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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMÁSIO SERGIO GOMES DA SILVA JURANDIR FREIRE COSTA (ORIENTADOR) RIO DE JANEIRO 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU:

RAMACHANDRAN, SACKS E DAMÁSIO

SERGIO GOMES DA SILVA

JURANDIR FREIRE COSTA (ORIENTADOR)

RIO DE JANEIRO

2007

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C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C

S587 Silva, Sérgio Gomes da. Imagens do corpo e imagens do eu: Ramachandran, Sacks e Damásio / Sérgio

Gomes da Silva. – 2007. 121f.

Orientador: Jurandir Freire Costa.

Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Ramachandran, V. S., 1951- – Teses. 2. Damásio, Antonio – Teses. 3. Sacks, Oliver W., 1933- – Teses. 4. Imagem corporal – Teses. 5. Fenomenologia – Teses. 6. Neurologia – Teses. I. Costa, Jurandir Freire, 1944- II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Título.

CDU 391.6 ____________________________________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS

A Jurandir Freire Costa, pela perseverança de propor novos desafios a antigos problemas, pela paciência e presteza em que me aceitou no seu grupo de pesquisa, pela sua orientação precisa e sua capacidade insofismável de me fazer pensar sempre na contramão reafirmando a máxima “só sei que nada sei”; A Benilton Bezerra Jr., Francisco Ortega e Monah Winograd, por aceitarem a fazer parte da Banca; Aos colegas do grupo de orientação, às quartas-feiras, Delphin, Claudia, Carla, Ana Alice e Rossano, bem como aos colegas do grupo de orientação do Francisco Ortega, às terças-feiras, especialmente Marília, Luciana Kind e Rafaela, que me possibilitou esclarecer algumas idéias, enquanto elas ainda estavam envoltas em trevas; Ao corpo docente do Instituto de Medicina Social da UERJ, cuja experiência na área da Saúde Coletiva, ampliaram meus campos de conhecimento; Aos amigos e colegas do curso, em particular a Claudia, Daniela, Rachel, Igor, André, Paula, Elaine e Camilo; Aos novos amigos e amigas que souberam suportar minha ausência, mas que contribuíram com sua força para o final dessa dissertação, Márcia, Ercy, Ieda, Rodrigo, Miriam e Suely, minha gratidão para com vocês não acaba nunca, particularmente à Vera, amiga e professora de francês, que me ajudou em parte das traduções contidas nessa dissertação; Aos velhos amigos da terra nem tão distante, que ficaram na torcida pela concretização dessa Pós-Graduação, sobretudo Reivan, Márcia, Tatiana, Wilma, Lourdinha, Roberto, Júnior, Wellington, Arlete, Valdir, e Robert; Sou eternamente grato Regina pelos intensos debates e discussão ao longo da construção desse trabalho, muitas vezes atravessando madrugadas insones via fone nessa última etapa da escrita; À Direção da Escola de Serviço Social da UFRJ, respectivamente à Maria Magdala Vasconcelos, Gabriela Icasuriaga e Yolanda Guerra, pela força na minha formação pessoal; Ao querido amigo Diomedes Paulo, in memorian, você não sabe como me fez falta no final desse percurso, meu amigo; E finalmente a minha família, que suportou bravamente meu êxodo para o Rio de Janeiro.

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RESUMO

IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMÁSIO

Abordar o tema da “imagem corporal” na contemporaneidade é acima de tudo ressaltar a sua importância a partir dos transtornos da percepção da imagem do corpo. No entanto, a tecnologia médica forneceu à neurologia e às neurociências novos subsídios para a compreensão dos distúrbios da imagem corporal verificando “in loco” todos os distúrbios cerebrais correlacionados às disfunções de imagem corporal. Sem a representação mental ou física do nosso próprio corpo, não conseguiríamos ter a noção de ipseidade no mundo. Quando o esquema corporal entra em conflito com a “imagem corporal”, podemos encontrar aquilo que denominamos de “distorções da imagem do corpo”. Esse campo tem sido colocado em relevo por novas disciplinas, transformando o cérebro como o agente principal da nossa identidade pessoal, tal como formulado pelo conceito de sujeito cerebral. A partir dessa perspectiva, objetivamos analisar as origens da imagem corporal a partir de três autores nitidamente distintos: Ramachandran e os “membros fantasmas”, que procura compreender a formação da imagem corporal a partir de um “mapa cerebral”; Oliver Sacks a partir de uma neuro-fenomenologia do “eu” e António Damásio a partir da neuro-anatomia das emoções e dos sentimentos e sua correlação com a corporeidade. Mostrar essas abordagens torna-se necessário primeiramente para que possamos sair de uma abordagem reducionista, materialista e localizacionista, fomentado pelas disciplinas médicas que tem ganho notoriedade nos últimos anos; segundo, para construção de novas metáforas ou narrativas da mente no campo dos distúrbios de imagens corporais, e por fim, para mostrar o ônus teórico que se encontra em cada uma dessas disciplinas. Palavras-chaves: imagem corporal, esquema corporal, sujeito-cerebral, subjetividade, neurologia, fenomenologia.

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ABSTRACT

BODY IMAGES AND SELF IMAGES: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMÁSIO

To study body-image today is to standing out its importance from the perception of body image disfunctions. However, the medical technology supplied to neurology and to neuroscience gave new approaches to the understanding the body-image disfunctions verifying all the correlated cerebral roots to the disfuctions of body-image. Without the mental or physical representation of our body, we would not obtain our sense we are one in the world. When the body-schema enters in conflict with the "body-image ", we can find what we call distortions of body-image". This approach has been placed in relief for new disciplines wich the brain become a new agent of our personal identity as brainhood (cerebral subject). To this point of view, we aims to analyze the origins of the body-image, identity, subjectivity and self image from three distinct approaches: Ramachandran and the their "phantom limbs", wich body image is understood as a brain map; Oliver Sacks from a neuro-phenomenology of the self and António Damásio from the neuro-anatomy ou neuro-biology of emotions and feelings and its correlation with the corporeality or embodiment. First of all, to analize these differents approaches is important because we can leave a reducionist, materialistic and localizacionist toughts, to the new disciplines whom profit has notoriety in the last years; second, for construction of new metaphors or narratives of the mind and self in the field of body-image, and finally, to show the theoretical responsibility that found out in each one of these respective discipline. Key-words: body image, body schema, brainhood, subjectivity, neurology, fenomenology

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“Você não passa de um baralho de neurônios”

Francis Crick Citado por John Horgan

O fim da ciência

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LISTA DAS FIGURAS

FIGURA 1 – Homúnculo de Penfield...................................................................... 29

FIGURA 2 – Mudança na topografia cortical........................................................ 38

FIGURA 3 – Paciente V. Q. .................................................................................... 39

FIGURA 4 – A caixa de espelhos............................................................................. 41

FIGURA 5 – As condições de manipulação............................................................ 45

FIGURA 6 e 7 – Fotografia e reconstrução digital do crânio de Phineas Gage.. 99

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 08

I. RAMACHANDRAN E OS FANTASMAS DO CORPO...................................... 21

1.1. Os primórdios dos “membros fantasmas”........................................................... 23

1.2. O fenômeno dos “membros fantasmas”.............................................................. 26

1.3. “Enganando” o cérebro........................................................................................ 40

II. SACKS E A NEUROLOGIA DA IDENTIDADE................................................. 50

2.1. Para uma neuro-fenomenologia do “self”........................................................... 53

2.2. Imagem do corpo e esquema corporal................................................................. 62

III. DAMÁSIO E O CORPO NO TEATRO DAS EMOÇÕES E DOS

SENTIMENTOS.....................................................................

70

3.1. A neuroanatomia das emoções e dos sentimentos............................................... 72

3.2. Emoções e sentimentos no “teatro do corpo”: a construção das imagens

corporais......................................................................................................................

81

3.2. Para uma neurobiologia da subjetividade humana.............................................. 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 115

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INTRODUÇÃO

A expressão “imagem do corpo” foi cunhada por dois eminentes

neurologistas ingleses, Russel Brain e Henry Head, para designar o conjunto de

experiências e sensações – a imagem e memória internas do corpo – no tempo e no

espaço. Para criar e manter esta imagem corporal em um determinado momento,

segundo os autores, os dois lobos cerebrais combinam informações precedentes de

muitas fontes, a saber: músculos, pele, articulações, tendões, olhos e centros do

comando motor.

O conceito de imagem corporal aparece na literatura no século XVI, na

França, através do médico e cirurgião francês Ambroise Pare, que percebeu a existência

do membro fantasma, caracterizando uma alucinação do membro ausente como estando,

de fato, presente no corpo do paciente. Posteriormente, três séculos depois, na Filadélfia

(EUA), Weir Mitchell demonstrou que a imagem corporal, ainda sem se referir a este

fenômeno como tal, pode ser mudada sob tratamento ou em condições experimentais.

Mas foi o neurologista Henry Head do London Hospital quem primeiro usou o termo

“esquema corporal” para se referir a uma construção da imagem do corpo que temos de

nós mesmos. De acordo com Head “cada indivíduo constrói um modelo ou figura

padrão de si mesmo contra os julgamentos da postura e dos movimentos corporais. Para

o autor, a alteração da postura de um indivíduo pode mudar, e a isso ele denominou de

esquema corporal ou “schemata”: Qualquer coisa que participe do movimento

consciente de nossos corpos é somada ao nosso modelo corporal e torna-se parte deste

“schemata”.

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O conceito de imagem corporal também tem sido freqüentemente associado

aos estudos neurológicos ou psicológicos levando-nos, algumas vezes, a uma série de

confusão de conceitos teóricos e metodológicos nos vários campos em que ele tem sido

aplicado.

Em neurologia, os termos esquema e imagem corporal são correntemente

referidos a dois tipos de representações: uma é o ajuste do corpo no espaço das

atividades sensório-motoras e do conhecimento do corpo na relação espacial. O outro

termo é referido pela psicanálise no registro da identidade relegando ao Outro um papel

primordial na aquisição da identidade do sujeito (Morin & Thibierge, 2004).

Gallagher (1986, 1995), por exemplo, aponta uma série de implicações no

uso conceitual e terminológico relativos à “imagem do corpo” e ao “esquema corporal”

ao abordar os estudos acerca da experiência do corpo e da personalidade, tanto no

campo psicanalítico quanto na literatura fenomenológica, reforçando a idéia de que é

necessário diferenciar entre “imagem” e “esquema corporal” para solucionar o problema

da “consciência de si” (self-awareness) e a “consciência do corpo” (body-awareness).

A “consciência de si” (self-awareness) refere à compreensão de que alguém

existe como um “self”, um centro de gravidade narrativa, e inclui a existência de um

indivíduo separado de outras pessoas com pensamentos privados, com uma alteridade e

uma ipseidade. O “self-awareness” é referido apenas no desenvolvimento de uma

identidade (como um self). Aliás, ele é o nicho da própria identidade e também se refere

ao comportamento, ou seja, a base da identidade pessoal.

A “consciência do corpo” (body-awareness) é a capacidade de referir-se ao

seu próprio corpo como ora como uma imagem, ora como um esquema corporal –

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através de sensações proprioceptivas. É também ter a certeza que o corpo tem uma

intencionalidade regulada por ações internas e externas do ambiente.

De modo geral, o “esquema corporal” é formado por um conjunto de

sensações proprioceptivas e exteroceptivas no qual o corpo estaria apto para agir e

reagir a estímulos do meio externo (o ambiente) e não tem nenhuma referência ao “eu

corporal”.

Por outro lado, a “imagem corporal” está ligada a um fato mental com

intencionalidade, privacidade e representacionalidade, conforme afirma Costa (2004a).

Não obstante, é necessário saber “o que é” e “o que não é” uma “imagem

corporal”.

De acordo com Shontz (1974, p. 462) há três coisas eminentemente que

“imagem do corpo” “não é”: Primeiro, imagem corporal não é um “órgão corporal”,

mas uma integração entre um determinante fisiológico e psicológico; ele não é uma

estrutura nem neurológica nem mental, mas ambos. Segundo, a imagem corporal não é

uma imagem tal como uma fotografia, um diagrama, uma tatuagem ou um retrato de si

mesmo; uma adequada imagem corporal é necessária para o comportamento de muitos

tipos, tais como conversar ou andar. Por fim, a imagem corporal não é uma pessoa na

cabeça ou na mente, ou ainda uma entidade psicológica, tal como uma espécie de “ego

corporal”, colocando-se como um núcleo da personalidade.

O “ego corporal” organiza e media as relações corpo/comportamento,

interpretando sensações e ações. Segundo o autor, a idéia de um ego corporal parece

útil, mas carece de muitas limitações. A imagem do corpo tal como o ego corporal é

uma espécie de “fantasma na máquina”.

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Portanto, acreditamos que a melhor definição de imagem corporal seria

aquela defendida por Costa (2004a), qual seja, um fato mental com as qualidades de

intencionalidade, privacidade e representacionalidade. Para Costa (2004a, p. 59), a

imagem do corpo seria intencional porque implica obrigatoriamente na referência a um

outro que lhe é exterior solicitando ao sujeito a se representar. A imagem corporal seria

privada porque se refere à existência do eu, que lhe é própria, auto-referida, impessoal

tal qual um “self”, pois não existe imagem corporal sem um eu (self) que a reconheça

como sendo sua propriedade. Por fim, a imagem do corpo seria representacional,

segundo o autor, por ser composta de elementos descritivos necessitando de uma

competência lingüisticamente organizada, de modo reflexivo ou pré-reflexivo,

consciente ou inconsciente.

Abordar o tema da “imagem corporal” na contemporaneidade é acima de

tudo ressaltar a sua importância em duas perspectivas nitidamente distintas: por um

lado, a exploração das sensações corporais, as quais tem constituído as novas

identidades contemporâneas (bioidentidades), e por outro, os transtornos da percepção

da imagem do corpo.

No que compete ao primeiro campo, encontram-se não só o consumo

excessivo de drogas (lícitas ou ilícitas) bem como a exploração das modificações

corporais (Ortega, 2003, 2004). No segundo campo, encontram-se os distúrbios

alimentares (anorexia, bulimia entre outras), o fisiculturismo compulsivo, a compulsão

por correção estética cirúrgica, além das ansiedades de exposição (síndrome do pânico e

fobias sociais) (Costa, 2004a, 2004b; Ávila, 2004; Anzieu, 1989).

Há ainda um terceiro campo a ser explorado: a tecnologia médica, através

do escaneamento de imagens cerebrais, que forneceu à neurologia e às neurociências de

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modo geral subsídios para a compreensão de outros distúrbios de imagem corporal tais

como os membros fantasmas, anosognosia, somatofrenia ou ainda Síndrome de Capgras

(crença de que os parentes foram substituídos por outros). Essa perspectiva parte do

pressuposto que decorrente de cirurgias ou acidentes traumáticos no corpo ou em

determinadas regiões do cérebro responsável pela nossa percepção corporal, o indivíduo

perde parte da sua capacidade de se reconhecer em sua totalidade corporal, passando a

experimentar alguns fenômenos nunca antes experimentados, a não ser em estados

alterados de consciência.

Tanto em um como em outro, o “corpo físico” ou “corpo vivido” é

identificado como sede pulsional dos conflitos e sofrimentos psíquicos e sugere uma

intencionalidade física ou mental, na forma conferida por Costa (2004a, 2004b)1.

Antes, os distúrbios de imagem corporal se davam através de experiências

alucinógenas com uso de drogas lícitas ou ilícitas, de distúrbios alimentares ou das

diversas modalidades de mudanças corporais. Agora, com a tecnologia médica, pode-se

ver “in loco” todos os distúrbios cerebrais e correlacioná-los às disfunções de imagem

corporal. É como se a nossa interioridade passasse a ser “materializada” em imagens do

cérebro, e não mais precisássemos da representação física ou mental do nosso corpo.

Sem a representação mental ou física do nosso próprio corpo, não

conseguiríamos ter a noção de ipseidade no mundo. Mas esta noção só é possível

através da interação entre o “eu” e o “mundo”, entre o “meio interno” e o “meio

externo”, entre o “corpo” e a “mente” ou ainda entre o “corpo” e o “cérebro”.

Freud (1923) já afirmava que o primeiro ego é acima de tudo um “ego

corporal” limitado pelo nosso envelope corpóreo e para o ser humano, o corpo nunca é

1 A idéia de corpo físico deve ser entendido mais próximo do conceito de “corpo vivido” ressaltado por Merleau-Ponty e na forma conferida por Costa (2004).

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apenas biologia, estados fisiológicos, somáticos, neurológicos ou mentais. Para Freud, o

corpo é identidade e destino!

Desde o nascimento, para nos reconhecermos enquanto nós mesmos

necessitamos desenvolver uma imagem e um esquema corporal que são mediados pela

mente e pelas disposições neuronais do cérebro, reagindo a estímulos internos e

externos tais como fome ou dor, prazer ou desprazer.

Mas quando o esquema corporal entra em conflito com a “imagem

corporal”, podemos encontrar aquilo que denominamos de “distorções da imagem do

corpo”. A “distorção da imagem corporal” é um produto do choque entre o uso da

“representação da imagem do corpo” como imagem e o uso como “esquema corporal”,

tal como ressaltado por Costa (2004a, 2004b) e Campbell (1998), ou seja, quando o

ímpeto de afetar a intencionalidade do outro compromete a responsividade do corpo ou

a intenção de adaptação imediata do ambiente, logo, o ambiente torna-se um mundo de

necessidades e satisfações ao favorecer o surgimento da auto-referência corporal e a

identificação com os objetos presentes no ambiente.

Assim, a “auto-representação de si” e a “constituição da identidade do

sujeito” apela constantemente a um outro que o referencie. Porém, apelar para um outro

que o referencie pode desequilibrar, segundo Costa (2004a, 2004b), a economia da

satisfação do esquema corporal. É nesse sentido que se encontram as diversas

modalidades de distúrbios da imagem corporal na contemporaneidade.

Mas do modo como as tecnologias médicas vêm tratando o cérebro em sua

íntima relação com a identidade, surgiu uma nova figura no cenário contemporâneo,

qual seja, a transformação do cérebro como o astro rei da nossa corporeidade,

identificando nossa identidade com suas funções corticais e somato-sensoriais. Na

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contemporaneidade, são as neurociências que vêm despontando e mostrando as bases da

nossa subjetividade ou da nossa identidade pessoal.

De acordo com Alain Ehrenberg (2004) em seu famoso texto “O sujeito

cerebral”, com o advento das neurociências, há duas formas de ver o sujeito na

contemporaneidade: a primeira é aquela defendida por Jean Pierre Changeux, que

defende a idéia de um “homem neuronal”, uma noção que implica nas bases

materialistas e biológicas da identidade pessoal (Changeux, 1997). A segunda é

apontada por Gerald Edelman em seu livro “A biologia da consciência”, que defende o

ponto de vista das neurociências como a chave do processo de aprendizagem,

comportamentos sociais e disfunções neurológicas, portanto, a perspectiva de um

“homem cerebral” (Edelman, 2000).

Ehrenberg ainda ressalta que no campo das neurociências há de se distinguir

dois tipos de programas: um “programa forte” e um “programa fraco”. O programa forte

das neurociências evidencia três perspectivas: uma teórica, uma prática e outra social. A

perspectiva teórica é uma base de explicação exclusivamente materialista ao espírito a

partir do postulados de que o cérebro é o fundamento do espírito. A perspectiva prática

se dá através de uma fusão entre neurologia e psiquiatria – ela é eminentemente

profissional e terapêutica. A perspectiva social se situa entre as questões terapêuticas e

além delas de modo a fazer com que a linguagem das neurociências chegue à linguagem

popular (isso se dá através de um uso desmedido da linguagem das neurociências na

mídia, em jornais e revistas, ressaltando as propriedades do cérebro no campo religioso,

afetivo, somático, dos negócios, na educação, na terapêutica, etc.). O programa fraco,

por sua vez, visa apenas o progresso de doenças neurológicas e a descoberta de aspectos

neuropatológicos das doenças mentais. O primeiro programa trata de aliar o

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conhecimento do cérebro ao conhecimento de si mesmo no plano clínico, propondo uma

neurobiologia da identidade, o segundo detém-se unicamente no plano das doenças

neuropatológicas.

De acordo com o historiador Fernando Vidal (2005a, 2005b), o cérebro é o

único órgão do corpo que precisamos para ser nós mesmos, e se tornou o órgão

indispensável para a existência do nosso “eu”, refazendo a máxima descartiana, “penso,

logo existo”, para “tenho um cérebro, logo, sou!”. De acordo com Vidal, o cérebro

define a pessoa que nós somos como um “sujeito cerebral” (brainhood). Mas, como ele

mesmo tenta apontar, a idéia de que somos essencialmente nosso cérebro precede o

atual movimento das neurociências pelos filósofos da matéria e da identidade pessoal no

final do século XVII, a exemplo de John Locke.

A idéia de um “sujeito cerebral” decorre, segundo Vidal, da concepção de

“personhood” (personalidade, em inglês), ou seja, assim como a personalidade é a

qualidade ou condição de sermos uma pessoa individual, de sermos um sujeito,

“brainhood”, ou “sujeito cerebral”, é a qualidade ou condição de “ser um cérebro” e é

essa propriedade que o define. Por sua vez, a figura do sujeito cerebral foi determinada

pela influência da fisiologia galênica na psicologia do século XVIII (Vidal, 2005a,

2005b; Ehrenberg, 2004) e tem transformado o futuro das ciências médicas, a exemplo

das neurociências e da neurologia na contemporaneidade.

Nos últimos 30 anos, o que se tem visto foi um aumento considerável de

estudos e conhecimento sobre o cérebro, cuja interação com o mundo exterior é

fundamental, haja visto que não pode existir um cérebro sem um corpo, e esse corpo,

não pode existir sem uma relação com o ambiente. Assim, se a década de 90 do século

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passado foi considerada como a década do cérebro, o século XXI tenderá a ser, na visão

de Jean-Pierre Changeaux (2000), o século do cérebro!

Ora, é justamente por compreender o cérebro como o lugar da alma e o

órgão do self que alguns autores cada vez mais tem chamado atenção para essa

transformação.

As pesquisas atuais no campo das neurociências têm cada vez mais

reforçado a crença de que estamos reduzidos ao nosso cérebro. Nossa identidade

pessoal, aquilo que nos personaliza, aquilo que nos individualiza, é representado hoje

pela nova disciplina do século XXI como sendo a “ciência do cérebro” exposta nas mais

variadas ramificações: neuroética, neuromarketing, neuropsicánalise,

neurofenomenologia, neuroteologia, neuroasceses, entre outras, concebendo o sujeito

como sendo um “sujeito cerebral” (brainhood).2

O historiador das ciências do cérebro, Michael Hagner, tem apontado as

mudanças de perspectivas através da biografia cerebral de cientistas do século XIX, tais

como Kant, Schopenhauer entre outros, como uma decorrência dos estudos frenológicos

de Joseph Gall (Hagner, 2003), ao passo que tem enfatizado o sujeito cerebral como

sendo um “homo cerebralis”. Por outro lado, Jean-Pierre Changeaux (1997) tem

referido que esse mesmo “sujeito cerebral” pode muito bem ser compreendido como

sendo o “homem neuronal”, uma noção que implica nas bases materialistas da

identidade pessoal.

O materialismo é uma posição frente ao dualismo mente-corpo através da

recusa da idéia de que há duas substâncias no mundo e de que tudo o que há nele é

material. Ele é freqüentemente usado como sinônimo do fisicalismo tal como defendido

2 Para uma discussão sobre o tema remeto o leitor a Ehrenberg (2004), Vidal e Ortega (2004) e Vidal (2002; 2005a; 2005b).

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pela filosofia da mente, que afirma que tudo o que existe no mundo espaço-temporal é

físico. Quando associado ao reducionismo, diz respeito ao problema mente-corpo e à

teoria da identidade, que propõe que todo evento mental é idêntico a algum evento ou

estado no córtex cerebral, ou seja, na ontologia fisicalista, todos os estados mentais

internos, antes imateriais, passam a serem concebidos como materiais.

“O materialismo neural e fenomenológica do sujeito são conciliáveis se os descrevermos de modo a permitir a condição pretendida. (...) O materialismo nem significa congelamento do corpo em imagens neurais, nem seu confinamento em artefatos laboratoriais” (Costa, 2006, p. 19).

Para os defensores do fisicalismo, o problema que se coloca é definir estados

mentais e não mentais como estados cerebrais, transformando “o mental”, “o subjetivo”,

“o imaterial” em algo palpável, material, concreto, físico e composto de uma substância.

A subjetividade e a identidade de um sujeito, por conseqüência, não são compreendidas

como estados mentais, mas um construto físico encerrado nos dispositivos cerebrais. A

teoria da identidade por sua vez, apresenta-se sob duas versões para os adeptos do

materialismo: uma é a “teoria da identidade type-type” a qual diz que todo evento

mental tem seu correspondente físico e material no cérebro; a outra é a “teoria da

identidade token-token” a qual afirma que apesar de estados e acontecimentos mentais

serem físicos, eles não podem ser reduzidos a uma descrição fisicalista, eles precisam

ser investigados caso a caso.

A primeira teoria é defendida por Flannagan que afirma: quando todas as

relações de identidade mente-cérebro estiverem mapeadas, poderemos reformular

nossas leis psicológicas trocando o vocabulário mentalista pelo vocabulário fomentado

pela neurologia. A segunda teoria é defendida por Davidson que apresenta uma teoria da

identidade a partir do materialismo sem reducionismo (Bezerra Jr., 2000).3

3 Para uma discussão sobre o tema, ver também Ferreira (2000; 2006).

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De acordo com Costa (2006, p. 19)

“O reducionismo funciona razoavelmente bem quando se trata de mostrar a causa neural de ocorrências mentais simples e pontuais. (...) O “como é ser” algo ou alguém – o “what is like to be” de Thomas Nagel – não é passível de redução heterofenomenológica. Até o presente, nem dispomos de um dicionário neutro capaz de estabelecer relações de sinonímia satisfatória entre a linguagem dos fatos neurais e a dos fatos mentais, nem de equipamento tecnológico que possam validar empiricamente tal possibilidade”.

A partir dessa perspectiva, caberia aqui questionar: Qual a relação entre a

mente e o corpo, entre a mente e o cérebro, entre o estado objetivo e o estado subjetivo?

Como concatenar as experiências internas e externas, sem deixar de lado o que é

propriamente humano na experiência, ou seja, seu caráter subjetivo? De que maneira os

estudos neurológicos têm compreendido a formação da “imagem corporal” e do “eu” na

formação da identidade e de que forma suas análises podem contribuir no trabalho

clínico de diversas modalidades psis na contemporaneidade?

