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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
APRIMORAMENTO EM SAÚDE MENTAL EM SAÚDE COLETIVA
Trabalho final
Reflexões sobre a prática no CAPS Esperança
Autonomia e responsabilidade na atenção à saúde mental
Orientadores: Rosana Onocko Campos
Alberto Giovanelo Dias
Aprimoranda: Keylla de Fátima Barbosa
Campinas, Fevereiro de 2012
3
INTRODUÇÃO
Este trabalho contém uma reflexão sobre meu estágio de aprimoramento
realizado no CAPS Esperança. Trago aqui algumas questões que foram surgindo
ao longo deste um ano de trabalho no serviço citado. Com base nas discussões
em aula e nas supervisões, além da literatura, procuro problematizar algumas
situações que ocorreram durante este ano. Este trabalho final tem também como
uma de suas propostas ser uma espécie de reflexão pessoal sobre a formação que
temos no aprimoramento de uma forma geral. Gostaria, então, de deixar claro que
este texto foi escrito a partir da minha vivência pessoal, e que todos os
questionamentos e críticas foram feitos tomando como base o contexto geral da
saúde mental, ou seja, não são questões específicas e únicas ao CAPS
Esperança, mas sim entraves intrínsecos e comuns à saúde mental. E é a partir de
reflexões desse tipo que podemos construir mudanças e de fato aprimorar nossas
técnicas e práticas na atenção a saúde mental.
RUMO A CO-RESPONSABILIZAÇÃO
Escolhi para este trabalho final, fazer uma reflexão sobre um tema que se
relacionou e que marcou muito minha trajetória no CAPS Esperança: a co-
responsabilização entre equipe e usuário da saúde mental no decorrer do
tratamento. A fim de discutir esse tema, irei abordar, inicialmente, alguns aspectos
presentes nessa instituição como por exemplo: o uso do leito noite, algumas
situações cotidianas (como banho, almoço, jantar no CAPS, armário para os
usuários e a presença de dinheiro e cartões de banco no serviço), a minha entrada
na equipe, o trabalho de referência, enfim, diversos pontos com os quais irei
dialogar para falar do processo de responsabilização do usuário por sua própria
vida e as dificuldades e limites disso em uma instituição de saúde mental.
O CAPS Esperança é um serviço de saúde mental bastante voltado para a
psicanálise. Muitos de seus funcionários, entre psicólogos, médicos e enfermeiros
estudam e usam essa teoria para fundamentar a prática clínica. Inclusive, esse foi
um dos motivos que me fizeram escolher o Esperança como campo de atuação, já
que eu também gosto de estudar a psicanálise e queria ter contato com a clínica
da psicose. Como uma das conseqüências da forte presença da psicanálise dentro
deste CAPS, no primeiro semestre de 2011 existiu um grupo que tinha a finalidade
4
de discutir psicanálise e saúde mental. Este grupo era formado pela psicóloga do
serviço que participa do Cândido Escola, eu e os estagiários de psicologia. Um dos
primeiros textos que nós discutimos neste grupo se chama Saúde Mental e Ordem
Pública escrito por Jacques-Alain Miller. Este texto discute, entre outras coisas, os
limites da responsabilidade e a culpa que surge no profissional da saúde mental
como consequência do tratamento que ele oferece ao usuário que, por sua vez, é
um sujeito de direitos e portanto, de responsabilidade. Mas o que é ser
responsável? Afim de trazer para essa discussão ao menos uma direção de
resposta para essa pergunta, fui buscar a opinião de alguém que dedicou boa
parte de sua obra a uma genealogia dos conceitos, para o filósofo Nietzsche,
responsabilidade é algo que exige e trás consigo uma igualdade entre os homens
que se tornam mutuamente confiáveis a partir do momento em que surge a
responsabilidade e isso dá a eles a possibilidade de se tornarem livres:
“O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da
responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder
sobre si mesmo e o destino, desceu nele [o homem livre] até sua
mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante –
como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite
de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano
o chama de sua consciência...” 1
Entender a responsabilidade como um privilégio já é bastante diferente daquilo que
estamos acostumados. Ainda mais nos tempos atuais, no qual é muito presente a
irresponsabilidade pelas nossas atitudes. Mas ser responsável é mesmo um
privilégio quando entendemos que isso vem acompanhado pela liberdade e por um
poder sobre si que nada mais é do que ser consciente daquilo que faz. Mas ainda
estamos aprendendo a lidar com essas questões, ainda não temos consciência de
tudo que fazemos e também não temos a responsabilidade como um instinto.
Ressalto que aqui uso o termo instinto segundo Nietzsche que, resumidamente, o
entende como uma força criadora que está na base de qualquer forma de
expressão. Ainda não somos os homens livres aos quais Nietzsche se refere e
muito provavelmente nunca seremos, mas isso não impede a tentativa de se
1 NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p.50.
5
aproximar cada vez mais dele na tentativa de sermos cada vez mais responsáveis
e portanto, livres.
