122
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação Física REGIANE CRISTINA GALANTE MEMÓRIAS DO CELAZER: INFLUÊNCIAS E CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS DO LAZER NO BRASIL CAMPINAS 2018

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de ...repositorio.unicamp.br/.../1/Galante_RegianeCristina_D.pdfREGIANE CRISTINA GALANTE MEMÓRIAS DO CELAZER: INFLUÊNCIAS E CONTRIBUIÇÕES

  • Upload
    others

  • View
    9

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    Faculdade de Educação Física

    REGIANE CRISTINA GALANTE

    MEMÓRIAS DO CELAZER: INFLUÊNCIAS E CONTRIBUIÇÕES

    PARA OS ESTUDOS DO LAZER NO BRASIL

    CAMPINAS

    2018

  • REGIANE CRISTINA GALANTE

    MEMÓRIAS DO CELAZER: INFLUÊNCIAS E CONTRIBUIÇÕES PARA OS

    ESTUDOS DO LAZER NO BRASIL

    Tese de Doutorado apresentada à Faculdade

    de Educação Física da Universidade Estadual

    de Campinas, como parte dos requisitos

    exigidos para a obtenção do título de Doutor

    em Educação Física, na área de concentração

    Educação Física e Sociedade.

    Orientadora: PROFA. DRA. SILVIA CRISTINA FRANCO AMARAL

    CAMPINAS

    2018

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

    VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA

    PELA ALUNA REGIANE CRISTINA

    GALANTE E ORIENTADA PELA PROFA.

    DRA. SILVIA CRISTINA FRANCO AMARAL.

  • Orientadora Universidade Estadual de Campinas - Unicamp

    COMISSÃO EXAMINADORA

    Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

    Universidade de São Paulo – EACH/USP

    Universidade Estadual Paulista - UNESP

    Universidade Estadual de Campinas - Unicamp

    A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de

    vida acadêmica do aluno.

  • Dedicatória

    Ao meu pai, por nunca ter duvidado, e à minha mãe, que mesmo

    depois de partir deste plano esteve comigo todos os dias dizendo:

    Não desista!

  • Agradecimentos

    Agradeço a Deus pela vida e pelas oportunidades que tenho. Tudo o que conquistei foi por

    Suas mãos;

    Agradeço ao Sesc São Paulo pelo investimento em meus estudos e pela confiança ao longo

    desses anos, especialmente e nominalmente ao Prof. Danilo, Joel e Maria Luiza, e também à

    Vilma pelo carinho e pelo respeito às minhas escolhas nesta reta final;

    Agradeço aos colegas ex-funcionários do Sesc, que generosamente me concederam as

    entrevistas e compartilharam seus saberes, lembranças, agruras e emoções há tempos

    guardadas na memória, e em especial ao Battistelli, que mesmo com a atribulação da agenda

    da Assessoria Técnica de Planejamento me recebeu e me concedeu também seu depoimento;

    Agradeço aos colegas do Sesc Memórias, principalmente ao David, que mergulhou comigo

    na busca pelos documentos e informações sobre o CELAZER;

    Agradeço aos colegas de GDFE e do Sesc São Carlos, por compreenderem minhas ausências

    e pacientemente respeitarem minhas impaciências;

    Agradeço também àqueles que me disseram: Você está perdendo seu tempo! Ou mesmo: Você

    não vai conseguir... O desafio de contrariá-los surtiu o mesmo efeito do incentivo positivo;

    Agradeço aos muitos amigos que tive o prazer de conhecer no Sesc, e que hoje fazem parte da

    minha vida, dentro e fora do Sesc. Sem o apoio e incentivo de vocês nada disso teria ido

    adiante;

    Agradeço aos melhores amigos e amigas que uma pessoa pode ter: Nane, Dani, Vivi Fausto,

    Fer, Dri, Ale Galvão, Vivi Paes, Cacá, Carolaine, Akira, Carlozandré, Maicoll, Vanessão,

    Carol, Pierin, Ivani, Itapema, Vagner, Gabriel, Céu, Cristine, Talita, Gláucia, Bel, Luizão,

    Danielzinho, Luciano, Everton, Artur, Diego, Ro Prando, Victor Lage, Alex, Glauber,

    Maurício, Celso, Luiz e ao casal Cris e Lê. Vocês aturaram meus piores momentos durante o

    processo com o mesmo amor de todos os bons momentos que sempre passamos juntos;

    Agradeço à Lis, minha terapeuta-amiga, que esteve ali semanalmente para me apoiar no

    percurso. Sem você e o trabalho que realizamos não teria chegado ao final;

    Agradeço aos meus compadres, Rose e Cris, e Ari e Didi, e aos meus afilhados Giovanna,

    Pedro e Amelie, por me perdoarem por ter sido uma madrinha ausente nesses últimos anos;

    Agradeço à Cristina e à Olívia, pelos bed&breakfast sempre carinhosos em Campinas;

    Plagiando um amigo, agradeço aos mestres, de vida ou de profissão: a ele próprio, Henrique,

    e ao Magnani, Simone Rechia, Glauco, Mário Fernandes, Zé Henrique, Celina Dias, Cae,

    Abel, Fábio d’Ângelo, Alcides Scaglia, Larissa, Robertão, Jorge Bento, Jocimar, Clerton,

    Hermes, Bebel, Helder, Chris, Bramante e tantos outros. Vocês são muito mais do que

    minhas referências bibliográficas;

  • Agradeço imensamente aos amigos do GEEP3L, novos e antigos, por todos os debates,

    leituras, almoços, cafés, desabafos e aprendizados. Especialmente Olívia, Dirceu, Gisela,

    Ale, Carlos, Simone, Sandro, Paganella e, sem dúvida, Marília, Rafa e Bruno pelo auxílio

    imprescindível na reta final. Queria ter passado mais tempo com vocês;

    Agradeço aos professores e funcionários da FEF/Unicamp, pelos auxílios, contribuições e

    orientações durante o processo do doutorado, principalmente à Simone;

    Um agradecimento especial aos membros da Banca Examinadora: Juliana, Edivaldo, Luiz,

    Victor e Denise, não só por avaliarem formalmente o trabalho na Qualificação e na Defesa,

    mas por me apoiarem e orientarem com generosidade e compreensão, e aos suplentes Olívia

    e Ricardo Uvinha que, além do incentivo, me deram suporte e auxiliaram na indicação de

    leituras;

    Agradeço à Silvia, minha orientadora, pela paciência com meu pouco tempo, por todos os

    ensinamentos, pelas orientações, pelo encantamento inicial e pelos puxões de orelha no final.

    Te admiro, te respeito e te desejo tudo de melhor que a vida pode oferecer;

    Agradeço à minha família, a de perto, pelo apoio de perto, e a de longe, pela compreensão

    por estar longe, e especialmente ao meu irmão e minha cunhada, pelo acolhimento amoroso e

    por me deixarem compartilhar da companhia da criaturinha mais doce e esperta que esse

    mundo já conheceu, minha sobrinha Isis.

    Por fim, agradeço à Ju Frâncica, minha amiga, meio-filha-meio-mãe. Leitora, interlocutora,

    incentivadora incondicional. Não tenho palavras pra dizer o quanto sou grata a você. Por

    tudo.

  • RESUMO

    Criado em 1946, o Serviço Social do Comércio – Sesc – tem como principal objetivo a

    promoção do bem-estar social, a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento cultural

    dos trabalhadores no comércio e serviços e suas famílias. No início dos anos 1970, as

    Diretrizes Gerais de Ação do Sesc incorporam o lazer oficialmente na política institucional,

    tornando-o um campo de ação prioritário em todo o território nacional. Com isso, no intuito

    de sistematizar e fundamentar teoricamente as ações, além de ampliar a formação e a

    capacitação técnica dos funcionários que atuavam com os projetos de lazer nas Unidades

    Móveis de Orientação Social – UNIMOS, no ano de 1978 o Departamento Regional do Sesc

    em São Paulo criou o Centro de Estudos do Lazer – CELAZER. Inicialmente formado por

    quatro funcionários que realizavam estudos e pesquisas, os trabalhos do Centro foram

    orientados principalmente pelo sociólogo francês Joffre Dumazedier. Favorável às ideias de

    Dumazedier, o Sesc assumiu o lazer enquanto vivência ligada ao tempo livre e passou a

    investir nos estudos e pesquisas sobre o caráter sócio-educativo do lazer. Assim, a partir de

    dados preliminares encontrados na literatura, estabeleceu-se como pressuposto inicial para

    esta Tese que os estudos do lazer no Brasil sofreram grande influência do pensamento de

    Dumazedier justamente devido à atuação do Sesc e do CELAZER. Definiu-se como problema

    norteador da pesquisa a compreensão do papel do CELAZER e suas contribuições para os

    estudos do lazer no Brasil, a partir das memórias dos principais pesquisadores deste Centro no

    período de seu funcionamento (1978-1983), assim como de alguns colaboradores que, mesmo

    não fazendo parte do CELAZER diretamente, igualmente contribuíram com as pesquisas e a

    produção teórica sobre lazer. De caráter qualitativo, a pesquisa explorou o acervo do Sesc

    Memórias – o Centro de Memória do Sesc São Paulo – e todo o material produzido pelo

    CELAZER, além dos documentos que comprovam sua criação e atuação, como Resoluções,

    Ordens de Serviço e Relatórios Anuais, a fim de compreender o contexto no qual o Centro foi

    criado e também seu funcionamento. Além disso, com inspiração na História Oral e nos

    Estudos da Memória, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete ex-funcionários

    do Sesc e um superintendente ainda em atividade, todos participantes do CELAZER, direta ou

    indiretamente, para identificar suas atuações e contribuições na produção de conhecimento

    sobre lazer no período. Após a leitura dos discursos e a identificação de categorias temáticas,

    foi elaborada a narrativa da constituição, atuação e produção de conhecimento do CELAZER,

    assim como a presença e a relação deste grupo de pesquisadores com seu orientador, Joffre

    Dumazedier. Ainda, foram identificadas as influências e contribuições do CELAZER para os

    estudos do lazer no Brasil, destacando-se a publicação dos livros da Biblioteca Científica do

    Sesc – série Lazer e o periódico Cadernos de Lazer, materiais que apoiaram as ações da

    instituição e que também circularam no meio acadêmico. A promoção de cursos, congressos,

    seminários e pesquisas sobre a temática foram apontadas como atividades relevantes do

    CELAZER, e envolveram tanto os funcionários da instituição quanto interessados de outras

    instituições e Universidades, influenciando não somente as ações do Sesc como também a

    construção de um pensamento sobre o Lazer no Brasil, pautado principalmente nos estudos de

    Joffre Dumazedier.

