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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação LUCIANA PALHARES DE SOUZA AUTONOMIA ZAPATISTA: ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA CAMPINAS 2019

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    Faculdade de Educação

    LUCIANA PALHARES DE SOUZA

    AUTONOMIA ZAPATISTA: ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA

    CAMPINAS2019

  • LUCIANA PALHARES DE SOUZA

    AUTONOMIA ZAPATISTA:

    ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA

    Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em Educaçãoda Faculdade de Educação daUniversidade Estadual de Campinas comoparte dos requisitos exigidos para aobtenção do título de Mestra emEducação, na área de concentração deEducação.

    Supervisora/Orientadora: PROFª. DRª. CAROLINA DE ROIG CATINI

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DADISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ESTUDANTE LUCIANAPALHARES DE SOUZA E ORIENTADA PELA PROFESSORADOUTORA CAROLINA DE ROIG CATINI.

    CAMPINAS2019

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAÇÃO

    DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

    AUTONOMIA ZAPATISTA:

    ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA

    Autora: Luciana Palhares de Souza

    COMISSÃO JULGADORA:

    Profª Drª Carolina de Roig CatiniProf. Dr Alexander Maximilian Hilsenbeck FilhoProf. Dr. Gustavo Moura de Cavalcanti Mello

    A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo deDissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

    2019

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço inicialmente à Carolina Catini, pela amizade e pela orientação, por abrir a

    possibilidade de um estudo que esteve para além da formação acadêmica e pela leitura, ao

    mesmo tempo rigorosa e generosa. Aos professores Gustavo Moura, Cassio Brancaleone e

    Alexander Hilsenbeck, pelas trocas, leituras e sugestões, que certamente me ajudaram a

    delinear o caminho da pesquisa. Às professoras Fabiana Rodrigues, Luciana Henrique e Maria

    Orlanda Pinassi, pela disponibilidade de ler e conversar sobre o trabalho.

    Ao Rafa, por atravessar essas águas lado a lado, nas agitações e calmarias, pelas

    provocações e questionamentos, que a gente siga se acompanhando e aprendendo a escutar e a

    mirar. À minha mãe, Odana, ao meu pai, Milton, e à minha irmã, Elisa, pelo apoio, pelas

    oportunidades e pelos momentos juntos. À família Palhares, sempre tão presente, pelos

    meandros daquilo que nos forma, seus nós e como enfrentá-los. Agradeço em especial à vó

    Suzana, por me ensinar a olhar as pequenas belezas da vida para trabalhar o espírito.

    Às minhas outras irmãs, Flor, Julia, Laura, Mafe, Liz, Lila, Lai e Pacata, pela presença

    essencial, pelas leituras e conversas, pelo aprendizado conjunto de que só é possível nos

    fortalecermos se compartilharmos a vida e as lutas. Às queridas amigas de bruxaria, pelo

    desafio dos exercícios coletivos nesse tempo tão fragmentado. Aos queridos amigos Bruno,

    Fernando e Zé, pela caminhada, conversas, cervejas e resistências compartilhadas.

    À Luisa, à Mi e ao Ian, obrigada pelas trocas, cumplicidade e amizade, fundamentais

    nesses anos de mestrado que passamos juntos. Ao Grupo de Estudos Educação Crítica, pelos

    momentos importantes de leituras e conversas; sem vocês não seria possível compreender

    Benjamin da mesma maneira.

    À Nina e ao Vagner, pela escuta e pelo cuidado.

    Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq.

  • “Una luna en cada pecho regalaron los dioses a las mujeres madres, paraque alimentaran de sueño a los hombres y mujeres nuevos. En ellos viene la

    historia y la memoria, sin ellos se come la muerte y el olvido. Tiene latierra, nuestra madre grande, dos pechos para que los hombres y mujeres

    aprendan a soñar. Aprendiendo a soñar aprenden a hacerse grandes, ahacerse dignos, aprenden a luchar. Por eso cuando los hombres y mujeres

    verdaderos dicen "vamos a soñar" dicen y se dicen ‘vamos a luchar’”.

    Viejo AntonioLa historia de los sueños

    "Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega auma experiência cósmica que este último mal conhece. (...) O trato antigocom o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. É embriaguez,

    decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do maispróximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer,

    porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar emembriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos

    considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-lapor conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas.

    Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e entãopovos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira

    mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditosesponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças

    elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequênciaatravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo eprofundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-

    se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmoscumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da

    técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensavaresgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o

    leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assimensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém,

    confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das criançaspelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de

    tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto,se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre gerações, e

    não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza:é dominação da relação entre Natureza e humanidade (...)"

    Walter Benjamin"A caminho do Planetário"

  • RESUMO

    A proposta central desta dissertação é compreender a relação entre as concepções deautonomia e educação segundo a perspectiva zapatista. Para isso, analisamos comunicados erelatos de integrantes e porta-vozes desse movimento indígena e mexicano, que sistematizamquestões importantes para pensar os sentidos desses dois conceitos para as lutasanticapitalistas. Se, por um lado, é recorrente relacioná-los, por outro, percebe-se que a noçãode autonomia recebe diferentes matizes no debate sobre a educação. Nos interessa, no presenteestudo, delimitar o seu sentido anti-hegemônico e antissistêmico. Consideramos que o próprioprocesso organizativo das comunidades zapatistas possui um caráter educativo, pelo qualprefiguram-se novas relações sociais. Procuramos refletir também sobre as possibilidades dereconstrução da experiência coletiva como processo de formação para resistir à barbárie denosso tempo e sobre a importância, presente nos textos zapatistas, de se apropriar da históriapela perspectiva “dos de abaixo”. As leituras dos textos “Experiência e Pobreza” (1933), “ONarrador” (1936) e das teses “Sobre o conceito da história” (1940), de Walter Benjamin, nosauxiliam nessa reflexão.

    Palavras-chave: zapatismo; educação; autonomia; experiência; história.

  • ABSTRACT

    The main purpose of this dissertation is to understand the relation between the conceptions ofautonomy and education according to the Zapatista view. In order to do this, we analyze thecommuniques and accounts of members and spokespersons of this indigenous and Mexicanmovement, which systematize important issues to think the meanings of these two concepts forthe anticapitalist struggles. If it is recurrent to relate them, it has also been given differentmeanings recurrently. The notion of autonomy receives different nuances in the debate oneducation. In the present study, we are interested in defining its anti-hegemonic andantisystemic meaning. In order to do so, we consider that the organizational process of theZapatista communities has an educational character, prefiguring new social relations. In theZapatista texts, we also sought to reflect on the possibilities of reconstructing the collectiveexperience as a process of formation to resist the barbarism of our age and on the importanceof appropriating history through the perspective of the "below". The reading of the WalterBenjamin's texts "Experience and Poverty" (1933), "The Storyteller" (1936) and theses "Onthe Concept of History" (1940) helped us in this reflection.

    Key-words: zapatismo; education; autonomy; experience; history

  • RESUMEN

    La propuesta central de esta disertación es comprender la relación entre las concepciones deautonomía y educación según la perspectiva zapatista. Para ello, analizamos comunicados yrelatos de integrantes y portavoces de ese movimiento indígena y mexicano, que sistematizancuestiones importantes para pensar los sentidos de esos dos conceptos para las luchasanticapitalistas. Si, por un lado, es recurrente relacionarlos, por otro, se percibe que la nociónde autonomía recibe diferentes matices en el debate acerca de la educación. Nos interesa, en elpresente estudio, delimitar su sentido antihegemónico y antisistémico. Consideramos que elpropio proceso organizativo de las comunidades zapatistas ejerce una función educativa, por elcual prefiguranse nuevas relaciones sociales. Se trata de reflexionar también sobre lasposibilidades de reconstrucción de la experiencia colectiva como proceso de formación pararesistir la barbarie de nuestro tiempo y sobre la importancia, presente en los textos zapatistas,de apropiarse de la historia por la perspectiva de los de abajo. Las lecturas de los textos"Experiencia y Pobreza" (1933), "El Narrador" (1936) y de las tesis "Sobre el concepto de lahistoria" (1940), de Walter Benjamin, nos auxilian en esa reflexión.

