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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
JAMILLY STARLING SANTOS DE JESUS
A ALEGRIA NA ESCOLA EM DIÁLOGO COM OS ESCRITOS DA FADA CARIOCA: “AVE ALEGRIA”
SALVADOR
2018
JAMILLY STARLING SANTOS DE JESUS
A ALEGRIA NA ESCOLA EM DIÁLOGO COM OS ESCRITOS DA FADA CARIOCA: “AVE ALEGRIA”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestra em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Mary de Andrade Arapiraca Coorientadora: Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão
SALVADOR
2018
À Jocielia, Pedro e Elza, pela alegria da fé.
AGRADECIMENTOS
A Jesus Cristo, por mais um milagre da transfiguração: tornou doce o salgado de tantas lágrimas e onde havia tristeza, me ajudou a buscar alegria.
À Jocielia Santos, mãe amada, por ter palavras de certeza, frente às minhas tantas
dúvidas. Pelo investimento na minha educação. Por todo cuidado, carinho, amor e
pelas orações.
Aos meus avós, Elza Santos e Pedro Santos, pela compreensão, pelo colo, pelas
bênçãos e pelas palavras carinhosas a cada manhã e a cada noite.
À Lícia Beltrão, por caminhar comigo pelo país da literatura. Por me apresentar aos
estudos sobre a alegria cultural escolar. Pelos muitos anos de orientação. Por
acreditar na pesquisa textualizada nesta dissertação, por todo afeto e dedicação.
À Mary Arapiraca, pela orientação, por acreditar na minha pesquisa desde o início.
Por ser um grande exemplo de pedagoga e pelas palavras ditas e escritas que tanto
me inspiram.
Às integrantes da banca examinadora, pela certeza da leitura atenta e das
contribuições.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação, pelo acolhimento durante esses vinte
e quatro meses.
A FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) pela concessão
da bolsa durante os primeiros meses de realização do Mestrado.
A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela
concessão da bolsa por quase todo período de realização do mestrado
Ao Grupo GELING, por me acolher desde os primeiros semestres da graduação. Por
ser um espaço de afeto e onde eu aprendo cada dia a ser professora e pesquisadora.
Ao Grupo Cartografias da Infância, por ser um espaço de descobertas e de alegria,
onde eu aprendo muito sobre infância e literatura infantil, mas também que me ensina
a aprender com o diferente e me desafia a leituras potentes e inquietantes.
Às estudantes e aos estudantes de EDC 306 - Leitura e Produção de Textos 2017.2,
por aceitarem embarcar comigo numa viagem pelos livros de Sylvia Orthof e pelos
estudos sobre a alegria cultural escolar.
À Escola Municipal São José e à Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio
Vieira (EJACAV), por acolherem a mim e as turmas de EDC306 Leitura e Produção
de Textos e permitirem a realização de atividades de leitura com seus estudantes.
À Mônica Menezes, por me ensinar tanto sobre literatura infantil. Pelos muitos
momentos compartilhados, pela amizade, pelo ouvido e o ombro amigo, pelas lições
de afeto.
À Liane Araújo, por me afetar, me inspirar e me ajudar a brincar com a literatura. Pelas
trocas, pelo incentivo, pelas palavras de motivação e pelo carinho.
À Luciene Santos, primeira pessoa da qual eu assisti à defesa de uma tese, por ter
me lançado, naquele dia, as sementes de que a Pós-Graduação também é um espaço
de alegria.
A Victor Cerqueira, pelas palavras de encorajamento, por me ajudar a cuidar do meu
tempo, por todo amor.
À Ana Paula Albuquerque, Maria Auxiliadora Wanderley, Regina Gramacho, Joilda
Albuquerque, pela presença, pelos conselhos, pelo apoio, pela amizade.
À Raquel Bezerra, pela delicadeza da amizade, pela escuta, pelos conselhos e pela
singularidade das leituras compartilhadas.
À Simone Assumpção, pela escuta, por acompanhar a minha caminhada acadêmica,
pelo cuidado e pela amizade.
À Lívia Viana e Tamires de Jesus, companheiras de Graduação e Mestrado, por todas
as alegrias e angústias compartilhadas.
Aos Intempestivos, pela alegria dos diálogos.
À Juliana Santos, Carla Bahia e Valnívia Castilho, pelos telefonemas, cafés,
conversas durante a madrugada e nas primeiras horas da manhã, em que pude
compartilhar alegrias, inquietações, descobertas, dúvidas, muitas histórias, poesia e
sorrisos.
À Anna Amélia de Faria e Alessandra Carbonero, por me apresentarem a obra de
Spinoza.
À Sylvia Orthof e Georges Snyders, in memorian, pois sem as suas obras, a minha
pesquisa de Mestrado não seria possível.
JESUS, Jamilly Starling Santos de. A alegria na escola em diálogo com os escritos
da Fada Carioca: “Ave Alegria”. 158 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal
da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2018.
RESUMO
O afeto provocado pela leitura da produção literária de Sylvia Orthof, seguido dos
primeiros estudos sobre a alegria cultural escolar, conceito cunhado por Georges
Snyders (1988), fomentou o tecer de problematizações acerca do contato dos
estudantes com produções que compõem o patrimônio cultural da humanidade, as
práticas pedagógicas com os textos literários e a literatura na sociedade pós-moderna.
Tais problematizações motivaram a realização deste estudo que visou responder à
pergunta: que proposições pedagógicas podem ser construídas sobre a alegria
cultural escolar com base na leitura do universo literário de Sylvia Orthof? e teve como
objetivo inserir, no debate sobre a alegria cultural escolar, proposições pedagógicas
fundamentadas na leitura do universo literário de Sylvia Orthof. Além do conceito de
alegria cultural escolar, mobilizaram a pesquisa os conceitos de Alegria, conforme
Spinoza (2016), de Afeto, de acordo com Spinoza (2016) e Luciana di Leone (2014),
e de Ficção, conforme, Hans Vaihinger (2011). A partir da pergunta e do objetivo
propostos, a metodologia da pesquisa foi organizada em dois caminhos interligados.
O primeiro conduziu ao aprofundamento na produção literária de Sylvia Orthof e a
elaboração de motes organizadores de estudos. Os motes elaborados foram “Sylvia
Orthof e o patrimônio cultural da humanidade” e “Sylvia Orthof e a política”. O segundo
caminho conduziu a pesquisa empírica, realizada com estudantes de duas turmas do
componente EDC 306 – Leitura e Produção de textos. Todas as análises, fruto dos
dois caminhos trilhados, foram textualizadas sob a forma de ensaios. Os achados da
pesquisa, resultados do diálogo entre a produção literária de Sylvia Orthof, a alegria
cultural escolar e a empiria realizada com os estudantes universitários, apontam para
a potência da literatura para promoção de alegrias culturais escolares em diferentes
áreas do conhecimento, como a política, as artes plásticas, a história, a música e a
própria literatura.
Palavras-chave: Alegria cultural escolar. Sylvia Orthof. Georges Snyders
JESUS, Jamilly Starling Santos de. A alegria na escola em diálogo com os escritos
da Fada Carioca: “Ave Alegria”. 158 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal
da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2018.
RESUMEN
El afecto provocado por la lectura de la producción literaria de Sylvia Orthof, seguido
de los primeros estudios sobre la alegría cultural escolar, concepto acuñado por
Georges Snyders (1988), fomentó el tejer de problematizaciones acerca del contacto
de los estudiantes con producciones que componen el patrimonio cultural de la
humanidad , las prácticas pedagógicas con los textos literarios y la literatura en la
sociedad posmoderna. Tales problematizaciones motivaron la realización de este
estudio que pretendía responder a la pregunta: ¿qué proposiciones pedagógicas
pueden ser construidas sobre la alegría cultural escolar con base en la lectura del
universo literario de Sylvia Orthof? y tuvo como objetivo insertar en el debate sobre la
alegría cultural escolar proposiciones pedagógicas fundamentadas en la lectura del
universo literario de Sylvia Orthof. Además del concepto de alegría cultural la escuela,
movilizaron la investigación los conceptos de Alegría, como Spinoza (2016), de Afecto,
de acuerdo con Spinoza (2016) y Luciana di Leone (2014), y de Ficción, según, Hans
Vaihinger (2011). A partir de la pregunta y del objetivo propuestos, la metodología de
la investigación fue organizada en dos caminos interconectados. El primero condujo a
la profundización en la producción literaria de Sylvia Orthof y la elaboración de motes
organizadores de estudios. Los motes elaborados fueron "Sylvia Orthof y el patrimonio
cultural de la humanidad" y "Sylvia Orthof y la política". El segundo camino condujo la
investigación empírica, realizada con estudiantes de dos clases del componente EDC
306 - Lectura y Producción de textos. Todos los análisis, fruto de los dos caminos
trillados, fueron textualizados en forma de ensayos. Los hallazgos de la investigación,
resultados del diálogo entre la producción literaria de Sylvia Orthof, la alegría cultural
escolar y la empiria realizada con los estudiantes universitarios, apuntan a la potencia
de la literatura para promover alegrías culturales escolares en diferentes áreas del
conocimiento, como la política , las artes plásticas, la historia, la música y la propia
literatura.
Palabras clave: Alegría cultural en la escuela. Sylvia Orthof. Georges Snyders
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Passaporte 1
52
Figura 2 Mestre Vitalino
55
Figura 3 Salvador-BA / Caruaru-PE
56
Figura 4 Andanças por Caruaru
58
Figura 5
Cangaceiros (Vitalino) 62
Figura 6
Cangaceiros (Tato Gost) 62
Figura 7
Montaria (Vitalino) 62
Figura 8
Montaria (Tato Gost) 62
Figura 9 Lampião (traços expressionistas)
64
Figura 10 Lampião e a Onça (Tato Gost)
65
Figura 11 A Onça no consultório do dentista
66
Figura 12 Passaporte 2
67
Figura 13 Caruaru- PE / Petrópolis- RJ
70
Figura 14 Andanças por Petrópolis
72
Figura 15 Balões de Santos Dumont
80
Figura 16 Santos Dumont observa Petrópolis 81
Figura 17 Santos Dumont no chuveiro
83
Figura 18
Passaporte 3 85
Figura 19 Petrópolis- RJ / Salzburgo
89
Figura 20 Andanças por Salzburgo
90
Figura 21 Tato pinta Salzburgo
95
Figura 22
Passaporte 4 98
Figura 23 Dedicatória do livro Ervilina e o Princês
107
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACACCIL Academia Caruaruense de Cultura, Ciências e Letras
CIMA Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação
Educacional
EJA Educação de Jovens e Adultos
EJACAV Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio Vieira
EMSJ Escola Municipal São José
FACED Faculdade de Educação
GELING Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem
LPT EDC 306 – Leitura e Produção de Textos
MAB Museu de Arte da Bahia
MEC Ministério da Educação
OFIDAS Organização Feminina Israelita de Assistência Social
PNBE Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
PROAE Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UFBA
SEADE Sistema Estadual de Análise de Dados
SEE-SP Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
UFBA Universidade Federal da Bahia
SUMÁRIO
1 “EU TE ENTREGO O MEU LENÇO” 14 2 PONTO DE TECER PESQUISA 15 2.1 RABISCOS METODOLÓGICOS 30 2.1.1 Rabiscando duas linhas 34 3 ENSAIOS 44 3.1 ENSAIO 1 –DOS TRILHOS ÀS TRILHAS DA INVENÇÃO, DA
MÚSICA E DAS ARTES VISUAIS: SYLVIA ORTHOF E TATO GOST EM DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS
44
3.1.1 Preparativos para viagem- Salvador: a Estação da Intertextualidade
52
3.1.2 Primeira parada- Caruaru (PE): A Onça de Vitalino 56 3.1.2.1 Enquanto isso... No vagão LPT (01) 67 3.1.3 Segunda parada – Petrópolis (RJ): Sonhando Santos Dumont 70 3.1.3.1 Enquanto isso... no vagão LPT (2) 85 3.1.4 Terceira parada- Salzburgo: Cadê a peruca do Mozart? 89 3.1.4.1 Enquanto isso... no vagão LPT (3) 98 3.1.5 “Toda linha de escrita é um traço de horizonte!” 101 3.2 ENSAIO 2 - “PAPOS DE ANJO”: CONVERSAS SOBRE ALEGRIAS
POLÍTICAS, LITERATURA E ESCOLA 104
3.2.1 Antes de chegar ao céu 104 3.2.2 A chegada ao céu 112 3.2.3 “Papos de Anjo” 115 3.2.4 Em uma nuvem distante ou Destecendo a ficção 133 4 CONFIDÊNCIAS A UM DOCE MONSTRINHO 135 REFERÊNCIAS 142 APÊNDICE A – BIOGRAFIA DE SYLVIA ORTHOF PARA
ABERTURA DAS ATIVIDADES NAS ESCOLAS 152
ANEXO A – PRODUÇÃO DE SEVERINO PARA ATIVIDADE “SE A MEMÓRIA NÃO ME FALHA”
154
ANEXO B – PRODUÇÃO DE LILA PARA ATIVIDADE “VAI PARA O TRONO OU NÃO VAI?”
158
14
1 “EU TE ENTREGO O MEU LENÇO”
Sylvia Orthof, como último poema do livro Ponto de tecer poesia, escreve:
Eu te entrego meu lenço/ que por mim tecido está,/ com quatro ramos de flores/ de um pé de manacá,/ com dois pingos de uma rosa/ da cor forte do carmim,/ que mancharam este lenço,/ quando o espinho da poesia/ ficou fincado em mim./ Eu te bordei a palavra/ com agulha de platina,/ teu nome é meu poema/ e a agulha é minha pena./ É coisa de um lencinho/ tão leve, tão coisa à toa,/ que se bater a emoção,/ batendo no coração,/ garanto que o lenço voa./ Eu te entrego meu lenço,/ bordado, por mim tecido,/ com tudo o que foi lembrado/ naquilo que é esquecido! (ORTHOF, 2010, p.37)
Ao modo da escritora, entrego a minha dissertação para sua apreciação, leitora
e leitor, com o desejo de que juntos possamos tecer reflexões sobre a potência da
produção literária de Sylvia Orthof para a construção de proposições pedagógicas que
visem ao fomento da alegria cultural escolar. Ave alegria!
15
2 PONTO DE TECER PESQUISA1
No ponto desta poesia faço ponto
dou um laço. Tem vezes
que numa linha
eu no fio
me embaraço.
(ORTHOF, 2010, p. 8)
Mário de Osório Marques (2006) imaginava que para escrever deveria haver,
como na fala, algo que ajudasse a começar a conversa, pois ele discorda de uma
concepção de escrita como algo mecânico, que supõe um texto já elaborado. Marques
entende a escrita como outra forma de conversar. Aliando-me a essa concepção, não
resisto e inicio o presente texto contando:
Jorge Luís Borges, em seu poema A elegia da lembrança impossível, lamenta
por momentos que gostaria de ter vivenciado. Entre as estrofes do poema, destaco a
que segue:
O que não daria eu pela memória/ De ter sido um ouvinte daquele Sócrates/ Que, na tarde da cicuta,/Examinou serenamente o problema/Da imortalidade,/ Alternando os mitos e as razões/Enquanto a morte azul ia subindo/Dos seus pés já tão frios. (BORGES, 1999, p. 137)
Anos depois, Adriana Falcão (2003), em seu livro O doido da garrafa, admira a
ideia do poeta de escrever um poema lamentando por acontecimentos de um passado
que não viveu e escreve uma crônica, em forma de paráfrase, que se intitula Que não
daria eu por essa idéia2.
Ao modo do escritor argentino e da escritora brasileira, me inspiro e confesso
aos leitores: o que não daria eu por uma tarde na casa de Petrópolis, ouvindo da
própria Sylvia Orthof as suas fantasiosas ideias. O que não daria eu por assistir A
viagem de um barquinho sendo encenada e Sylvia cantando e dançando no papel da
lavadeira.
1 Título inspirado no livro Ponto de Tecer Poesia, de Sylvia Orthof. 2 A escrita ortográfica de todas as palavras consultadas em documentos publicados, antes da vigência
do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, assumido no Brasil desde o início do ano 2009, foi mantida conforme consta no documento original.
16
Interrompo o meu exercício imaginativo para fazer uma observação. No decorrer
do texto, me referirei a Sylvia Orthof, ora por nome e sobrenome, ora somente pelo
seu primeiro nome, me valendo de uma intimidade familiar, pois Sylvia e as suas obras
fazem parte da minha “família estética” conceito que colho de Affonso Romano de
Sant’Anna (1994), na crônica Iniciação estética. O autor denomina como família
estética, aqueles autores dos quais nos aproximamos desde os primeiros anos da
juventude e pelos quais nos sentimos afetados. Em decorrência do uso da palavra
“afeto”, aproveito a ocasião para dizer que dialoga com o conceito de “família estética”,
o conceito de “afeto”, de Luciana di Leone, presente no livro Poesia: escolhas afetivas,
que bebe da filosofia de Spinoza.
Spinoza compreende por afeto “as afecções do corpo, pelas quais sua potência
de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as
ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2016, p. 1633)3 para o filósofo, “[todos os afetos]
estão relacionados ao desejo, à alegria ou à tristeza”. (SPINOZA, 2016, p. 2407)4. Em
momentos posteriores, trataremos, com mais ênfase, do afeto da alegria, conforme
Spinoza. Já Luciana di Leone (2014, p. 1384)5 reflete que “o afeto, ao mesmo tempo,
ancora e mobiliza, inscreve e endereça, identifica e propicia o devir, estabelece
genealogias e tira os filhos de casa”. O conceito de afeto de Luciana di Leone dialoga
com o já citado conceito de “família literária”, de Affonso Romano de Sant’Anna, assim
como com uma das facetas da “alegria cultural escolar”, a “continuidade-ruptura” que
será abordada no primeiro ensaio que compõe esta dissertação.
Também se faz necessário tratar da importância do afeto para construção da
pesquisa aqui apresentada. Eu me sinto afetada pela produção literária de Sylvia
Orthof, afeto que me dá potência para pesquisar, mobilizar conhecimentos e me ajuda
a criar genealogias. É preciso, porém, destacar um aspecto muito expressivo na obra
de Sylvia Orthof, a criatividade na construção dos seus textos.
Guilford, (apud NOVAES, 1971, p.54) ao analisar as capacidades produtivas que
usam a informação para gerar novas informações, aponta o pensamento divergente,
ou seja, aquele que se move em várias direções em busca de uma resposta, como
3 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas. 4 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas. 5 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas.
17
tendente à criatividade. A criatividade expressa na obra de Sylvia Orthof,
possivelmente fruto de movimentos do seu pensamento divergente, me afeta, me
inspira e mobiliza o meu pensamento divergente. Afetada por essa criatividade, eu
construí a pesquisa e a sua textualização. Agora é chegado o momento de retornar
ao exercício imaginativo.
Retomo o exercício imaginativo, confessando que, ao me entusiasmar com a
entrevista de Mary Arapiraca a Lobato, presente na Revista da FACED, atual Revista
Entreideias, sob o título de Senhor da Linguagem e Invencionices pela Paz:
entrevistando Monteiro Lobato, imagino: o que não daria eu por uma entrevista nada
convencional a Sylvia Orthof, durante a qual, tomaríamos um suco de laranja6 e
conversaríamos sobre a literatura infantil brasileira, sobre as tensões em ser autora
de um gênero que, por vezes, é tido como uma literatura menor.
Quem sabe, viajaríamos pelas filosofias deleuzianas e guatarrianas,
pensaríamos nas três categorias de uma literatura menor, ou seja, “a
desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político e o
agenciamento colectivo de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2003), bateríamos
um bom papo sobre literatura e política e, depois, Sylvia me diria “vê o livro infantil, o
chamado livro para crianças, como literatura, sintonia diferente, às vezes, mas sintonia
literária, artística”. (ORTHOF, 2006, p. 174)
Lá pelo meio da conversa, eu contaria a Sylvia sobre a minha admiração pela
sua obra, diria que a reconheço como um grande nome da literatura infantil brasileira,
pois ela se aventurou por diversos gêneros – conto, poema, autobiografia e gênero
dramático –, estabeleceu diálogos intertextuais com clássicos da história da arte,
como Mozart e Bosch, sem deixar de lado a cultura popular brasileira. Um exemplo
disso é o livro Fada Fofa, Onça-Fada, em que a cultura nacional e o diálogo com o
6 Referência a dedicatória do livro Papos de anjo, de Sylvia Orthof, em que a autora escreve:
Para Eliane Ganem, com admiração, carinho... e aquele chope que ambas não bebemos! Explicação do chope: Uma vez eu estava matando saudades de Eliane Ganem pelo telefone. Conversa vai, conversa vem, Eliane propôs: - Sylvia, que tal a gente marcar um encontro, tomar um chope e botar as novidades em dia? Respondi que era uma ótima ideia. Continuamos a papear e, na hora da despedida, confessei: - Eliane, eu não bebo álcool, nem chope... - Eu também não, Sylvia! Danamos de rir: nós, duas mulheronas feitas, com vergonha de marcar encontro para um suquinho de laranja, fazendo “pose de chope”! Pois é, adolescência é isso: não tem idade. (ORTHOF, 2014, p. 5)
18
artista estrangeiro, no caso, Mozart aparecem na mesma narrativa. Em seus livros de
contos de fadas, a autora subverte os clássicos, através da paródia, desconstrói
estereótipos, como o das fadas sempre muitos boas – e louras – (ORTHOF, 1989) e
a polarização entre o bem e o mal, abrindo espaço para construção de outras
possibilidades de representação dos seres feéricos.
Outro marco do universo de Sylvia é a brincadeira com a linguagem, como a
criação de neologismos, a citar, Guardachuvando, neologismo que compõe o título do
livro Guardachuvando doideiras. As questões políticas também estão em sua obra,
como no livro, Quem roubou meu futuro, em que a autora problematiza a situação
político-econômica do Brasil no início dos anos 1990, ou em Mudanças no galinheiro
mudam as coisas por inteiro, cuja narrativa apresenta uma reflexão sobre o
empoderamento de sujeitos considerados como mais frágeis. Sylvia, ao escrever para
crianças, não as subestimou, pelo contrário, escreveu sem querer dar lição de moral,
ou aula Português, Geometria, História ou Geografia e ainda valorizou a curiosidade
e a inventividade que são próprias das crianças. Tudo isso, sem deixar de lado a
alegria, que até nomeia um dos seus livros, Ave Alegria, que me inspira para compor
o título da pesquisa que realizei. Ao me ouvir, aposto que Sylvia iria corar, mas
tentando esconder a timidez, responderia:
Um livro não é feito para ensinar. Um livro é prazer. Pode-se aprender muito num livro, mas o intuito da literatura (não estou falando dos livros didáticos) é o de proporcionar prazer. Acho importante a entrada do livro no âmbito escolar. Não pode existir uma escola que não tenha a sua hora de recreio, faz parte do equilíbrio das crianças, dos jovens. O livro não é um dever de casa, é um direito. Direito de ler, gostar, não gostar, trocar de autor ou de livro. (ORTHOF, 2006, p. 174)
Com essa conversa da literatura como direito, eu me lembraria das palavras de
Antonio Candido que situa a literatura entre os bens incompreensíveis, ou seja,
aqueles que não podem ser negados aos humanos, aqueles que garantem tanto a
sobrevivência física quanto a integridade espiritual. (CANDIDO, 2011)7. Ao que Sylvia
talvez retomasse as palavras de uma velha conhecida sua, a escritora Ana Maria
Machado, pois, de acordo com Ana Maria Machado, a leitura de textos literários, além
de ser um direito, é um prazer, uma forma de resistência, além dos textos se
configurarem verdadeiros patrimônios da humanidade (MACHADO, 2009).
7 No momento de conclusão destes escritos, recebo a informação de que, em São Paulo, está exposta
à visita pública a “Ocupação Antonio Candido” que entrelaça literatura como direito humano, a arte, a educação e a justiça social , sob a curadoria de sua neta, Laura Escorel, entre outros .
19
Ao lembrar-se de Ana Maria Machado, é possível que Sylvia resolvesse “pular
amarelinha na calçada da memória”8, e recordasse a sua chegada na literatura infantil.
Foi através do teatro que Sylvia entrou em cena na literatura infantil. Ela inscreveu o
seu texto A viagem de um barquinho, em um concurso de dramaturgia infantil,
promovido pelo teatro Guaíra. O texto ganhou o primeiro lugar, e Ana Maria Machado
era uma das juradas. Sylvia acreditava que foi Ana Maria quem abriu caminhos para
ela, pois depois disso, Ruth Rocha, então diretora da Revista Recreio, amiga e
cunhada, naquele período, de Ana Maria Machado, telefonou pedindo à Sylvia, uma
história. Foi pouco depois de começar a publicar seus contos na Revista Recreio que
Sylvia teve os seus primeiros livros publicados (ORTHOF, 1996).
Por falar em gente querida, eu contaria à Sylvia que sua amiga Fanny
Abramovich, ou a Cigarra Ruiva, como Sylvia gostava de chamá-la, também me
inspirou para tecer a nossa conversa cheia de confidências. Fanny escreveu o livro
Sylvia sempre surpreendente, contando deliciosas histórias da amizade entre as duas
(ABRAMOVICH, 2007). Histórias surpreendentes! Quando eu falasse em Fanny,
Sylvia ficaria com mania de Cabidelim, personagem que nomeia a história Cabidelim,
o doce monstrinho. Cabidelim tem braços encravados no lugar dos ouvidos e quando
quer ouvir melhor, ele abraça as pessoas. O monstrinho também tem mania de fazer
muitas perguntas.
Com mania de Cabidelim, Sylvia abriria a torneirinha de perguntas. Ela quereria
saber as histórias que eu havia lido, quais personagens eram meus amigos... Eu
contaria da minha amizade de longa data com Fada Fofa, personagem que eu conheci
na biblioteca da minha antiga escola quando tinha cerca de sete anos. Meu encanto
por Fada Fofa foi, à primeira vista, digo, à primeira lida. Depois de Fofa, eu conheci
Uxa, Docemel, Dona Noite Doidona, Pirraça, Tumebune, o vagalume, Fada Cisco
Quase Nada, João Feijão, A Fada lá de Pasárgada, Maria vai-com-as-outras, A
Rainha Rabiscada, Valéria, A Fada Sempre Viva e a Galinha-Fada, muitos
personagens, muitas histórias especiais. Dentre elas, eu faria questão de destacar a
minha amizade com Ervilina.
Contaria ainda que, em uma oficina do Projeto Leitura Com..., projeto inscrito no
Programa Permanecer da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UFBA (PROAE)
8 Faço referência ao excerto da obra autobiográfica de Sylvia Orthof, Livro Aberto: confissões de uma
inventadeira de palco e escrita: “Confesso que sinto um prazer infantil em pular amarelinha na calçada da memória.” (ORTHOF, 1996, p.29).
20
coordenado pela Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão e vinculado ao Grupo de Estudo
e Pesquisa em Educação e Linguagem (GELING), em que a obra lida foi Ervilina e o
Princês, uma criança perguntou em tom de estranhamento – Ervilina não se casou
com o Princês? Movida por essa pergunta eu desenvolvi a minha pesquisa de
conclusão no curso de Graduação em Licenciatura em Pedagogia, em que busquei
estudar a reação das crianças ao se relacionarem com as temáticas presentes na obra
Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina, que se apropria de elementos do conto
clássico A Princesa e a Ervilha, de Hans Christian Andersen, porém carrega outras
ideologias, outras bandeiras e vozes de diferentes sujeitos.