Nosso percurso retoma, então, os trabalhos desenvolvidos por três

eminentes neurologistas na contemporaneidade, a saber, V. S. Ramachandran, Oliver

Sacks e António Damásio, cada um deles, expostos em capítulos nessa dissertação.

No primeiro capítulo, buscar-se-á as origens da imagem corporal a partir dos

relatos clínicos e teóricos do neurologista indiano V. S. Ramachandran.

Ramachandran se deteve no estudo sobre os famosos “membros fantasmas”,

buscando compreender como a formação da imagem corporal se dava no cérebro a

partir da idéia de um “mapa cerebral”. Toda sua compreensão acerca da nossa

subjetividade, da nossa imagem corporal, da nossa personalidade e da identidade

pessoal, se dá a partir de um registro de um mapa corporal no nosso córtex cerebral não

necessariamente delimitados tal qual nossa anatomia.

Em um primeiro momento, busco resgatar brevemente a origem histórica do

fenômeno dos membros fantasmas e sua relação com os distúrbios da imagem corporal.

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Posteriormente, busco explicar o fenômeno através de dois relatos clínicos em sua

relação com a construção da imagem do corpo a partir do “homúnculo de Penfield”,

para, logo em seguida, reforçar as teses do autor sobre a construção da imagem do

corpo. Nesse sentido, o que se procurará discutir é a tese da “plasticidade neuronal” ou

“neural” do cérebro se adaptar às modificações da imagem do corpo.

No segundo capítulo, retomo as análises de Oliver Sacks a partir de uma

neuro-fenomenologia do “eu”, na qual busca suporte teórico em alguns conceitos da

fenomenologia e da neurologia para a construção da imagem do corpo. Sacks, como

poderá se verificar, não despreza nem a construção da imagem do corpo a partir de uma

representação deste no cérebro, nem muito menos a partir de conexões neuronais tal

como defende Damásio, porém propõe que não se despreze a interação do corpo com o

ambiente e a percepção deste no cérebro a partir de um ponto de vista fenomenológico

ou neuro-fenomenológico.

Por fim, retomo as teses de António Damásio sobre a construção da imagem

do corpo e do eu, ressaltando suas análises sobre a neuro-anatomia das emoções e dos

sentimentos em sua relação com a corporeidade, para, por fim, apontar suas teses acerca

da neurobiologia da subjetividade, da imagem do corpo e da identidade presentes em

suas teorias.

Sabemos que nenhuma disciplina pode se pretende a tratar o sofrimento

psíquico isolando-se no tempo e no espaço em seu campo de atuação e a demanda

clínica tem requerido constantemente uma resposta diante da cultura somática. Assim, o

objetivo do presente trabalho é não só explicitar as principais teses desses autores no

que compete ao tema proposto, bem como ressaltar sua importância na atualidade no

que confere à clínica e dos estudos dos distúrbios da imagem do corpo e do eu.

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Por que mostrar essas abordagens e sua correlação? Ora, de acordo com

nossas preposições, mostrar essas abordagens torna-se necessário primeiramente para

que possamos sair de uma abordagem reducionista ou localizacionista, fomentado pelas

disciplinas médicas que tem ganho notoriedade nos últimos anos; segundo, para novas

metáforas ou narrativas da mente possíveis no campo clínico dos distúrbios da imagem

do corpo, concebendo-o como um sintoma contemporâneo,e por fim, para mostrar o

ônus teórico que se encontra em cada uma dessas disciplinas.

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CAPÍTULO 1

RAMACHANDRAN E OS FANTASMAS DO CORPO

“Uma brisa no coto é sentida como uma brisa no fantasma”

William James A consciência do membro perdido

Os distúrbios da imagem do corpo, na forma conferida pelo fenômeno dos

"membros fantasmas" tomaram grande parte dos estudos do neurologista indiano

radicado nos Estados Unidos V. S. Ramachandran.

A percepção dos membros fantasmas, em muitos dos seus pacientes, lhe

permitiu compreender como a imagem corporal estava diretamente relacionada à perda

do sentido de "eu" e da “individualidade” do sujeito. Além disso, o estudo dos membros

fantasmas deu a ele a possibilidade de entender como o cérebro é responsável pela

construção da imagem corporal.

Tomados coletivamente, o trabalho com cérebros humanos e animais deu

uma valiosa oportunidade experimental às suas pesquisas:

“Investigar não apenas como novas conexões emergem no cérebro adulto humano, como também quais informações de diferentes módulos sensoriais, como toque, propriocepção e visão interagem. O estudo de membros fantasmas também deu uma oportunidade de entender exatamente como o cérebro humano constrói a imagem do corpo e como essa imagem é continuamente atualizada em respostas às mudanças sensoriais” (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604).

A partir dessa perspectiva, Ramachandran buscou encontrar uma intrínseca

relação entre as questões subjetivas que nos cerca e uma espécie de gênese ontogênica

da imagem corporal através de investigações neurológicas. Para ele, o cérebro nada

mais é do que o lugar da “interioridade”, do “eu”, do “self” ou ainda da

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“individualidade” do sujeito, reforçando a perspectiva contemporânea de descrição de

do sujeito e da subjetividade a partir do cérebro (Ramachandran, 2004, p. 25).

As diversas síndromes analisadas pelo autor ilustram princípios

fundamentais de como a mente e o cérebro humano normais funcionam, podendo lançar

luz sobre a natureza da imagem do corpo, da linguagem, do riso, dos sonhos, da

depressão, entre outros, fenômenos esses que são eminentemente estudados através de

teorias fenomenológicas ou psicológicas do sujeito4.

Para Ramachandran, entender essas diversas síndromes nada mais é do que

resolver “o mistério de como várias partes do cérebro criam uma representação útil do

mundo externo e geram a ilusão de um ‘eu’, uma individualidade, que resiste no espaço

e no tempo” (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 35). Não é apenas entender como o

cérebro trabalha, mas segundo o autor, esse estudo pode ajudar a compreender e tratar

disfunções neurológicas tais como as disfunções de imagem corporal (anorexia nervosa,

apraxia, distonia focal, etc. 5) (Ramachandran et all., 1996).

Seu trabalho através de testes psicofísicos e estudos de imagem funcional em

pacientes com membros fantasmas lhe deu três oportunidades únicas: primeiro

demonstrou uma “plasticidade neural” em cérebros humanos adultos nunca antes vista,

a não ser com advento da tecnologia de imageamento do cérebro. Segundo, a partir das 4 De acordo com Berlucchi & Aglioti (1997, p. 560), lesões cerebrais podem afetar profundamente a forma como o corpo é percebido e representado, e em alguns casos, podem ser percebidos como desordem do domínio cognitivo, tais como a linguagem ou atenção espacial. As lesões da consciência do corpo (autotopagnosia – incapacidade de reconhecer e localizar as diversas partes do corpo, é provocada por lesão orgânica cerebral e também denominada de agnosia da imagem do corpo; agnosia do dedo e desorientação espacial esquerda-direita), em sua grande maioria, são causadas por lesões na parte posterior esquerda do lobo parietal. Outros distúrbios podem afetar alterações específicas do esquema corporal. 5 Anorexia nervosa, como sabemos, é um distúrbio alimentar associado à imagem do corpo na qual o sujeito não se reconhece como magro e se recusa a alimentar-se, causando perda de massa corpórea, podendo em casos graves, levar à morte. Apraxia refere-se à incapacidade de executar movimentos apropriados a um determinado objetivo do corpo, desde que não haja paralisia ou outros distúrbios corporais, sejam eles sensitivos ou motores. Já a distonia focal, também conhecida como “câimbra do escrivão”, está relacionada mais ao ato de escrever, mas pode ser caracterizada por contrações musculares involuntárias desencadeadas por determinados movimentos manuais – escrever, tocar piano, digitar, etc.

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impressões das mudanças perceptuais (tais como as “sensações referidas”) e as

mudanças na topografia cortical em pacientes, foi possível começar a explorar como a

atividade dos mapas sensoriais tem aumentado a experiência consciente. Finalmente, os

membros fantasmas também ajudaram a explorar os efeitos intersensoriais e o modo

como o cérebro constrói e atualiza a “imagem do corpo” ao longo da vida

(Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000, p. 317), sobretudo reforçando e

reiterando a teoria de que há no cortex cerebral um completo mapa corporal sem o qual,

o sujeito não teria como reconhecer partes do seu corpo.

Neste capítulo, abordarei as principais teses de Ramachandran sobre a

construção da imagem do corpo, da interioridade e do “self” (eu), a partir do fenômeno

dos membros fantasmas, e daquilo que ele reforçou como sendo a “plasticidade

neuronal”.

1.1. Os primórdios dos “membros fantasmas”

Historicamente o fenômeno do membro fantasma é conhecido desde a

antiguidade, mas a primeira percepção deste, na literatura médica, foi observada no

século XVI pelo cirurgião francês Ambroise Pare, a partir da perda do braço direito de

um combatente em guerra, levando a crer que a sensação do “fantasma” seria a prova

mais do que definitiva da existência da “alma humana” no nosso corpo pois, se um

braço pode existir mesmo após ter sido retirado, por que a pessoa inteira não poderia

sobreviver à aniquilação física do corpo? Não seria esta a prova definitiva de que o

"espírito" continuava existindo muito tempo após de ter se livrado de sua carcaça?

(Ramachandran, 2004; Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000).

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Outra prova pôde ser encontrada através dos relatos de Lord Nelson, que

após ter perdido um braço durante um ataque a Santa Cruz de Tenerife, experienciou

dor no membro fantasma, incluindo uma estranha sensação de dedos tateando a palma

da sua mão. A emergência dessas sensações levou o Lord Nelson a proclamar que ele

tinha a prova direta da existência da alma, pois, mais uma vez, se um braço pode resistir

fisicamente à sua aniquilação, porque não toda a pessoa?

Não obstante, a primeira descrição clínica do membro fantasma foi feita por

Silas Weir Mitchell em um artigo “Injuries of Nerves and Their Consequences” em

1872. A palavra “membro fantasma” foi introduzida por Weir Mitchell ao verificar a

experiência do membro perdido em alguns pacientes que tiveram uma extremidade

amputada como ainda estando presente no corpo e, em alguns casos, também

experienciaram dor ou câimbras6. O termo também é usado para designar uma

associação entre a posição perdida do membro e sua atual posição, tais como ocorre

durante uma obstrução espinhal ou do “plexo braquial”7. É importante notar que em

todos esses casos os pacientes reconhecem que as sensações não são verídicas, eles

experimentam uma ilusão e não um engano (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604).

Já em março de 1887, portanto, quinze anos depois de Mitchell, William

James também publicava um artigo científico intitulado “The Consciousness of Lost

Limbs” no periódico “Proceeding of the American Society for Psychical Research”,

reafirmando a demanda da existência de membros fantasmas e fazendo algumas

observações e críticas ao trabalho de Weir Mitchell.

6 A “descoberta” dos membros fantasmas, para Oliver Sacks, está diretamente relacionada com o campo da neurologia na virada do século enquanto ciência médica. Segundo o autor, Weir Mithell registrou vários episódios de “membros fantasmas” após a Guerra Civil Norte-Americana durante a década de 1860, mas na virada do século, as descrições dos membros fantasmas tornaram-se raras, visto que não havia lugar para esse fenômeno no campo da neurologia. Conforme Sacks (2003). 7 Conjunto de nervos que saem da medula espinhal e cujas raízes dão origem ao tronco superior, ou seja, são os nervos responsáveis pelo movimento e sensibilidade das mãos, dos braços e dos dedos.

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Segundo James, as principais questões que se precisava pontuar era a de que

(1) alguns pacientes preservam a consciência do membro depois de tê-lo perdido, outros

não; (2) em alguns casos, a sensação sempre aparece em uma posição fixa, em outros,

sua aparente posição muda e, por fim, (3), a posição pode mudar de acordo com algum

esforço ou a própria vontade do sujeito, mas em outros casos, nenhum esforço ou

vontade pode fazer esta mudança; em raríssimos casos o desejo de mudar pareceria cada

vez mais impossível. Porém, a consciência do membro perdido varia de acordo com

“a dor, picada, coceira, queimação, câimbra, preocupação, topor, etc., no calcanhar ou em outro lugar, sentidos que são duramente perceptíveis, ou que se tornaram perceptíveis apenas depois de se pensar sobre ele. O sentimento não está presente na condição do “coto”, e “cotos saudáveis” e “dolorosos” podem estar presentes ou ausentes” (James,1897, p. 250).

Até mesmo Descartes em “Os Princípios da Filosofia” fizera referência ao

fenômeno, ressaltando o dualismo “mente-corpo”. De acordo com o autor, algumas

vezes algumas doenças podem afetar o cérebro fazendo-nos perder o sentido de algumas

partes do corpo através da obstrução de um nervo que conecta o cérebro ao corpo.

Descartes chega até mesmo a fazer referências, de acordo com Leder (1990), às

sensações de dor na mão e no braço de uma garota que tivera o membro amputado.

Mas a neurologia só veio dar mais alguns passos adiante após a década de

1930, sobretudo na União Soviética, com os estudos de A. R. Lúria, com a criação da

“neuropsicologia” (Sacks, 1997, 2003) 8.

Não obstante, os estudos contemporâneos dos membros fantasmas têm se

dado sistematicamente desde os primeiros anos da década de 90 através de achados

8 Oliver Sacks refere-se às pesquisas desenvolvidas por Luria e colaboradores através da investigação dos hemisférios cerebrais, que resultou nos livros “The man with a shattered world” e “Higher cortical functions in man”, referidos por ele no seu livro “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (Sacks, 1997).

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científicos que comprovam mudanças nos mapas somatópicos do cérebro

(Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000).

Ora, a neurologia clínica tem sido uma ciência mais descritiva do que

experimental. Ela caminhou alguns passos a mais após os estudos desses “fantasmas” e

pôde corroborar (ou não) alguns pressupostos entre o dualismo mente-corpo/mente-

cérebro, reforçados nos últimos anos pelos estudos das neurociências e pelas técnicas de

imageamento do cérebro.

Para tanto, o ponto básico estava na investigação da relação entre a anatomia

do cérebro com várias partes do corpo distribuídos e mapeados no córtex cerebral, pelo

grande revestimento convoluto da superfície externa do cérebro (Ramachandran &

Blakeslee, 2004, p. 51).

A ressurgência dos estudos sobre os “fantasmas no corpo” ou “membros

fantasmas” só vieram a tomar forma a partir dos experimentos laboratoriais os quais

possibilitaram mostrar como os mapas sensórios motores poderiam mudar no córtex

cerebral.

1.2. O fenômeno dos membros fantasmas

Um membro fantasma, como sabemos, surge após a secção de um membro

do corpo: pernas, pés, mãos, braços, dedos, ou ainda órgãos internos, e persistirá na

mente de um sujeito mesmo depois de removido, possivelmente porque a mente não

aceita a perda de um desses membros, remodelando ou reconfigurando, estruturando ou

reestruturando a imagem do corpo de acordo com uma nova realidade corporal,

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conformando assim, o que se chamamos de “membros fantasmas”9.

Embora “fantasmas” sejam mais comumente relatados depois da amputação

de um braço ou perna, também tem havido relatos na ocorrência de extração de uma

mama, partes do rosto ou em vísceras. Por exemplo, alguém pode ter sensação de

movimento do intestino, de flatulência depois de uma completa remoção do cólum

sigmóide e reto, e ainda dores de úlcera fantasma após gastrectomia parcial

(Ramachandran & Hirstein, 1998). Também tem sido notada ereções ou orgasmos em

“pênis fantasmas” tanto em paraplégicos quanto em pacientes que tiveram o membro

removido cirurgicamente; ainda tem sido notado pacientes com cólicas de menstruação

fantasma depois da histerectomia (retirada do útero).

Mas para estudar pessoas que dizem experimentar o membro fantasma, é

necessário distinguir três tipos diferentes de “fantasmas”: o primeiro é a falsa

experiência do “fantasma” – neste caso, as pessoas têm consciência de que o membro

fantasma não existe e estão experimentando uma “alucinação”, como se o cérebro

“pregasse uma peça” na consciência do paciente. A segunda é a sensação do membro

fantasma propriamente dito, mas os sujeitos não possuem domínio sobre ele – o cérebro

não reconhece que a imagem corporal mudou e o membro tem autonomia sobre o corpo

do sujeito, ou seja, o membro fantasma ganha vida própria, pode segurar um objeto com

as mãos ou os dedos das mãos, fazer gestos ou afagar um animal ou um ente querido.

Por fim os fenômenos decorrentes do membro fantasma – coceira, câimbra e, sobretudo,

dor fantasma-, que torna a experiência quase que insuportável para quem as sente.

9 Um bom exemplo disso pode ser extraído da literatura, do livro “Johnny vai à guerra”, no qual o personagem título, após sofrer um grave acidente no campo de batalha, perde os membros superiores e inferiores. Em seu drama, ele passa pela experiência dos “membros fantasmas”: "De repente fez uma coisa curiosa que há meses não fazia. Começou a estender a mão direita para apanhar a coisa pesada que haviam pendurado nele e pareceu que quase a tinha agarrado com os dedos até que compreendeu que não tinha braço a esticar nem dedos para pegar" (Trumbo, 2003, p. 151).

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Tomo de exemplo o caso de Tom Sorenson, relatado por Ramachandran &

Blackslee (2004) em seu livro “Fantasmas no cérebro”. Tom é um jovem de 17 anos,

que perdera o braço esquerdo logo abaixo do cotovelo em um acidente de carro. Alguns

meses depois, Tom ainda tinha a nítida sensação do braço, podendo mexer os dedos

ausentes ou estender o braço ausente para pegar objetos ao alcance da mão, ações que

não dependiam da vontade dele.

De acordo com Ramachandran, “a impressão de que o braço perdido ainda

estava ali é um exemplo clássico de membro fantasma – um braço ou uma perna que

subsiste indefinidamente na mente do paciente muito tempo depois de ter sido perdido

num acidente ou amputado por um cirurgião” (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p.

48).

Algum tempo depois, Tom passa a sentir dores no braço fantasma e este é

um dos mais sérios problemas a ser tratado: como aliviar a dor de um membro que não

existe? Não seria este um momento para compreender como o cérebro nega a falta do

membro perdido persistindo na mente do indivíduo? 10

Como isso ocorre? De acordo com Ramachandran, isto se daria de três

formas: na primeira, o cérebro não aceita a perda do membro e leva algum tempo para

adaptar-se à nova imagem do corpo. Esta seria, portanto, uma prova de que a construção

da imagem do corpo estaria de algum modo “projetado” no córtex cerebral. No

segundo, os nervos seccionados na altura do coto (parte onde foi amputado o membro)

passam a enviar sinais e alimentar sensorialmente o cérebro através de impulsos. Essa

idéia é defendida por muitos neurologistas, mas não por Ramachandran. Por fim, a

10 Muitos outros relatos na literatura médica reforçam que as experiências do “fantasma” pode se dar no campo dos órgãos do sentido (visual, auditivo ou olfativo). Porém, os fenômenos que mais chamam a atenção é o fenômeno da “dor fantasma” provocada por movimento do membro ausente. Conforme Berlucchi & Aglioti (1997).

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imagem do corpo seria determinada através dos nossos genes que vão se moldando ao

longo da vida, podendo ser modificado pela experiência pessoal e seria o responsável

pela sensação do “fantasma”.

Ramachandran, desconfiando da segunda hipótese e aceitando esta última,

passa a investigar os fenômenos dos “membros fantasmas” buscando uma correlação

direta com a construção da imagem do corpo no cérebro.

Para tanto, o autor vai retomar a representação da imagem e superfície do

corpo no córtex cerebral humano a partir das descobertas de Wilder Penfield, que

cunhou e denominou o termo “homúnculo de Penfield” (figura 1).

Figura 1: Homúnculo de Penfield

O “homúnculo de Penfield” é uma representação artística de como diferentes

pontos da superfície do corpo estão “mapeados” nos dois hemisférios do cérebro,

algumas vezes, através de traços deformados para indicar que tais partes do corpo têm

localização específica em alguma das regiões. A idéia é que o cérebro corresponde a um

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mapa genérico de várias partes do nosso corpo sendo o homúnculo, portanto, um mapa

neural, desafiando as bases materialistas da ciência.

O mapa cerebral representado pelo “homúnculo” reflete a capacidade que o

cérebro possui de discriminação sensorial e sua importância motriz referente a cada uma

das partes de nosso corpo visto que ele está distribuído ao longo de todo o córtex

cerebral nos dois hemisférios. A ocorrência de um membro fantasma ilustra portanto, a

capacidade do cérebro de perceber, agir e gerenciar cognitivamente a imagem do corpo,

visto que ele é uma máquina sensóriomotora, ou seja, possui a função de discernir os

estímulos das respostas, de decidir, tomar decisões e etc., cuja representação corporal se

prolonga por toda a sua superfície em ambos os hemisférios.11

De acordo com Ramachandran (1994, 1998, 2004), o “mapa” foi construído

a partir de experimentos feitos com seres humanos durante cirurgias realizadas pelo

canadense Wilder Penfield. Nessas cirurgias o cérebro de alguns sujeitos fica exposto

sob anestesia local e determinadas regiões do cérebro eram estimuladas por Penfield

com um eletrodo que lhes perguntava o que sentiam. O resultado era a produção de

imagens, sensações corpóreas ou lembranças e memórias. A partir disto, várias áreas do

cérebro puderam ser correlacionadas com partes do corpo.

É interessante notar que diferentes áreas do corpo representadas no

“Homúnculo de Penfield” estão muitos próximas uma das outras, muito embora elas

correspondam a superfícies diametralmente opostas ao corpo humano. Assim, o tronco

11 Recentes avanços feitos por neuroimageamento do cérebro MEG (magnetoencefalograma) tem sido possível com o advento da grande formação de magnômetros e com a compreensão da física e da matemática das medidas da atividade elétrico-cortical. Esses avanços têm seguido por uma pequena localização de menos de 3mm de processamento, e tem se obtido um detalhoso mapa sensório-somático dos mapas das mãos, face, e de muitas outras partes do corpo. Ele se baseia no princípio de que, se você tocar diferentes partes do corpo, a atividade elétrica localizada no mapa de Penfield pode ser medida como mudança em campos magnéticos do couro cabeludo. Com o MEG é possível mapear toda a superfície do cérebro de qualquer pessoa e há poucas variações de pessoa para pessoa (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 98).

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encontra-se próximo à mão e ao polegar, que por sua vez encontra-se próximo à área da

face, seguido da área dos dentes, língua, faringe e do abdômen, do mesmo modo como o

pé encontra-se próximo aos órgãos genitais, ao passo que os lábios e a face encontram-

se próximas às áreas dos dedos da mão no hemisfério direito do cérebro.

Tomemos um exemplo: o caso é conhecido pela maioria dos comentadores

de Ramachandran. Um de seus pacientes relatou a presença de um membro fantasma em

sua perna esquerda, relatando que, a cada experiência sexual, sentia ereções e orgasmos

no pé fantasma. De acordo com a correspondência do Homúnculo de Penfield, a região

da sexualidade fica próxima à região da mão representada no cérebro, o que levou a

Ramachandran confirmar suas hipóteses de que, haveria um remapeamento no cérebro

de determinadas partes do corpo. "Se uma pessoa perde uma perna e depois é

estimulado os órgãos sexuais, experimentará sensações na perna fantasma"

(Ramachandran, 2004, p. 64). De acordo com Ramachandran, caberia perguntar se essa

não deveria ser a prova mais do que irrefutável da qual pontuou a psicanálise desde

Freud, da existência dos fetiches por pés? Pode-se notar aqui uma correlação direta feita

pelo neurologista entre o cérebro e as bases neurológicas da subjetividade. Por outro

lado, a discussão de Freud acerca sobre o “fetichismo” e particularmente o “fetichismo

pelo pé como substituto do pênis” passa ao largo das considerações feitas por

Ramachandran. Para maiores considerações sobre o tema, remeto o leitor a Freud

(1927)

A não correspondência linear dos membros do corpo humano encontrados no

mapa cortical identificado por Penfield chama a nossa atenção pelas conclusões do

neurologista indiano. Na verdade sua preocupação é demonstrar as bases neurológicas

da imagem corporal no cérebro humano para compreender a nossa subjetividade.

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Apoiado em pesquisas e estudos neurológicos e clínicos, ele defende a hipótese de que

nossa subjetividade é pautada numa construção da imagem do corpo através de mapas

sensóriomotores no córtex cerebral, conforme demonstrado pelo homúnculo, ou em

bases genéticas determinados hereditariamente.

De que maneira isso ocorre? Ora, de acordo com o autor, um membro

fantasma é possível ser percebido instantes depois da perda do membro. Relatos

médicos demonstram que entre 90 e 98% das pessoas vivenciam o membro fantasma

após a perda de alguma parte do corpo, principalmente se houver dor local antes da

cirurgia ou se a perda se der de modo traumático.

Os fantasmas são vistos com menos incidência em crianças muitos novas.

Talvez porque elas ainda não tenham construído totalmente uma imagem concreta do

corpo. Daí, portanto Simmel (1962) relatar que os membros fantasmas foram

encontrados na ordem de 20% em crianças amputadas com dois anos de idade, em 25%

de crianças entre a 4 anos e em 61% em crianças entre os 4 a 6 anos de idade, e em

75% em crianças entre 6 e 8 anos de idade, e em 100% com crianças acima dos 8 anos

de idade.

Não obstante, de acordo com Ramachandran, membros fantasmas podem ser

encontrados ainda em pessoas que nasceram sem membros. "A ocorrência de fantasmas

em pessoas que nasceram sem membros obviamente não pode ser devido a um

neuroma, e sugere que a representação central do membro sobrevive depois da

amputação e é grandemente responsável pela ilusão do fantasma" (Ramachandran,

1998, p. 1604).

O exemplo referido pelo autor, através de uma de suas pacientes, ilustra

algumas de suas hipóteses: Mirabelle Kumar é indiana, tem 25 anos e nascera sem

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braços. Possui apenas dois cotos pendentes na altura dos ombros cuja análise

radiográfica demonstrou que eles continham a cabeça do úmero ou osso da parte

posterior do braço, mas não havia sinais do osso rádio ou ulna (osso que forma o

antebraço). Não obstante, Mirabelle possuía sinais rudimentares de unhas, mas não

havia sinais de ossos da mão. Apesar dela usar próteses para os braços menores do que a

maioria dos pacientes, ela dizia sentir seus braços fantasmas. As próteses dos braços

eram menores do que o necessário, segundo ela, porque seus “braços fantasmas”

precisavam se ajustar perfeitamente na prótese, como se fossem luvas. Ao caminhar, a

paciente referiu não balançar os braços como a maioria das pessoas, pois seus “braços

fantasmas” ficavam congelados e junto ao corpo, porém, ao falar, eles gesticulavam

como os braços de qualquer outra pessoa12.