    Palabras-clave: zapatismo; educación; autonomía; experiencia; historia.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1 - Mapa do México com a identificação das vinte quatro províncias...........................29

    Figura 2- Mapa com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas....................30

    Figura 3- Mapa com identificação da presença de povos indígenas em Chiapas.......................31

    Figura 4- Cartaz do aniversário de 35 anos do EZLN...............................................................37

    Figura 5 - Mapa com a localização dos cinco Caracóis no estado de Chiapas..........................63

    Figura 6 - V Congresso Nacional Indígena (dezembro de 2016)..............................................71

    Figura 7 – I Encontro de los Zapatistas y las ConCiencias por la Humanidad..........................71

    Figura 8 – Ilustração da Hidra Capitalista utilizada no livro publicado pelo EZLN com textos utilizados durante o Seminário................................................................................................102

    Figura 9 – Cartaz do I Encontro los Zapatistas y las Conciencias Por la Humanidad.............109

    Figura 10 – Ilustração zapatista...............................................................................................112

    Figura 11 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................119

    Figura 12 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................119

    Figura 13 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................120

    Figura 14 – Tenda (a frente) e Escola autônoma (ao fundo) em La Realidad.........................120

    Figura 15 – Entrada da escola e clínica autônomas em La Realidad.......................................121

    Figura 16 – Entrada da escola e clínica autônomas em La Realidad.......................................122

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1– Caracóis zapatistas e sua organização política e territorial em Chiapas....................61

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ALCA - Área de Livre Comércio das Américas

    APPO - assembleia Popular dos Povos de Oaxaca

    ARIC - Associação Rural de Interesse Coletivo

    CEDOZ - Centro de Documentação Sobre Zapatismo

    CEIEG - Comité Estatal de Información Estadística y Geográfica de Chiapas

    CELMRAZ - Centro de Español y Lenguas Mayas Rebelde Autónomo Zapatista (em espanhol)

    CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

    CCRI-CG - Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do EZLN

    CIG - Conselho Indígena de Governo

    CNI - Congreso Nacional Indígena (em espanhol)

    Cocopa - Comissão de Concordia e Pacificação

    Conai - Comissão Nacional de Intermediação

    EPRAZ - Escuelas Primarias Rebeldes Autónomas Zapatistas (em espanhol)

    ESRAZ - Escuela Secundaria Rebelde Autónoma Zapatista Primero de Enero (em espanhol)

    EZLN - Exército Zapatista de Libertação Nacional

    FLN - Forças de Libertação Nacional

    FRAYBA - Centro de Direitos Humanos "Fray Bartolomé de las Casas"

    FZLN - Frente Zapatista de Libertação Nacional

    INEGI - Instituto Nacional de Estadística y Geografia

    JBG - Juntas de Bom Governo

    MAREZ – Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas

    MIRA - Movimiento Indígena Revolucionario Antizapatista (em espanhol)

    MLN - Movimento para a Libertação Nacional

    Morena - Movimento Regeneração Nacional

  • MST - Movimento dos Trabalhadores sem Terra

    MTST - Movimento dos Trabalhadores sem Teto

    NAFTA - Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

    ONG - Organização Não Governamental

    PAN - Partido da Ação Nacional

    PRD - Partido da Revolução Democrática

    PRI - Partido Revolucionário Institucional

    SERAZ-LN – Sistema Educativo Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional

    UNEM - Unión de Maestros de la Nueva Educación para México (em espanhol)

    UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (em inglês)

  • SUMÁRIO

    Introdução.................................................................................................................................14

    1. Problemática e percurso investigativo...............................................................................14

    2. Procedimentos de investigação e exposição da pesquisa...................................................23

    Capítulo 1 – O movimento zapatista e a resistência anticapitalista: uma perspectiva histórica.28

    1.1 - O Exército Zapatista e a história de resistência indígena em Chiapas...........................38

    1.2. As declarações da Selva Lacandona e o processo de construção da autonomia zapatista...............................................................................................................................................49

    Capítulo 2 – A construção da autonomia como processo educativo anti-hegemônico: uma análise a partir dos comunicados zapatistas...............................................................................72

    2.1. Ellos y Nosotros: sobre o caráter anti-hegemônico nos exercícios de autonomia..........75

    2.2. Escuelita Zapatista..........................................................................................................89

    2.3. Seminário “El Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista”...............................102

    2.4 Conciencias e Comparte................................................................................................108

    Capítulo 3 – O projeto de educação zapatista e a formação para a autonomia.......................115

    3.1. Educação contra o Estado............................................................................................122

    3.2. A organização da autonomia educativa: o Sistema Educativo Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional (SERAZ-LN).................................................................133

    Considerações Finais...............................................................................................................142

    Referências Bibliográficas.......................................................................................................148

    ANEXO...................................................................................................................................156

  • 14

    Introdução

    1. Problemática e percurso investigativo

    A presente dissertação de mestrado se propôs a analisar as concepções de autonomia e

    educação a partir da perspectiva do movimento zapatista e seus comunicados. As perguntas que

    orientam nosso percurso investigativo podem ser colocadas da seguinte maneira: o que os zapatistas

    comunicam sobre o processo educativo implicado nos exercícios de autonomia organizados desde as

    comunidades indígenas? Isto é, qual a concepção de autonomia política e de formação enunciada

    pelo próprio movimento? E, considerando que o projeto de autonomia desse movimento inclui a

    articulação com outras organizações, quais concepções e princípios os zapatistas procuram

    comunicar no intuito de construir uma resistência anticapitalista e anti-hegemônica internacional?

    Consideramos que essa reflexão pode contribuir para futuras investigações e práticas no âmbito da

    educação crítica voltada para a emancipação social.

    Nossa hipótese é que educação e autonomia estão necessariamente ligadas em um contexto

    no qual a luta por emancipação se manifesta em práticas onde prefiguram-se novas relações sociais,

    de onde emergem processos individuais e coletivos de aprendizagem. Através da análise de

    documentos disponibilizados pelo movimento e da bibliografia consultada, buscamos compreender o

    caráter educativo de tais práticas sob dois aspectos. O primeiro envolve as atividades nas quais o

    movimento dialoga com a sociedade, já o segundo consiste no processo pelo qual as comunidades

    indígenas constroem seu autogoverno.

    Assim, procuramos pensar a relação entre educação e autonomia a partir das atividades

    abertas para indivíduos e coletivos que não são orgânicos ao movimento. Em grande parte, estes

    correspondem aos simpatizantes ou aderentes à Sexta Declaração da Selva Lacandona – documento

    escrito em 2005 pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) – os quais, enquanto

    apoiadores e organizações de diversas nacionalidades e do México, formam a chamada Sexta

    Nacional e Internacional. Optamos por concentrar nossa análise em quatro atividades organizadas

    entre o período de 2013 a 2017: a chamada Escuelita Zapatista (2013 e 2015), o Seminário “El

    Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista” (2015), o Festival CompARTE por la

    Humanidad e o Encontro L@s Zapatistas y Las ConCIENCIAS Por La Humanidad (ambos

    realizados em 2016 e 2017).

    No âmbito das comunidades zapatistas, o caráter educativo pode ser entendido como a

    formação dos sujeitos pela luta, pelo trabalho na comunidade e pelas relações sociais que dão sentido

    às experiências coletivas. Neste aspecto, a relação entre educação e autonomia pôde ser analisada a

  • 15

    partir da investigação sobre o projeto de educação que deu origem às escolas autônomas,

    procurando também colocar questões que vão além da forma escolar, já que a escola é apenas um

    dos espaços, entre outros, onde se concebe a formação para a autonomia.

    Nesse processo de investigação, tratamos de delimitar o debate teórico sobre a noção de

    autonomia, especificamente a indígena. Existem muitas formas de pensar esse conceito e seu caráter

    polissêmico dá margem a apropriações que acabam por obscurecer certas práticas e projetos

    políticos. A reflexão sobre a variação do seu significado aparece com frequência nas discussões de

    movimentos antissistêmicos influenciados pelos pensamentos marxista e anarquista, mas também

    pelas experiências populares da América Latina, entre as quais podemos destacar aquelas conduzidas

    pelos povos originários.

    Essa, sem dúvida, é uma temática de contornos pouco claros, cuja abordagem no campo da

    esquerda pode ir desde a autodeterminação dos povos, passando pela autonomia relativa ao Estado,

    até a alienação do trabalhador frente a reestruturação produtiva do capital ou ao problema da

    consciência de classe. Ao mesmo tempo, a discussão sobre esse conceito remonta a um debate

    histórico que envolve a luta por emancipação humana1 e a construção de formas de organização

    social para além do capitalismo.

    A noção de autonomia nesse campo político – ora relacionada à exaltação da ação direta, ora

    associada à ação livre da classe trabalhadora como pré-condição da democracia socialista – segue até

    os dias atuais permeada pelos diversos momentos da luta anticapitalista e suas contradições. Após a

    queda do chamado socialismo real e com o avanço das políticas neoliberais, nota-se um processo de

    ruptura com a tradição política e teórica da esquerda entre os anos 1980 e 1990, o qual se traduz

    “no desenvolvimento de problematizações teóricas que tentam abrir o conceito de luta de classes,

    ancorado de maneira clássica, como se sabe, na centralidade do Estado para o processo

    revolucionário” (TISCHLER, 2011, p. 338).

    Com a irrupção de movimentos sociais latino-americanos, sobretudo na década de 1990,

    outros espaços de organização na cidade e no campo colocaram em questão a atuação dos partidos e

    sindicatos de esquerda, trazendo a ideia de autonomia coletiva como processo de organização e

    resistência. Nesse contexto, em que muitos defendiam perspectivas teóricas como “o fim da

    história”2, o levante zapatista de janeiro de 1994 inspirou organizações populares em todo o mundo

    pela radicalidade com relação à negação do Estado e das políticas neoliberais. Ao analisar as

    1 “Toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem. A emancipação política é aredução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, acidadão, a pessoa moral. Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual realtiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vidaempírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizadosuas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a forçasocial na forma da força política” (MARX, 2010 [1843], p. 54)

  • 16

    concepções de autonomia e democracia a partir das lutas indígenas no México, principalmente a do

    movimento zapatista, Esteva (2011) chama a atenção para a longa tradição da palavra “autonomia”

    nos movimentos populares mexicanos, a qual se afasta da tradição autonomista europeia.