    Palavras-chave: lazer, memória, sociologia-lazer, lazer-história

  • ABSTRACT

    Created in 1946, the Social Service of Commerce - Sesc - has as main objective the promotion

    of social welfare, the improvement of the quality of life and the cultural development of

    workers in commerce and services and their families. In the early 1970s, Sesc's General

    Guidelines of Action officially incorporated leisure into institutional politics, making it a

    priority field of action throughout the national territory. Therefore, in order to systematize and

    theoretically base the actions, in addition to expanding the technical training of the employees

    that worked with the leisure projects in the Social Orientation Mobile Units - UNIMOS, in

    1978 the Sesc Regional Department in São Paulo created the Leisure Studies Center -

    CELAZER. Initially made up of four staff members carrying out studies and research, the

    Center's work was mainly led by the French sociologist Joffre Dumazedier. Favorable by

    Dumazedier's ideas, Sesc took up leisure as part of leisure time and began to invest in studies

    and research on the socio-educational character of leisure. Thus, from preliminary data found

    in the literature, it was established as an initial assumption for this Thesis that leisure studies

    in Brazil received a great influence of the thought of Dumazedier precisely due to the Sesc

    actions and CELAZER. It was defined as research problem the understanding of the role of

    CELAZER and its contributions to leisure studies in Brazil, from the memories of the main

    researchers of this Center during the period of its operation (1978-1983), as well as some

    collaborators which, even though had not worked of CELAZER directly, also contributed to

    research and theoretical production on leisure. Of a qualitative approach, the research

    explored the archive of Sesc Memórias - the Memory Center of Sesc São Paulo - and all the

    material produced by CELAZER, besides the documents that prove its creation and

    performance, such as Resolutions, Service Orders and Annual Reports, in order to understand

    the context in which the Center was created and also its operation. In addition, with

    inspiration in Oral History and Memory Studies, semi-structured interviews were conducted

    with seven former Sesc employees and one superintendent still active, all CELAZER

    participants, directly or indirectly, to identify their actions and contributions in the production

    of knowledge about leisure in the period. After reading the speeches and identifying thematic

    categories, the narrative of CELAZER's constitution, actuation and production of knowledge

    was elaborated, as well as the presence and the relationship of this group of researchers with

    its advisor, Joffre Dumazedier. Also, the influences and contributions of CELAZER for

    leisure studies in Brazil were identified, notably the publication of the books of the Scientific

    Library of Sesc - Lazer series and the journal Cadernos de Lazer, materials that supported the

    actions of the institution and also circulated in academic area. The promotion of courses,

    congresses, seminars and research on the subject were pointed out as relevant activities of the

    CELAZER, and involved both Sesc's employees and interested in other institutions and

    universities, influencing not only the actions of Sesc but also the construction of a thought on

    Leisure in Brazil, based mainly on the studies of Joffre Dumazedier.

    Key words: leisure, memorie, sociology-leisure, leisure-history

  • SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO..................................................................................................................11

    INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14

    1 - PERCURSO METODOLÓGICO....................................................................................28

    1.1- Identificando os entrevistados...................................................................................35

    2 - O CELAZER: Constituição, funcionamento e produção de conhecimento.................47

    3 - DUMAZEDIER NO CELAZER: presença, método e legado.......................................73

    CONSIDERAÇÕES FINAIS: Influências e Contribuições do CELAZER para os estudos

    do lazer no Brasil.....................................................................................................................82

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................87

    APÊNDICES............................................................................................................................92

    ANEXOS ...............................................................................................................................121

  • 11

    APRESENTAÇÃO

    Graduada em Educação Física pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

    – em 1997, o interesse em pesquisar a temática do lazer se deu com o início da minha

    trajetória profissional no Serviço Social do Comércio – Sesc – na cidade de São Carlos/SP,

    em 1998, quando ingressei na instituição como Instrutora de Atividades no Programa

    Curumim1.

    Durante dois anos ministrei atividades de expressão corporal, jogos e brincadeiras

    para crianças de sete a doze anos. Neste período, face à função que exercia, interessei-me pela

    primeira vez pelos Estudos do Lazer2. Buscando, assim, conteúdos que fundamentassem

    minha prática pedagógica, cursei a Especialização em Lazer da Universidade Federal de

    Minas Gerais – UFMG, concluindo-a no ano 2000, cujo trabalho final consistiu numa

    pesquisa bibliográfica que versava sobre O Lazer e a Corporeidade no Sesc: tempo/espaço de

    desenvolvimento integral (GALANTE, 2000).

    Alguns anos depois, em 2004, já ocupando o cargo de Monitor de Esportes3 em

    outra Unidade do Sesc, na cidade de Araraquara/SP, e atuando na coordenação do Programa

    Curumim na nova Unidade, ingressei no curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação

    em Educação da UFSCar, durante o qual procurei desvelar as relações entre o Lazer e a

    Educação, mais precisamente os processos de Educação pelo Lazer que ocorriam no

    Programa Curumim. Como resultado do curso de Mestrado, a dissertação Educação pelo

    Lazer: a perspectiva do Programa Curumim do Sesc Araraquara (GALANTE, 2006) foi

    defendida no ano de 2006, momento no qual já não mais coordenava o referido Programa, e

    sim ocupava o cargo de Coordenadora de Programação, sendo responsável pela gestão da

    equipe de programação do Sesc Araraquara, atuando na elaboração e execução dos projetos

    culturais e de lazer.

    1 O Programa Curumim foi criado no Sesc São Paulo em 1986, e visa ao desenvolvimento integral de crianças entre 7 e 12

    anos por meio da atuação de equipes multidisciplinares que ministram atividades esportivas e corporais, artes plásticas,

    música, dança, teatro, educação ambiental, cultura digital, literatura etc., sempre priorizando o caráter lúdico e formativo

    dessas práticas. Ser Instrutor de Atividades no Programa Curumim significa mediar essas atividades e atuar diretamente junto

    às crianças do Programa. 2 O termo estudos do lazer é empregado e compreendido assim como em Bickel (2013), “para designar a produção de

    conhecimentos científicos que têm o lazer como objeto de estudo” (BICKEL 2013, p.10). 3 O cargo de Monitor de Esportes é o primeiro cargo de gestão no organograma institucional, que contempla somente

    profissionais da área da Educação Física, responsáveis por programar atividades e gerir projetos, pessoas e programas nas

    áreas de Desenvolvimento Físico-esportivo e Programas Sócio-educativos.

  • 12

    No início de 2009 fui convidada a assumir o cargo de Assistente Técnico na

    Gerência de Desenvolvimento Físico-esportivo, na Administração Central do Sesc São Paulo,

    localizada na capital paulista, cuja função me proporcionou gerenciar projetos de esporte e

    lazer em todo o estado de São Paulo, nas mais de trinta unidades operacionais.

    Durante esses anos trabalhando na Administração Central do Sesc em São Paulo,

    aproximei-me de pessoas que trabalham há trinta, quarenta anos no Sesc e que, por saberem

    do meu interesse nos estudos do lazer, frequentemente me relatavam passagens da ação da

    instituição neste campo, principalmente no período compreendido entre os anos de 1960 e

    1970, com o trabalho das Unidades Móveis de Orientação Social – as UNIMOS, e no final de

    1970 e início dos anos 1980 com a criação do Centro de Estudos do Lazer do Sesc São Paulo

    – o CELAZER.

    Nesse sentido, provocada pelo contato com essas pessoas, e instigada pela

    possibilidade de registrar um momento da história institucional cujo investimento nos estudos

    e pesquisas sobre a temática do lazer era algo muito presente ou, mais que isso, definia em

    muitos pontos as ações não somente da entidade, mas de outras instituições neste campo,

    principalmente por meio do trabalho do CELAZER, busquei mais uma vez aprofundar meus

    conhecimentos sobre Lazer.

    Desta forma, e pressupondo que os estudos do lazer no Brasil receberam grande

    influência da produção gerada pelo Sesc e, sobretudo, pelo CELAZER, e motivada pelo

    desejo de aprofundamento teórico sobre a questão, ingressei em 2013 no curso de Doutorado

    da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, durante o qual pude me aproximar de

    outras produções bibliográficas e estudiosos do lazer externos ao Sesc, que relatam em parte

    os acontecimentos que envolvem a participação da instituição nesta profícua fase dos estudos

    do lazer no Brasil, principalmente por meio do investimento na contratação da consultoria do

    sociólogo francês Joffre Dumazedier e na difusão do pensamento dele por meio das

    publicações.

    Procurei, então, os documentos institucionais do período, atualmente organizados

    no Centro de Memória do Sesc São Paulo – o Sesc Memórias, e tive acesso a uma série de

    Atas de reuniões, Ordens de Serviço e Relatórios internos, que apresentam informações sobre

    a organização do Sesc e suas principais ações desde sua criação, em 1946. Tive acesso, ainda,

    às publicações do CELAZER – livros e periódicos –, de autoria de funcionários e consultores

    externos, além do próprio Dumazedier, e também estudos e registros de parte das ações do

    Departamento Regional de São Paulo no campo do lazer nas décadas de 1960, 1970 e 1980,

  • 13

    que reforçaram as impressões iniciais sobre o lazer ocupar um lugar de destaque na agenda

    institucional, principalmente no estado de São Paulo, bem como as impressões de a própria

    Instituição ter influenciado a conformação dos estudos do lazer no Brasil.

    Nos anos que corresponderam ao Doutorado permaneci no cargo de Assistente

    Técnico na Gerência de Desenvolvimento Físico-esportivo, exceto nesse último ano de 2017,

    quando fui transferida novamente para a cidade de São Carlos, agora desempenhando a

    função de Gerente Adjunto na mesma Unidade em que comecei minha carreira no Sesc.