Espicharia mais ainda a conversa e contaria que o fato de a pesquisa ter
envolvido a participação ‘das crianças com curiosidade intelectual sobre o texto
literário, perguntando, atribuindo sentidos, interessadas no contexto de produção das
obras, lendo o texto verbal e imagético, me ajudou a ratificar o argumento de que a
presença da literatura na escola pode ser porta aberta para reflexões e construção de
saberes de diferentes naturezas9. É importante ressaltar que acredito que a presença
do texto literário na escola deve ser mediada de forma responsiva, em que seja
valorizada a leitura polissêmica que, conforme Orlandi (2001, p.200), “se define pela
atribuição de múltiplos sentidos ao texto”. Sobre a polissemia, Orlandi (2001,p.137)
ainda acrescenta que “a polissemia desloca o mesmo e aponta para a ruptura, para a
criatividade[...]”. Também acredito em práticas de leituras escolares que fujam do que
Marisa Lajolo (2002) denomina de “uniformização”, caracterizada por ela como
práticas com o rótulo de atividades lúdicas que são realizadas de forma indiferenciada
sem considerar a singularidade de cada aluno e de cada turma. Os resultados da
pesquisa também colaboraram para que eu continue afirmando o valor da literatura
como direito humano, conforme defende os já citados, Antonio Candido (2011) e Ana
Maria Machado (2009).
A essa altura, eu já teria desenvolvido o gosto por dizer sobre os meus estudos
e, mesmo sem que Sylvia me perguntasse, dando um salto para o presente, não
deixaria de lhe contar que, no curso do Mestrado em Educação, ao conhecer o
9 Em uma atividade da oficina, após a leitura da obra Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina,
o debate se encaminhou para as questões de gênero e o papel da mulher na sociedade. A partir de uma intervenção feita por um estudante, em que ele discorria sobre as alterações que faria caso fosse o escritor da história. Esse foi um momento em que se expôs e se questionou estereótipos, a partir de uma discussão entre os demais alunos da turma, além se configurar como um momento de exercício de respeito ao pensamento divergente.
21
trabalho de George Snyders (1993), eu descobri o conceito de alegria cultural escolar
que consiste na alegria dos estudantes frente à descoberta do patrimônio cultural da
humanidade. Alegria em saber que podem produzir e reinventar sentidos diante das
obras que compõem o patrimônio cultural que a humanidade tem construído ao longo
dos séculos.
Talvez Sylvia se lembrasse de já ter encontrado o educador francês nas bandas
celestes e se interessasse por conhecer um pouco mais da biografia de Snyders. Caso
isso acontecesse, partindo da leitura do ebook Georges Snyders: por uma pedagogia
da alegria e do antipreconceito: subsídios para a formação de professores, fruto da
tese de Renata de Almeida Vieira (2016), eu contaria que Georges Snyders nasceu
na França no ano de 1917, seus pais eram judeus e holandeses, mas morando na
França se esforçaram para ser “genuínos” franceses. Na infância, o menino Snyders
era considerado um bom aluno, pelo seu desempenho e por suas origens ele
enfrentou bullying na escola. Por influência de seus pais, ele também se dedicava aos
estudos musicais, principalmente do piano.
Em sua juventude, o educador francês passou por uma experiência que mudou
a sua existência. Snyders viveu dez meses preso no campo de concentração de
Auschwitz. Durante esses dias terríveis, além da fome, do trabalho sem descanso, o
judeu também enfrentou uma série de humilhações que tentavam desumanizá-lo.
Nesse período, as obras culturais foram de extrema importância para a sobrevivência
de Snyders, conforme Vieira (2016, p. 1011)10
Se antes de Auschwitz a alegria alcançada por Georges Snyders junto a Mozart e outras obras-primas era sempre em situação de refúgio, era um pôr-se em fuga deste mundo banal, fica para nós evidenciado que, em Auschwitz, a alegria suscitada pelas criações de Mozart adquiriu para o nosso autor outro sentido, que nos parece ser a própria negação e superação do sentido atribuído anteriormente. Não se tratava mais de fugir deste mundo, refugiando-se no universo harmonioso da música, mas de, pela beleza da música, fincar os pés neste mundo e resistir a fim de não sucumbir com o peso da dolorosa realidade. Nesse sentido, cantar Mozart, em Auschwitz, foi, para Georges Snyders, tanto inspiração para resistir, como acalento para restaurar forças, ativar o ânimo e a coragem para que se mantivesse vivo.
Conhecendo esses aspectos biográficos, é possível compreender as razões do
combate ao racismo e das obras-primas, centralidade da sua concepção de educação,
10 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas.
22
serem expressivos na produção acadêmica de Snyders. Sobrevivendo ao sofrimento
dos meses que passou no campo de concentração, o posicionamento político de
Snyders e a sua visão de mundo foram profundamente afetados. Reaprendendo a
viver, ele se filiou ao Partido Comunista Francês e avançou nos estudos marxistas
que marcam uma parte expressiva de suas publicações. Com o passar do tempo, se
dedicou a pensar, com mais ênfase, a educação escolar, produzindo obras que unem
a sua experiência familiar, escolar, sua luta pela sobrevivência em Auschwitz e a
ressignificação da existência após a saída do campo de concentração. (VIEIRA, 2016)
Entre as temáticas presentes nas obras do autor, aqui versaremos, exclusivamente,
sobre a alegria cultural escolar.
Por termos falado sobre Snyders no campo de concentração de Auschwitz,
Sylvia talvez se lembrasse da sua família composta por judeus austríacos, que vieram
para o Brasil, fugindo da II Guerra mundial. Quem sabe ela confessasse:
[...] Entendi pouco da coisa, ou quase nada. No Rio, sei que começamos a comer pão de milho, faltava trigo. Na nossa casa, onde vivíamos tranqüilos, meu pai, minha mãe e eu, chegaram parentes, aos borbotões. Todos vinham de longe, da Europa, não falavam português. (ORTHOF, 1987, p.67)
Possivelmente, ela se lembraria da sua amiga Fanny Abramovich, também judia,
cuja mãe, Elisa Abramovich, trabalhou na Organização Feminina Israelita de
Assistência Social (OFIDAS), responsável por acolher judeus que chegavam ao Brasil,
vítimas de perseguições em suas pátrias (SALVATORI, 2014). Também sobre Fanny,
talvez me dissesse que a literatura foi responsável por fazer a amiga perceber, com
mais clareza, o sofrimento dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e citaria um
excerto do livro O professor não duvida! Duvida? no qual Fanny narra experiências
leitoras como estas:
As perseguições aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial afloraram com maior nitidez e espanto quando li o sofrido, sufocante e humano Diário de Anne Frank, escondida por anos num sótão. Ela tinha menos idade quando viveu e sofreu aquilo tudo do que eu quando a li... As pequenas aldeolas judaicas, a atmosfera do iídiche falado por meus avós, minhas raízes desconhecidas e semi-enunciadas, as cantigas do leiteiro, a casamenteira, o pequeno alfaiate, o cheiro de arenque defumado, dos pepinos azedos as rezas e os cantos tristonhos, as danças celebrantes, fui conhecer – quando mocinha – pelos belos textos de Sholem Aleichem e Y. L. Peretz. Dois contistas de primeira linha! Ternos e bem-humorados, descritivos e críticos. Delícia pura! Também os judeus-americanos Sholem Asch e Michael Gold, que me levaram às lágrimas e sofrências doidas. (ABRAMOVICH, 1998, p. 146-147)
23
A narrativa afetiva de Fanny, porventura, me lembraria os escritos de uma outra
amiga de Sylvia, a já citada Ana Maria Machado. Em seu livro Como e por que ler os
clássicos universais desde cedo, a autora defende que, desde a infância, tenhamos
contato com os textos que formam o patrimônio cultural da humanidade. Em seguida,
eu diria a Sylvia que a defesa de Ana Maria Machado me remete ao conceito de alegria
cultural escolar. Na concepção de Georges Snyders, o ponto central da alegria cultural
escolar é o encontro dos estudantes com as obras-primas. Como eu considero que o
termo obra-prima pode ser limitador, eu releio esse conceito de Snyders e penso que
a alegria cultural escolar é aquela que surge do encontro dos estudantes com o
patrimônio cultural da humanidade, compreendendo esse patrimônio, conforme é
referido no artigo 216 da Constituição Federal de 1988.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico
Ampliando a conversa, diria que o conceito de obra-prima, defendido por
Snyders (1993), já se mostra como um conceito expandido visto que engloba as obras-
primas do passado e do presente, das artes, das ciências, obras-primas políticas e
técnicas. Diria também que, por questionar o conceito de obra-prima, fui a escritos de
Jorge Coli e neles encontrei:
Os dicionários nos dirão que obra-prima é a obra perfeita, a obra capital, a produção mais alta de um autor. Se consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita, que a Ilíada é uma obra capital, que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia, diremos que nos três casos estamos diante de obras-primas da literatura. Por razões ligeiramente diferentes: Os Lusíadas podem não ser essenciais, por exemplo, para a cultura de um americano, na Ilíada talvez encontremos irregularidades de construção, dizemos que O Ateneu é a obra-prima de um autor, Pompéia; mas nos três casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras. No passado, entretanto, a obra-prima era aquela que coroava o aprendizado de um ofício, que testemunhava a competência de seu autor. Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora,
24
original, e era com freqüência um produto utilitário, saído das mãos de um carpinteiro, ourives, tecelão. (COLI, 1995, p. 14)
Sobre a atribuição do status de obra-prima para uma produção, Jorge Coli (1995)
afirma que, no passado, essa atribuição era feita a partir de parâmetros específicos e
por pessoas que dominavam as técnicas para produção das obras, que eram, como
já citado, produtos utilitários. Hoje, os profissionais do meio artístico responsáveis pela
atribuição de juízos de valor as obras, seguem critérios diversos e pouco precisos que
diferem do antigo “saber fazer”.
Dada à atenção de Sylvia, lhe diria que chegamos a um ponto em que o conceito
de obra-prima está em diálogo com o conceito de cânone. As obras-primas, no ramo
das artes-visuais, da música, do cinema ou da literatura, também são aquelas
produções que integram o cânone. Compangnon (2010, p. 222-223), acerca do
cânone, nos conta que
Um cânone é, pois, nacional (como uma história da literatura), ele promove os clássicos nacionais ao nível dos gregos e dos latins, compõe um firmamento diante do qual a questão da admiração individual não se coloca mais: seus monumentos formam um patrimônio, uma memória coletiva.
E acrescentaria: Roberto Reis (REIS, 1992, p.70), por sua vez, apresenta um conceito
distinto de cânone:
Nas artes em geral e na literatura, que nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres -, um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta “humanidade” é muito fechada e restrita) a ser preservado para as futuras gerações, cujo valor é indisputável.
É o mesmo Roberto Reis (1992) que renova e problematiza o conceito de
cânone, ressaltando o quanto a seleção de obras tidas como a “mais alta expressão
da cultura”, pode ser excludente por diversas razões, a citar, a majoritária presença
de homens no cânone e a inexpressiva presença de artistas de grupos étnicos e
raciais menos prestigiados pela sociedade.
Seria uma solução para o caráter excludente do cânone, que hierarquiza obras
e autores, a inserção de outros grupos, como mulheres, negros, indígenas entre os
autores e obras tidas como canônicas? Conforme Roberto Reis (1992, p.76), essa não
seria uma solução. Escreve o pesquisador:
cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua construção e a sua disseminação. Não é suficiente repensá-lo ou revisá-lo, lendo outros e novos textos, não canônicos e não
25
canonizados, substituindo os “maiores” pelos “menores”, os escritores pelas escritoras, e assim por diante. Tampouco basta – ainda que isto seja extremamente necessário – dilatar o cânon e nele incorporar outras formações discursivas, como a telenovela, o cinema, o cordel, a propaganda, a música popular, os livros didáticos ou infantis, a ficção científica, buscando uma maior representatividade dos discursos culturais. O que é problemático, em síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade.
Considerando que o conceito de cânone, mesmo se abarcasse outros autores e
obras de diferentes naturezas, também não abarcaria a pluralidade representada pelo
patrimônio cultural da humanidade e, sabendo que o conceito de “cânone” está em
diálogo com o conceito de “obra-prima”, volto a pensar a alegria cultural escolar,
emprestando novos sentidos à concepção de Snyders (1993). Acredito que o “centro
da escola” em lugar de ser a relação do aluno com a obra-prima, como acredita o
educador francês, pode ser a relação do aluno com o patrimônio cultural construído
pela humanidade, considerando que o conceito de patrimônio cultural da humanidade
é, como já referido, plural e mais representativo que um conjunto seleto de obras-
primas.
Acreditando no interesse de Sylvia pela conversa, eu ainda ressaltaria que,
conforme Snyders, a alegria cultural escolar é a alegria que surge quando
O aluno dá vida à obra, dá sua vida à obra, e essa interpretação pessoal é que constitui a primeira conquista de sua originalidade autônoma. O primeiro “papel” dos alunos é “representar” à sua maneira, inimitável, os teoremas de geometria ou as estrofes de um poema. Pode chegar, assim, a um “olhar produtivo”: associar sua própria experiência à do autor, compará-la, assimilá-la, opôr-se a ela. (SNYDERS, 1993, p. 114)
Neste momento, Sylvia poderia perguntar: “mas como essa alegria pode ser
fomentada?” Para o aluno se envolver numa interpretação, o primeiro passo é que
ele tenha contato com a obra-prima ou com o patrimônio cultural da humanidade. Visto
que, do patrimônio cultural da humanidade, estamos pensando com mais ênfase nas
produções literárias, é preciso que os alunos tenham acesso às obras literárias.
Sabemos que as escolas públicas brasileiras recebem acervos literários através
de programas de distribuição de livros, o principal deles é o Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE)11. Através de pesquisas como A mediação da leitura
literária no Projeto Leitura Com... “infinito novelo de tantas tramas e cores”, de Joilda
11 O programa distribuiu livros às escolas públicas do país durante toda primeira década dos anos
2000 e até metade da segunda década. Desde o ano de 2015 encontra-se suspenso.
26
Albuquerque dos Santos Pereira (2016), e Literatura e ensino: professores e poetas
na construção de saberes, de Regina Lúcia de Araújo Gramacho (2013), além das
produções das integrantes do projeto Leitura Com... durante os seus dez anos de
atividade, tomamos conhecimento de que a presença do acervo nas escolas não
assegura o acesso dos estudantes às mesmas. Para garantir o acesso dos estudantes
a essas obras, são necessárias ações de mobilização dos acervos, aliadas às práticas
pedagógicas que valorizem a leitura literária, que poderão resultar na sua
democratização.
Ao pensar as práticas pedagógicas com os textos literários, lemos em Marisa
Lajolo alguns caminhos que podem ser valorizados. Lajolo no texto O texto não é
pretexto (1988, p.52), afirma que “a presença de um texto literário na escola cumpre
funções várias e nem sempre confessáveis, frequentemente discutíveis, só às vezes
interessantes”. Em uma releitura do seu próprio texto no ensaio intitulado O texto não
é pretexto. Será que não é mesmo?, a autora revisita questões centrais discutidas
nele, entre elas a autonomia do texto, a solidão e o caráter individual da escrita e da
leitura, ao que Lajolo confessa não acreditar mais, ou seja, Lajolo afirma ter aprendido
que
no texto inscrevem-se elementos que vêm de fora dele e que os sujeitos que se encontram no texto – autor e leitor- não são pura individualidade. São atravessados por todos os lados pela história: pela história coletiva que cada um vive no momento respectivo da leitura e da escrita, e pela história individual de cada um; é na interseção destas histórias, aliás, que se plasma a função de autor e leitor. (LAJOLO, 2009, p. 104)
Outro ponto revisado pela autora é a condenação a priori de leituras patrocinadas
pela escola, visto que essa ideia subtende a existência de uma única possibilidade de
leitura. Lajolo (2009, p.106), afirma que “[...] a migração de textos para atividades
escolares subtrai os textos de seu – digamos – gênero original. Mas isso é inevitável:
textos são migrantes por natureza, e a migração não ocorre apenas em situação
escolar”. E ainda anuncia:
[...] hoje acredito que a forma de alunos aprenderem a ler artigos de jornal, contos e letras de música é, exatamente, distanciarem-se das situações comuns de circulação destes gêneros. Nesse distanciamento, é mais fácil desenvolverem categorias críticas de leitura para que, em situações comuns, exteriores à escola, os alunos possam ser sujeitos críticos da leitura que fazem de tais textos. (LAJOLO, 2009,p.106)
27
Apesar de romper com algumas ideias, como foi exposto nos parágrafos
anteriores, e rever as certezas que tinha, ao escrever o texto de 1982, em 200812,
Lajolo preserva uma das ideias fundamentais, já contidas no título do seu artigo, a
ideia de que um texto não é pretexto. O que a escritora, em um tom mais propositivo,
renova, é afirmar que, não sendo pretexto, o texto é contexto. Pensar o trabalho
escolar com o texto, significa dizer que este pode ser conduzido não por relações
baseadas em pretextos, nos quais o texto pode servir de via para o ensino, mas por
relações contextuais, entendendo estas como o contexto de produção, circulação e
leituras de um texto, pois a consciência das relações contextuais permite a
recuperação da dimensão coletiva da escrita e da leitura. O câmbio de uma forma de
trabalho com o texto que valorizava o texto como pretexto para uma forma de trabalho
que valorize o texto, enquanto contexto, pode contribuir para a superação de
desacertos no trabalho escolar com o texto (LAJOLO, 2008).
Acredito na importância da atualização do trabalho com o texto na escola,
concordo com Marisa Lajolo (2008), quando a autora propõe que este trabalho
valorize as relações contextuais de um texto e ainda defendo que o trabalho contextual
pode contribuir para com o fomento da alegria cultural escolar.
Se Lajolo nos apresenta caminhos, ao lançarmos olhares para a leitura literária
na sociedade pós-moderna de consumo, desafios se impõem. Snyders, em sua obra
Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários traduzida
para o Brasil no início dos anos noventa, ao pensar a sociedade contemporânea,
afirma que
[...] o lazer se estruturou em instituições. Os instrumentos de lazer, desde a televisão até a organização dos esportes e das férias, ocupam posições-chave em nossa sociedade, sem paralelo com as simples distrações de tempos atrás. Ademais, certas instituições de lazer, consideradas como meios de formação, estabelecem uma concorrência cada vez maior com a escola. (SNYDERS, 1993, p.36)
Se pensarmos na sociedade brasileira, da segunda década dos anos dois mil,
as formas de lazer se multiplicaram ainda mais. A expansão da internet, o crescimento
das tecnologias da informação e comunicação, nos coloca frente a desafios ainda
maiores. O estímulo ao consumo desenfreado, a “diminuição da durabilidade dos bens
12 1982 e 2008 são as datas de publicação da primeira edição dos textos. As edições dos textos
visitadas para a escrita deste texto são dos anos de 1988 e 2009.
28
duráveis”, coloca os seres humanos em um ciclo de duas fases consumo-descarte em
um ritmo acelerado.
Zygmunt Bauman, autor muito conhecido pelos seus escritos acerca da pós-
modernidade, em relação à sociedade de consumo, destaca:
Todo es prescindible, nada es verdaderamente necesario, nada es
insustituible. Todo nace con la marca de la muerte. Todo se propone
con fecha de caducidad. Todo, todo lo nacido o hecho, todo lo humano
o fabricado es prescindible.13 (BAUMAN, 2007, p. 45)
Nesse contexto de consumo-descarte, em que as horas parecem insuficientes
para as demandas do dia, ler literatura é um ato subversivo. Desenvolvendo uma
análise sobre a leitura na pós-modernidade, Lígia Cademartori assinala que
Em meio ao ritmo frenético da vida, parar para ler, pelo simples desejo de ler, que rebeldia, que reação! O leitor, recolhido e concentrado em meio a essa agitação, pode ser visto como um sujeito esquisito. Em época de tempo acelerado e mudança constante, ele escolhe fazer algo que detém a pressa, o fluir constante, a velocidade, o imediato, para exigir o tempo lento da observação e da reflexão, o desvio do olhar e a disposição para uma participação no silêncio. (CADEMARTORI, 2007, p. 124-125)
Eis mais um desafio da alegria cultural escolar: fomentar nos alunos a alegria de
conhecer, de descobrir, no caso da pesquisa que aqui se textualiza, através de textos
literários, em uma sociedade em que o tempo para a leitura se contrapõe ao ritmo
acelerado da humanidade.
Com essas reflexões, é possível que Sylvia mencionasse as palavras da sua
amiga Ana Maria Machado, lidas no livro Contracorrente: conversas sobre leitura e
política, recebido pela Fada Carioca através dos Correios Celestes14. De acordo com
Machado:
[...] só na sociedade moderna de consumo é que surgiu o livro descartável, mercadoria como outra qualquer, planejada para ficar obsoleta em pouco tempo e suscitar nova demanda após o consumo – o livro encomendado pela editora de acordo com uma fórmula previsível. Para se inserir numa série redundante, feita de vários outros quase iguais a ele. (MACHADO, 1999, p. 85)
13 Em uma livre tradução: “Tudo é dispensável, nada é verdadeiramente necessário, nada é
insubstituível. Tudo nasce com a marca da morte. Tudo se apresenta com data de validade. Tudo, o nascido ou o feito, tudo que é humano ou fabricado, é dispensável.” 14 Mais informações podem ser lidas no ensaio “Papos de anjo”: conversas sobre alegrias políticas,
literatura e escola.
29
Eu acrescentaria que, por outro lado, o livro, mesmo como objeto de consumo,
também é subversivo e recorreria às palavras de Lígia Cademartori:
[...] mesmo sendo o livro uma mercadoria, os conceitos que animam certos textos subvertem a lógica de uma sociedade marcada pelo descartável, contrariando, assim, o desejo incessante por objetos novos, ao propor algo mais essencial do que a cultura da compra e do desperdício. (CADEMARTORI, 2007, p. 123)
A reflexão de Cademartori dialoga com um conceito de literatura de Ezra Pound
(2006, p.33): “literatura é novidade que permanece novidade”. As obras de literatura
que compõem o patrimônio cultural da humanidade não são descartáveis por serem
antigas, pelo contrário, muitas obras escritas, em décadas ou séculos passados, são
elevadas à categoria de clássicos, em consideração à capacidade do que elas têm a
comunicar a diferentes gerações. Se chamarmos Italo Calvino (1993,p.11) ao nosso
diálogo, o autor afirmará que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer
aquilo que tinha para dizer”.
Finalmente, eu contaria à Sylvia que reconheço a sua obra literária como
potência para discussão sobre a alegria cultural escolar pela via da literatura. Assim,
contrafeita com o pouco acesso das crianças a obras que compõem o patrimônio
cultural da humanidade, considerando os caminhos propostos por Lajolo acerca de
práticas que valorizem as leituras contextuais e, sendo desafiada pela incômoda
situação da leitura literária na sociedade pós-moderna, eu lhe apresentaria a minha
pergunta de pesquisa: que proposições pedagógicas podem ser construídas
sobre a alegria cultural escolar com base na leitura do universo literário de
Sylvia Orthof? Apresentaria o objetivo geral: inserir no debate sobre a alegria
cultural escolar proposições pedagógicas fundamentadas na leitura do universo
literário de Sylvia Orthof. E, quando ensaiasse apresentar o seu traçado
metodológico, acredito que Sylvia me interromperia para exclamar: Ave alegria!
Talvez olhasse para o céu, e, vendo que já estava tarde e o suco de laranja já
havia acabado há muito tempo, me daria duas beijocas e se despediria dizendo, como
se me aconselhasse: “[...] toda palavra é pergunta/ e a resposta traz dentro!”. Por
último, assoviaria para o céu e dele surgiria o Dragão Severino, que trabalha para
Dona Lua15. Sylvia subiria nas costas de Severino e o Dragão alçaria voo, enquanto
ela acenaria para mim-, “sempre surpreendente”.
15 Referência ao livro “Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro”, de Sylvia Orthof.
30
2.1 RABISCOS METODOLÓGICOS
Após me despedir de Sylvia, ficaria lembrando-me do versinho que ela me disse,
ao se despedir: “[...] toda palavra é pergunta/ e a resposta traz dentro!” (ORTHOF,
2007, p.11). Ao desenvolver uma pesquisa científica, temos um objetivo geral, que é
elaborado a partir da pergunta de pesquisa e, no decorrer de sua realização,
buscamos responder essa pergunta. Para encontrar as respostas, embora Sylvia
escreva que a resposta já está dentro dela, precisamos de um corpo de regras e
diligências estabelecidas para realizar a pesquisa.
Antônio Carlos Gil (2002) nos oferece isso de que precisamos e a que chama de
metodologia. Para ele, metodologia é um conjunto de procedimentos a serem
seguidos na realização da pesquisa. Marconi e Lakatos (2003, p. 221) nos dizem que
a metodologia da pesquisa é o que responde, a um só tempo, às questões como?,
com quê?, onde?, quando?. Eu acredito que a metodologia está para a pesquisa,
como os ossos estão para o corpo humano, sem os ossos, os humanos não teriam
sustentação, escolhas metodológicas inconsistentes também afetam a sustentação
das pesquisas.
Foi uma escolha teórico-metodológica escrever uma considerável parte deste
texto na primeira pessoa do singular, o que eu justifico tendo como base o que teoriza
Dominique Maingueneau no livro Análise de textos de comunicação: “Dizer “eu”
significa ao mesmo tempo designar alguém e mostrar que esse alguém é
precisamente aquele que profere o enunciado em que aparece esse “eu”
(MAINGUENEAU, 2002,p.108)”. Lícia Beltrão (2006, p.57), em sua leitura do texto de
Maingueneau, re-textualiza o escrito pelo pesquisador francês acerca da enunciação
em primeira pessoa do singular da seguinte maneira: “[...] o indivíduo que fala e se
manifesta como “eu” no enunciado é também aquele que se responsabiliza por esse
enunciado”. Aliando-me aos autores, afirmo que escrevo em primeira pessoa do
singular me responsabilizando pelo que enuncio.
Se escrever em primeira pessoa do singular foi uma escolha teórico-
metodológica, alternar a primeira pessoa do singular com a primeira do plural em
determinados momentos também o foi. Essa escolha se justifica pelas concepções
bakhtinianas de dialogismo às quais me alio (Bakhtin, 1997). Compreendo que as
minhas palavras são todo tempo atravessadas pelas palavras dos outros, nos
31
momentos em que essa mistura de vozes exige ser explicitada, opto pela mudança
da primeira pessoa do singular, para primeira pessoa do plural.
É pelo viés do dialogismo que outro fator desta dissertação deve ser considerado:
a presença de vozes de sujeitos muito distintos. Vozes de pesquisadoras e
pesquisadores, escritoras e escritores, pessoas daqui, dali e dacolá, todas convidadas
ao diálogo, pois a concepção de pesquisa em Ciências Humanas a qual me filio
também tem fundamento em uma concepção bakhtiniana na qual a construção de
conhecimento sobre os sujeitos precisa ser sempre realizada de forma dialógica
(BAKHTIN,1997). Seguindo essa concepção, encontro apoio nas palavras de
Pessanha (1997, p.19):
Portanto, as ciências fundamentadas nas opiniões precisam do assentimento dos outros e só se constituem dentro dessa trama. Elas não podem ser monológicas, mas dialógicas e plurilógicas. Realizam-se dentro de um dialogismo para que os outros se pronunciem, emitam suas opiniões. A partir dessas opiniões, constrói-se a trama epistêmica, científica, dotada de suficiente consistência para merecer o nome de ciência: uma ciência de tipo dialógico e dialético, não monológico mas argumentativa, persuasiva, capaz de interferir nas pessoas, em suas mentes, inteligências, desejos, vontades.
Voltando às escolhas metodológicas, também optei por iniciar a minha pesquisa
estabelecendo um diálogo ficcional com A escritora Sylvia Orthof.
A minha opção pela ficcionalidade teve início com experiências empíricas, no
Curso de Licenciatura em Pedagogia. Entre os oitos semestres de Curso, fui aluna
dos componentes EDC B84 – Linguagem e Educação, EDC 302 – Metodologia do
Ensino de Língua Portuguesa e EDC 306 – Leitura e Produção de Textos, ministrados
pela Profa Lícia Beltrão. No mesmo período, sob sua coordenação, fui bolsista do
Projeto Leitura Com..., projeto inscrito no Programa Permanecer da Universidade
Federal da Bahia, que objetivava democratizar a leitura literária, mobilizar o acervo
literário do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e ampliar as capacidades
leitoras dos estudantes que participavam das atividades.
