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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA APRIMORAMENTO EM SAÚDE MENTAL EM SAÚDE COLETIVA Trabalho final Reflexões sobre a prática no CAPS Esperança Autonomia e responsabilidade na atenção à saúde mental Orientadores: Rosana Onocko Campos Alberto Giovanelo Dias Aprimoranda: Keylla de Fátima Barbosa Campinas, Fevereiro de 2012

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS - fcm.unicamp.br · usuário fale e opine sobre seu tratamento, por isso falamos em co-construção do projeto, afim de que o sujeito tenha a oportunidade

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA

APRIMORAMENTO EM SAÚDE MENTAL EM SAÚDE COLETIVA

Trabalho final

Reflexões sobre a prática no CAPS Esperança

Autonomia e responsabilidade na atenção à saúde mental

Orientadores: Rosana Onocko Campos

Alberto Giovanelo Dias

Aprimoranda: Keylla de Fátima Barbosa

Campinas, Fevereiro de 2012

2

Pois o que é liberdade?

Ter a vontade de responsabilidade por si próprio.

Friedrich Nietzsche

3

INTRODUÇÃO

Este trabalho contém uma reflexão sobre meu estágio de aprimoramento

realizado no CAPS Esperança. Trago aqui algumas questões que foram surgindo

ao longo deste um ano de trabalho no serviço citado. Com base nas discussões

em aula e nas supervisões, além da literatura, procuro problematizar algumas

situações que ocorreram durante este ano. Este trabalho final tem também como

uma de suas propostas ser uma espécie de reflexão pessoal sobre a formação que

temos no aprimoramento de uma forma geral. Gostaria, então, de deixar claro que

este texto foi escrito a partir da minha vivência pessoal, e que todos os

questionamentos e críticas foram feitos tomando como base o contexto geral da

saúde mental, ou seja, não são questões específicas e únicas ao CAPS

Esperança, mas sim entraves intrínsecos e comuns à saúde mental. E é a partir de

reflexões desse tipo que podemos construir mudanças e de fato aprimorar nossas

técnicas e práticas na atenção a saúde mental.

RUMO A CO-RESPONSABILIZAÇÃO

Escolhi para este trabalho final, fazer uma reflexão sobre um tema que se

relacionou e que marcou muito minha trajetória no CAPS Esperança: a co-

responsabilização entre equipe e usuário da saúde mental no decorrer do

tratamento. A fim de discutir esse tema, irei abordar, inicialmente, alguns aspectos

presentes nessa instituição como por exemplo: o uso do leito noite, algumas

situações cotidianas (como banho, almoço, jantar no CAPS, armário para os

usuários e a presença de dinheiro e cartões de banco no serviço), a minha entrada

na equipe, o trabalho de referência, enfim, diversos pontos com os quais irei

dialogar para falar do processo de responsabilização do usuário por sua própria

vida e as dificuldades e limites disso em uma instituição de saúde mental.

O CAPS Esperança é um serviço de saúde mental bastante voltado para a

psicanálise. Muitos de seus funcionários, entre psicólogos, médicos e enfermeiros

estudam e usam essa teoria para fundamentar a prática clínica. Inclusive, esse foi

um dos motivos que me fizeram escolher o Esperança como campo de atuação, já

que eu também gosto de estudar a psicanálise e queria ter contato com a clínica

da psicose. Como uma das conseqüências da forte presença da psicanálise dentro

deste CAPS, no primeiro semestre de 2011 existiu um grupo que tinha a finalidade

4

de discutir psicanálise e saúde mental. Este grupo era formado pela psicóloga do

serviço que participa do Cândido Escola, eu e os estagiários de psicologia. Um dos

primeiros textos que nós discutimos neste grupo se chama Saúde Mental e Ordem

Pública escrito por Jacques-Alain Miller. Este texto discute, entre outras coisas, os

limites da responsabilidade e a culpa que surge no profissional da saúde mental

como consequência do tratamento que ele oferece ao usuário que, por sua vez, é

um sujeito de direitos e portanto, de responsabilidade. Mas o que é ser

responsável? Afim de trazer para essa discussão ao menos uma direção de

resposta para essa pergunta, fui buscar a opinião de alguém que dedicou boa

parte de sua obra a uma genealogia dos conceitos, para o filósofo Nietzsche,

responsabilidade é algo que exige e trás consigo uma igualdade entre os homens

que se tornam mutuamente confiáveis a partir do momento em que surge a

responsabilidade e isso dá a eles a possibilidade de se tornarem livres:

“O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da

responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder

sobre si mesmo e o destino, desceu nele [o homem livre] até sua

mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante –

como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite

de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano

o chama de sua consciência...” 1

Entender a responsabilidade como um privilégio já é bastante diferente daquilo que

estamos acostumados. Ainda mais nos tempos atuais, no qual é muito presente a

irresponsabilidade pelas nossas atitudes. Mas ser responsável é mesmo um

privilégio quando entendemos que isso vem acompanhado pela liberdade e por um

poder sobre si que nada mais é do que ser consciente daquilo que faz. Mas ainda

estamos aprendendo a lidar com essas questões, ainda não temos consciência de

tudo que fazemos e também não temos a responsabilidade como um instinto.

Ressalto que aqui uso o termo instinto segundo Nietzsche que, resumidamente, o

entende como uma força criadora que está na base de qualquer forma de

expressão. Ainda não somos os homens livres aos quais Nietzsche se refere e

muito provavelmente nunca seremos, mas isso não impede a tentativa de se

1 NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,

2007, p.50.

5

aproximar cada vez mais dele na tentativa de sermos cada vez mais responsáveis

e portanto, livres.

