preparando-se para ir embora - pois seu turno já havia se encerrado -

agradeci pelas indicações de transporte e perguntei se poderíamos conversar rapidamente

sobre a Liberdade e o Ilê Aiyê. Sabedor dos problemas que envolvem o trânsito nas grandes

cidades do Brasil, problemas estes também rotineiros em Salvador, reforcei que seria uma

conversa rápida, para não lhe tomar muito tempo e prejudicar seu retorno para casa, o que

levaria, certamente, mais de uma hora, sendo que já passávamos das 20h00min.

Gentil, Sérgio aceitou conversar. Os poucos mais de vinte minutos de duração do

diálogo foram suficientes para que Sérgio, agora Sérgio Pereira, se apresentasse e

apresentasse também um pouco de sua visão do que é viver na Liberdade, bairro no qual

reside há 32 anos, e em Salvador, cidade em que nasceu. Sérgio comentou ainda sobre a

atividade do Ilê Aiyê no bairro e como via a movimentação do bloco.

Eu me mudei para a Liberdade em 1982. Antes eu morava no Pirajá. Ainda tenho

amigos lá. É onde fica o Cortejo Afro. Mas por ter mudado pra Liberdade, hoje eu

sigo o Ilê Aiyê. Acho bonito sempre que eles passam por lá. Assim, eu não vou até a

avenida para vê-los. Vejo só na Liberdade mesmo, porque esses desfiles são tarde e

fica ruim pra voltar. Acho que fazem uma festa muito bonita, que dá orgulho pra

gente. Tem 32 anos que moro na Liberdade e o Ilê tem quarenta anos. Pra você ver

que eu encontrei o Ilê ainda menino. Eram todos meninos. Uma rapaziada que fazia

uma zoada danada com aqueles tambores, mas que foram mostrando que era

importante fazer aquela movimentação. (Sérgio Pereira, entrevista realizada em abril

de 2014)

Meu segundo período de campo em Salvador estava prestes a se encerrar. Resolvi

então realizar uma última investida a sede do bloco, em Itapuã, onde reencontrei Dermeval,

que conhecera um ano antes, ali mesmo.

Em uma conversa rápida, expliquei a razão da minha presença, questionando se

Eduardo havia separado algum material para mim. A resposta foi negativa. Dermeval ainda

complementou-a, dizendo que apenas Eduardo poderia me fornecer tal material, sobretudo

porque ele já havia se comprometido comigo e era o único ali que sabia de tal cessão. Tentei

contato com Eduardo por telefone, mas novamente não obtive sucesso. Resignado, agradeci a

atenção de Dermeval e resolvi voltar para casa.

Já de volta a minha hospedagem, era chegada a hora de fazer as malas e voltar para as

montanhas de Minas. Levava comigo uma série de novos materiais obtidos junto aos blocos,

bem como entrevistas com alguns de seus integrantes. Levava também, afinal, a confirmação

oficial da cooperação das três entidades a tese desenvolvida, cooperação esta personificada

nas figuras de Eunice, Eduardo e Edmilson.

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A bagagem que carregava dentro de mim também voltava repleta. Novas questões,

impressões, decepções e reflexões. Presente também estava a certeza de que muito ainda

havia para se descobrir.

2.3.TERCEIRA IDA A CAMPO

ENTRE MARES E MONTANHAS

Após participar do carnaval de Salvador, no primeiro trimestre de 2013, e de visitar os

blocos, no segundo trimestre de 2014, era chegada a hora de passar uma nova temporada na

Cidade da Bahia, com o objetivo de realizar entrevistas, escrevendo assim um novo capítulo

neste instigante fluxo entre as montanhas de Minas e o mar da Baía de Todos os

Santos. Desta feita, a opção foi pelo quarto semestre de 2014, mais especificamente

em novembro, mês importante para o movimento negro, sendo o dia 20 seu ápice,

com a celebração do Dia da Consciência Negra42

.

Já em Salvador, fui logo procurar por Eunice, na sede do Olodum. Por ela fiquei

sabendo que João Jorge estava viajando, sem data certa para voltar, o que comprometeu meu

propósito de finalmente entrevistá-lo. Eunice perguntou se eu teria nomes específicos com os

quais quisesse conversar. Falei de Mestre Memeu, regente principal da Banda Olodum. Assim

como João Jorge, Memeu também estava fora, com retorno previsto para data que não se

encaixava no meu período em solo baiano. Resolvi então perguntar por um nome da Escola

Olodum.

Eunice esclareceu que, embora ali fosse a sede do bloco como um todo, a Escola

Olodum gozava de certa autonomia. Desta forma, não caberia a ela qualquer agendamento

com os profissionais de lá, sendo necessário um contato direto com a secretaria da Escola. A

pessoa indicada para este contato se chamava Antônio. Agradeci Eunice, prometendo uma

nova visita em breve. Voltei às ladeiras do Pelourinho e segui diretamente para a Escola

Olodum.

Como dito anteriormente, a exemplo da sede, no andar térreo do casarão que abriga a

Escola Olodum existe uma grande loja do bloco. Para ter acesso a Escola propriamente dita,

entrei pela primeira porta, mais a esquerda, e subi uma grande e íngreme escadaria com

assoalho de madeira que rangia a cada novo passo dado.

42 QR Code “Beija-Flor” – Timbalada. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=w_0qzzRaJRY

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Cheguei a um pequeno hall que dava acesso a um corredor e várias portas, quase todas

fechadas. Em uma destas era possível ler: “Formação de lideranças”. A única porta aberta me

levou para a secretaria do bloco. Lá encontrei uma jovem que estava dividida entre tarefas

burocráticas e limpeza do mobiliário. Expliquei quem eu era e perguntei por Antônio. Por

alguns minutos ela deixou seus afazeres para ir até a sala de Antônio, informar da minha

presença. De volta, pediu que aguardasse. Enquanto isso, aproveitei para observar o local.

De volta ao hall encontrei em uma das paredes, decorada com azulejos nas cores

branca, preta, verde, vermelha e amarela, um pôster que, datado de 14 de novembro de 2007,

apresentava em síntese a missão e os valores da Escola Olodum, a saber:

Missão – “Promover a educação não-formal, o desenvolvimento pessoal e

profissional, contribuindo assim para o resgate, preservação e promoção da

cultura afro-brasileira e melhorando a qualidade de vida e auto-estima da

juventude atendida”.

Valores – “Respeito a diversidade étnico-cultural; aprendizagem lúdica e

criativa; ética e transparência; inovação; responsabilidade social”.

Chamado por Antônio à sua sala, expliquei a motivação de minha visita. Procurando

um respaldo maior a minha fala, deixei claro que fui recomendado por Eunice, demonstrando

assim que já havia estabelecido contato com a direção do bloco.

Solícito, Antônio comentou brevemente sobre o funcionamento da escola, reiterando

parte dos dizeres que encontrei descritos no já mencionado pôster. Entretanto, não seria ele a

pessoa mais indicada para conversar comigo. Segundo Antônio, eu deveria procurar por Mara

Felipe, que não se encontrava no prédio naquele momento. Além disso, deveria providenciar

um documento que oficializasse minhas intenções junto à escola, sendo respaldado pela

instituição de ensino a qual me vinculava. Era a conhecida história do ofício sendo repetida.

Já de posse do contato de Mara Felipe, garanti a Antônio que providenciaria o envio do ofício,

agradecendo, em seguida, sua disponibilidade em me receber.

Voltei para casa e providenciei o envio para Mara Felipe do mesmo ofício que meses

antes havia remetido a Eunice. Como ambos eram dirigidos ao Bloco Olodum, considerei ser

o suficiente.

Já no dia seguinte, resolvi seguir para Liberdade, para tentar retomar contato com

Edmilson.

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2.3.1.VISITA AO ILÊ AIYÊ

QUEM É QUE SOBE A LADEIRA DO CURUZU?

Lembrando as dicas de Sérgio quanto ao ônibus, e de Alana quanto a vestimenta, segui

para a sede do Ilê Aiyê, pegando um ônibus cujo desembarque deveria ser efetuado na

Avenida General San Martin43

.

Durante todo o trajeto do ônibus, encontrei uma parte de Salvador que me era

desconhecida. Observei pela janela e pude ver calçadas mal cuidadas, lixo acumulado

junto aos postes, chegando a invadir parte da rua, casas simples sem reboco pontilhando as

encostas, enquanto intermináveis solavancos no veículo denunciavam cada cratera existente

no asfalto. Lembrei-me das obras na orla e, principalmente, da requalificação urbana da Barra.

Salvador era mesmo uma cidade dividida, desigual na topografia, no carnaval e na atenção

conferia pelo poder público.

Desembarquei na Avenida General San Martin e segui pela Rua do Curuzu. Da mesma

maneira que ao desembarcar na Estrada da Liberdade, esta outra entrada do Curuzu era

formada por uma série de casas simples e comércio popular diversificado, com bares,

restaurantes, armazéns, salões de beleza, padarias e afins. Subindo a ladeira, encontrei a

esquerda o Ilê Axé Jitolu, terreiro de onde brotou a semente do Ilê Aiyê. No Curuzu há espaço

também para igrejas evangélicas.

Pouco antes de alcançar a Senzala do Barro Preto, descobri a “Casa de Maria

Felipa44

”, distante poucos metros da sede do bloco, no lado oposto da rua. Uma placa na

fachada da casa de três andares trazia a efígie de uma mulher negra (provavelmente a própria

Maria Felipa) e os dizeres “heroína da independência da Bahia”. Uma faixa, localizada pouco

acima da mencionada placa, fazia referência ao “empoderamento da mulher negra da África e

da diáspora”. A presença da Casa de Maria Felipa, da sede do Movimento Negro Unificado,

da Associação de Terreiros da Liberdade e Adjacências – Egbé Axé, bem como do próprio Ilê

Aiyê, deixava claro até aos olhos mais distraídos que o Curuzu é, de fato, um território negro,

43 QR Code: “O Mais Belo dos Belos” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=zJRnUcYNgls 44 Maria Felipa foi uma mulher negra moradora da Ilha de Itaparica, cuja ocupação principal era ser marisqueira.

Entretanto Maria Felipa acabou por converter-se em uma das heroínas do movimento que levou a Independência

da Bahia, em 1823, quando liderou um grupo formado por homens e mulheres que

fortificou as praias da Ilha, prevenir o desembarque de tropas inimigas. Além disso, organizou o envio de

mantimentos para os rebelados do Recôncavo e participou ativamente de vários conflitos, tendo comandado o

incêndio de inúmeras embarcações. No mais célebre de seus relatos, durante batalha em janeiro de 1823,

comandou um grupo formado exclusivamente por mulheres que, armadas unicamente com peixeiras e galhos de

árvores, foi responsável por impor importante derrota aos portugueses. Para mais informações sobre Maria

Felipa ver Farias (2010), Reis e Silva (1989) e Tavares (2005).

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não só pela forte presença destes na composição demográfica do bairro da Liberdade, mas nas

diferentes formas de expressão da negritude, sempre com o intuito do combate ao preconceito

e na busca pela valorização do elemento negro em nosso país.

É interessante notar, ainda, que dentre as quatro entidades citadas, a mais longeva na

região é o Ilê Aiyê, sendo possível especular que o sucesso do bloco possa ter influenciado no

surgimento destas outras entidades no Curuzu.

Chegando à sede, logo me encontrei com Edmilson, que corria de um lado para o

outro, parecendo muito atarefado. Pediu então para que eu aguardasse um pouco, pois estava

terminando de receber um grupo de estudantes norte-americanos. Rapazes e moças que

pareciam ter entre quinze e dezoito anos, acompanhados de uma intérprete que transmitia a

eles tudo o que era dito por Edmilson. Cheguei a tempo de ouvi-lo desejar-lhes uma boa visita

e ver o grupo desaparecer escadaria abaixo.

Já mais tranquilo, Edmilson explicou que aquela visita se tratava de um grupo de

estudantes norte-americanos que cursam o ensino colegial em um navio de cruzeiro. Sua

viagem começou nos Estados Unidos e seguiu rumo a América do Sul, parando em diversos

portos pelo caminho. Em cada um destes portos havia o desembarque dos alunos que,

acompanhados por professores, percorriam as cidades para realizar uma série de atividades

que conjugavam turismo e aprendizado. Em Salvador um dos destinos do grupo foi a Senzala

do Barro Preto. Edmilson informou, ainda, que tal tipo de visita à sede do bloco é comum,

acontecendo várias vezes durante o ano.

Quando imaginei que poderia finalmente entrevistar Edmilson, eis que chegou outro

grupo de estudantes. Desta vez se tratavam de alunos do ensino médio residentes no

município de Candeias, distante 46 quilômetros de Salvador. Ao avistar o antigo ônibus

escolar, Edmilson exclamou: “mês de novembro é sempre assim, movimentado!” Especulei

que a proximidade do Dia da Consciência Negra conferiria uma maior visibilidade aos blocos.

Pude acompanhar a fala inicial de Edmilson, que explicando brevemente ao grupo de

Candeias o que é o Ilê Aiyê, apresentando-o como um bloco afro que atua há quarenta anos na

luta contra o preconceito racial e pela valorização do negro. Mencionou também as figuras de

Vovô e Mãe Hilda, nomeando o primeiro como responsável pela criação do bloco e a segunda

como guia espiritual da instituição. Após algumas brincadeiras com os estudantes, buscando

uma maior interação com estes, Edmilson convidou a todos para uma visita as dependências

da Senzala do Barro Preto.

Aproveitei a oportunidade e me integrei ao grupo. O primeiro espaço visitado foi o

auditório/salão de festas. No caminho até este, percebi uma série de três frases escritas no que

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parece ser uma viga que sustenta a laje: “Venha dançar com o Ilê Aiyê como a mãe preta

ensinou”; “No Ilê Aiyê a mulher é a flecha da evolução” e “Ilê Aiyê: sem dividir seremos

sempre mais.” As duas primeiras frases de imediato me remeteram a matrilinearidade, tão

comum entre as culturas africanas, e a Mãe Hilda, que poderia ser simbolizada pela figura da

“mãe preta”. É notável a presença da iyalorixá em todo o contexto do bloco, mesmo tendo

falecido em 2009, portanto cinco anos antes de minha visita. A terceira frase também me fez

pensar. Ao falar de união como forma de fortalecimento, fui remetido ao contingente negro

que os blocos ambicionam atingir, ao mesmo tempo em que me lembrava da cisão entre os

próprios em iniciativas como a do Afródromo.

Chegamos ao salão de festas, com ares de quadra, cercada por pilares vermelhos.

Tijolos em tons de amarelo, preto e vermelho, complementavam a estrutura. Em cada uma das

laterais, um grande balcão e três geladeiras denunciavam ser ali o local para comércio de

bebidas durante os ensaios do bloco.

Bem no centro da grande quadra, Edmilson deteve o grupo para uma rápida explicação

sobre o espaço. Aproveitou para fazer um breve discurso sobre a importância da educação

para o futuro daqueles jovens que lhe ouviam com atenção.

Com o tempo quase sempre tomado pelas inúmeras atividades diretivas que

desempenha no Ilê Aiyê, Edmilson se despediu do grupo, deixando-nos a cargo de Maria

Aparecida Nunes, ou simplesmente Cida, coordenadora pedagógica da Escola Band’Erê, que

conduziria o restante da visita. Seguimos diretamente para o andar inferior, onde funciona a

Escola Mãe Hilda.

Em meio a um grande corredor com inúmeras salas de aula, encontramos parte do

grupo de estudantes norte-americanos participando de uma aula de percussão. Com a ajuda do

intérprete, tentavam, sem muito sucesso, repetir os gestos do instrutor. Por mais que a

execução pudesse ser perfeita, faltava-lhes ritmo, motivação suficiente para o riso de parte dos

alunos de Candeias.

Mais adiante encontramos a outra parte do grupo de estudantes estrangeiros em uma

aula de dança afro. Se a repetição do rufar dos tambores já lhes parecia complicada o

suficiente, a dança afro mostrava-se um desafio quase insuperável. Mais risadas dos jovens

estudantes baianos.

Comecei a conversar com Cida, perguntando sobre a organização da Escola Mãe

Hilda. Fui informado de que o objetivo da escola é oferecer educação formal para os níveis

Infantil e Fundamental, recebendo crianças entre sete e doze anos, em dois turnos.

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Enquanto seguimos nossa caminhada pelas dependências do bloco, conhecendo o

laboratório de informática e a biblioteca, Cida continuou me fornecendo novos dados. As

duzentas e quarenta crianças atendidas pela Escola Mãe Hilda participam de um projeto

pedagógico diferenciado que visa o desenvolvimento de competências e habilidades comuns

às instituições de ensino tradicionais, mas que alia tal formação a eixos temáticos que

envolvem as questões de equidade racial e de gênero. Neste tocante, Cida ressaltou que antes

mesmo que fosse promulgada a Lei 11.645/0845

, que tornou obrigatório o ensino de História e

Cultura Afro Brasileira nas escolas, o Ilê Aiyê já desenvolvia tal ação sendo, inclusive, o

responsável pela produção do material pedagógico utilizado. São os já mencionados Cadernos

de Educação que, a partir da discussão dos temas do carnaval de cada ano, ampliam o debate

apresentando temas relacionados à história e cultura afro-brasileiras.

Para além do conteúdo da Lei 11.645/08, tal projeto pedagógico teria como base os

Parâmetros Curriculares Nacionais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as

disposições do Conselho Nacional de Educação, bem como os ensinamentos das iyalorixás e

mestres das religiões de matriz africana, detentores de notório saber.

Neste momento um aluno veio até nós, caminhando com um sorriso no rosto. Abraçou

carinhosamente Cida, dizendo estar com saudade. Cida perguntou sobre uma determinada

tarefa escolar e ouviu como resposta um efusivo “já terminei”.

Com o olhar detido na jovem criança que se afastava pelo corredor, Cida disse se tratar

de um aluno com histórico familiar conturbado, cuja chegada à Escola Mãe Hilda foi

sinônimo de alguns problemas, sobretudo os causados por indisciplina. Entretanto, o período

de pouco mais de um ano de participação na instituição já teria provocado mudanças

consideráveis em seu comportamento. De fato, a criança amorosa que se apresentou diante de

nós não parecia corresponder à imagem que Cida descrevera.

Aproveitando o ensejo, Cida disse serem comuns os casos de crianças que chegam até

a Escola Mãe Hilda com tais traços comportamentais. Sobretudo crianças oriundas de

45 Em 10 de março de 2008 é promulgada a Lei 11.645, em modificação a Lei 9.394/96, estabelecendo as

diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da

temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. De acordo com o texto original: “Art. 26-A. Nos

estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1ºO conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá

diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses

dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos

indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,

resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes a história do Brasil. § 2º Os

conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no

âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história

brasileiras.” (Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acessado em 6

de julho 2015). LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.

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comunidades carentes da própria Liberdade, bem como dos bairros vizinhos Largo do

Tanque, São Caetano, Pero Vaz, Caixa D’Água e Fazenda Grande, vítimas constantes de

segregação e racismo.

Para atender a estas crianças, pensou-se em uma proposta curricular interdisciplinar

que conjugasse um conteúdo programático tradicional com a realidade vivida pelos alunos,

bem como com a proposta de atuação do bloco Ilê Aiyê.

O conteúdo programático da Escola Mãe Hilda, respeitados os níveis e limites de cada série

curricular46

:

“Comunicação Oral e Escrita – compreendendo o ensino da língua portuguesa de acordo

com os princípios oficiais vigentes além das contribuições culturais de várias etnias que compõem o

universo de comunicação e expressão da nossa gente. Desta forma, resgatamos informações de

origem africana e indígena, sob formas de lendas, mitos ou tradição oral e reconto de histórias.

Nesta disciplina, estimula-se a produção de textos, a análise gramatical e ortográfica, a leitura e

interpretação de textos, além do dialogo com os discentes.

Ciências Exatas – compreendendo a matemática e o desenvolvimento do raciocínio lógico.

Desta forma, investe-se na capacidade de problematizar e pensar, tendo como referência o cotidiano

do discente, respeitando-se a contribuição das diversas culturas para o entendimento, controle,

sistematização, sequência e registro quantitativo da produção humana. Neste sentido, o educando

percebe a finalidade da matemática na vida das pessoas e a desmistificação da sua complexidade, a

partir da utilização de metodologias baseadas em referências culturais diversas.

Geografia – o ensino da geografia está relacionado à cultura, investigando-se a localidade, o

cotidiano, as relações sociais, econômicas e culturais entre os discentes e as demais pessoas da

sociedade. É conferida ênfase as investigações das relações de dominação e discriminação. Além

dos aspectos anteriores, aborda-se noção de espaço e tempo enquanto fenômeno geográfico sua

dinâmica interações: ocupação, organização, produção da sociedade e representação; o cidadão

como sujeito construtor do espaço geográfico, social e cultural; espaço topológico vivido e

percebido, sobretudo nas relações políticas e institucionais; meio ambiente e a qualidade de vida,

percebendo os impactos causados pelo racismo ambiental47

.

Inglês – as oficinas de Inglês são ministradas por meio da parceria Ilê Aiyê/Associação

Cultural Brasil Estados Unidos (ACBEU). Os docentes, neste caso, são estudantes americanos do

46 Disponível em www.ileaiyeoficial.com/acoes-sociais/escola-mae-hilda/. Acessado em 5 de julho de 2015. 47 De acordo com Bullard (2002) e Herculano e Pacheco (2006), racismo ambiental se refere a políticas, práticas

ou diretrizes responsáveis por injustiças sociais e ambientais que afetam diferentemente ou de forma

desvantajosa (seja intencionalmente ou não) indivíduos, grupos ou comunidades com base na cor ou raça,

podendo ser reforçadas por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares.

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programa de Intercâmbio Cultural e as aulas são ministradas por meio de oficinas periódicas.

História e Cultura Afro–Brasileira – considerando a diversidade cultural existente em nossa

sociedade, priorizamos a valorização dos saberes que os alunos já possuem, criando momentos de

trocas de informações e opiniões, avaliando e identificando quais poderiam enriquecer seus

repertórios e suas reflexões. O currículo de História considera a diversidade de percursos

socioculturais e reconhece a ciência histórica em sua natureza identitária. A História dos

afrodescendentes, de seu passado das ricas civilizações, aproxima a nossa história dos descendentes

indígenas, pois ambas as populações sofrem com a omissão ou deturpação da sua historicidade.

Filosofia – praticamos a valorização de o notório saber, dos mestres e mestras da

comunidade, associados aos teóricos reconhecidos pelo Conselho Nacional de Educação, refletindo

sobre as concepções da origem do mundo e o respeito à pluralidade cultural. A Iyalorixá Hilda

Jitolú, idealizadora da escola e matriarca do Ilê Axé Jitolú, terreiro onde primeiro se estabeleceu a

Escola Mãe Hilda, é um referencial para crianças, adolescentes e comunidade escolar.

Arte Educação – desenvolvimento de atividades utilizando materiais recicláveis como

garrafas PET, tampas, isopor, papelão, caixas, dentre outros, estimulando o lúdico e ampliando a

consciência sobre a preservação do meio ambiente através da utilização de sucatas. Também são

perpetuadas brincadeiras dos nossos ancestrais, o que estimula o reconhecimento e a valorização da

cultura negra, além de incentivar a prática de brincadeiras que aproximam os indivíduos em

contraponto ao isolamento das brincadeiras eletrônicas.

Educação Física – entendida como uma área de conhecimento da cultura corporal de

movimento, tratando a Educação Física Escolar como uma área/disciplina que introduz e integra o

aluno nesta área da cultura, formando o cidadão que vai produzi-la, reproduzi-la e transformá-la,

instrumentalizando-o para usufruir dos jogos, dos esportes, das danças, das lutas e das ginásticas em

benefício do cognitivo, do afetivo social, do exercício crítico da cidadania e da melhoria da

qualidade de vida.

Capoeira – manifestação de patrimônio imaterial da cultura Afro-Brasileira, portanto

importante em sua preservação, apresenta uma multiplicidade de facetas inerentes não só ao campo

da Educação Física, mas também de outras disciplinas escolares, remetendo a um novo instrumento

pedagógico para a formação psicomotora dos discentes devido ao seu caráter interdisciplinar”.

À proposta curricular aliam-se ações complementares, como visitas a museus,

bibliotecas, teatros e também a terreiros de Candomblé. Neste momento Cida fez questão de

ressaltar que as visitas aos terreiros são opcionais e que é parte da conduta do Ilê Aiyê

respeitar todas as manifestações religiosas. Cida abriu, então, uma porta que dava acesso a

uma pequena sala.

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Cinco atabaques dispostos por todo o cômodo, cada qual com um aluno a lhe

manusear, indicavam ser mais uma das aulas de música ali oferecidas. Cida me apresentou ao

professor e disse que aquela aula se tratava de ensino do “toque sagrado”. Uma aula voltada

especificamente para o aprendizado de toques utilizados nos rituais de candomblé. Assim

como as visitas aos terreiros, esta disciplina era opcional.

Cida informou ainda que outras atividades são ofertadas aos alunos e mesmo a

comunidade do entorno, carente de espaços de formação e lazer. Sendo assim, a Escola Mãe

Hilda, e consequentemente o Ilê Aiyê, abria suas portas oferecendo a comunidade aulas de

dança, percussão, música, artes plásticas e informática. Neste momento chegamos a um

grande salão de costura, onde uma senhora operava uma máquina, confeccionando parte do

material a ser utilizado no carnaval do ano seguinte. Ali também são confeccionados os

artigos de vestuário comercializados na Boutique do Ilê Aiyê, no Pelourinho.

Voltando a tratar da escola, Cida contou que todo o projeto que eu vi ali, em pleno

funcionamento, fora concebido por Mãe Hilda, que em sua sala no Terreiro Ilê Axé Jitolu,

oferecia aulas de reforço escolar a alunos da região, aliando a este aprendizado a transmissão

de valores éticos e morais, bem como a valorização dos saberes e tradições afro-brasileiros. O

esforço inicial realizado por Mãe Hilda teria repercutido na instituição que é possível ver hoje,

onde o resgate dos saberes cotidianos locais, a valorização das experiências dos alunos, a

utilização de atividades como desenvolvimento de oficinas, vivências e textos envolvendo

métodos étnicos que auxiliem novas formas de produzir conhecimentos, a construção de elos

educativos que permitam um diálogo entre as várias áreas do conhecimento e a relação

horizontal professor/aluno, privilegiando a proximidade e afetividade, respeitadas as

idiossincrasias e identidade dos atores envolvidos no processo, são os eixos norteadores da

condução de todo o projeto.

Ter o Ilê Axé Jitolu como local de nascimento de um projeto pedagógico não causa

surpresa quando temos em conta o caráter pedagógico existente no Candomblé. Vanderlei

Leite (2006), ao tratar de tal esfera da religião de matriz africana, declarou:

O ensino é fator marcante nas casas de culto. O povo de santo se vale de seus

conhecimentos e os transmitem as crianças e até mesmo para os adultos que se

iniciam na religião. As estratégias utilizadas possuem como objetivo a inclusão

social e exercício da cidadania. Com esse procedimento o que se pretende no

processo educativo desenvolvido proporciona a persistência da religião, além de

valorizar a raça negra através de atividades que realmente auxiliam o crescimento e

o desenvolvimento da intelectualidade no tocante a cultura e história de um povo.

(LEITE, 2006, p. 5)

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Ou ainda, de acordo com a obra que reúne contos da iyalorixá Mãe Beata de Yemonjá:

A vivência no dia-a-dia das comunidades de candomblé envolve o constante contar

de histórias, a transmissão de ensinamentos aos mais novos por meio das histórias

contadas pelos mais velhos. A esse contar dos itãns, os mitos sagrados do

candomblé, mistura-se a troca de histórias de vida dos filhos de santo, recriando, em

cada troca de narrativas, a intimidade de convivência do “povo de santo”. (...) Os contos afro-brasileiros emergem assim do cotidiano dos filhos de santo e fora dos

terreiros, a memória sócio-histórica dessas comunidades com os ensinamentos

sagrados do candomblé. (BEATA DE YEMONJÁ, 1997, p. 13)

Retomando o diálogo com Cida, finalizamos nossa conversa com a Band’Erê, projeto

cuja coordenação pedagógica está a cargo de Cida. A Band’Erê nasceu no ano de 1992 como

aula de percussão para meninos, objetivando o envolvimento destes em uma atividade lúdica

e, ao mesmo tempo, propiciando-lhes o acesso ao mundo da cultura negra trabalhada pelo

bloco. A partir de 1995, com a criação do Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, a

Band’Erê passou a ter contornos de uma escola que utiliza a arte como instrumento de resgate

e expansão dos valores culturais de origem africana.

Com a palavra Vivaldo Bemvindo, diretor do Ilê Aiyê: “A segunda escola a ser criada aqui

foi a escola de música, canto e dança Band'Erê. Com o passar do tempo nós demos o formato que

ela tem hoje que não é só percussão e dança. Hoje nós formamos um cidadão. E como nós sabemos

que o atrativo maior pras crianças aqui da comunidade é a percussão, porque muitos têm irmãos,

tem primos que com 16, 17 anos já tá viajando pra outros países, então eles têm aquilo como uma

referência”. (Vivaldo Bemvindo. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê)48

Além de dar iniciação ao mundo da arte negra as crianças e jovens, a Band’Erê passou a ser

a principal fonte de renovação do quadro artístico da Band’Aiyê, banda profissional do Ilê Aiyê. O

percussionista José Márcio Santos foi um dos muitos alunos da Band’Erê que se tornaram músicos

profissionais. José hoje está integrado a Band’Aiyê:“Eu cheguei no Ilê bem novinho, com 7 anos,

quando foi criada a Band'Erê. Eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Hoje, graças a

Deus, tudo isso que aconteceu comigo eu agradeço a quem? Ao Ilê. Naquela época você dizia ‘ah

não, vou virar batuqueiro’? Não. Hoje eu sou um músico, graças a Deus, sou credenciado, já fiz

vários trabalhos importantes, não só aqui, mas nos Estados Unidos. A música é tudo pra mim" (José

Márcio Santos. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê)49

48YouTube. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê. Vídeo (3min01s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=w6yayr0WHA4. Acesso em 7 de julho 2015. 49YouTube. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê. Vídeo (3min31s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=w6yayr0WHA4. Acesso em 7 de julho 2015.

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Uma das professoras que acompanhavam os jovens alunos de Candeias aproximou-se

de nós dizendo a Cida que já era quase hora de partirem. Cida pediu-lhe que reunisse o grupo,

conduzindo a todos, eu incluso, para o penúltimo andar da sede, onde fica a sala de Edmilson,

que voltaria a nos ciceronear.

Já no salão repleto de placas, troféus e quadros, nos reencontramos com Edmilson.

Fomos todos convidados a tomar lugar em uma grande mesa, localizada no cômodo ao lado.

Deixei que os alunos e professores se sentassem e me posicionei de pé, em uma das laterais da

sala.

Como em uma grande aula, Edmilson posicionou-se a frente de todos e começou uma

fala sobre o mês de novembro, chamado no Ilê Aiyê de “Novembro Azeviche50

”, explicando

sua importância como período em que a luta negra por igualdade se torna mais visível perante

a sociedade, ressaltando que, no entanto, tal luta seria enfrentada diariamente por ele e todos

os que fazem parte do Ilê Aiyê. Para tanto, uma série de eventos é realizada pelo bloco ao

longo de todo o mês, a começar pela celebração de seu aniversário, no dia 1º, celebração do

aniversário da Independência de Angola, no dia 11, Dia da Consciência Negra, no dia 20,

celebração da Revolta da Chibata e da figura do Almirante João Cândido, no dia 22 e,

finalmente, comemoração do aniversário de inauguração da Senzala do Barro Preto, no dia

27.

A fala prosseguiu em tom professoral. Hora de valorizar os antepassados. Não

somente os que foram trazidos da África como escravos, mas os mais próximos como pais e

avós. Entrou em cena, mais uma vez, a figura de Mãe Hilda, cuja fotografia estampava um

grande quadro pendurado na parede. Aproveitando o ensejo da iyalorixá, Edmilson começou

a falar sobre o candomblé. Ao seu lado uma antiga estamparia do Ilê, de outros carnavais,

trazia vários símbolos relacionados à religiosidade de matriz africana. Um a um os símbolos

foram sendo mostrados, acompanhados de uma breve explicação sobre seu significado. E

assim passamos pelo machado de Xangô, arco e flecha de Oxóssi, espelho de Oxum, espada

de Ogum, xaxará51

de Obaluaê e pelo opaxorô52

de Oxalá.

Finalizada a fala, Edmilson agradeceu a presença de todos, anunciando que as portas

do Ilê Aiyê lhes estariam sempre abertas. Enquanto uma das professoras conduzia os alunos

para fora do prédio de volta ao ônibus escolar, a outra agradecia a acolhida do bloco e a

50 Azeviche é o nome de uma espécie de carvão que, quando lapidado, torna-se uma gema negra. Conhecido

também como “âmbar negro”. A palavra é utilizada, ainda, para caracterizar algo como negro. 51 Xaxaré é um utensílio fabricado com a folha do dendezeiro e costumeiramente decorado com búzios, contas,

palha da costa e cabaça. Utilizado em rituais, tem como finalidade afastar espíritos e eliminar energias negativas. 52 Opaxorô é um utensílio em formato de cajado, feito do cipó ou de metal prateado. Simboliza a criação do

mundo, bem como a ligação entre o céu (Orun) e a terra (Aiyê).

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atenção dispensada, mostrando-se muito interessada em manter contato com a instituição a

fim de utilizar parte do material pedagógico produzido pelo Ilê Aiyê em suas aulas no

município de Candeias.

Já era noite quando o ônibus deu a partida buscando o caminho de volta para

Candeias. Os alunos norte-americanos já haviam deixado o prédio horas antes, sem grande

alarde. Com a sede praticamente deserta, me despedi de Edmilson, que também estava de

saída, com a promessa de que retornaria na tarde seguinte.

Enquanto subia a ladeira do Curuzu entendi que, embora não tivesse conseguido a tão

esperada entrevista, havia vivenciado naquela tarde/noite situações interessantes. Além de ter

conhecido todas as dependências da Senzala do Barro Preto e obtido inúmeras informações

através de Cida, pude presenciar a dinâmica da instituição em momentos de visita de

estudantes, sejam eles norte-americanos ou baianos.

O Sol, envolto em acinzentadas nuvens, já iluminava as águas da Baía de Todos os

Santos, denunciando a chegada de um novo dia, enquanto me preparava para uma nova visita

à Liberdade. Repetindo todo o trajeto que já me era conhecido, desembarquei na estrada da de

mesmo nome.

Já na sede, encontrei Edmilson na porta de sua sala, prestes a sair para resolver

algumas questões. Entretanto, antes de deixar a sede, Edmilson me conduziu até o andar

superior e me apresentou Jacilda, ou simplesmente Jaci, uma das responsáveis pela eleição da

“Deusa do Ébano”, que dissertou sobre a organização do concurso, seus propósitos e

repercussão.

Como dito anteriormente, o bloco Ilê Aiyê foi fundado em 1974. Seu primeiro desfile

acontece já no carnaval de 1975. Um ano mais tarde, em 1976, Mirinha foi escolhida a

primeira “Deusa do Ébano” da agremiação.

A ideia de um concurso de beleza voltado exclusivamente para a mulher negra nasceu

da percepção de que os tradicionais concursos de beleza feminina existentes em todo o país

priorizavam um padrão de beleza eurocentrado. As negras restavam os concursos de

“mulatas” ou musas do carnaval.

Segundo Jaci, atento a tal situação o Ilê Aiyê resolveu promover um concurso que

exaltasse a beleza negra, trazendo consigo a discussão da negritude bem como a contestação

do padrão de beleza nacionalmente estabelecido. Neste momento, Jaci me mostrou a pilha de

formulários de inscrição para o concurso que elegeria a Deusa do Ébano de 2015, o que

deixava transparecer o sucesso da iniciativa.

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O palco por excelência para a escolha da Deusa do Ébano é a chamada “Noite da

Beleza Negra”, evento que reúne associados do bloco bem como artistas e intelectuais

reconhecidos como protagonistas na luta negra por igualdade.

Deusa do Ébano53

(Composição de Geraldo Lima)

Ê Deusa do Ébano. Ê Deusa do Ébano

Minha Crioula

Eu vou cantar para você Que estás tão linda

No meu bloco Ilê Aiyê

Com suas tranças, muita originalidade Pela avenida cheia de felicidade

Minha Deusa do Ébano

Ê Deusa do Ébano. Ê Deusa do Ébano

Todos os valores

De uma raça estão presentes Nesta estrutura deste bloco diferente

Por isso eu canto pelas ruas da cidade

Pra você minha crioula, minha cor, minhas verdades

Jaci fez questão de ressaltar que a “Noite da Beleza Negra” não era um concurso de

beleza convencional, uma vez que neste não são analisados apenas atributos físicos das

candidatas para a eleição. Ao contrário, tais atributos estariam em segundo plano. O que

importava era a “expressão da negritude”, segundo suas palavras. Seguiu comentando que

várias candidatas no ato da inscrição no concurso, anexavam fotografias trajadas com roupas

de banho, como é comum em outros concursos, e que estas são imediatamente informadas que

aquele não seria um procedimento necessário, uma vez que um dos intuitos do projeto é

desconectar a figura da mulher negra do estigma da sexualidade exacerbada, bem como da

prática da exploração sexual, realidade desde tempos idos da colonização.

Para tanto o concurso investia em outras formas de avaliação, considerando como

quesitos necessários para a escolha de sua vencedora o tipo de penteado apresentado, a roupa

utilizada (confeccionada pela própria candidata), as estamparias do tecido, a graça e

desenvoltura na dança afro. O próprio formulário de inscrição era considerado um primeiro

instrumento de avaliação, uma vez que, juntamente com questões costumeiras em todo tipo de

formulário, trazia um questionamento as candidatas: “para você o que é a negritude?”

53 QR Code: “Deusa do Ébano” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=fhTftpB-t60

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A “Noite da Beleza Negra” é realizada sempre três semanas antes do início do

carnaval. A candidata escolhida como Deusa do Ébano desfila como destaque do bloco, bem

como passa a participar de apresentações do mesmo durante todo ano, seja no Brasil, seja no

exterior54

.

Alexandra Amorim venceria o concurso em 2015, para o qual Jaci recebia inscrições

durante nossa conversa, tornando-se a quadragésima Deusa do Ébano eleita pelo Ilê Aiyê. Antes de

Gisele foram eleitas: Mirinha (1976), Patrícia (1977), Rita (1978), Sandra (1979), Auxiliadora

(1980), Peninha (1981), Itaguaracira (1982), Ainda (1983), Aidil (1984), Rosimeire (1985), Telma

(1986), Mirinha (1987), Eunice (1988), Heide (1989), Florisnalda (1990), Rovânia (1991), Regina

(1992), Raimunda (1993), Cátia (1994), Rose (1995), Soraya (1996), Mônica (1997), Gerusa

(1998), Suely Conceição (1999), Natalice Santana (2000), Priscila Santos (2001), Taís Carvalho

(2002), Lucinete Calmon (2003), Talita de Amorim (2004), Ivana Gomes (2005), Kátia Alves

(2006), Fernanda do Nascimento (2007), Adriana Santos (2008), Edilene Alves (2009), Gisele da

Silva (2010), Lucimar Cerqueira (2011), Edjane Nascimento (2012), Daiana dos Santos (2013),

Cynthia Paixão (2014). Após Alexandra Amorim, o Ilê Aiyê elegeria Larissa Oliveira (2016) e

Gisele Soares (2017).

Jaci terminou dizendo que o sucesso da “Noite da Beleza Negra” podia ser mensurado

através de seu alcance. Dentre aqueles inúmeros formulários que analisava, existiam

inscrições de candidatas de vários bairros da cidade e até mesmo de alguns municípios da

Região Metropolitana de Salvador como Lauro de Freitas, Camaçari e Itaparica.

Neste momento Jaci me pediu licença para tratar de algumas questões do concurso e se

despediu. Retornei para o andar inferior onde procurei por Edmilson, que ainda não

havia retornado. Sentei-me em um dos sofás e resolvi aguardá-lo.

Poucos minutos se passaram até que uma jovem entrou na sala, com ar de

perdida. Olhou pra mim e perguntou por Edmilson. Informei que ele não se

encontrava na sede e que estava ali justamente a sua espera. Ela resolveu sentar-se no mesmo

sofá que estava e também aguardar por Edmilson.

Muito ansiosa, a jovem, chamada Eliane, começou a me contar o motivo de sua visita.

Com a proximidade do Dia da Consciência Negra, Eliane resolveu, juntamente com alguns

colegas de trabalho, realizar uma “apresentação que valorizasse a negritude”, segundo suas

54 QR Code: “Negras Perfumadas” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=Qe-es-Hk8lk

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palavras. Para tanto, precisaria de um traje que simbolizasse tal aspecto. Em suma,

encontrava-se ali para pleitear o empréstimo de uma das fantasias do Ilê Aiyê.

Sem me conceder muito espaço para interlocução, Eliane seguiu com a fala afoita.

Começou a questionar a ideia de um dia da consciência negra. Considerava a data

desnecessária e até preconceituosa, já que não existiria um “Dia da Consciência Branca”.

Incrédulo com o que ouvia, comecei a me preocupar também com minha pesquisa. E se algum

integrante do Ilê Aiyê passasse por nós e ouvisse aquela conversa? Uma impressão errada e

todas as frágeis pontes construídas entre eu e o bloco poderiam ruir como que em um passe de

mágica.

Eliane seguiu com a cantilena, desta feita afirmando não se considerar negra. Não

conseguia mais compreender o propósito da jovem que estava ali, em tese, para requisitar um

empréstimo de fantasia para celebração de uma data com a qual não concordava, tampouco se

sentia fazendo parte daquele universo. A esta altura clamava aos orixás pelo rápido retorno de

Edmilson. Foi quando Eliane me tomou de assalto com uma questão inusitada: “E você, se

considera negro?”

Dentre as situações que jamais imaginei vivenciar, sem dúvida esta era uma das mais

surpreendentes. Afinal, dono de uma tez de notável palidez, indefectível mesmo que

ligeiramente enrubescida pelo Sol da Bahia, ser questionado sobre me considerar negro? Com

a assertividade que a questão parecia demandar, logo respondi: “Não!”. E eis que Eliane mais

uma vez me desconcertou ao questionar: “E por que não?”

Tendo contato com parte da literatura que versa sobre a questão étnico-racial no

Brasil, bem como com pessoas que se dedicam ao estudo desta questão, havia passado

inúmeras vezes pela discussão da auto-declaração do indivíduo enquanto negro. Em como no

Brasil esta afirmação identitária envolve tanto uma tomada de consciência quanto uma

tomada de posição política. Portanto, parecia natural que esta questão fosse dirigida a

população negra, mas jamais pensei que pudesse ser dirigida a mim. Nunca considerei, até

então, que minha identidade étnico-racial pudesse ser colocada em questão. Foi preciso que

Eliane me surpreendesse para que, pela primeira vez, eu mesmo me questionasse. Afinal, o

que não fazia de mim um negro? O que fazia de mim um branco?

Em momento posterior, ainda instigado pelo episódio, comecei a entender que o

embaraço surgido anos antes, ao suspeitar de jovens negros que transitavam pela mesma via

que eu, apontava que a resposta para ambas as questões seguia sendo a mesma de tempos

atrás, encontrando morada muito mais em relações e posições de poder e privilégio do que no

percentual de melanina existente em minha pele. A própria possibilidade de viver mais de três

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décadas sem precisar me questionar sobre isso já era um sinal claro de privilégio, sobretudo

quando sou partícipe de uma sociedade que demanda cotidianamente essa mesma reflexão da

maioria de sua população.

Para além destes questionamentos, as perguntas de Eliane me levaram a problematizar

meu papel como pesquisador branco que se dedica ao estudo de entidades negras. Lembrei-

me de uma passagem de bell hooks55

, em que dizia:

Mulheres brancas que ainda têm de entender o sentido de ‘ser branca’ em suas vidas,

a representação do ser branco em sua literatura, a supremacia branca que determina

seu status social põem-se agora a explicar a negritude sem questionar criticamente se sua obra nasce de uma postura antirracista consciente. (HOOKS, 2013, p. 140)

Antes que pudesse esboçar uma resposta, ou mesmo reorganizar minhas ideias,

Edmilson chegou. Acredito que os orixás tenham intercedido no momento certo, pois a época

não fazia ideia de como responder a questão de Eliane.

Edmilson nos cumprimentou e se dirigiu a sua sala. Eliane perguntou se poderia ser

atendida primeiro, pois estava com pressa. Respondi afirmativamente. Entretanto, para

surpresa de ambos, Edmilson chamou os dois ao mesmo tempo.

Já sentados de frente para Edmilson, Eliane começou a contar sua história. Repetiu o

argumento apresentado a mim pouco antes sem, no entanto, entrar no mérito da data a ser

celebrada. Edmilson ouviu a tudo atentamente, exibindo uma expressão de seriedade que fazia

com que me recordasse de nosso primeiro encontro. O dirigente começou a fazer algumas

perguntas, com o claro intuito de conhecer um pouco mais sobre aquela jovem que estava ali

lhe solicitando o empréstimo de uma fantasia.

Depois de explicar que não se tratava de um procedimento comum o empréstimo de

fantasias, Edmilson explicou a Eliane que significava uma grande responsabilidade vestir-se

com as cores do Ilê Aiyê. Que aquela não era uma mera fantasia, mas a representação física

de todo o universo simbólico do bloco. Presenciando toda a conversa, pensei no que Eliane

havia me dito minutos antes. Eis que Edmilson interrompeu o diálogo com a jovem e me

perguntou: “O que você acha? Devo emprestar?”

Parecia ser a noite das questões de difícil resposta. O que dizer? Olhava para Eliane e

me lembrava de suas posições. Bastava dizer a Edmilson a metade das coisas que ouvira para

que o pedido fosse negado. Ao mesmo tempo, sentia-me mal diante de tal possibilidade. Optei

por silenciar tal questionamento, respondendo simplesmente: “Empreste”. Analisando toda a

55 Ativista e intelectual negra norte-americana, Gloria Jean Watkins adotou o pseudônimo “bell hooks”, grafado

sempre em letra minúscula por opção da própria autora, opção respeitada neste texto.

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situação, creio que Edmilson já havia tomado sua decisão e que minha resposta pouco

importaria.

Com o empréstimo acertado, Edmilson recomendou que Eliane fosse ao andar superior

procurar Jaci, que lhe entregaria o traje. Em seguida deveria retornar a sua sala. Enquanto a

jovem deixou o recinto com um largo sorriso no rosto, com passos apressados rumo à

escadaria, Edmilson me lançou um olhar de cumplicidade e exclamou: “Cada uma que me

aparece”.

Começamos finalmente a conversar. Recebi uma cópia da apostila produzida para

apresentar o tema do carnaval de 2015: "Diáspora Africana – Jamaica - Afrodescendentes".

Um calhamaço repleto de informações que iam de referências geográficas a perfis de vultos

históricos. Dando seguimento a conversa, Edmilson informou que teria pouco mais de

quarenta minutos disponíveis. Parecia ser insuficiente, mas já seria um bom começo.

Perguntado sobre como andava o contato com o Malê Debalê e com o Olodum, respondi que

estava tentando encontrar Eduardo, do Malê, e que esperava por uma resposta de Mara Felipe,

da Escola Olodum. Edmilson parou por alguns segundos para pensar nos dois nomes que

mencionei. Abriu sua agenda telefônica, folheou-a e sacou seu aparelho celular. “Vamos

resolver sua situação”. Em questão de minutos Edmilson estava em contato com Mara Felipe.

Em uma rápida conversa, Edmilson informou sobre minha demanda, apresentou

minhas referências acadêmicas e, mais importante, colocou-me como um colaborador do Ilê

Aiyê. Ficou acertado que eu poderia me dirigir até a Escola Olodum na tarde seguinte e que

deveria procurar por Antônio, o mesmo que me recebeu da primeira vez. Por conflito de

agenda, Mara Felipe não estaria na instituição. Fui informado ainda que teria uma série de

materiais relativos à Escola a minha espera. Com um simples telefonema Edmilson obteve a

resposta pela qual eu aguardava há mais de uma semana.

Extremamente agradecido, propus iniciarmos nossa entrevista. Mas eis que retornou

Eliane, já com a fantasia em mãos. Edmilson pediu um minuto para que pudesse conferir toda

a roupa e emitir um recibo, a ser assinado pela jovem. Ficou acordado que ela deveria

devolver a fantasia até dois dias após a realização da tal celebração.

Quando Eliane finalmente se despediu, deixando a sala, faltavam pouco mais de cinco

minutos para o término do horário estipulado por Edmilson. Ciente de que o tempo seria

insuficiente, preferi acordar um novo momento para a entrevista. Fui convidado a participar

do ensaio do bloco em um dos finais de semana subsequentes, bem como tomar parte na 20ª

Caminhada da Liberdade, a ser realizada no Dia da Consciência Negra, tendo como ponto de

partida a Senzala do Barro Preto e como ponto de chegada o Pelourinho. Neste ano a

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caminhada homenagearia Mário Gusmão56

. O mesmo Mário Gusmão que nomeava o edifício

anexo da Escola Criativa Olodum, que encontrei em estado de abandono ao caminhar pelo

Pelourinho.

Despedi-me de Edmilson e desci as escadas do prédio, ouvindo o barulho da chuva

que desabava sobre a capital baiana. Na portaria reencontrei Eliane. Sem contar com a

proteção de uma sombrinha, a jovem esperava por uma improvável trégua do aguaceiro.

Ofereci carona em meu pequeno guarda-chuva e juntos subimos a Ladeira do Curuzu.

Enquanto subíamos, a ansiosa jovem declarou toda a felicidade que sentia por ter

obtido sucesso em sua empreitada. Vestir-se-ia com as cores do Ilê Aiyê. Mostrava-se,

também, surpresa com a cordial recepção de Edmilson. Comentei que o Ilê Aiyê recebia

muito bem aqueles que a sua porta batem. Que comigo havia sido parecido. Após a primeira

conversa com Edmilson, passei a me sentir acolhido. Eliane, que não cansava de me

surpreender com seus comentários e questões, indagou: “Você também foi recebido assim?

Com essa cara de bobo?”. Ao oferecer-lhe abrigo no pequeno guarda-chuva, sujeitei-me a

molhar parte do meu corpo para que a fantasia restasse seca. Recebi como agradecimento sua

incômoda sinceridade.

Já no ponto do ônibus, Eliane embarcou rumo a Estação Pirajá, levando consigo a

fantasia seca e um sorriso. Embarquei rumo a Barra, levando comigo a cara de bobo e a alma

encharcada de questionamentos.

2.3.2.VISITA AO OLODUM

VOU SUBIR A LADEIRA DO PELÔ

Amanheceu em Salvador. O asfalto molhado denunciava a chuva que insistentemente

caiu sobre a cidade durante toda a madrugada. A neblina fazia de Itaparica um leve vulto no

horizonte. Pelas ruas, a melancolia climática era acompanhada pela desesperança de

torcedores rubro-negros e tricolores, rivais unidos pelo fracasso no campeonato nacional de

56 Nascido do ventre do Recôncavo, na cidade de Cachoeira, Mário Gusmão foi o primeiro negro formado na

Faculdade de Teatro da UFBA. Respeitado como ativista negro e ator, Gusmão apoiou a formação de vários

blocos afro de Salvador. Residiu no bairro da Liberdade até seu falecimento, em 1996. Segundo Gusmão, citado

por Risério: “O Ilê foi, simplesmente, o bloco que teve a coragem de botar no meio da rua aquilo que antes só

acontecia na cozinha”. (RISÉRIO, 1981, p. 18)

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futebol. Assunto para rodas amigos, conversas em balcões de padaria, provocações um pouco

desconcertadas. Dia de retornar ao Pelourinho57

.

Antes de partir para o Centro Histórico, recebi uma mensagem de Eunice, agendando

uma entrevista com Edvaldo “Tita” Lopes, importante figura do Olodum, para aquela

tarde, justamente no horário em que me reuniria com Antônio. Satisfeito com

agendamento, precisava encontrar uma forma de equilibrar os compromissos.

Concordava com Machado de Assis que certa vez afirmou ser o acaso um Deus e um

Diabo ao mesmo tempo.

Sem conseguir falar com Eunice e Antônio, e temendo que uma mensagem eletrônica

não fosse lida ou respondida a tempo, optei por me dirigir a Escola Olodum pouco antes do

horário combinado. Hora de conhecer mais sobre a instituição e sobre o próprio Antônio.

Eu comecei aqui como voluntário através de pessoas conhecidas minhas que

trabalhavam aqui. Eu era instrutor de informática aqui da Escola Olodum. Eu vim

fazer um teste pra ser voluntário. Na minha segunda aula nosso presidente João

Jorge estava presente e eu não conhecia nem quem era. Dei minha aula e passei aula

pros meninos, sem saber quem era João Jorge. De repente ele saiu no final e disse

“parabéns, gostei do seu trabalho”. Daí em diante a gente começou a trabalhar. Fiquei como voluntário por seis meses. Gostaram do meu trabalho e eu passei a ser

contratado pra trabalhar nos projetos daqui da escola. Fiz um curso para

compositores no qual eles possam ter acesso a informática e isso foi maravilhoso.

Chegar assim na sala, encontrar 21 pessoas, pessoas já com uma idade acima dos 40

anos e que tem aula de informática, me senti realizado. Quando eles saíram daqui,

saíram todos satisfeitos por terem adquirido conhecimento da informática. Foi uma

das atividades mais gratificantes. Aí fui crescendo, trabalhando com a informática.

Em 2004, Mara chegou com nova coordenação e nessa época era época de Simone

Magalhães, que era coordenadora da escola. Em 2004 pra 2005, Mara Felipe e

Cristina, que são nossas coordenadoras administrativa e pedagógica, me disseram:

“A partir de agora você passa a ser o secretario escolar da escola”. Fui em frente, trabalhando na parte da secretaria. Depois passei a coordenar também as aulas de

informática com os meninos, monitores que trabalhavam com a gente. Então

coordenava as aulas e trabalhava na secretaria. Mais a frente passei a trabalhar na

produção e hoje eu estou na produção da escola Olodum. (Antônio, novembro de

2014)

A entrevista com Antônio foi bastante proveitosa. Ciente de toda a organização que

envolve a Escola Olodum, forneceu importantes dados sobre a instituição. Em um breve

panorama, explicou o funcionamento da escola:

Antes a Escola Olodum era uma escola formal. Depois que ela passou a ser uma

escola cultural. Essa mudança foi desde 1984, com projeto Rufar dos Tambores. Até

essa época era escola formal. Depois passou a ser escola cultural junto com oficinas,

teatro, dança. Hoje ela tem a faixa de 330, 340 alunos. No inicio a escola atendia só

aqui o Maciel-Pelourinho, mas agora já tem aquela questão de não atender só ao

57 QR Code: Salvador Não Inerte/Ladeira do Pelô – Olodum. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=qYyeI4qbcD4

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Maciel-Pelourinho, porque a demanda era grande. Hoje atende toda a Salvador e

região metropolitana. A criança só tem que estar estudando, tem que estar tirando

boas notas na escola e tem que ser de escola pública. (Antônio de Jesus, entrevista

realizada em novembro de 2014)

Antônio falou também sobre os cursos oferecidos e seus propósitos:

O curso da percussão foi a primeira atividade da Escola Olodum. Foi desde o início

quando começou em 1984, com o projeto Rufar dos Tambores. O objetivo era proporcionar ao participante conhecimento e torná-lo um músico. Ser um

profissional da área. Depois veio o curso de dança afro. A gente trabalha a questão

do desenvolvimento, a desenvoltura, a coordenação motora, tudo na dança afro

também. Todos os cursos são para crianças e jovens de sete a dezessete anos. Temos

aqui o curso de empreendedorismo cultural, que é um curso mais voltado para

jovens, porque é direcionado ao mercado de trabalho. Ele tem a produção cultural e

a técnica. Tudo isso voltado para o profissionalismo. Tem o curso de informática

cultural, que é a integração da musica com a tecnologia. Por isso colocamos o nome

de informática cultural. A gente tentou adequar a informática com a percussão.

Como isso funciona? Fazendo a musica através de informática. A gente também faz

as oficinas extras, o curso de produção e leitura de jornais, revistas, de textos. Isso é

realizado nas próprias oficinas. A gente também promove seminários. A cada ano tem dois seminários, como “Revolta dos Búzios”, “Você sabe a cor de Deus?”,

“Ciência e Tecnologia”, “Revolta dos Malês”. Para que as pessoas possam ter um

conhecimento, já que nas escolas não são aplicados esse tipo de conteúdo. (Antônio

de Jesus, entrevista realizada em novembro de 2014)

Antônio sintetizaria a função da Escola Olodum ao falar a respeito do curso de

formação de lideranças.

O curso de formação de lideranças tem a obrigação de colocar as pessoas, no caso,

de ter um direcionamento com ele. Ele não veio pra aqui só tocar um tambor. Não

veio só dançar, porque viu o colega dançando, achou bonito. Não. Eles vêm ter um

direcionamento, um posicionamento. Ele não vem ser só um batedor de tambor. Ele

vem ser um cidadão. A gente trabalha com a equipe de psicodramistas aqui na

escola, que são professores pedagogos, psicólogos, que trabalham com toda essa

equipe e formam esses jovens em cidadãos. É obrigatório todos os alunos que fazem essas oficinas, seja ela de percussão, de dança, de canto, de coral, de produção

cultural, participar das aulas de formação de lideranças. (Antônio de Jesus,

entrevista realizada em novembro de 2014)

Ao final da conversa, Antônio me entregou o material separado por Mara Felipe e

prometido a mim pelo telefone, no dia anterior. Dentre folhetos, cartazes e livretos, estava

uma apostila que me chamou a atenção em especial. Denominada “Tambook – Partituras da

percussão Escola Olodum/Drumbook – Drum sheet music by Escola Olodum”, o material

bilíngue apresentava uma série de partituras com canções do bloco, sendo utilizado nas aulas

de percussão oferecidas pela Escola.

Em meio aquele emaranhando de semínimas e colcheias, lembrei-me da entrevista

realizada com Gilmário Marques, na qual o percussionista da Banda Olodum informou que

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seu aprendizado musical, nos primeiros anos do bloco, fora baseado na repetição dos

movimentos do regente, dispensando o uso de partituras. Aquela apostila era o sinal concreto

de que o aprendizado na Escola Olodum era dinâmico, adaptando-se as demandas de seus

alunos do presente e quiçá do futuro.

Trecho retirado de “Tambook – Partituras da percussão Escola Olodum/Drumbook – Drum sheet

music by Escola Olodum”:

“(...) O ofício do músico é exatamente assim. Prática e teoria devem caminhar lado a lado e

ao mesmo tempo e a ambas devemos dedicar o nosso tempo de estudo.

É claro que existem excelentes músicos que não conhecem absolutamente nada de teoria

musical. Fazem tudo e de primeira com base em um ouvido privilegiado (alguns possuem ouvido

absoluto). Armandinho com a sua guitarra baiana é exatamente assim. Por ter um ouvido

privilegiado, ele costuma afirmar: ‘eu não sou um filho da pauta’ (referindo-se ao fato de não ler

partitura).

Igualmente existem excelentes músicos eruditos, que demonstram muita dificuldade em

identificar uma cadência harmônica de ouvido e precisam sempre se socorrer da teoria musical e da

pauta (partitura) em que está transcrita aquela obra para bem executá-la.

No campo percussivo, o saudoso mestre Neguinho do Samba e Carlinhos Brown, são dois

grandes exemplos de empreendedorismo e da inovação musical. O que fizeram e faz, é sempre com

base na intuição, no ouvido privilegiado. Porém, Armandinho, Brown e Neguinho do Samba são

exemplos de músicos que nascem um a cada cem anos.

O mundo se globalizou, as sociedades se transformaram e o ensino da música percussiva

igualmente se transformou. O universo musical contemporâneo exige cada vez mais a existência de

músicos que tenham ao mesmo tempo um bom ouvido e um ótimo conhecimento de teoria

musical”. (SILVA e FELIPE, 2012, p. 7-8)

Terminada a conversa, despedi-me de Antônio e sai em disparada rumo à Casa do

Olodum. Torcia para que Tita Lopes, que já estaria a minha espera há pelo menos meia hora,

permanecesse na sede.

Chegando ao casarão, encontrei Eunice que logo me encaminhou para o auditório

Nelson Mandela, já tão familiar. Neste estava Tita Lopes, sentado a mesa com um grupo de

estudantes de uma universidade de Salvador. Eunice recomendou que me juntasse à conversa,

para aproveitar algumas das falas de Tita.

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Sem querer interromper ou atrapalhar o andamento da conversa que ali se dava, sentei-

me a cabeceira da mesa, que estava vazia, e me mantive em silêncio. Na cabeceira oposta

estava Tita. Nas cadeiras laterais, seis alunos, dispostos em dois grupos de três.

Logo percebi que o mote da conversa era o Dia da Consciência Negra. À exemplo do

que acontecia no Ilê Aiyê, o Olodum também ganhava em procura de estudantes e imprensa

durante o mês de novembro.

Apesar de todo o entusiasmo e atenção de Tita ao responder a cada uma das questões

apresentadas, não percebi nos jovens a mesma comoção. Um deles não desgrudava os olhos

do aparelho de telefone celular. Outro rabiscava uma folha de papel que deve ter sido

providenciada para fins de anotação. Continha apenas desenhos abstratos. Somente os jovens

mais próximos a Tita mantinham o diálogo, muitas vezes conduzido por questões repetitivas.

Talvez mais um indício da falta de atenção dos estudantes ou da pouca noção de técnicas de

entrevista. Meia hora se passou até que os alunos se dessem por satisfeitos.

Sozinhos no grande salão, sentei-me mais próximo a Tita, expliquei-lhe o propósito da

entrevista e pedi desculpas pelo meu atraso. Antônio, que havia acabado de entrevistar na

Escola Olodum, apareceu no salão demonstrando certo ar de surpresa ao me ver.

Cumprimentou Tita e comentou brevemente: “Agora é a sua vez!” Expliquei que havia

entrevistado o dirigente naquela mesma tarde, ressaltando o quão valiosa foi sua contribuição.

Antônio retribuiu minhas palavras com um sorriso e nos deixou. Tita começou, então, a

entrevista contando um pouco de sua rica trajetória:

Eu tinha ideias de mudança do que vivíamos através de músicas que ouvia. Michael

Jackson com os Jackson Five. Nós víamos aquela capa do disco com negros. James

Brown... Eu dançava James Brown. Jackson 5 era eu, minha irmã e meu irmão,

dançando. A gente morava ali no Canela, que era o centro basicamente do pessoal

que vinha dos Estados Unidos pra trabalhar na Petrobrás. O turista em si, também,

quando vinha se hospedava no hotel Plaza, que hoje é até uma empresa. Nós

morávamos naquela baixada que dava no fundo do Plaza. Da janela eles viam o

morro, casebres onde a gente morava e eles desciam pra se aproximar. A gente teve muita possibilidade de conhecer essas coisas. Calça Lee americana. Pra gente era um

luxo. Era calça do trabalhador americano. Eles doavam muita coisa pra gente,

quando eles chegavam. Eu me lembro como hoje, eu estudava numa escola chamada

Instituto Sete de Setembro. Era como se fossem os Maristas. Era uma escola

elitizada, caríssima. As pessoas que moravam lá no bairro tinham direito de

matricular uma pessoa do bairro nessa escola. Nela estudavam só os filhos do

proprietário da avenida, ele invadiu, juntou com a política, construiu um monte de

casas e virou dono da avenida. Os filhos dele estudavam lá. Ele trabalhava no IBGE.

Seu Domingos, não esqueço dele. Foi quando sofri minha primeira discriminação.

Numa festa de São João da escola, a professora resolveu fazer brincadeira na sala e

eu estudava na mesma sala dos filhos do proprietário. Na brincadeira tinha cabra-cega, não sei o quê. A professora pediu um lenço. O filho do proprietário deu. Ela

colocou numa folha o nome das crianças, pra ver quem ia ser cabra-cega. Caiu meu

nome. Quando ela veio botar o lenço em mim, ele correu e tomou, pra não sujar todo

de tinta preta. Isso marcou. Marcou muito. Ali foi um choque pra mim e eu não

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tinha a quem recorrer. Uns 6, 7 anos. Nessa faixa. Como eu era muito ativo, via

tudo, participava de tudo da escola, aquilo me deixou uma marca. Graças a Deus que

eu superei, porque a partir dali eu poderia não gostar de ver ninguém de cor

diferente da minha. Isso me trouxe algumas situações. Despertou em mim a coisa de

não baixar a cabeça. Daí comecei participando do Ilê. Eu não sai do Ilê e vim pro

Olodum. Eu sai do Ilê. Vim pro Olodum trazido por Kátia Melo, que era a esposa de

João Jorge. Nós trabalhávamos juntos na USIBA. Teve um festival de musica e

poesia lá. Eu escrevi algumas coisas e fui agraciado pelo trabalho. A Kátia já fazia

parte daqui, foi fundadora da escola Rufar dos Tambores, e me convidou para

participar do Festival de Zumbi, 20 de novembro. Escrevi uma música e ficou em

segundo lugar no festival. Vim defender essa música. Além de escrever ainda vim cantar. Aí me deu um ânimo. O trabalho era outro. Era não tão aberto, mas que dava

facilidade pra algumas coisas. Eu participei do curso de teatro com o saudoso Mario

Gusmão. Foi com ele que eu desenvolvi a minha parte artística de dança e tudo mais

nesse processo do teatro do Olodum. Aí foi que eu senti que eu poderia fazer um

pouco mais. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

Ex-integrante do Ilê Aiyê e participante do Olodum desde seus primeiros anos, Tita

apresentou um panorama interessante do bloco, diferente do exibido por Gilmário e Lazinho,

sobretudo por estabelecer conexões entre os blocos e entre estes e o poder público, deixando

transparecer pontos de consenso e de disputa que enriqueceram minha perspectiva do todo.

Inclusive, foi através de Tita que descobri que o Olodum não faria parte, juntamente com

outras entidades negras, da Caminhada da Liberdade, no dia 20 de novembro.

Dono de uma retórica extremamente envolvente, o entrevistado falou por mais de duas

horas, sem ressalvas a nenhum tema. Quando demos por nós, já era noite na Cidade da Bahia.

A tarde esvaiu-se nas palavras de Tita.

2.3.3.VISITA AO MALÊ DEBALÊ

É NO MALÊ DEBALÊ QUE EU VOU ME EMBALAR

A semana chegava ao fim quando finalmente consegui contato com Eduardo, que me

convidou para ir até a sede do Malê Debalê no sábado, para participar do seminário

sobre o tema do carnaval 2015. Estariam presentes integrantes, dirigentes e

compositores convidados. Sem dúvida uma grande oportunidade. Tão logo o sábado

chegou, segui para Itapuã58

.

Cheguei ao Abaeté e a sede do Malê Debalê já estava aberta. Encaminhei-me para a

portaria e sem maior cerimônia fui convidado a entrar. Duas dezenas de cadeiras de plástico

58 QR Code: “Malê Debalê” – Malê Debalê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=myoPRdb74UY

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formavam uma plateia. De fronte a esta, uma grande mesa com três lugares. O cenário já

estava pronto, faltando apenas os personagens.

A porta da secretaria se abriu e de lá saiu Eduardo que ao me avistar, através de um

sorriso, mostrou-se satisfeito com minha presença. Tratou logo de me apresentar a todos que

lá já estavam presentes, como Josélio Araújo, fundador do bloco e seu presidente de honra,

Miguel Arcanjo, também fundador, e Claudio Araújo, atual presidente. Apresentou-me

também a Jany Salles, bailarina, coordenadora das alas de dança do bloco e do Malezinho, a

face infantil do Malê Debalê.

Não tardou para que o público aumentasse e tivesse início o seminário. Sentei-me em

uma das cadeiras e acompanhei o desenrolar da sessão. Eduardo, por sua vez, tomou lugar à

mesa, juntamente com Claudio e Miguel Arcanjo.

Após alguns agradecimentos e informes da diretoria, a palavra foi passada a Eduardo,

que conduziu os trabalhos apresentando o tema para 2015: “Kirimurê – O Malê reconta o

Recôncavo”59

. Uma pequena apostila foi entregue a cada um dos presentes, com uma

contextualização histórica e cultural da região do Recôncavo. Material bem mais modesto

quando comparado ao produzido pelo Ilê Aiyê, mas que parecia ser suficiente para o

propósito ao qual se destinava. Eduardo já havia me alertado para tal diferença:

O que a gente produz são esses materiais específicos com o tema, porque aí o tema

vem o histórico do Malê, porque só muda o tema. A história vai modificando o

tema. Mas o do Ilê é mais rico de informações do que o nosso. Eu vi um tema do

Olodum que eram 110 páginas. Quer dizer o cara só tirou do Google e mandou o

cara ler pra fazer a música. A gente enxuga muito mais, então o que é comum

mesmo é a história do Malê e essa parte do tema. Aí o tema, inclusive eu que

escrevo, a gente sugere algumas coisas para os compositores, mas a gente enxuga o

máximo. A gente faz o seminário todo ano, pra explicar o tema e coisa e tal.

(Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

O intuito, explica Eduardo, é que o carnaval do Malê Debalê explore todas as

expressões afro-brasileiras da região, dentre as quais são citadas nominalmente o samba de

roda e a religiosidade da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira. Passada a apresentação,

abriu-se um debate em que compositores e diretores de ala se manifestaram, fosse buscando

respostas para alguma dúvida, fosse propondo de antemão algumas medidas para a

organização do carnaval.

Depois de cerca de uma hora, chegou ao fim a reunião. Aos compositores ficou o

convite para que estes criassem canções e submetessem a disputa no bloco, em data ainda a

59Kirimurê era a denominação dada pelos tupinambás a hoje Baía de Todos os Santos.

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ser informada. Aos demais, a certeza de muito trabalho, sobretudo pelo pouco tempo até o

carnaval.

Comecei a circular entre os presentes. Reencontrei Eduardo, que me apresentou ao

artista plástico Ygas Eloy, colaborador de longa data do bloco, tendo sido o responsável pela

criação de sua logo. Aproveitei para perguntar sobre as ideias por trás da concepção do

símbolo que sempre despertou minha curiosidade. Uma estrela de seis pontas, com a efígie de

uma negra ao centro e imagens de búzios e peixes, colocadas alternadamente em cada uma

das pontas. Ao fundo uma lua crescente, nas cores verde e branca. Enquanto os búzios me

remetiam a uma religiosidade de matriz africana, os peixes me remetiam a própria Itapuã,

tradicionalmente uma comunidade pesqueira. A lua crescente, bem como as cores verde e

branca, parecia referenciar o Islamismo, resgatando assim a religiosidade dos negros malês.

Eduardo já havia dado algumas pistas sobre sua origem, em entrevista:

Não sei a época, eu sei quem fez a primeira representação. Ygas Eloy. Tá vivo hoje

ainda. Ele tomou os símbolos de Itapuã. A lua é de Itapuã. Meia lua, que é um

símbolo muito ligado ao mar. Tem a questão da negra, que representa as mulheres

negras. A estrela de Salomão sinceramente eu nunca entendi o porquê. É um

símbolo judaico, né? Não é islâmico. Não sei se eles tentaram associar uma coisa a

outra. Sinceramente não sei. Mas você tem alguns elementos ali que sugerem

realmente muito mais uma identidade de Itapuã do que algo mais ligado a questão de

religiosidade, porque dentro do Malê as pessoas não são muçulmanas, não são

islâmicas. Muito pelo contrário. (Eduardo Santana, abril de 2014)

Entretanto, foi através do próprio Ygas, autor do desenho, que pude finalmente

compreender seu propósito. Minha percepção sobre búzios e peixes estava correta. A negra

representaria a mulher negra de maneira geral, e a tradicional figura das lavadeiras do Abaeté,

de forma indireta. No entanto, a Lua crescente, bem como as cores nela empregadas, nenhuma

relação guardavam com o Islamismo. Foram acrescentados ao desenho apenas com propósito

estético. Mesmo a escolha das cores teria sido mais obra do acaso do que uma representação

intencional. Percebi como, por vezes, na ânsia de revelar verdades o pesquisador acaba por

construir uma verdade que pouco tem haver com a verdade de seu sujeito de pesquisa. Onde

eu percebia representações da religião muçulmana, representados estavam, apenas, a

inspiração e o senso estético do artista.

O sedutor aroma do feijão que era comercializado na cantina da sede foi mais atraente

para Ygas do que minha conversa. E lá se foi o artista, juntar-se aos que degustavam o prato.

O clima era de reunião entre amigos. Ouvi Josélio recomendar aos compositores que

tentassem criar uma canção que fosse, ao mesmo tempo, eficiente como canção-tema do

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carnaval, mas que, se possível, pudesse também ser tocada nas rádios. O presidente de honra

afirmava ser importante para o bloco contar com essa exposição midiática.

Sentia-me deslocado, quando reencontrei Jany, que já estava de saída. Conversamos

rapidamente e acertamos para o dia seguinte, logo cedo, uma entrevista. Tentei ver com

Josélio, Miguel e Claudio a possibilidade de realizarmos uma entrevista ainda naquela tarde,

mas o clima de descontração fez minha proposta soar quase como uma ofensa. A preferência

de todos foi por adiar para o próximo final de semana, quando seria realizado o primeiro

ensaio do bloco.

Já era domingo e o Sol finalmente voltava a dominar o firmamento em Kirimurê, linda

varanda de águas salgadas mansas que tingia de um azul impressionante o horizonte. Teria um

dia cheio pela frente, com visita ao Malê Debalê pela manhã e ensaio do Olodum, no começo

da tarde. Era preciso correr.

Itapuã parecia mais viva naquela manhã. A trégua nos dias chuvosos havia trazido de

volta as areias de Salvador o já saudoso banhista. Barracas e ambulantes disputavam o mesmo

nicho de mercado, enquanto automóveis com potentes equipamentos de som disputavam a

atenção do público.

De cada novo ônibus que por ali estacionava, desembarcava um grande contingente de

pessoas oriundas de bairros periféricos como Cajazeiras e Nova Brasília, e que precisavam

realizar um grande deslocamento para se encontrar com o reino de Iemanjá.

Já na sede do bloco, encontrei Jany Salles coordenando um ensaio onde seis garotas do

Malezinho aprendiam novos passos de dança. Qualquer erro era logo corrigido pela atenta

professora, que não deixava escapar um detalhe sequer.

Depois de presenciar seis repetições da mesma coreografia, observei Jany recomendar

as jovens alunas mais dedicação e empenho, bem como ressaltar a necessidade de prática em

momentos outros que não só os da aula.

Jany se despediu das alunas. Apesar da rigidez apresentada, parecia contar com grande

carinho da parte das crianças que, uma a uma, vinham se despedir da mestra com um beijo,

por vezes acompanhando de caloroso abraço.

Coordenadora das alas de dança do bloco, bem como do Malezinho, Jany concedeu

uma entrevista bastante interessante, ressaltando a importância da dança em sua vida e a

forma como esta expressão artística é trabalhada no Malê Debalê.

Minha história no Malê iniciou em 1997. Eu estava num espaço que tava tocando

uma banda de samba. Sou apaixonada por samba, pelo partido alto, e lá estava eu

sambando, sorrindo. Tinham pessoas de parte me observando, só que eu não percebi.

Quando a banda deu intervalo, essa pessoa veio até mim. “Oi, tudo bom? Eu sou

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coordenador de alas de dança do Malê, meu nome é Jajau, gostei muito de ver você

dançar, gostaria de te fazer um convite pra você fazer parte da minha ala. Você

topa?” Como era menor, respondi assim: “bom, eu aceito, mas primeiro tem que ir lá

em casa falar com minha mãe. Se minha mãe autorizar eu vou fazer parte da sua ala

de dança”. Isso aconteceu. Ele foi lá em casa, conversar com minha mãe. Isso foi em

1997. Estou até os dias de hoje com o Malê Debalê, só que cada vez com os laços

mais estreitos. Fiquei desfilando na ala de Jajau. Depois ele teve que se afastar e

deixou a ala responsável pra duas meninas: Gisele e Alaíde. As duas ficaram

responsáveis pelas alas. Eu continuei no mesmo lugar. Depois as duas também se

separaram, ai eu fiquei com Gisele. Só que com Gisele era só carnaval. Eu não fazia

outros trabalhos com Gisele. Tinha outros coordenadores dentro do Malê que faziam eventos durante o ano, como Givanildo. Givanildo me convidava pra poder fazer

apresentações com ele, porque ele via meu trabalho e eu tinha facilidade de pegar o

movimento. Passei a fazer parte da ala de Givanildo, que não era só carnaval. Era

carnaval e durante o ano também tinha as apresentações. Sou bailarina destaque do

Malê Debalê. Só que além desse trabalho de destaque, que eu faço no carnaval, eu

também sou coordenadora do Malezinho também faço trabalho de receptivo nas

viagens do bloco, também sou convidada a participar das viagens pra fazer os

trabalhos. (Jany, entrevista realizada em novembro de 2014)

Descoberta pelo então coordenador das alas de dança do Malê Debalê, no ano 1997,

Jany foi se aprimorando, ganhando protagonismo em meio ao grupo, até tornar-se destaque do

bloco. Em 2006, foi convidada pela direção para ser a coordenadora do Malezinho, posto em

que segue desde então.

“A dança no Malê é o que melhor representa a essência do que é o Malê Debalê. Ela

termina simbolizando todo um arsenal cultural, religioso e artístico que o Malê Debalê traz,

também, em outras formas.” (Eduardo Santana. Que bloco é esse? – Malê Debalê)60

Jany explicou que o Malê contava com quinze alas de dança, todas sob coordenação

geral dela e com o apoio de coordenadores específicos para cada ala. Revelou ainda que havia

uma disputa entre as alas para saber qual destas seria a mais bonita na avenida, o que fazia

com o que o nível de todo o bloco fosse bastante elevado. Chamou a atenção, também, para o

reconhecimento internacional obtido pelas alas de dança, através de uma reportagem do jornal

norte-americano New York Times, que teria conferido ao Malê Debalê o título simbólico de

“maior balé afro do mundo”61

.

O segundo ponto ressaltado por Jany, com paixão maior do que a declarada pela

própria dança, foi o já citado Malezinho, fração infantil do bloco que desfila pelas ruas de

60YouTube. Que bloco é esse? – Malê Debalê. Vídeo (0min05s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=WTgV6yZkLyw. Acesso em 10 de julho 2015. 61 A referência à reportagem do New York Times e, consequentemente, ao título de “maior balé afro do mundo”

é uma constante quando se procura por informações a respeito do Malê Debalê. Entretanto, diametralmente

oposta é a precisão sobre tal reportagem ou título. Buscas nos arquivos do periódico norte-americano foram

incapazes de localizar a referida reportagem. Tampouco foi possível precisar a data de sua realização através de

outras referências, com esta variando entre os anos de 1996, 2000 e 2002.

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Itapuã no domingo de carnaval. Através do projeto, Jany mobiliza as crianças no sentido de

uma valorização de si mesmas, elevação da autoestima, construção, desconstrução e

reconstrução de imagens e estereótipos. Experiência para tal empreitada Jany retira da própria

vida, ao contar que ela mesma se viu transformada ao começar a fazer parte do Malê Debalê.

“O Malê, como é que eu posso dizer? Me resgatou também. Eu me sentia oprimida, triste.

Não tinha nada de interessante pra fazer. Ficava dentro de casa o tempo todo. Eu não me achava

muito bonitinha não. Isso que eu aprendi eu vou passando pras minhas alunas. Se olhe no espelho.

Se aceite do jeito que você é linda. Se alguém disser que você é feia você diga 'não, você tá

enganado, eu sou linda'.” (Jany Salles. Que bloco é esse? – Malê Debalê)62

Terminada a conversa, percebi que a sede já estava praticamente vazia. Como não era

dia de ensaio, o bloco abriu suas portas apenas para a aula que já havia se encerrado há

tempos. Agradeci a Jany pela entrevista e deixei o Malê Debalê. O destino agora era o

Pelourinho, onde a partir das 14h00min teria início o ensaio do Olodum.

Atravessar Salvador em pleno domingo, dependendo do transporte coletivo, pode ser

encarado como um desafio e tanto. O Pelourinho nunca pareceu tão longe. O trajeto que

percorria toda a orla e adentrava pelo Centro Histórico, realizado costumeiramente em cerca

de uma hora, foi feito em duas horas e meia.

Finalmente na Sé, encontrei um Pelourinho tão animado como Itapuã. A diferença era

o perfil das pessoas que circulavam nas duas áreas. Enquanto era possível encontrar o

soteropolitano nas praias do litoral norte, no Pelourinho o predomínio era de turistas. Grandes

grupos que circulavam pelas estreitas ladeiras, conduzidos por guias muitas vezes se

comunicando em outros idiomas que não o português.

2.3.4.ENSAIO DO OLODUM

DOMINGO TEM OLODUM NO PELÔ

O Pelourinho de Jorge Amado estava em festa. Aquele domingo reservava eventos

musicais para os três largos que carregam nomes de seus personagens. Pedro Archanjo faria

ecoar o reggae e Quincas Berro D’Água o samba. Como uma síntese, Tereza Batista receberia

62YouTube. Que bloco é esse? – Malê Debalê. Vídeo (3min29s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=WTgV6yZkLyw. Acesso em 10 de julho 2015.

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o samba reggae do Olodum. Tradicionalmente o bloco divide suas apresentações regulares

entre os dias de domingo, quando acontecem os ensaios, e terças-feiras, quando acontece a

chamada “benção do Olodum”, apresentação que se segue após a benção concedida aos fiéis

pelas igrejas de São Francisco e Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no

Pelourinho.

“Alegria Geral”

(Composição de Alberto Pita)

Olodum tá hippie, Olodum tá pop, Olodum tá reggae, Olodum tá rock

O Olodum pirou de vez

E canta, canta Salvador, canta, canta

Canta meu amor, canta, canta Olodum do Pelô

Todos os domingos e terças-feiras

Tem samba de roda e capoeira

Domingo tem Olodum no Pelô Na terça tem a benção do Senhor

Pelourinho se transforma em carnaval Nesse momento a alegria é geral

No samba de roda eu toco agogô

Junto com Tom Zé, Capinan e Canô63

Adquiri o ingresso e resolvi esperar para entrar no espaço, que parecia ainda vazio.

Aproveitei para observar as obras de um dos inúmeros artistas que expõem seus trabalhos nas

calçadas do lugar.

O público foi chegando aos poucos, sem pressa. Como também parecia estar sem

pressa a banda, que já extrapolava o horário previsto para o início da apresentação. Meia hora

se passou até que os musicistas subissem ao palco. Dez percussionistas, trajados com

camisetas amarelas estampadas com a logo do bloco, posicionaram-se no meio da plataforma.

Avistei Gilmário entre eles. Na lateral direita um guitarrista se posicionou. Na esquerda foi a

presença de um baixista que se fez notar. Completando o grupo, quatro vocalistas, dispostos a

frente. Além de Lazinho, apresentar-se-iam também naquela tarde Narcisinho, Sátyra

Carvalho e Matheus Vidal. Reconheci os dois últimos do desfile carnavalesco do bloco que

pude acompanhar in loco, no ano de 2013. Narcisinho havia sido cantor da Banda Olodum em

tempos idos e agora retornava ao grupo, depois de um tempo afastado.

63 QR Code: “Alegria Geral” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=3B4ZhbnFMBM

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A apresentação teve início e, diferentemente do que havia presenciado no Festival de

Verão anos antes, desta vez o público se mostrou participativo e interessado. Os gringos se

afinavam na folia, como dizia uma antiga composição do bloco. A aglomeração de pessoas,

bem como o limitado espaço do largo, tornava restrita a movimentação dos presentes. Era

possível observar braços levantados que pendiam de um lado para o outro, vez por outra

dando lugar a aplausos entusiasmados.

Uma antiga canção do Olodum dizia que ao chegar do bloco os corpos não ficariam

mais inertes. E era exatamente o que presenciava. Lembrava-me da entrevista com Gilmário e

de seu relato sobre uma apresentação no Japão:

A gente já tocou no Japão, que é uma coisa assim... Eu nunca vi na minha vida. Por

onde a gente passava, de tocar em teatro e as pessoas ter que sentar, ver o show

sentadinho, e na terceira música do Olodum todo mundo levantar. E o contratante:

‘Não, pode não! Tem que abaixar! Tem que sentar!’ O show do Olodum é

contagiante. Você fazer milhares de japoneses levantar, dançar... A gente fazendo

show no Japão, o show acontecendo, e o cara não tava nem aí pro show. Aí o

pessoal explicou: ‘Ele tá sim, ele tá ouvindo, mas a cultura deles aqui é essa’.

Depois da terceira, quarta, quinta música, você vê todo mundo batendo... Inclusive o

cara. O som, a música, ela é universal. Ele passa várias barreiras. (Gilmário

Marques, entrevista realizada em abril de 2014)

Os cantores foram desfilando uma série de clássicos do repertório da banda, com os

vocais sendo constantemente alternados. Hora era aberto espaço para uma apresentação solo,

hora o canto era entoado em uníssono. A plateia seguia fazendo parte do espetáculo,

acompanhando cada uma das canções com um brado que ecoava por todo o largo. Mesmo

aqueles que pareciam desconhecer algumas das composições, procuravam recompensar com

alegria o trabalho desempenhado pelos artistas em cima do palco.

Eis que o grito de “Faraó” se apresentou. Para minha surpresa, sem provocar efeito de

proporção similar ao que havia presenciado anos antes. Apesar de repercutido e devidamente

respondido, grito e canção pareciam não ter um peso maior do que o restante do repertório

para a maior parte daqueles que ali estavam. Talvez a composição do público, em boa parte

formado por turistas, explicasse tal diferença de recepção. “Faraó” parecia possuir um

significado distinto para aqueles que vivem em Salvador, um significado construído

localmente, difícil de ser partilhado por pessoas estranhas aquele contexto.

Aos poucos fui percebendo que, a despeito de ser denominado ensaio, o que

presenciava ali era um show. Não havia erros a serem corrigidos, tampouco repetição

exaustiva de algum número em busca de aprimoramento. O que se observava era um

espetáculo totalmente organizado, de perfeita execução e total integração com o público.

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Cerca de duas horas após ter sido iniciada, a apresentação chegou ao fim. O público

aos poucos deixou o espaço, com corpos suados e sorriso nos lábios. Em mim restou a

sensação de que o tempo se acelerara e que as duas horas não foram mais que meros instantes.

Restava também a expectativa para o próximo ensaio, no domingo seguinte. Seria a vez do

Malê Debalê, em Itapuã.

2.3.5.ENSAIO DO MALÊ DEBALÊ

NO DOMINGO TEM ENSAIO DO MALÊ

Em abril de 2014, durante sua entrevista, Eduardo professou uma sentença que me

chamou a atenção:

Pra conhecer o Malê, você tem que ir no Malê. Essa é uma coisa já inicial. Você

pode ouvir, conhecer o Olodum, Ilê Aiyê por ouvir falar, por mídia, por canções, por uma série de outras situações que extrapolam o espaço físico desses blocos. Mas o

Malê é diferente. O Malê você precisa ir no Malê. (Eduardo Santana, entrevista

realizada em abril de 2014)

Seguindo seu conselho, cheguei bem cedo ao Abaeté naquele chuvoso domingo de

novembro. O objetivo era encontrar integrantes do bloco antes que o ensaio marcado para as

16h00min tivesse início e assim conseguir realizar algumas entrevistas.

A garoa que caía insistente não pareceu ser problema para o evento que se anunciava.

Claudio, presidente da agremiação, trabalhava nos preparativos do ensaio. Testava um letreiro

luminoso com o nome do bloco que teimava em não funcionar. Josélio, presidente de honra e

pai de Claudio, organizava a cantina, colocando caixas de cerveja na geladeira. O produto,

assim como alimentos e outras bebidas, era comercializado durante os ensaios, incrementando

a renda do bloco.

Sem querer atrapalhar, me fiz presente cumprimentando a todos. Comentei com

Claudio e Josélio sobre a possibilidade de conversarmos e de ambos recebi como resposta que

aquele não era um bom momento, mas que poderíamos conversar mais tarde. Josélio

informou ainda que receberia a visita de uma equipe de televisão, que gravaria com ele uma

reportagem alusiva ao Dia da Consciência Negra. Lembrei-me das palavras de Eduardo:

“Invisibilidade. Entidades que tem trabalho social o ano todo, trabalha na área de educação o

ano todo, mas que talvez no mês de novembro faça alguma matéria. Uma reportagenzinha.

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Mas saiu daí...” (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014). Procurei por um

local para me sentar e aguardar.

As horas foram passando e a chuva começou a ficar mais intensa, o que obrigou a uma

total mudança de planos. O ensaio, que aconteceria no palco fixo existente na sede, em cujo

público fica ao ar livre, foi transferido para a reduzida área coberta do pátio.

Passava das 14h00min e eram poucas as pessoas que circulavam pela sede. Nem sinal,

também, da equipe de reportagem televisiva. Quem apareceu foram os integrantes do grupo

“Samba e Sede”, que participaria do evento como convidado especial. É comum que os

ensaios de artistas de Salvador, sejam eles blocos ou não, contem com a presença de

convidados, em uma clara demonstração de parceria e ao mesmo tempo um incentivo a mais

para a presença do público.