Envolvida nessas duas experiências, como aluna e como bolsista, comecei a
observar as possibilidades de diálogo entre a ciência e a ficção. Citarei dois exemplos.
Como aluna, experimentei, na EDC 302 – Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa -, ficcionar a prática de ensino de Língua Portuguesa, sendo professora
da Escola Bom Tempo. Como tal, vivi sua dinâmica, interagi com gestoras,
professores e colegas e me responsabilizei, junto a outros professores, pelo
32
planejamento de aulas de leitura, oralidade, escrita e aspectos linguísticos, visando a
práticas com estudantes de escolas públicas do Ensino Fundamental, anos iniciais
Como bolsista do Projeto Leitura Com..., planejei e implementei a oficina “Trem
dos Escritores”, desenvolvida com crianças do Grupo 5 da Educação Infantil ao quinto
ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Batista Vasco da Gama16. Nessa
oficina, convidamos as crianças a imaginarem a escola como uma estação de trem.
Naquela estação, a cada semana, um escritor desembarcaria e compartilharia
conosco parte da sua obra. Com o convite aceito pelas crianças, o movimento da
estação foi iniciado. O primeiro escritor a desembarcar do trem de ferro foi o
maquinista Manuel Bandeira. Após o Manuel, desembarcaram Sylvia Orthof, com o
livro Ervilina e o Princês, ou Deu a louca em Ervilina, Ziraldo, com o livro A Bela
Borboleta, Mary Arapiraca, com o poema A Locomotiva do João e Ruth Rocha, com o
livro O trenzinho do Nicolau.
Se, com Vaihinger, eu aprendi sobre a relevância da ficção para o fazer científico,
com Roland Barthes, eu aprendi sobre a linguagem literária e a linguagem científica.
A importância de estudar essa produção de Barthes se dá em virtude das duas
linguagens se fazerem presentes em meu texto e pela minha crença de que a literatura
pode contribuir para com o fazer científico. Alio-me às palavras de Roland Barthes,
quando o autor afirma que
A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2013, p. 18-19)
Continuando o diálogo com Barthes, ele prossegue escrevendo que “[...] a
literatura trabalha nos interstícios da ciência” (BARTHES, 2013, p. 19), ou seja, a
literatura trabalha na fenda da ciência, nos seus intervalos. Ainda no mesmo texto,
Barthes pontua que “a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância
que a literatura nos importa” (BARTHES, 2013, p. 19). Eu acredito que a ciência não
precisa ser grosseira, há lugar para a delicadeza, para as subjetividades, para
implicação no fazer científico. Acredito em uma ciência não neutra. Busco um exemplo
16 Escola que integra a Rede Municipal de Ensino da cidade de Salvador, localizada no Vale das
Muriçocas
33
dessa ciência em que acredito, nos estudos feministas, quando as pesquisadoras da
década de 70, em seus estudos feministas começaram a se aproximar da academia
e provaram que é possível fazer uma pesquisa implicada, com sentimento, sem deixar
de lado os status de ciência. As primeiras pesquisadoras feministas sofreram a recusa
da academia e tiveram até suas pesquisas contestadas, mas nos deixaram um legado.
Ao tratar das contribuições dos primeiros estudos feministas, Guacira Lopes Louro
(1997, p.19) nos conta:
Coloca-se aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu caráter político. Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão, cada vez com mais desembaraço, de lembranças e de histórias de vida; de fontes iconográficas, de registros pessoais, de diários, cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensões de mudança. (grifos da autora)
É valorizando a herança deixada por essas pesquisadoras e reafirmando a
crença da potência da literatura para o fazer científico que borrei as fronteiras entre o
científico e o literário e assumi desenvolver uma pesquisa nisso interessada, sem
deixar de lado o afetivo, a partir das já mencionadas concepções de afeto (SPINOZA,
2016) (LEONE, 2014). Ressalto ainda que, ao escrever dessa maneira, não me eximo
do compromisso com o rigor acadêmico, para tanto me alio aos pesquisadores
Roberto Sidnei Macedo, Álamo Pimentel e Dante Galeffi e defendo Um Rigor Outro,
ou seja, um rigor que não se confunda com a rigidez nem com a pureza, um rigor em
que haja espaço para inventividade na pesquisa. Roberto Sidnei Macedo, acerca de
uma pesquisa com rigor, anuncia:
A pesquisa, segundo nossas posições é, acima de tudo, uma aventura pensada, implica conhecimento historicamente acumulado, mas, também, um imaginário em criação; é produzida numa comunidade de argumentos, existe para provocar alterações, turbulências de escalas, inacabamentos, relações instáveis, consensos não resignados. É neste movimento que a idéia de rigor deve se inspirar e ser constituída. (MACEDO, 2009, p.86)
Feitas essas considerações, é necessário prosseguir para tratarmos dos outros
aspectos metodológicos da pesquisa que ora textualizo.
34
Ao intitular o traçado metodológico da minha pesquisa de “Rabiscos
Metodológicos”, me inspiro na narrativa A Rainha Rabiscada, de Sylvia Orthof. Nela,
A Rainha do lápis cria reinos, estradas e florestas. Chegando à Brasília, a rainha
decide rabiscar novos caminhos para a política do nosso país, usando o seu lápis.
Essa personagem me inspira pela sua capacidade de criar, refletir sobre o a sua
criação e, se necessário, reformulá-la. Penso que a metodologia de uma pesquisa
científica também deve implicar em constante reflexão sobre as ações. Cada decisão
deve ser acompanhada de reflexão, em alguns momentos, é preciso mudar os rumos
da nossa pesquisa e tentar algo novo. Foi através de rabiscos, feitos e refeitos,
pensados e repensados, todos motivados pelo meu problema de pesquisa, que
cheguei às duas linhas metodológicas que serão expostas na subseção seguir.
2.1.1 Rabiscando duas linhas
Pensando na realização da minha pesquisa, estabeleci dois caminhos, ou duas
linhas a serem seguidas. Estas linhas não são caminhos opostos, são caminhos que
se cruzam, mas cada uma tem sua especificidade, uma linha me conduz à pesquisa
teórica, e outra linha me conduz à empiria.
Na primeira linha que me conduz à pesquisa teórica, o primeiro movimento
realizado foi a leitura de obras de Sylvia, considerando a diversidade de gêneros
(poemas, narrativas em versos, contos, crônicas, gênero dramático, autobiografia) e
a diversidade de temática (narrativas com personagens do universo feérico, que
apresentam animais como protagonistas, com personagens que marcaram a história
da humanidade, como Mozart, Santos Dumont, Vitalino e Hieronymus Bosch). O
segundo movimento consistiu em criar motes a partir dos sentidos atribuídos ao
conjunto de livros de Sylvia lidos previamente. Para a elaboração dos motes, foi
pensada a relação entre a produção literária de Sylvia Orthof e as alegrias culturais
escolares. Os motes resultantes desse processo foram: “Sylvia Orthof e o patrimônio
cultural da humanidade” e “Sylvia Orthof e a política”.
Referentes ao primeiro mote, os livros selecionados foram: A Onça de Vitalino,
Sonhando Santos Dummont e Cadê a peruca de Mozart?. Referentes ao segundo
mote, os livros selecionados foram: Mudanças no galinheiro mudam as coisas por
inteiro, Quem roubou meu futuro?, Papos de anjo, Ervilina e o Princês ou Deu a louca
35
em Ervilina e O Fantasma Travesti. Os livros que compõem os motes foram
analisados, tendo como suporte a concepção polissêmica de leitura, conforme Orlandi
(2001), já exposta na seção Ponto de tecer pesquisa deste texto. Tudo quanto foi
produzido com as análises foi textualizado sob forma de ensaio.
A inspiração para textualizar os estudos do universo literário de Sylvia Orthof
sob a forma de ensaios provém da tese A escrita do outro: anúncios de uma alegria
possível, de autoria da Profa. Dra. Lícia Maria Freire Beltrão. Interessada pela escrita
escolar e pelas possibilidades de renovação de sentidos no trato da escrita dos alunos
por parte da escola, a pesquisadora textualiza seus estudos em quatro ensaios.
Motivada pela leitura da tese, me alio ao argumento defendido pela autora para
escolha do gênero: “Talvez como todo gênero textual, é também o ensaio uma
produção híbrida, um texto “polifacetado”. A sua definição, por isso, não se faz de
modo linear, requer um grau mais sofisticado de conceituação”. (BELTRÃO, 2006, p.
56) Da comunidade argumentativa evocada pela autora para tratar do gênero “ensaio”,
me alio a Massaud Moisés (2004).
Ao tratar do gênero ensaio, Massaud Moisés (2004) confessa ser praticamente
impossível delimitar de forma rigorosa os limites para escrita ensaística. Moisés faz
referência a Montaigne como precursor da denominação “ensaios”, quando
denominou em 1580 os seus textos de Essais. O filósofo Theodor W. Adorno, também
teorizou sobre o gênero ensaio, em seu conhecido texto O ensaio como forma, ele
levanta características do gênero e dos seus escritores. Sobre o assunto, ele
expressa o que segue citado:
Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sobre as condições geradas pelo ato de escrever. (ADORNO, 2003, p. 35)
É com essa aspiração que, após ler a obra de Sylvia Orthof por diferentes
ângulos, considerando o seu texto verbal, as ilustrações, as relações entre essas duas
linguagens, questionando e refletindo sobre o que ali está posto, desejei, ao compor
os meus ensaios, resgatar a polissemia que foi valorada no momento de estudo dos
livros. Pretendi trazer para os ensaios o que foi principal para responder à minha
pergunta de pesquisa, sem me esquecer dos momentos de riso, como nas situações
de quiprocó em Uxa, ora fada, ora bruxa, como também aqueles em que as minhas
36
lágrimas rolaram, como na leitura dos seus textos autobiográficos em que a autora
relembra o período da ditadura militar no Brasil. Sobre a presença da emoção no texto
ensaístico, o pesquisador Jorge Larrosa, em seu metaensaio O ensaio e a escrita
acadêmica, tece um diálogo com o já citado texto de Adorno e afirma que “o ensaísta
quando lê, ri ou se enfada, se emociona ou pensa em outra coisa que a leitura lhe
evoca. E seu ensaio, a sua escrita ensaística, não apaga riso nem o enfado, nem suas
emoções e evocações” (LARROSA,2003).
Pensando na metodologia do ensaio, Larrosa (2003) o caracteriza como
“metodologicamente inventivo”. Acerca da presença dos conceitos no meu texto,
também dialogo com eles seguindo a “lógica” de um texto ensaístico, não os definindo
e fechando-os a priori, mas precisando-os no texto à medida que os desdobro e
estabeleço com eles relações (LARROSA, 2003). Entre os conceitos mobilizados, cito
os já mencionados neste texto introdutório, são eles: o de Alegria, conforme Spinoza
(2016), Alegria cultural escolar, de Georges Snyders (1993), o conceito de Afeto, que
busco em Spinoza (2016) e Luciana di Leone (2014), e o de Ficção, conforme, Hans
Vaihinger (2011).
Considerando que os meus ensaios refletiram sobre textos, verbais e imagéticos,
me interessaram os conceitos de Eni Orlandi (2001) de texto empírico e texto teórico.
Dada a natureza de estudo das obras, também foi muito caro o conceito de leitura
polissêmica, da pesquisadora brasileira. Devido aos textos imagéticos estudados
serem as ilustrações dos livros de literatura infantil, contribuiram com o debate os
estudos de Flávia Ramos e Neiva Panozzo (2011), Graça Ramos (2011), Sophie Van
der Linden (2011), Maria Nicolajeva e Carole Scott (2011), que tematizam a ilustração
nos textos de literatura infantil.
Em razão de os casos de intertextualidade nos livros estudados serem
singulares, tanto casos de intertextualidade explícita quanto implícita (Jenny, 1979),
somam-se aos pesquisadores já citados Julia Kristeva (2005), Laurent Jenny(1979),
Samir Curi Meserani (1995) e Ingedore Koch (2013) por serem expoentes em suas
pesquisas sobre a intertextualidade. Sabendo que os textos de literatura, demandam
um movimento específico de leitura, recorro ao conceito de leitura literária elaborado
por Graça Paulino (2005) (2014). Em se tratando de textos de literatura
contemporânea, são caras as contribuições de Florência Garramuño (2014) e Luciana
di Leone (2014), a primeira por tecer reflexões acerca da literatura como um campo
expandido e a segunda por pensar o lugar do afeto na produção literária
37
contemporânea. Por fim, já que os textos estudados são textos da literatura infantil
brasileira, são fundamentais as contribuições de Lajolo (1988) (2002), Zilberman e
Lajolo (1984), Lígia Cademartori (2007), Ana Maria Machado (2009), Peter Hunt
(2010) e Mônica Menezes (2011) (2017).
Após essas considerações, nos ateremos agora, leitores, à segunda linha dos
meus rabiscos metodológicos. Ao “concluir” as análises e em fase de processo de
escrita dos ensaios, caminhei para a parte empírica da pesquisa. Os objetivos da parte
empírica da pesquisa foram: compartilhar com estudantes universitários os estudos
sobre a alegria cultural escolar; construir com eles proposições pedagógicas sobre a
alegria cultural escolar em diálogo com a produção literária de Sylvia Orthof; além de
nos aliarmos às postulações de Georges Snyders e afirmar com o autor que a alegria
cultural escolar, também é alegria na universidade. Para esse caminho, assumi
realizar o Estágio Docente Orientado, na Faculdade de Educação da UFBA, Curso de
Pedagogia, no semestre letivo 2017.2, iniciado em outubro de dois mil e dezessete e
concluído em fevereiro de dois mil e dezoito, nas turmas dos turnos diurno e noturno
de EDC 306 – Leitura e Produção de Textos, componente disponibilizado para
estudantes de diferentes cursos da UFBA.
O envolvimento com o “campo” de ação se iniciou com a composição do plano
de curso, orientado pela ementa do componente. O mote organizador do plano, LPT
em parágrafos, permitiu, sem artificialidade, a inserção dos repertórios previstos no
programa, incluindo o do interesse da pesquisa em questão: literatura de Sylvia
Orthof, alegria cultural escolar, segundo Georges Snyders e ações pedagógicas
baseadas nesses repertórios. Considerados os objetivos voltados à formação dos
estudantes universitários leitores e produtores de textos, a metodologia escolhida para
dinamizar os estudos, combinava a atividade permanente, com aulas-passeio,
exposições participadas e a recepção de convidados cuja atuação profissional
dialogava com o debate do componente.
“Literatura, música e filmes livres”, atividade permanente do componente
curricular, consistia na disponibilização de acervos, por parte da Profa. Lícia Beltrão e
minha, compostos por textos de natureza artística e acadêmica, em gêneros e
suportes diversos (Livros físico e virtuais, Cds, Cards, programas de exposição, entre
ouros). Nessa atividade, os acervos, que dialogavam com os conteúdos e discussões
realizadas em classe, eram oferecidos para os estudantes universitários levarem,
como empréstimo, para realização de leituras. Essa atividade também colaborou para
38
a montagem de um programa de leitura individual dos estudantes durante o semestre,
que, no turno noturno, foi socializado no correr das aulas e, no turno diurno, no final
do semestre.
“Se a memória não me falha”, atividade também permanente, inspirada em título
homônimo da obra de Sylvia, motivava a escrita da memória de cada aula realizada,
por um estudante voluntário que tinha a liberdade de escolher sob que forma de
gênero textual apresentaria sua memória. LPT vai à Caixa Cultural, às ruas de
Salvador, ver o Natal, ao Museu de Arte da Bahia (MAB), ver que museu é lugar de
criança e à escola constituíram o segundo tipo de atividade, inspirada no que o
pedagogo francês Célestein Freinet chamou de aulas - passeio. O terceiro tipo foi
constituído de estudos em grupo, rodas de conversa e exposição dialogada.
Nomeamos o quarto tipo de atividades de “LPT Recebe”. Na ocasião,
recebemos, no turno diurno, a Contadora de História Regina Campana e, no turno
noturno, a Profa. Dra. Mônica Menezes, professora do componente LET C37
Literatura Infanto-Juvenil, do Instituto de Letras da UFBA.
Nos primeiros parágrafos do curso, quando foram tratadas questões referentes
a concepções do ato de ler, experiências leitoras, a escrita do outro, assumi realizar
a observação participante. Segundo Maria Cecília de Souza Minayo (2016, p. 64), a
observação participante é:
[...] um processo pelo qual um pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com finalidade de realizar uma investigação científica. O observador, no caso, fica em relação direta com seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de colher dados e compreender o contexto da pesquisa. Por isso, o observador faz parte do contexto sob sua observação e, sem dúvida, modifica esse contexto, pois interfere nele, assim como é modificado pessoalmente.
A turma do turno diurno era composta, por estudantes do curso de Licenciatura
em Pedagogia, Licenciatura em Letras Vernáculas, Secretariado e Bacharelado
Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia. As estudantes de Pedagogia, com exceção
de uma, eram concluintes. A turma do turno noturno era composta majoritariamente
de estudantes do curso de Licenciatura em Pedagogia, mas também tínhamos duas
estudantes e um estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades.
No início do semestre, a Profa. Lícia Beltrão conversou com as turmas buscando
descobrir os motivos que levaram os estudantes a se matricularem, visto que o
componente é de natureza optativa. A maioria das respostas dos estudantes acerca
39
das suas razões versou sobre os interesses pela escrita acadêmica e pelo diálogo
com a literatura. Acredito que tais interesses colaboraram para que, no momento em
que os conheci e dialoguei sobre o motivo da minha presença nas turmas, a finalidade
e os convidei a serem sujeitos da minha pesquisa, estudando comigo a alegria cultural
escolar em diálogo com a produção literária de Sylvia Orthof, aceitassem
prontamente.
Na medida em que realizava a observação, fazendo registro anedótico e as
intervenções, que cabiam quanto aos estudos que se realizavam, decisões foram
tomadas: todos os estudantes universitários seriam sujeitos da pesquisa, quer como
estudantes que teriam suas ações leitoras e produtoras de textos, apreciadas na
perspectiva da alegria cultural escolar, quer como estudantes desafiados a compor
proposições pedagógicas, valorizando o diálogo entre a alegria cultural escolar e as
obras de Sylvia Orthof, para levarem a escolas e compartilhá-las com estudantes da
Educação Básica. Em razão de combinados já firmados pela Professora do
componente, as escolas a serem visitadas e onde aconteceriam as ações planejadas
pelos estudantes de EDC 306 – LPT, foram a Escola Municipal São José (EMSJ),
anexa ao Colégio Santíssimo Sacramento, e a Educação de Jovens e Adultos do
Colégio Antônio Vieira (EJACAV). As duas escolas estão localizadas no bairro do
Garcia, na cidade de Salvador. A EMSJ, integra a Rede Municipal de Ensino de
Salvador e atende a crianças do Ensino Fundamental I, exclusivamente no turno
diurno. A EJACAV atende a estudantes do Ensino Médio e se configura como uma
modalidade de ensino do Colégio Antônio Vieira, instituição que integra a Rede Jesuíta
de Educação.
Com relação à identificação dos estudantes universitários envolvidos na
pesquisa, tomei a decisão de identificá-los com nomes de personagens da obra de
Sylvia, para preservá-los. Assim é que serão feitas referências a Yeda, Violeta, Betina,
Severino e Lila, personagens residentes, respectivamente, nos livros: Papos de anjo,
Meus vários quinze anos, O livro que ninguém vai ler, Mudanças no galinheiro mudam
as coisas por inteiro e Quem roubou meu futuro?.
Começamos o curso, com os parágrafos que tematizavam concepções do ato
de ler. Depois tecemos considerações sobre experiências de leitura e refletimos sobre
os usos da escrita do outro, conforme reflexões dos estudos da Profa. Lícia Beltrão,
textualizados na tese A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível. Na
40
continuidade, estudamos a palavra em sua dimensão discursiva, os gêneros textuais,
gêneros do discurso e logo chegamos às leituras sobre a análise do discurso.
Em janeiro de 2018, no retorno do recesso de final de ano, iniciei o período de
regência da classe. Com fins de estudo sobre a alegria cultural, realizei a mediação
de aulas expositivas dialogadas. Nessas aulas, após o estudo do conceito de alegria
cultural escolar e iniciadas as leituras da produção literária de Sylvia Orthof, os
estudantes de LPT foram desafiados para que, divididos em grupos, construíssem
proposições pedagógicas valorizando o diálogo entre a alegria cultural escolar e as
obras de Sylvia Orthof. Cada grupo ficou responsável por um dos três livros
selecionados em que Sylvia declara, desde o início das narrativas, o diálogo com
pessoas que marcaram o patrimônio cultural da humanidade, foram eles: Sonhando
Santos Dumont, A onça de Vitalino e Cadê a peruca do Mozart?.
É necessário dizer que outros livros poderiam ser escolhidos, como Quincas plim
pois foi assim, que dialoga com a produção de Hieronymus Bosch, pintor holandês
que viveu entre os séculos XV e XVI; Tem graças no Boticelli, que dialoga com a obra
de Sandro Boticelli, pintor de Florença que viveu entre os séculos XIV e XV, que
dialoga com a produção de Sandro e O anjo do Aleijadinho, que dialoga com a obra
de Aleijadinho, escultor mineiro que viveu entre os séculos XVIII e XIX. Ainda
poderíamos escolher livros como Fada-Fofa Onça-Fada ou Manual de boas maneiras
das fadas, livros em que, mesmo não sendo o motor da história, o diálogo com figuras
que marcaram o patrimônio cultural da humanidade também se faz presente, como é
característica das produções de Sylvia Orthof. Escolhi, porém, os livros Sonhando
Santos Dumont, A onça de Vitalino e Cadê a Peruca do Mozart? por razões que
seguem explicitadas.
Ao escolher A Onça de Vitalino, valorizei os artistas populares do Nordeste do
Brasil, dentre os quais, Vitalino é um expressivo nome, em razão de sua obra ter
galgado reconhecimento tanto nacional quanto internacionalmente. Com a escolha de
Sonhando Santos Dumont, desejei marcar o lugar da ciência entre as obras-primas,
como deseja Snyders (1993). Por fim, eleger o livro Cadê a Peruca do Mozart decorre
tanto da sua contribuição para música mundial quanto pela presença de Mozart na
obra de Sylvia Orthof. Dentre os muitos livros de Sylvia Orthof, lidos em virtude da
pesquisa, pude encontrar em dois deles a figura de Mozart, foram eles: Fada Fofa,
Onça-Fada, em que os personagens da história – Fada Fofa, o Vento e Onça –
encontram Mozart na cidade de Salzburgo e Cadê a Peruca do Mozart?, livro dedicado
41
ao compositor austríaco. Inferimos que a razão da presença de Mozart nos dois livros
pode ser consequente de uma possível admiração de Sylvia Orthof pelo compositor,
admiração que também podemos encontrar em Georges Snyders.
Construídas as proposições, como planejado, elas foram postas em prática. As
estudantes do turno diurno de LPT, realizaram atividades na EMSJ, com estudantes
do Ensino Fundamental I, e as estudantes de e os estudantes do turno noturno de
LPT, na EJACAV, com estudantes do Ensino Médio.
A opção por trabalhar com estudantes de graduação em lugar de trabalhar com
professores da Educação Básica, como era previsto no início da pesquisa, se justifica
pela oportunidade dos estudantes graduandos transitarem por espaços diversos,
como escolas (durante o período dos estágios), grupos de pesquisa e extensão,
movimentos políticos e sociais, sem esquecer as muitas salas de aula da
universidade.
Tendo contato com os estudos sobre a alegria cultural escolar, inferimos que
cada estudante pode ser um mediador da alegria, compartilhando os estudos de
Snyders com as pessoas dos espaços em que transitam. Nossa inferência se
confirmou quando, após o término do componente, recebi uma ligação de uma das
alunas em que ela me perguntava se poderia socializar o meu contato com uma
colega, estudante do curso de Pedagogia, que, ao ouvi-la falar sobre a alegria cultural
escolar, demonstrou interesse em conhecer mais os estudos de Snyders.
Como já mencionado, os dois caminhos da pesquisa foram geradores de dois
ensaios: Nos trilhos da invenção da música e das artes visuais: Sylvia Orthof e Tato
Gost em diálogos intertextuais e “Papos de anjo”: conversas sobre alegrias políticas,
literatura e escola. No primeiro ensaio, eu convido os leitores a uma viagem pelos
livros A onça de Vitalino, Sonhando Santos Dumont e Cadê a Peruca do Mozart?.
Nesse ensaio, eu me inspiro nos versos de Bartolomeu Campos de Queirós: “O
livro é passaporte, é bilhete de partida” (QUEIRÓS,1999.p.24). Na viagem pelos livros,
contextualizamos as cidades nas quais eles são ambientados, passeamos pela
biografia dos artistas (no caso de Vitalino e Mozart) e do cientista (no caso de Santos
Dumont) e fazemos uma leitura da narrativa, considerando os textos verbais e
imagéticos. No final de cada parada, há a subseção “Enquanto isso, no vagão LPT...”,
que se repete por três vezes, na qual são textualizadas as proposições pedagógicas
elaboradas pelos estudantes universitários, a partir da leitura das obras em diálogo
com a alegria cultural escolar.
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O segundo ensaio é inspirado nos livros Papos de Anjo, de Sylvia Orthof e Sylvia
sempre surpreendente, de Fanny Abramovich. É o livro Sylvia sempre surpreendente
que me inspira a imaginar a chegada de Fanny Abramovich ao céu. No livro, lançado
em 2007, a autora imagina a chegada de Sylvia Orthof, falecida em 1997, ao céu.
Com o falecimento de Fanny Abramovich, no ano de 2017, enquanto eu escrevia a
minha dissertação, eu imaginei a chegada de Fanny Abramovich ao céu,
reconhecendo a importância dos seus escritos para minha pesquisa, valorizando a
potência afetiva da amizade entre ela e Sylvia Orthof e também como uma forma de
homenagear, postumamente, uma figura importante para a educação e para literatura
brasileira. O segundo ensaio responde ao mote, “Sylvia Orthof e a política”. É preciso
lembrar que a alegria cultural escolar é a alegria do contato dos estudantes com as
obras-primas, e a produção de sentidos que decorre desse contato, na escola e
através da escola. Georges Snyders defende que as obras-primas não são apenas
provenientes das artes, mas da ciência e também da política, às últimas ele nomeia
de obras-primas da ação.
Diferente do primeiro ensaio em que valorizei a experiência dos estudantes de
EDC 306 – Leitura e Produção de Textos com a obra de Sylvia Orthof e as proposições
pedagógicas por eles elaboradas, no segundo ensaio, faço uma leitura da obra de
Sylvia, valorizando o que Georges Snyders nomeia de obras-primas da ação. Como
as ações não são prescritas, previstas, previamente especificadas, mas
compreendidas como singulares, fruto da implicação política dos sujeitos, optei pelas
ações do movimento estudantil secundarista da cidade de São Paulo, ocorrida no ano
de 2015. Nesse movimento, percebi a possibilidade de ler, pela obra de Sylvia,
aspetos da educação como a importância da arte e da cultura para o fazer político e
educativo, que configuram a concepção de Snyders sobre o assunto. Para tanto, da
obra de Sylvia foram valorizados os livros Mudanças no galinheiro mudam as coisas
por inteiro, Ervilina e o Princês, ou Deu a louca em Ervilina, Papos de Anjo, O fantasma
travesti e Quem roubou meu futuro?.
Além das obras de Sylvia, no segundo ensaio, eu também valorizo a produção
literária e educacional de Fanny Abramovich, pelas razões já explicitadas no parágrafo
anterior. As proposições pedagógicas desse ensaio não foram registradas em seções
específicas, como no primeiro, mas aparecem distribuídas ao longo do texto. A
textualidade escolhida provém do desejo de convidar os leitores a pensar nas
possíveis proposições a serem elaboradas a partir da obra de Sylvia em diálogo com
43
as ações do movimento estudantil secundarista na cidade de São Paulo no ano de
2015, mas não só, é um convite também para pensarmos as proposições pedagógicas
que podem ser elaboradas sobre as alegrias da ação a partir da produção literária de
Sylvia Orthof e de outros autores, cujas obras também podem ser lidas como potência
para essa categoria de alegrias.