Segundo Miller, como um dos principais objetivos do tratamento na saúde

mental é a reabilitação social e a reintegração do indivíduo na sociedade, o

profissional dessa área acaba sendo aquele que tem o poder de, por exemplo,

decidir quem pode sair e quando deve voltar, o que por si já implica na anulação

da responsabilidade do sujeito sobre seu direito de ir e vir, pois a partir do

momento em que alguém permite que outra pessoa faça algo, o agente da ação se

anula em termos de autorização de si mesmo. Segundo Miller, no texto já citado,

ter direitos é ter responsabilidade e ser irresponsável é deixar que o outro gerencie

seus direitos:

“E o que significa irresponsabilidade? Significa que os demais tem

direito de decidir por alguém, isto é, que se deixa de ser um sujeito

de pleno direito. O termo sujeito, portanto, não se introduz a partir do

mental, mas a partir do direito.” 2

O poder, de certo modo corriqueiro nas instituições de saúde mental,

implica em uma responsabilidade que deveria ser compartilhada com o próprio

usuário que, por sua vez, também tem poder sobre sua existência e suas

escolhas, assim, a responsabilidade sobre o tratamento deve ser compartilhada

entre profissional e usuário. Mas na prática, isso ainda é algo a ser desenvolvido.

Muitas vezes as relações de poder entre funcionário e usuário dento do CAPS são

levadas ao estremo de uma quase anulação da responsabilidade do usuário. Se

para Foucault, saber é poder, o suposto saber dos profissionais sobre o outro,

tenciona uma relação de poder através da qual os funcionários do CAPS se

colocam acima dos usuários em termos de decisões práticas e de

responsabilidade sobre as ações dos mesmos. Quando eu falo aqui em suposto

saber não estou me referindo ao conceito lacaniano, mas sim ao que ele se remete

em termos de um saber que não é real, mas apenas suposto. A relação de poder

surge de forma problemática, em um serviço de saúde mental, quando um dos

lados (funcionário ou usuário) se coloca como o único a saber sobre a relação

terapêutica.

2 MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública. In: Revista Curinga, Psicanálise e Saúde

Mental, nº 13. Belo Horizonte, 1999, p. 22.

6

Na construção de um projeto terapêutico individual é fundamental que o

usuário fale e opine sobre seu tratamento, por isso falamos em co-construção do

projeto, afim de que o sujeito tenha a oportunidade de ser ouvido, muitas vezes,

pela primeira vez. Partilhar a construção do projeto terapêutico com o usuário é um

modo de investir em sua autonomia e de responsabilizá-lo pelo seu tratamento.

Falar em autonomia é falar na capacidade que temos de agir sobre nos mesmos a

partir da construção de relações democráticas. Talvez essa última parte seja a

mais difícil: democratizar as relações em um ambiente de saúde que há muitos

anos é preenchido pelo abuso do poder médico, requer a partilha de forças e

portanto a perda de poder do lado da instituição de saúde.

A tomada de responsabilidade implica em trazer para si o papel de dar uma

resposta, sobre alguma situação, a quem pedir, isso significa também tomar posse

de algo, pegar para si. Nesse sentido, cabe perguntar: quem é responsável pelo

usuário da saúde mental? Quem deve responsabilizar-se por esses sujeitos, ou

melhor, em que medida podemos e devemos chamar essas pessoas de sujeitos,

entendendo que o termo sujeito é inseparável do termo responsabilidade?

Trabalhar no sentido de potencializar o sujeito enquanto tal é uma máxima na

saúde mental, mas será que estamos fazendo isso? Ao menos, é importante não

esquecer que estamos lidando com sujeitos potentes em autonomia e

transformação e não com objetos que nada podem sobre si, é exatamente por isso

que “além de produzir saúde, também caberia ao sistema de saúde contribuir para

a ampliação do grau de autonomia das pessoas” 3.

Para ilustrar e desenvolver a questão da responsabilidade e a dificuldade

que os profissionais da saúde mental encontram em transformá-la em co-

responsabilidade, ou seja, em partilhá-la, irei citar alguns exemplos de situações

que ocorreram no CAPS Esperança ao longo de minha passagem por lá.

CUIDADO OU PARANÓIA?

Desde o início do meu estágio no CAPS acompanhei diversas discussões

sobre um movimento que a equipe muitas vezes denomina de “desmaternagem”

em relação aos usuários. Há algum tempo atrás todos os usuários podiam tomar

3 ONOCKO CAMPOS, R. T. & CAMPOS, G. W. S. Co-construção de autonomia: o sujeito em

questão. In: CAMPOS, G. W. S. [et. al.]. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 669.

7

banho no CAPS, muitos deles almoçavam e jantavam lá e tantos outros tinham

armários para guardar suas coisas, além disso, ainda hoje há uma certa

quantidade de pessoas que deixam no CAPS seus documentos pessoais, cartão

de banco e o dinheiro que recebeu no mês a fim de que seja retirado aos poucos.

Incomodada com isso, a equipe passou a avaliar caso a caso a necessidade de

banho, comida e dinheiro no CAPS, trabalhando no sentido de que o sujeito possa

ter um cotidiano fora dessa instituição, fazendo suas refeições em outros lugares,

guardando suas coisas e tomando banho na sua própria casa, cuidando de seus

documentos, gerenciando seu próprio dinheiro, etc. Em função disso, os usuários

começaram a se manifestar na assembléia dizendo que estavam sendo

prejudicados pela equipe pois estavam perdendo seus direitos. Dessa situação,

pude observar que, há um tempo atrás, houve um movimento da equipe de cuidar

dos usuários em todos os aspectos de sua vida oferecendo a eles tudo o que fosse

possível dentro do CAPS e, de certo modo, isso ocupa o lugar de uma construção

de autonomia voltada para fora, para as possibilidades no social onde os direitos

são vistos de outra forma. Assim também cabe a pergunta: cuidar demais ou

proteger excessivamente é uma atitude que se aproxima mais da maternagem ou

da paranóia? Já que sabemos que ser mãe não é cuidar ao extremo e sabemos

também que uma atitude paranóica surge para nos proteger de algum perigo.