Segundo Miller, como um dos principais objetivos do tratamento na saúde
mental é a reabilitação social e a reintegração do indivíduo na sociedade, o
profissional dessa área acaba sendo aquele que tem o poder de, por exemplo,
decidir quem pode sair e quando deve voltar, o que por si já implica na anulação
da responsabilidade do sujeito sobre seu direito de ir e vir, pois a partir do
momento em que alguém permite que outra pessoa faça algo, o agente da ação se
anula em termos de autorização de si mesmo. Segundo Miller, no texto já citado,
ter direitos é ter responsabilidade e ser irresponsável é deixar que o outro gerencie
seus direitos:
“E o que significa irresponsabilidade? Significa que os demais tem
direito de decidir por alguém, isto é, que se deixa de ser um sujeito
de pleno direito. O termo sujeito, portanto, não se introduz a partir do
mental, mas a partir do direito.” 2
O poder, de certo modo corriqueiro nas instituições de saúde mental,
implica em uma responsabilidade que deveria ser compartilhada com o próprio
usuário que, por sua vez, também tem poder sobre sua existência e suas
escolhas, assim, a responsabilidade sobre o tratamento deve ser compartilhada
entre profissional e usuário. Mas na prática, isso ainda é algo a ser desenvolvido.
Muitas vezes as relações de poder entre funcionário e usuário dento do CAPS são
levadas ao estremo de uma quase anulação da responsabilidade do usuário. Se
para Foucault, saber é poder, o suposto saber dos profissionais sobre o outro,
tenciona uma relação de poder através da qual os funcionários do CAPS se
colocam acima dos usuários em termos de decisões práticas e de
responsabilidade sobre as ações dos mesmos. Quando eu falo aqui em suposto
saber não estou me referindo ao conceito lacaniano, mas sim ao que ele se remete
em termos de um saber que não é real, mas apenas suposto. A relação de poder
surge de forma problemática, em um serviço de saúde mental, quando um dos
lados (funcionário ou usuário) se coloca como o único a saber sobre a relação
terapêutica.
2 MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública. In: Revista Curinga, Psicanálise e Saúde
Mental, nº 13. Belo Horizonte, 1999, p. 22.
6
Na construção de um projeto terapêutico individual é fundamental que o
usuário fale e opine sobre seu tratamento, por isso falamos em co-construção do
projeto, afim de que o sujeito tenha a oportunidade de ser ouvido, muitas vezes,
pela primeira vez. Partilhar a construção do projeto terapêutico com o usuário é um
modo de investir em sua autonomia e de responsabilizá-lo pelo seu tratamento.
Falar em autonomia é falar na capacidade que temos de agir sobre nos mesmos a
partir da construção de relações democráticas. Talvez essa última parte seja a
mais difícil: democratizar as relações em um ambiente de saúde que há muitos
anos é preenchido pelo abuso do poder médico, requer a partilha de forças e
portanto a perda de poder do lado da instituição de saúde.
A tomada de responsabilidade implica em trazer para si o papel de dar uma
resposta, sobre alguma situação, a quem pedir, isso significa também tomar posse
de algo, pegar para si. Nesse sentido, cabe perguntar: quem é responsável pelo
usuário da saúde mental? Quem deve responsabilizar-se por esses sujeitos, ou
melhor, em que medida podemos e devemos chamar essas pessoas de sujeitos,
entendendo que o termo sujeito é inseparável do termo responsabilidade?
Trabalhar no sentido de potencializar o sujeito enquanto tal é uma máxima na
saúde mental, mas será que estamos fazendo isso? Ao menos, é importante não
esquecer que estamos lidando com sujeitos potentes em autonomia e
transformação e não com objetos que nada podem sobre si, é exatamente por isso
que “além de produzir saúde, também caberia ao sistema de saúde contribuir para
a ampliação do grau de autonomia das pessoas” 3.
Para ilustrar e desenvolver a questão da responsabilidade e a dificuldade
que os profissionais da saúde mental encontram em transformá-la em co-
responsabilidade, ou seja, em partilhá-la, irei citar alguns exemplos de situações
que ocorreram no CAPS Esperança ao longo de minha passagem por lá.
CUIDADO OU PARANÓIA?
Desde o início do meu estágio no CAPS acompanhei diversas discussões
sobre um movimento que a equipe muitas vezes denomina de “desmaternagem”
em relação aos usuários. Há algum tempo atrás todos os usuários podiam tomar
3 ONOCKO CAMPOS, R. T. & CAMPOS, G. W. S. Co-construção de autonomia: o sujeito em
questão. In: CAMPOS, G. W. S. [et. al.]. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 669.
7
banho no CAPS, muitos deles almoçavam e jantavam lá e tantos outros tinham
armários para guardar suas coisas, além disso, ainda hoje há uma certa
quantidade de pessoas que deixam no CAPS seus documentos pessoais, cartão
de banco e o dinheiro que recebeu no mês a fim de que seja retirado aos poucos.
Incomodada com isso, a equipe passou a avaliar caso a caso a necessidade de
banho, comida e dinheiro no CAPS, trabalhando no sentido de que o sujeito possa
ter um cotidiano fora dessa instituição, fazendo suas refeições em outros lugares,
guardando suas coisas e tomando banho na sua própria casa, cuidando de seus
documentos, gerenciando seu próprio dinheiro, etc. Em função disso, os usuários
começaram a se manifestar na assembléia dizendo que estavam sendo
prejudicados pela equipe pois estavam perdendo seus direitos. Dessa situação,
pude observar que, há um tempo atrás, houve um movimento da equipe de cuidar
dos usuários em todos os aspectos de sua vida oferecendo a eles tudo o que fosse
possível dentro do CAPS e, de certo modo, isso ocupa o lugar de uma construção
de autonomia voltada para fora, para as possibilidades no social onde os direitos
são vistos de outra forma. Assim também cabe a pergunta: cuidar demais ou
proteger excessivamente é uma atitude que se aproxima mais da maternagem ou
da paranóia? Já que sabemos que ser mãe não é cuidar ao extremo e sabemos
também que uma atitude paranóica surge para nos proteger de algum perigo.