Os dois ensaios, por sua vez, foram geradores de considerações conclusivas
que seguiram o mesmo curso criativo, inspirado na obra de Sylvia, mas sem perder a
função de retomar os propósitos da pesquisa: problema, pergunta, objetivo.
Tendo apresentado a pesquisa e as suas estratégias de textualização, convido
o leitor para a próxima seção na qual lerão os referidos ensaios. Acompanham-me?
44
3 ENSAIOS
Nesta seção, serão apresentados os ensaios produzidos a partir das duas linhas
da pesquisa, explicitadas na seção Ponto de tecer pesquisa. Foram dois os ensaios
produzidos a partir desse diálogo, o primeiro intitulado Dos trilhos às trilhas da
invenção, da música e das artes visuais: Sylvia Orthof e Tato Gost em diálogos
intertextuais, e o segundo, “Papos de anjo”: conversas sobre alegrias políticas,
literatura e escola.
Relembrando o escrito em Ponto de tecer pesquisa, no primeiro ensaio, eu
convido as leitoras e os leitores a uma viagem pelos livros A onça de Vitalino,
Sonhando Santos Dumont e Cadê a Peruca do Mozart?, respondendo ao mote “Sylvia
Orthof e o patrimônio cultural da humanidade”. Por sua vez, o segundo ensaio é
inspirado nos livros Papos de Anjo, de Sylvia Orthof e Sylvia sempre surpreendente,
de Fanny Abramovich. O segundo ensaio responde ao mote “Sylvia Orthof e a
política”.
Todos os ensaios apresentados, nesta seção, serão escritos em diálogo com a
pergunta que norteia a pesquisa aqui textualizada, ou seja, “que proposições
pedagógicas podem ser construídas sobre a alegria cultural escolar com base na
leitura do universo literário de Sylvia Orthof?, e com o seu objetivo geral, “inserir no
debate sobre a alegria cultural escolar proposições pedagógicas fundamentadas na
leitura do universo literário de Sylvia Orthof”. Feitas essas considerações,
caminhemos para os próximos ensaios, ou melhor, ensaiemos!
3.1 ENSAIO 1 – DOS TRILHOS ÀS TRILHAS DA INVENÇÃO, DA MÚSICA E DAS
ARTES VISUAIS: SYLVIA ORTHOF E TATO GOST EM DIÁLOGOS
INTERTEXTUAIS
Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra
estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre
linhas, para as viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete
de partida.
(QUEIRÓS, 1999, p. 23-24)
Píííííííííííííííííííííí! Puf! Puf! Pof! Pof! A locomotiva Leopoldina17 vem chegando à
estação. Atrás dela, pode-se ver o seu filho, Zé Vagão. Sylvia Orthof e Tato Gost nos
17 A locomotiva Leopoldina e o seu filho Zé Vagão, são referências ao livro Zé Vagão da Roda
45
conduzem pelas narrativas. Mas para onde nos levarão os trilhos dessa história
esquisita? Cara leitora e caro leitor, antes de prosseguirem a leitura, será que vocês
aceitam um trato? Este ensaio, com traços ficcionais (VAIHINGER, 2011), foi
construído com duplo objetivo: o de expor as leituras que fiz no período de observação
participante das duas de EDC 306 – Leitura e Produção de Textos e de refletir acerca
das proposições pedagógicas que podem ser construídas em prol do fomento da
alegria cultural escolar com base na leitura do universo literário de Sylvia Orthof. Para
isso, propomos um mergulho em três dos livros escritos por Sylvia Orthof e ilustrados
por Tato Gost. Neles, autora e ilustrador estabelecem diálogos com personalidades
que marcaram a história da humanidade.
É recorrendo à ficção que proponho uma viagem de trem com o objetivo de
visitarmos três cidades em que são ambientadas as histórias A onça de Vitalino
(Caruaru), Sonhando Santos Dumont (Petrópolis) e Cadê a peruca do Mozart?
(Salzburgo). Também foram convidados a fazer essa viagem os sujeitos da pesquisa,
as estudantes e os estudantes de duas turmas do componente curricular EDC 306 –
Leitura e Produção de Textos – LPT–, espaço da empiria, ministrada pela Profa. Dra.
Lícia Maria Freire Beltrão, em que realizei o Estágio Docente Orientado no semestre
2017.2.
Sobre o componente, é necessário registrar que, no início do curso, no mês de
outubro do ano de 2017, comecei um período de observação participante das
atividades nas duas turmas do componente curricular. Nesse período, eu fui
reconhecendo sinais da alegria cultural escolar durante a interação com os estudantes
universitários. Três atividades, já mencionadas na subseção Rabiscos metodológicos,
realizadas com esses estudantes, merecem destaque: o compartilhamento de acervos
da atividade permanente “Literatura, música e filmes livres”, a produção de textos para
atividade, também permanente, “Se a memória não me falha” e as atividades fruto das
aulas-passeio. Respondendo ao primeiro objetivo de escrita do presente ensaio,
discorrerei sobre elas.
Durante todo curso, mantivemos a atividade “Literatura, música e filmes livres”,
na qual compartilhávamos com os estudantes livros literários, acadêmicos, álbuns
musicais, películas, entre outros textos, que se relacionavam com as discussões de
estudo realizadas em sala de aula, ou com os acontecimentos da semana, a citar, o
Fina e Sua Mãe Leopoldina, de Sylvia Orthof.
46
Dia da Consciência em que compartilhamos, entre outras produções, o livro Salvador
NegroAmor, fruto da exposição homônima de 1.500 painéis, a céu aberto, com
fotografias de pessoas negras em cenas cotidianas, com o objetivo de destacar a
pluralidade de faces da população afro-brasileira da cidade de Salvador18.
Em um dos momentos da atividade, compartilhamos o livro A viagem de um
barquinho, de Sylvia Orthof. Yeda19, estudante a qual o livro foi emprestado, na
semana seguinte me chamou para conversar sobre o livro, ressaltando como o livro
lhe lembrava o percurso acadêmico dos estudantes. A colocação de Yeda, me remete
às colocações de Georges Snyders acerca das relações da obra-prima com a vida
dos estudantes. Cito o escrito pelo educador francês: “[...] um dos modos principais
da alegria cultural: a grande obra não é, pois, nem separada da massa, a começar da
massa dos estudantes, nem inabordável - ela se relaciona com as preocupações que
nos agitam” (SNYDERS, 1995, p. 77).
A fala de Yeda revela a sua leitura do livro de Sylvia Orthof como uma produção
que dialoga com a sua vida, com as suas preocupações. Yeda ainda não havia sido
apresentada ao conceito da alegria cultural escolar, mas conhecer o conceito da
alegria cultural é muito diferente de viver a alegria cultural. Ao compartilhar comigo a
sua leitura, Yeda me fez perceber que já vivia a alegria cultural escolar, antes de
conhecer as relações de “continuidade-ruptura”, importante para compreensão do
conceito de Georges Snyders, ela já percebia o patrimônio cultural da humanidade em
continuidade com a sua vida.
O segundo destaque corresponde à produção de textos para atividade
permanente “Se a memória não me falha”. O título da atividade foi inspirado no livro
homônimo de Sylvia Orthof, no qual a escritora, de forma não linear, compartilha com
os leitores memórias de sua infância, adolescência e vida adulta. Na atividade, os
estudantes também compartilhavam com toda turma suas memórias, mas não de
fatos da infância ou adolescência, mas do ocorrido na aula que antecedia a narração
das memórias. Cada estudante pôde escolher o gênero que mais lhe agradasse para
a composição dos seus textos, assim, entre os textos escritos, podemos citar os
gêneros: carta, relato, cordel, página de diário e conto.
18 Mais informações podem ser lidas em: http://sergioguerra.com/livro-detalhe.asp?id=6 19 Os nomes dos estudantes foram trocados por nomes de personagens de Sylvia Orthof com o objetivo
de preservar-lhes a identidade.
47
Destaco a produção do conto por ter acompanhado com mais proximidade o seu
contexto. Severino, estudante que escreveu o conto, em semestres anteriores havia
cursado o componente LET C37 – Literatura infanto-juvenil e, desde então, manteve-
se interessado nos contos de fadas. Quando lhe foi feito o desafio de escrever um
texto para atividade “Se a memória não me falha”, decidiu se aventurar pelo gênero.
É preciso dizer que, desde o início do semestre, Severino se apresentou como um
estudante muito próximo das produções culturais, durante as aulas sempre
compartilhava com a turma suas leituras, tanto de textos teóricos quanto artísticos.
Acredito que, justamente por ter conhecimento acerca do gênero, Severino sabia
que o desafio de escrever um conto de fadas, rememorando as atividades da aula que
antecedia a narração das memórias, não seria um desafio simples. Durante os dias
que antecederam a aula seguinte, Severino nos procurou para pedir referências de
estudos sobre os contos de fadas e para conversar sobre a sua produção. Severino
não declinou, face à complexidade, mas se aventurou ao novo. Georges Snyders
(1988, p.274), ao pensar a alegria cultural escolar, defende que a escola precisa ser
o espaço em que o aluno ouse se aventurar frente às complexidades próprias da
construção do conhecimento, em que ele se sinta seguro para tentativas inéditas e
também complexas. Penso que Severino viu, em EDC 306 EDC 306 – Leitura e
Produção de Textos Leitura e Produção de textos, esse espaço defendido por Snyders
e redigiu a narrativa nomeada por ele de As Moiras e a Linha do Tempo em que, a
partir dos repertórios dos contos de fadas, transformou colegas e professora em
personagens, além de rememorar as atividades da aula que antecedeu a narração v.
ANEXO A.
Por fim, o último ponto que destaco é produção textual de uma aluna após a
realização de uma aula-passeio na Caixa Cultural de Salvador em que apreciamos a
mostra “Alô, Alô, Terezinha... 100 Anos de Chacrinha”. No acervo da mostra,
constavam fotografias, vídeos e áudios que contavam a história de Abelardo Barbosa,
o Chacrinha, apresentador que renovou a concepção de programas de auditório da
televisão brasileira. Após a visitação, fizemos a proposição de três atividades
inspiradas nos programas de auditório de Chacrinha: “Vai para o trono ou não vai?” ,
em que cada aluno foi responsável por pesquisar a biografia de uma personalidade
que passou pelos palcos dos programas de auditório de Chacrinha e apresentá-la à
turma que decidiria se aquela personalidade iria ou não para o trono; “Criação do
gênero frase”, essa atividade foi proposta, pois era muito comum nos programas de
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Chacrinha as pessoas do auditório levarem cartazes que remetiam a acontecimentos
nacionais. Ao propormos essa atividade, lançamos a pergunta: que frases levaríamos
se fôssemos hoje a um programa de Chacrinha?; A terceira atividade consistiu na
“Criação de Placas”, suportes de textos que também circulavam nos programas de
Abelardo Barbosa e hoje são muito populares em festas como os aniversários,
noivados e casamentos. A nossa proposição foi a escrita de placas para o programa,
mas que dialogassem com o contexto nacional contemporâneo.
Dessas três atividades, destaco uma em que o episódio me chamou a atenção
ocorreu durante a socialização da primeira “Vai para o trono ou não vai?”. Lila, uma
das estudantes do componente, ficou responsável pela pesquisa da biografia de
Cazuza e no texto que apresentou à turma, fruto da sua pesquisa, intercalou aspectos
da biografia do cantor como as canções por eles criadas v. ANEXO B. O gesto de
escrita de Lila me recorda as palavras de Georges Snyders (1993), quando o autor
afirma que o aluno não é apenas um consumidor da obra, mas a prolonga e a
enriquece. O texto criado por Lila é um produção original, criado a partir das suas
leituras da produção de Cazuza, é um prolongamento da obra do cantor e compositor
brasileiro. Usando as palavras de Georges Snyders (1993), a estudante fez nascer
ecos que ainda não haviam ressoado.
Agora voltemos ao segundo objetivo. Após os momentos de observação
participante, ao perceber os sinais de que a alegria cultural escolar já se fazia presente
naquelas turmas, comecei as atividades de mediação de aulas. As aulas por mim
mediadas corresponderam ao último parágrafo do componente no qual estudamos a
alegria cultural escolar em diálogo com a produção literária de Sylvia Orthof.
Primeiramente, fizemos um retorno às concepções de leitura estudadas no início
do curso, entre elas estavam a de Marisa Lajolo, que, sobre a leitura, destaca:
[...] não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista. [...] (LAJOLO,1988, p.59).
Também estudamos a concepção de Jean Foucambert, afirmando que ler “é explorar
a escrita de uma maneira não-linear. [...] Ler é tratar com os olhos uma linguagem
feita para os olhos. [...]” (FOUCAMBERT, 1994, p. 5-7). Por fim, cito a concepção de
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Eni Orlandi por nós estudada, em que a pesquisadora afirma que ler “[...] é saber o
que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente [...] é
compreender que o sentido pode ser outro (ORLANDI,1993, p.11-12).
Fazer um retorno às concepções de leitura já estudadas foi porta para
abordarmos uma concepção de leitura de Georges Snyders (1993), em que o autor
afirma que o aluno, ao ter contato com as obras-primas de diferentes naturezas, lhes
empresta sua vida e esse movimento, além de imprimir novos sentidos nas obras-
primas, também é uma forma do estudante conquistar sua autonomia. Partindo dessa
concepção, iniciamos os estudos sobre a alegria cultural escolar.
Considerei que, antes de estudar o conceito de Georges Snyders, era necessário
explicar com qual conceito de alegria a alegria cultural escolar dialogava, foi assim
que abordamos o conceito spinoziano de alegria, já explicitado na seção Ponto de
tecer pesquisa. Na sequência, avançamos para a “alegria cultural escolar”, e expliquei
que essa forma específica de alegria é a que surge frente ao encontro dos estudantes
com as obras-primas, mas não um simples encontro, um encontro no qual os
estudantes são afetados pelas obras-primas e mediante a esse afeto, produzem
novas leituras, novos sentidos. Também explicitei a minha opção por considerar a
alegria cultural escolar como a alegria frente ao patrimônio cultural da humanidade,
por acreditar que, mesmo o conceito de obras-primas de Georges Snyders sendo mais
plural (obras-primas políticas, científicas e artísticas), ainda o considero problemático,
como também registrei na seção Ponto de tecer pesquisa.
Na continuidade do estudo, enfatizei que a alegria cultural escolar deve ser
cultivada desde o início da escolarização, recorrendo às palavras de Georges
Snyders:
Pode-se, deve-se começar muito cedo esta educação estética, pois um dos privilégios da arte é que se pode encontrar poemas, quadros, obras musicais muitas vezes acabadas e suscetíveis de emocionar crianças muito jovens – em uma idade em que lhes é difícil ter acesso à alegria de compreender a história ou a física, se não for graças a simplificação que correm o risco de ser mutiladoras. Há obras de Mozart que se pode gostar aos seis anos e que se pode continuar a gostar toda sua vida: uma satisfação cultural, uma conquista cultural que vai quase de uma extremidade a outra da existência, operando aos poucos modificações desta existência; ao mesmo tempo a educação estética possui especificidade e ela se integra ao conjunto do esforço educativo. (SNYDERS, 1988, p. 252)
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Considerei pertinente enfatizar a importância do cultivo da alegria cultural escolar
desde o início da escolarização, pois a maioria dos estudantes eram licenciandos em
Pedagogia e no futuro poderão ser responsáveis pela educação de crianças
pequenas. Um outro ponto do excerto anteriormente citado também merece nossa
atenção. Snyders não apenas ressalta a importância do cultivo da alegria cultural
escolar desde a infância, como um marco na existência dos sujeitos, mas também
apresenta a arte como motor para esse cultivo. Essa colocação do autor também nos
foi muito cara, pois, a partir dela, chegamos a um ponto muito importante para o nosso
estudo: a literatura como potência para o fomento da alegria cultura escolar.
Outro excerto da obra de Georges Snyders que foi importante para a progressão
do nosso estudo, é o que, ora cito:
Ora existem textos que constituem “a melhor maneira” de nos encontrarmos, de nos construirmos; ele nos tornam ativos e livres pois formam “uma intervenção... uma impulsão externa que, vinda de um outro, produz-se no fundo de nós mesmos”- e isto porque eles se dirigem ao essencial de nosso ser e nos permite chegar “ao âmago” de nossa vida; desde então eles nos ajudam a “tomar consciência do que nós mesmos sentimos“. (SNYDERS, 1988, p. 248-249)
Falar sobre textos que constituem “a melhor maneira de nos encontrarmos e nos
construirmos” apontou para duas direções. Primeiramente, foi um meio de estabelecer
diálogos com os textos escritos pelos estudantes no início do curso em que narravam
uma experiência leitora e, em segundo lugar, foi a oportunidade de começar a falar
sobre a produção literária de Sylvia Orthof.
Optei por começar a falar da produção literária de Sylvia Orthof a partir da minha
experiência leitora. Em seguida, conversamos sobre a biografia da autora e sobre as
características de suas obras. Ao falar sobre as características da obra de Sylvia
Orthof, optei por compartilhar com a turma o livro Manual de boas maneiras das fadas,
livro que condensa muitos temas recorrentes nas obras de Sylvia Orthof como as
críticas aos contos de fadas, as referências aos textos da tradição oral e o diálogo
com sujeitos que marcaram o patrimônio cultural da humanidade.
Na continuidade das aulas, outros livros de Sylvia Orthof foram lidos, a citar, Ave
alegria e Pequenas orações para sorrir. Os estudantes do turno noturno foram
divididos em três grupos e os do turno diurno foram divididos em três duplas. Cada
grupo e cada dupla ficou responsável pela leitura de um livro de Sylvia Orthof.
Rememorando o já lido em Ponto de tecer pesquisa, os livros selecionados para a
leitura dos grupos correspondem aos escolhidos para o primeiro mote “Sylvia Orthof
51
e o patrimônio cultural da humanidade”, como já mencionados: A Onça de Vitalino,
Sonhando Santos Dumont e Cadê a peruca do Mozart?. Embora cada grupo tenha
ficado responsável por um dos livros, todos os estudantes tiveram acesso a todos os
livros.
Após a leitura dos livros, os estudantes de LPT foram desafiados a elaborar
proposições pedagógicas, valorizando as narrativas de Sylvia Orthof em diálogo com
a alegria cultural escolar. As proposições pedagógicas foram postas em práticas em
duas escolas, a Escola Municipal São José e a Educação de Jovens e Adultos do
Colégio Antônio Vieira (EJACAV). Enquanto os estudantes de LPT se dedicavam a
construção das proposições pedagógicas, eu me dediquei a escrever um texto
biográfico de Sylvia Orthof, a ser apresentado no início das atividades na EMSJ e na
EJACAV v. APÊNDICE A. As proposições pedagógicas e os seus processos de
criação serão apresentados em três subseções que recebem o mesmo título
“Enquanto isso, no vagão LPT...”. Assim como os estudantes compartilharam comigo
as suas produções, eu os convido para embarcarem comigo numa viagem pelos livros
de Sylvia Orthof com intuito de compartilhar com eles minhas leituras dos livros.
Sobre a viagem, conforme o anúncio já feito, partiremos da cidade de Salvador-
BA, onde está localizada a Estação da Intertextualidade, lugar de refletirmos acerca
dos diálogos entre textos e imagens. Depois, Leopoldina nos levará para outra cidade
do Nordeste do Brasil, Caruaru, nossa segunda estação, onde conheceremos Vitalino,
o nosso mestre do barro e seu trabalho artesanal que vem se perpetuando. A visita a
Caruaru será guiada pela história A onça de Vitalino. Ao sairmos de Caruaru,
seguiremos para Petrópolis, a cidade imperial, onde visitaremos uma casa chamada
“Encantada”, famosa criação de Santos Dumont, nosso pai da aviação. Nessa casa,
conheceremos histórias do Dumont adulto-criança, que gostava de viver nas alturas.
A nossa passagem por Petrópolis, será norteada pelo livro Sonhando Santos Dumont.
Saindo de Petrópolis para os trilhos internacionais, Leopoldina na frente, Zé
Vagão vai atrás, chegaremos a Salzburgo, nossa terceira estação. Ao descermos, já
ouvimos os primeiros acordes, Salzburgo é uma cidade musical, pois Mozart, o
menino Amadeus, nessa cidade nasceu. A história Cadê a Peruca do Mozart? Que
guiará a visita à cidade, promete uma divertida aventura. De Salzburgo a Salvador,
nossa sexta e última estação, lugar em que teceremos nossas reflexões sobre a
viagem, diremos até logo a Tato e à Sylvia e acenaremos para Zé Vagão e sua mãe,
a locomotiva Leopoldina, enquanto eles seguem viagem.
52
E então, trato feito? Querem conosco seguir viagem? É só pegar o bilhete na estação
da intertextualidade!
3.1.1 Preparativos para viagem- Salvador: a Estação da Intertextualidade
Leitora, leitor decidiram seguir viagem? Então é só pegar o bilhete! Confiram
direito os destinos.
Figura 1 – Passaporte 1
Fonte: acervo da autora (2018)
Em todas as narrativas que guiarão as nossas visitas, se faz presente o diálogo
intertextual, portanto, se faz necessário visitar as concepções de intertextualidade com
as quais nos filiamos e que auxiliam a compreensão da construção das histórias que
serão estudadas.
Destaco que o termo “intertextualidade” foi cunhado pela pesquisadora búlgaro-
francesa, Julia Kristeva. A pesquisadora, em estudos publicados no livro Introdução à
Semanálise, cuja primeira edição brasileira é do ano 1969, registra, o resultado do
diálogo com a concepção bakhtiniana de polifonia, relacionada com a obra de
Dostoievsky: “[...] a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde
se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)”. A autora ainda acrescenta: “[...] todo
53
texto se constrói como mosaicos de citações, todo texto é absorção e transformação
de um outro texto.” (KRISTEVA, 2005, p. 68). Laurent Jenny, professor da
Universidade de Genebra, contribui para a construção do conceito e aponta um
problema para os interessados nos estudos da intertextualidade. Conforme o autor,
O problema da intertextualidade é fazer caber vários textos num só, sem que se destruam mutuamente, e sem que o intertexto (tomamos este termo no sentido de texto absorvendo uma multiplicidade de textos, embora centrado num só sentido. A palavra é por vezes utilizada por M. Arrivé, no sentido de conjunto dos textos que se encontram numa relação de intertextualidades) se estilhace como totalidade estruturada. (JENNY, 1979, p.23).
Em outras palavras, isso significa que um problema que se apresenta ao diálogo
intertextual presente em um texto é que “as peças do mosaico de citações”, para usar
as palavras de Kristeva, não se encaixem de forma harmônica e isso prejudique a
própria construção do intertexto. Laurent Jenny também amplia o conceito de
intertexto, ao considerar a intertextualidade como condição sine qua non para
compreensão de um texto literário. Nas palavras, do autor: “fora da intertextualidade
a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma
língua ainda desconhecida” (JENNY, 1979, p.5). Para exemplificar, podemos citar o
livro Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina, escrito e ilustrado por Sylvia na
edição de 1986 e ilustrado por Laura Castilhos na edição de 2009, objeto de minha
pesquisa de conclusão do curso de Pedagogia. Seria a nossa compreensão afetada,
se não considerássemos que o texto de Sylvia estabelece diálogo com o clássico
infantil A Princesa e a Ervilha, Hans Christian Andersen? Seria uma conclusão
ingênua afirmar que não compreenderíamos a obra por não conseguir estabelecer
relações entre os dois textos? Acredito que a compreensão seria de outra natureza,
porém também creio que a percepção da paródia do texto de Sylvia em diálogo com
os textos de Andersen seria prejudicada, assim como a percepção da renovação de
sentidos proposta por Sylvia. Mas a relação entre Ervilina e o Princês ou Deu a Louca
em Ervilina e A Princesa e a Ervilha é apenas uma das relações intertextuais que
podemos identificar. Ao lermos o texto de Sylvia, essa relação intertextual é o que
Laurent Jenny considera como intertextualidade explícita, para ele, a intertextualidade
explícita
[...] não só condiciona o uso do código, como também está explicitamente presente ao nível do conteúdo formal da obra. Assim sucede com todos os textos que deixam transparecer a sua relação
54
com outros textos: imitação, paródia, citação, montagem, plágio etc. (JENNY, 1979, p. 6)
Jenny, porém, aponta para outra natureza de relação intertextual presente nos
textos, a intertextualidade implícita. Conforme o pesquisador (1979, p.6), “se qualquer
texto remete implicitamente para os textos, é em primeiro lugar dum ponto de vista
genético que a obra literária tem conluio com a intertextualidade”. Samir Curi
Meserani, em sua leitura da obra de Jenny, explica a intertextualidade implícita com
as palavras que seguem citadas: “a intertextualidade implícita fundamenta-se no
pressuposto segundo o qual todo texto se insere na história dos textos antecedentes
da sua série ou sistema, que acabam por codificar a sua produção”.
(MESERANI,1998, p. 72)
Se pensarmos a intertextualidade implícita em Ervilina e o Princês ou Deu a Louca
em Ervilina, podemos refletir que, ao ler o texto de Sylvia, acionamos o nosso
repertório de textos já lidos e identificamos o gênero textual, um conto de fadas, ao
identificá-lo como um conto de fadas, acionamos o nosso conhecimento sobre esse
gênero e o nosso modo de leitura é norteado por ele. Não lemos um conto de fadas
como lemos uma notícia, ou um artigo científico. Outra relação de intertextualidade
implícita que pode ser estabelecida na leitura de Ervilina e o Princês ou Deu a Louca
em Ervilina é a identificação do texto como um texto de literatura infantil, com essa
identificação podemos também acionar os nossos conhecimentos sobre a literatura
infantil e o que compreendemos por um texto que recebe o adjetivo infantil. Essas são
apenas duas das relações intertextuais implícitas que podem ser estabelecidas com
a leitura do texto de Sylvia, escolhidas como exemplo.
Ao tratar da intertextualidade, é preciso considerar também a natureza dos livros
lidos, ou seja, livros ilustrados, que na concepção de Sophie Van der Linden (2011),
pesquisadora francesa que tem se dedicado aos estudos dos livros ilustrados, além
de serem livros em que a narrativa é construída em articulação entre o texto verbal e
as ilustração, eles são “formas específicas de expressão” (LINDEN, 2011, p. 29).
Tratando-se de um livro ilustrado, ao pensarmos a intertextualidade, é necessário
considerarmos a intertextualidade não somente do texto verbal, mas também das
ilustrações. Maria Nikolajeva, professora da Universidade de Cambride e
pesquisadora da literatura infantil, e Carole Scott, professora emérita da Universidade
55
de San Diego, também pesquisadora da literatura infantil, ao tratarem da
intertextualidade nos livros ilustrados afirmam que
Nos livros ilustrados, a intertextualidade, como tudo mais, funciona em dois planos: o verbal e o visual. Como todos os outros aspectos do iconotexto, a intertextualidade pode ser simétrica e contrapontual. Esta última implica que o vínculo intertextual pode estar presente apenas no texto verbal ou no texto visual [...] (NIKOLAJEVA, SCOTT,2011,p. 295)
Nos livros que estudamos, as relações intertextuais são simétricas, presentes
tanto no texto verbal quanto nos textos imagéticos. Em A Onça de Vitalino. O texto
verbal escrito por Sylvia anuncia o diálogo com a obra do Mestre Vitalino, mas são as
releituras de Tato que são responsáveis por apresentar ao leitor o estilo de Vitalino e
uma releitura de suas produções, como podemos ver nas imagens que seguem
destacadas.
Figura 2 – Mestre Vitalino
Em outros momentos da narrativa, a percepção do diálogo das ilustrações de
Tato com as produções do Mestre Vitalino pode ser recuperada pelas palavras finais
de Sylvia que, na seção do livro dedicada à autora e aos comentários sobre a obra,
declara a inspiração de Tato nas figuras do Mestre Vitalino para compor as ilustrações,
ou por um conhecimento prévio das produções do artista pernambucano, pois não há
uma indicação dessa inspiração no texto verbal da narrativa principal. Tal constatação
está em consonância com o que afirmam Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011,p.