Há, especificamente, dois usuários com uma característica pessoal mais

questionadora que, sempre presentes na assembléia, levantam essa problemática

dos direitos quando alguém da equipe diz sobre algo que não se pode mais fazer

no CAPS. Embora para toda a equipe esteja muito certo que é preciso mudar de

posição, é preciso também ficar claro que é para isso é necessário mudar a

posição dos usuários frente aos mesmos problemas, caso contrário eles vão

entender que estão sim perdendo seus direitos. Isso é ainda mais grave se não

dermos a devida importância à reclamação pela perda de direitos, sabendo

diferenciar o que é a reclamação por “estar persecutório com algo ou alguém” de

uma legítima reclamação por no mínimo querer entender quais são os seus

direitos, o que está se passando com eles e porque está se passando desta forma,

pois às vezes o usuário está mesmo persecutório com alguém do CAPS, mas

outras vezes pode ser o CAPS que está persecutório com alguns usuários. Por

isso é de extrema necessidade que se escute, que se de voz e força àquilo que é

dito nas assembléias para que a partir disso se pense em estratégias para dividir

com os usuários a responsabilidade pela mudança.

8

Nesse sentido, a posição dos usuários frente ao que eles estavam

acostumados a ter no CAPS e que foram perdendo foi, obviamente de não gostar

dessa mudança, pois foi uma perda, apesar de necessária. É muito mais fácil e

cômodo se as pessoas fazem coisas por você, ao invés de você ter que fazê-las. É

mais cômodo comer no CAPS do que ter que guardar dinheiro para comer em

outro lugar ou cozinhar sua própria comida; é mais cômodo tomar banho no CAPS

do que lavar as próprias toalhas de banho; é mais cômodo ter um armário no

CAPS do que carregar o dia todo sua própria bolsa, enfim é mais fácil e

libidinalmente mais econômico deixar que a instituição faça pelo usuário do que ele

administrar as próprias necessidades e desejos. Isso remete ao que Freud chamou

de princípio do prazer

“Um dos princípios que, segundo Freud regem o funcionamento

mental: a atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o

desprazer e proporcionar o prazer. É um princípio econômico na

medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades

de excitação e o prazer à sua redução” 4

Para se gerenciar as próprias atividades, mesmo que sejam atividades

cotidianas, gasta-se muito mais energia. Maiores quantidades de libido devem ser

investidas nesse processo e, portanto, mais excitação será gerada no aparelho

psíquico para manter essas ações. A mudança de postura da equipe, então, entra

como uma afronta ao princípio do prazer que dominava as relações. Como em

toda relação, as duas partes devem estar em alguma medida satisfeitas para que

ela continue, neste caso a equipe também se satisfazia pois mantinha os usuários

mais próximos, mais controláveis, posto que também seria ir contra o princípio do

prazer gastar libido para trabalhar a autonomia dos sujeitos em questão.

A FUNÇÃO DO LEITO NOITE

Também podemos pensar a questão da responsabilidade a partir de uma

reflexão sobre o leito noite. O CAPS Esperança possui 10 leitos que estão quase

sempre ocupados. O leito noite de um CAPS III existe para que os usuários

4 LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. São Paulo

Martins Fontes, [1967] 1992, p. 364.

9

possam passar a noite no serviço em casos de crises que exigem um cuidado

mais próximo e contingente. Através de uma observação do movimento comum da

equipe percebo que os leitos estão quase sempre todos ocupados porque ficam

neles muitos usuários que não estão em crise, ou que já tiveram uma importante

melhora, mas que não vão para casa por outros motivos. Dentre esses, um

bastante freqüente é a rejeição da família. Assim, algumas pessoas passam

meses em leito noite pois suas famílias se recusam a aceitá-los de volta e outras

soluções não são encontradas. Isso parece se relacionar com um movimento de

cuidado intenso mas que se aproxima também da algo como uma tutela sob a

máscara da maternagem através da qual a equipe que escolhe deixar o usuário

dentro do CAPS não investindo muito na responsabilização do próprio sujeito e da

família.

Se excluímos o sujeito de sua responsabilidade, nós o mantemos,

sob pretexto de ajudá-lo e de lutar contra sua exclusão, sob a tutela

de nossa responsabilidade, nós o desresponsabilizamos, e o

mantemos alienado de sua condição, tutelado, dependente de nós. 5

Uma equipe que se coloca em um lugar de muita responsabilidade não só

atrapalha a condução do caso, como também é afetada por isso de uma maneira

reativa, pois trazer toda responsabilidade para si é ao mesmo tempo sentir culpa

pelo que não deu certo e por isso ter medo de arriscar novas condutas. E mais

uma vez como diz Miller: “A formação dos analistas poderia se resumir em curá-los

de sentimento de culpa” 6; talvez por isso a resposta encontrada foi deixar o

usuário cada vez mais próximo do CAPS, o que resulta em mais controle, mais

poder e menos culpa a medida em que se corre menos risco. O que não deixa de

ser uma contradição, pois a sensação de controle e poder sobre a vida do outro

tem como conseqüência a tomada excessiva de responsabilidade que por sua vez

gera sofrimento e culpa no trabalhador. Por isso o trabalho na saúde mental,

muitas vezes se pauta na sensação de estar omitindo-se ou exagerando no

cuidado, se colocando entre a onipotência ou a impotência. 7

5 ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde

Mental. http://www.saude.rio.rj.gov.br/media/responsabilidade_do_sujeito.pdf, p. 2. 6 MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública, p. 26.