Para Ramachandran, seria fácil explicar porque isso aconteceria, caso a

paciente houvesse perdido os braços depois da infância, visto que o cérebro dela teria

registrado os movimentos da coordenação do corpo e movimento dos braços, dado que

existiria um feedback dos sinais motores para o cérebro. Mas no caso de Mirabelle, as

áreas sensoriais nunca receberam esse feedback. Em sua concepção, membros

fantasmas nascem de uma complexa interação entre fatores não-genéticos como

remapeamento ou neuromas no coto, e a representação da “imagem corporal” congênita

12 António Damásio também se refere à redução dos membros fantasmas ao longo do tempo. Segundo ele, alguns indivíduos que sofrem a amputação do membro e sentem o “fantasma”, relatam que o tamanho do membro varia com o tempo. De acordo com Damásio, essa sensação de redução do membro fantasma está intimamente ligada à memória do membro perdido. “É obvio que esses doentes possuem uma memória do seu membro, ou não seriam capazes de formar uma imagem dele em suas mentes. No entanto, com o tempo, alguns doentes podem experienciar uma redução do membro fantasma, o que, aparentemente indica que a memória – ou sua reprodução na consciência – é passível de revisão” (DAMÁSIO, 1996, p. 141).

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geneticamente especificada para os seres humanos, cuja interação entre a imagem do

corpo e a visão é de vital importância13.

Atentem para este detalhe: em um momento, a imagem corporal é explicada

pela localização de um mapa corporal no cérebro; em um segundo momento,

Ramachandran aponta um “feedback visual” das áreas sensoriais enviadas para o

cérebro e deste, para o membro amputado; no momento seguinte ele afirma a

necessidade da visão para o reconhecimento da imagem corporal.

Ao afirmar que o conjunto de circuitos nervosos para a imagem corporal de

uma paciente devia ter sido estabelecido parcialmente pelos seus genes e não ser

estritamente dependente da experiência motora ou tátil ou ainda pela experiência

adquirida, ele revela o quão dependente estaria de um certo “fisicalismo” ao afirmar que

“cada um de nós tem uma imagem que pode sobreviver indefinidamente, mesmo em

face de informações contraditórias dos sentidos" (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p.

72), ou seja, se a sensação do fantasma existe em alguém que nascera sem os membros,

algum fator determinante deveria existir. Segundo o autor, os membros nascem

13 Gallagher (et all.) (1998) aponta para a hipótese genética de Ramachandran ao investigar a presença de membros fantasmas em crianças recém nascidas. Para eles, um grande número de estudos tem sugerido a existência de membros fantasmas em sujeitos que sofreram ausência congênita de membros, evidenciados pelo esquema corporal inato. Os “fantasmas aplásicos” (aplasic phanton), isto é, a presença de membros fantasmas desde o nascimento, foi encontrada em 17% em 30 casos estudados e indica um dos aspectos do esquema e da imagem corporal. Há duas hipóteses para a ocorrência desses fantasmas: a primeira diz que os “fantasmas aplásicos” são baseados na existência de um circuito neural específico associado com esquemas motores inatos aos membros, como a matriz neural (neuromatrix). A segunda defende a idéia de que os “fantasmas aplásicos” são modificados por um mecanismo que envolve a reorganização de representações neurais do membro perdido com uma complexa rede envolvendo estruturas corticais e subcorticais, as quais Ramachandran denominou de “plasticidade neural ou cortical”. De acordo com os autores “se na aplasia, o próprio braço não se desenvolve, as representações correspondentes ao desenvolvimento neural não são reforçadas pelo movimento ou pela experiência tátil que eles necessitam para o seu desenvolvimento normal e completo. Na falta de um reforço experimental, eles deterioram em alguns graus e são deslocados ou dominados por neurônios vizinhos, estímulos que podem gerar a experiência do membro fantasma. [...] A primeira hipótese faz referência às representações neurais e a rede nos córtexes pré-frontal, pré-motor e motores, tanto quanto em estruturas sub-corticais, e indica um esquema motor inato [grifos nossos]. Isso explica o papel de esquemas motores específicos (...) na formação do membro-fantasma. (...) A segunda hipótese, que faz referência à reorganização neural, expressa mais drasticamente as mudanças no córtex somatosensorial, mas provavelmente é uma parte dela ou envolve a mais estendida matriz neural, correspondente aos aspectos da experiência fantasma associada com a imagem do corpo” (Gallagher, et all., 1998, p. 59-63).

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principalmente de fatores não-genéticos, através do remapeamento da imagem corporal

e interagindo diretamente no espectro da imagem corporal através dos genes, mas

fundamenta, ainda que muito rapidamente, a necessidade da visão para que essa

interação entre as bases genéticas da imagem do corpo se cristalize no cérebro.

Para Ramachandran não basta apenas uma base genética na construção da

imagem do corpo, ainda há a necessidade de um dispositivo que dispare e predisponha

os genes para agir: o campo visual.

Mas, se assim o fosse, como reconhecer que este ou aquele membro é um

braço, uma perna, um dedo da mão ou do pé? Haveria então, uma codificação genética

do nosso corpo encerrado em nosso cérebro, formatada tal qual um disco rígido, para

que passássemos a dizer que tal e qual parte do corpo é um braço ou uma perna senão

pelo reconhecimento do nosso corpo através da linguagem? E quem seria o responsável

por nos fazer reconhecer nosso corpo? Nossos genes? Nossos neurônios? Nosso

cérebro?

Caminhemos um pouco mais: o autor, através do exemplo de Mirabelle, nos

diz que ela não poderia ter construído as imagens dos seus braços no cérebro desde a

infância porque ela não havia “vivido a experiência de ter braços”, portanto, haveria

apenas uma provisão visual para que essas referências passassem a existir. O

neurologista, porém, não caminha a passos largos, e deixa de investigar, por exemplos,

outros pacientes que nasceram sem braços e ao mesmo tempo não teria a visão como

área de registro da imagem corporal. 14

14 Não encontrei, na literatura pesquisada, nenhum dado referente a pacientes com deficiência visual e com membros fantasmas nem desde o nascimento, nem que tenham perdido algum membro após a perda da visão. Se a incidência de membros fantasmas fosse a mesma em pacientes cegos, caberia questionar se não haveria de fato uma correlação direta entre uma base genética da percepção do membro fantasma e a construção da imagem do corpo. Em nenhum momento, Ramachandran questiona a aquisição do membro fantasmas através da interação com o meio em pacientes que nasceram sem membros.

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Para estas e outras questões, Ramachandran afirma haver uma espécie de

“plasticidade neuronal”, “plasticidade cortical” ou ainda “plasticidade neural” no

cérebro, de modo que este pode se readaptar às mudanças sofridas pela imagem do

próprio corpo, dado a maleabilidade que o cérebro possui em se reorganizar

(Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000; Ramachandran & Hirstein, 1998;

Ramachandran et all., 1996; Ramachandran, 1994; Northoff, 2001; Xerri, 2003). Essa

tese é defendida por outros autores, os quais afirmam que a representação cortical do

membro sofre alteração após a amputação de modo que o cérebro aprende a lidar com a

nova imagem do corpo devido a uma reorganização da rede neuronal15. Notem que esse

padrão de mudanças perceptivas da imagem do corpo segue a linha de pensamento de

Ramachandran quando este retoma o mapa de Penfield para demonstrar os rearranjos

neuronais ou corticais com a imagem do corpo (Northoff, 2001; Knecht et all., 1998;

Melzack, 1989; Lackner, 1988; Xerri, 2003).

Quando alguém perde uma perna, uma mão ou um braço, as mensagens do

córtex motor na parte frontal do cérebro continuam a enviar sinais para os músculos do

membro ausente. Posteriormente, uma parte do cérebro que controla os movimentos

“não sabe” que o membro se foi. Muito provavelmente esses comandos do movimento

15 Paqueron (2003) e colaboradores também investigaram a capacidade que o cérebro tem de se readaptar às mudanças no corpo a partir do evento dos “membros fantasmas”. Para eles, pacientes com lesões no nervo periférico ou no “cordão espinhal” (spinal cord) freqüentemente relatam distorções relativas à posição, forma, textura ou temperatura do corpo das áreas afetadas. Seu estudo sobre a fenomenologia das distorções da imagem do corpo induzida por anestesia regional mostrou que a percepção e consciência da imagem do corpo é construída por diferentes “modelos plásticos” na tentativa do cérebro em se readaptar às mudanças ocorridas no corpo, assim como sublinhou a contribuição da atividade aferente periférica para sustentar e unificar a imagem do corpo. Graziano (1999) procurou investigar o papel da visão e da propriocepção na representação neuronal do membro perdido demonstrando como a posição do braço é representada no cérebro na região do córtex pré-motor de macacos através da estimulação da convergência visual e proprioceptiva em alguns neurônios de seus cérebros, provando que os neurônios “responderam positivamente” quando foram estimulados juntamente com o campo visual no cérebro de macacos. Berlucchi & Aglioti (1997), por sua vez, já haviam ressaltado a importância da visão em consonância com o esquema corporal em paciente que perderam algum membro do corpo. Por fim, Pavani (2000) e colaboradores buscaram demonstrar como o campo visual é necessário na localização tátil do corpo.

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são simultaneamente monitorados pelos lobos parietais que afetam a imagem do corpo.

Em pessoas normais, mensagens do lobo frontal são enviadas em conjunto ou através do

cerebelo para o lobo parietal, que monitora os comandos e simultaneamente recebem o

feedback do membro sobre a sua posição e velocidade do movimento. No caso do

membro ausente, não há feedback do membro fantasma, é claro, mas a monitoração dos

comandos motores pode continuar a ocorrer no lobo parietal, e assim o paciente tem a

vívida sensação de movimento do membro fantasma (Ramachandran, 1996, p. 30).

É importante que se diga que o cérebro demora a reconhecer que houve a

perda de uma parte do corpo, e na tentativa de se readaptar, passa a organizar uma nova

imagem corporal (Ramachandran et all., 1996).

Alguns rearranjos cerebrais, corticais ou neuronais se dão logo em seguida à

amputação do membro, trazendo como conseqüência uma readaptação do cérebro a uma

nova imagem do corpo conforme pode ser observado na figura 2. Nesta, podemos

observar mudanças na topografia cortical revelada por magnetoencefalografia (MEG),

através de uma visão superior da área do cérebro combinando magnetoencefalografia e

imagem por ressonância magnética na superfície em 3D de um adulto cujo braço

esquerdo foi amputado abaixo do cotovelo. A cor vermelha (no canto esquerdo) indica a

área da face; à direita, a cor verde indica a área da mão e em azul (à esquerda, próximo

à área do rosto) e ao centro, observa-se a área correspondente ao braço superior. Notem

que a área da mão (em verde) está faltando no hemisfério direito e está sendo ativada

agora pelo imput sensorial da região do rosto e do antebraço (Ramachandran, 2000).

Os achados são reforçados, sobretudo, pelas novas técnicas de imageamento

cerebral tal como apontado por suas recentes descobertas nesta última década

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(Ramachandran & Hirstein, 1998; Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000;

Ramachandran, 2003).

Nesse sentido, os estudos sobre os membros fantasmas desenvolvidos pelo

neurologista e seus colaboradores, demonstraram a plasticidade neural nos cérebros de

adultos humanos através de mudanças perceptuais na sua topografia, além de apresentar

efeitos intersensoriais, demonstrando o modo como o cérebro constrói e atualiza a

imagem do corpo na sua rede neuronal. Esses achados, mais uma vez, estão muito

próximos do mapa do corpo organizado tal como mostra o homúnculo de Penfield.

Esse rearranjo neuronal faz com que se possa perceber o correlato do

membro perdido em outras áreas do corpo próximas às áreas correspondentes ao

membro perdido. Por exemplo, ao se amputar um braço, o rearranjo neuroral das áreas

do cérebro podem migrar para áreas próximas, tal como o rosto. No caso do paciente

cujo pé foi amputado, as áreas correspondentes mais próximas da região do pé

correspondia à área da região genital, o que fez com que o referido paciente passasse a

sentir ereção e orgasmo pelo “pé fantasma.

FIGURA 2: Mudanças na topografia

cortical do cérebro em um paciente cujo

braço esquerdo foi amputado, revelada

por magnetoencefalografia e

ressonância magnética.

Para provar sua hipótese, Ramachandran acompanhou 18 pacientes com

amputação do braço. Destes, 8 referiram encontrar sensações semelhantes no braço

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perdido em áreas análogas à face, além de ter um mapa topograficamente organizado

da mão na região posterior da face. Esse mapa permaneceu estável durante os exames

feito pelos pesquisadores havendo poucas mudanças no decurso de seis meses.

Em um desses pacientes (V. Q.) as mudanças na topografia cortical foram

analisadas através de magnetoencefalografia e ressonância magnética em 3D. O

paciente V. Q. uma vez teve seu braço esquerdo amputado, as áreas correspondentes da

imagem do corpo para o braço migraram para a área correspondente à face. A partir do

Mapa de Penfield, foi possível verificar quais áreas correspondiam ao braço, mão e

dedos (figura 3).

Este remapeamento da imagem do corpo pode ocorrer até mesmo horas

depois da amputação. Notem que as regiões do lado esquerdo do rosto de V.Q. eliciou

precisamente as sensações referidas nos dedos fantasmas 4 semanas após sua

amputação. A região marcada com “T” sempre evocou sensações no polegar fantasma.

A letra “P”, no lábio inferior, indica o dedo mínimo; “I”, no lábio superior, refere-se aos

dedos indicadores, e “B”, entre o olho e a orelha direita, refere-se à ponta do polegar

(Ramachandran, 1994, 1998, 2000).

Figura 3: Paciente V. Q.

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Para Ramachandran, a imagem do corpo é um fantasma construído pelo

cérebro para sua utilidade e conveniência (Ramachandran & Armel, 2003, p. 23-1).

Mostrarei agora, como essa hipótese pôde ser testada, a partir de dois experimentos: o

primeiro, realizado através de uma caixa de espelho, e o segundo, feito com uma mão de

borracha. Esses experimentos, segundo o pesquisador, reveleram a importância do

campo visual na formação da imagem corporal no cérebro.

1.3. “Enganando” o cérebro

A fim de tratar a dor presente em alguns pacientes com membros fantasmas,

Ramachandran e colaboradores idealizaram um tratamento através de uma “caixa de

espelhos” (figura 4).

A caixa de espelho nada mais é do que uma caixa feita em madeira, com

abertura para duas mãos, sendo que um espelho é colocado verticalmente entre as duas

aberturas. O paciente que apresenta dor na mão fantasma, é incitado a colocar o braço e

a mão dentro da caixa e posicionar a mão ausente na mesma posição que a outra. A

partir de então, através do reflexo da mão no espelho, cria-se a ilusão de que a mão

amputada está presente (Ramachandran, 1994, 1996, 1998, 2000, 2003, 2004).

Muitos pacientes que se submeteram à “caixa de espelho” tinham queixa de

dor-fantasma no membro ausente. Após algumas sessões de ilusão de ótica, eles

referiram ao desaparecimento das dores. O experimento pôde ser refeito semanas mais

tarde com os olhos fechados, de modo a haver um controle daqueles pacientes que

experimentaram “dor fantasma”. O efeito telescópico é um conhecido fenômeno clínico

que produz uma mudança na imagem do corpo a partir de uma ilusão de ótica. As

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evidências desse experimento, de acordo com Ramachandran, sugerem que ao ser

apresentado ao lobo parietal direito um conjunto de sinais em conflito, desde sinais

visuais mostrando que um braço ou mão ou músculos estão se movendo quando o braço

já não mais existe, o cérebro simplesmente nega o envio desses sinais e tenta solucionar

a confusão, eliminando a sensação da dor ou do membro fantasma, demonstrando assim

a importância do campo visual na sensação do fantasma, do mesmo modo como a

possibilidade de eliminá-lo através de uma ilusão de ótica.

Figura 4: A Caixa de

espelhos.

Os experimentos com sensações referentes em membros fantasmas, segundo

o neurologista, são importantes por duas razões: primeiro eles sugerem, ao contrário da

figura estática dos mapas cerebrais dados por neuroanatomistas, que a topografia do

cérebro é extremamente susceptível. Mesmo em cérebros adultos, a reorganização

massiva pode ocorrer em períodos de tempo muito curto e as sensações referentes

podem ser usadas como um “marcador” (marker) para a plasticidade em cérebros

adultos. Segundo, os resultados permitem relacionar a “qualia perceptual” (perceptual

qualia - sensações subjetivas) para a atividade de mapas cerebrais e testar algumas das

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suposições mais amplamente aceitas na psicologia sensorial e na neurofisiologia e

compreender como atividade neural conduz a experiência consciente do sujeito

(Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000).

A experiência com espelhos apresenta ainda três implicações: primeiro, os

espelhos podem ser clinicamente úteis em aliviar posturas anormais e espasmos no

membro fantasma. Segundo, sugere que o modelo hierárquico do cérebro popularizado

por engenheiros de computador precisa ser substituído por uma visão mais dinâmica do

cérebro em que há uma grande quantidade de interações entre diferentes módulos do

cérebro. Terceiro, a ressurreição de um fantasma em alguns pacientes, e sua

"amputação" em outros, sugere que a imagem do corpo, apesar de toda aparente

durabilidade, é na verdade um construto interno transitório, uma mera concha que nosso

cérebro cria temporariamente para nossos genes (Ramachandran e Rogers-

Ramachandran, 2000).

O segundo experimento feito refere-se à capacidade que temos de adicionar

à imagem do nosso corpo um objeto externo, produzindo uma segunda ilusão no

cérebro.

A que ele se refere? Um sujeito leigo é colocado diante de uma mão de

borracha correspondente à sua mão verdadeira. Uma divisória é colocada entre a mão

real e a mão falsa, de modo que o sujeito tem a visão da mão verdadeira encoberta. A

partir de então, o experimentador aplica uma série de batidas leves na mão falsa e na

mão verdadeira em perfeita sincronia. Logo, o sujeito passa a sentir a ilusão de que as

sensações de toque são sentidas na localização espacial da mão postiça como sendo dele

e não na mão real. Em um segundo momento, a mão real é escondida tal qual no

experimento anterior, entretanto, antes de usar a mão postiça os experimentadores

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acariciam e dão tapas na mesa em precisa sincronia por alguns minutos na mão real.

Para a surpresa deles, os sujeitos relataram sentirem freqüentemente sensações surgidas

na superfície da mesa como sendo deles, independente da semelhança da mão postiça

com a mão real. Os autores interpretaram esses experimentos como a tolerância cerebral

para a discrepância entre a visão e a propriocepção, no primeiro experimento, e no

segundo, a extraordinária habilidade do cérebro de detectar correlações estatísticas nos

imputs sensoriais ao construir uma útil representação perceptiva do mundo, incluindo-se

aí, as partes do corpo (Ramachandran & Armel, 2003).

A partir desses experimentos, buscou-se compreender em que sentido o

sujeito realmente incorpora a mesa ou a mão postiça à sua imagem corporal, quais os

limites dessa habilidade, qual é o grau de tolerância dessa incorporação de um objeto

externo à imagem do corpo e finalmente se a distância entre o objeto externo e o corpo

tem validade na construção da imagem do corpo16.

Diante desses experimentos, os neurologistas criaram um novo, a fim de

medir a intenção em que os sujeitos incorporam objetos externos à sua imagem

corporal, cujas respostas foram gravadas através de um condutor de respostas da pele

(SCR – skin conductance response), uma medida fisiológica de estímulo psicológico e

autônomo17, com o objetivo de testar se a mesa havia se tornado parte da imagem

corporal dos sujeitos ou se os sujeitos estavam simplesmente sendo metafóricos ou

16 Ver também o experimento semelhante descrito por Pavani e colaboradores (2000) acerca da captura visual do toque na experiência do corpo. 17 O condutor de respostas da pele é um aparelho que possibilita medir e registrar a resposta de condutividade dérmica sem qualquer dor ou mal-estar para o indivíduo, através do uso de eletrodos ligados à pele e a um polígrafo. O funcionamento do aparelho se dá através da medição da alteração do organismo após uma determinada resposta de ação ou pensamento, registrando o estado somático correspondente. Neste caso, o sistema nervoso autônomo aumenta sutilmente a secreção das glândulas sudoríparas em uma quantidade tão pequena que nos é impossível enxergar a olho nu ou através dos sensores neurais da pele, porém, a mudança no estado do corpo é suficiente para reduzir a resistência da passagem da corrente elétrica disposta pelos eletrodos. A “resposta de condutividade dérmica” consiste, portanto, numa alteração da quantidade de corrente elétrica conduzida e registrada através do aparelho (Damásio, 1996, p. 239).

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respondendo às tarefas demandadas quando eles relatavam a mesa ou a falsa mão como

sendo deles mesmos. Se os objetos externos se tornaram integrados à sua imagem

corporal, eles poderiam ser estimulados quando a mesa ou a falsa mão fosse de algum

modo danificada, do mesmo modo que a antecipação do dano corporal de si mesmos

produzia estímulo? Variações nas condições de controle foram usadas para testar se esse

estímulo podia ser atribuído meramente a condições associativas.

Um grupo de estudantes de graduação da Universidade da Califórnia em San

Diego, sendo 16 participantes do experimento 1 e 24 no experimento 2 e 3, entre 18 e

23 anos responderam as questões pontuadas pelos experimentadores.

No experimento um, objetivava-se saber se um dedo de uma mão postiça

fosse curvado para trás para parecer doloroso, o sujeito registraria uma SRC, ou seja,

em que extensão a mão é assimilada pela imagem corporal do sujeito? O SRC foi

gravado e após descrição da resposta livre da experiência o escore da intensidade da

ilusão foi obtida (figura 5-a).

No segundo experimento, objetivava-se saber se os sujeitos poderiam

experienciar a mesma ilusão se a forma do objeto externo fosse mudado. Nesse caso,

uma mesa foi tocada e batida de modo análogo à localização da mão real (figura 5-b)

No terceiro e último experimento, objetivou-se verificar se os sujeitos

poderiam experienciar a ilusão se a localização e extensão do objeto externo fosse

manipulado. Assim, cada sujeito viu o toque para a falsa mão na localização real em

uma condição e então para uma distância falsa em outra (figura 5-c). O falso braço foi

estendido quase um metro além da mão real. Na distante mão manipulada, um falso

dedo foi torcido para o estímulo doloroso como na experiência 1. A antecipação da dor,

produz estímulos no sistema nervoso autônomo, por isso a necessidade de medir SCR,

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para verificar se eles não estavam sendo metafóricos ou respondendo apenas às questões

(Ramachandran & Armel, 2003).

FIGURA 5: As condições de manipulação vistas

do alto. E = experimentador; S = sujeito; P =

partição; FH – falsa mão (fake hand); SCR =

eletrodos de condutor de respostas da pele (skin

conductance response). “A”, “B” e “C” referem-se

aos três experimentos.

Os resultados dos experimentos e das análises de SRC (que não pode ser

controlado por vontade própria) fizeram os pesquisadores constatarem que a imagem do

corpo pode ser fácil e profundamente modificada; não só a falsa mão foi assimilada

pelos sujeitos, mas também a mesa foi percebida como fazendo parte do corpo do

sujeito nesse experimento; e por fim, que o dedo torcido da falsa mão sugere que a

informação visual afeta a imagem do corpo.18

18 A idéia de que a visão é necessária para o auto-reconhecimento da imagem do corpo tem sido explorada através de estudos empíricos tais como o realizado por Knoblich (2002). Para este autor, a visão é necessária para o reconhecimento de partes visíveis do corpo (mãos, braços, pernas, pés, etc.), pois recebem todo o tempo estímulos proprioceptivos e táteis e são continuamente influenciados pelo campo visual. A necessidade da visão na construção da imagem de partes do corpo pode, inclusive, ser notado em bebês com poucos meses de vida. Ver também Ramachandran & Gregory (1991).

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Ramachandran é enfático ao interpretar esses dados como sendo definitivos

na construção da imagem do corpo e na plasticidade do cérebro em adaptar-se às

mudanças da imagem corporal:

“Tomado coletivamente, nossos experimentos sugerem que a assim chamada imagem do corpo, apesar de toda a sua aparência, durabilidade e permanência, é um construto interno transitório – uma concha transitória – que pode ser profundamente alterado por estímulos contingenciais e correlações que alguém encontra. Além disso, para demonstrar a maleabilidade da imagem do corpo, essa simples ilustração também mostra um importante princípio básico da percepção: que o mecanismo da percepção pode estar envolvido em uma extração de correlações estatísticas do mundo para criar um modelo que é temporariamente útil. É possível que outras investigações dentro da maleabilidade da imagem do corpo nos ajude a entender outro fenômeno, tais como a disfunção corporal dismórfica e a anorexia nervosa. Entender como nós identificamos com o objeto externo pode também nos dar idéias sobre a base neural da empatia” (Ramachandran & Armel, 2003, p. 1454).

Ora, o autor sustenta todos os seus experimentos através de bases

neurológicas da construção da imagem do corpo, não levando em conta que o corpo não

pode ser entendido como sendo um “cérebro na cuba”. Ele está em estreita relação com

o mundo e como tal, ele está em constante troca de informações somatosensitivas,

fenomenológicas e cognitivas. Não agimos sozinho no mundo. Captamos dele

informações necessárias para construção da nossa imagem corporal. Agimos no mundo

e somos o tempo todo influenciado por ele e pelos nossos pares.

Não nego as provas empíricas de que o cérebro possui um mapa do corpo

formado na sua superfície, mas daí a pensar que esse mapa possa ser construído a partir

de bases genéticas, não leva em conta todas as capacidades cognitivas pelas quais a

psicologia e a psiquiatria incansavelmente chamaram a atenção, portanto, a construção

corporal de um braço ou uma perna já estão dados no “disco rígido” cerebral, parece

carecer de outras argumentações que não condiz com seus estudos.

O que Ramachandra não se deixou ver é que o reconhecimento da totalidade

do nosso corpo se dá (não só, mas também) através do reconhecimento do mesmo por

outro sujeito. Esse corpo não está só no meio externo. Ele participa de toda uma

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provisão para agir no mundo e por este é afetado. O campo visual notadamente também

participa do reconhecimento desse corpo, não só pelo próprio sujeito, mas por outros

sujeitos que encontramos.