    Ressalto, contudo, dois pontos a meu ver fundamentais: o primeiro, enquanto

    funcionária do Sesc São Paulo, meu objetivo inicial era o de me aprofundar nos estudos do

    lazer e suprir uma dada lacuna nos registros da história institucional, de certa forma

    determinante para a ação do Sesc ainda hoje. Por outro lado, como segundo ponto, mas não

    menos importante, reitero que não pretendo que este trabalho limite-se apenas a relatar a

    história da instituição, sem a interlocução com os estudos acadêmicos do lazer. Ao contrário,

    o que pretendo é apresentar, de forma crítica, o que o Sesc e, mais precisamente o Sesc São

    Paulo – por meio do CELAZER –, teve como contribuição aos estudos e às ações no campo

    do lazer no Brasil, principalmente no período compreendido entre as décadas de 1970 e 1980,

    visando assim contribuir também para este campo de conhecimento.

  • 14

    INTRODUÇÃO

    Uma pesquisa é sempre, de alguma forma, um relato de longa viagem empreendida

    por um sujeito cujo olhar vasculha lugares muitas vezes já visitados. Nada de

    absolutamente original, portanto, mas um modo diferente de olhar e pensar

    determinada realidade a partir de uma experiência e de uma apropriação do

    conhecimento que são, aí sim, bastante pessoais

    (DUARTE, 2002, p.140)

    São recorrentes no Brasil as pesquisas sobre lazer que buscam situar

    cronologicamente seu surgimento, ou ainda conceituar tal fenômeno e analisar os significados

    por ele incorporados ao longo do tempo (SANT’ANNA, 1994; WERNECK, 2000; GOMES,

    C. L. e MELO, 2003; PEIXOTO, 2007; MARCASSA, 2009, BRETAS, 2010).

    Ainda que não haja concordância entre os principais estudiosos da temática sobre

    o surgimento do termo lazer no cenário nacional, sobre seu conceito ou mesmo sobre sua

    relação ou delimitação a partir de outro fenômeno – o trabalho (CARVALHO e VARGAS,

    2010; GALANTE, 2006; GOMES, C. L, 2003; MARCASSA, 2002), é consenso entre os

    pesquisadores da área que os anos 1970 correspondem a dos momentos mais importantes para

    a sistematização dos estudos do lazer no Brasil (SANT’ANNA, 1994; WERNECK, 2000;

    GOMES, C. L. e MELO, 2003; PEIXOTO, 2007; MARCASSA, 2009), não somente pela

    quantidade de publicações lançadas sobre o tema, mas também pelas crescentes discussões

    sobre “o (bom) uso das horas de lazer” (WERNECK, 2003, p.119), sobretudo considerando o

    contexto político e social no qual estava o país4.

    Este estudo, no entanto, focaliza menos a questão do conceito, e mais a

    compreensão da constituição do campo de estudos do lazer no Brasil a partir das

    contribuições do Centro de Estudos do Lazer do Sesc São Paulo – CELAZER que, no período

    de 1978 a 1983, fortemente influenciado pelo pensamento do sociólogo francês Joffre

    Dumazedier, atuou efetivamente na produção e na disseminação do conhecimento sobre a

    temática no país, por meio de suas publicações, pela organização de cursos e seminários e

    pela realização de pesquisas sobre o tema. Contudo, não se estabeleceu como foco de

    pesquisa a análise da referida produção e sim a compreensão do papel do CELAZER e suas

    4 Refiro-me ao período da Ditadura Civil-Militar, regime político sob o qual o Brasil encontrava-se na época (1964-1985), e

    que será comentado e aprofundado mais adiante. A respeito da importância do período para os estudos do lazer no Brasil,

    Sant’Anna (1994) comenta que, entre os anos 1969 e 1979, houve um aumento significativo do número de pesquisas, debates

    e análises sobre os usos do tempo livre. Porém, no mesmo período houve um aumento considerável da jornada de trabalho, o

    que reduziu o tempo livre da maioria dos trabalhadores brasileiros, submetidos ainda a baixos salários e tendo que usar o

    pouco tempo livre que lhes restava para completar os vencimentos, o que a autora considera um contrassenso.

  • 15

    contribuições para os estudos do lazer no Brasil, a partir da narrativa dos sujeitos que, direta

    ou indiretamente, fizeram parte do CELAZER.

    Para tanto, e para situar historicamente o CELAZER no próprio Sesc São Paulo,

    faz-se necessário retornar a meados dos anos 1940, mais precisamente ao ano de 1946,

    quando foi criado o Serviço Social do Comércio – Sesc, “com a finalidade de planejar e

    executar medidas que contribuam para o bem estar e melhoria do padrão de vida dos

    comerciários e suas famílias e, bem assim, para o aperfeiçoamento moral e cívico da

    coletividade” (SESC-SP, 1996, p.12).

    Naquele momento, o Brasil passava por um período de grande crescimento

    industrial estimulado, sobretudo, pelo regime do Estado Novo5, também marcado pelo

    aumento das preocupações do Estado com a política social (BICKEL, 2013). Com o êxodo

    rural causado pela esperança de vagas no mercado de trabalho devido à instalação das grandes

    indústrias nas cidades, surgem sérios problemas decorrentes da falta de condições de acolher a

    todos: pouca disponibilidade de moradias, falta de saneamento básico, ausência de escolas e

    transporte público, atendimento precário à saúde e dificuldades mesmo para com “o tão

    sonhado emprego” (ARANHA, 1989, p.252). Além disso, com a aprovação da Consolidação

    das Leis do Trabalho, a CLT, em 1943, ampliavam-se os movimentos operários e sindicais e o

    controle do Estado sobre a relação capital e trabalho (JAMBEIRO et al, 2004).

    Nesse contexto social e econômico, eram latentes as tensões entre empregados e

    empregadores. Todo esse cenário fez com que a classe empresarial se mobilizasse a fim de

    definir qual seria sua atuação frente ao quadro que se apresentava e colocava em risco o tão

    esperado desenvolvimento nacional estimulado pelo Estado. Assim, foi realizada em maio de

    1945 a primeira Conferência das Classes Produtoras – I Conclap, na cidade de Teresópolis/RJ,

    cujos debates resultaram numa carta de intenções do empresariado, a chamada Carta da Paz

    Social, que trazia “recomendações propostas pelos empresários e definiam basicamente uma

    postura de justiça social, capaz de assegurar aos trabalhadores melhores condições de vida”

    (DIAS, 2013, p.32).

    É um documento altamente expressivo do espírito de solidariedade e do realismo

    amadurecido dos homens de empresa brasileiros desta geração. Ela deverá contribuir

    5 É chamado de Estado Novo o período ditatorial que vai de 1937 a 1945, quando Getúlio Vargas, apoiado principalmente

    pelos militares, tomou o poder e permaneceu como Presidente da República, instaurando uma nova Constituição Federal

    (Constituição de 1937). O Estado Novo marcou a vida política e administrativa brasileiras, com a supressão de direitos

    políticos e o fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais. Contudo, no

    período também ocorreu “o crescimento da urbanização, o desenvolvimento industrial e o florescimento de uma produção

    cultural nacional” (ALMEIDA e GUTIERREZ, 2011, p.137).

  • 16

    para harmonizar e pacificar o capital e o trabalho em nosso país, em um plano

    superior de entendimento recíproco. Com ela, nos apresentamos ante os empregados,

    convidando-os a fundar, sobre base sólida, uma política de mútua compreensão e de

    respeito recíproco6 (SESC, 2012, p.9).

    Levando em conta as intenções colocadas na Carta da Paz Social, em 1946, o

    então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra assinou o decreto lei nº 9853, cujo artigo

    1º atribuía à Confederação Nacional do Comércio, presidida por João Daudt D’Oliveira, a

    tarefa de “criar o Serviço Social do Comércio – Sesc” (SESC-SP, 1996, p.12), marcando

    definitivamente uma nova forma de promoção, pelas classes patronais, da assistência social e

    da qualificação dos trabalhadores.

    Desde a sua criação, a finalidade do Sesc eram o planejamento e a execução de

    ações que contribuíssem para o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores

    no comércio de bens, serviços e turismo, de suas famílias e da comunidade em geral. Em São

    Paulo, o primeiro Conselho Regional, assessorado por um grupo de consultores de diversos

    segmentos da sociedade – líderes sindicais, médicos, engenheiros etc. – estabeleceu as

    atividades prioritárias: os esforços institucionais se voltariam à assistência ao comerciário e

    sua família, principalmente nos setores médico, odontológico, sanitário e hospitalar, por meio

    da oferta desses serviços a custos reduzidos.

    Como entidade de assistência social, o Sesc desenvolvia um trabalho

    complementar àquele das agências governamentais no campo da prestação de serviços sociais,

    em especial nas áreas da saúde e alimentação. Assim, foram implantadas as primeiras

    unidades na capital paulista, especializadas neste tipo de atuação: o Restaurante do

    Comerciário, na rua Riachuelo, que fornecia alimentação para os comerciários do centro a

    preços reduzidos, e a Clínica Central de Serviços Especializados, na rua Florêncio de Abreu,

    ambos inaugurados em 1947.

    O leque de serviços era amplo, assim como os anseios da classe trabalhadora no

    comércio. Desta forma, já nos primeiros anos, a ação da entidade foi-se diversificando e

    passou a abranger áreas de interesses mais amplos, inclusive com a instalação dos primeiros

    Centros Sociais7, casas muitas vezes modestas, mas localizadas estrategicamente em bairros

    6 Excerto do discurso pronunciado por João Daut d’Oliveira, por ocasião da posse da diretoria da Confederação Nacional do

    Comércio, em janeiro de 1946, no qual se refere à Carta da Paz Social (SESC-DN, 2012, p.9). 7 Os Centros Sociais eram os espaços/imóveis que o Sesc instalava, para se tornarem locais “físicos” de referência para os

    trabalhadores no comércio, nos quais era possível se cadastrar na entidade para usufruir dos serviços prestados, tais como

    reservar uma hospedagem na Colônia de Férias em Bertioga, ou se inscrever e participar de algum curso ou oficina, além de

    se tornarem espaços de convivência e de encontro de grupos diversificados.