Fonte: Orthof (1994, p. 4 - 5)
56
295): “a intertextualidade pressupõe que o leitor participe ativamente do processo de
decodificação; em outras palavras, é o leitor quem faz a conexão intertextual.”
Tecidas as reflexões sobre a intertextualidade e, já tendo iniciado a leitura do
livro A Onça de Vitalino, podemos pegar os nossos bilhetes e iniciar a nossa viagem.
Caruaru nos espera, Leopoldina já anuncia a partida... Píííííííííí...
3.1.2 Primeira parada- Caruaru (PE): A Onça de Vitalino
Figura 3 – Salvador-BA / Caruaru-PE
Miauuuuuuuuu! O miado da Onça anuncia que chegamos em Caruaru. O vento traz a
voz marcante do Rei do Baião, Luiz Gonzaga que canta os versos de Onildo Almeida:
A Feira de Caruaru, /Faz gosto a gente vê./ De tudo que há no
mundo,/Nela tem pra vendê,/ Na feira de Caruaru./ Tem loiça, tem ferro
véio,/ Sorvete de raspa que faz jaú,/ Gelada, cardo de cana,/ Fruta de
paima e mandacaru./ Bunecos de Vitalino,/ Que são cunhecidos inté
no Sul,/ De tudo que há no mundo,/Tem na Feira de Caruaru.
(ALMEIDA, 1972)
Nosso guia, a Onça de Vitalino, trata logo de falar sobre a riqueza da feira da
Capital do Agreste. É pela felina que ficamos sabendo que a Feira de Caruaru, no ano
Fonte: Google Maps (2017)
57
de 2006, recebeu do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)20 o
título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e foi registrada no Livro de Registros
de Lugares. Toda orgulhosa de sua cidade, a Onça vai nos mostrando pontos
turísticos de Caruaru. Vemos o Museu do Barro Espaço Zé Caboclo – MUBAC,
conhecido por suas coleções que apresentam os principais polos de cerâmica popular
da região21.
Para descansarmos e apreciarmos as belezas naturais da cidade, a Onça nos
leva ao Parque Municipal Ambientalista Severino Montenegro, uma área de 4
hectares, com muitas árvores e plantas ornamentais, um lago com cascata, anfiteatro,
banheiros e estacionamento. No meio da conversa, a Onça nos convida para o São
João da cidade que, segundo ela, é o maior do Brasil e nem quis conversa quando eu
falei sobre o São João de Campina Grande. Bem, com Onça não se discute!
Decidimos ir ao Museu do Cordel Olegário Fernandes, que recebe o nome de Olegário
Fernandes, cordelista pernambucano que escreveu cerca de duzentas histórias.
A Onça, percebendo nossa ansiedade para saber mais sobre Mestre Vitalino,
começa a caminhar conosco para o Alto do Moura, mas nos fazendo prometer que
visitaremos, no futuro, o Memorial da Cidade de Caruaru, o Parque Ecológico João
Vasconcelos Sobrinho – Serra dos Cavalos, o Parque Drayton Nejaim, o Parque do
São Francisco, o Parque das Rendeiras, o Parque das Baraúnas, o Palácio Episcopal,
o Monte Bom Jesus, a Praça do Rosário, a Igreja da Nossa Senhora da Conceição,
e, é claro, a Academia Caruaruense de Cultura, Ciências e Letras – ACACCIL.
Promessa feita, vamos ao Alto do Moura!
No Alto do Moura, conhecemos o Memorial Mestre Galdino em que estão
expostas peças de barro, além de poesias, fotografias e textos acerca da vida e da
obra de Galdino22 que, contemporâneo de Vitalino, também foi um artista criador de
obras de arte com o barro.
20 Mais informações sobre a feira podem ser encontradas no dossiê elaborado pelo IPHAN.
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_feira_de_caruaru.pdf> Acesso em: 01 de mar. de 2017. 21 As informações sobre os pontos turísticas presentes nesta subseção foram coletadas da página
da Prefeitura de Caruaru. Disponível em: < http://www.cultura.pe.gov.br/pagina/espacosculturais/museu-do-barro-de-caruaru-mubac/> Acesso em: 01 de mar. de 2017.
22 Informações sobre o Mestre Galdino e o museu dedicado a ele estão disponíveis na página:
<http://museusdecaruaru.blogspot.com.br/p/memorial-mestre-galdino.html> Acesso em: 01 de mar. De 2017.
58
Figura 4 – Andanças por Caruaru
Enquanto caminhamos para a Casa Museu Mestre Vitalino, a Onça,
emocionada, nos conta que Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino, viveu desde
a infância em Pernambuco, ali mesmo, em Caruaru. Desde criança, ele gostava de
modelar figuras de barro; os bonecos eram os brinquedos do menino Vitalino.
Quando adulto, Vitalino se destacou como artista do barro, pois as suas peças
retratavam figuras do cotidiano da cidade e do universo cultural do Nordeste do país.
Em meio as suas criações, estavam presentes as representações das festas
populares, com os violeiros e os tocadores de pífano. Vitalino era um amante da
música, tocava pífano, e, em 1920, participou de algumas bandas, entre elas uma
chamada Zabumba Vitalino. Entre as obras do artista pernambucano, também figuram
casais de noivos, pessoas em cerimônias religiosas (procissões, batizados,
casamentos, enterros), pessoas em atividades profissionais (vaqueiros, agricultores,
soldados, dentistas), os cangaceiros do bando de Lampião, e, evidentemente, os
animais. O boi foi um dos primeiros animais a ser representado e ao qual ele mais se
dedicou.
Somente em 1947, as obras de Vitalino começaram a se popularizar no Brasil,
em virtude da organização da 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana no Rio de
Fonte: Google Maps (2017)
59
Janeiro pelo desenhista e educador Augusto Rodrigues. Após essa exposição, Vitalino
começou a ser conhecido no Brasil, pois ele estampou matérias de muitos jornais do
nosso país, a citar, o Jornal de Letras e a Revista Esso. Vitalino também participou
da exposição Arte Primitiva e Moderna Brasileiras, em Neuchatel, na Suíça. Mas foi
somente após a sua morte que o artista alcançou uma maior notoriedade, tanto no
cenário nacional quanto internacional.23
O Mestre Vitalino deixou o nosso planeta em 1963 e foi morar nas estrelas, onde
talvez esteja tocando uma seresta para Dona Noite, pois a Sylvia e o Tato já contaram
no livro Dona Noite Doidona, que Dona Noite gosta de ouvir seresta. Apesar disso, a
obra do Mestre permanece conosco, seja pela sua presença em muitos museus do
Brasil; a Casa-Museu Mestre Vitalino, no Alto do Moura, o Museu do Barro de Caruaru,
o Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, e do mundo, o Museu do Louvre, em
Paris; ou pelos seus muitos aprendizes, inclusive seus filhos, em especial Severino
Vitalino, que coordena a Casa-Museu, seus netos e até bisnetos que continuam
criando com o barro peças que retratam o cotidiano e a cultura do povo de Caruaru.
Em 1971 a casa de Vitalino foi transformada em museu.
Hoje, ao olharmos pela porta da Casa-Museu Mestre Vitalino, vemos Severino
Vitalino, filho do Mestre Vitalino, modelando algumas peças. Ao voltarmos o nosso
olhar para Onça, a pintada deu um pulo e virou livro. Na capa nós lemos A Onça de
Vitalino. Sorridente, a felina nos convida a entrar no livro, como se a capa fosse uma
porta. Vamos lá?
Ao entrarmos no livro, vemos o Mestre Vitalino em sua mesa de trabalho, dando
forma aos seus bonecos. De repente, do meio do barro, surge uma onça, a nossa
velha amiga. Como já suspeitávamos, a onça é uma mistura de barro e fantasia, e,
em um pulo, viaja no tempo e encontra com o bando de Lampião. A Onça prega uma
peça no chefe do bando, foge e acaba parando num consultório de um dentista. Ao
vir a Onça, o cliente cai assustado e perde o dente que seria arrancado. Saindo do
consultório, a Onça continua a causar confusão. Encontra um casamento e, ao
resolver soltar um miado, a noiva, o noivo, os violeiros e os convidados fugiram
23 Informações sobre a vida e a obra do Mestre Vitalino, incluindo as que cito, podem ser encontradas
na Enciclopédia do Itaú Cultural, em séries de documentários como o intitulado “Mestre Vitalino” produzidos pela TV Brasil em homenagem ao centenário de nascimento do artista, em livros, como Vitalino: um ceramista popular do Nordeste, de René Ribeiro, além de revistas e jornais físicos e virtuais, como a edição 102 Revista Continente do ano de 2009. Os documentos que consultei para a escrita deste texto constam na seção referências.
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assustados. O padre, em meio à correria, declara que os noivos já estavam casados.
A Onça sai zangada, pois sua voz não agradara. Vai parar em uma festa e resolve
entrar na dança. Por fim, chega o Mestre Vitalino com um monte de oncinhas que a
dona Onça decide adotar. (ORTHOF, 1994) E como conclui Sylvia: “Saiu do barro
inventado, entrou na boca do forno, pintou onça na história, quem quiser, pinte de
novo!” (ORTHOF, 1994, p.31)
A Onça de Vitalino é um livro que pertence à coleção Toda arte tem história, da
editora Salamandra. Sobre ela não encontramos informações nos meios virtuais. Isso
se pode dever, talvez, ao fato de a coleção já não fazer mais parte do catálogo da
editora. É preciso ressaltar, apesar de a obra surgir mediante uma demanda externa,
Sylvia consegue se desvencilhar das armadilhas do didatismo e, junto com Tato,
trazer, para a literatura infantil, a herança da cultura popular brasileira, em especial, a
pernambucana, representada por Vitalino, sem fazer a literatura parecer lição de casa,
como Sylvia sempre reclamava: “o livro não é dever de casa, é um direito. Direito de
ler, gostar, não gostar, trocar de autor ou de livro”. (ORTHOF, 2006, p. 174). Talvez
pensando justamente na literatura como direito é que Sylvia e Tato criaram a narrativa
A Onça de Vitalino, pois as crianças têm direito, direito de conhecer a cultura desse
país tão plural que é o Brasil, têm direito de ler um livro de literatura com uma “história
bem contada”, em consonância com o canto de Bia Bedran (2004): Uma história bem
inventada/ E bem contada por ti/ Vale a vida, vale risada,/Vale a pena existir.
A mesma Sylvia que defendia que livros não eram “dever de casa” também
acreditava que, mesmo não sendo dever de casa, com os livros podemos aprender
muito (ORTHOF, 2006). O que dialoga com o pensamento já citado na seção Ponto
de Pesquisa, do teórico francês Roland Barthes:
A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (BARTHES, 2013, p. 18-19)
Sabendo disso, é possível afirmar que, ao ler A Onça de Vitalino, é possível
aprender e aprender com alegria, pois, em meio ao quiprocó estabelecido em razão
de uma onça à solta no sertão pernambucano, esbarrando em cangaceiros, visitando
o consultório de um dentista, estragando festas de casamento e entrando em uma
61
roda de dança, descobrimos traços da cultura do nordeste, marcada pelas festas
populares, sempre coloridas e muito bem representadas através das cores primárias
usadas por Tato na criação das ilustrações, pela religiosidade, pelas figuras
marcantes, como Lampião e seu bando, e, como não poderia deixar de ser, pela arte.
Sobre a arte, na seção do livro reservada às palavras da autora, Sylvia revela:
Adoro andar em feiras, procurar objetos de arte popular. Em Caruaru, vendo os bonequinhos de barro da linha de Vitalino, tive vontade de comprar tudo. A Onça de Vitalino nasceu dessa paixão por aquilo que é verdadeiro, que nasce da alma do povo, passa para a mão, vira arte. (ORTHOF, 1994, p.35)
A presença de elementos da cultura popular brasileira em muitos de seus livros
revela os traços da brasilidade de Sylvia. Em casos como em A Onça de Vitalino e
Mula sem cabeça e outras histórias, esses elementos se manifestam em primeiro
plano, porém, em outros livros, eles se manifestam de diferentes maneiras. Em Fada
Fofa Onça-Fada, o Vento e a Fada Fofa resolvem “bailar uma história de cirandeiro
festeiro, um troço bem brasileiro” (ORTHOF, 1998, p.9), revelando as influências da
cultura popular no texto. Também em Ervilina e o Princês ou Deu a Louca em Ervilina,
o texto que encerra a narrativa remete aos textos da tradição oral brasileira: “O princês
ficou sem graça,/ detestou a tal história,/chegou na sua janela,/ botou a língua de fora,/
disse um verso bem bonito,/disse adeus e foi-se embora!.” (ORTHOF, 2009, p. 36) Ou
ainda, o fato de a galinha, personagem da narrativa Mudanças no galinheiro mudam
as coisas por inteiro, ao se conscientizar da sua condição social e cantar, remete à
expressão popular “cantar de galo”.
No livro A Onça de Vitalino, a presença da cultura popular se manifesta tanto no
texto verbal quanto na composição das ilustrações. O texto de Sylvia remete ao
universo de criações do Mestre Vitalino, os animais, os cangaceiros, o consultório do
dentista, os seresteiros, o casamento, a festa popular, todos os cenários em que a
narrativa se desenvolve dialogam com os temas com os quais Vitalino trabalhou para
a criação de seus bonecos, o que muito contribuiu com o trabalho de Tato nas
ilustrações que apresentam uma releitura das obras de Vitalino. Destaco duas
imagens de obras de Vitalino e duas ilustrações de Tato a fim de abonar o que foi
posto:
62
Figura 5 – Cangaceiros (Vitalino) Figura 6 – Cangaceiros (Tato Gost)
Figura 7 – Montaria (Vitalino) Figura 8 – Montaria (Tato Gost)
É importante ressaltar que Tato cria releituras da obra de Vitalino sem abandonar
o seu estilo de ilustrar, carregado de traços expressivos (CAMARGO, 1999). Por
termos mencionado a expressividade, Luís Camargo, pesquisador brasileiro que se
tem dedicado aos estudos da ilustração nos livros infantis, inspirado nas funções de
linguagem de Jakobson (função expressiva, função fática, função representativa,
Fonte: Orthof (1994, p.9) Fonte: Museu Casa do Pontal (http://www.museucasadopontal.com.br/pt-
br/mestre-vitalino)
Fonte: Museu Casa do Pontal (http://www.museucasadopontal.com.br
/pt-br/mestre-vitalino)
Fonte: Orthof (1994,p. 23)
63
função conativa, função metalinguística, função lúdica, função narrativa, função de
pontuação), pensa em funções para as ilustrações e as explica da forma que segue
citada:
A imagem tem função representativa quando imita a aparência do ser ao qual se refere; função descritiva, quando detalha essa aparência; função narrativa, quando situa o ser representado em devir, através de transformações (no estado do ser representado) ou ações (por ele realizadas); função simbólica, quando sugere significados sobrepostos ao seu referente, mesmo que arbitrariamente, como é o caso das bandeiras nacionais; função expressiva, quando revela sentimentos e valores do produtor da imagem, bem como quando ressalta as emoções e sentimentos do ser representado; função estética, quando enfatiza a forma da mensagem visual, ou seja, sua configuração visual; função lúdica, quando orientada para o jogo, incluindo-se o humor como modalidade de jogo; função conativa, quando orientada para o destinatário, visando influenciar seu comportamento, através de procedimentos persuasivos ou normativos; função metalingüística, quando o referente da imagem é a linguagem visual ou a ela diretamente relacionado, como citação de imagens etc.; função fática, quando a imagem enfatiza o papel de seu próprio suporte; função de pontuação, quando orientada para o texto junto ao qual está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, nele criando pausas ou destacando alguns de seus elementos. (CAMARGO, 1999, p.1)
Se buscarmos entre as funções da ilustração criadas por Luís Camargo, as
funções que predominam nas ilustrações de Tato na obra supracitada, a função
expressiva se destaca, pois as emoções dos seres representados são colocadas em
evidência (figura 9), mas também estão presentes a função representativa, quando
Tato faz uma releitura dos bonecos do Mestre Vitalino, a função lúdica, pois as
ilustrações têm traços que conduzem ao humor, e a função metalinguística, pois o
referente para a composição das ilustrações de Tato são os bonecos de Vitalino que
fazem parte da linguagem visual.
64
Figura 9 – Lampião (traços expressionistas)
Se, por um lado, é possível analisar as ilustrações isoladamente do texto verbal,
ou o texto verbal isoladamente das ilustrações, tratando-se de um livro ilustrado em
que o texto verbal e as ilustrações estão em simbiose, é interessante que analisemos
as articulações entre texto verbal e imagéticos. Sophie Van der Linden, no livro Para
ler o livro ilustrado ressalta que (2011, p.87), “[...] o livro ilustrado transcende a questão
da copresença por uma necessária interação entre textos e imagens, que o sentido
não é veiculado pela imagem e/ou, e, sim, emerge a partir da mútua interação entre
ambos.” Tratando-se dessa natureza de livro, é interessante que analisemos as
articulações entre texto verbal e ilustrações.
Em seu livro Para ler o livro ilustrado, Linden (2011) estabelece três categorias
para pensarmos as relações entre texto verbal e ilustrações em um livro de literatura
infantil, são elas: relações de redundância, em que o texto e as ilustrações não
dependem um do outro, por buscarem representar os mesmos elementos, embora
Linden alerte que “conteúdos idênticos são impossíveis já que textos e imagens
pertencem a linguagens distintas”; relações de colaboração, em que o texto verbal e
as ilustrações de maneira imbricada são responsáveis pela construção do sentido;
relações de disjunção, que são aquelas em que o texto verbal e a ilustrações podem
Fonte: Orthof (1994,p.12)
65
contar narrativas paralelas, ou haver entre as duas linguagens uma relação de
contradição.
Em A Onça de Vitalino, as relações estabelecidas entre texto verbal e ilustrações
são relações de colaboração. A narrativa de Sylvia, em verso, articulada com as
ilustrações de Tato, dão o ritmo da narrativa. Fosse uma das linguagens, a verbal ou
a imagética, suprimidas, haveria perda na construção de sentido. As ilustrações que
Tato cria para o livro podem ser classificadas como “imagens associadas”, Linden
(2011, p.45) as descreve como imagens “[...] ligadas, no mínimo, por uma
continuidade plástica, ou semântica. Elas podem apresentar uma coerência interna
(composição plástica, unidade narrativa...) que as torna independentes das imagens
que as cercam.” Esse tipo de ilustração, em que as imagens são associadas, muitas
vezes, requer um texto verbal que atue para favorecer a continuidade do discurso e é
dessa maneira que atua o texto de Sylvia, exercendo uma função de ligação (Linden,
2011).
Figura 10 – Lampião e a Onça (Tato Gost)
Fonte: Orthof (1994, p.12-13)
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Figura 11 – A Onça no consultório do dentista
Isso posto, podemos concluir que ler um livro ilustrado, categoria em que se inclui
A Onça de Vitalino, é, como escreve Linden (2011,p. 9) “[...] afinar a poesia do texto
com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação a outra...”
Por fim, tecidas as reflexões que considerei necessárias da leitura do livro A
Onça de Vitalino, acerca das relações entre as diferentes linguagens que compõem o
livro ilustrado, é preciso ainda recorrer aos escritos de Sylvia Orthof na página
dedicada à história do Mestre Vitalino:
Acho que Vitalino era moleque, brincalhão. Agora mesmo, no instante que quero escrever sobre ele, parece que suas figuras de barro cirandam em volta dos meus pensamentos, dando risadinhas. A mãe de Vitalino era louceira, fazia potes, panelas e penicos. Quando eu era criança, eu passava trote pelo telefone e perguntava: - Penico de barro cria ferrugem? E isso tem a ver com Vitalino? Acho que tem: sua arte não esqueceu sua infância. (ORTHOF, 1994, p.33)
É pensando na infância que vejo o livro A Onça de Vitalino como um convite a
brincar de poesia ao modo de José Paulo Paes (2010, p.48), dizendo: “Poesia/ é
brincar com palavras/ como se brinca/ com bola, papagaio, pião. [...]” No livro de Sylvia
e Tato, o convite se amplia, pois brincamos de poesia, acrescentando os bonecos de
barro à brincadeira, brincamos também com as histórias do povo nordestino lá das
bandas de Caruaru, brincamos com as possibilidades da literatura.
Fonte: Orthof (1994, p.13-14)
67
Ao sairmos do livro, vemos a nossa amiga Onça, num só pulo, deixar de ser livro,
virar bicho e nos acompanhar enquanto deixamos o Alto do Moura. Ao longe,
Leopoldina apita Píííííííííííí, anunciando que está na hora de seguirmos viagem. Até
logo, Caruaru! Foi muito bom conhecer você! Próxima parada, Petrópolis, a cidade
imperial!
Figura 12 – Passaporte 2
3.1.2.1 Enquanto isso, No vagão LPT... (01)
Ao sairmos da cidade de Caruaru, um grupo e uma dupla de professores em
formação, alunos de EDC 306 – Leitura e Produção de Textos, começaram a
conversar sobre as proposições pedagógicas que haviam criado, valorizando o livro
A Onça de Vitalino, de forma a fomentar a alegria cultural escolar. O uso do verbo
fomentar decorre da nossa consciência de que a alegria cultural escolar não é
estabelecida em atividades pontuais e nem é uma conquista estável, pelo contrário,
Snyders (1993, p. 49) escreve que “Na realidade, a alegria é conquista instável, a ser
arduamente defendida, pois está sempre ameaçada de recair no desespero. É
impossível separar a alegria cultural da luta para superar a não-alegria; é preciso
participar dessa luta”.
Fonte: acervo da autora (2018)
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Convocados a participar da luta pela alegria cultural escolar, o grupo e a dupla
empenhados em levar à escola o livro A Onça de Vitalino, concordaram que a leitura
do texto deveria valorizar a cultura nordestina, mas, para tanto, optaram por
estratégias distintas. A dupla que trabalharia com os alunos do Ensino Fundamental
da Escola Municipal São José optou pela retextualização da narrativa através da
contação de histórias intercalada com a exibição de fotografias dos bonecos de barros
do Mestre Vitalino, enquanto o grupo que trabalharia com os alunos da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) optou pela retextualização para um texto teatral.
Acredito que a produção da dupla do turno diurno, Violeta e Betina, revela os
ecos de experiências formativas: a visita da contadora de histórias, Regina Campana,
a uma das aulas de LPT e o estudo e prática da contação de histórias tratados no
componente EDC 302 – Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, cursado por
elas no semestre 2015.2 , cuja docência foi assumida pela Profa. Luciene Mota como
estagiária da Profa. Lícia Maria Freire Beltrão.
Nesse semestre, Luciene Freitas Mota, então estudante do Mestrado em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, fazia o seu estágio
docente orientado no componente. Luciene desenvolvia a pesquisa que resultou na
sua dissertação de mestrado intitulada Mulheres que educam: experiências de
contadoras de histórias. No período do seu estágio, a pesquisadora desenvolveu com
a turma oficinas sobre a arte de contar histórias. Como resultado das oficinas, a turma
realizou uma sessão de contação de histórias na Escola Municipal São José.
No período em que as estudantes do turno diurno preparavam as suas
proposições pedagógicas, recebemos em sala de aula a contadora de histórias,
Regina Campana. No período passado com a turma, a contadora intercalou sessões
de contação de histórias com diálogos sobre técnicas de contação, narrou suas
experiências com contação de histórias para públicos distintos e também destacou a
importância do ato de contar histórias.
Portanto, para as estudantes, a opção por construir uma proposição pedagógica
com o livro A Onça de Vitalino, envolvendo a contação de histórias estava em
continuidade com saberes já construídos por elas. Porém, na alegria cultural escolar
a faceta da continuidade sempre se apresenta atrelada à ruptura, numa relação
continuidade-ruptura. No caso das estudantes, a ruptura se manifestou sob a forma
de um novo desafio, pois, além da preocupação em retextualizar A Onça de Vitalino
69
em um texto oral, elas também teriam de pensar em como fomentar a alegria cultural
escolar com aquela contação.
Ao concluírem a proposição, Violeta e Betina decidiram valorizar as produções
do Mestre Vitalino, exibindo, no momento da contação, imagens das produções do
artista pernambucano. Também decidiram falar sobre o Mestre Vitalino às crianças,
valorizando o texto presente no final do livro A Onça de Vitalino em que Sylvia Orthof
escreve sobre o artista, já citada na subseção “Primeira parada- Caruaru (PE): A Onça
de Vitalino”.
O grupo do turno noturno optou por uma retextualização do livro A Onça de
Vitalino, dando-lhe forma de texto dramático . Acredito que, para escolha do grupo, a
experiência de Lila, uma das integrantes, por ser atriz, foi fundamental. O grupo
construiu diferentes textos e socializou dois deles com a turma. No primeiro texto, eles
optavam por uma mudança no foco narrativo. Em lugar de começar o texto com a
criação da Onça pelo Mestre Vitalino e acompanhar as suas aventuras pelos sertões
nordestinos, como no livro de Sylvia Orthof, eles optaram por começar o texto num
casamento, um dos locais por onde a Onça passa na narrativa da Fada Carioca.
O segundo texto, que terminou sendo o escolhido pelo grupo para apresentação
na Educação de Jovens e Adultos do Colégio Antônio Vieira, se construiu como uma
paráfrase criativa do livro A Onça de Vitalino. Na construção do texto, valorizaram a
sequência narrativa criada por Sylvia e colocaram seus corpos em cena. Cada
estudante ficou responsável pela leitura dramática de uma parte do texto e se
caracterizaram como os personagens da história, a Onça, o padre, Lampião, o noivo,
a noiva e o dentista. Para apresentação do Mestre Vitalino, optaram pela leitura
declamada do poema de Rafael dos Santos Barros, Mestre Vitalino.
De Vitalino, as mãos eram mãos santas,/Que modelaram em barro os nordestinos/E transportaram a dor e os desatinos/Para os bonecos, tantas vezes, tantas! Bonecos mudos! Quantas vezes, quantas?/ Minha alma cega, por meus olhos, viu/ A tua dor, meu coração sentiu/ No canto triste que ainda hoje cantas. Soprou-se a vida num boneco mudo,/ Que, sem falar, assim dizia tudo/ Dos nordestinos, dos destinos seus./ Advertência dos que nascem pobres/ Pelas mãos rudes que ficaram nobres,/ Abençoadas pelas mãos de Deus. (BARROS, 2018)
A construção da proposição pedagógica desse grupo traz ao debate duas
considerações sobre a alegria cultural escolar. A primeira delas se refere às alegrias
da socialização e às alegrias de aprender com o outro (SNYDERS, 1995). Os
70
estudantes desse grupo valorizaram a experiência de Lila, por ser atriz, mas também
de Yeda que sabe costurar e ajudou muito na confecção dos figurinos. Os membros
do grupo se disponibilizaram a aprender com as colegas. A segunda consideração
sobre a alegria cultural escolar se refere à proposição pedagógica construída pelo
grupo. Os dois textos revelam a capacidade dos estudantes em produzir novos
sentidos para as obras. No primeiro texto, eles recriaram a narrativa sob uma nova
ótica e, no segundo, mergulharam no texto de Sylvia Orthof para produzir uma
retextualização. Recorrendo às palavras de Snyders, os alunos se envolveram numa
interpretação criativa, levando para a obra a sensibilidade desta época, o que cada
um viveu, o que cada um é, as suas expectativas (SNYDERS, 1993).
Embora Snyders nos provoque a estender o diálogo sobre o assunto, precisamos
estar atentos à Leopoldina, visto que ela está se aproximando da cidade de Petrópolis,
nossa próxima parada. Vamos lá?