    La lucha por la autonomía empezó en realidad desde antes de que el país existiera yconsiguió que al final del periodo colonial los territorios bajo control y gobierno de lospueblos fueran llamados “repúblicas de indios”. En el siglo XIX se registró todo género derebeliones, siempre asociadas con la autonomía, y el XX se inauguró con una revoluciónsocial marcada por ese tema: la “reconstitución de los ejidos” que levantó a los pueblosreivindicaba explícitamente los regímenes comunales autónomos que lograronreconstituirse en la Colonia y se desmantelaron con las leyes de Reforma y la dictadura dePorfirio Díaz. La autonomía universitaria, en la década de 1920, forjó evocaciones yconnotaciones que reaparecieron en la década de 1970. En 1985 y 1994 se unieron a laexpresión “sociedad civil” para acotar la nueva semántica de la transformación social, enla que no se entienden una sin la otra. El levantamiento zapatista trajo la autonomía alcentro del debate político en México. Mientras el gobierno la rechazaba de plano, seafirmó como demanda política popular (ESTEVA, 2011, pp. 122-123).

    As referências à “sociedade civil”, tão presentes nos discursos zapatistas, ao mesmo tempo

    que encontram eco em estudos sobre a autonomia e organizações autônomas, também são fonte de

    confusão, devido à controversa história conceitual e prática relacionadas à expressão, explica o

    autor. Para ele, seu significado se define como a esfera da sociedade que se organiza de forma

    autônoma, independente e antagônica com relação ao Estado (ESTEVA, 2011, p. 123). Tais

    características de organização existem em muitas comunidades indígenas e, de forma menos

    recorrente, em outros grupos rurais ou urbanos. Na maioria dessas experiências, têm-se praticado a

    autonomia “sempre a contrapelo do regime dominante” – como afirma Esteva (2011), evocando a

    noção de história de Walter Benjamin – e apesar da contínua exposição da vida cotidiana às

    contradições e dissoluções provocadas tanto pelo regime jurídico-político imposto pelo Estado,

    quanto pela exploração econômica realizada em função dos interesses de livre mercado (idem, p.

    126).

    Segundo essa leitura, a aspiração autonômica protagonizada pela resistência dos povos

    originários do México não se inclui na democracia formal e também não se restringe aos seus

    movimentos, que possuem objetivos e alcances próprios. Além disso, seus objetivos excluem a

    possibilidade de adequar-se às formas do regime capitalista.

    (…) lo que parecen buscar actualmente muchos movimientos populares en México, que seresisten a rendir sus experiencias de autogobierno real a una democracia individualista yestadística, manipulada por partidos y medios, que en parte alguna ha sido capaz de

    2 Teoria retomada no final dos anos 1980 por autores, como o estado-unidense Francis Fukuyama, que sugerem o fimdos processos históricos enquanto processos de transformações sociais e políticas. Tal ideia ressurge no contexto daqueda do Muro de Berlim, quando acreditava-se que os antagonismos entre projetos políticos capitalistas e socialistashavia terminado e que a consequência seria a estabilidade sob o capitalismo.

  • 17

    cumplir lo que ofrecen sus defensores. Al viejo lema del centralismo democrático, estánoponiendo el descentralismo: parecen convencidos de que la democracia depende dellocalismo, de las áreas locales em que la gente vive (idem, p. 141-142).

    A perspectiva de uma outra democracia no México, determinada pelos processos vividos a

    partir do âmbito local é, portanto, descentralizada, tal como interpreta Gustavo Esteva. A proposta

    comunalista impulsionada pelas experiências das comunidades indígenas do estado de Oaxaca no

    México, praticada também em outras regiões, traz importantes elementos para essa reflexão.

    Enquanto corrente importante do movimento indígena nacional, o comunalismo possui entre seus

    principais teóricos Gustavo Esteva e Benjamin Maldonado, entre outros3. Ambos, ao trazerem o

    conceito de comunalidad4 expandem um pouco mais a compreensão sobre o significado de

    autonomia indígena. Segundo Maldonado (2002):

    (…) la comunalidad sigue siendo la naturaleza propia del ser indio y de la estructura de lacomunidad india, y la estructura comunitaria es una estructura de coerción interna propiapara la autonomía. Las ideologías sociales revolucionarias más avanzadas anhelanconstruir un mundo en el que la gente tenga poder, se relacionen con sus vecinos paraorganizar y ejercer el poder, la producción, las necesidades comunes y discutir losproblemas, que esté signada por la solidaridad, que las personas estén dispuestas alsacrificio por construir y defender la colectividad, que sepa recibir de cada quien según suscapacidades y dar a cada quien según sus necesidades, que tenga la fortaleza para impedirque la explotación vuelva contra ellos una vez vencidos los explotadores por la revolución.Las comunidades indias, como observaron grupos anarquistas europeos en la sierramazateca en 1998 y 1999, tienen eso: una asamblea de todos, una capacidad de trabajarintensamente por el colectivo, una larga experiencia de ayuda mutua además de unaidentidad generada por una cultura compartida durante siglos de historia. Esa vivenciaautonómica, basada en la comunalidad, es la que el Estado mexicano ha tratado decontener a través de diversos mecanismos y estructuras (MALDONADO, 2002, p. 121).

    A comunalidad, como princípio ou condição estrutural das comunidades indígenas, expressa

    um modo de vida baseado na identidade coletiva, em que se articulam os saberes e valores

    comunitários com as formas de organização política, social e cultural (BRANCO, 2015). Assim, mais

    do que a dimensão local ou territorial, o elemento autogestionário é aquele que sustenta ou dá

    suporte para a concepção de autonomia indígena. Como afirma Maldonado, não é possível existir

    autonomia sem autogestão, ou seja, ser autônomo senão por meio da autogestão (MALDONADO,

    2002).

    A comunalidad está fundamentada em quatro aspectos – território, poder, trabalho e disfrute

    comunais – segundo o mesmo autor. Tem como base a cultura e constitui o sentido de vida dos

    3 Cf. também Floriberto Díaz, Jaime Martínez Luna e Carlos Beas.

    4 “Por comunalidad devemos entender o caráter coletivo, a identidade, os saberes comunitários, que articula suasformas de organização (o trabalho, o território, a festa e o poder comunal) com os valores da vida em comunidade”(BRANCO, 2015, p. 152).

  • 18

    povos indígenas, tanto em sua expressão local, quanto em sua expressão étnica. Nessa lógica

    impressa nas relações sociais das comunidades, o agir e o pensar são necessariamente coletivos e não

    individuais. A partir deles, o exercício de certa autonomia e da prática da autogestão, em graus

    diferentes, são duas características dessa forma de resistência que fortalecem e impelem os povos

    indígenas a recriarem e adaptarem suas instituições políticas (Idem, p. 68). Como escreve

    Maldonado:

    Las comunidades indias han resistido a la invasión, y dos características de essaresistencia han sido el ejercicio de cierta autonomía y la práctica en distintos grados de laautogestión. Pero la cultura de resistencia india ha implicado la creación y adaptación deinstituciones políticas, fortaleciendo diversas formas de autonomía defensiva, que ahoraavanza hacia su transformación en autonomía constructiva. En ese sentido, la creatividadautonómica requiere ser pensada y desarrollada para que los pueblos indios se re-creen emfunción de sus objetivos en la perspectiva de su historia política. La defensa del derecho ala autodeterminación es, por tanto, uno de los aspectos actuales de la propuestacomunalista. Pero esta defensa no implica exigir su reconocimiento al Estado, al menos nohasta ahora, y esto no se debe a falta de discusión o fortaleza (Ibidem, p. 68).

    Para Maldonado (2002), o Estado confisca as condições necessárias para a autonomia,

    entendidas como o princípio de ajuda mútua, o poder nas mãos do coletivo representado pelo espaço

    político da assembleia, a vontade de servir gratuitamente à comunidade e a defesa do território e

    cultura mantidos ao longo da história. Também atenta para o fato de que “Vivir en autonomía parece

    ser la última propuesta pacífica de los pueblos indios de México (a pesar de que fue detonada por

    las armas zapatistas) para liberarse de la dominación” (MALDONADO, 2002, p. 77).

    Ao voltarmos nossa atenção para o contexto brasileiro, evidencia-se a luta histórica de

    diversos movimentos indígenas e quilombolas pela sobrevivência, cultura e demarcação de seus

    territórios. Se cultura e território são essenciais para o exercício e fortalecimento das autonomias

    indígenas, é importante lembrar que no Brasil comunidades inteiras sofreram a desterritorialização

    violenta realizada pelos sucessivos governos desde a colonização. Apesar da maior parte dos seus

    territórios de ocupação estarem completamente degradados – pelo agronegócio, desmatamento e

    poluição dos rios – para muitos desses povos, a ideia de contraposição ao Estado ressoa nas formas

    de conduzir a política organizada desde as comunidades, mesmo sendo a reivindicação por direitos

    pauta central de suas lutas.

    Com relação aos movimentos populares tradicionais5, não contamos com uma longa

    experiência de lutas autônomas em relação a partidos ou centrais sindicais – ou seja, que não estejam

    atrelados a estes, do ponto de vista financeiro ou político; que dispensem a estrutura organizativa

    5 Neste caso, entendemos como movimentos populares tradicionais como aqueles que direcionam suas reivindicaçõespor direitos básicos (como terra, moradia, saúde e educação) ao Estado, sendo os mais expressivos, no caso brasileiro,o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST).