Há, especificamente, dois usuários com uma característica pessoal mais
questionadora que, sempre presentes na assembléia, levantam essa problemática
dos direitos quando alguém da equipe diz sobre algo que não se pode mais fazer
no CAPS. Embora para toda a equipe esteja muito certo que é preciso mudar de
posição, é preciso também ficar claro que é para isso é necessário mudar a
posição dos usuários frente aos mesmos problemas, caso contrário eles vão
entender que estão sim perdendo seus direitos. Isso é ainda mais grave se não
dermos a devida importância à reclamação pela perda de direitos, sabendo
diferenciar o que é a reclamação por “estar persecutório com algo ou alguém” de
uma legítima reclamação por no mínimo querer entender quais são os seus
direitos, o que está se passando com eles e porque está se passando desta forma,
pois às vezes o usuário está mesmo persecutório com alguém do CAPS, mas
outras vezes pode ser o CAPS que está persecutório com alguns usuários. Por
isso é de extrema necessidade que se escute, que se de voz e força àquilo que é
dito nas assembléias para que a partir disso se pense em estratégias para dividir
com os usuários a responsabilidade pela mudança.
8
Nesse sentido, a posição dos usuários frente ao que eles estavam
acostumados a ter no CAPS e que foram perdendo foi, obviamente de não gostar
dessa mudança, pois foi uma perda, apesar de necessária. É muito mais fácil e
cômodo se as pessoas fazem coisas por você, ao invés de você ter que fazê-las. É
mais cômodo comer no CAPS do que ter que guardar dinheiro para comer em
outro lugar ou cozinhar sua própria comida; é mais cômodo tomar banho no CAPS
do que lavar as próprias toalhas de banho; é mais cômodo ter um armário no
CAPS do que carregar o dia todo sua própria bolsa, enfim é mais fácil e
libidinalmente mais econômico deixar que a instituição faça pelo usuário do que ele
administrar as próprias necessidades e desejos. Isso remete ao que Freud chamou
de princípio do prazer
“Um dos princípios que, segundo Freud regem o funcionamento
mental: a atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o
desprazer e proporcionar o prazer. É um princípio econômico na
medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades
de excitação e o prazer à sua redução” 4
Para se gerenciar as próprias atividades, mesmo que sejam atividades
cotidianas, gasta-se muito mais energia. Maiores quantidades de libido devem ser
investidas nesse processo e, portanto, mais excitação será gerada no aparelho
psíquico para manter essas ações. A mudança de postura da equipe, então, entra
como uma afronta ao princípio do prazer que dominava as relações. Como em
toda relação, as duas partes devem estar em alguma medida satisfeitas para que
ela continue, neste caso a equipe também se satisfazia pois mantinha os usuários
mais próximos, mais controláveis, posto que também seria ir contra o princípio do
prazer gastar libido para trabalhar a autonomia dos sujeitos em questão.
A FUNÇÃO DO LEITO NOITE
Também podemos pensar a questão da responsabilidade a partir de uma
reflexão sobre o leito noite. O CAPS Esperança possui 10 leitos que estão quase
sempre ocupados. O leito noite de um CAPS III existe para que os usuários
4 LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. São Paulo
Martins Fontes, [1967] 1992, p. 364.
9
possam passar a noite no serviço em casos de crises que exigem um cuidado
mais próximo e contingente. Através de uma observação do movimento comum da
equipe percebo que os leitos estão quase sempre todos ocupados porque ficam
neles muitos usuários que não estão em crise, ou que já tiveram uma importante
melhora, mas que não vão para casa por outros motivos. Dentre esses, um
bastante freqüente é a rejeição da família. Assim, algumas pessoas passam
meses em leito noite pois suas famílias se recusam a aceitá-los de volta e outras
soluções não são encontradas. Isso parece se relacionar com um movimento de
cuidado intenso mas que se aproxima também da algo como uma tutela sob a
máscara da maternagem através da qual a equipe que escolhe deixar o usuário
dentro do CAPS não investindo muito na responsabilização do próprio sujeito e da
família.
Se excluímos o sujeito de sua responsabilidade, nós o mantemos,
sob pretexto de ajudá-lo e de lutar contra sua exclusão, sob a tutela
de nossa responsabilidade, nós o desresponsabilizamos, e o
mantemos alienado de sua condição, tutelado, dependente de nós. 5
Uma equipe que se coloca em um lugar de muita responsabilidade não só
atrapalha a condução do caso, como também é afetada por isso de uma maneira
reativa, pois trazer toda responsabilidade para si é ao mesmo tempo sentir culpa
pelo que não deu certo e por isso ter medo de arriscar novas condutas. E mais
uma vez como diz Miller: “A formação dos analistas poderia se resumir em curá-los
de sentimento de culpa” 6; talvez por isso a resposta encontrada foi deixar o
usuário cada vez mais próximo do CAPS, o que resulta em mais controle, mais
poder e menos culpa a medida em que se corre menos risco. O que não deixa de
ser uma contradição, pois a sensação de controle e poder sobre a vida do outro
tem como conseqüência a tomada excessiva de responsabilidade que por sua vez
gera sofrimento e culpa no trabalhador. Por isso o trabalho na saúde mental,
muitas vezes se pauta na sensação de estar omitindo-se ou exagerando no
cuidado, se colocando entre a onipotência ou a impotência. 7
5 ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde
Mental. http://www.saude.rio.rj.gov.br/media/responsabilidade_do_sujeito.pdf, p. 2. 6 MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública, p. 26.