3.1.3 Segunda parada – Petrópolis (RJ): Sonhando Santos Dumont
Figura 13 – Caruaru- PE / Petrópolis- RJ
Piuííííííííí Leopoldina anunciava que chegávamos a mais uma estação,
Petrópolis, a Cidade Imperial. Quando descemos da locomotiva, vimos a Fada Carioca
Fonte: Google Maps (2018)
71
montada em um dragão. Sylvia foi logo explicando: ao saber que Leopoldina chegaria
à sua querida cidade, chamou o Dragão Severino24, que trabalhava para Dona Lua e
tratou de ir “pessoalmente” nos recepcionar. Alegres pela presença da ilustre anfitriã,
nós, passageiros da Locomotiva, logo quisemos saber o roteiro do passeio. É certo
que nosso objetivo primeiro era visitar a Casa de Santos Dumont, mas qual o roteiro
traçar, considerando que Petrópolis é uma cidade em que abundam espaços culturais
como teatros, palácios e museus?
Frente à pergunta, Sylvia pensou um pouco e decidiu que poderíamos partir do
Theatro D. Pedro, depois poderíamos visitar o Museu Imperial que fica bem pertinho.
Seguiríamos pela Rua da Imperatriz e chegaríamos à Praça Princesa Isabel. Depois
de admirar a beleza da praça, caso desejássemos, visitaríamos a Catedral São Pedro
de Alcântara. Após a visita, voltaríamos pela praça, seguiríamos pela Avenida Köller,
onde fica a Casa da Princesa Isabel, um lugar interessante a ir. Ao sair da Casa da
Princesa Isabel, continuaríamos pela Avenida Köller, depois dobraríamos a direita, na
Avenida Roberto Silveira, para chegarmos à Praça 14 Bis. De lá, seguiríamos pela
Rua Monsenhor Bacelar, em seguida dobraríamos a direita, na Rua Almirante Mauriti,
e, finalmente, chegaríamos à Casa de Santos Dumont. É verdade que esse roteiro
não incluía lugares como o Palácio Rio Negro e o Museu de Cera, mas, futuramente,
poderemos fazer um tour pela cidade com mais calma e desfrutarmos de todas as
belezas petropolitanas. Ao concordarmos com o roteiro traçado, partimos para o
Theatro D. Pedro.
24 Referência ao livro Mudanças no Galinheiro Mudam as Coisas por Inteiro, de Sylvia Orthof.
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Figura 14 – Andanças por Petrópolis
Fundado em 1933, o Theatro D. Pedro é, atualmente, o mais antigo da cidade.
Antes dele, houve outros dois, porém fecharam as portas. No Theatro, admiramos a
arquitetura que mistura os estilos geométrico, mitológico e futurista. Apreciamos a
exposição permanente “Arte, vida e espetáculo” e assistimos a um filme sobre a
trajetória do espaço, com curiosidades sobre a movimentação artístico-cultural do
início do séc. XX até a atualidade25. Ao sairmos do teatro, seguimos em direção ao
Museu Imperial.
No Museu Imperial26, ficamos em dúvida sobre qual sessão visitar primeiro. Por
fim, decidimos começar pelo arquivo histórico onde lemos documentos que tratavam
do Brasil Império, a fase inicial da República e, principalmente, sobre o Estado do Rio
de Janeiro e a Cidade de Petrópolis. Depois de visitarmos o arquivo histórico, fomos
à seção de Museologia onde vimos artefatos históricos como a coroa de D. Pedro II,
cetros de imperadores e até a pena com a qual a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
25Informações consultadas no site Mapa de Cultura RJ.
SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO. Mapa de Cultura RJ: Theatro D. Pedro. Disponível em: <http://mapadecultura.rj.gov.br/manchete/theatro-dom-pedro>. Acesso em: 21 abr. 2018. 26Informações consultadas no Site do Museu Imperial.
BRASIL. Museu Imperial. Disponível em: <http://www.museuimperial.gov.br>. Acesso em: 21 abr. 2018.
Fonte: Google Maps (2018)
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Na sequência, decidimos visitar as bibliotecas, a biblioteca geral e a biblioteca
infantil, chamada de Biblioteca Rocambole. Na biblioteca geral, conhecemos obras
que pertenceram à família imperial, livros de viajantes que estiveram no Brasil nos
séculos XVIII e XIX, a citar, Debret e Charles Darwin, assim como pudemos observar
almanaques e periódicos que ilustram o século XIX. Na Biblioteca Rocambole, nome
escolhido em homenagem ao cachorro da Princesa Isabel que sempre lhe fazia
companhia enquanto ela lia e tocava piano, além do acervo literário, também
apreciamos atividades culturais como sessões de contação de histórias.
Durante a visita ao Museu, também foi possível conhecer as atividades e projetos
educacionais, como o “Projeto Um Sarau Imperial”, que conforme lemos no site do
Museu, objetiva
Levar ao conhecimento dos alunos alguns aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais do século XIX, bem como divulgar o acervo documental do Arquivo Histórico do Museu Imperial, do qual foi extraído o conteúdo utilizado no texto apresentado pelas personagens do sarau. O projeto apresenta como novidade a interatividade entre as personagens e o público como forma de suscitar comparações entre o passado e o presente, estimulando, ao mesmo tempo, a reflexão crítica sobre as mudanças ocorridas no país. (BRASIL, 2018)
E é desenvolvido da forma que segue explicitada
Em 1878, a “princesa Isabel e seus amigos” recebem convidados especiais para uma reunião social. Embalado por modinhas imperiais cantadas por uma soprano e acompanhadas por um pianista, o sarau conta ainda com declamação de poesias e conversas sobre assuntos políticos, sociais e culturais da época, retirados da correspondência particular da família imperial. Os convidados poderão também apreciar os mais belos figurinos daquela época, entrar em contato com notícias jornalísticas daquele período e com a rotina de vida da princesa Isabel em Petrópolis. (BRASIL, 2018)
Por falar em “reunião social”, logo ficamos com uma fome típica do meio da
manhã e, assim, a visita ao Museu terminou no Duetto´s Café e Bistrô, instalado no
jardim do Museu, onde pudemos experimentar Torradas Petrópolis e geleias
artesanais. No café, alguns viajantes aproveitaram para acessar o site do Museu que
conta com um espaço para professores, além da possibilidade de fazer um tour virtual
e acessar publicações.
Quando saímos do Museu Imperial e caminhamos pela Rua da Imperatriz, em
direção à Praça da Princesa Isabel, Sylvia nos contou que, na sua infância, morou em
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Petrópolis e voltou a residir na cidade, quando mais velha. Contou-nos ainda que, no
tempo de sua infância, “[...]os rios eram cristalinos e havia tanta flor por todo lado!
Além da Cidade Imperial, Petrópolis era chamada de Cidade das Hortênsias.”
(ORTHOF, 1996, p. 7)
Cruzamos a praça que foi construída como homenagem à Princesa Isabel,
admiramos os monumentos e área verde e logo chegamos à Catedral São Pedro de
Alcântara27. Na Catedral, admiramos o estilo neogótico, o órgão, os vitrais, a capela
do batistério, o altar-mor, a via-sacra, o mausoléu e a última parte da igreja a ser
construída, a torre. Ao ver a torre, Sylvia se lembrou de uma história:
[...] foi justamente aos sete anos que resolvi escrever um livro: comprei um caderno, enfeitei com desenhos, comecei a escrever uma história sobre uma catedral que tinha perdido a cabeça. A catedral de Petrópolis, naquela época, só tinha um pedacinho de torre, ou não tinha torre alguma, pois estava incompleta. Aí, mostrei o início da história para uma garota mais velha, minha vizinha. Ela leu, disse que o meu escrito era uma heresia. Eu não sabia que era heresia, devia ser algo terrível! - Escrever sobre catedral sem cabeça é pecado! – explicou a garota, e me fez rasgar o caderno todo, depois queimar. Meu primeiro livrinho, queimado tal qual bruxa na inquisição, credo! (ORTHOF, 1996, p. 9)
Ao ouvir a história de Sylvia, alguns sorriram pela criatividade de uma criança
em escrever uma história de uma catedral que perdeu a cabeça, mas outros disseram
que a censura da amiga de Sylvia à narrativa lhes lembravam a, ainda tão frequente,
censura de temáticas em livros de literatura infantil. Morte, sexualidade, preconceitos,
violência figuram entre as temáticas que aparecem escassamente em livros de
literatura infanto-juvenil, muitas vezes, porque os adultos consideram que esses não
são temas para se falar com as crianças. Diante disso, houve quem perguntasse, se
as crianças não estão imersas em uma sociedade em que essas temáticas estão
presentes, e até que ponto as crianças estão alheias às notícias da TV, rádio, internet,
ou mesmo às conversas dos adultos em que esses temas marcam presença?
Mediante essa pergunta, alguém lembrou o livro de Fanny Abramovich, O mito
da infância feliz (1983b), em que a professora e autora convida um grupo de
27Informações pesquisadas no site da Catedral de São Pedro de Alcântara.
CATEDRAL DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA. Catedral de São Pedro de Alcântara. Disponível em: <http://www.catedraldepetropolis.org.br/>. Acesso em: 21 abr. 2018.
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escritores, entre eles Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós e Ruth
Rocha, a descortinar o mito da infância como período pleno de felicidade.
Em virtude dos escritores terem sido mencionados, a conversa voltou a versar
sobre a censura de diversas temáticas em textos de literatura infantil. No decorrer da
conversa, uma das viajantes recorreu às palavras da pesquisadora Mônica de
Menezes Santos que, ao refletir sobre a crítica literária da literatura infantojuvenil
pondera:
[...] o caráter especificamente pedagógico da literatura infantojuvenil foi gestado por um desejo formativo, disciplinador. É justamente por conta disso que assuntos como morte, discriminação, violência, sexualidade, preconceito, entre muitos outros, até bem pouco tempo atrás estiveram silenciados na produção literária para os leitores “menores”, uma vez que seus produtores, editores, pais e instituições optaram por lhes representar um mundo quase sempre homogêneo, ordenado, igualitário, como uma desejada projeção de um microcosmo familiar. As escolhas dos temas obedeciam - e, em muitos casos , ainda obedecem- ao conceito que se tinha (ou que ainda se tem) de infância e de adolescência na época e, sobretudo, ao tipo de sujeito que se pretendia (ou pretende) formar. (SANTOS, 2017, p.97)
Com a menção às palavras da pesquisadora, os viajantes acrescentaram que
outra esfera da sociedade que também define parâmetros para a literatura infantil na
atualidade é a mídia, principalmente, através da televisão e da internet. Logo,
lembraram o recente caso do livro Enquanto o sono não vem, escrito por José Mauro
Brant, editada pela Editora Rocco e que integrava o acervo do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). A polêmica em relação ao livro se refere ao
conto A triste história de Eredegalda, texto inspirado em narrativas orais e que conta
a história de um rei que desejava se casar com sua filha e fazer da rainha uma
empregada. A princesa recusa o pedido e assim o rei a condena a viver em uma torre
comendo apenas carne salgada, sem direito a beber água. A princesa pede ajuda às
irmãs e à mãe, porém ambas recusam-se a ajudá-la em decorrência das ameaças do
rei. A princesa, sedenta, decide aceitar a proposta do pai. Ele, então, resolve apostar
com dois cavaleiros, cada um carregaria um recipiente com água, apostaria corrida e
quem chegasse primeiro teria a mão da princesa em casamento. Os candidatos
chegam à linha de chegada empatados, porém a princesa Eredelgada já estava morta.
O livro foi tratado como impróprio por secretarias, professores e gestores de
cidades do estado do Espírito Santo, que chegou a ordenar a sua retirada das escolas.
Por fim, o Ministério da Educação (MEC) determinou que 93 mil exemplares do livro
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fossem recolhidos. O ocorrido dividiu a opinião de sujeitos envolvidos nos processos
educacionais (professores, pesquisadores, escritores, pais de alunos), e as redes
sociais se tornaram palco de discussões acaloradas entre os que defendiam que a
retirada dos livros se configurava como uma censura à arte e negação da herança
cultural das narrativas orais, e aqueles que defendiam que as crianças não têm
maturidade para a leitura narrativa, e ainda que o conto era uma apologia ao incesto.28
Nosso grupo fazia coro com aqueles que defendiam os contos como patrimônio
cultural da humanidade e a importância dessas narrativas para a formação do
humano. No meio da conversa, alguns falaram sobre a leitura como prática de
liberdade e da leitura literário como passaporte para a construção de uma leitura crítica
do mundo e, mais uma vez, a pesquisadora Mônica de Menezes Santos foi citada, ao
escrever que
Se a criança é esse o outro irredutível, produzir, selecionar, exigir obras que desejam discipliná-las, protegê-las, não é “receber os que nascem em sua alteridade”. É, sim, querer torná-los expressões do que somos ou do que gostaríamos de ser. (SANTOS, 2017, p. 105)
A conversa seguiu animada até o grupo chegar à Casa da Princesa Isabel. Na
casa da Princesa hoje funciona a Companhia Imobiliária de Petrópolis, pertencente a
príncipes de Orléans e Bragança. A casa não está aberta para livre visitação, mas nós
pudemos ver os jardins de camélias. Notamos a semelhança arquitetônica com o
Museu Imperial e observamos a escadaria de onde foi tirada a fotografia considerada
como a última que reúne a Família Imperial no Brasil, antes da Proclamação da
República29. Na Casa da Princesa Isabel já funcionou uma escola, onde Sylvia Orthof
estudou. Nela, a escritora viveu muitas histórias, entre elas, nos contou a seguinte:
Eu estava no segundo ano primário. Meu colégio, antiga residência da princesa Isabel, o Liceu Fluminense, era o palácio de tudo aquilo que se inventava! Minha professora, miudinha, morena, dona Rosalina... Foi uma professora tão doce! Sabia que histórias ajudariam a iluminar a cabeça das crianças.
28 Informações sobre o ocorrido podem ser lidas em:
FORMENTI, Lígia. Livro que aborda tema do incesto será recolhido de escolas, diz MEC. Portal Estadão. Disponível em: <http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,livro-que-aborda-tema-do-incesto-sera-recolhido-de-escolas-diz-mec,70001831986>. Acesso em: 21 abr. 2018. 29 Mais informações podem ser lidas em: FUNDAÇÃO DE CULTURA E TURISMO DE
PETRÓPOLIS,. Casa da Princesa Isabel. Disponível em:
<http://www.petropolis.rj.gov.br/fct/index.php/turismo/atrativos/20-centro-historico-visitacao-
externa/52-casa-da-princesa-isabel>. Acesso em: 21 abr. 2018.
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Foi com dona Rosalina, dentro da casa de uma princesa imperial, que ouvi histórias de reis e rainhas, fadas e bruxas. Através de histórias, começávamos a escrever, a frequentar a biblioteca. Dona Rosalina estava adiante do seu tempo, era mestra e nem desconfiava! (ORTHOF, 1996, p, 7)
Quando Sylvia nos contou essa história, houve quem lembrasse que a Cidade
Imperial já foi cenário para algumas de suas histórias, como “Bagunça Total na cidade
Imperial”, em que um armário ganha vida e sai correndo pelas ruas da cidade atrás
de sua dona e ambos acabam parando no Museu Imperial. Quem sabe, o cuidado de
dona Rosalina com as histórias tivesse contribuído para construção de Sylvia
enquanto escritora. Sylvia respondeu que “Todo artista invade e deixa-se invadir por
sua infância, que pode ter diversas idades.” (ORTHOF, 2007, p. 173). A escritora disse
isso e voltou às lembranças topofílicas do tempo em que a casa da princesa fora sua
escola:
Eu fingia que tinha que ir fazer pipi, só para me trancar num banheiro onde o vaso, a pia, tudo era de porcelana decorada com flores rosas e lilases!! Daí, comecei a imaginar... Na hora do recreio, nós, as meninas, inventávamos que éramos princesas e que cada uma tinha um banheiro mais espetacular do que a outra: “O meu banheiro tem pia de ouro, privada de cristal e banheira de peixinhos!...O meu, tem pia de brilhantes, privada de diamantes e esmeraldas! O cenário era perfeito para as nossas divagações. Mas o banheiro da princesa Isabel, esse era de verdade... e a gente não cansava de ir espiar e usar e... fazer muito “pipi imperial”! (ORTHOF, 1996, p.8)
Seguiram conversando sobre alegria cultural escolar até chegarem à Praça 14
Bis onde puderam ver uma réplica do famoso aeromodelo de Santos Dumont,
inaugurada em 2006. Da praça, seguiram para a Casa de Santos Dumont. No caminho
para “A Encantada”, nome como o qual Santos Dumont batizou a sua casa,
começamos a falar sobre a vida do aeronauta.
Lembramos a leitura do livro Uma alegria selvagem: a vida de Santos Dumont,
de Bia Hetzelem em que pudemos conhecer muitas histórias do aeronauta brasileiro.
Dentre eles, descobrimos que a Princesa Isabel e Santos Dumont se conheciam.
Houve um episódio em Paris no qual a princesa entregou ao aeronauta uma
medalhinha de São Bento para que o santo o protegesse contra acidentes. Tudo
aconteceu, pois, num certo dia em que a aeronave que Santos Dumont pilotava
aterrissou numa árvore e o aeronauta teve de ser socorrido. A princesa, ao saber do
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ocorrido, enviou a Santos Dumont um almoço e um convite para uma visita que o
aeronauta aceitou com prontidão. Durante a visita, após ouvir as aventuras de Santos
Dumont, a Princesa Isabel lhe entregou a medalhinha de São Bento, a qual o
aeronauta passou a usar junto a uma fina corrente de ouro.
No embalo da nossa conversa, alguém perguntou o que Santos Dumont fora
fazer em Paris. Contamos30 que o pai do nosso aeronauta, Henrique Dumont, estava
muito doente e fora procurar tratamento em Paris, já que a família era descendente
de franceses. A situação dele, contudo, não melhorou, e a família decidiu voltar ao
Brasil. De volta à terra natal e muito debilitado, Henrique Dumont emancipou os filhos
mais jovens e enviou o jovem Santos Dumont à Paris, aconselhando-o a estudar
mecânica. Com o dinheiro que o seu pai lhe deixou como herança, Alberto Santos
Dumont seguiu à Paris em busca dos seus sonhos.
Na França, o filho de dona Francisca, se interessou pelos automóveis e até
chegou a promover corridas pelas ruas de Paris, mas se dedicou de verdade ao seu
sonho: levar o homem ao firmamento. Em Paris, o jovem conheceu aeronautas e,
junto a eles, começou a se dedicar à construção de balões. O primeiro deles nomeou
de “Brasil”, em homenagem à sua pátria.
Paris foi palco para as inúmeras experiências de Santos Dumont na aviação.
Experiências que deram errado e muitíssimas que deram certo. Entre as que deram
errado, é possível citar o ocorrido com o balão de número 5, com o qual sofreu um
acidente que marcou a sua carreira. O balão, após perder o gás, caiu no telhado de
um dos edifícios da Societé des Hotels du Trocadero31.
Santos Dumont saiu ileso do acidente, fora protegido pela quilha, feita de
madeira e sustentada por cordas de piano, que Santos Dumont teve a ideia de usar
em muitos dos seus inventos. Entre as experiências que deram certo, podemos citar
a do balão de número 6, com o qual o aeronauta ganhou o prêmio Deutsch, por ter
saído de Saint-Cloud e ter voltado ao ponto de partida, após circundar a Torre Eiffel,
provando a dirigibilidade do seu balão. Após a construção do nº6, Santos Dumont
continuou trabalhando em prol dos avanços da aeronáutica, conforme palavras suas:
30 Todas as informações sobre a história de Santos Dumont foram lidas nos livros Uma alegria
Selvagem: a vida de Santos Dumont, de Bia Hetzel e O que eu vi, o que nós veremos, livro autobiográfico de Santos Dumont. 31 Mais informações podem ser lidas em:
GLOBO, G1. Santos Dumont: o inventor. Disponível em: <http://especiais.santosdumont.eptv.g1.globo.com/o-inventor/dirigivel/NOT,0,0,1269146,A+arriscada+vida+de+piloto.aspx>. Acesso em: 22 abr. 2018.
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Depois do meu nº 6, construí vários outros balões, que não me deram os resultados desejados. Há um ditado que ensina: “O gênio é uma grande paciência”; sem pretender ser gênio, teimei em ser um grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso, em que não deve haver lugar para o esmorecimento. (SANTOS-DUMONT, 2000,p.56)
A paciência e a inventividade de Santos Dumont o levaram a superação de
muitos limites, e esses lhe garantiram muitos prêmios. O seu invento mais conhecido
foi o 14 Bis, avião mais pesado que o ar, como o qual o aviador ganhou a Taça
Archdeacon, após voar cerca de sessenta metros entre dois e três metros de altura.
Pudemos ver uma reprodução da aeronave na praça que acabamos de visitar. Mas
nem só de aviões viveu Santos Dumont, o mineiro também teve a ideia para a criação
do relógio de pulso, pois era muito complicado ver as horas no relógio de bolso,
enquanto controlava os balões. A criação do modelo ficou a cargo do joalheiro Louis
Cartier, conforme nos conta Bia Hetzel (2006). Outra invenção de Santos Dumont foi
a Casa Encantada.
A casa foi projetada para ser a residência de verão do Pai da Aviação. Ao ouvir
falar sobre a Casa Encantada, uma das viajantes do nosso grupo desejou contar
algumas curiosidades lidas sobre a construção no site do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional(IPHAN):
É um chalé do tipo alpino, de proporções diminutas, com três pavimentos: a oficina, no primeiro andar; o local de moradia, no segundo; e uma espécie de água-furtada, no terceiro. A escada de acesso em meios degraus, em ziguezague, obriga as pessoas a iniciarem a subida sempre com o pé direito; os móveis são embutidos, à exceção das cadeiras. O chuveiro (a álcool) foi mais uma criação do inventor. Em 1936, a casa, seu mobiliário e objetos de uso de Santos Dumont foram doados à Prefeitura Municipal de Petrópolis por seus familiares.(BRASIL; IPHAN, 2018)
Todos ficamos curiosos para conhecer a casa e apressamos os passos, mas
assim que chegamos à porta, um menino nos fez parar, pois ficamos curiosos para
saber mais sobre o livro que ela lia, Sonhando Santos Dumont. O livro, escrito por
Sylvia Orthof, ilustrado por Tato Gost e editado pela Salamandra, narra uma série de
acontecimentos que marcaram a vida do inventor brasileiro, Santos Dumont. Das suas
brincadeiras na infância (Passarinho voa?), a construção do seu primeiro balão, o
Brasil, e também do 14 Bis, invento que marcou a sua carreira, as aventuras e os
acidentes que ajudaram o aeronauta a aprender com os erros, superar seus limites e
,até mesmo, a ideia para construção do relógio de pulso e a casa Encantada.
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A biografia, salpicada de poesia, é escrita em versos, e as rimas de Sylvia Orthof
orquestram o ritmo da nossa leitura. Recorrendo às concepções de Sophie Van der
Linden (2011) acerca da leitura e das relações entre textos verbais e imagéticos em
livros ilustrados, acionadas quando lemos A Onça de Vitalino, em Sonhando Santos
Dumont, verificamos que o texto verbal desempenha a função de regência, ou seja,
ele preenche as lacunas do texto imagético e se encarrega em marcar as mudanças
referentes à temporalidade.
No exemplo a ser citado adiante, (ORTHOF, 1997c, p. 8-9) podemos ler a
passagem do Santos Dumont, antes retratado como menino, à idade adulta, assim
como também vemos uma mudança no cenário da narrativa. Esse exemplo colabora
para tratarmos das relações entre os textos, imagéticos e verbais no livro. É possível
dizer, conforme Sophie Van der Linden (2011) que os diferentes textos estabelecem,
predominantemente, uma relação de colaboração, como também ocorre em A Onça
do Vitalino. A interação entre os textos contribui com o alargamento das possibilidades
de construção de sentido do livro.
Figura 15 – Balões de Santos Dumont
Fonte: Orthof (1997c, p. 8-9)
81
Enquanto o texto verbal fornece informações sobre o crescimento de Santos
Dumont, a sua chegada à França e a construção do seu primeiro balão, o Brasil, o
texto imagético apresenta o balão, a Torre Eiffel e uma série de construções
representando Paris no final do século XIX. Como foi tratado anteriormente, no livro,
predominantemente, os textos verbais e imagéticos estabelecem uma relação de
colaboração, porém, um caso peculiar precisa ser citado. Na página vinte, podemos
ler:
Visitando o Brasil,/ a pátria de onde saiu,/ Santos Dumont hospedou-se/ em Petrópolis, lá na serra,/ saudoso da sua terra./ Ficou no Palace Hotel. Espreguiçou-se, contente,/ largou de lado o chapéu,/ viu um monte encantado/ que arranhava a neblina./ Coisa fina! Era o morro do Encantado,/ bambus, florzinhas,barranco./ Gostou tanto!(ORTHOF, 1997c, p. 20-21)
Figura 16 – Santos Dumont observa Petrópolis
Fonte: Orthof (1997c, p. 20-21)
Não fosse o discreto sorriso escondido por trás do bigode, poderíamos fazer uma
leitura diferente. Poderíamos afirmar que, enquanto o texto verbal conta sobre um
Santos Dumont contente, as expressões faciais, representadas nas ilustrações,
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expressam o contrário, tristeza. Partindo dessa leitura, nesse momento do livro, as
relações entre texto verbal e texto imagético poderiam mudar de uma relação de
colaboração, até então estabelecida, para uma relação de disjunção (LINDEN, 2011),
pois o texto imagético apresenta pontos de divergência com o que é narrado pelo texto
verbal. Se continuássemos a considerar a relação de disjunção, não poderíamos lê-la
apenas como um detalhe, afinal, todos os elementos de um texto literário são
passíveis de atribuição de sentido.
O texto verbal narra o período que antecedeu a construção da Casa Encantada,
hoje transformada em museu. A história nos diz que o ano de construção da casa foi
1918, quatro anos após a França ser invadida pelas tropas alemãs e os aeroplanos
começarem a ser usados na guerra, o que causou extrema tristeza e abalou por
completo a vida do inventor. Bia Hetzel, no livro Uma Alegria Selvagem, nos conta:
Em agosto de 1914, a França foi invadida pela guerra. Horrorizado, Alberto assistiu pela primeira vez ao terrível poder de destruição do ataque das aeronaves à população civil. Em suas especulações sobre o futuro, muito antes do vôo do mais pesado que o ar, ele previra a utilização dos dirigíveis na guerra, mas de um modo romântico, pensando mais na defesa e na estratégia de manutenção do equilíbrio e da paz do que na destruição. Agora, o homem voava para matar, e isso era mais do que Santos-Dumont podia suportar. Ele foi o primeiro a erguer a voz pela paz. Como a famosa personagem de Cervantes, transformou-se em um quixotesco defensor da proibição da utilização dos aviões em guerras. (HETZEL, 2000, p. 150-151)
Durante muitos anos, Santos Dumont se pronunciou contra a guerra, viajou e
morou em diferentes lugares do mundo, tentou afastar a tristeza por se sentir
responsável pelo uso das aeronaves nos confrontos. Numa conferência realizada em
Washington citada no livro biográfico O que eu vi, o que nós veremos, já referido, o
inventor proferiu as seguintes palavras:
Se o aeroplano, senhores, se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de paz? [...] Melhorado pelas necessidades e exigências da guerra, o aeroplano — desviado dos fins destruidores — provará o seu incalculável valor como instrumento dos objetivos úteis da raça humana. (SANTOS-DUMONT, 2000, p.106)
Sabendo do estado emocional em que se encontrava o inventor, e também
conhecendo as funções da imagem, já abordadas durante a leitura de A Onça de
Vitalino, é preciso ressaltar que a função expressiva, mais uma vez, predomina nas
ilustrações de Tato Gost. Para relembrarmos, a função expressiva é aquela
83
responsável por mostrar os sentimentos e os valores dos responsáveis pela produção
da imagem, assim como ressaltar as emoções e sentimentos daqueles que a imagem
representa. O predomínio da função expressiva poderia ser responsável pela
disjunção entre texto verbal e texto imagético.
Embora a ilustração das páginas vinte e vinte um não permita a inferência de
que as ilustrações criadas por Tato Gost foram rasuradas por traços da história de
Santos Dumont que não figuram no texto verbal do livro Sonhando Santos Dumont, a
ilustração das páginas vinte e seis e vinte e sete colabora com a nossa inferência.