  • 19

    hierárquica e a figura dos militantes profissionais, contando com esferas de decisão coletiva e a

    rotatividade de funções; e que se sustentem exclusivamente pelos princípios da autogestão (CATINI,

    2015, p. 902). Entretanto, há alguns anos, a questão da autonomia estremeceu as bases das

    organizações da esquerda brasileira, tanto nas análises de conjuntura quanto nas discussões sobre

    estratégia e tática. Tais debates se intensificam sobretudo com as manifestações de junho de 2013 e

    as ocupações de escolas por estudantes secundaristas no final de 2015, cujos desdobramentos a nível

    nacional se deram no sentido da multiplicação de novos movimentos sociais, mas também na sua

    fragmentação e isolamento6, próprias do nosso tempo.

    Fragmentação, isolamento, individualismo, precarização das relações de trabalho,

    fortalecimento do fundamentalismo religioso, falta de qualquer garantia de direitos, aumento da

    violência policial nas periferias são reflexos da barbarização das relações sociais. Contra os padrões

    capitalistas de crescimento econômico que tornam a vida cada vez mais insustentável, os coletivos e

    organizações da periferia do capital, ao mesmo tempo que trazem a carga de seu tempo histórico,

    buscam outras saídas para resistir ao amoldamento imposto pelas formas sociais hegemônicas.

    No intuito de problematizar nosso tema de estudo em relação ao contexto atual, nos parece

    necessário olhar para a autonomia e a educação enquanto conceitos que traduzem formas sociais,

    cuja apropriação também pode obedecer a um discurso que acaba por obscurecer os reais interesses

    e práticas do projeto neoliberal. Nesse sentido, o modelo de reestruturação produtiva, baseado no

    toyotismo7, constrói sua base ideológica nas ideias de flexibilização, descentralização e autonomia

    democrática, onde o gestor (ou o capitalista) dissimula as relações de poder, a precarização e a

    exploração ao demandar do trabalhador uma maior responsabilidade em relação ao controle sobre o

    próprio trabalho.

    Surge, portanto, o envolvimento interativo que aumenta ainda mais o estranhamento dotrabalho, ampliando as formas modernas de fetichismo, distanciando ainda mais asubjetividade do exercício de uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.Na verdade, com a aparência de um despotismo mais brando, a sociedade produtora demercadorias torna, desde o seu nível microcósmico, dado pela fábrica toyotista, ainda maisprofunda e interiorizada a condição do estranhamento presente na subjetividade operária edissemina novas objetivações fetichizadas que se impõem à classe-que-vive-do-trabalho.Um exemplo forte é dado pela necessidade crescente de qualificar-se melhor e preparar-semais para conseguir trabalho (ANTUNES e ALVES, 2004, p. 347).

    As exigências de novas qualificações profissionais no contexto da reestruturação produtiva –

    como a autonomia, a liderança mediadora e a pró-atividade – são extremamente relativas, já que essa

    6 Cf. o dossiê “Reflexões sobre a autonomia”, publicado no site Passa Palavra entre março e maio de 2015. Disponívelem: Acesso em: 31 de outubro de 2017.

    7 “‘Modelo’ que, desenvolvido na Toyota a partir de 1953, constitui-se enquanto paradigma no processo dereestruturação produtiva verificado no Ocidente a partir da década de 1980” (BATISTA e ALVES, 2009).

  • 20

    participação e engajamento estão atrelados à manipulação e ao controle dos donos do capital em

    função dos próprios interesses. Diante da complexidade de novas formas de relações sociais e das

    transformações no mundo do trabalho, há também um reordenamento do ponto de vista das políticas

    para a educação. Isso fica explícito nos documentos das agências multilaterais como o Banco

    Mundial, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO8),

    Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e a Organização Internacional do

    Trabalho, as quais “recomendam, financiam e supervisionam as políticas educacionais dos países das

    periferias, que procuram adaptar-se de forma subalterna à mundialização do capital” (BATISTA e

    ALVES, 2009, p. 5). Dentro desse pacote de recomendações, a lógica privatista obteve livre acesso

    às políticas para a educação. Como afirma Catini (2015)

    Dentre diversos mecanismos para gerir a crise, a política neoliberal operou um processo deintensificação das privatizações, incluindo os serviços sociais, mobilizando um novoconceito de “serviço público não estatal”, com ampliação das “parcerias público-privadas”.Quem coloca em prática a privatização são organizações de diversos tipos, conhecidaspopularmente como ONGs (organizações não governamentais), que passam a competirpelo uso de financiamentos privados ou públicos para fazer a gestão privada de taisserviços sociais como a educação, a assistência social, a saúde, etc (idem, p. 903).

    No caso do Brasil, a consolidação das políticas neoliberais nos anos 90 e as reformas

    educacionais promovidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, sob influência de organismos

    internacionais, como foi mencionado acima, tiveram grande impacto sobre as práticas de educação

    não formal exercidas pela sociedade civil. Nesse contexto, as experiências latino-americanas de

    educação popular – que haviam tido um papel fundamental nos processos de alfabetização massiva

    de jovens e adultos dos anos 60 e 70 – foram cooptadas nas décadas seguintes através de programas

    monitorados pelo Banco Mundial, cuja finalidade era a adequação dos modelos educacionais aos

    interesses do capitalismo transnacional (KOROL, 2006).

    Brandão (1984), ao tratar das suposições do senso comum acerca da educação popular no

    Brasil, chamou a atenção para a necessidade de se levantar suspeitas sobre as “construções cômodas

    nem sempre reais” (BRANDÃO, 1984, p. 172). O autor afirma que simples dicotomias entre Estado

    e sociedade civil, oficial e alternativo, manipulação e participação, entre outras formulações bipolares

    e antagônicas, deixam de revelar os projetos e interesses que fundamentam a educação popular

    enquanto campo de atuação a partir dos anos 1980, momento em que se desfaz a clara contraposição

    ao Estado autoritário e se criam novas formas sociais, nas quais interagem diferentes estruturas e

    agentes em projetos educativos.

    8 Sigla em inglês: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.

  • 21

    Tal como acontece com outros domínios de práticas sociais de mediação, em cadamomento de sua história, a educação dirigida a setores populares existe como um espaçode ideias, agências e práticas que entre si estabelecem modos de aliança, evitação ouconcorrência, pelo poder de intervenção de classe através da transmissão deconhecimentos-valores e da organização de categorias, grupos e comunidades populares(BRANDÃO, 1984, p. 173).

    Diante das disputas entre práticas, agências e ideias, e da complexidade das novas formas de

    relações sociais num mesmo território, a educação formal e não formal têm enfrentado sérias

    dificuldades. De acordo com Catini (2015), “a prática política demanda uma associação com a

    interpretação crítica do atual momento histórico, como meio para lidar com as contradições sem

    enveredar para a tendência de conformação à ordem” (CATINI, 2015, p. 904). Nos parece coerente,

    então, compreender a educação também como prática política, pela qual perpassa as relações

    estabelecidas com o trabalho, o processo de conhecimento individual e coletivo, as formas de

    sociabilidade e os desafios da luta cotidiana frente às formas sociais hegemônicas.

    O exercício coletivo dos sujeitos que compõem as lutas anticapitalistas com base na

    autonomia vem justamente experimentar uma reorganização social “desde abaixo”, como afirmam os

    zapatistas, e questionar as normas e valores do capital a partir das experiências e contradições que

    surgem nos processos de resistência. Ao compreendermos que o processo histórico de organização

    do movimento zapatista, no caso da presente pesquisa, envolve um princípio educativo, devemos

    atentar para o fato de que os indígenas zapatistas são movidos por necessidades próprias, ligadas à

    sua relação com o tempo, sua história e às práticas de autogoverno sem, no entanto, se distanciar da

    dimensão global ou internacional dessa luta. A aliança estabelecida entre os sujeitos das lutas anti-

    hegemônicas de diversos países, sem negar ou eliminar o particular e o local, trata-se de um

    elemento importante para analisar a concepção de autonomia e educação zapatistas. Nesse sentido,

    apontam para a necessidade de aprender a mirar e escuchar no processo de construção de uma

    resistência anti-hegemônica. Este constitui um exercício coletivo ao qual os zapatistas nos convidam.

    A contribuição desta pesquisa consiste não somente na reflexão sobre a relação entre os

    conceitos de educação e autonomia no debate acerca dos movimentos sociais, e do zapatismo em

    particular, mas também em colocar essa relação em diálogo com a crítica da modernidade

    desenvolvida por Walter Benjamin. Os conceitos de história e experiência discutidos por esse autor,

    nos ajudam a compreender a necessidade do pensamento crítico e da prática transformadora

    comunicada pelos zapatistas em seus textos. Também nos auxiliam a pensar a resistência, ensinada

    pela luta dos povos indígenas, para sobreviver à barbárie das relações capitalistas e à destruição da

    experiência, memória e história coletivas.

    Na primeira metade do século XX, Benjamin acompanhou as aceleradas mudanças da

    sociedade moderna e da Europa provocadas pelo avanço das forças produtivas, incluindo as

  • 22

    consequências das duas guerras mundiais para as relações sociais e para a cultura. Estando entre os

    intelectuais associados à Teoria Crítica e à Escola de Frankfurt, elaborou importantes críticas à

    ideologia do progresso defendida tanto por liberais, como pela social-democracia alemã, alvo

    principal da crítica benjaminiana (GAGNEBIN, 1982).