7 MIRANDA, L. & CAMPOS, R. T. O. Análise do trabalho de referência em Centros de Atenção
Psicossocial. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 5, out. 2008.
10
Esse tipo de sofrimento pode levar a equipe a estruturações
inconscientes de defesas psíquicas, como reações afetivas coletivas,
padronizadas e enrijecidas, que protegem o grupo de trabalhadores
da angústia produzida pelo contato com sensações de onipotência e
impotência quase absolutas, próprias da psicose. 8
VIVÊNCIAS DE UMA APRIMORANDA
Muitos desses problemas ligados a super proteção dos usuários pelo CAPS
são já conhecidos e discutidos pela equipe. Fazendo uma reflexão sobre a minha
posição dentro do CAPS Esperança, percebo que não só os usuários mas também
alguns estagiários e o aprimorando são de certa forma super protegidos. Nos
primeiros meses minha inserção no CAPS foi um pouco dificultada pois a equipe
entrou em um movimento que eu entendi como uma forma de me proteger dos
casos. Um exemplo disso é o fato de que muitos funcionários me perguntavam o
tempo todo como eu estava, se estava tudo bem, se eu precisava de algo ou se eu
tinha alguma dúvida; eu me sentia no grupo de tratamento, até porque às vezes eu
reclamava de algo ou pedia alguma coisa mas nada acontecia. Queria chamar
atenção para o fato de que cuidar não é proteger dos imprevistos, mas estar junto
caso algo aconteça. A questão de o aprimorando não precisar atender as
demandas da instituição virou um imperativo que muitas vezes barrava o meu
trabalho. Como eu tinha acabado de chegar e eu ainda estava entendendo o
funcionamento do CAPS, me era dito que eu não precisava fazer nada que eu não
quisesse, a questão é que quando eu comecei a me apropriar das discussões e
comecei a querer fazer algumas intervenções eu senti que não somente eu era
protegida dos casos como a equipe se protegia de mim, pois eu representava, e de
fato era, um elemento externo a instituição. Assim, eu comecei a entender que eu,
como, aprimoranda, estava em uma espécie de limbo entre o CAPS e a Unicamp,
e que o fato de não pertencer completamente a nenhuma dessas instituições me
colocava como elemento de paranóia dentro do CAPS. É sempre importante
lembrar que quando eu digo “equipe” eu me refiro ao CAPS de modo geral e que
nem todos os funcionários estão envolvidos em todas essas questões. Estou
8 Idem, p. 9.
11
mencionando os movimentos coletivos mais marcantes ao longo de minha
trajetória, o que não engloba sempre todas as pessoas da equipe.
Assim como é um tanto difícil construir junto e potencializar o usuário na
responsabilidade pelo seu tratamento foi difícil também dividir comigo a
responsabilidade que a equipe tem sobre os tratamentos. Muitas vezes minhas
intervenções eram seguidas por um “muito obrigado” dos funcionários o que me
fazia sentir como se eu estivesse fazendo um favor e não trabalhando em equipe.
Como estava me sentindo sem movimento em relação aos casos do CAPS, eu
levei isso na minha supervisão e decidimos que isso era uma questão que deveria
ser discutida com a gestão. Então eu fui conversar com a Georgia que me ajudou
a ocupar lugares de mais visibilidade dentro da equipe: o ADD e a triagem. Com
certeza, isso mudou bastante meu cotidiano no CAPS, pois passei a assumir
lugares que existiam, já que o lugar do aprimorando por si não é certo e deve ser
construído por cada um a cada ano.
DA EQUIPE PARA A EQUIPE
A tensão gerada pela questão da responsabilidade surge também entre os
próprios funcionários de uma instituição como o CAPS. De algum modo há certos
tipos de cobrança dos demais funcionários em relação ao trabalho feito pelos
outros profissionais ou pelas outras equipes de referência. Como disse
anteriormente, poder gera responsabilidade, e então se o poder pelo tratamento do
usuário está concentrado em um técnico ou em uma equipe, a responsabilidade
pela condução do caso, também estará concentrada. Assim, muitas vezes nem
mesmo dentro da própria instituição a responsabilidade circula entre os membros
da equipe:
Os trabalhadores refletem que a equipe atribui enorme poder ao
profissional de referência, mas cobra dele a responsabilidade pelas
várias esferas da vida dos seus usuários. Ao mesmo tempo,
reconhecem que também escolhem se colocar como “donos do
caso”. 9
9 MIRANDA, L. & CAMPOS, R. T. O. Análise do trabalho de referência em Centros de Atenção
Psicossocial, p. 8.
12
Aprendi a valorizar muito o trabalho de referência feito no CAPS Esperança.
Ao longo das discussões sobre isso em supervisão, fui percebendo que este CAPS
trabalha com um modelo de equipe de referência (que são chamadas mini-
equipes) e não com o de referência pessoal, ou seja, grande parte dos casos são
de fato trabalhados por toda a equipe de referência que se responsabiliza junto.