7 MIRANDA, L. & CAMPOS, R. T. O. Análise do trabalho de referência em Centros de Atenção

Psicossocial. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 5, out. 2008.

10

Esse tipo de sofrimento pode levar a equipe a estruturações

inconscientes de defesas psíquicas, como reações afetivas coletivas,

padronizadas e enrijecidas, que protegem o grupo de trabalhadores

da angústia produzida pelo contato com sensações de onipotência e

impotência quase absolutas, próprias da psicose. 8

VIVÊNCIAS DE UMA APRIMORANDA

Muitos desses problemas ligados a super proteção dos usuários pelo CAPS

são já conhecidos e discutidos pela equipe. Fazendo uma reflexão sobre a minha

posição dentro do CAPS Esperança, percebo que não só os usuários mas também

alguns estagiários e o aprimorando são de certa forma super protegidos. Nos

primeiros meses minha inserção no CAPS foi um pouco dificultada pois a equipe

entrou em um movimento que eu entendi como uma forma de me proteger dos

casos. Um exemplo disso é o fato de que muitos funcionários me perguntavam o

tempo todo como eu estava, se estava tudo bem, se eu precisava de algo ou se eu

tinha alguma dúvida; eu me sentia no grupo de tratamento, até porque às vezes eu

reclamava de algo ou pedia alguma coisa mas nada acontecia. Queria chamar

atenção para o fato de que cuidar não é proteger dos imprevistos, mas estar junto

caso algo aconteça. A questão de o aprimorando não precisar atender as

demandas da instituição virou um imperativo que muitas vezes barrava o meu

trabalho. Como eu tinha acabado de chegar e eu ainda estava entendendo o

funcionamento do CAPS, me era dito que eu não precisava fazer nada que eu não

quisesse, a questão é que quando eu comecei a me apropriar das discussões e

comecei a querer fazer algumas intervenções eu senti que não somente eu era

protegida dos casos como a equipe se protegia de mim, pois eu representava, e de

fato era, um elemento externo a instituição. Assim, eu comecei a entender que eu,

como, aprimoranda, estava em uma espécie de limbo entre o CAPS e a Unicamp,

e que o fato de não pertencer completamente a nenhuma dessas instituições me

colocava como elemento de paranóia dentro do CAPS. É sempre importante

lembrar que quando eu digo “equipe” eu me refiro ao CAPS de modo geral e que

nem todos os funcionários estão envolvidos em todas essas questões. Estou

8 Idem, p. 9.

11

mencionando os movimentos coletivos mais marcantes ao longo de minha

trajetória, o que não engloba sempre todas as pessoas da equipe.

Assim como é um tanto difícil construir junto e potencializar o usuário na

responsabilidade pelo seu tratamento foi difícil também dividir comigo a

responsabilidade que a equipe tem sobre os tratamentos. Muitas vezes minhas

intervenções eram seguidas por um “muito obrigado” dos funcionários o que me

fazia sentir como se eu estivesse fazendo um favor e não trabalhando em equipe.

Como estava me sentindo sem movimento em relação aos casos do CAPS, eu

levei isso na minha supervisão e decidimos que isso era uma questão que deveria

ser discutida com a gestão. Então eu fui conversar com a Georgia que me ajudou

a ocupar lugares de mais visibilidade dentro da equipe: o ADD e a triagem. Com

certeza, isso mudou bastante meu cotidiano no CAPS, pois passei a assumir

lugares que existiam, já que o lugar do aprimorando por si não é certo e deve ser

construído por cada um a cada ano.

DA EQUIPE PARA A EQUIPE

A tensão gerada pela questão da responsabilidade surge também entre os

próprios funcionários de uma instituição como o CAPS. De algum modo há certos

tipos de cobrança dos demais funcionários em relação ao trabalho feito pelos

outros profissionais ou pelas outras equipes de referência. Como disse

anteriormente, poder gera responsabilidade, e então se o poder pelo tratamento do

usuário está concentrado em um técnico ou em uma equipe, a responsabilidade

pela condução do caso, também estará concentrada. Assim, muitas vezes nem

mesmo dentro da própria instituição a responsabilidade circula entre os membros

da equipe:

Os trabalhadores refletem que a equipe atribui enorme poder ao

profissional de referência, mas cobra dele a responsabilidade pelas

várias esferas da vida dos seus usuários. Ao mesmo tempo,

reconhecem que também escolhem se colocar como “donos do

caso”. 9

9 MIRANDA, L. & CAMPOS, R. T. O. Análise do trabalho de referência em Centros de Atenção

Psicossocial, p. 8.

12

Aprendi a valorizar muito o trabalho de referência feito no CAPS Esperança.

Ao longo das discussões sobre isso em supervisão, fui percebendo que este CAPS

trabalha com um modelo de equipe de referência (que são chamadas mini-

equipes) e não com o de referência pessoal, ou seja, grande parte dos casos são

de fato trabalhados por toda a equipe de referência que se responsabiliza junto.