Com a chegada dos sambistas, comecei a ver serem dispostos seus instrumentos. A

reduzida área tornou-se ainda menor. Uma mesa de som foi ligada e um a um os instrumentos

foram sendo microfonados. Entre testes e mais testes de áudio, um álbum do Malê Debalê era

reproduzido à exaustão.

Josélio veio me informar que a tal reportagem havia sido adiada em virtude do mau

tempo e perguntar se queria realizar logo nossa entrevista. Seguimos para a área aberta do

pátio, onde nos sentamos em cadeiras de plástico. As mesmas usadas no seminário da semana

anterior. Em meio à garoa, sem titubear lancei mão do gravador.

Josélio Araújo é um dos fundadores do Malê Debalê. Sua importância para a trajetória

do bloco é tamanha que hoje ocupa o cargo de presidente de honra. Sabedor de inúmeras

histórias, Josélio começou a relatar curiosas passagens, em uma fala envolvente. Entretanto, a

todo o momento sua atenção era desviada, direcionada as pessoas que chegavam a sede e,

mesmo de longe, faziam questão de lhe cumprimentar. Sentia que, à medida que cada

conhecido por ali aparecia, crescia em Josélio a vontade de terminar logo nossa conversa e

partir para a confraternização. Em virtude disso, a entrevista não se prolongou por muito

tempo, tendo eu agradecido o entrevistado pela disponibilidade cerca de meia hora depois de

termos iniciado. Voltei para meu lugar anterior, abrigado da chuva.

O céu nublado trouxe a sensação de que a noite chegara mais cedo, roubando do dia

parte de seus domínios. Perguntei a Miguel Arcanjo se poderíamos realizar nossa entrevista,

pois especulava que após ter início o ensaio seria impossível qualquer tentativa de conversa.

Miguel pediu que aguardasse mais alguns minutos, pois precisava resolver questões diretivas

de última hora. Aproveitou para me apresentar a César, mestre de percussão do Malê Debalê.

Interessado em ouvir o regente, solicitei uma entrevista, sendo prontamente atendido. Para

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meu alívio, abandonamos o pátio encharcado e seguimos para uma das salas de aula da Escola

Municipal que ali funciona. Sentados em carteiras escolares, demos início a nossa conversa.

César Veloso é o responsável pela musicalidade do bloco, sendo coordenador dos

músicos e também professor dos que ali são iniciados.

Eu to na entidade há 24 anos. Comece a vir no Malê com 14 anos de idade, a

contragosto dos meus pais. Meus pais eram de uma família de classe média e tinham

um pouco de preconceito racial. Bloco afro eles não queriam. Mas eu me apaixonei

pelo bloco. Eu vi o bloco ensaiando aqui mesmo, nas areias do Abaeté. Era bem

pequeno. Foi amor à primeira vista. Entrei na primeira formação da banda mirim.

Vim pro projeto social da banda mirim com 15 anos. Aí vim me profissionalizando,

querendo conhecer mais, me aprofundar nas coisas, ir na raiz mesmo. Entrei na

banda mirim tocando dobra, depois procurei me aprofundar no repique, parti pro

fundo. Isso foi em 1990. Em 1991 eu já estava tocando todos os instrumentos. Eu tive a oportunidade em 1996, na ausência de um regente, de ser relacionado como

mestre da banda mirim do Malezinho. No mesmo ano de 1996 me chamaram pra ser

o mestre da banda do Malê adulto. Passei pra banda adulta porque já tinha

conhecimento e de lá pra cá não parei mais. Sou o mestre desde 1996 da banda

adulta do Malê Debalê. Em 2010 eu tive uma pequena ausência, porque eu saí da

regência. Aí em 2011, com a nova administração, a nova diretoria, com a passagem

da administração de Josélio para Claudio, Claudio me solicitou, me chamou de novo

e to aqui até hoje. (César Veloso, entrevista realizada em novembro de 2014)

Orgulhoso de seu trabalho na agremiação, várias foram as oportunidades em que César

ressaltou o papel determinante que o Malê Debalê desempenhou em sua formação como

profissional e cidadão.

Com recente regresso de uma série de workshops na Alemanha, César aproveitou para

relatar outras de suas viagens para o exterior, a repercussão que a sonoridade do bloco afro

desperta em diferentes públicos, bem como experiência que acabou adquirindo ao longo dos

anos. Experiência que permitiu a César fazer emergir da percussão do Malê Debalê uma

assinatura própria, que a diferenciasse de todos os demais blocos. O regente informou que,

neste processo de dotação de característica própria, teria surgido no Malê Debalê um inédito

toque de tambores, nomeado de “Desmond Tutu”, em homenagem ao líder sul-africano.

Sobre sua atividade como professor de música do bloco, foi explicado que o

aprendizado é calcado na prática, mas amparado pela teoria, sendo a leitura de partituras uma

parte indispensável do método. Neste ponto transpareceu a preocupação do mestre com o

futuro de seus discípulos para além do universo do bloco afro. Segundo César, o trabalho por

ele desenvolvido no interior da agremiação visa a formação de músicos completos, sendo o

conhecimento de teoria indispensável neste propósito. O recente workshop em terras

germânicas serviu de exemplo de tal necessidade. Segundo César, sem dominar a teoria,

sequer teria sido convidado para ministrar a atividade. Neste ponto foi impossível não

estabelecer um paralelo com a mesma preocupação expressada por Antônio e gravada no

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material didático produzido pela Escola Olodum. Eram os blocos pensando em perspectivas

futuras para seus musicistas, para além do universo do carnaval.

Terminada a entrevista, retornamos para o pátio coberto que já contava com público

mais numeroso, mas ainda insuficiente para preenchê-lo completamente. Miguel me viu e de

longe fez um sinal positivo. Logo o dirigente veio até mim, perguntado sobre a entrevista com

César. Informei que havia sido bastante interessante e produtiva. Satisfeito, Miguel se disse

pronto para nossa conversa. Solicitei que a mesma fosse realizada na sala em que me reuni

com César, a fim de evitar a chuva que voltava a ser mais intensa, tendo sido prontamente

atendido.

Assim como Josélio, Miguel Arcanjo é fundador do Malê Debalê e seu atual vice-

presidente. Sua trajetória de vida se confunde com a do bloco, criado, segundo Miguel, para

representar Itapuã no carnaval de Salvador, mas também com o propósito de ser um agente de

ação do movimento negro na Bahia, concordando com o que me fora dito por Eduardo: “O

Malê é um bloco que fica distante do centro, um bloco que não tem um apelo de mídia que os

outros blocos têm. É um bloco que nasce lá em Itapuã, inclusive com essa proposta de dar

uma visibilidade ao que é a história de Itapuã, ao bairro de Itapuã.” (Eduardo Santana,

entrevista realizada em abril de 2014)

Com este intuito, objetivou-se a criação de uma entidade que aludisse ao

pertencimento da comunidade de Itapuã, relacionando-o com o sentimento de pertença a um

universo mais amplo, que abarcaria o negro baiano e brasileiro. Não por acaso a logo do bloco

traz a filiação “Itapuã – Bahia - Brasil”. Surgiu assim o primeiro bloco afro “itapuanzeiro”. O

depoimento de Miguel me remetia, novamente, as palavras de Eduardo:

O Malê tem uma forte inclinação de ser uma entidade da comunidade, de Itapuã.

Isso é muito forte. Então quando eu chego no Malê os ensaios que eu assistia lá no Abaeté, eram ensaios assim, com os moradores de Itapuã praticamente. Essa história

do Malê ser muito longe fez com que construísse uma identidade muito próxima

com a comunidade de Itapuã. Itapuã é um bairro que tem uma trajetória de

construção de identidade comunitária muito forte. Itapuã tem uma palavra que eu

conheci lá. Depois eu até vi outros desdobramentos em outros lugares, que é o

“itapuanzeiro”, que é o nativo de Itapuã. Isso traz uma carga muito forte pra quem é

de Itapuã. Então Malê nascer em Itapuã, Malê ter uma história vinculada a essa

comunidade “itapuanzeira”... Isso desdobrou na história e nessa aproximação dessa

relação comunidade Itapuã - Malê. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril

de 2014)

Curiosamente, os artífices do bloco que criou tão estreito vínculo com a comunidade

de Itapuã, não eram nativos região, conforme relatou o mesmo Eduardo em mais uma

interessante passagem de sua entrevista:

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Quem funda o Malê, quem fundou o Malê, eram pessoas que não eram de Itapuã.

Eram pessoas que tinham algum vínculo, como é o caso de Miguel, um dos

fundadores, Miguel Arcanjo, que a família dele era de lá, mas ele não morava lá.

Josélio Araújo também não era de lá. Era do Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina.

Peruano, que já faleceu, faleceu no ano passado, que também não era de lá. Era do

Tororó. Então eram pessoas que chegam pra lá com uma idade já superior a 20, 25

anos. Quer dizer, já eram homens, pessoas feitas, mas que já vivenciavam o carnaval

de Salvador. Peruano saía no “Apaches [do Tororó]” e saía no “Vai Quem Quer”.

Miguel saía no “Badauê”, não sei. Josélio saía no “Melô do Banzo”, que era um

bloco afro que existia naquela região. Então todos eles, cada um em seu canto.

Quando ocorre de se encontrar em Itapuã é porque um casou com alguém de lá, outro a mãe foi morar lá. E de repente eles encontraram ali em Itapuã e aí decide

montar um bloco de carnaval, já que Itapuã tá muito longe de tudo, até hoje é, pra

brincar o carnaval, já que nenhum bloco de Salvador ia pra lá. E mais, além de

brincar o carnaval aqui, “nós vamos pegar nosso bloco aqui pra levar pro carnaval”.

Então o Malê é querido. É um bloco de Itapuã que nasce em Itapuã, mas os

fundadores não são de Itapuã. Então quem é o “itapuanzeiro” é o Malê, não são as

pessoas. Quem é o nativo é o Malê. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril

de 2014)

Retomando a conversa com Miguel Arcanjo, este fez uma série de considerações sobre

o papel do Malê Debalê dentre as organizações negras de Salvador, ressaltando uma forma

própria de agir, uma identidade que diferencia o bloco dos demais, aproximando sua fala,

mais uma vez, a de Eduardo. Miguel considera que as agremiações afro-carnavalescas são

referências necessárias paras as comunidades carentes de Salvador, majoritariamente negras.

E que neste tocante, o Malê Debalê teria sido reconhecido como referência para a comunidade

de Itapuã. Um ambiente em que as pessoas buscam elementos com os quais se identificar. E

justamente neste ponto residiria a maior responsabilidade do bloco, segundo Miguel. O Malê

Debalê nasceu para conscientizar os indivíduos de suas potencialidades, melhorar sua

autoestima, encampar suas demandas e formar cidadãos. Percebia uma sintonia fina entre as

falas de Eduardo, Miguel, Jany, Josélio e César. O propósito do bloco parecia, de fato, muito

bem definido.

Findada a entrevista com Miguel, retornamos para o pátio coberto no exato momento

em que o grupo “Samba e Sede” iniciou sua apresentação. A área seguia longe de estar

repleta. Nem mesmo a gratuidade na entrada parecia estimular uma maior presença de

público. Talvez o mau tempo tenha espantado os frequentadores.

Vejo Claudio sentado entre amigos e familiares, prestigiando a apresentação.

Aproximei-me e, sem poder ser mais inconveniente, perguntei sobre nossa entrevista. Claudio

pediu que aguardasse mais alguns minutos e propôs que entrevistasse Givanildo, um dos

coordenadores de alas de dança do Malê Debalê, que estava sentado ao seu lado. Givanildo

mostrou-se interessado em conversar. Seguimos para a mesma sala onde foram entrevistados

César e Miguel.

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Givanildo Neris é bailarino e responsável pela coordenação de algumas das quinze

alas de dança do bloco.

Minha história no Malê vem de 20 anos atrás. Meu professor de dança, Aguinaldo,

que era meu professor na escola de dança e era diretor do Malê, foi quem me trouxe

aqui. Eu vi o Malê Debalê em 1993 e achei a coisa mais linda. Quando foi em 1994,

ele me convidou pra vir aqui fazer uma apresentação de destaque. Depois teve um concurso de rei. Eu vim, concorri e fiquei em terceiro lugar. Aí comecei a sair de

destaque. Dois anos depois teve o maior concurso do Malê, que foram dezesseis

candidatos. O maior concurso que teve até hoje. Só tinha premiação pra um

candidato, pro primeiro lugar. Concorri e fui campeão. Depois fui tricampeão do

Malê, de rei e aí não podia mais concorrer. Quando foi em 2000, montei a minha

primeira ala de dança e foi um sucesso. Aí eu comecei a ter amor e carinho de

trabalhar com o povo da Sussuarana, juventude, pessoas de 12 anos em diante. Eu

era dançarino do Olodum mirim, vim pra cá, concorri e ganhei. A diretora chegou

pra mim e disse: “se você sair no Malê, você vai sair do Olodum”. Eu disse

“problema meu, eu saio”. Aí saí, vim aqui, concorri e ganhei. Depois acabou que o

corpo de dança do Olodum terminou. Eu conheci o Brasil todo com o Olodum, porque viajava muito. Pra fora eu conheci com o Malê. Minha primeira viagem

internacional foi com o Malê. Se eu for dançar hoje em qualquer outro bloco o

pessoal vira e diz: “não, você é a cara do Malê.” Me tornei um cartão postal do

Malê. (Givanildo, entrevista em novembro de 2014)

Mostrando-se exigente e perfeccionista, explicou que a preparação para o carnaval é

iniciada meses antes, com a escolha do tema, afirmando já ter em mente várias propostas para

explorar a temática de kirimurê, no carnaval de 2015. Sobre o corpo de baile que dirige

durante a folia, Givanildo me surpreendeu ao informar que a maior parte das pessoas não é

residente em Itapuã ou sequer faz parte formalmente do Malê Debalê. São pessoas conhecidas

de Givanildo, suas alunas em aulas de dança ministradas por toda Salvador, em especial na

região de Sussuarana, que durante o carnaval juntam-se as fileiras do bloco de Itapuã.

Trajetória próxima a do próprio Givanildo, que no ano de 1994 foi convidado por Aguinaldo,

seu professor de dança – que fazia parte da diretoria do Malê – a se apresentar na instituição,

sem ter qualquer outra relação prévia com o bloco. Toda a questão de pertencimento do bloco

a Itapuã e da participação de seus moradores, lembrados por Miguel, parecia se chocar com as

revelações do bailarino. Mais uma vez sou remetido à entrevista de Eduardo:

Essas experiências do bloco, da bateria, da percussão, tudo vem de fora. Os

dançarinos que vão pra lá não são de Itapuã. Os dançarinos são, mas os coreógrafos

não são. São oriundos de escolas de dança e não sei o quê, que vão pra Itapuã e

começam a participar dos ensaios. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril

de 2014)

Givanildo explicou, ainda, que há uma grande rivalidade entre os coordenadores de

alas de dança. Afirmação semelhante fora feita por Jany Salles em sua entrevista, inclusive

sendo esta rivalidade considerada uma das responsáveis pelo alto nível das apresentações do

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Malê Debalê como um todo. Entretanto, na fala de Givanildo, foi ressaltada a prevalência de

interesses pessoais como motivadores da busca por um melhor desempenho. A possibilidade

promoção profissional individual aparecia agora como o grande esteio que amparava todo

espetáculo.

Ao que parece, a comunidade de Itapuã não consegue fornecer os elementos

necessários para que o Malê Debalê mantenha-se como um dos principais blocos do carnaval.

Foi preciso aceitar a participação de pessoas de fora, como músicos e bailarinos, para que a

agremiação seguisse sendo “o maior balé afro do mundo”. Ganha-se em proporção mas ao

que parece perde-se justamente na dimensão comunitária do bloco, tão ressaltada em algumas

das entrevistas como sendo motivadora de sua gênese.

Já passava das 20h00min quando a banda show Malê Debalê assumiu o improvisado

palco e iniciou seu espetáculo. Os oito percussionistas trajavam túnicas com estamparia do

bloco, ainda do carnaval de 2014. À frente o cantor dividia o pequeno espaço com a bailarina

que rodopiava pelo chão molhado, por vezes fazendo movimentos de arco com os braços, por

vezes movimentando-os para frente e para trás, com as mãos espalmadas, em uma

performance claramente referenciada no Candomblé. O sorriso estampado nos lábios parecia

ser uma constante naqueles que participam dos blocos afro.

O repertório mesclou antigas canções com aquelas que repetidamente foram

executadas durante todo o dia no equipamento de som da sede. Inicialmente desconhecedor de

suas letras, tamanha fora a exposição às canções que naquele fim de dia já as sabia todas de

cor.

Parte do público dançava timidamente, creio que pela própria limitação do espaço.

Parte entregava-se a conversas nas rodas de amigos, parte ainda degustava o feijão da cantina,

acompanhado da cerveja que fora colocada na geladeira no início do dia. As crianças seguiam

com suas brincadeiras, por vezes repreendidas por pais que não queriam que os pequenos

brincassem na chuva. Observando todo aquele cenário, pensava nas palavras de Eduardo,

companheiro de reflexões ao longo de todo aquele dia.

Ate hoje se você vai nos ensaios do Malê é interessante porque 80% ou 90% das

pessoas que participam são as pessoas de Itapuã. Então você chegando no ensaio do

Malê nove horas da noite, tem as crianças lá, os meninos brincando pra lá e pra cá.

Parece uma festa! Crianças pra lá e pra cá, muito menino, mulheres grávidas. E o Malê termina se confundido com tudo isso. Os pescadores. É a moça do acarajé que

trabalha durante o dia e a noite vai pro ensaio. E as vezes o ensaio, que precisaria

acabar oito horas da noite, tem que chegar até dez porque é a hora que os moradores

tão chegando do trabalho. O Malê se confunde muito com essa coisa da

comunidade. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

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Assim como acontecera no evento do Olodum, percebi que o termo ensaio não

correspondia ao que usualmente imaginava como sendo um ensaio, espaço para prática, testes,

experimentos e correções. Procurei por César, na tentativa de tentar descobrir no regente

algum olhar mais atento ao desempenho dos ritmistas. Entretanto, este parecia tão

descontraído quanto os demais presentes.

A noite festiva seguiu até por volta das 22h00min, quando parte do público começou a

se despedir. Em uma última breve conversa com Claudio, acertamos a realização de nossa

entrevista para outro momento. Despedi-me para, em seguida, deixar o Malê Debalê,

descendo a deserta Ladeira do Abaeté.

2.3.6.ENSAIO DO ILÊ AIYÊ

DEIXA EU CURTIR O ILÊ

Após vivenciar um ensaio do Olodum, no Pelourinho, e um do Malê Debalê, em

Itapuã, era chegada a hora de conferir o ensaio do Ilê Aiyê, na Liberdade.

O evento seria realizado em uma noite de sábado a partir das 22h00min, na Senzala do

Barro Preto. Assim como aconteceu no ensaio do Malê Debalê, o ensaio do Ilê Aiyê também

contaria com a participação de convidados. “Viola de Doze” e “Filosofia de Quintal” foram as

atrações escolhidas.

Para garantir minha presença no evento, adquiri meu ingresso com antecedência na

Boutique do Ilê Aiyê, no Pelourinho. Estavam disponíveis entradas para dois setores distintos:

pista e camarote. Optei pela pista, cujo ingresso custou trinta reais, mesmo valor cobrado pelo

Olodum. Por sua vez, o ingresso que dava acesso ao camarote custava sessenta reais.

Já na data do ensaio, a opção foi por sair mais cedo de casa e seguir para o Curuzu

com o dia ainda claro. O indescritível tom alaranjado do céu, refletido no espelho da Bahia de

Todos os Santos, logo daria lugar à escuridão em que a Lua de São Jorge reinaria absoluta.

Com intensa movimentação de veículos e pessoas, a Liberdade mostrava-se pulsante

naquela noite de verão. Cheguei à sede por volta das 20h00min. Como os portões estavam

abertos, resolvi entrar e ficar no alto da escadaria principal, posição na qual seria possível

observar a chegada do público.

Observei um cartaz, fixado próximo à entrada do prédio, que anunciava a apresentação

da Band’Aiyê na “Festa da Cultura Negra para eleição da Rainha do Òrúnmila”. O detalhe

que me chamou a atenção foi que o citado evento aconteceria naquele mesmo dia, na quadra

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do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estácio de Sá, na cidade do Rio de Janeiro.

Interessante perceber como o bloco conseguia desdobrar sua banda show permitindo

apresentações simultâneas em diferentes estados do país.

A Ladeira do Curuzu começou a ser tomada pelo público que chegava em quantidade

cada vez maior. Apesar de portões abertos, a maior parte das pessoas optava por permanecer

na rua. Não consegui reconhecer nenhum rosto em meio aquela aglomeração.

Faltando pouco mais de meia hora para o início da apresentação, a situação se

inverteu. Rua esvaziada e quadra repleta. Era possível observar também um grande número de

pessoas dispostas nos camarotes no andar superior. A faixa etária era variada, com

predominância de jovens. Entre os homens o figurino variava enormemente. Camisetas e

túnicas em estamparia do Ilê Aiyê dividiam espaço com camisas em modelo polo, camisetas

regatas e até uniformes de clubes de futebol. Entre as mulheres o predomínio era dos vestidos,

que variavam em relação ao comprimento e estampa. Longos colares, pulseiras e enormes

brincos compunham o visual. Algumas optavam pelo uso de lenços prendendo os cabelos,

enquanto outras apostavam nos turbantes. Uma parte deixava os cabelos soltos, predominando

aí as tranças e o chamado penteado “Black Power”. Entre os homens as tranças dividiam

espaço com cabeças raspadas ou longos “dreadlocks”. Um público que estava ali para ver e

ser visto. Que não adquirira um ingresso para ser mero espectador, mas antes, para ser

coprotagonista do espetáculo.

O ensaio teve início com a apresentação do grupo “Viola de Doze”, que não conseguiu

despertar grande atenção em boa parte do público. As conversas, em grandes grupos ou na

intimidade dos casais recém-formados, pareciam ser mais atraentes.

Observando o comportamento dos presentes, pude notar que a maior parte destes

pareceu ter ido ao evento como parte de um grupo, seja de amigos, seja de familiares. Pessoas

que se encontravam entre os seus, perfeitamente alocadas naquele ambiente. Uma interação

natural com tudo o que ali acontecia.

Comparando o que ali observava com o que havia presenciado nos ensaios do Olodum

e do Malê Debalê, entendia que dinâmicas diferentes pautavam aquelas experiências.

Enquanto no ensaio do Olodum era notável a presença de um público que mesclava fãs do

bloco com um grande número de turistas, no ensaio do Malê Debalê o público caracterizava-

se por uma aura comunitária representada pela relação daqueles que ali celebravam. Por sua

vez, o ensaio do Ilê Aiyê trazia um público que guardava certa semelhança com parcela do

público do Olodum, sobretudo a parcela que acompanha o trabalho do bloco e deste é fã, mas

trazendo consigo um elemento de familiaridade que o ensaio do bloco do Pelourinho não

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apresentou, aproximando-se assim da atmosfera criada no ensaio do Malê Debalê sem, no

entanto, o mesmo quê de informalidade.

Restava cada vez mais forte a certeza de que, embora pertencentes a um conjunto de

instituições, cada um dos blocos possuía características de organização, efetivação e vivência

que os tornava totalmente singulares, dotando-os de uma individualidade que não se percebe

quando observados a distância.

A distinta experiência dos blocos afro do Pelourinho, da Liberdade e de Itapuã tornava

nítido o quão caleidoscópicas são estas instituições. Apesar de projetarem uma mesma relação

imbricada entre movimentos reivindicatórios, espaços de lazer e cultura e atuação mercantil,

cada uma das agremiações faz desta relação uma construção peculiar, com detalhes

particulares que, tais quais pequenos fragmentos vítreos de um caleidoscópio, modificam o

todo a cada novo e delicado movimento, elegendo práticas e estratégias que rearranjam

constantemente tais elementos, de acordo com a percepção que se tenha das situações postas e

de sua possível eficácia, sem que sejam, com isso, incoerentes.

O ensaio prosseguiu e ganhou em animação com a subida do “Filosofia de Quintal” ao

palco, mas o ponto alto da noite foi, sem dúvida, a apresentação da Band’Aiyê. O toque do

primeiro tambor saudando Mãe Hilda foi ouvido por volta de 01h30min de domingo. Dali em

diante, atenções finalmente capturadas. Olhos voltados para o palco, onde dez percussionistas

se posicionaram. Quatro cantores se juntaram ao grupo. Logo teve início o desfile de canções

clássicas, acompanhadas em coro durante toda a noite pela quase totalidade dos presentes, o

que de imediato me remeteu aos ensaios do Olodum e do Malê Debalê.

Na pista as pessoas começaram a dançar, com movimentos que lembravam os

realizados pelo público no ensaio do Olodum. Um leve jogar de ombros para frente e para

trás, ao mesmo tempo em que deslizavam lateralmente. Os pés acompanhavam a marcação do

surdo, também em movimento lateral. Algumas pessoas arriscavam movimentos mais

intensos, com giros e arquear de tronco. Nos camarotes, algumas mãos marcavam com palmas

o ritmo das canções. Pude perceber a presença de Antônio Carlos “Vovô”, presidente do Ilê

Aiyê, dentre os que se posicionavam no andar superior da quadra. Não encontrei Edmilson,

Jaci, Cida ou outras pessoas com as quais tive contato durante os dias em que frequentei a

sede do bloco.

Em alguns momentos as canções eram entremeadas por discursos breves, versando

sobre a luta contra o preconceito e a discriminação racial, intolerância religiosa e segregação

socioeconômica. Uma breve fala relembrou o absurdo acúmulo de lixo que presenciei por

tantas vezes nas ruas da Liberdade, como comprovação do desleixo do poder público com as

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áreas periféricas da cidade. Um grande aplauso deixou em mim a impressão de que não se

tratava meramente da aprovação do que havia sido dito, mas do compartilhamento de

sensações e demandas. Lembrei-me da ideia de verossimilhança enunciada por Julia Kristeva

(1972) cuja proposta afirma que seria verossímil todo discurso que está em relação de

semelhança com outro. A união de dois discursos distintos, um dos quais se projeta sobre o

outro que lhe serve de espelho e se identifica com ele por cima da diferença. Os que

aplaudiam pareceram sentir-se representados pelas palavras proferidas do palco, encontrando

nelas a citada verossimilhança.

Passava das 03h00min quando o ensaio caminhou para o final, com um dos cantores

anunciando que apresentariam apenas mais duas canções, informe imediatamente respondido

com um murmúrio generalizado. O adiantar das horas fez com que eu pensasse em como

voltar para casa. Pegar um ônibus parecia ser um delírio.

Findada a observação dos três ensaios, notei que aquela série de eventos revelava um

momento de comunhão entre artista e público, bloco e comunidade, e mais, entre pessoas

integradas em uma sociedade complexa atravessada por relações de poder, ocupantes de

semelhantes camadas da estratificação social, intermitentemente sujeitas a conflitos e que,

naquele momento de celebração, conseguiam uma breve trégua na dureza do cotidiano.

Apresentações artísticas que aos olhos distraídos poderiam parecer voltadas

unicamente para o entretenimento, mas que através das cores e sons da ludicidade revestiam-

se de caráter político, permitindo que pudesse observar e compartilhar um pouco da visão de

mundo daqueles indivíduos através da reveladora lente constituída pelos momentos de lazer.

Todo este espetáculo de cores, sons, corpos e movimentos pode ser encarado como um

simples momento de comunhão e celebração do estar vivo. E certamente muitos dos que

frequentaram os três eventos buscavam apenas a satisfação de tal potência. Mas o mesmo

espetáculo pode ser encarado, também, como uma grande oportunidade para manifestação de

pertencimento, de orgulho, de afirmação da negritude. E, com a mesma certeza, muitos dos

que por aquelas quadras passaram tinham em mente tal propósito. Entretanto, o que é preciso

ficar claro é que alienação e consciência não dependem de marcadores externos.

Os frequentadores dos ensaios sejam eles artistas, organizadores ou público, vão

estabelecer suas próprias regras, dotando as mesmas ações, que posso considerar interessadas

ou não, de outros significados, pertinentes a eles, capazes de delimitar espaços e determinar

pertencimentos. A dificuldade em decodificar os sinais elaborados e exibidos por aquelas

pessoas deixou claro que, por mais que me fizesse presente, não compartilhava daquele

espaço, não pertencia aquele grupo. Como certa vez escreveu Cecília Meireles, no comovente

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“O estudante empírico”, tudo não é somente léxico e sintaxe, sendo os atos capazes de

modificar os nomes e os verbos. Concordava com a poetisa e também com Magnani:

As pessoas falam com o corpo, com a roupa, com as regras e formas de organização;

e também com a palavra. Na verdade, essas são as falas que realmente interessam a

pesquisa, e interessam porque são significativas para os que produzem e desfrutam

tais modalidades de lazer. (MAGNANI, 1998, p. 166)

Entender a complexidade que um simples arquear de tronco ou pender de braços pode

revelar, ou ainda, buscar sentido em gestos gratuitos, mostrou-se tarefa das mais árduas.

Já era dia na Cidade da Bahia quando o primeiro ônibus, que me levaria de volta para

casa, surgiu na distante curva da Estrada da Liberdade.

2.3.7.CAMINHADA DA LIBERDADE 2014

CANTAR A NEGRITUDE EM LIBERDADE

Aproximava-se do fim minha terceira investida em terras soteropolitanas. Participar da

14ª Caminhada da Liberdade, realizada em 20 de novembro, Dia da Consciência

Negra, seria seu último ato. No dia seguinte embarcaria rumo as Minas Gerais64

.

A caminhada tradicionalmente tem como ponto de partida a Ladeira do

Curuzu, em frente à Senzala do Barro Preto, e como ponto de chegada o Pelourinho.

Assim sendo, segui para a Liberdade no início da tarde. O evento, que neste ano de 2014

homenagearia Mário Gusmão, estava previsto para ser iniciado as 15h00min.

Chegando a sede do Ilê Aiyê, vi um pequeno carro de som, estacionado bem em frente

ao edifício. Nele um faixa trazendo a inscrição “Caminhada da Liberdade”.

Portões abertos, subi os degraus que davam acesso à entrada principal da Senzala do

Barro Preto. Fui informado pelo segurança que naquela data a entrada seria restrita. Impedido

de entrar, posicionei-me no alto da escadaria, mesmo local de onde observei a chegada do

público no ensaio do bloco no sábado anterior.

Pude ver alguns integrantes do Ilê Aiyê que, trajados com uma camiseta

confeccionada especificamente para o evento, protagonizavam um verdadeiro entra e sai do

prédio. Dentre estes vi Edmilson, que passou por mim como um vendaval. Parecia mais

atarefado do que de costume.

64 QR Code: “Asas de Ébano” – Ilê Aiyê. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FcTnBc3k2LM

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Aos poucos o Curuzu foi sendo tomado por pessoas que acompanhariam a caminhada,

bem como por ambulantes que tentavam incrementar sua renda comercializando água, cerveja

e refrigerante. O dia, embora nublado, trazia consigo um calor sufocante que parecia lhes ser

favorável.

Eis que adentrou a sede uma equipe de reportagem da TV Bahia, maior emissora de

televisão do estado que, assim como acontecera comigo, também teve a entrada impedida pelo

porteiro.

Edmilson reapareceu e de longe me cumprimentou. Conversou com o porteiro e

liberou a entrada da equipe de jornalismo, conduzindo-os para o andar superior da sede onde

entrevistariam Antônio Carlos “Vovô”. Recordei-me das falas do próprio Edmilson e de

Eduardo sobre o acréscimo momentâneo e pontual de visibilidade conferida aos blocos

durante o mês de novembro. Recordei-me também que fora uma equipe da mesma rede de

televisão que havia deixado Josélio aguardando em vão na sede do Malê Debalê, semanas

antes.

Já passava das 16h00min quando a caminhada efetivamente foi iniciada. Último a

deixar a sede, Edmilson perguntou se eu gostaria de ir a bordo do carro de som. Agradeci,

mas preferi ir no chão, junto com a maioria dos manifestantes. Seguimos juntos atrás da

multidão que já se distanciava.

Não demorou mais do que quinhentos metros até que Edmilson fosse parado por uma

pessoa e tivesse que retornar a sede para buscar algum material esquecido. Segui sozinho em

meio à multidão.

Mais alguns quarteirões e chegamos até a Estrada da Liberdade. Lá um trio elétrico

esperava pelos manifestantes. Pequena pausa para a troca de veículos e logo o cortejo seguiu

pela via interditada. A áspera e longa Estrada da Liberdade, tomada pelo povo negro de

Salvador, mais do que nunca remetia a Jorge Amado, que a definiu como difícil caminho de

sacrifícios.

Para minha surpresa encontrei Eduardo, que estava acompanhado de sua esposa.

Pouco a sua frente estavam Claudio Araújo, Miguel Arcanjo, Josélio Araújo e outros

integrantes do Malê Debalê. Percebendo que estava sozinho, logo me convidaram para juntar-

me a eles. E assim seguimos por alguns quarteirões, conversando sobre a caminhada, sobre

Salvador, sobre os comerciantes que baixavam suas portas enquanto aquele cortejo negro

ganhava a avenida, sobre as pessoas que observavam por trás das grades de suas janelas, sem

coragem de descer à calçada e ver de perto a movimentação.

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Eduardo me ofereceu uma cerveja, bebida que estava sendo consumida por todos.

Agradeci, mas recusei. Para minha surpresa, ouvi deste o seguinte conselho: “Você tem que

beber com a gente. Fazer observação participante!”. Aceitei a bebida. E foi justamente este

um importante demarcador em nossa relação. A partir daquele momento eu deixei de ser o

pesquisador que estava acompanhando a manifestação e passei a ser aquele com quem eles

estavam compartilhando a bebida, como compartilhavam também a manifestação em si,

impressões sobre o evento, sobre as pessoas e sobre suas vidas.

Enquanto caminhava, conversando com Eduardo, observei Josélio, que parecia ser

uma celebridade. A cada cem metros alguém o parava para cumprimentos geralmente

carinhosos.

E assim passamos pelo Plano Inclinado da Liberdade. Um trajeto que poderia ser feito

em meia hora, havia levado cerca de uma hora e meia. Ainda faltava muito até chegarmos ao

Pelourinho. O trio elétrico foi executando canções dos blocos afro, alternando-as com

pronunciamentos alusivos a data celebrada, bem como comentários sobre o cenários político e

partidário locais.

Para surpresa de todos, o céu resolveu desabar sobre nossas cabeças. A chuva, que

começou fina e bem-vinda, logo se tornou um temporal, forçando uma correria quase

generalizada em busca de um abrigo. Poucos foram os que seguiram atrás do trio elétrico, que

não interrompeu sua marcha.

Enquanto procurava abrigo, perdi contato com os integrantes do Malê Debalê. Já

imaginava prosseguir sozinho durante a caminhada quando fui pego pelo braço. Assustado,

olhei e me deparei com Edmilson, que finalmente havia conseguido alcançar a multidão.

Tão inesperada quanto veio, foi-se embora a tempestade. Ruas e almas lavadas, hora

de seguir atrás do caminhão. Foi a vez de Edmilson me oferecer uma cerveja, devidamente

aceita. Brindamos à Mário Gusmão.

Já era início da noite quando finalmente reencontramos o grupo de Itapuã. Para minha

surpresa, não houve muita interlocução entre Edmilson e estes. Distraído em uma nova

conversa com Claudio, não percebi quando Edmilson desapareceu na multidão.

Já em Santo Antônio Além do Carmo, prosseguimos sem o trio elétrico. Foi a vez do

pequeno carro de som voltar a ser o protagonista. As diminutas ladeiras do histórico bairro

não comportavam o grande caminhão. Ali os integrantes do Malê Debalê se despediram de

mim e deixaram a caminhada, que já durava cerca de cinco horas.

Novamente sozinho, segui até a Baixa do Sapateiro. Lá reencontrei, mais uma vez,

Edmilson. Pela sua alegria, imaginei que tivesse feito novos brindes ao longo do trajeto.

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Alcançamos o Pelourinho, onde o Olodum, que não havia tomado parte na Caminhada,

realizava evento próprio em alusão à data. Lembrei-me de trecho da entrevista de Eduardo:

O Olodum não faz parte do Fórum de Entidades Negras, não participa da Marcha de

Zumbi dos Palmares a muito tempo. Não participa do programa da rádio. Eu fiz

parte, enquanto Malê, quando a rádio era aqui na Metrópole. Era Ilê, Malê, Olodum

e Muzenza. Ai o Muzenza saiu. O Olodum saiu logo. E ficou só Malê e Ilê fazendo o programa. Ia todo sábado e levava uma música pro programa. Depois eu me

afastei. Não tava dando pra ir todo sábado e ai ficou só o Ilê. Mas toca música do

Olodum e tal. Então é um primo assim meio que distante dos blocos. Nessas

caminhadas o Olodum não tá. Na Liga não tá. No Fórum não tá. (Eduardo Santana,

entrevista realizada em abril de 2014)

Entretanto, quando cheguei ao palco montado no Largo do Pelourinho, pouco tempo

restava para que findasse a apresentação da última atração da noite, uma banda de reggae.

Pelas ladeiras centenárias poucos eram os que por ali ainda perambulavam. Pensei no

afastamento existente entre o Olodum, “primo distante”, como dito por Eduardo, e os demais

blocos afro, bem como na frase gravada na Senzala do Barro Preto: “sem dividir seremos

sempre mais”.

Pensei, também, na afirmação de Michel Agier (1992), complementada por Márcio

Goldman (2001), de que para além de uma segmentação característica, causada por fissões

sucessivas ou simultâneas, os blocos, bem como outros grupos e movimentos negros,

tenderiam a um ajuntamento ou “federalização”, organizando-se em associações, conselhos e

federações. Antes de ser uma contradição ao que fora dito por Agier e Goldman, o fato do

Olodum manter-se desvinculado de algumas das mais importantes congregações que reúnem

os demais blocos afro, confirmava o enunciado, uma vez que o Olodum não renunciou a

mencionada tendência federalizante, apenas filiou-se a uma entidade diferente. O bloco do

Pelourinho tinha ciência de que precisaria unir esforços na busca de seus objetivos. Lazinho

afirmou:

A política ta mudando. Nós temos que mudar também. As entidades que não se

alinharem politicamente, estão fraquejando. Agora existe uma ideia que foi criado o

Fórum de Entidades Negras, o Conselho de Entidades Negras. Agora tá querendo

criar uma Central. Deus ajude que quando a gente sentar na mesa, a maioria sente

pra gente poder conseguir algo. A gente não quer se tornar o único. A gente quer que

venham vários. É muito melhor para a luta você lutar com vários. Porque um dia o

Olodum foi um. Hoje somos vários. Tem o carnaval hoje, o Ouro Negro. O Ouro Negro vem a partir do Conselho de Entidades Negras, quando não dava mais pra

arrumar dinheiro só pra um. Hoje pode entrar Governador, sair Governador, existe

uma verba lá pra Ouro Negro. Não é o ideal, mas pra quem não tinha nada, já é

alguma coisa. Como é que você consegue isso? Unidos. Porque sozinho... Os

invisíveis unidos conseguem fazer muita coisa. Basta se estruturar politicamente. É

você saber de onde veio e pra onde vai e o que você quer. Você não pode sentar

numa mesa sem saber o que você quer, porque o cara que tá do lado de lá, ele tem os

assessores. Se você chega sozinho e encontra um cara numa mesa só, ele lhe bota do

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seu lado e o resto é só assessores, secretários, aquela estrutura toda. Você chega só.

Você vai perder. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Entendia cada vez mais as alianças feitas com partidos, políticos, sindicatos e outras

entidades. Fortalecimento institucional e fortalecimento enquanto movimento. Semelhante ao

que fora feitos pelas tradicionais casas de Candomblé da Bahia, ao colocar em seu seio figuras

de atestada importância política e social. Serviram-lhes como uma espécie de escudo,

sobretudo nos momentos vários de perseguição ao longo de nossa história. Em nada diferiria

o comportamento dos blocos afro que agora elegem uma ex-prefeita para ser sua conselheira,

ou que recebem candidatos a Presidência da República em suas sedes. Estratégias de uma

disputa eminentemente política, que parece longe de acabar. Nas palavras de Lazinho:

O tambor sempre será um anunciador de paz ou de guerra. Nós usamos pra paz.

Você vê que na guerra o tambor sempre serviu pra isso. Pra anunciar ou a guerra ou

a paz. Nós vamos continuar mandando tocar os tambores em busca da paz. A paz é

boa pra todos nós. Agora, politicamente, nós vamos continuar na guerra. (Lazinho,

entrevista realizada em abril de 2014)

O retorno da chuva precipitou minha volta para casa. No dia seguinte embarquei rumo

as Minas Gerais, com a bagagem e a cabeça igualmente cheias.

2.2.1.APÊNDICE – CARNAVAL 2015

De volta a Minas, tive a oportunidade de acompanhar o carnaval de 2015 através da

cobertura realizada pela TVE Bahia, transmitida para todo o país pela internet. Foi um ano

especialmente interessante, pois pude ver materializadas na avenida, em forma de desfile, as

informações as quais tive acesso através do seminário do tema do carnaval, realizado pelo

Malê Debalê no qual foi apresentado kirimurê, do material entregue por Edmilson, também

oriundo de um seminário temático, e da conversa com João Jorge, quando este revelou que o

Olodum trataria da Etiópia. E foi justamente o Olodum a primeira das agremiações que pude

acompanhar, ainda na sexta-feira de carnaval.

OLODUM - Etiópia. A Cruz de Lalibela. O Pagador de Promessas

Da viagem de integrantes do Olodum até o continente africano, bem como da posterior

pesquisa realizada, resultou o tema do ano de 2015. A despeito da repetição de vários dos

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elementos observados em 2013 e 2014, a passagem do Olodum pelo Circuito Osmar em 2015

trouxe alguns componentes singulares, notados principalmente nas fantasias.

Difícil seria não notar a predominância do branco em todas as vestimentas. A ala de

dança trazia cabeças cobertas por turbantes brancos e uma cruz estilizada na longas vestes,

com a logo do Olodum em seu centro. Nos pescoços, uma pequena cruz a simbolizar a própria

Cruz de Lalibela, relíquia religiosa do povo etíope.

Branca também era a predominância da fantasia dos percussionistas. Para estes, a cruz

vinha nos turbantes brancos, semelhantes aos de outras alas. Atravessada no peito, uma faixa

laranja onde se estampava a logo do Olodum.

Se o sanfoneiro me surpreendeu no desfile do Malê Debalê em 2013, a composição

das fantasias do Olodum para 2015 causou o mesmo efeito.

A transmissão da TVE não permitiu a observação mais demorada da passagem do

bloco do Pelourinho, pois logo foi interrompida para apresentar ao espectador o palco

montado no Centro Histórico, onde naquele momento se apresentava o cantor Gerônimo.

MALÊ DEBALÊ - Kirimurê - Malê Debalê reconta o Recôncavo

Os desfiles de sábado trouxeram o Malê Debalê e o Ilê Aiyê. O bloco de Itapuã

ganhou as avenidas primeiro, pouco depois das 19hs00min.

Tendo em vista o proposto, o bloco passeou pela história da região do Recôncavo,

trazendo para avenida alas de dança compostas por fantasias que remetiam aos orixás,

capoeiristas, indígenas, cada qual coreografada a sua maneira, como já era tradicional no

bloco de Itapuã. O elemento indígena podia ser visto, por exemplo, nos cocares utilizados

pelos percussionistas, posicionados imediatamente após o trio elétrico. Na sequencia vinha o

trio de apoio, sobre o qual realizavam performances o Negro e a Negra Malê escolhidos para

aquele ano.

ILÊ AIYÊ - A Diáspora Africana - Jamaica - Os Afrodescendentes

Na mesma noite em que acompanhei o Malê Debalê trouxe ainda o Ilê Aiyê, que

levava o Atlântico Negro para a avenida.

Com desfile marcado para 01hs50min, o bloco da Liberdade só pisou no Campo

Grande quando já nos aproximávamos das 03hs00min. As poucas tomadas de câmera em

ângulo mais aberto apresentavam ao espectador um cenário quase tão desolador quanto o que

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presenciei em 2013. Arquibancadas desertas e poucas pessoas pela rua, a prestigiar a

passagem da agremiação. Lembrando que o Ilê Aiyê chegou ao Campo Grande após ter

realizado sua tradicional saída da ladeira do Curuzu. Creio que nos demais dias de desfile, em

horário mais convidativo, a presença de público seria maior.

Após ter acompanhado a passagem de um Olodum com fantasias predominantemente

brancas, ver o Ilê Aiyê multicolorido causava um curioso contraste. Os indefectíveis turbantes

ornamentavam cabeças de homens e mulheres. No dorso, colares e contas. Nas mãos, leques.

Na percussão um curioso chapéu, que parecia ser uma versão invertida dos modelos

convencionais, compunha a fantasia.

A estamparia escolhida para 2015 envolvia elementos geométricos e efígies. Pude

reconhecer a de Bob Marley, destacada por vários componentes ao personalizarem suas

fantasias.

No trio elétrico a inusitada presença de um naipe de instrumentos de sopro conferia

um diferencial a sonoridade do bloco. Nesse mesmo carro, uma bandeira da Jamaica era a

todo o momento exibida pelo cantor, em cuja fantasia estampava as cores do pan-africanismo.

2.4.QUARTA IDA A CAMPO

Era noite quando, pela diminuta janela do avião, avistei as primeiras luzes da Cidade

da Bahia pontilhando a escuridão. Logo seus contornos tornaram-se mais claros e já era

possível distinguir o Farol da Barra, o estádio da Fonte Nova e o Elevador Lacerda. Mais

alguns minutos e estaríamos em solo soteropolitano, avisava o comandante da aeronave. Era

hora de apertar os cintos.

Retornava a Salvador para aquela que seria minha última investida em campo.

Derradeira oportunidade para recolher informações, acompanhar atividades e realizar as

entrevistas que considerava fundamentais e que, por inúmeras razões, ainda me faltavam.

Com tempo curto, o objetivo era aproveitar ao máximo todos os dias em que estivesse

na cidade, plano que teria início logo no dia seguinte, com uma visita ao Pelourinho, ao

Olodum, a Eunice.

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2.4.1.VISITA AO OLODUM

PELOURINHO NÃO É MAIS AQUELE

Caminhando por entre os prédios centenários do Centro Histórico, cheguei ao largo do

Elevador Lacerda onde um enorme letreiro escrito “Salvador” estampava uma marca:

”Pelourinho Dia e Noite”. Perto deste, dois policiais. Reparei que, do outro lado do mesmo

largo, mais dois policiais faziam guarda. Seguindo direto pela Praça da Sé, avistei mais um

par de policiais, desta feita entre o busto de Dom Pero Fernandes Sardinha e a estátua de

Zumbi dos Palmares. Em frente à antiga Santa Casa de Misericórdia, uma viatura da Polícia

Militar e mais dois soldados.65

.

Não era comum observar este tipo de policiamento nas ruas do Centro

Histórico. Seria este incremento na segurança parte do chamado Pelourinho Dia e

Noite? Poucos elementos me ajudavam a chegar à resposta. Segui.

Próximo ao Terreiro de Jesus, em frente à Igreja da Ordem Terceira, um grande grupo

de turistas estrangeiros era acompanhado por um guia, que relatava, em inglês, curiosidades

sobre o local. Parei por alguns minutos para ouvir sua explicação sobre a imagem de uma

caveira, posicionada no ponto mais alto da construção. Relação com os templários, disse ele.

Fui então abordado por uma senhora que me perguntou: where you from? Ao ouvir como

resposta “Brasil”, vi em seu rosto uma leve expressão de surpresa, que veio acompanhada de

um breve comentário: “Achei que você fosse francês. Você tem cara de francês”. Então, com

minha “cara de francês”, segui para a sede do Olodum.

Chegando ao casarão que abriga a sede do bloco, fui logo procurar por Eunice que,

como de costume, estava ocupada atendendo a mais uma das várias demandas que lhe

aparecem a todo o momento. Conversava com um casal sobre a possibilidade de participação

destes em uma apresentação do Olodum, quando percebeu minha presença. Aguardei em uma

pequena sala, no andar intermediário da construção.

Enquanto esperava pelo término da conversa, observei os inúmeros cartazes e quadros

dispostos pelas paredes. Entre vários cartazes alusivos a shows e apresentações do Olodum,

algumas peças me despertaram especial atenção. Um dos quadros trazia João Jorge

Rodrigues, presidente do Olodum, abraçado a Antônio Carlos “Vovô”, presidente do Ilê Aiyê.

Em outro, referência a Caminhada da Liberdade, evento do qual o Olodum já não tomava

mais parte há algum tempo. Um grande quadro, próximo à porta, exaltava a vitória do

65 QR Code: “Cartão Postal” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=A6_NNtjgmtQ

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Congresso Nacional Africano (CNA) nas primeiras eleições multirraciais realizadas na África

do Sul, no ano de 1994, e que levaram Nelson Mandela ao poder. Por fim, uma fotografia

mais recente trazia João Jorge e a Presidenta Dilma Rousseff, em visita desta ao bloco, então

como candidata a reeleição, realizada no final do ano de 2014.

Finalizada a conversa que lhe ocupava, Eunice veio até mim com sorriso no rosto e

feição de quem estava cansada. Simpática, foi logo perguntando do que eu precisava. Solicitei

algumas informações administrativas do bloco, pedi permissão para fotografar aquela sala,

por conta dos cartazes, bem como o andar de cima, no auditório Nelson Mandela e,

principalmente, pedi que agendasse uma entrevista com João Jorge.

Segundo Eunice, novembro era um mês complicado por conta das demandas surgidas

em função de ser o Mês da Consciência Negra, mas que faria o possível para me encaixar na

agenda do presidente.

Após me despedir, deixei a Casa do Olodum e segui para a Boutique do Ilê Aiyê. A

cada esquina, um par de policiais militares criava uma atmosfera de segurança para turistas e

de atenção artificializada para moradores. Afinal, o policiamento restringia-se ao corredor

turístico do Pelourinho. Bastava descer ou subir uma ladeira fora do eixo para que o abandono

voltasse a dar o tom.

Chegando a Boutique, vi uma grande movimentação de pessoas que entravam e saíam

da pequena loja a todo o momento. Lá dentro rapidamente entendi do que se tratava. No dia

seguinte seria realizado no Largo Pedro Archanjo, ali mesmo no Pelourinho, um ensaio do Ilê

Aiyê com a participação do cantor Marcio Vitor. Enquanto estive na Boutique, todas as

pessoas que por ali passaram buscavam garantir seus ingressos, comercializados a vinte reais.

Entre a venda de um ingresso e outro, fui atendido por Viviane. Perguntei pelo livro

do Ilê Aiyê, recentemente lançado. Foi me mostrado um exemplar mostruário, com

encadernação luxuosa, papel fotográfico e algumas centenas de páginas que contavam a

história do bloco. Aquisição obrigatória, apanhei um exemplar juntamente com dois Cadernos

de Educação que ainda me faltavam.

Deixei o Pelourinho com minha “cara de francês”, nova bibliografia e algumas

promessas.

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2.4.2.VISITA AO ILÊ AIYÊ

SUBINDO A LADEIRA CURUZU

Depois de um dia no Pelourinho, meu próximo destino foi a Liberdade. Sem conseguir

contato e prévio agendamento com Edmilson, planejei seguir para o Curuzu e contar

com a sorte66

.

Não demorou para que o ônibus 304, também indicado como “Bom Juá-

Barra”, aparecesse. Já comigo a bordo, seguiu seu caminho pela Cidade Baixa.

Quando chegamos em frente ao Elevador Lacerda, o veículo se deteve para um longo

embarque e desembarque de passageiros. Do lado de fora, uma multidão aglomerada no ponto

e outra multidão semelhante, se deslocando de lá para cá, notadamente em um fluxo contínuo

entre o Elevador e o Mercado Modelo. Na calçada um ambulante auferia algum ganho ao

comercializar garrafas d’água gelada. De algum lugar que não consegui identificar, ecoava

“Canto para o Senegal”67

, antigo samba reggae do Ilê Aiyê, sucesso na década de

1980 com a Banda Reflexu’s. Um senhor cantarolava a música, balançando levemente

seu corpo, em deslocamentos laterais. Em meio a toda aquela balbúrdia, a canção de

mais de duas décadas afetava aquele homem.

O ônibus seguiu seu caminho. Na região do porto foi possível observar a aproximação

de um grande navio de cruzeiro. World Odyssey, dizia uma inscrição em seu casco. Do lado

oposto, um velho casarão, em péssimo estado de conservação, trazia em suas paredes a

pichação com os dizeres: “racismo mata”.

Depois de mais alguns minutos de viagem, cheguei a Avenida San Martin. Logo que

desembarquei, percebi que as ruas estavam com uma movimentação anormal para o horário.

Mais vazias do que de costume, parecia feriado. Parte do comércio estava fechado. Sem saber

bem o que acontecia, não perdi tempo e segui direto para o Curuzu, subindo a ladeira com

uma agilidade que não sabia que detinha.

Na área do Ilê Aiyê as coisas pareciam mais normais. A sede estava aberta e a

movimentação de alunos e funcionários parecia a de costume. Abri o portão, subi as escadas e

me apresentei ao segurança. Perguntei por Edmilson, que não estava e não retornaria naquela

tarde. Nenhum outro funcionário disponível para uma conversa.

66 QR Code: “Corpo Excitado” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=DM7S-88JPfU 67 QR Code: “Canto para o Senegal” – Banda Reflexu’s. Disponível em

www.youtube.com/watch?v=JvkTF9BdBBE

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Resolvi subir o restante do Curuzu e aproveitar minha passagem por ali para visitar a

sede do Movimento Negro Unificado. Uma conversa com eles parecia interessante. Entretanto

a sede estava fechada. Na porta apenas um aviso: “precisa-se de manicure”.

Sem mais o que fazer, me direcionei para a Estrada da Liberdade, no intuito de pegar

um ônibus que me levasse de volta para onde estava hospedado. Pelo caminho, uma viatura

policial estacionada e policiais com armamento de grosso calibre. Já na Estrada, cenário

semelhante ao da Avenida San Martin. Ruas mais vazias do que de costume e parte do

comércio fechado. No caminho para o ponto, avistei um vendedor ambulante. Resolvi

perguntar-lhe sobre o que estaria acontecendo. Sem querer falar muito, me explicou que se

tratava de um toque de recolher imposto por traficantes que atuam na região, o que justificaria

a presença policial e a pouca presença de moradores. Assustado com a revelação, segui para o

ponto, no qual fiquei mais de uma hora. Por conta do que acontecia, o fluxo de ônibus

também fora alterado. Tomei o ônibus que me deixaria na região da Baixa dos Sapateiros.

Enquanto seguia para a região central da cidade, repensei minha estratégia. Ao invés

de desembarcar na Baixa dos Sapateiros e pegar outro ônibus, iria até a Boutique do Ilê Aiyê,

adquirir um ingresso para o ensaio daquela noite.

Já no Pelourinho, com policiais suficientes para a realização de uma parada militar,

percebi, mais uma vez, como Salvador vive realidades paralelas. Os que ali estavam sequer

imaginavam que há poucos quilômetros dali, toda uma comunidade sofria com a ameaça de

um toque de recolher. Adquiri meu ingresso e segui para casa. O ensaio seria iniciado as

20h00min. Teria algumas horas até então.

Após fazer uma refeição e me preparar, através do noticiário local descobri que o

toque de recolher afetou, além da Liberdade, os bairros de Santa Mônica, IAPI e Pero Vaz. A

situação havia sido mais grave do que eu imaginava.

Já era noite na Cidade da Bahia quando, de volta ao centro histórico, rumei direto para

o Largo Pedro Archanjo, local que sediaria o ensaio do Ilê Aiyê.

O Maciel de Baixo estava movimentado. Cartazes e decoração denunciavam ser

aquele o espaço onde seria realizado o ensaio do bloco. As duas pequenas portas do sobrado

amarelo, que conduziam para o interior do largo, eram disputadas por um bom número de

pessoas que queriam logo garantir o seu lugar.

Já no interior do largo, me posicionei de modo a poder observar todo o espetáculo no

palco, ao mesmo tempo em que teria uma boa visão de toda a plateia. Pouco demorou até que

o espaço fosse tomado pelo público numeroso, dando a impressão de que o evento havia

atingido sua lotação máxima.

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Quem primeiro subiu ao palco foi a Band’Aiyê. Diferente do que aconteceu no ensaio

que presenciei na Senzala do Barro Preto, um ano antes, quando a banda show do Ilê Aiyê foi

a última atração da noite, desta vez era ela a responsável por iniciar os trabalhos.

A estrutura da banda era basicamente a mesma da apresentada no ensaio na Liberdade,

tanto em relação aos músicos quanto em relação aos bailarinos. O repertório idem, tendo

como diferença apenas a inclusão da canção tema para o carnaval de 201568

.

Se na composição do espetáculo pouco foi modificado de um ano para o outro, um

aspecto em especial chamou minha atenção, justamente por diferir enormemente do

encontrado no evento realizado na Liberdade. Enquanto no ensaio realizado no Curuzu o

público era formado, majoritariamente, por jovens negros, no Pelourinho o espectro era mais

variado, contando com um considerável contingente de brancos.

Se na Liberdade a sensação era de estar imerso em uma grande comunidade, onde

todos se conheciam, no Pelourinho a impressão foi a de estar em meio a um show ordinário,

para o qual as pessoas se dirigem com o intuito de acompanhar a apresentação, divertir-se e

retornar para seus lares. Não consegui observar uma maior cumplicidade do público para com

o todo que ali se encontrava, tampouco para com o espaço. Era possível notar uma troca entre

artistas e plateia, mas sem denotar a emoção que pude presenciar em alguns momentos na

grande quadra da Senzala do Barro Preto.

Por ser um público distinto, alguns dos aspectos que me marcaram no ensaio anterior

não se fizeram notar. As túnicas e batas em estamparia do Ilê praticamente inexistiam. Apenas

uma mulher exibia tal traje. O restante usava roupas casuais. Os adereços também eram mais

simples, menos chamativos. Não havia, na maioria das cabeças, penteados que me

remetessem aos vistos na Liberdade. Nada de “dreadlocks”, tampouco “Black Power”.

Algumas tranças e apenas dois turbantes destacaram-se naquele aglomerado.

Se no evento realizado no território do Ilê Aiyê, a sensação era a de estar em meio a

um público que para lá havia se deslocado com o intuito de ver e ser visto, no Pelourinho a

tônica do público era a de ser tão somente espectador.

Após mais de uma hora de apresentação, a Band’Aiyê deixou o palco para a entrada

em cena de Marcio Victor, vocalista da banda Psirico. E foi este momento que me fez

entender um pouco daquele contexto. A entrada do cantor foi saudada com uma enorme

histeria. Em momento algum de sua apresentação, a Band’Aiyê contou com tamanho retorno

do público. Apesar de ser um ensaio do Ilê Aiyê, a maior parte das pessoas ali presentes

68 A escolha da canção tema para o carnaval de 2016 ainda estava em curso, tendo sido realizada a primeira

eliminatória na véspera do ensaio e a segunda a ser realizada uma semana depois.

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parecia esperar por Marcio Victor. Satisfeito com o que havia visto, deixei o local e voltei

para onde estava hospedado.

Investindo na relação com o Ilê Aiyê, agendei uma entrevista com Sandro Teles,

combinada para a sede do bloco na manhã de sábado, dois dias após ter conferido de perto o

ensaio no Pelourinho.

De volta a Liberdade, nada deixou transparecer os momentos de tensão vividos por

seus moradores, dias antes, quando da declaração de um toque de recolher por parte de

traficantes de drogas que atuam na região. O bairro pareceu estar de volta a sua pulsante

rotina.

Chegando a Senzala do Barro Preto, encontrei seu portão entreaberto. Subi as escadas

e me identifiquei ao porteiro, informando da entrevista agendada com Sandro Teles. Como

este ainda não havia chegado, me foi pedido que esperasse ali mesmo. Sentei em uma cadeira

de plástico e aguardei.

Um jovem rapaz também aguardava por alguém junto à portaria. Inquieto, não tirava

os olhos do aparelho de telefone celular. Só desviou sua atenção quando outro jovem chegou.

Eram conhecidos e se cumprimentaram de forma bastante amistosa.

Aos poucos outros jovens foram chegando. Um a um, posicionaram-se próximo a

entrada do edifício. A conversa entre eles fluía de maneira natural, com a alegria e

descontração própria da idade. Julguei terem entre quinze e dezoito anos.

Curioso, perguntei ao porteiro se haveria algum evento na sede naquela manhã. Fui

informado de que ocorreria uma audição, sendo aqueles jovens candidatos a uma vaga como

percussionistas do bloco. A seleção seria realizada na quadra da agremiação. Para que tivesse

início, faltava apenas a chegada do professor.

Olhando para aqueles dezessete rapazes (não havia uma moça sequer), percebi o quão

semelhante eram seus perfis. Todos trajavam bermudas, lembrando que durante os finais de

semana não era obrigatório o uso de calças compridas para adentrar a sede. Nos pés, tênis

chamativos compunham o visual. Óculos escuros usados antes como adereço do que

propriamente para proteger da luminosidade.

Ainda observava todo aquele movimento quando Sandro Teles chegou. Um rápido

cumprimento e a sugestão de entrarmos, para que a entrevista tivesse logo início. Sentados na

área superior da quadra, semelhante a uma grande varanda, começamos nossa conversa.

Integrante do Ilê Aiyê, músico, compositor e cantor, Sandro é também o principal

responsável pela realização do programa de rádio “Tambores da Liberdade”, dedicado à

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produção dos blocos afro e transmitido semanalmente pela 107,5 Educadora FM, como parte

da chamada “Faixa Negra”69

da emissora.

Atualmente eu tô aqui na coordenação do Ilê Aiyê. Trabalho como produtor do

programa de rádio Tambores da Liberdade e também trabalho na coordenação do

festival de música da ala de canto do Ilê Aiyê. Eu cheguei aqui no Ilê em 1992, aos

17 anos. Eu comecei a participar dos ensaios, quando ainda era lá no Forte da Capoeira, que é o Santo Antônio. A base do Ilê era toda lá. Cheguei numa quarta,

porque as sabatinas eram dia de quarta-feira de noite. E os ensaios aos sábados.

Cheguei numa quarta de noite para participar da sabatina. Entrei na banda e no

sábado seguinte já fui escalado pra viajar. Comecei minha trajetória de fazer show.

A partir daí não parei mais, tocando na banda do Ilê. A diferença é que eu não parei

de estudar. A gente começou a fazer show, toda hora muito show, ai o povo largou a

escola, os estudos. Eu como consegui conciliar os estudos com os shows, já to aqui

na entidade na posição mais de comando, de direção, fazendo esses trabalhos de

produção. Já participei, já fui coordenador da escola Banda Erê. Quando eu

participava, atuava mais na coordenação da escola Banda Erê, mas tinha também a

escola profissionalizante, que eu também dava aula, com essa questão de cidadania, consciência negra, literatura e linguagens afro e africanas. Fiz o concurso e passei na

UFBA pra trabalhar na parte administrativa. Tive que sair daqui oficialmente, mas

continuo aqui sempre que tem uma folga lá, nas férias, eu sempre tô aqui, não saio

daqui. Não saí daqui do Ilê Aiyê, saí da área administrativa daqui, mas não do Ilê.

Estou desde 1992 fazendo esse trabalho. Primeiro na percussão, hoje um cargo um

pouco mais acima. Eu me defino da mesma forma que eu defino a cidade de

Salvador, como antes e depois do Ilê. Eu me defino assim. Sandro antes e depois do

Ilê. Eu era uma coisa antes e depois do Ilê Aiyê eu transformei totalmente. Essa

questão racial, questão de consciência negra, foi muito montada a partir do

aprendizado que eu tive aqui dentro. (Sandro Teles, entrevista em novembro de

2015)

Dono de uma eloquência admirável, retórica envolvente e um enorme conhecimento

sobre a história e o dia-a-dia dos blocos, Sandro ofereceu a esta pesquisa uma entrevista

formidável. A partir de suas falas, inúmeras informações valiosas puderam ser aferidas.

Depois de cerca de uma hora e meia de conversa, nos despedimos. Ainda no sábado consegui

contato com Edmilson e combinamos nossa entrevista para a manhã de terça-feira.

Já na data combinada, segui cedo para a Liberdade. Devidamente identificado e

autorizado, subi as escadas da sede em direção à sala de Edmilson. Ao chegar a sua porta,

percebi que estava na companhia de um jovem. Sem querer interromper, fiz apenas um sinal,

indicando minha presença.

Edmilson então me pediu que entrasse e me apresentou a Mohammed, estudante de

graduação norte-americano de origem árabe, que veio até o Brasil para realizar uma pesquisa

acadêmica. Interessado em conhecer um pouco da rotina do Ilê Aiyê, Mohammed tinha em

Edmilson uma espécie de tutor. Ao responder a seu cumprimento também em inglês, a feição

69 A chamada “Faixa Negra” da rádio 107,5 Educadora FM foi criada com o intuito de fomentar, promover,

difundir, fortalecer e reafirmar a cultura e identidade negras. Compõem a Faixa Negra os programas “No

Balanço do Reggae”, “Evolução Hip-Hop”, “Tambores da Liberdade” e “Rádio África”.

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do estudante mostrou surpresa e logo veio a indagação: “você também é americano?” Fui de

“cara de francês” à “americano” em pouco menos de uma semana.

Convidado a me sentar, procurei não interferir na conversa dos dois, que já caminhava

para o final. Após algumas considerações, Edmilson recomendou que Mohammed fosse até o

andar de cima, recolher alguns materiais. Com dificuldades na compreensão do português, lá

sei foi o jovem.

A sós, iniciamos nossa conversa. Carioca de nascimento, soteropolitano por adoção,

Edmilson era o responsável por várias ações dentro do bloco. Da parte educacional a gestão

de projetos sociais, quase toda a burocracia do Mais Belo dos Belos, passava por suas mãos.

Conheci o Ilê em 1977. Vim em Salvador ver os blocos na avenida. Foi na Avenida

Sete. Tava passando um bloco chamado “Lordes”. O nome já dá o significado. Era

um bloco de uma elite. Atrás vinha o Ilê Aiyê. Eu tava ali, na Mercedes, quando na

corda, um dos componentes do bloco Lordes, que usava um chapéu de Tio Patinhas,

meteu a corda em cima de mim. Em 1977 eu tava com 17 anos. Aquilo gerou uma

confusão. Briga. Eu briguei com o cara, o cara me bateu, eu bati no cara. Foi um

grupo de um bloco chamado Ilê Aiyê que me tirou. Foi meu primeiro contato. Já

minha relação profissional começou primeiro com Vovô, no Garcia. Eu já tava

envolvido com educação, a gente fazia um projeto chamado “Projeto Recreio”, que

já era um pouco dessa história do envolvimento social com as comunidades. Eu já

era educador. E nós tínhamos uma amiga em comum que nós fazíamos festas no

final de setembro, como se fossem as festas de largo. E aí ela me apresentou Vovô.

Eu solicitei que a banda do Ilê fosse, mostramos nosso projeto a ele e ele ficou

amigo. Depois eu entrei no “Projeto Axé”, pra ser educador, uma organização extremamente interessante aqui de Salvador, nessa década de 1990, que cuidava da

educação de rua. Já tinha um estreitamento com ele. Eu era de outras unidades e

numa das reuniões ele falou comigo se eu não queria virar educador daqui no Ilê,

vindo pra cá. Naquele momento não deu, mas posteriormente eu vim pra cá. O Ilê

tem uma história de que vai abraçando quem é interessante pra ele. Entrei como

educador. Dava aula aqui embaixo. Aí fui ficando. Os eventos sempre estavam

acontecendo e eu participando da parte mais cultural. Aí fui convidado pra diretoria.

São 22 anos, fazendo acontecer aqui. Mas começou assim. Uma coisa simples de tá

se envolvendo com bloco. No bairro onde eu morava, que era lá no Garcia, eu

primeiro saía num outro bloco chamado “Secos e Molhados”, pra depois vir pro Ilê.

é uma casa que vai abraçando. Se for uma relação de rejeição, é rejeição, mas se for de fortalecimento, ela abraça mesmo e então você está dentro. O perfil de educador

pra essa comunidade se encaixava comigo, então fui convidado a ser o educador

social do Ilê Aiyê. Entrei na condição de educador. Fui abraçado pela comunidade e

fui abraçado por Mãe Hilda. Depois sou convidado a participar da diretoria do Ilê

Aiyê, na parte de educação. De 1990 até hoje eu estou no Ilê Aiyê, desenvolvendo

ações na área educacional. Acaba que dentro do Ilê você não desenvolve só uma

função. Acaba entrando na produção cultural, na questão da comunidade. Eu me

identifico com essa organização. Me sinto representado, porque a gente tá o tempo

todo trazendo novos desafios, fazendo novos contatos. É certo que as coisas não são

as mil maravilhas, não é como a gente queria que fosse, mas tem uma coisa que é

fundamental. Todo dia, quando eu acordo, eu dou conta que meus problemas são pequenos perto das questões que eu tenho que resolver no cotidiano dessa atividade

que eu faço. Isso é motivador. Eu tô o tempo todo buscando tá melhorando. É como

se atrás eu tivesse uma avalanche de situações, de pessoas. Todo dia eu me

questiono. Essa força que me leva a tá buscando mais conhecimento. Todo dia esse

espaço aqui me obriga a fazer reflexões sobre por que as coisas não

acontecem.(Edmilson Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

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Ciente de todo o contexto que envolve a atuação dos blocos afro, Edmilson ofereceu

interessantes respostas a todas as minhas indagações. Quando nos aproximamos da última

pergunta, que envolvia a religiosidade expressa pela entidade, Edmilson me surpreendeu.

Pedindo para que lhe acompanhasse, caminhamos por todo o interior do prédio. A

Escola Mãe Hilda havia acabado de liberar os alunos, que passavam por mim nos corredores

demonstrando certa curiosidade em seus olhares. Logo chegamos até uma pequena sala, onde

encontramos uma senhora. Nos aproximamos e fui apresentado por Edmilson. Estava diante

de Mãe Hildelice, iyalorixá do Terreiro Ilê Axé Jitolu, sucessora de Mãe Hilda, que dá nome a

escola, e irmã de “Vovô”, presidente do bloco. Além de suas funções no âmbito do sagrado,

Mãe Hildelice também atua junto à escola, como sua diretora.

Após Edmilson nos deixar a sós, começamos nossa conversa. Mãe Hildelice,

mostrando-se preocupada com o avançar das horas, deu um rápido depoimento onde pontuou

a importância de sua mãe, tanto para a escola quanto para o bloco, sua relação como herdeira

espiritual da matriarca bem como a centralidade de sua família em toda essa história,

ressaltando que além de sua mãe e de seu irmão Antônio Carlos “Vovô”, também foram

relevantes para a trajetória da entidade seus irmãos Hildete, Vivaldo e Hildemária (já

falecida).

De volta à sala de Edmilson, agradeci a sua entrevista e o contato com Mãe Hildelice.

Perguntei sobre a possibilidade de uma entrevista com “Vovô”. Edmilson, após realizar um

telefonema para o próprio presidente da entidade, agendou a conversa para o sábado pela

manhã, ali mesmo na Senzala do Barro Preto.

Fui convidado, ainda, para participar da Caminhada da Liberdade, no dia 20 de

Novembro, como havia feito no ano anterior. O homenageado da vez seria o ex-presidente da

República Luís Inácio Lula da Silva. Agradeci o convite, garantindo minha presença, me

despedi e deixei a sede satisfeito com os avanços daquela manhã.

2.4.3.CAMINHADA DA LIBERDADE 2015

LIBERDADE AO POVO DO PELÔ

Já era véspera da Caminhada da Liberdade quando resolvi tentar falar diretamente com

Claudio Araújo, presidente do Malê Debalê. Após encontrar seu perfil em uma rede social,

enviei mensagem tentando alguma possibilidade de agendamento.

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A resposta de Claudio veio ao final do dia, pedindo para que entrasse em contato na

manhã seguinte, através do telefone. Número devidamente anotado, foi questão de tempo até

a realização de uma nova tentativa.

Naquele exato momento, Claudio estava de saída, com outros integrantes do Malê

Debalê, para a gravação de um programa para a TV Baiana. Seria impossível agendar

qualquer coisa para aquela data, mas eis que Claudio sugeriu que nos encontrássemos na

própria sede da televisão. Sem outras opções no horizonte, aceitei a ideia e corri para o

endereço na Federação, não muito distante de onde estava hospedado.

O programa, que seria exibido ao vivo, começaria as 12h00min. Cheguei ao local

pouco antes do horário marcado e acabei encontrando Claudio, Miguel Arcanjo, Mestre César

e outros quatro músicos do Malê, ainda no estacionamento.

Todos devidamente cumprimentados, seguimos juntos para a área onde ficava o

estúdio. Lá encontramos Almir Santana, apresentador do programa “De Olho na Cidade”,

além de Lazinho, cantor do Olodum que já havia entrevistado.

Enquanto aguardavam o início da atração, os integrantes dos dois blocos conversavam

animadamente sobre futebol. Não demorou para que o apresentador convidasse Mestre Cesar

e demais músicos para entrar. Do lado de fora era possível acompanhar o programa através de

um monitor. Lazinho, Claudio e Miguel seguiam conversando sobre futebol. Eram dias

decisivos para as equipes baianas na segunda divisão do campeonato nacional.

Depois de 10 minutos, foi efetuada uma substituição. Retornaram os músicos do Malê

e Lazinho entrou no estúdio, não sem antes entregar um cd com playback da música que iria

apresentar. Lembrando que Lazinho não contava com músicos do Olodum para lhe

acompanhar.

Do lado de fora, integrantes do Malê observavam a apresentação de Lazinho, enquanto

discutiam a programação para o restante do dia. Como em outros anos, o Malê estaria

presente na Caminhada da Liberdade, marcada para ter início dali duas horas.

Para encerrar o programa, que tinha como pauta o Dia da Consciência Negra,

retornaram ao estúdio os músicos do Malê Debalê, para tocarem uma canção com Lazinho.

Miguel Arcanjo e Claudio também adentraram o estúdio. Todos trajados com camisetas

alusivas a Caminhada da Liberdade. Em um dado momento em que lhe foi dada a palavra,

Miguel ressaltou o evento. Quando a vez foi de Lazinho, este ressaltou a 36ª Marcha Zumbi

dos Palmares, caminhada que seria realizada na região central da cidade e da qual o Olodum

faria parte.

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Finalizada a atração, muitas fotos e abraços entre músicos, dirigentes e equipe técnica

da televisão. Lazinho se despediu e rapidamente deixou o espaço. Procurei Claudio para tentar

o agendamento de nossa entrevista. Foi quando o presidente do Malê sugeriu que a

realizássemos ali mesmo, naquele momento. Ideia aceita e levada a cabo.

Claudio Araujo é filho de Josélio Araujo, um dos fundadores do Malê Debalê.

Dirigente que representa uma nova geração, Claudio procura modernizar o bloco, abrindo a

instituição para novas possibilidades sem deixar de lado suas tradições. Em uma conversa não

muito longa, falou sobre o bloco em si, sobre a relação entre os blocos de Salvador, bem

como a respeito da atuação política do mesmo. Entrevista finalizada, recebi das mãos de

Claudio uma camiseta alusiva a Caminhada da Liberdade, idêntica a que os integrantes do

Malê vestiam. Despedimos-nos com a promessa de novo encontro durante a caminhada.

O tempo urgia e em desabalada carreira segui para a Liberdade, a fim de acompanhar

o evento realizado pelo Fórum de Entidades Negras. Já na Ladeira do Curuzu, encontrei

cenário semelhante ao do ano anterior. Uma grande quantidade de pessoas na rua, ambulantes,

faixas alusivas ao evento dispostas entre postes e muita música. Alguns postes traziam ainda

um pequeno cartaz, informando da presença do Ex-Presidente Lula na caminhada.

Cheguei a Senzala do Barro Preto, que parecia mais agitada do que em 2014. Talvez a

presença de Lula fosse a responsável por todo aquele movimento. Sem conseguir adentrar o

espaço, posicionei-me junto ao portão para tentar encontrar algum rosto conhecido, ao mesmo

tempo em que observava a circulação de pessoas.

O carro de som que subiria o Curuzu havia acabado de se posicionar em frente à sede

quando os primeiros tambores do Ilê Aiyê puderam ser ouvidos. Não demorou até que aquele

enorme contingente de músicos deixasse a quadra, descesse a escadaria e ganhasse a ladeira.

As pessoas que estavam dispersas ao longo de todo o Curuzu pareciam ter atendido ao

chamado dos tambores e logo se converteram em uma multidão que abraçava o bloco, no

meio da qual pude perceber as presenças de Claudio e Miguel Arcanjo. Carro de som em

movimento, músicos em marcha, teve início a Caminhada da Liberdade.

Edmilson surgiu como um raio, tentando resolver algum problema de última hora.

Após dar algumas instruções ao pessoal do carro de som, voltou para a sede, não sem antes

me cumprimentar com um sorriso.

Com a caminhada já em curso, deixaram a sede as equipes das redes de televisão e

dirigentes do Ilê Aiyê, como Vovô, que passou bem a minha frente sem notar minha presença.

Pensando em nossa entrevista agendada para o dia seguinte, resolvi não incomodá-lo naquela

oportunidade.

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Com a frente da sede já esvaziada, ressurgiu Edmilson, com um grande pacote

plástico, repleto de camisetas idênticas as que usávamos. Logo entendi que o intuito era

distribuí-las as pessoas pelo caminho.

Uma, duas, três, dez camisetas entregues. Uma caminhonete funcionava como um

carro de apoio. Em sua caçamba estavam caixas térmicas que guardavam copos d’água a

serem distribuídas para os músicos do bloco. Na cabine, mais pacotes plásticos repletos de

camisetas.

Acompanhando Edmilson durante a distribuição, vi uma senhora com dificuldades de

locomoção esforçar-se para nos alcançar e conseguir sua camiseta. Pedi uma para Edmilson e

entreguei-a para a senhora. Aquele gesto, que deveria ser singular, representou minha entrada

efetiva em toda esta dinâmica. Quando dei por mim estava distribuindo camisetas na Ladeira

do Curuzu.

À medida que a caminhonete avançava ladeira acima, mais pessoas nos cercavam,

tentando receber uma das camisetas. E a situação foi ganhando contornos por mim

inesperados. Como uma mistura de desespero, violência e agressividade, o público passou a

avançar sobre o pequeno caminhão, sobretudo sobre figura de Edmilson.

Algumas pessoas chamando-o pelo nome, procuravam em um certo quê de intimidade,

levar vantagem naquela disputa. Outras, chamando-o simplesmente de “moço”, tentavam a

mesma sorte.

Percebi que Edmilson, embora figura central na organização do Ilê Aiyê, era um

sujeito desconhecido de muitos daqueles moradores vizinhos ao bloco. Metros separavam

seus cotidianos e, no entanto, pareciam estar se vendo pela primeira vez.

Por vezes vi Edmilson se exaltar, sobretudo contra aqueles que mostravam uma

agressividade sem sentido ou abordavam diretamente a cabine da caminhonete. Essa

movimentação frenética seguiu durante toda a subida do Curuzu.

A tranquilidade só reapareceu quando não restava mais uma camiseta sequer a ser

distribuída, já na Estrada da Liberdade. A essa altura a caminhada já havia mudado de feitio.

O pequeno carro de som fora substituído por um de maiores dimensões, que faria o trajeto até

a Igreja da Lapinha. Ao grupo de músicos do Ilê Aiyê haviam se juntado outros, oriundos de

blocos afro como Os Negões, Muzenza, Cortejo Afro, Malê Debalê e Okambi.

Após a entrega das camisetas, a prioridade passou a ser a distribuição de água aos

músicos, para tentar aplacar um pouco do calor que fazia na Cidade da Bahia. Alguns copos

d’água foram também oferecidos a policiais e agentes de trânsito que trabalhavam no evento.

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De frente a Igreja da Lapinha, na Praça Nelson Mandela, separei-me de Edmilson e

procurei um lugar em que pudesse ouvir com maior atenção alguns dos discursos que estavam

sendo proferidos do alto do carro de som, no qual já estavam presentes o Ex-Presidente Lula,

o Governador da Bahia, Rui Costa, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, a ministra de Política

para Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes, a secretária

estadual de Promoção da Igualdade Racial, Vera Lúcia Barbosa, o secretário estadual de

Turismo, Nelson Pelegrino, o secretário estadual de Cultura, Jorge Portugal, o secretário

estadual de Justiça, Geraldo Reis, e a secretária estadual de Política para Mulheres, Olívia

Santana. Além destes, dirigentes de alguns blocos afro, como Vovô, e o presidente da Central

Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, completavam o cenário. Turismo, cultura,

igualdade racial, justiça, direitos humanos e direitos das mulheres. Interessante observar quais

pastas se alinharam a Caminhada.

Trajando uma camiseta semelhante as que eu e Edmilson distribuímos Curuzu afora,

de microfone em mão Lula discursou para uma plateia pouco entusiasmada, cujas vaias

puderam ser ouvidas tão logo sua fala começou. Nas palavras do Ex-Presidente70

:

A história do povo negro nesse país não é conhecida porque as escolas não ensinam

corretamente o que viveu o povo negro. O povo negro deste país já fez muito mais

do que os livros contam. Eles não falam da história da Zeferina, que queria libertar o

nosso povo. Eles não falam da influência dos Malês que queria colocar Salvador de

perna para o ar para que o negro e a negra fossem respeitados nesse país. (Luís Inácio Lula da Silva, discurso realizado em 20 de novembro de 2015)

Após um começo recebido com certa animosidade, aos poucos as palavras de Lula

foram vencendo a resistência. As vaias já haviam cessado por completo. Caminhando para o

final de sua fala, o Ex-Presidente afirmou:

Eu sei que ainda falta muita coisa a ser feita, mas nunca na história desse país a

gente teve tantos meninos e meninas negras na universidade. Nunca teve um

conselho capaz de aprovar as cotas para que os negros tivessem a oportunidade de

ser doutores, engenheiros, médicos, físicos, e não apenas ajudantes de pedreiro nas

grandes capitais desse país. Nunca nesse país foi dada a oportunidade para que

meninas negras pudessem ser médicas, dentistas, ser sociólogas e não apenas

empregadas domésticas, como eram. (Luís Inácio Lula da Silva, discurso realizado

em 20 de novembro de 2015).

Foi o suficiente para que o público presente o saudasse com calorosas palmas e que os

músicos fizessem soar seus tambores. Um senhor que estava ao meu lado, enquanto batia

palmas, repetia com certa euforia: “É verdade! É verdade!”

70 Youtube. Discurso do ex-presidente Lula durante 15ª Caminhada da Liberdade (4min04s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=jCZCVnTLEXk. Acesso em 13 de fevereiro de 2016.

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Discurso finalizado, Lula recebeu um troféu que representava a imagem de um

guerreiro africano. Na sequência a palavra foi passada para outros presentes no alto do carro,

sempre ressaltando a importância da celebração da data, da conscientização da situação do

negro em nosso país e os feitos do Ex-Presidente no tocante a luta contra a desigualdade

racial.

Arany Santana, diretora do Ilê Aiyê e também do Centro de Culturas Populares e

Identitárias da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, chamou a atenção para a relevância

de eventos como a Caminhada da Liberdade:

O toque dos tambores tem uma importância: chamar a atenção para algo que a gente

vem lutando há 320 anos, os ideais defendidos por Zumbi dos Palmares e pelos

heróis da Revolta dos Búzios, que continuam latentes e contemporâneos e são a

liberdade, a fraternidade e a igualdade. Hoje, na Bahia, não é feriado, mas milhares

de pessoas estão mobilizadas desde cedo porque, apesar de ser um momento muito

difícil, a luta de Zumbi continua nos inspirando e ele continua vivo dentro de todos

nós, homens, mulheres, cidadãos. (Arany Santana, entrevista concedida em 20 de

novembro de 201571)

A caminhada teve prosseguimento com nova troca de carro de som, retornando ao de

menores dimensões, capaz de transitar pelas estreitas ruas de Santo Antônio. As autoridades,

depois de discursarem, deixaram o evento em comitiva.

Aproveitei o ensejo e rumei para a área central da cidade, com o intuito de

acompanhar um trecho da 36ª Marcha Zumbi dos Palmares. Consegui encontrar os carros de

som já próximos a Praça Castro Alves, aquela que é do povo como o céu é do avião, como

disse o compositor. O ponto final da manifestação seria o Pelourinho, assim como também o

era para a Caminhada da Liberdade.

Boa parte dos manifestantes trajava uma camiseta amarela com os dizeres “Década

Internacional Afrodescendente 2015-2024”, alusiva à proclamação da Assembleia Geral da

Organização das Nações Unidas72

e tomada como tema para a marcha daquele ano. Vários

destes carregavam bandeiras vermelhas. Uma parte do grupo trajava camisetas brancas onde

era possível identificar um mapa do continente africano, preenchido pelas cores da bandeira

da África do Sul e a expressão “afrodescendentes”.

A frente do coletivo, algumas faixas abriam caminho para a passagem da marcha. A

primeira apresentava o nome da caminhada. A segunda trazia os dizeres “reconhecimento,

71 Disponível em hwww.cultura.ba.gov.br/2015/11/436/Caminhada-da-Liberdade-celebra-a-Consciencia-

Negra.html. Acesso em 13 de fevereiro de 2016. 72 Para mais informações, ver a ata da 68ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas,

proclamando a Década Internacional de Povos Afrodescendentes, disponível em

nacoesunidas.org/img/2014/10/N1362881_pt-br.pdf

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justiça e desenvolvimento”. Era possível ver em ambas as faixas as logos da Coordenação

Nacional de Entidades Negras (CONEN) e da CUT, cujo presidente, curiosamente, estava no

evento realizado nas ruas da Liberdade.

Segui o cortejo até o Pelourinho, onde aos poucos o público foi se dispersando. Não

tardou para que o grupo proveniente da Liberdade também chegasse ao Centro Histórico,

fazendo misturarem-se camisetas brancas e amarelas, representativas de cada uma das

manifestações.

Fazendo uma breve reflexão sobre o que havia observado naquela tarde/noite, me veio

à cabeça a frase escrita na Senzala do Barro Preto: “sem dividir seremos sempre mais.”

Aquela divisão entre Caminhada da Liberdade e Marcha Zumbi dos Palmares era

representativa de algumas das várias cisões que acometem o movimento negro brasileiro ao

longo de sua história73

, e que tiveram como mote, basicamente, diferenças quanto a opções

estratégicas, táticas e concepções ideológicas a respeito da própria percepção do movimento e

de seus campos de atuação.

Considero que, por tratar-se de um movimento plural, onde distintos sujeitos se

movem de acordo com interesses particulares, embora sendo guiados por um mesmo fio

condutor, é esperado que tais desentendimentos ocorram. Antônio Risério (2012) chega a

falar em movimentos negros, tamanha sua pluralidade.

Se por um lado a dificuldade em estabelecer uma unidade pode vir a enfraquecer o

movimento enquanto espectro maior da luta negra, ao mesmo tempo essa diversidade

proporciona uma maior capilaridade ao mesmo, ao permitir que diferentes entidades atuem

em distintas frentes. Ao percebermos o alinhamento dos blocos nos eventos realizados no dia

20 de novembro pelo Fórum de Entidades Negras (FEN) e pela CONEN, compreende-se de

maneira prática tal potencialidade. Como pontuou Eduardo, em sua entrevista:

O Malê tem muitos problemas, vários problemas, mas me parece que se

entendermos essa luta da africanização, da reafricanização como várias frentes,

talvez eu entenda o Olodum numa outra frente, uma outra forma de fazer música, de

falar da negritude, em outro espaço. (...) Não que o Ilê também não tenha seus

problemas, mas vamos entender que são frentes. São estratégias. Araketu foi pro um

lado, Malê foi pro outro, Olodum foi pro outro. E no final todo mundo vai se

encontrar lá na frente. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Cada bloco trilhará seu próprio caminho, atentando para as demandas de suas

respectivas comunidades, bem como traçando estratégias que consideram as mais acertadas

para enfrentar o tema da desigualdade racial em nosso país. São antes entidades

73 Para mais informações ver Cunha (1998) e (2000), Goldman (2001), Telles (2003) e Guimarães (1999).

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complementares do que opostas. Tomando como exemplo os dois maiores expoentes dentre

os blocos afro, Olodum e Ilê Aiyê, embora divirjam frontalmente quanto a algumas posições,

cada vez mais realizam ações conjuntas sendo, inclusive, o Olodum elencado como um dos

parceiros do Ilê Aiyê em seu site oficial74

. Até o momento, nada que ultrapasse eventos

esporádicos e apresentações conjuntas, mas que aponta para uma possibilidade de maior

cooperação, extremamente necessária para a luta compartilhada e sobrevivência das

agremiações.

2.4.4.ÚLTIMAS ENTREVISTAS

ÍCONES DA INSURREIÇÃO

No dia seguinte rumei para a Liberdade, logo cedo, onde realizaria entrevista com

Vovô. Sem querer me sujeitar ao risco do atraso por conta da morosidade do transporte

coletivo, saí de casa com boa antecedência75

.

Já no bairro, resquícios da celebração/manifestação do dia anterior estavam por toda a

parte. Panfletos, embalagens de bebidas e outros tipos de resíduos espalhados pelas vias, onde

o movimento de pessoas era intenso naquela manhã.

Em frente à Senzala do Barro Preto, as coisas pareciam transcorrer mais

tranquilamente. No prédio, nenhuma movimentação. Apenas o porteiro guardava posição

junto à entrada. Abri o portão gradeado, subi a escadaria e informei o motivo da minha

presença. Fui encaminhado para a sala do presidente.