Quando o usuário está precisando de algo, ele sabe que pode falar com qualquer
pessoa da equipe de referência e esta, quando necessário, discute com o restante
da sua equipe afim de se pensar o manejo coletivamente. Esse modo de
organização, a meu ver, facilita o trabalho e não sobrecarrega o profissional, além
disso e como conseqüência ocorre a divisão da responsabilidade sobre o caso
dentro da equipe o que fortalece o trabalho em conjunto. Por outro lado, ao invés
de haver um certo tipo de cobrança pessoal sobre o caso, há uma cobrança, de
certo modo velada, de uma mini-equipe em relação a outra, o que em alguns
momentos parece beirar a competição por competência, posto que a referência
(...) carrega consigo um pouco da verdade da história do paciente e
acaba sendo chamado pela equipe a prestar esclarecimentos sobre
o bem-estar e o mal-estar daquele que referencia, sendo
"responsabilizado" por ele 10
Afim de não cair na armadilha do poder que gera tanto a onipotência quanto
a impotência, é necessário transformar os vínculos dentro do CAPS através de
uma co-responsabilização dissolvida entre todos que estão envolvidos no caso,
entre profissionais da saúde, a sociedade, a família e o próprio sujeito:
Dividir, negociar e delegar encargos pelo cuidado entre profissionais,
familiares, vizinhos e usuários tem-se transformado numa constante
no cotidiano dos serviços de saúde mental, à medida que se
procuram construir redes sociais de suporte ao louco: quem cuida do
quê ou de quem? Do que lançar mão para lidar com os momentos de
crise psicopatológica (...) 11
10
Idem, p. 6. 11
SILVA, M. B. B. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental. Rev. Physis, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, Junho 2005, p. 3.
13
Foi justamente no ponto em que surge essa divisão, negociação e
delegação de funções que se encontrou o entrave do início da minha passagem
pelo CAPS Esperança. Pois, na minha visão, dividir tarefas comigo se tornou
erroneamente sinônimo de impotência. Com toda certeza esse trabalho de divisão
das responsabilidades sobre o tratamento em saúde mental não é fácil. Gasta-se
muito mais tempo e energia para articular a continuidade do tratamento fora do
CAPS do que dentro dele. O trabalho em um CAPS deve estar sempre na intenção
de se voltar para fora, de construir uma rede de cuidados para o sujeito e de assim
diluir a responsabilidade, caminhando no sentido da autonomia do próprio usuário,
afim de que ele seja capaz de entrar em contato e perceber as conseqüências de
suas atitudes. Nesse sentido cabe perguntar:
“nossas práticas estão aumentando o coeficiente de autonomia
desses usuários e comunidades? Ou, pelo contrário, produzindo um
exército de seres pedintes e tutelados que em nada se
responsabilizam pela própria vida, nem pela produção de condições
de vida mais saudáveis na sua própria comunidade?” 12
CULPA OU CURA?
Se entendemos que o usuário é um cidadão de direitos, entendemos que
ele também é responsável por seus atos e que, portanto, irá responder por suas
escolhas. Segundo Miller:
“A noção crucial, então, para o conceito de saúde mental, é a
decisão sobre a responsabilidade do indivíduo. Isto é, se é
responsável e se pode castigá-lo ou, pelo contrário, se é
irresponsável e se deve curá-lo.” 13
A dificuldade se encontra no limite entre quando se pode falar em castigo e
quando o que está em jogo é a cura, ou seja, entre a responsabilização do usuário
por suas ações e a responsabilização do funcionário pelo paciente que ele trata.
12
ONOCKO CAMPOS, R. T. & CAMPOS, G. W. S. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão, p. 684. 13
MILLER. J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública, p. 21.
14
Essa dificuldade estará sempre presente pois a saúde mental trabalha dentro
desse limite e não deve ter a pretensão de deslocar-se para um ou outro extremo.
Entre a culpa e a cura há uma infinidade de possibilidades nas quais devemos
apostar. Assim, é importante trabalhar no sentido da emancipação
(...) mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em
outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo
a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de
ser sujeito. 14
O próprio Lacan diz “por nossa condição de sujeito, somos sempre
responsáveis” 15, sabendo ou não, tendo consciência dos nossos atos e de nossa
responsabilidade ou não, somos colocados na posição de tomada de
responsabilidade pelo fato, aparentemente simples, de sermos sujeitos e sujeitos
de direito. E indo contra a idéia de que só é responsável aquele que sabe, que
pensa sobre o ato e que o executa de plena consciência e escolha, Lacan diz: “Só
podemos nos responsabilizar por algo que não podemos ainda responder” 16. O
que ele quer dizer com isso? Talvez algo que vá no sentido do não saber, do
imprevisto e do risco que corremos a cada ação, a cada pensamento, risco esse
que não anula a tomada de responsabilidade. Somos responsáveis também por
aquilo que não dominamos, que não sabemos, que temos dúvidas, pois é isso que
temos, é isso que sabemos, já que não conhecemos e não vamos conhecer todos
os motivadores de nossas ações, lembrando sempre da parcela inconsciente que
nos move.
LOUIS ALTHUSSER: A LOUCURA EM BUSCA DA RESPONSABILIZAÇÃO
Essa discussão me lembrou o caso do filósofo Louis Althusser.
Diagnosticado em sua época como psicótico maníaco-depressivo, ele matou sua
mulher estrangulada em um momento de inconsciência e delírio. Assim, como um
louco infrator, ele foi declarado inimputável, sem ir a julgamento, devendo
permanecer por tempo indeterminado em um hospital psiquiátrico. Após sua alta,
14
AMARANTE, P. & TORRE, E. H. G. Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência e Saúde Coletiva 6(1): 73-85, 2001, p.81. 15
LACAN, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, P. 873. 16
LACAN, J. O Seminário, Livro XV – O Ato psicanalítico, Lição III, 1967/68. Citado em ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde Mental.