Por exemplo, como saber se uma perna ou um braço é uma perna e um braço

e não um galho de árvore ou uma perna de mesa ou cadeira? O que faz com que

saibamos que nosso corpo nos pertence, a não ser através da aprendizagem cognitiva e

lingüística da “coisa” em si? Como ter a certeza que o meu corpo é, de fato, o “meu

corpo” e não o corpo do sujeito B ou C? Como saber se minha perna, de fato, é “minha

perna”, e não a perna da mesa, a perna da cadeira, a perna de todos os jogadores de

futebol? Wittgenstein (1999) em sua última obra intitulada “Da certeza”, fundamenta a

“certeza do corpo” numa única questão: a ação. Para Wittgenstein, como saber se uma

perna é de fato “minha perna”? Responde Wittgenstein: levante a perna, ou chute uma

bola, uma parede ou a perna de alguém, ou seja, haja com o seu corpo no mundo! Ou

então, descreva o objeto em questão com a maior quantidade de substantivos ou

adjetivos possíveis, considere sua mão ou sua perna ou o seu pé no maior número

possível dos “jogos de linguagem”.

Ora, nosso cérebro não nasce formatado como um disco rígido, ou seja, com

a informação da imagem do nosso corpo como algo dado, inato, pronto, porque para

tanto, ele precisa desenvolver toda a cadeia lingüística que fará com que essas imagens

possam ser representadas no nosso cérebro. Isto porque, assim como Ramachandran

defende que a construção da imagem do corpo não é apenas uma construção interior e

transitória, muitas disfunções e patologias da imagem do corpo podem ser

compreendidas a partir de uma construção perversa, tal como formulada por Costa

(2004b).

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Mas uma coisa é a imagem do corpo, e outra é a sua representação no

cérebro, assim como há de se diferenciar a ação do corpo e a representação desta ação

com suas capacidades somatosensitivas.

Dizer que o cérebro nasce com certas disposições inatas e geneticamente

pré-determinadas para conhecer e reconhecer imagens do nosso corpo, em primeiro

lugar, é esquecer, por exemplo, que o corpo não age sozinho no mundo, mas que ele

encontra-se no mundo com "presteza para agir" (Todes, 2001). Sua representação se dá

através de todos os dispositivos mentalistas que faz com que reconheçamos a nós

mesmos como agentes no mundo. Dizer isso significa que é necessário "um outro" para

que nos reconhecermos como um "eu" no mundo; um “eu” que pode também ser

compreendido como sendo o mais próximo do que Dennett (1986) denominou “um

centro de gravidade narrativa”.

Em segundo lugar, também é esquecer, conforme afirma Costa (2004a,

2004b), que a imagem do corpo é formada unicamente por imagens e narrativas de si,

possuindo uma intencionalidade, uma privacidade e uma representacionalidade.

Portanto, a imagem do corpo necessita se situar intencionalmente no tempo e

no espaço, não podendo ser uma criação nem inata, nem genética, pois, conforme

também afirma Bergson (1990, p. 10-11)

"é o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro. Suprima a imagem que leva o nome de mundo material, você aniquilará de uma só vez o cérebro e o estímulo cerebral que fazem parte dele. (...) Fazer do cérebro a condição de imagem total é verdadeiramente contradizer a si mesmo, já que o cérebro, por hipótese, é uma parte dessa imagem".

A neurologia não é a única a defender que a construção da imagem do corpo

se dá única e exclusivamente na superfície do cérebro. Outras noções e teorias têm

surgido para dar conta da relação mente/corpo/cérebro/mundo, no próprio campo da

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neurologia, somado a um aporte de alguns conceitos da fenomenologia, tal como

formulado por Oliver Sacks. Vejamos suas considerações.

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CAPÍTULO 2

SACKS E A NEUROLOGIA DA IDENTIDADE

“O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles”.

Merleau-Ponty

Fenomenologia da Percepção

A neurologia foi uma das ciências que mais se desenvolveu nos últimos

tempos, sobretudo após os avanços das tecnologias do imageamento cerebral. Os

diversos distúrbios neurológicos tais como perda da fala, da linguagem, da memória, da

visão, da percepção dos sentidos e da identidade, foram estudados largamente e

construído um conjunto de conhecimento específico para cada uma deles, e muito do

que se pensava sobre as causas fisiológicas ou psíquicas desses danos, caiu por terra

com o avanço da tecnologia médica.

Desde o final do século XIX, a pesquisa científica de inúmeros neurologistas

sobre o cérebro humano foi a responsável por estabelecer definitivamente uma relação

entre cérebro e mente, cérebro e corpo e finalmente corpo e mente.

Paul Broca foi um deles. Ao descobrir uma área específica do hemisfério

esquerdo do cérebro como a responsável pelos distúrbios da fala em 1861, ele abriu

caminho para um outro neurologista famoso, Freud, atribuir uma base fisiológica aos

problemas da fala. Desde então, as pesquisas e o mapeamento do cérebro humano não

pararam mais.

A neurologia tornou-se, portanto, uma “ciência personalista” ao comprovar

que os acidentes vasculares cerebrais ou demais danos ao cérebro, tal como foi vítima

Phineas Gage, também afetava a personalidade e a identidade do sujeito, sua “persona”,

sua subjetividade, seu próprio “eu”.

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Numerosos casos clínicos comprovaram essa sentença, tais como os casos

analisados por Oliver Sacks. Seus pacientes, transformados em personagens em uma

vasta produção literária, trouxeram à tona uma gama de distúrbios do comportamento

com origens eminentemente causadas por danos ao cérebro: um pintor que passou a

enxergar tudo em preto e branco, uma mulher que perdeu a sensação da propriocepção,

o homem que passou a perceber membros fantasmas no seu corpo, um jovem que perde

a noção do tempo tendo sua memória restrita à década de sessenta, quando ocorreu seu

acidente; o cirurgião que passa a ter tiques nervosos ou ainda um neurologista famoso

que perde a sensação e percepção da própria perna, entre outros, são todos personagens

do fantástico universo de Oliver Sacks. Muitos dos seus personagens tiveram suas

histórias publicadas em revistas tais como “The New Yorker” e “The New York

Times”, mais tarde em livros e posteriormente em filmes e peças de teatro.19

Em todos os casos, verificamos vividamente o esforço do neurologista em

não deixar de lado as ferramentas que a ciência médica dispõe, mas o que transforma

Sacks em um neurologista diferente da maioria, é que ele apontou para algo que ainda

não havia sido feito: ele passou a deixar seus pacientes falarem sobre si mesmos e sobre

seus distúrbios.

Sacks se tornou um proeminente interprete das desordens neurológicas na

cultura anglo-americana, tornando-se uma celebridade no mundo acadêmico. No início

de sua carreira ele inspirou a prática daquilo que ele chamou de “neurologia romântica”,

ou seja, uma neurologia que recobre a subjetividade de seus pacientes do que as

condições fisiológicas engendradas pela neurologia tradicional.

19 Os filmes são: “At First Sight”(À Primeira Vista) – Direção de Irwin Winkler – MGM/United Artists, 1999; “Awakening” (Tempo de Despertar) – Direção de Penny Marshall – Columbia/Tristar Pictures, 1990. A peça de teatro chama-se “The Man Who Mistook his Wife for a Hat” (O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu) – Direção de Peter Brooks, Royal Natinal Theatre, Junho de 1994.

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Com isso, o neurologista Sacks praticamente “atualiza” o neurologista Freud

naquilo em que ele fez de mais singular e específico: Sacks não desperdiça os laudos

médicos de exames neurológicos complexos, mas deixa a palavra e as descrições

narrativas e subjetivas de seus pacientes tomarem forma.

Munido de seus conhecimentos como neurologista e somado a uma leitura

particular da filosofia, da psicologia e da psicanálise, Sacks busca as raízes da

subjetividade humana através de uma atenta observação do comportamento de seus

pacientes e de uma escuta clínica sobre o que eles têm a dizer antes e depois de lesões

cerebrais, muitas das vezes graves, sobre sua história de vida, sobre o que eles foram,

sobre o que eles se tornaram e sobre o que eles pensam como serão daí para frente.

Sacks não se reduz a uma descrição biológica, nem fisicalista nem mentalista da vida

subjetiva.

A conseqüência disso é que Sacks, apesar de não construir uma teoria sobre

a construção da imagem do corpo, da subjetividade e da identidade, ele passa fazer uso

das teorias disponíveis no campo fenomenológico para auxiliá-lo nas descrições

subjetivas de diversos distúrbios neurológicos de seus pacientes sem, no entanto,

desprezar a descrições dos mesmos distúrbios através das mais modernas técnicas

médicas para análise e tratamento.

Assim sendo, ele não restringe a imagem do corpo nem a um mapa cerebral

incrustado no próprio cérebro, nem faz da cadeia de redes neuronais predicativa de

nossas subjetividades. Ele não as nega, mas não se restringe a elas como veremos a

seguir.

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2.1. Para uma “neuro-fenomenologia do self”

Logo no início do livro “O homem que confundiu sua mulher com um

chapéu”, Oliver Sacks afirma:

“Para devolver o sujeito humano ao centro – o ser humano sofredor, torturado, em luta – devemos aprofundar um relato de caso transformando-o em uma narrativa ou história; só então teremos um ‘quem’ além de um ‘o que’, uma pessoa real, um paciente, em relação à doença – em relação ao físico” (Sacks, 1997, p. 10)

Sacks afirma que a gama de distúrbios neurológicos com os quais se deparou

ao longo de sua vida enquanto médico, o fez cada vez mais necessitar de um aporte

maior do que aquele dado pelos instrumentos de que dispunha pela medicina tradicional

ou pela tecnologia médica, um estudo aprofundado sobre cada um dos distúrbios de

cada paciente seu, somado a uma descrição da doença e da vida pessoal destes, o que

exigiu a concepção de uma nova disciplina: a “neurologia da identidade”.

A neurologia da identidade, de acordo com o autor, é aquela que lida

diretamente com as bases neurais do “eu” e com o problema “mente e cérebro”. Para

tanto, a descrição da vida subjetiva tornou-se necessária para compreensão dos danos

cerebrais. Unir psíquico e físico, só seria possível pela via narrativa de si. Ora, mas não

foi exatamente essa a proposição de Freud quando “inventou a psicanálise”?

A. R. Luria foi um dos neurologistas que mais estudou as conseqüências de

lesões cerebrais das mais diversas formas e a capacidade do cérebro de se adaptar a uma

nova realidade. De acordo com Sacks, retomando as palavras de Luria, a ocorrência

dessas adaptações exigia uma nova visão do cérebro não mais como programado e

estático, mas um cérebro dinâmico e ativo, ou seja, um complexo sistema capaz de se

adaptar às mudanças e necessidades do organismo. Essas mudanças fizeram com que o

organismo tivesse necessidade de criar um novo centro identitário, um novo “eu” e um

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mundo coerente com sua nova realidade. Nesse sentido, Sacks está de acordo com as

proposições de Ramachandran quando este defende a “plasticidade cerebral”, pois são

inegáveis as capacidades do cérebro de se adaptar a uma nova injunção do meio e do

corpo (Sacks, 1995)20.

Vários neurologistas contemporâneos a Freud já haviam avançados nos

estudos sobre a correspondência entre danos cerebrais e as perturbações da alma. Entre

eles, Babinski e o próprio Freud, sob a batuta de Chacot buscaram diferenciar a paralisia

orgânica, portanto, neurológica, das paralisias histéricas21. Segundo Sacks, Freud havia

constatado três padrões neuroanatômicos para as paralisias orgânicas, e traumas e

sistemas psíquicos reprimidos para as paralisias histéricas. A primeira tem uma base

anatômica enquanto que a segunda tem uma base psíquica ou psicodinâmica. Para

Freud, as paralisias orgânicas era físicas enquanto que as histéricas eram mentais

(Sacks, 2003)22.

Babinski, por sua vez, escrevera os relatos dos seus estudos sobre paralisias,

alienações, lesões periféricas, entre outras, em uma época anterior aos escritos de Head

e Sherrington sobre imagem e esquema corporal, antevendo que esses distúrbios teriam 20 As neurociências hoje têm cada vez mais se colocado como aquela ciência definidora da essência subjetiva e da identidade do sujeito. Você é o seu cérebro e é isto que define a sua identidade pessoal. A “teoria neuronial da identidade pessoal” foi exposta nos últimos anos por Gerald M. Edelman e sua tese sobre a seleção dos grupos neuroniais ou “darwinismo neuronial” (Sacks, 1995). 21 De acordo com Ehrenberg (2004) a histeria é a patologia que permitiu construir a idéia de psiquismo na época de Freud e lhe dá um conteúdo diferenciado da idéia de lesão cerebral, visto que, para falar de doença era necessário que houvesse uma lesão para explicá-la, não obstante, foi Chacot que rompeu com essa idéia ao empregar o termo “lesão funcional” ou “dinâmica”, considerando a histeria como uma patologia autêntica do campo da neurologia. A prova disso era a possibilidade de hipnotizar as histéricas produzindo uma reação fisiológica, e não psicológica. 22 Muitos conhecem o Freud psicanalista, mas poucos tiveram acesso ao Freud neurologista, à exceção de alguns dos seus trabalhos mais conhecidos tais como o “Projeto para uma psicologia científica” (1895). Durante seus vinte anos, Freud dedicou-se primordialmente à neurologia e à anatomia, nutrindo uma paixão pelas teorias de Darwin e o evolucionismo, isso foi decisivo para sua carreira médica e posteriormente para a criação da psicanálise. Nesse percurso, Freud escreveu vários artigos neurológicos, dentre os quais, descrições pormenorizadas sobre as funções e disfunções do cérebro. O trabalho sobre a concepção da afasia 1891 data desse período. Não obstante, remeto o leitor, além do texto do “projeto” e da monografia sobre a afasia, a um trabalho menos conhecido de Freud intitulado “Brain” (cérebro) (Freud, 1888 publicado em Solms & Saling, 1990) e um artigo de Oliver Sacks (1998), o qual discute o percurso neurológico de Freud. Ver também Garcia-Roza (1997; 2004).

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uma raiz em determinadas áreas localizadas no cérebro (Sacks, 2003). Babinski,

portanto, pautava seus estudos em um aporte biológico e fisiológico dos distúrbios

neuronais. Sua contribuição nesse campo, diz Ehrenberg (2004) foi ter estabelecido uma

nítida fronteira entre o psicológico e o neurológico, possibilitando a compreensão de

estados mentais em estados cerebrais, situando-se frontalmente em oposição a Freud.

Freud, ao contrário, instituiu uma nova ciência da mente e do cérebro com a

psicanálise. Ele fornece um conteúdo particular à noção de psíquico que emergia à sua

época, qual seja, a idéia de subjetividade, através da abertura dos portos ao conteúdo

inconsciente através da palavra, demonstrando que algo se passava no corpo das

histéricas. Lúria, por sua vez e com os eventos que se seguiram à Segunda Guerra,

instituiu aquilo que viria a ser conhecida como a “neuropsicologia”, na qual buscava as

raízes de doenças como resultante de danos causados ao hemisfério esquerdo do

cérebro, transformando a neurologia naquilo que Sacks descreve como sendo uma

“ciência da personalidade” ou “ciência personalista”. A neurologia clássica, diz Sacks,

consolidou-se na década de 1920. A neuropsicologia, por outro lado, consolidou-se na

década de 1950. O que precisamos agora, diz o autor, é uma neurologia do “eu”, do

“self”, da identidade (Sacks, 2003).

A correlação entre danos cerebrais e a construção da imagem do corpo foi o

mote necessário para que pesquisadores, neurologistas e neurocientistas, atentassem

para o fato e ressaltassem a importância de buscar na “carne do cérebro” o referente

último da imagem corporal.

Portanto, para Sacks, toda doença neurológica é, na verdade, uma luta para

preservar a identidade do sujeito como ela foi constituída.

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“Percebi claramente que tais experiências tinham origem fisiológica, mas também que não podiam ser enquadradas no modelo clássico. Ficou claro para mim que precisávamos de uma ‘neurologia da identidade’, uma neurologia que pudesse explicar como diferentes partes do corpo (e seu espaço) podiam ser ‘possuídas’ (ou ‘perdidas’), uma base neurológica para a coerência e unificação da percepção (especialmente depois de uma perturbação da percepção por lesão ou doença). Precisávamos de uma neurologia que pudesse escapar do rígido dualismo mente/corpo, das rígidas noções fisicistas de algoritmo e gabarito, uma neurologia capaz de fazer jus à riqueza e densidade da experiência, seu senso de cena e música, sua pessoalidade, seu fluxo sempre mutável de experiência, de história, de tornar-se” (SACKS, 2003, p. 195).

Vejam então a diferença no argumento dos autores até aqui apresentados.

Para Ramachandran, o cérebro é o lugar da interioridade, do “eu”, do “self”,

da individualidade e da subjetividade do sujeito. A imagem do corpo é constituída

através de uma gênese ontogênica cerebral, ora inata, ora construída ao longo do

desenvolvimento, ou seja, uma representação do corpo encontrada no córtex cerebral

em áreas especificamente localizadas e que o cérebro produz para reconhecimento da

interioridade e exterioridade do corpo ao qual ele é o “órgão rei”.

Sacks rompe com o domínio fisicalista das bases neurais do “eu”, que via no

cérebro unicamente o “ponto de mutação” da identidade e da subjetividade, apesar de

fazer uso do mesmo vocabulário técnico da disciplina que faz parte.

Mas como ele apreende a construção da imagem do corpo?

Para tanto, tomarei como exemplo dois casos expostos por Sacks: o primeiro

caso refere-se à “mulher desencarnada”; o segundo refere-se a um acidente sofrido pelo

próprio Sacks que o fez perder a percepção da própria perna. Ambos os casos são

exemplares no desenvolvimento das suas teses sobre a construção da imagem do corpo,

e ressaltam uma “neuro-fenomenologia do eu” 23.

23 A neuro-fenomenologia foi um termo introduzido por Francisco Varela no início da década de 1990 e combina os aportes teóricos da neurociência com os da fenomenologia no estudo da consciência. Segundo o autor, a neurofenomenologia sugere que invariantes padrões e estruturas da “consciência da primeira pessoa” podem encontrar explicações na fisiologia e no funcionamento do cérebro. Teoricamente, a neurofenomenologia busca encontrar as raízes do “encorporamento” (embodiment) na neurofisiologia da consciência e na experiência subjetiva no atributo da primeira pessoa. Sacks não discute a construção de

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Primeira vinheta clínica: Christina tem 27 anos e é programadora de

computadores. Casada e mãe de dois filhos, é descrita como tendo uma mente e um

corpo fortes. Inteligente e culta, é apreciadora de balé e de poesia. Teve poucos

episódios de doença e nunca lembrou de ter ficado durante muitos dias acamada. Após

sofrer fortes dores abdominais, verificou-se que tinha cálculos biliares ficando interna

para remoção da vesícula biliar. No dia anterior à cirurgia, teve um sonho onde não

conseguia sentir nem suas mãos ou pernas, deixando cair tudo que lhe fosse solicitado

segurar ou sendo incapaz de dar um passo. Foi atendida por um psiquiatra que

diagnosticou “ansiedade pré-operatória”. No mesmo dia, o sonho tornara-se realidade e

Christina não mais passou a sentir as pernas nem as mãos por completo. Não conseguia

andar nem segurar nada com as mãos ao menos se olhasse para eles. Perdera a sensação

do seu próprio corpo. Não conseguia mais sentar-se pois seu corpo cedia. Desenvolveu

em pouquíssimo tempo uma estranha expressão facial, com mandíbula caída e sem

postura vocal. Algo terrível havia acontecido àquela mulher: “Não consigo sentir meu

corpo. Eu me sinto esquisita – desencarnada”. Se para a psicanálise, Cristina poderia ser

“diagnosticada” no modelo histérico, tal qual a histeria de conversão corrente no final

do século XIX de Charcot e Freud, para Sacks, Christina apenas perdera completamente

toda a noção de propriocepção do seu próprio corpo (Sacks, 1997, p. 61).

Segunda vinheta clínica: o neurologista Oliver Sacks, de férias, resolve

esquiar nas montanhas. Subestimando os avisos de que haveria uma tempestade se

aproximando e de animais bravos no lugar onde escolhera para esquiar resolve ir assim um centro identitário tal qual um “eu” holístico a partir da neurofenomenologia na forma conferida por Varela entre outros autores da neurociência cognitiva, não obstante, estou procedendo a uma aproximação teórica e fazendo uso generalizado do termo, ao apontar que apesar de Sacks não desprezar o cérebro e suas conexões na construção de uma imagem do “eu”, do corpo, da identidade e da subjetividade, bem como dos diversos distúrbios neurológicos, ele também faz uso dos aportes teóricos da fenomenologia, e é nesse sentido que suas teorias diferem dos outros autores até aqui apresentados. Remeto o leitor para um maior conhecimento do termo a Varela (1996), Varela & Shear (1999), Campbell (2004), Vogeley & Fink (2003) e Lutz & Thompson (2003).

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mesmo pegar uma trilha e satisfazer seu objetivo. Apesar da inclinação do terreno, o

neurologista possuía pernas fortes adquiridas através de anos de exercícios árduos em

academia de musculação. Mas ao tentar fugir de um animal que aparece à sua frente,

escorrega e quebra a perna esquerda. Resgatado, vai para um hospital, tem a perna

engessada e fica interno até descobrir que perdera toda a sensação do referido membro.

De eminente e respeitado profissional da área médica, o Sacks neurologista torna-se o

Sacks paciente, e para seu horror e constatação, descobre que tem um “objeto estranho”

agarrado ao seu próprio corpo: sua perna esquerda. “Quando não era uniforme, a perna

tendia a ficar presa em todo tipo de irregularidade – parecia curiosamente inepta para

evitá-la -, e eu a xinguei várias vezes de ‘estúpida’ ou ‘insensível’”. Diagnóstico de

Sacks: perda da representação da imagem da perna, ou dito de outro modo, perda da

propriocepção da perna (Sacks, 2003, p. 24), diferentemente do diagnóstico de histeria

clássica.

Em ambos os casos Sacks não abandona uma possibilidade de que tenha

havido em algum momento, um distúrbio neurológico para as duas síndromes descritas,

talvez um pequeno derrame ou isquemia. Não obstante, não fica reduzido a esta

conformidade. Para ele, muito mais do que um dano no córtex cerebral é preciso que se

entenda que a imagem do corpo, tal como entendido pela fenomenologia da percepção,

é uma construção dada pelos sentidos do próprio corpo, mas não apenas aqueles que

conhecemos referentes aos órgãos dos sentidos, mas um outro: a propriocepção.

A propriocepção, segundo Sacks, pode ser compreendida como sendo um

“sexto sentido”, ou seja, um sentido inconsciente, ou não, de que nos movemos no

espaço. A propriocepção é inerente às partes móveis do nosso corpo (músculos, ossos,

tendões, articulações, pele, etc.), por meio do qual tomamos conhecimento do nosso

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corpo no mundo e é indispensável para o senso de “nós mesmos”. Ela foi descrita pela

primeira vez na década de 1890 por Sherrington, que a diferenciou da “exterocepção”.

Graças à propriocepção, sentimos que temos um corpo, que ele é uma propriedade,

nossa propriedade (Sacks, 1997).

O senso do corpo, para Sacks, é dado por três dispositivos: a visão, os órgãos

do equilíbrio (sistema vestibular) e a propriocepção, todos trabalhando juntos. Quando

um desses dispositivos falha os outros tendem a compensá-lo.

Não obstante, a propriocepção e a exterocepção são processos na auto-

percepção do próprio corpo, e necessários para se diferenciar imagem e esquema

corporal.

A propriocepção ou interocepção orienta nosso movimento no eixo

gravitacional e organiza a experiência da totalidade corporal a partir da experiência de

partes localizadas no próprio corpo. A propriocepção, assim, é toda a percepção da

interioridade do corpo, aí incluídos os movimentos das vísceras, enquanto que a

exterocepção está voltada para a percepção a tudo o que é exterior ao corpo, ou seja, os

objetos externos e os eventos do ambiente, proporcionados pelos órgãos dos sentidos -

visão, audição, tato, paladar e olfato. A primeira estrutura a experiência do próprio

corpo, enquanto que a segunda, organiza os fenômenos extracorporais (Costa, 2004).

A propriocepção, como também define Butterworth (1998) é uma co-

percepção do eu e do ambiente que o cerca, é um mecanismo de auto-sensibilidade

comum a todo o sistema perceptivo, cuja consciência dos movimentos pode ser obtida

através tanto da visão quanto da audição, tantos dos músculos quanto das articulações.

Essa perspectiva está de acordo com a teoria de J. J. Gibson sobre a

percepção corporal, entendida como uma “concepção ecológica do self”, a qual reafirma

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uma simulteneidade perceptiva entre o “eu” e o mundo, necessária para a autopercepção

de si. Assim, tanto a interocepção quanto a propriocepção ou exterocepção são formas

diversas do próprio corpo se autoperceber em sua relação direta com os objetos que o

cercam e os eventos do mundo24.

Como ainda diz Sacks, os sentidos da propriocepção são “os olhos do corpo”

ou o modo como o corpo se vê. Quando ela desaparece, é como se o corpo estivesse

cego. “Meu corpo não consegue ‘enxergar’ a si mesmo se perdeu seus olhos, certo? Por

isso, preciso olhar para ele – ser os olhos de meu corpo”, diz Christina, paciente de

Sacks. Durante seu tratamento e recuperação da mobilidade de seu corpo, ela foi pouco

a pouco substituindo o feedback normal e inconsciente da propriocepção pelo feedback

inconsciente da visão. Sua imagem corporal perdida foi sendo reintegrada à medida que

seu sistema perceptivo da visão passou a agir como o centro motor do seu corpo.

Mas à medida que o tempo passa, ela ainda sentia com persistência a perda

da propriocepção do seu corpo, como se ele estivesse morto, irreal, como se não fosse o

corpo dela nem que ela pudesse se apropriar dele. Como tal sensação nunca fizera parte

de sua experiência subjetiva, Christina não encontra palavras nem analogias diretas para

descrever a escuridão, o silêncio e a mudez do seu próprio corpo: “Sinto que meu corpo

está cego e surdo para si mesmo... ele não tem o senso de si mesmo” (Sacks, 1997)25.