  • 17

    importantes da capital paulista, como Tatuapé, Bela Vista, Santana e Água Branca, e também

    em algumas cidades do interior, como Campinas e do litoral, como Santos (SESC-SP, 2013).

    Nos anos 1950, o Sesc já desenvolvia ações em vários estados, principalmente por

    meio da instalação das Colônias de Férias voltadas ao descanso do trabalhador. Foram

    instaladas colônias em Bertioga/SP, Caucaia/CE, Petrópolis e Macaé/RJ, Salvador/BA, Belo

    Horizonte/MG, Matinhos/PR e Garanhuns/PE (SESC-DN, 1972).

    O período de expansão do trabalho do Sesc também corresponde a um momento

    de franco desenvolvimento para o país, principalmente entre os anos de 1955 e 1960, no

    governo Juscelino Kubitscheck, cujo Programa de Metas foi um projeto de dotação de

    infraestrutura básica para o país, ou seja, de grande industrialização, modificando os rumos da

    economia brasileira no contexto internacional.

    Neste mesmo período, nos Centros Sociais da capital paulista, além dos trabalhos

    que inicialmente eram voltados ao atendimento das necessidades na área de saúde, aconteciam

    cursos de inglês, português, corte e costura e balé infantil e, nos anos que se seguiram,

    nasceram grupos de teatro, música, dança, cinema, fotografia, artes plásticas e os grêmios e

    clubes de funcionários de empresas comerciais (GALANTE, 2006; SESC-SP, 2013).

    Esse processo levou a reflexões teóricas e técnicas quanto ao tipo de serviço social

    a ser desenvolvido pela entidade, resultando em propostas de diversificação e ampliação da

    ação institucional nas cidades nas quais não havia um Centro Social instalado. Assim, sob a

    perspectiva de disseminar o trabalho e a missão da instituição no interior do estado, o Sesc

    São Paulo inaugura seu trabalho de Ação Comunitária com as Unidades Móveis de

    Orientação Social, as UNIMOS, nos anos 1960.

    Figura 1: Veraneio da UNIMOS – Unidade Móvel de Orientação Social

    Acervo Sesc Memórias.

  • 18

    Organizada em um furgão/veraneio, com dois ou três Orientadores Sociais8,

    alguns materiais esportivos, máquina de escrever, projetor de filmes 16mm, aparelho de

    som/vitrola e outros equipamentos, as UNIMOS instalavam-se em praças, parques e até

    mesmo em salões paroquiais e, nestes espaços, eram realizadas atividades de lazer e recreação

    para a comunidade, incluindo a organização de torneios esportivos, jogos de mesa como

    xadrez e carteado, exibições de cinema, concursos de beleza, palestras, oficinas de artes

    manuais etc., além da mobilização de lideranças locais e de voluntários para darem

    continuidade aos trabalhos por conta própria (DIAS, 2013; GALANTE, 2006).

    Um desses orientadores era o sociólogo Renato Antonio Quadros de Souza

    Requixa9, que havia sido contratado em 1953 para atuar no Centro Social Florêncio de Abreu

    e, posteriormente, passou a compor a equipe das UNIMOS nos anos 1960

    Eu estava assim muito entusiasmado com o Direito, e comecei a trabalhar no

    Serviço Social do Comércio, o Sesc, quando então comecei a me envolver com a

    área de recreação. (...) foi um trabalho que nós até chamávamos de ação

    comunitária. As pessoas eram interessadas em assumir certos problemas que tinham

    na comunidade, ativados por nós, os orientadores sociais. Faziam com que as

    próprias lideranças públicas que surgiam, elas tomassem consciência dos problemas,

    às vezes até problemas menores, que elas próprias poderiam solucionar (Informação

    verbal)10

    .

    Nas incursões das UNIMOS pelo estado de São Paulo, as intervenções nas

    cidades eram realizadas em parceria com órgãos públicos, como prefeituras ou igrejas, e

    sempre com a apresentação do Sindicato do Comércio Varejista11

    local

    (...) fomos a cidades médias, depois fomos a cidades menores, e sempre marcado

    pela apresentação do presidente do sindicato local. O Sindicato do Comércio

    Varejista local. Então esse presidente de sindicato nos abria as portas da cidade.

    Então aí não, eles nos tranquilizavam, nos apoiavam e a gente desenvolvia trabalhos

    de educação física, também de artes e estudos sociais (Informação verbal)12

    .

    No período de atuação das UNIMOS – que compreende as décadas de 1960 e

    1970 –, a instituição assume fortemente o lazer como possibilidade de trabalho social e amplia

    8 Orientador Social era o nome do cargo no qual os profissionais eram contratados pelo Sesc para ministrar as atividades e

    fazer a interlocução com a comunidade, fosse num Centro Social ou mesmo nas UNIMOS. Eram, em geral, cientistas sociais,

    assistentes sociais, professores de educação física ou pedagogos. 9 Renato Requixa infelizmente faleceu no decorrer desta pesquisa. Embora houvesse a intenção inicial de entrevistá-lo, fui

    desencorajada pelo seu cuidador e por amigos próximos, pois já se encontrava enfermo quando iniciei as incursões no campo. 10 Entrevista concedida por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a integrar o

    acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.4. 11 Os Sindicatos do Comércio Varejista são os órgãos que mantêm e administram o Sesc. Os presidentes dos Sindicatos são

    eleitos pelos seus pares para a função de Conselheiros no Conselho Regional de cada estado. 12 Op. cit., loc.cit.

  • 19

    seu quadro de orientadores, mas ainda não demonstra preocupação em relação ao

    aprimoramento teórico-conceitual sobre o lazer em si. Além disso, esse mesmo período de

    intervenção das UNIMOS nas cidades corresponde a um período importante na conjuntura

    política brasileira

    Esse grupo de orientadores sociais que foi prestigiado. Era muito importante na

    época, então trabalhou muito: trabalhou assim, com vontade para a

    redemocratização do país, com Juscelino Kubitscheck e essas coisas todas. O PSB,

    que era o grande partido na época, o presidente, ele era amigo do Juscelino, então,

    foi uma época muito gostosa, muito bonita, e depois surgiu a famosa revolução de

    (19)64 (Informação verbal)13

    .

    A Revolução a que se refere Renato Requixa foi o Golpe Civil-Militar de 1964.

    Conforme aponta Ghiraldelli Junior (2006), falava-se em Revolução, mas não se tratou de

    “uma revolução propriamente dita e, sim, de golpe” (GHIRALDELLI JUNIOR, 2006, p.105),

    momento da história nacional marcado pela repressão, pela censura, pela perda do poder de

    participação e crítica da população, e ainda por repressões violentas a qualquer oposição ao

    regime.

    De acordo com Laniado (2014), o regime militar criou “uma política regressiva e

    essencialmente não democrática” (LANIADO, 2014, p.37). Por meio da reestruturação

    institucional e da ordem jurídica, o autoritarismo do Estado e a concentração do poder nas

    mãos das Forças Armadas ocasionaram o enfraquecimento da participação civil nas diretrizes

    econômicas e políticas brasileiras.

    O período ditatorial iniciado em 1964 durou vinte e um anos, e serviu de palco

    para o revezamento de cinco generais na Presidência da República. Além disso, a política

    econômica continuou optando pelo aproveitamento do capital estrangeiro (GHIRALDELLI

    JUNIOR, 2006), e gerou um modelo que concentrava a renda numa pequena parcela da

    população e submetia a maior parte dos trabalhadores ao arrocho salarial14

    . A abertura ao

    capital internacional, a instalação de multinacionais e o grande desenvolvimento industrial

    marcaram esse período, conhecido como Milagre Econômico15

    .

    13 Entrevista concedida por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a integrar o

    acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.4. 14 Arrocho salarial é a consequência de uma política salarial cujos reajustes não acompanham a inflação, ocasionando a

    diminuição do poder de compra dos trabalhadores, por consequência aumentando o endividamento e piorando as condições

    de vida da população. 15 “Expressão atribuída à política econômica empreendida pelo então Ministro da Fazenda Delfim Neto na década de 1970,

    na qual se fez acreditar que o Brasil estava tendo grande desenvolvimento” (GONÇALVES JUNIOR, 2002, p.35).

  • 20

    Nesse contexto de Ditadura, e sob a proposta desenvolvimentista pautada na

    indústria, foram elevadas as jornadas de trabalho e, em algumas ocasiões, “chegou-se a

    ultrapassar o limite de quarenta e oito horas semanais de trabalho e as horas extras foram

    inúmeras vezes convertidas em horas ordinárias” (SANT’ANNA, 1994, p.27).

    Em contrapartida, é possível verificar um aumento significativo das discussões

    sobre lazer, embora o tempo livre dos trabalhadores tenha diminuído consideravelmente, visto

    que o já citado arrocho salarial obrigava os trabalhadores a buscarem outras ocupações para

    completar seus rendimentos.

    Sant’Anna (1994) pontua a esse respeito que

    A primeira impressão que temos ao lançar nossas atenções sobre esta época é a de

    que vivíamos simultaneamente dois movimentos distintos e opostos: por um lado, a

    exaltação a uma série de conteúdos do tempo livre permeados de ludicidade e, por

    outro, a ênfase no trabalho preconizada pelo Governo Militar e fortalecida pela

    política do “Milagre Econômico”, que contribuiu para reduzir drasticamente o tempo

    livre da maior parte dos assalariados. Assim, poder-se-ia imaginar que a exaltação a

    determinados usos do tempo livre, a recomendação e a legitimação de certas

    atividades e espaços de diversão consistiam num lado a salvo do rosto pálido da

    ditadura militar. (...) percebeu-se que a preocupação com as questões do tempo livre,

    principalmente na cidade de São Paulo, não emergiu de posições

    descompromissadas com a manutenção dos valores econômicos vigentes, nem foi

    implementada em função de interesses contrários ao desenvolvimento da política

    institucional dominante (SANT’ANNA, 1994, p.9).

    Corroborando tais apontamentos, Marcassa (2009) considera que neste momento

    iniciou-se no Brasil “uma preocupação com o lazer e um movimento de inspeção dos usos do

    tempo livre do trabalhador, especialmente nos grandes centros urbanos” (MARCASSA, 2009,

    p.248).