15
ele escreve um texto autobiográfico sobre o ocorrido. Neste texto, Althusser fala
sobre sua situação e pede como dádiva algo que para os demais é obrigação: a
explicação pública sobre o crime que é o dever de todo criminoso. Assim ele
questiona a legislação que, com a finalidade de proteger o louco em suas atitudes
subversivas, acaba anulando a personalidade jurídica dele e ainda, por outro lado,
o sigilo médico impede que algumas informações sobre seu caso sejam dadas.
Essa combinação de fatores dão como resposta para o seu crime a reclusão em
um hospital psiquiátrico que, segundo ele, não se aproxima em nada com uma
penalização pela morte de sua esposa.
O médico de Althusser, esse sim, foi convocado a dar uma explicação
pública pela atitude do filósofo, e diz que, com base em seus conhecimentos de
medicina, o filósofo não pode ser considerado culpado, tirando a possibilidade de
Althusser responder por seu ato, ou seja, de se sentir responsável por suas
próprias ações mesmo que essa responsabilização seja singular, ele diz: “Eu dava
voltas e voltas, mas sem jamais me sentir culpado, em torno da razão profunda do
meu crime.” A ausência de culpa, parece colocá-lo no campo da loucura e assim a
sociedade também não o responsabiliza, não pedindo uma explicação ou exigindo
uma punição.
Esse caso ilustra a questão que venho discutindo e deixa claro que a
posição que a loucura ocupa frente a questões de direito, deveres e cidadania
ainda é algo que requer reflexão e trabalho. Mais uma vez, cabe nos perguntarmos
em que ponto entre a cura e a culpa nós estamos e em que ponto queremos estar.
O NARCISISMO INSTITUCIONAL E O SABER-PODER DO LOUCO
O poder e a responsabilidade na área da saúde mental tem uma longa
história que acompanhou o desenvolvimento da psiquiatria e da reforma
psiquiátrica. No século XVIII na França, por exemplo, o estado, a justiça e a família
dividiam a responsabilidade sobre o cuidado àqueles que mantinham um
comportamento desviante em relação a norma vigente. Neste momento a
psiquiatria entra em cena e reclama para si a partilha dessa responsabilidade
dando a loucura o status de doença mental. Nessa conjuntura, a loucura passa a
ser uma questão de saúde, sendo portanto passível de tutela, ao mesmo tempo
em que o louco passa a ser assujeitado ficando do lado de fora da normalidade, da
responsabilidade, dos direitos e deveres e da cidadania.
16
“O louco se transforma em alguém que necessita de proteção /
cuidados e ao mesmo tempo precisa ser administrado / controlado,
ou seja, fato histórico que aponta para a articulação entre a
terapêutica da doença mental e a gestão dos comportamentos que
desafiam a ordem pública.” 17
O movimento da reforma psiquiátrica veio também no sentido de resgatar a
cidadania do sujeito tido como louco e a implicação deste na condução de sua vida
e do próprio tratamento. Dentro do CAPS existe um dispositivo potente com a
proposta de dar voz aos usuários ou a quem mais quiser se manifestar: a
assembléia. As assembléias se constituem como um espaço aberto à comunidade
para a discussão de pautas que perpassam não apenas o cotidiano do CAPS
como também da cidade e da sociedade em geral naquilo que tange a saúde
mental. As assembléias do CAPS Esperança de modo geral são esvaziadas de
funcionários. A ausência dos profissionais nas assembléias foi inclusive pauta de
supervisão institucional, onde várias questões foram levantadas afim de se pensar
o desinvestimento desse espaço. Em uma das assembléias estava presente um
membro da AFLORE (Associação Florescendo a Vida de familiares, amigos e
usuários dos serviços de Saúde Mental de Campinas), essa pessoa foi fazer um
convite aos usuários para participar de reuniões dessa associação pois lá
aconteciam discussões sobre o tratamento em saúde mental, bem como sobre
questões de cidadania e direitos. Na próxima reunião de equipe, esse convite foi
colocado em pauta pela única funcionária do CAPS que estava na assembléia. Ao
longo da discussão na reunião, pude perceber que houve um incômodo da equipe
pelo fato deste convite ter sido direcionado primeiro aos usuários. Era como se
antes de chegar aos usuários, o convite deveria ter passado pelo crivo da equipe e
isso não tinha acontecido. Vejo esse ocorrido como um analisador para essa
equipe que se sentiu narcisicamante ferida e atravessada por algo externo ao
CAPS.
“Mas cuidemos para não cultivar a ferida: a descoberta da instituição
não é apenas a de uma ferida narcísica, é também a dos benefícios
17 SILVA, M. B. B. Atenção psicossocial e gestão de populações: sobre os discursos e as
práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental, p. 3.
17
narcísicos que sabemos tirar das instituições, a preços variáveis
(...).” 18
“Não cultivar a ferida” está próximo a um não se ressentir e nem atacar aquilo que
vem de fora da instituição, aquilo que é diferente da instituição. Muito do que vem
de fora é importante para que a instituição se repense e aperfeiçoe sua prática,
mas também entendemos que há uma defesa institucional contra o externo e
contra o instituinte que tem a função de proteger a instituição, mas que isso, por
outro lado, cristaliza não somente as relações institucionais como também sua
função, seu motivo de existir. É através da desconstrução de parte dessa defesa
que a instituição se modifica, pois só assim passa a ver e aceitar o instituinte, o
novo, como algo necessário para o aprimoramento do trabalho.
A ferida narcísico, neste caso, gira em torno da questão dos saberes, ou
melhor, da democratização do saber. Geralmente o não-saber está do lado do
usuário, porém, neste caso, foi a equipe que se sentiu excluída por não ter sido
consultada e foi muito difícil lidar com a posição de não saber, não poder e não ter
controle sobre o que acontece com os usuários. Por fim, decidiu-se que deveriam
chamar novamente a pessoa da AFLORE para falar para a equipe a proposta que
fez aos usuários.