24 Há uma série de autores que defendem a “perspectiva ecológica do self” nos termos conferidos por Gibson. Todos defendem a diferença entre a propriocepção e a exterocepção para compreender, por conseqüência, as diferenças entre esquema e imagem corporal. Sobre esse assunto ver, além de Costa (2004), Reed (1996), Butterworth (1998), Campbell (1998) e Bermúdez, (1998). 25 Ainda há de se pontuar dois outros casos descritos por Sacks com perda da propriocepção e da imagem corporal. O primeiro é o caso de Madeleine J., sessenta anos, interna em um hospital em 1980 com cegueira congênita e paralisia cerebral. Apresentava ainda hipertonia e atetose, ou seja, movimentos involuntários das mãos, aos quais, segundo Sacks, não se acrescentava o não-desenvolvimento dos olhos. Poderia se esperar uma pessoa com retardo mental, mas Madeleine era extremamente culta. Sacks deduz que ela teria facilidade de ler em braile, mas afirma que todo o seu conhecimento se deu através de leituras próprias feitas com ajuda de pessoas ou gravações em fitas. Ela não podia ler em braile, pois, segundo ela, não podia fazer nada com as mãos. “Elas são completamente inúteis. Monte de massa imprestáveis e esquecidos – elas nem parecem fazer parte de mim”, diz a combalida senhora. A capacidade sensorial das mãos de Madeleine, ao contrário, estavam intactas, porém, sua propriedade

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Do mesmo modo é assim que “Sacks paciente” se expressa: “Eu não conheci

minha perna. Ela me era totalmente estranha, desconhecida, não era minha. Fitei-a

absolutamente sem reconhecimento. (...) Era absolutamente não-eu” (Sacks, 2003, p.

62)

Christina era uma mulher sem corpo, e Sack, por conseguinte, era um

homem sem a perna esquerda. Tanto na esfera neurológica, como na esfera

neuropsicológica ou neurofenomenológica, o que ocorrera com ambos os pacientes era a

perda da imagem corporal. De Christina, de todo o envelope corpóreo, de Sacks, da

imagem interna ou representação da própria perna. De acordo com o neurologista, havia

em ambos os casos uma obliteração da representação da imagem do corpo no cérebro.

Christina era, em certo sentido, uma mulher “desmedulada”, desencarnada,

uma alma penada, ela “possuía um corpo sem dono”, não havia nenhuma propriedade

que lhe desse autonomia do seu próprio corpo, tal como descreve Sacks:

“Ela perdera junto com o senso de propriocepção, o ancoradouro orgânico fundamental da identidade – pelo menos da identidade corporal, ou ‘ego corporal’ que Freud considerava a base do eu. (...) Deve ocorrer alguma despersonalização ou ‘desrealização’ semelhante na presença de graves distúrbios da percepção ou imagem corporal” (Sacks, 1997, p. 68).

De modo análogo, assim que Oliver Sacks descreve seu distúrbio:

“Eu era um amputado interno. (...) Eu podia dizer que perdera a perna como um “objeto interno”, como uma “imago” simbólica e afetiva. Na verdade, parecia que eu precisava de ambos os conjuntos de termos, pois a perda interna em questão era tanto “fotográfica” como “existencial”. Assim, de um lado, havia uma severa deficiência perceptiva, de maneira que eu perdera toda a sensação da perna. De outro, havia uma deficiência “simpática”, de modo que eu perdera boa parte de meu sentimento pela perna. (...) O que poderia causar essa mudança profunda, calamitosa, esse colapso total de sentido e sentimento, esse colapso total da imagem neural – e da imago?” (Sacks, 2003, p. 65).

proprioceptiva estava completamente prejudicada devido a paralisia cerebral. O outro caso, trata-se do Senhor Macgregor, um homem cuja percepção proprioceptiva de seu corpo estava danificada: ele andava inclinado tal qual a Torre de Pisa e era totalmente alheio a esse fato. Mais do que uma referência aos órgãos do equilíbrio, o Senhor MacGregor não conseguia integrar os três sentidos necessários ao seu equilíbrio corporal: o sistema labiríntico, o proprioceptivo e o campo visual (Sacks, 1997).

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Para responder a essa questão, precisamos diferenciar imagem de esquema

corporal e verificar como ambas se correlacionam com os casos apresentados.

2.2. Imagem do corpo e esquema corporal

Apesar de Sacks não dialogar com os autores que apresentarei a seguir,

defendo que muitas de suas hipóteses se coadunam com os conceitos da fenomenologia

da percepção, que tem proposto definições de imagem e esquema corporais, muito

embora, algumas dessas definições tenham sido confundidas ao longo do percurso

histórico.

Segundo Morin & Thibierge (2004) a expressão “imagem do corpo” é usada

mais freqüentemente para fazer referência à aparência física sobre os distúrbios de

comportamentos alimentares ou a deficiência física. Ela pertence ao mesmo tempo à

linguagem da neurologia, da psiquiatria e a da psicanálise e adquiriu significados

diferentes segundo a época, a disciplina ou os pressupostos teóricos dos diversos

especialistas que a empregaram ou a empregam.

Schilder (1999) é um bom exemplo disso. Para ele, a imagem corporal é uma

“figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo

se apresenta para nós” (p. 7) cuja representação são dadas através de várias sensações

advindas da superfície do corpo, dos músculos, das vísceras, etc. Por outro lado, ele

define esquema corporal conforme a percepção da postura do corpo, ou seja, uma

imagem tridimensiconal que todos nós temos de nós mesmos. Toda a construção da

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imagem e do esquema corporal, para Schilder, está baseada na percepção do corpo

como uma unidade. Ele, portanto, faz uso dos termos como se fossem sinônimos.26

Em um determinado momento, Schilder chega a afirmar que a imagem

corporal pode se encolher ou se expandir, e como tal, podemos anexar objetos externos

à imagem do nosso corpo. “Quando tocamos um objeto com a extremidade de uma

vareta, a sensação é percebida na ponta da vareta. Esta se torna, realmente, parte da

imagem corporal” (Schilder, 1999, p. 233). Até mesmo uma peça de roupa, pode mudar

a imagem que temos do nosso corpo! Schilder, portanto, confunde imagem com

esquema corporal. Para ele, a imagem do corpo pode incorporar objetos. Mas uma coisa

é a construção da imagem do corpo em nossas mentes, outra é como os objetos externos

são incorporados como um “acessório” ao nosso corpo para que ele faça parte de nosso

esquema corporal, tal qual um objeto externo a ele.

Apesar de seus estudos se darem no âmbito das lesões neurológicas, Schilder

não avança na discussão quando deixa de abordar a questão pela via do mental versus

físico a exemplo de outros autores, tais como apontam Costa (2004), Weiss (1999) e

Gallagher (1986).

De acordo com esses autores, e seguindo o pensamento de Gibson, o corpo é

um objeto intencional e consciente, logo, a imagem do corpo é uma imagem ou

representação consciente, abstrata e desintegrada que se diferencia do resto do ambiente

(Gallagher, 1986). Por outro lado, o esquema corporal é definido como um conjunto de

sensações proprioceptivcas que fornecem ao organismo sua posição no ambiente, e não

26 Gallagher (1995) aponta que H. Head, no livro “Studies in neurology” de 1920, também usava os termos imagem corporal e esquema corporal como se fossem sinônimos. Para Head imagem do corpo e esquema corporal significam uma imagem ou representação consciente do corpo sem levar em questão o aspecto cognitivo.

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apenas o seu modelo postural, no qual, através dos órgãos dos sentidos, o corpo estaria

apto a agir e reagir aos estímulos do ambiente (Bermudez, 1998; Campbell, 1998).

O primeiro necessita de um fato mental com intencionalidade - pois está

sempre se referindo a um outro que lhe é exterior; privacidade - pois é constantemente

solicitada a representar à sua própria existência e o seu próprio “eu”; por fim, necessita

de uma representacionalidade – que pressupõe um mínimo de competência lingüística

do sujeito, ou dito de outro modo, a imagem do corpo é lingüisticamente organizada de

modo reflexivo ou pré-reflexivo, consciente ou inconsciente (Costa, 2004).

Gallagher ainda complementaria:

“O conceito de imagem do corpo inclui, primeiro, o corpo como ele é percebido na sua consciência imediata. Segundo, a imagem do corpo inclui meu construto pessoal de corpo, informado pela minha consciência imediata do meu corpo e pela minha compreensão intelectual (mítica e científica) do corpo. Terceiro, a imagem do corpo inclui minha atitude emocional dos meus sentimentos sobre o corpo. (...) A imagem do corpo, portanto, é um complexo fenômeno com, ao menos, três aspectos: perceptivo, cognitivo e emocional” (Gallagher, 1986, p. 545-546).

O esquema corporal, por outro lado, nem é uma compreensão perceptiva,

nem cognitiva, nem emocional, ele se distingue da imagem do corpo, pois ele é uma

performance inconsciente sem uma intencionalidade. Nessa performance, o corpo

adquire uma organização ou estilo em relação ao ambiente podendo incorporar objetos

externos a ele. O esquema corporal é a forma como o corpo experiencia o ambiente em

que se encontra. Ele envolve um conjunto de capacidades motoras, habilidades e hábitos

que capacita os movimentos e a postura do corpo no eixo gravitacional, e como tal é um

sistema de funções motora e postural que opera em um nível inferior da

intencionalidade auto-referente, muito embora essas funções possam ter uma atividade

intencional (Gallagher, 1986; 1995; 1998).

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Para experienciar o mundo, o corpo precisa agir, e para que o corpo possa

agir no mundo ele necessita de uma intencionalidade e um mínimo de competência

lingüística para poder se representar nesse mundo.27

Vários são os exemplos que podemos usar para ilustrar esse fato. O mais

comum refere-se à vareta que um deficiente visual usa para caminhar – o seu corpo não

se resume apenas a seus membros, mas prolonga-se até a última ponta da vareta que ele

usa para construir mentalmente o caminho a percorrer. Do mesmo modo, o corpo do

piloto de um avião não se resume à sua matéria corporal, mas sim a toda aeronave que

ele pilota. Por extensão, um exímio digitador ou pianista tem a ponta de seus dedos

prolongados pelo teclado ou do computador ou do piano, praticamente incorporando

esses objetos ao seu esquema corporal.

O fato de o corpo integrar-se a um objeto externo também pode ser ilustrado

à luz dos casos de Ramachandran, não só a partir da plasticidade do cérebro, mas

também a partir dos exemplos dos membros fantasmas. O caso da paciente que nascera

sem braços e usa próteses como se fossem braços verdadeiros, é outro exemplo claro de

como o esquema corporal pode ser útil para compreender a construção da imagem do

corpo e como o cérebro adapta-se à nova realidade. De modo análogo, a experiência da

caixa de espelhos usada para curar pacientes com sensações de membros e dores

fantasmas ilustra o uso do conceito de esquema corporal.

É nesse sentido que Sacks dialoga frontalmente com Ramachandran e com

Damásio acerca dos distúrbios neurológicos estabelecendo uma nítida distinção entre as

correntes de pensamento de um e de outro.

27 O corpo como sujeito da ação e da intencionalidade também são teses defendidas por Williams & Bendelow (1999), Campbell (1998), O’Shaughnessy (1998) e Gallagher (1998).

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Enquanto para Ramachandran o corpo está a serviço do cérebro, entendido

não apenas como uma unidade, mas como um “órgão rei” que comanda toda a

subjetividade e todas as capacidades motoras dos sujeitos, personificando-o,

individualizando-o, desintegrando-o da sua totalidade e recrudescendo, por mais que se

diga ao contrário o dualismo mente/corpo, mente/cérebro, cérebro/corpo, para Sacks, “o

corpo é uma unidade de ações, e se uma parte do corpo é separada da ação, ela se torna

‘alheia’ e não é sentida como parte do corpo” (Sacks, 2003, p. 171) mesmo no contexto

das lesões cerebrais do hemisfério direito e no lobo sensitivo ou parietal.

Talvez Sacks não tivesse se interessado pelos distúrbios da imagem do corpo

se ele mesmo não tivesse sofrido um distúrbio dessa natureza, no qual afeta diretamente

a atividade neural organizada para formar a imagem do corpo em seu cérebro. E foi essa

experiência que o fez prestar atenção no discurso de seus pacientes.

“Eu agora podia acolher totalmente as experiências de meus pacientes, entrar em imaginação em suas experiências e ser acessível e ‘receptivo’ naquelas regiões tenebrosas. Eu ouviria meus pacientes como nunca antes – suas gaguejantes, mal articuladas comunicações enquanto eles faziam a jornada por uma região que eu conhecia tão bem” (SACKS, 2003, p. 173).

Sacks, ao longo do seu percurso, estudou inúmeros casos de deficiência

sensitiva ou motora, de mãos e pés, decorrentes ou de lesões cerebrais ou de anestesia

local, ou de outros tipos de doenças mais graves, como tumor, diabetes ou câncer

terminal. Em outros estudos, Sacks também analisou os casos de membros fantasmas,

cuja imagem corporal fora afetada, encontrando correlação direta com distúrbios de

recepção e representação da imagem no córtex cerebral. Mais do que isso, Sacks

também analisa distúrbios severos da imagem corporal e do ego corporal em

conseqüência de lesão, doença ou distúrbios periféricos no lobo cerebral, afirmando que

todo paciente com graves danos na imagem corporal apresentava distúrbios igualmente

severo no ego corporal.

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A experiência ontológica desses sujeitos, com dissoluções ou aniquilações

do ser nas partes afetadas fizeram com que houvesse uma alteração da identidade ou na

percepção de si mesmo, com um fundamento neurológico, orgânico e nitidamente

definido.

Em nenhum desses distúrbios foi descartado exames neurológicos mais

apurados, baseados em técnicas de imageamento do cérebro, PET Scans, ou

magnetoencefalografia em 3D. No entanto, descrever experiências subjetivas,

resultantes de danos cerebrais a partir das técnicas de imagem cerebral, para Sacks, não

daria conta da singularidade de cada um de seus pacientes, nem apontaria para o seu

sofrimento psíquico e do seu próprio eu:

“O organismo é um sistema unitário, mas o que é um sistema para um self vivo real? A neuropsicologia fala de ‘imagens internas’, ‘esquemas’, ‘programas’ etc., mas os pacientes falam de ‘experimentar’, ‘sentir’, ‘tencionar’ e ‘agir’. A neuropsicologia é dinâmica, mas ainda é esquemática, ao passo que as criaturas vivas, no todo, têm um self – e são livres. Isso não equivale a negar que há sistemas envolvidos, e sim a dizer que os sistemas estão embutidos no self e que o self transcende esses sistemas. (...) A neuropsicologia é admirável, mas exclui a psique – exclui o ‘eu’ vivo, ativo, que tem experiências. (...) O caráter objetivo e empírico da neurologia impossibilita considerações do sujeito, do ‘eu’. (...) O que precisamos agora, e precisamos para o futuro, é de uma neurologia do self, da identidade” (Sacks, 2003, p. 181-182).

Podemos dizer com isto que, em certo sentido, Sacks “humanizou” a

neurologia ao dar voz a seus pacientes com distúrbios neurológicos, em busca da

recuperação de uma certa normalidade e de sua subjetividade, ao passo que transformou

a ciência neurológica em uma disciplina mais ética e mais humana, “despatologizando”

a maioria dos seus pacientes (Couser, 2001), e transformando a experiência subjetiva

encarnada não na materialidade do cérebro, mas na materialidade do corpo humano

como um todo.

Se por um lado, Sacks não cria nenhuma grande teoria para explicar e

comprovar a construção da imagem do corpo fora dos registros neurológicos e

neurocientíficos, de acordo com as recentes descobertas possibilitados pela tecnologia

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médica disponível, por outro, ele ressalta a importância de teorias do campo

fenomenológico para descrever e compreender o mais amplamente possível as

experiências subjetivas.

A construção da imagem do corpo, para ele, é resultante de uma descrição da

experiência subjetiva, do reconhecimento de um sujeito como campo da ação.

Ehrenberg (2004) ressalta essa perspectiva ao afirmar que seria necessário distinguir

dois campos nitidamente distintos quanto às doenças neurológicas que opõe o cerebral e

o relacional, recrudescendo a perspectiva de Sacks, por tornar a neurologia “mais

solidária” a seus pacientes. Em neurologia, os problemas psicopatológicos ou distúrbios

funcionais são suscitados por causas ou biológicas ou inerentes à própria doença. Nesse

sentido, Sacks participa dessa perspectiva ao mostrar a necessidade de uma investigação

clínica e profunda sobre a compreensão psicológica de seus pacientes. Ehrenberg, desse

modo, opõe o sujeito cerebral ao sujeito falante ao dar voz aquilo que a neurologia ou as

neurociências buscam sob forma de imagens.

Assim, o que Sacks propõe não é a compreensão da subjetividade humana,

da identidade e da construção da imagem do corpo a partir de uma entidade exterior ao

corpo. O cérebro é um órgão integrado à visceralidade da matéria do próprio corpo, e

como tal, necessita desse corpo e de todos os seus dispositivos necessários para

conhecer, reconhecer e decodificar todos os estímulos providos pelo ambiente e pela

interioridade de sua carne, construindo imagens de si, narrativas de si e fundamentando

o seu “eu” e a sua identidade a partir do seu equipamento lingüístico. Com isso, Sacks

quebra definitivamente o modelo clássico do dualismo descartiano e aponta para

possível compreensão de uma neurologia mais voltada para a identidade do que para as

descrições dos distúrbios neurológicos:

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“Não existe representação de ‘espaço’ abstrato no cérebro – apenas de nosso ‘espaço pessoal’ próprio. (...) Nosso corpo é pessoal – que é o primeiro definidor do ego ou self (“O ego é sobretudo um ego corporal”, escreveu Freud). A neurologia baseia-se ainda em um modelo mecânico. O modelo mecânico remonta Descartes, à sua divisão dicotômica entre corpo e alma, sua concepção do corpo como um autônomo, com um ‘eu’ que sabe-tenciona pairando de alguma forma sobre o corpo” (Sacks, 2003, p. 206).

Freud, foi aquele que teve a ousadia de quebrar a barreira do campo

neurológico na sua época e apontar para uma nova forma de ver o sujeito sem os

grilhões da neurologia da sua época.

Sacks, por seu turno, tentou apontar para um novo campo da ciência do

século XXI, uma “neurologia romântica” como ele bem a definiu no início de seus

estudos, ou quem sabe, uma “neurologia da identidade”, uma “neurologia self”, uma

“neurologia do ‘eu’”.

No que Sacks falha ao tentar pautar sua clínica na escuta de seus pacientes

sem grandes saltos teóricos, António Damásio vai propor uma rígida teoria para

descrever não só a imagem do corpo mas também o campo subjetivo, conforme

veremos a seguir.

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CAPÍTULO 3

DAMÁSIO E O CORPO NO TEATRO DAS EMOÇÕES E DOS SENTIMENTOS

“Até agora ninguém abriu o meu crânio para ver se contém um cérebro; mas tudo corrobora e nada é contra que seja isso o que lá se encontra?”

Wittgenstein

Da certeza

Sempre que o tema corpo e mente é posto em discussão, a figura de René

Descartes é chamada como aquele que influenciou as ciências no mundo ocidental a

partir do dualismo cartesiano que considerava essas duas entidades como

independentes.

O corpo para Descartes, nada mais é do que uma máquina sem alma, um

modelo por meio do qual ele estava predisposto à consciência e ao movimento. Porém,

sem alma, esse objeto-máquina não representava a metafísica dos seres humanos. Era

preciso Deus fundir corpo e alma em um único objeto para que a máquina pudesse

ascender à categoria de verdadeiro homem.

Mas como chegar a essa categoria de “verdadeiro homem”? Como ter a

certeza de que a alma e o corpo estariam fundidos em um só objeto? Qual entidade

física ou metafísica dotaria o homem de uma identidade que o diferenciasse do resto dos

animais?

Descartes parte do pressuposto de que a razão e a vontade é o que nos

diferencia dos animais e nos torna humanos (Descartes, 1999a; 1999b). Daí a máxima

“penso, logo, existo” (na qual se ancora o “eu”) necessitar de uma introspecção mental,

um ato intelectual acerca do próprio pensamento para se alcançar essa verdade.

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Assim, a passagem da certeza a respeito da existência do pensamento, a res

cogitans, para a certeza da existência do mundo físico, a res extensa, necessitaria de

uma terceira certeza, qual seja, o apoio em Deus, a res infinita, que serve de

intermediário entre as duas certezas anteriores: “sou uma coisa que pensa” (res

cogitans) e tenho um corpo (res extensa). A extensão e o pensamento, definidos como

substâncias ou entidades perfeitamente distintas, coexistem mutuamente no homem a

partir do dualismo corpo e alma ou corpo e mente. Enfim, Descartes buscava sustentar

um conhecimento racional do mundo fundado numa ciência dita empírica que por sua

vez se pautava na observação da natureza e na descoberta das relações causais entre os

fenômenos. Além disso, ele defendia a racionalidade como não se submetendo às

mesmas leis do mundo físico ou da natureza material, pois esta era um exercício

autônomo e reflexivo cujo objetivo era libertar a matéria do espírito.

Partindo desse pressuposto, o neurologista português radicado nos Estados

Unidos António R. Damásio, Chefe do Departamento de Medicina da Universidade de

Iowa e professor do Instituto Salk de Estudos Biológicos na Califórnia, deu início a uma

série de investigações sobre o cérebro humano e sobre as bases biológicas da

subjetividade, sobretudo a neurologia das emoções e dos sentimentos, ora explorando

algumas patologias neurológicas, ora baseando suas teses nos resultados empíricos de

suas observações. Damásio trabalhou como pesquisador do Centro de Pesquisas da

Afasia de Boston e atuou como clínico no tratamento dos transtornos do comportamento

e da cognição e, como teórico, passou a se interessar pela “neurobiologia” da mente

estudando especificamente os sistemas neurais da consciência. Nos últimos anos

pesquisou as emoções e os sentimentos em sua relação com as bases neurais e cerebrais.

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Ao final do seu livro “O Erro de Descartes”, Damásio propõe uma crítica à

metafísica do corpo e da mente proposta por Descartes, ao afirmar que seu erro foi

propor a separação entre as substâncias “mental” e “corporal”. Cito Damásio:

“O grande erro de Descartes foi a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro” (Damásio, 1996, p. 280).

Damasio libera o cérebro do modelo dualista, pois o espírito depende de uma

substância pensante, qual seja, a alma. O que Damásio propõe é provar que a res

extensa e a res congitans descartiana, como sabemos, não são duas entidades separadas

e divisíveis, mas sim uma só entidade e está o tempo todo influenciando a construção da

nossa identidade pessoal e do nosso “eu”. No entanto, Damásio vai afirmar que as bases

da identidade pessoal, da imagem do corpo e da construção de “eu” encontram-se no

substrato neural, distribuído ao longo do nosso córtex cerebral cujas marcas também

estão distribuídas em nosso corpo.

Nesse capítulo, objetivo investigar as proposições de Damásio resultante de

seus estudos neurológicos e patológicos sobre as emoções e os sentimentos, tema este

que tomou boa parte de suas pesquisas e de sua produção intelectual.

3.1. A neuro-anatomia das emoções e dos sentimentos

O domínio das emoções e sentimentos, para Damásio, recobrem uma vasta

superfície da nossa vida interior e exterior.

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Emoções e sentimentos são encontrados ao longo da nossa experiência

subjetiva. Muitos de nós conhecemos e sabemos enumerá-los e distingui-los: a dor da

perda de alguém que amamos, a raiva, a mágoa, a felicidade, a indiferença, o medo, a

coragem, a depressão, o amor, a impotência, o bom e mau humor, entre outros, são

alguns deles. Emoções e os sentimentos, portanto, são necessários para a nossa

sobrevivência e nos auxilia prever relativamente o nosso futuro, planejando-o.

Mas o que diferencia as proposições de Damásio no tocante a esse assunto é

que ao invés de pensar em emoções e sentimentos como uma construção subjetiva a

qual estamos mergulhados ao longo da nossa vida, situando-nos no mundo, o autor

argumenta que este mesmo conjunto de proposições possui um substrato neural sem o

qual não seria possível a nossa sobrevivência. Isto foi adquirido biologicamente ao

longo de um processo de “aperfeiçoamento” do nosso cérebro.

Este argumento está pari passu de acordo com as proposições darwinistas e

neodarwinistas, as quais têm acentuado e colocado em relevo o organicismo e a biologia

como sustentáculos da pretensa natureza e subjetividade humana.

Como sabemos, a biologia encerrou o século XX em um posto infinitamente

superior ao que era considerada há 100 anos: ela foi elevada ao papel fundacional de

“ciência-paradigma” neste início de século ao propor, por exemplo, a plasticidade

cerebral comprovada através das mais modernas tecnologias de “imagem cerebral”,

leia-se, ressonância magnética nuclear, tomografia por emissão de pósitrons, tomografia

por emissão de fóton único, etc. (Bezerra Jr., 2000).

A ciência moderna, através da tecnologia de “imagem cerebral”, no entender

de Damásio, é uma ferramenta que pode ajudar a compreender a gênese da

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subjetividade humana, sobretudo quando ele estudou as diversas modalidades de

patologias neurológicas.

Bem lembrado, de acordo com António Damásio, as emoções e sentimentos

constituem a base daquilo que os seres humanos têm descrito como sendo a alma ou o

espírito humano (Damásio, 1996)28.

Porém, se as emoções e sentimentos são descritas como o equivalente da

alma ou do espírito de todos os seres humanos, caberia perguntar qual seria o

equivalente ao corpo na teoria de Damásio.

Para o autor, o corpo nada mais é do que uma representação no cérebro

através de processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O corpo, então, é

usado como referência para as interpretações do mundo externo e para a construção da

subjetividade.

“A mente existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido” (Damásio, 1996, p. 17).

Para Damásio, os sentimentos e as emoções são um resultado de uma

organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das atividades

teatrais do corpo, no qual os mais refinados pensamentos e ações, alegrias e mágoas,

prazeres e sofrimento fazem uso material do corpo para se expressar.

Mas de que modo a mente teve que se ocupar do corpo para existir? De

acordo com o autor, 1) o cérebro humano e o resto do corpo constituem um único

28 Estudos recentes têm apontado a “insula” como a responsável pelas emoções e sentimentos humanos. A ínsula foi descrita pela primeira vez no fim do século XVIII pelo anatomista e fisiologista alemão Johann Christian Reil, possui o tamanho de uma ameixa seca e trabalha diretamente com o córtex pré-frontal e a amígdala, funcionando como uma espécie de tradutor das sensações humanas tais como sons, cheiros ou sabores em emoções e sentimentos, tais como nojo, desejo, orgulho, arrependimento, culpa ou empatia. De acordo com o neurologista Mauro Muszkat, estudos mostram que a superativação da ínsula está diretamente relacionada a diversos distúrbios psiquiátricos, tais como as fobias e o transtorno obsessivo-compulsivo. Conforme Buchalla (2007).

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organismo indissociável, formando um conjunto integrado que é regulado por meio de

circuitos bioquímicos e neurológicos; 2) esse cérebro e esse corpo, por conseqüência,

interagem com o mundo e por fim 3) as operações fisiológicas a que ele chama de

“mente” deriva de um conjunto estrutural e funcional entre o cérebro, o ambiente e o

corpo (Damásio, 1996, p. 17)29.