Após aguardar alguns breves minutos do lado de fora, fui chamado por Vovô para

iniciarmos nossa entrevista.

Desde 9 anos que eu sou conhecido por “Vovô”. Poucas pessoas me chamavam de

Antonio Carlos. Quando eu estudava na escola, fui um dia de paletó. Aí os caras

começaram a me chamar de velho. Ninguém me chamava de Antônio Carlos. Os

professores, só na chamada. Depois, em 1988, eu incorporei. O motivador de criar o

bloco foi realmente o racismo no carnaval, porque essa coisa do racismo eu já

encarava no dia-a-dia. Eu tinha a felicidade de ter uma família negra consciente.

Minha mãe sempre falava que tem que estudar, que negro tem que ser um ponto na

frente, se é 10, tinha que ser 11. Minha mãe era uma mulher que ia pra cima, mantinha a calma, mas quando tinha discriminação ela ia. Desde pequena que

assume que é do candomblé. Era chamada de feiticeira. Tudo isso a gente encarava.

O carnaval sempre esteve no nosso DNA. A gente brincava o carnaval aqui na

Liberdade. Nós tínhamos um grupo de mortalha. Fantasia era mortalha. Os blocos

saíam de mortalha. Tinha grupo de mascarado. Nós reuníamos uma turma nossa e

74 ileaiyeoficial.com/ 75 QR Code: “Levante do Malê” – Malê Debalê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=_7soWoi46c8

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saíamos no carnaval. Se concentrava na rua D’ajuda, por ali. Tinha um ponto de

encontro, naquelas marquises. O que unia a gente era o carnaval e a influência do

movimento negro americano. Nessa época de jovens, todos nós aqui éramos [James]

Brown. E o visual nosso era todo americano. Cabelo Black, calça boca larga, sapato

alto, cavalo de aço, as camisas. Então visual nosso era esse nas festas. Na Liberdade

tinha muita festa. Aqui tinha mês de Maria, Santo Antônio... A gente já tinha

informação sobre os Panteras Negras, Ângela Davis, Black Power, poder negro,

essas coisas a gente já tinha informação. Mesmo na ditadura, a gente tinha acesso a

essas informações. A gente tinha vontade de fazer um bloco aqui. A gente pensou

em bloco de índio, em vários nomes. Todo domingo a gente se reunia na praia de

Itapuã. A gente ia muito pra Itapuã. A gente saia de ônibus. Aí tinha pessoas, jovens negros de outros bairros, da Federação, a gente curtia lá, e sempre fazendo samba.

Num dia desses, um dia de domingo, sentamos eu e Apolônio, e começamos a

conversar sobre vários assuntos e carnaval também. Nós começamos a conversar e

essa conversa de carnaval saiu. “Por que a gente não faz um bloco só de negão?”

Porque tinha muito essa questão dos Internacionais, do Coruja, dos Lordes, esses

blocos que só saiam brancos, ricos e o negro só saia tocando, como percussão. Eles

não tinham trio elétrico. Então a bateria era toda o pessoal da escola de samba que

fazia. Era o trabalho deles. Mas o acesso que os negros tinham nesses blocos era

esse. E a gente percebia isso, porque a gente ia pra lá pra ver a saída deles. “Vamos

fazer um bloco?” Foi a primeira vez que nós falamos em afro, um bloco só de negão.

Aí fomos falar e as meninas: a gente vai sair também. Aí ficou bloco misto, e não bloco só de homem como o Filhos de Gandhy. Aí eu desci, conversei com mãe. Mãe

achou a ideia boa. Aí disse que tinha uma condição. Que ela ia sair também no

bloco. Aí depois que eu fui saber que era por causa da Ditadura, que tinha o perigo

de ser preso, de sumir, esse negócio todo. Foi esse o principal motivo.

Sempre muito tranquilo, mas ao mesmo tempo firme em suas palavras, Vovô foi

respondendo a cada uma de minhas indagações, vez por outra interrompido por seu telefone

celular que tocava insistentemente.

Alguns anos antes percebi que as entrevistas com os presidentes dos blocos seriam um

momento importante de minha pesquisa, mas que não deveriam ser colocadas como

prioridade. Ocorreriam no momento certo, trazidas pelo desenrolar dos acontecimentos. Após

a conversa com Claudio, presidente do Malê Debalê, estar diante de Vovô e ouvir aquela série

de histórias, impressões e opiniões, demonstrava que fora melhor para o desenvolvimento do

trabalho que tais contatos restassem como os últimos. Se realizados em momentos anteriores,

talvez não fossem tão produtivos quanto se mostraram nessa etapa final.

Após mais de uma hora de conversa, foi preciso encerrar a entrevista em função de

compromissos outros já agendados pelo dirigente. Satisfeito com o resultado, me despedi de

Vovô, do Ilê Aiyê e da Liberdade.

Faltava agora a entrevista com João Jorge. Segui para o Pelourinho, no intuito de

tentar apressar as coisas. Só teria mais dois dias na cidade e não poderia deixar passar a

chance de conversar com o presidente do Olodum.

Enquanto me dirigia para o Centro Histórico, tive a mente tomada de assalto por

memórias de minhas passagens pela Cidade da Bahia nos últimos anos. Em como um ciclo se

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fechava no exato lugar em que teve início. Nas ladeiras do Pelourinho, de onde o contagiante

som dos tambores do Olodum me impactou inesperadamente.

Naqueles largos e ruas, praças e terreiros, ladeados por um casario centenário, onde o

aroma do dendê inebria e o vai e vem de turistas é constante, tudo parecia estar no mesmo

lugar. Já o pesquisador que por ali caminhava, alternando entre as vias de calçamento em

pedra e os estreitos passeios, este havia mudado consideravelmente.

Finalmente cheguei à sede do bloco e logo minha entrada foi permitida. Informando

sobre minha finalidade, fui encaminhado para o auditório Nelson Mandela, onde deveria

aguardar por João Jorge, que não se encontrava naquele momento. Outras pessoas também o

aguardavam no mesmo auditório.

Não demorou mais do que dez minutos para que o presidente chegasse,

cumprimentando a todos que estavam por ali, e mais do que cinco minutos para que fosse

chamado a sua sala. Teria trinta minutos, me informou a secretaria.

Já sentado a sua frente, expliquei rapidamente meu propósito, lembrei-me de nossa

primeira conversa e parti logo para a primeira questão, sempre atento ao caminhar ligeiro dos

ponteiros do relógio.

Conversar com João Jorge foi um prazer. Dono de uma retórica impecável e domínio

amplo sobre a questão do negro em nosso país, o resultado foi uma entrevista bastante

esclarecedora, mesmo sendo uma verdadeira agonia querer aprofundar alguns temas, mas ter

de limitar a conversa em função do tempo.

Quando eram passados trinta minutos, batidas a porta puderam ser ouvidas. Era a

secretária, informando que meu tempo havia acabado. Pedi para que fizesse uma última

pergunta. Com um sinal positivo de João Jorge, a secretária nos deixou novamente a sós. Com

dez minutos além do tempo estabelecido, encerrava nossa conversa com a vontade de

permanecer mais algumas horas ouvindo a fala daquele homem.

Seguindo em direção à saída da sede, resolvi passar na sala de Eunice para lhe

agradecer e dizer do sucesso da entrevista. Fui recebido com um sorriso em seu rosto. De suas

mãos, recebi uma série de itens do Olodum, entre informativos, cartazes, panfletos e até

mesmo uma camiseta. Por fim, um exemplar do livro contendo as letras de todas as canções

do bloco e cujo coquetel de lançamento eu pude presenciar anos antes, justamente por conta

de Eunice. Com seu caloroso abraço terminava minha jornada em solo soteropolitano.

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2.4.5.APÊNDICE – CARNAVAL 2016

Já em 2016, pude mais uma vez acompanhar o carnaval soteropolitano através da

cobertura televisiva realizada pela TVE Bahia, a começar pelos desfiles realizados na sexta-

feira. O primeiro bloco dos aqui abordados a ganhar as avenidas de Salvador, no Circuito

Osmar, seria o Olodum, com saída prevista para 23hs30min daquele dia.

OLODUM - Brasil, mostra tua cara! - Sou Olodum, quem tu és?

Para surpresa de muitos, o desfile foi antecipado, tendo o bloco iniciado seu trajeto

pouco depois das 22hs00min. Sua estrutura não diferiu das apresentadas em anos anteriores,

com o trio elétrico abrindo espaço para o restante do bloco. Do alto do grande carro de som,

os cantores Lazinho, Narcisinho, Sátira e Matheus, vestidos de branco, entoavam canções

clássicas de carnavais passadas, intercaladas pela canção tema de 2016. No chão, foliões

carregavam como adereços grandes sombrinhas decoradas com as cores do pan-africanismo.

No céu, balões com as logos da Caixa Econômica Federal, Bahiagás e Governo Federal

reafirmavam o já tradicional apoio.

O tema escolhido apareceu representado nas fantasias e alegorias, cujas cores

pareciam anarquicamente dispostas. Em profusão, davam o tom do desfile. Nas indumentárias

dos percussionistas era possível ver em detalhes os rostos de crianças negras, sobre os quais

foi pintado a logo do Olodum. Era o bloco do Pelourinho efetivamente mostrando sua cara.

Entre uma canção e outra, os cantores faziam agradecimentos, mencionavam um ou

outro patrocinador e saudavam o público presente. Houve espaço, ainda para uma menção a

campanha de combate ao zika vírus.

A transmissão contou com uma entrevista de João Jorge, diretamente do Campo

Grande. João ressaltou o interessante dado de que a transmissão da TVE Bahia estava sendo

acompanhada em vinte e um estados brasileiros e em outros sessenta e cinco países, sendo

que quarenta e oito destes eram nações africanas. João Jorge aproveitou o mote e elogiou o

horário escolhido para o desfile, ressaltando o ineditismo para a agremiação que se acostumou

a ganhar as ruas durante a madrugada. Essa antecipação teria resultado na boa presença de

público no Circuito Osmar e no próprio ganho do bloco em termos de visibilidades. O

presidente parecia satisfeito com o que via.

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Cerca de uma hora e dez minutos após o início da passagem do Olodum, a TVE Bahia

passou a transmitir exclusivamente do palco montado no Largo do Pelourinho, em

homenagem aos cem anos do samba. Naquele momento o músico Paulinho da Viola

apresentava o clássico “Pelo Telefone”, de autoria de Donga e Mauro de Almeida.

SAÍDA DO ILÊ AIYÊ DO CURUZU

O sábado de carnaval começou com a cobertura televisiva da tradicional saída do Ilê

Aiyê pela ladeira do Curuzu. A mesma aglomeração de pessoas em frente ao terreiro Ilê Axé

Jitolu fazia parecer que assistia a uma repetição da saída do bloco, no ano anterior. A

diferença ficava por conta da composição de personalidades na sacada da casa de Mãe Hilda.

Desta vez era marcante a presença de políticos, candidatos e pré-candidatos a Prefeitura de

Salvador, nas eleições que seriam realizadas em outubro. Marcava presença, também, o atual

Prefeito, ACM Neto. Bastou o bloco iniciar sua saída pelas ruas da Liberdade para que a TVE

Bahia voltasse suas atenções para o Circuito Osmar.

MALÊ DEBALÊ - Reino Negro dos Haussás: Malê Debalê canta a Nigéria

Diferentemente do que acontecera com o Olodum, ao Malê Debalê coube à madrugada

de sábado para a realização de seu desfile. Já passava das 02hs00min quando o bloco de

Itapuã iniciou sua passagem pelo Campo Grande. Enquanto o trio elétrico do Malê ganhava

destaque na imagem, Vânia Dias, que apresentava a transmissão, declarava que o Circuito

Osmar era o mais importante do carnaval “porque aqui pulsa o coração do baiano, aqui pulsa

a diversidade”.

O bloco de Itapuã reafirmava sua já tradicional força no que diz respeito às alas de

dança, variadas e numerosas. A primeira se destacava pela opção por cocares de penas

multicoloridos e adornos corporais confeccionados com palha.

Os foliões trajavam batas e vestidos predominantemente em branco e preto, com seu

usual padrão de estamparia. No alto do trio era possível ver a performance do Negro e Negra

Malê. Presentes no carro estavam ainda dois cantores e uma cantora, trajados com fantasias

com o predomínio dos tons de verde, cor presente na bandeira nigeriana.

A atenção da TVE Bahia ao desfile do Malê Debalê durou apenas vinte e um minutos.

Após esse período a transmissão alternou entre o palco montado no Largo do Pelourinho,

onde se apresentava uma banda de rock, e a passagem do trio elétrico de Carlinhos Brown

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pelo Circuito Barra-Ondina. Quando retornou ao Campo Grande, não havia mais sinal do

Malê. Quem desfilava era o bloco feminino Didá. A previsão era de que o Ilê Aiyê chegasse

ao Circuito por volta das 04hs00min. Optei por acompanhar o bloco em seu desfile de

segunda-feira.

ILÊ AIYÊ - O Recôncavo Baiano é Afrobrasileiro – Cara Preta

O Ilê Aiyê ganhou as ruas do centro de Salvador por volta de 21hs45min, trazendo

uma abordagem semelhante a que fora exposta pelo Malê Debalê ao trabalhar o mesmo

Recôncavo, sob o nome Kirimurê.

Embora a estrutura do desfile parecesse a mesma de outros carnavais, foi possível

observar algumas diferenças, a começar por uma grande ala de baianas, posicionadas antes do

trio elétrico, formando uma espécie de comissão de frente para a passagem do bloco. Outra

curiosidade foi uma ala formada por crianças em pernas de pau, o que conferia um tom

circense a apresentação.

Entre uma canção e outra foi possível ouvir o aviso: “Reginaldo coordenador,

Edmilson te chama no fundo do carro.” Logo imaginei Edmilson, em sua usual correria de um

lado para o outro, tentando resolver os mais variados problemas.

Após cerca de uma hora de transmissão, a emissora estatal baiana deixou de

acompanhar o bloco da Liberdade. Dos três blocos analisados nessa tese, coube ao Malê o

menor tempo de exibição na TVE.

OLODUM SEM CORDAS

Restou ao último dia de carnaval a grande novidade deste ano. Pela primeira vez o

Olodum desfilaria sem as cordas que separam os foliões com fantasias do chamado “folião

pipoca”. Neste modelo, seria impossível ao bloco do Pelourinho um desfile com alas de

dança, alegorias e adereços, como era costume em suas passagens pelo Circuito Osmar.

Talvez por isso, a opção por levar ao Campo Grande o mesmo modelo de desfile apresentado

na Barra, com o trio elétrico podendo ser acompanhado de perto pelo público. Como forma de

proteger os percussionistas, um grupo reduzido destes foi alocado em cima do trio.

O ineditismo da iniciativa fez com que a TVE Bahia dedicasse a parte inicial do

desfile para conversar com João Jorge que, juntamente com outros membros da diretoria do

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Olodum, estava na “varanda” da emissora, espécie de camarote montado próximo ao Teatro

Castro Alves.

Ao falar da passagem do Olodum sem cordas, João Jorge disse que seria apresentado

ao público um cortejo da paz, um cortejo da igualdade, no qual seriam bem vindos os jovens

negros, indígenas, marginalizados e demais minorias. Não saberia dizer se aqueles que

acompanhavam a passagem do bloco compunham os grupos citados pelo dirigente. Fato é que

aqueles que por ali estavam, e que formavam uma verdadeira multidão, cantavam em

uníssono todas as canções entoadas do alto do trio elétrico.

Com cerca de trinta minutos de desfile, a TVE Bahia cortou a transmissão para seus

estúdios, onde seria entrevistado um músico de hip hop. Na televisão aberta, a Bandeirantes

iniciava sua transmissão com o Psirico, artista que desfilaria imediatamente após o Olodum.

Não pude ver como terminou a experiência do Olodum sem cordas, mas torcia pelo sucesso

da iniciativa.

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3.CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-

DEMOGRÁFICA

NO CORREDOR DA HISTÓRIA

Apesar de versar sobre os blocos em sua forma atual, considerei necessária uma volta

ao passado da Cidade da Bahia, buscando elementos que me auxiliassem na compreensão das

estruturas sociais soteropolitanas historicamente situadas no presente e, sobretudo, me

fornecessem subsídios para melhor compreender as entidades as quais me dedico. A atenção

ao relato histórico, presente nos materiais recolhidos junto aos blocos, em suas opções

temáticas e nas falas colhidas em várias das entrevistas realizadas, mostravam que este era um

caminho importante a ser trilhado.

Para além disso, mostravam que ali se travava uma fundamental disputa pela memória.

Quando recontam a história a partir de sua perspectiva, elencando seus vultos, jogando luz

sobre episódios ou mesmo desafiando o discurso histórico consagrado, o que os blocos fazem

é justamente apresentar outras narrativas possíveis, capazes de reposicionar o elemento negro

em todo esse cenário. É esse, e não outro, o principal propósito da escolha de um tema que

verse sobre os heróis da Revolta dos Búzios, sobre a diáspora africana ou mesmo sobre a

possibilidade de uma negra civilização egípcia. Exercício semelhante será feito ao longo desse

capítulo.

Sabe-se que a História do Brasil é multifacetada, dotada de uma narrativa oficial, mas

também de inúmeras outras que a complementam, seja reafirmando-a, seja contradizendo-a.

Heróis e vilões mudam de lado num piscar de olhos, dependendo do ângulo escolhido para se

observar determinados acontecimentos. Assim como é a História do Brasil é a História da

Bahia.

Ciente da inexistência de um consenso, mas embasado bibliograficamente e seguindo

uma lógica condizente com o objetivo proposto neste trabalho, investiguei passagens da

História de Salvador que, de maneira direta ou indireta, acabaram por resultar, séculos mais

tarde, no que se convencionou chamar de bloco afro. Para tanto, ao regressar no tempo, foi

necessário priorizar alguns pontos em detrimentos de outros, fazendo assim o costumeiro jogo

da escolha e da renúncia.

Informo ainda que não se pretende realizar aqui uma descrição histórica densa, uma

vez que não é este o caráter do estudo proposto. Objetiva-se, antes, pontuar episódios que

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farão sentido a análise aqui empreendida, deixando lacunas propositais na narrativa, sobretudo

a oficial, da História de Salvador e da Bahia.

3.1.SALVADOR E OS CICLOS DO TRÁFICO NEGREIRO

EU VIM DE LÁ, AQUI CHEGUEI

A história da presença africana em Salvador remonta ao período do ciclo do açúcar,

quando os engenhos dominaram a vida econômica e social da Cidade da Bahia, bem como da

região da Baía de Todos os Santos e seu Recôncavo.

Registros indicam que a expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1531, teria sido a

responsável por trazer as primeiras mudas de cana-de-açúcar para o Brasil. Dois anos depois o

próprio Martim Afonso de Sousa foi o responsável pela instalação do Engenho dos Erasmos,

primeiro engenho da colônia, na futura capitania de São Vicente, da qual se tornaria o

primeiro donatário.

Em solo nordestino, a instalação dos primeiros engenhos data de 1535, com o

estabelecimento do Engenho Velho, próximo à vila de Olinda, pela ação de Duarte Coelho

Pereira, donatário da Capitania de Pernambuco. Segundo Gilberto Freyre:

A lavoura de cana no Nordeste - pode-se acrescentar, no Brasil - parece ter

começado nas terras de Itamaracá, a beira da água doce, como também da salgada;

das duas águas ao mesmo tempo. E quando depois se regularizou, com Duarte Coelho, foi para acompanhar as 'terras vizinhas das ribeiras' (FREYRE, 1967, p. 20).

Os primeiros empreendedores do açúcar chegaram ao solo baiano trazidos pela armada

de Martim Afonso de Souza. Colonos de variadas origens, notadamente portugueses, italianos

e flamengos76

, se estabeleceram e deram início a produção açucareira. De problemas de

adaptação a confrontos com tupinambás, a empresa açucareira teve de enfrentar inúmeros

obstáculos e só conseguiu se estabelecer de fato com a implantação do Engenho Real, obra do

então Governador Geral, Thomé de Sousa. Atrelada à efetiva iniciativa produtiva estatal, a

concessão de sesmarias e de benefícios fiscais serviu de estímulo para que outros engenhos

fossem erguidos, chegando a cerca de 40 no final do século XVI. Sobre a doação de sesmarias

pelos donatários, escreveu Caio Prado Jr.:

As doações foram em regra muito grandes, medindo-se os lotes por muitas léguas. O

que é compreensível: sobravam as terras, e as ambições daqueles pioneiros

76Flamengo é a denominação dada aos habitantes da região de Flandres, hoje território belga, mas que no século

XVI fazia parte das chamadas Dezessete Províncias dos Países Baixos.

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recrutados a tanto custo, não se contentariam evidentemente com propriedades

pequenas; não era a posição de modestos camponeses que aspiravam no novo

mundo, mas de grandes senhores e latifundiários. Além disso, e sobretudo por isso,

há um fator material que determina este tipo de propriedade fundiária. A cultura da

cana somente se prestava, economicamente, a grandes plantações. Já para desbravar

convenientemente o terreno (tarefa custosa neste meio tropical e virgem tão hostil ao

homem) tornava-se necessário o esforço reunido de muitos trabalhadores; não era

empresa para pequenos proprietários isolados. Isto feito, a plantação, a colheita e o

transporte do produto até os engenhos onde se preparava o açúcar, só se tomava

rentável quando realizado em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno

produtor não podia subsistir (PRADO JR, 1981, p. 19).

Passada a governança de Duarte da Costa, é com o terceiro Governador Geral do

Brasil, Mem de Sá, que o açúcar de fato ganhou espaço e começou a prosperar em terras

baianas, com as forças oficiais avançando sobre as terras férteis do Recôncavo, expulsando

tupinambás e ampliando as zonas de cultivo da cana-de-açúcar. O próprio Mem de Sá se

dedicou a implantação de um engenho na região, conhecido como Sergipe.

Para além do apoio estatal, fundamentais para o sucesso da empresa açucareira em

terras baianas foram também as condições de clima e solo, totalmente favoráveis ao cultivo da

cana, como explica Freyre:

A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo Nordeste e no

Recôncavo se explica por condições particularmente favoráveis de solo, de

atmosfera, de situação geográfica (FREYRE, 1967, p. 8).

Consolidada, a empresa açucareira começou a reconfigurar a vida social na região de

Salvador e do Recôncavo, uma vez que os engenhos, para além de uma unidade produtiva,

eram também uma ferramenta colonizadora, responsáveis pela fixação de colonos e instalação

de benfeitorias que caracterizavam culturalmente a localidade onde se instalavam.

Em geral os engenhos se organizavam em torno da casa-grande, residência do senhor

de engenho, centro da vida social e econômica da propriedade, símbolo edificado da

autoridade do senhor. A senzala tinha como propósito ser um alojamento para os escravos

envolvidos tanto na produção do açúcar quanto nos afazeres domésticos. Havia ainda espaço

para moradias de trabalhadores livres, como barqueiros, calafates, carreiros, feitores,

carpinteiros e pedreiros, instalações como a casa da moenda, fornalhas, galpões de estocagem,

feitorias, dentre outras construções voltadas diretamente para a atividade produtiva.77

77Para mais informações sobre a organização interna dos engenhos, ver Amaral (1958), Brandão (1956), Dussen

(1947), Freyre (1967), (2004), (2007), Mello (2012) e Prado Jr. (1981).

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Sua atividade fim era a produção açucareira, mas inúmeras outras ocupações surgiam

no interior dos engenhos, com o objetivo de dotá-los da maior autonomia possível. Antônio

Fernando Brandão nos informa sobre o grau de autossuficiência dos engenhos.

O engenho representa uma economia autônoma; para os escravos tecia-se o pano ali

mesmo; a roupa da família era feita no meio dela; a alimentação constava de peixe

pescado em jangadas ou, por outro modo, de ostras e mariscos apanhados nas praias

e nos mangais, de caça pegada no mato, de aves, cabras, porcos para as bandas do

Sul, para as do Norte ovelhas principalmente, criadas em casa — daí a facilidade de

agasalhar convivas inesperados, e daí a hospitalidade colonial, tão característica ainda hoje de lugares pouco frequentados. De vacas leiteiras havia currais, poucos,

porque não fabricavam queijos nem manteiga; pouco se consumia carne de vaca,

pela dificuldade de criar rezes em lugares impróprios a sua propagação, pelos

inconvenientes para a lavoura resultantes de sua propagação, que reduziu este gado

ao estritamente necessário ao serviço agrícola. (BRANDÃO, 1956, p. 6).

Nos primeiros engenhos em terras baianas, ainda no século XVI, a mão de obra era

formada basicamente por índios que trabalhavam, inicialmente, em troca de objetos, mas que

acabaram submetidos ao trabalho forçado. Como informa Prado Jr.:

Em primeiro lugar, à medida que afluíam mais colonos, e portanto as solicitações de

trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos insignificantes objetos com que

eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos poucos mais exigentes, e a margem

de lucro do negócio ia diminuindo em proporção. Chegou-se a entregar-lhes armas,

inclusive de fogo, o que foi rigorosamente proibido, por motivos que se

compreendem. Além disto, se o índio, por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o

mesmo com a disciplina, o método e os rigores de uma atividade organizada e

sedentária como a agricultura. Aos poucos foi-se tornando necessário forçá-lo ao

trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa

em que estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um passo.

Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do

estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e

instituíra firmemente em toda parte. (PRADO JR, 1981, p. 21).

Como resultado e resposta ao processo de escravização indígena, a cidade de Salvador

e o Recôncavo assistiram a inúmeros episódios de fuga bem como confrontos abertos entre

indígenas e europeus. Soma-se a este caldo já movimentado a interferência de ordens

religiosas, como a Companhia de Jesus, que preconizava a catequização dos nativos e sua

utilização em afazeres outros que não a cultura da cana78

.

O trabalho no engenho era intenso e praticamente ininterrupto. Como bem descreveu

Roberto Schwartz:

O trabalho em um engenho brasileiro era ininterrupto, sendo as tarefas pertinentes aos canaviais realizadas durante o dia e as atividades da moenda feitas à noite. A

78Para mais informações sobre a atuação indígena no empreendimento colonial português, ver Almeida (1997),

Cunha (1992), Monteiro (1994), Oliveira (1978)Ribeiro (1977), Silva (1995) e Todorov (1999).

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moenda ficava em funcionamento normalmente por dezoito a vinte horas, parando

por apenas algumas horas para a limpeza do mecanismo. No século XVII, os

engenhos baianos, iniciavam a moagem às quatro horas da tarde, prosseguindo

durante a noite até às dez horas da manhã seguinte. Durante as poucas horas de folga

os escravos tentavam dormir, mas às vezes passavam esses momentos procurando

mariscos [...] os cativos faziam turnos dobrados. Seu trabalho era ‘incrível’, e tão

intenso que "um desses engenhos poderia ser chamado de inferno. (SCHWARTZ,

1988, p. 97).

Tal esquema produtivo demandava uma considerável quantidade de mão de obra para

que a produção fosse mantida. Os constantes problemas com os indígenas fizeram com que

uma alternativa fosse buscada, e esta veio do outro lado do Atlântico. Era o início do primeiro

ciclo do tráfico de africanos escravizados dirigidos a Bahia, que tanto Pierre Verger (2002)

quanto Luiz Vianna Filho (2008) chamaram de “Ciclo da Guiné”79

. Verdadeiras legiões de

homens, mulheres e crianças, negras como a noite, como enunciado por Castro Alves no

célebre “Navio Negreiro”, começaram a ser desembarcadas no litoral baiano.

A época do início da colonização do Brasil, Portugal já fazia uso de africanos

escravizados em seus canaviais de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, bem como na

Ilha da Madeira e nos Açores, com considerável sucesso80

. Mais acostumados com a

criação de animais e com o manejo de plantações, pesava ainda na escolha dos

africanos a sua convivência pregressa com o sistema de escravidão. De fato, Portugal

já negociava escravos com nações como o Congo há tempos, o que facilitava as tratativas81

.

Teve início então o processo de substituição da mão de obra escrava do indígena pela

do africano. Um processo que variou em intensidade e velocidade conforme a região do país,

como explica Prado Jr.:

Far-se-á rapidamente em algumas regiões: Pernambuco, Bahia. Noutras será muito

lento, e mesmo imperceptível em certas zonas mais pobres, como no Extremo-Norte

(Amazônia), e até o séc. XIX em São Paulo. Contra o escravo negro havia um argumento muito forte: seu custo. Não tanto pelo preço pago na África; mas em

consequência da grande mortandade a bordo dos navios que faziam o transporte.

Mal alimentados, acumulados de forma a haver um máximo de aproveitamento de

espaço, suportando longas semanas de confinamento e as piores condições

higiênicas, somente uma parte dos cativos alcançavam seu destino. Calcula-se que,

em média, apenas 50% chegavam com vida ao Brasil; e destes, muitos estropiados e

inutilizados. O valor dos escravos foi assim sempre muito elevado, e somente as

regiões mais ricas e florescentes podiam suportá-lo. (PRADO JR, 1981, p. 23).

79 Para fins desse trabalho, será adotada a classificação dos ciclos do tráfico de africanos escravizados dirigidos à

Bahia, compartilhada por Pierre Verger (2002) e Luiz Vianna Filho (2008). 80 A atividade açucareira dos portugueses tem início na Ilha da Madeira, tendo Diogo Vaz de Teive estabelecido,

no ano de 1452, o primeiro engenho, na Capitania do Funchal. 81 QR Code: “Heranças Bantos” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=8tlk6o4fb_g

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Na Bahia, passado pouco mais de meio século do início deste processo de substituição,

a mão de obra nos engenhos já seria mista, mesclada entre ameríndios e africanos, tendo estes

últimos tornando-se predominantes em pouco tempo82

. Logo o tráfico de escravos entre a

Bahia e a África se tornou uma atividade tão lucrativa quanto violenta e, por isso mesmo,

atraiu a atenção de muitos.83

A primeira viagem com objetivo de comércio de escravos entre a África e a América

ocorreu no primeiro quarto do século XVI. O ano de 1518 é apontado nas notas de Luís

Henrique Dias Tavares a 3ª edição da obra de Viana Filho (2008), como tendo sido o de

desembarque no Caribe de africanos escravizados oriundos da Guiné, a partir de licença

concedia por Carlos V, então rei da Espanha. De acordo com Antônio de Almeida Mendes

(2004), o primeiro contrato de exportação de escravos para as Américas, propriamente dito,

foi assinado em 1525, por dois irmãos genoveses de nome Tomas e Domingos de Forne84

.

De acordo com Reginaldo Prandi (2000) e Nei Lopes (2011), a primeira leva de

escravos para o Brasil data de 1525. Pouco tempo depois, em 1560, o fluxo comercial

escravista entre o país e o continente africano já era contínuo.

Os africanos capturados e trazidos para o Brasil eram oriundos de diferentes situações.

Poderiam ser indivíduos condenados por delitos cometidos entre os seus, prisioneiros de

guerra penhorados para a quitação de dívidas ou ainda raptados em pequenas vilas no interior

do continente. O destino inicial de todos estes era sempre o mesmo: o navio negreiro.

Personagem central na travessia do Atlântico, o navio negreiro seria eternizado como

símbolo da crueldade imposta aos africanos trazidos para o Brasil. Um verdadeiro inferno

flutuante que nem mesmo Dante fora capaz de imaginar85

. Navio-fantasma que viaja nas

82Para mais informações sobre a dinâmica da mão de obra na produção açucareira do Brasil Colônia, ver Prado

Jr. (1981) e Furtado (2005). 83 Como bem lembra Antônio Risério (2004), mesmo Robinson Crusoé, personagem fictício da obra homônima

do britânico Daniel Defoe, resolveu dedicar-se ao ramo do tráfico de escravos a fim de aumentar seus ganhos.

Crusoé, até então, era “apenas” senhor de um engenho na Bahia. Sua malfadada expedição e consequente

naufrágio dão início ao enredo do livro que acabou por tornar-se célebre mundo afora. 84“Entre eles [comerciantes], figuram Bartolomeu Marchione, comerciante influente, e os irmãos genoveses

Tomas e Domingos de Forne, que assinaram em 1525 o primeiro contrato de exportação de escravos para as Américas. Segundo os termos do respectivo contrato, os dois mercadores sujeitavam-se a levar 600 escravos no

prazo de dois anos. Cada pela de escravo tinha sido contratada ao preço unitário de 6.000 reis, o que

correspondia a um montante global de 3 contos e 600.00 reais. De assinalar que os mesmos Tomas e Domingos

de Forne tinham uma longa experiência do tráfico transatlântico já que, em parceria com outro comerciante

italiano, por nome Vivaldo, tinham recebido em 1519 de Carlos I de Castela (o futuro imperador Carlos V), a

autorização para exportar para Santo Domingo 4.000 licenças”. (MENDES, 2004, p. 18-19) 85 Dante Alighieri escreveu no século XIV o poema épico “A Divina Comédia”. Dividido em três partes, na

primeira destas Dante apresenta sua visão do que seria o Inferno. Seguem-se ainda partes dedicadas ao

Purgatório e ao Paraíso.

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fímbrias da consciência moderna, como diz Marcus Rediker (2011). “O horror, o horror”,

como bradaria Kurtz86

.

Os indivíduos embarcados nos navios eram transportados em compartimentos

reduzidos, escuros e sem higiene, nos quais eram amontoadas em média 400 pessoas.

Conviviam com a fome, o cansaço e a sede. Mais uma vez nas palavras de Castro Alves,

porões negros, fundos, infectos, apertados e imundos, tendo a peste por jaguar. Imagem

muitas vezes mais perturbadora do que a imortalizada pelo pintor Rugendas em sua obra. Um

“tipo de máquina muito singular, cuja capacidade de encarcerar e transportar corpos africanos

ajudou a criar um novo mundo atlântico de trabalho, plantations, comércio, império e

capitalismo” (REDIKER, 2011, p. 82).

Sem qualquer outra preocupação que não fosse a comercial, traficantes alocavam na

mesma embarcação indivíduos provenientes de diferentes localidades do continente africano,

pertencentes as mais diversas etnias. Estruturas sociais outrora estabelecidas eram

simplesmente ignoradas, desmanchadas cada vez que um navio negreiro lançava-se ao mar.

Entretanto, a partir da destruição dos laços sociais anteriores, estratégias de resistência e

comunicação criaram condições para que os africanos escravizados, ainda nos porões dos

navios, estabelecessem novas formas de ação, identificação e associação, muitas vezes

substituindo “estruturas de parentesco” por um “parentesco fictício”, para usar os termos de

Rediker (2011). Parafraseando mais uma vez Castro Alves, eram todas magras crianças, cujas

bocas pretas regavam o sangue de uma mesma mãe, a África.

Pesquisadores da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, e da Universidade de

Hull, na Inglaterra, organizaram um atlas do comércio transatlântico de escravos. A parceria

de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi fundamental para que o banco

de dados do atlas contivesse importantes registros da atividade escravista em solo brasileiro.

A partir de dados de arquivos nacionais e alfandegários, que registraram a chegada ao litoral

brasileiro de navios negreiros oriundos da África, é possível termos uma acurada visão do que

representou esta atividade87

.

De acordo com esta base de dados, foram retiradas da África 12.521.336 pessoas,

vendidas como escravas para diferentes partes do globo. Quase a metade destes (5.532.118)

teve como destino o Brasil. Vale ressaltar que estes números dizem respeito apenas aos

86 Kurtz é um personagem do livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad, publicado em 1902. A sentença citada

refere-se às últimas palavras do personagem, sintetizando a história colonial africana. 87 O banco de dados completo está disponível no endereço eletrônico www.slavevoyages.org.

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africanos trazidos e que tiveram seus registros encontrados em documentos, conforme

mencionado anteriormente. O número real pode - e deve - ser muito maior.

Dentre estes cinco milhões e meio de africanos trazidos como escravos para o Brasil,

cerca de um milhão e setecentos mil ficaram na Bahia, o maior contingente alocado em uma

região específica do território brasileiro.

Os primeiros registros do desembarque em solo baiano de africanos escravizados,

organizados pela referida base de dados, datam de 1576. Entre este ano e o final do século

XVI, foram embarcados rumo a Bahia 6.644 africanos, tendo desembarcado em seu destino

5.64788

. As péssimas condições a que eram submetidos ao longo da travessia atlântica

acabava resultando em um número elevado de mortes.

Nomeado como “Ciclo de Angola”, o segundo ciclo do tráfico de escravos dirigido à

Bahia refere-se ao período que compreendeu todo o século XVII e que trouxe para o Brasil

mais de trezentos mil africanos escravizados. Entre 1601 e 1625, desembarcaram na Bahia

46.278 africanos. O número chega a 69.239 entre os anos de 1626 e 1650 e assim vai

crescendo, exponencialmente. Entre 1651 e 1700, são 229.56589

.

Nos três primeiros quartos do século XVIII, temos o terceiro ciclo, nomeado como

“Ciclo da Costa da Mina”. Entre 1701 e 1775, foram desembarcados na Bahia 592.114

africanos escravizados, em sua ampla maioria trocados por tabaco. A vida de um africano

custava aos comerciantes entre quinze e vinte rolos de fumo.

Por fim, o quarto ciclo, chamado de “Ciclo da Baía de Benin”, que vai do último

quarto do século XVIII até meados do século XIX (a despeito da Lei Feijó)90

, teria trazido

88

“No fim do século seriam 40 [engenhos], seguramente. E a cada um deles concederam Dom João III que

empregasse 120 escravos da Guiné. Se se valeram ou não, integralmente, do valor régio não sabemos. É

provável, porém, que o aproveitassem quanto o permitissem suas posses, pois em 1583 já os engenhos estavam

cheios de negros da Guiné e mui poucos da terra, tanto era superior o trabalho negro em confronto com o

indígena. Pelo alvará de 1549, poderiam, portanto, os engenhos empregar, na Bahia, no fim do século, 4.800

negros. Seriam, porém, 3.000, pelo menos, reservando-se o excedente para os índios. Na cidade estavam três a

quatro mil. Havia ainda os empregados noutras culturas. Não deveriam, portanto, ser menos de 7.000...”

(VIANA FILHO, 2008, p. 71) 89 O deslocamento do eixo de Guiné para Angola se deu por vários fatores, dentre os quais se destacam a menor

distância e, consequentemente, menor tempo de viagem, bem como a preferência por escravos daquela região.

Em curiosa passagem de seu livro, Viana Filho cita trecho das anotações de Joannes de Laet, que enumerava as

vantagens obtidas pela Companhia das Índias Ocidentais, da qual era diretor, através da captura de embarcações aportadas em Salvador durante o ataque holandês a cidade, em 1624: “Huma barca com 250 negros de Angola,

hum navio de Angola com negros; hum navio de Angola com 200 negros; hum navio de Angola com 280

negros; hum navio de Angola com 450 negros; hum navio de Angola com 230 negros. Que dúvida poderia haver

quanto a serem de Angola os negros vindos para a Bahia? Mas, para confirmar a regra, havia uma excepção: um

Patacho de Guiné, com 28 negros...” (LAET apud VIANNA FILHO, 2008, p.80) Os números apresentados pelas

embarcações apreendidas, com 28 escravos oriundos da Guiné e 1.410 oriundos de Angola, demonstram como a

segunda já ocupava o posto que pertencera à primeira. 90 Em 7 de novembro de 1831 é promulgada a chamada Lei Feijó, que tornava, a partir daquele momento, a

importação de escravos para o Brasil a atividade ilegal. Em seu texto original versa o artigo 1º: “Todos os

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para o solo baiano 979.669 indivíduos, um número assombroso de pessoas trazidas da África

para a Bahia para alimentar a engrenagem do regime escravocrata.

Esta numerosa e marcante presença africana em solo baiano deixaria marcas profundas

na conformação social do que hoje entendemos como Bahia. Conhecer a origem dos africanos

trazidos parece ser promissor para que possamos entender algumas das características que

ainda hoje se fazem visíveis, sobretudo nas ruas de Salvador e do Recôncavo, e que

alimentam seu cotidiano.

Aproximadamente dezoito mil africanos trazidos para a Bahia eram originários da

Costa da Guiné, na África Ocidental, especificamente na região nomeada como Senegâmbia,

que compreendia o território localizado entre os rios Senegal e Gâmbia. São Tomé e Cabo

Verde funcionavam como importantes entrepostos comerciais nestas transações, sendo que

em Cabo Verde chegou a ser erguido o conhecido Castelo de São Jorge da Mina, de onde

partiram milhares de pessoas.

Do centro-sul do continente africano chegaram ao solo baiano cerca de vinte e três mil

indivíduos oriundos dos atuais Moçambique, Madagascar e Zimbábue, dentre outros.

A região do Golfo de Biafra, onde atualmente se localizam países como Camarões e

Guiné Equatorial, bem como parte da Nigéria, era o lar de aproximadamente setenta mil

africanos que desembarcaram na Bahia.

Entretanto, os maiores contingentes vieram da África Centro-Ocidental, com cerca de

seiscentos e noventa mil indivíduos, e da região do Golfo da Guiné, com aproximadamente

setecentos e trinta mil indivíduos. África Centro-Ocidental era a região conhecida como Reino

do Congo, e que compreende áreas onde hoje se situam Angola e República Democrática do

Congo, bem como parte do Gabão. Por sua vez o Golfo da Guiné corresponde aos atuais

territórios de Gana, Togo, Benim e Nigéria, sobretudo os próximos ao delta do Rio Níger. A

intensidade do tráfico negreiro na região foi tanta que esta ficou conhecida como Costa dos

escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres” (Disponível em

www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-

88704-pl.html. Acessado em 20 de janeiro 2015). Sabe-se que na prática o tráfico permaneceu. Inicialmente

como residual e posteriormente tornando-se novamente sistêmico. Apenas em 4 de setembro 1850, com a

promulgação da chamada Lei Eusébio de Queirós é que efetivamente se proíbe o tráfico de escravos para o território brasileiro, tendo sido esta nova lei uma tentativa de colocar em prática muitos dos preceitos já

elencados na Lei Feijó. Em seu texto original, o artigo 4º enuncia: “A importação de escravos no territorio do

Imperio fica nelle considerada como pirataria, e será punida pelos seus Tribunaes com as penas declaradas no

Artigo segundo da Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum. A tentativa e a complicidade serão

punidas segundo as regras dos Artigos trinta e quatro e trinta e cinco do Codigo Criminal”. (Disponível em

www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM581.htm. Acessado em 20 de janeiro de 2015). Há de se

mencionar ainda o Bill Aberdeen, legislação inglesa de 1845 que autorizava a abordagem, apreensão e

destruição, por parte da marinha real britânica, de qualquer navio suspeito do transportede escravos. Entre 1845 e

1851, 386 embarcações brasileiras foram detidas sob a força do Bill Aberdeen.

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Escravos. Alguns dos portos mais importantes para o mecanismo do tráfico transatlântico de

escravos, como Lagos, Lomé e Cotonou, se situavam nesta região.

Para além destas delimitações geográficas, é importante salientar que nestes espaços

coexistiam inúmeros grupos étnicos distintos, sendo difícil precisar quantidades de indivíduos

relativos a cada um deles, por uma série de fatores. De acordo com Gwendolyn Hall (2005),

as etnias exportadas de cada região do continente africano variaram durante o período da

atividade negreira. Ainda segundo a autora:

As etnias que partiam dos vários portos da África transformavam-se ao longo do

tempo. Logo após o desembarque, os escravos eram revendidos e,

consequentemente, transferidos para outras localidades, para outras regiões. (...) É

fácil confundir-se diante do número de designações que aparecem para se referir a

uma variedade de populações ao longo de 400 anos de tráfico pelo Atlântico. (...)

Portanto, o significado das “nações” e a designação étnica variam no tempo e no espaço. (HALL, 2005, p. 31).

Além dessa mutabilidade na composição étnica dos africanos traficados, outro fator

que dificulta a sua denominação é a prática recorrente de comerciantes de escravos de se

referir aos grupos a partir de nomes dados a regiões de onde vinham os indivíduos ou até

mesmo aos portos de onde eram embarcados. Exemplar neste sentido é a denominação

“mina”. De acordo com Robin Law:

A origem do nome "mina" não está em jogo. Trata-se de palavra portuguesa que,

neste contexto, se refere especificamente as minas de ouro. Depois da chegada dos

portugueses a Costa do Ouro, em 1471, o nome "Mina" foi logo aplicado à área onde eles negociavam ouro com os povos nativos. Inicialmente, isto acontecia na vila

costeira de Sama. Em 1482, entretanto, os portugueses construíram o Forte de São

Jorge da Mina, localizado 30 km mais a leste, no local de uma aldeia indígena

denominada Edina. A partir de então, o nome "Mina" passou a referir-se a este lugar.

A passagem do nome Mina para a atual forma "Elmina" ocorreu durante o período

da ocupação holandesa do forte, depois de 1637. (...) Embora o nome Mina tenha

passado a designar a vila ereta pelos portugueses, a expressão Costa da Mina era

aplicada genericamente, grosso modo no sentido dado posteriormente a Costa do

Ouro. Mas este uso ainda não estava fixado e algumas vezes incluía uma área maior.

(...) Como mostrou Pierre Verger, do século XVII em diante, no uso

português/brasileiro, o nome Costa da Mina significava "a Costa a sotavento da

Mina", incluindo o litoral a leste do Rio Volta que, por sua vez, era conhecido como Costa dos Escravos. (LAW, 2006, p. 101).

O mesmo topônimo “mina” poderia servir para identificar uma região, um grupo

étnico na África, outro grupo quando visto de fora pelos comerciantes, e ainda um terceiro,

visto do Brasil, por exemplo. Confusão que se reflete ainda nos dias de hoje, por exemplo, na

dificuldade em se decifrar origens, como atesta João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum:

O que nós temos aqui hoje são sobrenomes dos colonizadores, dos senhores de

escravos, mas não tem sobrenome de família, não tem origem de local. E às vezes a

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informação do tráfico de escravos era de onde partiu o navio. Necessariamente não

queria dizer que era daquele porto, de Lagos ou de Luanda, ou do porto de São Jorge

da Mina, em Gana, que as pessoas moravam, habitavam ali. (João Jorge Rodrigues.

Brasil: DNA – João Jorge)91

Segundo Law, em solo brasileiro o termo "mina" era aplicado, em alguns contextos,

aos que falavam as línguas gbe. Era assim, por exemplo, em São Luís do Maranhão, local de

presença marcante dos negros “mina”.

Assim sendo, convencionou-se dividir os africanos desembarcados no Brasil em dois

grandes grupos etnolinguísticos: os bantos e os sudaneses.

Os bantos reuniam povos pertencentes à chamada África Centro-Ocidental, ou

Meridional, distribuídos por um território que hoje abrange países como Angola, Congo,

República Democrática do Congo, Moçambique, Zimbábue, Malauí, Namíbia e Tanzânia,

numa área que se estendia do Atlântico ao Índico.

Como dito anteriormente, para a lógica dos comerciantes de escravos, os grupos eram

divididos por variados critérios, indo do tronco linguístico ao porto de origem. Assim temos

grupos nomeados como Cassangas, Benguelas, Cabindas, Macuas, Quiloas e etc. Diferentes

povos que compartilhavam alguns aspectos étnico-culturais, genéticos e mesmo linguísticos.

Ressalta-se que tais grupos falavam entre setecentas e duas mil línguas e dialetos distintos,

mas muito próximos, dentre as quais podem ser citadas ajauá, ganguela, macua, quicongo,

quimbundo, suaíle e umbundo, cada uma delas falada em regiões específicas da África

Centro-Ocidental. Segundo Prandi:

Em anos recentes, estudos linguísticos demonstraram a sobrevivência no Brasil de

elementos originários principalmente do quicongo, quimbundo e umbundo, o que

nos dá uma boa pista da superioridade demográfica, entre os bantos no Brasil, dos

africanos provenientes do Congo e de Angola, onde estas línguas são faladas. De

fato, reminiscências culturais desses grupos são conhecidas entre nós como congo,

angola e cabinda, hoje usando-se genericamente o termo angola para todos os

bantos, sobretudo quando se trata da designação de religião afro-brasileira de origem

banto ou de outra modalidade cultural, como a capoeira, luta marcial afro-brasileira.

(PRANDI, 2000, p. 54).

Por sua vez, os sudaneses92

situavam-se na chamada África Ocidental, região onde

hoje se localiza a Costa do Marfim, Benim, Togo, Gana, Nigéria, Senegal, ponto de partida do

91 Youtube. Brasil: DNA – João Jorge. Vídeo (1min00s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=iuhuJanJor0. Acesso em 20 de janeiro de 2016. 92 O Sudão a que se refere o termo “sudaneses”, diz respeito a uma faixa de terra que se estende por todo o norte

da África, no sentido oeste-leste, não se referindo, portanto, a região hoje especificamente ocupada pelo país

Sudão.

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maior contingente de indivíduos traficados para a Bahia93

. É a região do Golfo da Guiné,

também conhecida como Costa dos Escravos.

Assim como ocorria com os bantos, dentre os diferentes povos que compunham os

chamados sudaneses, era possível observar inúmeras diferenças, seja em variantes

linguísticas, sejam em particularidades culturais. Algumas das diferenças mais marcantes

foram utilizadas para dividir os sudaneses desembarcados no Brasil em três grupos: nagôs,

jejes e malês.

Ainda segundo Prandi (2000), os nagôs são povos de língua e cultura iorubá sendo,

justamente por este motivo, muitas vezes denominados iorubás. Abrangem os povos Egbá,

Ketu, Sabé, Oyó, Egbado, Ijexá, Ifé, dentre outros. Os jejes reúnem os africanos de origem

Fon, Ashanti, Ewés, Fanti, Nzema, Timini, etc. Por fim, os malês, africanos islamizados, eram

em sua maioria falantes da língua haussá e conhecedores da língua árabe. Assim como

acontecia com os demais grupos, os malês também reuniam diferentes povos, dentre os quais

se destacavam os próprios Haussás, mas que também incluíam Mandingas, Fulas, Tapa,

Bornu e Gurunsi.

Por diferentes razões, algumas das incontáveis particularidades que envolviam cada

uma dessas etnias foram se perdendo ao longo da trajetória dos africanos no Brasil, resultando

em um processo de uniformização em grandes grupos, onde, por exemplo, Fons, Ashantis e

Fantis foram reduzidos a jejes e ketu; Sabé e Ifé, reduzidos a nagôs, termos que se tornaram

dominantes na designação da ancestralidade afro-brasileira.

Desde os primeiros anos do tráfico de escravos os bantos foram maioria, e assim

seguiram sendo em portos como o do Rio de Janeiro. Entretanto, em alguns lugares do país,

com o passar dos anos os sudaneses ocuparam este posto. Foi o que ocorreu na Bahia.

Por sua vez, dentre os subgrupos bantos, o que se verificou foi o predomínio dos

nagôs94

.

No entanto, Risério (2004) chama a atenção para a existência de um

sincretismo entre jejes e nagôs, sincretismo este que teria sido iniciado ainda em solo

africano. Por serem povos vizinhos, habitando basicamente áreas da Nigéria e de Daomé,

jejes e nagôs acabariam tendo estabelecido contato através de trocas comerciais, matrimônios,

alianças dinásticas ou mesmo militares, erigidas contra inimigos comuns, ou ainda, conflitos

entre os próprios grupos. Tais contatos interétnicos teriam influenciado os grupos

93Soma-se a estes, ainda, a Etiópia, Chade, Uganda, bem como partes do Egito e da Tanzânia, regiões de onde se

originou um número menor de escravos. 94 QR Code: “Canto de Fé” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=E7ar08GUGCY

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mutuamente. O que se viu na Bahia foi a acentuação destas trocas, dando corpo ao que o

mesmo Risério vem a chamar de sistema jeje-nagô, retomando sintagma enunciado por Nina

Rodrigues (1982) e que passaria a ser corrente na Bahia.

De acordo com Rodrigues

Uma vez reunidos no Brasil e dominando a língua nagô, naturalmente Jejes, Txis e Gãs adotaram imediatamente as crenças e cultos iorubanos. E como depois da

iorubana, é a mitologia jeje a mais complexa e elevada, antes se deve dizer que uma

mitologia jeje-nagô, prevalece, e não uma mitologia puramente nagô.

(RODRIGUES, 1982, p. 342).

Ao que complementa Risério

(...) podemos constatar que esse sistema jeje-nagô se converteu em código central

das manifestações de cultura do Brasil que apresentam nítidos traços africanos. Ou,

como costumo dizer, numa espécie de ‘metalinguagem’, ideologia geral ou lugar

geométrico no qual as demais formas e práticas culturais de extração negroafricana

se imantam e se tornam legíveis, traduzindo-se umas nas outras, transfiguradas.

(RISÉRIO, 2004, p. 283)

Vivaldo da Costa Lima (1976) defende que a participação de líderes religiosos das

duas culturas, envolvidos com movimentos de resistência antiescravista, foi fundamental no

processo aculturativo. Não por acaso, é no candomblé que se observa mais facilmente esta

influência mútua exercida entre nagôs e jejes já em solo brasileiro. Ainda que, como afirma

Roger Bastide (2001), exista uma prevalência dos nagôs no conjunto das seitas africanas aqui

praticadas, com imposição de divindades, estrutura cerimonial e metafísica, em algum

momento poderão ser observados elementos provenientes do ramo jeje, como aponta Lima

(1976). Essa prevalência nagô é apontada também por Prandi:

Entre os iorubás o último grande império foi o da cidade de Oió, a que estavam submetidas à maioria das demais cidades. Destas cidades, duas ocupam papel

especial na memória da cultura religiosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a cidade

de Xangô, e Ketu, cidade de Oxóssi, além de Abeokutá, centro de culto a Iemanjá, e

Ilexá, a capital da subetnia ijexá, de onde são provenientes os cultos a Oxum e

Logun-Edé. (PRANDI, 2000, p. 54).

Ou seja, Prandi nos informa que alguns dos mais conhecidos orixás cultuados ainda

hoje pelo Candomblé e Umbanda são oriundos de cidades que fazem parte do território de

onde vieram os chamados nagôs95

. No entanto, vale lembrar que importantes entidades, como

95Para mais informações sobre os cultos de origem nagô, ver Bastide (2001).

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Nanã, Oxumaré e Obaluaê são fortemente associadas à tradição jeje, o que corrobora a

afirmação de Lima.

A partir destas informações, satisfaço minha curiosidade e respondo a diversas dúvidas

que tinha a respeito de vários termos que mal sabia serem nomeações de etnias. Venho de

uma época não tão distante em que a História da África não fazia parte dos currículos

escolares. De fato, o negro nos livros escolares sempre ocupou espaço marginal, confinado

aos indefectíveis relatos sobre o período colonial e a escravidão. Era como se a história dos

africanos começasse ao pisar nos navios negreiros, sendo que muitas vezes era este o passo

definitivo para seu fim.

Em Salvador, termos como “nagô”, “jeje”, “banto”, “malê”, “ashanti”, e tantos outros,

fazem parte de um vocabulário bem difundido, sobretudo entre os indivíduos envolvidos com

o ativismo negro. Nomeiam blocos, enredos, iniciativas culturais e tradições religiosas. Tomar

ciência do significado destes termos, e de toda a carga simbólica que cada uma dessas

palavras carrega, me ajudou a diminuir o abissal distanciamento existente entre eu e os

integrantes dos blocos. Uma Pedra de Roseta que me auxiliou na busca por uma compreensão

mais plena das marcas deixadas por estes povos na cultura baiana (e brasileira por extensão).

Relembrando o tempo em campo, percebo como um simples caminhar pelas ladeiras

de Salvador me revelava, a todo o momento, o quão numerosas foram estas marcas. Seja no

sabor do abará, do bobó, do acarajé, do angu, da canjica, sarapatel ou caruru; seja ao som do

batuque, do toque do agogô, do berimbau, do caxixi, da zabumba ou da macumba; seja nos

passos leves do carimbó, do maracatu ou da congada, no jogo da capoeira ou caxangá; seja no

ornamento dos búzios, das miçangas ou dos balangandãs; seja no furdúncio, fuzarca ou fuzuê;

seja nos terreiros de Angola, Congo, Jeje, Nagô; seja na ziquizira ou na urucubaca; seja no

saravá ou no axé; seja na língua que nomeia todos estes elementos. Ecos de práticas culturais

trazidos como bagagem dentro do corpo e da alma de cada um daqueles que, embarcado em

navios tumbeiros, desembarcaram por aqui96

. Ecos que os blocos afro fazem questão de

transformar em brado.

96 Para mais informações sobre das designações étnicas e raciais dos escravos ver Florentino (1997), Florentino e

Góes (1997) e Karasch (2000).

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3.2.COMPOSIÇÃO DEMOGRÁFICA SOTEROPOLITANA

A COR DESSA CIDADE

Recuar no tempo e vislumbrar, mesmo que de relance, a trajetória dos africanos que

escravizados rumaram para o Brasil, mostrou-se de grande valia para que eu pudesse

compreender melhor uma fração dos temas tratados pelos blocos afro, seja em suas

apostilas, cartilhas e canções, seja em seus posicionamentos culturais, políticos e

estéticos97

. Mas não era o suficiente. Conhecer um pouco melhor a composição

demográfica da Salvador atual, resultante de toda esta movimentação anteriormente descrita,

bem como de muitas outras, pareceu ser um promissor caminho.

Ciente de que o Brasil é um país onde a mestiçagem produziu marcas indeléveis,

procurar pelo elemento negro no universo da demografia pode ser uma tarefa espinhosa.

Reconhecidos são os efeitos negativos, sociais e psicológicos, de décadas de um

regime escravocrata legalizado e violento e de uma abolição que concedeu uma liberdade sem

dotar os libertos de condições plenas de seu exercício, convertendo a ordem escravocrata, e

sua dominação subjacente, em fatores de estratificação social98

, como nos lembra Florestan

Fernandes:

Acresce não só que não se processou uma democratização real da renda, do poder e

do prestígio social em termos raciais. As oportunidades surgidas foram aproveitadas

pelos grupos melhor localizados da ‘raça dominante’, o que contribuiu para

aumentar a concentração racial da renda, do poder e do prestígio social em benefício

do branco. No contexto histórico surgido após a Abolição, portanto, a ideia da ‘democracia racial’ acabou sendo um expediente inicial e uma forma de acomodação

a uma dura realidade. O ‘negro’ teve a oportunidade de ser livre; se não conseguiu

igualar-se ao ‘branco’, o problema era dele – não do ‘branco’. Sob a égide da ideia

de democracia racial justificou-se, pois, a mais extrema indiferença e falta de

solidariedade para com um setor da coletividade que não possuía condições próprias

para enfrentar as mudanças acarretadas pela universalização do trabalho livre e da

competição. (FERNANDES, 2007, p. 46-47)

Assim como nefastas foram as sucessivas políticas de branqueamento da população,

buscando-se através da própria mestiçagem a eliminação do elemento negro/africano,

alijando-o do vindouro projeto de nação. Os reflexos de tais empresas, bem como de

cotidianas demonstrações de animosidade e preconceito, podem ser percebidos na forma

como os indivíduos se identificam.

97 QR Code: “O Canto da Cidade” – Daniela Mercury. Disponível em

www.youtube.com/watch?v=uLGc9HYyEAk 98Para mais informações sobre a relação entre estratificação social e questão racial ver Azevedo (1953), Bastide e

Fernandes (1959), Cardoso e Ianni (1960), Costa Pinto (1953), Fernandes (1965) e (2007), Freyre (1951), Ianni

(1962), Pierson (1971) e Bacelar (2001).

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Por mais que pesquisas censitárias estejam repletas de limitações, por não

conseguirem alcançar as nuances que conformam todo dinamismo da vida social, não

podemos descartar os resultados que as mesmas apresentam. Se não como retrato fidedigno

do país, como pistas do que este pode vir a ser.

O primeiro recenseamento realizado no Brasil, datado do ano de 1872, já contava com

um sistema de classificação por cor ou raça que trazia as categorias branco, preto, pardo e

caboclo. O segundo recenseamento, realizado em 1890, substituiu o termo pardo por mestiço,

mantendo as demais categorias.

Por sua vez, o Censo de 1940 trazia apenas três categorias (branco, preto e amarelo), e

uma instrução de preenchimento para assinalar um simples traço em caso de resposta

diferente das categorias propostas, excluindo assim as categorias em referência a mestiçagem,

situação corrigida nos Censos de 1950 e 1960, quando a categoria pardo foi recolocada junto

as demais. Foi também nestes Censos que a opção pela autodeclaração passou a configurar a

norma para a apuração de cor ou raça do informante.

A atual classificação adotada pelo IBGE, que divide a população em categorias de cor

ou raça99

, podendo estas variar entre brancos, pretos, pardos, amarelos, bem como indígenas,

categoria ausente em todos os recenseamentos realizados nos cem anos anteriores, surge no

Censo de 1991, tornando-se o padrão definido por este como o oficial do Instituto. Desta feita,

resolvi concentrar minha breve leitura sobre os levantamentos realizados nos anos de 1991,

2000 e 2010, sendo este o último efetivado até então.

Baseado na autodeclaração dos entrevistados, o IBGE informou que no ano de 1991 o

Brasil possuía 75.704.922 brancos, 62.316.085 pardos e 7.335.130 negros, para uma

população total de 146.815.815 de habitantes. Assim, no ano de 1991, os brancos

correspondiam a 51,56% de toda a população brasileira. Os pardos respondiam por 42,45% e

os pretos por 5,00% da população100

.

99 Farei minhas as palavras de Petruccelli ao justificar a pertinência do conceito de raça nos estudos sociológicos:

“Assim, hoje há amplo consenso de sua ineficácia teórica como conceito biológico, tendo sido definitivamente

erradicado pela genética, mas, ao mesmo tempo, multiplicam-se as constatações de sua persistência como realidade simbólica extremamente eficaz nos seus efeitos sociais. Com efeito, sua força é precisamente

verificada pelo fato de que este conceito se apoia sobre uma marca ‘natural’, visível, transmissível de maneira

hereditária, pregnante a percepção imediata, dando a possibilidade, assim, de gerar grupos sociais reais ou

categorias que podem ser qualificadas como raciais. Dessa maneira, a noção de raça ainda permeia o conjunto de

relações sociais, atravessa práticas e crenças e determina o lugar e o status de indivíduos e grupos na sociedade.

Nesse sentido, a pessoa pode ser identificada, classificada, hierarquizada, priorizada ou subalternizada a partir de

uma cor/raça/etnia ou origem a ela atribuída por quem a observa.” (PETRUCCELLI, 2013, p. 17) 100 Para os objetivos aqui propostos, as categorias “amarelo” e “indígena” foram descartadas sem terem, no

entanto, seu percentual desprezado para a apuração do percentual das demais categorias.

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Vale aqui uma pequena ressalva. As categorias do IBGE tratam de “pretos” e

“pardos”, não de “negros”. De acordo com o Instituto, poder-se-ia considerar negros a

somatória dos indivíduos que se identificaram como pretos ou pardos101

. Sendo assim, para o

ano de 1991, o Brasil contaria com uma população de 69.651.205 negros, ou 47,45% do total.

Para o ano de 2000, o quadro sofre ligeiras modificações, com os brancos chegando a

91.298.040, os pardos a 65.318.092 e os pretos a 10.554.337. Um crescimento no que tange

os números absolutos, até pelo próprio crescimento da população geral, que atingiu

169.872.856 de habitantes, mas uma interessante variação nos números relativos. A população

branca passou de 51,56% em 1991 para 53,74% em 2000; a preta de 5,00% em 1991 para

6,21% em 2000; a parda de 42,45% em 1991 para 38,45% em 2000. Um acréscimo entre

brancos e pretos e um decréscimo entre pardos, o que poderia significar uma migração de

indivíduos desta categoria para as duas anteriores.

Em se tratando de população negra, 2000 observou um decréscimo em relação a 1991,

com esta passando de 47,45% para 44,66% do total, somando agora um contingente de

75.872.429 de pessoas.

Em 2010, pela primeira vez desde que os levantamentos periódicos do IBGE

começaram a ser realizados, a população branca deixou de ser maioria no país, passando de

53,74%, registrados em 2000, para 47,51%. No mesmo período foi possível observar o novo

crescimento da população preta, que passou de 6,21% em 2000 para 7,52% em 2010, bem

como a retomada da população autoidentificada como parda, passando de 38,45% em 2000

para 43,42% em 2010, percentual próximo ao registrado em 1991.

Em se tratando da população negra, esta se torna predominante no país, representando

50,94% do total, com 97.171.914 em um universo de 190.755.799 de habitantes. O Brasil

configura-se assim como o país com a maior população negra fora do continente africano.

Todo este movimento entre os anos de 1991 e 2010 pode ser observado a partir da Tabela 1:

101 Segundo o IBGE, deve ser incluída na categoria “pardo” a pessoa que se declarou mulata, cabocla, cafuza,

mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça. É justamente nesse conglomerado de categorias que reside à limitação do entendimento de que negro seria, tão somente, a soma de pretos e pardos. Enquanto o

mulato é entendido como sendo o indivíduo nascido da miscigenação entre brancos e negros, e cafuzo designaria

o indivíduo resultante da mestiçagem entre negros e ameríndios, caboclos ou mamelucos seriam os indivíduos

resultantes da mestiçagem entre brancos e ameríndios, inexistindo nessa equação o elemento preto. Em um país

com a diversidade demográfica e extensão territorial do Brasil, conceber um entendimento único sobre a ideia do

pardo parece ser um problema. Da forma como é apresentada pelo IBGE, a ideia de um negro nascido do

somatório de pretos e pardos parece tratar-se antes de uma identificação pela negação do que pela afirmação.

Seriam negros todos aqueles que não se declarassem brancos, a exceção de indígenas e amarelos. Feita a

ressalva, para fins desse estudo utilizaremos a categoria negro como apresentada pelo IBGE.

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Tabela 1 – Brasil - Cor ou Raça x Ano

1991 2000 2010

Brancos 51,56% 53,74% 47,51%

Pretos 5,00% 6,21% 7,52%

Pardos 42,45% 38,45% 43,42%

Brancos 51,56% 53,74% 47,51%

Negros 47,45% 44,66% 50,94%

FONTE: IBGE Censo Demográfico 1991, 2000 e 2010

Não resta dúvida de que tal mudança demográfica diz muito a respeito do avanço do

país no tratamento de sua questão racial. A adoção de políticas de ações afirmativas,

sobretudo na primeira década do século XXI, contribuiu sobremaneira para uma mudança de

quadro. No entanto, em um país com dimensões continentais, uma transformação nacional

pode não ser tão representativa da situação em todas as suas regiões. Para que as pistas

fornecidas pelo IBGE pudessem fazer-se mais audíveis, precisaria me aproximar mais de meu

sujeito de pesquisa. Focalizar a cidade de Salvador e abordar os números por ela

apresentados.

De acordo com o Censo 1991, a população soteropolitana era formada por 20,43% de

brancos, 14,58% de pretos e 64,26% de pardos. Negros somariam 78,82%. Já em 2000,

seguindo tendência geral, registrou-se a queda no número de pardos, que passaram a ser

54,80%, e, consequentemente o de negros, 75,21% do total. O contingente de brancos elevou-

se ara 23,04% e o de pretos para 20,41%.

Retomando os números absolutos, deixados de lado há alguns parágrafos, registra-se

que Salvador contava com 2.675.656 habitantes no ano de 2010. Destes, 2.120.095 habitantes

são negros, o que representa 79,23% do total, divididos em 51,83% de pardos e consideráveis

27,40% de pretos. 733.253 soteropolitanos se declararam pretos. 5% de todos os pretos do

Brasil eram residentes em Salvador no ano de 2010. A cidade surge ainda como a segunda

com o maior contingente de negros em todo o mundo, ficando atrás apenas de Lagos, capital

da Nigéria. Vejamos os dados agrupados na Tabela 2:

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Tabela 2 – Salvador - Cor ou Raça x Ano

1991 2000 2010

Brancos 20,43% 23,04% 18,90%

Pretos 14,58% 20,41% 27,40%

Pardos 64,24% 54,80% 51,83%

Brancos 20,43% 23,04% 18,90%

Negros 78,82% 75,21% 79,23%

FONTE: IBGE Censo Demográfico 1991, 2000 e 2010

Em comparação com os dados nacionais para os mesmos três levantamentos, Salvador

sempre apresentou percentuais maiores de pessoas autodeclaradas pretas e percentuais

menores de pessoas autodeclaradas pardas, conforme podemos observar na Tabela 3.

Tabela 3 – Cor ou Raça x Ano x Brasil/Salvador

1991 2000 2010

Brancos (Salvador) 20,43% 23,04% 18,90%

Brancos (Brasil) 51,56% 53,74% 47,51%

Pardos (Salvador) 64,24% 54,8% 51,83%

Pardos (Brasil) 42,45% 38,45% 43,42%

Pretos (Salvador) 14,58% 20,41% 27,40%

Pretos (Brasil) 5,00% 6,21% 7,52%

Negros (Salvador) 78,82% 75,21% 79,23%

Negros (Brasil) 47,45% 44,66% 50,94%

FONTE: IBGE Censo Demográfico 1991, 2000 e 2010

Seria este um sinal de que em Salvador o discurso de valorização da negritude e das

ações afirmativas se mostrou mais efetivo, fazendo com que um número maior de indivíduos

se identificasse com a categoria “preto”? Estariam as pessoas deixando de lado a categoria

“pardo”, que muitas vezes se mostra fluida, dada sua maior possibilidade de abarcar os

indivíduos, para integrar a categoria “preto”?

Optei, então, por fazer um último recorte. Uma última aproximação demográfica, que

ajustasse seu foco para as áreas onde se localizam os blocos Olodum, Ilê Aiyê e Malê Debalê,

nos bairros do Pelourinho, Liberdade e Itapuã, respectivamente.

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O caminho natural seria o recorte por bairro, mas a possibilidade de fazê-lo utilizando

os setores censitários102

se mostrou mais interessante, sobretudo por permitir um

delineamento de território exatamente circundante à área ocupada pelas sedes. Uma área de

influência direta, se assim podemos dizer.

Os dados disponíveis remetiam exclusivamente ao ano de 2010, não podendo, assim,

serem feitas comparações de caráter temporal. Recapitulando dados já apresentados, Salvador

contava no ano de 2010 com 18,90% de população branca e 79,23% de população negra,

dividida em 27,40% de pretos e 51,83% de pardos.

Comecemos, pois, pelo bairro da Liberdade, região circundante a ladeira do Curuzu,

onde está sediado o Ilê Aiyê. De acordo com dados do IBGE, referentes a vinte setores

censitários pesquisados, o território em questão teria uma população majoritariamente negra,

sendo estes 87,36% do total, divididos em 39,47% de pretos e 47,89% de pardos.

A situação não é tão diferente no Pelourinho, localizado no centro histórico de

Salvador, com suas ladeiras centenárias onde se estabeleceu o Olodum. Dados do IBGE para

cinco setores censitários circundantes a sede do bloco indicam a presença de uma população

composta por 83,37% de negros, divididos em 29,52% de pretos e 53,85% de pardos.

Rumando para Itapuã, nos deteremos na vizinhança do Abaeté, localidade onde se

encontra a sede do Malê Debalê. Ao redor desta foram selecionados oito setores censitários,

pesquisados na base de dados do IBGE, para que se apurasse que 81,45% de sua população é

formada por negros, divididos em 30,20% de pretos e 51,25% de pardos, como pode ser

observado na Tabela 4:

Tabela 4 – Cor ou Raça x Bairros/Salvador

Pretos Pardos Negros

Salvador 27,40% 51,83% 79,23%

Liberdade 39,47% 47,89% 87,36%

Pelourinho 29,52% 53,85% 83,37%

Itapuã 30,20% 51,25% 81,45%

FONTE: IBGE Censo Demográfico 1991, 2000 e 2010

102 De acordo com o IBGE: “O setor censitário é a menor unidade territorial, formada por área contínua,

integralmente contida em área urbana ou rural, com dimensão adequada à operação de pesquisas e cujo conjunto

esgota a totalidade do Território Nacional, o que permite assegurar a plena cobertura do País.” (Base de

informações do Censo Demográfico 2010 - IBGE, 2011, p.3. Disponível em

www.ipea.gov.br/redeipea/images/pdfs/base_de_informacoess_por_setor_censitario_universo_censo_2010.pdf.

Acessado em 8 de junho 2015).

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As áreas ocupadas pelos três blocos possuem contingentes populacionais negros

percentualmente superiores ao encontrado para a cidade de Salvador como um todo. Nestes,

também, a identificação com a categoria “preto” é maior do que a registrada para o município.

A opção pela categoria “preto” se mostra relevante na medida em que, ao longo da

história brasileira, diversos movimentos foram feitos com o intuito de desassociar o elemento

africano de parcela considerável da população, reduzindo assim seu potencial de mobilização

político-social, bem como a emergência de um sentimento de pertencimento étnico-racial.

Conforme afirma Tereza Araújo (1987), a percepção social da cor, bem como sua

categorização, são operações complexas, processadas em um contexto de interação social, que

envolve a apreensão de características fenotípicas dotadas de valor e significado. De acordo

com Alessandra Nascimento e Dagoberto Fonseca:

De outro modo, em diversas análises, as cores têm recebido um valor cultural e

simbólico significativo na medida em que são dados a elas papel e função social

diferentes para dialogarem e estruturarem categorias raciais. Um exemplo disso pode

ser observado ao se destacar o que ocorre com a cor branca, ela que, mais do que

qualquer outra cor, configura apenas signos positivos. (NASCIMENTO e

FONSECA, 2013, p. 56).

Em contrapartida a valoração atribuída à cor branca, a cor negra sempre foi eivada de

aspectos negativos. É neste sentido que se pode afirmar que, mais do que meras categorias

cromáticas, as cores expressam categorias que passam por um processo de politização,

produzido e reproduzido pelas mais diversas instituições, constituindo assim uma

liminaridade simbólica, responsável pela delimitação de espaços e territórios, estabelecendo o

“lugar do negro” e o “lugar do branco” em nossa sociedade. Tal divisão, ainda que negada ou

disfarçada, faz-se viva de variadas maneiras, podendo se dar tanto através dos indicadores

sociais que apontam a discrepância existente entre ambos os grupos no que tange índices de

pobreza, analfabetismo, desemprego, mortalidade e precariedade de moradia, como nas

corriqueiras ações cotidianas, através de comentários jocosos, piadas, brincadeiras, ausências,

restrições e omissões.

Divisão esta sobrevivente do período escravista, espectadora de mudanças que não

resultaram em transformações. Resistente ao tempo, embora travestida de nova roupagem, é a

mesma divisão observada por Jeferson Bacelar (2001) na Salvador pós-Abolição:

(...) para manter a ordem vigente, sem alterações nas posições ocupadas, tornava-se

indispensável para os grupos dominantes afirmar a supremacia dos brancos e a

inferioridade dos ex-escravos. Enfim, justificar ideologicamente as condutas

desenvolvidas em relação à questão racial em Salvador. Em levantamento efetivado

nos jornais da época, emanou um discurso esclarecedor da posição dos grupos

dominantes em relação ao negro. Era construída uma série de imagens,

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aparentemente dispersas no tempo e espaço, de certa forma fragmentadas, no

entanto, constitutivas de um quadro coerente e nitidamente negativo da condição do

ser negro em Salvador. Não havia afirmação em nenhum instante de conflito racial,

nem tampouco avaliação das relações entre negros e brancos, mas sim uma

perspectiva estigmatizante em relação ao negro. O negro era o outro inferior e

incivilizado, em relação ao branco, superior e portador dos padrões civilizatórios

europeus. (BACELAR, 2001, p. 48)

Investir na leitura dos dados disponibilizados pelo IBGE mostrou-se importante para

entender um pouco melhor sobre o porquê do surgimento destes blocos justamente nestas

comunidades, e mesmo em Salvador, mas ainda deixou muitas lacunas a serem preenchidas.

Realizado o mapeamento da composição demográfica das áreas onde estão sediados as

agremiações, sujeitos de estudo desta tese, talvez fosse hora de recuar mais uma vez no tempo

para tentar compreender melhor as origens desta ocupação.

3.3.CENTRO E PERIFERIA

O GUETO, A RUA, A FÉ

Salvador nasceu no ano de 1549, como cidade-fortaleza, tutelada por Tomé de Souza,

estabelecida em um sítio físico de características muito particulares. Banhada pela Baía de

Todos os Santos, suas terras eram divididas entre uma estreita faixa litorânea, onde se

localizava a aldeota compartilhada por Diogo Álvares Correia, o Caramuru, e os tupinambás,

na região hoje chamada de Rio Vermelho, e um platô, onde foi implantada a cidade, formada

basicamente por casas simples de taipa e palha, de piso único, conferindo ao lugar ares antes

de arraial do que de cidadela.

Dividida em duas, Salvador viu suas metades desenvolverem contornos próprios ao

longo dos séculos XVI e XVII. Na chamada Cidade Baixa instalaram-se estabelecimentos

comerciais como armazéns, oficinas, depósitos e ferrarias, portos e estruturas de atividades

portuárias como a alfândega, contígua a Casa de Fazenda. Curiosamente, a primeira

edificação erguida na Cidade Baixa não tem relação com estes seguimentos. Trata-se da igreja

de Nossa Senhora da Conceição que por lá ainda segue, imponente embora descuidada. As

edificações eram dispostas de maneira longilínea, acompanhando o desenho da estreita faixa

de terra.

Já a Cidade Alta era o lugar onde se localizavam os edifícios administrativos, como o

Palácio dos Governadores e Casa de Câmara e Cadeia, além do casario residencial,

pelourinho, Colégio dos Jesuítas, Terreiro de Jesus, igrejas e conventos, dispostos respeitando

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o traçado urbano definido por Luís Dias, arquiteto nomeado pela Coroa Portuguesa. Um

planejamento baseado em traçado geométrico de quadras e praças, onde grandes quadriláteros

compõem um todo que acaba por se assemelhar a um tabuleiro de xadrez. Esta área, por sua

vez, era contornada por muros que visavam conferir segurança ao lugar.

Inicialmente, para o acesso a cidadela existiam duas portas: a de Santa Catarina e a de

Santa Luzia, uma em cada de suas extremidades. Seus limites iam da freguesia de Santo

Antônio Além do Carmo, até a freguesia de São Pedro Velho. Passados alguns anos, com a

ampliação dos limites da cidade, novas portas surgiram: a de São Bento e a do Carmo. A

ligação entre as partes alta e baixa da cidade era feita basicamente por duas ladeiras: a da

Preguiça e a da Conceição.

A esta altura a proteção da cidade ficava a cargo da Bateria da Ribeira e dos fortes de

São Paulo da Gamboa, de São Pedro, de São Marcelo, São Diogo, Santa Maria e de Santo

Antônio da Barra, que passou a abrigar um farol já no século XVII. As construções em taipa e

palha perderam-se no tempo, sendo substituídas por edifícios de pedra e barro, rebocados com

cal e cobertos por telhas.

O século XVIII apresentaria uma Salvador formada por seis bairros: São Bento,

Palma, Desterro, Praia, Santo Antônio Além do Carmo e Saúde. Entretanto, outra Salvador

vinha ganhando forma simultaneamente. A Salvador da periferia.

Escravos fugidos, e mesmo negros libertos, buscavam abrigo em áreas circundantes a

da cidade. Lá começaram a estabelecer, primeiramente, quilombos para em seguida formarem

conjuntos urbanos compostos basicamente por construções mais precárias e casebres. Tais

aglomerados eram de conhecimento das autoridades, conforme informa João José Reis:

O conde da Ponte, Governador da Bahia entre 1805 e 1810 escrevia ao Conselho

Ultramarinho português, em 1807 sendo repetidas e muito frequentes as deserções de escravos do poder de seus senhores... entrei na curiosidade de saber que destino

seguiam, e sem grande dificuldade conheci que nos subúrbios desta capital, e dentro

do mato de que toda ela é cercada, eram inumeráveis os ajuntamentos desta

qualidade de gente. (REIS, 1986, p. 66).

Estes aglomerados dariam origem a bairros hoje conhecidos como Matatu, Cajazeiras

e Alto da Sereia. Mesmo Itapuã teria algumas de suas raízes originadas em aglomerados deste

período, como aponta Donald Pierson:

(...) dizem mesmo que as áreas periféricas da cidade da Bahia, como Mata Escura e

Estrada da Liberdade e as povoações vizinhas, de Cabula, Armação, Pirajá e ltapuã,

originaram-se de quilombos que datavam do período colonial. Desses agrupamentos

partiam frequentes sortidas de pretos para a cidade, com o fim de roubar e pilhar

(PIERSON, 1971, p. 128).

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Algumas áreas específicas dentro destes aglomerados periféricos acabariam por se

configurar, anos mais tarde, como territórios culturais negros referenciais para a cidade de

Salvador, como o Candeal, o Calabar e o Curuzu.

É interessante observar como a própria toponímia dos bairros de Salvador nos ajuda a

identificar, ao menos em parte, o processo de constituição que deu forma a cidade103

. As

partes mais centrais, de colonização portuguesa, erigidas em seu nascedouro, costumam

carregar denominações relacionadas ao catolicismo como Conceição, Nazaré, Santo Antônio

Além do Carmo, Lapa, Pilar, São Pedro, dentre outros.

Registra-se também a presença de bairros com toponímia relacionada a termos

indígenas como Abaeté, Narandiba, Piatã, Itapuã, Itaigara, Pituaçu, Pernambués, Sussuarana,

Itapagipe e Pituba, todos nos arredores do que até então, no século XVIII, eram os limites da

cidade de Salvador.

Afastando-se do centro, novas designações vão surgindo, como Cabula, onde se

localizava o afamado quilombo do Urubu. Podem ser citados ainda os bairros de Bonocô e

Ogunjá, dentre outros.

Originalmente Igunnuko, que por corruptela acabou convertendo-se em Gunokô e,

posteriormente Bonocô, era o nome dado ao local onde os africanos realizavam o ritual de

Baba Igunnuko em torno de uma árvore considerada sagrada, encantada por um Baba Egun104

,

que atuava como uma espécie de oráculo, respondendo perguntas que lhe eram feitas. Vários

terreiros de candomblé foram surgindo no entorno da área do Bonocô, entre os quais se

destaca o Ilê Ogun Já, que por sua importância acabaria por nomear toda a região que passaria

a ser conhecida como Ogunjá.

3.3.1.OS CANDOMBLÉS

UM CANTO DE FÉ

Esta relação entre periferia e religiosidade africana não é obra do acaso, mas antes,

fruto de um pensamento estratégico. Apesar das práticas religiosas africanas serem realizadas

em áreas centrais da cidade, era nos arredores de Salvador que estas floresciam de maneira

103 Para uma análise da toponímia dos municípios baianos, ver RAMOS (2008). 104 Baba Egun, Egun, Egungun ou simplesmente Baba é a denominação dada aos espíritos ancestrais

especialmente preparados para serem invocados e materializados, cultuados em rituais de origem nagô, de

acordo com a hierarquia e importância que tiveram dentro da comunidade.

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mais plena. O primeiro motivo é o mais óbvio. A aglomeração de negros nestas regiões, com

liberdade suficiente para a realização de seus cultos, por si só já seria um considerável

elemento motivador. O segundo era a segurança que o isolamento trazia, tanto no que tange a

uma possível repressão oficial quanto à proteção dos próprios segredos dos rituais. Por fim,

mas não menos importante, deve ser lembrada a ligação destes cultos com os elementos

naturais. Um culto como o de Baba Igunnuko, cujo elemento central era uma árvore,

dificilmente seria realizado na região central de Salvador que, segundo Risério (2004), a

época praticamente não contava com árvores. A prática da arborização de ruas em Salvador (e

em todo o país) era inexistente até o século XIX.

Curiosamente, o primeiro candomblé estabelecido em Salvador não nasceria na

periferia, mas sim de uma irmandade de negros, organizada atrás da capela de Nossa Senhora

da Barroquinha, área próxima ao centro da cidade nas redondezas da atual Praça Castro

Alves, pelas mãos de três mulheres.

Tudo começou com um calundu105

organizado pela sacerdotisa e negra forra Iyá

Adetá106

em sua própria residência. Agregando um número crescente de negros de origem

jeje-nagô a cada nova cerimônia, logo surgiu a demanda por um espaço mais apropriado para

o exercício das práticas religiosas. Este viria com o arrendamento de um terreno em área

arborizada e de pântano, contíguo a capela já citada. Seria ali que o culto deixaria o âmbito

doméstico para ganhar ares de terreiro, dando origem ao “Candomblé da Barroquinha”, mas

com nome oficial de Ilê Axé Airá Intilê, cuja fundação estima-se para o ano de 1789.

É necessário que seja ressaltado um aspecto peculiar na formação do Candomblé da

Barroquinha, que seria elemento central no processo aglutinador de tantas etnias distintas

trazidas para Salvador sob o signo da escravidão.

Em solo africano, cada aldeia possuía um orixá cultuado. Ao desembarcarem em solo

soteropolitano, os africanos, escravizados em diferentes partes da África, trouxeram consigo o

culto de tais divindades. O que o Candomblé da Barroquinha fez de inovador foi promover o

culto de vários orixás em um mesmo espaço sagrado. A união de diferentes etnias com base

na fé.

Levando em conta que tudo começou no culto a Oxóssi, divindade de Ketu, realizado

por Iyá Adetá, é natural que tal orixá ocupasse posição de destaque na casa. Entretanto, um

105 Calundu é uma prática religiosa de origem africana costumeira no Brasil colonial e que, por não contar com

templos, era realizada em residências de pessoas relevantes para a comunidade. Os rituais eram comandados por

um sacerdote que podia fazer, ainda, às vezes de curandeiro e adivinho. Para mais informações sobre calundu

colonial, ver BASTIDE (1971), REIS (2005) e (1988), SANTOS (2008), MOTT (1994), e SILVEIRA (2005). 106 Iyá é um substantivo de origem iorubá que significa mãe.

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acordo permitiu que posição de destaque também fosse dada a Xangô, divindade de Oyó, com

o terreiro como um todo sendo pertencente à Oxóssi, mas com o barracão central pertencente

a Xangô.

Como nem só das etnias Ketu (jeje-nagôs) e Oyó vivia a Salvador daqueles tempos,

abriu-se espaço também para os grupos de Ijexá e Efan, cada qual com sua divindade. Oxum

entre os primeiros e Oxalá entre os últimos. Reunidas, as quatro tradições (Ketu, Oyó, Ijexá e

Efan) foram simbolizadas em quatro pilares, cada um dedicado a uma das referidas

divindades. Toda esta organização ficou sob o comando de uma sacerdotisa única, a iyalorixá

Iyá Akalá, segunda das mulheres essenciais neste processo.

Já no século XIX a casa acabaria mudando de lugar, em resposta a perseguições do

poder instituído, a partir da iniciativa de reurbanização da área levada a cabo pelo então

Visconde de São Lourenço. O terreiro, nascido no coração de Salvador, seria obrigado a

recuar para a periferia, movimento fundamental para sua sobrevivência e para a história do

Candomblé na cidade.

Após algumas tentativas de novo assentamento em locais como o Calabar, na Baixa de

São Lázaro, a casa se estabeleceu em definitivo no bairro da Federação, no Engenho Velho,

em terreno arrendado por Iyá Nassô, a terceira das mulheres fundamentais neste processo,

próximo a hoje Avenida Vasco da Gama, sob o nome de Casa Branca do Engenho Velho, ou

ainda Ilê Axé Iya Nassô Oká107

. Do Terreiro da Casa Branca nasceriam outros dois expoentes

do Candomblé baiano: Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê e Ilê Axé Opô Afonjá108

.

Pode-se considerar o Terreiro da Casa Branca a origem de todos os demais

candomblés de Salvador. A partir deste, a prática do calundu foi sendo substituída por cultos

organizados sobre a nova lógica, espalhando-se rapidamente pelas áreas mais pobres da

capital109

. De acordo com Edison Carneiro

107 Ilê é um substantivo de origem iorubá que significa casa. Axé é um substantivo de origem iorubá que nomeia

a energia vital de cada ser, sua força, energia sagrada de cada Orixá. Quando grafado em conjunto, ilê axé serve

para nomear os locais de culto do Candomblé. 108 Como fora dito, quem comandava a Casa Branca do Engenho Velho era Iyá Nassô, substituída após sua morte

por Iyá Marcelina da Silva. Esta, por sua vez, viria a ser substituída, também após falecer, por Maria Júlia

Figueiredo, chamada Iyá Kekeré. Insatisfeita com tal escolha, a também postulante ao comando da Casa, Maria Júlia da Conceição acaba por afastar-se, levando consigo outros dissidentes. Este grupo viria a formar, em 1849,

o Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê, também no bairro da Federação, e que por situar-se no Alto do Gantois acabou

conhecido como Terreiro do Gantois. Após a morte de Iyá Kekeré, que comandava a Casa Branca, foi conduzida

ao posto Mãe Sussu (Ursulina de Figueiredo). Com a morte de Mãe Sussu, Sinhá Antônia e Tia Massi

(Maximiana Maria da Conceição) disputaram o comando da Casa, que acabou entregue a Tia Massi. Novamente

a não aceitação da escolha por parte de alguns membros da casa levaria a uma dissidência e a consequente

fundação do Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro do Cabula, já no ano de 1910. 109 O Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizou um

mapeamento dos terreiros de candomblé existentes na cidade de Salvador, chegando ao registro de 1155

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Assim vamos encontrar candomblés no Rio Vermelho, na Mata Escura, na Vila

América, na Federação, na Fazenda Garcia, nas Quintas da Barra, na Avenida

Oceânica, em Brotas, na Goméia, em São Gonçalo e na Fazenda Grande do Retiro,

no Beiru, no Bate-Folha, na Areia da Cruz do Cosme, na Cidade de Palha, na Quinta

das Beatas, no Engenho Velho, na Ilha Amarela, na Formiga, nos Fiais, na Estrada

da Liberdade, no Matatu Grande, no Bogum, no Fomo, na Calçada. Fora das portas,

há candomblés em Itapuã. Lobato, Parafuso, Plataforma, Periperi... (CARNEIRO,

1985, p. 47)

Para além da importância religiosa, os terreiros de candomblé surgidos em diferentes

áreas de Salvador devem ser tomados, também, como elementos primordiais na ocupação de

áreas e formação de vários bairros da cidade. Segundo Íris do Nascimento (1989), a própria

estrutura espacial dos terreiros facilitava o acolhimento de indivíduos, pois era comum

compreenderem em seu terreno habitações para pessoas ligadas ao candomblé. O Ilê Axé Opô

Afonjá, já citado, seria exemplar neste sentido, uma vez que áreas contíguas ao terreiro foram

doadas por este a pessoas e famílias sem moradia.