Quando o usuário está precisando de algo, ele sabe que pode falar com qualquer

pessoa da equipe de referência e esta, quando necessário, discute com o restante

da sua equipe afim de se pensar o manejo coletivamente. Esse modo de

organização, a meu ver, facilita o trabalho e não sobrecarrega o profissional, além

disso e como conseqüência ocorre a divisão da responsabilidade sobre o caso

dentro da equipe o que fortalece o trabalho em conjunto. Por outro lado, ao invés

de haver um certo tipo de cobrança pessoal sobre o caso, há uma cobrança, de

certo modo velada, de uma mini-equipe em relação a outra, o que em alguns

momentos parece beirar a competição por competência, posto que a referência

(...) carrega consigo um pouco da verdade da história do paciente e

acaba sendo chamado pela equipe a prestar esclarecimentos sobre

o bem-estar e o mal-estar daquele que referencia, sendo

"responsabilizado" por ele 10

Afim de não cair na armadilha do poder que gera tanto a onipotência quanto

a impotência, é necessário transformar os vínculos dentro do CAPS através de

uma co-responsabilização dissolvida entre todos que estão envolvidos no caso,

entre profissionais da saúde, a sociedade, a família e o próprio sujeito:

Dividir, negociar e delegar encargos pelo cuidado entre profissionais,

familiares, vizinhos e usuários tem-se transformado numa constante

no cotidiano dos serviços de saúde mental, à medida que se

procuram construir redes sociais de suporte ao louco: quem cuida do

quê ou de quem? Do que lançar mão para lidar com os momentos de

crise psicopatológica (...) 11

10

Idem, p. 6. 11

SILVA, M. B. B. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental. Rev. Physis, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, Junho 2005, p. 3.

13

Foi justamente no ponto em que surge essa divisão, negociação e

delegação de funções que se encontrou o entrave do início da minha passagem

pelo CAPS Esperança. Pois, na minha visão, dividir tarefas comigo se tornou

erroneamente sinônimo de impotência. Com toda certeza esse trabalho de divisão

das responsabilidades sobre o tratamento em saúde mental não é fácil. Gasta-se

muito mais tempo e energia para articular a continuidade do tratamento fora do

CAPS do que dentro dele. O trabalho em um CAPS deve estar sempre na intenção

de se voltar para fora, de construir uma rede de cuidados para o sujeito e de assim

diluir a responsabilidade, caminhando no sentido da autonomia do próprio usuário,

afim de que ele seja capaz de entrar em contato e perceber as conseqüências de

suas atitudes. Nesse sentido cabe perguntar:

“nossas práticas estão aumentando o coeficiente de autonomia

desses usuários e comunidades? Ou, pelo contrário, produzindo um

exército de seres pedintes e tutelados que em nada se

responsabilizam pela própria vida, nem pela produção de condições

de vida mais saudáveis na sua própria comunidade?” 12

CULPA OU CURA?

Se entendemos que o usuário é um cidadão de direitos, entendemos que

ele também é responsável por seus atos e que, portanto, irá responder por suas

escolhas. Segundo Miller:

“A noção crucial, então, para o conceito de saúde mental, é a

decisão sobre a responsabilidade do indivíduo. Isto é, se é

responsável e se pode castigá-lo ou, pelo contrário, se é

irresponsável e se deve curá-lo.” 13

A dificuldade se encontra no limite entre quando se pode falar em castigo e

quando o que está em jogo é a cura, ou seja, entre a responsabilização do usuário

por suas ações e a responsabilização do funcionário pelo paciente que ele trata.

12

ONOCKO CAMPOS, R. T. & CAMPOS, G. W. S. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão, p. 684. 13

MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública, p. 21.

14

Essa dificuldade estará sempre presente pois a saúde mental trabalha dentro

desse limite e não deve ter a pretensão de deslocar-se para um ou outro extremo.

Entre a culpa e a cura há uma infinidade de possibilidades nas quais devemos

apostar. Assim, é importante trabalhar no sentido da emancipação

(...) mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em

outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo

a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de

ser sujeito. 14

O próprio Lacan diz “por nossa condição de sujeito, somos sempre

responsáveis” 15, sabendo ou não, tendo consciência dos nossos atos e de nossa

responsabilidade ou não, somos colocados na posição de tomada de

responsabilidade pelo fato, aparentemente simples, de sermos sujeitos e sujeitos

de direito. E indo contra a idéia de que só é responsável aquele que sabe, que

pensa sobre o ato e que o executa de plena consciência e escolha, Lacan diz: “Só

podemos nos responsabilizar por algo que não podemos ainda responder” 16. O

que ele quer dizer com isso? Talvez algo que vá no sentido do não saber, do

imprevisto e do risco que corremos a cada ação, a cada pensamento, risco esse

que não anula a tomada de responsabilidade. Somos responsáveis também por

aquilo que não dominamos, que não sabemos, que temos dúvidas, pois é isso que

temos, é isso que sabemos, já que não conhecemos e não vamos conhecer todos

os motivadores de nossas ações, lembrando sempre da parcela inconsciente que

nos move.

LOUIS ALTHUSSER: A LOUCURA EM BUSCA DA RESPONSABILIZAÇÃO

Essa discussão me lembrou o caso do filósofo Louis Althusser.

Diagnosticado em sua época como psicótico maníaco-depressivo, ele matou sua

mulher estrangulada em um momento de inconsciência e delírio. Assim, como um

louco infrator, ele foi declarado inimputável, sem ir a julgamento, devendo

permanecer por tempo indeterminado em um hospital psiquiátrico. Após sua alta,

14

AMARANTE, P. & TORRE, E. H. G. Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência e Saúde Coletiva 6(1): 73-85, 2001, p.81. 15

LACAN, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, P. 873. 16

LACAN, J. O Seminário, Livro XV – O Ato psicanalítico, Lição III, 1967/68. Citado em ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde Mental.