Figura 17 – Santos Dumont no chuveiro
Fonte: Orthof (1997c, p. 26-27)
O texto verbal trata do chuveiro inventado por Santos Dumont, mas a nossa
leitura dos traços que apresentam a função expressiva na imagem e o conhecimento
da história do inventor nos conduzem a outras leituras. Embora no laudo da morte de
Santos Dumont conste um colapso cardíaco, hoje é sabido que o motivo da morte do
aeronauta foi um suicídio cometido por meio de um enforcamento no chuveiro do
banheiro de um hotel na praia do Guarujá. Conhecendo esse fato histórico e lendo a
ilustração da Figura 17, podemos pensar nela como uma referência à morte de Santos
84
Dumont. Contribui com a nossa leitura, essa ilustração ser a última do livro em que o
inventor aparece, mas a sua morte não é mencionada.
Logo, a nossa conversa foi mais uma vez direcionada à censura de temáticas
em textos de literatura infantil. Lembramos, então, de um estudo da pesquisadora da
Universidade Federal de Minas Gerais, Aparecida Paiva (2008), textualizado no artigo
A produção literária para crianças: onipresença e ausência de temáticas. No estudo,
Aparecida Paiva analisa o acervo do ano de 2008 do Programa Nacional Biblioteca
da Escola (PNBE). Em sua análise, a pesquisadora constata que apenas 3% dos livros
(55 livros de um montante de 1735) tratavam de temáticas como a morte, o medo, o
abandono e a separação. (PAIVA, 2008)
Aparecida Paiva problematiza a ausência dessas temáticas, considerando o
vínculo entre a literatura infantil e a escola. Conforme Paiva (2008, p. 45),
[...] a escola opta pela literatura de entretenimento que melhor se
adapta a função de coadjuvante pedagógico: censura os temas que
considera delicados, polêmicos, perigosos, ousados; promove uma
assepsia temática em seu diálogo com a literatura; coíbe a discussão
dos enigmas da existência humana e da complexidade das relações
sociais que poderiam ser problematizadas por meio da ficção.
Devido à pouca popularidade das obras que abordam temas polêmicos, mas
inerentes à vida humana, como os que foram mencionados, o mercado editorial não
oferece estímulo para os escritores que se dedicam a essas produções. Como
exemplo, podemos citar o caso do romance O ritual do jardim, do escritor baiano
Mayrant Gallo. Pela tese Por um lugar para a literatura infantil/juvenil nos estudos
literários da pesquisadora Mônica de Menezes Santos, tomamos conhecimento da
dificuldade de Mayrant Gallo em publicar seu romance. O texto foi acusado de ser
inadequado para as crianças pelas suas temáticas – morte, descoberta da
sexualidade – e pela sua estrutura, o romance é organizado em pequenos contos.
(SANTOS, 2011)
Também lembramos que a própria Sylvia já havia escrito a respeito dos seus
textos não serem considerados literatura infantil. No livro O fantasma travesti,
romance adulto com traços de autoficção, a narradora-personagem reflete:
Sei que escrevo um livro. Fico pensando em quem o vai editar. Vejo alguns editores conhecidos à minha frente. Entrego a quem? E se eu usasse pseudônimo? Estão habituados a outro tipo de escrevinhação, da minha parte. Tem gente que vai dizer que é livro para crianças, aposto! Tomara que digam! Quando eu escrevo para crianças, dizem que meus livros são para adultos. (ORTHOF, 1988, p. 67)
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Dito isso, olhamos para os lados procurando Sylvia para que ela nos dissesse
mais algumas palavras sobre o assunto, mas tanto ela quanto o menino com o qual
pegamos o livro emprestado, haviam sumido. Ao fecharmos o livro Sonhando Santos
Dumont e olharmos a quarta capa, Sylvia e Tato, muito travessos, piscaram para nós.
Assim iniciamos a nossa visita à Casa Encantada, último lugar apreciado, antes de
seguirmos viagem, Sonhando Santos Dumont.
Figura 18 – Passaporte 3
3.1.3.1 Enquanto isso, no vagão LPT... (2)
Saímos da cidade de Petrópolis empolgados por conhecer um pouco mais da
história do nosso Pai da Aviação. A leitura do livro, Sonhando Santos Dumont, abriu
portas para pensarmos em uma faceta da alegria cultural escolar ainda não abordada:
a alegria frente às descobertas científicas. Georges Snyders inclui as grandes
descobertas da ciência no repertório das obras-primas. Ao tratar do conhecimento
científico, o autor reflete:
Assim, parece ao mesmo tempo, que cada conhecimento científico é modificável, destinado a ser substituído, a realidade é inesgotável e nossas ideias nunca o atingem de modo definitivo; mas também a sucessão de conhecimentos é um acréscimo de nossos
Fonte: acervo da autora (2018)
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conhecimentos, uma visão mais completa, mais precisa – nada que se assemelhe a castelos de carta que desmoronariam uns após os outros. (SNYDERS, 1988, p. 174)
Viver na segunda década dos anos dois mil e poder conhecer mais a produção
de Santos Dumont nos permite fazer coro com o autor, quando ele trata do caráter
modificável do conhecimento científico. As invenções de Santos Dumont foram
imprescindíveis para a humanidade e serviram, inclusive, para que fossem superadas.
Para usar a metáfora de Snyders (1988), não como um castelo de cartas em que uma
carta errada faz todas as outras desmoronarem, mas como uma escada, tal como a
da casa Encantada, onde cada pé fincado demanda que outro seja reposicionado um
degrau acima, um pé de cada vez.
Seguindo essa linha de pensamento, Sylvia Orthof e Tato Gost, ao escreverem
uma narrativa, destinada às crianças, protagonizada por Santos Dumont, em uma
linguagem contemporânea, nos revelam uma outra faceta da alegria cultural escolar:
o diálogo entre o passado e o presente. Acerca dessa faceta, Snyders afirma:
A obra passada está datada, em relação a tal época; mas também a obra passada está presente, ela faz parte do nosso presente. Os grandes heróis da cultura, Hamlet, Don Juan, Faust: de um lado posso considerá-los significativos historicamente, daí minha alegria de estabelecer comunicação com aqueles que encarnam tais momentos cruciais do caminho humano. Eu diria, ao mesmo tempo, que eles conduzem-me a uma tomada de consciência, uma tomada da minha consciência bem além do ponto que tinha atingido por mim mesmo. Estas duas afirmações conciliam-se à medida em que a cultura ajuda-me a viver a continuidade dos esforços dos homens para transformar, para ordenar o mundo e o seu destino; o sentimento da unidade humana, não como um simples dado, mas tarefa recriar e a verificar na proporção em que penetro mais profundamente na alegria cultural. Aliás, certos contrastes, distanciamentos, certos sentimentos do acabado são também fontes de enriquecimento. (SNYDERS, 1988, p. 49)
Mergulhar na história de Santos Dumont, a partir de um texto de literatura infantil
contemporânea, é um caminho para pensarmos sobre os grandes esforços da
humanidade em busca do progresso. É refletir acerca das conquistas sem as quais
não conseguimos imaginar a humanidade na atualidade, como o relógio de pulso ou
as viagens de avião. Todas essas conquistas foram graças a pessoas que acreditaram
na ciência, na capacidade do homem de unir o potencial imaginativo ao inventivo.
Os estudantes, na construção de suas proposições, puderam experimentar das
alegrias de descobrir e redescobrir as alegrias das obras do passado em diálogo com
o presente. Pude acompanhar o movimento de pesquisa dos aspectos biográficos de
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Santos Dumont, sobre as suas invenções, o movimento de selecionar os aspectos
mais relevantes para composição de suas produções. A partir de indicações minhas
e da Profa. Lícia Beltrão, começamos juntos as pesquisas de textos em meio digital e
livros físicos que poderiam ser encontrados nas bibliotecas da Universidade, mas logo
os estudantes adquiriram autonomia, recorrendo a outras fontes, fazendo outras
leituras. Observar o movimento de pesquisa dos estudantes universitários me remeteu
às palavras de Georges Snyders (1995, p. 123):
O aluno fica feliz quando se lhe abre o domínio da pesquisa: depois de tantos e tantos exercícios escolares, chegar a uma expressão pessoal; ao mesmo tempo tomar consciência da própria individualidade, afirmá-la, empregá-la; seus próprios critérios, suas maneiras de pensar e de sentir: refletir sobre uma dada questão é ao mesmo tempo refletir sobre si mesmo, investigar a si mesmo e começar a descobrir a si mesmo. Primícias de originalidade, ora de um indivíduo, ora de um grupo criativo.
E dessas palavras fico, por agora, com “originalidade” e “criativo” por serem
adequadas para enaltecer aqueles estudantes, pelos seus feitos: eles foram muito
inventivos e criativos em suas estratégias e proposições, durante toda a etapa de
planejamento que ocorreu nas aulas de LPT.
O grupo de estudantes do turno noturno, responsável por construir proposições
pedagógicas com o livro Sonhando Santos Dumont, optou por uma dramatização.
Uma das integrantes se caracterizaria de Santos Dumont e recitaria as primeiras
estrofes do livro; as demais integrantes fariam o coro no momento demandado. Em
seguida, seriam colocados 14 chocolates Bis da Lacta, debaixo de diferentes cadeiras
que estariam dispostas na sala, fazendo uma analogia entre o chocolate da marca
Lacta e o invento mais conhecido de Santos Dumont.
Na continuidade, as integrantes pediriam para que os estudantes participantes
que, nesse caso, seriam os da EJACAV, procurassem os chocolates. Na medida em
que os chocolates fossem encontrados, os estudantes da EJACAV seriam chamados
a escolher peças de um quebra-cabeça que estariam espalhadas em cima de uma
mesa. Concomitantemente à escolha de uma peça do quebra-cabeça, as integrantes
do grupo responsável por mediar à atividade com o livro, leriam um trecho, adaptado
por elas, da história Sonhando Santos Dumont. O objetivo da colagem das peças é
que, ao final, fosse revelada a imagem do avião 14 Bis.
88
Para apresentação da biografia de Santos Dumont, as integrantes do grupo
optaram por um jogral movido pela pergunta “Vocês conhecem o filho de dona
Francisca e seu Henrique?32”.
No turno diurno, uma única aluna ficou responsável por desenvolver atividades
com o livro Sonhando Santos Dumont. Nana optou por começar a atividade fazendo
perguntas sobre Santos Dumont e sobre os aviões, assim faria um levantamento do
conhecimento prévio dos estudantes que, no caso, seriam os da EMSJ. Em seguida,
a estudante universitária montou uma sequência de versos sobre Santos Dumont e
sobre os aviões, dispostos em pequenos aviões, a serem lidos pelas crianças.
Seguem dois deles, como exemplo:
7 – Ele é de Minas Gerais e tinha um sonho de voar, mas ninguém imaginaria que, um dia, o pequeno Santos Dummont ao alto ia chegar. 10 – Esse criador do avião é um amigo brasileiro. Sua ideia foi tão longe que, hoje em dia, tem avião no mundo inteiro.
Após a leitura dos versos, Nana brincaria com as crianças de “Passarinho voa”,
brincadeira que Santos Dumont costumava fazer com os amigos. A brincadeira
consiste em um dos participantes perguntando se seres voam ou não voam, a
exemplo: Passarinho voa? Gente voa?. Os demais participantes deveriam responder
se esses seres voam ou não. A brincadeira seria proposta como meio para começar
a falar sobre Santos Dumont, o menino que queria voar. Após a brincadeira, a
atividade seria concluída com a leitura realizada por Nana de uma versão adaptada
da narrativa Sonhando Santos Dumont, de Sylvia Orthof.
Os estudantes universitários conversavam sobre as suas proposições
pedagógicas, quando fomos nos aproximando da nossa terceira parada, a cidade de
Salzburgo.
32 O jogral foi inspirado nas produções de Regina Campana, contadora de histórias, e da Profa. Lícia Beltrão.
Buscando uma nova textualidade para apresentação de informações biográficas às crianças durante oficinas de leituras, elas construíram textos movidos por perguntas acompanhadas por informações biográficas dos escritores. Entre as biografias criadas a esse modo, estão a de Hans Cristhian Andersen (Vocês conhecem o Hans?) e de Ziraldo (Vocês conhecem o filho da nona Zizinha e do seu Geraldo?). Inspiradas por estes textos, as estudantes criaram o jogral “Vocês conhecem o filho da dona Francisca e seu Henrique?”, do qual, cito um excerto: “Vocês conhecem o filho de dona Francisca e seu Henrique? O seu pai foi Engenheiro e em 1880 toda família mudou-se para Ribeirão Preto/SP.”
89
3.1.4 Terceira parada- Salzburgo: Cadê a peruca do Mozart?
Figura 19 – Petrópolis- RJ / Salzburgo
Assim que a locomotiva Leopoldina foi chegando à Salzburgo, ouvimos um som
que não vinha dos trilhos, um som bonito, quase dançante. Ao olharmos pela janela,
vimos Rouxinol, amigo do menino Mozart, que já se preparava para nos receber. Ao
descermos da locomotiva, Rouxinol nos deu boas-vindas e disse já ter preparado o
roteiro para o nosso passeio. Começaríamos pelo Palácio Mirabell, depois
visitaríamos o local de nascimento de Mozart (Mozart’s Birthplace) e depois
Residência de Mozart ( Mozart-Wohnhaus), local em que o compositor viveu até a sua
partida para Viena. Por fim, terminaríamos o dia com o Jantar Concerto de Mozart
(Mozart Dinner Concert). Caso houvesse tempo ainda, poderíamos caminhar pela
Getreidgasse e conhecer a Catedral de Salzburgo.
Fonte: Google Maps (2018)
90
Figura 20 – Andanças por Salzburgo
Ao chegarmos ao Palácio Mirabell33, ficamos admirados com a sua bela
arquitetura neoclássica e os seus bem cultivados jardins. O rouxinol foi logo nos
contando que o palácio, além de ser belo, tinha, em sua criação, uma história de amor.
O príncipe-arcebispo Wolf Dietrich o construiu para sua amada Salome. O salão de
mármore do castelo, que sobreviveu a um incêndio no ano de 1818, é um local muito
requisitado para casamentos, além de ter sido um local em que o jovem Mozart se
apresentava com o seu pai, Leopold Mozart e sua irmã, Maria Anna Mozart.
No jardim do Palácio, vimos a Fonte Pégaso com uma escultura do cavalo alado
da mitologia grega instalada em 1913. Também conhecemos o Rose Garden, com as
lindas rosas ornamentais. O rouxinol nos contou uma curiosidade sobre o Palácio
Mirabell: lá foram gravadas cenas do famoso filme A noviça rebelde34.
33As informações foram consultadas nas seguintes páginas:
SALZBURG. Salzburg: El Palacio y los jardines de Mirabell. Disponível em: <https://www.salzburg.info/es/lugares-de-interes/top10/palacio-y-jardines-de-mirabell>. Acesso em: 23 abr. 2018. EXPEDIA. Palácio Mirabell (SchlossMirabell). Disponível em: <https://www.expedia.com.br/Jardins-Do-Palacio-Mirabell-City-Centre-Salzburg.d507939.Guia-de-Viagem>. Acesso em: 23 abr. 2018. 34Musical de 1965 dirigido por Robert Wise e estrelado por Julie Andrews, Christopher Plummer,
Richard Haydn.
Fonte: Google Maps (2018)
91
Ao sairmos do Palácio Mirabell, seguimos para a Residência de Mozart35. No
local, o guia nos contou histórias sobre a infância de Mozart, falou que o menino
Amadeus foi registrado como Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus
Mozart, embora tenha se tornado mundialmente conhecido como Wolfgang Amadeus
Mozart. O menino demonstrou talento para a música desde os primeiros anos de vida.
Ao perceber o talento do menino, o seu pai, Leopold Mozart, começou a investir em
sua educação e, na apresentação dele ao mundo, através da organização de turnês
por diversas cidades da Europa. Enquanto nos preparávamos para a viagem, logo nos
lembramos de um livro lido Mozart: sociologia de um gênio, de Norbert Elias. Nele, o
sociólogo escreve:
Assim, Mozart recebeu do pai um treinamento tradicional bastante completo. Dos três aos seis anos foi apresentado às obras da maioria dos compositores conhecidos da Áustria e do sul da Alemanha, e, provavelmente, também de alguns do norte da Alemanha. Mas em suas viagens ganhou um conhecimento muito mais amplo da vida musical da época. Em Paris conheceu as obras de Lully, Philidor, Johann Schobert e outros conhecidos representantes da Escola Francesa. Em Londres teve contato com as obras de Haendel, Johann Christian Bach e Karl Friedrich Abel, outro aluno de Bach. Em Viena ouviu composições de Georg Christoph Wagenseil e Georg Reutter, um dos professores de Haydn.(ELIAS, 1994, p. 1116)36
Com as turnês, da qual, inicialmente, também participava tocando instrumentos
com muita habilidade a irmã de Mozart, Maria Anna, a família Mozart conseguiu
acumular uma quantia necessária para que mudasse de casa e foi assim que saíram
da casa número 9 da rua Getreidgasse, para a casa na avenida Makartplatz, onde o
pai do compositor viveu até o fim da sua vida. Nessa época, Mozart já havia se
mudado para a cidade de Viena. Continuamos a visita pela primeira casa de Mozart e
pudemos ler cartas, documentos que ajudam a contar a história do compositor
austríaco, além de instrumentos de Mozart como o seu violino e o clavicórdio.
Ao terminarmos a visita pela primeira residência de Mozart, a número 9 da rua
Getreidgasse, decidimos visitar a residência37 em que o compositor viveu até a saída
de Salzburgo para seguir o seu sonho em Viena. Na casa, encontramos mais um guia
35As informações foram consultadas em: SALZBURG. Salzburg: Casa Natal de Mozart. Disponível
em: <https://www.salzburg.info/es/lugares-de-interes/top10/casa-natal-de-mozart>. Acesso em: 23 abr. 2018. 36 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas. 37 As informações foram consultadas em: SALZBURG. Salzburg: Residencia de Mozart. Disponível
em: <https://www.salzburg.info/es/lugares-de-interes/top10/casa-natal-de-mozart>. Acesso em: 23 abr. 2018.
92
que nos contou sobre a infância de Mozart, sua juventude e maturidade, assim como
a história daquela residência. Na visita, descobrimos que a casa foi parcialmente
destruída, em 1944, por um ataque aéreo, a parte que não foi destruída, em 1955, foi
comprada pela International Mozart Foundation. No local, pudemos ler documentos e
ver fotos originais de Mozart, além de assistirmos a uma palestra sobre o famoso
compositor. À medida que conhecíamos os espaços, o guia do museu narrava:
“Mozart e seu pai viajaram por muito tempo pelas cidades da Europa em busca
de um emprego para Mozart em uma grande corte. Como não tiveram sucesso na
busca, voltaram à Salzburgo. Mozart conseguiu um emprego na corte local onde seu
pai já era funcionário, ambos, porém, não estavam felizes.38
Com o talento que tinha, Mozart não se conformava em ser tratado com
condescendência pelos membros da corte como faziam com todos os músicos e
demais empregados. Também não suportava as adulações e os jogos de bajulações
que a vida na corte exigia.
Ao ouvir o guia, rememoramos as palavras de Norbert Elias acerca do músico
austríaco
Tinha o hábito de dizer francamente o que sentia e pensava, sem se preocupar muito com a maneira como seria recebido. O hábito de manter-se reservado no trato social para evitar qualquer constrangimento, a arte da diplomacia cotidiana, a intuição do efeito das palavras ou gestos sobre o interlocutor e que era parte inseparável do discurso social entre as pessoas da corte, quase tudo faltava inteiramente a Mozart. Podia até disfarçar seus sentimentos, algumas vezes se valeu de umas pequenas mentiras da vida, mas tudo sem muita habilidade. (ELIAS, 1994, p. 1349)39
O guia continuou a nos contar que a franqueza de Mozart, seguida da sua
insatisfação com a vida na corte, o fizeram pedir demissão do seu emprego na corte,
a contragosto do seu pai que se preocupava com a vida financeira do filho, e seguir
para Viena em busca do seu sonho de ser um músico independente. Em Viena, Mozart
logo se casou com Constanze e tiveram seis filhos, sendo que apenas dois chegaram
à idade adulta. No começo, ocorreu bem a ideia de Mozart em se tornar um músico
independente, porém, com o tempo, o compositor começou a enfrentar problemas
38Todas as informações biográficas de Mozart foram lidas em: ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de
um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Ebook. 39Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas.
93
financeiros. A sociedade vienense do século XVIII ainda não estava preparada para
um músico independente. Mozart continuou indiretamente dependendo dos
aristocratas, pois eram elas que compunham o público dos eventos promovidos pelo
compositor.
Voltando às palavras de Norbert Elias, podemos ler:
A decisão de Mozart de se estabelecer como artista autônomo ocorreu numa época em que a estrutura social ainda não oferecia tal lugar para músicos ilustres. O mercado de música e suas instituições correspondentes estava apenas surgindo. A ‘organização de concertos para um público pagante, e as atividades editoriais na venda de músicas de compositores conhecidos, mediante adiantamentos, se encontravam, na melhor das hipóteses, em seus estágios mais iniciais. (ELIAS, 1994, p. 383)40
Conforme o guia, outro ponto que gerou dificuldade para Mozart foi o impasse
entre o que ele desejava produzir, com toda sua liberdade imaginativa, e o que o seu
público pagante ambicionava consumir. O compositor não aceitava cercear suas
criações em prol dos desejos do público. Apesar das dificuldades financeiras, foi em
Viena que Mozart escreveu óperas que hoje são consagradas como obras-primas, a
citar, A Flauta Mágica e Don Giovani.
Aos trinta e cinco anos, com a saúde fragilizada e com muitos problemas
financeiros, Mozart fez a sua derradeira viagem, mas permanece lembrado cada vez
que ouvimos as suas composições. Quando o guia do museu acabou a narrativa sobre
a vida de Mozart, ouvimos o rouxinol cantando A Flauta Mágica e entendemos que
chegara a hora de continuarmos o nosso passeio pela cidade.
Saindo da última residência de Mozart em Salzburgo, nos dirigimos ao
restaurante “St. Peter Stiftskeller” para apreciarmos o Mozart Dinner Concertt41 que
acontece na sala barroca do restaurante. No local, nos sentimos em uma viagem ao
século XVIII. O jantar acontece sob a luz de velas e os pratos servidos são inspirados
em receitas históricas adaptadas ao paladar contemporâneo. Enquanto jantávamos,
assistíamos à ópera, A Flauta Mágica, com músicos vestidos com imitações do
vestuário do século XVIII.
40Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas. 41As informações foram consultadas em: SALZBURG. Salzburg: Mozart DinnerConcert.
Disponível em: <https://www.salzburg.info/es/lugares-de-interes/top10/casa-natal-de-mozart>. Acesso em: 23 abr. 2018.
94
No final do jantar, aconteceu algo peculiar. Ouvimos um som de muitos pares de
asas e, no centro do palco, o rouxinol nos convidou a embarcar numa narrativa
chamada Cadê a peruca do Mozart?, escrita por Sylvia Orthof e ilustrada por Tato
Gost. Sem pestanejar, aceitamos!
A narrativa começa com a apresentação do menino Amadeus Mozart, uma
criança que gostava de brincar com o som dos animais e era muito amigo do rouxinol.
O texto verbal, como acontece em outras narrativas de Sylvia Orthof, se assemelha a
textos da tradição oral brasileira, tanto pensando a sua forma quanto o seu conteúdo,
como podemos ler no seguinte excerto: “Quando sente muito frio,/ sapo canta lá no
rio:/ - Croaque, croaque,/ creque,creque,/ sou um sapo serelepe,/ quando pulo/ faço
um breque,/ croaque, croaque,/ creque, creque!” (ORTHOF, 1997b, p. 8)
A estrutura do texto em versos, com a presença de rimas nos remete às canções
da tradição brasileira. O texto também apresenta uma referência à cantiga da tradição
oral brasileira O Sapo Cururu, cuja letra segue citada: “Sapo cururu,/Na beira do rio,/
Quando o sapo canta, ô maninha,/É porque tem frio./ A mulher do sapo,/ Deve estar
lá dentro,/ Fazendo rendinha, ô maninha,/ pro seu casamento.”
Na sequência da narrativa, nos é apresentada a cidade de Salzburgo num
explícito diálogo entre os dois autores do livro, escritora e ilustrador:
Amadeus Mozart vivia/ num tempo muito distante,/ na Europa em Salzburgo,/ lá pro lado de Viena,/ ou longe, não sei direito./ (Eu conto sem preconceito/ de ensinar, isso não quero!/ Pois história só tem graça/ quando não tem lero-lero.)/ Mas vou pedir um favor/ ao Tato, o ilustrador:/ Mostre Salzburgo pra gente,/ ponha o antigo no presente,/ desenhe também um sol,/ pinte o som de um rouxinol/ pois Mozart é fantasia,/ tom cor e harmonia./ Mas, por favor, não insista/ em fazer tudo certinho,/ use o bico de uma pena/ de um cantante passarinho,/ que é o melhor artista! (ORTHOF, 1997b, p. 9-10)
95
Figura 21 – Tato pinta Salzburgo
Fonte: Orthof (1997b, p. 9-10)
Logo, é possível dizer que entre os textos verbais e imagéticos se faz presente
uma relação de colaboração. Como ocorre nas demais histórias lidas, durante a nossa
viagem, a função da ilustração que mais se apresenta no livro é a função expressiva.
Após a apresentação da cidade de Salzburgo, são feitas referências à música
de Mozart, mais especificamente à ópera, A Flauta Mágica. Depois da genialidade do
menino ser mencionada, é narrada a viagem da família Mozart para que o menino se
apresentasse à família real francesa. Na preparação para viagem, durante o caminho
e até mesmo após a chegada à França, são narradas as peripécias da mãe de Mozart,
Anna Maria Pertl, esquecendo itens para viagem.
Foi então que o pai de Mozart/ entrou numa carruagem,/ botou nela a família,/ muitas tralhas de bagagem,/ enquanto a mãe de Mozart/ esquecia da metade:/ - esqueci o meu chaveiro,/ vou e volto, bem ligeiro!/ esqueci meu pincenê,/ esperem um pouco, vocês!/ esqueci meu pó-de-arroz,/ vou buscar, volto depois!/ esqueci o meu dedal/ e também o urinol,/ pois são coisas de utilidade/ e de cuidado pessoal! (ORTHOF, 1997b, p. 13)
Logo, lembramo-nos do lido em Mozart: sociologia de um gênio em que Norbert
Elias cita uma das correspondências trocadas entre a família quando Leopold escreve
ao filho sobre a falta de habilidade da sua esposa em empacotar as coisas.
96
É importante mencionarmos que Mozart tinha uma irmã mais velha, Maria Anna,
que durante a infância também viajava em turnê com o pai e o irmão e é referida nos
textos como uma habilidosa musicista. Porém, Maria Anna não é sequer mencionada
na narrativa Cadê a peruca do Mozart?, possivelmente, pelo apagamento de Maria
Anna na história. Apesar de sua habilidade como musicista, a menina só pôde se
dedicar à arte durante a infância. Quando se tornou adolescente, parou de sair em
turnê para se dedicar aos ofícios de dona de casa, como era costumeiro às mulheres
da época. O impedimento de Maria Anna Mozart em seguir uma carreira como
musicista denuncia o lugar de submissão imposto às mulheres no século XVIII e
reforça a importância das lutas feministas por igualdade entre os gêneros.
Tendo em vista que o livro Cadê a peruca do Mozart? narra uma viagem do
Mozart menino em uma de suas turnês, é válido questionar o apagamento de Maria
Anna Mozart da narrativa, principalmente se considerarmos que, na infância, as duas
crianças se apresentavam juntas. Se viajaram a mãe, o pai e Amadeus Mozart, para
onde foi Maria Anna?