Para fins deste estudo, é valioso compreender tal relação entre ocupação e

religiosidade, sobretudo se for levado em conta que as áreas nas quais estão sediados os

blocos pesquisados fazem parte deste universo periférico, repleto de terreiros dedicados a

divindades africanas.

Afinal, não foi por acaso que o Malê Debalê nasceu tão ligado a Lagoa do Abaeté,

domínio de Oxum110

, que o Olodum possui como nome a corruptela de Olodumaré111

e que o

Ilê Aiyê fora gestado no ventre do terreiro Ilê Axé Jitolú. Nas palavras dos próprios

integrantes das agremiações, essa filiação fica latente, a começar por Miguel Arcanjo:

Como nós estávamos na lagoa do Abaeté, Oxum é a rainha das águas doces, dos

lagos e rios é natural que seja Oxum [a protetora do bloco]. E também o orientador

espiritual do Malê Debalê, é também uma casa de Oxum. Com certeza Oxum está protegendo e embelezando. E tem Exu também e Ogum Xoroquê, abrindo os

caminhos e tomando conta de todos nós. (Miguel Arcanjo, entrevista realizada em

novembro de 2014)

No mapa a seguir, é possível observar a forma como os terreiros de Salvador estavam

geograficamente pela cidade no ano de 2006. Cada um dos círculos amarelos representa a

localização de um terreiro na cidade.

unidades. É possível acessar os dados sobre cada um dos terreiros levantados, bem como mapas e análises no

seguinte endereço eletrônico: www.terreiros.ceao.ufba.br/. 110 Oxum é um orixá feminino cultuado no Candomblé e na Umbanda, sendo este orixá detentor do domínio das

águas doces, como rios e cachoeiras, bem como responsável por questões que envolvam riqueza, amor,

prosperidade e beleza. 111 Segundo a tradição iorubá, Olodumaré é o Deus supremo, único, onipotente e criador de tudo o que existe.

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Figura 6. Distribuição Espacial dos Terreiros em Salvador - 2006

Terreiros

Fonte: Centro de Estudos Afro-Orientais - CEAO-UFBA

No Olodum, também há estreita relação com o Candomblé. Nas palavras de Tita

Lopes:

O bloco antes tinha a mãe de santo que era a mãe de João Jorge, era ela que fazia as obrigações do bloco, antes de sair o bloco fazia os rituais lá no terreiro. Fazia o que

tinha que fazer. As pessoas cabeças que acreditavam, participavam do processo. O

bloco saía. Antes de sair ela fazia as coisas. Não era nada pra televisão ver. Como o

ilê faz o ritual todo interno. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

Por fim, Edmilson comenta sobre a relação entre Ilê Aiyê e o candomblé.

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O Ilê nasce de uma relação fortíssima do terreiro, ele vem do terreiro, com a fé. Isso

foi sempre a referência. Nós todos tínhamos como referência o Ilê Jitolu e nossa

mãe, nossa guia espiritual [Mãe Hilda]. Hoje como se dá essa relação do terreiro

com o Ilê? Hoje a gente tem uma outra guia espiritual, que foi eleita. A gente tem

uma jovem iyalorixá com essa responsabilidade [Mãe Hildelice], assim como ela

herdou toda a religiosidade do terreiro. (Edmilson Lopes, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Talvez a relação do Ilê Aiyê seja a mais explícita, uma vez que tem como matriarca e

incentivadora Mãe Hilda Jitolu, mais uma iyalorixá a desempenhar papel fundamental para

que essa história viesse a ser escrita.

Ao redigir a última linha desta seção, recordei-me de uma frase escrita na quadra do

Ilê Aiyê que diz ser a mulher a flecha da evolução, assim como de um trecho de canção do

bloco, intitulada “Negra Matriz”112

, que afirma serem as negras mulheres mais que flores sem

razão.

3.3.2.OS QUILOMBOS

OUTRO LUGAR QUALQUER

Forma de resistência recorrente entre os cativos, a fuga, que podia ocorrer de maneira

individual ou coletiva e se dar por motivações das mais diversas, como condições exaustivas

de trabalho, precariedade da alimentação e alojamentos, tratamento dispensado e negação de

direitos básicos, conforme exemplifica Stuart Schwartz (2003), também foi fundamental para

a conformação das comunidades, sobretudo periféricas de Salvador. Nas palavras de Márcia

Amantino:

O que levava o escravo, africano ou crioulo, a fugir? Pode-se afirmar que inúmeros fatores coexistiram para levar o cativo a tomar uma decisão tão radical. As fugas

ocorriam, evidentemente, por uma negação ao seu cativeiro. Entretanto, havia mais

do que isto. O escravo fugia porque percebia que não lhe restava alternativas dentro

do sistema. A fuga significava para o fugitivo recobrar o domínio sobre sua vida,

refazer, no caso dos crioulos, possíveis laços parentais, acabar com os castigos e

dispor de sua força de trabalho como lhe aprouver. (...) Para o cativo, a fuga

significava romper com laços sociais e afetivos, deixando para trás uma comunidade

já estabelecida, partindo rumo ao desconhecido e ao perigo de ser recapturado e ter

as condições de vida pioradas. A fuga significava, para o africano, uma tentativa de

dispor de sua própria vida e quem sabe encontrar companheiros de sua região de

origem. Aquele recém chegado no plantel era o que tinha menos a perder com a fuga, já que não possuía, na maior parte das vezes,relações afetivas no cativeiro.

(AMANTINO, 2006, p. 63)

112 Composição de Adailton Poesia e Valter Farias.

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Carlos Magno Guimarães (1988) considera que a fuga do escravo representa um

rompimento na lógica escravista que o considera como mera mercadoria. Uma vez adquirida

pelo senhor, tal mercadoria deveria pertencer-lhe, exercendo o primeiro um domínio sobre o

segundo. Ao fugir, o escravo acabava por promover prejuízo econômico ao seu detentor, uma

vez que retirava deste a engrenagem primordial na expropriação do trabalho.

João José Reis e Eduardo Silva (1989) classificam as fugas em duas categorias:

reivindicatórias ou de rompimento. No primeiro, tratava-se de fugas que o objetivavam uma

negociação entre as partes (senhores-escravos) afim de que fossem concedidas algumas

benesses ou cumpridas tratativas anteriormente acordadas, retribuídas com o retorno dos

cativos. Por sua vez, o segundo tipo objetivava o efetivo desligamento do escravo do aparato

escravocrata. Isabel Reis apresenta posição semelhante ao afirmar que:

A unidade básica de resistência no sistema escravista, seu aspecto típico, foram as

fugas. Estas iam desde as pequenas ‘escapadelas’ para divertimento, prática

religiosa, visita a parentes ou encontros amorosos, a fuga definitiva,

preferencialmente um caminho sem volta, em que se buscava a construção de uma

nova vida em liberdade, fosse em quilombos, fosse misturando-se com a população

negra livre dos pequenos ou grandes centros urbanos. (REIS, 1999, p. 27)

A reação por parte dos senhores, via de regra, presumia a caça ao escravo fugido bem

como tornar pública a fuga por meio de anúncios em periódicos da época. Segundo Freyre,

que se dedicou a análise deste tipo de material:

Os anúncios constituiriam uma agência: os agentes seriam de um lado o senhor de

escravos, de outro, o próprio escravo a quem poderia ser por vezes atribuída, nas

relações dramáticas de que participava a condição simbólica ou mítica. Tanto a

exprimirem motivos, da parte do agente senhoril, de estimar os entes humanos de

sua propriedade ativa, quanto a manifestarem motivos do escravo, objeto de

anúncios de jornais, quer para se resignar passiva e, por vezes, afetivamente a essa

condição – quando apenas expostos a venda ou posto em aluguel – quer para agir

ativamente contra ela pela fuga: uma forma de insubmissão ou revolta. (FREYRE,

2010, p. 50)

Os anúncios seguiam um certo padrão de apresentação, com descrição detalhada dos

traços físicos do indivíduo, das marcas que o mesmo carrega no corpo, características de fala

e trejeitos e, por vezes, descrição do vestuário que o mesmo trajava no momento da fuga.

Seguindo os passos iniciados por Freyre (2010), Amantino também se dedicou a análise deste

tipo de anúncio. É de seu trabalho que citamos os seguintes reclames como exemplares dos

que eram publicados em jornais da época. O primeiro, do “Jornal do Commercio”, do Rio de

Janeiro, relata a fuga de um escravo. Um certo “moleque de nome Raymundo”.

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Fugio, no dia 21, da Ladeira do Senado, esquina da Rua Paula Mattos, um moleque

de nome Raymundo; levou vestido carapuça de lã, calça e camisa de algodão,

camisa de baeta azul; no fallar gagueija, e muito principalmente tendo medo; levou

um caixote com banha e pomada para vender. Protesta-se com todo o rigor da lei

contra quem o tiver acoutado. (AMANTINO, 2007, p. 65)113

Por sua vez, o segundo anúncio, do jornal “O Guarda Nacional”, de Ouro Preto,

comunicava a detenção de quatro escravos fugidos, esperando que seus senhores aparecessem

para requerer sua posse.

Na cadeia desta cidade existem quatro escravos fugidos, cujos nomes e signaes são

os seguintes: João de nação Moçambique, estatura ordinária. Bem feito de corpo,

com signaes nos cantos dos olhos e na testa todos voltados à maneira de meia lua,

com riscos dentro dos círculos e uma orelha furada; diz ser escravo de Dona Francisca Bernarda, moradora na rua do Sabão adiante do Largo do Capim da

Cidade do Rio de Janeiro e diz que a dita sua Senhora é filha de Lisboa. Frederico de

nação Moçambique, baixo, cheio de corpo, dentes abertos, signaes nos cantos dos

olhos e na testa todos voltados à maneira de meia lua com riscos dentro do círculo,

orelhas furadas, diz ser escravo do capitão Thomaz Francisco, morador na sua

Fazenda da Pedra Branca. Pedro de nação Angola, estatura ordinária, cheio de

corpo, com faltas de dentes do queixo de cima, diz ser escravo do Alferes José

Pereira Valverde, morador na sua Fazenda do Piau. João de nação Congo, estatura

ordinária, delgado de corpo, com um sinal grande no peito a maneira de um

recortado e outros signaes nas costas, uma orelha furada, diz ser escravo de José

Bento, morador na Villa de Barbacena. Quando não sejam procurados por seus

senhores se entregues a justiça para serem arrematados a fim de se não consumirem em despesas os seus valores... Ouro Preto, 19.8.1838 (AMANTINO, 2007, p. 66)114

Apesar de citarmos textualmente apenas anúncios publicados em Minas Gerais e Rio

de Janeiro, tal modelo existia por todo o país, sendo replicado em Santa Catarina, São Paulo,

Pernambuco e Bahia, conforme trabalhos outros atestam115

.

Se a resposta dos senhores seguia um padrão, o destino dos escravos também era

quase sempre o mesmo: comunidades quilombolas116

.

113Jornal do Commercio, 24 set. 1850, apud AMANTINO, 2007. 114 Jornal O Guarda Nacional, Ouro Preto, 29.8.1838, apud AMANTINO, 2006. 115 Para mais informações sobre a representação dos escravos fugidos em anúncios de periódicos ver Ferreira

(2011), Freyre (2010), Gomes (1996), Graf (1986), Mott (1986), Rebelatto (2006), Reis (1999) e Schwarcz

(1987). 116 Segundo João José Reis: “O próprio termo quilombo derivaria de kilombo, uma sociedade iniciática de jovens

guerreiros mbundu adotada pelos invasores jaga (ou imbangala), estes formados por gente de vários grupos

étnicos desenraizada de suas comunidades.” (REIS, 1996, p. 16). De acordo com Nei Lopes o termo quilombo “é

originário do quimbundo significando ‘união’, ou ‘reunião de acampamentos’”, (LOPES, 1988, p. 139). Em

termos jurídicos, a primeira definição de quilombo surge na resposta do Conselho Ultramarino a questionamento

feito pelo rei de Portugal, em 1740. Desta resposta resultou a caracterização de quilombo como sendo "toda

habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles". (ALMEIDA, 2002, p. 47). Tal caracterização foi revista pela Lei no 236,

de 20 de agosto de 1847. Leia-se: "Art. 12- Reputa-se-ha escravo aquilombado, logo que esteja no interior das

matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de dois ou mais com casa ou rancho."

(Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2003/EMI58-CCV-MINC-MDA-SEPPIR-03.htm.

Acessado em 30 de janeiro 2015).

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Apesar das definições citadas em nota, não existia apenas uma única configuração de

quilombo. Eles podiam ser tanto pequenos, agrupando alguns indivíduos, como grandes, com

população na casa dos milhares. Podiam ser permanentes ou temporários. Serem formados

por indivíduos que foram se agregando aos poucos, oriundos de episódios simples de fuga, ou

formados por grandes contingentes, originários de fugas coletivas. Podiam ainda estar

localizados em sítio ermo, perdido em meio à paisagem, ou bem próximas as cidades, vilas e

povoados. Em alguns casos, mais próximo do que se poderia supor. Alfredo Wagner Almeida

(2002) chama a atenção para a existência de um quilombo (Frechal) no Maranhão localizado

há apenas 100 metros da casa grande. Cita ainda casos de quilombos organizados dentro das

próprias senzalas. Tal possibilidade existia, segundo Almeida, pelo fato do quilombo ser mais

do que a reunião de características definidas por lei ou por condicionantes acima citadas. O

que definiria um quilombo seria a existência de uma autonomia no exercício da atividade

produtiva. De acordo com Reis:

Para este [regime escravista], o problema maior estava exatamente em que os

quilombos, pelo menos a maioria deles, não ficaram isolados, perdidos no alto das

serras, além da sociedade envolvente. Embora em lugares protegidos, os

quilombolas na sua maioria viviam próximos a engenhos, fazendas, lavras, vilas e

cidades, na fronteira da escravidão, mantendo uma rede de apoio e interesses que

envolvia escravos, negros livres e mesmo brancos, de quem recebiam informações

sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratégicos. (REIS, 1996, p. 18).

A expressão mais conhecida da organização quilombola é, sem dúvida, Palmares,

instalada no século XVII na chamada Serra da Barriga, então capitania de Pernambuco, hoje

parte do Estado de Alagoas. Entretanto, como fora dito anteriormente, os quilombos

proliferaram nas mais variadas regiões do país e, especificamente, nos arredores de Salvador,

um quilombo teve destaque: o Buraco do Tatu.

Obviamente não se tratou do único quilombo a ser instalado nos arredores da Cidade

da Bahia. Havia quilombos suburbanos organizados em localidades onde hoje se situam os

bairros de Pirajá, Matatu, Armação e Cajazeiras. No Cabula foi instalado o quilombo do

Urubu.

Localizado na freguesia de Itapuã, o quilombo Buraco do Tatu foi organizado em 1744

e chegou a reunir um grande número de habitantes. Sua economia baseava-se na agricultura e

na pesca, tendo seus moradores também se dedicado à prática de pequenos roubos e saques a

propriedades da região. Era fortificado, possuindo engenhoso esquema de defesa. Seus

habitantes contavam com considerável capacidade bélica, sendo que parte do material

necessário para tal, como pólvora e chumbo, era proveniente, em grande parte, de saques

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realizados em estabelecimentos da cidade. Sua organização política é brevemente apresentada

no oitavo volume dos Cadernos de Educação do Ilê Aiyê, denominado “Terra de Quilombo”:

“Politicamente, o Buraco do Tatu possuía dois chefes ou capitães: Antônio de Sousa era um

capitão-de-guerra e um segundo, Teodoro, controlava e administrava o quilombo. Cada líder

possuía uma companheira, a qual chamava rainha”. (CADERNO DE EDUCAÇÃO DO ILÊ

AIYÊ, 2000, p. 13).

Considerado uma ameaça, sua destruição foi ordenada em 1763, pelo então governo

interino da Bahia117

. Para tanto, foi organizada uma expedição capitaneada por Joaquim da

Costa Cardoso, com um efetivo de cerca de duzentos homens. Da ação resultou a prisão de

sessenta e um quilombolas, bem como a morte de outros tantos118

.

Desmantelado após quase vinte anos de existência, o Buraco do Tatu lançou as

sementes que anos mais tarde germinariam, contribuindo para sucessivos levantes na região

de Itapuã e em outros pontos de Salvador. Aliás, este não foi um privilégio do Buraco do

Tatu. O quilombo em si, seja este qual for, acabava por estimular as insurgências de maneira

direta ou indireta, uma vez que simbolizava, ele próprio, uma contestação à ordem social

vigente, se destacava por suas atividades bélicas, bem como eram o local de onde partiam

grupos com o objetivo de mobilizar escravos em engenhos, fazendas e povoados.

Percebe-se, então, que a constituição demográfica da cidade de Salvador, bem como

de alguns de seus inúmeros bairros, carrega marcas indefectíveis desta história de resistência

negra, seja através da religiosidade do povo de santo, através da insurgência quilombola ou

através de ambos.

117 D. António de Almeida Soares Portugal, o Marquês de Lavradio, foi nomeado 8º vice-rei do Brasil, chegando

a Bahia em 1760, falecendo pouco depois de tomar posse. Uma junta governativa foi então formada para sucedê-

lo. Esta contava com o Arcebispo Dom Frei Manuel de Santa Inês, o coronel Gonçalo Xavier de Brito Alvim e o

Chanceler José de Carvalho. Foi justamente este governo interino o mandante da destruição do quilombo Buraco

do Tatu. Foi também o último governo estabelecido na Bahia tendo Salvador como capital do Brasil, uma vez

que neste mesmo ano de 1763, seguindo as diretrizes estabelecidas pela visão estratégica do Marquês de Pombal,

a capital do Brasil é transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. 118 Um dos espólios da ação impetrada contra o quilombo Buraco do Tatu é uma planta, datada de 1764, que

reproduz, de maneira simples, a organização no interior do quilombo. A leitura de sua legenda, Reproduzida por

Reis (1998), nos dá uma noção de tudo o que ali se encontrava: “Planta do quilombo chamado Buraco do Tatu

para a costa de Itapuã, que a 02 de setembro de 1763 foi atacado pelo Capitão-mor da Conquista do gentio Bárbaro Joaquim da Costa Cardozo. A letra A estrada falsa coberta de estrepes que mostrava a entrada; a letra D

fojos cobertos e dentro estrepes; C pinguelas levadiças por onde serviam, e de noite atiravam; N casa do porteiro

que tinha as pinguelas levadiças a seu cargo; E fonte; (...) Z a casa do capitão; B as casas do arraial chamado seu

povo; L trincheira estrepada com várias estrepes, os maiores chegaram aos peitos de qualquer homem, e ia

diminuindo até ficar em menos de palmo; Q a latada de maracujá; F as hortas; I o brejo que cercava o quilombo

com tal atoleio, que submergia um homem; O a pinguela por onde se passava para o quilombo pequeno; S

quilombo pequeno; X as casas; V as estreparias; M pinguela por onde se serviam para a parte do mar. Este nome

pinguela é o mesmo que um barrote por cima do qual passavam o brejo, e os fojos, sendo estes uns buracos

largos da altura de cinco palmos guarnecidos por dentro de paus e pontas” (REIS, 1998, p. 501).

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Tal forma de resistência moldaria comunidades e pessoas, servindo como referencial

aqueles que décadas depois dariam continuidade a luta dos negros por direitos, seja através

dos quilombos do presente, do quilombismo119

de Abdias do Nascimento, da organização de

um movimento negro unificado ou da gênese dos blocos afro, dentre outros.

No caso dos últimos, é interessante observarmos como a canção intitulada

“Remanescente demarcador de espaços, lugares”, de autoria de Juraci Tavares da Silva e Luís

Bacalhau, integrante do repertório do Ilê Aiyê, nos fornece claros indícios de como esta

filiação está bem estabelecida e reconhecida.

“Remanescente demarcador de espaços, lugares”120

(Composição de Juraci Tavares da Silva e Luis Bacalhau)

Falo, canto, fico insisto A terra é mãe, não compro, conquisto

Chico Tomé falou

Permaneço no quilombo

Sou Ilê Aiyê, resisto Vovó África nos deus a resistência, a trajetória

Somos a história

Sou remanescente

Titulação quilombola

Minha nacionalidade Zaire-Angola Meus ancestrais afro-angolanos

Pais é avós africanos

Sou quilombo Rio das Rãs Eu, Buraco do Tatu, Itapuã

Nós, Liberdade, Curuzu

Nossa África, mãe Angola, pai Bantu

Chico Tomé, Rio das Rãs

Palmares, Kalunga, Frechal

Referência quilombola rural Liberdade, Ilê Aiyê, Curuzu

Quilombo urbano no carnaval

Vai, vai, segue, Ilê Aiyê

Demarcando espaços, lugares

Símbolo remanescente de Palmares

119 Em linhas gerais, para Abdias, quilombismo seria toda forma de resistência da população negra, ampliando

assim o significado histórico consagrado de reunião de escravos fugidos para o de todo e qualquer grupo que

exerça movimentos em direção a uma resistência física e cultural. Para mais informações, ver Nascimento

(2002). 120 (CADERNO DE EDUCAÇÃO DO ILÊ AIYÊ, 2000, p. 29)

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Por fim, é válido ressaltar a maneira como a composição apresenta o Ilê Aiyê,

tratando-o como um quilombo urbano no carnaval de Salvador, relacionando, ainda, o bairro

da Liberdade e a região do Curuzu a quilombos reconhecidos por sua importância histórica. O

Olodum também se apresenta, vez por outra, como um quilombo, sendo recorrentes as

referências ao Pelourinho como um quilombo urbano, como no refrão da canção “Índia,

Brasil, África do Sul - a terceira visão”, tema do carnaval do bloco para o ano de 2010:

“Olodum Índia ê / Olodum Índia África do Sul / quilombo urbano Pelourinho / quilombola do

Brasil”.

3.3.3.TERRITÓRIOS NEGROS

CADA PEDAÇO DE CHÃO, CADA PEDRA FINCADA

Observar em conjunto os dados demográficos reunidos nos Censos de 1991, 2000 e

2010, realizados pelo IBGE, o mapeamento dos terreiros de candomblé da cidade de

Salvador, realizado pelo Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO) da Universidade Federal

da Bahia (UFBA), e o cadastro de blocos afro mantido pelo projeto Ouro Negro, da Secretaria

de Cultura da Bahia, mostrou-se interessante para uma compreensão mais ampla dessa

história negra na Cidade da Bahia.

Em primeiro lugar, vamos conhecer a localização de todos os sessenta e dois blocos

afro existentes em Salvador121

. A partir das informações fornecidas pelo catálogo do Projeto

Ouro Negro, foi possível a elaboração de um mapa, demarcando a posição exata de cada um

dos blocos existentes na cidade.

A observação do mapa permite perceber que as entidades estão distribuídas,

majoritariamente, em regiões periféricas da cidade. O bloco Impacto Sonoro é o único

próximo à chamada orla marítima de Salvador, área nobre da cidade. Entretanto, deve-se

salientar que tal bloco encontra-se na comunidade de Nordeste de Amaralina,

reconhecidamente um bairro de baixa renda, cujo histórico de formação remete a antiga vila

de pescadores e posteriores invasões.

Figura 7. Localização do Blocos Afro

121 De acordo com o Projeto Ouro Negro, são sessenta blocos no município de Salvador e outros dois no

município de Lauro de Freitas. Entretanto, para fins do projeto, seguidos por este trabalho, considera-se os dois

blocos de Lauro de Freitas como integrantes do universo de blocos de Salvador.

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Blocos Afro

FONTE: Elaboração do autor.

Outro dado que chama a atenção é a grande presença de blocos no Centro Histórico.

Apesar de geograficamente centrais, os bairros que compõem a zona histórica da cidade,

como o Maciel-Pelourinho, foram durante muito tempo verdadeiras zonas periféricas no que

tange ao simbólico, sendo área estigmatizada, evitada por moradores do restante da cidade.

Repleto de cortiços e casario em situação de abandono, abrigou em suas ladeiras centenas de

famílias majoritariamente negras e de baixa renda. Tita Lopes, Lazinho e Gilmário

ressaltaram tal situação em suas entrevistas. A começar pelo depoimento do primeiro:

Fui aluno do curso primário da escola aqui no Pelourinho. Morava no Canela e

estudava aqui, porque a escola aqui era a única que tinha vaga. Ninguém queria matricular o filho aqui dentro, porque era baixo meretrício. Pra você ter uma ideia, o

pessoal que morava no Santo Antônio, que era nobre, o final de ônibus deles era

aqui na praça da Sé. Eles davam a volta, subiam pela ladeira da praça para pegar

ônibus na Sé, mas não passavam por aqui.” (Tita Lopes, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Imagem semelhante é apresentada por Lazinho:

Como muita gente lá fora dizia: “ah, quando é pessoa lá do Maciel deve ser tudo

ladrão, traficante, assaltante”. Ninguém prestava. Pelo fato de ter nascido aqui, era

muito difícil conseguir emprego. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

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E também por Gilmário:

A comunidade em si, de um modo geral, era altamente discriminada, marginalizada

até. Daqui saíram muitas pessoas, de todas as áreas que você imaginar. Carpinteiro,

eletricista, pedreiro, jogador de futebol, médico e uma infinidade, mas a gente era

visto como marginal por morar em uma área de difícil acesso para as pessoas. Tinham medo de vir aqui. Quem vinha de outros bairros não passava por aqui, por

perto. Achava que só tinha coisas que não prestavam. (Gilmário Marques, entrevista

realizada em abril de 2014)

Como afirma Raquel Rolnik (1989) a história da comunidade negra é marcada pela

estigmatização de seus territórios na cidade, estigma esse concebido a partir de um discurso

etnocêntrico e de uma prática repressiva. Tais comunidades seriam territórios marginais e, por

extensão, perigosos, não apenas porque são vistos como lugares alheios a ordem e moralidade

desejáveis, mas por serem locais de onde pode surgir força suficiente para promover rupturas

nessas. Löic Wacquant (1995), ao comparar localidades operárias da periferia de Paris a

guetos afro-americanos de Chicago, percorre caminhos semelhantes aos de Rolnik, afirmando

que a difamação de tais áreas está inscrita primeiro no aspecto brutal de sua dilapidação física

e no caráter separado e enormemente inferior de suas instituições, sejam as escolas públicas,

agências sociais, serviços municipais, associações de bairro ou filiais de estabelecimentos

financeiros e comerciais, tornando comuns as atitudes hesitantes e desdenhosas dos não

residentes, como comuns também são as recomendações de cuidado ou cautela ao se

aventurar por essas partes da cidade. Impossível não vir a minha mente os repetidos alertas

que recebi sobre os perigos de uma eventual ida a Liberdade, ao Pelourinho ou a Cidade

Baixa.

Após sua revitalização, em um primeiro momento, parte dos imóveis existentes no

Pelourinho passou a ser ocupada por comércio e empreendimentos hoteleiros, mudando as

características do local, sobretudo em virtude da especulação imobiliária. O que se observou

foi um processo de gentrificação, com o enobrecimento da área, valorização imobiliária e

atração de população externa de maior renda com a concomitante expulsão da população

originária, notadamente de baixa renda. Entretanto, as marcas negras no lugar, que fazem dele

um território, seguiram presentes, como no fato do bairro reunir hoje dez blocos afro, o maior

número de blocos em um único bairro da cidade. Na sequência temos a Liberdade com quatro

blocos e Cosme de Farias e Pau Miúdo, com três.

Quando desenhamos um mapa de Salvador, tendo como base as informações

demográficas contidas no Censo 2010, é possível vislumbrar como as áreas de presença

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majoritariamente negra estão distribuídas de maneira periférica no município. Quando

unificamos as informações fornecidas pelo mapeamento dos terreiros soteropolitanos, nota-se

que há uma sobreposição entre a distribuição dos terreiros e as áreas mais negras da cidade.

Figura 8. População Cor ou Raça X Mapeamento De Terreiros

Terreiros Predomínio Negro Predomínio Branco

FONTES: IBGE Censo 2010; Mapeamento de Terreiros CEAO-UFBA. Elaboração do autor

No mapa acima, quanto mais escuras são as áreas, maior a presença de população que

se autodeclarou branca. Por consequência, as áreas mais claras do mapa são de predomínio de

população não-branca, podendo ser esta parda ou preta. Cada um dos pontos amarelos

representa um dos 1155 terreiros mapeados na cidade.

Outro exercício interessante de ser feito é cruzar as informações fornecidas pelo

mapeamento de terreiros do CEAO e a localização dos blocos afro, de acordo com o cadastro

do projeto Ouro Negro.

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Figura 9. Mapeamento de Terreiros X Localização dos Blocos

Terreiros Blocos Afro

FONTES: Projeto Ouro Negro; Mapeamento de Terreiros CEAO-UFBA. Elaboração do autor

Mais uma vez, cada um dos terreiros de Salvador está sinalizado com um circulo

amarelo. Os círculos em vermelho sinalizam a localização dos blocos afro. A presença de

blocos em áreas de concentração de terreiros é um dado interessante, pois coaduna com o que

fora dito, a respeito dos territórios negros na cidade. Em alguns casos, como no do próprio Ilê

Aiyê, o bloco nasceu de um terreiro.

Quando reunimos em um único mapa as informações contidas no Censo, mapeamento

de terreiros e cadastro Ouro Negro, é possível notar uma clara sobreposição.

Figura 10. População Cor ou Raça X Blocos Afro X Terreiros

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Terreiros Blocos Afro Predomínio Negro Predomínio Branco

FONTES: Projeto Ouro Negro; Mapeamento de Terreiros CEAO-UFBA; IBGE Censo 2010.

Elaboração do autor

Tais representações cartográficas não objetivam uma reprodução técnica da realidade

soteropolitana, sendo a ausência de escala nos mapas flagrante neste sentido. O que se busca,

tão somente, é ilustrar a distribuição espacial dos blocos afro no município, sua patente

relação com áreas onde há considerável presença de terreiros de candomblé, bem como em

regiões da cidade notadamente negras, tanto do ponto de vista demográfico, quanto do ponto

de vista histórico, como demonstrado em passagens anteriores do texto. Uma representação

gráfica da cisão social e étnico-racial existente na Cidade da Bahia, não sendo particular

desta, sendo observável em outras – se não todas – grandes cidades brasileiras, mas que por

fins desse trabalho, nos interessa em especial.

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3.4.MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA

RESISTÊNCIA VIVA

Alguns dos pontos tratados nas entrevistas ao longo das visitas a campo acabaram

pode pedir uma maior atenção da minha parte. A primeira das entrevistas, concedida

por Eduardo, do Malê Debalê, trouxe consigo uma interessante passagem sobre

episódios de resistência negra ocorridos em Salvador, em consonância com a

entrevista de Sérgio Pereira, que também abordou o assunto, mas por outro viés122

.

Trazidos como mercadoria para o Brasil, os africanos escravizados demonstraram

poder de agência perante a máquina escravista ao traçarem diferentes estratégias de

resistência à nova condição que lhes foi imposta. Como afirma Sidney Chalhoub (1990), os

escravos procuraram mudar sua situação através de estratégias de que jogavam com as

possibilidades disponíveis na própria sociedade na qual viviam123

.

O cotidiano era o palco onde se desenrolavam estas estratégias, que poderiam variar

entre um simples roubo, uso do sarcasmo, insubordinação e desobediência, sabotagens,

chegando a assassinatos e abortos. Entretanto, dentre as possíveis formas de resistência,

gostaria de me deter um pouco mais em duas, que merecem um olhar mais atento: revoltas e

suicídios. Ressaltando que as fugas, também centrais neste movimento de resistência, foram

tratadas no tópico sobre a formação de quilombos nas áreas periféricas de Salvador.

3.4.1.O BANZO E O SUICÍDIO

TRISTEZA PÉ NO CHÃO

Foi durante a entrevista com Sérgio que surgiu a primeira menção ao suicídio de

escravos e a um sentimento muito característico daqueles dias, dentre a população negra

escravizada.

122 QR Code: “Resistência Viva” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=O5hGgTGg9eE 123Ademir Geabra (1986) e Martha Rebelatto (2006) ressaltam que deve haver um certo cuidado ao tratar das

ações dos escravos como formas de resistência. Para Geabra, as ações podem ter significação política

diferenciada, condicionadas por determinado contexto social. Um mesmo ato de insubordinação em dois

contextos distintos poderia ter, também, significados distintos. Na mesma linha, Rebelatto defende que deve ser

investigado sobre qual aspecto da dinâmica escravocrata o escravo estava discordando ao realizar determinado

ato. Novamente, um mesmo ato de insubordinação poderia ser direcionado a toda a máquina escravista como

também a um feitor de trato mais violento, em um episódio muito específico. Para mais informações sobre o

cotidiano das relações entre senhores e escravos ver Genovese (1988), Karasch (2000), Lara (1988), Paiva

(2001) e Reis & Silva (1989).

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É por isso que acho eles [os blocos afro] importantes. Nossos antepassados já

passaram por muito sofrimento e nós ainda passamos. Não é mais o mesmo. São

sofrimentos diferentes, mas no fundo é tudo a mesma coisa. Rapaz, imagine você o

que é viajar o mundo no porão de um navio. Não é fácil. A pessoa sofre. Aí que

entra o banzo. Porque não tem como a pessoa passar por tudo isso sem sentir. E a

gente segue sentindo o que nossos antepassados sentiram. Isso mostra a força do

povo negro. Tá certo que muitos não aguentaram e acabaram se suicidando, mas a

maioria ficou e brigou. É por isso que tenho orgulho da minha raça. E, como eu ia

dizendo, por isso o Ilê Aiyê e os outros são importantes. Eles mostram pra todo

mundo como a gente é forte. (Sérgio Pereira, entrevista realizada em novembro de 2014)

O suicídio entre os escravos era prática comum e se dava de duas formas distintas. A

primeira delas pelo que podemos chamar de via direta, através da qual um indivíduo pratica

ato que atenta diretamente contra a própria vida, podendo ser este um enforcamento,

envenenamento, afogamento, morte por uso de armas e afins. E a segunda pela chamada via

indireta, através da recusa a alimentação e cuidados com a saúde. Em ambos os casos, o que

motivava tais condutas era o sofrimento oriundo da perda da liberdade, do desenraizamento

forçado da terra natal, da perda dos laços com familiares e amigos bem como as desumanas

formas de tratamento a eles imputadas desde a travessia atlântica até o trancafiar das senzalas,

passando pelos castigos físicos e humilhações constantes. Estariam os escravos, em ambos os

casos, a sofrer de banzo124

.

Podendo ter sua origem em quicongo, na palavra mbanzo, que significa pensamento,

ou ainda no quibundo, pela palavra mbonzo, que significa saudade, o certo é que banzo

representaria toda tristeza e melancolia vivida pelos africanos escravizados trazidos ao Brasil.

O Dicionário da Língua Portuguesa A. Houaiss (2001) define banzo como sendo

processo psicológico causado pela desculturação, que levava os negros africanos escravizados

a ímpetos de destruição e nostalgia profunda, que induzia a apatia, a inanição e, por vezes, a

loucura e a morte.

Segundo Clovis Moura (2004), banzo seria o estado de depressão psicológica que se

apossava do africano logo após seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa

situação de nostalgia profunda terminavam morrendo. Nas palavras de Ana Maria Oda:

No decorrer do século XIX, as mencionadas obras científicas de Joseph François

Sigaud e de Carl F. von Martius, bem como muitas crônicas de viajantes europeus,

veicularam a ideia da fatal nostalgia dos escravos - chamando-a ou não de banzo.

Nestes relatos, as mortes voluntárias dos cativos são reputadas muito frequentes, e

descritas no que seria uma forma passiva de suicídio - recusar todo alimento e

deixar-se morrer de inanição e de tristeza - e também através de métodos universais,

124 Um dos primeiros blocos afro de Salvador foi nomeado “Melô do Banzo”, em referência ao sentimento de

nostalgia e tristeza revelado por muitos dos escravos trazidos para o Brasil.

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como enforcamento, afogamento, uso de armas brancas etc.1 Invariavelmente, os

narradores atribuíam o desejo de morrer a uma enfermidade melancólica,

relacionada a fatores indissociáveis da situação de cativeiro: o desgosto causado

pelo afastamento violento da África, a revolta decorrente da perda da liberdade e as

reações aos pesados e injustos castigos (ODA, 2008, p. 346).

Joaquim Manuel de Macedo, renomado escritor fluminense, autor de obras como “A

Moreninha” e “O Moço Loiro”, também registrou em obra suas impressões sobre as agruras

vividas pelos africanos em solo brasileiro. O que muitos não sabem é que Macedo era também

médico e, em 1844, defendeu na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro uma tese de

doutorado que versava sobre a patologia do desenraizamento. Segundo trecho da tese:

Separados de famílias embora desamoráveis, sotopostos uns aos outros aos imundos

porões de pequenos braços, mal nutridos e pior tratados, testemunhando os

padecimentos e a morte de alguns de seus sócios de infortúnio e finalmente

desembarcando para entrar na vida do cativeiro, que ainda mesmo quando

temperada pela benevolência de um bom senhor é sempre a vida do cativeiro, como

hesitar em crer que o tempo da liberdade e a terra da pátria devem estar presentes a

seu espírito com todo o fogo das saudades, que lhes serão muitas vezes fatais?...

Para negá-lo fora mister negar-lhes também uma alma, que sente e que lembra.

(MACEDO, 2004, p. 17).

Para Moura (2004) o suicídio seria a reação extrema de protesto do escravo. José

Alípio Goulart (1972) segue a mesma linha, ao defender que o suicídio seria a mais radical

das reações possíveis por parte dos africanos diante das agruras da escravidão, podendo ser

considerado tanto uma fuga como uma forma de protesto. Argumento semelhante é

apresentado por Bastide (1943), ao defender que o suicídio seria um protesto contra a

escravidão. Estes dois últimos informam, ainda, sobre a crença de boa parte dos escravos de

que a liberdade poderia ser conquistada, enfim, em uma nova vida via reencarnação,

efetivando um retorno espiritual a África, o que poderia funcionar como um atenuante na

difícil decisão de cessar a própria vida.

Émile Durkheim (2000) dedicou-se ao estudo do suicídio, entendendo que o fenômeno

possuía raízes sociais e não individuais. A partir deste ponto, empreendeu uma vigorosa

análise sobre o que caracterizou como sendo três tipos distintos de suicídio: egoísta, altruísta e

anômico.

Nas palavras do autor:

Cada grupo social tem por esse ato, realmente, uma inclinação coletiva que lhe é

própria e da qual derivam as inclinações individuais, e não que procede destas

últimas. O que a constitui são as correntes de egoísmo, de altruísmo ou de

anomia que afetam a sociedade considerada, com as tendências a melancolia apática,

a renúncia ativa ou a lassidão exasperada que são suas consequências. São essas

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tendências da coletividade que, penetrando os indivíduos, os determinam a se matar.

(DURKHEIM, 2000, p. 384)

Entretanto, não são sobre estas consagradas categorias, já amplamente discutidas, que

iremos nos deter. Ao redigir sua obra sobre o suicídio, Durkheim reservou uma nota de rodapé

para tratar de um quarto tipo, ao qual chamou de suicídio fatalista. E é justamente este que nos

interessa aqui.

O suicídio fatalista seria resultado de um excesso de regulamentação da vida,

responsável por infligir aos sujeitos à sensação de um futuro limitado, cujas paixões estariam

violentamente controladas por uma disciplina opressiva. Tal categoria seria oposta a que

caracteriza o suicídio anômico, incidente quando a influência reguladora da sociedade deixa

de ser exercida, em oposição semelhante a existente entre as categorias de suicídio egoísta e

altruísta. Entretanto, para o autor, apesar de ser um dado concreto, os suicídios do tipo

fatalista teriam pouca relevância, a julgar pelo pequeno número de casos que nele se

enquadrariam. Estes abarcariam, principalmente, os suicídios de esposos demasiadamente

jovens e de mulheres casadas sem filhos. No entanto, é justamente quando diz da pouca

representatividade destes casos que Durkheim nos dá a pista que seguimos aqui:

Para completar, deveríamos portanto constituir um quarto tipo de suicídio. Mas ele

tem tão pouca importância hoje e, além dos casos que acabamos de citar, é tão difícil

encontrar exemplos, que nos parece inútil nos deter nele. Contudo, pode ser que tenha interesse histórico. É a esse tipo que pertencem os suicídios de escravos, que

se diz serem frequentes em certas condições, todos aqueles, em suma, que podem ser

atribuídos às intemperanças do despotismo material ou moral. (DURKHEIM, 2000,

p. 353)

O suicídio fatalista promovido pelos escravos seria a expressão clara de uma oposição

ao caráter inevitável e inflexível de uma regra contra a qual nada se poderia fazer. O excesso

de regulamentação e ausência de perspectivas da qual fala Durkheim.

De acordo com Lilia Moritz Schwarcz (1987), era comum que os periódicos da época

buscassem relacionar os suicídios dos escravos a conduta da própria vítima125

, relacionando a

125

Jackson Ferreira (2004), em acurado trabalho de investigação, analisou dados sobre o suicídio de escravos

praticados na Bahia, na segunda metade do século XIX. Em meio a esta análise, Ferreira nos apresenta um

debate público travado entre dois médicos, entre o final de 1845 e o início de 1846. A discussão se dava por um

desacordo sobre as prováveis causas da prática do suicídio. De um lado estava Tiburtino Moreira Prates, que

afirmava que o suicídio tinha origem patológica, derivado da alienação mental: “Se o africano, arrojado em

nossas plagas pelo braço tirano da cobiça, intenta acabar sua existência, é porque as saudades da pátria, os ferros

opressores do cativeiro, e a esperança fanática de voltar ao lugar de seu nascimento, se conspiram contra sua inteligência já enfraquecida essa pela carência dos vigorantes socorros da civilização. (FERREIRA, 2004, p.

198). Aranha Dantas, por sua vez, contesta Prates, defendendo como sendo causa do suicídio o declínio da

religiosidade por parte dos indivíduos: “Se o africano não ignorasse até as primeiras verdades da religião de certo

não procuraria descativar-se de seu mísero estado, cortando por suas mãos o fio da triste vida: conheceria que

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esta estados de demência e loucura, vícios e maus costumes e, por consequência retirando

deste ato qualquer traço de fenômeno de raízes sociais.126

Ao mencionar os suicídios como manifestação extrema de resistência, Sérgio deixou

claro o significado residual de tais episódios, costurando com uma fina linha a relação entre o

sofrimento de seus antepassados e a relevância da atuação dos blocos afro, colocando diante

de um espelho, episódios de épocas distintas, mas que, conforme o mesmo diz, são faces de

uma mesma questão.

3.4.2.REVOLTAS

SOU MALÊ, SOU BÚZIOS, SOU REVOLTAS

Revoltas indígenas existiram desde os primeiros anos da presença portuguesa em

terras brasileiras, tendo sido Salvador, inclusive, alvo frequente, sobretudo dos tupinambás.

Em sua entrevista, Eduardo mencionou uma insurreição indígena, onde hoje se situa Itapuã:

Tem um livro de um jornalista, ele é de história mas é jornalista. Escreveu “A cruz a

espada e a coroa”. Eduardo Bueno. Ele tem três. Um do império e esse “A cruz a

coroa e a espada”, que é do período colonial, ele fala de uma batalha que eu

encontrei com ele, e encontrei muito vagamente, muito disperso em outros autores,

que é a chamada Batalha de Itapuã, que ocorreu em 1550. Em maio de 1550. E foi,

segundo os relatos, uma batalha assim épica. Caciques de toda a região da suburbana

como de Itapuã. O quebra pau foi lá. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril

de 2014)

Se as revoltas indígenas se fizeram presentes desde o desembarque lusitano, as

revoltas africanas demoraram a ganhar força127

. A resistência individual, como no

caso dos suicídios, ou coletiva, como no caso da formação dos quilombos,

predominou nos primeiros séculos da presença africana em solo brasileiro. O quadro

começou a mudar e as revoltas a tornarem-se mais constantes a partir do final do

século XVIII, quando da intensificação do tráfico escravo e o consequente (e importante)

incremento desta população.

este mundo é um desterro, e esta aqui tudo é crisol ou castigo, recompensa ou precaução, e conformando-se com

a vontade de Deus, resignando levaria a sua cruz. (FERREIRA, 2004, p. 198). Ambos os médicos ilustram suas

teorias acerca das causas do suicídio com a situação vivida por africanos escravizados. E assim acabam por

ilustrar também as duas perspectivas usuais a época sobre as razões que levavam os indivíduos a prática radical

do suicídio, nomeadamente a loucura e os maus hábitos, de um lado, e o banzo, de outro. 126Para mais informações sobre suicídios de escravos, bem como sobre o banzo, ver Von Martius (1939), Sigaud

(1844), Debret (1940), Koster (1978) e Oda (2007). 127 QR Code: “Revolta Olodum” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=u8iXbbJQymk

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O primeiro levante a ser aqui mencionado é a chamada Conjuração Baiana, ou Revolta

dos Alfaiates, ou ainda, Revolta dos Búzios128

, ocorrido em 1798, e apresentada no Caderno

de Educação do Ilê Aiyê, volume 7, “Revolta dos Búzios – 200 anos” (1998), e no volume 1

da Coleção Olodum Griô, “Revolta dos Búzios: Uma história de igualdade no Brasil” (2007).

A Revolta foi também tema de canção integrante do repertório do Olodum, intitulada “Os

búzios do Olodum”.

“Os búzios do Olodum”129

(Composição de Marcelo Gentil e Romir Conde Garcia)

Episódio notório e marcante em Salvador

Movimento social e político

Que irmanou todo povo em um só clamor Ricos, brancos e negros

Reerguendo a bandeira da libertação

Unidos tramaram uma conjuração Se opuseram a escravidão

Ricos brancos e negros irmãos

Revolta dos Búzios Salvador João de Deus e Olodum

Eu sou do Pelô

Revolta dos Búzios Salvador

O Olodum vem relembrar

Uma luta oculta pela história

No Pelourinho se ouve ecoar João de Deus e Lucas Dantas

Serão lembrados eternamente

Por lutarem pelo seu povo Tornaram-se mártires inconfidentes

Traídos covardemente Por amigos de confiança

Os quais se escondem eternamente

Nas covardes sombras da ignorância

Traíram os búzios, mas se esquecem Que o Olodum vive a memória

E não esquece os que morreram na luta

Nos búzios da nossa real história

128 A denominação Revolta dos Alfaiates surge por conta da presença destes no movimento, sobretudo encarnado

na pessoa de João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate e um dos líderes insurgentes. A denominação Revolta

dos Búzios dá-se pelo fato de alguns dos conjurados utilizarem um búzio preso a uma pulseira para facilitar a

identificação entre os envolvidos. O movimento é ainda conhecido como Inconfidência Baiana e Revolta das

Argolinhas, este último com explicação semelhante a do búzio, com a diferença de ser a argola pendurada na

orelha o símbolo distintivo. 129 (COLEÇÃO OLODUM GRIÔ, 2007, p. 25)

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Apesar de não ser uma revolta exclusiva ou predominantemente escrava, a mesma

contou com estes, bem como ex-escravos dentre seus organizadores, e tinha na abolição da

escravidão uma de suas metas, aliada a abertura dos portos, proclamação da República e

diminuição dos impostos, dentre outros ideais de inspiração iluminista e republicana.

Além dos já citados escravos e ex-escravos, faziam parte dos conjurados alguns

alfaiates, sapateiros, bordadores, soldados e até mesmo um médico, Cipriano Barata, figura

conhecida do meio político da época, considerado um dos mentores intelectuais do

movimento130

.

No dia 12 de agosto de 1798, Salvador amanheceu com uma série de panfletos fixados

em vários de seus pontos de maior movimento. Tais panfletos conclamavam a população a se

levantar contra os abusos cometidos pela Coroa e apresentavam as teses defendidas pelos

insurgentes. Affonso Ruy (1942) apresenta, em sua análise sobre a Revolta, alguns dos textos

contidos nestes boletins. Em um destes foi possível ler: "Animai-vos povo baiense que está

para chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos: o tempo

em que todos seremos iguais" (RUY, 1942, p. 81). O volume 1 da Coleção Olodum Griô

apresenta o complemento do trecho citado por Ruy: “O tempo para que ressuscitem do

abismo da escravidão para levantares a sagrada bandeira da liberdade”. (COLEÇÃO

OLODUM GRIÔ, 2007, p. 7)

Em outro panfleto, de redação mais extensa, algumas das diretrizes a serem seguidas

em um segundo momento, já na pós-Revolta, começavam a ser apresentadas. Esta que se

segue, em específico, versa sobre a conduta dos clérigos e a remuneração dos soldados131

.

O povo baiense republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita a sua

digníssima revolução nesta cidade e seu termo: por tanto manda que seja punido

com pena de morte natural para sempre todo e qualquer padre que no púlpito,

confessionário, exortação, conversação, modo, forma, maneira, etc., persuadir aos

ignorantes e fanáticos com o que for nocivo, e inútil a liberdade, e bem comum do

povo; manda o povo que o sacerdote que concorrer para a dita revolução seja tratado

como concidadão: Os deputados da liberdade frequentarão todos os atos da igreja

para tomar conhecimento do exposto mormente dos delinquentes. Quer o povo que o

soldado haverá 200 réis de soldo cada dia (RUY, 1942, p. 82).

130 “Cipriano de Almeida Barata, cirurgião hábil, talentoso e de grande popularidade pela simpleza do trato e

piedosa assistência aos pobres, patriota ardente, tornando-se, por isso mesmo, figura destacada de todos os

movimentos sediciosos de seu tempo” (RUY, 1942, p. 66). 131 Demandas como o reajuste na remuneração dos Soldados, bem como a igualdade no tratamento destes no que

tange a progressão na carreira, ajudou a amealhar apoio dentre estes ao movimento que se organizava. Não por

acaso, dentre os líderes conjurados, dois Soldados se destacaram: Lucas Dantas de Amorim Torres e Luiz

Gonzaga das Virgens.

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A ação dos revoltosos foi considerada uma afronta ao poder estabelecido e uma

investigação foi ordenada, a fim de descobrir quem eram os responsáveis por tal ação. Não

tardou para que os nomes começassem a surgir e os envolvidos fossem detidos.

Centenas de indivíduos foram presos, sendo efetivamente condenados quarenta e nove

dos envolvidos. Foram identificados como líderes do movimento os alfaiates João de Deus

Nascimento e Manuel Faustino Santos Lira, e os soldados Lucas Dantas de Amorim Torres e

Luiz Gonzaga das Virgens. O material produzido pelo bloco Olodum ressalta, ainda, a

participação de duas mulheres, diferindo assim de boa parte material histórico existente sobre

as revoltas ocorridas no Brasil, especialmente as que tiveram como mote a questão étnico-

racial.

A participação popular diferenciou essa Revolta da Inconfidência Mineira, que tinha

uma composição social mais elitista e não havia se posicionado contra a escravidão.

Na linha de frente do movimento destacavam-se jovens negros como: João de Deus do Nascimento (alfaiate); Manoel Faustino dos Santos (com apenas 18 anos de

idade); Gonzaga das Virgens (soldado); Lucas Dantas (também soldado); e mulheres

negras, principalmente duas já alforriadas: Ana Romana e Maria do Nascimento.

(COLEÇÃO OLODUM GRIÔ, 2007, p. 13)

Aos chamados líderes, fez-se sentir o peso da lei. A pena capital foi o preço a ser pago

pelo desafio a Coroa. Em 8 de novembro de 1799, os dois alfaiates e os dois soldados foram

enforcados em praça pública132

.

Após a execução das sentenças, os corpos foram esquartejados e seus despojos

expostos em diferentes pontos de Salvador, para que servissem de exemplo aos demais

cidadãos. A cabeça de Lucas Dantas seguiu para o Campo do Dique do Desterro. A de

Manuel Faustino foi exposta no Cruzeiro de São Francisco. João de Deus do Nascimento teve

sua cabeça exposta na atual Rua Chile, então Rua Direita do Palácio, bem próximo ao

Pelourinho. Por fim, a cabeça e as mãos de Luiz Gonzaga tiveram como destino a Praça da

Piedade, local onde hoje, séculos depois, embarcava no ônibus que me conduzia ao bairro da

Liberdade.

Após cinco dias expostos, os restos mortais foram recolhidos pela Santa Casa de

Misericórdia e sepultados em local desconhecido. Os executados tiveram, ainda, seus nomes e

memórias malditos até a terceira geração133

.

132Apontado como um dos líderes do movimento, o ourives Luiz Pires empreendeu fuga antes mesmo de ser

detido e jamais foi localizado. 133 Malditos ou não, fato é que hoje os nomes de Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de Deus do Nascimento e

Luiz Gonzaga fazem parte do “Livro dos Heróis da Pátria”, o que lhes confere status de heróis nacionais. O livro

encontra-se no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. A indicação destes para o panteão

se deu pelo projeto de lei 5.819/09, de autoria do deputado Luiz Alberto (PT-BA), originado de demanda do

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Entre os demais prisioneiros responsabilizados pela Revolta, as penas variaram. Uma

parte foi condenada ao degredo, sendo que alguns foram enviados para regiões da África que

não faziam parte dos domínios portugueses. Antes, porém, todos foram apenados com 500

chibatadas no pelourinho que se encontrava no Terreiro de Jesus e que mais tarde daria nome

a toda aquela área. Curiosamente, Cipriano Barata, um dos articuladores do movimento, foi

condenado há pena de prisão simples, em Salvador, sendo libertado pouco mais de um ano

depois. Como bem explica Affonso Ruy

A justiça, em desagravo a afronta sofrida pela realeza, seria implacável. Lavar-se-ia,

da História, com sangue, aquele capítulo de insubordinação, esboçado pelos

patriotas sequiosos de liberdade. Aquela prometida punição, exigida com

severidade, não era, individualmente, executada contra os revolucionários,

chibateados no pelourinho, expulsos para a África, ou pendurados na verga da forca,

mas exercida contra aquela casta de gente audaciosa, irreverente, a mais orgulhosa e inquieta do país. O castigo exemplar aos pardos e libertos era uma advertência bem

significativa aos que, em tempo, puderam se esconder por trás do seu prestígio e

riqueza. (RUY, 1942, p. 79-80)

Se a Revolta dos Búzios se viu frustrada em seus ideais, lançou sementes em um

campo que estava pronto para ser cultivado. O descontentamento crescente nos diversos

setores da sociedade fez com as teses propagadas na malograda Revolta ecoassem nos anos

seguintes, culminando com nova empreitada emancipatória que eclodiria em 1821 e que,

através da guerra pela Independência da Bahia, seria concretizada com sucesso em 2 de julho

de 1823.

Todavia, entre o final do século XVIII, quando aconteceu a Revolta dos Búzios, até

que fosse proclamada da Independência da Bahia, outras revoltas tiveram o solo

soteropolitano como palco. Revoltas com roteiros bem específicos e atores bem determinados.

Em 1807, escravos de origem haussá organizaram um levante em Salvador. Segundo

Reis (2014) o propósito era o combate aos brancos, destruição de templos cristãos e

instauração de um governo mulçumano. A data escolhida foi a do dia da procissão de Corpus

Christi, justificada pela grande movimentação nas ruas da cidade. Entretanto, para pesar do

movimento, o governo acabou tomando conhecimento do plano antes que este fosse

efetivado, e deteve seus líderes em seu local de reuniões, na região de Conceição da Praia.

Antônio e Baltasar, principais líderes do levante, foram condenados à morte. Os demais

participantes detidos foram açoitados em praça pública. Junto com estes foram encontrados

diferentes tipos de armas. Para além dessas, chama a atenção a apreensão de outro elemento:

Grupo Cultural Olodum. Em março de 2011 a Presidenta da República Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.391

que elevou os conjurados a heróis da pátria.

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um tambor. Lembrei-me de Lazinho em sua entrevista, séculos após a referida revolta,

afirmando que o tambor sempre será um anunciador de paz ou de guerra.

Deste dia em diante ficou proibida a circulação de escravos pelas ruas após as 21

horas, sem que estes portassem autorização por escrito de seu senhor. Os que não

respondessem a essa condição seriam imediatamente presos134

.

No ano de 1809, escravos, em sua maioria haussás fugidos dos engenhos do

Recôncavo, uniram-se a outros, oriundos de Salvador, e iniciaram um levante que foi

duramente reprimido pelo governo. Incontáveis foram as baixas. Os sobreviventes foram

presos e condenados a trabalhos forçados. Nova revolta ocorreria um ano mais tarde, em

1810, tendo o mesmo desfecho da anterior. Escravos mortos ou detidos e movimento

debelado. Os prisioneiros receberam pena de açoite em praça pública e, posteriormente, foram

vendidos para fora da província135

.

Em sua entrevista, Eduardo ressaltou os levantes que teriam sido originados na região

de Itapuã, antes mesmo da destacada Revoltas dos Malês.

Século XIX, Itapuã é palco de uma, duas, cinco ou seis rebeliões muçulmanas.

Haussás. Quer dizer, Itapuã era um lugar de africanos haussás, que eram

islamizados, eram pescadores. Eram negros de ganho. 1804, 1814, 1820. São três levantes de proporção pouco menor que a Revolta dos Malês. Em 1814 tem um

levante de negros haussás que eram islamizados, em que mais de duzentos escravos

queimaram as embarcações. Mais de duzentos africanos queimaram as embarcações

pesqueiras, elegeram um rei, Rei Francisco, Rainha Francisca, e marcharam por

Salvador. A ideia era o quê? Queimar os barcos e voltar pra África. Isso é 1814.

Onde? Itapuã. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Eduardo se refere ao levante iniciado em 28 de fevereiro de 1814, quando um

numeroso grupo de negros, em sua maioria haussás, comandados por um haussá de nome

João Malomi136

, iniciou um levante a partir de Itapuã. Parte dos escravos envolvidos fora

mobilizado pelo próprio Malomi. Outra parte da mobilização ficou a cargo de Francisco

Cidade137

, que recrutou indivíduos na própria região de Itapuã, bem como em outras

134 Para maiores informações sobre a revolta de 1807, ver Bastide (1971) e Verger (2002). 135 A rapidez na contenção dos levantes escravos por parte do governo visava, obviamente, a manutenção da

ordem estabelecida, mas trazia em seu âmago o temor de que destino semelhante ao do Haiti se abatesse sobre a

Bahia. Vale lembrar que pouco tempo antes (1791-1804) a então colônia francesa de Saint-Domingue, situada nas Antilhas, mais precisamente na ilha de Hispaniola, havia passado por um período longo de levante popular,

conhecido como Revolução Haitiana, que culminou com a independência do Haiti e abolição da escravidão. O

Haiti tornou-se a primeira república no Novo Mundo a ser comandada por pessoas de ascendência africana.

Segundo Reis (2014), há fortes indícios de que tal episódio chegou ao conhecimento dos africanos na Bahia e

teria sido um motivador das revoltas de 1814. 136 Mais do que um simples sobrenome, Malomi seria uma ocupação, cujo termo derivaria de málami, que na

língua haussá significava clérigo muçulmano. 137 Vale ressaltar a descrição de Francisco Cidade feita por Narcimária Luz (2012), com base em documentos da

época, que afirma ser conhecido Francisco, nos arquivos das instituições escravistas da província da Bahia no

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freguesias de Salvador, vilas do Recôncavo e em quilombos suburbanos. Reis chama a

atenção para a atuação de Francisco Cidade

Francisco devia ser escravo de ganho, o que lhe permitia circular com relativa

autonomia e manter contatos regulares com africanos no Recôncavo e nas ilhas da

baía de Todos os Santos, de onde trazia notícias para o malomi e também coletava

fundos para o movimento. Mas ele não combateu em 1814. Um de seus papéis seria recolher, além de dinheiro, provisões, que encaminhava ao quilombo do

Sangradouro na fase final da conspiração. (...) Ele também recrutava adeptos.

Francisco Cidade ‘fora quem combinara, seduzira e persuadira [para] a rebelião’ a

muitos negros. E planejava. (...) Seria um articulador e homem de autoridade no

esquema rebelde (REIS, 2014, p. 84).

A rebelião teve início com um ataque de cerca de duzentos homens a armação

pesqueira de Manuel Ignácio da Cunha, tendo a mesma sido incendiada. Os ataques se

estenderam para outras armações e empreendimentos na região de Itapuã. Segundo Reis, o

objetivo dos insurgentes era alcançar o Recôncavo

Ao contrário do que geralmente reza a historiografia, as propriedades atingidas pela

revolta de 1814 não se limitavam a atividade pesqueira. A revolta apenas começou

pelas armações, isto sim. Na primeira delas, propriedade de Manuel Ignácio da

Cunha Menezes — futuro visconde do Rio Vermelho, figura proeminente da elite

econômica e dirigente baiana —, os levantados mataram um feitor e membros de sua

família, incendiaram casas e instrumentos de trabalho, como redes e cordas. Em

seguida atacaram outras armações, fazendas e a vila de Itapuã, onde mataram

moradores e incendiaram casas. Depois do ataque a Itapuã, marcharam rumo ao Recôncavo, margeando o rio de Joanes, caminho que percorreram a incendiar mais

casas e plantações. Nunca alcançariam a região dos engenhos, onde contavam com

adeptos e cujos escravos pretendiam sublevar (REIS, 2014, p. 79).

Os rebelados acabariam derrotados pelas forças do governo em confronto nas

imediações de Santo Amaro do Ipitanga, atual Lauro de Freitas. Cerca de cinquenta escravos

foram mortos na ação, dentre os quais João Malomi, e vinte e sete foram detidos, sendo

posteriormente condenados a açoites em praça pública e degredo em colônias penais na

África. Destes, quatro foram condenados a morte por enforcamento138

.

século XIX, pelo nome católico e muito respeitado por ser exímio praticante da dança. Segundo Reis (2014), em

seu interrogatório Francisco admitiu ser o presidente das danças de sua Nação, protetor e agente delas. Ainda de

acordo com Reis, por chefe das danças denominava-se o responsável por “... grupos festivos organizados em

torno das associações étnicas africanas, no caso dele em torno da nação haussá. Comuns em todo o Brasil,

importante elemento de sociabilidade africana e particularmente fortes em Pernambuco, essas manifestações tinham em geral o aval dos governos coloniais e dos próprios senhores, que assim buscavam proporcionar uma

válvula de escape para as pressões do cativeiro, ao mesmo tempo em que incentivavam a divisão étnica entre os

cativos. No mais das vezes, tinham o feitio de celebrações afro-católicas vinculadas a irmandades negras,

geralmente aquelas de Nossa Senhora do Rosário, em que danças e batuques animavam e misturavam o sagrado

com o profano. Semelhantemente a congadas e reisados, encenavam-se coroações de reis e rainhas negros, que

se faziam acompanhar de seus nobres, os duques e outros titulares, não faltando patentes militares” (REIS, 2014,

p. 82). 138 Para mais informações sobre os procedimentos jurídicos resultantes do levante, bem como sobre os

envolvidos, ver Reis (2014).

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Há de se salientar, ainda, que parte dos escravos derrotados em combate acabou

suicidando no próprio rio Joanes, por afogamento, ou enforcando-se. Uma parte conseguiu

empreender fuga e acabou por formar quilombos nas regiões de Matatu de Brotas, Quinta dos

Lázaros e Cabula.

Para além de dar origem a alguns quilombos, o levante de fevereiro acabaria por

suscitar outro, no mês de maio do mesmo ano, novamente a partir de Itapuã, e novamente

tendo haussás no comando, conforme Schwartz

A conspiração de junho de 1814 foi em vários sentidos uma continuação ou um

prolongamento do levante de fevereiro, e até envolvia alguns dos rebeldes do

movimento anterior. Alguns escravos convidados a se unir a conspiração foram

informados de que muitos que haviam escapado da batalha de fevereiro estavam

aquilombados nas matas (SCHWARTZ, 1998, p. 387).

Assim como aconteceu no levante de 1807, fora escolhida uma data festiva e de

grande movimento para o início das ações. Naquela foi o feriado de Corpus Christi, nesta

seria o dia de São João.

Entretanto o plano acabou denunciado às autoridades, que proibiram os festejos e

detiveram os envolvidos. As condenações variaram, como de costume, entre açoites em praça

pública, degredo na África e pena capital.

As seguidas investidas de escravos contra a ordem escravocrata estabelecida acabou

por afligir determinados setores da sociedade baiana. Comerciantes de Salvador chegaram a

fazer uma petição endereçada ao Governador, na qual reclamavam da falta de policiamento,

dos batuques e das reuniões dos negros. Verger apresenta uma valiosa troca de

correspondências entre o Governador Geral do Rio de Janeiro e o Conde dos Arcos, então

Governador da Bahia, cujo conteúdo seria

O Governo Geral do Rio de Janeiro, respondendo a correspondência do Conde dos

Arcos, recomenda-lhe um policiamento mais severo sobre os escravos, determinado que fossem proibidas reuniões de negros chamadas vulgarmente batuques,

especialmente à noite, embora isto lhes fosse permitido para alegrá-los, mas que não

deviam continuar pelos abusos cometidos. No Rio, tais reuniões eram permitidas,

pois os negros angola e benguela são diferentes dos da Bahia, especialmente os

haussás (VERGER, 2002, p. 330).

Interessante notar o tratamento especial recomendado pelo Governador Geral do Rio

de Janeiro aos negros haussás, responsáveis principais pelas seguidas revoltas em Salvador.

Segundo Reis (1996), os haussás estavam habituados com um ambiente belicoso, uma vez

que sua região de origem na África vinha de sucessivos conflitos entre reinos que buscavam a

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hegemonia da mesma. Para além dos conflitos políticos, em 1804 teve início o jihad139

,

conflagrado pela etnia fulani em território haussá. Ainda de acordo com Reis, este jihad,

liderada pelo xeque Usuman Dan Fodio, teve características de expansionismo, uma vez que

envolveu a derrubada de reinos em toda a região, dentre os quais o de Oyó. Os haussás, feitos

prisioneiros durantes os combates, foram, via de regra, destinados ao tráfico de escravos140

.

Daí o incremento no número de africanos haussás enviados para o Brasil no período,

notadamente para a Bahia. Sua oferta no mercado crescera justamente por conta das guerras

em curso, conforme explicitado por Reis

Os escravos trazidos para a Bahia da era das revoltas vieram de uma região da

África conflagrada por lutas políticas e religiosas ligadas a queda do império

iorubano de Oyó e a expansão muçulmana, capitaneada pelos fulanis, em território

haussá e ioruba. Foram esses africanos, geralmente prisioneiros de guerra, guerreiros

unidos por laços étnicos, aos quais em muitos casos se somava a comunhão no Islã,

que aterrorizaram a classe senhorial baiana (REIS, 1996, p. 26).

Passadas as insurreições coordenadas por haussás, nas duas primeiras décadas do

século XIX, o solo soteropolitano seria novamente estremecido por um levante. Desta feita no

ano de 1826.

Escravos amotinados nos arredores de Cajazeiras teriam seguido para a região do

Cabula, a fim de procurar abrigo no Quilombo do Urubu. Lá se uniram aos quilombolas e

planejaram uma ofensiva contra a cidade de Salvador, conforme afirma Reis

A mais famosa das revoltas iniciada por um quilombo ocorreu em 1826, de novo nas

imediações da capital. O plano previa a concentração de escravos fugidos no

quilombo do Urubu, de onde desceriam para Salvador onde, reunidos com

conspiradores dali, levantariam a escravaria urbana por ocasião do Natal daquele

ano. O plano abortou porque um grupo de capitães-do-mato deu no quilombo, que

foi obrigado a reagir e, com a chegada de novas tropas, terminou perdendo a batalha

(REIS, 1996, p. 21).

Alguns dos rebeldes foram detidos e outros tantos se refugiaram nas matas da região.

Registra-se um contingente de cerca de quarenta homens para dar combate a cerca de

cinquenta amotinados.

139 O temor “Jihad” normalmente é traduzido como sendo “guerra santa”. Entretanto o conceito de jihad tem significado mais amplo. Representa a busca pela melhoria pessoal e da sociedade como um todo sob as leis

islâmicas, notadamente por meio da difusão da influência do islamismo. A defesa e proteção da fé islâmica de

elementos hostis é um de seus preceitos. Para tanto, preconiza-se o uso primaz de dispositivos legais,

econômicos, políticos e diplomáticos, sem, no entanto, ser descartado o conflito militar. 140 Apesar de compartilharem a fé islâmica, haussás e fulanis estiveram em lados opostos na jihad de 1807 por

divergências dos segundos quanto ao purismo religioso dos primeiros. Os fulanis pertenceriam ao chamado bilab

al-Islam, ou terra do Islã. Por sua vez, os haussás fariam parte do bilab al-sudan, ou terra dos negros e, portanto,

incluídos no rol dos acusados de práticas pagãs, sobretudo por conta do sincretismo existente em seus rituais,

sendo assim passíveis de ataque pelo jihad.

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Este episódio, especificamente, traz características que merecem uma observação mais

acurada. Em primeiro lugar, a integração clara entre quilombo e revolta. O levante de 1826

não foi o primeiro e nem o último a contar com quilombolas em suas fileiras, mas é neste que

fica mais evidente tal relação. Em segundo lugar, o protagonismo feminino no movimento.

Zeferina era o nome da escrava nagô, principal liderança do quilombo do Urubu e do

levante, que combateu pessoalmente as forças repressoras. Em rebeliões anteriores, a presença

de mulheres também fora notada. Dos episódios de 1814 surgem em registros oficiais os

nomes de Germana, Teresa, Ludovina, Felicidade e Ana, além de Francisca, companheira de

Francisco Cidade, que o auxiliava na tarefa de arregimentar apoio ao movimento insurgente

entre os escravos do Recôncavo. Os citados Francisca e Francisco são os mesmos

mencionados por Eduardo, em sua entrevista, desta feita como Rei Francisco e Rainha

Francisca. Entretanto, é no levante de 1826 que, pela primeira vez, uma mulher seria o centro

de todas as ações.

A historiografia registra uma grande deserção de escravos de Salvador, no ano de

1828, deserção esta frustrada pela ação policial que culminou com a captura, punição e morte

de vários dos envolvidos. Já em 1830 um grupo de escravos atacou armazéns na região da

Cidade Baixa com a finalidade de obter armamentos e materiais para, em seguida, invadir um

depósito de escravos recém desembarcados em Salvador, libertando mais de uma centena

destes. A repressão policial foi imediata e enérgica, resultando na morte de cerca de cento e

cinquenta escravos, enquanto algumas dezenas acabaram detidas, dentre os quais o nosso já

conhecido personagem, Francisco Cidade, que também havia participado do movimento

desertor de dois anos antes.

Como se pode notar, entre os anos de 1807 e 1830, várias foram as revoltas escravas

nas terras de São Salvador. Pontuamos apenas os episódios mais emblemáticos, deixando

repousar na história os atos de rebeldia de menor vulto, mas que com certeza aconteciam com

mais frequência do que podemos imaginar. A história da escravidão negra no Brasil é também

a história da resistência negra a escravidão.

O início do ano de 1853 trouxe consigo mais um episódio nesta trajetória de levantes.

Desta vez tratava-se da Revolta dos Malês, apresentada no décimo volume do Caderno de

Educação do Ilê Aiyê, intitulado “Malês – A Revolução” (2002), bem como na Coleção

Olodum Griô, em seu segundo volume, “Revolta dos Malês: A saga dos muçulmanos

baianos” (2013). A Revolta foi ainda decantada no repertório musical do bloco Olodum, em

canção intitulada “Salamaleques Malê Olodum”.

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“Salamaleques Malê Olodum”141

(Composição de Marcelo Gentil)

Negras almas Confinadas na embarcação

Império de horrores e iniquidades

Sombrias maldades da escravidão

Desterrados

Devotos guerreiros de Alá Alcorão e amuleto no peito

Quem não pode com os Mandingas

Não carrega patuá

Irmãos não sejam pisados

Humilhados e maltratados

Presos as gaiolas da servidão Nagôs, Malês e Haussás

Allah hu Akibar

Espada sagrada

Contra a escravidão

Serei livre

Vou lutar vencer ou morrer Vou islamizar a Bahia

Allah hu Akibar

Ori, Orixá Alá Reconta a Revolta do Povo Malê

Cante Alá, cante Alí

Salaam Aleikum Revive a Revolta Malê

Na mandinga do negro Olodum,

Cante Ali, Cante Alá

O planejamento inicial da Revolta previa uma ação logo na manhã do dia 25 de

janeiro, um domingo, quando considerável parte dos moradores de Salvador se reuniria na

Igreja do Bonfim para os ritos católicos costumeiros. A ideia era a realização de incêndios

simultâneos em diferentes pontos da cidade, para dificultar a ação repressora da polícia,

enquanto a maior parte dos insurgentes tomaria a cidade de assalto. Para tanto estariam sendo

reunidos negros de Salvador e também do Recôncavo.

Entretanto os planos foram frustrados na véspera mediante a delação de uma escrava

nagô a um comerciante que, por sua vez, avisou as autoridades. Diligências foram realizadas

em residências de africanos visando a captura dos envolvidos. Ao chegar a uma das casas, as

forças policiais depararam-se com grande contingente de negros armados, que responderam a

investida da polícia, não só resistindo a esta como promovendo a dispersão dos policiais. Com

141 (COLEÇÃO OLODUM GRIÔ, 2013, p. 27)

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o movimento descoberto, restou aos escravos colocar em prática pelo menos parte de seu

plano, que seria a tomada de assalto da cidade de Salvador.

Uma parte dos rebelados seguiu para a região de Água de Meninos, onde promoveram

um ataque ao quartel da cavalaria. Outra parte seguiu para a região central, com o intuito de

atacar a guarda do Palácio, o Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, e ainda tentar a

libertação dos prisioneiros detidos na rua da Ajuda, onde, além de localizar-se a primeira

catedral do Brasil, localizava-se também uma cadeia. A libertação do alufá142

nagô Pacífico

Licutan era um dos objetivos principais desta ação.

Nenhum dos ataques atingiu seus objetivos. Em Água de Meninos a situação foi mais

dramática, havendo o registro da morte de cerca de quarenta escravos e vinte policiais, além

de um grande número de feridos em situação grave, boa parte posteriormente vindo a óbito.

Como diz Gilberto Gil em uma de suas composições, Água de Meninos chorou.

A contraofensiva policial veio por meio da busca dos envolvidos através de revista em

residências de africanos. Nestas buscas foram apreendidos papéis escritos em árabe, muitas

vezes com inscrições de frases do Alcorão e de pequenas orações, bem como outros materiais

relacionados à religião islâmica. Foram encontrados, também, materiais utilizados na

alfabetização em árabe. Nessa ação policial um grande número de africanos foi detido. Parte

destes foi deportada para a África, enquanto outra parte sofreu pena de açoitamento em praça

pública.

Assim como nos levantes das décadas de 10 e 20 do século XIX, a Revolta dos Malês

trouxe novamente o elemento religioso para o centro de um movimento insurgente na cidade

de Salvador, um dos fatores de conjunção desta amálgama de interesses. E novamente o

islamismo, como já havia acontecido nas rebeliões capitaneadas pelos haussás, desta vez sob

o comando dos malês, negros nagôs islamizados.

Esta linha de raciocínio não é nova. Bastide (1971) já atentava para a importância do

elemento religioso na organização das revoltas escravas em Salvador ao afirmar que

(...) o elemento étnico é ao mesmo tempo um elemento religioso, isso porque a

herança social de poderio e de militarismo que receberam era uma herança muçulmana acumulada pelas guerras seculares entre negros fetichistas, constituindo

consequentemente uma cruzada religiosa. É claro que também há o elemento

econômico. Estas revoltas objetivavam apoderar-se da terra para nelas fazerem

trabalhar outros negros, crioulos e mulatos. Elas teriam surgido da religião

142 Alufá é a designação dada ao líder religioso mulçumano dentre os negros da Bahia. Conforme Nina

Rodrigues: "Os sacerdotes ou verdadeiros marabus chamam-se na Bahia alufás" (RODRIGUES, 1982, p. 84).

Após a revolta de 1835 a utilização do termo alufá passou a ser proibida pelas autoridades. Em alguns casos a

designação passou a ser substituída pelo termo iorubá babalawo, ou babalaô aportuguesado.

.

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muçulmana e não da consciência de classe. Os muçulmanos conservavam suas

escolas e lugares de oração e pouco frequentavam outros escravos (BASTIDE, 1971,

p. 153).

Documentos oficiais, trazidos por Verger, sobre os condenados pela rebelião malê,

demonstram que vários destes tinham participação ativa na prática religiosa islâmica, como se

pode atestar com base na seguinte passagem:

Aluná ou Arumá, escravo nagô com cicatrizes tribais; Vitório, negro nagô chamado

Sulé, que vendia tecidos; Luis Sanin, negro Tapa, escravo que ensinava orações e

era alufin ou sacerdote; Pacífico Licutan, escravo que tinha grande prestígio entre os

nagôs por ser alufá; (...) Elesbão do Carmo, haussá emancipado, conhecido pelo

nome de Dandara. Possuía uma barraca de comércio e também ensinava a ler em

nagô e em haussá e era alufá: Luiz, alfaiate, escravo que confeccionava túnicas usadas pelos revoltosos (VERGER, 2002, p. 324).

A Revolta dos Malês foi a última grande insurreição negra em Salvador. No ano de

1844 ainda houve um movimento liderado por haussás e malês, com remanescentes da

rebelião de 1835. Entretanto o levante foi debelado antes mesmo de ter sido colocado em

prática, a partir de uma denúncia de um dos envolvidos.

Chegando ao final deste ponto, é possível ver como as diferentes formas de resistência

empreendidas pelos africanos escravizados se articulavam, fazendo parte de um conjunto de

ações que pautaram a reação negra ao regime escravocrata estabelecido em terras brasileiras e

que serve agora de referência para os movimentos negros contemporâneos, em especial aos

blocos afro. É notável a busca de tais instituições por referenciais da história negra na Bahia e

no Brasil, bem como de uma ancestralidade quase mítica em solo africano. Como diz um

pequeno trecho da canção “O elo”, de autoria de Bida e que faz parte do repertório do

Olodum: “Uma semente germinou da Revolta dos Búzios / E nasceu no Pelô, no Pelourinho.”

Foi olhando para este passado marcado pelos grilhões e chibatas, mas também pautado pela

resistência e persistência, que tais entidades procuraram - e ainda procuram - modificar a

existência negra no presente, abrindo espaço para novos caminhos futuros.

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4.O CARNAVAL DE SALVADOR

SWING DA COR

Quando pensamos em movimentos de resistência ou insurreição negra no Brasil, do

fundo da memória logo emergem episódios de revoltas, quilombos, fugas e outros,

como os citados em seções anteriores deste texto143

. No entanto, é importante lembrar

que nem só de confronto direto se fazem as revoluções. Pequenas mudanças do

cotidiano, responsáveis pela contestação de uma ordem vigente, por vezes possuem

uma maior capacidade de desmontar estruturas sociais do que o embate franco em campo

aberto.

É justamente neste espaço, onde as pequenas rebeliões do cotidiano se efetivam, que a

música, bem como todos os elementos a ela inerentes, fizeram estremecer as bases da

sociedade soteropolitana, ainda no século XIX. Iniciando um breve esforço de

contextualização, retomemos a Salvador daqueles dias.

Como já citado em passagem anterior deste texto, no início do século XIX,

comerciantes de Salvador fizeram uma petição endereçada ao então Governador, na qual

reclamavam dos batuques e das reuniões dos negros. Era patente o desagrado que tais

batuques, e a consequente reunião de negros, causava nas demais camadas da sociedade.

Lembrando que por batuque a época se designavam não somente as rodas de música como

conhecemos hoje, mas toda e qualquer manifestação negra que fizesse uso da dança e da

sonoridade percussiva. Desta feita, poder-se-ia encaixar em uma mesma categoria “batuque” o

samba de roda, o candomblé e a capoeira.

Curiosamente, em sua entrevista, Gilmário Marques falou de um abaixo-assinado de

comerciantes da região do Pelourinho, contra a realização de ensaios do bloco Olodum e de sua

banda mirim, nas históricas ladeiras. Mais de um século depois, os batuques negros seguem sendo

encarados como um incômodo pelos comerciantes soteropolitanos.

Mas agora, com essa coisa do Pelourinho, agora tá difícil tocar na rua. Tá

incomodando aos comerciantes. Os comerciantes ligam... Fizeram até um

abaixo-assinado. Tanto que os ensaios do Olodum são fechados, na

Escola. São dentro da sala de aula. E aí uma coisa que veio da rua, eles tão tentando tirar da rua. Uma coisa que não tem cabimento. Se botar um

tambor aí agora, vai encher de gente aí. E a gente faz esses ensaios aí, que

143 QR Code: Swing da Cor – Daniela Mercury. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=5CggoGXWoBU

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a gente fazia todos os dias da semana. Isso parou. A gente só faz isso

faltando uma semana para o carnaval, que a gente faz três ensaios. Três

ensaios. Só. E os outros ensaios a gente complementa com os ensaios dia

de domingo. Que acontecem, não periodicamente, mas de quinze em quinze dias, mês em mês. (Gilmário Marques, entrevista realizada em

abril de 2014)

Em artigo sobre a repressão a capoeira, Frederico José de Abreu (2008) fala sobre o

incômodo sentido pela elite escravocrata baiana.

Poderiam ser captados nas queixas da população em jornais da época: “multidões de

negros de um e outro sexo, das diversas nações africanas, falavam, dançavam e

cantavam canções gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”;

“divertimentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárbaros costumes”;

“convulsão inebriante e confusão”; “brigas”; “cenas indecentes e imorais”; ou

“danças horrorosas”… As queixas não se limitavam a desqualificar as manifestações

culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusavam, ainda, inversões da

ordem social: ao ter lugar a prática dos batuques “onde e quando os escravos

queriam”, esses negros exerciam – mesmo que precária e momentaneamente –

autonomia sobre os espaços ao tempo em que esses batuques aconteciam. (ABREU,

2008, p. 37)

Vislumbravam naquelas manifestações negras as sombras de uma rebeldia capaz de

afrontar a ordem estabelecida pelo sistema escravocrata em vigor. Sendo assim, todo batuque

passou a ser considerado como movimentação suspeita, sujeita a uma observação mais

vigilante, tanto de senhores como das próprias forças policiais.

As sucessivas revoltas negras ocorridas em Salvador nas primeiras décadas do século

XIX, contribuíram para que uma aura de ameaça fosse colocada sobre toda reunião de negros,

fossem estes escravos ou forros. Os governos do Conde das Pontes e de seu sucessor, Conde

dos Arcos, procuraram resolver a questão, reprimindo todas as formas de manifestação do

batuque. Mas eis que este resistiu, sobrevivendo nos terreiros de candomblé ou rodas de

capoeira e samba, sobretudo nas áreas mais afastadas da periferia da capital baiana.

Em meio a todo este cenário, é curioso notarmos que uma manifestação popular de

caráter lúdico gozava de grande prestígio entre a elite: era o entrudo144

. Embora não contasse

com música nem dança, o entrudo é visto como um antecessor do carnaval. Conforme nos

explica Scott Ickes:

O predecessor do carnaval foi o entrudo, importado de Portugal e caracterizado por

batalhas de rua e jogos faceiros entre mulheres e homens, que envolviam bombas de

água e farinha. Esta era, em grande parte, uma atividade da classe alta, enquanto os

escravos e serviçais trabalhavam para equipar seus senhores com água e

suprimentos, preparar as refeições festivas e lavar a roupa extra. Escravos e serviçais

também podiam ser vítimas da cultura brincalhona e travessa do entrudo, mas

144Para mais informações sobre o entrudo, ver Araújo (2000), Queiroz (1999) e Valença (1996).

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podiam, junto com os negros livres, também encontrar tempo para festejar entre si.

(ICKES, 2013, p. 201)

Europeu na origem, o entrudo conquistou adeptos em Salvador, bem como em outros

grandes centros urbanos brasileiros. Contudo, mesmo antes de desembarcar em terras

brasileiras, a prática já era combatida em solo europeu, por setores da Igreja e autoridades

políticas. Não tardou para que o mesmo acontecesse no Brasil, sendo a prática proibida no ano

de 1853. A alegação era de que o entrudo, considerado bárbaro e violento, não teria espaço

em uma sociedade dita civilizada. Entretanto, assim como o batuque, o entrudo sobreviveu

nas práticas e comportamentos desordeiros até a década de 1880.

Neste ínterim a elite já havia migrado das batalhas de água e farinha, realizadas pelas

ladeiras da cidade, para os teatros, onde uma nova forma de festejo ganhava força. Eram os

bailes de máscaras. Em Salvador, o palco por excelência para tais celebrações foi o Teatro

São João, tendo também sido realizados bailes no Teatro São Pedro.

Emulando os bailes existentes na Europa, principalmente na Itália e França, e que já

ganhavam espaço nos salões do Rio de Janeiro, o chamado carnaval dos salões encontrou em

Salvador uma elite ávida por brincar sem, no entanto, querer compactuar com a face mais

popular dos festejos de rua. Foi o momento inicial da cisão entre o carnaval de rua, tido como

reino da bestialidade, e o carnaval dos salões, tido como expressão plena da civilidade, com

suas regras e proibições, responsáveis por dar contornos de organização a uma festa

caracterizada pela espontaneidade.

Em 14 de fevereiro de 1863, era assim que o jornal “Diário da Bahia” anunciava um

dos referidos bailes:

No sabbado 1º de março e terça-feira 4 do mesmo mez, haverá esplendidos bailes

mascarados no magestoso edifício do theatro público, onde se observara o

programma seguinte: Logo que forem 7 horas da noite, a musica de polícia, a

primeira musica marcial da Bahia sob a direcção do seu distincto mestre o Sr.

Aragão, começará a tocar escolhidas e apropriadas peças no bello terraço, d’onde

passará a tocar no salão do baile enthusiasticas e famosas quadrilhas, masurkas,

polkas, walsas e shotish, muitas das quaes são de moderna e nova composição.

(CADENA, 2014, p. 34)

Apesar dos reclames públicos convidando a população para os bailes, os valores

cobrados pelos ingressos eram premeditadamente proibitivos a boa parcela destes. Sendo

assim, a maior parte da população mantinha sua folia restrita as ruas enquanto a elite

refestelava-se nos teatros. Se com a adoção dos salões como espaço nobre para realização dos

festejos carnavalescos, é efetivada a separação do espaço popular da rua, com a cobrança de

ingressos o carnaval passava a ganhar ares de negócio.

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Porém, nem mesmo a segregação espacial foi suficiente para atender aos interesses

daqueles que circulavam pelos luxuosos salões, escondendo-se atrás de máscaras venezianas.

A manifestação popular nas ruas ainda incomodava os frequentadores dos bailes. E

justamente por pressão destes e de parte da imprensa, o Governo, já no ano de 1878, começou

a distribuir máscaras e figurinos, oriundos do Teatro São João, aos que brincavam nas ruas,

em uma tentativa de disciplinar a festa popular, em uma ação que objetivava acabar de vez

com o persistente entrudo.

Quando o mundo da rua parecia suficientemente civilizado, eis que a elite resolveu

retomar-lhe a posse145

. Seguindo um modelo já colocado em prática no Rio de Janeiro há pelo

menos três décadas, em 1883 saiu às ruas o primeiro clube carnavalesco a desfilar pela Cidade

da Bahia, nomeado como Cruz Vermelha.

Com estrondoso sucesso, o pioneiro desfile abriu as portas para que, no ano seguinte,

inúmeros grupos tomassem as ruas da cidade, no primeiro carnaval soteropolitano organizado

de que se tem notícia, com direito inclusive a decoração de vias públicas com flâmulas,

bandeiras e iluminação especial. Perambularam pelas ladeiras de Salvador, naquele distante

1884, agremiações como os Comilões, Saca Rolhas, Fenianos, Congresso de Vulcano, Clube

das Petas, Fantoches de Euterpe e Os Abolicionistas, o que nos lembra que neste começo do

carnaval organizado em Salvador, o país ainda permitia a prática da escravidão.

Os clubes desfilavam com uma série de carros abertos, com integrantes fantasiados e

ostentando um luxo que variava de agremiação para agremiação. Não existia um tema a ser

seguido, tampouco enredo a ser desenvolvido.