    Nesse período o lazer passa, de acordo com Sant’Anna (1994), a ser amplamente

    utilizado para designar os usos do tempo livre que, de algum modo, pudessem ser úteis

    economicamente e aceitos pelos padrões e valores morais instituídos. Intervenções

    institucionais das mais diversas naturezas colaboraram para a retificação desse conceito,

    visando tornar as práticas lúdicas, de alguma maneira, úteis e valorosas aos bons costumes.

    Nesta mesma linha de raciocínio, Brunhs (1997) observa que desde o início das discussões a

    respeito do lazer, o que se nota é uma visão funcionalista, posicionando o ser humano em

    função do sistema vigente, buscando a manutenção da ordem social presente.

    Com o inevitável aumento do chamado tempo livre, políticos e empresários se

    preocuparam com os usos que os trabalhadores poderiam fazer de suas horas de

    folga, sendo grande o receio de que elas fossem empregadas com atividades que

    pudessem degradar moralmente a sociedade. Ao invés de se entregarem ao

  • 21

    alcoolismo, aos jogos de azar, ao ócio e a outros vícios, os trabalhadores deveriam

    fazer ‘bom uso’ do tempo liberado do trabalho, ocupando-o com atividades

    consideradas saudáveis, educativas e socialmente úteis (GOMES, C. L., 2003, p.80).

    Voltemos, contudo, ao ano de 1964. Naquele momento, o Sesc elaborava seu

    Regulamento e o Plano Geral de Ação, não sem a preocupação de “produzir respostas

    precisas aos anseios de seus dirigentes, em vista das demandas da nova ordem econômica e

    política sobre a qual o país começava a tomar ciência” (BICKEL, 2013, p.67). Em São Paulo,

    Renato Requixa é convidado pelo então Presidente da Federação do Comércio Varejista, Dr.

    Brasílio Machado Neto, a ser diretor das UNIMOS no estado.

    Em relação ao trabalho das Unidades Móveis, neste período

    (...) nós sentimos que as autoridades locais começaram a nos temer, assim, como se

    nós fôssemos não uns animadores culturais, mas uns agitadores. E a coisa começou a

    ficar meio difícil pra nós. Tanto que, no último ano, nós estávamos atendendo umas

    duzentas cidades e então algumas autoridades chegaram a prender alguns

    orientadores sociais nossos, apesar de serem funcionários de uma entidade patronal.

    Você vê como a revolução foi forte naquele momento (Informação verbal)16

    .

    Durante o tempo que se dedicou a coordenar o trabalho das UNIMOS, Renato

    Requixa recebeu, de um de seus assistentes17

    que havia viajado à Suécia para fazer uma

    pesquisa sobre sociologia do trabalho, uma revista com um artigo assinado por Joffre

    Dumazedier:

    E depois, mesmo em (19)64, um assistente meu pediu uma licença do Sesc e foi para

    a Suécia fazer um trabalho, um estudo sobre sociologia do trabalho (...). Então ele

    me mandou de lá um livro, aliás uma revista de sociologia onde havia um artigo do

    Joffre Dumazedier sobre o lazer, a importância do lazer. Quando eu li aquilo eu

    disse: ai meu Deus, era aquilo que a gente estava fazendo (...). Mas aí, eu, curioso a

    respeito do assunto, comecei a ler, a procurar, viajei pra Europa, procurei material

    sobre lazer (...) (Informação verbal)18

    .

    Entusiasmado com o tema, Requixa procurou aprofundar seus estudos e tornou-se

    um conhecedor das propostas e teorias de Joffre Dumazedier, encontrando nos trabalhos do

    sociólogo francês o respaldo teórico necessário para desenvolver a ação institucional nas

    UNIMOS.

    16 Entrevista concedida por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a integrar o

    acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.4. 17 O assistente de Requixa era Otto Celso Domingues, que estava na Suécia estudando Sociologia do Trabalho pelo Sesc,

    conhece as teorias de Joffre Dumazedier e encaminha à Requixa o material. 18 Ibid p.5.

  • 22

    Mas foi em 1969 que um evento considerado um marco na história dos estudos do

    lazer no Brasil: o “Seminário sobre Lazer: Perspectivas para uma cidade que trabalha”,

    realizado pelo Sesc São Paulo, em conjunto com a Secretaria Municipal do Bem Estar Social,

    deflagra novas discussões e perspectivas sobre a temática

    Em 1969, o Sesc de São Paulo e a Secretaria de Bem-estar do Município resolveram

    empreender um evento público para discussão do tema, um seminário de estudos

    aproximando universidade, planejadores e trabalhadores sociais.(...) A repercussão

    do Seminário (...) foi perto de catastrófica. (...) De um lado, a favor do tema, devem

    ser lembrados o Sesc e alguns setores públicos minoritários, sobretudo de urbanistas,

    que não se conformavam com a degradação dos espaços urbanos e com a morte do

    centro histórico. Havia, também, os professores de educação física e os recreadores

    escolares, que se sentiam marginalizados em face da tônica dominante na escola. De

    outro, contrários, havia os empresários, os ‘donos’ do trabalho, em parceria inusitada

    com a sociologia estabelecida, sobretudo da USP e da PUC, sem deixar de

    mencionar a parcela majoritária de assistentes sociais e profissionais que se

    dedicavam ao cuidado das populações carentes (CAMARGO, 2003, p.36-37).

    Vários autores (SANT’ANNA, 1994; MARCASSA, 2002; PEIXOTO e

    PEREIRA, 2009; CAMARGO, 2003; WERNECK, 2003) relatam a dinâmica estabelecida nas

    discussões, entre as correntes favoráveis e contrárias à existência do lazer enquanto campo

    teórico e sua consideração como algo prioritário na vida social durante o referido evento. Nos

    debates, cada grupo defendeu suas opiniões e posições – contrárias ou a favor – da

    necessidade da garantia do lazer ao trabalhador, inclusive frente a outros aspectos, como

    trabalho, urbanização, desemprego, pobreza, e sempre à sombra do Regime Militar que

    presidia o Brasil na época

    Os argumentos favoráveis eram bastante tímidos (...). As justificativas ao estudo do

    lazer, assim, eram apenas as instrumentais, aquelas que solicitavam que se passasse

    do primeiro ao segundo estágio na preocupação com o lazer, que se pensasse no

    lazer como solução para encaminhamento de outros problemas. Como viver apenas

    de trabalho? Como descansar, se não há lazer? Como lidar com populações carentes,

    a não ser através de atividades lúdicas? Já os argumentos contrários não eram nada

    tímidos. Refugiavam-se, às vezes, à sombra de bandeiras inatacáveis na época. Era o

    caso da primeira objeção que afrontava o tema do lazer como desviacionista dos

    graves problemas da nossa sociedade de então, como a tortura de opositores ao

    regime, a fome, o desemprego, etc. Era um argumento difícil de refutar (...).

    Curiosamente, outros assuntos eram livremente discutidos como o da urbanização,

    dos transportes, da saúde, da própria poluição, que incluíam ou deveriam incluir o

    lazer, mas o tema diretamente colocado do lazer parecia afrontar algo (CAMARGO,

    2003, p.37).

    A repercussão do Seminário acabou por motivar profissionais ligados aos estudos

    e à intervenção no campo do lazer a intensificarem as buscas por uma melhor fundamentação

    para o tema (GOMES, C. L., 2008), impulsionando os estudos do lazer no Brasil.

  • 23

    Também motivado pelo Seminário, Renato Requixa publica, em formato de

    livreto, a Conferência de Abertura As Dimensões do Lazer, proferida por ele e cuja

    repercussão extrapolou, segundo o autor, as discussões no próprio evento

    Eu abri o Congresso com uma palestra chamada As dimensões do lazer. Aí o lazer

    nessa palestra, o lazer entrou nos jornais. A palavra lazer entrou nos jornais. Não

    existia isso em 1969 (...) então foi o primeiro congresso que saiu, e a primeira vez

    que se falou em lazer no Brasil (Informação verbal)19

    .

    Renato Requixa busca, também a partir do Seminário, uma aproximação com o

    próprio Dumazedier, vislumbrando futuras possibilidades no desenvolvimento do trabalho da

    instituição no campo do lazer

    Em seguida eu estive na França com o Dumazedier, levei a minha publicação pra

    ele, todo orgulhoso, lógico, tinha um trabalho sobre lazer (...). E ele me mandou uma

    carta. Ele leu, gostou, se interessou muito pela coisa (Informação verbal)20

    .

    Na esteira do que acontecia nas discussões institucionais e políticas brasileiras, o

    Conselho Nacional do Sesc aprova no início dos anos 1970 as Diretrizes Gerais de Ação,

    assumindo definitivamente o lazer como um de seus campos de atuação prioritários

    (...) as Diretrizes definiam metas para a execução das ações institucionais que

    deveriam estar direcionadas à solução dos problemas dos trabalhadores no comércio

    e de suas famílias, nos seguintes aspectos: Educação, Saúde, Alimentação,

    Habitação, Vestuário, Transporte, Lazer e Orientação Profissional e Social

    (BICKEL, 2013, p.60).

    Favorável às ideias de Dumazedier, o Sesc São Paulo assumiu, nas suas

    atividades, o entendimento do lazer enquanto vivência ligada ao tempo livre, “que é limitado

    pelo tempo de trabalho profissional, pela duração do tempo consagrado a outras atividades

    improdutivas, pelo tempo destinado às obrigações domésticas e familiares” (DUMAZEDIER,

    1974, p.34), entendimento logo incorporado pelo Departamento Nacional e difundido para

    todos os departamentos regionais

    (...) e o diretor-geral do Sesc no Brasil, que era o Moacir Lopes Meirelles, ele

    também começou a se interessar e disse ‘Ah não, então vamos fazer um seminário

    nacional! Vocês fizeram um seminário em São Paulo, então vamos fazer um

    19 Entrevista concedida por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a integrar o

    acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.9. 20 Op.cit.Loc.cit

  • 24

    seminário nacional’. Eu disse ‘vamos, mas precisamos chamar um bam bam bam

    internacional chamado Dumazedier’. Aí eu estive em Paris e eu convidei o

    Dumazedier. Ele veio fazer a palestra inicial (...) (Informação verbal)21

    .