    Preocupado com a ascensão do fascismo, Benjamin busca refletir sobre os elementos

    necessários para as lutas que se propunham combatê-lo. Em sua teoria da história, o autor defende a

    necessidade de se pensar a história da perspectiva “dos vencidos”, em oposição a historiografia

    dominante e também aquela concebida pelo materialismo determinista, segundo o qual a história se

    direciona progressivamente em direção ao socialismo, como se fosse guiada por leis científicas e pelo

    desenvolvimento da técnica e das forças produtivas. Como afirma Benjamin em suas teses Sobre o

    conceito da história (1940):

    O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, impregna nãoapenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. (…) Nada foi maiscorruptor para a classe operária alemã do que a opinião de que era ela que nadava com acorrenteza. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da correnteza, na qual elasupunha estar nadando. Daí era apenas um passo para a ilusão de que o trabalhoindustrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava um feito político(BENJAMIN, 2012, p. 246-247).

    Para Benjamin, quando a promessa de futuro assegurado pela ideia de progresso substitui a

    prática de organização dos trabalhadores, estes deixam de ser sujeitos da própria história. Diante do

    perigo de ser instrumento nas mãos das classes dominantes, o sujeito histórico do presente, como

    herdeiro da tradição dos vencidos, deve “apropriar-se da autêntica imagem histórica” (ibidem, p.

    244). Segundo o pensamento benjaminiano, cabe a cada geração no tempo de agora libertar os

    mortos do passado e impedir o esquecimento da história de lutas solapadas pelo tempo homogêneo e

    linear da história oficial, que esconde a barbárie sobre a qual constrói sua marcha em nome do

    progresso. Isso depende de articular as imagens do passado, não como ele realmente aconteceu, mas

    enquanto recordação que “relampeja no momento de um perigo” (Ibidem, p. 243). Assim, a escritura

    da história se liga à uma prática transformadora, ao mesmo tempo redentora e revolucionária, que

    implica “escovar a história a contrapelo” (Ibidem, p. 245).

    Segundo sua análise, tanto nas Teses como no texto Experiência e Pobreza (1933), o avanço

    da técnica em nome do progresso deflagrou uma nova forma de miséria. Essa miséria corresponde à

    pobreza de experiências coletivas e à incapacidade de transmiti-las. Tendo em vista essa condição

    imposta pela modernidade, a transmissão de sabedorias e ensinamentos do passado através da

    rememoração e da narrativa, forma de comunicação artesanal das experiências ao longo das

    gerações, encontra-se em vias de extinção. A capacidade de narrar e transmitir a experiência coletiva

  • 23

    assimilada pela memória desaparece com o dom de ouvir próprio da comunidade de ouvintes

    envolvidos por um tempo distendido do trabalho manual, como afirma Benjamin no texto O

    narrador (1936).

    Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado dedistensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensãofísica, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro onírico quechoca os ovos da experiência (BENJAMIN, 2012, p. 221).

    Na teoria benjaminiana, a experiência e sua transmissão eram características de um modo de

    vida que possibilitava a produção das necessidades materiais no tempo distendido do trabalho

    artesanal. Este difere do tempo histórico da manufatura e da industrialização, mediadas pelas

    máquinas que comandam o processo e o tempo de produção. A experiência, portanto, está ligada à

    tradição coletiva e não àquela vivida pelo indivíduo. Ela só seria possível em comunidades que não

    estão organizadas pela divisão capitalista do trabalho e onde a organização das relações é sustentada

    pelo vínculo de uma memória e passado comuns (GAGNEBIN, 1982). Diante da pobreza da

    experiência no contexto atual, podemos retomar o conceito positivo de experiência introduzido pelo

    autor em Experiência e Pobreza, cuja ideia é “construir com pouco”, seguindo o exemplo daqueles

    que criaram a partir do que tinham ao seu alcance. Considerando que a história dos vencidos se

    apresenta como “uma catástrofe única” – como interpreta através dos olhos do anjo no quadro

    Angelus Novus, de Paul Klee – entendemos que a proposta de Benjamin passa por uma investigação

    sobre o passado através das ruínas do presente.

    Em nossa elaboração, sobretudo no segundo capítulo, procuramos atravessar a distância

    histórica e cultural que afasta o pensamento benjaminiano do pensamento sistematizado pelos

    zapatistas nos comunicados, para poder estabelecer relações que consideramos importantes acerca

    dos conceitos de educação, autonomia, pensamento crítico, história e experiência. As leituras dos

    textos Experiência e Pobreza (1933), O narrador (1936) e das teses Sobre o conceito da história

    (1940) nos auxiliam nessa reflexão.

    2. Procedimentos de investigação e exposição da pesquisa

    O estudo aqui desenvolvido orienta-se por uma perspectiva crítica que se aproxima das bases

    teórico-metodológicas fundadas pela concepção do materialismo histórico-dialético, tendo como

    ferramenta principal a pesquisa documental. A partir da revisão bibliográfica e da análise de

  • 24

    documentos zapatistas, buscou-se realizar o tratamento rigoroso das fontes primárias e secundárias,

    sem perder a historicidade dos conceitos e problemas apresentados.

    Procurou-se investigar e compreender o objeto de estudo – a relação entre as noções de

    educação e autonomia zapatistas – enquanto processo inacabado, atravessado pelas diversas

    determinações materiais, históricas e culturais que o envolvem. Nos detivemos, sobretudo, a uma

    leitura e análise dos comunicados, declarações e outros documentos zapatistas, procurando

    compreender sua visão sobre a realidade e as possibilidades de relação com as noções centrais de

    autonomia, educação, história e experiência, discutidas em diálogo com as obras de Walter

    Benjamin.

    Nos parece importante destacar que tais documentos são um registro histórico do processo

    de organização do movimento zapatista. Além disso, estão voltados não somente para o próprio

    movimento, como também para organizações, redes de apoio e todos aqueles com quem pretendem

    se comunicar. Nesse sentido, mesmo com a enorme diferença de linguagem e condições históricas,

    observa-se a herança do zapatismo oriundo da Revolução Mexicana, em que o processo de

    redistribuição das terras pelos revolucionários e de experimentação da autonomia nos pueblos foram

    sistematizados em manifestos, decretos, leis e outros documentos, sendo um dos principais o Plano

    de Ayala9.

    Os textos analisados foram escolhidos em função dos elementos que nos permitiram

    compreender a relação entre as concepções de educação e autonomia zapatistas. A maioria dos

    documentos são assinados pelos porta-vozes do EZLN, os Subcomandantes Galeano (Marcos10) e

    Moisés – em alguns casos também a Comandancia do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena -

    Comando Geral do EZLN (CCRI-CG) – e outros foram escritos por membros das Juntas de Bom

    Governo, promotores e promotoras zapatistas11. De modo geral, nota-se a forte presença de

    elementos da narrativa oral e de uma certa forma de pensar a realidade, na qual misturam-se teoria

    política, cosmovisão maia, as experiências históricas de luta e aquelas compartilhadas no cotidiano

    das comunidades.

    Galeano ou Marcos, sobretudo, é conhecido pela escrita literária e muitas vezes poética com

    a qual comunica as análises, decisões e rumos do movimento. A partir do uso de metáforas e

    simbologias, muitas vezes relacionadas à cosmovisão maia, as análises construídas ao longo da

    9 Publicado em 28 de novembro de 1911 pelo Exército Libertador do Sul, encabeçado por Emiliano Zapata, o Plano deAyala marca a estratégia política de derrubada do governo mexicano e estabelece as bases do processo de reformaagrária e da organização dos campesinos indígenas nos ejidos.

    10 Subcomandante Marcos foi o nome adotado pelo chefe militar e porta-voz do Exército Zapatista até o ano de 2014.A partir de então passa a se chamar Galeano, um companheiro zapatista assassinado nesse mesmo ano.

    11 O termo “promotores” identifica aqueles que atuam nas áreas de saúde e educação autônomas dos MunicípiosAutônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ).

  • 25

    história do movimento desafiam a linearidade da lógica formal12. Como afirma Arellano (2002),

    dando como exemplo dois personagens emblemáticos criados por Marcos, Viejo Antonio e Don

    Durito de la Lacandona13:

    O discurso político neozapatista que navega pela internet em todo o mundo se nutre nosmitos, conceitos e modos próprios das etnias, como na prática política da esquerda. Afigura do velho Antonio, introduzida por Marcos, representa a memória histórica dospovos maias e também a autocrítica de seus próprios deuses e de um passado que não setoma como único e admirável. Trata-se de “um antes” para poder ir mais longe depois.Também a figura de Durito representa a cultura ocidental em seu lado positivo, bom, emsuas utopias e seus sonhos (ARELLANO, 2002, p. 79).

    Essas características do discurso zapatista – e em particular dos porta-vozes do movimento –

    sustentado por aspectos da memória histórica da luta indígena e da teoria política ocidental,

    permitem o acesso às análises que pretendem ser comunicadas pelo movimento sobre o próprio

    processo de resistência e sobre a realidade. Conforme observado pelas leituras desses textos, sejam

    comunicados ou contos literários, destaca-se também um outro aspecto: muitos deles estão ligados

    por uma argumentação encadeada que acompanha, inclusive, a própria conjuntura, sendo que para

    compreender esse trajeto argumentativo é necessário lê-los em conjunto.