Concomitantes aos desfiles dos clubes, ainda eram realizados os bailes nos salões dos

teatros. A elite agora dominava os dois espaços, relegando a parcela menos abastada da

população, majoritariamente formada por negros, a um segundo plano, como meros

espectadores da folia, uma vez que não foi lhes dada nenhuma alternativa de espaço para a

realização de sua própria festa. E foi justamente desta aparente falta de alternativa que a

população negra de Salvador encontrou a oportunidade para mudar o recém-criado carnaval

organizado. No ano de 1895, saiu às ruas um bloco de negros, para desfilar pari passu com

blocos como Fantoches de Euterpe e Cruz Vermelha. Era o nascimento da Embaixada

Africana.

145 Quando mencionarmos a disputa pela rua, estaremos nos referindo especificamente aos grandes corredores

pelos quais os préstitos, cordões e blocos historicamente transitaram em Salvador, notadamente em sua área

central. Sendo assim, serão propositalmente negligenciadas as manifestações realizadas em outras vias da cidade,

especialmente nos bairros e regiões periféricas. Nessas a manifestação popular jamais concorreu com as

intenções da elite, sobretudo pelo desinteresse da segunda por tais áreas da cidade.

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4.1.OS AFOXÉS

ESSE SOM DO AFOXÉ

Formado por negros luxuosamente caracterizados como príncipes africanos, a

Embaixada Africana foi a grande novidade da folia de 1895, trazendo o batuque para o centro

do carnaval “civilizado”. De acordo com Goli Guerreiro, o afoxé, ainda chamado de clube de

africanos, bem como os demais que se seguiram, buscou seu referencial em elementos de

antigas formas de festejo, resignificando-os a partir de elementos modernos:

Os clubes negros apresentavam semelhanças com antigas formas carnavalescas

como Os Reis do Congo, Cucumbis, Ranchos e Ternos de Reis que se organizaram

nos séculos XVII e XVIII. Ao que tudo indica, os préstitos desses clubes do século

XIX eram resultado de uma mescla de modelos oitocentistas e informações

modernas. (GUERREIRO, 2010, p. 70)

A passagem da Embaixada Africana despertou admiração entre alguns setores da elite,

bem como da imprensa da época. Despertou, também, a comunidade negra para essa nova

possibilidade de expressão durante o carnaval. Logo em 1897 o Pândegos d’África seguiria os

passos da Embaixada, também ganhando os largos e ladeiras de Salvador.

Tema musical da Embaixada Africana - Carnaval de 1899146

Povo tudo di Bahia

Noi que vem de legação

Non tim foca pra contê

Tristeza di coração Ninguém vê acarajé

Tê aberem, mai non há

Quem pregunta, qué sabê Para onde foi vatapá

Pimenta, crui! Foi-se embora

Non se fala n’acaçá Tudo aqui anda perdido

Nim auá tim pra aluá

De pisá cá nessa terra

Nosso non tá rependido Pro caso de munta moça

Qui no trai cumprumitido

O carnaval, essa invenção do Diabo que Deus abençoou, como diria Caetano, voltava

a ser um espaço a partir do qual os negros poderiam exercer suas possibilidades de afirmação,

contestação e resistência. Em sua entrevista, Eduardo fez questão de mencionar as 146 (CADENA, 2014, p. 67)

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agremiações, deixando clara a ciência quanto à importância das mesmas para o que viriam a

ser as entidades afrocarnavalescas décadas depois.

Manoel Quirino que vai desenhar pra você essa história dessas organizações

carnavalescas negras desde o século XIX. Desde os Pândegos da África, Embaixada

Africana. Isso dá um outro desenho. Porque os blocos, quer dizer eles eram afro

porque traziam uma temática afro, mas na verdade eles eram afoxés. A Embaixada Africana era um afoxezão, inclusive com os instrumentos mesmo do candomblé,

como são os afoxés hoje. Não sei se você já viu alguma coisa sobre a história da

Embaixada, que eles foram pro carnaval de 1898 pra reivindicar a indenização das

famílias da Revolta dos Malês. Foi o tema do carnaval deles. Eles inclusive fizerem

panfletos, fizeram tema. Olha como são as coisas. E o tema era essa não sei o que lá

do Reino da Suazilândia. Eles diziam que se o governo no Brasil não indenizasse as

famílias dos Malês, que sofreram a perseguição na revolta em 35, que o Reino da

Suazilândia na África ia invadir Salvador. Pensa ai o que é isso. Quer dizer, fizeram

mesmo o tema. Mandaram pro jornal da época. Não sei se era Álamo ou Alabama.

Um jornal daquele da época. Foram pra rua com carro alegórico, fizeram um

elefante. É um bloco afro no século XIX. Manoel Quirino traz isso no livro dele. Nina Rodrigues fala muito rapidamente naquele “Os africanos no Brasil”. Você vai

buscando aí esses caras. Então vale contextualizar essa história dessas entidades

carnavalescas negras desde o século XIX. E obviamente caracterizando onde entra o

afoxé, como é que entra o bloco afro, quando é que eles se separam. (Eduardo

Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Nina Rodrigues (1982) observou a movimentação do carnaval soteropolitano do final

do século XIX:

As festas carnavalescas da Bahia reduzem-se ultimamente quase que a clubes

africanos organizados por alguns africanos, negros crioulos e mestiços. Nos últimos anos, os clubes mais ricos e importantes têm sido A Embaixada Africana e os

Pândegos da África. Mas, além de pequenos clubes como A Chegada Africana, os

Filhos da África, etc, são incontáveis os grupos africanos anônimos e os máscaras

negras isolados. (RODRIGUES, 1982, p. 163)

Wlamyra Albuquerque (2002) informa que grupos como Embaixada Africana e

Pândegos d’África desfrutavam de grande popularidade. Sua organização era diferenciada,

sendo mais integrados a lógica dominante do que se considerava como desejável de um

festejo carnavalesco.

A repressão ao entrudo, aliada a exclusão dos negros do espaço público durante a

folia, bem como o recente sucesso dos afoxés no carnaval, foi o suficiente para que, em um

cenário político-social de recente abolição da escravidão, uma profusão de outros afoxés

ocupasse as ruas de Salvador já no carnaval de 1899. Dentre estes podem ser citados o

Chegada Africana, Filhos da África, Lutadores da África, Congada Africana, Guerreiros da

África e Lembrança dos Africanos.

Tais entidades guardavam certas diferenças em relação a grupos como a Embaixada

Africana e o Pândegos d’África. Diferenças que se apoiavam muito mais no modo como

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lidavam com a ordem estabelecida do que nos princípios organizacionais dos cortejos, cujos

elementos e rituais eram compartilhados. Conforme Nina Rodrigues (1982), as danças e

cantigas africanas, que se exibiam com sucesso no carnaval, eram as danças e cantos dos

candomblés, do culto jeje-nagô, fortemente difundido entre a população negra.

De acordo com Jaime Nascimento e Hugo Gama (2009), a diferença na maior

aceitação de grupos como a Embaixada Africana e o Pândegos d’África, quando comparados,

sobretudo, aos afoxés, estaria relacionada às formas de negociação ou mesmo de adequação

aos parâmetros do carnaval oficial. Além do mais, a atuação política, em partidos e entidades

de auxílio fraterno, o grau de instrução e as posses dos dirigentes desses clubes, lhes

conferiam os requisitos necessários para fundar e dirigir entidades carnavalescas.

Neste momento, ainda no final do século XIX, o enquadramento dos festejos por parte

dos governantes se dava pela penalização da prática do entrudo na mesma medida que pelo

incentivo ao carnaval “civilizado” de clubes, tendo inclusive a já mencionada distribuição de

máscaras gratuitas como política pública. Como bem lembra Hildegardes Vianna:

Foi justamente pensando em civilizar os costumes e as gentes da cidade que muitas

das práticas populares e muitos dos usos que se faziam da rua, para o lazer ou para o

trabalho, passaram a sofrer censuras e a conhecer formas de controle. Assim, a moralização e a reeducação das classes populares seriam defendidas com veemência,

tendo por base os pressupostos idealizados pelas elites para a sociedade brasileira.

(VIANNA, 1965, p. 285)

Em um claro movimento de demarcação social e política, objetivou-se a absorção dos

negros aos festejos carnavalescos oficiais, em um sentido muito mais de controle do que

propriamente de integração, de maneira alguma se dedicando a eliminação das fissuras

espaciais e sociais presentes na Bahia desde os idos da sociedade colonial.

Não por acaso ressurgem nesta época os célebres bailes de carnaval de Salvador, que

encontravam em clubes como o Politeama e Fantoches da Euterpe seus lugares de realização

por excelência. O incentivo aos bailes nos espaços privados situava-se na nova orientação do

espaço urbano. Dessa forma, era necessário regular o espaço, mudar hábitos e moralizar os

costumes. Seguindo essas diretrizes, tais clubes, como ressalta Magnair Barbosa, tinham

restrito o seu acesso:

Os espaços dos clubes não estavam ao alcance de todos, por isso as ruas

continuaram a ser frequentadas pela população negra, que mantinha práticas tidas

por primitivas, exteriorizando, através dessas, seus problemas sociais pungentes. (BARBOSA, 2010, p. 20)

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Nesse contexto, pode-se dizer que a aceitação dos clubes negros, como o Embaixada

Africana, se deve tanto aos direcionamentos políticos quanto as formas de se festejar. João

José Reis (1989) trabalha com dois conceitos que se aplicam ao contexto carnavalesco da

Bahia: negociação e conflito. Dentro dessa ótica, a trajetória dos afoxés perpassa pelas

múltiplas formas de negociação diante das malhas elitistas carnavalescas. A Embaixada

Africana e o Pândegos da África souberam se adequar aos parâmetros carnavalescos oficiais,

sem se afastar das raízes africanas.

Entretanto, para “civilizar” a cidade e os costumes seria indispensável “desafricanizar”

também os hábitos, como forma de combater as tradições africanas, dissonantes ante ao

modelo de civilização que se pretendia. A manifestação negra cresceu a tal ponto que passou

a ser considerada um inconveniente, sobretudo as referentes aos afoxés mais populares. Em

19 de fevereiro de 1899, o jornal “A Coisa”, lançou a seguinte queixa: “Vai-te para o inferno

miserável com os teus búzios, com as cabaças e tabaques... Para ver esta africanagem estúpida

que aqui temos não vale a pena sair de casa” (CADENA, 2014, p. 68)

Assim, práticas culturais africanas recebiam o estigma de danosas, perigosas e

indesejáveis e, por isso, proibidas. As vozes negras que gritavam por reconhecimento e

igualdade, ficavam assim restritas as ruas em momentos como o carnaval. De acordo com

Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho

(...) os cordões eram implacáveis na crítica social. Era comum ver seus foliões

usando paletós às avessas e perucas cacheadas, enquanto riam dos hábitos e trejeitos das elites. Tudo isso ao som dos mesmos tambores que davam o ritmo aos rituais do

candomblé aquela altura, condenados em todo canto do país. (ALBUQUERQUE e

FRAGA FILHO, 2006, p. 234)

Ainda segundo Barbosa (2010), o carnaval demarcou espacialmente as camadas

sociais, colocando em confronto os afoxés e as entidades carnavalescas, bem como as

musicalidades negra e branca.

Pode-se dizer que os afoxés, ao ganharem as ruas de Salvador a partir do século XIX,

inauguraram um novo espaço de luta e resistência da população negra baiana. Dividindo o

campo carnavalesco antes ocupado apenas por uma elite social branca, esses clubes exibiam

os traços herdados da cultura africana para cá transplantada, através de seus elementos mais

representativos: a religiosidade e a sua linguagem ritual.

Edison Carneiro (1985) nos informa que os afoxés, assim como também os maracatus,

se apoiaram nas tradições religiosas africanas. Idealizados, na sua maioria, nos terreiros de

candomblé, os afoxés trazem em suas insígnias a marca registrada da força que compõe os

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símbolos religiosos. De acordo com Risério (1981) os afoxés nasceram ligados aos terreiros

de candomblé, dirigidos por babalorixás e outras personalidades do culto. Os músicos que

tocavam nos afoxés eram também alabês que batiam os tambores do terreiro. Os foliões, em

sua quase totalidade, eram pessoas que, de uma forma ou de outra, mantinham vínculos, em

graus variáveis, com casas onde se realizava o culto do candomblé. A dança dos afoxés era

basicamente a mesma que se encontrava nos terreiros.

Vale ressaltar que na formação da identidade e cultura afro baiana, vários aspectos se

fundiram para criar seu caráter singular e, nesse caso, a religiosidade foi elemento

fundamental. Lembrando Geertz (1989), sabe-se que na crença e na prática religiosa, o ethos

de um grupo representa um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas que a visão

de mundo descreve.

A religiosidade africana depende dos mitos e ritos, transcendendo a dimensão

estritamente religiosa para o cotidiano. A partir da importância desses mitos e ritos na tradição

africana e sua recriação em território brasileiro, a atualização das instituições socioculturais se

deu com o objetivo único de proteger e preservar seu legado cultural e religioso.

Desta feita, sendo considerado um candomblé de rua, os espaços percorridos pelos

afoxés tornaram-se sacralizados no momento em que foi evocada a força dos ancestrais e de

divindades africanas. Sobre os terreiros de candomblé, Muniz Sodré afirma:

(...) enquanto comunidades responsáveis pela preservação de um patrimônio mítico-

cultural, sempre foram polos de identificação ou plataformas de penetração em espaços intersticiais, propiciando um desdobramento de suas matrizes simbólicas

por meio de afoxés” e de outros grupos representativos “de uma memória coletiva

que constituíram o jeito de ser negro brasileiro (SODRÉ, 2002, p. 62).

Por essa lógica pode-se considerar que a transposição do Candomblé para as ruas

durante o carnaval, significou um posicionamento político diante de uma sociedade

excludente que via nas manifestações africanas um símbolo do atraso cultural. Como afirma

Nívea Alves dos Santos (2010) o saber mítico, portanto, constituiu-se, nesse momento, o

marco da africanidade com contornos políticos de afirmação.

A resposta a toda esta crescente africanização do carnaval de Salvador veio através do

poder público, por meio da exigência de registro das agremiações que pretendiam desfilar

durante o carnaval, iniciada em 1902. Nesta primeira tentativa, alguns afoxés não

conseguiram a tal licença obrigatória. A situação foi se agravando ano a ano, concomitante

com a pressão da imprensa e de setores da elite que não suportavam mais a presença dos

afoxés na folia soteropolitana.

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Em 1905 o então Secretário de Segurança Pública interino, Francisco Antônio de

Castro Loureiro, emitiu uma portaria proibindo sumariamente a participação de afoxés no

carnaval de Salvador. Publicada no jornal “Correio do Brasil”, de 26 de fevereiro de 1905, a

medida significava a total repressão às manifestações afrocarnavalescas.

O Carnaval147

O Sr. Dr. Secretario da Segurança Publica faz baixar o seguinte aviso:

“De ordem do Sr.Dr. secretario de Estado, chefe da Segurança Publica, e, para o

conhecimento de todos, faz-se sciente que nenhum club poderá apresentar-se nas ruas da capital sem

approvação das respectivas críticas pela polícia e bem assim que não será absolutamente permitido:

1 – a exhibição de clubs de costumes africanos com batuques;

2 – a exhibição de críticas offensivas a personalidades e corporações;

3 – o uso de mascaras depois das 6 horas da tarde, excepto nos bailes atè meia noite.

Os mascaras maltrapilhos e ébrios serão postos em custódia, bem como deverão ser

rigorosamente observadas as posturas municipaes, relativamente ao entrudo.

Secretaria da Polícia e Segurança Publica da Bahia, em 24 de fevereiro de 1905

O director-interino Francisco Antonio de Castro Loureiro.

A portaria emitida acabou por afetar também outras agremiações carnavalescas,

sobretudo no tocante a proibição de exibição de críticas, comuns na criação dos carros de

alegorias, o que gerou a reação de clubes como Cruz Vermelha e Fantoches de Euterpe, que

em protesto ameaçaram não mais participar da festa.

Após entendimento entre uma comissão dos clubes e o então Governador José

Marcelino, foi concedida licença para as agremiações reclamantes, em claro episódio de uso

da influência política junto ao mandatário estadual para que a portaria pudesse ser

flexibilizada ao ponto de permitir o desfile. Sem o mesmo cabedal, restou aos afoxés acatar a

resolução.

A proibição do uso de “africanismos” por parte das entidades carnavalescas de

Salvador acabou por deixar em estado de hibernação, pelo menos perante o grande público,

tais manifestações que, se não foram extintas, perderam muito de sua força e ressonância na

primeira metade do século XX.

A proibição foi sendo renovada ano a ano, a partir de editais que tornavam impossível

a saída dos antigos afoxés. Apenas em 1915 os elementos africanos puderam voltar às ruas de

147 (CADENA, 2014, p. 69)

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maneira legalizada, criando assim um hiato de 10 anos na vida das agremiações. Durante todo

este período, as marcas da africanidade permaneceram em pontos isolados da cidade, distantes

do centro, onde a repressão era menor.

De volta ao carnaval oficial, os afoxés encontraram um cenário totalmente dominado

pelos desfiles dos clubes de elite, reconduzidos ao posto de protagonistas da festa, que agora

contava com um percurso bem definido, decorado com bandeiras e serpentinas, que ia do

Campo Grande ao Terreiro de Jesus, usando como passarela a Rua Chile e a Avenida Sete de

Setembro, em um trajeto muito próximo ao do atual Circuito Campo Grande.

Neste novo cenário, não havia espaço para o desfile dos afoxés, que foram deslocando

sua movimentação para áreas outras, distantes do percurso oficial, buscando nos bairros e

zonas mais afastadas, abrigo para sua celebração. E foi dessa maneira que tanto os afoxés e

batucadas quanto blocos e cordões menores foram ganhando força e fôlego ao longo das

décadas de 1920 e 1930, quando o declínio dos clubes de elite favoreceu as entidades

afrocarnavalescas, como informa Ickes:

Independentemente do pequeno número de batucadas e afoxés que estavam ativos,

mas, majoritariamente anônimos, no início da década de 1930, encontramos blocos e

cordões com nomes como Africanos em Pândega, Guerreiros da África, Filhos da África, Lordes Africanos, Ideal Africano e Gongo Africano. Temos até Pândegos da

África, possivelmente uma homenagem a um dos primeiros clubes afrocêntricos da

década de 1890. Em 1935, enquanto muito se fazia para o "renascimento" dos

grandes clubes e seu desfile oficial, houve também um significativo alarde em

relação ao desfile semi-oficial dos pequenos clubes, dos quais havia mais de 40,

descritos como "grupos musicais, clubes, grupos africanos, cordões e batucadas"

(ICKES, 2013, p. 203).

Entretanto, a grande mudança seria efetivada no ano de 1949, com o surgimento do

cordão Filhos de Gandhy148

, fundado por estivadores que trabalhavam no cais do

porto de Salvador, e, principalmente, a partir do ano de 1951, quando o cordão se

converteu em um afoxé, tornando o Candomblé sua orientação religiosa principal.

Tal mudança resultou na adoção de práticas rituais calcadas na religiosidade

de matriz africana como, por exemplo, ter as vestes e indumentárias referentes aos orixás

Oxalá e Ogum, realização de oferenda ao orixá Exu, como forma de obter permissão e

proteção para o carnaval, bem como o uso da alfazema em homenagem a orixá Oxum.

Para além destes, outros movimentos se tornaram exemplares dessa emulação religiosa

africana, como o uso das línguas iorubá, quicongo e quibundo para os cantos e a escolha

148 QR Code: “Siré de Oxalá” – Filhos de Gandhy. Disponível em www.youtube.com/watch?v=-RZIf4L7R1s

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rítmica do ijexá, conduzida pelos agogôs, xequerês e atabaques, instrumentos comuns aos

terreiros de Candomblé. De acordo com Marco Aurélio Luz:

O ritmo musical é uma experiência inerente ao desenvolvimento do existir,

expressando as relações dinâmicas entre o Aiyê e o orun mediatizadas pela ação

ritual. A orquestra ritual combina ritmos de distintos instrumentos, os três atabaques,

de tamanho e sons diferentes, com funções rítmicas especificas, o xequerê e o agogô pronuncia uma síntese de tempo sonoro que, por sua vez, formam uma síntese entre

si (LUZ, 1995, p. 568).149

A ascensão do afoxé Filhos de Gandhy trouxe de volta ao primeiro plano do carnaval

soteropolitano elementos africanos cuja presença a elite dirigente branca tentara por anos

omitir e proibir. Tal movimento começaria a perder força quando o afoxé em questão passou a

ser concebido sob um viés pluri-étnico, deixando de lado a preponderância da matriz africana

e incorporando elementos como o camelo, simbolizando força e resistência, e até mesmo o

elefante, por ser um animal sagrado na Índia, bem como figuras como o lanceiro, o fuzileiro e

os porta-estandartes. Tal momento, que se estendeu por alguns anos, coincidiu ainda com o da

perda de grande parte de sua popularidade, culminando em crises administrativas e

financeiras.150

4.2.OS BLOCOS DE ÍNDIO

DA TRIBO MAIOR DESTA TERRA

Já na década de 1960, uma nova forma de organização carnavalesca surgiu no cenário

soteropolitano. Era a vez dos chamados blocos de índio, formados principalmente por negros

que se identificaram com as informações e imagens que chegavam pela mídia (cinema e TV)

dos grupos indígenas norte-americanos. Segundo Risério:

Os pretos baianos, em plena segunda metade do século XX, foram escolher seus

heróis e modelos carnavalescos exatamente entre os eternos derrotados do

imaginário hollywoodiano. E assim, foi se formando um extenso elenco de blocos,

do Apaches do Tororó aos Comanches, passando por Navajos, Sioux, Peles

Vermelhas, Cheyennes, etc. Como explicar a escolha, o fascínio, a projeção, a

identidade? Bem, um crioulo do Curuzu dificilmente se consideraria um “cara

pálida”, é claro (RISÉRIO, 1981, p. 67).

149 Segundo a mitologia iorubá, Aiyê seria a Terra, ou o plano físico, enquanto Orun seria o plano espiritual. 150 No ano de 1974 o afoxé Filhos de Gandhy foi fechado por questões administrativo-financeiras, sendo

inclusive despejado de sua sede. Ficou dois anos afastado do carnaval de Salvador até conseguir retomar suas

atividades.

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Sabe-se que a construção de uma identidade, seja individual, de grupo, ou de qualquer

outro tipo, passa, necessariamente, pela escolha de imagens por parte dos indivíduos. Tais

imagens terão uma função demarcatória, ressaltando semelhanças e diferenças de determinado

grupo em relação aos demais.

Esta escolha de imagens deixa claro que a identidade não é algo dado, uma construção

alheia ao indivíduo, mas caracterizada por ser uma condição em estado de criação constante,

baseada em determinados elementos culturais e históricos manipulados e incorporados pelos

indivíduos, de formas particulares, estabelecendo uma reinterpretação que dará novos

significados a significantes preexistentes.

Uma vez que há um processo cognitivo responsável por identificar semelhanças e

diferenças entre os sujeitos, ocorre também uma percepção e interpretação das identidades ali

apresentadas, possibilitando a localização de traços unificadores ou segregacionais entre os

sujeitos em questão. Tal processo cognitivo pode ocorrer sob a forma do conhecimento,

quando o indivíduo se apresenta sob determinado signo, ou do reconhecimento, quando a

pertinência desse signo é confirmada por outro.

É esta capacidade reflexiva que permitirá ao indivíduo realizar a distinção entre o “eu”

e todo o restante. Vera França (2002) pondera que a discussão da identidade não está

assentada apenas na identificação das semelhanças, dos compartilhamentos, mas traz no

mesmo movimento a construção da diferença, da distinção. Dessa forma pode-se afirmar que,

mais que um binômio, identidade e alteridade formariam um par inseparável.

E aqui vale chamar a atenção para o que diz Risério sobre a identificação dos negros

com os indígenas americanos e sua consequente diferenciação dos brancos:

Essa identificação seria reforçada pela marginalização compulsória de ambos os

grupos étnicos (e de seus cruzamentos) na sociedade contemporânea. Desse modo, o preto baiano, marginalizado econômica, social, política e culturalmente, se

reconheceria, de alguma forma poética e sociológica, no índio dos tempos da

conquista branca do velho oeste americano. (...) Seja como for, os pretos baianos

estenderam sua identidade em direção ao indígena do oeste ianque, tomando de

empréstimo a imagem ou a figura desse índio, para nela se fundir e se confundir, em

justaposições de variado matiz (RISÉRIO, 1981, p.67-68).

Fica patente que, a partir da tomada de autoconsciência por parte de um grupo,

conformando um “nós”, o “outro” assume papel central no processo de identificação ao

permitir ao “nós”, através do confronto, a conformação de sua consciência. Assim, conforme

Stuart Hall (1996), as identidades tornam-se posicionamentos. A partir disso pode-se inferir

que as identidades se estabelecem a partir de referenciais externos, uma vez que o

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posicionamento caracteriza uma tomada de posição que se define sempre em relação a alguém

ou a alguma coisa.

No mesmo sentido segue Ângela Arruda (1998), considerando que, a partir do

momento em que a diferença ajuda a delinear os contornos do “outro”, a representação

transforma esse mesmo “outro” em algo palpável. Desse modo, o sistema de representações

seria o responsável por organizar os processos de construção identitária, tendo,

necessariamente, a alteridade como produto desses processos. A partir do momento em que

delineamos um “nós”, também damos contorno a um “eles”.

Os blocos de índio retomavam ainda características do antigo entrudo e dos carnavais

negros de rua do final do século XIX, exibindo rituais de violência que deixavam temerosos

tanto os foliões brancos quanto o poder público. Ainda conforme Risério:

“Índio”, nesse contexto, virou sinônimo de arruaça e violência. Criou-se, em suma, a

equivalência: índio temido do oeste americano/preto temido dos bairros proletários.

E é bom dizer que as ‘tribos’ baianas fizeram jus a tal semântica, infernizando

carnavais em porradas espetaculares (RISÉRIO, 1981, p.68)

Era a retomada das ruas pelo folião que delas foi expulso na base de proibições e

repressão ao longo das décadas anteriores. Como sempre, tal ação gerou uma reação do poder

local, representada, desta feita, por uma tentativa de controle dos grupos ao limitar o número

de seus participantes em cerca de mil pessoas. Lembrando que algumas dessas “tribos”

chegaram a ter cerca de cinco mil homens151

.

Para Guerreiro (2010) a utilização da imagem de outro grupo étnico oprimido, neste

caso a do indígena norte-americano, tinha o sentido de recolocar metaforicamente a opressão

vivida pelos negros da Bahia, onde se pode ler também a sua disposição de luta contra os

brancos, vistos como opressores.

Com as constantes restrições e desgaste natural de agremiações tão numerosas, os

blocos de índio foram perdendo espaço e fôlego. Em sua entrevista Eduardo recordou ter

presenciado o momento derradeiro na história do bloco Comanche:

Eu vi o último ano do desfile do Comanche. Rapaz, você sabe o que é você não

acreditar? Deu lágrima assim ó. Caiu mesmo lágrima assim. Eles vieram no Campo

Grande. Os cavaleiros. Todo mundo de índio mesmo. Quando chegou na passarela o trio parou. Eles vinham cantando as músicas do Comanche. Chegou na passarela, o

carro parou e ai teve discurso. “Não existe condições pros blocos de índios, a gente

vai ter que acabar não sei o quê”. Os cavaleiros passaram sem tocar a percussão. Os

cantores passaram ali na passarela andando. E aí quem sobe no trio? Um grupo de

pagode. Com camisa e tal. E aí os caras me tocando um pagode, o que até hoje é o

Comanche. Os caras com camisa e bermuda. Terminou o desfile no Campo Grande

151 Só era permitida a presença masculina nesse tipo de bloco.

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ali e eles encostaram. Aquilo é uma coisa que se eu pudesse fazer um artigo e

mandar pra um jornal. Ai você vê os instrumentistas carregando os instrumentos,

colocando na cabeça e atravessando sem tocar. Isso é um marco na história. Não foi

só um protesto. Isso é uma ruptura. Isso é um paradigma que se quebra. É muito

mais. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Entretanto, nem só de blocos de índio e festas de clube vivia o carnaval de Salvador

daquela época. No ano de 1962 um grupo de sessenta rapazes, acompanhados de uma

pequena banda, levou para as ruas o bloco “Os Internacionais”.

O sucesso da agremiação foi imediato, abrindo espaço para que outros blocos

surgissem. E foi assim que, apenas dois anos depois, nasceu “Os Corujas”. A grande

rivalidade que se estabeleceu entre os dois lembrava a disputa entre Cruz Vermelha e

Fantoches de Euterpe, décadas antes.

Já em 1972, Os Internacionais era considerado o maior bloco do carnaval de Salvador,

atraindo a atenção e interesse de nomes como Jorge Amado, Zélia Gattai, Carybé e Vinícius

de Moraes, que chegou a escrever uma música para o bloco.

Jorge Amado - Jornal da Bahia, 7 de janeiro de 1978152

Quanto a mim, entro aqui de gaiato, pouco carnavalesco que sou. Mas, pelo amor de Deus,

se Vinícius não conseguiu resistir à pressão dos moços do “bloco da alegria”, como eu poderia

resistir? Quem ainda resiste é Caymmi, mas não se admirem se em breve ouvirem cantar música do

filho bem amado da Bahia composta especialmente para “Os Internacionais”. Esses jovens são

poderosos, sua alegria é contagiante, eles a conduzem pelas ruas e distribuem entre o povo.

Ao introduzir o trio elétrico no desfile do bloco, em 1977, Os Internacionais deram

início ao que se convencionou chamar Bloco de Trio. Pelo imenso caminhão sonorizado do

bloco passariam, ao longo dos anos, artistas como Chiclete com Banana, Daniela Mercury,

Netinho, Margareth Menezes, Timbalada e Claudia Leitte.

Por ser o mais antigo remanescente dos blocos surgidos na década de 1960, cabe ao

bloco a primazia nos desfiles ainda nos dias de hoje, em decisão oficializada pelo Conselho

do Carnaval que organiza a folia soteropolitana.

152 (CADENA, 2014, p. 159)

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4.3.OS BLOCOS AFRO

É O MUNDO NEGRO QUE VIEMOS MOSTRAR PRA VOCÊS

Ao mesmo tempo em que os blocos de índio começavam a perder força, e que os

blocos de trio começavam a dominar o espetáculo, entrou em cena mais um personagem desse

complexo enredo, e sujeito central deste trabalho: os blocos afro.153

Nos idos dos anos de 1970, grande parte dos clubes carnavalescos da capital baiana

não permitia o ingresso de negros em seus bailes. Alguns de maneira direta, outros de maneira

velada, utilizando como instrumento de segregação o alto valor das entradas. Nada muito

diferente do que fora vivenciado pelos negros soteropolitanos no final do século XIX, quando

sua entrada nos salões e teatros durante a realização de bailes de máscaras era impedida por

artifícios semelhantes. Limitado também era o acesso dos negros aos chamados Blocos de

Trio.

Soma-se a insatisfação gerada por tal limitação um contexto histórico que permitiu o

acesso de considerável parcela da população negra de Salvador a informações sobre o que

estava acontecendo no mundo, naquela época. Como afirma Morales:

A abertura de oportunidades advinda da modernização da Cidade, do acesso a informação veiculada na mídia; não só se constituindo parte da mão de obra

especializada do Polo Petroquímico, mas informando-se acerca do mundo exterior.

Teria sido por seu intermédio que a estética "black", o "black soul", os primeiros

dados sobre o movimento negro norte-americano e a independência das nações

africanas se difundiram em Salvador (MORALES, 1991, p. 78)

Assim chegaram as influências do Pan Africanismo e do Movimento Afro-Americano,

incluindo aí desde os Black Panthers até Malcolm X, Martin Luther King Jr. e Angela Davis,

bem como pelo proeminente movimento Black Soul norte-americano154

, a um grupo de jovens

negros residentes no bairro da Liberdade organizou-se, a partir do Terreiro de Candomblé Ilê

Axé Jitolu, para poder viver o carnaval155

.

153Após anos perdendo espaço para outras formas organizativas carnavalescas, e tentarem uma reinvenção mal

sucedida (convertendo-se até em blocos de caboclos) os blocos de índio desapareceram por completo no início dos anos 1990. 154 De acordo com Risério citando Jorge Watusi, histórico bailarino e um dos fundadores do Ilê Aiyê, a

influência do movimento Black Soul norte americano poderia ser observada até mesmo na arquitetura das novas

residências da Liberdade: “As casas que foram construídas nessa época, lá no Curuzu, têm uma coisa muito

curiosa: os quartos, a cozinha, enfim, todos os cômodos da casa, eram pequenos, mínimos, mas as salas eram

enormes, por causa dos bailes. O pessoal fazia a sala imensa para poder fazer reuniões e bailes”. (RISÉRIO,

1981, p. 28) 155 Assim como acontecia com os afoxés, grande parte dos blocos afro nascem atrelados a terreiros de

Candomblé.

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Capitaneados por Antônio Carlos “Vovô” e Apolônio de Jesus, fundaram, em 1974, o

Ilê Aiyê, ainda sem a designação bloco afro, mas pioneiro no país156

. Nas palavras de Vovô:

No carnaval da Bahia, a influência do Ilê foi tão grande que o carnaval você tem de

medir antes e depois do Ilê Aiyê. Antes do Ilê Aiyê aqui só se tocava frevo. O hino

do Bahia, por exemplo, era o maior sucesso. Todo mundo pulava. Até rubro-negro,

que tava no pique, pulava. Se ficasse parado você ia ser pisoteado. Com o surgimento do Ilê Aiyê, primeiro ano saímos com cem pessoas. No segundo ano nós

saímos com uma bateria grande, cantando aquelas músicas, cantando em nagô,

iorubá, palavras em iorubá e os caras sem entender. Com um colorido forte. Dança

diferente, mais cadenciada, então você diminui a violência do carnaval. Ficou mais

dançante, ficou mais colorido. As pessoas ficaram sem saber o que era aquilo. Aí em

76 começaram a surgir outros blocos. Eu costumo dizer que tem a cartilha do Ilê

Aiyê. Essa cartilha nunca foi escrita, mas todo mundo sabe que existe e todo mundo

segue, inclusive os brancos também. Os blocos que surgiram depois já trabalharam

em cima dos erros do Ilê. Quando nós começamos com isso de bloco afro a gente

não tinha nenhum modelo. O modelo que a gente tinha era de bloco de índio. (Vovô,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Segundo Antônio Risério (1981), o surgimento do Ilê Aiyê representou a transição do

carnaval dos blocos de índio para o dos blocos afro e o consequente início do movimento que

ficou conhecido como reafricanização do carnaval baiano.

O primeiro desfile do Ilê Aiyê, realizado no carnaval de 1975, concentrou-se em

elementos que remetiam diretamente a matriz africana. Sejam as músicas, roupas, nomes,

penteados e temas, tudo no desfile do bloco da Liberdade tinha como referencial a história

negra.

Ao mesmo tempo, alguns elos de certa maneira involuntários estabelecidos entre

Brasil e África, como o candomblé, de onde vieram seus primeiros instrumentos, acabaram

tendo espaço destacado no movimento. Aquele distante carnaval de 1975 ficaria marcado,

ainda, pela composição levada as ruas pelo bloco, de autoria de Paulinho Camafeu e intitulada

“Ilê Aiyê”, também conhecida como “Que Bloco é Esse?”, e que passaria a ser uma espécie

de hino extraoficial da agremiação e, por que não dizer, de todo o coletivo de blocos afro de

Salvador.

“Ilê Aiyê”157

(Composição de Paulinho Camafeu)

Que bloco é esse?

Que eu quero saber

É o mundo negro que viemos mostrar pra você

156 Segundo dados do Carnaval Ouro Negro, projeto da Secretaria de Cultura da Bahia, Salvador conta hoje com

62 blocos afro. Entretanto, no cadastro do projeto, o bloco mais antigo não é o Ilê Aiyê e sim o Oxóssi Talami,

fundado em Brotas no ano de 1964. Vale notar que o carnaval do ano de 2014 teve como tema oficial “40 anos

de blocos afro”, aludindo aos 40 anos do bloco Ilê Aiyê. 157 QR Code: “Que Bloco É Esse?” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=-kizJNFG6_k

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Somos criolo doido, somos bem legal

Temos cabelo duro, somos black pau

Branco se você soubesse O valor que o preto tem

Tu tomava banho de piche

Ficava preto também

Eu não te ensino minha malandragem

Nem tampouco minha filosofia Quem dá luz à cego

É bengala branca e Santa Luzia.

Mais importante do que essas referências talvez tenha sido a restrição à participação.

No bloco Ilê Aiyê seria facultada apenas aos negros a participação nos desfiles, decisão que

gerou reação por parte do público e, principalmente, da mídia, como fez transparecer a

matéria do jornal “A Tarde”, de fevereiro daquele ano.

“Bloco racista, nota destoante” – Jornal A Tarde, 12 de fevereiro de 1975158

“Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: ‘Mundo Negro’, ‘Black Power’,

‘Negro para Você’, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de ‘Bloco do Racismo’, proporcionou um feio

espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana,

revelando uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de

motivos a serem explorados, os integrantes do ‘Ilê Aiyê’ – todos de cor – chegaram até a gozação

dos brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição

existente no país contra o racismo é de esperar que os integrantes do ‘Ilê’ voltem de outra maneira

no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do instinto característica do Carnaval.

Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo

brasileiro. A harmonia que reina entre as parcelas provenientes das diferentes etnias, constitui, está

claro, um dos motivos de inconformidade dos agentes de irritação que bem gostariam de somar aos

propósitos da luta de classes o espetáculo da luta de raças. Mas, isto no Brasil, eles não conseguem.

E sempre que põem o rabo de fora denunciam a origem ideológica a que estão ligados. É muito

difícil que aconteça diferentemente com estes mocinhos do Ilê Aiyê.

Se trouxermos a tona o histórico do jornal “A Tarde”, veremos que a reação ao desfile

do Ilê Aiyê foi previsível. Para utilizar termos do próprio periódico, nada destoante da linha

editorial adotada pelo jornal a época. Jocélio Teles dos Santos reproduziu em artigo um trecho

158Disponível em: www.ileaiye.org.br/historia.htm>. Acesso em01 de julho de 2015.

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do “A Tarde”, de 7 julho de 1967, em que se tratava de um episódio de discriminação racial

em Salvador:

O pobrezinho tem apenas 9 anos e, desde agora, sofre as consequências de possuir a

pele escura, isto numa terra onde mais de 70 por cento da população a possuem nas

mesmas condições. A chamada raça branca constitui apenas uma parcela dos

baianos, sendo a outra numericamente dominante. Afortunadamente, não

distinguimos, neste país e, particularmente, na Bahia, raça branca nem raça negra.

Aqui somos todos brasileiros. (SANTOS, 1999, p. 223)

Como resposta a polêmica lançada pelo periódico, ficamos com as palavras de Vovô:

As pessoas às vezes confundem, porque, no início do Ilê, só saía negro preto, vamos

dizer, porque as pessoas não se assumiam. As pessoas que não se assumiam como

negras, chegavam aqui e a gente barrava. Elas iam para o bloco de trio, e lá eram

barradas. Aí tinham que se definir: o que elas eram? Os blocos de trio barravam e

barram os negros. Tem bloco aqui em que só sai branco. E não é só branco, o cara

tem que ser branco classe média, tem que estudar; não pode ser o branco da

Liberdade, que estude por aqui no Duque de Caxias, na Escola Parque. Ele tem que

estudar nas escolas mais caras daqui, tem que morar em bairro considerado nobre.

Tanto que eles vendem as fantasias nesses locais para evitar a mistura. (...) Hoje,

mesmo os mais claros, se eles se assumirem como negros, são aceitos no Ilê. (ALBERTI e PEREIRA, 2007, p. 146)

Apesar das reações pouco amistosas, no esteio do Ilê Aiyê, outras agremiações negras

começam a surgir em todos os cantos e recantos da cidade de Salvador, como lembra Vovô:

O carnaval, essa mudança que teve no carnaval da Bahia. Começaram a surgir os

blocos. Depois surgiu o Badauê. Os caras do Engenho Velho fizeram uma música

chamada Badauê. O maior sucesso. Depois eles criaram ao afoxé Badauê. Foi um

dos maiores daqui da Bahia. Ele vem depois da música. Mais de 5 mil pessoas

participavam (Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015).

Inclusive na distante Itapuã, a novidade dos blocos afro se fez sentir quando, em 1979,

Josélio, Peruano, Miguel Arcanjo e Bira Malê, dentre outros, criaram o Malê Debalê. Nas

palavras de Miguel Arcanjo:

O Malê começa comigo. Nós saiamos no outro bloco. Nós saíamos no Melô do

Banzo. Era um dos blocos antigos, dos primeiros blocos da Bahia. Eu tenho uma

música em parceria com Bira Malê, que era Bira Duplá, que se tornou Bira Malê. Aí

surgiu a ideia de fazer um bloco em Itapuã. Fiz a provocação pra ele e ele falou:

“vamos fazer”. A gente conseguiu reunir alguns outros amigos que eram da turma da

gente e fez o bloco. Faltava batizar o bloco. Eu fiz uma pesquisa e achei num livro,

rebeliões escravas na Bahia. Aí tinha a história dos malês. Aí eu simpatizei e sugeri

que o nome fosse Malê. Bira achou que Malê só ficava um pouco vazio. Aí colocou

o Debalê, que é um nome fantasia, é uma coisa que foi inventada. Não tem uma

definição. Alguma coisa que a gente diria que seria assim, tribo da felicidade, negros

felizes. Debalê podia ser auê ou qualquer coisa assim. Aí veio Malê Debalê. 1979. Todo mundo beirando seus vinte e poucos anos, um monte de garotos com muita

energia e querendo em unicidade. Mas a proposta não era só de fazer o Malê por si

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só. Na época tava muita efervescência do movimento negro, da luta contra a

discriminação racial, da afirmação das raízes culturais, daquela coisa do

fortalecimento do ser negro. E a gente não poderia deixar de seguir. Tinha que ser

um bloco afro. (Miguel Arcanjo, entrevista realizada em novembro de 2014)

Em sua entrevista, Carlos Eduardo narra o episódio da fundação do Malê com mais

alguns detalhes:

Um dos fundadores tinha acesso a uma livraria e ai começou a ler alguns livros e viu

lá a história dos Malês. E achou legal. “Então vamos botar esse nome, Malê”. E interessante quando surgiu o Malê, o titulo era “Os Malês”, era o nome do bloco.

Mas segundo eles mesmo falam, que o nome ficou muito vago, muito vazio. “Os

Malês”. Então eles pensaram um segundo nome que desse um sentido pro primeiro.

E aí surge como por acaso,um inspiração dessas que acontecem de vez em quando,

“Debalê”. E me parece, se eu não tiver enganado, e essa é uma história que eu fico

fuçando de lá pra cá, que o Debalê nasce primeiro de uma rima que eles ouviram de

uma música de um outro bloco chamado Badauê, e o refrão era “debale, debale,

debale”. Quando eu conversei com os fundadores eles disseram frequentar muito os

ensaios do Badauê naquela época e essa sonoridade “debale, debale, debale” virou

Debalê. Essa é a explicação mais próxima do que eu já ouvi dos fundadores. Tem

outras. “Ah, porque Debalê vem de balé, vem de Iansã Balé”. Tudo conversa. Os

caras não pensaram em nada disso. Isso é de fonte primária. Os caras tão vivos aí e te falam tudo isso. Tudo bem que as entidades vão sendo reinventadas,

resignificadas, são dinâmicas, mas o que vale é o que me disseram. Então daí que

surge a ideia do Malê e o Debalê pra fazer essa junção. Quando você pergunta hoje

aos fundadores o que é o Debalê mesmo, eles respondem que Debalê é qualquer

coisa boa, uma coisa positiva. Uma saudação. Então virou um neologismo. (Carlos

Eduardo, entrevista realizada em abril de 2014)

A origem e significado do termo “Debalê” foi também mencionada por Josélio,

durante sua entrevista:

Debalê é um arranjo próprio nosso, que nós damos a conotação de positividade. “A benção”, “Deus lhe abençoe”, “axé”, “parabéns”, “muito obrigado”. É tudo de bom

que nós queremos mostrar e damos a ela a forma que nós acharmos que deve ser

dada. Debalê até confundem com Iansã Balé, mas não tem nada haver com a questão

do orixá Iansã. Malê Debalê. Não existe em nenhum dicionário, nem iorubá, nem a

nível universal.

No mesmo ano de 1979, no Pelourinho, em meio ao casario degradado e a falta de

condições dignas de sobrevivência dos moradores, nasceu o Olodum. Nas palavras de

Lazinho:

O Olodum foi fundado na Rua Santa Izabel, número 11. Na casa de Martins. Era um

salão de beleza e também um restaurante aonde, por incrível que pareça, nos

fazíamos nossas reuniões, festas de aniversário. Esse lugar, esse espaço era sempre

cedido pra gente fazer nossos eventos lá. Então quando Geraldo Miranda e Ailton

SS vieram de São Paulo eles fundaram outro bloco. Um bloco chamado Banda Vuou. Em 1978. E por isso que o Olodum não saiu nesse ano. O que foi que

aconteceu? Geraldo disse: “rapaz olhe, eu tô acabando o Banda Vuou, que tá dando

muito problema, mas eu tenho o nome de um outro bloco. Que tal a gente fundar um

bloco?” Porque também tinha aquela coisa de que a gente aqui só servia ou pra tocar

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no chamado blocos de ricos, que era os blocos de brancos, tipo Os Internacionais,

Corujas, Os Lordes, ou senão puxar corda, segurar estandarte. Tipo beduíno. Era

chamado de beduíno. Aí qual o nome desse bloco? Olodum. Então nós nos

reunimos, angariamos, arrecadamos dinheiro. Quem não pode dar dinheiro, deu

algumas coisas, tipo o som, instrumentos, aquela coisa toda. E foi fundado o

Olodum. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Além das já citadas agremiações, outros blocos como o Araketu, Badauê, Muzenza e

Melô do Banzo também foram organizados. Neste tocante, é interessante vermos o

depoimento de Risério (1981) sobre o carnaval em Salvador nos anos de 1980 e 1981:

(...) o carnaval vem experimentando um processo de “reafricanização”. Processo que

se tornou visível demais, que se impôs a todos, em 1980, quando novos afoxés e os

chamados blocos afrobrasileiros (gênero estético-carnavalesco inaugurado por um bloco de jovens negros do Curuzu, Liberdade: o Ilê Aiyê) ocuparam definitivamente

o espaço carnavalizado de Salvador, fazendo lembrar uma antiga afirmação de Nina

Rodrigues, de que “a festa brasileira é ocasião de verdadeiras práticas africanas”. No

carnaval de 81, a presença das entidades carnavalescas afrobrasileiras foi ainda

maior. Quem circulasse pelas ruas, becos e praças do Circuito carnavalesco, ia

atravessando uma série de afoxés e blocos afro, pessoas exibindo trancinhas variadas

e caprichosas, vestindo panos e batas, torsos e turbantes, colares e búzios, ao som

dos atabaques e de cantigas baianagôs. Eram verdadeiras tribos afrobaianas,

ostentando nomes sonoros e coloridos, geralmente iorubanos: Ilê Aiyê, Araketu,

Olorum Babá Mi, Malê Debalê, Obá Dudu Agoiyê, Olodum, Rympylé, Tenda de

Olorum, etc. (RISÉRIO, 1981, p. 16)

O próprio afoxé Filhos de Gandhy foi praticamente refundado por Gilberto Gil, no ano

de 1976, também seguindo os passos do Ilê Aiyê. O afoxé, que por algum tempo foi o maior

de Salvador, foi encontrado assim por Gil:

Assim que voltei [do exílio], no meu primeiro carnaval aqui, me disseram que os

afoxés não existiam mais. E, de fato, fui encontrar uns vinte Filhos de Gandhy, com

os tambores no chão, num canto da Praça da Sé. Eles não tinham mais recursos,

mais forças para ocupar um espaço no carnaval baiano. (GIL apud RISÉRIO, 1981,

p.53)

Enquanto o Ilê Aiyê anunciava a chegada de um mundo negro, povoado por

agremiações como Olodum e Malê Debalê, Gilberto Gil conclamava: “Oh meu Deus

do céu / Na terra é carnaval / Chama o pessoal / Manda descer pra ver / Filhos de

Gandhy”159

. Era a chamada reafricanização do carnaval colocada em marcha.

É importante ressaltar que, para além da reação negativa de setores da

imprensa e da sociedade, os blocos tiveram de lidar com outras duas fontes de pressão: o

poder público e o próprio movimento negro.

159 QR Code: “Filhos de Gandhy” – Gilberto Gil e Jorge Bem. Disponível em www.youtube.com/watch?v=-

7MHBZmdvis

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Lembremos-nos do sombrio contexto político brasileiro quando do surgimento dos

blocos afro, pautado por um regime ditatorial militar que tomou de assalto o país no ano de

1964 e se prolongaria até 1985. Qualquer manifestação de cunho político, contrário aos

dogmas apregoados pelo regime, poderia ser tratada como subversiva e sujeita aos rigores da

lei, extremamente repressiva após o Ato Institucional Nº5, decretado em 1967. O temor por

represálias surgiu já no momento da escolha do nome do primeiro bloco, como relata Antônio

Carlos Vovô: “Quando resolvemos criar o bloco, o nome que principalmente eu queria que

fosse era ‘Poder Negro’, ‘Black Power’”. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em

novembro de 2015). Ao que complementa Mãe Hildelice: “Aí pediu a opinião de Mãe

[Hilda], que ele queria criar este bloco. Aí Mãe disse a ele que era melhor ‘Ilê Aiyê’. Poder

Negro não. Porque na época não deveria ser Poder Negro.”160

(Hildelice dos Santos,

entrevista realizada em novembro de 2015). Eduardo, em sua entrevista, também comentou a

respeito do momento político de surgimento dos blocos: “Nós vivíamos em plena ditadura e a

arte era perseguida. Dançarino era coisa de maconheiro, ladrão, imprestável”. (Eduardo

Santana, entrevista realizada em abril de 2014).

Em sua entrevista, Lazinho relembrou dos tempos de repressão e de como isto afetava

a vida do recém-criado Olodum:

Teve vários casos de racismo naquela época, mas a gente não tinha muito como

gritar, porque era época muito difícil, quando a Ditadura tava em pleno vigor. E

qualquer coisa que a gente falasse era no mínimo era espancado no meio da rua, era

torturado. E até sumir. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Novamente nas palavras de Vovô:

A elite ficou preocupadíssima. A polícia também, muito preocupada com isso.

Porque, o que esses caras tavam querendo, dizendo que tavam querendo tomar o

poder? Que era uma demonstração comunista. Não chamavam a gente de racista

não, porque aqui tinha a democracia racial, porque aqui não existia nada disso, nós

que estávamos querendo fomentar isso, infiltrados por uma “filosofia vermelha”.

Não nos chamavam de negros, nos chamavam de “vermelhos”, na época. (Vovô,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Da parte do movimento negro, a pressão tinha caráter ideológico. O surgimento do

MNU, e sua consequente forma de atuação, levantou algumas questões sobre as práticas do

Ilê Aiyê e dos demais blocos afro. De atuação eminentemente política, o MNU, dentre outras

entidades do movimento negro, acusou os blocos de atuarem de maneira descompromissada

com as questões que permeavam a realidade dos negros, omitindo-se de uma atuação política

160YouTube. Que bloco é esse?–Ilê Aiyê. Vídeo (7min29s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=WTgV6yZkLyw. Acesso em 01 de julho 2015.

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em prol de uma atuação meramente cultural, ignorando toda a potencialidade das celebrações

e festejos como elementos de atuação política. Perspectiva compartilhada por Michael

Hanchard (2001) ao afirmar que o culturalismo empenhado por parte das organizações negras

impediu uma maior politização da temática racial, retardando ou até mesmo impossibilitando

a discussão sobre políticas públicas efetivamente voltadas para a população negra.

Ao mesmo tempo, integrantes do bloco acusavam o MNU de um distanciamento

provocado, sobretudo por discursos e atuação destinados ao entendimento e envolvimento de

poucos, marcados por um intelectualismo incapaz de atingir seu público. Nas palavras de

Antônio Carlos Vovô, citado por Risério: “A nossa mensagem maior é a festa, o espetáculo. O

pessoal do Movimento Negro se reúne, se reúne, e não faz nada. E nós, através do carnaval,

sem fazer discurso nenhum, já conseguimos modificar muita coisa por aqui”. (RISÉRIO,

1981, p. 19) Ou ainda, nesse depoimento dado por Vovô:

Nós já fomos chamados de “falso africano” e de “tocador de tambor” pelo próprio pessoal do movimento negro. Essas pessoas achavam que tinha que ser pelo político

e não pelo cultural. Só que nós mostramos ao pessoal que só o fato de a gente criar

um bloco desses já foi um ato político. E você faz o político junto com o cultural.

Porque você fazia aqui reuniões do movimento negro e só iam os mesmos. Às vezes

tinha mais brancos do que negros nas reuniões, nos seminários onde tinha

pesquisadores. E no bloco afro, você faz na rua. Você tem o apelo popular e ali você

passa todas as informações. (ALBERTI e PEREIRA, 2007, p. 146)

Esse conflito fica claro, também, na fala de João Jorge Rodrigues, ao comentar o

início de sua trajetória no universo dos blocos afro:

Eu trabalhava no polo petroquímico de Camaçari e me interessei por participar do

Movimento Negro Unificado, ao mesmo tempo em que comecei a fazer parte do IIê

Aiyê, (eu era originalmente do Apache do Tororó) no sentido de conciliar, de juntar

a parte política e a parte cultural. Então, um começo até confuso, porque era uma

época em que estes dois setores da militância não se juntavam muito, um fazia uma

coisa, o outro fazia outra. Na época, por exemplo, dentro do Ilê Aiyê havia muita

crítica ao MNU e dentro do MNU havia muita crítica ao Ilê Aiyê e isso com o tempo

foi se superando, foi chegando a novos padrões, a novos parâmetros.

(RODRIGUES, 1996, p. 225)

Enquanto o MNU encontrava dificuldades em estabelecer diálogos com parte da

população negra e mesmo com entidades culturais, o modelo de atuação dos blocos afro

encontrou respaldo e ressonância entre a população negra. Segundo Vovô:

O Ilê nasceu em 1974, primeiro carnaval 1975. O MNU nasceu em 1978. No MNU o pessoal era muito político, muito centrado. Chegou ao ponto de, naquela época, o

movimento negro criticar quem era de candomblé, dizer que era alienado, e nós

sabemos que toda força nossa quem manteve foi capoeira, foi os terreiros de

candomblé que segurou muito essa onda, que foi passando, tanto que a musica do Ilê

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é uma musica de samba que a agente fazia nas praias e a música do candomblé, o

ijexá, esse ritmo que nos juntamos. É o ritmo do Ilê. O pessoal do MNU na época

achava que a gente era alienado. Chamava de tocador de tambor. O problema é que

desde o surgimento do Ilê, a gente tinha uma popularidade muito grande. (Antônio

Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

O que escapava a percepção de alguns integrantes do MNU em um primeiro momento,

bem como de outras instituições vinculadas ao movimento negro, é que, ao estabelecer

identidades com base no contraste, na diferença, os blocos afro iniciaram um movimento de

construção e reafirmação de uma identidade negra.

O passar dos anos, somado ao mútuo aprendizado, fez com que o movimento negro,

representado em entidades como o MNU, e os blocos afro realizassem uma aproximação,

aparando algumas das arestas que impediam uma atuação conjunta mais eficiente.

Hoje eles já percebem isso, tanto que no dia 20 de novembro o MNU tá junto com o

Ilê e com algumas outras entidades no Fórum de Entidades Negras pra fazer a

Caminhada da Liberdade, daqui até o Pelourinho. O MNU no início tinha até um

pouco de razão, porque a cabeça do diretor do Ilê no inicio não é a cabeça do diretor do Ilê de hoje. O pensamento que Vovô tinha quando criou o bloco, hoje mudou. Ele

achava que ele era carnavalesco. Negócio dele era carnaval. Mas ele foi vendo, ao

longo dos anos, que só carnaval não importa, que tinha que trabalhar a questão

educacional também. Então o trabalho educacional que o Ilê vem fazendo a partir do

final da década de 1980 faz com que hoje, tanto o MNU quanto o Ilê andem juntos.

Não tem mais aquele acirramento. Há alguns outros, tipo o pessoal da CONEN. O

pessoal da CONEN ainda tem isso na cabeça, tanto é que no 2 de novembro a

caminhada deles é diferente. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de

2015)

Durante sua entrevista, João Jorge também falou da aproximação recente que se deu

entre MNU e blocos afro:

Hoje é uma questão superada, porque o sucesso dos blocos afro e a necessidade do

MNU se aliar a esses blocos afro mostrou que não era uma coisa permanente (a

disputa), pelo contrário, o MNU sempre precisou da densidade populacional que os

blocos afro lidam. O negro que o MNU fala está nos blocos afros. O negro que

necessita de políticas publicas está nos blocos. A massa negra que precisa ser

politizada tá nos blocos afro. Ao mesmo tempo, os blocos é onde materializou

muitas das ideias do MNU. Os blocos fizeram escolas que puseram educação ampla,

cartilhas, revistas, publicações, que deram visibilidade a Zumbi dos Palmares, João

de Deus, Lucas Dantas, Manoel Faustino, Luis Gonzaga, da Revolta dos Búzios, as

mulheres negras... Foram os blocos afro que empoderaram essa ideia de mulher negra, rainha Nefertiti, dona Hilda, Rainha Nzinga de Angola, e que mostraram que

a mulher negra teve um papel fundamental na África e aqui. A história negra, os

exemplos do Olodum com Egito dos faraós... Nenhum movimento político ia

difundir isso. Então, sem esses blocos afro, as ideias permaneceriam num grupo de

4, 5 pessoas, em uma sala, em alguns panfletos incendiários. Com o tempo, tanto os

blocos quanto o MNU foram aprendendo que precisavam coexistir pra poder fazer

avançar a luta negra, o que tá resultando em uma visibilidade maior. Muitas das

bandeiras do MNU estão nos blocos e vice-versa. (João Jorge Rodrigues, entrevista

realizada em novembro de 2015)

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A partir da entrevista de Vovô, pode-se observar que tal aproximação se deu em um

nível maior do que o relacionamento de instituições. Em alguns casos, houve também o

intercâmbio de membros.

O MNU era muito fechado. O pessoal era muito radical. Você veja que aqui na

Caminhada da Liberdade, o MNU ficou um tempo afastado, dizendo que era festa de

camisa. Ele não consegue atingir o pessoal, diminuir a distancia. A gente conseguia.

O pessoal do movimento negro, essas organizações não carnavalescas começou a

ficar com ciúme disso. Teve muito choque com a gente. Depois resgatamos todo

mundo pra cá. Todo mundo sabe que depende muito do bloco afro, principalmente do Ilê Aiyê. Hoje eles falam com orgulho. As pessoas que batiam e criticavam, tava

todo mundo aqui ontem. Todo mundo veio pra diretoria do Ilê, foi pro Olodum.

(Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

O tempo tratou de deixar claro que a atuação dos blocos partia do cultural, na eleição

de elementos baseados na experiência negra da diáspora, utilizados como vínculos para uma

identificação com bases políticas e históricas, capaz de relacionar as lutas dos ancestrais

africanos com as lutas do seu cotidiano.

Buscou-se no Atlântico negro um fluxo de trocas transnacionais interminável, cujos

elementos disponíveis foram apropriados e transformados segundo os parâmetros locais.

Essas raízes, criadas ou recriadas, são exibidas na sociabilidade, nas indumentárias, nos

adereços, nos penteados, na música, na literatura, na culinária, na dança e em todas as demais

instâncias onde a negritude passa a ser um elemento ordenador. De acordo com João Jorge

Rodrigues:

Hoje já, por exemplo, há muitos setores da sociedade não veem a cultura e política

como coisas distintas, ao contrário, veem como síntese de um novo pensamento de

uma nova forma de fazer; o Olodum é uma boa referência disso, o Olodum é um

grupo político-cultural, se expressa politicamente, mas faz acima de tudo atividades dentro do ambiente cultural e isso foi uma forma interessante, nova e criativa de se

chegar a milhares de pessoas no país inteiro, passar a ideia de um grupo, mandar a

mensagem, de conscientizar as pessoas de coisas, mesmo que a cidade não tenha

mudado como nós gostaríamos. Mas, de qualquer forma as nossas ideias, o

simbolismo que nós demos as cores que usamos, a geração de uma ideia relacionada

com som; hoje onde você escuta a palavra Olodum, você se lembra automaticamente

do som do Olodum e se lembra da ideia de negros fazendo coisas. Quer dizer,

criamos uma imagem positiva da comunidade negra que nos últimos anos não

existia; existia muito choro, muita lamentação e o Olodum se constituiu com uma

imagem de que o negro pode fazer coisas, pode se organizar, pode criar passos, pode

criar gestos. (RODRIGUES, 1996, p. 226-227)

A efetividade desse sistema já podia ser percebida na década de 1980. Segundo

Jeferson Bacelar (2001), nesse momento a negritude já havia se espalhado pela cidade,

resignificando antigos espaços do tecido urbano, tornando-os territórios negros por excelência

como, por exemplo, os bairros da Liberdade e do Pelourinho, ao que divirjo em parte, uma

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vez que áreas como a Liberdade foram, desde tempos outros, espaços negros, como toda a

periferia de Salvador. O que estaria em curso, agora, seria um processo antes de visibilidade

do que de tomada de território. Talvez retomada possa ser o termo mais apropriado. Todo este

processo de visibilidade o qual afirmo, engendrado ao longo do tempo, encontra eco na fala

de Antônio Godi:

A evolução desta operação de busca de identidade indica ter sido ela forjada como resposta a intrincada sociedade multi-étnica de Salvador, apresentando inclusive

descontinuidades, fruto dos obstáculos que estes grupos enfrentaram nesta trajetória.

Essa evolução parte de uma identidade atravessada e complexa no início dos blocos

de índios, até uma assunção tímida no final do período hegemônico destes grupos,

descambando finalmente numa assunção explícita nos blocos afro. No final desse

processo, o negro já não precisa se disfarçar de índio para ser ele próprio. (GODI,

1991, p. 69)

Tamanho êxito acabou chamando novamente a atenção do poder público que, por

meio da Bahiatursa, criou a categoria “bloco afro”, tanto para diferenciar os blocos de

inspiração afro dos demais que desfilam no carnaval, quanto para, como diz Risério (1981),

domesticar preventivamente e capitalizar turisticamente sobre o fenômeno afrocarnavalesco,

como já havia sido realizado com o candomblé e a capoeira. Qualquer semelhança com

práticas exercidas no passado, brevemente mencionadas ao longo deste texto, não parece ser

mera coincidência. Todas as vezes que o contingente populacional negro-mestiço de Salvador

tornou-se protagonista do carnaval, sentiu quase que de imediato pesar-lhe a mão do poder

público. Seja com proibições, seja com regulamentações, não escapa à memória a maneira

como as batucadas foram perseguidas, como os primeiros afoxés foram desarticulados e

mesmo como os então recentes blocos de índio foram desmantelados. Mais uma vez busco

apoio nas palavras de João Jorge, que afirma:

Ora, o negro brasileiro sempre foi um agente político, cultural, desde o quilombo

dos Palmares que o negro brasileiro tem tido a iniciativa de fazer proposições para a

sociedade brasileira e sempre o fez juntando a identidade cultural com a ação

política. Os quilombos eram exemplo disso, as revoltas dos escravos, a participação

do negro na luta pela independência da Bahia, a participação do negro na guerra do Paraguai, na República, a participação do negro como trabalhador nas fábricas.

(RODRIGUES, 1996, p. 226)

Ao atestar o protagonismo político do negro, João Jorge deixa de lado justamente as

manifestações culturais que também possuíam um viés político. Creio que, muito antes dos

próprios negros perceberem a força política que sua manifestação carnavalesca continha, a

elite dirigente já tomava suas providências com o intuito de desmobilizá-los. Esta não só tinha

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ciência da força da população negra, como parecia temê-la, não sem motivo, principalmente

em se tratando de uma cidade com o componente demográfico existente em Salvador.

Com o passar do tempo as associações e grupos criados com um caráter informal

adaptaram-se as novas demandas que lhes foram impostas, e acabaram convertendo-se, em

sua maioria, em organizações não governamentais. Sua gama de atividades também foi

ampliada, como pude atestar em visita a sede dos três blocos aqui abordados. Este modo

dinâmico de ser, esta adaptabilidade diante de novas demandas, é ilustrado de maneira

interessante pelo seguinte trecho da entrevista concedida por Eduardo:

O Malê não nasce com a ideia de ser esse espaço. Como um terreiro não nasce,

nenhum quilombo nasce pra isso. Se você pega a ata de fundação do Malê, a ata é

bem expressa, bem explícita. Nela diz: “é um bloco carnavalesco que nasce com a

proposta de levar os moradores de Itapuã para o carnaval de Salvador”. Então nasce

como um bloco carnavalesco. Como uma entidade carnavalesca. Talvez os

fundadores não tivessem essa noção do que seria isso. Não tivessem a dimensão,

naquele momento, do que é que estava em jogo. Certamente com o passar do tempo

ele vai percebendo. Então essa entidade carnavalesca que nasce como entidade

carnavalesca, como os demais blocos afro de Salvador nascem para o carnaval mesmo, nascem para começar em novembro e encerrar em março, eles vão

percebendo a dimensão que vai se tomando no caminho. Eu costumo dizer: um

bloco afro não é uma ONG, ele não nasceu como uma ONG. Ele não nasceu com

uma meta pensada. Ela não nasceu pra isso. Ela nasceu praquilo. E automaticamente

vai se percebendo com o caminhar que a dimensão vai somando outras

especificidades, vai somando novos desafios. O Malê, como os demais blocos afro,

eles nascem para o carnaval e aí há uma inversão. Quer dizer, o carnaval que era a

atividade fim passa a ser agora a atividade meio. O carnaval hoje não é o que dispara

o bloco. É a culminância. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

A atuação dos blocos sobre a autoestima dos integrantes é exemplar desta

adaptabilidade, das mudanças sofridas pelas agremiações. Se antes a autoestima era

trabalhada e reforçada no momento do desfile carnavalesco, os blocos passaram a atuar nesta

questão através de ações desenvolvidas em centros de educação formal de jovens e adultos,

bem como de formação e qualificação de profissionais de variadas áreas, sempre atentos ao

objetivo primordial de valorização, divulgação, preservação e recuperação dos elementos

culturais da matriz africana.

Através deste movimento, objetiva-se um ganho de valor social das entidades como

um todo, bem como de seus membros individuais, dando visibilidade as suas capacidades,

potencialidades e características. Para além do reconhecimento na esfera pública, tal ganho na

autoestima converte-se, também, em um auto-reconhecimento.

É fundamental compreendermos que tais entidades lidam com um contingente

populacional estigmatizado desde que seus primeiros representantes foram por aqui

desembarcados. O desrespeito que feriu e segue ferindo sua confiança e estima é um dado

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histórico inquestionável, que produziu e produz efeitos práticos no relacionamento destes

indivíduos, tanto entre si, como em relação aos demais e ao todo social hierarquizado em que

estão inseridos, organizado de forma a conceder maior ou menor valor as diferentes formas de

viver dos sujeitos.

Para além do elemento étnico-racial, as origens sociais e culturais também são

utilizadas como referencial para a construção de um estereótipo negativo, como expresso nas

palavras de Lazinho:

Sou uma das primeiras pessoas a usar brinco. Minha mãe era muito boa em fazer

trançado. Me lembro quando trancei meu cabelo. Andava e as outras pessoas logo

falavam. A gente era um grupo que andava com as pessoas lá do salão. Onde a gente

ia, me perdoe, a gente era intitulado como viado. Como muita gente lá fora, ah

quando é pessoa lá do Maciel deve ser tudo ladrão, traficante. Assaltante. Ninguém

prestava. Através da política nós conseguimos. E muitas outras vão conseguir. Hoje você vê que tem algumas entidades fortes. (Lazinho, entrevista realizada em abril de

2014)

A confiança em si mesmo acaba alvejada por elementos externos, convertendo-a em

uma espécie de vergonha social. E é justamente neste ponto em que a atuação dos blocos se

mostra mais interessante. Uma reconstrução da estima, passando pela valorização não só do

indivíduo presente, mas de suas raízes mais profundas. É o que acontece, por exemplo, na

eleição de Deusa do Ébano, promovida pelo Ilê Aiyê.

Fui eleita a Deusa do Ébano em 2011, do Ilê Aiyê, e estou agora me preparando para

passar adiante o reinado para a próxima Deusa do Ébano. É algo que muita gente não teve acesso e que só eu tive, porque foi uma transformação que aconteceu no

meu interior. Antes eu queria ser invisível. Antes eu me vestia com cores que não

me destacassem, não me evidenciassem enquanto mulher. Tudo mudou. Eu passei a

querer ser vista, sim. O meu cabelo, eu queria que ele me valorizasse. (Lucimar

Cerqueira - Deusa do Ébano 2011. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê)161

A transformação enunciada por Lucimar também aparece nas palavras de Vovô:

Houve essa transformação muito grande. As pessoas começaram a ter orgulho de

assumir sua negritude, sua roupa colorida. Esse negócio de usar cabelo duro. A

gente cortava curto, porque não tinha dinheiro. Depois começamos a deixar crescer e

deixar o cabelo cair. Sou reggae, defendo o cabelo. Então porque você não usa o

cabelo? Então começamos a usar cabelo de dread. Dava motivação pra outros jovens

usarem também. Pra combater aquela coisa de que só quem usa dread é maluco, é

sujo. Infelizmente até hoje você ainda encontra pessoas que pensam assim. (Antônio

Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

161 YouTube. Que bloco é esse? – Ilê Aiyê. Vídeo (4min45s). Disponível em:

www.youtube.com/watch?v=w6yayr0WHA4. Acesso em 08 de julho 2015

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Exemplar nessa dinâmica é a trajetória de Jany, que de aluna passou a educadora do

Malê Debalê. Em sua entrevista a coordenadora do Malezinho lembrou o início de sua

trajetória no bloco:

A Jany antes do Malê era oprimida, triste, autoestima era baixa. Eu não me via

enquanto negra, eu não me aceitava, eu também dizia que eu era morena, eu não me

aceitava e aí, a partir do momento que fui convidada por Jajau a fazer parte do Malê

Debalê, aí sim eu vi, eu me encontrei. Eu me encontrei, eu me enxerguei, eu me

aceitei e eu digo: “gente como eu podia ter aquele pensamento medíocre?” Ser negro

é ser belo, é ter potencial, ter capacidade e eu não via aquilo. Por que? Porque eu não tive esse trabalho na minha vida, eu era oprimida, triste e o Malê fez o trabalho

comigo de resgate de identidade, de construção de identidade, de elevação da

autoestima, de cidadania. Eu não consigo explicar o que significa isso. De certa

forma saí do ventre do Malê, porque aquela vida que eu vivia não era vida, aquela

vida de opressão, me achando feia, triste, tendo verginha de mim. Isso é vida? Eu

realmente nasci no berço do Malê Debalê. (Jany Sales, entrevista realizada em abril

de 2014)

Em outro trecho de sua entrevista, Jany apresentou o resultado de tal trabalho

realizado pelo bloco consigo mesma, ao falar da maneira como trabalha com os novos alunos

e por eles é vista:

Eu sou vista como referência. A atual rainha do Malezinho, Kaylane, a mãe dela

fala: “Jany, Kaylane quer tudo igual a da senhora. Quer o cabelo igual ao da

senhora, quer que eu faça roupa igual a da senhora”. Meus olhos ficam cheios de

lágrimas. Fico muito emocionada por saber que sou referência pra essas crianças. Saber que essas crianças olham pra mim e querem ser iguais a mim. As crianças

entram no Malezinho de uma forma e ao decorrer do trabalho simplesmente elas

mudam. Fica autoconfiante, autoestima eleva de uma tal forma que eu acho

sensacional, porque a criança que é triste, que é oprimida, no Malezinho ela

consegue se sentir segura, porque eu trabalho também essa questão da auto estima,

da valorização, da importância de ser uma criança negra, de estar em um bloco afro.

Absorver mesmo as questões, não ter vergonha de se olhar no espelho, se olhar e

dizer sou bonita, meu cabelo é lindo, sou inteligente. Precisam entender isso. Então

elas rapidamente aprendem, os olhos começam a brilhar, o sorriso já muda. É uma

coisa fantástica, sensacional. É um trabalho de resgate da identidade, de construção

da identidade, porque a criança precisa se conhecer, conhecer sua historia, suas origens. (Jany Sales, entrevista realizada em abril de 2014)

A referência que Jany se tornou é um vislumbre da referência em que o próprio Malê

se converteu, funcionando como um exemplo para toda uma comunidade negra, movimento

semelhante ao que aconteceu nas demais agremiações. Nas palavras de Edmilson:

O Ilê pra mim e pra muitos negros, os velhos negros, os novos negros, pra todos os

negros, é uma referência. É uma referência, é uma fonte aonde você bebe, come, se

rejuvenesce, se fortalece. E o melhor de tudo é que pessoas não negras, pela

epiderme, também estão vindo beber nessa fonte, se fortalecendo nessa estrutura

cultural. Essa é uma organização, como tantas outras que a gente sabe que tem. Mas

é uma organização que é administrada e gerenciada por um corpo de homens e

mulheres negros, que fazem a diferença. (Edmilson Lopes, entrevista realizada em

novembro de 2015)

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Após essa breve contextualização histórica, revisão teórica e análise dos dados iniciais

obtidos em campo, comecei a compreender os blocos afro sobre outro prisma. Se antes os

tomava como entidades surgidas na década de 1970, como resposta direta as condições

oferecidas (ou negadas) a população negra de Salvador em suas manifestações cotidianas,

cujo ápice encontrava-se nos festejos carnavalescos, passo agora a concebê-los como peças de

uma engrenagem muito mais complexa.

O primeiro bloco afro não surge em 1974, quando jovens da Liberdade se reuniram

para brincar o carnaval. O primeiro bloco afro surgiu no embarque, ainda na África, do

primeiro negro trazido como escravo para Salvador. O bloco ganhou forma no sofrimento da

forçada travessia transatlântica. O bloco ganhou em força na superação do banzo, nas

tentativas de fuga em busca da liberdade, no arregimentar dos quilombos. O bloco ganhou em

consciência nas sucessivas revoltas, levantes e insurreições que tentaram, através do confronto

direto, mudar a realidade que lhes era imposta. Ganhou alma nas centenas de terreiros de

candomblé que se espalharam pelas periferias da Cidade da Bahia e que resistiram a toda sorte

de perseguições. Ganhou ressonância através da cor do som dos batuques. Ganhou as ruas,

praças, largos, ladeiras e avenidas com a chegada dos afoxés ao carnaval. Toda forma de

resistência concebida pelos negros guarda em si a gênese dos blocos afro. Ambicionar

compreendê-los sem levar em consideração todo esse processo seria como subestimar a

importância das raízes de uma árvore no nascimento de suas flores.

Há de se ressaltar que tais blocos estariam longe de ser uma unidade indivisível.

Seriam antes a soma de todos estes episódios vivenciados por antepassados negros ao longo

dos séculos e que agora são revisitados, revividos e exibidos nas avenidas, configurando-se

assim a expressão dos blocos como mais um capítulo fundamentalmente plural de uma

história longa e que parece distante de ter fim.

Repetindo-se como farsa, a história segue apresentando aos negros soteropolitanos

desafios semelhantes aos enfrentados em outros tempos. O que mudou em cada uma destas

épocas foram as respostas e estratégias por estes empregadas. Como enuncia Honneth (2003),

a atualização histórica dos processos de denegação de direitos e de respeito acarretam a

atualização das diferentes estratégias e formas de enfrentamento.

Quando um bloco afro se assume como um quilombo, recorda a Revolta dos Malês ou

dos Búzios, ou ainda, retoma temáticas apresentadas pelos primeiros afoxés, o que está

fazendo é justamente assumir esta filiação. Reconhecer na atuação ancestral as bases do

trabalho que hoje realiza. É a demonstração clara de tomada de consciência quanto a um

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pertencimento coletivo que atravessa os limites do tempo e as fronteiras do espaço. Considero

que esse mesmo reconhecimento é o primeiro passo a ser dado na busca por outra abordagem

teórica a respeito da atuação de tais agremiações.

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5.DIMENSÕES INTERNAS DOS BLOCOS AFRO E SUAS

RELAÇÕES

ESTAMOS JUNTO E MISTURADO

Logo na primeira entrevista que realizei em Salvador, com Eduardo, diretor do Malê

Debalê, ouvi uma sentença que ainda hoje ecoa em meus pensamentos:

Quem vai teorizar sobre isso somos nós. Quem vai dar nomes, quem vai conceituar,

quem vai criar categorias, somos nós. Mas a existência do bloco, a existência do que

é hoje o Malê, ela extrapola essas nossas coisas. Ele só precisa ser. Eu acho que o

Malê antes de tudo, ele é. Daí pra frente é a gente criando categorias, dando forma,

dando régua, mas o que foi ele já é. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril

de 2014)

Ao Malê, assim como a todos os demais blocos afro, basta ser. Ao

pesquisador, que ambiciona desvendar esse fenômeno, cabe a busca pela

conceituação, reflexão e categorização. É este o esforço que se inicia nesta parte final

do trabalho162

.

Embora a revisão bibliográfica me dissesse o contrário, meu primeiro contato

com as agremiações negras carnavalescas de Salvador não revelou mais do que organizações

criadas para viver o período de folia na cidade. Entretanto, à medida que fui me aprofundando

nesse universo, pude perceber que ali existia mais do que um agrupamento de pessoas

reunidas para brincar o carnaval, em consonância com o que fora dito por Cunha (2000),

Morales (1991), Schaun (2002) e Crook (1993).

Embora Vovô não se canse de dizer que o intuito inicial da criação do Ilê Aiyê foi

abrir espaço para que o negro soteropolitano pudesse pular o carnaval, sendo o próprio Vovô,

antes de mais nada, um carnavalesco, o fato é que nasceu ali uma agremiação muito mais

complexa do que essa descrição primária é capaz de conter.

Nós não tínhamos modelo de bloco afro e resolvemos fazer um bloco, eu e

Apolônio, um dia vindo da praia. Todo domingo a gente ia fazer um samba em

Itapuã, no Mercado Modelo. Sentamos ali no lago, começamos a conversar e surgiu

essa ideia de fazer um bloco. Mas havia muitos blocos na Liberdade. A gente pensou

em fazer um bloco de índio, depois, “Os brutos também amam”... Cada dia dava

uma ideia. A gente se reunia ali, ficava batendo papo, sabendo onde eram as festas,

esse negócio todo. E no dia em que resolvemos, aí sugerimos: “Vamos fazer um

bloco só de negão?” “Vamos”. Aí começamos a conversar, começamos a nos

empolgar. (ALBERTI e PEREIRA, 2007, p. 147)

162 QR Code: “Várias Queixas” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=BzKJlO3yVDE

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Não foi por acaso que parte das influências que funcionaram como força motriz para o

surgimento do Ilê Aiyê seja oriunda do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Afinal, foi também em busca de um direito – brincar o carnaval – que Apolônio e Vovô

levaram a diante a proposta de um bloco de negros. Entretanto, a esse direito, logo se

juntaram outros. A negação de direitos a população negra de Salvador era tamanha que não

faltavam motivos pelos quais lutar.

A partir do momento que novas demandas foram se unindo à demanda primeira,

mudou também o entendimento interno a respeito de como o bloco poderia atuar para atingir

tais demandas. Assim sendo, segundo Silva, o bloco passou a transmitir através “da dança, do

canto e da indumentária, mensagens que conduziriam ao orgulho de ser negro e das suas

origens culturais, reconstruindo a autoestima e identidade étnico-racial do povo negro”

(SILVA, 2006, p. 113).

Embora não tenha sido criado com o intuito de ser político, o Olodum acabou por se

tornar político tão logo foi criado. Nesse sentido é interessante observarmos a declaração de

Lazinho, dada durante sua entrevista:

O Olodum nasceu em 1979. Mas nessa fundação a gente não tinha muita

preocupação da questão da política direta. Indiretamente, foi um bloco politicamente

estratejado (sic). Você há de convir que se for mesmo ver na história, o Olodum foi

criado por causa de alguns direitos que a gente não tinha. Nós criamos pra poder

brigar por esses direitos. (Lazinho, entrevista realizada em novembro de 2014)

O que é relatado por Lazinho não difere do que fora dito em outras entrevistas. A

respeito da criação do Malê, fala um de seus fundadores, Miguel Arcanjo:

Não era um simplesmente bloco de carnaval. A gente já nasce politizado e

influenciado pelo próprio nome, pela história dos malês. A gente veio muito mais

politizado. Apesar dos malês serem negros muçulmanos, e de nós não termos nada

haver com muçulmanismo, a gente tinha um comprometimento com a questão da

luta contra todos os tipos de discriminação e preconceito. (Miguel Arcanjo,

entrevista realizada em novembro de 2014)

Sobre o Ilê Aiyê, vale citar trecho da entrevista de Sandro Teles:

O Ilê é um bloco político. Vovô fala: “a minha intenção sempre foi ser

carnavalesco”, mas ao longo da história do bloco ele foi vendo que isso não era

possível. Ser só carnavalesco, a partir da ideia que ele sempre teve do que o Ilê Aiyê

seria. É política mesmo. Espaço político, espaço de poder. (Sandro Teles, entrevista

em novembro de 2015)

O que pôde ser observado, a partir das entrevistas e conversas informais é que, na

aurora dos blocos afro, seus pioneiros não compreendiam bem a dimensão que tais

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agremiações possuíam, tampouco sua potencialidade. Nascidas com demandas bem

específicas e que aos poucos foram aglutinando novos interesses. Não por outro motivo, o

próprio Movimento Negro sentiu dificuldades em vislumbrar na atuação dos blocos algo além

da efervescência da festa. Daí o estranhamento entre o movimento organizado e tais

agremiações. Seu associativismo, de caráter eminentemente (e preliminarmente) cultural e

recreativo, ia em direção diametralmente oposta a da politização do discurso, como defendido

pelo MNU163. Entretanto, como afirma Lélia González: De qualquer modo, as entidades

culturais de massa têm sido de grande importância, na medida em que, ao transarem o

cultural, possibilitam o exercício de uma prática política, preparadora para o advento dos

movimentos negros de caráter ideológico (GONZÁLEZ e HASENBALG, 1982, p. 22). Em sentido

semelhante, afirma Olívia Maria Cunha:

A elegia da festa como um espaço de conscientização e reafirmação de identidade

ganhava os espaços de discussão militante, transpunha as fronteiras regionais e se

reatualizava nos vários fóruns do movimento realizados nacionalmente.

Principalmente porque o estilo adotado pelos blocos afro causara forte impacto entre

militantes de outras cidades, pela ênfase de suas mensagens e pela adesão – ainda

que na maioria das vezes contingente, não-exclusiva e limitada a esfera do carnaval

– de um número maior de integrantes não-brancos. Até mesmo pela relativa

maleabilidade dos laços que uniam o “integrante”, o “simpatizante” e o “folião” a

esses grupos, em tudo diferia das formas mais tradicionais da militância. Sob o

ponto de vista institucional, o bloco poderia estar em vários lugares, ampliar seu

leque de diálogos e parceria em todas as esferas. Numa primeira fase, seu caráter indefinido, em termos de uma política racial, denotava, para setores que se

autodefiniam como militantes strictu sensu, enfraquecimento político, perigo da

troca de sinais e a virtualidade da cooptação. (CUNHA, 2000, p. 350-351)

Ou nas palavras de Vovô, presidente do Ilê Aiyê:

Nós percebemos que você podia fazer o político através do cultural. Nós

percebemos que com a música do bloco afro, a gente podia fazer mais. Em 1976, começou a aparecer pessoas com cada coisa maravilhosa, com um discurso falando

de discriminação, dos problemas sociais. Essa música tema, música que educa, que

forma, busca trabalhar a questão do resgate da autoestima, fala da mulher, fala do

negro de forma positiva. Tudo de ruim que a gente sempre ouviu, que negro é feio,

que é burro, que tem beição, a gente começou a mandar de volta de forma positiva.

Não se fala de branco na musica do Ilê. Nem mal, nem bem. Só de negro. E isso

começou a ter um efeito muito forte, devastador pros caras. (Antônio Carlos Vovô,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Escapava aos olhos menos atentos, que acreditavam que a movimentação política

simplesmente inexistia no interior dos blocos. A pujança do elemento cultural era tamanha

que acabava por eclipsar o elemento político para aqueles que não conseguiam percebê-lo

múltiplo em suas possibilidades. Nesse sentido é interessante o depoimento de Gilberto Leal,

163 Para mais informações sobre a formação do MNU, ver Fontaine (1985) e Hanchard (2001).

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participante do Malê Debalê e do MNU, em obra sobre a história do movimento negro no

Brasil:

“O Núcleo Cultural Niger Okan, que é a entidade em que estou hoje, nasceu

primeiramente como um núcleo de debate político dentro do Malê Debalê, que é um

dos grandes blocos afro de Salvador, fundado em 1979. (...) A ideia era ir para as

comunidades e participar de movimentos culturais, e passar a trazer, por um debate político e por uma ação política mais contundente, aqueles que estavam organizados

enquanto negros, mas apenas do ponto de vista da sua performance cultural, do

ponto de vista da sua luta enquanto estética cultural. A primeira entidade que

admitiu, dentro desse contexto, uma organização mais politizada foi o Malê Debalê,

porque nós fundamos isso lá dentro. Quando nos aproximamos de lá com esse tipo

de postura política, a recíproca foi verdadeira. Abriu-se uma porta para fundarmos

um "pé" com um debate político mais contundente lá dentro. Porque nós sugerimos

e os convencemos da importância de ter, além dos postulados carnavalescos e das

ações de tarefas carnavalescas, a tarefa do debate político sobre a realidade do negro.

(276) (ALBERTI e PEREIRA, 2007, p. 276)

Na medida em que tais agremiações exercitavam a política por meio da cultura,

passava a fazer cada vez menos sentido o debate existente, que dividia o movimento negro

entre “culturalistas” e “políticos”. Ao tentarmos encaixar os blocos em qualquer um dos polos

dessa dicotomia, logo perceberemos que a caixa é menor do que seu pretenso conteúdo. Para

acomodá-lo, mais eficaz seria um sistema de vasos comunicantes, onde os polos estariam

ligados, tendo seu conteúdo constantemente compartilhado, de tal maneira que se tornaria

impossível determinar a qual de suas extremidades pertence cada uma de suas partículas. Nas

palavras de João Jorge, presidente do Olodum:

No passado havia muitas agremiações negras políticas, que tratavam da política do

ponto de vista partidário, do termo no sentido mais estrito possível. Os blocos afro, em especial Olodum e Ilê, são político-culturais, com forte apelo social. Isso é

recente na historia do movimento negro contemporâneo, nos últimos 50 anos. Você

tinha o MNU, você tem a UNEGRO, você tem a CONEN. Elas são organizações

políticas. Elas não mexem com a cultura, com identidade, com imaginário e lidam

com quase tudo com algum viés político-partidário. Os blocos afro são entidades

polítco-culturais, sociais, de inclusão. Eles têm uma ligação com o candomblé, mas

o candomblé se concentrou no aspecto religioso. Os blocos abarcaram o religioso,

cultural e político. Eles fazem a síntese disso. E isso foi muito interessante. Está

sendo muito interessante. (João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em novembro

de 2015)

Se o enigma dos blocos afro se delimitasse ao seu caráter ser político, cultural ou

político-cultural, talvez nossa discussão se encerrasse por aqui. Mas há outras nuances a

serem observadas nesse intrigante sujeito.

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5.1.BLOCOS AFRO E MOVIMENTO SOCIAL

O MOVIMENTO

Ao tomarmos como parâmetro a definição que Alain Touraine (1997) sobre

movimentos sociais, segundo a qual um movimento social seria a combinação de um conflito

com um adversário social organizado e da referência comum dos dois adversários a um

mecanismo cultural sem o qual os adversários não se enfrentariam, pois poderiam se situar em

campos de batalha ou em domínios de discussão completamente separados, podemos

compreender os blocos afro como partícipes de um movimento social, especificamente o

movimento negro. Afinal, a ação coletiva da qual derivaram nasceu, ela própria, de uma

oposição a um modo de dominação generalizado. Não obstante estivesse em um primeiro

momento limitado em sua expressão a segregação no carnaval, logo o que se colocou em

disputa foi o poder em uma sociedade extremamente dividida, onde este mesmo poder se

encontrava distribuído de maneira completamente desigual. Nesse sentido, parece pertinente

encaixar os blocos afro na caracterização de movimento social delineada por Ilse Scherer-

Warren:

[movimento social é] grupo mais ou menos organizado, sob uma liderança

determinada ou não; possuindo programa, objetivos ou plano comum; baseando-se

numa mesma doutrina, princípios valorativos ou ideologia; visando um fim

específico ou uma mudança social. (SCHERER-WARREN, 1987, p. 13)

Ou ainda, na categorização apresentada por Maria da Glória Gohn:

Ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a

diferentes classes e camadas sociais, articulados em certos cenários da conjuntura

socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na

sociedade civil, gerando ou não, inovações nas esferas pública e privada,

participando direta ou indiretamente da luta política de um país e contribuindo para

o desenvolvimento, a transformação ou conservação de determinados aspectos da sociedade. (GOHN, 2002, p. 251)

Estariam os blocos afro, com toda a sua particularidade, inseridos no terreno mais

amplo do movimento negro, compreendendo este como meio pelo qual se dá a luta da

população negra em torno de um projeto de ação comum, que visa a resolução de questões na

sociedade de maneira mais abrangente, envolvendo aí desde o combate aos preconceitos e

discriminações, como marginalização e genocídio de seus jovens.