15

ele escreve um texto autobiográfico sobre o ocorrido. Neste texto, Althusser fala

sobre sua situação e pede como dádiva algo que para os demais é obrigação: a

explicação pública sobre o crime que é o dever de todo criminoso. Assim ele

questiona a legislação que, com a finalidade de proteger o louco em suas atitudes

subversivas, acaba anulando a personalidade jurídica dele e ainda, por outro lado,

o sigilo médico impede que algumas informações sobre seu caso sejam dadas.

Essa combinação de fatores dão como resposta para o seu crime a reclusão em

um hospital psiquiátrico que, segundo ele, não se aproxima em nada com uma

penalização pela morte de sua esposa.

O médico de Althusser, esse sim, foi convocado a dar uma explicação

pública pela atitude do filósofo, e diz que, com base em seus conhecimentos de

medicina, o filósofo não pode ser considerado culpado, tirando a possibilidade de

Althusser responder por seu ato, ou seja, de se sentir responsável por suas

próprias ações mesmo que essa responsabilização seja singular, ele diz: “Eu dava

voltas e voltas, mas sem jamais me sentir culpado, em torno da razão profunda do

meu crime.” A ausência de culpa, parece colocá-lo no campo da loucura e assim a

sociedade também não o responsabiliza, não pedindo uma explicação ou exigindo

uma punição.

Esse caso ilustra a questão que venho discutindo e deixa claro que a

posição que a loucura ocupa frente a questões de direito, deveres e cidadania

ainda é algo que requer reflexão e trabalho. Mais uma vez, cabe nos perguntarmos

em que ponto entre a cura e a culpa nós estamos e em que ponto queremos estar.

O NARCISISMO INSTITUCIONAL E O SABER-PODER DO LOUCO

O poder e a responsabilidade na área da saúde mental tem uma longa

história que acompanhou o desenvolvimento da psiquiatria e da reforma

psiquiátrica. No século XVIII na França, por exemplo, o estado, a justiça e a família

dividiam a responsabilidade sobre o cuidado àqueles que mantinham um

comportamento desviante em relação a norma vigente. Neste momento a

psiquiatria entra em cena e reclama para si a partilha dessa responsabilidade

dando a loucura o status de doença mental. Nessa conjuntura, a loucura passa a

ser uma questão de saúde, sendo portanto passível de tutela, ao mesmo tempo

em que o louco passa a ser assujeitado ficando do lado de fora da normalidade, da

responsabilidade, dos direitos e deveres e da cidadania.

16

“O louco se transforma em alguém que necessita de proteção /

cuidados e ao mesmo tempo precisa ser administrado / controlado,

ou seja, fato histórico que aponta para a articulação entre a

terapêutica da doença mental e a gestão dos comportamentos que

desafiam a ordem pública.” 17

O movimento da reforma psiquiátrica veio também no sentido de resgatar a

cidadania do sujeito tido como louco e a implicação deste na condução de sua vida

e do próprio tratamento. Dentro do CAPS existe um dispositivo potente com a

proposta de dar voz aos usuários ou a quem mais quiser se manifestar: a

assembléia. As assembléias se constituem como um espaço aberto à comunidade

para a discussão de pautas que perpassam não apenas o cotidiano do CAPS

como também da cidade e da sociedade em geral naquilo que tange a saúde

mental. As assembléias do CAPS Esperança de modo geral são esvaziadas de

funcionários. A ausência dos profissionais nas assembléias foi inclusive pauta de

supervisão institucional, onde várias questões foram levantadas afim de se pensar

o desinvestimento desse espaço. Em uma das assembléias estava presente um

membro da AFLORE (Associação Florescendo a Vida de familiares, amigos e

usuários dos serviços de Saúde Mental de Campinas), essa pessoa foi fazer um

convite aos usuários para participar de reuniões dessa associação pois lá

aconteciam discussões sobre o tratamento em saúde mental, bem como sobre

questões de cidadania e direitos. Na próxima reunião de equipe, esse convite foi

colocado em pauta pela única funcionária do CAPS que estava na assembléia. Ao

longo da discussão na reunião, pude perceber que houve um incômodo da equipe

pelo fato deste convite ter sido direcionado primeiro aos usuários. Era como se

antes de chegar aos usuários, o convite deveria ter passado pelo crivo da equipe e

isso não tinha acontecido. Vejo esse ocorrido como um analisador para essa

equipe que se sentiu narcisicamante ferida e atravessada por algo externo ao

CAPS.

“Mas cuidemos para não cultivar a ferida: a descoberta da instituição

não é apenas a de uma ferida narcísica, é também a dos benefícios

17 SILVA, M. B. B. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as

práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental, p. 3.

17

narcísicos que sabemos tirar das instituições, a preços variáveis

(...).” 18

“Não cultivar a ferida” está próximo a um não se ressentir e nem atacar aquilo que

vem de fora da instituição, aquilo que é diferente da instituição. Muito do que vem

de fora é importante para que a instituição se repense e aperfeiçoe sua prática,

mas também entendemos que há uma defesa institucional contra o externo e

contra o instituinte que tem a função de proteger a instituição, mas que isso, por

outro lado, cristaliza não somente as relações institucionais como também sua

função, seu motivo de existir. É através da desconstrução de parte dessa defesa

que a instituição se modifica, pois só assim passa a ver e aceitar o instituinte, o

novo, como algo necessário para o aprimoramento do trabalho.