    Esse seminário concretiza-se no ano de 1975, no período de 24 a 29 de agosto, no

    1º. Encontro Nacional sobre Lazer – Cultura, Recreação e Educação Física, que foi realizado

    pelo Departamento Nacional do Sesc, com o apoio da Fundação Van Clé22

    e da Organização

    das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, em parceria com o

    Serviço Social da Indústria – Sesi e com o patrocínio do Ministério do Trabalho (SESC-DN,

    1977), e do qual participaram técnicos do Sesc de todos os Departamentos Regionais. No

    evento, Dumazedier proferiu a conferência de abertura intitulada Lazer nas sociedades em

    desenvolvimento (BICKEL, 2013, p.136).

    No ano seguinte, quando do falecimento do Dr. Brasílio Machado Neto e da

    eleição de José Papa Junior ao cargo de Presidente da Federação do Comércio do estado de

    São Paulo, Requixa torna-se Diretor do Departamento Regional do Sesc São Paulo.

    Considerando sua aproximação com os estudos do lazer, e buscando sistematizar

    as reflexões a fim de definir as linhas de atuação institucional, Renato Requixa cria, dois anos

    depois de assumir a Diretoria Regional, o CELAZER – Centro de Estudos do Lazer, no

    Departamento Regional de São Paulo, voltado ao “(...) estudo, documentação e

    aperfeiçoamento de pessoal (...), favorecedor da sistematização e do aprofundamento do

    conhecimento (...) da sociologia do tempo livre” (SESC-SP, 1978b, p.3).

    E eu fui convidado para assumir todo o regional do Sesc São Paulo e obviamente eu

    ia insistir na temática do lazer em São Paulo. Então aí eu consegui, com o Regional,

    criar um centro de estudos sobre lazer, o CELAZER. E sempre preocupado em fazer

    com que as pessoas estudassem lazer, se desenvolvessem (Informação verbal)23

    .

    Composto por gestores e orientadores sociais que, durante alguns anos,

    pesquisaram a temática do lazer, debruçando-se sobre a produção científica de estudiosos de

    diferentes nacionalidades, bem como na própria ação institucional neste campo, o Centro

    possuía a estrutura de um grupo de estudos temático e registrava sua produção teórica na

    forma de relatórios, revistas e livros.

    21 Ibid.p.5. 22

    A Fundação Van Clé foi fundada em 1968, em Bruxelas/Bélgica, em homenagem ao padre Antoon Van Clé, e seus objetivos eram contribuir para a humanização dos lazeres, promover a pesquisa científica no domínio do lazer, e auxiliar a

    realização de projetos que têm por fim melhorar a qualidade vida das pessoas (SESC-DN, 1977, p.26). 23 Entrevista concedida por por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a

    integrar o acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.8.

  • 25

    O CELAZER tinha um trabalho mais na linha da produção intelectual. Eu mesmo...

    escrevia muito pro CELAZER. O CELAZER publicava, publicava os Cadernos de

    Lazer (Informação verbal)24

    .

    Já com grande aproximação com Joffre Dumazedier, o CELAZER o contrata

    como consultor para orientar os trabalhos e pesquisas do Centro, bem como a atuação do Sesc

    São Paulo nas áreas de lazer e recreação

    Uma vez por ano ele vinha a São Paulo e fazia seminários conosco, todos os

    técnicos do Sesc mais ligados à área do lazer, da recreação, área dos esportes

    (Informação verbal)25

    .

    Em alguns momentos, além desses seminários internos, o CELAZER promoveu

    encontros, eventos, congressos e seminários em parceria com Universidades e outras

    Instituições, também com a participação de Dumazedier. Além disso, os pesquisadores do

    CELAZER e alguns funcionários do Sesc realizaram pós-graduação na Universidade

    Sorbonne, em Paris, sob orientação direta deste sociólogo (SANT’ANNA, 1994).

    Assim, partindo do pressuposto de que o CELAZER teve um papel preponderante

    para os estudos e ações no campo do lazer no país no período de seu funcionamento (1978-

    1983) e após, esta pesquisa buscou compreender quais as contribuições do CELAZER para os

    estudos do lazer no Brasil, a partir das memórias dos seus principais pesquisadores e de

    alguns colaboradores que, mesmo não fazendo parte do CELAZER diretamente, igualmente

    contribuíram com as pesquisas e a produção de conhecimentos sobre lazer.

    Além disso, a partir da problematização apresentada, do levantamento do

    referencial bibliográfico e dos relatos dos entrevistados, defende-se a hipótese de que os

    estudos do lazer no Brasil sofreram grande influência do pensamento de Joffre Dumazedier

    justamente devido à atuação do Sesc e, mais especificamente, do CELAZER.

    Para atingir os objetivos propostos pela pesquisa, foram explorados inicialmente o

    acervo do Sesc Memórias – o Centro de Memória do SESC São Paulo – e todo o material

    produzido pelo CELAZER, além dos documentos que comprovam sua criação e atuação,

    como Resoluções, Ordens de Serviço e Relatórios Anuais, a fim de compreender o contexto

    no qual o centro foi criado e também seu funcionamento. Além disso, com inspiração na

    24 Entrevista concedida por por Renato Requixa à pesquisadora Christianne Luce Gomes, que posteriormente passou a

    integrar o acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRS. 2001. p.8. 25 Op.cit..Loc.cit

  • 26

    História Oral e nos Estudos da Memória (POLLAK, 1992; FERREIRA, 2002; LANG et al,

    2010), foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete ex-funcionários do Sesc e um

    superintendente ainda em atividade, e que participaram das atividades do CELAZER, direta

    ou indiretamente, a fim de identificar suas atuações e contribuições na produção de

    conhecimento sobre lazer no período.

    Todas as entrevistas foram gravadas em aparelho celular com recurso de gravação

    de voz, e posteriormente transcritas integralmente. Porém, conforme aponta Queiroz (1988), a

    entrevista semiestruturada é uma conversa contínua entre entrevistado e entrevistador, e que

    deve ser dirigida pelo pesquisador de acordo com seus objetivos. Assim, para a redação final

    deste trabalho, foram considerados apenas os trechos de maior relevância à discussão proposta

    e, quando contatados, todos os sujeitos foram informados dos procedimentos, objetivos e

    como iriam contribuir com a pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e

    Esclarecido26

    . Contudo, nem todos os entrevistados concordaram com a publicação das

    entrevistas na íntegra. As entrevistas daqueles que consentiram com a publicação encontram-

    se nos Apêndices27

    do presente texto.

    Desta forma, e uma vez que “o que interessa à história oral é a experiência

    individual, única e imediata de cada entrevistado” (CORRÊA, 1978, p.31), os relatos

    coletados constituem também documentação histórica, já que as experiências vivenciadas e

    apreendidas visam não somente lembrar ou rememorar o passado, mas também interpretar sua

    influência no presente, ou seja, as contribuições efetivas de cada sujeito e do próprio

    CELAZER para os estudos do lazer no Brasil.

    Assim, além dos relatos propiciarem a aproximação necessária com as memórias

    e, portanto, com as histórias de vida dos componentes e colaboradores do CELAZER e suas

    trajetórias no campo do lazer, possibilitaram também detalhar as informações sobre a

    participação e o envolvimento de cada entrevistado nas atividades do CELAZER e a possível

    influência da produção teórica deste nos estudos do lazer no país.

    Tal detalhamento originou as categorias temáticas que apoiam a elaboração do

    presente texto, cujos discursos foram agrupados de acordo com a similaridade ou divergência

    referente a uma mesma temática.

    Nesse sentido, a construção da narrativa desta Tese se dá em três capítulos, além

    da introdução e das considerações finais.

    26 Apêndice 1 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. 27 Apêndice 4 – Entrevistas

  • 27

    A trajetória metodológica utilizada no decorrer do trabalho, as incursões no

    campo, como se deu a coleta dos discursos e a caracterização de cada um dos entrevistados é

    apresentada no primeiro capítulo – Percurso Metodológico.

    No segundo capítulo – CELAZER: constituição, funcionamento e produção de

    conhecimento –, apresento o contexto histórico-institucional da constituição do CELAZER,

    seu funcionamento e sua produção teórica, construindo a narrativa a partir dos dados

    coletados nas entrevistas e dos documentos institucionais pesquisados.

    No terceiro capítulo – Dumazedier no CELAZER: Presença, Método e Legado,

    apresento os relatos dos entrevistados sobre a relação pessoal e profissional com o sociólogo

    francês Joffre Dumazedier, e o método proposto por ele, conhecido como Teoria da Decisão,

    e o legado de aprendizagem deixado pelo sociólogo ao grupo de pesquisadores do Sesc.

    As considerações finais foram tecidas a partir da análise das Influências e

    Contribuições do CELAZER para os estudos do lazer no Brasil apresentadas pelo grupo de

    participantes do CELAZER, dialogando com autores que estudaram a temática e que apontam

    a influência do mesmo nessa produção, inclusive procurando refletir sobre a preponderância

    do pensamento de Joffre Dumazedier nesse cenário.

    O presente trabalho conta com a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa, por

    meio do parecer de número 27368214.9.0000.5404, respeitando assim os aspectos éticos

    devidos, bem como com a anuência do Departamento Regional do Sesc São Paulo28

    .

    28 Apêndice 2 – Solicitação e anuência do Sesc São Paulo para a realização da presente pesquisa.

  • 28

    1 – PERCURSO METODOLÓGICO

    A Pesquisa Qualitativa,“apesar dos riscos e dificuldades que impõe, revela-se

    sempre um empreendimento profundamente instigante, agradável e desafiador”

    (DUARTE, 2002, p.140)

    Para compreender e analisar as contribuições do CELAZER para os estudos do

    lazer no Brasil, optou-se pela abordagem da Pesquisa Qualitativa (MINAYO, 1994),

    considerando que esta busca a compreensão de uma determinada realidade e suas questões na

    qual nós próprios, enquanto seres humanos, somos agentes (MINAYO, 1994). Assim, nesta

    modalidade de pesquisa, o pesquisador seleciona o que do objeto quer conhecer, atribui

    significados aos achados, interage com o conhecimento e se dispõe a comunicá-lo.