    Pelo fato de acompanharem o movimento da realidade e, logo, pelo necessário

    “inacabamento” de sua análise, podemos contrapor os comunicados zapatistas à forma de

    comunicação tipicamente moderna, segundo Walter Benjamin: a informação, a qual o autor define

    pela “verificabilidade imediata” do texto. Em meados da década de 1930, afirma este autor que, “se a

    arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação tem uma participação decisiva nesse declínio”

    (BENJAMIN, 2012, p. 219). Com o advento da imprensa escrita, o isolamento crescente do

    indivíduo na sociedade burguesa e o gradual desaparecimento da memória e da experiência coletivas,

    a informação jornalística manifesta-se como principal forma de comunicação, velando o vazio da

    vida atomizada pelas relações capitalistas com o culto do atual diariamente renovado (GAGNEBIN,

    1984). Ao comparar a informação e a forma narrativa, o filósofo explica que “metade da arte

    narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações” (Idem, p. 219); de maneira oposta,

    a informação “precisa ser, antes de mais nada, ‘compreensível em si e para si’” (Ibidem).

    12 No texto de Georgui Plekhanov, “Dialética e lógica” (1907), este autor aponta como as três leis fundamentais dalógica formal: 1) a lei da identidade; 2) a lei da não contradição; 3) a lei do terceiro excluído. Disponível em: Acesso em: 15 de agosto de 2016.

    13 Personagem criado pelo Subcomandante Marcos em 1995. Como define José Saramago no prólogo do livro decontos sobre as aventuras e desventuras de Don Durito, trata-se de um escaravelho da Selva Lacandona auto-denominado cavaleiro andante que, em longas conversas com seu fiel escudeiro Marcos, “disserta sobre economiapolítica e neoliberalismo com tanta competência como comentaria sobre as névoas da selva” (SUBCOMANDANTEMARCOS, 2017, p. 5).

  • 26

    Diante da referência benjaminiana e das leituras dos textos zapatistas, é possível conceber a

    presença de aspectos da quase extinta forma narrativa em alguns dos comunicados e também nos

    contos do Velho Antônio, por exemplo, ou em outros mais recentes, como os da personagem infantil

    Defensa Zapatista. A transmissão, através de porta-vozes, da forma de pensar ou cosmovisão

    indígena, em um discurso constituído também por elementos da teoria política, literatura e filosofia

    ocidentais, nos levam à hipótese de que o processo de enfrentamento anti-hegemônico construído

    pelos zapatistas manifesta-se, inclusive, no próprio discurso pelo qual se comunicam com o mundo.

    Considerando as limitações desta pesquisa de mestrado, no que diz respeito à observação do

    cotidiano das comunidades zapatistas, suas escolas e relações entre os diferentes sujeitos e gerações,

    pareceu-nos fundamental dialogar com outras pesquisas que trazem reflexões e informações

    relevantes para a discussão acerca das práticas de educação e autonomia zapatistas. Outras fontes,

    igualmente importantes, que nos orientam nessa análise sobre o “autogoverno educativo”14 são os

    depoimentos das promotoras e dos promotores de educação das comunidades, registrados em vídeos

    e textos publicados no site oficial15 do movimento, bem como no material organizado para as turmas

    da Escuelita Zapatista.

    Portanto, procuramos analisar o material compilado e sistematizar essas reflexões com o

    aporte teórico da bibliografia encontrada. Entre os principais desafios desta pesquisa foram os

    critérios para selecionar comunicados, contos, entrevistas e outros documentos considerados fontes

    primárias. Para a seleção dessas fontes, utilizamos os seguintes critérios: 1) a autoria corresponder

    aos próprios zapatistas; 2) importância para a compreensão da história do movimento zapatista; 3)

    presença de elementos ou noções-chave para compreender sua concepção de autonomia e educação,

    relacionados à sua visão sobre a própria história e formas de fazer política (tanto na vida cotidiana,

    quanto em momentos nos quais dialogam com a sociedade, ou seja, nos encontros e manifestações

    públicas).

    Tivemos a oportunidade de participar do I Encontro L@s Zapatistas y Las ConCiencias Por

    La Humanidad, realizado entre os dias 25 de dezembro de 2016 e 4 de janeiro de 2017. Após o

    encontro, a pesquisadora pôde visitar uma das comunidades localizadas no Caracol I Madre de los

    Caracoles del Mar de Nuestros Sueños, sediado em La Realidad, no Município Autônomo San

    Pedro de Michoacán. A visita, realizada entre os dias 9 e 18 de janeiro, foi possível pela participação

    em uma das brigadas de observadores do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas

    (FRAYBA) – sediado em San Cristobal de Las Casas, Chiapas. Pelo pouco tempo de permanência na

    comunidade e pelas restrições de segurança colocados pela Junta de Bom Governo de La Realidad,

    14 Expressão utilizada por Bruno Baronnet (2012), para se referir às experiências de educação desenvolvidas pelospovos indígenas da Selva Lacandona, Chiapas, México.

    15 Os comunicados podem ser encontrados no site Enlace Zapatista. Disponível em: Acesso em: 5 de outubro de 2018.

  • 27

    não foi possível conversar e muito menos realizar entrevistas com moradoras e moradores. Mesmo

    se isso tivesse sido possível, uma semana não seria suficiente para conhecermos de fato a realidade

    zapatista. Ainda assim, a vivência foi fundamental para ter uma experiência direta e não somente

    mediada pelos textos e discursos formulados pelo próprio movimento, tanto no encontro – que

    reuniu 200 zapatistas representantes dos municípios autônomos e 82 cientistas de onze países

    (incluindo o México), além de centenas de apoiadores do movimento – quanto para conhecer uma

    comunidade e sua organização interna.

    Apresentamos os resultados dessa pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo

    buscamos compreender como o movimento se organiza atualmente e a partir de quais determinações

    sócio históricas os zapatistas constituíram seu autogoverno. Através de seus comunicados e de

    entrevistas, relatos e pesquisas sobre o tema, percorremos alguns dos antecedentes históricos do

    movimento zapatista, o contexto da formação do Exército Zapatista de Libertação Nacional e alguns

    dos momentos mais relevantes para entender o seu processo de luta por autonomia.

    No segundo capítulo, a exposição do estudo se volta para as formas de mobilização da

    concepção de educação autônoma tal qual os zapatistas a comunicam para a sociedade. Para analisar

    as articulações entre autonomia e educação, tomamos por fonte alguns documentos e materiais

    produzidos nos últimos anos e veiculados em encontros organizados pelos zapatistas, abertos aos

    coletivos, movimentos e organizações. Nos detivemos a quatro atividades organizadas entre o

    período de 2013 a 2017: a chamada Escuelita Zapatista (2013 e 2015), o Seminário “El

    Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista” (2015), o Festival CompARTE por la

    Humanidad e o Encontro L@s Zapatistas y Las ConCIENCIAS Por La Humanidad (ambos

    realizados em 2016 e 2017).

    No intuito de compreender as articulações entre as duas noções centrais de nossa pesquisa,

    autonomia e educação, buscamos dialogar com pesquisas anteriores que trouxeram análises e

    reflexões importantes sobre o projeto educativo construído desde as comunidades zapatistas. Com

    tal objetivo, o último capítulo expõe alguns dos princípios autogestionários do Sistema Educativo

    Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional (SERAZ-LN) e procura pensar as tensões

    entre este projeto e o projeto de educação estatal. Também procuramos analisar a formação dos

    promotores de educação e o conteúdo de alguns materiais didáticos voltados para estudantes das

    escolas autônomas.

  • 28

    Capítulo 1 – O movimento zapatista e a resistência anticapitalista: uma perspectiva histórica

    Neste primeiro capítulo, buscaremos revisitar a história do zapatismo atual16 no intuito de

    compreender os caminhos percorridos por esse processo de organização. Faremos, primeiro, um

    breve retrato socioeconômico do estado de Chiapas, a fim de localizar o movimento zapatista e as

    comunidades indígenas autogovernadas frente a realidade da região. Em um segundo momento,

    analisaremos alguns dos fatores históricos que antecederam a formação do EZLN e o levante

    zapatista de 1994. Por fim, trataremos de entender os rumos tomados por esse processo de

    organização por meio das seis Declarações da Selva Lacandona, escritas entre 1994 e 2005, as quais

    constituem um dos principais registros dessa história.

    Revisitar a história e as bases materiais do processo de organização desse movimento nos

    auxiliam a entender o que os zapatistas comunicam sobre sua concepção de educação e autonomia

    na perspectiva dos “de abaixo”, aqueles que se rebelam e resistem ante a hegemonia capitalista.

    Resistência e rebeldia são, segundo eles, armas de luta que dependem de organização coletiva para

    descobrir como usá-las. “Descubrimos que con resistencia y rebeldía podemos gobernarse y que

    con resistencia y con rebeldía podemos desarrollar nuestras propias iniciativas”17, afirma o

    Subcomandante Moisés, chefe militar do EZLN. Dentre essas iniciativas próprias, encontram-se as

    experiências de caráter educativo, geradas pelos trabalhos coletivos que constituem o autogoverno

    nos pueblos e também pelo processo de luta anticapitalista em seu sentido mais amplo.