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Quando surgem em 1974, com a fundação do Ilê Aiyê, além de carregarem consigo

todo um passado forjado na persistência dos antigos afoxés, clubes de negros e blocos de

índio, e na resistência dos quilombos, terreiros e insurreições, receberam os blocos, também,

toda a herança da luta política do movimento negro, travada, pelo menos, desde a abolição.

Era nesse bojo que os blocos estavam se inserindo, mesmo que não intencionalmente. Joel

Rufino dos Santos (1994) afirma que

(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo,

fundadas e promovidas por pretos e negros. Entidades religiosas [como terreiros de

candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como "clubes de negros"], artísticas [como os inúmeros grupos de dança, capoeira,

teatro, poesia], culturais [como os diversos "centros de pesquisa"] e políticas [como

o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de protesto anti-

discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos,

literários e 'folclóricos' – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta,

extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro. (SANTOS, 1994, p. 157)

Petrônio Domingues (2007), estabeleceu uma classificação segundo a qual o

movimento negro teria passado por pelo menos quatro fases ao longo dos últimos quase 130

anos, no período do Brasil republicano. A primeira delas estaria compreendida justamente

entre a proclamação da República, em 1889, e o advento do Estado Novo, em 1937164

.

Em se tratando de entidades de caráter predominantemente assistencialista, cultural e

recreativo, vemos surgir em 1891 a Sociedade Progresso da Raça Africana, na cidade de

Pelotas (RS). Já em 1897 aparece o Clube 28 de Setembro, em São Paulo. No primeiro

decênio do século XX, observa-se o surgimento de entidades como Club 13 de Maio dos

Homens Pretos (1902), o Centro Literário dos Homens de Cor (1903) e a Sociedade

Propugnadora 13 de Maio (1906). 1908 foi o ano da criação do Centro Cultural Henrique Dias

e do Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos, todos localizados em São Paulo. Entre os anos

de 1910-20, surge a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor (1915) e a Associação

Protetora dos Brasileiros Pretos (1917), ambas no Rio de Janeiro. Em Lages (SC), é criado no

ano de 1918 o Centro Cívico Cruz e Souza. Deve ser citado ainda o Centro Cívico Palmares,

fundado em 1926 na cidade de São Paulo165

.

Nessa mesma fase, floresceu a chamada imprensa negra, com importantes jornais.

Ainda em 1899, foi criado em São Paulo o jornal “A Pátria – Orgão dos Homens de Cor”. Em

Campinas surgiu, em 1903, “O Baluarte”. De volta a capital paulista, durante década de 1910

164 Para efeitos de organização textual, será aceita a categorização proposta por Domingues (2007), sem

desconsiderar o pioneirismo soteropolitano da Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada em 1832 por

Manoel Victor Serra, sendo esta a primeira organização civil negra do Brasil. Desde 1887, a SPD ocupa todo um

prédio no Pelourinho, em Salvador. 165 Para mais informações sobre tais entidades, ver Marcon (1999) e Cunha Jr. (1992).

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foram criados “O Combate” (1912) e “O Menelick” (1915). No ano de 1918 surgem três

importantes periódicos: “O Bandeirante”, “O Alfinete” e “A Liberdade”. A década seguinte é

iniciada com o surgimento de “A Sentinela”, logo em 1920. Já no ano de 1924 começa a

circular o fundamental “Clarim da Alvorada”. Com o subtítulo de “legítimo órgão da

mocidade negra”. Com a ambição de ser um veículo de conscientização política e social da

população negra, tal periódico era distribuído nos chamados “bailes negros”, cujo público era

formado majoritariamente por jovens166

.

Em 1931, talvez tenhamos o primeiro grande marco para o movimento negro

brasileiro, com a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB). Ao lado do Centro Cívico

Palmares, a FNB foi pioneira na construção de reivindicações políticas. Dentre suas

estratégias de atuação estava a distribuição de representações em diferentes estados do país,

descentralizando a organização de uma luta que por essência era nacional. Não demoraram a

aparecer as chamadas “delegações” da FNB no Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Rio

Grande do Sul e Pernambuco. Não por acaso, logo converter-se-ia na mais importante

entidade negra brasileira da primeira metade do século passado, chegando a contar com cerca

de 20 mil associados167

.

Na Bahia, a filial da FNB foi criada logo em 1932, apenas um ano após a fundação da

matriz paulista, por Marcos Rodrigues dos Santos, operário baiano nascido em Santo Antônio

de Jesus e que por conta dos caminhos da vida havia participado da fundação da FNB em

Santos.

Segundo Bacelar (1996), a atuação da delegação baiana da FNB foi apresentada na

edição de 26 de abril de 1933 do Diário da Bahia. Este trazia os dois seguintes pontos:

1) Alphabetização, como um dos formidáveis factores da sua instituição, o que deve

constituir a pedra angular de todas as organizações que se venham fundar no nosso Brasil. 2) levantamento moral da raça, falha que vem da sua gênesis, principalmente

em relação à formação nobilíssima da família. Devemos mesmo trabalhar pela

formação da elite da mulher negra [...I. O negro será ajudado, não lhe faltará a

moeda para o sustento da sua família já legalmente constituída. Trabalho tampouco

faltará pois é um dos pontos de maior cogitação nossa. (BACELAR, 1996, p. 76)

Dentre as ações práticas da Frente Negra da Bahia estavam, além da já citada

alfabetização, cursos de música, línguas e datilografia. O recurso necessário para levar a cabo

tais atividades advinha da realização de festas e apresentações musicais. Tais eventos, para

166 Vários autores se dedicaram ao estudo da chamada imprensa negra do primeiro quarto do século XX. Para

mais informações ver Muller (1999), Loner (1999), Bastide (1951), Ferrara (1986), Garcia (1997), Mello (1999),

Lopes (2001), Domingues (2004), Maciel (1997) e Santos (2003). 167 Para mais informações sobre a Frente Negra Brasileira, ver Pinto (1993), Félix (2001), Oliveira (2002),

Domingues (2005), Silva (1994), Lucrécio (1989) e Bacelar (1996).

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além de arrecadar fundos, objetivam o desenvolvimento da solidariedade entre os negros e

elevação da autoestima dos mesmos. Observando tal modus operandi, poderíamos afirmar,

sem a necessidade de grandes modificações, se tratar de um resumo das atividades realizadas

por um bloco afro nos dias de hoje. Ou seja, se as demandas permanecem semelhantes, as

táticas utilizadas também parecem não diferir consideravelmente.

Apesar de seguir de perto o ideário inaugurado pela matriz paulista, a versão baiana da

FNB conviveu com dificuldades particulares, fruto do contexto em que estava inserida e que

diferenciava sobremaneira as capitais do Sudeste e do Nordeste. De acordo com Bacelar

(1996), enquanto os mestiços e indivíduos das chamadas camadas médias negras de São Paulo

viam na Frente uma possibilidade real de superação dos problemas derivados da dominação

racial vigente, em Salvador, mestiços e negros que conseguiram atingir alguma estabilidade

em sua condição social acabaram por rejeitar a Frente, evitando qualquer participação direta

nesta. O máximo que se obtinha era algum auxílio material, motivado antes por um anseio

quase caridoso do que por real concordância ideológica.

Ressalta-se ainda o fato de que a vertente baiana da FNB encontrou ressonância entre

negros e mestiços da classe trabalhadora, com histórica relação com as lutas proletárias. Não

por acaso seu fundador era um operário. Foi ali que a Frente ganhou terreno, em larga medida

pela insatisfação popular com o desemprego e empobrecimento, bem como pela repressão

sofrida pelo movimento operário soteropolitano. Tais trabalhadores viram na Frente uma

possibilidade de seguirem articulados, expressando seu descontentamento. Ao mesmo tempo,

a Frente trouxe para o cerne da luta operária a questão negra, tarefa hercúlea em uma

sociedade onde o mito da democracia racial possuía ar de fato histórico inconteste, mesmo

entre as camadas mais baixas da população.

Como solução para essa difícil missão, restou a FNB propor a união racial, através da

qual os negros passariam a fazer parte do “Brasil civilizado”, “mundo dos brancos”. Não se

propôs a transformação da ordem vigente, mas antes a assimilação do negro a esta ordem já

estabelecida. Como afirma Fernandes:

O teor revolucionário dessas inquietações e movimentos sociais se objetiva na

disposição de se opor contra a persistência indefinida do antigo regime no plano das

relações raciais. Admitia-se e aceitava-se a ideologia econômica, jurídica e política

dos círculos dirigentes da “raça dominante”. Pretendia-se que ela fosse aplicada com equanimidade e de modo íntegro, de maneira a se proscrever tanto a deformação

quanto as inconsistências da ordem social competitiva. Em suma, o negro e o mulato

surgiam como os campeões da “revolução dentro da ordem”. (FERNANDES, 1965,

p. 12)

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Mesmo buscando uma solução conciliatória, a Frente Negra Baiana acabou por tocar

no calcanhar de Aquiles da sociedade soteropolitana ao denunciar sua real situação racial.

Contestar o status quo foi o suficiente para que a imprensa local a época centrasse fogo contra

as pretensões dos frentenegrinos. Coube ao jornal “A Tarde”, a linha de frente nesse combate,

questionando as reais intenções da Frente. Não por acaso, o mesmo “A Tarde” que anos

depois afirmaria ser o Ilê Aiyê um bloco racista.

Entretanto, mais efetiva do que qualquer campanha jornalística contra a Frente foi a já

citada estrutura sobre a qual se assentava a sociedade baiana, cujo discurso hegemônico

relacionou os propósitos da FNB a uma indesejada desestabilização de uma ordem que

abraçava a todos, independente de classe ou raça.

Se a FNB viria a converter-se em partido político, nos idos de 1936, chegando a ter

seus membros recebidos pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, em Salvador a

experiência pelos caminhos da política institucional se deu antes, ainda em 1933, em grande

medida motivada pelo histórico de filiação de vários de seus membros ao extinto Partido

Operário. Se a atuação da Frente na capital baiana se via dificultada pela própria organização

social, enveredar pela política institucional apresentava-se como uma boa alternativa.

Dionysio Silva foi escolhido como candidato único da Frente para as eleições da

Assembleia Nacional Constituinte. Entretanto, a dois dias das eleições a FNB retirou seu

apoio ao candidato, apresentando uma chapa múltipla composta por vários nomes conhecidos.

O resultado não poderia ser outro: fracasso nas urnas e enfraquecimento da entidade. Até o

final daquele ano de 1933, a versão baiana da Frente deixaria de existir. O que restou de seus

membros acabou cooptado pela Ação Social Proletária, partido tutelado pelo então interventor

Juracy Magalhães.

Se não se mostrou efetiva em seus propósitos mais ousados, em seu pouco tempo de

atividade a FNB foi capaz de fazer emergir do solo baiano a questão racial, denunciando a

visível, embora escamoteada, desigualdade entre brancos e negros. Sua correlata paulista, bem

como todas as demais filiais, seriam extintas tão logo se instaurou a ditadura do Estado Novo,

em 1937, pondo fim a essa primeira fase.

De acordo com Domingues (2007), a segunda fase do movimento negro organizado na

República compreende o período pós-Estado Novo (1945) até o início da ditadura militar de

1964. O hiato existente durante os anos da ditadura de Vargas se justifica pela forte repressão

política, responsável por inviabilizar tentativas de organização de movimentos contestatórios.

Não que estes tenham desaparecido por completo, como atesta a fundação da União dos

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Homens de Cor (UHC)168

, no ano de 1943, ou do próprio Teatro Experimental do Negro

(TEN)169

, em 1944, mas passaram a surgir de maneira esporádica e muito pontual.

O início da chamada Segunda República abriu o campo necessário para que tais

entidades ganhassem terreno. A UHC chegou a ter representantes recebidos por Vargas,

durante seu governo da década de 1950, quando lhe foram apresentadas reivindicações da

população negra. A UHC acabaria por eleger como deputado federal por dois mandatos

consecutivos seu membro José Bernardo da Silva. Já o TEN, capitaneado por Abdias do

Nascimento, logo extrapolaria seu intuito original, de formação de uma companhia de teatro

formada exclusivamente por atores negros, ao criar o jornal “Quilombo”, oferecer cursos

profissionalizantes e de alfabetização, fundar o Museu do Negro e o Instituto Nacional do

Negro, bem como promover eventos como a Conferência Nacional do Negro (1949), I

Congresso do Negro Brasileiro (1950) e Semana do Negro (1955). Foi realizada ainda a

eleição da “Rainha das Mulatas” e da “Boneca de Pixe”. Segundo Domingues (2004), citando

o “Quilombo”, de janeiro de 1950, o objetivo principal de tais eleições seria

(...) proporcionar as mulheres negras uma oportunidade de se projetarem

socialmente, de se valorizarem através dessa demonstração pública, em grande

estilo, de seus predicados, de suas virtudes, da sua vivacidade mental, graça, elegância e, sobretudo, de sua integração no que há de mais categorizado em matéria

social. (DOMINGUES, 2004, p. 74)

Impossível dissociar os propósitos de tais concursos aos da escolha da “Deusa do

Ébano”, pelo Ilê Aiyê, ou da “Rainha do Malê”, pelo Malê Debalê, para citarmos apenas dois

dos pleitos anuais mantidos pelos blocos afro.

Ao longo das décadas de 1940 e 1950, a imprensa negra voltou a exercer bastante

influência, alicerçada no surgimento de novos veículos em todo o país. Podem ser citados os

jornais paulistas “Alvorada” (1945), “O Novo Horizonte” (1946) e “Notícias de Ébano”

(1957), além da revista “Senzala” (1946). Do sul do país veio o “União” (1947), fundado em

Curitiba. O Rio de Janeiro, capital da República, contava com o jornal “Redenção” (1950) e

“A Voz da Negritude” (1952).

Entretanto, apesar da atuação efetiva de entidades e organizações como UHC e TEN, e

de uma ativa imprensa, o movimento negro sofreria durante tais décadas pela falta de apoio

político institucionalizado. Não havia suporte de partidos de direita, tampouco de

representantes da esquerda. Para setores do primeiro, não havia razão de existir um

168 Sobre a União dos Homens de Cor (UHC), ver Silva (2003) e (2005). 169 Sobre o Teatro Experimental do Negro (TEN), ver Muller (1988), Maués (1988), Nascimento (1968),

Gonzalez e Hasenbalg (1982) e Hanchard (2001).

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movimento voltado aos negros, por não haver questão racial a ser discutida no país. Já para os

representantes do segundo, uma luta exclusiva dos negros representaria um obstáculo para o

sucesso de uma luta mais ampla, que incluísse todos os trabalhadores.

Se o cenário já não se mostrava politicamente favorável ao movimento enquanto vivia-

se em uma democracia, a situação iria de mal a pior com o Golpe Militar de 1964 e a

consequente instauração de um novo regime ditatorial. Não foi preciso mais do que quatro

anos para que o movimento praticamente deixasse de existir. Simbólica nesse período foi a

extinção do TEN, culminando com o exílio de seu fundador e principal liderança, Abdias do

Nascimento170

, em 1968.

Voltando a classificação de Domingues (2007), entramos na chamada terceira fase do

movimento negro organizado na República, que iria do início do processo de

redemocratização, em 1978, portanto, ainda na ditadura, e terminaria no ano 2000.

Vale notar que existe um novo hiato na classificação de Domingues, desta feita entre

os anos de 1964 e 1978. Assim como no primeiro hiato, entre o fim do Estado Novo e o golpe

de 1964, em que existiram marcos fundamentais para a história do movimento negro

brasileiro, como a fundação da UHC e TEN, o segundo hiato também está repleto de

momentos importantes, a despeito da dificuldade de atuação de qualquer entidade que se

propusesse a discutir a questão racial no país171

.

Se raros são os episódios assinalados na segunda metade da década de 1960, os anos

de 1970 trouxeram momentos extremamente relevantes para a futura reorganização do

movimento negro. Podem ser citadas as fundações do Grupo Palmares, em Porto Alegre

(1971) e do Centro de Cultura e Arte Negra, em São Paulo (1972). Foi o Grupo Palmares,

inclusive, a primeira entidade a defender as comemorações que hoje se realizam em 20 de

Novembro. Seriam fundados ainda o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no

Rio de Janeiro (1976) e, por fim, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação

Racial (MNUCDR), em 1978, dando início à terceira fase.

Entretanto, nesta mesma década de 1970, dois momentos não podem ser deixados de

lado, sob pena de desprezarmos elementos importantes para o entendimento dos próximos

capítulos dessa história. O primeiro deles se dá por volta do ano de 1976, com o advento do

chamado Movimento Black Rio.

170 Para mais informações sobre a trajetória do TEN e de seu fundador, Abdias do Nascimento, ver Nascimento

(1978) e (1982). 171 Para mais informações sobre o movimento negro durante a ditadura, ver Gonzalez e Hasenbalg (1982) e

Cunha Jr. (1992).

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Nascido nos subúrbios da Zona Norte do Rio de Janeiro, o Black Rio tinha como

principal influência o movimento Soul norte-americano e o discurso Black Power. Bailes

eram organizados todos os finais de semana, reunindo contingentes cada vez mais expressivos

de jovens, sobretudo negros. Vários foram os autores172

que se detiveram sobre tal fenômeno,

entendendo-o, via de regra, como a busca de uma nova identidade, pautada em elementos

negros transnacionais que se diferenciavam dos tradicionais samba e candomblé/umbanda,

teoricamente cooptados pelo Estado para a criação de uma ideia de nação. Nesse sentido, os

bailes seriam o espaço por excelência dessa reinvenção.

O sucesso da empreitada periférica logo despertou o interesse do centro. Estabeleceu-

se uma inesperada conexão entre os bailes da Zona Norte e as boates da Zona Sul, alimentada

pelo constante fluxo de músicos e DJs que se apresentavam em ambos os locais.

De repente, não mais que de repente, a cariocada zona-sul topou, embasbacada, com

o movimento que ganhou o nome Black Rio. Todos ficaram sabendo que, na Zona

Norte, os bailes de fim de semana, animados à base da soul music levada em fitas

pelas “equipes” como a Soul Grand Prix, liderada por Dom Filó, conseguiam reunir

uma média que ficava entre 5 e 10 mil jovens negros. (RISÉRIO, 1981, p. 30)

De sucesso nas noites cariocas a sucesso comercial não foi preciso mais do que um

ano. Em 1977 era lançado o disco da Banda Black Rio, tendo uma de suas faixas se tornado

tema de abertura de uma novela da TV Globo.

De acordo com Luciana Oliveira (2014), o Movimento Black Rio vinculou cidadania e

apropriação de espaço público, por meio da proposição de novas representações socioculturais

e políticas, sendo este um marco na cultura popular urbana dos anos de 1970, e uma base

sobre a qual se assentariam todas as subsequentes expressões culturais pautadas pela

sobreposição de música, consumo e movimentação social.

Entretanto, toda a novidade que representou o Movimento Black Rio foi antecipada

em dois anos pela fundação do Ilê Aiyê. É interessante observarmos como um conjunto

semelhante de influências produziu efeitos tão distintos. Os mesmos movimentos soul norte-

americano, pelos direitos civis e Black Power serviram de insumo para que cariocas e

soteropolitanos colocassem em prática novas formas de sociabilidade e lazer, tendo o negro

como elemento central. Sobre a influência do soul em Salvador, nos conta Risério:

A música era, sem dúvida, o grande catalisador. Nessa época, havia um seriado

semanal na televisão com o Jackson Five, e foi intensa a influência desse grupo de

172 Para mais informações sobre o movimento Black Rio ou movimento soul no Brasil, ver Oliveira (2014),

Alberto (2009), Vianna (1997), Essinger (2005), Thayer (2006), Giacomini (2006), Zan (2007), McCann (2002),

Palombini (2009) e Ribeiro (2010).

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soul music sobre o comportamento da juventude negra baiana. (...) O pessoal

escrevia firme nos salões, envergando o traje típico da onda, cabelo ouriçado sob o

boné ou chapeuzão, calça de cintura alta e boca larga, camiseta de lastex, sapato,

digo, pisante colorido, de nome “cavalo de aço”, salto altíssimo, com uma chapa de

metal no bico e outra no salto, de modo a melhor deslizar em ágeis e desconcertantes

passos de dança. (RISÉRIO, 1981, p. 28)

E complementa com um dado interessante:

Um atestado ainda bem mais instigante da forte presença da música na vida da

blackitude baiana está no fato de James Brown ter interferido na própria engenharia

popular de Salvador. Cito, uma vez mais, o dançarino Jorge Watusi: “As casas que

foram construídas na época, lá no Curuzu, têm uma coisa muito curiosa: os quartos,

a cozinha, enfim, todos os cômodos da casa eram pequenos, mínimos, mas as salas

eram enormes, por causa dos bailes. O pessoal fazia a sala imensa para poder fazer

reuniões e bailes”. (RISÉRIO, 1981, p. 28)

Se a origem dos dois movimentos é semelhante, seu desdobramento é distinto.

Enquanto no Rio de Janeiro buscou-se um distanciamento das manifestações culturais negras

mais tradicionais, como o samba e as religiões de matriz africana, na Bahia deu-se o contrário,

com uma aproximação com tais manifestações, desde o primeiro momento.

A despeito de tal diferença fundamental, ambos os movimentos inovaram ao articular

novas formas simbólicas e discursivas a um processo de conscientização racial, dando espaço

para a elaboração de uma construção política que se afastava das formas convencionais de

exercício desta.

A forma como se estruturaram fez com que os caminhos percorridos pelo Movimento

Black Rio e pelos blocos afro de Salvador fossem também distintos, com o primeiro vindo a

dar origem a todo um “mundo funk carioca”, para ficarmos com uma expressão de Hermano

Vianna, enquanto o segundo promoveu renovações em seu próprio âmago, resistindo até os

dias atuais, em modelos mais ou menos distintos do inicial.

Vale notar que enquanto esse período do movimento negro no Rio de Janeiro,

sintetizado no Movimento Black Rio, mas não restrito a esse, surge como página importante

da construção de um movimento negro nacional, pouco se diz sobre a página que estava sendo

escrita simultaneamente em Salvador. E mais, pouco se relaciona o que ocorria pelas ladeiras

da Cidade da Bahia com os rumos do movimento negro dali em diante.

O próprio Domingues, que elaborou a classificação da história do movimento negro

em quatro fases, não se pronuncia sobre as organizações soteropolitanas. Aliás, todo o seu

trabalho joga luz sobre episódios ocorridos basicamente entre as regiões Sul e Sudeste do

país. Pouco se fala sobre o que aconteceu em regiões outras, como o Nordeste. Tal escolha

não é particular de Domingues, sendo replicada em inúmeros trabalhos de nossa academia.

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Retomando sua classificação, afirmo que se para o movimento negro brasileiro sua

terceira fase teve início com a criação do MNUCDR, em 1978, na Bahia essa terceira fase se

inicia em 1974, com a fundação do Ilê Aiyê. No ano escolhido por Domingues para demarcar

o início da terceira fase, a capital baiana já contava com três blocos afro (Ilê Aiyê, Mutuê e

Badauê). Não há como se desconsiderar o impacto que criação de tais entidades teve no

cotidiano da população negra de Salvador. Arrisco dizer, maior do que a da própria posterior

criação do MNUCDR. Como nos conta Bacelar sobre esse final da década de 1970, início de

1980, em Salvador:

Relacionado com a perspectiva dos movimentos negros, inclusive com a apropriação

de seus postulados, com ou sem intelectualização, a afirmação de negritude

espalhou-se por todo o corpo social. A vaidade e o orgulho de ser negro, bem como

a criação de territórios – na Liberdade, em Itapuã, no Pelourinho e em outros locais

– atingem grandes contingentes de negros em Salvador. Enfim, seguramente eles

estão abrindo as portas da resistência na construção de seu espaço. (BACELAR,

1989, p. 93).

A titulo de recordação, Liberdade, Itapuã e Pelourinho, mencionados por Bacelar, lar

de Ilê Aiyê, Malê Debalê e Olodum, respectivamente, fundados em 1974, o primeiro, e 1979,

os dois últimos.

Apesar da discordância, sigamos com a sistematização elaborada por Domingues e a

chamada a terceira fase do movimento negro173

.

Influenciados tanto pelos movimentos em favor dos direitos civis nos Estados Unidos,

capitaneados por figuras como Martin Luther King Jr. e Malcolm X, como pelos movimentos

de libertação dos países africanos, que resultaram na independência de nações como

Moçambique e Angola, o MNUCDR entrou em cena, nascido de uma organização marxista

chamada “Convergência Socialista”. Conjugando classe e raça, tal organização atraiu para

seus quadros nomes importantes para a posterior fundação do MNUCDR. Importante também

foi o arcabouço ideológico que ali foi erigido. Como afirma Hanchard:

Pela primeira vez no Brasil a defesa de uma posição quanto à raça e a classe não foi

marginalizada pela intelectualidade afro-brasileira e, na verdade, passou a suplantar

os modelos conformista e assimilacionista como postura dominante do movimento negro. (HANCHARD, 2001, p. 148)

Em junho de 1978, na cidade de São Paulo, houve uma reunião envolvendo diversos

grupos e entidades negras, na qual se decidiu pela criação do inicialmente chamado

Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), transformado em

173 Para mais informações sobre o movimento negro brasileiro no período, ver Monteiro (1991), Nascimento

(1989), Fernandes (1989), Maués (1991), Sader (1987) e Silva (1988).

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Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) no mês seguinte,

em decisão tomada na 1ª Assembleia Nacional da entidade. O nome voltaria a ser alterado

quando da realização de seu 1º Congresso, em novembro de 1979, na cidade do Rio de

Janeiro, passando a ser chamado simplesmente de Movimento Negro Unificado (MNU).

Em 1982 o MNU divulga seu “Programa de Ação”, pautado pelas seguintes reivindicações:

Desmistificação da democracia racial brasileira;

Organização política da população negra;

Transformação do Movimento Negro em movimento de massas;

Formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador;

Organização para enfrentar a violência policial;

Organização nos sindicatos e partidos políticos;

Luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares;

Busca pelo apoio internacional contra o racismo no país.

Já foram tratadas ao longo desse texto as tensões existentes entre os recém-criados

blocos afro e MNU, dispensando assim a repetição de alguns comentários. Entretanto, vale

citar depoimentos colhidos por Risério (1981), junto a importantes figuras dos blocos afro de

Salvador, no final da década de 1970 e início da de 1980, portanto, pouquíssimo tempo após o

surgimento, tanto das entidades carnavalescas, quanto do grupo político. O primeiro

depoimento é de Moa do Catendê, fundador do bloco afro Badauê, um dos mais importantes à

época:

Eu não vejo nada no Movimento Negro. Inclusive eu brigo muito com eles, brigo

mesmo, não tenho medo de brigar com eles não. Eles não tem uma filosofia acentuada, profunda. Eles não têm base de nada, não têm apoio da massa, não sabem

pra que lado vão, cada hora se pegam numa coisa diferente. Eles se apegam ao

Badauê, o Badauê dispensa, eles vão pro Malê e assim por diante, sempre de galho

em galho. (...) Do jeito que eles tão agindo, falando difícil, fazendo altíssimas

filosofias, eles não vão conseguir muita coisa. Eles são muito intelectuais. Numa

reunião em que eu estive com eles, na época em que eu pensava que eles queriam

fazer alguma coisa em prol do crioulo, eu vi pessoas que tavam lá e não entendiam o

que eles falavam, aquele palavreado político. (RISÉRIO, 1981, p. 76)

Os depoimentos a seguir são de membros da diretoria do Ilê Aiyê no início dos anos

de 1980. Comecemos pelo bailarino e diretor, Macalé:

São uns negros lúdicos... Há quatro anos, lá no Rio de Janeiro, eles celebram a morte

de Zumbi dos Palmares. É um grupo de negros intelectuais, que ficam dizendo que

Zumbi fez isso e fez aquilo, mas eles não veem que eles não fazem nada. Quando a

gente foi pra Alagoas, o pessoal do Movimento disse que a gente tava sendo usado.

É um absurdo. Abdias do Nascimento tava lá, tinha gente de São Paulo, um cara de

Brasília, gente daqui da Bahia, de muitos lugares. E a gente foi lá como negro. Por

que é que a gente tava sendo usado? Usado por quem? Só se foi por aquela massa,

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por aquelas pessoas pra quem a gente tava mostrando que o negro tá vivo, tem sua

força e é capaz de revolucionar qualquer movimento e qualquer cidade. Agora, os

caras do Movimento Negro tavam onde? Tavam dentro de um espaço quadrado,

uma biblioteca, porque eles gostam muito de livro. E tavam fazendo seresta,

entendeu? Enquanto isso, o pessoal do Ilê Aiyê tava na rua transando, se

comunicando, marcando presença na cidade. (RISÉRIO, 1981, p. 85)

Agora, as palavras do diretor e ator, Mario Gusmão:

Enquanto os intelectuais do Movimento Negro ficaram discutindo na biblioteca, o

pessoal do Ilê Aiyê foi até a Serra da Barriga. Foi ver o lugar, ver onde Zumbi

morava. Os intelectuais não foram conhecer o lugar. (...) Eles precisam entender que

a festa não é só a festa em si. A festa é sempre consequência, o resultado de uma

porção de coisas que já vêm acontecendo, sabe? E é uma coisa que todo preto gosta

mesmo. É uma coisa importante pra gente, o momento de uma grande comunicação. (RISÉRIO, 1981, p.86)

Por fim, as palavras de Antônio Carlos Vovô:

Um cara do Movimento Negro disse que a gente devia parar com essa babaquice de Ilê Aiyê... Mas, porra, eles se reúnem, se reúnem, ficam falando uma porção de

palavras difíceis, não fazem nada e depois vêm dizer que é a gente que não faz nada!

Por que eles não vão dar cursos na periferia, nos Alagados? Eles dão umas feijoadas,

umas biritas, lá no comitê de Marcelo Cordeiro, e se queixam que a gente não vai.

Porra, não é comida nem birita o que vai fazer minha cabeça. (...) O pessoal do

Movimento Negro disse que a gente tava por fora, que a gente não sabia nada, era

uma porção de negão burro que só sabia fazer carnaval. Mas será que eles acham

mesmo que a gente vai deixar de lado esse lance carnavalesco? A nossa mensagem

maior é essa. É a festa, o espetáculo. Eles se reúnem e não fazem nada, e nós,

através do Ilê Aiyê e do carnaval, sem fazer discurso nenhum, já conseguimos

mudar muita coisa por aqui. (...) Eu acho é que esse pessoal do Movimento Negro não acredita na gente. Não sei por quê. A gente trabalha muito, cria muito e mostra o

que cria. (RISÉRIO, 1981, p. 87)

A origem, formação e filiação existente entre os componentes dos dois coletivos

(blocos afro e MNU) ajuda a entender um pouco dessa diferenciação que se mostra tão

marcada, na aurora de ambos. Como lembra Cunha:

Inicialmente, a frente dos blocos, estavam jovens cuja proximidade e afinidade

foram construídas através de relações de vizinhança e turmas de amigos que saíam

em afoxés e blocos de índio. Ao contrário, dentro dos grupos embrionários que

antecedem e servem de base para a primeira composição do MNU na cidade,

aglutina-se uma maioria de universitários, artistas e profissionais liberais. (CUNHA,

2000, p. 351)

Creio que possamos tomar a soma de tais depoimentos como a síntese do

relacionamento entre blocos afro e MNU no final dos anos 1970, início dos 1980, sendo esta

suficiente para a breve contextualização que aqui se propôs.

De modo algum existe nesse texto o objetivo de desqualificar a atuação do MNU. Seu

protagonismo no protesto negro brasileiro é inegável, sendo ambicioso em seu projeto de

unificar grupos, movimentos e organizações negras nacionais em torno de um projeto comum.

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Sua atuação foi decisiva em vários momentos do país, desde quando fora fundado, sendo

responsável direto por muitas das conquistas da população negra nas últimas décadas. As

críticas apontadas por integrantes de blocos afro representam, antes de mais nada, o retrato de

uma relação que nasceu tensa e que hoje, passados mais de 30 anos, se encontra em estágio de

maior cooperação.

Vale notar, inclusive, como as ideias defendidas por blocos e MNU acabaram se

interseccionando de muitas maneiras. Por exemplo, temos a histórica defesa do MNU pela

inclusão do ensino de história da África nos currículos escolares, proposta essa levada a cabo

pelo blocos anos antes de se tornar lei federal, através de suas escolas e projetos pedagógicos.

Por outro lado, a chamada “africanização”, perpetrada pelos blocos na cidade de Salvador,

primeiramente pela via do carnaval para, sequencialmente, consolidar-se como estilo de vida,

acabou abarcada pelo próprio MNU, com a adesão a uma estética da negritude, com a

valorização de padrões de beleza, penteados, indumentárias e adereços de matriz africana,

bem como de música, culinária dança e outros hábitos de mesma origem.

Ao fim ao cabo, blocos e MNU inserem-se quase que simultaneamente no mesmo

processo histórico, sendo capítulos mais recentes de uma história que, como vimos, começa

um século antes, após a abolição. Muitas das bandeiras que passam a levantar a partir da

década de 1970, nada mais são do que a atualização de outras, defendidas décadas antes. Em

cada bloco afro que nasce em terras soteropolitanas, do final dos anos de 1970 ao início dos

1980, existe um pouco da Frente Negra Brasileira, da União dos Homens de Cor, do Teatro

Experimental do Negro, dos diversos veículos da chamada imprensa negra e de toda

organização que se fez ativa na luta pelos direitos de tal parcela de nossa população. Não se

afirma aqui que exista uma condição de possibilidade entre a existência das primeiras

organizações negras e o surgimento dos blocos afro e do próprio MNU. O que se afirma são

as marcas indeléveis que as organizações de outrora deixaram na história e,

consequentemente, nas organizações de agora.

Domingues (2007) ainda apresenta uma quarta fase do movimento negro no Brasil,

que teria se iniciado no ano 2000, com o aparecimento do chamado Movimento Hip-Hop, não

tendo ainda encontrado seu fim.

Alguns elementos sinalizam que no início do terceiro milênio está se abrindo uma

nova fase do movimento negro, com a entrada em cena do movimento hip-hop, por

vários motivos. Trata-se de um movimento cultural inovador, o qual vem adquirindo

uma crescente dimensão nacional; é um movimento popular, que fala a linguagem

da periferia, rompendo com o discurso vanguardista das entidades negras

tradicionais. Além disso, o hip-hop expressa a rebeldia da juventude

afrodescendente, tendendo a modificar o perfil dos ativistas do movimento negro;

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seus adeptos procuram resgatar a autoestima do negro, com campanhas do tipo:

Negro Sim!, Negro 100%, bem como difundem o estilo sonoro rap, música cujas

letras de protesto combinam denúncia racial e social, costurando, assim, a aliança do

protagonismo negro com outros setores marginalizados da sociedade. E para se

diferenciar do movimento negro tradicional, seus adeptos estão, cada vez mais,

substituindo o uso do termo negro pelo preto. (DOMINGUES, 2007, p. 119)

Apesar de concordar com Domingues no que diz respeito a toda potencialidade do

Movimento Hip-Hop, discordo do autor quando afirma que a entrada em cena deste

movimento demarcaria uma nova fase do movimento negro brasileiro. Primeiro porque, se a

quarta fase do movimento negro tem início nos anos 2000, não poderia ser o Movimento Hip-

Hop seu demarcador, basicamente por uma questão temporal, uma vez que esse nasce na

década de 1970 e floresce no Brasil na década de 1980174

.

Poderia se argumentar que o Movimento Hip-Hop ganharia em abrangência apenas na

década de 2000, e por isso tal marco. Mas se observarmos para além das fronteiras da região

Sudeste do país, veremos que no ano de 1989, já se organizava em Fortaleza o chamado

Movimento Hip Hop Organizado do Brasil (MH2O). Tal movimento ganhou terreno

rapidamente, avançando da região Nordeste para todo o país em poucos anos. Hoje atua em

14 estados.

Se o Movimento Hip Hop já possuía tal expressividade nos anos 1980/1990, como ele

poderia ser o marco de uma nova fase do movimento negro nos anos 2000? Considero que o

Movimento Hip Hop mereça tal responsabilidade, mas discordo da demarcação temporal.

A despeito da questão cronológica, vale repetir a crítica feita, quando da menção ao

Movimento Black Rio. Se um movimento de origem popular, que rompa com o discurso de

entidades negras tradicionais, que modifique o perfil dos ativistas negros, que difunda um

estilo sonoro pautado pelo protesto de cunho racial e social e que busque o resgate da

autoestima da população negra merece ser um marco no movimento negro, a ponto de

delimitar uma de suas fases, caberia ao surgimento dos blocos afro a mesma deferência? Não

174 Nascido em meados da década de 1970, nos Estados Unidos, mais especificamente em Nova Iorque, pelas

mãos de imigrantes, principalmente jamaicanos, o Hip Hop rapidamente se tornou uma forte expressão cultural da população negra da cidade, capitaneada por nomes como Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grand Master Flash.

Essa manifestação nascida nas ruas do South Bronx não demoraria a chegar a terras brasileiras. Na década de

1980, o movimento já podia ser encontrado em São Paulo, em encontros realizados na Rua 24 de Maio e na

estação do metrô São Bento. Nessa época surgem nomes que seriam fundamentais para o movimento no Brasil,

como Racionais MC’s e Thaíde e DJ Hum.A ressonância do movimento é imediata nas periferias das grandes

cidades. Tal amplitude pode ser atestada pelo lançamento de duas importantes coletâneas de artistas do gênero,

ambas no ano de 1988: “Hip-Hop Cultura de Rua” e “Consciência Black Vol.1”. Curiosamente, as coletâneas

foram lançadas com uma semana de diferença. No ano seguinte Thaíde já teria seu primeiro LP solo (“Pergunte a

quem conhece”). Já em 1990 seria a vez dos Racionais MC’s (“Holocausto Urbano”).

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consigo em nada diferenciar a atuação dos blocos do que fora descrito como méritos do

Movimento Hip Hop.

Como dito antes, não se trata de uma crítica específica ao trabalho de Domingues, de

esmerada pesquisa histórica e rigor acadêmico, na qual me apoiei largamente durante essa

breve contextualização. Trata-se, principalmente, de uma crítica a uma forma de fazer

acadêmico que ainda ignora muito do que acontece país afora, centrando suas atenções a um

microcosmo e fazendo deste um reflexo de toda uma nação.

Seguindo nossa caminhada, podemos ver como os blocos afro estão inseridos em um

escopo mais amplo, sendo partícipes do chamado movimento negro brasileiro, podendo ser

incluídos dentre o rol de entidades atuantes nos chamados movimentos sociais.

Entretanto, se observarmos a tipificação de sujeitos sócio-políticos criada por Gohn

(2010) para aglutinar diferentes atores coletivos, a certeza de que a categorização inicial basta

passa a ser bastante questionável. Para Gohn, tais sujeitos sócio-políticos podem ser

movimentos sociais, como descritos, mas podem ser também, organizações não

governamentais (ONGs), entidades assistenciais e entidades do mundo empresarial articuladas

pelo chamado Terceiro Setor175

; fóruns, plenárias e articulações nacionais e transnacionais; e

conselhos gestores de projetos, programas ou políticas sociais.

Tendo em vista tal separação, observemos a seguinte afirmação de Edmilson:

O Ilê Aiyê é uma organização que atua no Terceiro Setor, é um apêndice do Estado e

o Estado não faz nada pra ajudar essa organização. O Estado tem a sua própria dificuldade de entender o Terceiro Setor. Ele não tem a dimensão do que é o

Terceiro Setor. O Terceiro Setor ocupou um espaço que era obrigação do Estado

fazer. De 1974 pra cá, nós conseguimos fazer mudanças fundamentais. É um

exercício, ao longo desses 43 anos, extremamente estratégico, que até passa

despercebido por nós em algum sentido, ou a gente não aprofunda o suficiente para

essa questão. Precisamos ter planejamento estratégico aqui dentro da nossa

organização. Não é só o Ilê. O Ilê é um guarda-chuva de N organizações. (Edmilson,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Segundo Edmilson, antes de pertencer ao grupo dos movimentos sociais, como

delineado por Gohn, o Ilê Aiyê seria um partícipe do chamado Terceiro Setor. De fato, se

observarmos a trajetória dos blocos afro em Salvador, é possível perceber que embora

nascidas como blocos de carnaval, tais agremiações logo passaram a se organizar de maneira

diferente, mais complexa, sobretudo na virada dos anos de 1980 para 1990.

175 O chamado “Primeiro Setor” é representado pelo Estado enquanto o “Segundo Setor” seria o mercado. Já

“Terceiro Setor” seria a sociedade civil organizada, segundo Montaño (2002), formada por ONGs, organizações

sem fins lucrativos, organizações da sociedade civil, instituições filantrópicas, associações de moradores ou

comunitárias, associações profissionais ou categoriais, clubes, instituições culturais, instituições religiosas,

dentre outras correlatas.

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Não raros foram os casos de blocos que começaram a dividir seu tempo entre o

carnaval e ações sociais, sobretudo as realizadas em suas comunidades de origem, como diz

Edmilson, tomando para si responsabilidades estatais. Se nos atentarmos para a trajetória do

Malê Debalê, tal dinâmica fica bem visível. O bloco de Itapuã nasce, como todos os demais,

do anseio de tornar mais plural e democrático o carnaval soteropolitano, mas sem se descuidar

de outras demandas que se apresentavam de maneira urgente. Nas palavras de Josélio:

O bairro tinha que ter uma representação política e a gente via que através do

carnaval nós poderíamos representar politicamente o bairro, nas suas diversas

necessidades. Segurança, educação, saúde, urbanização, uma série de questões que o bairro clamava. Basicamente, nós passamos também ter uma representação forte

aqui no bairro de Itapuã. A gente acabou fazendo o papel do governo, seja Estadual,

Municipal e Federal. (Josélio Araújo, entrevista realizada em novembro de 2014)

A fala de Josélio pode-se somar outra, de Claudio, seu filho e atual presidente do Malê

Debalê:

Acabamos por preencher lacunas que o Poder Público não cobre, a atuar junto à

comunidade. A gente faz oficina de hip hop, oficina de dança, cursos

profissionalizantes. Preenche lacunas do Governo Federal, Estadual e Municipal.

(Claudio Araújo, entrevista realizada em novembro de 2015)

Afirmei que tal dinâmica de assumir responsabilidades estatais era mais visível

quando observado o caso do Malê Debalê, sobretudo pela curiosa história da fundação de sua

escola. Blocos afro como o Olodum e o Ilê Aiyê também possuem escolas dentro de seu leque

de atuação. A diferença para o caso do bloco de Itapuã é a maneira como surge tal projeto e a

força que ele acaba por ganhar, de maneira inesperada, dentro da instituição. Nas palavras de

Eduardo Santana:

Quando em 2006 assumiu uma Secretária de Educação aqui em Salvador, Olivia

Santana, negra, com todo um vinculo com o Movimento Negro, por um acaso houve

um evento lá na sede do Malê e ela foi. Nessa o Presidente chegou pra ela e falou:

“você que agora é a Secretária de Educação, por que a gente não faz uma escola

aqui?” Mas a ideia era construir uma escola onde é aquela parte da entrada, onde

tem o telhado. A ideia era fazer a fundação e construir salas de aula ali. Na época a

Secretária disse a Secretaria não investe, não constrói em terrenos privados. Ela

disse: “então por que ao invés de construção, vocês não fazem uma adaptação? Não adaptam o espaço que vocês têm pra uma escola e daí vai pleiteando a construção do

prédio?” Tudo bem. Fez um contrato, um convênio com a Prefeitura, com a

Secretaria de Educação, convênio de cessão de sala. O Malê não cobra aluguel das

salas e você entra com funcionários, professores, mobiliário, paga água e luz e

telefone. Então começou assim. Quatro salas. E a ideia era que fosse ensino pré-

escolar. Passou o tempo e não se construiu o prédio. À medida que foram mudando

as gestões do bloco, foi-se pensando: “tem um espaço ali que pode ser uma sala.

Tem um espaço ali...” Hoje o Malê fica limitado a uma sala e o restante das salas foi

sendo ocupado e adaptado para alunos. Então hoje são oito salas de aula e duas sala

da diretoria. Os meninos usam o palco, usam tudo praticamente. A cantina vira

merenda. No ensaio passa a ser a cantina, pra vender as coisas. “Aqui não é mais o

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Malê, é a escola”. Ouvi alguns discursos assim. Rapaz... Malê é tudo isso e mais a

escola. Você precisa às vezes mediar esses conflitos entre alguns diretores. É a única

escola de educação infantil em Itapuã toda. Aquela área do Abaeté toda ali em cima,

até nova Brasília, é a única escola que tem educação infantil. (Eduardo Santana,

entrevista realizada em abril de 2014)

Da carência dos moradores da região do Abaeté por um espaço dedicado a educação

infantil nasceu a vontade da diretoria do Malê Debalê de ceder um espaço para criação de

uma sala de aula. Nas palavras de Josélio:

Se você olhar aqui é uma escola. Nós abrimos mão de todas as nossas divisões de

sala de aula, de nossos cubículos, para doar pra educação. Já temos sérios problemas

com a droga, violência social, violência policial. A gente entende que sem a

educação seria muito pior. (Josélio Araújo, entrevista realizada em novembro de 2014).

A partir desse movimento, de maneira intencional ou não, o Malê Debalê começava a

ocupar um espaço que o Pode Público deixara vago por décadas. O desafio da escola do Malê

cresceu alimentado pela necessidade de sua comunidade. Como afirma Claudio, Presidente do

Malê:

A importância do bloco gira em torno disso. O Malê cede a maior parte do seu espaço para a escola durante o ano. São quatrocentas crianças, quatrocentas mães

que participam disso e que agradecem por ter seu filho vinculado ao projeto.

(Claudio, entrevista realizada em novembro de 2015).

Quando perceberam que apenas uma sala de aula não resolveria o problema, cederam

à segunda. Depois a terceira, a quarta... Como diz Eduardo, das dez salas existentes na sede,

hoje a escola ocupa oito. Para o mais desavisado, é o bloco quem faz uso das instalações da

escola, e não o contrário. Inclusive, aos que passam em frente à sede o que se lê é “Escola

Municipal Malê Debalê”. Não apenas entre os passantes a equação entre escola e bloco se

mostra de difícil resolução. Mesmo a agremiação e seus membros, a maneira como acabou se

dando tal formulação acabou por criar novos desafios. Segundo Eduardo:

Isso hoje talvez seja um dos nossos desafios pro futuro. Como conseguir ajustar

essas duas pautas? A pauta do bloco, que tem um tempo, tô falando com relação a

carnaval, com a pauta da escola. E uma coisa que é interessante é que o Malê é o

único dos blocos afro de Salvador que tem uma escola municipal. A gente não tem

um projeto pedagógico como os outros blocos. Num projeto pedagógico você ajusta

a sua pauta de acordo com seu projeto. Você ajusta inclusive o perfil dos profissionais de acordo com seu projeto. O Malê tem uma escola que é uma escola

municipal, que tem um formato. Então o nosso desafio é conseguir ajustar esse

tempo da escola normal e o tempo do bloco afro. Nem todos os professores que

estão lá, necessariamente tem afinidade com o bloco. O profissional que tá aqui

hoje, amanhã não tá mais. Hoje você tem uma gestão, amanhã não mais. Hoje você

tem uma coordenação que entende que é importante e a outra que entende que não.

(Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

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Sem poder arcar com os custos envolvidos na manutenção de uma instituição de

ensino, o Malê acaba por ter de se submeter ao poder municipal no que tange as diretrizes que

sua escola deve seguir. Como bem lembra Eduardo, outros blocos decidem sobre seus

projetos pedagógicos, autonomia que falta ao Malê. Fato que pudemos verificar ao tomar

conhecimentos das práticas da Escola Olodum e da Escola Mãe Hilda. Ao mesmo tempo,

abandonar tal iniciativa, encerrando o convênio de cessão de espaço, seria resolver questões

pragmáticas de organização do bloco, mas desamparar a comunidade que segue sem outra

opção de educação infantil na região. Conciliar o “tempo do bloco” e o “tempo da escola” se

mostra uma tarefa árdua.

Dedicado à compreensão do Olodum, no início da década de 1990, Marcelo Dantas

(1994) categorizou aquele Olodum como sendo uma organização não governamental. Para o

autor, não restavam dúvidas sobre tal filiação. O que chamou a atenção de Dantas foi a

novidade inaugurada pelo bloco do Pelourinho. Segundo o autor:

O Olodum era a única entidade que realizava um trabalho baseado na cultura, na

música e na negritude e que, além da ação social na comunidade do

Maciel/Pelourinho, possuía uma viabilidade econômica, levando ao mercado baiano e mais tarde nacional e internacional uma mercadoria de valor econômico

significativo: a cultura negra afro-baiana. (DANTAS, 1994, p. 49)

Para aqueles não familiarizados com a trajetória do Olodum, após sua fundação em

1979, o bloco passou por dificuldades que culminaram com seu não desfile, em 1983. Foi

justamente neste ano que ocorreu sua refundação informal, com novos membros passando a

compor a diretoria do bloco e sua consequente reestruturação. Passados apenas quatro anos,

em 1987, a canção “Faraó”, escolhida para ilustrar o tema “Egito dos Faraós”, caiu nas graças

da população, sendo um sucesso estrondoso no carnaval. Por todo o canto de Salvador só se

ouvia falar em Akhenaton, Gizé e outros ícones egípcios, decantados pelo bloco do

Pelourinho.

O que escapou a muitos, sobretudo os que não viveram a explosão de “Faraó” em solo

soteropolitano, era o fato de que o mandatário máximo do Egito, decantado pelo bloco do

Pelourinho, não era o mesmo que usualmente nos era apresentado. Por extensão, toda a noção

relacionada à civilização egípcia que conhecíamos também era colocada em cheque pelo

bloco do Pelourinho. Para tanto, o Olodum abraçou as teses do historiador e antropólogo

senegalês Cheik Anta Diop. Segundo o autor, a partir do Paleolítico Superior, até a época

dinástica, toda a bacia do Rio Nilo foi progressivamente ocupada por povos negros,

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afirmando, a partir de criteriosa investigação que o elemento negro foi preponderante do

princípio ao fim da história egípcia176

. Em suma, o faraó que despertava tamanha comoção

pelar ladeiras de Salvador era um faraó negro.

Tal envolvimento do bloco com as teses de Diop não são fruto do acaso. Já foi dito ao

longo desse texto que parte da luta travada pelas agremiações é pelo direito à memória, pela

possibilidade de reescrever a história, apresentando outras narrativas possíveis. Segundo

Agier (1991), a força e a originalidade do movimento negro na Bahia consistiria em dispor de

um amplo referencial cultural afro-baiano, que permitiria reelaborações, tanto políticas quanto

ontológicas, envolta de um ser negro individual e coletivo. Nesse sentido, abraçar as teses de

Diop significava ampliar esse leque referencial para além das fronteiras baianas, somando

novos elementos nessa reelaboração do que é ser negro.

Nascia ali, também, o samba reggae, cuja criação costuma ser atribuída, quase que

consensualmente, a Neguinho do Samba, artífice do hibridismo de práticas culturais distintas,

mas de origem semelhante, que deu origem ao novo gênero musical, síntese sonora do

Atlântico negro enunciado por Paul Gilroy (2012), oceano simbólico que, antes de separar,

une os herdeiros da diáspora africana.

Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso simbólico

que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm

produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um

elemento central e mesmo fundamental. (GILROY, 2012, p. 161)

O sucesso das canções das agremiações afrocarnavalescas logo chamaria a atenção da

indústria musical, sempre a procura de novos campeões de vendas. Nas palavras de Dantas:

Começa justamente aí, com o sucesso de “Faraó”, a trajetória do Olodum rumo a

uma visibilidade econômica que o tornaria raro no universo das ONGs. Em poucos

anos a organização iria se consolidar, crescer e diversificar as suas atividades, sem perder o seu objetivo maior: a valorização da cultura negra e a integração

socioeconômica da comunidade do Maciel/Pelourinho (DANTAS, 1994, p. 49)

Pela primeira vez percebeu-se que aquelas canções, criadas com o intuito de embalar o

desfile dos blocos, orientadas pelos temas escolhidos pelas agremiações, poderiam romper as

fronteiras de seus cordões e ganhar o interesse de um público mais amplo. O feito de “Faraó”

seria repetido logo no ano seguinte, com a canção “Madagascar Olodum”, dessa vez versando

sobre a história e cultura malgaxe.

176 (DIOP, 1983)

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Se “Faraó” foi importante por apresentar uma possibilidade, “Madagascar Olodum”

foi essencial para torná-la realidade. Era fato que os blocos afro poderiam criar um produto

interessante para o mercado, diferente do que vinha produzindo Luiz Caldas, a grande

novidade baiana da época, que com seu “Fricote” vendia alguns milhões de discos.

A música dos blocos afro tinha potencial e despertou interesse da indústria

fonográfica. Entretanto, a roupagem “bloco afro” ainda não era plenamente aceita. Não

demorou para que as gravadoras começassem a investir em bandas que pudessem interpretar

canções dos blocos afro, em um formato mais comercial, de consumo mais fácil no restante

do país, sobretudo na região Sudeste. Nesse movimento, canções de blocos como Olodum, Ilê

Aiyê e Muzenza passaram a fazer parte do repertório de artistas como Banda Reflexu's e

Banda Mel. Sobre isso, pontua Sandro Teles:

Daí começa a Axé Music. Essas bandas começaram a frequentar os ensaios, viram

que a musica tinha qualidade e começaram a tocar as músicas desses blocos. Banda

Reflexu's, Banda Mel, Cheiro de Amor. Aí essas músicas, tocadas por essas bandas,

começam a tocar na rádio. Esses blocos não tocavam, mas as músicas dessas bandas

começam a tocar e aí se deu o nome de “axé” a essas músicas. Aí começa a questão

do “Axé Music”. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de 2015)

O fato das canções dos blocos afro tocarem nas rádios de Salvador e do restante do

país, quando interpretadas por artistas outros, deixa claro que a questão não era a qualidade da

produção musical e sim quem as estava apresentando. Quando “Madagascar Olodum” se

torna um sucesso nacional, quem interpreta a canção no extinto “Globo de Ouro”, como a

primeira colocada nas paradas nacionais, é a Banda Reflexu’s e não o Olodum.

Quando Daniela Mercury, considerada a “rainha da Axé Music” desponta

nacionalmente, nos idos de 1991/1992, boa parte de seu repertório era composto por canções

de blocos afro, ou de compositores ligados a tais agremiações. Em seu primeiro disco,

“Daniela Mercury”, de 1991, temos, por exemplo, uma canção (“Menino do Pelô”), que conta

com participação do Olodum, e outra (“Todo Reggae”), composta por Rey Zulu, autor de

“Madagascar Olodum” do bloco Olodum e “Uma História de Ifá”, do bloco Araketu. A

principal canção do álbum, “Swing da Cor”, foi composta por Luciano Gomes (autor de

“Faraó”) para o bloco afro Muzenza. Já em “O Canto da Cidade”, de 1992, temos mais uma

canção de Rey Zulu (“Batuque”), dessa vez em parceria com Genivaldo Evangelista, e “O

Mais Belo dos Belos”, de Guiguio, Valter Farias e Adailton Poesia, composta para o bloco Ilê

Aiyê.

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Se esse, digamos, empréstimo ajudou a alavancar carreiras de artistas outros que não

os dos próprios blocos, deu certa visibilidade as agremiações. Sobre tal situação, declarou

Sandro Teles:

[A exposição] pode ser entendida em um meio termo. Beneficiou muito,

principalmente os compositores dos blocos afro. Eles ganharam muito dinheiro com

isso. Não digo nem o bloco, mas se você perguntar para um compositor de bloco

afro o que ele acha, eles vão falar que era a melhor das maravilhas, porque ele

ganhava muito dinheiro. Eles não achavam que, com a música que eles faziam pro

bloco afro, iam ganhar tanto dinheiro. Eles só faziam visando o prêmio do festival.

Muita música que nem era campeã, mas era música boa, foi gravada por essas

bandas. Até hoje vivem muito bem com esse dinheiro de direitos autorais. Pra gente,

pro bloco afro, ele escondeu, mas também mostrou muito. Muitas pessoas passaram

a conhecer o Ilê Aiyê fora do Brasil, através das músicas de Daniela Mercury. Antes não conhecia. Olodum hoje já tem um nome, graças a sua parceria com Paul Simon,

com Michael Jackson. Mas podemos dizer que isso também teve influência, porque

antes da Banda Mel gravar “Faraó”, o Olodum tava só começando. Pensar que

depois que a Banda Mel cantou “Faraó” que o Olodum conseguiu ser conhecido. A

partir desse conhecimento, veio as parcerias com esses artistas. Na década de 90,

início de 2000, a gente viajou muito, fazendo shows fora, por causa dessa saída do

nosso nome através de Axé Music. Mas a gente tem também essa visão de que a

gente preferia ser conhecido através daquilo que a gente estava fazendo naquele

momento, não que a pessoa vinha aqui, aprendia e ia pra fora, levar seu nome e aí

você passa a ser conhecido por causa daquela pessoa. A ideia era que fôssemos

conhecidos através do trabalho que estávamos fazendo. Mas não foi desse jeito.

(Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de 2015)

O sentimento dúbio apresentado por Sandro deixa claro que, se por um lado tal

exposição via outros artistas foi boa para apresentar os blocos a um público mais amplo,

acabou por esconder sua própria produção musical. Já Lazinho observa a questão por outro

ângulo, e ressalta a cooperação de alguns desses artistas com as entidades afrocarnavalescas:

Eu posso lhe dizer, eu não vejo ninguém melhor do que Daniela Mercury. Porque

sempre que as entidades afros precisaram dela, ela ajudou. Outra pessoa, até pelo

engajamento, chama-se Margareth Menezes. Essa Margareth Menezes e Daniela são

as únicas pessoas que, não importa aonde estejam, sempre que as entidades afro

precisam, elas vão e ajudam. “Ah, Daniela faz isso porque é bom pra ela”. Eu acho que não, porque desde que ela surgiu, ela surgiu cantando bloco afro. Quando ela foi

lançada, ela veio pro Pelourinho. De lá pra cá, eu nunca ouvi ela dizer que não.

Claro que pra ela ir nos lugares, tem que oferecer uma estrutura, porque ela é

celebridade. Nós temos que reconhecer isso. Ela é celebridade. As pessoas vão pra

cima. Querem ver. Tocar. No negócio do “Pôr-do-Som”, tava lá, sentada no meio da

gente. Dando opinião. Aceitando opinião. Você vê que aonde ela vai, faz questão

sempre que esteja Olodum, Ilê e a Didá. Por que é o Ilê, Olodum e a Didá? Porque é

o que ela se identifica. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Mesmo como coadjuvantes de uma indústria que se alicerçou sobre sua produção, os

blocos acabaram alcançando sucesso comercial. Tal êxito com que novas possibilidades de

atuação fossem postas as organizações. Parafraseando Fernandes (2008), podemos dizer que

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os blocos poliram sua rusticidade e amealharam um forte desejo de ir mais longe. A

transformação do Olodum de um bloco de carnaval para aquilo que Dantas chamou de

“holding cultural”, é exemplar nesse sentido.

Tendo sido criado em 1979, como bloco afro, foi reestruturado em 1983,

transformando-se no Grupo Cultural Olodum, preocupado não só com o desfile de

carnaval, mas com a pesquisa histórica das raízes da cultura negra e também com a

perspectiva de viabilizar o incremento da educação na comunidade do Maciel

Pelourinho. Essa mudança marca, além da ampliação de funções e objetivos da

organização, a implementação de uma estratégia para os dez anos seguintes, chegando ao final desse período, em 1992, como uma verdadeira “holding” cultural,

envolvendo o Grupo Cultural Olodum – empresa-mãe, sem fins lucrativos – a

Fundação Olodum, destinada a pesquisa, a educação e ao intercâmbio com outros

países, e o Carnaval Olodum, que inclui as atividades do Bloco e da Banda, além

dos discos e shows. (DANTAS, 1994, p. 15)

Para compreendermos um pouco melhor a magnitude do processo colocado em prática

pelo Olodum, recrio aquele que era o organograma da agremiação em 1994, descrito

originalmente por Dantas.

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Figura 11. Organograma Grupo Cultural Olodum

Fonte: DANTAS, 1994, p.119, reelaborado pelo autor.

GRUPO CULTURAL OLODUM

FUNDAÇÃO OLODUM

PROJETOS

RUFAR DOS TAMBORES

INTERCÂMBIO INTERNACIONAL

S.O.S RACISMO

DIREITOS HUMANOS

MULHER NEGRA

ESCOLA CRIATIVA OLODUM

BANDA MIRIM

BANDO DE TEATRO

CIA DE DANÇA

CURSOS AFRO

BLOCO OLODUM

FÁBRICA DE CARNAVAL

BOUTIQUE OLODUM CARNAVAL OLODUM

BLOCO OLODUM

BANDA

OLODUM

DISCOS

OLODUM

SHOWS

OLODUM

BANCO DE DADOS OLODUM

JORNAL

OLODUM

BIBLIOTECA MALCOLM X

FM/TV

OLODUM

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Quando pensamos em um bloco de carnaval, dificilmente imaginamos que ele possa

ter a estrutura organizacional apresentada acima. E, em se tratando de um bloco carnavalesco

ordinário, dificilmente tal organização se apresentará na realidade. Tal desenho institucional é

possível e factível aos blocos afro de Salvador, como no caso do Olodum, justamente por não

serem agremiações voltadas apenas ao carnaval em si, como vem sendo dito ao longo deste

texto. Se inicialmente o carnaval era um fim, com as transformações ocorridas em tais

entidades, a folia momesca passou a ser meio. Meio que confere a cultura, ao mesmo tempo,

valor econômico e valor simbólico. Recorrendo mais uma vez as palavras de Dantas:

O Olodum começa a servir como modelo para muitas dessas ONGs, devido a sua

radical ambiguidade: ONG que também é empresa, arte que também é negócio. E

acaba funcionando como um farol para essas organizações associativas que estão

hoje buscando mais autonomia e independência. (DANTAS, 1994, p. 105)

A autonomia e independência a que se refere Dantas dizem respeito basicamente a

uma autossuficiência econômica que, por sua vez, garantiria uma maior liberdade de ação.

Liberdade, inclusive, para posicionar-se criticamente frente aos governos e projetos de poder

postos. Nas palavras de João Jorge, citado por Dantas:

(...) nós, a partir de 1983 fizemos oposição ao Governo Federal, ao Governo

Estadual, ao Governo Municipal. Então, ficamos a margem de tudo. E quebramos

com um conceito de que entidades do nosso tipo deveriam ser montaria, cavalo para

políticos com fins eleitorais. (DANTAS, 1994, p. 86)

O posicionamento crítico, e a recusa a uma atuação político-partidária, não significava,

porém, absterem-se de uma atuação mais próxima as instituições públicas. Como novamente

diz João Jorge, em trecho também citado por Dantas:

Nós não fazemos política partidária. No período da Constituinte Estadual, em

1988/89, nós fizemos um lobby com deputados de todos os partidos para introduzir

um capítulo sobre o negro. Conseguimos aprovar os nossos artigos contra várias

manifestações de racismo. Na preparação da Lei Orgânica Municipal, agimos da mesma forma. E costumamos evitar apoiar ou comprometer a organização com um

candidato em época de eleições. (DANTAS, 1994, p. 87)

Se retomarmos a classificação apresentada por Gohn no início dessa seção, que

distingue movimentos sociais e entidades articuladas pelo chamado Terceiro Setor, veremos

que os blocos afro conseguem transitar com notável facilidade entre ambas as possibilidades

de ação coletiva e que não há contradições nisso. As novas configurações sociais acabaram

por flexibilizar as definições conceituais estabelecidas a respeito dos movimentos sociais e

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ONGs, sobretudo pela pluralidade de modos de organização permitidas aos mesmos. O

próprio trabalho de Dantas demonstra como a configuração do Olodum desafia alguns

pressupostos entendidos como básicos a organização das ONGs. Para o autor, tratar-se ia de

uma entidade fundada sobre a contradição.

Para além dessa diversidade de possíveis configurações de movimentos e

organizações, as próprias intersecções existentes entre ambos tornam mais complexa a

definição de fronteiras para muitas das entidades surgidas no final do Século XX. Não raras

passam a ser as ONGS constituintes de movimentos sociais, assim como cada vez mais

corriqueiros são os movimentos constituídos por variadas ONGs. Como dado relevante nesse

sentido, em documentação apresentada pelo Olodum ao Governo Federal para a tentativa de

permissão de captação de recursos, o mesmo é descrito como uma organização não

governamental do movimento negro. Em material cedido pelo bloco para essa pesquisa,

intitulado “O que é o Olodum”, temos a seguinte definição:

O Olodum é uma Organização não Governamental (ONG) do movimento negro

brasileiro que desenvolve ações de combate à discriminação racial, estimula a

autoestima e o orgulho dos afro-brasileiros, defende e luta para assegurar os direitos

civis e humanos das pessoas marginalizadas, na Bahia e no Brasil através de políticas públicas de ações afirmativas como as de acesso as universidades para os

afro brasileiros. (O que é o Olodum, 2012, p.3)

Cabe aqui uma breve citação retirada do “Boletim Olodum”, publicado em outubro de

1992: “Para entender o Olodum é preciso ouvir o seu canto. É preciso ver o nosso povo

dançar, cantar, fazer sucesso. Mas é preciso entender a mensagem, a luta.” (OLODUM, 1992,

p. 1)

Essa maleabilidade permite que os blocos afro se adaptem com maior facilidade as

adversidades colocadas cotidianamente em cena pela realidade. Ao invés de se aterem a

formas acabadas, os blocos são um constante convite à inovação, recriando-se a todo o

momento.

Ainda buscando um enquadramento mais adequado aos blocos, voltamos à Touraine

(1997), e sua classificação para os movimentos sociais, os quais distingue como históricos,

societais e culturais. Para fins deste texto, proponho que nos concentremos no terceiro tipo.

Para Touraine, movimentos culturais são, antes de tudo, movimentos de afirmação,

capazes de construir uma identificação cujo eixo pode ser uma etnia, sexo, trajetória e etc. Ao

criar um sistema de pertencimento, acabam por receber a adesão de indivíduos que se

reconhecem como parte do grupo e são assim reconhecidos por seus pares. Gohn (2011)

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afirma que o movimento negro passou de um movimento em que predominavam

manifestações culturais para ser um movimento, sobretudo, de construção de identidade.

Concordamos com Melucci (1989) quando este afirma que a participação individual

em uma ação coletiva não é motivada somente por cálculos econômicos de custos e

benefícios, mas, também, pela busca de uma identificação que seja capaz de estabelecer laços

de solidariedade entre estes, o que faz da participação no movimento um objetivo em si

mesmo. Nesse tocante, quando indivíduos encontram similaridades em outros, com as quais

se identificam, passam a estabelecer contrapontos com os quais essa identificação não é

possível. Identidade e alteridade andando juntas, como pares indissociáveis. Sendo assim,

nesse processo, o que tais movimentos buscam é, para além de um reconhecimento da

igualdade, um respeito à possibilidade de ser diferente.

O autor apresenta tais ideias em uma breve passagem sobre o movimento de mulheres,

em exemplo que pode ser perfeitamente transposto ao movimento negro.

Ser reconhecida como uma mulher é afirmar uma experiência diferente, uma

percepção diferente da realidade, enraizada em "outro" corpo, numa maneira

específica de se relacionar com a pessoa. O movimento de mulheres, quando fala de

diferença, fala para o conjunto da sociedade e não apenas para as mulheres. Para as

sociedades que desenvolvem uma pressão crescente pela conformidade, esta

reivindicação tem efeitos disruptivos, desafia a lógica do sistema e tem uma

orientação antagonista. O resultado político do movimento de mulheres em termos

de igualdade permite que a diferença seja reconhecida. Mas o "êxito" no campo

político enfraquece o movimento, aumenta sua segmentação, leva alguns grupos a

profissionalização e a burocratização, e outros a um sectarismo disruptivo. A

mensagem da diferença, entretanto, não morre. Torna-se um objetivo cultural e político que mobiliza muitos outros grupos. (MELUCCI, 1989, p. 63)

Quando os blocos afro de Salvador começaram a ter voz e a poder expressar sua

percepção da realidade, de como era o mundo visto de seu lugar, desafiaram a lógica do

sistema, como diz Melucci. Suas reivindicações escancararam uma sociedade em que, a

despeito da pretensão de ser uma democracia racial, tem em si mesma o racismo como, ao

mesmo tempo, estrutural e estruturante.

Seriam essas reivindicações dos blocos capazes de apresentar elementos suficientes

para o estabelecimento de laços de solidariedade entre os indivíduos que os constituem? Se

observarmos as considerações feitas por Scherer-Warren (2008) em seu ensaio sobre as redes

de movimentos sociais na América Latina, veremos que uma das estratégias usuais de atuação

de tais movimentos é a transformação de demandas particulares em ideários políticos mais

amplos, sem que se percam em um universalismo no qual é impossível delimitar fronteiras e

erigir referências. Como afirma a autora:

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As questões da solidariedade entre sujeitos coletivos, do reconhecimento a partir ou

apesar de suas diferenças e a abertura ao pluralismo democrático são fundamentais

para que ocorra a transformação das demandas particulares em pautas políticas que

dizem respeito a um conjunto de exclusões sociais que operam numa mesma ordem

ou lógica sistêmica. É a partir de uma nova lógica associativa que a diversidade dos

movimentos sociais latino-americanos vem se articulando em redes políticas

(SCHERER-WARREN, 2008, p. 509)

Quando os blocos passam a se articular enquanto um conjunto mais ou menos coeso, o

que se observa é uma aliança pautada em histórias de vida semelhantes, mas suficientemente

distintas para que não sejam perdidas as particularidades de cada entidade. Os episódios

cotidianos de desrespeito, preconceito, violência e negação de direitos vividos por integrantes

do Ilê Aiyê encontram abrigo junto aos sofrido por integrantes do Olodum, do Malê Debalê e

dos demais blocos afro soteropolitanos. Não apenas as experiências ancestrais, mas,

sobretudo, o caminhar no presente oferece elementos mais do que suficientes para que se

estabeleça uma identificação entre agremiações e integrantes, sem que cada uma abra mão do

arranjo que a torna única. É a partir desse reconhecimento como iguais que pautas são

estabelecidas e lutas passam a ser travadas.

Diante dessa perspectiva, a primeira vista pareceu promissor caminhar pela estrada da

Teoria dos Novos Movimentos Sociais, segundo a qual, ao longo do século XX, novos

agentes e temáticas conduziriam as mobilizações coletivas. Sua diferença em relação a seus

predecessores é descrita por Ângela Alonso, que afirma:

As novas mobilizações não teriam uma base social demarcada. Seus atores não se

definiriam mais por uma atividade, o trabalho, mas por formas de vida. Os “novos

sujeitos” não seriam, então, classes, mas grupos marginais em relação aos padrões

de normalidade sociocultural. Isto é, poderiam vir de todas as minorias excluídas e

teriam em comum uma atitude de oposição. (ALONSO, 2009, p. 60).

Os referidos “novos” movimentos sociais seriam responsáveis por levar adiante

demandas simbólicas atreladas ao reconhecimento de identidades. Teriam por característica a

ação direta, não hierárquica, desburocratizada e descentralizada. Afastar-se-iam ainda da

influência da chamada indústria cultural e dos partidos políticos, buscando a preservação de

sua autonomia frente ao Estado e mercado. E é justamente diante de tais características que os

blocos afro passam a não caber mais no conceito proposto.

Ao invés de se limitarem ao ativismo no plano societário, os blocos afro mantêm

relação, por vezes estreita, tanto com a esfera da política-institucional e com o Estado, quanto

com o mercado. Por serem, ao mesmo tempo, partícipes de movimentos político-culturais,

empresas e organizações não governamentais, aos blocos é possível uma movimentação

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natural entre tais instâncias, o que abre espaço para que aqueles os quais a eles aderem, o

façam tanto com base em uma ação estratégica que vislumbre o controle de bens e recursos

quanto à formação de laços de solidariedade e identidades coletivas. Como afirma Fischer:

“são organizações que contracenam umas com as outras, com o poder público e com outras

instâncias de poder, em um jogo de forças antagônicas que abrem ao mesmo tempo, espaços

de conflitos e possibilidades de ação” (FISCHER, DANTAS, et al., 1993, p. 90).

Sobre desburocratização e descentralização, basta observarmos a forma como as

agremiações afrocarnavalescas estão organizadas para percebermos que reside aí mais uma

questão no enquadramento das mesmas no âmbito dos novos movimentos sociais. Há, no

interior dos blocos afro uma organização extremamente hierárquica, que concede aos seus

membros poucas oportunidades para ascensão. No topo dessas estruturas piramidais, cujos

patamares são compostos por diretores, secretários e coordenadores, existem as figuras dos

presidentes, alguns dos quais ocupam o cargo desde a fundação da entidade, décadas atrás. A

centralidade de tais personagens acaba por personalizar toda a entidade. Não se fala em Ilê

Aiyê sem se falar em Vovô, por exemplo. Antônio Carlos para sempre será o “Vovô do Ilê”,

assim como dificilmente o Ilê Aiyê deixará de ser o “Ilê de Vovô”. A esse respeito tivemos

algumas declarações interessantes, durante a realização do trabalho de campo. A começar

pelo próprio Vovô:

Aqui na Bahia é muito esse negócio. Você fala em Olodum, fala em João Jorge, em

Ilê, fala em Vovô, Camaleão, fala em Adolfo Neri, fala no Cheiro de Amor, fala no

Windsor. As pessoas identificam. No inicio do Ilê, eu, Apolônio, ninguém queria dar

entrevista. Eu era chamado de nagô, porque falava embolado. Mas alguém tinha que

ir. Comecei a fazes essas coisas, exercitar. Gravar comercial, mensagem de não sei o

quê. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

A visão exposta por Tita Lopes é um pouco mais ácida do que a de Vovô. A começar

pela sua perspectiva dos primeiros anos do Ilê Aiyê e da ascensão de Vovô como líder

máximo da agremiação:

Ficou acertado que um ano seria Vovô presidente, no outro seria Apolônio. De ano

em ano ia invertendo. No primeiro ano funcionou com Vovô. No segundo, com

Apolônio. No terceiro, com Vovô. No quarto, Vovô não abriu mais mão da direção do Ilê. Aquilo mexeu muito com algumas pessoas. Até hoje é uma capitania

hereditária. É ele e ele. A partir dali eu também percebi que não era bem aquilo que

eu tava querendo. Apolônio fundou outro bloco, me chamou, mas eu não quis.

Orunmilá. Ele tava ganhando cancha, mas não era o que ele queria. Era pra ser dele

a parte que cabia a ele e que houve esse tipo de manobra, que vem acontecendo

inúmeras manobras, não só nas instituições negras. (Tita Lopes, entrevista realizada

em novembro de 2014)

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E complementa, estendendo a outras agremiações as mesmas considerações feitas a

respeito do Ilê Aiyê:

Aqui no Olodum não é diferente. Aqui se você acompanhar o processo de membros

presidentes, você vai ver que hoje basicamente tá demorando muito de mudar. João

Jorge já tá por muito tempo presidente do Olodum. Ele saiu um período, botou o

filho e voltou de novo. As comunidades negras nossas ainda estão vivendo como em África. O rei vai ser ele, a família, o filho, sei lá o quê. Essa questão democrática,

que a maioria das instituições não governamentais ainda atrela-se. Pra você ser

presidente, no meu caso, ser presidente do Olodum, eu tenho que criar uma chapa,

fazer isso e aquilo, mas eu sei das possibilidades de eu ser ou não ser. Eu acho que

tem que ter alguém que tenha o perfil, a pegada, mas também tem que se ver a

possibilidade de formar quadros e que não seja só os meus. Continuamos pecando

nessa questão. Não é diferente de nenhum bloco afro. Bloco afro e afoxé,

infelizmente, vive essa obsessão de poder, de manter-se no poder a vida inteira..

(Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

Como não fora citado nas entrevistas, vale mencionar que o Malê Debalê tem hoje

como presidente Claudio Araújo, filho de Joselio Araújo, fundador e ex-presidente da

agremiação. Apesar de solicitado, não foi possível ter acesso à listagem de presidentes das

entidades, o que dificulta e limita uma análise mais acurada sobre o tema. Entretanto, a fala

dos entrevistados e o atual quadro político dos blocos, permite entender que a alternância de

poder não é uma de suas características principais.

Tais agremiações desafiariam, ainda, a caracterização dos novos movimentos sociais

ao se burocratizarem, tomarem para si a responsabilidade pela prestação de serviços caros ao

Estado e, como já dito, se converterem em empresas.

5.2.BLOCOS AFRO E MERCADO

ESTOU NA AVENIDA, VENHAM VER PRA CONHECER

A relação próxima entre blocos afro, a esfera político-institucional e o mercado, se dá,

em larga medida, pela ausente autossuficiência financeira dos primeiros, que buscam no

relacionamento com os últimos a possibilidade de se manterem, abdicando, para tanto, de boa

parcela de sua autonomia política efetiva.

Dantas (1994) apresentava como inovação da experiência Olodum, no contexto das

ONGs, justamente a possibilidade de financiar com recursos próprios os projetos nascidos nas

ladeiras do Pelourinho, no esquinado casarão do Maciel. De acordo com Fischer:

O Grupo Cultural Olodum é, assim, uma ONG que se fragmentou em subestruturas

empresariais, mas de um modo muito particular. Nessa empresa, há um só tempo, o

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capital é a cultura e é esta cultura que gera acumulação de capital. O capital

acumulado é em parte poupado para futura distribuição e em parte é investido na

reprodução cultural, reafirmando a cultura da comunidade. Outra parte, em forma de

lucro, é distribuída, aumentando a renda local, gerando maior capacidade de

produção e autonomia cultural. Ao fim de cada ciclo produtivo, o Olodum consegue

um produto paralelo: a integração social da comunidade negra do Maciel/Pelourinho

com a cidade de Salvador (FISCHER, DANTAS, et al., 1993, p. 99).

O que fora dito por Dantas e Fischer estava de acordo com o que observavam naquele

momento, início da década de 1990. Talvez, mesmo se arriscassem um exercício de previsão

de futuro, os autores não pudessem especular o quão espinhoso seria o caminho do bloco nos

anos seguintes.

Enquanto produto, a música do Olodum vendeu muito, e bem, não só no Brasil, mas

também no exterior. Como nos lembra Godi: “a música dos blocos afro transitaria, triunfante,

do sucesso das multidões festivas das ruas para o sucesso vertiginoso das massas elétricas

com a gravação e o sucesso do primeiro disco do Olodum, a música popularmente conhecida

como Faraó na linha das mais ouvidas na Bahia e no Brasil” (GODI, 1997, p. 92)

Entre 1987, com a explosão de “Faraó”, até 1997, foram cerca de dez anos em que o

bloco se consolidou como um caso de sucesso comercial. Durante as entrevistas, variados

foram os relatos de apresentações do grupo em países da Europa, Estados Unidos e Japão. A

música do Olodum rodou o mundo e o produto Olodum ganhou prateleiras nos mais variados

mercados.

Capitalizado, o bloco investiu pesado na realização de projetos antigos, ao mesmo

tempo em que abriu as portas para novas propostas. Durante o período de pujança econômica

nasceram iniciativas como o Bando de Teatro Olodum177

, Edições Olodum, Escola Criativa

Olodum e Fábrica do Carnaval.

Olodum agora é marca de franquia – Folha de São Paulo, 19 de outubro de 1997178

Eles gravaram clipe com Michael Jackson, tocaram com Paul Simon, foram convidados

para fazer trilha sonora de filme de Spike Lee, excursionaram pelo mundo, montaram uma

verdadeira holding. Agora os integrantes do Olodum querem fazer barulho no terreno das franquias.

O grupo cultural baiano, que também é ONG (Organização Não-Governamental) e comanda uma

editora e uma escola, lançou seu projeto de franquia há um mês. As lojas da marca Planeta Olodum

venderão, além de CDs, uma linha própria com 60 produtos, que inclui roupas, cosméticos e

acessórios, todos com o logotipo e as cores oficiais do grupo (verde, amarelo e vermelho).

177 Para mais informações sobre o Bando de Teatro Olodum, ver Uzel (2003). 178 Disponível em www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/10/19/tudo/11.html. Acesso em 19 de fevereiro de 2017.

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O investimento inicial em uma loja franqueada fica em pelo menos R$ 20 mil.

"Planejamos abrir 40 franquias ainda este ano", afirma João Vianna, 56, diretor comercial da

Dynamic, gestora empresarial do grupo. A unidade piloto, de cerca de 55 m2, foi aberta em

setembro, no Pelourinho, centro histórico de Salvador (BA). "Estamos analisando mais de 60

pedidos vindos de todo o Brasil e também do exterior, como Argentina, Paraguai e Japão."

Para atingir locais tão diferentes, o Olodum aposta no prestígio de seu nome e na

"universalidade dos produtos"."Nossos itens não pertencem somente à linha afro, são polirraciais",

afirma Vianna.

As lojas franqueadas serão abastecidas com as confecções que saem de outro

empreendimento do grupo, a Fábrica de Carnaval Olodum, de Salvador, que só de camisetas fabrica

cerca de 25 mil unidades mensalmente. A produção dos outros itens da grife é terceirizada. Parte

dos cosméticos, por exemplo, é fabricada em Belo Horizonte (MG).

A franquia do Olodum está disponível em duas versões: loja convencional (entre 20 m2 e 25

m2) e quiosque (de no mínimo 4 m2). A Dynamic também estuda a adoção do sistema de master-

franquia, concedendo ao franqueado exclusividade de subfranquear a marca em sua área.

Ousadia com certo lastro de inocência de quem não via limites no que poderia ser

feito. No afã de abraçar o mundo, o Olodum descobriria que o mundo é maior do que seus

braços. Em sua entrevista, Tita Lopes fala sobre esse momento do Olodum:

No nosso caso nós não pensávamos em ganhar dinheiro. Não foi essa a finalidade da

criação dos blocos afro, da criação das instituições. Não é essa a finalidade, mas

quando a coisa ganha outros rumos, quando isso acontece numa instituição que foi

criada pra crescer, mas não com a velocidade que cresceu... Jamais a gente ia

adivinhar. O Olodum vai ser feito hoje, amanhã ele vai ter música... Nada disso. A

partir do momento que essa coisa acontece, você precisa ter cuidado na forma de

tratar disso e na forma de repartir isso. Nós tivemos uma quantidade enorme de

diretores. Tivemos 15 executivos, 30 administrativos. Nenhuma sociedade sobrevive

com esse povo todo tendo que ganhar, porque não é pra ganhar nada. Na verdade nos trabalhamos como ONGs, esse tipo de instituição. Não vamos ganhar. O que nos

realiza é prestar uma atividade, mas se essa ONG tem um rendimento diferenciado

já deixa de ser só a ONG. Passa a ser a ONG e comércio. Porque você vai ficar

alheio à empresa e vai ficar só na ONG? O tempo todo carregando pedra. A partir do

momento que essa coisa ganha outro rumo, o que o Olodum fez? Enxugou. Tinha

que enxugar. Não tinha como manter. Desses 15 diretores executivos, eu te digo, 6

trabalhavam. O resto fazia de conta. Não discutiam. Chegava pra discutir e você

ficava em cima do muro, pra não sair do cargo. Às vezes tinha uma desavença, que é

natural dentro de uma instituição, em relação à tomada de decisões com pés no chão.

Porque João Jorge é um sonhador, útil em qualquer empresa, porque ele está o

tempo todo sonhando, mas precisa ter a razão. Precisa ter alguém pra dizer “isso dá e

isso não dá. É bonito, é maravilhoso, mas não dá, agora não dá”. Tinha muito isso e de repente as pessoas que faziam parte do processo, que poderiam votar não,

ficavam em cima do muro. E às vezes decisões como essas, tomadas dessa forma,

degringolaram um pouco a questão administrativa do grupo, a caminhada do grupo

em si. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

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O abandonado casarão que serviu de lar para o anexo da Escola Criativa - Mário

Gusmão, com o qual me deparei durante uma das muitas andanças pelas ladeiras do

Pelourinho, é um testemunho de que os tempos de bonança ficaram para trás e exemplar dos

devaneios decisórios mencionados por Tita Lopes.

Atropelados pela incessante necessidade de reinvenção do mercado musical, na eterna

busca pelo novo que será o próximo grande sucesso, o Olodum rapidamente perdeu relevância

comercial. Seus discos passaram a não vender mais como outrora. Suas apresentações já não

reúnem tantas pessoas como antes.

Sem recursos suficientes para tocar de maneira independente todos os seus projetos,

coube ao bloco à busca por parceiros e foi justamente na esfera estatal que encontrou alguns

dos mais importantes, como Petrobrás, Coelba e Caixa Econômica Federal, ou ainda o

programa Carnaval Ouro Negro.

Hoje já temos alguns parceiros que são interessantes. Que colaboram muito com o

carnaval. Nós temos um parceiro que já vem a alguns anos, que é a Petrobrás, temos

a Caixa Econômica, temos a Coelba, através de cursos profissionalizantes. Tem

melhorado bastante. O Ouro Negro. Claro que ainda não é o que nós pretendemos,

mas já vem melhorando. (Josélio Araújo, entrevistado em novembro de 2015)

E aí reside uma diferença fundamental. Enquanto o programa Carnaval Ouro Negro é

uma política de Estado, cujo prosseguimento é assegurado, seja qual for o ocupante do

Palácio Rio Branco, para parcerias como as estabelecidas com a Petrobrás ou Coelba, cada

novo ano representa uma nova busca por recursos.

O Malê vive dos projetos que elabora para o carnaval e fim de papo. Ai o Malê diz:

“oh, trio elétrico, 100 mil”. Ai o governo manda o dinheiro e paga o carro. Tem uns

programas específicos. Todos esses recursos que chegam pro Malê são de programas

específicos. Um que hoje o Malê tem, para além disso, desses programas tipo Ouro

Negro, é uma captação de recurso que quem faz hoje é a Liga dos Blocos Afro. Existe o Fórum de Entidades Negras e existe a Liga dos Blocos Afro, que foi

construída a partir do Afródromo, de Carlinhos Brown. Nessa liga tem Timbalada,

Malê, tem o Ilê, tem o Gandhy. E aí existe uma empresa de Brown, “Pequenos

Notáveis”, que é a empresa gerenciadora. Ela que capta os recursos e distribui pras

entidades, pros projetos que as entidades venham a apresentar. Mas dinheiro assim,

patrocínio não. Patrocínio que digo assim, a empresa chega e diz: “tome o dinheiro”.

A Petrobrás não chega a ser um patrocínio. O que entendo de patrocínio é quando

alguém chega e diz “tome 100 mil e faça seu carnaval”. Outra coisa é: “me de seu

projeto, quanto é?”. É assim na Caixa Econômica. Eles dão dinheiro pra o seu

projeto. Você não pega no dinheiro fisicamente. (Eduardo Santana, entrevista em

abril de 2014)

Em outras palavras, para obter recursos junto a empresas públicas, os blocos precisam

apresentar projetos, que podem ou não ser aprovados pelas instituições. Conhecendo a política

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nacional, sabemos que se indispor com o governo da situação pode ocasionar represálias,

dentre as quais a negativa nesse tipo de financiamento.

O próprio Secretário de Cultura da Bahia, Jorge Portugal, entende que a verba de cerca

de 5,3 milhões de reais, disponibilizada em 2017 e dividida entre as entidades partícipes do

Carnaval Ouro Negro é insuficiente para a cobertura de todas as despesas das agremiações,

incentivando a captação de financiamento privado por parte dos blocos179

.

Sendo assim, como tocar as entidades sem que seja ameaçada sua autonomia? Como

levar a cabo projetos que podem ser conflitantes com o governo posto e com a estrutura a qual

esse pertence? Talvez, em um cenário ideal, o engajamento dos membros das entidades

pudesse ser um elemento garantidor suficiente. Entretanto sobre tal participação, vejamos as

falas de Mãe Hildelice e Givanildo Neris, a começar pela iyalorixá do Ilê Axé Jitolu:

Eu vejo aqui a luta do Ilê. Quarenta e dois anos de muita luta, muito esforço pra

botar um bloco na rua. Você precisa de patrocínio, de dinheiro. O dinheiro do

associado não dá pra tudo não, porque você tem que pagar caminhão, cordeiro, os

cantores, pessoas que dançam, os meninos que tocam. Todo mundo é pago. A

pessoa que dirige. As pessoas que fazem o serviço aqui, que entregam fantasia. Tudo

precisa ser pago. (Hildelice, entrevista realizada em novembro de 2014)

Se o valor pago pelos associados não é suficiente para arcar com todas as despesas

relacionadas ao carnaval do bloco, talvez uma atuação voluntária pudesse ser uma solução.

Sobre essa possibilidade, vejamos o que diz Givanildo:

Não tem dinheiro pra pagar tudo. Ou tem dinheiro pra pagar dançarino no carnaval,

ou tem dinheiro pra pagar costureira. Ou tem para pagar as pessoas a me ajudarem a

fazer as roupas, ou tem dinheiro pra pagar dançarino. Porque hoje em dia ninguém

mais sai por amor. Todos os dançarinos saem por causa do dinheiro. Ninguém mais

sai por amor não. Todos saem pelo dinheiro. (Givanildo, entrevista realizada em

abril de 2014)

A julgar pelas conversas e entrevistas realizadas com outros componentes dos três

blocos, não creio que possamos entender a declaração de Givanildo como representação

fidedigna de todas as relações estabelecidas entre foliões e blocos. Entretanto, fica claro tanto

na fala do dançarino quanto na de Mãe Hildelice, que o componente mercantil é real e

fundamental para o bom andamento do carnaval das agremiações e demais ações por elas

realizadas.