A ferida narcísico, neste caso, gira em torno da questão dos saberes, ou

melhor, da democratização do saber. Geralmente o não-saber está do lado do

usuário, porém, neste caso, foi a equipe que se sentiu excluída por não ter sido

consultada e foi muito difícil lidar com a posição de não saber, não poder e não ter

controle sobre o que acontece com os usuários. Por fim, decidiu-se que deveriam

chamar novamente a pessoa da AFLORE para falar para a equipe a proposta que

fez aos usuários.

Além do incomodo pelo convite ter sido feito diretamente aos usuários,

penso que grande parte da preocupação dos técnicos se referia ao conteúdo do

convite, mesmo que inconscientemente. Discutir saúde mental, tratamento e

cidadania em um espaço fora do CAPS é um meio de potencializar a autonomia do

usuário, de fazê-lo refletir sobre como está e como poderia ser seu tratamento e

sua vida, ou seja, é um modo de torná-los críticos, dentre outras coisas, sobre o

trabalho desenvolvido no CAPS o que pode por em xeque os saberes e as

intervenções da equipe. Quem deve saber sobre o tratamento? Quem deve decidir

que remédio tomar? O técnico, o usuário, ou ambos? Potencializar o saber do

usuário é também colocar o próprio saber em questão.

Se dar uma resposta é ser responsável, nós enquanto trabalhadores da

saúde mental, estamos sim nos responsabilizando pelo usuário e junto com o

usuário. Mas nossa resposta não é “a” resposta mas sim “uma” resposta dentre

muitas que podíamos dar e por isso ela também pode sim estar equivocada,

18

KAËS, R. Realidade Psíquica e Sofrimento nas Instituições. In: A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991, p. 5.

18

precipitada e errada. O que fazemos, na nossa prática cotidiana, é dar uma

resposta e não uma certeza, e que nossas atitudes estão fundamentadas em eixos

teóricos-clínicos baseados em incertezas e questões a serem a cada dia pensadas

e discutidas. 19

OFICINA DE BIJUTERIA: A POTÊNCIA DA TRANSVERSALIDADE

Queria também falar um pouco sobre a oficina de bijuteria, a qual

acompanhei durante o ano todo. A dinâmica interna a esse grupo, eu achei

particularmente muito interessante. Ficamos todos sentados ao redor da mesa que

está repleta de caixas e potinhos com miçangas, linhas, fechos, tesouras, alicates,

etc. Estamos lado a lado e ali nos vamos construindo nossas peças e

conversando. A cada momento uma pessoa coloca um assunto na roda,

literalmente, e então nós vamos conversando e pedindo a opinião dos outros

membros do grupo, se já passaram por algo parecido e se têm idéias de como

resolver algumas situações complicadas. As perguntas e as respostas são feitas e

dadas tanto pelas pessoas que ocupam o lugar de terapeutas (eu e Ana Paula,

dentre outros funcionários que às vezes passam pelo grupo) quanto pelos outros

membros do grupo. Essa dissolução dos vetores comumente presentes em um

ambiente terapêutico remete ao conceito de transversalidade.

“A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois

impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples

horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação

máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos

diferentes sentidos. É o próprio desejo da busca de um grupo

sujeito.” 20

Segundo Guattari, a transversalidade em um grupo se opõe a verticalidade

e a horizontalidade. A verticalidade se refere àquilo que encontramos, por

exemplo, em organogramas e estruturas piramidais de poder; a horizontalidade é

aquilo que se pode realizar nos espaços de convivência de uma instituição de

19 ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde

Mental, p. 5. 20

GUATTARI, F. A Transversalidade. In: Revolução Molecular: pulsões políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 96.

19

saúde como o CAPS, ou seja, “uma certa situação de fato em que as coisas e

pessoas ajeitam-se como podem na situação em que se encontram” 21.

Assim, penso que o ambiente da Oficina de Bijuteria é fortemente

permeado pela transversalidade posto que é tranquilo e descontraído sem perder a

dimensão da seriedade, do manejo e da atenção especial ao usuário no sentido da

construção de casos clínicos. Muitas vezes nós falamos de coisas tristes, de

impasses, de dificuldades, mas sempre de uma maneira leve, o que não significa

que deixamos de dar a devida importância à fala do outro e de, se necessário,

encaminhar as questões; outras vezes nós contamos coisas cotidianas,

engraçadas ou trágicas, rimos muito e fazemos piadas. Desse modo conseguimos

nos aproximar de outras facetas das pessoas ali presentes, pois elas contam

histórias corriqueiras, banais, algo que não está diretamente baseado em seu

problema de saúde mental que as faz estar em um CAPS. Assim nós lembramos

que os usuários do CAPS são pessoas que se viram e, na grande parte das vezes,

se viram muito bem, quando estão fora do circuito de instituições de saúde mental,

quando não estão protegidos, nem tutelados, nem preservados e nem presos.

Assim, cabe perguntar: as “terapeutas” presentes nesse grupo saem do seu

papel terapêutico, posto que o grupo é permeado por assuntos banais e

descontrações? Será que deixamos de ser terapeutas por se colocar

transversalmente, executando a mesma tarefa e às vezes dizer: eu não sei? Com

certeza não. Pois mais uma vez, o ato terapêutico não se resume em dar uma

resposta, em articular o que a pessoa pode ou não pode fazer, mas também em

lembrar que esse sujeito é no mínimo potencialmente autônomo e capaz de dar

soluções aos seus próprios impasses, se responsabilizando por eles.

É fundamental frisar, mais uma vez, que essas questões perpassam o

ambiente da saúde mental e não são somente próprias ao CAPS em questão.