    Situados em uma região de grande riqueza natural, não só os zapatistas, mas a maior parte da

    população chiapaneca são alvo de diversos ataques vindos do Estado e do setor privado (nacional e

    internacional). Como afirmam Ceceña e Barreda (1995): “Las riquezas naturales de Chiapas que lo

    convierten en uno de los paraísos del mundo, con condiciones inigualables para el desarrollo de la

    vida, lo hacen, paradójicamente, uno de los espacios más inhóspitos para la vida del hombre”

    (CECEÑA; BARREDA, 1995, p. 77).

    Na periferia do México, com cerca de 5,2 milhões de habitantes – sendo aproximadamente

    um quinto indígena – Chiapas é um dos principais abastecedores de energia elétrica, petróleo e gás

    natural do país (ver localização geográfica na figura 1). Apesar da importância estratégica para a

    economia mexicana, é o segundo estado com os piores índices de desnutrição, analfabetismo e

    16 Encontramos na bibliografia consultada duas terminologias para se referir ao movimento zapatista atual: zapatismoe neozapatismo. Optamos pela primeira, levando em consideração a diferença entre a forma como os zapatistas sereconhecem e são reconhecidos por uma parte dos apoiadores externos: “Nosotros somos los zapatistas del EZLN,aunque también nos dicen ‘neo zapatistas’ (...)”. Cf. “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Disponível em: Acesso em: 10 outubro de 2018.

    17 Subcomandante Moisés. “Apuntes de resistencia y rebeldía”, Comunicado de 6 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 10 de outubro de 2018.

  • 29

    carência de recursos na área de saúde, além da falta de água encanada, luz e saneamento básico nas

    localidades ainda mais marginalizadas.

    Figura 1 - Mapa do México com a identificação das vinte quatro províncias

    Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Geografia (INEGI)

    Localizado na fronteira com a Guatemala, esse estado divide-se em quinze regiões

    econômicas (ver figura 2 com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas).

  • 30

    Figura 2- Mapa com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas

    Fonte: CEIEG Chiapas, 2017

    Segundo a última estimativa do governo federal, referente ao ano de 2015, a maioria da

    população indígena chiapaneca concentra-se nas regiões: Altos Tsotsil-Tseltal, Norte e Selva

    Lacandona (ver Figura 3). Essa população, de acordo com o Centro de Documentação Sobre

    Zapatismo, corresponde aos povos Tseltal (37,9 por cento da população indígena total), Tsotsil

    (33,5%), Ch’ol (16,9%), Zoque (4,6%), Tojolab’al (4,5%) e Mame, Chuj, Kanjobal, Jacalteco,

    Lacandón, Kakchikel, Mochó ou Motozintleco, Quiché e Ixil (que juntos equivalem a 2,7 por cento

    da população indígena do estado)18. Chiapas, junto com Oaxaca e Yucatán, localizados também ao

    sul e sudeste do país, concentram a maioria dos povos indígenas mexicanos. Estima-se que em 2017

    o México contava com uma população total de 123 milhões de habitantes, dos quais 21,5 por cento

    considerava-se indígena19. Em todo o território nacional são contabilizadas 68 línguas faladas pelos

    povos originários (e 364 variantes).

    18 Fonte: Centro de Documentação Sobre Zapatismo (CEDOZ). Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.

    19 Fontes: Instituto Nacional de Estadística y Geografia (INEGI). Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.

  • 31

    Figura 3- Mapa com identificação da presença de povos indígenas em Chiapas

    Fonte: CEDOZ 2018

    Assim como aconteceu no Brasil e na América Latina de modo geral, desde o final da década

    de 1980 os sucessivos governos mexicanos deram continuidade às políticas neoliberais através de um

    conjunto de medidas, entre elas a privatização de diversos setores sociais. A gestão de Enrique Peña

    Nieto, presidente entre 2012 e 2017, retoma uma segunda ascensão do Partido Revolucionário

    Institucional (PRI)20, que governou o país ao longo de sete décadas até os anos 2000. De volta ao

    poder neste último mandato, prosseguiu com as políticas de espoliação dos povos indígenas através

    das ações de despejos, queimadas, assassinatos, desmatamento e poluição do solo e da água,

    sobretudo no Sul e Sudeste do país. Em 2018, o presidente Andrés Manuel López Obrador, do

    partido Movimento Regeneração Nacional (Morena), é eleito com promessas de combate à

    corrupção das elites políticas, de acabar com a violência gerada pelo narcotráfico e, no que diz

    respeito aos povos originários, de reconhecimento do direito à sua autodeterminação.

    Entretanto, segundo a análise zapatista, os projetos do atual governo não significam uma

    alternativa, mas sim uma continuidade das políticas neoliberais em curso. Com relação ao sudeste

    mexicano são, em realidade, projetos de despojo e entrega dos territórios indígenas em função dos20 Fundado em 1928 como Partido Nacional Revolucionário, em 1938 recebe o nome de Partido da RevoluçãoMexicana sob a liderança de Lázaro Cárdenas, o então presidente mexicano. No ano de 1946 é constituído comoPartido Revolucionário Institucional. O PRI se manterá no poder até os anos 2000, quando perde as eleições para oPartido da Ação Nacional (PAN), e retorna em 2012 com o presidente Enrique Peña Nieto (RIBERTI, 2011).

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    interesses dos grandes representantes do capital. Em comunicado de agosto de 2018, os

    Subcomandantes Moisés e Galeano afirmam que a fronteira sul do México – composta pelos estados

    de Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán e Quintana Roo – servem aos “novos planos geopolíticos”

    como filtro para conter o fluxo de imigrantes vindos da América Central em direção à fronteira

    estabelecida entre Tijuana e San Diego, no norte do país. De “território esquecido”, a região

    fronteiriça do sudeste mexicano começa a transformar-se “em uma das prioridades de conquista e

    administração”21, analisam os zapatistas.

    Nesse contexto, apresentado acima de maneira sucinta, o movimento zapatista tem se

    organizado ao longo dos anos contra as práticas políticas hegemônicas, empregadas por grupos e

    partidos que se posicionam tanto no campo da direita como da esquerda. Junto a outros movimentos

    indígenas e coletivos de diferentes países, os zapatistas afirmam colocar em prática uma outra forma

    de fazer política, “abaixo e à esquerda”.

    A resistência das comunidades indígenas organizadas em território zapatista consiste na luta

    pela autodeterminação com significativa melhora nas esferas da saúde, educação, alimentação,

    moradia, entre outras. Esse processo ocorre a partir do levante de 1 de janeiro de 1994 e acelera-se

    após 2001, quando passam a se dedicar de forma permanente ao autogoverno nos municípios

    autônomos, contando também com o apoio internacional. Sobre essa mudança nas condições de vida

    nos pueblos, afirmam na Sexta Declaração da Selva Lacandona, de 2005:

    El EZLN, durante estos 4 años, también le pasó a las Juntas de Buen Gobierno y a losMunicipios Autónomos, los apoyos y contactos que, en todo México y el mundo, selograron en estos años de guerra y resistencia. Además, en ese tiempo, el EZLN fueconstruyendo un apoyo económico y político que les permita a las comunidades zapatistasavanzar con menos dificultades en la construcción de su autonomía y en mejorar suscondiciones de vida. No es mucho, pero es muy superior a lo que se tenía antes del iniciodel alzamiento, en enero de 1994. Si usted mira uno de esos estudios que hacen losgobiernos, va a ver que las únicas comunidades indígenas que mejoraron sus condicionesde vida, o sea su salud, educación, alimentación, vivienda, fueron las que están enterritorio zapatista, que es como le decimos nosotros a donde están nuestros pueblos. Ytodo eso ha sido posible por el avance de los pueblos zapatistas y el apoyo muy grande quese ha recibido de personas buenas y nobles, que les decimos “sociedades civiles”, y de susorganizaciones de todo el mundo. Como si todas esas personas hubieran hecho realidadeso de que “otro mundo es posible”, pero en los hechos, no en la pura habladera.22

    21 Subcomandantes Moisés e Galeano. “300. Segunda parte: un continente como patio trasero, un país comocementerio, un pensamiento único como programa de gobierno, y una pequeña, muy pequeña, pequenisimarebeldía”. Comunicado de 21 de agosto de 2018. Disponível em: Acesso em: outubro de 2018.

    22 EZLN. “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.

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    A construção da autonomia pelas comunidades zapatistas junto ao EZLN guia-se sobretudo

    pelo objetivo de transformar as condições de reprodução da vida dos povos indígenas, o que não

    restringe o movimento ao caráter étnico e regional. A dimensão anticapitalista dessa luta por

    democracia, liberdade e justiça também se dá no encontro com outros “calendários e geografias”,

    para utilizar uma expressão zapatista. Na ocasião do Seminário El Pensamiento Crítico Frente a la

    Hidra Capitalista, organizado em 2015, o Subcomandante Galeano, porta-voz do Exército

    Zapatista, referia-se à necessidade de analisar o capitalismo de maneira crítica para saber como

    combatê-lo. Nas palavras de Galeano:

    Hay un elemento que no está explícito pero que es fundamental: la práctica. Lo que nosllama a este inicio de reflexión teórica, porque esperamos que sigan más semilleros, no esaumentar nuestro bagaje cultural, aprender palabras nuevas, tener argumentos para ligar odesligar, o demostrar que siempre podemos ser más ininteligibles. Lo que está en juegoacá, y después en los allá de cada quien según su tiempo, modo y lugar, es latransformación de una realidad. Por eso quienes debemos asumir, entre nosotroas, la responsabilidad de mantener ypotenciar esta reflexión, somos la Sexta. Simple y sencillamente porque nos diferencianmuchas cosas, pero una nos identifica: hemos decidido desafiar al sistema. No paramejorarlo, no para cambiarlo, no para maquillarlo, sino para destruirlo. Y eso, su destrucción, no se logra con pensamientos, aunque, claro, no faltará quien digaque debemos unir nuestras mentes y repetir “desaparece, desaparece” con verdaderas fe ypersistencia. No, pero los pensamientos nos ayudan a entender contra qué nosenfrentamos, cómo funciona, cuál es su modo, su calendario, su geografía. Para usar laexpresión de la escuelita: las formas en que nos ataca.23

    Após o levante zapatista no dia 1 de janeiro de 1994, em Chiapas, esse movimento indígena

    gerou um impacto político e midiático que ressoa até hoje para além dos limites da nação mexicana.