179 Disponível em http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/governo-vai-incentivar-blocos-afro-a-captarem-

patrocinio-privado/. Acessado em 09 de outubro de 2017.

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Nessa contínua especulação de caminhos possíveis para a independência dos blocos

em relação a patrocinadores e mecenas, podemos partir para uma alternativa que chamo de

engajamento comunitário.

Olodum, Malê Debalê e Ilê Aiyê possuem estreita vinculação com seus territórios de

origem. Nascidos no Pelourinho, Itapuã e Liberdade, respectivamente, não se cansam de

anunciar tal filiação, de maneira sempre positiva, carregada de orgulho.

O Malê pode bater no peito e dizer que tem orgulho de ser itapuanzeiro. Essa coisa

de orgulho de ser itapuanzeiro é uma coisa de recordar o nosso nascedouro. O Malê

não precisaria assumir essa bandeira, mas a questão é uma necessidade orgânica de se declarar itapuanzeiro. Nasceu em Itapuã é itapuanzeiro. Ser de Itapuã é muito

bom. (Miguel Archanjo, entrevista realizada em novembro de 2014)

O mesmo aparece na entrevista concedida por Sandro Teles:

É como se o Ilê Aiyê e o Curuzu fossem parte de um todo, mesmo. A gente tem essa

ideia muito incutida na gente, de que Curuzu é nossa casa. Nós somos o Curuzu. A

gente tem essa ideia de pertencimento. Isso é do histórico mesmo, dos moradores, dos fundadores. Vovô e Apolônio serem crianças nascidas e criadas aqui no Curuzu,

na comunidade dos mais velhos. Terreiro Ilê Axé Jitolu tá aqui dentro do Curuzu, de

ser uma entidade criada dentro desse terreiro. Isso vem do início do bloco mesmo,

essa ideia de pertencimento. Eu falo muito que, mesmo que eu ganhe na mega-sena,

eu não saio daqui por nada. Porque a gente tem esse amor pelo nosso bairro. É um

amor que faz com que a gente se torne parte do todo. (Sandro Teles, entrevista

realizada em novembro de 2014)

Sentimento semelhante é cantado e decantado em canções de todos os blocos. Nelas é

possível ouvir sobre o “Olodum do Pelô” ou o “Ilê, o charme da Liberdade”. Sempre que

possível, tais filiações são evocadas.

Diante de tais obras e discursos, a sensação que tinha, ao iniciar esse trabalho, era de

que blocos e comunidades possuíam uma relação umbilical, sendo a localidade a progenitora

da agremiação e, por extensão, bloco e moradores fariam parte de uma mesma família. Em

sua entrevista, Josélio reforçou minha intuição inicial:

Malê é comunidade. Se você olhar esse espaço aqui nosso, a comunidade ta sempre

aqui, fazendo festa, aniversário, batizado, chá de bebe, casamento, 60 anos. Viver

um lugar comum com a comunidade. Eu traduzo Malê Debalê como comunidade e pra gente comunidade é estilo de vida. A gente tem a comunidade como símbolo.

Aqui é uma comunidade independente de classe, cor, religião, poder aquisitivo.

Aqui é um lugar comum. Todos se sentem bem, todos são abraçados, se sentem em

casa. Com esse aspecto familiar a gente conseguiu viver 36 anos (Josélio Araújo,

entrevista realizada em abril de 2014)

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Diante disso, um possível engajamento comunitário seria algo presumível. Pessoas que

viram os blocos nascer e que agora estariam dispostas a retribuir parte do que fora feito pelas

entidades para a comunidade. Como declara Edmilson:

O Ilê Aiyê pra Liberdade significa um marco. Representa pra Liberdade uma

identidade, uma relação de identidade que é fortíssima. Ele representa também para

a Liberdade um elemento que pode ser uma mola propulsora, pra fazer com que se

consiga as políticas públicas. De qualquer sorte, ao longo desses 40 anos, ele é um

parceiro que beneficia essa comunidade. Outro dia a gente tava discutindo isso. O

que o Ilê representa pra comunidade da Liberdade é uma vitrine deste bairro. Quando se olha pra o Ilê Aiyê, não se pode olhar só pro Ilê sem olhar para o bairro

da Liberdade, para a rua do Curuzu. Isso dá visibilidade e essa visibilidade é que é

norteadora de várias ações positivas. É claro que a gente tem um entendimento real,

sério, de que o Ilê não é tudo, mas o Ilê é um alicerce fortíssimo das melhorias de

condições pra essa comunidade. (Edmilson Lopes, entrevista realizada em novembro

de 2015).

Em variados momentos da história dos blocos, essa parceria da comunidade com as

entidades se fez sentir. Em sua entrevista, Lazinho conta sobre alguns personagens do

Pelourinho, fundamentais para a trajetória do Olodum:

Se o Olodum tinha alguma dificuldade, não era difícil a gente conseguir ajuda pra

que botasse o bloco na rua. Tinha vitrinista, artista plástico que ajudou muito no

visual. Tinha um cara mesmo chamado Zé Mancinho, que me perdoe eu não lembrar

o nome dele, porque a gente chama tanto pelo apelido... Zé Mancinho. E ele era na

época um dos grandes empresários de imprimir imagem em camisa. Esse Zé Mancinho muitas vezes pintou a roupa do Olodum de graça. Ele dizia: “não, depois

do carnaval paga...” E a gente nunca pagava. Tinha um negro também, chamado

Manoel Rocha. Ele era conhecido como Tinta Forte. Ele tinha uma gráfica e lá na

época os carnês de diversos blocos afro eram feitos lá. Tanto que ele não morreu

rico porque fazia muita coisa de graça. (Lazinho, entrevista realizada em abril de

2014)

Tendo em vista esses e outros episódios, ao longo do trabalho questionei os

entrevistados sobre como a comunidade se relaciona com os blocos. Afinal, como dito, talvez

residisse aí a chave para a autossuficiência das entidades. As respostas foram surpreendentes.

Vejamos algumas delas, a começar por Sandro Teles:

Depende muito do morador. A galera da antiga, de antes do Ilê, os moradores

antigos, eles têm um respeito muito grande pelo Ilê, porque eles sabem como era o

Curuzu. Eles viveram essa mudança. Sabem como era o bairro antes e sabem o que

se tornou depois. O que o Ilê trouxe pra comunidade, que é muito do que a gente

tem aqui hoje. Se o Ilê não tivesse aqui, a gente não ia ter. Tem uma galera nova,

que se mudou depois, que não tá nem aí. Não há o respeito devido, por mais que a gente faça pela comunidade. “O quê o Ilê fez por mim?” É como se não tivesse

aquela visão de coletividade, do que fez pelo coletivo. Eles têm a visão pessoal.

“Mudou o quê em minha vida?” Tem muitos moradores do entorno, novos, que

quando tem ensaio, por causa da zoada, eles reclamam muito, fazem queixas. A

gente teve que fazer um tratamento acústico pra que não incomodasse muito. Tem

uma galera que respeita e reconhece e outra que nem tanto. (Sandro Teles, entrevista

realizada em novembro de 2015)

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Sobre a mesma relação entre Liberdade/Ilê Aiyê, declara Edmilson:

A comunidade acha que o Ilê poderia fazer muito mais, que faz muito pouco. O Ilê

Aiyê tem hora que acha que a comunidade só quer, que não participa, que não ajuda.

Quando a comunidade tiver a transparência total da força que ela tem, que ela pode

caminhar sozinha e trazer a referência do Ilê pra caminhar junto, pode ser que mude. Essa relação é complexa e complicada. Se você entrevistar Valdíria, ela se acaba,

reclama do Ilê. Às vezes são os papéis sociais de cada um que ainda não tá bem

compreendido, tanto de um quanto de outro. Ilê às vezes reclama da comunidade,

porque a comunidade não é tão cooperativa, mas o Ilê criou essa relação. O Ilê

permitiu. (Edmilson Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

Para a relação existente entre Itapuã/Malê Debalê, quem nos fala é César Veloso:

A comunidade tem que valorizar o bloco. O único bloco que representa Itapuã é o

Malê Debalê. Tem uma área dessa, uma quadra dessa, enorme, a maior dentre os

blocos afro. Um ensaio desse, dia de domingo e aí, a quadra tá vazia. É sempre

assim. Se você colocar portaria paga, 5 reais, 10 reais, eles reclamam que não vão

pagar, não querem vir, não vem. Mas sai daqui pro Pelourinho e paga 50 reais pra

ver o Olodum. O ensaio do Olodum é mais para turista. Mas aqui não paga. Aí o

Malê vai pra fora, faz bonito. Vai pro Pelourinho, faz bonito. Por que aqui a

comunidade não pode abraçar a causa? Acha que tem direito a tudo e não tem dever

nenhum. A comunidade poderia abraçar mais a causa. O Malê leva Itapuã pro

mundo inteiro. A logomarca do Malê tem “Itapuã”. O Malê defende o bairro de

Itapuã. Eu queria que Itapuã defendesse o Malê Debalê. (Cesar Veloso, entrevista realizada em novembro de 2014).

Voltando a Sandro, o diretor do Ilê Aiyê nos dá uma pista sobre uma das possíveis

motivações do não engajamento da comunidade nas atividades dos blocos, em especial do Ilê.

A gente fala o Ilê Aiyê, a instituição é uma instituição laica, não tem essa questão

religiosa. O problema vem mais de lá pra cá, do que de cá pra lá. O Ilê Aiyê, por si

mesmo, é uma entidade que nasceu num terreiro de candomblé. È uma entidade que

tinha como sua matriarca maior uma mãe de santo. É uma entidade que tem um

respeito muito grande pela religião. Os seus diretores todos são adeptos ao

candomblé, são ogãs, todos não, mas a maioria são ogãs, outras ekedis. Há um respeito muito grande. Um amor muito forte pela religião. Quando falo de lá pra cá,

falo, por exemplo, nos pais de alunos evangélicos. Eles não colocam as crianças aqui

porque acham que aqui é coisa do demônio. Por mais que a gente aceite todos, a

gente não é aceito por todos. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de

2015)180

Explicação semelhante é dada por Sérgio Pereira, durante sua entrevista, com a

diferença que, dessa vez, a questão não é de desavença entre distintas matrizes religiosas.

Rapaz, é aquele negócio. Não tenho nada contra a pessoa dele, mas Vovô é de

Obaluaê. Tenho quase certeza. Obaluaê. Mãe Hilda era, acho que Vovô também é.

180 Ogãs e Ekédis são funções atribuídas a determinados integrantes das nações de Candomblé. Possuem

atribuições específicas na casa, como o toque dos atabaques, o sacrifício de animais, colheita de ervas, cozinha

para os santos, guarda de elementos rituais e auxílio direto a iyalorixás e babalorixás.

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Eu sou de Xangô. Aí você já viu. O santo não bate, e quando não bate, não adianta,

Fico sempre com o pé atrás. Aí evito me envolver com as coisas do Ilê. Vejo na

avenida, acho maravilhoso, mas não me envolvo tanto. (Sérgio Pereira, entrevista

realizada em novembro de 2014)181

Repensando a possibilidade do engajamento comunitário, me recordo da Caminhada

da Liberdade, realizada no ano de 2015, e em como um grande número daquelas pessoas que

acompanhavam a saída do Ilê Aiyê de sua sede, sequer sabiam quem era Edmilson,

importante diretor da entidade.

Se o financiamento próprio por meio da venda de produtos se mostrava uma realidade

perdida em algum lugar da década de 1990, e contar com ações de voluntariado ou

engajamento comunitário soavam como utopia, qual poderia ser a saída dos blocos para uma

autossuficiência financeira que garantisse autonomia de ação? A resposta parece ser a busca

por parceiros na iniciativa privada. Entretanto, mais uma vez, alguns obstáculos são postos no

caminho das agremiações, como nos contam seus próprios membros:

O Malê tinha um projeto pro carnaval de 300 mil reais. Nós fomos buscar o

patrocínio do Bradesco. O cara me ofereceu 60 mil. Eu disse que não dava, que eu tinha um projeto de 300 mil, que já não dava pra muito, o que dizer 60 mil. E ele me

disse o seguinte: “Claudinha Leitte me pediu 1 milhão e 200 mil e eu só dei 1

milhão”. Aí, se você comparar a história de Claudinha Leitte com a história do Malê

Debalê, na cabeça deste cara, aí você não vai ter muito o que dizer. E aí esse é o

perfil. (Miguel Arcanjo, entrevista realizada em abril de 2014)

Sandro faz considerações semelhantes às de Miguel, dando um passo adiante:

A marca da Petrobrás foi muito divulgada [pelos blocos]. Eles adoraram. Houve

uma grande divulgação da marca deles. Será que só a Petrobrás vê isso? A Caixa

patrocinou o carnaval e o logo da Caixa foi muito divulgado. Ela se satisfez com a

divulgação que fez. Mas só a Caixa? Só a Petrobrás? Que são empresas mistas. E os

outros? Será que os outros também não poderiam tá investindo pra ver sua marca?

Eles não querem ver sua marca associada ao Ilê Aiyê. Por exemplo, aqui na

Liberdade tem um shopping. Shopping Center Liberdade. A gente foi lá pra ver se

eles poderiam apoiar o Tambores da Liberdade. Disseram que não é interessante ver a marca dele associada ao Tambores da Liberdade, na nossa cara. Antes de tudo,

antes de capitalismo, o empresário é racista. Esse é o nosso maior problema. É muito

estranho. O público que segue a marcha são as pessoas que consomem. E não é um

publico de ladrão. É um público de pessoas conscientes de sua negritude, que vai tá

ali, que quer curtir o Ilê, os blocos que tão ali, só que os comerciantes não pensam

desse jeito. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de 2015)

Mais adiante, na mesma entrevista, o diretor do Ilê complementaria seu raciocínio:

181 Perguntado sobre a diferença existente entre Obaluaê e Xangô, Sérgio contou que, segundo a mitologia dos

orixás, Obaluaê foi chamado ao Orun por Obatalá. Sendo o senhor da terra, Obaluaê pediu a Xangô que tomasse

conta de seu reino, enquanto ia ao Orun. Quando retornou, encontrou Xangô decidido a não devolver-lhe o

comando da terra. Obaluaê, então, procurou refugio nas matas junto a Ossain, que lhe aconselhou a jogar pipocas

com axé sobre Xangô. Ao seguir o conselho de Ossain, Obaluaê percebeu que, ao baterem no rosto de Xangô, as

pipocas abriam feridas em sua pele. Xangô pediu para que Obaluaê lhe curasse. Em troca, lhe devolveria o

comando sobre a terra. E assim foi feito.

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O Ilê tem uma dificuldade muito grande de conseguir patrocínio que não seja de

empresa do governo, Petrobrás, Caixa... O Ilê, nos últimos carnavais, foi o terceiro

bloco mais falado. Só 2 blocos foram mais falados que o ilê. O empresário antes de

ser capitalista, de querer ver sua marca estampada, ele é racista. Ele prefere perder

dinheiro, não ver a marca estampada, do que patrocinar o Ilê Aiyê. Então é uma

grande dificuldade. Cervejarias... Quem mais bebe cerveja na Bahia são os negros.

Tudo quando é lugar, cerveja. Mas os caras não patrocinam. (Sandro Teles,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Sandro chama a atenção para um aspecto importante quando falamos em parceria com

empresas privadas: visibilidade. Quando uma empresa resolve apoiar um bloco, seja ele de

trio, afoxé ou afro, o que se busca é uma troca. Não existe filantropia quando se trata de uma

indústria milionária como é hoje o carnaval de Salvador. Se o empresariado possui o capital

necessário para fazer as coisas acontecerem dentro das agremiações, como retorno o que

desejam, de maneira geral, é a exposição de suas marcas. Seja com balões, letreiros nos trios

ou mesmo na menção feita pelos cantores entre uma música e outra.

Seguindo essa lógica, quanto maior a visibilidade de um bloco, maior o retorno dado a

seus patrocinadores/anunciantes. Quanto maior o retorno, maior o valor a ser pleiteado pelo

bloco. Lógica semelhante a dos anunciantes em placas publicitárias nos estádios de futebol,

que precisam desembolsar valores maiores quando uma partida é transmitida para todo o país

do que quando a exposição ficará restrita ao público presente ao estádio.

Fazendo uma analogia com o exemplo do futebol, citado anteriormente, o público

presente nas avenidas, largos, praças e camarotes durante a passagem dos blocos é correlato

ao torcedor presente ao estádio. Embora se estime que o número de foliões em Salvador

durante a folia momesca ultrapasse 2 milhões de pessoas, a visibilidade conferida a qualquer

marca ganha proporções maiores quando falamos da transmissão televisiva da festa.

Maior emissora de televisão do país, a Rede Globo não realiza cobertura ininterrupta

da festa. Restringe-se a algumas entradas ao vivo de seus repórteres e a matérias em seus

telejornais. A cobertura efetiva do carnaval soteropolitano fica a cargo de três emissoras:

Bandeirantes, SBT e TVE.

A Rede Bandeirantes realiza a transmissão do carnaval através da chamada “Band

Folia”, enquanto o SBT apresenta sua “SBT Folia”. A semelhança não fica apenas nos nomes

dados as coberturas. Em ambos os casos, as emissoras montam gigantescas estruturas nos

circuitos Barra-Ondina e Campo Grande, de onde transmitem os desfiles dos blocos. Tais

estruturas contam com varandas que permitem a interação direta entre apresentadores e

artistas, em encontros que duram alguns minutos. Em dinâmica usual, cumprimentos de lado a

lado, com comentários que trazem ao espectador a sensação de familiaridade entre artistas e

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imprensa. Na sequência, alguns trechos de canções são tocados “com exclusividade” para

aquela emissora e seus espectadores, a despeito das milhares de pessoas que podem

acompanhar tal interação in loco.

Durante todo o tempo em que o trio permanece estacionado de fronte ao estúdio da

emissora, as marcas estampadas em suas laterais, ou os balões que flutuam a seu redor,

trazendo logos de empresa, seguem sendo exibidos. Dessa forma, a empresa X, que estampou

sua marca no trio elétrico do artista Y, consegue seus cinco ou dez minutos de exibição

nacional televisiva.

Não há trio que não pare diante dos estúdios. O que varia é o tempo de interação entre

artista e apresentadores. Quanto mais famoso o artista, maior o tempo em tela.

Quando são negociados contratos de patrocínio que oferecem como contrapartida a

promoção de marcas, esse tempo de televisão é contado, sendo muitas vezes o fiel da balança

no momento em que são definidos valores.

“Band Folia” e “SBT Folia” seguem dinâmica semelhante, ainda, na opção por

horários de transmissão de cada um dos circuitos soteropolitanos. O circuito do Campo

Grande, que se inicia no meio do dia, é o escolhido para transmissão até por volta das 18hs,

19hs. Em geral, essa transmissão é apenas regional, sendo que para o restante do país restam

os chamados flashes durante a programação. Quando a noite cai, a transmissão de ambas é

redirecionada para o circuito Barra-Ondina, por onde avança durante a madrugada. Essa é a

transmissão que usualmente é realizada de forma nacional, no chamado “horário nobre da

TV”.

A terceira das emissoras que acompanham o carnaval de Salvador é a TVE. Estatal,

sua lógica para a transmissão da folia difere totalmente das demais, a começar por seu

alcance, uma vez que, para além de Campo Grande e Barra-Ondina, a emissora apresenta

também as atrações que se apresentam no circuito Batatinha, organizado no Pelourinho.

Em se tratando de Campo Grande, sua transmissão começa por volta das 18hs, quando

Bandeirantes e SBT já migraram para Barra-Ondina. Por sua vez, Barra-Ondina conta com

flashes durante toda a madrugada, sem que a transmissão do Campo Grande seja interrompida

por completo.

A TVE é responsável, ainda, pela transmissão da saída do Ilê Aiyê, da ladeira do

Curuzu, durante o sábado de carnaval, acompanhando a trajetória do bloco até o plano

inclinado da Liberdade.

Em suma, a TVE mostra aquilo que não interessa a Bandeirantes e SBT, mas que

guarda grande valor para os que admiram e acompanham a folia soteropolitana, sendo, na

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maioria das vezes, a única oportunidade para que alguns artistas tradicionais e estreantes

apresentem, para um número maior de pessoas, o seu trabalho.

Sobre os desfiles no Campo Grande e a opção das emissoras de TV, fala Eduardo

Santana:

Quando chega cá em cima [Campo Grande], os camarotes fecham. Dezoito horas.

Todos aqueles ali. Ai quando você chega na avenida, o discurso é que a gente

desfilava tarde. E começou a desfilar mais cedo, mas ainda assim... Mais cedo é

vinte e uma horas, vinte e duas. Já não tem televisão. E já teve situação deles

desligarem a câmera mesmo, desligar e botar em pé, pra gente ver que não iam

filmar. Se não mostra, o patrocinador não chega. (Eduardo Santana, entrevista

realizada em abril de 2014)

Na mesma linha temos a fala de Sandro Teles:

A gente continua brigando por espaço, 40 anos depois. A mídia também tem uma

contribuição muito grande nisso. O Ilê sai no Campo Grande às seis horas da tarde.

Quando o Ilê entra no Campo Grande, “vamos pra Barra!”. Se a gente for parar pra

pensar, a gente vê que isso influencia muito na questão do patrocínio. Se sua marca

não vai ser mostrada, se a TV não vai tá ali mostrando, por que eu vou patrocinar?

Eu acho que nem se o Ilê fosse o primeiro, segundo ou terceiro, porque o problema

não é posição no desfile do carnaval, o problema é a mídia mesmo. Se o Ilê é o terceiro e os caras mudam pra Barra, o que vai adiantar? Quando eles entram no

Campo Grande, nenhuma emissora de TV filma. Você não tem registro. Só a TVE.

(Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de 2015)

Nos últimos anos a empresa MídiaClip ficou responsável pela medição da transmissão

televisiva do carnaval de Salvador. O levantamento concentra-se nas aparições espontâneas na

mídia, sendo excluídas as aparições de artistas e grupos em anúncios pagos. O levantamento

começa as 0hs de quinta-feira e termina às 23h59min de terça-feira, tendo como base as

transmissões de TV ao vivo e a cobertura dos noticiários locais e nacionais – tanto da

televisão aberta quanto fechada. Ao todo são pesquisadas cerca de dezoito emissoras de TV.

Tendo acesso aos resultados dos levantamentos realizados nos anos de 2014, 2015,

2016 e 2017 foi possível ter um panorama da situação, observando quais os blocos/artistas

com maior exposição na mídia.

O ranking de visibilidade, resultante de tal levantamento, apresenta os dez

artistas/bandas como maior tempo de exposição, assim como os dez blocos/trios. Para o ano

de 2014, o artista com maior exposição foi Psirico, com pouco mais de dezenove horas de

exibição. Completando os cinco mais expostos, tivemos ainda Chiclete com Banana, Ivete

Sangalo, Daniela Mercury e Saulo Fernandes. O Ilê Aiyê aparece na sequência, ocupando a 6ª

posição, com quase doze horas de exibição, se posicionando a frente de artistas como Asa de

Águia e Banda Eva, estrelas da chamada Axé Music.

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Quando observados os blocos, a surpresa fica por conta da liderança do Ilê Aiyê, com

cerca de doze horas de exposição. Completando os cinco primeiros, temos ainda As

Muquiranas, Bloco Eva, Coruja e Armandinho, Dodô e Osmar. Vale ressaltar a presença do

Afródromo, na 7ª posição.

Tabela 5. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2014

Artistas e Bandas Blocos e Trios

Pos. Artista/Banda Tempo Pos. Bloco/Trio Tempo

1º Psirico 19h07min 1º Ilê Aiyê 11h59min

2º Chiclete com Banana 15h53min 2º As Muquiranas 11h48min

3º Ivete Sangalo 14h31min 3º Bloco Eva 08h54min

4º Daniela Mercury 13h34min 4º Coruja 08h17min

5º Saulo Fernandes 13h12min 5º Armandinho, Dodô e Osmar 07h59min

6º Ilê Aiyê 11h59min 6º Camaleão 07h53min

7º Parangolé 11h37min 7º Afródromo 06h46min

8º Banda Eva 09h02min 8º Inter 06h00min

9º Asa de Águia 08h42min 9º Mudança do Garcia 05h59min

10º Tomate 08h35min 10º Filhos de Gandhy 05h12min

Fonte: MidiaClip

Quando observados os resultados para o ano de 2015, perceberemos algumas

mudanças pontuais no ranking. Dentre os artistas com maior exposição, segue na liderança o

Psirico, dessa vez com um tempo menor, alcançando quase dezesseis horas de exposição.

Completando as cinco primeiras posições, temos Ivete Sangalo, Luiz Caldas, Daniela

Mercury e Bell Marques.

Entre 2014 e 2015, apenas um artista diferente compôs o grupo dos cinco mais

expostos (se considerarmos que Bell Marques era o grande nome do Chiclete com Banana em

2014). O estreante no grupo dos mais expostos é Luiz Caldas, cuja maior exposição em 2015

se justifica por ser esse ano o marco de trinta anos da Axé Music, gênero do qual o artista é

considerado o criador. O sexto lugar ficou com Saulo Fernandes, integrante dos “cinco mais”

em 2014, demonstrando que Luiz Caldas era de fato um intruso nessa festa.

O Ilê Aiyê aparece como o 8º artista com maior tempo de exibição. Pouco mais de oito

horas na TV. Cerca de quatro horas a menos que em 2014. Mesmo com tal diminuição, a

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exposição foi suficiente para posicionar o Ilê Aiyê na frente de artistas como Claudia Leitte e

Igor Kanário.

Quando observados os tempos de exposição televisiva dos blocos, temos Armandinho,

Dodô e Osmar na liderança, alavancados pela mesma lógica que posicionou Luiz Caldas

dentre os dez artistas mais expostos. Na sequência aparecem Inter, Coruja, Ilê Aiyê e Bloco

Eva.

Tabela 6. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015

Artistas e Bandas Blocos e Trios

Pos. Artista/Banda Tempo Pos. Bloco/Trio Tempo

1º Psirico 15h51min 1º Armandinho, Dodô e Osmar 09h38min

2º Ivete Sangalo 13h39min 2º Inter 09h32min

3º Luiz Caldas 12h58min 3º Coruja 08h55min

4º Daniela Mercury 12h57min 4º Ilê Aiyê 07h34min

5º Bell Marques 11h18min 5º Bloco Eva 05h57min

6º Saulo Fernandes 11h15min 6º As Muquiranas 05h41min

7º Armandinho, Dodô e Osmar 09h36min 7º Camaleão 05h28min

8º Ilê Aiyê 08h06min 8º Filhos de Gandhy 05h08min

9º Igor Kanário 07h56min 9º Pipoca do Saulo 04h11min

10º Claudia Leitte 06h43min 10º Cocobambu 03h33min

Fonte: MidiaClip

Para o ano de 2015, o MidiaClip divulgou um resultado mais amplo, apresentando um

ranking com cem nomes para cada categoria. Sendo assim, foi possível encontrar Olodum e

Malê Debalê na relação, uma vez que ambos não se posicionaram entre os dez primeiros.

Em se tratando de artistas, o Olodum foi o 22º mais exposto, com quase quatro horas

de exibição. Já o Malê Debalê foi o 73º, com cerca de cinquenta e sete minutos. Dentre os

blocos, o Olodum aparece na 14ª posição, com pouco mais de três horas e o Malê Debalê na

58ª posição, com vinte se cinco minutos em tela.

Antes de avançarmos para os resultados de 2016, vale a pena nos debruçarmos um

pouco mais sobre os resultados de 2015, uma vez que estes apresentam dados para Olodum e

Malê Debalê.

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Tabela 7. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015 – Blocos afro

Artistas e Bandas Blocos e Trios

Pos. Artista/Banda Tempo Pos. Bloco/Trio Tempo

8º Ilê Aiyê 08h06min 4º Ilê Aiyê 07h34min

22º Olodum 03h56min 14º Olodum 03h08min

73º Male Debalê 00h57min 58º Malê Debalê 00h25min

Fonte: MidiaClip

Quando observamos a coluna “Artistas e Bandas”, temos somado todo o tempo de

aparição do artista na televisão, seja durante o desfile de seus respectivos blocos, seja durante

a realização de programas de entrevistas, apresentações musicais ou flashes ao vivo de algum

ponto da cidade. Já a coluna “Blocos e Trios” apresenta dados referentes aos desfiles destes

durante o carnaval. Dessa forma, é possível ver que enquanto para Ilê Aiyê e Olodum, o

tempo de exposição de artista e bloco é bastante próximo, para o Malê Debalê o tempo de

exposição do artista é praticamente o dobro do dedicado ao bloco. De tal informação podemos

deduzir que o tempo de exposição do desfile da agremiação é realmente reduzido. São cerca

de vinte e cinco minutos para três dias de festa. Ao mesmo tempo, o artista Malê Debalê foi

exposto por cerca de cinquenta e sete minutos. Descontados os vinte e cinco minutos do

bloco, restam outros vinte e dois minutos de exposição em momentos diferentes, que em geral

não conseguem ser capitalizados pelo bloco, mas que geram renda para as emissoras, que

atrelam a transmissão do carnaval a patrocinadores.

Seguindo para a análise dos resultados do ano de 2016, temos como artista mais

exposta para o ano a cantora Ivete Sangalo, com mais de vinte e quatro horas de exibição,

superando em dez horas o segundo colocado, Bell Marques. Completam os cinco mais

expostos a Banda Vingadora (impulsionada pelo sucesso “Paredão Metralhadora”) além dos

costumeiros Psirico e Saulo Fernandes.

Diferentemente dos outros anos abordados, o bloco afro que figura entre os dez mais

expostos não é mais o Ilê Aiyê, mas sim o Olodum, com pouco mais de nove horas de

exibição, se posicionando a frente de artistas como Claudia Leitte e É o Tchan.

Já entre blocos e trios, o primeiro colocado foi o Coruja, com pouco mais de dez horas

de exibição. Na sequência aparecem Armandinho, Dodô e Osmar e As Muquiranas.

Completando os cinco primeiros temos o Ilê Aiyê, com cerca de seis horas de exibição, e o

Filhos de Gandhy.

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Vale ressaltar a presença de dois trios do Governo do Estado, sendo um capitaneado

por Saulo Fernandes e outro por Ivete Sangalo. Com tal iniciativa o governo pretende ampliar

o número de trios elétricos gratuitos, chamados “sem cordas”, em que o folião não precisa

adquirir um abada para participar do bloco.

Tabela 8. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2016

Artistas e Bandas Blocos e Trios

Pos. Artista/Banda Tempo Pos. Bloco/Trio Tempo

1º Ivete Sangalo 24h34min 1º Coruja 10h14min

2º Bell Marques 14h34min 2º Armandinho, Dodô e

Osmar 07h38min

3º Banda Vingadora 13h02min 3º As Muquiranas 06h32min

4º Psirico 12h01min 4º Ilê Aiyê 06h02min

5º Saulo Fernandes 11h27min 5º Filhos de Gandhy 05h50min

6º Armandinho, Dodô e Osmar 10h32min 6º Trio Governo do Estado

– Saulo 05h33min

7º Daniela Mercury 09h45min 7º Bloco Cheiro de Amor 05h26min

8º Olodum 09h17min 8º Cocobambu 05h05min

9º Claudia Leitte 08h23min 9º Inter 04h53min

10º É o Tchan 07h23min 10º Trio Governo do Estado

– Ivete Sangalo 04h31min

Fonte: MidiaClip

Para finalizar, temos os dados apresentados para o carnaval de 2017. Dentre artistas e

bandas, assim como no ano anterior, Ivete Sangalo foi a artista com maior tempo de exposição

televisiva, com quase doze horas. O Olodum aparece na terceira colocação, com pouco mais

de duas horas de exposição.

Já entre os blocos e trio, assim como aconteceu em 2014, foi o Ilê Aiyê quem ocupou

a primeira colocação do ranking, com quase seis horas e meia de exibição. Nessa mesma

categoria, o Olodum apareceu na 10ª posição, com pouco mais de duas horas e meia de

exposição televisiva.

Podemos especular que o bom resultado da banda Olodum tenha relação com a

celebração dos trinta anos da canção “Faraó”, importante marco da folia soteropolitana. Pelo

mesmo motivo teríamos o bloco Olodum entre os dez de maior visibilidade.

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Tabela 9. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017

Artistas e Bandas Blocos e Trios

Pos. Artista/Banda Tempo Pos. Bloco/Trio Tempo

1º Ivete Sangalo 11h52min 1º Ilê Aiyê 06h21min

2º Psirico 11h30min 2º Inter 05h40min

3º Olodum 10h02min 3º Armandinho, Dodô e

Osmar 05h34min

4º Daniela Mercury 09h29min 4º Coruja 04:26 min

5º Igor Kanário 09h07min 5º As Muquiranas 03h41min

6º Bell Marques 06h47min 6º Cerveja e Cia 03h13min

7º Claudia Leitte 06h42min 7º Meu e Seu 02h51min

8º Gilberto Gil 06h27min 8º Camaleão 02h49min

9º Saulo Fernandes 05h53min 9º Filhos de Gandhy 02h36min

10º Léo Santana 05h22min 10º Olodum 02h32min

Fonte: MidiaClip

De posse de tais resultados, podemos perceber que o pouco tempo de exibição

televisiva não é o cerne da questão para um bloco como o Ilê Aiyê. Se o mesmo não se pode

dizer para o Malê Debalê, ou mesmo Olodum, pode-se afirmar que o Ilê Aiyê dispôs, ao

menos nos quatro anos levantados, de tempo suficiente de televisão para exposição de sua

marca e de patrocinadores. Esse bom resultado não é novidade para o Ilê Aiyê. Durante sua

entrevista, Vovô tocou no assunto, ampliando a discussão:

Quando o Ilê entra, entra todo mundo cheio de energia. Por isso o Ilê, quando faz

esse levantamento da MídiaClip, nós estamos sempre em exposição na mídia. Já

fomos primeiro lugar, quarto lugar. Eles ficam invocados. Como é que tem

exposição na mídia? Mas a gente não consegue transformar essa coisa em dinheiro,

patrocínio. Os empresários tão nem aí. Quer sair no bloco dele, em cima do carro de

apoio, tomando o uísque dele. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em

novembro de 2015).

Entretanto, se o resultado apresentado parece ser de conhecimento do presidente e

diretoria, um detalhe fundamental parece lhe escapar. Em termos de exibição televisiva,

quantidade não quer dizer qualidade. Vamos explicar melhor apresentando dados de 2015, do

levantamento MídiaClip. Como dito, para este ano foram divulgados os resultados mais

completos que permitem um mergulho mais profundo em seus números.

Ao aferir o tempo de exibição de cada artista/banda e bloco/trio durante o carnaval de

Salvador, o MídiaClip monitorou dezoito emissoras de televisão. Em várias dessas, o tempo

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em tela é comercializado, seguindo parâmetros que levam em conta duração da exibição,

horário e dia da semana, bem como anunciantes, dentre outros, para o cálculo do valor de

cada minuto em tela. Já nas emissoras estatais, tais parâmetros não existem, uma vez que as

mesmas não contam com anunciantes que não o governo.

Tendo em vista tais valores, o levantamento calculou quanto custaria para cada bloco o

tempo de exibição televisiva que tiveram durante o carnaval, se fosse necessário pagar por

esse tempo. O resultado para os dez artistas mais expostos pode ser conferido a seguir:

Tabela 10. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015

Artistas e Bandas

Pos. Artista/Banda Tempo Valor

1º Psirico 15h51min R$ 38.173.782

2º Ivete Sangalo 13h39min R$ 51.576.486

3º Luiz Caldas 12h58min R$ 29.128.987

4º Daniela Mercury 12h57min R$ 28.767.687

5º Bell Marques 11h18min R$ 34.540.629

6º Saulo Fernandes 11h15min R$ 27.101.123

7º Armandinho, Dodô e Osmar 09h36min R$ 4.531.375

8º Ilê Aiyê 08h06min R$ 2.116.081

9º Igor Kanário 07h56min R$ 5.580.607

10º Claudia Leitte 06h43min R$ 40.092.857

Fonte: MidiaClip

Até o olhar mais desatento logo perceberá que ter um maior tempo de exposição não

significa, necessariamente, ter o tempo de exposição mais valorizado. Isso se dá por alguns

motivos. O primeiro deles é o horário em que o bloco foi exibido na televisão. Aparecer para

todo o país às 21hs é diferente de aparecer às 4hs da madrugada. O segundo motivo é a

amplitude de tal exposição. Aparecer às 21hs para todo o Brasil é diferente de aparecer às

21hs apenas para a Bahia. E por fim, em qual emissora tal exibição aconteceu. Aparecer às

16hs para toda a Bahia pela TV Bandeirantes é diferente de aparecer no mesmo horário, para

a mesma região, na TVE. Nesse caso, é a ausência de anunciantes na TV estatal o principal

fator diferenciador.

Assim sendo, para além da quantidade de tempo de exibição, é preciso começar a se

falar na qualidade do tempo de exibição. Enquanto o tempo de TV utilizado por Ivete Sangalo

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teve o custo avaliado em mais de cinquenta e um milhões e meio de reais, o tempo utilizado

pelo Ilê Aiyê custaria pouco mais de dois milhões de reais.

Se compararmos o bloco do Curuzu com um artista cujo tempo de exibição foi menor,

ainda assim será possível observar a diferença nos valores. Se para o Ilê Aiyê suas oito horas

de exibição custariam cerca de dois milhões de reais, as pouco mais de seis horas e meia de

Claudia Leitte custariam mais de quarenta milhões de reais. Vinte vezes mais para uma hora e

meia a menos na televisão. Se dividirmos o tempo de exposição por seu valor, descobriremos

que, enquanto um minuto de exposição do Ilê Aiyê custa cerca de 4.350 reais, um minuto de

exposição de Claudia Leitte custa cerca de 99.500 reais.

Apresentaremos agora os mesmos dados, para o mesmo ano de 2015, desta feita para a

categoria blocos e trios.

Tabela 11. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015

Blocos e Trios

Pos. Bloco/Trio Tempo Valor

1º Armandinho, Dodô e Osmar 09h38min R$ 4.538.497

2º Inter 09h32min R$ 14.122.316

3º Coruja 08h55min R$ 18.778.128

4º Ilê Aiyê 07h34min R$ 1.989.765

5º Bloco Eva 05h57min R$ 8.680.240

6º As Muquiranas 05h41min R$ 8.646.278

7º Camaleão 05h28min R$ 13.646.671

8º Filhos de Gandhy 05h08min R$ 4.585.060

9º Pipoca do Saulo 04h11min R$ 4.115.963

10º Cocobambu 03h33min R$ 21.958.219

Fonte: MidiaClip

Nos blocos e trios, assim como com os artistas e banda, maior tempo de exposição não

quer dizer tempo mais valorizado. Às sete horas e meia de exibição do Ilê Aiyê custariam

quase dois milhões de reais, enquanto às três horas e meia de exposição do Cocobambu

custariam quase vinte e dois milhões de reais. Novamente fazendo o cálculo de valor por

minuto de exposição, descobriremos que, enquanto um minuto de exposição do Cocobambu

custaria mais de 100.000 reais, o mesmo minuto de exposição do Ilê Aiyê custaria 4.300 reais.

Vale ressaltar a discrepância do Ilê Aiyê para o afoxé Filhos de Gandhy. Mesmo com

duas horas a menos de exposição, a exibição televisiva do afoxé custaria mais do que o dobro

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da exposição do bloco afro. Em cálculo de valor/minuto, enquanto um minuto do Ilê Aiyê

custaria 4.300 reais, como dito, um minuto dos Filhos de Gandhy custaria cerca de 14.900

reais.

Seguindo com esse exercício, vejamos agora os dez artistas/banda com maior valor

referente ao seu tempo de exibição televisiva apresentando, na sequência, os valores e tempos

apurados para Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê.

Tabela 12. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015

Artistas e Bandas

Pos. Artista/Banda Valor Tempo

1º Ivete Sangalo R$ 51.576.486 13h39min

2º Claudia Leitte R$ 40.092.857 06h43min

3º Psirico R$ 38.173.782 15h51min

4º Gilberto Gil R$34.917.436 04h52min

5º Bell Marques R$ 34.540.629 11h18min

6º Luiz Caldas R$ 29.128.987 12h58min

7º Daniela Mercury R$ 28.767.687 12h57min

8º Saulo Fernandes R$ 27.101.123 11h15min

9º Preta Gil R$ 23.762.167 01h33min

10º Harmonia do Samba R$ 20.833.389 06h41min

51º Olodum R$ 2.587.713 03h56min

53º Ilê Aiyê R$ 2.116.081 08h06min

93º Malê Debalê R$ 80.160 00h57min

Fonte: MidiaClip

Se em termos de tempo de exibição, o Ilê Aiyê aparece na 8ª posição, dentre os cem

artistas/bandas analisados, quando a medida passa a ser o valor dessa exposição, o bloco da

Liberdade cai para a 53ª posição, sendo ultrapassado, inclusive, pelo Olodum. O bloco do

Pelourinho é o 22º colocado em tempo de exposição e o 53º em valor de tal exposição. Já o

Malê Debalê cai da 73ª colocação em tempo de exibição televisiva para a 93ª colocação,

quando se trata do valor calculado para tal exposição.

O levantamento divulgado pela MidiaClip para o ano de 2017 não é tão completo

quando o do ano de 2015, mas traz mais algumas informações que podem ser trabalhadas. A

primeira delas é o valor de referência para o tempo de exibição de cada artista/banda,

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bloco/trio, a exemplo do que foi feito para 2015, dessa vez com dados restritos aos dez

primeiros colocados.

Tabela 13. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017

Bandas e Artistas

Pos. Bloco/Trio Tempo Valor

1º Ivete Sangalo 11h52min R$ 77,5 milhões

2º Psirico 11h30min R$ 16,4 milhões

3º Olodum 10h02min R$ 15,4 milhões

4º Daniela Mercury 09h29min R$ 25,2 milhões

5º Igor Kanário 09h07min R$ 4,01 milhões

6º Bell Marques 06h47min R$ 18,3 milhões

7º Claudia Leitte 06h42min R$ 45,2 milhões

8º Gilberto Gil 06h27min R$ 3,9 milhões

9º Saulo Fernandes 05h53min R$ 11,2 milhões

10º Léo Santana 05h22min R$ 9,9 milhões*

Fonte: MidiaClip *Para o ano de 2017, os valores foram divulgados de maneira abreviada.

O resultado do Olodum pode ser considerado bastante positivo em comparação com

outras agremiações afrocarnavalescas, ou mesmo quando comparado a um artista como

Gilberto Gil. Entretanto, quando comparamos os valores de referência do Olodum com os de

Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Daniela Mercury, percebemos que o valor potencial era maior

do que o efetivo. Claudia Leitte, com quase a metade do tempo de exposição do Olodum, tem

um valor de referência para tal exibição três vezes maior do que o do bloco do Pelourinho.

Quando observamos os valores de referências de blocos e trios, é possível perceber o

peso que a presença de um artista de maior visibilidade/valor agregado confere ao trio. Os

blocos “Coruja” e “Cerveja e Cia”, nos quais se apresenta Ivete Sangalo, foram os de maior

valor de referência, independente de ocuparem a 4ª e 6ª colocação, respectivamente.

Tabela 14. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017

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Blocos e Trios

Pos. Bloco/Trio Tempo Valor

1º Ilê Aiyê 06h21min R$ 4,2 milhões

2º Inter 05h40min R$ 5,8 milhões

3º Armandinho, Dodô e Osmar 05h34min R$ 5,4 milhões

4º Coruja 04:26 min R$ 23,3 milhões

5º As Muquiranas 03h41min R$ 5,2 milhões

6º Cerveja e Cia 03h13min R$ 25,5 milhões

7º Meu e Seu 02h51min R$ 9,9 milhões

8º Camaleão 02h49min R$ 10,4 milhões

9º Filhos de Gandhy 02h36min R$ 7,6 milhões

10º Olodum 02h32min R$ 4,3 milhões*

Fonte: MidiaClip *Para o ano de 2017, os valores foram divulgados de maneira abreviada.

Antes de prosseguirmos, vale uma pequena observação. Nos quatro anos observados,

não tivemos dois blocos afro colocados simultaneamente entre os dez artistas de maior

exposição. Na categoria bloco/trios, apenas em 2017 tal fato aconteceu (desconsiderando o

Afródromo).

Quando comparamos os números apresentados para 2015 e 2017, em se tratando de

blocos e trios, encontramos o seguinte cenário:

Tabela 15. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017

Blocos e Trios

Bloco Ano Tempo Variação Valor

(milhões) Variação

Ilê Aiyê 2015 07h34min

- 1h13min R$ 1,2

+ R$ 3,0 2017 06h21min R$ 4,2

Olodum 2015 03h08min

- 0h36min R$ 0,7

+ R$ 3,6 2017 02h32min R$ 4,3

Fonte: MidiaClip

Para ambos os blocos, o tempo de exibição televisiva em 2017 foi menor do que em

2015. Entretanto, os valores referentes à transmissão em 2017 superam os de 2015 em mais de

três milhões de reais, em ambos os casos. Sem dúvida, uma melhora em relação ao cenário

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dos anos anteriores, mas que de pouco vale se essa exibição não for convertida em

anunciantes e patrocinadores.

Observando os números apresentados para o ano de 2015, cuja divulgação foi mais

completa, podemos compreender melhor alguns aspectos da cobertura televisiva da festa

soteropolitana. O primeiro deles é que, apesar de reservar um espaço para artistas que fizeram

sucesso no passado, o carnaval de Salvador aponta sempre para o sucesso do presente. Sendo

assim, não é de se espantar que artistas como Araketu (56ª colocação), Moraes Moreira (58ª

colocação), Banda Mel (67ª colocação), Gerônimo (70ª colocação), Netinho (73ª colocação),

Baby do Brasil (76ª colocação) e Pepeu Gomes (77ª colocação), todos personagens

tradicionais da festa baiana, apareçam na segunda metade da lista dos cem artistas com maior

valor do tempo de exposição. Dentre os citados, apenas o Araketu possui um valor de

exibição que supera um milhão de reais, sendo suas 02h31min em tela avaliadas em R$

1.477.496.

Se a disputa por espaço já era acirrada em se tratando apenas de artistas radicados em

Salvador, o quadro se tornou mais complexo nos últimos anos, quando a folia soteropolitana

passou a abrir espaço para artistas de outros gêneros, inicialmente estranhos à festa. Hoje são

comuns trios e blocos dedicados a artistas de funk, sertanejo e até de música eletrônica. Se a

lógica do sucesso presente ajuda a entender a exposição dos artistas, natural que elementos

desses estilos também passem a figurar no ranking de tempo de exibição e, principalmente, de

valor dessa exposição.

Exemplar nesse sentido, o carnaval de 2015 trouxe artistas como Valesca Popozuda

(16ª colocação), Anitta (20ª colocação), Jorge e Matheus (34ª colocação) e MC Guimê (47ª

colocação) na primeira metade da lista dos cem artistas com maior valor do tempo de

exposição. O valor do tempo de exibição televisiva de Valesca Popozuda (01h41min) foi

calculado em quase dezesseis milhões de reais. A soma dos valores de exibição dos artistas

mencionados anteriormente corresponde a 1/3 do valor representado apenas por Valesca.

Voltando nosso foco apenas aos blocos afro que abordamos nesse texto, o valor

calculado para seu tempo de exibição somado é de cerca de quatro milhões e setecentos mil

reais, tendo como parâmetro aproximadamente treze horas de exibição. A dupla sertaneja

Jorge e Matheus, com apenas quarenta e nove minutos em tela, teve o valor de sua exposição

calculado em cerca de sete milhões e oitocentos mil reais. Um único artista sertanejo teve

valor de exibição televisiva avaliado em três milhões e cem mil reais a mais do que a soma

das exibições de Olodum, Ilê Aiyê e Malê Debalê.

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Seguindo com os números, de acordo com o levantamento feito pelo MidiaClip, um

artista como o rapper MC Guimê, figura recente no cenário musical brasileiro, é capaz de

apresentar números maiores do que o de entidades afro carnavalescas com mais de trinta e

cinco anos de atuação. A 1h30min que MC Guimê foi exposto na televisão custaria cerca de

três milhões e três mil reais. Para recordarmos, dentre os blocos aqui analisados, o Olodum foi

o que apresentou melhor resultado nesse quesito, com pouco mais de dois milhões e

quinhentos mil reais.

Se a trajetória de um artista, banda ou bloco não é suficiente para mantê-lo em voga

quando se trata de cobertura televisiva do carnaval de Salvador, a saída parece ser a busca por

um sucesso, capaz de catapultar o artista. Uma música parece ser suficiente para que sejam

galgadas algumas posições nesse ranking que apresentamos. Alguns indícios deixam clara tal

possibilidade.

Todos os anos, durante o reinado de Momo, a TV Bandeirantes e a Rede Bahia

realizam votações para eleger a música do carnaval. Cada qual com sua votação, anunciam ao

final dos festejos a música campeã. Aquela que mais agradou ao público. Vejamos quais

foram as músicas eleitas em cada concurso e em qual posição no ranking de tempo de

exibição ficou o artista responsável por sua interpretação.

Tabela 16. Ranking de visibilidade x Música do Carnaval

Ano Troféu Bahia Folia

(Rede Bahia)

Troféu Band Folia

(TV Bandeirantes)

Posição dos artistas no ranking

de visibilidade

2014 “Lepo Lepo”

(Psirico)

“Lepo Lepo”

(Psirico) Psirico (1ª colocação)

2015 “Tem Xenhénhém”

(Psirico) “Pra Frente”

(Ivete Sangalo)

Psirico (1ª colocação)

Ivete Sangalo (2ª colocação)

2016 “Paredão Metralhadora”

(Banda Vingadora)

“Bota a Cara no Sol”

(É o Tchan)

Banda Vingadora (3ª colocação)

É o Tchan (10ª colocação)

2017 “Santinha”

(Léo Santana) “Taquitá”

(Claudia Leitte)

Claudia Leitte (7ª colocação)

Léo Santana (10ª colocação)

Fonte: A Tarde. Elaboração do autor.

Se para artistas como Ivete Sangalo, expoente máximo do carnaval de Salvador, ter

uma canção de seu repertório escolhida como a música do ano representa apenas mais uma

conquista, para outros como a Banda Vingadora, representa a entrada no seleto grupo dos

grandes da folia soteropolitana. Para outros, como no caso do É o Tchan e Léo Santana,

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funciona como um ingresso que permite voltar a frequentar tal grupo, do qual já foi um dos

personagens principais.

Sendo assim, o que se percebe é que a ausência de uma canção de apelo comercial

mais aflorado, capaz de conquistar um público massificado, é um dos entraves à conquista de

maior visibilidade midiática por parte dos blocos afro e, consequentemente, maior poder de

barganha no momento de negociar um contrato de patrocínio. O mesmo vale para artistas que

deixaram seu nome marcado no passado, mas que não conseguem se viabilizar

comercialmente no presente.

Em vinte e seis anos de troféu Bahia Folia, apenas dois blocos afro conquistaram o

prêmio de música do carnaval: Olodum, em 1994 (“Requebra”) e Araketu, em 1995 (Araketu

é Bom Demais). Não por acaso, momento de maior sucesso e exposição de tais agremiações

na mídia.

Observando tais números, me lembro da fala de Josélio Araújo com o grupo de

compositores do Malê Debalê, logo após o seminário em que foi apresentado o tema

“Kirimurê”, para o carnaval de 2015, e em como o dirigente do bloco falava da importância

de se manter o discurso político, tradicional nas letras da agremiação, mas que os

compositores deveriam buscar uma canção que tivesse apelo popular, canções para “tocar no

rádio”.

Durante sua entrevista, Sandro Teles tocou nesse assunto, posicionando-se de maneira

oposta a transparecida na fala de Josélio.

Eu sou o responsável pelo festival de música. A gente nem pensa nisso de música

pra rádio. Músicas com tino comercial, feita para além do carnaval, não costumam

ganhar festival. Tem uma música aqui mesmo, “Negras Perfumadas”, que a música

fez um sucesso danado, é uma musica comercial. Ela ficou em terceiro lugar. Nem

foi a campeã. Comumente a gente tem o hábito de privilegiar muito a questão da

letra da música, o que essa musica tá dizendo. Que a ideia é: compositor faz a

musica pra participar do festival, mas depois que essa música é campeã, é o Ilê que

vai tá falando aquilo. Deixa de ser o compositor. A partir do momento que a ala de canto começa a cantar, quem tá dizendo aquilo é o Ilê. A gente tenta ter muito

cuidado com essas coisas. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de

2015)

Se para Sandro, ter uma música viável comercialmente não é o foco dos festivais de

música nos quais são apresentadas as concorrentes a canção-tema de cada ano, fato é que tal

viabilidade comercial pode ajudar a alavancar a exposição do bloco, como visto

anteriormente, e fazer girar a engrenagem econômica que sustentará não apenas seu carnaval,

como suas demais atividades.

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Lazinho, a voz por trás de “Faraó”, música ícone da virada comercial dos blocos nos

anos de 1980 e 1990, comentou em sua entrevista sobre o sucesso da composição.

Nós na verdade, nós fomos surpreendidos pelo sucesso. Só quem sabia da força

dessa música “eu falei faraó”, eram as pessoas que vinham para o ensaio. Salvador

cantava. Você pegava um ônibus, ouvia e sabia que uma música ia dar certo. Até

hoje é assim. Você sabe que a música vai dar certo quando você vê as pessoas indo

pra praia, na chamada galera da favela, indo pra praia, no fundo do ônibus, cantando

a música. Você pode ter certeza que essa música vai dar certo. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Curiosamente, a fala de Lazinho me remeteu a uma experiência vivida durante a

realização do trabalho de campo, no carnaval de 2013. Em todas as emissoras de televisão,

dizia-se que a briga pela música do carnaval estaria restrita a Ivete Sangalo e Claudia Leitte.

É comum que os artistas de Salvador lancem canções no final do ano, com o objetivo

de que elas se tornem um sucesso no verão e, consequentemente, durante o carnaval.

Praticamente todos os grandes artistas soteropolitanos se dedicam a tal prática.

Assistindo ao noticiário local, novamente me deparo com uma matéria sobre a

provável música do carnaval. Os apresentadores, apostando nas canções interpretadas por

Ivete Sangalo e Claudia Leitte, resolvem chamar o repórter que estava ao vivo no Porto da

Barra, pronto para entrevistar banhistas. Ao perguntar sobre qual música seria destaque do

carnaval, vem a surpresa. Nada de Ivete Sangalo ou Claudia Leitte. Aquele grupo de pessoas,

que estavam ao redor do repórter, começam a cantar um tal “ziriguidum”, com direito a

coreografia devidamente aprendida por todos.

Por mais que a indústria musical tenha força econômica para impor uma exibição

massiva de determinadas composições, nada impede que o inusitado esteja à espreita, pronto

para tomar de assalto a festa. E foi o que aconteceu naquele já distante 2013. A tal

composição era “Ziriguidum”, interpretada pelo obscuro grupo Filhos de Jorge, vencedora do

prêmio de música do carnaval tanto pelo Troféu Bahia Folia quanto pelo Band Folia.

Antes de aparecer para todo o país durante o carnaval, o ziriguidum já estava presente

nas praias, ladeiras, bares, rodas de amigos ou no fundo dos ônibus, como disse Lazinho. A

canção já era um sucesso.

Se a exposição em ensaios dos blocos e festivais de música já não parece ser suficiente

para que uma canção se torne conhecida do grande público, como aconteceu em 1987 com

“Faraó”, é importante que a mesma seja veiculada de outras formas e, dentre as possíveis, o

rádio segue sendo um importante emissor, como mostra o sucesso de “Ziriguidum”, em 2013.

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E aí reside mais um dos problemas que atravessam e existência dos blocos afro. Nas palavras

de Lazinho, sobre o Olodum não conseguir repetir o sucesso comercial de outrora:

Não dá mais certo porque a gente ainda não tem uma rádio. Não tem o nosso próprio

estúdio pra gravar. Só o “Tambores da Liberdade”. Em 1987 nós fomos

surpreendidos duas vezes. Com a música tocada pela Banda Mel e logo depois do

carnaval, Cristovão Rodrigues, que na época era o coordenador chefe da Itapuã FM,

disse: “rapaz, nós queremos gravar um disco com vocês”. Nós gravamos esse disco

e ficamos pensando: “será que vai dar certo?” Daqui a pouco começou a imprensa

do Sul descer pra Salvador. “Quem é esse bloco? Quem é? Quem é?” Nós

conseguimos. Teve um disco do Olodum chamado “O Movimento”. Esse daí vendeu

700 mil cópias ou mais. Vendeu muito. E aí foram cinco músicas tocando

nacionalmente. “Requebra”, “Berimbau”, “Rosa”, “Alegria Geral”... Isso em 1993.

(Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Interessante notar que o interesse em registrar a música do Olodum partiu de um

executivo de rádio local, provavelmente estimulado pela repercussão que tal grupo estava

tendo em sua emissora. Dali para a gravação e posterior sucesso nacional, não demorou mais

do que cinco anos. Para um grupo que jamais ambicionou tal exposição, esse tempo pode ser

considerado curto.

Ao mesmo tempo, Lazinho ressalta que hoje não existe mais o espaço que havia para a

exibição das canções dos blocos afro, restringindo-se ao já citado “Tambores da Liberdade”.

Sobre isso também comentaram Eduardo Santana e Sandro Teles. Comecemos pelo primeiro:

É inadmissível uma cidade como Salvador que não toca música de bloco afro na

rádio. Não precisa ser dos pequenininhos não. Do grandes... Do Ilê, Olodum... Só

aparece assim, se for algum boom. alguma coisa que tocou no mundo todo e tal. Ou

então um programa que é o “Tambores da Liberdade”, na Rádio Educadora, e só.

Ninguém que passe nada de bloco afro em Salvador. É como se não existisse. Como

acontece naquelas escolhas da música do carnaval. Nunca aparece. É como se nem

existisse. Invisibilidade. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Complementado pela fala de Sandro Teles, responsável pelo “Tambores da

Liberdade”:

Desde que eu era pequeno, na década de 1980, houve um grande boom de Olodum, do Egito. Tinha na Bandeirantes, antigamente, um programa dia de domingo que

tocava só música do Olodum. Fora isso, você não ouvia e não ouve música de bloco

afro a não ser o Olodum, de vez em quando. Ilê Aiyê eu nunca ouvi. Nunca ouvi na

radio comercial, FM. Desde que eu me dou por gente que não toca Ilê, não toca

Olodum, não toca Muzenza nas rádios. No ano 2000 alguns blocos se juntaram,

vendo essa dificuldade de ter sua música na rádio. Olodum, Ilê Aiyê, Muzenza e

Malê Debalê se juntaram pra criar o “Tambores da Liberdade”. E criaram logo dois.

Um programa de radio e um bloco. No bloco eram 20 músicos de cada entidade, que

saíam na quinta-feira de carnaval. E no programa de rádio, que começou na Rádio

Salvador FM, começaram a tocar as músicas dos blocos afro. Com o passar o tempo,

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o Muzenza saiu. Ficaram só Ilê, Malê e Olodum. A Salvador FM foi vendida pro

pessoal da Rede Bahia e o programa saiu da grade. Aí a gente passou a comprar o

espaço na Metrópole FM. Quem mantinha esse programa era o governo do DEM,

PFL antigo. Era Paulo Souto. Quando, em 2007, o DEM perde e entra [Jaques]

Wagner. Depois que o PT entra [no Governo Estadual], para de financiar o

“Tambores da Liberdade”. Em junho de 2007, o programa para de ir ao ar na

Metrópole FM. Só que aí o PT abriu espaço na Rádio Educadora. Em 24 de

novembro de 2007 o programa começa a ser retransmitido na Rádio Educadora, na

chamada “Faixa negra”. A Rádio Educadora não tem uma grande audiência aqui no

nosso estado. O povo ouve mais Itapuã FM, Globo FM, Piatã FM... Ouve mais essas

que tocam música de pagode. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de 2015)

Uma alternativa a todo esse cenário hostil que foi desenhado poderia ser um maior

apoio estatal as entidades afrocarnavalescas. Sabe-se da existência do programa Carnaval

Ouro Negro, já citado anteriormente, mas que se mostra insuficiente. Talvez uma política de

promoção de tais entidades, mais do que de financiamento. A esse respeito, disserta Eduardo

Santana:

Você não tem uma política pública de estado que você possa pegar, por exemplo,

blocos afro pela Bahia, pelo Brasil, pela América do Sul, America Latina. Quem vai

fazer o carnaval de Barcelona? Aí tem Claudia Leitte, tem [Carlinhos] Brown. E por

que a gente não ta lá? Não somos nós. Às vezes você tem coisas como o aniversário

de Salvador. Por que é que o cachê de um é cinco vezes maior que o nosso? Se é o

nosso público. E não tá fazendo algo pro mundo todo ver não, que até justificaria.

Não são estrelas internacionais. Eu tô falando pro público daqui, Salvador. Por que eles ganham mais que a gente? O que é que justifica? Um grupo de pagode que

surgiu agora, que tem uma música, um sucesso, ganha um cachê cinco vezes maior

do que quem tá ai há trinta e cinco anos. Qual e mesmo a lógica? Tá se vendendo

cultura pra quem mesmo? Se você tiver uma política publica integrada, que você

traga essa visibilidade, as coisas poderiam tomar outro rumo e não tomam. O Ilê tem

quarenta anos, mas pensar ele, os blocos de índio... o Gandhy tem quanto anos?

Teve uma repercussão muito grande na época de ACM, mas e depois disso? O que é

o Filhos de Gandhy hoje? (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

César Veloso, regente da percussão do Malê Debalê complementa o raciocínio de

Eduardo:

O turismo que vem de fora, vem aqui pra ver os blocos afro. Ninguém vem pra ver

Ivete Sangalo. O europeu vem pra ver os blocos afro. O turista que vem atraído

pelos blocos de trio, é o turista brasileiro. Por isso tem que investir mais nos blocos afro. A Bahiatursa, os órgãos que estão por trás disso. Tem que investir mais nos

blocos afro, porque é a gente que faz o carnaval, e faz um carnaval bonito. (Cesar

Veloso, entrevista realizada em novembro de 2014)

Se a ideia é conferir visibilidade aos blocos, a proposta do Afródromo, capitaneada por

Carlinhos Brown, parecia ser uma possibilidade interessante. A criação de um circuito

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exclusivo para blocos afro e afoxés, com melhores horários para desfiles e estrutura para os

foliões. Entretanto, a proposta não foi tão bem recebida por todos.

O Afródromo soa pra gente como um apartheid. Eles vão pra lá e deixam o carnaval

daqui. Primeiro a questão de segurança. Eles não têm. O governo não tem condição

de oferecer segurança pro carnaval que já existe. La seria o que? Bota os neguinhos

pra dançar pro turista ver. A proposta do governo era eles usarem a fábrica do

carnaval pra construir fantasia pra esses blocos, doar essa fantasia como forma de

pagamento pra esses blocos desfilarem lá embaixo. Eu dou sua fantasia, mas você vai pra lá. Já fazem isso com os pequenos afoxés. Você acha que ali suporta um

Filhos de Gandhy desfilando, suporta um Olodum? Quem vai segurar essa questão

da violência. Aqui em cima já tá complicado. A ala de dança do Olodum não desfila

depois do palanque, porque não tem como ter segurança. Depois que sai do Campo

Grande, a gente dobra e recolhe a ala de dança, o que tiver de apresentar. Os blocos

afro têm que participar do carnaval da cidade, em todos os pontos onde ele acontece.

(Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

Para além da estrutura, o principal argumento dos que se posicionaram contrariamente

ao Afródromo diz respeito à retirada dos blocos dos circuitos já tradicionais da folia

soteropolitana, para alocá-los em um circuito novo, na região do cais do porto, área

urbanamente degradada de Salvador, com a promessa de que lá haveria a tão sonhada

visibilidade. Seriam montadas arquibancadas ao longo do trajeto, pelo qual as entidades

desfilariam em modelo similar ao das escolas de samba do Rio de Janeiro. A julgar pelo

desinteresse da mídia, vide modelo adotado nas transmissões televisivas, e do próprio público,

vide arquibancadas vazias quando da passagem dos blocos, não haveria a mínima garantia de

que tal iniciativa pudesse ser promissora. Ao final seria, como dito por Tita, fazer carnaval

para turista e se afastar do usual da festa baiana, com os foliões seguindo blocos atrás de seus

trios. Em contrapartida, ao retirar os blocos dos circuitos já consolidados, seriam abertos

espaços no cronograma de desfiles, espaços esses cobiçados pelos donos dos grandes blocos

de trios. Daí a figura do apartheid evocada por Tita. O Afródromo, ao invés de incluir,

segregaria os blocos afro, limitando sua participação a uma área afastada do centro da festa.

A recusa a tal proposta foi encabeçada por Olodum e seguida por alguns poucos

blocos. Os demais, incluindo Ilê Aiyê e Malê Debalê, resolveram participar da empreitada.

Após um ano de desfile do Afródromo, longe do modelo proposto, Eduardo fez a seguinte

constatação:

Acho que a questão não é um terceiro circuito. Muito pelo contrário. É você ocupar

o que tem com respeito, dignidade, com garantias. Se o Itaú vai bancar um quarto do

carnaval, parte desse recurso tem que ir pros blocos afro. Tem que vincular a

imagem lá. Tem que criar estratégias pra que as televisões filmem. Se cria tantas

concessões pra outras coisas... Então a ideia não era criar não. Particularmente eu

entendia que tinha que se ocupar o espaço potencial e garantir lá. Ai o que é que

fizeram? Não deu certo o Afródromo. A gente vai pro espaço oficial. Mas o que é

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que fizeram? O espaço oficial normal, quando chega dezoito horas começa o

Afródromo. Tinha que ser no começo. O que é o Afródromo hoje? É um horário.

Então, se antes do Afródromo, dezoito horas ninguém filmava, agora com o

Afródromo continua do mesmo jeito. Então, me parece que mais uma vez a gente

fica a reboque da história. E aí que vem aquela questão inicial. Talvez porque nós

ainda não tenhamos entendido a dimensão que nós temos. Talvez a gente ainda não

se dê conta do que é um bloco afro, numa cidade como Salvador, que é a segunda

população negra do mundo e tal, que não consegue se assumir, se identificar como

tal. E aí no carnaval, que é uma das principais vitrines do que é Salvador, nós

ficamos de fora. Por que não os blocos afro não saírem no carnaval de Salvador um

ano? Vamos ver qual é o impacto disso. Pra chamar a atenção desse, eu não digo nem racismo institucional, mas dessa manipulação que faz com que essas

identidades fiquem mesmo na invisibilidade. Não é que nos somos invisíveis. Muito

pelo contrario. Mil dançarinos no carnaval não são invisíveis. É a invisibilização

disso. E ai eu acho que passa mesmo por uma política pública que garanta essa

visibilidade, porque garantindo a visibilidade, o resto a gente faz. O patrocinador

chega. O cara que ta lá não sei aonde, vai ver, vai querer que a marca dele fique. O

que não dá é que a gente continue fazendo o que a gente faz, fique bonitinho nos

eventos, tapinhas nos ombros, mas na hora da distribuição mesmo desse espaço, a

gente tá fora. E a tendência é cada vez menos. Veja o que eram os blocos afro na

década de 90 e o que são hoje. Você tem o Ilê, Malê, quem mais? Negões, Cortejo

Afro... e o que mais? Muzenza. E deve ter alguns de bairro assim, tipo Mundo Negro, tem o Blocão na Liberdade. Acabou. (Eduardo Santana, entrevista realizada

em abril de 2014)

Essa soma de possibilidades que não se efetivam, vêm causando estrago na

contabilidade dos blocos afro. Sem contar com fontes próprias de financiamento que sejam

capazes de arcar com todos os gastos das instituições, cada vez mais dependentes de

iniciativas do poder público e sem grandes perspectivas, as entidades passam por um delicado

momento de suas histórias.

Após aparecerem em algumas entrevistas que realizamos durante o trabalho de campo,

as dificuldades econômicas das agremiações ganharam a imprensa. Em outubro de 2016,

Vovô concedeu entrevista ao site “Flor de Dendê”182

, em que comunicava que, pela primeira

vez, não haveria cortejo para festejar o aniversário do Ilê Aiyê. Na oportunidade, tratou-se

ainda de uma iniciativa futura da instituição, a saber, a implementação de um projeto de

financiamento coletivo com o objetivo de custear ações específicas do bloco.

No dia 1º de novembro de 2016, quando celebrava seu 43º aniversário, a instituição

emitiu nota oficial, explicitando suas dificuldades econômicas e operacionais, pedindo auxílio

ao poder público e agradecendo a funcionários pela compreensão e cooperação.

182 Disponível em flordedende.com.br/crise-deixa-o-ile-sem-cortejo-de-aniversario/. Acessado em 3 de

novembro de 2016.

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316

COMUNICADO – ILÊ AIYÊ

“Desde 1º de novembro de 1974, quando nem sabíamos que chegaríamos tão longe, tínhamos

certeza que a missão de colocar 100 negros na rua não seria fácil. Mas, mesmo assim, colocamos o

medo de lado e fomos! Desde então, resistimos!

Seguimos na resistência! Hoje, estamos passando pela maior crise financeira que já enfrentamos

desde a nossa criação. Estamos com salários de funcionários atrasados, devendo fornecedores e com

diversas contas em aberto, o que ameaça e muito o funcionamento da Senzala do Barro Preto.

Gostaríamos muito de poder comemorar esses tantos anos de história com o sorriso aberto e a

sensação de alívio em estarmos fazendo um trabalho digno de cada profissional que dá o seu suor

pelo Ilê Aiyê. Mas, infelizmente, hoje estamos com um aperto no peito por percebermos que a luta

ainda há de ser muito árdua.

Não vamos e nem queremos parar. Mas, sentimos muito pela nossa atual situação, principalmente

por entendermos que por mais boa vontade que nossos funcionários tenham, as contas não param de

chegar.

Então, nesse 1º de novembro de 2016, em que comemoramos 43 anos de história e resistência,

queremos pedir atenção para nossa entidade. Queremos pedir que o poder público nos ajude a

manter essa história!

Para além disso, queremos agradecer a todos os funcionários do Ilê, desde quem está todos os dias

na Senzala do Barro Preto a quem nos ajuda até a quarta-feira de cinzas de Carnaval. Vocês, como já

dissemos diversas vezes, são o Ilê que ninguém vê que faz o Ilê que o povo vê!

Axé!”

O bloco, que já não havia participado do Cortejo da Negritude, durante a festa de

Nosso Senhor do Bonfim, em janeiro, deixava de realizar sua própria festa, em razão da crise

econômica.

Desde que tal comunicado foi emitido, passou a ser comum a presença de um

chamado em todas as peças de comunicação visual do bloco: “Ajude a manter os projetos

sociais do Ilê – Vencedor do 27 º Prêmio da Música Popular Brasileira”183

. A curta frase deixa

clara a seriedade da questão. Não se trata, tão somente, do cancelamento de um cortejo de

caráter festivo, mas das próprias iniciativas e projetos levados a cabo pela instituição e que

beneficiam moradores não só da Liberdade como de outros bairros, sobretudo da periferia de

Salvador.

No dia 18 de janeiro de 2017, foi a vez de o Olodum emitir comunicado oficial, para

expor ao público sua situação financeira e anunciar que o Festival de Música e Artes do

Olodum – FEMADUM 2017, estava cancelado. É durante o FEMADUM que são

183 Ainda em 2017 o Ilê Aiyê lançaria uma iniciativa de “crowdfunding”, um financiamento coletivo com

objetivo de obtenção de recursos para realização de projetos através da colaboração de múltiplas fontes de

financiamento, em geral pessoas físicas, interessadas na proposta e nas recompensas prometidas, caso a meta

inicialmente estipulada seja atingida.

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apresentadas as canções que concorrerão à música-tema do carnaval do bloco. Além disso,

são realizados shows musicais e premiações.

COMUNICADO DE CANCELAMENTO DO FEMADUM

“A Diretoria executiva do Olodum vem a público comunicar o cancelamento do Festival de Música

e Artes Olodum – FEMADUM 2017, que seria realizado neste final de semana, nos dias 21 e 22 de

janeiro.

A principal razão que levou a diretoria do Olodum a cancelar o FEMADUM é não ter conseguido

captar os patrocínios necessários a sua realização, mesmo tendo aprovado pelo mecenato do

Ministério da Cultura, um projeto de captação de recursos para viabilizar a nossa ação. Igualmente,

não conseguiu os apoios necessários junto ao governo do Estado da Bahia e nem da iniciativa

privada, que ao longo dos anos se constituíram em importantes parceiros do Olodum na realização

do FEMADUM.

O FEMADUM é um evento público realizado anualmente pelo Bloco Afro Olodum para premiar os

vencedores do festival de músicas do Bloco Olodum, premiar personalidades negras que ao longo de

suas trajetórias de vida tem dado importante contribuição para a defesa, preservação e valorização

da cultura, bem como da população afro brasileira.

O FEMADUM acontece desde 1980 e é realizado gratuitamente no Largo do Pelourinho para um

público aproximado de 10 mil pessoas/dia. Do festival já participaram artistas consagrados das

músicas baiana, brasileira e internacional, a exemplo de Daniela Mercury, Gal Costa, Margareth

Menezes, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Luís Melodia, Emicida, Jimmy Cliff, Koko Dembele e

Andrew Toa, entre outros grandes nomes.

A crise econômica mesclada com crise política transformou-se um mantra para a negação de

patrocínios para os projetos em geral, em especial para os projetos culturais e, mais diretamente,

para aqueles relacionados à cultura negra. Apesar disso, dois importantes eventos que estão

acontecendo em Salvador no mesmo período do FEMADUM, nas mesmas datas, receberam,

merecidamente aporte de recursos da Secretaria Estadual de Cultural, apesar da crise financeira.

Então, se não contamos com a sensibilidade cultural e política dos gestores públicos baianos, nem da

iniciativa privada, principalmente daquelas empresas que se beneficiam com as festas, se optou por

cancelar o FEMADUM e privar baianos e turistas nacionais e estrangeiros deste importante evento

da cultura afro-brasileira.

A decisão de cancelamento do FEMADUM não se estende, a priori, aos demais eventos culturais do

Olodum, a exemplo dos Ensaios de Domingo do Bloco Olodum, das Terças do Olodum e do desfile

de carnaval.

O Olodum se despede pedindo desculpas aos baianos, aos fãs, comerciantes formais e informais, aos

admiradores e a todos os artistas que haviam se comprometidos a participar do FEMADUM.”

Vale ressaltar que em ambos os comunicados, há um apelo ao poder público por

recursos para viabilização das atividades. No caso do comunicado do Olodum, há ainda o

elemento do financiamento de empresas privadas por meio da renúncia fiscal alicerçada na

Lei Rouanet. Mesmo tendo seu projeto aprovado junto ao Ministério da Cultura, a agremiação

não conseguiu reunir interessados suficientes para bancá-lo, o que nos faz lembrar as palavras

de Vovô, sobre o empresariado não querer associar suas marcas aos blocos afro.

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No caso específico do FEMADUM, o clamor do Olodum pelo auxílio do poder

público surtiu efeito. Apenas dois dias após o comunicado, nova nota da entidade informava

que o festival seria realizado.

NOTA - OLODUM CONFIRMA REALIZAÇÃO DO FEMADUM 2017

“O maior festival de música negra da Bahia será realizado neste sábado e domingo com a participação

da Banda Percussiva do Olodum, seus cantores, artistas locais e com a presença do grupo argentino

La Catorce Biz.

A cultura afro-baiana é quem ganha com a realização de três grandes eventos referenciados na cultura

negra. O Festival Internacional de Capoeiragem, o Percpam e, é claro, o Femadum. Todos estes

eventos contaram com o apoio estratégico e o patrocínio do governo do Estado da Bahia.

No caso do Femadum, a sensibilidade cultural e o esforço pessoal do governador Rui Costa, ao tomar

conhecimento do cancelamento do evento, foi o que permitiu que poucas horas após ter anunciado o

cancelamento do evento, voltar a público para informar que o festival do Pelô seria mantido”.

A leitura do comunicado nos permite perceber que o responsável pela verba cedida ao

bloco foi o governo estadual. Exalta-se, inclusive, “a sensibilidade cultural e o esforço

pessoal” do governador Rui Costa (PT). A sensação é de que o comunicado, externado ao

público via nota oficial, serviu como pressão ao governo estadual que, exposto, se viu

obrigado a agir. Diferente fosse, poderia ter liberado a verba antes, sem necessidade de tal

exposição. Tal movimento é um ótimo exemplo de como o bloco, a despeito de todas as

dificuldades econômicas, mantém um poder simbólico suficiente para se fazer ouvido e

atendido. Entra nessa equação, ainda, o grupo político que ocupa o poder estadual no

momento e sua histórica relação com movimentos sociais.

As vésperas do carnaval 2017, no dia 2 de fevereiro, foi a vez do jornal baiano

“Correio”, publicar matéria sobre a situação econômica do Ilê Aiyê. Ressaltaremos um trecho

do texto publicado:

Segundo o diretor do Ilê Aiyê, José Carlos dos Santos, a principal razão das dívidas

é o atraso de uma verba da Petrobras. De acordo com Zé Carlos, a estatal deve duas

parcelas de um contrato de patrocínio vencido no final de 2015, sendo cada uma no

valor de R$ 197 mil.

“O contrato venceu em 2015 e, a pedido da Petrobras, criamos um aditivo,

prorrogando-o até março de 2016. A Petrobras tinha o compromisso de nos passar

cerca de R$ 1,9 milhão. Repassou uns 40% disso a vista e pagou algumas parcelas,

mas faltaram as duas últimas”, revela José Carlos, que dirige o Ilê desde o segundo

ano do bloco.

De acordo com o diretor, a instituição acumula dívidas no valor de aproximadamente R$ 600 mil. “Esse é o nosso débito com fornecedores,

funcionários e terceirizados. Os salários estão atrasados há sete meses e não temos

como pagar o décimo terceiro”, revela José Carlos.

O Ilê Aiyê alega que enviou os relatórios pedidos pela Petrobras, comprovando a

necessidade da verba, mas até hoje não obteve o dinheiro. O desfile de Carnaval, no

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entanto, está garantido, segundo Vovô, com patrocínio da Caixa e do governo

estadual. (“Petrobrás deve cerca de R$400 mil ao Ilê Aiyê”. Disponível em

www.correio24horas.com.br/single-carnaval/noticia/petrobras-deve-cerca-de-r-400-

mil-ao-ile-aiye/. Acessado em 2 de fevereiro de 2017)

A situação do Ilê Aiyê parece ter estimulado os jornalistas a buscar informações sobre

a saúde financeira de outros blocos afro. Já no dia seguinte a publicação da matéria sobre a

dívida da Petrobrás com o Ilê Aiyê, o mesmo jornal “Correio” publicou novo texto, desta feita

sobre os blocos Malê Debalê e Muzenza. Novamente ressaltaremos apenas um trecho do que

foi publicado:

Malê Debalê e Muzenza, segundo seus presidentes, não teriam condições de desfilar

caso o Carnaval fosse hoje.

“Se o Carnaval acontecesse hoje, não sairíamos. Normalmente a 20 dias do Carnaval nossos contratos de patrocínio já estão fechados. E às vezes já temos dinheiro na

mão. Mas neste ano é uma incógnita”, diz Jorge Santos, presidente do Muzenza.

Claudio Araújo, presidente do Malê Debalê, é ainda mais enfático: “É bem provável

que na próxima semana, na terça ou quarta-feira, eu, lamentavelmente, comunique a

Bahia que o Malê, maior balé afro do mundo, não vai desfilar”.

Segundo Claudio, parte dos patrocinadores da instituição tem um débito de R$ 190

mil com o bloco, oriundo do Carnaval de 2016. Com isso, o Malê não pôde quitar

dívidas a fornecedores e prestadores de serviços. “Estamos devendo a costureiras,

seguranças, cordeiros e também a empresa que nos alugou o trio elétrico”, revela o

presidente.

Segundo Claudio, o total de dívidas do Malê Debalê é de aproximadamente R$ 180

mil. “Só a empresa que fornece o tecido das fantasias, a gente deve R$ 30 mil. No ano passado, a essa altura, os tecidos já estavam em nossas mãos, sendo

encaminhados para as costureiras. Mas neste ano não pudemos encomendar os

tecidos porque não sabemos se poderemos pagar”.

O presidente do Malê Debalê diz que, para ir às ruas em três dias de Carnaval, o

bloco precisa de R$ 900 mil. “Mas, até hoje, não recebemos nada das empresas que

costumam nos patrocinar. Somente a Caixa Econômica Federal sinalizou que vai

patrocinar. Mas, ainda assim, nos entregará somente 10% de tudo o que a gente

precisa”, queixa-se Claudio. O Projeto Ouro Negro, do governo estadual, também

deve ceder uma cota, que, segundo o presidente do Malê, será de 25% do total que o

bloco necessita. (“Malê Debalê e Muzenza correm risco de não sair no carnaval”.

Disponível em www.correio24horas.com.br/single-carnaval/noticia/male-debale-e-muzenza-correm-risco-de-nao-sair-no-carnaval/. Acessado em 3 de fevereiro de

2017)

A fala de Claudio Araújo, presidente do Malê Debalê, transparece sobremaneira a

dependência econômica do bloco em relação ao poder público. Até aquele momento, a

agremiação de Itapuã contava apenas com verbas oriundas da Caixa Econômica Federal e

Projeto Ouro Negro, do governo estadual.

Durante a realização da Noite da Beleza Negra, no dia 4 de fevereiro, Vovô falou com

a imprensa sobre a situação econômica do Ilê Aiyê. Sua fala resultou em matéria publicada

pelo jornal “Correio”, no dia 5 de fevereiro. Ressaltaremos três trechos do texto. No primeiro,

Vovô fala da questão de ausência de patrocinadores:

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Cadê as grandes cervejarias, aqui? Nós também somos ótimos consumidores. Para

branco sempre tem espaço. Por que não para a gente? Por que só Nego do Borel e Karol Conka, artistas que são do Sul, têm espaço? (“‘Pra branco sempre tem

espaço’, diz Vovô do Ilê sobre dívida do bloco afro”. Disponível em

www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/para-branco-sempre-tem-

espaco-diz-vovo-do-ile-sobre-divida-do-bloco-afro/. Acessado em 5 de fevereiro de

2017)

Durante nossa conversa, em novembro de 2015, João Jorge Rodrigues, presidente do

Olodum, já chamava a atenção para essa questão, utilizando o mesmo exemplo das grandes

cervejarias dado agora por Vovô, e propondo a adoção dos boicotes como forma de enfrentar

tal situação.

Nós somos grandes consumidores de cerveja, palito, absorvente, gasolina, álcool,

mas a gente age como se fosse um consumidor passivo. Nós consumimos tudo, não

pedimos nem que nossa cara esteja na publicidade. Senão a cervejaria não faria

propaganda nos bairros populares com mulher que não são negras. “Venha beber

comigo”. Essa mulher nem entra aqui. Você tem um produto, mas você odeia quem

consome. Você pega e faz a propaganda com o outro, que às vezes nem consome. É

um consumidor passivo, que não se importa se seu direito não é respeitado, se não

tem seu nariz, sua cara, quando certo é, tem meu nariz, vou comprar. Derrubaria o

modelo econômico e mostraria força de ação econômica no sentido de justiça. Você

pode ter uma força econômica. Vou boicotar. O boicote dos negros é um sentido de

justiça, de reconhecer que você compra, você paga. Se nós somos 80% da

população, como explicar que não conseguimos fazer, 2 ou 3 boicotes efetivos. Qualquer coisa que a gente pare de consumir um dia, o impacto é fulminante. É

preciso experimentar essas formas novas. Acho que os blocos podem educar muito

nesse sentido. Que tal fazer isso, seguir tal caminho, buscar resultados? Aí pode ser

que a empresa A, B ou C, pegue um ator ou atriz negros. (João Jorge Rodrigues,

entrevista realizada em novembro de 2015)

Outro entrevistado que tocou nessa possibilidade do boicote foi Edmilson, mas de uma

maneira menos otimista do que a proferida pelo dirigente do Olodum.

Que tal fazer a campanha “hoje a comunidade da Liberdade não vai consumir

cerveja durante 24 horas”? Durante 24 horas não se vender uma cerveja nesse bairro.

Você vai ver impactar a AMBEV, pra ela trazer mais eventos, atitudes sociais, ação

social, responsabilidade social. Mas o que o moradores responde? “Vou deixar de

tomar minha cerveja? Que nada, Ilê Aiyê tem dinheiro”. (Edmilson Lopes, entrevista

realizada em novembro de 2015)

Retomando a matéria publicada pelo jornal “Correio”, ressaltamos agora o trecho em

que Vovô reafirma a pendência financeira com a Petrobrás, com alusão a operação “Lava

Jato”, da Polícia Federal, e a repercussão da mesma junto a estatal:

As pessoas estavam me recomendando que não falasse sobre isso, mas não posso

deixar de falar. O Ilê está cheio de problemas. A Petrobras está nos devendo. Eu não

estou na Lava Jato. O Ilê não está na Lava Jato. O dinheiro sai pelas tubulações. Não

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é só problema do Ilê Aiyê. É problema dos projetos sociais que eles estão querendo

justificar (“‘Pra branco sempre tem espaço’, diz Vovô do Ilê sobre dívida do bloco

afro”. Disponível em www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/para-

branco-sempre-tem-espaco-diz-vovo-do-ile-sobre-divida-do-bloco-afro/. Acessado

em 5 de fevereiro de 2017)

Em sua entrevista, Sandro Teles falou sobre a questão da “Lava Jato” e em como ela

impactou no repasse de verbas da Petrobrás para o Ilê Aiyê.

A Petrobrás é uma fonte de financiamento do próprio carnaval e das escolas, porque

quem mantém as escolas é o Ilê, com o apoio da Petrobras. Só que com esse

problema da Lava Jato, a gente tá aqui há três meses sem receber salário, por causa

desse problema. A Petrobras parou de ajudar, de dar o suporte oficial. (Sandro Teles,

entrevista realizada em novembro de 2015)

O terceiro ponto que gostaríamos de ressaltar na matéria publicada pelo jornal

“Correio”, diz respeito ao chamado de Vovô a comunidade e entusiastas do Ilê Aiyê, para que

todos possam ajudar no sustento do bloco:

Nós somos maioria nessa terra, pessoal. Nós somos nossos patrocinadores. A casa

está cheia, mas ainda tem muita cortesia. As pessoas tem que parar com esse

negócio de cortesia. Somos negros, todo mundo ama o Ilê Aiyê, é muito bonito o

trabalho social, fazer filantropia, mas tem que ter dinheiro. (“‘Pra branco sempre tem

espaço’, diz Vovô do Ilê sobre dívida do bloco afro”. Disponível em

www.correio24horas.com.br/detalhe/salvador/noticia/para-branco-sempre-tem-

espaco-diz-vovo-do-ile-sobre-divida-do-bloco-afro/. Acessado em 5 de fevereiro de 2017)

As vésperas do carnaval foi a vez do jornal “Folha de São Paulo” dedicar matéria a

delicada situação financeira dos blocos afro de Salvador. Vamos ressaltar quatro trechos do

texto. O primeiro diz respeito à crise no Ilê Aiyê:

Com uma dívida estimada em R$ 600 mil, o Ilê Aiyê vive um cenário crítico: perdeu

o patrocínio da Petrobras e viu a verba que recebe da Caixa Econômica Federal ser reduzida. Com uma captação 60% menor em recursos, a solução foi reduzir o desfile

na avenida: o número de músicos da banda foi reduzido de 70 para 50, a tradicional

ala das baianas não vai desfilar e a quantidade de funcionários, como seguranças e

cordeiros, será menor.

"Vamos sair três dias só porque já tínhamos programado, senão cortaria um dia de

desfile. Estamos no limite", diz o presidente do Ilê, Antônio Carlos do Santos, o

Vovô do Ilê.

A crise também chegou aos projetos sociais mantidos pelo Ilê: o bloco interrompeu

as atividades da escola Mãe Hilda, que atendia a 240 alunos carentes no bairro da

Liberdade, periferia de Salvador. Também foram suspensas as atividades da Banda

Erê, que atendia a cem crianças e adolescentes entre 5 e 16 anos com aulas de percussão. (“Endividados, blocos afro de Salvador cortam músicos e até alas das

baianas”. Disponível em www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1861144-

endividados-blocos-afro-de-salvador-cortam-musicos-e-ate-ala-das-baianas.shtml

Acessado em 22 de fevereiro de 2017.

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O segundo trecho apresenta brevemente a situação do Malê Debalê e de outros dois

blocos afro que não são sujeitos desse estudo, mas que deixam transparecer que a situação

atravessa as mais diversas agremiações:

Se o Ilê vai para a avenida com menos associados, o bloco Araketu sequer vai

desfilar. Este será a segunda vez em 37 anos que o bloco, cuja banda fez sucesso nos

anos 1990, vai ficar de fora da festa. "Os patrocinadores abandonaram os blocos

afro, ficamos sem condições de sair", afirmou Vera Lacerda, presidente e fundadora do tradicional bloco do bairro de Periperi, subúrbio de Salvador. Para este ano, a

solução será fazer um desfile da banda, aberto ao público, com recursos do governo

e prefeitura. Mas sem os tradicionais dançarinos e alegorias.