    As pesquisas qualitativas implicam, ainda, no contato direto do pesquisador com o

    objeto em estudo, os dados coletados são predominantemente descritivos, o interesse fixa-se

    no processo e na perspectiva dos participantes, e a análise dos dados coletados tende a seguir

    um processo indutivo (LUDKE e ANDRÉ, 1986).

    Além disso, todo objeto de pesquisa nas Ciências Sociais é histórico (MINAYO,

    1994), ou seja, insere-se em um determinado contexto histórico-social. Nesse sentido, na

    escolha da metodologia para a aproximação do objeto em questão – o CELAZER –, levou-se

    em consideração a abordagem do Centro de Estudos Rurais e Urbanos – CERU, que

    compreende que

    Todo trabalho de pesquisa é orientado por uma questão ou problema referido a um

    aspecto da realidade social que se busca compreender e explicar. O estudo da

    realidade social se faz mediante os pressupostos da Sociologia, embora possa

    incorporar reflexões e resultados provindos de outras ciências, especialmente da

    história, quando se trata do estudo de problemas em perspectiva diacrônica (LANG

    et al. 2010. p.37).

    Destarte, foi necessário efetuar o delineamento do contexto histórico, social e

    político brasileiro no qual se inseriu o CELAZER, utilizando-se para isso da pesquisa

    bibliográfica e documental. Assim, foi explorado o processo de estruturação e

    funcionamento do Centro registrado nos documentos institucionais, como Resoluções e

    Relatórios Anuais, bem como o material produzido pelo Centro e publicado na época,

    armazenados no Sesc Memórias – o Centro de Memória do Sesc São Paulo, a fim de se

  • 29

    compreender o contexto institucional de criação do CELAZER, e ainda sua atuação no

    período de 1978 a 1983.

    Entretanto, a escassez de registros oficiais sobre as ações realizadas pelo

    CELAZER e a não existência de um padrão editorial nas publicações e periódicos

    encontrados no acervo do Sesc Memórias resultou na necessidade de buscar, além dos

    documentos institucionais e pesquisas já realizadas por outros estudiosos do lazer sobre o

    objeto em questão, um diálogo com os próprios pesquisadores participantes do CELAZER

    para apreender, a partir do relato da vivência dos mesmos, as informações não supridas pelas

    outras fontes. Assim, foram também colhidos depoimentos orais29

    por meio de entrevistas

    semiestruturadas com os sujeitos que poderiam fornecer elementos fundamentais para a

    pesquisa e compreensão do objeto investigado.

    Para o encaminhamento da pesquisa, foi preciso identificar quem eram os

    funcionários envolvidos no trabalho do CELAZER por meio da produção escrita encontrada:

    livros, pesquisas, artigos e demais materiais publicados no período de funcionamento do

    Centro, para estabelecer quais participantes seriam entrevistados inicialmente. Concordando

    com Pais (2001), nas pesquisas qualitativas, os critérios de seleção dos sujeitos são de

    compreensão, de pertinência, e não de representatividade estatística. Sendo assim, busca-se

    ilustrar o objeto em estudo e, de modo algum, há a pretensão de generalização dos resultados,

    mas um aprofundamento no conhecimento dessa realidade, “cuja singularidade é, por si,

    significativa” (PAIS, 2001, p.110).

    Tal procedimento também é compatível com a abordagem do CERU, “que

    procura incorporar diversas fontes para enriquecer o estudo e superar, de certa forma, as

    limitações de uma amostra reduzida, como é próprio da pesquisa qualitativa” (LANG et al,

    2010, p.38). Ainda, de acordo com a mesma abordagem, o que se busca, com o depoimento

    oral é “obter informações e o testemunho do entrevistado sobre sua vivência em determinadas

    situações ou a participação em determinadas instituições que se quer estudar. A coleta de um

    depoimento é mais dirigida para um tópico específico” (LANG et al, 2010, p.45).

    Conforme apontado por Duarte (2002), “a definição de critérios segundo os quais

    serão selecionados os sujeitos que vão compor o universo de investigação é algo primordial

    (...) assim como o seu grau de representatividade no grupo social em estudo” (DUARTE,

    29 O depoimento oral é o termo utilizado pelo CERU para definir uma das modalidades de narrativa oral que se obtém com a

    entrevista, que depende do objetivo do projeto, das informações desejadas e do entrevistado escolhido. As outras duas formas

    são a história oral de vida e os relatos orais de vida (LANG et al, 2010, p.45). Nesta pesquisa, em coerência com a abordagem

    e metodologia adotadas, o termo depoimento será utilizado algumas vezes para se referir ao conteúdo coletado com as

    entrevistas. Outros termos, como entrevistas e narrativas, também serão utilizados no texto para esse mesmo fim.

  • 30

    2002, p.141). Com base nisso, o primeiro critério utilizado para seleção dos sujeitos foi o

    recorte temporal de funcionamento do CELAZER, ou seja, o aparecimento dos mesmos como

    autores das publicações datadas nos anos de 1978 a 1983, e ainda a repetição desse

    aparecimento. Além disso, e uma vez que o objetivo era ouvir os sujeitos que contribuíram

    com o CELAZER efetivamente, considerou-se o vínculo empregatício com a Instituição Sesc

    também como um critério. Assim, consultores esporádicos e colaboradores externos ao Sesc

    e, portanto, ao CELAZER, não foram selecionados.

    Mesmo com a aplicação dos referidos critérios, nas análises preliminares dos

    documentos vários sujeitos foram identificados de maneira recorrente nas publicações e

    pesquisas no período estudado. Assim, para definir quais seriam aqueles que estiveram

    vinculados ao CELAZER e que fariam parte da pesquisa, levou-se em consideração o estudo

    de Duarte (2002), no qual

    Optou-se pelo sistema de rede, no qual se busca um “ego” focal que disponha de

    informações a respeito do segmento social em estudo e que possa mapear o campo

    de investigação, “decodificar” suas regras, indicar pessoas com as quais se relaciona

    naquele meio e sugerir formas adequadas de abordagem. De um modo geral, as

    pessoas indicadas pelo “ego” sugerem que se procurem outras ou fazem referência a

    sujeitos importantes no setor e assim se vai, sucessivamente, se amealhando novos

    “informantes” (DUARTE, 2002, p.142-143).

    Desta forma, nesta pesquisa de doutorado, uma entrevista com o Professor Luiz

    Wilson Pina, ex-funcionário do Sesc, identificado nos documentos encontrados nas incursões

    iniciais sobre a produção escrita do CELAZER, e reconhecido no campo do lazer por ter se

    tornado também um estudioso da área após deixar o Sesc, ajudou no mapeamento preliminar

    do grupo em estudo e permitiu iniciar uma rede que incorporou novos sujeitos a serem

    entrevistados.

    A partir desta primeira entrevista, foram elencadas quatro pessoas como sendo

    prioritárias para a concessão de depoimentos orais, destacada a sua importância na formação

    inicial do CELAZER: Luiz Octávio de Lima Camargo, nominado como coordenador do

    CELAZER, Mário Daminelli, Dante Silvestre Neto e Paulo de Salles Oliveira, identificados

    como orientadores sociais/pesquisadores/autores mais importantes do centro. Contudo, foi

    possível entrevistar apenas três deles, pois o Professor Paulo de Salles Oliveira, não aceitou

    participar da pesquisa alegando motivos pessoais.

    Nestas entrevistas iniciais, outros nomes foram revelados e posteriormente

    confirmados pelos documentos impressos: dois pesquisadores já falecidos – Jesus Vasquez

  • 31

    Pereira e José Mendes de Carvalho –, o próprio Luiz Wilson Pina, Sérgio José Battistelli,

    Antonio Carlos Moraes Prado, Erivelto Busto Garcia, Taunay Magalhães Daniel, Carlos

    Lupinacci e Newton Cunha30

    .

    Dentre os sujeitos identificados como pesquisadores ou colaboradores do

    CELAZER, foram selecionados para serem contatados e convidados a participar da pesquisa

    apenas aqueles citados repetidamente pelos três entrevistados principais. São eles: Sérgio José

    Battistelli, Antonio Carlos Moraes Prado, Erivelto Busto Garcia e Newton Cunha, fechando

    assim o grupo em oito entrevistados, incluindo o primeiro, o Professor Luiz Wilson Pina.

    Como orienta a metodologia da História Oral, foi realizada, anteriormente às

    entrevistas, uma aproximação com as histórias de vida dos entrevistados, e ainda a leitura de

    suas produções. Assim, diante dos achados iniciais, na tentativa de organizar a investigação, e

    considerando, como Tourtier-Bonazzi (1996) que a entrevista semiestruturada é o “meio-

    termo entre um monólogo de uma testemunha e um interrogatório direto” (TOURTIER-

    BONAZZI, 1996, p.237) e que, como tal, poderia facilitar a aproximação com os

    entrevistados e a apreensão de questões específicas sobre a atuação de cada um no

    CELAZER, assim como sua percepção sobre as contribuições aos estudos do lazer no Brasil,

    foram levantadas perguntas norteadoras utilizadas como roteiro31

    .

    Contudo, para iniciar a coleta dos depoimentos, após realizada a devida

    aproximação com os entrevistados e a conversa preliminar para organização da entrevista, e,

    concordando com Duarte (2002) que diz que “em situações de coleta de depoimentos orais,

    posturas mais formais do tipo ‘respostas diretas a perguntas idem’ não costumam produzir

    bons resultados” (DUARTE, 2002, p.146), foi proposta uma questão deflagradora, mais

    ampla. Assim, quando indagados: você poderia me contar a sua trajetória profissional no

    lazer e qual o “lugar” do CELAZER nesse caminho?, os sujeitos puderam falar livremente

    sobre sua trajetória profissional e, nos casos em que os entrevistados não abordavam assuntos

    relevantes para o presente estudo, as questões do roteiro eram utilizadas com o objetivo de dar

    continuidade ao depoimento.