    Ao colocar em pauta a luta por autonomia dos povos originários, o EZLN aparecia como alternativa

    de organização política anticapitalista, opondo-se não só à agenda neoliberal, mas também às

    organizações tradicionais do campo da esquerda (frequentemente vinculadas ao sistema partidário e

    constituídas por relações hierárquicas entre “base” e “militância”). Naquele momento de descenso

    das lutas sociais e de fortalecimento de perspectivas teóricas como “o fim da história”, a repercussão

    da insurreição zapatista mobilizou uma ampla rede de apoiadores nacional e internacional, entre

    indivíduos, ativistas, coletivos e movimentos sociais. Publicizados no site oficial do movimento e

    também nos meios de comunicação independentes, os documentos e comunicados zapatistas

    transmitem a importância da relação entre os povos zapatistas e a “sociedade civil”24 no processo de

    resistência às tentativas de massacre, pela violência da guerra e pela ameaça do isolamento,

    encabeçadas pelo Estado. 23 Subcomandante Galeano. "El Método, la bibliografía y un Drone en las profundidades de las montañas del SuresteMexicano", comunicado de 4 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 8 de fevereiro de 2019.

  • 34

    É importante ressaltar que o movimento zapatista não começa com a fundação do EZLN, em

    1983, e nem pode ser explicado apenas a partir da insurreição de 1994, em Chiapas. Há centenas de

    anos, os povos originários do México têm traçado caminhos de resistência contra a marcha

    conduzida pelas forças dominantes em nome do progresso, voltando-se às lutas de seus antepassados

    para impedir a instrumentalização de sua história, de sua cultura e sua força de trabalho. Segundo

    González Casanova (2008), os maias destacam-se entre os povos mesoamericanos que mais

    resistiram à guerra de conquista espanhola, organizando grandes revoltas até o começo do século

    XVIII. Portanto, conclui o autor: “que hoy los mayas se rebelen de nuevo como tzeltales, tzotziles,

    choles, zoques y tojolobales corresponde a un legado que produce los mismos efectos en otras

    regiones de Mesoamérica” (GONZÁLEZ CASANOVA, 2008, p. 266). O EZLN, com 35 anos, e o

    movimento zapatista, com 25 anos de existência pública em 2018, colocam-se como herdeiros dessa

    tradição de lutas (ver figura 4). Como reafirmam na primeira declaração escrita conjuntamente pelo

    Exército Zapatista e Congresso Nacional Indígena, em agosto de 2014:

    La guerra contra nuestros pueblos indígenas dura ya más de 520 años, el capitalismo senació de la sangre de nuestros pueblos y a los millones de nuestros hermanos y hermanasque murieron durante la invasión europea, hay que sumar los que murieron en las guerrasde independencia y de reforma, con la imposición de las leyes liberales, durante elporfiriato y en la revolución. En esta nueva guerra de conquista neoliberal, la muerte denuestros pueblos es la condición de vida de este sistema. En las últimas décadas miles ymiles de nosotros hemos sido torturados, asesinados, desaparecidos y encarcelados pordefender nuestros territorios, nuestras familias, nuestras comunidades, nuestra cultura,nuestra vida misma. No olvidamos. Porque esa sangre, esas vidas, esas luchas, esa historiason la esencia de nuestra resistencia y de nuestra rebeldía en contra de quienes nos matan;en la vida y en la lucha de nuestros pueblos ellos viven.25

    Na guerra de conquista neoliberal, a morte física e a morte pelo esquecimento, com as

    tentativas de solapar a história e a cultura dos povos, são condições das quais se nutrem a

    manutenção do sistema capitalista. Diante da ameaça provocada pelo atual estado de barbárie, é

    preciso trazer os mortos à “palavra viva”, como dizem os zapatistas26. É na rememoração do

    passado, nas palavras que acompanham a compreensão da história – marcada pelo sangue, pelas

    vidas e pela tradição de luta dos “de abaixo” – que consiste na essência da resistência e da rebeldia

    24 Em documentos como a “Sexta Declaração da Selva Lacandona” e a “Carta à Sociedade Civil Nacional eInternacional”, ambas redigidas em junho de 2005, a “sociedade civil nacional e internacional” aparece como umacategoria ampla: são os grupos sociais “oprimidos, explorados, perseguidos e marginalizados”, que se rebelam contraas condições impostas pelo sistema capitalista; são “trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade”; e tambémconjunto de pessoas “humildes e comuns”, “boas e nobres”, e suas organizações apartidárias (sendo muitas delasOrganizações Não Governamentais - ONGs).

    25 Congreso Nacional Indígena (CNI) e Ejército Zapatista de Liberación Nacional. “1ª Declaración de laCompartición CNI-EZLN. Sobre la represión a nuestros pueblos”. Comunicado de agosto de 2014. Disponível em Acesso em: 11 de outubro de 2018.

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    contra o avanço do neoliberalismo. Esse fundamento, explicitado no comunicado acima, nos remete

    ao problema da transmissão da experiência e memória comuns através das gerações e sua

    importância para a apropriação do processo histórico, tema amplamente discutido pela teoria

    benjaminiana.

    Como analisa Walter Benjamin, no texto O narrador (1936), com o avanço da técnica na

    modernidade e das guerras em nome do progresso, a humanidade foi perdendo a “faculdade de

    intercambiar experiências” (BENJAMIN, 2012, p. 213). A força explosiva da técnica criada pelo

    trabalho humano é, assim, posta em funcionamento contra a vida e a favor da guerra, uma das

    manifestações da barbárie. Segundo o autor, com a Primeira Guerra Mundial esse processo começa a

    se manifestar com os combatentes, que “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim

    mais pobres em experiência comunicável” (idem, p. 214). Ao vivenciarem o horror da guerra,

    enquanto negação da experiência pela barbárie, estes voltavam impossibilitados de transmiti-la.

    Esta imagem, encontrada também no texto Experiência e Pobreza (1933), ilustra a questão

    trazida pela crítica benjaminiana à modernidade, segundo a qual o desenvolvimento das forças

    produtivas coloca em risco a transmissão da experiência “ligada a uma tradição viva e coletiva”

    (GAGNEBIN, 1982, p. 67). A noção de experiência, em O narrador, é pensada como substância

    viva da arte de narrar histórias capazes de serem transmitidas através do tempo; arte esta cuja origem

    encontra-se nas atividades do trabalho manual. Entretanto, a arte de narrar está em vias de extinção,

    como escreve o autor:

    Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as históriasnão são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve ahistória. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se gravanele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias detal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede emque está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje em todas as pontas,depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalhomanual (BENJAMIN, 2012, p. 220).

    A narrativa, enquanto “forma artesanal de comunicação” (Idem, p. 221) extrai da experiência

    coletiva e da vivência do próprio narrador a força capaz de causar infindáveis desdobramentos para a

    história narrada. O processo de assimilação dessa experiência se dá por uma lenta sedimentação de

    “camadas finas e translúcidas” constituídas pela tradição oral e pela rememoração. Esta, nas palavras

    de Benjamin, “funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração

    (...) Ela [a rememoração] tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”

    26 Subcomandante Galeano. “Apuntes de una vida (palabras del SupGaleano en el Homenaje a los compañeros LuisVilloro Toranzo y Maestro Zapatista Galeano)”. Comunicado de 2 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 11 deoutubro de 2018.

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    (Ibidem, p. 228). Segundo a filosofia benjaminiana, a escrita da história se dá por uma prática ao

    mesmo tempo redentora e revolucionária. Essa prática, por sua vez, relaciona-se à narrativa dos

    acontecimentos que está enraizada na experiência coletiva dos vencidos, cada vez mais anulada pelo

    desenvolvimento do capitalismo. De acordo com Benjamin,

    a arte de narrar aproxima-se de seu fim porque a sabedoria – o lado épico da verdade –está em extinção. Mas este é um processo que vem de longe. E nada seria mais tolo do quever nele um ‘sintoma de decadência’, e muito menos de uma decadência ‘moderna’. Ele émuito mais um sintoma das forças produtivas seculares, históricas, que expulsamgradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo, conferindo, ao mesmo tempo, umanova beleza ao que está desaparecendo (Ibidem, p. 228).

    Apesar da expulsão gradual das experiências coletivas e da capacidade de transmiti-las neste

    mundo tomado pelas formas sociais capitalistas, como afirma o filósofo, a luta indígena e dos

    zapatistas, em particular, parecem desafiar o curso da história dos