Relações de saber e poder que geram tanto potência quanto onipotência, a

construção de sujeitos de direitos, e a responsabilização são questões humanas,

demasiadamente humanas. Isso fica claro na escolha, para a discussão no CAPS,

do texto do psicanalista J-A Miller, pois ele traz justamente uma das questões mais

fortes e presentes nesta instituição, o que indica que esta escolha não foi por

acaso. O importante é problematizá-las nas peculiaridades do contexto da saúde

mental e não perdê-las de vista para que possamos ir repensando e aprimorando

nossas práticas.

21

Ibiden.

20

A VERDADE DO DELÍRIO

Para finalizar gostaria de escrever aqui algumas frases que ouvi dos

usuários do CAPS Esperança ao longo deste ano. Os espaços de convivência são

ideais para se ouvir a loucura, pois é um lugar mais livre que não compartilha das

regras dos settings terapêuticos. É um lugar no qual se pode falar o que quiser,

pelo simples fato de que não há demanda de atendimento nem do psicólogo, nem

do usuário. Ao contrário da sala de atendimento na qual também se pode falar o

que quiser e isso existe como regra de forma que todos sabemos que a intenção é

que se fale dos problemas, das questões, dos impasses, dos sofrimentos, afim de

que o terapeuta possa ajudar o paciente. Na convivência surgem os mais variados

tipos de conversa com os mais variados assuntos, porque se pode falar de tudo,

não só daquilo que incomoda, que causa sofrimento. Na medida do possível, eu

tentava registrar alguns ditos e algumas conversas, É por isso que eu estava

sempre sentada na sala de equipe anotando alguma coisa no meu caderninho.

Abaixo trago alguns exemplos das frases mais fantásticas dos usuários do CAPS

Esperança:

- “Tenho meu mundo, onde tudo acontece em um segundo, vou levar todos para

lá, aí posso fazer a terra virar mar e o mar natureza. Esse mundo fica a 2 ou 3

sistemas daqui.” (Osmir).

- “Pra eu ficar bom, preciso liberar o sentimento de amor” (Maurity)

- “Meu pai estava bêbado quando foi me registrar, aí em vez de Ulisses ele falou

Olício” (Olício)

- “Na próxima vida quero ser modelo” (Agnaldo)

- “Colhem o meu sangue porque acho que sou travesti” (João Galvão)

- “Sou homem, sou mulher, sou menino, sou menina, sou namorado, sou

namorada, noivo, noiva, esposo, esposa, sou tudo isso” (Luiz Cláudio)

- “O nome do meu pai é

O nome do meu pai é

O nome do meu pai é

Não tem credencial” (Rep. de José Ricardo)

- “Manda eu embora porque eu to curado, Deus me curou. Um disco voador me

curou. Aqui eu vou ficar louco! Eu já to bem, não to agressivo, to calmo. Se eu ficar

louco em casa, meu irmão cuida de mim” (João Galvão)

21

- O mundo vai acabar em guerra, mas acho que eu já vou estar morto” (Vanderlei)

- “Às vezes não trato bem o passado” (Leonor)

- “O que é eternamente? Quer dizer que a pessoa mente, né?” (Nelsa)

- “Tenho uma cama King Box, mas pra dormir não precisa de cama, mas sim de

mente boa” (Geraldo)

- “To com vontade de desmaiar” ( Flávio)

- Tô com depressão por causa do mundo aí fora... não dá pra resolver tudo!”

(Olício)

- Tia, você conhece o submarino amarelo? Onde eu compro um? (Luís Cláudio)

- “Eu tava no ponto de ônibus em Paris na semana passada...” (Vítor Burg)

- “Mulher faz combinação, homem faz contrato” (Eduardo)

- “O cigarro tava me enforcando” (Lindomar)

- “Até o coração tava doendo porque a cabeça tava muito fraca” (Leonor)

- “O microfone da rádio pegou a chiadura do meu pulmão” (Olício)

- “Tenho 10 anos. Minha cabeça não desenvolveu, mas não brinco de carrinho.”

(João Galvão)

- “Fazenda de morar, fazenda de estar fazendo e fazenda de corte e costura” (Luis

Cláudio)

- “Às vezes sinto um negócio subindo... endurecendo o coração, e me dá muita

raiva” (Leonor)

- “A gente tem que viver o que a gente não é, lá fora” (Olício)

- “Quando tomo água, me dá tremedeira” (Nelsa)

- “Eu vim da escuridão porque morri e voltei. Fiquei 10 mim sem respirar... Eu

tenho 50 mil anos luz. Fui Salomão, a Bíblia também mente” (João Galvão)

- Tem que ser muito louco pra gostar de ficar internado (Cecília – motorista)

E para finalizar, vou descrever minha conversa com Luís Cláudio a respeito da

minha saída:

- Oi Luís! Como você passou esse tempo (das minhas férias)

- Passei preso.

- Preso? Como assim?

- Preso numa casca de laranja, tia.

“Nós estamos no paraíso, e pra chegar aqui foi a senhora que fez a curva e

achou esse lugar”.

Explico para ele que vou embora pois acabou meu aprimoramento. Ele diz:

22

- Eu vou ficar triste... eu gosto da senhora porque a senhora tem olhos grandes e

amorosos.

“Tia, tem um arcanjo que mora na minha casa, ele dorme na cama da minha mãe

porque mora no corpo dela. Se a tia vai embora é porque um outro arcanjo vai vir

te buscar, porque foi ele que te trouxe e é ele quem organiza tudo, sabe de tudo e

não briga com ninguém”.

23

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coletiva no campo da saúde mental. Rev. Ciência e Saúde Coletiva, v. 6, n. 1, p.

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