Além do incomodo pelo convite ter sido feito diretamente aos usuários,
penso que grande parte da preocupação dos técnicos se referia ao conteúdo do
convite, mesmo que inconscientemente. Discutir saúde mental, tratamento e
cidadania em um espaço fora do CAPS é um meio de potencializar a autonomia do
usuário, de fazê-lo refletir sobre como está e como poderia ser seu tratamento e
sua vida, ou seja, é um modo de torná-los críticos, dentre outras coisas, sobre o
trabalho desenvolvido no CAPS o que pode por em xeque os saberes e as
intervenções da equipe. Quem deve saber sobre o tratamento? Quem deve decidir
que remédio tomar? O técnico, o usuário, ou ambos? Potencializar o saber do
usuário é também colocar o próprio saber em questão.
Se dar uma resposta é ser responsável, nós enquanto trabalhadores da
saúde mental, estamos sim nos responsabilizando pelo usuário e junto com o
usuário. Mas nossa resposta não é “a” resposta mas sim “uma” resposta dentre
muitas que podíamos dar e por isso ela também pode sim estar equivocada,
18
KAËS, R. Realidade Psíquica e Sofrimento nas Instituições. In: A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991, p. 5.
18
precipitada e errada. O que fazemos, na nossa prática cotidiana, é dar uma
resposta e não uma certeza, e que nossas atitudes estão fundamentadas em eixos
teóricos-clínicos baseados em incertezas e questões a serem a cada dia pensadas
e discutidas. 19
OFICINA DE BIJUTERIA: A POTÊNCIA DA TRANSVERSALIDADE
Queria também falar um pouco sobre a oficina de bijuteria, a qual
acompanhei durante o ano todo. A dinâmica interna a esse grupo, eu achei
particularmente muito interessante. Ficamos todos sentados ao redor da mesa que
está repleta de caixas e potinhos com miçangas, linhas, fechos, tesouras, alicates,
etc. Estamos lado a lado e ali nos vamos construindo nossas peças e
conversando. A cada momento uma pessoa coloca um assunto na roda,
literalmente, e então nós vamos conversando e pedindo a opinião dos outros
membros do grupo, se já passaram por algo parecido e se têm idéias de como
resolver algumas situações complicadas. As perguntas e as respostas são feitas e
dadas tanto pelas pessoas que ocupam o lugar de terapeutas (eu e Ana Paula,
dentre outros funcionários que às vezes passam pelo grupo) quanto pelos outros
membros do grupo. Essa dissolução dos vetores comumente presentes em um
ambiente terapêutico remete ao conceito de transversalidade.
“A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois
impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples
horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação
máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos
diferentes sentidos. É o próprio desejo da busca de um grupo
sujeito.” 20
Segundo Guattari, a transversalidade em um grupo se opõe a verticalidade
e a horizontalidade. A verticalidade se refere àquilo que encontramos, por
exemplo, em organogramas e estruturas piramidais de poder; a horizontalidade é
aquilo que se pode realizar nos espaços de convivência de uma instituição de
19 ELIA, L. Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado no Campo da Saúde
Mental, p. 5. 20
GUATTARI, F. A Transversalidade. In: Revolução Molecular: pulsões políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 96.
19
saúde como o CAPS, ou seja, “uma certa situação de fato em que as coisas e
pessoas ajeitam-se como podem na situação em que se encontram” 21.
Assim, penso que o ambiente da Oficina de Bijuteria é fortemente
permeado pela transversalidade posto que é tranquilo e descontraído sem perder a
dimensão da seriedade, do manejo e da atenção especial ao usuário no sentido da
construção de casos clínicos. Muitas vezes nós falamos de coisas tristes, de
impasses, de dificuldades, mas sempre de uma maneira leve, o que não significa
que deixamos de dar a devida importância à fala do outro e de, se necessário,
encaminhar as questões; outras vezes nós contamos coisas cotidianas,
engraçadas ou trágicas, rimos muito e fazemos piadas. Desse modo conseguimos
nos aproximar de outras facetas das pessoas ali presentes, pois elas contam
histórias corriqueiras, banais, algo que não está diretamente baseado em seu
problema de saúde mental que as faz estar em um CAPS. Assim nós lembramos
que os usuários do CAPS são pessoas que se viram e, na grande parte das vezes,
se viram muito bem, quando estão fora do circuito de instituições de saúde mental,
quando não estão protegidos, nem tutelados, nem preservados e nem presos.
Assim, cabe perguntar: as “terapeutas” presentes nesse grupo saem do seu
papel terapêutico, posto que o grupo é permeado por assuntos banais e
descontrações? Será que deixamos de ser terapeutas por se colocar
transversalmente, executando a mesma tarefa e às vezes dizer: eu não sei? Com
certeza não. Pois mais uma vez, o ato terapêutico não se resume em dar uma
resposta, em articular o que a pessoa pode ou não pode fazer, mas também em
lembrar que esse sujeito é no mínimo potencialmente autônomo e capaz de dar
soluções aos seus próprios impasses, se responsabilizando por eles.
É fundamental frisar, mais uma vez, que essas questões perpassam o
ambiente da saúde mental e não são somente próprias ao CAPS em questão.