Percebam que Damásio ao criticar o dualismo descartiano, ele ressalta a

influência do ambiente na construção dessa complexa estrutura chamada cérebro em sua

intrínseca relação com o corpo. Mas vejam que ele enfatiza o mecanismo biológico ou

neurológico, ao afirmar que a mente surge da atividade dos neurônios e não de uma

relação subjetiva entre o sujeito e o meio o qual ela pertence30.

Seus estudos de caso, pautados em patologias da memória, linguagem e

raciocínio em indivíduos com lesões cerebrais reiteradamente levaram-no a acreditar na

construção de uma “mente suficientemente boa” cada vez mais dependente da

quantidade e qualidade das conexões neuronais.

Neste caso, Damásio não está preocupado unicamente com a provisão de um

ambiente na qualidade dessa mente, mas sim, em como as conexões neurais podem criar

uma mente e uma vida subjetiva – “a mente suficientemente boa”.

Para Damásio, aquilo que chamamos de self nada mais é do que uma parte

da mente cujas emoções e sentimentos eram induzidas no cérebro, representadas no

29 De acordo com o autor “uma mente, aquilo que define uma pessoa, requer um corpo, e que um corpo, um corpo humano, naturalmente gera uma mente. A mente é tão estritamente moldada pelo corpo e destina-se a servi-lo que somente uma mente poderia surgir nesse corpo. Não há mente que não tenha um corpo, não há corpo que tenha mais de uma mente.” Conforme Damásio (2000a, p. 187). 30 Em um outro momento, Damásio vai afirmar: “cérebro e corpo continuam a serem concebidos como separados em termos de estrutura e de função. A idéia de que o organismo inteiro, e não apenas o corpo ou o cérebro, interage com o meio ambiente é menosprezada com freqüência, se é que se pode dizer que chega a ser considerada. No entanto, quando vemos, ouvimos, tocamos, saboreamos ou cheiramos, o corpo e o cérebro participam na interação com o meio ambiente”. Conforme Damásio (1996, p. 255)

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“teatro do corpo” e alterando fisiologicamente a estrutura desse corpo na medida em

que elas evoluíam (Damásio, 1996; 2000a; 2004).

Porém, antes de prosseguirmos, vejamos como o autor define e caracteriza as

emoções e os sentimentos e como ele as correlaciona com a mente e o corpo.

Para António Damásio, há uma nítida distinção entre aquilo que é da ordem

das emoções e aquilo que é da ordem dos sentimentos: as emoções, diz ele, ocorrem no

“teatro do corpo”, enquanto que os sentimentos ocorrem no “teatro da mente”. As

emoções, ele continua, fazem parte dos mecanismos básicos da regulação da vida,

enquanto que os sentimentos contribuem para a regulação da vida em um nível mais

alto. A primeira precede os sentimentos na história da vida e constituem o alicerce da

segunda. Os sentimentos, por sua vez, constituem as “coxias”, ou seja, o “pano de fundo

no teatro da mente” (Damásio, 2004, p. 35).

Enquanto William James (1890) compreendia as emoções e os sentimentos

como um processo redutível ao nível do corpo influenciado pelo ambiente, ou seja,

como uma resposta do corpo a uma quantidade de reações e situações pelas quais

passamos – por exemplo, um aumento da aceleração cardíaca frente ao medo somado a

uma suspensão da respiração e um tremor no corpo, ou contrariamente a um aumento da

respiração, narinas dilatadas e dentes cerrados quando estamos com raiva, Damásio

(1996) evoca os meios neurais para explicar as mesmas sensações corporais no processo

emocional.

“Uma emoção, pode ser alegria ou tristeza, vergonha ou orgulho, é uma coleção padronizada de respostas químicas e neurais que é produzia pelo cérebro quando ele detecta a presença de um estímulo emocionalmente competente – um objeto ou situação, por exemplo. (...) Respostas emocionais são um modo de reação do cérebro

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que são preparadas pela evolução para responder a certas classes de objetos e eventos com um certo repertório de ação” (Damásio, 2001, p. 781)31.

Essas reações acima descritas, segundo ele, são todas detectadas

primeiramente pelo nosso cérebro que envia sinais para o nosso corpo. O medo, por

exemplo, é detectado pelo sistema límbico do cérebro, principalmente pela amígdala,

que possui uma “representação dispositiva que desencadeia a ativação de um estado do

corpo, característico da emoção do medo, e que altera o processamento cognitivo de

modo a corresponder a esse estado de medo” (Damásio, 1996).

Quando vemos um animal de grande porte, ou quando reconhecemos um

sinal de perigo tal como um assalto, os córtices sensoriais iniciais detectam e

classificam a característica de uma determinada situação enviando sinais para a

amígdala, que por sua vez sinaliza como o corpo deve reagir.

A esse tipo de emoção, Damásio denominou de “emoções primárias”. As

emoções primárias são “pré-organizadas” e dependem de uma rede de circuitos do

sistema límbico, sendo a amígdala e o cíngulo os principais responsáveis pela resposta à

provisão do ambiente. Esses achados estão de acordo com observações em animais e

seres humanos, cujos responsáveis foram as avaliações em pacientes epilépticos feitas

por Wilder Penfield (o mesmo que esboçou a representação do corpo no cérebro) e

Pierre Gloor e Eric Halgren, cuja avaliação cirúrgica nesse tipo de paciente requeria

estimulação elétrica em diversas regiões do lóbulo temporal (Damásio, 1996).

31 Para testar a hipótese de que as emoções e os sentimentos requerem a participação de regiões do cérebro, especificamente as regiões corticais, subcorticais, córtex sômato-sensorial e núcleo superior do tronco cerebral, que são envolvidos no mapeamento ou regulação de estados do organismo interno, Damásio e colaboradores analisaram um grupo de sujeitos, com o uso de PET scans, que experimentaram episódios da vida pessoal marcados por sentimentos de alegria, felicidade, raiva e medo. De modo geral, todos os resultados sustentaram a hipótese apresentada, qual seja, a de que todas as emoções citadas estavam comprometidas com as estruturas relatadas para a representação ou regulação do estado do organismo, tais como o córtex insular, o córtex secundário sômato-sensitivo, córtex singular e o núcleo do tronco cerebral e o hipotálamo. Para uma melhor compreensão da pesquisa, remeto o leitor a Damásio (et all.), 2000b.

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Mas de acordo com o autor as emoções primárias são apenas parte da nossa

gama de comportamentos emocionais. Existem também aquelas que são chamadas de

“emoções secundárias”, e essas, são as que mais nos interessam, pois são essas que

evocam imagens e reações em nosso corpo, de modo semelhante na construção da

imagem corporal.

De acordo com Damásio, “experienciar uma emoção” é construir uma

“imagem mental” (ou representação) dela e conseqüentemente provocar uma mudança

no estado do corpo (Damásio, 1996, p. 165). De que modo?

Quando evocamos uma lembrança de algo que está em nossa memória,

construindo assim, uma “imagem mental” dessa lembrança, acabamos por provocar

também uma reação dessa emoção específica em nosso organismo. Dito de outro modo,

quando relembramos um amigo ou quando sabemos da morte de uma pessoa querida,

dá-se um conjunto de reações específicas no organismo. A lembrança do amigo pode

provocar mudança no estado corporal – aceleramento cardíaco, mudanças sensitivas na

pele ou músculos, etc. A morte de um ente querido provoca outras reações no

organismo – a depressão é uma delas. Em todo o caso, registra-se um conjunto de

mudanças viscerais, nos músculos e nas glândulas endócrinas; o cérebro, por

conseqüência, libera uma série de moduladores peptídeos para a corrente sangüínea e há

a alteração do sistema imunológico. Vasos sangüíneos começam a se estreitar, músculos

podem relaxar ou se retesar, a pele pode empalidecer ou ruborizar-se. Após algum

tempo, o corpo procura voltar ao equilíbrio funcional ou homeostase. Considero, pois,

que o principal alvo de uma resposta emocional, certamente é o corpo!

As imagens mentais dessas lembranças que provocam não só alteração no

corpo, mas também participam da experiência das emoções, são processos conscientes e

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envolvem uma série de aspectos, reflexões e conseqüências para a pessoa. Algumas

dessas imagens, não são verbais enquanto que outras o são. De acordo com Damásio

“o substrato neural para essas imagens é uma coleção de representações autônomas topograficamente organizadas que ocorrem em diversos córtices sensoriais iniciais (visual, auditivo e outros). Essas representações são criadas sob o controle de representações dispositivas distribuídas por um grande número de córtices de associação. (...) Em um nível não consciente, redes no córtex pré-frontal reagem automática e involuntariamente aos sinais resultantes do processamento das imagens acima descritas. (...) A resposta das disposições pré-frontais é assinalada à amígdala e ao cíngulo anterior.” (Damásio, 1996, p. 165-166)

Dá-se, em seguida, um conjunto de reações cerebrais específicas para que o

corpo passe a reagir. As disposições pré-frontais do cérebro vão produzir mudanças no

corpo

“ativando os núcleos do sistema nervoso autônomo e enviando os sinais ao corpo através dos nervos periféricos, com o resultado de que as vísceras são colocadas no estado mais tipicamente associado ao tipo de situação desencadeadora. [Depois] enviando sinais ao sistema motor, de que a musculatura esquelética complete o quadro externo de uma emoção por meio de expressões faciais e posturas corporais. [Em seguida] ativando os sistemas endócrino e peptídeo, cujas ações químicas resultam em mudanças no estado do corpo e do cérebro. E, por último, ativando, com padrões especiais, os núcleos neurotransmissores não específicos no tronco cerebral e prosencéfalo32 basal, os quais liberam então as mensagens químicas em diversas regiões do telencéfalo33 (por exemplo, gânglios basais e córtex cerebral)” (Damásio, 1996, p. 166)

O corpo passa a ser bombardeado por uma série de estímulos neurais, de

hormônios a neurotransmissores, que uma vez dentro da corrente sanguínea, provoca no

organismo uma reação específica ao ambiente em que ele se encontra. O corpo irá reagir

de acordo com as injunções dos sistemas corticais e da cadeira de neurotransmissores

que fazem parte do cérebro. Foi a isso que Damásio chamou de “experienciar uma

emoção”.

E o que é um sentimento?

Para Damásio, todas as emoções originam sentimentos, mas nem todos os

sentimentos vêm de emoções.

32 É a parte anterior das vesículas encefálicas primitivas e que irá dividir-se em telencéfalo e diencéfalo. 33 Porção anterior do prosencéfalo, a qual dá origem aos hemisférios cerebrais.

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Perceber o sentimento de uma emoção, diz ele, é identificar todas as

alterações que ocorrem no seu corpo, desde aceleração dos batimentos cardíacos a

movimentos das vísceras. Todas essas alterações são assinaladas pelo seu cérebro por

meio de terminações nervosas que levam a impulsos da pele, dos vasos sangüíneos, das

vísceras, dos músculos e articulações, obtendo-se, assim, uma “imagem neural” do seu

corpo. Aqui, Damásio se contrapõem veementemente às teorias de Ramachandran, ao

desconsiderar a construção da imagem do corpo através de áreas topograficamente

localizadas no cérebro, tal como visto pelo homúnculo de Penfield.

“Nos córtices cerebrais que recebem a todo o momento esses sinais, verifica-se um padrão de atividade neural em constante mutação. Não há nada de estático, nenhuma linha de base, nenhum homenzinho – o homúnculo – sentado dentro do cérebro como uma estátua, recebendo sinais da parte correspondente do corpo. Registra-se, em vez disso, uma mudança interessante. Alguns dos padrões estão organizados de forma topográfica, outros não tanto, não constando de um único mapa, de um só centro. Existem muitos mapas, coordenados por conexões neuronais mutuamente interativas” (DAMÁSIO, 1996, p. 174).

Em outro momento, ele vai afirmar: “Não existe um homúnculo, metafísico

ou no cérebro, sentado no teatro cartesiano como um espectador único, esperando que

os objetos saiam à luz” (Damásio, 2000a, p. 27).

Os sentimentos, como pode se ver, participam da consciência de que se tem

um corpo e que ele está vivo. Mais do que isso, os sentimentos, para Damásio, são o

registro da consciência do corpo através da percepção de mudança de um estado

corporal. Dito de outro modo, os sentimentos são uma representação mental de

mudanças fisiológicas que caracterizam as emoções. Essa mudança de estado corporal é

desencadeada por um conjunto de conexões neuronais que bombardeiam o corpo

através de uma verdadeira “viagem química” hormonal, ao contrário do mapa do córtex

cerebral defendido por Ramachandran:

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“As representações do corpo atuais não correm num mapa cortical rígido, como os tradicionais diagramas do cérebro humanos nos levaram a supor erradamente. Manifestam-se por meio de uma representação dinâmica, constantemente renovada em instâncias novas e de acesso imediato, on-line, do que está sucedendo no corpo em cada momento. Seu valor reside nessa atualização e acessibilidade imediata. (...) Os hormônios e os peptídeos liberados no corpo durante a emoção alcançam o cérebro por intermédio da corrente sanguínea e penetram nele ativamente pela chamada barreira sangue-cérebro ou, ainda mais fácil, pelas regiões cerebrais destituídas dessa barreira” (Damásio, 1996, p. 174).

Se as emoções podem ser definidas a partir de um conjunto de alterações do

estado corporal, associadas a imagens mentais, o processo de mudanças de estados

corporais enquanto uma série de pensamentos se desenvolve, é o que Damásio irá

chamar de sentimentos. Dito em outras palavras, um sentimento depende da

justaposição de uma imagem do corpo com uma outra imagem, um objeto externo, por

exemplo, seguido de um estímulo que pode ser visual, tátil ou auditivo. A produção de

uma imagem corporal e a consciência do próprio corpo se dá através da percepção de

uma emoção e de um sentimento que por sua vez provoca uma mudança de estado

corporal (Damásio, 1996, 2000a, 2004).

A construção da imagem do corpo, para Damásio, se dá através das emoções

e sentimentos no “teatro do corpo” através de uma representação desse corpo na rede

neuronal. Vejamos agora essa tese defendida pelo autor.

3.2. Emoções e sentimentos no “teatro do corpo”: a construção das imagens

corporais

Damásio não possui afinidades teóricas com os escritos de Henri Bérgson

apesar de ambos dividirem alguns pontos de vista no que se refere a construção de

imagens corporais. Damásio, privilegia o cérebro e as disposições neurológicas na

construção dessas imagens. Bérgson, não descarta o cérebro, mas privilegia a interação

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entre o corpo e o ambiente. Mas para este último, tantos os nervos aferentes quanto o

cérebro e os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados pelo cérebro

também são imagens. Imagens externas e internas do corpo, portanto, afetam

diretamente o cérebro que por sua vez afetam a homeostase corporal. Bérgson, pode-se

dizer, é um interacionista:

“Eis as imagens exteriores, meu corpo, e finalmente as modificações causadas por meu corpo às imagens que o cercam. (...) As imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento (...). Pode dizer que meu corpo é matéria ou que ele é imagem, pouco importa a palavra. Se é matéria ele faz parte do mundo material, e o mundo material conseqüentemente, existe em torno dele e fora dele”(Bergson, 1990, p. 10-11).

Bérgson pauta a construção de uma imagem corporal em estreita relação

com o mundo exterior: o corpo é afetado pelo ambiente externo e este, ao mesmo

tempo, afeta o corpo. Damásio, por sua vez, não desconsidera a influência do mundo

externo na construção da imagem do corpo, mas como veremos a seguir, ele pauta as

suas hipóteses a partir de uma “exegese cerebral”: “o cérebro e o corpo encontram-se

indissociavelmente integrados por circuitos bioquímicos e neurais recíprocos dirigidos

de um para o outro” (Damásio, 1996, p. 113). Poderíamos afirmar que Damásio, na

verdade, nada mais seria um “fisicalista não-redutivo”, mas também poderiamos chamá-

lo de um interacionista, no sentido de que ele compreende corpo e cérebro, cérebro e

mente como sendo integrados, e isso em nada tira o mérito de suas teses.

Para a construção da imagem corporal, afirma Damásio, o cérebro recebe

sinais não apenas do corpo, mas de outras partes de sua própria estrutura interagindo

mutuamente com o ambiente. Não existe uma interação apenas corpo-ambiente, corpo-

cérebro ou cérebro-ambiente, mesmo porque, conforme afirmam Damásio e Bérgson,

corpo e cérebro encontram-se em uma mesma estrutura indissociável, sem o qual não

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existiria nem corpo, nem mente, nem muito menos cérebro! Ambos geram respostas

internas, algumas das quais constituem imagens visuais, auditivas, sômatossensitivas,

entre outras, base para aquilo que Damásio denominou de mente.

A mente, para ele, é um organismo no qual é capaz de formar representações

neurais ou dispositivas que podem se tornar imagens manipuláveis em um processo

chamado pensamento.

“Desenvolver uma mente, o que realmente quer dizer desenvolver representações das quais se pode tomar consciência como imagens, conferiu aos organismos uma nova forma de se adaptar a circunstâncias do meio ambiente que não poderia ter sido previstas no genoma. A base para essa adaptabilidade terá provavelmente começado pela construção de imagens do corpo em funcionamento, a saber, imagens do corpo enquanto ia reagindo ao ambiente de forma externa (digamos, usando um membro) e interna (regulando o estado das vísceras)” (Damásio, 1996, p. 260).34

O cérebro evolui, afirma Damásio, e dizer isso significa dizer que o cérebro

passa a ocupar-se do corpo para a sua sobrevivência da forma mais eficaz possível

através de representações do mundo exterior. Representar o mundo exterior, em termos

das modificações que são produzidas no corpo, quer dizer representar o meio ambiente

por meio da modificação dessas representações primordiais, sempre que tiver lugar uma

interação entre o organismo e o meio ambiente.

Mas onde se localiza essa “representação primordial” e o que é esse tipo de

representação? Para Damásio, elas são de três tipo: a primeira refere-se à “representação

dos estados de regulação bioquímica” em estruturas do tronco cerebral e do hipotálamo;

a segunda representação é a “representação das vísceras” que, segundo o autor, inclui

não só os órgãos do tronco superior – a cabeça e o abdômen e a massa muscular -, e a

pele - uma super-membrana que nos delimita como sendo uma unidade; e por fim, a

“representação da estrutura músculo-esquelética” e seu movimento potencial. De acordo

34 A discussão em torno do conceito de mente é vasta e não caberia aqui dar conta dela. No entanto, remeto o leitor aos textos Searle (1997, 1998) e Priest (1991) que, segundo penso, avançaram nesse debate de modo profícuo. Ver também Sacks (1993).

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com o autor, essas representações encontram-se distribuídas por diversas regiões

cerebrais e são coordenadas por conexões neuronais, sendo a pele a principal

responsável por essas coordenações.

Dito de outro modo, à medida que o cérebro vai incorporando as

representações dispositivas de interação com entidades do mundo exterior ou objetos

externos e situações relevantes para a regulação do corpo, ele passa a aumentar a

probabilidade de abranger entidades e situações que podem ou não ser necessárias para

a sua sobrevivência. Quando isso ocorre, diz Damásio, nossa compreensão de mundo

exterior se expande modificando o espaço neural em que o corpo e o cérebro interagem.

Assim, a mente encontra-se “incorporada” e não apenas “cerebralizada”, sede do centro

da neurobiologia, que corresponde ao

“processo por meio do qual as representações neurais, que são modificações biológicas criadas por aprendizagem num circuito de neurônios, se transformam em imagens nas nossas mentes; os processos que permitem que modificações microestruturais invisíveis nos circuitos de neurônios (em corpos celulares, dendritos e axônios, e sinapses) se tornem uma representação neural, a qual por sua vez se transforma numa imagem que cada um de nós experiencia como sendo a sua” (DAMÁSIO, 1996, p. 116).

Mas isso não se dá sem a marca insofismável do ambiente, diz Damásio.

Corpo e cérebro interagem intensamente entre si de forma não menos intensa que o

ambiente que os rodeia deixando a sua marca. Uma das formas que o ambiente tem de

deixar sua marca na interação corpo e cérebro é através da estimulação da atividade

neural dos olhos, dos ouvidos e das terminações nervosas localizadas na pele, nas

papilas gustativas e na mucosa nasal, ou seja, através dos órgãos dos sentidos.

“As terminações nervosas enviam sinais para pontos de entrada dos circunscritos no cérebro, os chamados córtices sensoriais iniciais da visão, da audição, das sensações somáticas, do paladar e do olfato. (...) Cada região sensorial inicial (os córtices visuais iniciais, os córtices auditivos iniciais, etc.) é um conjunto de áreas diversas, existindo uma intensa sinalização cruzada dentro desses agregados e cada conjunto sensorial inicial.” (Damásio, 1996, p. 117).

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Vejam que na perspectiva interacionista e fisicalista não-redutivista de

Damásio, o ambiente afeta o corpo a partir dos dispositivos neurais providos pelo

próprio corpo, ou melhor, pelo cérebro, nas áreas responsáveis por esses estímulos.

Certamente, sem os dispositivos sensoriais e sem sua estreita conexão com o cérebro,

jamais teríamos capacidade de perceber o mundo que nos cerca. Não obstante, o que

chama a nossa atenção na descrição do autor é sua lógica para interpretar os estímulos

vindo do ambiente, unicamente a partir da provisão neural.

Do ponto de vista do fisicalismo, o cérebro torna-se exclusivamente a análise

causal apenas se os fenomenologistas recusam sua discussão, mas como qualquer outra

estrutura corporal, tais como o olho, a boca ou a mão, o cérebro pode ser compreendido

não apenas fisicalisticamente, mas como um órgão que faz parte do “corpo vivo”, uma

estrutura de infinitas possibilidades para o mundo (Leder, 1990).

Para Drew Leder, a negligência fenomenológica do cérebro é puramente

aparente, visto que o cérebro quase nunca aparece como sendo um órgão da percepção

direta, em oposição à superfície do corpo, a pele, que é visível para todos nós. O cérebro

não desponta no teatro do corpo como ator principal, ele esconde-se sobre uma densa

armadura que o protege do resto do corpo e do mundo vivo. Só podemos vê-lo em

situações tais como autópsia, através de diagnóstico de técnicas de imagem ou pintura e

fotos de livros de medicina ou psicologia cognitiva, mas não temos acesso direto à

massa cerebral, tal como temos ao nosso sistema perceptivo. Adequamos a referendar os

órgãos dos sentidos com sendo unicamente os responsáveis por perceber os estímulos

do ambiente, decodificando-os, mas não o cérebro.

“Há um fundo de experiência intersubjetiva aqui, diz Leder, que

invariavelmente perpassa a consciência da primeira pessoa” (Leder, 1990, p. 111).

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Aqui entramos no campo do que Leder denominou de “dis-aparecimento”

(disappearance) como característica principal de todo encorporamento vivo (lived

embodiment). O termo “dis-aparecimento” tem conotação de anormalidade, ou

aparecimento doentio ou disfuncional do corpo. Para Leder, todo ato de movimento

requer a presença ou aparecimento das partes do corpo diretamente implicada na ação.

O quase completo “dis-aparecimento” do cérebro pode confirmar sua relativa

centralidade na experiência viva, ou seja, longe de resistir a um tratamento

fenomenológico, esse cérebro-ausente parece gritar para alguém perceber a sua

existência no mundo.

“Aqui está uma forma de profundo dis-aparecimento. Como meus órgãos viscerais, meu cérebro é encoberto nas profundezas do meu corpo, escondido do meu poder exteroceptivo e de outros. E como a mais reticente de minhas vísceras, como o fígado ou o baço, o cérebro também está ausente da minha interocepção. (…) Como a víscera, o cérebro requer esse revestimento na profundeza corporal. Isso serve a uma função protetora tanto quanto para a operação das estruturas de mediação. O cérebro não é adaptado nem a experiência nem a ação direta do mundo, mas confia na intercessão de um aparato sensório” (Leder, 1990, p. 112-113).

Visto desse modo, o cérebro pode ser compreendido como o mediador

interno dos órgãos dos sentidos, ou ainda, para usar uma metáfora mais apropriada, o

grande diretor nesse “teatro do corpo”, modulando ou segregando o conjunto de

percepções entre o eu e o mundo, entre uma interioridade e uma exterioridade, entre a

mente, o corpo e o ambiente sem, no entanto, necessitar de entrar em cena.

“Meu cérebro, com aquele em que eu existo, não manifesta nenhuma presença física para mim diretamente conhecida. Eu não posso ter distância dele, torná-lo visível, porque ele está muito escondido de mim, onde quer que eu vá. A mentalidade humana pode assim parecer imaterial, desencorporada (desembodiment), como qualquer outra coisa. Um dis-aparecimento experimental está pronto em termos ontológicos. (...) Esse dis-aparecimento começa precisamente no encorporamento natural da mente” (Leder, 1990, p. 115).

As considerações entre o dis-aparecimento do cérebro defendido por Leder,

leva-nos a reconhecer a necessidade de uma integração entre essas instâncias: corpo,

cérebro, mente e ambiente. Os órgãos do aparelho senso-perceptivo não podem

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funcionar de modo adequado sem o equipamento cerebral devidamente disponível para

reconhecer os estímulos do ambiente. Este, por sua vez, não tem como influir no corpo

sem os equipamento necessários para se perceber os objetos externos ao corpo através

dos devidos equipamentos sensoriais – olhos, ouvidos, boca, nariz, pele. Como diz

Northoff (2001), o cérebro, o corpo e o ambiente determinam e dependem um do outro

para serem reconhecidos. Cérebro, mente, corpo e ambiente estão, por assim dizer,

“integrados” (embedded).

O cérebro integrado está em franca oposição ao “cérebro isolado” (isolated

brain), ou seja, a compreensão de que tanto a construção da subjetividade, da identidade

pessoal, da construção de um centro narrativo descrito como sendo “eu” e por fim, a

imagem do corpo, não podem ser compreendidos isoladamente. Daí, portanto, a

necessidade de Sacks chamar para o seu repertório teórico-clínico, pressupostos

fenomenológicos para a compreensão do sujeito, e não apenas ressaltar as descobertas

da ciência do cérebro.

“O funcionamento do cérebro depende da estrutura e da fisiologia dos neurônios que ele contem, pois o funcionamento psíquico depende de estruturas de linguagem, simbólicas e exteriores ao cérebro dos indivíduos. (...) As ciências do cérebro não tem nenhuma vocação particular para esclarecer os mecanismos fundamentais da representação do “eu” (Morin & Thibierge, 2004).