Fundado em 1981, o bloco Muzenza cortou um dia de desfile e sairá apenas dois

dias. Faltando uma semana para o carnaval, o bloco só tem 30% dos recursos

necessários para custear os desfiles. "Vamos com dificuldade, mas não deixaremos

de marcar nosso espaço na avenida", diz Jorge Santos, presidente do bloco.

O Malê Debalê, tradicional bloco de Itapuã, acumula quase R$ 200 mil em dívidas

de desfiles de anos anteriores. (“Endividados, blocos afro de Salvador cortam

músicos e até alas das baianas”. Disponível em

www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1861144-endividados-blocos-afro-de-

salvador-cortam-musicos-e-ate-ala-das-baianas.shtml Acessado em 22 de fevereiro de 2017.

O terceiro trecho selecionado diz respeito à situação do Olodum:

Mais conhecido entre os blocos afros da Bahia, o Olodum também enfrenta

dificuldades e reduziu a frequência dos seus tradicionais ensaios de verão no

Pelourinho. Vai para a avenida com 60% menos recursos que no ano passado.

Governo do Estado, Caixa Econômica Federal e a companhia aérea Air Europa estão

entre os patrocinadores. (“Endividados, blocos afro de Salvador cortam músicos e

até alas das baianas”. Disponível em

www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1861144-endividados-blocos-afro-de-

salvador-cortam-musicos-e-ate-ala-das-baianas.shtml Acessado em 22 de fevereiro

de 2017.

Por fim, a matéria traz depoimentos de João Jorge e Vovô, bastante semelhantes ao

que foi dito em nossas conversas durante o trabalho de campo.

Presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues critica o que chama de "racismo

institucional" das empresas no patrocínio dos blocos de Carnaval. "O negro consome

celular, geladeira, absorvente, pneu de carro, mas as empresas não nos enxergam.

Não é só a crise, é uma dificuldade histórica. Sempre penamos para conseguir

apoio", diz.

Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, faz a mesma crítica: "É inconcebível que

você não tenha uma cervejaria patrocinando bloco afro. A negrada bebe bastante

cerveja, mas os empresários não veem isso".(“Endividados, blocos afro de Salvador cortam músicos e até alas das baianas”. Disponível em

www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1861144-endividados-blocos-afro-de-

salvador-cortam-musicos-e-ate-ala-das-baianas.shtml Acessado em 22 de fevereiro

de 2017.

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Segundo a reportagem, o Ilê Aiyê precisou interromper vários de seus projetos, como

a Banda Erê, e prejudicou atividades da Escola Mãe Hilda. Se antes a falta de apoio e

patrocínio ameaçava os desfiles durante o carnaval, ela agora se faz sentir na outra face dessa

moeda chamada blocos afro. Se inicialmente não foram concebidos tendo como objetivo essa

atuação de viés assistencialista, fato é que hoje não há como dissociá-la de suas já tradicionais

atribuições.

Durante nossa conversa, Vovô externou certo cansaço e desânimo com as dificuldades

enfrentadas para que os projetos da instituição tenham continuidade.

A manutenção disso aqui é muito complicada. Nós somos uma ONG, mas somos taxados como empresa. Tem isenção de nada. Você preocupado em fazer filantropia.

Se continuar assim, nós vamos diminuir essa coisa de filantropia, ficar um turno só.

Tem verba pra tudo aí. O que estamos fazendo, chamo de atitudes compensatória.

Compensando o que o governo falha. Nossa função não é essa. Sou carnavalesco. Já

ganhei título, prêmio de educador do ano, mas eu sou carnavalesco. Foi minha mãe

que quis fazer a escola, Banda Erê. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Em sua fala, Vovô dá a entender que quando ele e Apolônio imaginaram juntos com

essa entidade que hoje é o Ilê Aiyê, suas pretensões eram menores. Acabaram por ocupar um

espaço deixado vago pelo poder público, olhando para a comunidade na qual nasceram e

foram criados, decididos a fazer algo para tentar transformar sua realidade. Os blocos afro não

nasceram de sonhos, mas de necessidades.

Lembro que, na escadaria que dá acesso a quadra da Senzala do Curuzu, aparecem

grafados junto à laje os seguintes dizeres: “Sem dividir seremos sempre mais”. Trecho de uma

canção do Ilê Aiyê, tal frase parece apontar para o único caminho rumo a um futuro que

pretenda ser mais promissor, e que parece depender apenas das agremiações. O caminho da

maior integração, cooperação e parceria entre os blocos.

Ao longo dos anos em que essa pesquisa se desenvolveu, pude perceber o incremento

em iniciativas que congregam mais de um bloco afro. Cada vez mais comuns são as presenças

de uma agremiação nos ensaios da outra. Eventos conjuntos também se tornam corriqueiros.

Se existe rivalidade entre blocos, o que seria compreensível em um contexto em que

entidades distintas disputam um mesmo espaço, essa rivalidade vem dando espaço a uma

convivência cada vez mais harmoniosa. Não quer dizer que não sigam existindo diferenças e

rusgas entre agremiações e seus membros. Elas permanecem, mas cada vez mais parecem

ceder espaço para uma atuação com vistas a objetivos maiores e comuns. Durante as

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entrevistas realizadas, esse tema surgiu em alguns depoimentos. Nas palavras de Sandro

Teles:

Hoje a relação é muito boa. Tanto é que existe o Fórum de Entidades Negras, que

congrega todos esses blocos, com exceção do Olodum. Olodum era do Fórum, mas

depois achou que não era interessante. Era melhor correr atrás das coisas sozinho e

saiu do fórum. Mas até com o Olodum a relação é muito de irmandade. Não há uma

disputa por espaço entre os blocos afro. Eles correm muito junto. No carnaval a

busca por patrocínio é uma busca pra todos os blocos, não pra um ou pra dois. Claro

que quando o patrocínio vem, não da pra se dividir de forma igual. Porque o Ilê, o Olodum, tem orçamentos maiores que os outros blocos, então há essa divisão entre

esses dois blocos maiores. (Sandro Teles, entrevista realizada em novembro de

2015)

A fala de Edmilson segue caminha semelhante a de Sandro, evocando a necessidade

de aproximação, mas demarcando a diferença entre entidades maiores e menores:

Essa questão do Ilê que acaba sendo mãe das outras organizações. O Ilê faz um

esforço interessante, porque a gente reúne, quando fala do Fórum, pra entender que a

gente é um coletivo e que o pensamento tem que ser coletivo, sem que se perca a sua

identidade. Cada organização não perder sua identidade. O conceito tem que ser

coletivo. O povo das organizações precisa entender dessa questão coletiva. Como

funciona essa relação. Isso dificulta também. Às vezes, falta entendimento de alguns

dirigentes de outros blocos. E aí Vovô é fundamental nessa articulação, porque além

de ser presidente do Ilê, ele tem a força de unir, com a maneira dele de ser. Quando

Vovô vai pra essa discussão, existe uma benevolência. “Ele abriu caminho pra gente. Vamos dar o voto de confiança, dar a recuada necessária”. É uma coisa legal,

porque dentro dessa história nossa, somos diretores, mas a gente entende claramente

o papel social que Vovô exerce. É um ícone. (Edmilson Lopes, entrevista realizada

em novembro de 2015)

Mencionado na fala de Edmilson, Vovô também tocou na questão da união entre as

agremiações afrocarnavalescas:

Hoje você tem que tá sempre pregando isso. Tava em Ilhéus, falando isso pro

pessoal. Tem que se juntar, fazer como antigamente. Um visitar a quadra do outro,

prestigiar, tá junto, fazer projeto junto. Sozinho tá muito mais difícil. Os problemas

são de todos. É respeitando. João Jorge defende muito isso. Tem que respeitar as

diferenças de cada um. Não pode ser todo mundo igual. Seu orçamento é maior,

você tem mais exposição na mídia. Você vai conversar com uma cervejaria, fazer

um projeto com o mesmo valor? Cada um leve seu projeto e o cara vai avaliar. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

Assim como aconteceu com integrantes do Ilê Aiyê, o tema das parcerias e cooperação

também apareceu em depoimentos de membros do Olodum, a começar por Tita Lopes, que

faz algumas ressalvas.

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Nós trabalhamos cordialmente. Nós temos eventos aqui em que homenageamos

diretores e representantes de outras instituições. FEMADUM, por exemplo, já

homenageou Vovô, pelo relevante trabalho desenvolvido. Já trouxemos os nossos

fundadores pra serem homenageados. Trazemos representantes de outras

instituições. Homenageamos em palco, como pessoas que tem de ser vistas de outra

forma, pelo valor que elas têm, por terem construído algo, terem feito algo.

Convidamos representantes, blocos, cantores dos blocos, pra participar da festa

nossa no melhor dia. No melhor momento, nós dividimos o palco com eles. Só que

eles pecam por não se abrirem dessa forma. Querem pra se beneficiar e não

promover um intercâmbio. É muito difícil. Se todos os afros se unissem de verdade,

nós faríamos da terça-feira de carnaval um grande desfile afro. Todos os blocos. Unir as cordas. Cada um fazendo o seu, do Campo Grande até a Praça Castro Alves,

enegrecendo tudo isso aí com arte e cultura. (Tita Lopes, entrevista realizada em

novembro de 2014)

Seguimos com a fala de João Jorge Rodrigues, em que faz interessante menção a Lélia

González ao final:

Temos uma relação de parceria pra projetos, apoio em várias coisas. Tem as

diferenças, que são visíveis, que são fáceis de serem enxergadas, e temos também a

coisa de trabalhar em projetos afins. Carnaval, briga política, estatuto da igualdade, orçamento. Temos uma proximidade boa com o Ilê, com o Malê, com o Muzenza,

com outros blocos afro. Não há uma rivalidade das direções. Há rivalidade dos

associados que dizem “o meu é melhor, toca mais musica, tem mais sucesso”. Hoje,

menos do que foi há 30 anos. A gente compreende que estamos num campo em que

precisamos estar juntos. Se todos os blocos afros e afoxés se reunissem e pensassem

uma direção, poderiam eleger vereadores, poderiam eleger deputados estaduais e

federais. Poderia ditar música na cidade. Poderia consumir menos se as compras

fossem coletivas. Sessenta blocos afro. Todos compram as mesmas coisas, quando

podia comprar pra uso coletivo. O calendário de eventos podia ser otimizado. Podia

se avançar mais se tivesse unidade na ação, que é a proposta, da Lélia González

sempre. Fazer unidade na ação. (João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Dentre as diferentes manifestações sobre a perspectiva de uma cooperação mais

efetiva entre blocos afro, a que mais me chamou a atenção foi a de Miguel Arcanjo. Fazendo

um instigante paralelo, fala um pouco sobre as divergências entre as agremiações:

Eu lhe diria que na época do tráfico negreiro, uma preocupação que os senhores, que

os donos dos navios tinham, era não colocar um grupo de negros da mesma tribo

juntos, porque podiam unificar, criar uma força. Eles mesclavam, eles trocavam,

faziam trocas entre si, de tribos inimigas. E, às vezes, vinha num porão três ou

quatro etnias, três ou quatro tribos inimigas. Isso se perpetuou. Qualquer desavença

que exista entre um ou outro grupo, deve-se a essa coisa que era feita desde lá.

Tribos historicamente inimigas. Atrelado a isso, tem a coisa da vaidade humana. Eu

quero ser melhor do que você sempre. O que acontece? Quando a coisa dos blocos

virou isso de “quero ser melhor do que você”, se tornou competição. Hoje não. Hoje nós temos o Fórum de Entidades Negras, a Liga dos Blocos Afros, tudo que unifica.

Hoje existem patrocinadores que são praticamente os mesmos de todos. Aqui hoje se

fala em grupo, porque a gente descobriu que caminhar junto é muito melhor do que

caminhar separado. Até quem se auto definia como melhor, mais forte, veio a

reconhecer que ele sozinho, isolado, não iria muito longe. Iria, mas cairia. Em

alguns momentos já houve essa coisa de desentendimentos, animosidade entre as

entidades, mas hoje não. Hoje somos todos muito coesos na busca da progressão das

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entidades e do povo de uma maneira geral. (Miguel Arcanjo, entrevista realizada em

novembro de 2014)

Caberá aos blocos a superação de diferenças, para que iniciativas conjuntas possam

tomar corpo e se tornar fortes suficientes para balançar os alicerces que hoje sustentam uma

indústria na qual as agremiações exercem papel coadjuvante. Quando surgiram, objetivavam

incluir o negro na festa, ampliando suas possibilidades para além de tocar tambor e carregar

alegoria.

Finalizaremos essa seção com uma fala de Edmilson, que resume bem o momento em

que se encontram as agremiações afrocarnavalescas de Salvador: “Esse Ilê de que nós estamos

falando, ele é milionário, é rico em capital social. Eu preciso entender o mecanismo de fazer

com que esse capital social se torne capital financeiro”. (Edmilson, entrevista realizada em

novembro de 2015).

5.3.BLOCOS AFRO E POLÌTICA INSTITUCIONAL

SE O PODER É MUITO BOM, EU QUERO PODER TAMBÉM

Variados foram os momentos em que, dissertando sobre patrocínios e apoios,

integrantes dos blocos citaram o poder público como principal responsável pela viabilidade

econômica das instituições184

.

Essa relação entre blocos afro e poder público não é nova, tendo momentos de

convivência pacífica e outros de considerável beligerância. Enquanto as principais

agremiações afrocarnavalescas permanecem no cenário soteropolitano há mais de 35

anos, aqueles que ocuparam os palácios Tomé de Souza, Rio Branco ou do Planalto foram se

alternando ao longo do tempo. Tais mudanças impactaram a forma como os referidos entes se

relacionam, elaborando arranjos que por vezes parecem contraditórios.

Quando o Ilê Aiyê nasceu, em 1º de novembro de 1974, Salvador era governada por

Clériston Andrade, ocupante do cargo por indicação do então governador biônico185

da Bahia,

Antônio Carlos Magalhães, ambos da Aliança Renovadora Nacional (ARENA)186

. A época o

184 QR Code “Alienação” – Ilê Aiyê. Disponível em www.youtube.com/watch?v=t4oOGeG-Fjo 185 Governador biônico era aquele investido no cargo por eleição indireta, tendo seu nome sancionado pelo

governo central, em Brasília, a época da ditadura militar, sendo o modelo de investidura ao cargo entre os anos

60 e 80. 186 A Aliança Nacional Renovadora – ARENA – foi um partido político criado no ano de 1965 com o objetivo de

ser o sustentáculo político da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964.

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país era comandado pelo general do exército, Ernesto Geisel, quarto presidente do período

ditatorial, que se estendeu de 1964 a 1985.

Sem dúvida, não era um momento muito propício para o surgimento de uma entidade

como o Ilê Aiyê. Entretanto, por mais fechado que fosse o regime, as ideias circulavam. E

bastaram algumas dessas para alimentar o desejo de dois jovens moradores da Liberdade, de

criar um bloco diferente do que se via até então.

A gente já tinha informação sobre os Panteras Negras, Angela Davis, Black Power,

poder negro, essas coisas. Mesmo na Ditadura, a gente tinha acesso a essas

informações. A gente tinha vontade de fazer um bloco aqui. A gente pensou em

bloco de índio, em vários nomes. Todo domingo a gente se reunia na praia de Itapuã.

Tinha pessoas, jovens negros de outros bairros, da Federação, a gente curtia lá, e

sempre fazendo samba. Num dia desses, um dia de domingo, sentamos eu mais

Apolônio e começamos a conversar sobre vários assuntos e carnaval também.

“Vamos fazer um bloco?” Foi a primeira vez que nós falamos em afro, um bloco só

de negão. Fomos falar e as meninas disseram: “a gente vai sair também”. Aí ficou

bloco misto, e não bloco só de homem, como o Filhos de Gandhy. Eu desci,

conversei com mãe, que achou a ideia boa, mas disse que tinha uma condição. Que

ela ia sair também no bloco. Depois que eu fui saber que era por causa da Ditadura,

que tinha o perigo de ser preso, de sumir, esse negócio todo. Foi esse o principal

motivo. (Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

Inicialmente nomeado “Poder Negro”, o Ilê Aiyê mudou de nome buscando evitar um

provável embate com o governo ditatorial. Mesmo assim, ao abraçar o discurso e a estética

Black Power, o grupo passou a ser observado mais de perto pelo regime e pelos órgãos de

imprensa que o apoiavam. Em alguns momentos, a agremiação foi entendida como uma

iniciativa comunista.

A pergunta era “o que esses caras tavam querendo, dizendo que tavam querendo

tomar o poder?” Diziam que era uma demonstração comunista. Não chamavam a

gente de racista não, porque aqui tinha a democracia racial. Nós que estávamos querendo fomentar isso, infiltrados por uma filosofia vermelha. Não nos chamavam

de negros, nos chamavam de vermelhos na época. (Antônio Carlos Vovô, entrevista

realizada em novembro de 2015)

Alguns anos mais tarde, no início de 1979, quando são fundados o Malê Debalê e o

Olodum, a Prefeitura de Salvador era ocupada por Mário Kertész, da Arena, mesmo partido

do então Governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. Era o segundo mandato de ACM

como governador do estado (1971-9175 e 1979-1983). Ocupava a cadeira de Presidente da

República o general do exército, João Figueiredo.

Sobre esse período, dissertam Eduardo Santana e Lazinho. Primeiro, o representante

do bloco de Itapuã:

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O Malê já nasce diferente dos outros blocos, porque no primeiro ano que o Malê

entrou na avenida, já entrou com mais de 100 dançarinos. Quer dizer, se imaginar

em Salvador hoje, não faz diferença, mas em 79, quando ninguém falava nisso. Nós

vivíamos em plena Ditadura e a arte era perseguida. Dançarino era coisa de

maconheiro, ladrão, imprestável. Então o Malê nasce rompendo alguns paradigmas.

(Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Seguimos com a fala do cantor do Olodum:

Teve vários casos de racismo naquela época, mas a gente não tinha muito como

gritar, porque era época muito difícil, quando a Ditadura tava em pleno vigor. Na

Ditadura, qualquer coisa que a gente falasse era problema. No mínimo era

espancado no meio da rua, era torturado e até sumir. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Desafiando todos os possíveis prognósticos, as agremiações permaneceram em

atividade, atravessando o ocaso do regime ditatorial e alcançando o período de

redemocratização do país.

Foi justamente a retomada do período democrático, previamente anunciada pelo

retorno de um sistema pluripartidário, que abriu caminho para que blocos pudessem estreitar

suas relações com o poder público, aproximação essa marcada por momentos de

tensionamento e outros de distensão, muitas vezes pautada por tentativas de cooptação.

A relação com Governo, Prefeitura, Governo Federal, é sempre marcada por uma

tentativa de nos levar pra ser do governo, enquanto a gente existe e continua sendo

sociedade civil. O governo nem sempre valoriza o trabalho do Olodum e de outros,

porque ele quer ao lado, junto, quer que essa entidade seja do governo. Elas

precisam existir independentes do governo de plantão. Quando o governo faz coisas

boas, devem aplaudir, mas quando não fazem, devem bater da mesma forma que se

bate naquele que faz coisa errada. No geral, os governos não entendem muito isso.

Eles sempre pressupõem que sociedade civil deve ser assim: “tome aqui um dinheiro

e bata palma. Não critique nada”. O dinheirinho que é ofertado não é tratado como

publico. “Eu, pessoa física, estou no governo e estou lhe ajudando”. (João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em novembro de 2015)

Como o poder público no Brasil tem características personalistas, com o ocupante do

cargo sendo muitas vezes maior do que o cargo que ocupa, mostrou-se interessante aos blocos

uma aproximação direta com os candidatos/políticos eleitos. Não se fala em relacionamento

entre Olodum e PFL, por exemplo. Fala-se de relacionamento entre Olodum e ACM. E é

justamente dessa relação que podemos extrair um episódio exemplar do tipo de conduta

adotada, explicitada na fala de João Jorge. Como relata Eduardo Santana:

Eu lembro de uma campanha aqui. Uma eleição que ACM tinha um candidato e

Lídice da Matta foi candidata a prefeita. E ai o Olodum declarou apoio a Lídice da

Matta. Era do PSB. Ai perdeu a eleição e o ACM tomou a quadra. Porque era uma concessão no Pelourinho. Tomou a quadra. Porque a quadra do Olodum era na

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ladeira. Descia umas escadinhas e tinha a quadra. Ele tomou. Aí o Olodum passou

um ano ensaiando nos bairros. (Eduardo Santana, entrevista em abril de 2014).

Tita Lopes também passou por tal episódio durante sua entrevista: “Tivemos

perseguições aqui com ACM. Várias. Porque ACM gostava de botar o martelo onde ele quer,

e a gente não baixava a cabeça.” (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014).

É interessante ver como essa questão com ACM foi resolvida e encarada pelo ponto de

vista de um representante do Olodum e um de outro bloco, no caso o Malê, a começar por

Tita Lopes:

Tivemos um momento com ele [ACM] quando ele foi pra Brasília. Tivemos um

encontro com ele pra levar pauta de reivindicações que a gente tinha com relação à

cultura na Bahia. Conversamos com qualquer político, desde que não venha

comprometer a nossa linha de trabalho. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

Já Eduardo viu a resolução do episódio de outra maneira:

Eu perdi essa foto que eu tinha, que era uma foto do jornal. ACM era Senador, João Jorge, dois cantores do Olodum e ai a matéria era assim: “Olodum pede desculpa a

ACM pelo erro político cometido”. Eles foram a Brasília pedir desculpa pelo erro.

Não é por acaso que logo depois aí o Olodum vem com essa história de Michael

Jackson, de Paul Simon, aquela coisa da vitrine da Bahia. (Eduardo Santana -

entrevista realizada em abril de 2014)

Sem julgar as versões apresentadas, tanto uma como a outra deixam claro que a

política-institucional pode influir diretamente na vida econômica dos blocos, seja com a

proibição de uso de uma quadra, seja pela negativa de um patrocínio ou subvenção.

O episódio relatado por Eduardo teria acontecido no ano de 1994. Alguns anos depois

ainda era possível observar a aproximação do bloco Olodum, bem como de outras entidades

negras, com ACM e seu partido.

No ano de 2001, a União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), juntamente com o

MNU, Niger Okan, dentre outros grupos reunidos na CONEN, empreenderam forte campanha

pela renúncia do então Senador ACM, postura diferente da adotada pelo Olodum e Ilê Aiyê.

Segundo Olívia Santana, coordenadora da UNEGRO em entrevista concedida para a

revista “Isto É” no mês de abril do referido ano:

João Jorge do Olodum e Vovô do Ilê Aiyê fazem parte de um grupo que acredita que

somente se consegue alguma coisa na Bahia puxando o saco do senador [ACM].

Esquecem que o movimento negro é muito maior do que eles”.187 (“A guerra dos

atabaques”. Disponível em

187 Disponível em www.terra.com.br/istoe-temp/1652/politica/1652_guerra_atabaque2.htm. Acessado em 13 de

julho de 2015.

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istoe.com.br/37665_A+GUERRA+DOS+ATABAQUES/ Acessado em 13 de julho

de 2015)

Já em 2002, terminada a disputa eleitoral, o Olodum ofereceu um almoço em

agradecimento ao apoio que teria recebido do governo para a realização de seus projetos

sociais. Estiveram presentes os senadores eleitos, ACM e César Borges, o governador eleito

Paulo Souto e o prefeito Antonio Imbassahy, todos do antigo Partido da Frente Liberal (PFL),

atual Democratas (DEM), bem como o então governador Otto Alencar, do Partido Liberal

(PL), atual Partido da República (PR).

Antônio Carlos Magalhães viria a falecer no ano de 2007. Por ocasião de sua morte, o

jornal “O Estado de São Paulo” publicou, no dia 24 de julho do mesmo ano, um texto em sua

memória, cujo trecho reproduzimos a seguir:

Sempre trafegou impávido entre os ícones do sincretismo baiano, respeitado por

todas as tendências e linhagens. Patrono do afoxé Filhos de Gandhy e do Olodum,

foi afetuoso amigo de Jorge Amado, Pierre Verger e Carybé. Caetano e Gil, que

certamente nunca pensaram como ele, nunca o criticaram abertamente. Seus

aniversários eram comemorados em Salvador com meio feriado; a festa começava de manhã, com missa na Igreja do Bonfim, a qual ele, membro da Irmandade do

Bonfim, assistia coberto por uma capa de cor vinho, entre parentes e incontáveis

seguidores. (“Memória ACM”. Disponível em

observatoriodaimprensa.com.br/entre-aspas/o_estado_de_s_paulo__34391/.

Acessado em 22 de outubro de 2016)

Seja na fala da coordenadora da UNEGRO, seja no memorial publicado pelo jornal

paulista, ou ainda, na fala do diretor do Malê Debalê, parece haver certo consenso na

percepção de que o bloco do Pelourinho mantinha estreita relação com ACM. Relação da qual

teriam derivado benesses para a agremiação. Ao mesmo tempo, Tita Lopes, diretor do

Olodum aponta para o Ilê Aiyê ao falar da aproximação com ACM:

A comunidade reconhece os méritos da entidade sem atrelar a pessoa. Imagina Vovô

vereador no Governo ACM, na época que ele saiu. Ele é mais atrelado, até hoje.

Atrelado a ACM mesmo. Do tempo da ARENA. Ele, o Muzenza, porque na época eles foram beneficiados. Botou a cara nas eleições. Tomar partido. Literalmente. Ilê

é de direita, Filhos de Gandhy é direita. Eles nunca gostaram de Lula. Eu até gosto

quando fica a Prefeitura de um partido e o Governo Estadual de outro, porque eles

vão brigar entre eles pra trazer melhoria pra comunidade. Quando isso acontece, eu

gosto porque fica mais fácil pra dialogar. E eles vão fiscalizar um ao outro. (Tita

Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

A situação poderia ser simplesmente observada pela ótica de um alinhamento

partidário da instituição (ou das instituições), congregando interesses junto a legendas e

grupos políticos mais próximos de seus ideais. Entretanto, quando pensamos que ACM e seu

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PFL representavam as oligarquias locais, parece complicado encontrar um ponto de

intersecção entre os interesses desses e os de um bloco como o Olodum ou o Ilê Aiyê.

Essa suposta incoerência reaparece quando avançamos no tempo até os dias atuais e

retomamos o episódio do trabalho de campo, em que pude presenciar a nomeação do

Conselho Consultivo do Olodum, oportunidade em que políticos como Lídice da Matta (PSB)

e Sérgio Gabrielli (PT) foram escolhidos para compor tal grupo.

A propalada incoerência desaparece quando observamos que o alinhamento com ACM

se deu enquanto este ocupava cargos centrais na política baiana. O mesmo pode-se dizer da

escolha de Da Matta e Gabrielli, que naquele momento faziam parte da base que sustentava os

governos de Dilma Rousseff e Jaques Wagner, ambos do PT, então Presidente da República e

Governador da Bahia, respectivamente.

Tal aproximação se tornaria explícita quando da visita da Presidente Dilma Rousseff,

candidata a reeleição no pleito de 2014, a Casa do Olodum, onde se reuniu com integrantes do

bloco e de demais entidades do movimento negro, acompanhada pelo Governador Jaques

Wagner. A Presidente passou ainda pelo Curuzu, em visita a sede do Ilê Aiyê.

Percebe-se que o alinhamento não observa tanto a legenda do ocupante dos cargos

centrais, mas o contexto em que estão inseridos. Em um período em que o Brasil e a Bahia

eram comandados por políticos do PT, mostrou-se interessante às entidades uma maior

aproximação com tal partido e seus aliados. Quando era o PFL quem governava a Bahia, era

com essa legenda que os blocos buscavam aproximação.

Goldman (2001), citando Anamaria Morales (1988), Cecília McCallum (1996) e

Olívia Cunha (1998), afirma que os blocos tendem a se tornar parte de uma dinâmica

clientelista, buscando formas de ampliar e diversificar suas relações políticas. Concordamos

com José Murilo de Carvalho (1997) quando este afirma que o clientelismo perpassa toda a

história política brasileira, variando ao longo do tempo, de acordo com os recursos

controlados pelos atores políticos. Assim sendo, não seria exclusividade dos blocos manter tal

relação com o poder público, senão mais um exemplar de tal tipo de relação entre atores

políticos, envolvendo troca de apoio político por benefícios públicos.

É justamente a dinâmica clientelista que nos auxilia na compreensão desses arranjos e

rearranjos políticos realizados pelos blocos afro, uma vez que no clientelismo é comum a

mudança de parceiros de acordo com as posições ocupadas no tabuleiro. Tal qual em uma

partida de xadrez, o movimentar das peças faz com que novas estratégias sejam traçadas, sem

que o objetivo inicial da partida seja alterado.

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É interessante percebermos como tal dinâmica aparece em outras organizações de

cunho afro-brasileiro, como é possível ver em Santos (2005), a respeito dos candomblés de

Salvador.

Tendo em foco o período em que Antônio Carlos Magalhães governou a Bahia, nas

décadas de 1960 e 1970, Santos destaca dois episódios emblemáticos da relação entre

candomblés e poder público. O primeiro deles, ocorrido em 1972, foi a celebração do

cinquentenário da iyalorixá Mãe Menininha, no terreiro do Gantois, que contou com a

presença do governador ACM, do Prefeito de Salvador, Clériston Andrade, do então Senador

Heitor Dias, além de outros políticos. O segundo, ocorrido anos mais tarde, em 1975, relata a

visita de dezenas de filhas e mães de santo ao Palácio de Ondina, sede do Governo da Bahia,

para agradecer ao mesmo ACM pelo apoio a preservação das religiões de origem africana no

estado. Segundo o autor, haveria uma continuidade simbólica da segunda visita em relação à

primeira.

Há de se salientar que esses constantes arranjos e rearranjos se dão em um ambiente de

troca em que os atores envolvidos detêm desiguais porções de poder. No caso do clientelismo

político, via de regra, o polo estatal é sempre a parte mais poderosa. Nesse sentido, é curioso

notar nas falas de Edmilson e Tita Lopes, a tentativa de tornar simétrica tal relação. A

começar por Tita, falando da passagem de Dilma pela Casa do Olodum:

Qualquer pessoa que tem que se eleger a um cargo como esse [Presidente da

República], não pode esquecer o Olodum, enquanto representante do movimento negro. Receber Dilma pra gente foi como se tivesse recebendo você. Claro que tem

todo o peso, mas nós recebemos Dilma aqui como recebemos Lula antes, fazendo

campanha, depois Presidente, da mesma forma que nós estamos te recebendo e

recebemos os meninos aqui. Porque nós entendemos que ela é cidadã tanto quanto

cada um de vocês Ela não veio sem saber o que era aqui ou quem estava do lado

dela. Foi excelente pra gente ter recebido, mas também foi muito bom pra ela ter

compartilhado esse momento. Você viu na TV? Acho que foi ate algumas

propagandas da campanha dela com a gente. Na verdade ela relaxou. Ela tocou, ela

dançou. Era a Presidente da República na sede do Olodum. Oxente! Pelo amor de

Deus! (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

Por sua vez, a fala de Edmilson se refere à presença de Lula na Caminhada da

Liberdade, no ano de 2015:

Você vai estar conosco aqui na sexta. Você tá vendo uma virada de página. As pessoas precisam ter a maior dimensão sobre o que vai acontecer. Esse cara [Lula] tá

se reorganizando pra voltar ao Planalto. Identificou todas as áreas e os pontos fortes

que ele pode usar. Cabe a nós capitalizarmos isso aqui também. Esse Ilê político que

traz outras organizações pra serem organizações políticas, ele tem de ser partidário

mesmo. (Edmilson Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

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Quando vemos essas idas e vindas das instituições, com constantes aproximações e

distanciamentos de legendas antagônicas, pode parecer que estamos presenciando um jogo em

que vale tudo em nome da conquista de seus interesses, beirando uma promiscuidade

ideológica. Entretanto, quando se mergulha mais a fundo nesse universo, percebe-se que,

mesmo essa maleabilidade política possui limites. Exemplar nesse sentido é o episódio

envolvendo Paulo Maluf, então candidato a Prefeitura de São Paulo (1992), e o Olodum. Nas

palavras de Tita Lopes:

Eleição de Maluf. Nós estávamos na época numa excursão na Europa e foi tomada a

decisão aqui de fazer um show em São Paulo, no comício de Maluf. Na época a

gente já estava fechado que não iríamos fazer, participar da “malufagem”, Na época

que ele saiu pra Prefeito de São Paulo. O Olodum viajou pra lá com diretor que

sabia de toda a armação e quando chegou na hora do show, o pessoal pensando que

ia ser um show normal, era no comício de Maluf. Fizeram o show, receberam o

dinheiro. Quando retornamos da Europa, pegamos o dinheiro todo e fomos devolver

a Maluf. Foi um escândalo. A “Veja Bahia” jogou no mundo. Nós não tínhamos

porque fazer um showmício político dessa forma. E ainda mais, ainda expôs

basicamente a gente a tudo de ruim atrelado a Maluf. Nós fomos devolver. Conversamos com qualquer político, desde que não venha comprometer a nossa

linha de trabalho. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014)

O episódio também foi narrado por Dantas (1994), em seu livro sobre o bloco do

Pelourinho:

A imprensa foi convocada para uma entrevista e, reunidos sob o comando do

diretor-presidente João Jorge, representantes do Olodum apresentaram cédulas correspondentes a 10 mil dólares que seriam devolvidas, por uma questão de

princípios, ao comitê do candidato Paulo Maluf, que disputava, então, a prefeitura de

São Paulo. Surpreendendo a todos e causando forte impressão, o diretor-presidente

informou que, com a maior parte da diretoria em viagem com a Banda Olodum

numa excursão por vários países da Europa, dois diretores assinaram um contrato

com uma produtora para um show em São Paulo que, segundo afirmaram esses

diretores, não estava esclarecido que fosse um show de um comício do candidato.

Contrato assinado, teriam sabido do que se tratava verdadeiramente apenas quando a

banda já se encontrava em São Paulo, e assim foi impossível cancelar o show,

apresentado no dia 12 de setembro. Assim, com o retorno ao Brasil dos principais

dirigentes – entre eles o Diretor-Presidente, João Jorge – decidiram devolver o dinheiro do cachê e pagar aos músicos da banda com os recursos próprios do

Olodum. Segundo declarou João Jorge na ocasião, os valores do Olodum, que

defende a democracia racial e uma justa distribuição de renda no Brasil não se

ajustavam a um candidato conservador e racista. (DANTAS, 1994, p. 82)

Essa abertura para tratar com qualquer político, resguardados alguns limites, encontra

eco em uma interessante passagem da entrevista que nos concedeu Vovô:

Esse negócio de fidelidade partidária é só pra sofrer retaliação. Não adianta

combinar com o Governador. Boto minha cara, os caras aparecem dizendo que vão

votar nele, sabe o que significa, porque um bocado de gente me acompanha, e

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depois você não tem gente sua nem no primeiro, terceiro, quarto escalão. Pessoas

que fazem o papel andar pra frente. Você só tem quem faça andar pra trás. Política é

um negocio muito complexo. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em

novembro de 2015).

Claudio Araújo, presidente do Malê Debalê, também comentou sobre os problemas de

se atrelar o bloco a um grupo político específico.

Não acredito que uma instituição séria deva tá mergulhada em um grupo político

partidário, porque enquanto é o Governo, ou enquanto situação, é ótimo que a gente

esteja apoiando aquela pessoa. E quando aquela pessoa passa a não estar mais no

poder? Como fica a instituição? De modo que a nova gestão, eu, Miguel Arcanjo, a

gente visualiza a política partidária como um meio pelo qual a gente deve chegar pra

conseguir algo, como qualquer coisa em nossa vida pública, mas entendo também

que não deva ser prostituto, o Malê Debalê dessa situação, porque quando o negócio

chega, chega fervendo, e o Malê Debalê sempre foi alvo disso, por conta de um

equívoco muito grande e as pessoas tá fazendo menção ao nome do Malê Debalê

junto a um determinado político, quando na verdade não deve ser assim. (Claudio Araujo, entrevista realizada em novembro de 2015)

A retaliação, mencionada por Vovô e deixada implícita por Claudio, pode se dar de

diversas maneiras. Quando um grupo político assume o governo, tal retaliação pode se dar

pela negação de verbas, patrocínios ou na não inclusão em iniciativas e programas estatais.

Entretanto, mesmo quando um grupo político não alcança a vitória nas urnas, a retaliação

pode vir. Vale lembrar que a família Magalhães, cujo expoente político foi ACM, e que conta

com o atual Prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), é proprietária da Rede Bahia, maior

grupo de comunicação do Norte e Nordeste do país. A TV Aratu, afiliada do SBT na Bahia,

pertence a Nilo Coelho, ex-governador da Bahia (1989-1991), ex-deputado federal, tendo sido

candidato a Vice-Governador, na chapa encabeçada por Paulo Souto (DEM), nas eleições de

2014.

Para grupos que almejam visibilidade midiática, indispor-se com tais pessoas pode

levar a um boicote ou mesmo a campanha difamatória. Não por acaso, apesar de considerar

que não deva haver essa fidelização partidária, o Malê Debalê levou sua rainha para dançar

em praça pública, em comemoração ao aniversário de ACM Neto, o mesmo que sempre

encontra lugar na varanda do terreiro de Mãe Hilda, quando da saída do Ilê Aiyê no carnaval.

Diante desse quadro, se engana quem imagina que tais agremiações estão sendo

usadas pelos grupos políticos locais. Pode ser que não haja a simetria de poder imaginada por

seus integrantes, mas não restam dúvidas de que a aproximação entre blocos e a esfera

político-partidária se dá com base em interesses mútuos. Como disse Edmilson em sua

entrevista: “Eu vou permitir que Daniel me use, sabendo que vou usar Daniel em algum

momento. É permuta, é troca, é negociação estratégica” (Edmilson Lopes, entrevista realizada

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em novembro de 2014). Tendo isso em vista, percebe-se que a concessão de benesses pelo

poder público em momento algum é vista como benevolência desinteressada. Os blocos

jogam o jogo político sabendo muito bem os papéis que desempenham cada um de seus

jogadores. Não há inocência ou ingenuidade em tais agremiações, mas sim atuações

interessadas. Quando a varanda do Ilê Axé Jitolu é tomada por políticos de diferentes

partidos, durante a saída do Ilê Aiyê para o carnaval, há uma clara permuta. É tão interessante

para os políticos, sejam eles ocupantes ou postulantes a cargos públicos, tomarem lugar em tal

cerimônia, quanto para o Ilê Aiyê receber tais personagens. Nas palavras de Miguel Arcanjo:

Poder público é um poder instituído e constituído para atender a uma determinada

classe. É eleito pela plebe, pela comunidade e tudo o mais. Mas é do berço das

classes mais favorecidas. Não existe uma política do poder público para benefício do

conjunto da comunidade. Nós vivemos de pequenos obséquios, pequenos favores,

pequenos agrados, mas não tem a preocupação com o conjunto, com a comunidade,

com a população, já que nós temos 80% da população de miseráveis ou quase

miseráveis. Não existe uma política dirigida para esses grupos, pra essa maioria.

Sempre vão ter esses que vão se eleger. São esses que frequentam as melhores

escolas, esses que têm as melhores formações e eles que têm o poder. São eles os donos de banco, são os donos de empresa, que não tem nenhum interesse em

socializar nada disso. E aí quando vem um bloco afro, seja Malê Debalê, Olodum,

Ilê Aiyê, Muzenza e qualquer um desses, é um representante da plebe, da galera de

baixo, o qual ele não tem o menor interesse em projetar. A gente vai por conta e

risco. Portanto, a relação com o poder público é uma relação discriminadora

mesmo. É uma relação cruel. Eu questionaria e colocaria uma interrogação. Poder

público? Qual é o público? Eu não tenho nenhum poder e não tenho ninguém me

representando lá. Não tenho ninguém falando comigo, preocupado com os meus

anseios. Portanto, eu não vou esperar. A gente faz. Quando a gente monta uma

escola com 400 alunos aqui, a gente ta fazendo, tirando da marginalidade, tirando da

rua. A gente ta fazendo a função do poder público. Simplesmente o poder público não existe pra gente. O poder público é para servir uma minoria de 17%, 20%, da

classe média brasileira. Não tá preocupado com o movimento dos negros.

Infelizmente, já tô com quase 60 anos, mas não acredito que isso vá mudar. Eles

querem manter esse comando. Querem manter a gente vivo. Tava observando meu

gato em casa. O gato não mata a presa dele. Ele pegou uma baratinha lá. Ele não

mata não. Ele bate, bate, bate e bate. Quando ele vê que a barata tá quase morrendo,

ele vai lá, levanta, dá uma sacudidela e sai de perto. A baratinha, leia-se o povo, não

pode morrer, porque eles precisam do povo, pelo menos pra votar neles. Quando

eles matam o povo, eles perdem o poder. Mas o povo não pode crescer, não pode

avançar, senão sai das garras deles. Esse é o perfil do poder público brasileiro.

(Miguel Arcanjo, entrevista realizada em novembro de 2014)

A clareza com que Miguel Arcanjo lê a situação é exemplar do entendimento

demonstrado pelos personagens que fazem a história dos blocos afro. Como dito, não há

inocência. Sabe-se que aquilo que é oferecido pelo poder público é um pequeno agrado, que

soluciona questões pontuais, mas que não resolve os verdadeiros problemas. Dissemos, ao

longo do texto, como os blocos se identificam com as comunidades nas quais foram criados.

Um dirigente do Malê Debalê sabe que uma verba do Carnaval Ouro Negro lhe ajuda a

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colocar o bloco na rua, mas que, ao mesmo tempo, a inobservância do poder público faz com

que não haja outra escola infantil em um raio de alguns quilômetros, a não ser a escola criada

pelo próprio Malê Debalê. Quando Edmilson reclamou da falta de coleta de lixo na ladeira do

Curuzu, estava, de certa forma, pontuando como o poder público se mostra presente, ao

patrocinar o bloco, mas, ao mesmo tempo, ausente, ao permitir o acúmulo de lixo de fronte à

sede do mesmo.

Como os blocos afro poderiam resolver essa equação, que envolve fidelidade aos seus

princípios fundacionais e aproximação de grupos políticos específicos? Miguel Arcanjo deu a

dica ao dizer que não se sente representado por aqueles que hoje ocupam os cargos eletivos,

nas diferentes esferas de poder. A resposta está na própria semente da qual germinaram as

agremiações afrocarnavalescas: o protagonismo negro.

Esse foi um tema que surgiu de maneira natural em várias das entrevistas realizadas ao

longo do trabalho de campo. Vamos expor alguns desses apontamentos, a começar por uma

fala de Edmilson:

A gente não vai resolver nada se não tiver dentro das esferas de poder. Eu preciso ter

uma bancada negra de vereadores, de deputados estaduais, de deputados federais. O

Planalto tá lá. É a esfera de poder. Ou a gente começa a entender como funciona essa engrenagem, ou a gente vai ficar numa coisa circular, numa mesmice. Já chega

da gente ser massa de manobra, de ser usado. Se eu chegar em Brasília com um

projeto de lei, com determinações, aonde eu tenho uma bancada forte, que tá sendo

fortalecida no estado pela bancada estadual e pela Câmara de Vereadores, você

abala. To dentro de Salvador. 87% da população majoritariamente negra. Tô dentro

da Liberdade, com 600 mil pessoas. 600 mil votos eu elejo quantos vereadores?

Quantos deputados estaduais? A comunidade não vê o poder que ela tem. Não

consegue dimensionar que você quebra um graveto, mas você não quebra um feixe.

Você bota um graveto na mão e quebra. Se você coloca um feixe, não quebra.

(Edmilson Lopes, entrevista realizada em novembro de 2015)

Vovô também entrou nessa seara, afirmando a necessidade de que os negros estejam

presentes nas diferentes esferas de poder:

Eu falo muito que o negro tem que tá no poder. Não adianta a gente só ser usado pra

fazer coeficiente. Só utilizado pro voto. Depois que passam as eleições, muda tudo.

E agora tô disposto a brigar. Vem eleições aí. Aqui nós temos a tradição de apoiar só

candidatos negros. Falamos abertamente isso. Não botamos coisa de candidato

branco. Pra chapa majoritária nunca tem candidato negro. Pra deputado, vereador,

estadual, federal. Eu sou sociedade civil. Não apita nada. Aqui tem projeto de ações continuadas, que significa na verdade que uma série de entidades, todas brancas,

ligadas a Igreja e não sei o quê, recebem verba mensal do governo pra manutenção.

Não tem nenhuma entidade negra, terreiro de Candomblé, nada. Isso tem que mudar.

Ontem aqui o que tinha de político, Senador, Deputado. Mas ninguém botou um

tostão ali. (Antônio Carlos Vovô, entrevista realizada em novembro de 2015)

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Se o tema da política institucional inspirou comentários em diversas entrevistas, foi

com João Jorge que ele foi mais bem desenvolvido. Talvez seja pelo fato do presidente do

Olodum ter se envolvido mais fortemente com esse universo nos últimos anos.

Em 2009, João Jorge filiou-se ao Partido Verde (PV), com o objetivo de candidatar-se

ao Senado nas eleições de 2010. Entretanto, seu nome foi vetado pela executiva do partido.

Contrariado, João Jorge abandonou a legenda e filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro

(PSB). Foi na condição de filiado a tal legenda que o nome de João Jorge foi cogitado para

Vice-Prefeito na chapa PC do B/PT/PSB, para as eleições municipais de 2016, encabeçada

por Alice Portugal. A possibilidade foi rechaçada por João Jorge, que denunciou haver espaço

para negros nas eleições baianas apenas como coadjuvantes, nunca como principais nomes de

chapa. De fato, o pleito municipal de 2012 foi exemplar nesse sentido. A chapa vitoriosa de

ACM Neto (DEM), teve como vice Célia Sacramento188

(PV), militante do movimento negro.

Já a chapa de Nelson Pelegrino (PT), apostou no nome de Olivia Santana (PC do B),

educadora e militante do movimento das mulheres negras.

Sobre a necessidade da presença negra nas diferentes esferas de poder, e a dificuldade

para efetivação dessa presença, pontuou João Jorge:

Se criou um modelo em que é possível votar, mas não é possível ser votado. Você

pode votar, mas pra ser votado, precisa ter partido, e os partidos têm dono. Toda

uma organização que impede a ascensão de negros, índios e mulheres. Seria

interessante o Brasil tê-los no quadro político. Não tem mulheres gordas, negona,

indígena no parlamento. Por que? Porque não é dada a possibilidade dessas pessoas

chegarem nesses lugares. O poder cultural confronta com isso. Muitos de nós não

somos deputados, vereadores, nem senadores. Mas cada vez que a gente vai na

Câmara, a presença minha, de Vovô, choca, porque parece que aquele lugar, que é

de todos os brasileiros, não está preparado pra receber brasileiros diferenciados, que

se expressam diferente, que se vestem diferente, que tem demandas diferentes. A Câmara dos Deputados é casa do povo. Você vê alguma pessoa ali muito parecida

com alguém do povo? É casa de um tipo de povo. Tem a ver com a estética, as

roupas que se usa e tudo. Abdias do Nascimento, quando foi Senador, ia pra lá de

roupas africanas, e o pessoal fazia agitação porque não queria ele lá. Ora, uma casa

do povo caberia até um deputando indo de cocar, do ponto de vista da legitimidade.

Você não pode pedir que ele se transforme em outra pessoa pra representar o decoro.

Em que momento a honestidade está imputada num corte de cabelo, nas saias ou nas

roupas? (João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em novembro de 2015)

Em outro trecho da fala, João Jorge faz considerações sobre os caminhos possíveis

para que essa representação se torne viável.

Consciência é um balde que tem de encher e transbordar. Consciência se leva dez,

quinze, vinte anos pra deixar de ser do líder pra ser de todos. O trabalho em peso do

Olodum é pra gerar uma atmosfera em que as pessoas se sintam líderes,

188 Filiada ao Partido Pátria Livre (PPL), Célia Sacramento concorreu a Prefeitura de Salvador no pleito de 2016.

Ficou na 6ª colocação com apenas 3.079 votos.

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mobilizadoras, participantes, que com uma consciência negra para a política, para a

economia. Se você anda em Salvador, você percebe uma cidade em que a presença

negra, as tranças, os cabelos, a forma de andar, é muito forte. Já tá consolidada. Nós

somos negros e somos a maioria. Mas quando você vai pra Câmara de Vereadores,

pra Assembleia Legislativa ou Câmara Federal, Senado, vai ver que a presença é

zero. É como se nós não nos importássemos de ser maioria da população, ter a

maioria das necessidades, mas não zelar por elas, não cuidar para que sejam

atendidas. Uma iyalorixá pode ser candidata à vereadora? Deve. Um presidente de

bloco afro deve ser candidato ao Senado? Deve. Deve ter gente dos blocos na

Secretaria? Deve. Estando nesses lugares, o que deve fazer? Operar pra resolver os

problemas das nossas comunidades, tirar a litigância de má fé e, ao mesmo tempo, promover mais a igualdade, com mais recursos nas áreas de saúde, educação,

segurança, ciência e tecnologia, esporta e lazer. Por quê? Porque tá na hora também

de não se falar do negro abstratamente. A gente já sabe o que é negro. “Você disse

que era pra ter cabelos rasta, eu tenho. Você disse pra ser negão, eu sou, meu filho é

negão. Toda uma participação geral e eu vivo como? Continuo na mesma favela.

Continuo a não ter acesso. Não posso comprar as coisas”. A gente precisa falar

também da economia, que as pessoas precisam, além de ser negra, precisam

progredir de vida. Quando um país desenvolve, as pessoas também desenvolvem.

No nosso caso, o país desenvolveu, mas as pessoas continuam. Você vê os blocos

afro e vários grupos culturais. Uma força extraordinária, mas quem faz sucesso na

Bahia? Quem são os artistas que fazem sucesso e ganham dinheiro com o show business? Você tem muito o que fazer. É um campo vasto. É um campo miserável,

porque com Gandhy, Olodum, Ilê, Mãe Stela e tantos agentes negros na Bahia, tem

pouco espaço de poder. Isso precisa ser mudado pelo poder político e econômico. E

tá na hora. É agora. (João Jorge, entrevista realizada em novembro de 2015).

Se as candidaturas de João Jorge acabaram não saindo do papel, outros expoentes das

agremiações já tentaram sua sorte nas urnas. O primeiro deles foi Vovô, candidato a vereador

nas eleições de 1989. Na ocasião, o presidente do Ilê Aiyê conseguiu menos de mil votos, não

sendo eleito.

Josélio Araújo, fundador do Malê Debalê, realizou tentativas mais recentes de ocupar

um lugar na Câmara Municipal de Salvador. Sob a alcunha de “Josélio do Malê”, em 2008,

candidatou-se pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), conseguindo 2.832 votos, número

insuficiente para ser eleito. Em 2012 repetiu a candidatura pelo PTN, atingido o número de

3.582 votos. Uma melhora expressiva, mas que seguiu sendo insuficiente para a conquista de

uma cadeira no parlamento local. Já no pleito de 2016, Josélio conseguiu seu pior resultado

até então, com 1.029 votos.

Os dados do Tribunal Superior Eleitoral, referentes às eleições de 2012 e 2016,

indicam que, em se tratando da distribuição dos votos de Josélio por zonas eleitorais, a maior

parte de seus eleitores se concentra justamente em Itapuã, casa do Malê, ou em bairros

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adjacentes. Os números indicam que a candidatura do fundador do bloco não conseguiu

ecoar189

para além de sua natural área de influência.

Tabela 17. Votação por Zona – Joselio do Malê – 2012-2016

2012 2016

Zona Bairros Votos Zona Bairro Votos

10 Itapuã, Imbuí, Bairro da Paz,

Patamares, Pituaçu. 2.373 12

Itapuã, Nova Brasília, São

Cristovão. 612

19 Nova Brasília, Cajazeiras,

Mussurunga, Cana Brava, Boca

da Mata.

247 10 Itapuã, Imbuí, Bairro da Paz,

Patamares, Pituaçu. 101

12 Itapuã, Nova Brasília, São

Cristovão. 102 2

Amaralina, Nordeste de

Amaralina, Engenho Velho da Federação, Rio Vermelho.

39

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral

Quando pensamos em quantos componentes um bloco afro como o Malê Debalê tem,

é possível especular o potencial eleitoral de tal coletivo. Entretanto, o número de votos de

Joselio, em nenhum pleito, igualou o número de integrantes do bloco. Jaílson, integrante do

Ilê Aiyê, em conversa com Risério, afirmou: “Eles são uma minoria, e nós podemos botar mil

negros na rua, a qualquer hora” (RISÉRIO, 1981, p. 85). Na ocasião, discutia-se a diferença

de potencial de mobilização do MNU e do Ilê Aiyê em Salvador. Pouco tempo depois, Vovô

não conseguiu os votos desses mesmos mil negros. As tentativas eleitorais de Josélio e Vovô

demonstram que ter milhares de pessoas na avenida, não significa ter milhares de votos nas

urnas.

Em sua entrevista, Tita Lopes sentenciou: “Se João Jorge saísse candidato, ele não se

elegeria. Vovô saiu candidato a vereador e não conseguiu nem metade do que ele precisava de

votos”. (Tita Lopes, entrevista realizada em novembro de 2014).

Sérgio Pereira, morador da Liberdade, ao falar de Vovô, chegou a comentar sobre a

possibilidade do Presidente do Ilê Aiyê se candidatar a algum cargo eletivo, e qual seria sua

reação:

É aquele negócio. Acho que Vovô é muito importante pro Ilê. Sem ele, não sei se o Ilê sobrevive, porque ele que tá lá desde o início. Ele é a base do Ilê. Mas isso é uma

coisa. Outra coisa é Vovô ser candidato a vereador ou prefeito. No Ilê eu acho que tá

tudo bem, mas pra esses cargos, acho que não daria certo. Eu não votaria nele. Não

tenho nada contra, mas não votaria nele. Porque nesses cargos você tem que pensar

189 O canto Igor Kanário (autoproclamado “Príncipe do Gueto”), que apareceu em nosso texto quando tratávamos

da exposição midiática dos artistas no carnaval de Salvador, foi eleito vereador no pleito de 2016, com 11.432

votos.

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em todos e ele ia pensar só em uma parte do povo. Eu sou negro e não acho isso

certo. Tem que ser pra todos. (Sérgio Pereira, entrevista realizada em novembro de

2014)

Quando mencionamos a possibilidade dos blocos se apoiarem economicamente sobre

seus associados, entusiastas e foliões, apontamos a diferença existente entre envolvimento e

comprometimento. Entendo que os blocos conseguem mobilizar um considerável número de

indivíduos até o ponto do envolvimento, ou seja, de fazê-los tomar parte da instituição. Dali

para o comprometimento, que implicaria tomar a responsabilidade da instituição para si,

buscando atingir seus objetivos, há uma distância. Para esse segundo passo, o número de

indivíduos mobilizados é reduzido. São aqueles que participam do dia-a-dia da agremiação,

que conhecem suas engrenagens e são capazes de compreender todo o seu funcionamento.

São os indivíduos que internalizam o discurso do bloco, tornando-o parte de suas próprias

ideias e convicções. Com base nelas, está ao lado do bloco, seja para oferecer garantias

financeiras, seja para apoiar um candidato que a agremiação considere interessante.

Hanchard (2001) nos dá uma pista para entender tal situação quando versa a respeito

da identificação racial construída sobre diferentes tipos de solidariedade baseados em

semelhanças. Segundo o autor, há um tipo de solidariedade baseada nas chamadas

semelhanças fortes, aquelas capazes de criar uma mobilização estratégica, de unir um coletivo

em favor de um objetivo comum, sendo possível, para tanto, superar as divergências

existentes entre diferentes grupos. É o tipo de semelhança desejável por todo movimento

social, pois fomenta uma organização forte e unificada. Costuma emergir em momentos de

maior conflito e tensão, em que o coletivo percebe sua existência ameaçada.

Em contrapartida, haveria a solidariedade baseada em semelhanças fracas, que se

estrutura a partir de um reconhecimento fenotípico, que evoca uma ideia de história

compartilhada. Se as semelhanças fortes ensejam uma mobilização estratégica, aqui a inclusão

se dá pelo viés afetivo. Esse tipo de semelhança não possui força suficiente para transpor os

obstáculos impostos por posicionamentos ideológicos de nenhuma ordem.

Para Hanchard, a identificação racial baseada nas semelhanças fracas seria a mais

corriqueira dentre os negros brasileiros. Nesse tocante, creio que a fala de Sérgio Pereira,

citada anteriormente, seja exemplar de como essas semelhanças fracas estabelecem as bases

da relação entre blocos afro e coletivo negro.

Para o autor, o mito da democracia racial brasileira seria responsável pela atenuação

do entendimento da segregação racial existente, evitando que se estabeleça o ambiente

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necessário para que semelhanças fracas sejam convertidas em semelhanças fortes. Como certa

vez disse Rosa Luxemburgo, quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.

Consideramos que essa passagem das semelhanças fracas a semelhanças fortes é o

momento em que a emoção se encontra com a racionalidade, podendo levar a um

comprometimento com as agremiações e engajamento em objetivos maiores, como aconteceu

durante o movimento pelos Direitos Civis, nos Estados Unidos, ou na luta contra o apartheid

sul-africano.

Cria um movimento capaz de conscientizar a população negra a respeito do real status

da mesma dentro da sociedade brasileira, a ponto de sentir-lhe nos tornozelos as correntes que

ainda hoje os prendem, parece ser um caminho que, embora de longo prazo, apresenta

perspectivas mais promissoras nesse sentido. Os blocos afro começaram a percorrer essa

trilha, a partir do momento em que resolveram criar projetos pedagógicos que fossem além do

ensino tradicional. Nas palavras de João Jorge:

Pra ocupar esses espaços da política geral, necessariamente não vai ser através do

Olodum, mas vão ser pessoas que vão estar na sociedade, melhor preparados para

postura política, econômica e social. Por quê? Porque nós não propusemos momento

nenhum fazer uma escola só de percussão ou de dança. Nós sempre propusemos fazer uma escola de conhecimento, escola da vida. Isso, é claro, você tem que

formar e qualificar pra isso. Ao invés de ter um líder só, o bom é que tenha vinte,

trinta, quarenta com uma boa visão. O que fez Mandela ser liderança? Uma visão.

Luther King? Visão. Malcolm X? Visão. Quantos desses estão em Salvador, na

periferia? Centenas. Temos centenas de Mandelas, de pessoas como eles, com

potencial. Todo bairro de Salvador tem. Se ele vai pro crime, se ele vai pra

sinceridade, ou vai ser um destaque, depende das condições concretas. Nesses

países, Índia, África, Estados Unidos, em que há racismo e preconceito forte, houve

condições em que eles deixaram de ser bandido, marginal e foram virar essas

personalidades. Na Bahia, precisa começar a acontecer mais rápido ainda. São

poucas lideranças negras com perfil inovador, atual, global, com visão mais ampla do que apenas meu bairro, meu bloco, minha rua, minha cultura, minha estética.

(João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em novembro de 2015)

Se a conscientização já começa a ser trabalhada no seio das agremiações, ela também

o é fora para além de suas paredes. Como diz Fischer a respeito da atuação do Olodum:

O Grupo Olodum prioriza a questão da educação no sentido mais amplo para o seu

público interno e o externo: educar é preparar seus componentes para produzirem

arte, cultura e renda; é preparar a comunidade do Maciel/Pelourinho para explorar as

possibilidades comerciais geradas no local pela ação do Olodum, em shows, ensaios

do bloco e outras atividades atrativas de público; é também preparar o próprio

Olodum e a comunidade para o confronto cotidiano com a ideologia dominante na

sociedade, impregnada de racismo e marcada pela exploração econômica das classes mais pobres (FISCHER, DANTAS, et al., 1993, p. 98)

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Sendo assim, seria extremamente desejável que tal educação pudesse se dar, também,

durante seus momentos de maior exposição pública, como durante o carnaval.

A desejada visibilidade, se possui amplo aspecto econômico como motivador, possui

também considerável componente político. A visibilidade não tem em conta apenas a exibição

de um patrocinador e o consequente aumento do ganho pecuniário, destacada na seção

anterior. Preza-se também pela conquista de um espaço em que as mensagens divulgadas

pelos blocos possam ganhar em amplitude. Como afirma Martin Stokes (1997), a música é

uma das formas menos inocentes através das quais as categorias dominantes são impostas e

contrastadas. Ter um espaço para se denunciar o racismo, discriminação e segregação da

população negra, bem como para reforçar os laços simbólicos que unem tal parcela da

população, em uma festa com o formato que a folia soteropolitana apresenta hoje, possui um

valor simbólico tamanho que dificilmente algum ganho financeiro seria comparável. Pode-se

dizer que seria como desafiar a ordem vigente a partir de dentro, desestabilizando seus

alicerces. Afinal, como declara Vicenzo Cambria (2006), cantar, tocar e dançar podem

também ser uma forma de luta, de ação. Para Rennan Mafra (2008), tal estratégia

representaria uma das dimensões do processo de mobilização social190

, a qual nomeou como

“dimensão festiva”.

Situações de festa, de celebração são muito comuns em projetos de mobilização

social. Nesses momentos, os sujeitos são convidados a participar de redes de

sociabilidade e a estabelecer um convívio “corpóreo”, motivados por atos de

comemoração em relação à causa. (MAFRA, 2008, p. 65)

Jurgen Habermas (1997) já afirmava que a visibilidade aos argumentos e propostas é

fundamental para a existência de um debate público. Se os blocos pudessem ter seus

argumentos potencializados e expandidos pela chamada mídia de massa, seu trabalho poderia

ser mais efetivo e menor espaço de tempo. Enquanto não há tal cooperação, se aposta em

formas outras de exposição, para levar suas mensagens a um maior número de pessoas. As

experiências do Olodum com a “TV Olodum”, seu canal no Youtube, e com a “Rádio

Olodum”, aplicativo para telefones celulares, dedicado à transmissão de músicas do bloco, são

alternativas ainda incipientes, mas que representam a busca por outros caminhos.

É interessante para os blocos, e movimento negro de modo geral, que os indivíduos

negros que chegarem a ocupar cargos públicos tenham uma identificação racial pautada pelas

190 Segundo Mafra (2008), em um exercício de tipificação ideal, três seriam as dimensões de um processo de

mobilização social: espetacular, festiva e argumentativa.

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referidas semelhanças fortes de Hanchard, capazes de criar uma consciência imprescindível

para que as mudanças almejadas pelo coletivo sejam alcançadas.

Se observarmos o resultado das últimas eleições municipais em Salvador,

especificamente para o posto de vereador, perceberemos que o problema da representação

negra no parlamento da cidade tem um caráter mais qualitativo do que quantitativo.

De acordo com dados do TSE, dos quarenta e três vereadores eleitos em Salvador no

pleito de 2016, dez se declararam pretos, dezessete se declararam pardos, quinze se

declararam brancos e um se declarou amarelo. Se tomarmos o critério do IBGE que define

negros como sendo a soma de pretos e pardos, teríamos hoje vinte e sete negros na Câmara

Municipal de Salvador, em um universo de quarenta e três eleitos, o que representaria 62,8%

do total. A pergunta que fica é: quantos desses vereadores se identificam com as bandeiras

históricas do movimento negro? E mais: quais desses vereadores representam a população

negra de Salvador? Dentre os dez vereadores que se declararam pretos, quais podem ser

considerados representantes dos blocos afro?

Talvez, se Josélio tivesse sido eleito, pudesse ser essa pessoa. Talvez, se os blocos

tivessem unido esforços em torno do nome de Josélio, este tivesse conseguido ser eleito.

Talvez, se nomes comuns fossem pensados não só entre blocos, mas entre blocos, terreiros,

afoxés, baianas de acarajé e outros entes negros, essa parcela da população de fato tomasse

parte junto a Câmara soteropolitana, para além de um ocupar de cadeira.

Durante sua entrevista, Lazinho resumiu aquele que compreendo como cerne da

questão:

Como é que você consegue chegar nesses lugares? Unidos. Porque sozinho, se você

prestar a atenção aqui, naquele dia eu falei, os invisíveis. Os invisíveis unidos

conseguem fazer muita coisa. Basta se estruturar politicamente. É você saber de

onde veio e pra onde vai e o que você quer. (Lazinho, entrevista realizada em abril

de 2014).

Ao longo desse capítulo, tratamos das possíveis categorizações dos blocos afro, em

como eles podem se movimentar entre diferentes recipientes teóricos, ensejando uma aparente

contradição de origem que se justifica cotidianamente em seu dinamismo, responsável pela

capacidade de adaptação aos diferentes obstáculos que lhes são impostos.

Dentre estes, a viabilidade econômica parece ser hoje o mais intransponível. A

dependência financeira das instituições frente ao poder público faz com que sua autonomia de

ação esteja constantemente ameaçada e que concessões precisem ser feitas, diuturnamente,

sob pena de se comprometer parte de suas atividades. Dessa dependência econômica emerge a

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dependência política. Fossem os blocos tão somente empresas, bastaria fechar os

departamentos deficitários e focar nos que dão lucro. Sendo os blocos exclusivamente

movimentos sociais, poder-se-ia romper com forças políticas divergentes, como forma de

manter intacta sua ideologia fundacional. Estando nesse entre lugar, na fronteira do político

com o cultural, da empresa com o movimento, cabe ao bloco retirar a rigidez de suas margens

e torná-las deslizantes, ajustando seu posicionamento a cada novo movimento.

O caminho para a eliminação de tais dependências foi apresentando ao longo dessa

seção, mas pode ser sabiamente sintetizado nas palavras de João Jorge.

Nossa alegria nos proporcionou uma forma diferente de ver o mundo. Quando tudo

parecia que não tinha saída, nós encontramos numa coisa bem subversiva, que foi os

blocos afro e afoxés, operar a realidade para transformação, construindo um

caminho do poder simbólico. O que nós não temos é poder político, econômico. O

fato de se agarrar a um poder simbólico impediu que a gente também percebesse o

poder do poder político e do poder econômico, que é os dois que vão ajudar a fazer

do simbólico algo mais permanente. O poder simbólico pode ser um momento,

enquanto que econômico e político dá mais longevidade. A agenda da comunidade

negra hoje é genocídio da população, liberdade religiosa, mulher negra, empoderamento, oportunidade. Quinze ou vinte agendas. Como resolver isso sem

bancadas políticas? Sem dinheiro pra fazer as atividades necessárias? Você tem o

poder simbólico, mas você é subalterno. O passo adiante é transformar o poder

simbólico em político e econômico, e juntando as três formas de poderes, operar

para transformar a sociedade brasileira pra uma sociedade melhor. A nossa

sociedade é marcada pelo machismo, pelo racismo, pela homofobia, pela

intolerância, pelo ódio, pelo desconhecimento do outro, quando o outro é minoria. A

agenda conservadora, que andava meio escondida, retornou de 2013 pra cá. Se você

pensar diferente, já é motivo de ter problema. Se você pensar diferente, você pode

até morrer. Você tem o ódio, fundamentalismo reverso ,que impede a movimentação

negra de avançar, dos indígenas, quilombolas, de avançar. Não dá mais pra dizer que é um país dócil e tolerante. Os blocos afro são uma resposta a isso. (João Jorge

Rodrigues, entrevista realizada em novembro de 2015)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

ADEUS NÃO, ME DIGA ATÉ BREVE

Chego ao final desse texto com a sensação de que poderia ter feito mais e melhor.

Creio que seja um sentimento comum aqueles que dedicam alguns anos de sua vida a

debruçar-se sobre um sujeito, mas que percebem que, ao final da caminhada, não

conseguiram penetrar mais do que a fina camada que o envolve191

.

Sujeitos intrigantes e surpreendentes, os blocos afro permanecem um

fenômeno que, a meu ver, apresentam mais perguntas do que respostas, mesmo após

essas cerca de três centenas de páginas. A frustração que poderia me tomar cede lugar a

certeza de ter feito uma bela escolha ao iniciar meu trabalho.

Quando iniciado o percurso, ainda no ano de 2012, subestimava a complexidade que

poderia existir por detrás de agremiações carnavalescas. Sabia de suas atividades outras e

esferas de atuação, reveladas durante a elaboração do projeto de pesquisa do qual esse texto

resulta, aprofundadas pela revisão bibliográfica, mas não soube dimensionar o quão

multifacetadas eram cada uma dessas dimensões e o quão imbricadas estavam.

Aos poucos, seja pelo transitar pelas ladeiras, largos e praças de Salvador, seja ao

percorrer páginas de trabalhos daqueles que vieram antes de mim, os contornos foram se

tornando mais nítidos. Começou a ser possível verificar que as fronteiras entre as diferentes

esferas de atuação das entidades possuíam limites propositalmente borrados. Não haveria

como falar em educação em um bloco afro, sem falar de política. Não haveria como tratar de

política, sem mencionar a cultura. Não teríamos espaço para conceber a cultura, deixando de

lado a religião. Religião essa, matriz de onde nasceu a vontade de educar as gerações

vindouras.

Sendo assim, a primeira conclusão a que esse texto chega é a de que, para se

compreender uma organização caleidoscópica como é um bloco afro, é preciso que se observe

justamente o seu todo. Pode-se mostrar uma estratégica metodológica eficiente destacar uma

dessas esferas e centrar sobre ela seus esforços, como fez Dantas (1994), em trabalho citado

diversas vezes ao longo do texto, e praticamente todos os que se dedicaram a tal empresa. No

entanto, tomando Dantas como exemplo, podemos ver como, para muitas das perguntas

levantadas pelo autor, a resposta encontrava-se em instâncias outras que não a que este

escolheu como mote de análise.

191 QR Code “Brilho de Beleza” – Banda Terceiro Mundo. Disponível em

www.youtube.com/watch?v=ZcISrZkyaLU

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Tratar do viés mercadológico dos blocos afro, ou de seu envolvimento no universo dos

movimentos sociais, ou ainda, sua inovação estética para um enfrentamento do status quo, de

maneira isolada, certamente produzirá bons estudos a respeito do viés mercadológico dos

blocos afro, de sua atividade como movimento social ou de sua capacidade de inovação

estética, mas não exatamente sobre o que é um bloco afro. Dessa forma, defendo que essas

agremiações necessitam ser tratadas sem que se descuide das intersecções pelas quais são

formadas, por mais hercúlea que seja tal tentativa.

Assim como passei a defender que os blocos afro precisam ser compreendidos dentro

de um processo maior, que os antecede e os atravessa. Processo esse que não cessará, mesmo

quando tais agremiações deixarem de existir. Estamos falando da resistência negra em nosso

país, nascida no interior dos primeiros navios negreiros que por aqui aportaram; vivenciada na

forma de pequenas insurreições cotidianas bem como em grandes revoltas; fortalecida em

quilombos e terreiros de candomblé; embalada pelo som dos atabaques e tambores; inscrita

nas páginas da imprensa negra; unificada em movimentos; resignificada em festas de largo,

cortejos e no carnaval. Neste último, ganhando a forma de afoxés, blocos de índio e,

finalmente, blocos afro.

Descolar a experiência dos blocos afro de todo esse passado, que se mantêm tão

presente, é esvaziar boa parte do significado existente em suas ações, posicionamentos, signos

e objetivos. Em contrapartida, compreendê-los passa a ser uma tarefa menos complicada

quanto toda essa bagagem é levada em conta. Como são corriqueiros os capítulos dessas

histórias que se repetem ao longo dos séculos, variando apenas a tinta com que foram escritos.

Não se objetiva vislumbrar o movimentos dos blocos pela defasada lente

evolucionista. Trata-se, antes, de concebê-los como partes de um processo que pode ser ainda

inscrito em processos maiores, em cuja presença os blocos significam mais algumas páginas,

influenciadas por tudo o que fora escrito antes e influenciadoras de tudo o que será escrito

depois.

Em algum momento, o sujeito bloco afro poderá ser superado pelo próprio correr da

história, assim como foram outros modelos de resistência erigidos ao longo do tempo. Sua

existência está diretamente atrelada a um propósito, responsável tanto por sua criação como

por sua persistência. Tal efemeridade é conhecida das próprias agremiações, como deixou

transparecer João Jorge:

Eu digo sempre que na hora que acabar a desigualdade, intolerância, não precisa

mais existir Olodum, nem o Ilê, mas, nesse momento, alguém acredita que não

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precisa mais existir Olodum e Ilê? Não. É cada vez mais necessário. (João Jorge

Rodrigues, entrevista realizada em novembro de 2015)

Se a entidade pode ser efêmera, a resistência parece ser perene, como demonstrado no

interesse que aparece em uníssono no discurso dos blocos e que se materializa em suas

práticas, sobretudo no que diz respeito à educação. Impedidos de uma atuação mais ampla no

presente, é mirando no futuro que as agremiações afrocarnavalescas de Salvador buscam

soluções para problemas colocados há tempos.

Como sabidamente não se pode esperar pela colheita sem que sejam semeados os

grãos, as entidades preparam os jovens de hoje para o amanhã, para serem protagonistas de

seu destino, para o enfrentamento, para a ocupação das instâncias de poder, para o exercício

da cidadania, para o multiplicar de ideias.

Os resultados já começaram a aparecer, tendo em vista que o trabalho começou

décadas atrás. Se ainda não é o suficiente para que resulte em mudanças como as

mencionadas, funciona como estímulo para que as ações sejam continuadas.

Se em seus propósitos futuros as entidades parecem caminhar bem, seu presente é

marcado por incertezas. Quando esse trabalho foi iniciado, havia grande expectativa sobre a

iniciativa do Afródromo, que prometia ser uma redenção econômica das agremiações, bem

como uma janela para que o mundo pudesse ver o que acontece a cada ensaio de final de

semana pelas periferias de Salvador.

Entretanto, se a perspectiva era positiva nos idos de 2012 e 2013, hoje o quadro é

mostra-se preocupante. Com entidades enfrentando sérios problemas financeiros, a própria

existência dos blocos afro se vê ameaçada. Não enquanto blocos carnavalescos, pois para isso

há o programa Carnaval Ouro Negro, que lhes garante uma verba mínima, mas enquanto

blocos afro, no sentido mais amplo que o termo possa carregar. Aquelas entidades que fazem

do carnaval um fim e ao mesmo tempo um meio para ações de maior amplitude. Agremiações

que são vistas atravessando uma avenida do centro da cidade por cerca de quatro horas,

durante dois, três dias, mas que dedicam os outros mais de trezentos e sessenta para o

desenvolvimento de atividades em suas comunidades, sua face mais importante e a que possui

menor visibilidade.

Tendo sua autonomia constantemente colocada a prova pela dependência econômica e

política, urge aos blocos encontrar caminhos para a autossuficiência, que permita, como um

equilibrista de pratos, sustentar seus distintos interesses. Transformar o poder simbólico em

econômico e político, como disse João Jorge.

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Sem ambicionar generalizações, um mergulho no íntimo das agremiações

afrocarnavalescas permitiu traçar paralelos com outras formas de organização negras, como

os terreiros de candomblé, e perceber que características apontadas aos blocos acabam por

serem compartilhadas. O clientelismo, apresentado por Goldman (2001), não me parece

diferente do que fora apresentado por Santos (2005) como uma dinâmica em que o poder se

insere na cultura assim como a cultura se insere no poder. Sua concepção de terreiro

suprapartidário pode ser transposta aos blocos, coadunando com o que chamamos de

dinamismo estratégico, responsável pelo repensar do jogo a partir da movimentação das

peças. Parecem ser essas, características dos movimentos negros de maneira geral, sobretudo

os de fundo cultural.

A despeito da atualidade característica dos clássicos, chega a ser um tanto quanto

assustador encontrar em uma obra de Florestan Fernandes (1965), respostas para o que

observo hoje ao centrar foco nos blocos afro. Percebo o tal desejo de realizar uma revolução

dentro da ordem, observado por Fernandes há cinquenta anos, ao discutir a integração do

negro na sociedade de classes. A vontade de realizar mudanças dentro dos limites da ordem

estabelecida o que, segundo o autor, levaria a dois fins. O primeiro seria a necessidade da

compreensão, cooperação e solidariedade do branco para que seja logrado êxito em seus

propósitos (e aqui podemos entender o “branco” como o grupo hegemônico, em um cenário

onde o racismo é estruturado e estruturante das relações sociais, políticas, econômica e

culturais). O segundo seria o consequente desaparecimento e/ou diluição de tais movimentos,

antes que pudessem realizar os feitos histórico-sociais a que estavam consagrados.

É impossível me furtar de pensar em quanto os blocos precisam ceder para seguirem

participando do carnaval soteropolitano. Em quanto eles dependem do poder público, ocupado

majoritariamente por brancos, quando não por indivíduos de pele negra e máscaras brancas,

para lembrarmos Franz Fanon (2008); em quanto o polo hegemônico se esforça para produzir

meios de dominação sobre tais entidades e em como essas são frágeis o bastante para não

poder prescindir de tal controle; em como os mecanismos de tal dominação variaram ao longo

do tempo, mantendo intactos seus objetivos e, em como seguem sendo bem sucedidos em tal

propósito; em como é difícil romper com essa lógica e em quantas agremiações ficaram pelo

caminho; em como é, em boa medida, desolador o quadro atual dos maiores blocos afro de

Salvador e que, para além destes, existem outras quase sessenta entidades, com sonhos

semelhantes e possibilidades ainda menores. Nas palavras de João Jorge:

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Ser negro é ser um agente cultural transformador, é ser uma personalidade, é fazer

tudo certo, é ser recebido muitas vezes pela polícia com arbitrariedade, é não ter

oportunidade, não ver sua imagem em coisas positivas, é todo momento dizer, “olha,

nós queremos fazer o melhor, nós podemos ajudar esse lugar, nós podemos ajudar

esse pais”, e ao mesmo tempo, em todas as frentes sermos mensurados como seres

inferiores. Ser negro na Bahia hoje é você lutar contra o racismo e ao mesmo tempo

não perder sua humanidade, porque às vezes o cerco é tão grande que você luta

contra o racismo, mas todos em volta tentam te mostrar como radical, como

extremismo, como bicho, quando na verdade você tá pensando: “poxa, que tal fazer

a justiça que vocês falam, fazer a igualdade que vocês falam, a liberdade que vocês

falam?” É estado de direito? Para alguns. Não é pra índio, pra negro, pra pobre. Prega-se muito a paz. Não é pra todo mundo. Ela é uma ficção, é jogada no ar. Ser

negro é enfrentar essa coisa que tá no ar, trazê-la pra terra. Se você pensar o que é o

Olodum verá que o Olodum é uma faca, uma lança, uma espada no cérebro baiano.

É algo impensável. Um grupo de negros, mestiços e brancos, do Maciel-Pelourinho,

um bairro pobre, que se transformou no principal símbolo da Bahia no mundo. A

Bahia não fez nada que supere essa imagem do Olodum fora. Nós demos a Bahia

vários presentes e às vezes recebemos aqui o desconhecimento, o não conhecimento,

a agressão. A Bahia é o lugar do Olodum, do Ilê, do Gandhy, dos terreiros, da

capoeira. O mundo reconhece a Bahia assim, mas os baianos não se reconhecem

como alguém da negritude, da comunidade negra, da contribuição. Eles querem

fazer de tudo pra esconder isso, jogar embaixo do tapete. Isso é um erro e a história tá cobrando caro esse erro. (João Jorge Rodrigues, entrevista realizada em novembro

de 2015)

Também não deixou de causar certa surpresa perceber que o próximo passo a ser dado

na estratégia apresentada pelos blocos, sobretudo nas entrevistas de seus presidentes, seja a

busca pela construção de candidaturas únicas e viáveis para que se ocupem os cargos eletivos

nas mais diferentes esferas de poder. A surpresa a que me refiro no início do parágrafo é

perceber que tal pretensão já havia surgido no manifesto da Frente Negra Brasileira, na

década de 30 do século passado, propagada por veículos de imprensa como o Clarim da

Alvorada. Já naquela época se demonstrava a urgência em ter o negro como partícipe ativo da

esfera política. Assim sendo, a realidade é que não há grande novidade no que é proposto

pelas agremiações afrocarnavalescas, sendo, de maneira geral, uma atualização de discursos

que se mantêm em voga por mais de um século, em boa parte tendo sua permanência

justificada pela incompletude do processo iniciado com a abolição da escravidão. Uma

existência calcada na resistência a certa permanência.

A sensação é que, tal qual o ônibus que leva da Praça da Piedade até a Liberdade faz o

caminho parecer muito maior do que verdadeiramente é, o caminhar dos blocos afro também

parece desproporcional ao caminho já percorrido. Em alguns momentos, parece que, a

despeito de estarem nessa estrada há cerca de quarenta anos, pouco lhes foi permitido

avançar. Nas palavras de Sandro Teles:

O que é ser negro? É viver permanentemente em luta. É viver permanentemente

impotente. A gente achou que o país estava numa situação muito melhor do que

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quando a gente começou, só que com a enxurrada de coisa que tá acontecendo

atualmente, a gente se sente impotente achando que nada do que a gente fez teve

resultado. Uma coisa que a gente achava era que essa questão do racismo no nosso

país, a gente sempre soube que existia, mas a gente achava que tava mais naquela

das pessoas mais velhas. Naquela geração antiga. E agora a gente começa a ter

consciência de que as novas gerações ainda continuam com um grau tão grande de

racismo, que a gente sente impotente. Por isso digo que ser negro é viver

permanentemente em luta. Atualmente, as políticas de ações afirmativas também

fizeram com que essas pessoas saíssem do armário. Elas passaram a ver que os seus

privilégios estavam sendo ameaçados e começaram a esboçar, a mostrar mesmo a

sua raiva, o seu racismo, aflorado mesmo. Vovô sempre disse que a Bahia é o lugar mais racista no mundo, mas de dez anos pra cá isso veio à tona de uma forma tão

grande que a gente só pode achar, tem quase plena certeza, que foram as políticas de

ações afirmativas. A gente tem certeza que o Brasil sempre foi racista mas aflorou

depois que eles viram seus privilégios serem ameaçados. O pessoal começa a ter

medo. A briga é política, é por espaço. (Sandro Teles, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Sem dúvida, não por falta de vontade, trabalho, dedicação e sonhos. Talvez com

alguns problemas em sua organização ou no traçado de estratégias, mas, sobretudo, por

esbarrarem em limites impostos por um sistema que lhes é hostil. Por precisarem avançar

sobre barreiras e mais barreiras, posicionadas cotidianamente em seu percurso. Barreiras que

transparecem na menor remuneração artística, no boicote de vizinhos comerciantes, na

intolerância religiosa, na violência policial, na falta de representatividade política. De acordo

com Claudio Araújo:

Uma frase muito bonita que ouvi de Emicida é que o motorista do ônibus, ele não

para pra você no ponto de ônibus, mas a viatura para. Por que a viatura para? Porque

você tem a cor negra. Tá lá na Carta Magna. Não força você a andar com identidade,

mas ai de você que seja pego na madrugada. Eu não, eu vou até no banheiro com

documento no bolso. Infelizmente a gente precisa passar por um processo de

conscientização pra depois a gente defender o que é ser negro. Se assuma, eu sou

negro. Preciso tratar meu povo bem. Assuma suas raízes, mesmo porque, se você nasceu no gueto, você não tem como dizer que nasceu lá em Miami. Você nasceu foi

na periferia, no Nordeste, em Itapuã, na Liberdade, no Curuzu. Se assuma, eu sou

negro, eu sou assim, minha raiz é essa. (Claudio Araújo, entrevista realizada em

novembro de 2015)

Tais barreiras não são, de modo algum, instransponíveis, mas precisam que aquele que

queira supera-las faça um esforço. E a cada nova barreira, o esforço precisa ser maior. A

compreensão das entidades de que sua união ajudará nesse caminho é certeira e

parece a melhor maneira de superar tais obstáculos.

Ter acompanhado um pouco da trajetória dessas agremiações, em um

momento de inflexão, e poder relatá-la é a forma como esse texto contribui para as

discussões que se seguirão. Que sirva de estímulo e fonte aqueles que quiserem se debruçar

sobre os blocos afro de Salvador. E ainda, como um convite aos que entendam a riqueza de tal

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sujeito e a consequente pluralidade de possibilidades de análise que tais entidades permitem.

Aos que compreendam que em se tratando dos blocos afro, sua carne não é só de carnaval192

.

Que não estejamos observando seu crepúsculo, mas, se acaso for esse o destino de tais

agremiações, que renasçam juntamente com o sol que insiste em pintar de amarelo as águas

de Kirimurê.

192 QR Code “Swing de Campo Grande” – Novos Baianos. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=6uqGRVSXWZ4

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ANEXOS

ANEXO 1. TEMAS DOS CARNAVAIS 1975-2017

Ano ILÊ AIYÊ MALÊ DEBALÊ OLODUM

1974 FUNDAÇÃO DO ILÊ

AIYÊ

1975 Ilê Aiyê

1976 Watusi

1977 Alto Volta

1978 Congo – Zaire

1979 Rwanda FUNDAÇÃO DO MALÊ

DEBALÊ FUNDAÇÃO DO OLODUM

1980 Camerun Reino Dourado dos Ashantis Olodum na sexta-feira

1981 Zimbabwe Tributo aos Heróis da

Liberdade

Festa para o Rei de Oyo,

Nigéria

1982 Mali - Dogons Libertação Africana Guiné Bissau

1983 Ghana – Ashanti A Revolta dos Malês NÃO HOUVE DESFILE

1984 Angola Lendas E Magias do Abaeté Tanzânia

1985 Daomé 150 Anos da Revolta dos Malês Moçambique

1986 Congo – Brazzaville Quilombo dos Palmares Cuba

1987 Nigéria África do Sul O Egito dos Faraós

1988 Senegal Haiti Madagascar

1989 Palmares Bahia Capital da Raça Negra Núbia, Axum Etiópia

1990 Costa do Marfim Povos Sudaneses Do Deserto do Saara ao

Nordeste Brasileiro

1991 Revolta dos Búzios Verde Lagoa Negra Da Atlântida a Bahia, o Mar

é o Caminho

1992 Azânia Namíbia Índia os Caminho da Fé

1993 América Negra O Sonho

Africano Aquarela Negra

Os tesouros de Tuthankamom

1994 Uma Nação Africana

Chamada Bahia Itapuã Fonte de Inspiração

O Tropicalismo, o

Movimento

1995 Organização de

Resistência Negra 300 Anos de Zumbi Os Filhos do Sol

1996 A Civilização Bantu Dança Negra Bahia Os Filhos do Mar

1997 Pérolas Negras do Saber Levante Malê Roma Negra - Os

gladiadores da Negritude

1998 Guiné Conakry Negra Melodia A Revolta dos Búzios - 200

anos da Rota da Liberdade

1999 A Força das Raízes

Africanas Itapuã Um Mundo Encantado

Os Filhos do Fogo - Uma

Homenagem a Xangô

2000 Terra de Quilombo Simplesmente Malê Do Egito a Bahia, o Caminho

da Eternidade - Ramsés II

2001 África – Ventre Fértil do

Mundo

Malê Debalê: Espetáculo ou

Espetacular?

África, Ásia, Brasil os Três

Mundos

2002 Malês – A Revolução Mandinga A Nova Tenda dos Milagres

2003 A Rota dos Tambores no

Maranhão Quilombos Urbanos A Lenda do Arco-Íris

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371

2004

Mãe Hilda Jitolu –

Guardiã da fé e da

tradição africana

Odudua na Construção do

mundo

Tuaregues - Guerreiros do

deserto africano

2005 Moçambique Vlutare Luanda: A Bahia Africana O Casal Solar, Akhenaton e

Nefertiti - o Monoteísmo

Africano

2006

O Negro e o Poder – Se o

poder é bom, eu também quero poder

Brasil Multicultural Angola - a Pátria mãe de

milhões de Brasileiros

2007

Abidjan – Abuja – Harare

– Dakar – Ah! Salvador, se você fosse assim...

Reinos Negros Lusófonos Marrocos - O país dos

sentidos

2008 Candaces – As Rainhas

do Império Méroe Áurea, 120 anos, e nós?

África do Sul - a Origem da

Vida

2009 Esmeraldas – A Pérola

Negras do Equador A quem Interessa os Blocos

Afros? Povo Dogons

2010 Pernambuco – Uma nação

africana Ouro Negro

Índia, Brasil, África do Sul -

a Terceira Visão

2011 Minas Gerais – Símbolo

de resistência negra Malê Debalê na história do

Jongo Tambores, Papiros e Twitter

2012 Negros do Sul – Lá

também tem! Do Black Power ao Hip Hop

Vale dos Reis - As Setes

Portas da Energia

2013

Guiné Equatorial – Da herança pré-colonial a

geração atual

Ceará, Terra da Luz Samba, Futebol e Alegria -

Raízes do Brasil

2014

Do Ilê Axé Jitolu para o

Mundo – Ah! Se não fosse o Ilê Aiyê!

Malê Debalê, 35 Anos

Quebrando Paradigmas

Ashanti - O trono Dourado -

Yaa Asantewaa

2015

A Diáspora Africana -

Jamaica - Os Afrodescendentes

Kirimurê - Malê Debalê

reconta o Recôncavo

Etiópia. A Cruz de Lalibela.

O Pagador de Promessas

2016 O Recôncavo é

Afrodescendente

Reino Negro dos Haussás -

Malê Debalê canta a Nigéria

Brasil, mostra tua cara! - Sou

Olodum, quem tu és?

2017

Os povos Ewé/Fon. A influência do Jeje para os

afrodescendentes

Okê Malê! Sou sertanejo! Sou

negro forte!

O Sol de Akhenaton: Os

caminhos da luz