    30 Dois importantes nomes nos estudos do lazer também foram funcionários do Sesc nos anos 1970, mas não fizeram parte do

    CELAZER e tampouco colaboraram nas atividades do Centro. Antonio Carlos Bramante e Nelson Carvalho Marcellino. O

    Professor Bramante saiu do Sesc antes da criação do CELAZER, e o Professor Marcellino dedicou-se amplamente ao

    trabalho das UNIMOS e à Ação Comunitária no período de 1975 a 1983, deixando o Sesc para seguir carreira acadêmica, não

    havendo registros de sua participação ou colaboração com o CELAZER nos documentos pesquisados ou nos relatos dos

    entrevistados. 31 Apêndice 3 - Roteiro de Questões – entrevista semiestruturada.

  • 32

    A abordagem aos entrevistados foi feita sempre da mesma forma: inicialmente um

    contato telefônico, posteriormente o envio de mensagens de texto via celular ou correio

    eletrônico, para confirmar data, local e horário de realização da entrevista.

    Ao chegar ao lugar combinado, e após os cumprimentos iniciais, era testado o

    aparelho de gravação e solicitada a licença para a gravação do encontro. Iniciava-se uma

    conversa com a explanação dos objetivos da pesquisa e da forma de participação/colaboração

    do entrevistado, seguida pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e

    Esclarecido. Na sequência, era feito um agradecimento formal ao entrevistado e explicado

    como se daria a entrevista. Identificado o entrevistado na gravação, iniciava-se a conversa

    com a primeira questão deflagradora.

    Os depoimentos coletados são a narrativa das memórias dos

    pesquisadores/participantes do CELAZER. E, neste sentido, é necessário aqui fazer alguns

    apontamentos sobre a Memória, por entender o conteúdo dos depoimentos coletados também

    como documentação histórica para a presente pesquisa.

    Levando em consideração as observações de Pollak (1992), a Memória parece, a

    priori, um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, à medida que o que se recolhe nas

    entrevistas individuais são memórias também individuais. Contudo, este e outros autores

    (FERREIRA, 2002; LANG et al, 2010) ressaltam, referindo-se aos estudos do sociólogo

    Maurice Halbwachs nos anos 1920-1930, que a Memória deve também ser entendida como

    um fenômeno coletivo e social, sobretudo por haver uma ligação entre a memória individual e

    identidade social, principalmente no âmbito das histórias de vida.

    Podemos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de

    identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator

    extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma

    pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p.204).

    Isso significa dizer que o sujeito que compartilha suas memórias não o faz

    desvinculado de sua posição dentro de um determinado grupo, ou determinado contexto.

    Além disso, a memória narrada em uma entrevista também sofre influência do momento em

    que está sendo expressa, daquilo que o sujeito vive no presente. Halbwachs aponta que “a

    memória envolve uma relação entre a repetição e a rememoração” (citado por FERREIRA,

    2002, p.320), e que esta repetição acontece juntamente com sua revisão. Algumas lembranças

    se sobressaem, outras se perdem, outras são omitidas propositadamente (LANG et al, 2010, p.

    42).

  • 33

    Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva?

    Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar,

    são os acontecimentos que eu chamaria de "vividos por tabela", ou seja,

    acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente

    pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que,

    no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível

    que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses

    acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam

    dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992, p.201).

    Além dos acontecimentos, a Memória é constituída por pessoas ou personagens,

    pelos lugares e também pelo tempo cronológico, ou pela data dos acontecimentos (POLLAK,

    1992, p.202-203). Esses elementos, somados à flutuabilidade e interferência que sofre no

    momento em que está sendo expressa, dão à Memória uma característica de seletividade, não

    sendo possível lembrar tudo. Lang et al (2010) considera que, para o narrador, “a entrevista é

    um momento de recordar, de repensar e reavaliar a trajetória da vida” (LANG et al, 2010,

    p.42).

    Assim, e concordando com Pollak (1992), as fontes orais devem ser consideradas

    um instrumento privilegiado de pesquisa, visto a possibilidade de serem criticadas –

    confirmadas ou refutadas – a partir do cruzamento de informações de fontes diferentes.

    Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é.

    Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da

    fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a

    fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente

    comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se

    apresenta (POLLAK, 1992, p.207).

    Nesse sentido, os documentos construídos neste estudo por meio da transcrição

    das entrevistas são material produzido em função dos objetivos e hipóteses levantados

    (LANG et al, 2010, p.42), e serão incorporados aos documentos escritos e fontes

    bibliográficas, buscando garantir legitimidade ao processo de investigação apresentado.

    Orientando-nos pela abordagem do CERU, o texto originado com as transcrições

    das entrevistas foi reordenado segundo os principais tópicos de interesse da pesquisa em

    curso, não sendo omitida passagem alguma, mas “suprimidas apenas repetições não

    intencionais, vícios de linguagem etc.” (LANG et al, 2010, p.50). Nos discursos destacados no

    decorrer do texto desta pesquisa, as supressões são indicadas com [...].

    Além disso, considera-se importante manter no diálogo com os entrevistados a

    participação do/a pesquisador/a, “dado que o documento de história oral é construído pela

  • 34

    interação entre pesquisador e pesquisado” (LANG et al, 2010, p.50). Assim, também nos

    discursos destacados, a intervenção desta pesquisadora por meio de perguntas ou comentários

    foi mantida entre parênteses e em negrito.

    A organização do texto permitiu identificar inicialmente sete categorias temáticas,

    que emergiram da narrativa dos entrevistados frente à questão empreendida:

    1 – Trajetória no Lazer – Sesc e CELAZER

    2 – Participantes do CELAZER – agentes diretos ou colaboradores

    3 – Funcionamento do CELAZER/Divisão do Trabalho

    4 – O que fazia o CELAZER/Produção Teórica

    5 – Presença de Dumazedier – Método/Orientação

    6 – Presença de Dumazedier – Relação Pessoal

    7 – Influências e Contribuições do CELAZER nos estudos do lazer

    Posteriormente, as categorias foram reagrupadas para dar sentido e coesão à

    confecção da narrativa da Tese. As categorias 1 – Trajetória no Lazer – Sesc e CELAZER e 2

    – Participantes do CELAZER – agentes diretos ou colaboradores, deram respaldo para a

    identificação dos entrevistados, visto que, “mais do que a identificação do narrador, é

    importante ter presente a caracterização do entrevistado pois, em uma pesquisa sociológica, o

    que importa são as relações sociais” (LANG et al, 2010, p.50). Além disso, e concordando

    com as autoras, dependendo do objetivo da pesquisa, é importante nominar as pessoas que

    tiveram atuação relevante e conhecida em determinadas situações (Op.cit.Loc.cit).

    As categorias 3 – Funcionamento do CELAZER/Divisão do Trabalho e 4 – O que

    fazia o CELAZER/Produção Teórica fundamentaram a construção do segundo capítulo -

    CELAZER: constituição, funcionamento e produção de conhecimento. Já as categorias 5 –

    Presença de Dumazedier – Método/Orientação e 6 – Presença de Dumazedier – Relação

    Pessoal compuseram o capítulo que apresenta Dumazedier e sua interação com os

    pesquisadores do CELAZER.

    A categoria 7 – Influências e Contribuições do CELAZER nos estudos do lazer

    permitiu analisar o discurso dos entrevistados a partir de sua percepção sobre essa questão, e

    dialogar com a produção teórica sobre o lazer no Brasil que apresenta o CELAZER e o Sesc e

    sua influência nos estudos do lazer no país.

  • 35

    Passa-se, a seguir, a uma breve identificação daqueles que, gentilmente,

    compartilharam conosco suas memórias para o desenvolvimento deste trabalho.

    1.1 Identificando os entrevistados

    Como já mencionado, o primeiro entrevistado e escolhido para ser o “ego focal”

    (DUARTE, 2002, p.142) foi o Professor Luiz Wilson Pina, não somente por sua longa

    trajetória no Sesc e atuação no meio acadêmico, mas também devido a sua permanência nos

    estudos do lazer ainda hoje, o que inclui, além da manutenção da realização de pesquisas e

    publicações sobre a temática, a sua participação em grupos de estudos na Universidade de São

    Paulo e no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo - CPF32

    .

    Graduado em ciências econômicas, era professor da Faculdade de Ciências

    Econômicas de Botucatu antes de ser contratado pelo Sesc como orientador social em agosto

    de 1975, para atuar nas UNIMOS na região de Ourinhos, no oeste do estado. No início de

    1976 foi deslocado para atuar na cidade de Bauru e, em 1977, transferiu-se para a capital

    paulista para trabalhar na Coordenadoria de Planejamento, na Sede do Departamento

    Regional, onde permaneceu até julho de 2003. Em seu trabalho no Setor de Planejamento,

    entre outras atribuições, participava da Comissão de Elaboração do Orçamento Programa –

    CAOP, responsável por definir o orçamento anual do Sesc, e também pela organização do

    plano de investimentos nas novas Unidades Operacionais do Sesc pelo estado. Após desligar-

    se do Sesc São Paulo em julho de 2003, foi convidado a ser consultor do Sesc Rio Janeiro,

    onde atuou no período de 2005 a 2011, quando se aposentou

    Eu não atuei diretamente no CELAZER, claro, trabalhava em outro

    departamento, mas tinha conhecimento do que o CELAZER fazia,

    inclusive eu tinha muito interesse em participar dos cursos,

    seminários, oferecidos pelo CELAZER e aí haviam algumas

    restrições... como eu era do planejamento, não era da área

    operacional, não era da área de programação: - não, mas porque que

    você vai fazer esse curso se você é da área de planejamento? Esse

    curso é pras pessoas da área de programação. Eu argumentava: não,

    mas eu preciso saber, eu preciso aprender sobre o assunto porque o

    Sesc atua com isso, se eu planejo eu preciso entender sobre lazer pra

    planejar o lazer das pessoas né?, então com isso eu deixei de

    32 O Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo – CPF, é uma Unidade Operacional voltada à realização de cursos de

    formação continuada sobre assuntos relativos às áreas de atuação do Sesc, como Cultura, Lazer, Artes, Gestão Cultural, entre

    outras, além da realização de pesquisas sobre práticas culturais e estudos diversos.

  • 36

    participar de umas coisas interessantes, perdi vários seminários

    muito interessantes com o Dumazedier, mas eu ficava atrás do

    pessoal do CELAZER né?, ficava pe