Aqui caberia um exercício de pensamento: seriam os deficientes auditivos

incapazes de serem afetados pelos estímulos externos, tais como a música? O que dizer

de Beethoven, por exemplo, que mesmo perdendo a capacidade de audição conseguiu

produzir inúmeras peças musicais sendo até mesmo capaz de regê-las? O que dizer dos

deficientes visuais que conseguem ter outros sentidos do corpo muito mais apurados,

tais como o toque e a audição, do que aqueles que vêem? O que dizer de deficientes

visuais artistas plásticos que conseguem esculpir formas e movimentos sem, no entanto,

nunca verem sua obra acabada? O que dizer do personagem titulo do livro “Johnny vai à

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guerra”, que mesmo após ficar sem braços, sem pernas, perder a visão, a audição e parte

da mandíbula após uma explosão de uma mina, conseguia ter uma percepção do

ambiente à sua volta, apenas com o que havia sobrado do seu corpo - a própria pele? O

que dizer de dançarinos surdos que conseguem interpretar o som de uma música apenas

com a reverberação do som em seus corpos? Ou ainda de alguns pacientes com lesões

cerebrais, tais como o pontuado por Oliver Sacks, o artista plástico chamado Senhor “I”

acometido de acromatopsia cerebral ou daltonismo total, que após perder a capacidade

de enxergar as cores, mudou o estilo de seus quadros? Resposta de Damásio: eles são

capazes de sentirem os estímulos do ambiente através de outros dispositivos cerebrais

que conseguiram se desenvolver para prover a deficiência daquele órgão que foi afetado

pela privação do respectivo sentido danificado.

Notem que querendo ou não Damásio privilegia mais uma vez as descrições

neurológicas da percepção do ambiente em relação ao corpo, mas esquece-se de tentar

entender como interpretamos os estímulos que nos chegam através dos órgãos dos

sentidos. Aquilo que afeta o corpo e é interpretado pelo cérebro, criando imagens

diversas, necessita de uma outra interpretação que não é unicamente cerebral. Damásio

esquece-se, por exemplo, de compreender a lógica narrativa daquilo que vemos,

ouvimos, falamos ou percebemos através da nossa pele, de nossos olhos, ouvidos,

narinas ou boca, como algo não do fenômeno cerebral ou neuronal, mas sim, da ordem

descritiva e narrativa possibilitada pelos diversos usos da linguagem. Não é o cérebro

por si só que é capaz de dar uma descrição senso-perceptiva de um estímulo, seja ele

interior ou exterior. O cérebro, por si mesmo, não fala. Como interpretar que o que

sentimos é calor ou frio? Como interpretar que o que ouvimos é uma música e não um

barulho de uma serra elétrica? Como interpretar que o que vemos é uma casa ou uma

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árvore, e não um elefante ou uma zebra? Finalmente, cabe ainda perguntar, como

interpretamos que aquilo que vemos no espelho, de fato, é a nossa imagem, a imagem

do nosso corpo, aquilo que nos identifica, que nos personaliza, que nos individualiza,

dando-nos um sentido de ipseidade diante do outro e não a imagem de um extra-

terrestre ou de uma ameba?

Mais uma vez, Damásio vai recorrer ao seu aporte teórico para explicar a

formação das imagens corporais como sendo representações neuronais.

De acordo com o autor, o cérebro produz duas imagens do corpo: a primeira

ele vai denominar “imagens da carne”, a segunda ele denomina de “sondas sensitivas

especiais” (Damásio, 2004)35.

As “imagens da carne” são constituídas por “imagens do interior do corpo

baseada na representação da estrutura e do estado das vísceras e do meio interior”

(Damásio, 2004, p. 206).

As “sondas sensitivas especiais” dizem respeito aos componentes

particulares do corpo pertencentes aos órgãos dos sentidos, tais como a retina, situada

no fundo do globo ocular, ou a cóclea, situada no ouvido interno. Essas imagens são

baseadas no estado de atividades das partes do corpo ou órgãos sensitivos periféricos.

De acordo com Damásio, as imagens ocorrem quando essas partes especializadas do 35 Há de se fazer uma distinção quanto ao emprego de “imagem” e “imagem do corpo” para Damásio. Quando ele emprega o termo “imagem”, ele está se referindo a uma “imagem mental” ou “padrão mental”. As imagens, portanto, podem ser conscientes ou inconscientes. As imagens inconscientes nunca são acessíveis diretamente, porém, as conscientes, só podem ser acessadas a partir da perspectiva da primeira pessoa (minhas imagens, suas imagens). Os padrões neurais, por sua vez, podem ser acessados apenas da perspectiva de uma terceira pessoa. As imagens como sendo “padrões mentais” são constituídas de modalidades sensoriais – visuais, auditivas, olfativas, gustativas e sômato-sensitivas -, que por sua vez, inclui várias formas de percepção, tais como o tato, a temperatura, a dor, sensação muscular, visceral, etc. A “imagem”, portanto, não se refere apenas a uma “imagem visual”, elas podem ser imagens auditivas, olfativas, gustativas ou sensoriais construídas a partir dos objetos externos – de fora do cérebro para o seu interior -, e a partir da nossa memória, de dentro para fora. As imagens, enfim, são a moeda corrente de troca da nossa mente, diz o autor. As imagens corporais, por outro lado, são as representações neurais do corpo adquiridas a partir dos diversos sinais perceptivos que influenciam diretamente o registro do corpo. Conforme Damásio (2000a, 401-403 - especificamente o apêndice intitulado “Notas sobre mente e cérebro”)

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corpo são modificadas por objetos exteriores a ele, ou seja, são o resultado do contato

desses objetos com o corpo. Quando se dá o contato com a pele por algum objeto, ele

modifica as atividades das terminações nervosas dentro da pele formando imagens

diversas – forma, tamanho e/ou textura diferentes (Damásio, 2004).

Neste caso, podemos dizer que Damásio se aproxima das descrições

fenomenológicas da construção da imagem do corpo e do esquema corporal: as

“imagens da carne” nada mais seriam do que uma parte do conjunto de sensações

proprioceptivas que orientam o corpo para o eixo gravitacional, neste caso, a

“interocepção” – percepção da interioridade do corpo e das próprias vísceras. Do

mesmo modo, as “sondas sensitivas especiais” em nada diferem da “exterocepção” –

capacidade de percepção do mundo exterior através dos órgãos dos sentidos – visão,

audição, tato, gosto e olfato -, que fornecem ao corpo do sujeito sua posição e

movimento no ambiente, descritas por Bermúdez (1998), Gallagher & Cole (1995),

Gallagher (1986) e Campbell (1998).

Mais do que isso, ao pontuar a construção da imagem do corpo a partir da

metáfora da “imagem da carne”, Damásio também está muito próximo das proposições

sugeridas por Bernard Andrieu, em seu livro “O cérebro: ensaio sobre o corpo

pensante”.

De acordo com Andrieu,

“O que nós chamamos “carne” do cérebro é o produto da sensibilidade do corpo e da plasticidade do cérebro; o produto de sua construção à medida de suas interações com o ambiente. A “carne” do cérebro deve assim ser definida a partir das incorporações sucessivas constituindo a identidade subjetiva de cada um. Esta “carne” não pode ser objetivada por meio da imagem científica: ela não reside em um lugar preciso que poderíamos observar de maneira objetiva. Se bem que, invisível, a carne está, no entanto, presente e ativa no seio do corpo. Ela é constituída de um conjunto de redes neuronais que se propagam e se desenvolvem, mas designa um conjunto de incorporações que definem uma maneira de se comportar, de um “estar no mundo”. A carne do cérebro designa simplesmente a construção subjetiva de nossas redes neuronais, a inscrição da memória na matéria cerebral” (Andrieu, 2000, p. 58-59).

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Para Andrieu, a “carne do cérebro” representa ainda a construção bio-

subjetiva do corpo em estreita relação com o mundo exterior. Conseqüentemente, toda a

produção de imagem e toda representação, tornam-se emoção ou sensação (deveríamos

dizer, emoção ou sentimento). “Mediador subjetivo, a “carne” assegura a comunicação

entre o mundo exterior e o mundo interior. A “carne” é o resultado de incorporações

sucessivas. Ela é uma síntese pessoal das interações com o mundo” (Andrieu, 2000, p.

59-60). Nada mais merleaupontiano, nada menos bergsoniano.

De modo análogo, ela também é o resultado de incorporações subjetivas, diz

o autor, pois a “carne” mostra ao cérebro a via da reorganização de suas redes

neuronais. Ela é o resultado da nossa sensibilidade com o mundo, porém, o mundo só

nos é sensível em razão da “qualidade de nossa carne”, visto que é ela quem determina

as percepções, as impressões, as incorporações e determina igualmente nossas

percepções e orientações com o mundo. Por fim, a carne ainda nos permite descobrir

nossa identidade, o tecido da história e da geografia que resulta a unidade de nosso

corpo, orientando nossa percepção do mundo (Andrieu, 2000).

E como se produzem essas imagens e onde elas se localizam no cérebro?

A construção da imagem do corpo no cérebro conta com uma ampla rede

neural em que o córtex somatossensorial, o lobo parietal posterior e o córtex insular tem

papéis cruciais, porém, diferentes na produção da imagem corporal.

De acordo com Northoff (2001), o córtex somatosensorial é aparentemente

responsável pela construção geral da forma do corpo, contando com o estímulo tátil e

proprioceptivo. O córtex parietal posterior, especialmente o hemisfério direito, parece

prover uma ligação entre a forma tátil-proprioceptiva do corpo construído no córtex

somatossensorial e as coordenações espaciais do corpo. Essa ligação entre ambos gera

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um esquema espacial, ou seja, a imagem do corpo. Finalmente, o córtex insular produz

uma conexão com aquelas partes do sistema límbico, tais como o hipotálamo, envolvido

nas funções emocional e visceral. Por conseqüência, a imagem do corpo é gerada a

partir das funções emocionais e viscerais de cada pessoa em particular.

Northoff ainda afirma que os estudos das lesões cerebrais comprovaram a

existência de uma rede neural gerando e construindo a imagem do corpo. As lesões no

córtex somatossensorial induzem a déficits nas esferas tátil e proprioceptiva, levando a

severas alterações na imagem do corpo, somado a uma incapacidade de delinear a forma

do corpo de um sujeito em relação ao ambiente. Outras lesões, tais como no córtex

parietal não afetam a habilidade de delinear a forma do corpo, mas sim a habilidade de

reconhecer a sua forma de modo correta. Essas alterações da forma do corpo na

consciência refletem, segundo o autor, sintomas positivos e negativos. Os sintomas

negativos incluem negação ou não reconhecimento de partes do corpo, tais como

apresentado na anosognosia motora ou déficit sensorial, negligência pessoal na forma de

hemisomatoagnosia, ou seja, quando o indivíduo não percebe que metade do seu corpo

está paralisado, ou ainda sentimentos de não pertencimento e negação de partes do

corpo, entre outras séries de distúrbios do córtex cerebral. Os sintomas positivos

referem-se à ilusão de membros fantasmas no corpo de pacientes que não fizeram

retirada alguma de nenhum membro (Northoff, 2001)36.

Como podemos ver, o córtex parietal direito parece ter, dentro do campo

neurológico, especial importância na construção da imagem do corpo, além de lesões ou 36 Northoff (2001) retoma as pesquisas de Melzack, especialmente aquelas realizadas com pacientes com membros fantasmas, para afirmar que a base da imagem do corpo construída no cérebro parte de uma rede neural chamada “neuromatrix”, que inclui o sistema somatosensorial, aferentes reticulares do sistema límbico e regiões corticais que são importantes no auto-reconhecimento e reconhecimento de objetos e entidades externas ao corpo. A “neuromatriz” é amplamente ligada às bases genéticas, tais como as descritas por Ramachandran, e gera um continuo padrão de atividade neural, podendo ser modificada por imputs sensórios motores. Para uma análise do corpo no cérebro, a partir das bases neurais da consciência corporal, ver Berlucchi & Aglioti (1997).

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estimulação elétrica na insula pode causar alucinações, ilusões ou mudança na posição

do corpo e sensações de estar fora do corpo. Todos esses sintomas indicam sua

importância na construção da imagem do corpo no córtex cerebral e todos eles foram

largamente estudados por uma gama de neurologistas, entre eles, Oliver Sacks,

conforme podemos comprovar a partir dos relatos de seus casos clínicos.

De acordo com Damásio, não importa se as imagens do corpo sejam

produzidas na “carne” ou venha de “sondas sensitivas”, o mecanismo de produção é

semelhante para ambos. Primeiro, a atividade numa região do corpo produz uma

alteração estrutural transitória do corpo. Em seguida, o cérebro constrói mapas dessas

alterações numa série de regiões específicas para esse mapeamento. A construção da

imagem é feita com ajuda de sinais químicos trazidos pela corrente sangüínea e sinais

eletroquímicos trazidos por feixes nervosos. Por fim, os “mapas neurais” que se formam

são transformados em imagens mentais (Damásio, 2000a; 2006).

Vejam que Damásio, apesar de utilizar a referência “mapas neurais” ou

“mapeamento cerebral”, ele se afasta da perspectiva de Ramachandran ao defender que

a construção dessas imagens não se dá apenas em áreas localizadas no cérebro tal como

formulado pelo “homúnculo”, mas que diferentes áreas no cérebro são responsáveis pela

construção das imagens a partir de um conjunto de neurônios – os mapas neurais na

verdade são mapas sensoriais e o que produz imagens são as capacidades qualitativas e

quantitativas de redes neuronais se comunicarem; a diferença entre os autores reside no

fato de que, enquanto Ramachandran pauta a construção da imagem do corpo em áreas

específicas do cérebro, Damásio advoga que determinados grupos de neurônios são

responsáveis pela construção da imagem do corpo através de um conjunto complexo de

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“mapas neurais ou sensoriais”. A sutileza do argumento é pequena, mas necessária para

que não se confundam as suas hipóteses.

No que compete às sondas sensitivas, ainda há de se ponderar que os sinais

que representam as transformações do corpo são transmitidos através de feixes nervosos

para a região do sistema nervoso central responsável por determinadas sondas, todas

elas, pertencentes ao nosso sistema perceptivo:

“A lista das sondas sensitivas especializadas do nosso corpo inclui: a cóclea no ouvido interno (relacionada com o som); os canais semicirculares do vestíbulo, situados também no ouvido interno, onde o nervo vestibular começa (o vestíbulo está relacionado com o mapeamento da posição do corpo no espaço e dele depende o nosso sentido do equilíbrio); as terminações do nervo olfatório na mucosa nasal (para o sentido do olfato); as papilas gustativas situadas na parte posterior da língua (para o paladar); e as terminações nervosas que se distribuem nas camadas superficiais da nossa pele (ligadas ao tato)” (Damásio, 2006, p. 208).

Mas de acordo com o autor, não há um único lugar no cérebro onde sejam

percebidas essas imagens. Elas estão distribuídas ao longo de todo o córtex cerebral.

A todo o momento, estamos produzindo imagens em nosso cérebro. Imagens

do nosso presente, do nosso passado, do nosso futuro. Imagens de objetos internos e

externos ao nosso próprio “eu” ao longo de toda a nossa vida. Evocamos imagens para

nos auxiliar a nos situar no mundo, diz Damásio. Para termos o registro de quem nós

fomos, quem nós somos e programar quem nós seremos, e aqui reside, de fato, a

diferença de argumento entre Damásio e Sacks. Para este último, a projeção de uma

imagem do futuro, ou a lembrança de uma imagem do passado, se dá através da

experiência narrativa. Para Damásio, todas essas imagens são construções do cérebro, as

quais compartilhamos com outros seres humanos, e até com animais e com outros

objetos do mundo exterior. Essas imagens se apóiam também em nosso conceito de

mundo e são produzidas pela enorme quantidade de sensações perceptivas que estamos

submetidos a todo o instante.

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Essas construções são engendradas por uma espécie de “maquinaria neural

complexa” de percepção, memória e raciocínio, regulada por vezes pelo mundo exterior

ao cérebro, ou pelo mundo que está dentro do nosso corpo ou em torno dele. Outras

vezes, as imagens são produzidas no interior do cérebro, através do pensamento.

“Em suma: as imagens são baseadas diretamente nas representações neurais, e apenas nessas, que ocorrem nos córtices sensoriais iniciais e são topograficamente organizadas. Mas são formadas ou sob o controle de receptores sensoriais que estão orientados para o exterior do cérebro (isto é, a retina) ou sob o controle de representações disposicionais (disposições) contidas no interior do cérebro, em regiões corticais e núcleos subcorticais” (Damásio, 1999, p. 125).

Portanto, a imagem do corpo, assim como uma “imagem mental” para

Damásio, é uma “representação dispositiva37” topograficamente organizada através de

“mapas cerebrais” ou “padrões neurais”, ou dito de outro modo, “um conjunto de

padrões de atividade ou inatividade neural em certas regiões sensitivas” (Damásio,

2004, p. 208).

Os padrões neurais e as imagens mentais de objetos e acontecimentos

exteriores ao cérebro são criações do próprio cérebro. No entanto, nada impede que a

construção das imagens seja semelhante de sujeito para sujeito, nem muito menos que a

construção dessa imagem seja “a” representação da realidade do objeto externo, visto

que ele está constantemente submetido às injunções do nosso próprio organismo, no

37 Damásio também faz uma longa descrição do que ele chama de “representação”. Para ele, “representação” é usada como sinônimo de “imagem mental” ou “padrão neural”. “Minha imagem mental de um rosto específico é uma representação, assim como os padrões neurais que surgem durante o processamento perceptivo-motor desse rosto, em diversas regiões do cérebro – visuais, sômato-sensitivas e motoras. (...) [Representação significa] um padrão que é consistentemente relacionado a algo, quer se refira a uma imagem mental, quer a um conjunto coerente de atividades neurais em uma região cerebral específica. (...) De algum modo, a imagem mental ou o padrão neural representa com algum grau de fidelidade, na mente e no cérebro, o objeto ao qual a representação se refere, como se a estrutura do objeto fosse reproduzida na representação. (...) Os padrões neurais e as imagens mentais correspondentes são criações do cérebro tanto quanto produtos da realidade externa que levou à sua criação. Quando você e eu olhamos para um objeto exterior a nós, cada um forma imagens comparáveis em seu cérebro”. Conforme Damásio (2000a, p. 404-405). Há uma extensa discussão do conceito de representação, tanto na psicanálise como na fenomenologia. No que compete à primeira discussão, a idéia de representação está diretamente ligada à noção de pulsão em Freud e a diferença entre “representação da coisa” e “representação do objeto”, discutida por Costa (2004) no texto “A comédia do demônio sexual”. No tocante ao segundo, remeto ao leitor às idéias de Bérgson (1990). Em ambos os casos, a discussão perpassa a construção de imagens do corpo.

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nosso corpo e no nosso cérebro. Isso explicaria, grosso modo, as diversas patologias ou

distúrbios neurológicos da imagem do corpo que conhecemos, incluindo aí, os

distúrbios alimentarem que são freqüentemente associados à imagem do corpo tais

como a anorexia nervosa, a bulimia ou até mesmo a vigorexia38.

Ora, mas se a construção da imagem do corpo está ancorada em dispositivos

neurológicos, em padrões mentais, neurais ou ainda em representações dispositivas

organizadas através de mapas cerebrais, a compreensão da nossa identidade, do nosso

“self”, do nosso “eu” e da nossa própria subjetividade, para Damásio, também possui

um componente biológico ou neural. A subjetividade, nesse caso, também pode muito

ser compreendida a partir da perspectiva biológica, na qual estão ancorada as bases da

identidade pessoal e da construção do “eu” ou do “self”. Vejamos, por fim, como isso se

configura.

3.3. Para uma neurobiologia da subjetividade humana

A importância da biologia no mundo contemporâneo tem se configurado

também no plano social e é uma conseqüência dos avanços tecnológicos. Sem os novos

“instrumentos da vida”, os neurocientistas e neurobiólogos não teriam condições de

descrever o comportamento humano a partir das funções cerebrais vistas in loco através

de modernos aparelhos de escaneamento do cérebro. É como se pudéssemos, a partir

dessa nova tecnologia, verificar como a mente funciona. Desde que Bichat exclamou

“Abram-se os cadáveres!”, que a tecnologia médica em torno do corpo buscou desvelar

38 Também conhecida como “síndrome de Adonis” ou “doença da vaidade”, a vigorexia é caracterizada pela prática de exercícios físicos e/ou musculação de forma contínua e extenuante, tal como uma ascese corporal, e é predominantemente encontrada nos homens que procuram aumentar a sua massa muscular. Faz parte dos transtornos dismórficos.

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os segredos de sua interioridade, não parando mais de crescer e refinar os mecanismos

de busca desse pretenso segredo interior insofismável.

A partir desse novo paradigma para as ciências médicas, novas teorias sobre

a subjetividade humana foram surgindo, se configurando naquilo que foi denominado de

“as premissas do determinismo biológico da mente” segundo Bezerra Jr. (2000) ao se

reconhecer os avanços das neurociências no modelo médico e na vida social, tais como

as teorias neurobiológicas da mente e da subjetividade humana pontuadas por António

Damásio.

Muitos outros autores já excursionaram nessa tentativa, entre eles, Dennett

(1986, 1991, 1997) ao abordar a noção de “eu” a partir da ruptura da subjetividade e do

psiquismo com a natureza ou o organismo, inserindo-a na ordem dos processos

biológicos. O “eu” para Dennett é um “eu biológico” influenciado pelas injunções do

meio e diferenciando-se de outros “eus” através da própria evolução. Para esse autor, o

“eu” é completamente desprovido de substância, é descentrado, clivado e sem essência,

em um contínuo processo de auto-engendramento (Bezerra Jr., 1999).

Muito próximo dessa definição encontra-se a noção de “eu” e

“subjetividade” em Damásio.

Ilustremos com dois casos estudados pelo autor: o primeiro deles, é o

clássico caso de Phineas Gage; o outro se refere a Elliot, um de seus pacientes.

Primeira vinheta clínica: Phineas Gage é um rapaz de 25 anos, morador de

uma cidade na Nova Inglaterra e trabalha na Estrada de Ferro Ruttland & Burlington

assentando trilhos numa ferrovia em Vermont. É definido como um trabalhador

eficiente e capaz pelos seus superiores. Sua tarefa consiste em explodir minas nas

rochas para abrir caminho por onde passará os trilhos. Para tanto, é preciso fazer

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buracos na rocha, enchê-lo com pólvora até a metade, adicionar o rastilho e cobrir a

pólvora com areia, que por sua vez é calcada com uma barra de ferro mediante algumas

pancadas com o martelo, para posteriormente ascender o rastilho e explodir a rocha com

a pólvora. Gage é metódico, mas um descuido nessa tarefa faz com que ocorra um

acidente sem precedentes. Antes de um ajudante colocar a areia sob a pólvora, Gage

martela a barra de ferro. Dá-se uma explosão diretamente no seu rosto. A barra de ferro,

porém, entra pela face esquerda de Gage trespassando a base do crânio (figuras 6 e 7).

Figura 6 e 7: Fotografia do crânio (1992) e reconstrução do cérebro de Gage com a provável

trajetória da barra de ferro.

Gage, como se sabe, não morreu, mas após a remoção cirúrgica da barra de

ferro e depois de enfrentar uma dolorosa recuperação do acidente, “Gage deixou de ser

Gage”, transformando-se em um trabalhador irresponsável, não conseguindo manter-se

mais em nenhum emprego, apresentando diversos desvios de comportamento, tendo a

saúde deteriorada em 1859, vindo a falecer em 1861. Seu crânio foi estudado por

diversos médicos neurologistas da época e seu caso entrou para a literatura como prova

de que lesões cerebrais afetam não só o corpo, mas também a personalidade e o

comportamento dos indivíduos.

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Segunda vinheta clínica: descrito como o Pheneas Gage moderno, Elliott foi

um paciente de Damásio que chamou sua atenção em vista do diagnóstico médico que o

encaminhou: o paciente havia sofrido uma alteração radical da personalidade e os

médicos queriam saber se esse tipo de comportamento era na verdade alguma doença

rara. Elliot, segundo Damásio, era um homem inteligente, competente e robusto que

necessitava ser chamado à razão para voltar ao trabalho, visto que ele apresentava

comportamento “preguiçoso” apesar de suas capacidades mentais estarem inatas. Ele

tinha conhecimento do mundo à sua volta, discutia assuntos políticos, conhecia a

situação econômica e suas capacidades profissionais pareciam estar inalteradas. Era um

bom pai e um bom marido até aquela ocasião, mas após o diagnóstico de um tumor

cerebral seguida de uma cirurgia para a sua retirada, Elliott passou a apresentar

mudanças na sua personalidade. Era incapaz de se arrumar sozinho para o trabalho.

Quando lá chegava, parava a todo instante uma tarefa e se ocupava de outra. Passou a

desenvolver hábitos de colecionador e tinha dificuldade em tomar decisões próprias.

Enfim, Elliott tornara-se o novo Phineas Gage, e isso serviu para mais uma vez provar

que lesão em um dos hemisférios cerebrais era capaz não só de afetar a dinâmica do

corpo – os movimentos, os sentidos ou a percepção destes, mas também a personalidade

ou a identidade do sujeito.

Damásio passa, então, a argumentar em favor de uma certa “biologia da

mente e da subjetividade” ao afirmar que não é exagero postular a mente como

resultante das interações entre o cérebro e o corpo em termos da biologia evolutiva,

ontogenia e funcionamento atual.

“O que estou sugerindo é que a mente surge da atividade nos circuitos neurais, sem sombra de dúvida, mas muitos desses circuitos são configurados durante a evolução por requisitos funcionais do organismo. Só poderá haver uma mente normal se esses circuitos contiverem representações básicas do organismo e se continuarem a monitorar os estados do organismo em ação. (...) Não estou afirmando que a mente

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se encontra no corpo. Mas que o corpo contribui para o cérebro com mais do que a manutenção da vida e com mais do que efeitos modulatórios. Contribui com um conteúdo [grifo do autor] essencial para o funcionamento da mente normal” (Damásio, 1996, p. 257).

É a partir dessa argumentação que o autor vai discutir as bases neurais do

“eu” em confronto direto contra as teses propostas por Ramachandran e caminhando

numa perspectiva diametralmente oposta a Sacks:

“Eu devo dizer desde já que o eu é um estado biológico constantemente reconstituído; não é o infame homúnculo dentro do cérebro que contempla o que se passa. (...) De nada serve invocar um homúnculo vendo ou pensando ou fazendo qualquer outra coisa no nosso cérebro, porque a questão que se colocará em seguida é se o cérebro desse homúnculo tem também uma pequena pessoa que vê e pensa por ele, e assim, sucessivamente” (Damásio, 1996, p. 257-258).