Relações de saber e poder que geram tanto potência quanto onipotência, a
construção de sujeitos de direitos, e a responsabilização são questões humanas,
demasiadamente humanas. Isso fica claro na escolha, para a discussão no CAPS,
do texto do psicanalista J-A Miller, pois ele traz justamente uma das questões mais
fortes e presentes nesta instituição, o que indica que esta escolha não foi por
acaso. O importante é problematizá-las nas peculiaridades do contexto da saúde
mental e não perdê-las de vista para que possamos ir repensando e aprimorando
nossas práticas.
21
Ibiden.
20
A VERDADE DO DELÍRIO
Para finalizar gostaria de escrever aqui algumas frases que ouvi dos
usuários do CAPS Esperança ao longo deste ano. Os espaços de convivência são
ideais para se ouvir a loucura, pois é um lugar mais livre que não compartilha das
regras dos settings terapêuticos. É um lugar no qual se pode falar o que quiser,
pelo simples fato de que não há demanda de atendimento nem do psicólogo, nem
do usuário. Ao contrário da sala de atendimento na qual também se pode falar o
que quiser e isso existe como regra de forma que todos sabemos que a intenção é
que se fale dos problemas, das questões, dos impasses, dos sofrimentos, afim de
que o terapeuta possa ajudar o paciente. Na convivência surgem os mais variados
tipos de conversa com os mais variados assuntos, porque se pode falar de tudo,
não só daquilo que incomoda, que causa sofrimento. Na medida do possível, eu
tentava registrar alguns ditos e algumas conversas, É por isso que eu estava
sempre sentada na sala de equipe anotando alguma coisa no meu caderninho.
Abaixo trago alguns exemplos das frases mais fantásticas dos usuários do CAPS
Esperança:
- “Tenho meu mundo, onde tudo acontece em um segundo, vou levar todos para
lá, aí posso fazer a terra virar mar e o mar natureza. Esse mundo fica a 2 ou 3
sistemas daqui.” (Osmir).
- “Pra eu ficar bom, preciso liberar o sentimento de amor” (Maurity)
- “Meu pai estava bêbado quando foi me registrar, aí em vez de Ulisses ele falou
Olício” (Olício)
- “Na próxima vida quero ser modelo” (Agnaldo)
- “Colhem o meu sangue porque acho que sou travesti” (João Galvão)
- “Sou homem, sou mulher, sou menino, sou menina, sou namorado, sou
namorada, noivo, noiva, esposo, esposa, sou tudo isso” (Luiz Cláudio)
- “O nome do meu pai é
O nome do meu pai é
O nome do meu pai é
Não tem credencial” (Rep. de José Ricardo)
- “Manda eu embora porque eu to curado, Deus me curou. Um disco voador me
curou. Aqui eu vou ficar louco! Eu já to bem, não to agressivo, to calmo. Se eu ficar
louco em casa, meu irmão cuida de mim” (João Galvão)
21
- O mundo vai acabar em guerra, mas acho que eu já vou estar morto” (Vanderlei)
- “Às vezes não trato bem o passado” (Leonor)
- “O que é eternamente? Quer dizer que a pessoa mente, né?” (Nelsa)
- “Tenho uma cama King Box, mas pra dormir não precisa de cama, mas sim de
mente boa” (Geraldo)
- “To com vontade de desmaiar” ( Flávio)
- Tô com depressão por causa do mundo aí fora... não dá pra resolver tudo!”
(Olício)
- Tia, você conhece o submarino amarelo? Onde eu compro um? (Luís Cláudio)
- “Eu tava no ponto de ônibus em Paris na semana passada...” (Vítor Burg)
- “Mulher faz combinação, homem faz contrato” (Eduardo)
- “O cigarro tava me enforcando” (Lindomar)
- “Até o coração tava doendo porque a cabeça tava muito fraca” (Leonor)
- “O microfone da rádio pegou a chiadura do meu pulmão” (Olício)
- “Tenho 10 anos. Minha cabeça não desenvolveu, mas não brinco de carrinho.”
(João Galvão)
- “Fazenda de morar, fazenda de estar fazendo e fazenda de corte e costura” (Luis
Cláudio)
- “Às vezes sinto um negócio subindo... endurecendo o coração, e me dá muita
raiva” (Leonor)
- “A gente tem que viver o que a gente não é, lá fora” (Olício)
- “Quando tomo água, me dá tremedeira” (Nelsa)
- “Eu vim da escuridão porque morri e voltei. Fiquei 10 mim sem respirar... Eu
tenho 50 mil anos luz. Fui Salomão, a Bíblia também mente” (João Galvão)
- Tem que ser muito louco pra gostar de ficar internado (Cecília – motorista)
E para finalizar, vou descrever minha conversa com Luís Cláudio a respeito da
minha saída:
- Oi Luís! Como você passou esse tempo (das minhas férias)
- Passei preso.
- Preso? Como assim?
- Preso numa casca de laranja, tia.
“Nós estamos no paraíso, e pra chegar aqui foi a senhora que fez a curva e
achou esse lugar”.
Explico para ele que vou embora pois acabou meu aprimoramento. Ele diz:
22
- Eu vou ficar triste... eu gosto da senhora porque a senhora tem olhos grandes e
amorosos.
“Tia, tem um arcanjo que mora na minha casa, ele dorme na cama da minha mãe
porque mora no corpo dela. Se a tia vai embora é porque um outro arcanjo vai vir
te buscar, porque foi ele que te trouxe e é ele quem organiza tudo, sabe de tudo e
não briga com ninguém”.
23
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coletiva no campo da saúde mental. Rev. Ciência e Saúde Coletiva, v. 6, n. 1, p.
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