Para Damásio, ter um “eu” está pautado na “unicidade do ser”, ou seja, ter

um “eu único” que nos particulariza e nos individualiza, e é perfeitamente compatível

com a noção de Daniel Dennet de que não possuímos um “teatro cartesiano” em lugar

do nosso cérebro. Dito de outro modo, o que Damásio postula é que há um “eu” para

cada organismo exceto nas situações de doença mental, tais como nos casos de

personalidade múltipla, ou ainda naqueles casos em que o “eu” foi diminuído ou foi

eliminado, tais como nos casos de distúrbios da imagem corporal - anosognosia ou

determinados tipos de epilepsia.

Mas, adverte ele, o “eu” que confere subjetividade a nossa experiência

subjetiva não é um “impostor central” de tudo o que acontece nas nossas mentes, é

necessário que diversos dispositivos corporais e cerebrais estejam em perfeita sincronia.

“Para que o estado biológico do eu se verifique, é necessário que diversos sistemas cerebrais, bem como os inúmeros sistemas do corpo, estejam funcionando plenamente. Se você cortasse todos os nervos que levam sinais do cérebro para o corpo, seu estado do corpo alterar-se-ia radicalmente e, como conseqüência, o mesmo sucederia com sua mente. Se desligasse apenas os sinais do corpo para o cérebro, sua mente também se alteraria. Mesmo o bloqueio parcial do circuito cérebro-corpo, como sucede em doentes com lesões na medula espinhal, basta para ocasionar alterações do estado mental” (Damásio, 1996, p. 258).

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Ao afirmar que o “eu” ou o “self” é, em síntese, biológico e fomentado por

disposições neurais através do córtex cerebral, Damásio defende a idéia de que esse

“eu” é continuamente ativado por dois conjuntos de representações: as representações

de acontecimentos chave na autobiografia do indivíduo, no qual é possível reconstituir a

noção de identidade a partir da ativação parcial de mapas sensoriais dotados de

organizações topográfica, e as representações primordiais do corpo do indivíduo – peça

chave para a construção da imagem do corpo e para a noção de “eu” e da nossa

“subjetividade”. Sempre que nos reportamos ao “self” nós nos reportamos à idéia de

identidade e ao conjunto de características que definem um indivíduo39.

As primeiras representações formam um tipo de “self” o qual Damásio

denominou de “self autobiográfico” (ou “eu autobiográfico”, se quiserem). Esse tipo de

representação dispositiva que descreve nossa autobiografia envolve um conjunto de

fatos que definem uma pessoa – o que fazemos, do que e de quem gostamos, quais tipos

de objetos usamos, que locais costumamos freqüentar, que tipo de interação temos com

o ambiente que nos rodeia, onde moramos e com quem trabalhamos, quem somos e

quem são nossos amigos, quais seus nomes e nomes de parentes próximos e distantes,

ect.. O “self autobiográfico”, portanto, depende das lembranças sistematizadas de

situações que ocorrem durante o processo de vigília ao longo de toda a vida de um

indivíduo, gerando aquilo que Damásio denominou de “memória autobiográfica”

(DAMÁSIO, 1996, 2000a).

39 De um modo geral, a palavra “self” é usado como sinônimo de “eu” tanto na fenomenologia como na psicanálise ou ainda nas neurociências. Em todos os casos, ressalta-se importância do corpo (físico e mental) na constituição de nossa identidade. Há, portanto, diversos tipos de “selves” ou “eus”: o “self biológico”, o “self ecológico”, o “self-neurológico”, o “self cerebral”, o “self consciente”, o “eu-pele”, entre outros. Para um conhecimento ampliado dos diversos usos e sinônimos da palavra, remeto o leitor às seguintes referências: Costa (2004); Anzieu (1989); Dennett (1986), Bermúdez, Marcel & Eila (1998); Campbell (1998); Butterworthy (1998); Robbins (2003); Platek et all.(2004); Brewer (1998); Eilan (1998); Paqueron et all. (2003); Levine (2001); Wolputte (2004); Vittorio (2002) e Vidal (2002).

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O segundo tipo de representações forma um outro tipo de “self”, o chamado

“self central”. Nesse tipo de representação dispositiva está incluído a “memória do

próprio corpo”, ou seja, tudo aquilo que o corpo foi e tem sido na sua relação com o

conjunto de interação entre ele e o ambiente interno e externo. De acordo com Damásio,

a subjetividade depende, em grande parte, das alterações que têm lugar no estado do

corpo durante e após o processamento de um determinado objeto, e abrange aquilo que

ele denomina de sentimentos de fundo do corpo e os sentimentos emocionais. O autor

ainda complementa: a representação coletiva do corpo constitui a base para o conceito

de “eu” ou “self”. Tanto na evolução da espécie como no desenvolvimento do próprio

sujeito, os sinais iniciais do corpo ajudam a construir um conceito de “eu” e é a

referência de tudo o que pode acontecer ao organismo. Dito de outro modo, a cada

instante, o estado do “eu” é construído a partir da base (Damásio, 1996).

Os dois tipos de “eu” (self) assim constituídos correspondem a dois tipos de

consciência: a “consciência central” e a “consciência autobiográfica”.

A “consciência central” dá ao organismo um “self” referente ao momento e

um lugar (agora e aqui). Ela não projeta o futuro, pelo contrário, ela nos dá a percepção

de tudo o que ocorreu ha poucos instantes. Como diz Damásio (2000a, p. 34), “não há

outro lugar, não há antes, não há depois”. Ela é um fenômeno biológico que possui

apenas um nível de organização e depende da memória convencional, da memória

operacional, do raciocínio e da linguagem.

A “consciência autobiográfica” ou ainda “consciência ampliada” possui

níveis e graus diferentes e dá ao organismo um sentido de “self”, ou seja, uma

identidade, uma personalidade, uma característica que individualiza uma pessoa. Ela é

um fenômeno biológico complexo e conta com vários níveis de organização evoluindo

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no decorrer do organismo. Dito isto, ela depende da memória convencional, e

operacional cujo ápice é intensificado pela linguagem.

Só agora podemos verificar o apoio que Damásio dá ao atributo da

linguagem na construção da nossa subjetividade, ou seja, a partir dos dois níveis de

consciência tal como ele as descreve. Desse modo, podemos afirmar que cada tipo de

consciência corresponde a dois tipos de “self”:

“O sentido do self que emerge na consciência central é o self central, uma entidade transitória, incessantemente recriada para cada objeto com o qual o cérebro interage. Nossa noção tradicional de self, porém, está ligada á idéia de identidade, e corresponde a um conjunto não transitório de fatos e modos de sermos únicos que caracterizam uma pessoa. A expressão que emprego para designar essa entidade é self autobiográfico. O self autobiográfico depende de lembranças sistematizadas de situações em que a consciência central participou do processo de conhecer as características mais invariáveis da vida de um organismo: quem o gerou, onde, quando, seus gostos e aversões, o modo como habitualmente se reage a um problema ou conflito, seu nome etc. Uso a expressão memória autobiográfica para denotar o registro organizado dos principais aspectos da biografia de um organismo” (Damásio, 2000a, p. 35)

Mas ainda há de se registrar um lugar no cérebro, um dispositivo neural

mínimo que possa produzir subjetividade. Damásio o localiza nos córtices sensoriais

iniciais (incluindo os córtices somatossensoriais), regiões de associação cortical

sensorial e motora e núcleo subcorticais (especificamente a região do tálamo e gânglios

basais) (Damásio, 1999, p. 238).

Esse mecanismo neural não necessita de linguagem, ele corresponde aquilo

que o autor denomina de “meta-eu”, ou seja, uma entidade que opera através dos

esquemas cerebrais produtores da subjetividade.

A produção da subjetividade corresponde, assim, à produção de imagens de

um objeto, às imagens das respostas do organismo ao objeto e finalmente a um terceiro

tipo, qual seja, “a produção de imagens do organismo no ato de perceber e responder a

um objeto” sem o acesso à linguagem e a narrativas diversas, visto que os humanos

possuem a capacidade de experimentar uma emoção sem, no entanto, colocá-las em

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palavras através dos instrumentos representacionais do sistema sensorial e motor

(Damásio, 1999, p. 237). O choro, o riso, o rubor, o susto, entre outros, são formas de

esboçar uma emoção sem expô-las através de palavras.

Em síntese, todos os seres humanos possuem uma capacidade de

experienciar uma emoção sem, no entanto, colocar essa experiência sob forma narrativa,

pois elas precedem o nível verbal. Essa “capacidade narrativa de primeira ordem” seria

responsável pela produção de imagens cerebrais complexas, desde um simples objeto às

imagens das respostas do organismo ao objeto. Já a “capacidades narrativa de segunda

ordem”, está a serviço da linguagem e produz relatos verbais a partir dos relatos não-

verbais. As narrativas de segunda ordem, segundo Damásio, são aquelas responsáveis

pela subjetividade humana (Damásio, 1999).

Vimos, portanto, como a construção da imagem corporal e a produção de

subjetividade estão dispostas nas teorias do neurocientista português António Damásio.

Suas teses, ora buscando apoio em referências filosóficas, ora buscando

referências através das investigações dos distúrbios neurológicos de seus pacientes, o

fizeram buscar na biologia das emoções e dos sentimentos as bases para a construção de

um “eu” e de uma identidade, transformando o cérebro no grande ator em cena nesse

imenso palco que é o “teatro do corpo” e o “teatro cartesiano das emoções e dos

sentimentos”.

O que as teorias de Damásio nos possibilita é encontrar uma nova descrição

da subjetividade humana, baseada principalmente na interação entre o mundo externo e

o mundo interno, entre as áreas somatosensitivas do córtex cerebral e a mente, dando-

nos descrições da subjetividade humana através da quebra dicotômica do pensamento

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cartesiano pois, para o autor, não há separação entre o corpo, o mundo, a mente o

cérebro. Pelo contrário.

Como diz Andrieu (2000) o cérebro não é a condição do corpo nem o corpo

é a condição do cérebro, ou seja, não existe entre ambos uma ligação de causa e efeito,

pois corpo e cérebro (e eu ainda acrescentaria – a mente) são indissociáveis e

imprescindíveis. Não existe um sem o outro. Não existe mente sem corpo nem muito

menos mente sem cérebro: a mente é o resultado da interação entre eles. Até pode haver

um corpo sem cérebro e sem mente, mas aí já não estamos mais no campo da

subjetividade, da identidade, da personalidade, da interação entre o “eu” e o mundo

exterior e o mundo interior, pois a vida subjetiva necessita de um cérebro e um cérebro

requer uma mente que por sua vez requer um corpo. “Essa neurobiologia do

desenvolvimento recusa considerar a consciência corporal como o único resultado da

atividade cerebral. A consciência corporal resulta dessa construção, tornada possível

pela plasticidade do cérebro, e produzida pelas interações com o mundo” (Andrieu,

2000, p. 52).

Damásio conclui que os fenômenos mentais resultam da interação entre as

atividades dos neurônios com o meio externo, o mundo exterior, o ambiente e o meio

interno através daquilo que chamaríamos de uma “mente suficientemente boa”.

A “mente suficientemente boa” de Damásio está subsumida às capacidades

perceptivas do cérebro de um indivíduo com o meio em que ele vive. Mais do que isso,

a “mente suficientemente boa” de Damásio é aquela que dá ao cérebro toda a sorte de

recursos e dispositivos neuronais e cerebrais do qual ele precisa para “situá-lo no

mundo” ou no seu “campo de vida”, ou ainda, dito de outro modo, é aquela que dá ao

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sujeito e ao seu cérebro os recursos e dispositivos necessários para a percepção dos

objetos externos, do ambiente, de si, do seu próprio corpo e do corpo do outro.

Sem esse tipo de mente, não haveria cérebro e sem um cérebro, não haveria

nem corpo nem muito menos subjetividade. Damásio, portanto, funde três instâncias,

mente, corpo e subjetividade em uma única: o cérebro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho vimos três perspectivas nitidamente distintas acerca

da construção da imagem do corpo, do “eu”, da produção da subjetividade e

conseqüentemente da identidade humana defendidas por três aportes teóricos.

Uma apontou para uma ontogênese da imagem corporal, buscando na

materialidade do cérebro, as origens da imagem do corpo (Ramachandran).

Outra apontou para a necessidade de conceitos fenomenológicos, dentro do

próprio campo da neurologia, para que fosse possível apontar para uma “neurologia

mais humana” ou uma “neurologia da identidade” (Sacks).

A terceira precisou demonstrar com uma riqueza de conceitos teóricos a

necessidade da construção de novas narrativas da própria subjetividade, fazendo do

cérebro, o personagem principal no “teatro do corpo” (Damásio).

A ciência moderna finalmente conquistou o que há duzentos anos não

tínhamos condições de afirmar: o cérebro tornou-se o órgão rei da nossa identidade

pessoal e da nossa subjetividade, individualizando o sujeito, transformando a máxima

descartiana “penso, logo existo” em “tenho um cérebro, logo, sou!”.

As discussões acerca da biologia dos sentimentos, das emoções, da

identidade pessoal, da subjetividade humana, e acima de tudo da identidade biológica,

parecem não ter chegado a um fim, sobretudo do ponto de vista neurológico ou

neurocientífico. Mas é preciso que se tenha em mente que cada cérebro, cada ínfima

conexão de um neurônio com o outro, não é suficiente para identificar todos os seres

humanos como sendo um só, dentro do ponto de vista do “sujeito cerebral”.

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Cada cérebro é específico para cada ser humano, pois cada um apreende

acerca de si mesmo e do mundo de modo individualizado. Mas caberia aqui tentar

responder a questão de Ehrenberg (2004) de que a identidade biológica seria a

identidade de uma pessoa considerada na sua totalidade? Seria o cérebro, o conjunto de

conexões neuronais que nos individualiza, nos particulariza, nos torna únicos?

Prescindimos de uma centelha divina em nossa demasiada escuridão visceral para

compreendermos o ser humano, ou seria a mente, essa estranha personalidade

“encarnada” na materialidade do nosso corpo, a grande responsável pelo sentido de

ipseidade que tanto tentamos entender?

Quando biólogos, psicólogos cognitivistas, neurologistas e neurosicentistas

de várias ordens buscam provar que tudo o que nos particulariza diante do Outro e do

mundo vem do interior, eles subestimam a nossa capacidade narrativa substituindo a

materialidade metafísica por uma interioridade biológica.

O cérebro por si só, não fala. O cérebro por si só não ouve. O cérebro por si

não tem a capacidade de discernir o que é um homem, uma casa, ou uma montanha.

A experiência subjetiva, por sua vez, vai bem mais além. Para dar descrições

de nós mesmos, não precisamos apenas de um cérebro, precisamos de um mente em

condições de dar descrição de tudo o que ela apreende, pois, conforme reforça Bezerra

Jr. (1999), a experiência subjetiva é encarnada, e dizer isto significa que a experiência

subjetiva emerge e depende do funcionamento de um organismo complexo – o corpo

humano – dotado de um recurso especial – o recurso à significação por meio da

linguagem humana. A experiência subjetiva, ainda assim, também pode ser descrita

como histórica, no sentido em que ela é fabricada de acordo com contextos sociais e

culturais precisos através de descrições subjetivas.

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No entanto, desconsiderar as teses aqui apresentadas acerca da construção da

imagem do corpo, do “eu”, da nossa interioridade, da nossa subjetividade e da nossa

identidade, é desconsiderar também a possibilidade de que novas modalidades de

descrições subjetivas e novas narrativas da mente possam ser construídas na

contemporaneidade.

Nesse sentido, não negamos a visceralidade da carne do cérebro quando

tomado a construir novas descrições do sujeito, nem muito menos desprezamos a

necessidade de termos “um cérebro suficientemente bom” para poder apreender os

estímulos vindos tanto do exterior quanto do interior do corpo.

Afinal, a vida psíquica requer bem mais do que isso: requer uma interação

entre o eu e o mundo, entre o corpo e o mundo, entre a mente e o mundo, entre o

cérebro e mundo, sem o qual, não teríamos condições de dar descrições nem do mundo

nem de nós mesmos.

Para tanto, precisamos analisar as contribuições das ciências médicas,

fisiológicas ou biológicas na compreensão da mente humana. Precisamos entender que a

psicologia ou até mesmo a psicanálise podem usufruir de outras definições, descrições e

caracterizações da nossa interioridade.

Erik Kandel é um bom exemplo disso. Ganhador do Prêmio Nobel de

Fisiologia e Medicina em 2000, ele mostrou as contribuições da neurologia e das

neurociências no campo das ciências psis, defendendo, inclusive, a psicanálise como

ferramenta teórica da mente. Não obstante, Kandel é crítico quanto à relutância dos

psicanalistas no que se refere em aproveitar as oportunidades que as ciências de um

modo geral têm a oferecer ao campo da mente.

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Na sua perspectiva, a psicanálise tal como foi desenvolvida no século XX foi

prejudicada por uma concepção mais cientificista da mente, relegando para segundo

plano os aportes das ciências biológicas, não obstante Freud ter feito uso de uma

concepção darwinista da mente ao descrever no seu “Projeto para uma psicologia

científica” uma concepção neurológica de mente.

Mas de acordo com Eric Kandel a biologia pode transformar a psicanálise

em uma disciplina cientificamente mais fundamentada. Kandel (1999, 2005) especifica

oito áreas em que a biologia e a psicanálise poderiam cooperar: a natureza do

inconsciente dos processos mentais; a natureza da causalidade psicológica; a

causalidade psicológica e a psicopatologia; as primeiras experiências e a predisposição

para as doenças mentais; o pré-consciente, o inconsciente e o córtex pré-frontal; a

orientação sexual; a psicoterapia e as mudanças estruturais no cérebro e finalmente a

psicofarmacologia como um acessório à psicanálise. Todas elas não privilegiam a

fisicalidade dos processos psíquicos nem subestimam as descrições psicológicas e

narrativas da mente, pelo contrário, tanto uma quanto a outra estão imbricadas.

Para o autor, os estudos biológicos, neurológicos e neurocientíficos podem

contribuir para aquilo que ele chama de uma “biologia da subjetividade, da consciência,

da ipseidade e do conflito”, e porque não dizer, contribuir também para a compreensão

da formação da imagem do corpo.

“Até bem pouco tempo havia poucas maneiras independentes e convincentes de testar idéias psicodinâmicas ou avaliar a eficácia relativa de uma abordagem sobre outra. No entanto a neuroimagem pode nos fornecer justamente isso – um método de desvendar tanto a dinâmica mental quanto o funcionamento de um cérebro vivo. (...) De fato já podemos descrever o cérebro das pessoas antes e depois da terapia e desta forma ver as conseqüências da intervenção psicoterapeuticas em certos transtornos” (Kandel, 2005, p. 386)

O que a neurologia atual pode trazer de contribuição para as teorias da

mente, entre tantas, é apontar não só o referente corporal da nossa subjetividade como

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também descrever de um modo fisicalista não-redutivo, como essa subjetividade está

predisposta em nosso cérebro, pois, segundo Kandel, o cérebro não espelha o mundo

como uma câmera, ele o decompõe em imagens e sensações para então reconstruí-lo na

mente.40

Aqui caberiam algumas palavras a mais sobre as descrições de

Ramachandran, Sacks e Damásio no que tange ao problema da imagem do corpo.

A imagem corporal, para Ramachandran, é eminentemente uma imagem

calcada na materialidade do corpo. Mas dizer isso não é implicar totalmente numa

descrição fisicalista da mente, pois, conforme adverte Costa (2006), qualquer hipótese

neural da experiência subjetiva deve ser capaz de explicá-la em termos da relação

corpo-ambiente ou corpo-mundo. Para nos auto-referenciar precisamos dessa interação

com o mundo ou com o ambiente, e quem possibilita ter a percepção de somos um “ser

indivisível”, que temos uma ipseidade, que somos um “eu” com uma qualidade

subjetiva, essa referência só nos é dada pelo Outro. Portanto, nossa imagem corporal

não está estaticamente desenhada no córtex cerebral nem é o cérebro o referente último

de nossa subjetividade.

“O cérebro é um elo na cadeia que liga o corpo ao ambiente/mundo. Sua higidez, obviamente é uma condição necessária à gênese e ao equilíbrio das atividades mentais. Mas o mesmo poderia ser dito do restante da matéria corporal e do ambiente. O corpo do sujeito não é um apêndice diluído do cérebro, assim como o ambiente não é uma contração gramatical de estímulos atomizados por aparatos teóricos e instrumentais. Não conhecemos sujeitos nascidos de cérebros em cuba, assim como não conhecemos sujeitos com corpo e mundo, mas desprovidos de cérebro. Para o materialismo não-redutivista ou naturalista pragmático, portanto, a identidade subjetiva não é uma fosforescência etérea emitida por redes e mapas neurais” (Costa, 2006, p. 20).

40 O próprio Kandel, em outro momento, afirmaria: “a biologia pode revigorar a exploração psicanalítica da mente. Devo dizer, de saída, que embora esboçamos o que poderia evoluir para uma significativa fundamentação biológica para a psicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais. Mesmo assim, a biologia tem feito progressos notáveis nos últimos cinqüenta anos, e os passos não estão diminuindo. Como os biólogos focalizaram seus esforços na compreensão do cérebro/mente, a maior parte deles está convencida de que a mente representará para a biologia do século XXI o que os genes representaram para a biologia do século XX” (Kandel, 1999, p. 508).

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No conjunto de esquemas corporais do qual necessitamos para a construção

da imagem do corpo, Ramachandran esquece-se, por exemplo, de situar o corpo no

mundo e toda a quantidade de influência subjetiva e lingüística necessária na percepção

da imagem do nosso corpo.

O “fetiche pelo pé” é um bom exemplo disso: o autor sustenta que Freud

poderia estar equivocado nas suas teorias acerca do fetichismo, quando analisa as

pessoas que sentiram orgasmos através de pés amputados, isto é, em pés-fantasmas. Sua

conclusão é que os fenômenos podem ser explicados pela proximidade entre as áreas do

córtex cerebral responsáveis pela excitação genital e a área locomotora.

Mas uma coisa é explicar a gênese da imagem corporal através das análises

de pessoas com membros fantasma, confirmando neurologicamente a capacidade do

cérebro de se adaptar a uma nova imagem corporal e reafirmando a plasticidade

cerebral. Outra coisa é explicar a gênese ou funcionamento da excitação sexual

fetichista através do mesmo exemplo da plasticidade cerebral e dos membros fantasmas,

sem levar em conta a relação entre imagem corporal e esquema corporal.

Ramachandran esquece-se, por exemplo, que o esquema corporal é formado

por um conjunto de sensações proprioceptivas e que orienta nosso corpo no eixo

gravitacional, organizando a experiência subjetiva da totalidade corporal a partir das

experiências de partes do próprio corpo em interação com o ambiente, tal como

formularam Bermudez (1998), Gallagher (1986) e Campbell (1998).

Portanto, de acordo com Costa (2006), o exemplo clínico por ele utilizado,

foi escolhido para facilitar as crenças do leitor nas teorias da causalidade neural de fatos

mentais.

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“Se o autor tivesse sido mais atento ao pensamento de Freud deveria explicar não apenas o mecanismo neural do fetichismo sexual do pé, mas também em qual vizinhança cerebral dos órgãos genitais encontra-se, não o pé, mas o ‘brilhante cravado no nariz do outro’.(...) Mesmo se pudéssemos mostrar empiricamente que qualquer excitação sexual depende da imaginação fantasiosa do sujeito, e é determinada pela peculiaridade de sua arquitetura cerebral, como explicar a diversidade cultural das proibições, permissões, enfim, dos códigos que regulam o acesso ao gozo sexual? Em qual vizinhança dos órgãos genitais estaria o centro de vigilância moral do erotismo de ordem mágico-animista, de ordem religiosa, de ordem estética, de ordem jurídica, etc.? (Costa, 2006, p. 30)

Não obstante, outros exemplos de Ramachandran, no que se refere aos

membros fantasmas, podem contribuir para nossas teorias acerca das disposições

mentais, ao reafirmar o quanto o cérebro é capaz de se adaptar às mudanças que o corpo

sofre quando da amputação de um membro. É nesse sentido que ele atualiza algumas

das teorias sobre a imagem corporal.

Diferentemente de Ramachandran, Sacks retoma aquilo que foi definido

como sendo uma “neurofenomelogia da identidade”, dando voz aos seus pacientes e

atualizando as concepções neurológicas de Freud. Um bom exemplo disso é o famoso

caso do “Homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, no qual Sacks vai buscar

no relato subjetivo, na narratividade ou na história do caso as teorias neurológicas para a

síndrome daquele paciente.

Do mesmo modo se dá com Damásio no que compete à imagem corporal.

Damásio tece inúmeras considerações sobre a importância e o papel da pele

na regulação e coordenação das representações do mundo exterior, visto que a pele é

uma membrana e um órgão sensorial voltada para o exterior preparada para construir a

forma, a superfície, a textura e a temperatura dos objetos externos pelo sentido do tato.

Ela também é responsável pela regulação homeostática do organismo, é controlada por

sinais neurais autômatos do cérebro, além de informações químicas vindo de diversos

setores deste.

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A representação da pele, para o autor, é um meio natural de estabelecer uma

fronteira entre a interioridade e a exterioridade do corpo (a imagem corporal) porque ela

está voltada tanto para o interior do próprio organismo quanto para o meio ambiente em

que ele reage. A interação entre o organismo e o meio se daria, portanto, através de

mapas sensoriais evidenciados, sobretudo, mas não apenas, pelo papel da pele

(Damásio, 1996, p. 261). Damásio, assim, está frontalmente próximo das considerações

das teses psicanalíticas de Anzieu (1989), ao ressaltar a importância da pele na

construção de um “eu” como sendo um “eu pele”, ou seja, uma estrutura psíquica a qual

nossa subjetividade se exteriorizaria através do nosso “envelope corpóreo”. O “eu-pele”

é acima de tudo uma estrutura intermediária do aparelho psíquico entre a mãe e o bebê,

uma membrana limitante e necessária para que seja equacionada a posição entre o “eu”

e o “não-eu”.

A neurologia tem contribuído como pôde para as questões ligadas ao

problema da imagem corporal. As ciências da mente, tal como a psicanálise ou

psicologia, cada uma, a seu modo, têm referido aos diversos distúrbios da imagem

corporal propondo tratá-los. Nem uma das disciplinas acima pode prescindir uma da

outra. É provável que, em um futuro muito próximo, estejamos usando as ciências

médicas como a neurologia ou as neurociências como aporte de nossas teorias

mentalistas acerca da subjetividade, da identidade e da imagem corporal.

Construir novas narrativas da mente. Será isso o que determinará o lugar da

psicologia ou da psicanálise nas próximas décadas através da capacidade de atualizar a

experiência subjetiva no espaço clínico.

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