Na contemporaneidade, nós, mulheres, lutamos cada vez mais por
representatividade, portanto vale a pena perguntar a você, leitora e leitor: quantas
mulheres instrumentistas clássicas vocês conhecem? Quantas delas viveram antes
do século XX? A presença de Maria Anna no livro Cadê a Peruca do Mozart? poderia
ser a oportunidade para muitas crianças conhecerem uma menina que foi uma grande
musicista. Porém, Maria Anna foi, mais uma vez, apagada da história. Apagada da
história das mulheres na música clássica e apagada da história Cadê a peruca do
Mozart?.
Partindo para leitura de outros aspectos do livro Cadê a peruca do Mozart?,o
conflito se estabelece quando Mozart chega à Paris e encontra a bruxa Miluca que
desejava ser a cantora principal da orquestra, mas o menino disse a bruxa que ela
cantava muito mal e assim ganhou a sua inimizade. Miluca, com raiva e desejando se
vingar, roubou a peruca que Amadeus Mozart usaria durante a apresentação para a
família real francesa. Quem salvou a apresentação do menino foi o seu amigo
Rouxinol que conseguiu recuperar a peruca das mãos da bruxa e ainda derrubou a
bruxa no rio Sena.
O conflito entre Mozart e Miluca, relevado o caráter ficcional, nos lembra a
disputa de poder entre Mozart e os cantores de ópera que nos é contada por Norbert
Elias:
97
Nas óperas de corte ao estilo antigo, os cantores é que mandavam. A música instrumental era subserviente; estava ali apenas para acompanhá-los. Mas, no Seraglio, Mozart mudou um pouco este equilíbrio de poder; algumas vezes gostava de intercalar as vozes humanas com as dos instrumentos, numa espécie de diálogo. Solapou, assim, a posição privilegiada dos cantores. E ao mesmo tempo inquietou a sociedade de corte, que, numa ópera, estava acostumada a ter empatia com as vozes humanas e não com as vozes simultâneas da orquestra.(ELIAS, 1994, p. 1839)42
A história nos conta que as mudanças propostas por Mozart, apesar de se
configurarem como uma renovação para o que compreendemos hoje como música
clássica, não foi tão bem recebida pelo público pouco afeito a mudanças nos estilos
musicais.
Ao fim, terminamos a nossa leitura acreditando que o livro de Sylvia Orthof e
Tato Gost, pode ser lido em diálogo com a biografia de Mozart. Além disso, a narrativa,
mesmo tendo como ambientação Salzburgo e Paris, não poderia ser mais brasileira
em virtude dos diálogos tanto estruturais quanto intertextuais com os textos da nossa
tradição oral.
Com o fim da leitura, mais uma vez, ouvimos o som de vários pares de asas e,
como por magia, saímos da narrativa Cadê a peruca do Mozart? e voltamos ao Mozart
Dinner Concertt que já chegava ao fim. Ao sairmos do restaurante, o rouxinol nos
acompanhou até a locomotiva Leopoldina, pois a nossa estada em Salzburgo havia
chegado ao fim. Enquanto entrávamos na locomotiva, o rouxinol assoviou as sete
notas musicais e logo respondemos com um “até logo, até mais”.
42Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas.
98
Figura 22 – Passaporte 4
3.1.4.1 Enquanto isso, no vagão LPT... (3)
A visita à cidade de Salzburgo e as leituras realizadas do livro Cadê a peruca do
Mozart? fomentaram a elaboração de uma proposta pedagógica que aborda uma das
facetas da alegria cultural mais debatida por Georges Snyders e já citada na
introdução do presente ensaio: a relação de continuidade-ruptura. Continuidade, pois
o patrimônio cultural da humanidade não está afastado da vida das pessoas, não lhes
é alheio. Ruptura com a experiência imediata dos estudantes universitários, porque é
necessário que o conhecimento progrida da sua base primeira. Em outras palavras,
ao passo que o patrimônio cultural da humanidade não é oposto à vida dos
estudantes, mas está presente nelas, esse repertório também promove o
deslocamento do saber inicial ao saber em progresso. A proposição pedagógica a ser
descrita nos próximos parágrafos exemplifica a relação “continuidade-ruptura”.
A proposição pedagógica elaborada pelo grupo de estudantes do turno noturno,
responsável pelo livro Cadê a peruca do Mozart? foi dividida em quatro momentos.
Para o primeiro momento, eles planejaram uma conversa entre os estudantes da EJA
sobre como passaram o dia. Após a breve conversa, planejaram um momento de
relaxamento, primeiramente reproduzindo a Partita em Lá Menor, de Johann
Fonte: acervo da autora (2018)
99
Sebastian Bach. Após a audição da canção de Bach, planejaram reproduzir a
introdução do funk Bum bum tam tam43, de Mc Fioti, que é uma adaptação da Partita
em lá menor. A música foi escolhida pela sua popularidade no cenário brasileiro no
ano de 2017, e os estudantes de LPT imaginaram que a turma de Educação de Jovens
e adultos a conheceria.
O terceiro momento planejado foi a leitura da biografia de Mozart que consta no
livro de Sylvia Orthof, seguida da leitura de uma releitura construída pelo grupo de
LPT do livro Cadê a peruca do Mozart?. Cito o texto dos estudantes:
Não vamos falar de Tayrone /Nem de Léo Santana/Mas vamos falar de um cara/Também muito bacana. Nasceu na Áustria há muito tempo atrás /Seu nome é Mozart/ E pra rimar como faz?/ Quando pequeno foi pra Paripe tocar prum rei/ Ops! Desculpe!/É Paris, eu errei! E de repente apareceu uma bruxa/ Tirada a cantora, ciumenta e ainda por cima, vendedora de muamba/ Não era até que ela parecia com as dançarinas do SaiddyBamba?/ Essa bruxa invejosa pirou na batatinha/ Roubou a peruca de Mozart/ E ficou que nem Anitta e as coleguinhas./PEGA A PERUCA E FICA LOUCA, LOUCA. Só que para o rei, sem peruca Mozart não podia tocar/ Onde ela poderia estar? A sorte dele foi ter um amigo pássaro/ Que muito te ajudou/ Ele não era o Kannario, aquele que você pensou. Era o Rouxinol um pássaro muito esperto/ Pegou a peruca de volta/ E no final deu tudo certo.
Após a leitura do texto, iniciariam o quarto e último momento da atividade que
consistiria numa roda de conversa acerca da música erudita e da música popular.
Ao começar a atividade com a música de Mc Fioti, os integrantes do grupo de
Leitura e Produção de Textos planejaram dialogar com o repertório dos estudantes da
EJA com os quais realizariam as atividades, visto que o funk consta entre os mais
tocados e os vídeos mais acessados do Youtube do ano de dois mil e dezessete. No
momento em que decidiram apresentar a canção de Bach e abrir o debate acerca das
canções eruditas e populares, é possível que tenham colaborado para a criação de
uma ruptura nos conhecimentos prévios, abrindo espaço para construção de novos
saberes. Tudo isso colaborou para o que Georges Snyders (1988, p. 51) nomeia de
“abrir o horizonte”, conforme o autor:
43Bum bumtam tam. Intérpretes: Mc Fioti. [s.i]: Kondzilla, 2017. Color. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_P7S2lKif-A>. Acesso em: 23 abr. 2018.
100
A alegria da cultura elaborada é a alegria de ampliar minhas aquisições sem as trair: adquirir uma visão junto dos problemas e das tarefas; fazer aparecer os elos entre o que vejo, o que penso viver- e os acontecimentos que atravessam o mundo. E assim, apreendo mais dados e os apreendo com mais acuidade, pois eles iluminam-se uns pelos outros. E ao mesmo tempo, sou concernido por mais, participo mais, é assim que posso esperar compreender meu lugar, encontrar e tomar o meu lugar. Submerso pela amplidão do que há por descobrir, mas sobretudo sujeito à alegria que se desprende da amplidão das perspectivas o parcial adquire a sua significação quando é recolocado nos conjuntos a que a cultura me introduz.
Conhecer Bach e Mozart não impede que se aprecie funk ou qualquer outro estilo
musical que compõe o repertório inicial dos sujeitos, pelo contrário, amplia esse
repertório. Para finalizar com as palavras de Snyders (1993, p. 161), “[...] o centro da
“minha” escola é a relação do aluno com a obra-prima. Continuidade, por certo, mas
também ruptura – ou melhor, a educação me parece a arte de modular, conforme o
caso, a dialética continuidade-ruptura.”
Com essas reflexões, fomos chegando ao final da nossa viagem. Leopoldina,
que tanto gostava de andar pelos trilhos, ficou animada para próximas viagens, e
sugeriu que fôssemos a Congonhas, em Minhas Gerais, para um mergulho na história
O anjo de Aleijadinho, que dialoga com as produções do famoso artista mineiro.
Pensava que também poderíamos passear por trilhos internacionais. Sugeriu a
Alemanha, a Itália e os Países Baixos para mergulharmos, respectivamente, nas
histórias Papai Bach, família e fraldas!, cujo protagonista é o compositor Alemão,
Johann Sebastian Bach, Tem graças no Botticelli, que nos convida a conhecer parte
da produção artística do pintor Sandro Botticelli e Quincas plim pois foi assim, um
louco passeio pelas obras de Hieronymus Bosch.
Apreciamos as sugestões de Leopoldina, imaginamos novas viagens. Quantas
alegrias elas guardariam? O que poderíamos aprender com elas? Sabemos que os
trilhos que percorrem as histórias, assim como as trilhas que traçamos ao lê-las, são
inumeráveis. Tomando como exemplo as histórias que lemos durante a nossa viagem,
é possível dizer que elas guardam alegrias que só descobriremos à medida que nos
dedicarmos às suas leituras. Ao chegarmos a Salvador, nutrimos o desejo de nos
aventurar na descoberta de novas alegrias. Por isso, quando Leopoldina parou em
Salvador e Zé Vagão parou atrás, nós descemos, agradecemos e acenamos, dizendo
“até mais!”.
101
3.1.5 “Toda linha de escrita é um traço de horizonte!”
Como diz o texto de Bartolomeu Campos de Queirós (1999, p. 23-24), epígrafe
do presente ensaio, “cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra
estação.” As próximas palavras, que encerram este ensaio, descortinam o horizonte
do destecer da ficção. Anunciam a estação em que refletiremos sobre o já escrito,
tecendo as considerações, por ora, finais.
Como já escrito, visitar os lugares em que as histórias são ambientadas, além
de dialogar com a concepção de Bartolomeu Campos de Queirós, ou seja, o livro
enquanto bilhete de partida, também se fez pertinente para pensarmos nos contextos
de produção e circulação da literatura infantil contemporânea. Após as viagens, nas
subseções nomeadas de “Enquanto isso, no vagão LPT...”, pudemos estudar as
proposições pedagógicas elaboradas pelos estudantes de Leitura e Produção de
Textos, em prol do fomento da alegria cultural escolar, a partir da leitura dos livros A
onça de Vitalino, Sonhando Santos Dumont e Cadê a Peruca do Mozart?.
Pensemos na alegria cultural como um diamante que se cristaliza sob a forma
de um octaedro, cada face do diamante é fundamental para o todo, assim também
são as facetas da alegria cultural escolar, todas elas são fundamentais para o todo da
alegria. As proposições pedagógicas elaboradas, a partir das leituras de cada obra,
colaboraram para a discussão de diferentes facetas que compõem a alegria cultural
escolar, foram elas: continuidade-ruptura, a ressignificação da obra-prima, a alegria
frente às descobertas científicas e o diálogo entre o passado e o presente.
É preciso rememorar o já escrito em Ponto de tecer pesquisa e registrar
novamente que todas as proposições elaboradas foram levadas às escolas. As
propostas das estudantes do turno diurno foram apresentadas às turmas do Ensino
Fundamental I da Escola Municipal São José e as propostas das estudantes e dos
estudantes do turno noturno a turmas de Educação de Jovens e Adultos do Colégio
Antônio Vieira. Dessas experiências, ainda destaco duas situações que merecem a
nossa reflexão.
Na Escola Municipal São José, ao apresentarmos a proposta para a
coordenação e o grupo de professoras, uma delas se interessou muito pela alegria
cultural escolar, principalmente porque pretendia desenvolver um projeto valorizando
pessoas que marcaram a história da humanidade. Ao conversarmos com a
102
professora, ela nos contou sobre os desafios e pudemos pensar sobre a alegria
cultural como uma conquista instável, sempre atravessada por elementos de não-
alegria (SNYDERS, 1993). É preciso que não imaginemos que a alegria cultural
escolar pode ser estabelecida em atividades pontuais, não, ela precisa ser trabalhada
diariamente e paulatinamente. Os elementos de não-alegria, como as desigualdades
sociais, as crises, o preconceito, as guerras, estão sempre nos desafiando. No
entanto, relembremos que a alegria cultural escolar bebe da fonte da filosofia de
Spinoza em que a alegria não é compreendida nessa concepção como aquilo que nos
leva a sorrir, mas como aquilo que afeta e conduz à ação (SPINOZA, 2009). Nessa
concepção, situações que podem ser lidas a priori como tristes, podem levar à alegria
se mobilizarem as pessoas, se as conduzirem a ações.
Outra situação que me marcou, proporcionando reflexões, aconteceu no Colégio
Antônio Vieira. No momento das atividades com o livro Cadê a Peruca do Mozart?, os
estudantes da EJACAV discorreram sobre como a música os afeta, falaram sobre
música clássica e música popular. Entre as falas, uma das estudantes presentes,
ressaltou que a obra de Mozart está tão presente em sua família, a ponto de seu filho
levar o nome do músico austríaco. A estudante enfatizou que apresentou a obra de
Mozart aos seus filhos e que ela acreditava que todas as pessoas deveriam, pelo
menos, ouvir A Flauta Mágica. Outra estudante, flautista transversal, declarou que a
música está presente em sua vida desde a infância e, recentemente, aprendeu a tocar
algumas músicas de Mozart como Ronda Alla Turca. A estudante, que também tem
baixa visão, afirmou que sua condição não a afastava da música. Revelou conhecer
a biografia de Mozart, ao dizer que gostava da personalidade do compositor, da sua
genialidade. Por fim, encerrou sua fala anunciando que a música de Mozart ficará para
as próximas gerações, para crianças e adultos, pois a música é importante para todos.
As falas das estudantes nos trazem à memória a concepção de Snyders (1988, p.
248-249), em que o autor defende que existem textos que são formas de compreender
e conhecer o mundo e a nós mesmos. Snyders escreve:
Ora, existem textos que constituem “a melhor maneira” de nos encontrarmos, de nos construirmos; [...] e isto porque eles se dirigem ao essencial de nosso ser e nos permitem chegar “ao âmago” de nossa vida; desde então eles nos ajudam a “tomar consciência do que nós mesmos sentimos”. [...] Esta atividade, ao mesmo tempo, busca sua fonte fora de nós e ela é o mais pessoal de nós: cada leitor, cada verdadeiro leitor de um texto importante o lê diferentemente, confere-lhe ressonâncias diferentes, vidas diferentes.
103
Decerto, a música de Mozart não foi recebida da mesma forma pelas duas
estudantes, cada uma emprestou sentidos distintos, a partir da experiência de vida,
na qual a experiência leitora está incluída, de cada uma delas. Esse conceito dialoga
muito com a estética da recepção, teorizada pela primeira vez por Hans Robert Jauss,
em sua aula inaugural na Universidade de Constança (1967). A teoria trata dos
diálogos estabelecidos entre a obra e o leitor, atribuindo a este último um importante
papel, pois, conforme Jauss, o valor artístico de uma obra literária está intimamente
relacionado com os efeitos produzidos por ela no leitor.
Bem, agora, em vias – ou em trilhos – de concluir este ensaio, acredito ser
necessária uma última consideração. Após conhecermos, estudarmos e analisarmos,
por meio da pesquisa, facetas da alegria cultural, das quais vale citar a ressignificação
da obra-prima, a alegria frente às descobertas científicas e o diálogo entre o passado
e o presente, é preciso perguntar: será que essas facetas não estão presentes nos
debates contemporâneos? Na contemporaneidade, não temos acompanhado o
movimento de valorização do passado, principalmente pelos grupos que defendem a
apropriação de outras bases do conhecimento, como a africana e a indígena? Não
temos valorizado as descobertas científicas, principalmente, aquelas que visam
melhorar o mundo e a vida das pessoas? Não reconhecemos a importância do
conhecimento histórico para compreensão do presente? Se tudo isso acontece, por
que é necessário colocar em debate o conceito e as implicações da alegria cultural
escolar?
É necessário colocar o conceito em debate, pois a abordagem das facetas não
garante a abordagem do cerne da discussão da alegria cultural escolar, ou seja, o
contato dos estudantes com o patrimônio cultural da humanidade e os efeitos gerados
diante desse contato. Assim, o ensaio que ora se finda, além de um espaço para o
estudo de proposições pedagógicas que podem ser construídas em prol do fomento
da alegria cultural escolar com base na leitura de três títulos do universo literário de
Sylvia Orthof, também foi um espaço para defesa da alegria cultural escolar nos
debates educacionais.
104
3.2 ENSAIO 2 - “PAPOS DE ANJO”: CONVERSAS SOBRE ALEGRIAS
POLÍTICAS, LITERATURA E ESCOLA
É isso: os anjos papeavam, durante o chá, já agora das cinco horas.
(ORTHOF, 2014, p.38)
Papo de anjo é um doce da culinária portuguesa. Papos de Anjos, bem similar,
é o título de um livro de Sylvia Orthof, em que a autora escreve contos com teor de
crítica social. Para este ensaio, em que serão estudados os diálogos entre a produção
literária de Sylvia Orthof e as alegrias da ação, que compõem o amplo espectro das
alegrias culturais escolares, ao título, Papos de Anjo, também é emprestado mais um
sentido: o de diálogo entre seres que povoam o espaço celeste. Como já exposto em
Ponto de tecer pesquisa, neste ensaio, imagino um encontro entre Sylvia Orthof e
Fanny Abramovich, nas bandas celestes. Antes, porém, de visitarmos o firmamento,
algumas palavras precisam ser registradas, vamos a elas?
3.2.1 Antes de chegar ao céu
No tecer das palavras “antes da chegada ao céu”, necessito retomar dois
conceitos já abordados na seção Ponto de tecer pesquisa: o de família estética e o
de afeto. Começarei pelo conceito de família estética e, na sequência, abordarei os
conceitos de afeto.
Construir uma família estética é algo curioso e muito semelhante à constituição
de uma família que compartilha laços sanguíneos. Affonso Romanno de Sant’Anna,
ao escrever sobre a família estética, na crônica Iniciação Estética, presente no livro
Mistérios Gozosos, registra:
Às vezes, uma casa nem tem livros exatamente, e um dia um filho ou filha aparece com um Kafka ou um Brecht nos braços,e os pais nem sabem direito o que é aquilo. Ninguém na casa toca algum instrumento, e de repente o filho começa pela flauta e chega ao oboé. Ninguém na casa pinta, e de repente a filha começa a encher a sua vida de cores e volumes. Neste caso, o adolescente está descobrindo a terceira dimensão de si mesmo. Os pais percebem que o filho ou a filha está construindo um grupo de amigos imaginários, possivelmente uma outra família, a sua família estética, que às vezes sobrevive à própria família natural. (SANT’ANNA, 1994, p.68)
Dialogam com o conceito de “família estética”, as ponderações feitas por Luciana
di Leone acerca do afeto na poesia contemporânea brasileira e argentina, no livro
Poesia e Escolhas Afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Leone (2014,
105
p. 1384)44, na citação já referida, escreve que “o afeto, ao mesmo tempo, ancora e
mobiliza, inscreve e endereça, identifica e propicia o devir, estabelece genealogias e
tira os filhos de casa”.
Acredito que a formação de uma família estética começa com uma matriarca, ou
um patriarca, seja uma escritora, um artista plástico, uma compositora, alguém que
motivou uma alegria primeira, ou uma alegria cultural. Alegria da descoberta de algo
que agrada, que embeleza, que provoca leituras, que fomenta inquietações, que afeta.
Quando a alegria desse encontro se dá na escola, temos a alegria cultural escolar.
Foi afetada pela literatura de Sylvia Orthof que comecei a minha família estética
e, ao começar a estabelecer genealogias, para usar o termo de Leone, reencontrei as
produções de Fanny Abramovich. Uso o verbo “reencontrar”, pois na constituição da
minha família estética, aconteceu algo peculiar. Sylvia Orthof, cujo livro Fada Fofa,
Onça-Fada (1998a) eu conheci e me encantei durante a infância, é a escritora que
considero como matriarca da minha família estética, mas a leitura de sua obra ficou
adormecida durante os primeiros anos da minha adolescência.
Pelos idos dos meus treze anos, no período das férias escolares, descobri o livro
Cruzando caminhos (1998a), de Fanny Abramovich. Recordo de me deliciar com as
histórias de quatro adolescentes - Nelson, Cléa, David e Leila - durante um feriado na
praia. O texto de Fanny Abramovich aborda as descobertas da juventude, como: a
primeira relação sexual, e a afinidade com uma turma que compartilha os mesmos
interesses. O mesmo final de semana é narrado sob quatro óticas distintas e é curioso
observar como situações podem ser alteradas, conforme se altera o narrador. Após a
leitura de Cruzando Caminhos, tal como a nossa relação com aquela tia que vive
viajando, passei uma temporada sem encontrar os escritos de Fanny Abramovich.
Antes de continuar, parênteses para explicações: na seção introdutória Ponto de
tecer pesquisa, peço licença para me referir a Sylvia Orthof pelo primeiro nome, me
valendo de uma intimidade familiar, posto que Sylvia faz parte da minha família
estética. Se Sylvia faz parte da minha família estética, como a matriarca, visto a minha
relação com a sua obra ter me marcado logo na infância, Fanny Abramovich também
integra essa família. É por essa intimidade familiar que também peço licença para me
referir à Fanny Abramovich pelo primeiro nome. Penso em Fanny de dois modos.
44 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
106
Primeiro, como aquela tia que gosta de contar histórias sobre a família, pois foi através
de sua obra que eu conheci algumas facetas de Sylvia. Segundo, como aquela prima
que compartilha comigo a mesma profissão pois, foi através da leitura de textos de
Fanny que eu aprendi muitas lições sobre o fazer pedagógico. Discorrerei de forma
mais ampliada nos próximos parágrafos.
Ao entrar no curso de licenciatura em Pedagogia, interessada nos diálogos entre
a literatura e a educação, conheci a professora Fanny Abramovich através dos livros
Literatura infantil: gostosuras e bobices(1991a) e O estranho mundo que se mostra às
crianças(1983a). Não a reconheci como a escritora cujo livro havia marcado a minha
adolescência, mas me encantei com a faceta educadora de Fanny Abramovich.
Nos meados do curso de licenciatura em Pedagogia, eu comecei a me dedicar
à leitura e estudo da obra literária de Sylvia Orthof e foi, a partir desse estudo, que eu
reencontrei a Fanny Abramovich escritora. Ao ler Livro Aberto: confissões de uma
inventadeira de palco e escrita(1996), a dedicatória do livro Ervilina e o Princês ou
Deu a Louca em Ervilina (1986), ambos de Sylvia Orthof, e também Sylvia Sempre
Surpreendente(2007), de Fanny Abramovich, descobri sobre a amizade entre Sylvia
e Fanny Abramovich. Segui pistas deixadas nas obras de ambas, tentando descobrir
mais sobre essa amizade entre as escritoras.
Hoje, após o início da minha aproximação das reflexões sobre o afeto a partir de
Spinoza e do afeto na literatura contemporânea, pelos escritos de Leoni, concluo que
o encontrado, na produção literária de Sylvia Orthof e Fanny Abramovich, foram
marcas não só de amizade, mas marcas de afeto através da amizade. Afeto que pode
ser lido através de referências implícitas e explícitas a uma ou outra, como sujeitos,
ou às suas produções literárias. Como exemplificação, cito excertos dos livros O
fantasma travesti e Ervilina e o Princês, ambos de Sylvia Orthof.
Em O Fantasma travesti, romance escrito por Sylvia Orthof que não é destinado,
a priori, ao público infantil, podermos ler:
De repente, surgiu na minha cabeça a minha amiga ruiva de São Paulo. Será que ela vai ler o livro? Estamos cercados de opiniões. A opinião dela, posso imaginar: estará retorcida sobre uma almofada de cetim, fumando, o telefone ao lado. Num canto da casa, seu retrato, abraçada ao Fidel Castro. Não é montagem. Gosto desta amiga. Se ela não gostar do livro, nem vou ligar? Claro que vou ligar! [...] (ORTHOF, 1988, p. 67)
107
É preciso ressaltar, quem assina a orelha do livro é a própria Fanny Abramovich, que,
entre outras impressões provocadas pela leitura de “O Fantasma Travesti”, enfatiza:
é descobrir uma Sylvia Orthof também triste, melancólica, dilacerada, terna, que encara os sofrimentos (tantos... tantos), as angústias, as dúvidas... Que duma forma linda, linda, nos causa assombramentos vitais. Não nos conta dos “Bichos que tive” (seu melhor livro infantil) mas dos bichos que somos... Arrepiante!!! (ABRAMOVICH, 1988)
É importante registrar que sabemos que “a amiga ruiva de São Paulo” é Fanny
Abramovich, pela leitura de livros biográficos e autobiográficos, como os já referidos
Sylvia Sempre Surpreendente, de Fanny Abramovich - livro que narra histórias da
amizade entre ambas - e Livro aberto: confissões de uma inventadeira de palco e
escrita, de Sylvia Orthof, além da dedicatória do livro Ervilina e o Princês, de Sylvia
Orthof, cuja página segue copiada.
Figura 23 – Dedicatória do livro Ervilina e o Princês
(ORTHOF, 1986)
A ilustração da dedicatória corresponde à descrição da “amiga ruiva de São Paulo”,
feita por Sylvia Orthof no livro O Fantasma Travesti.
Foi seguindo as marcas de afeto espalhadas pelas publicações das autoras que
posso contar: Fanny e Sylvia se conheceram, quando ambas eram juradas de um
concurso de dramaturgia infantil. Sylvia convidou Fanny para assistir à apresentação
do espetáculo A viagem de um barquinho, escrito e dirigido por ela, no qual, a Fada
108
Carioca ainda atuou como lavadeira. Depois do espetáculo, as escritoras foram tomar
um suco de frutas, conversaram e, desde então, engataram amizade. Esse fato e
outros episódios relatados no presente texto acerca da amizade entre Sylvia e Fanny
podem ser lidos no livro já mencionado: Sylvia Sempre Surpreendente.
A Fada Carioca e a Cigarra Ruiva, como Sylvia costumava se referir à Fanny,
não compartilhavam somente o grande apreço pelas histórias e pelas crianças,
compartilhavam também a descendência judia, muito embora Sylvia só descobrisse
sua descendência aos doze anos. Fanny conta:
Como os pais viviam cochichando, falando baixinho pelos cantos, ficando longe das janelas, sempre achou que eram nazistas. Mais que isso, espiões nazistas! Boquiabertei! Caímos na gargalhada. Pais judeus como espiões nazistas no Rio de Janeiro! Só numa cabeça fora de qualquer parâmetro conhecido. Irrompeu ali a minha admiração incondicional pela Sylvia. Nunca mais diminuiu. Só cresceu e se agigantou! Ela no Rio, eu em São Paulo, começamos a nos corresponder. (ABRAMOVICH, 2007, p. 31)45
A amizade, à distância, entre as autoras rendeu muitas cartas, telegramas,
telefonemas demorados, trocas de presentes.
Por anos recebi cartas e cartinhas da Sylvia, me chamando de cigarra desvairada ou cigarra ruiva. Desenhos especialmente feitos, paninhos colados sobre bois-bumbás, estrelas e luas em adesivos prateados, dizeres em português com letras pseudo-hebraicas. Hilários; Um desenho da minha ilustre pessoa, cercada de anjinhos sexy acenando prum papo pouco angelical, rabinos barbudos anunciando que ela – uma judia – recebeu encomenda da Telerj pra escrever vinte histórias natalinas. Aceitou e escreveu! [...] Cartões e cartinhas abraçantes por qualquer pretexto. Sempre diferentes, sempre divertidos, sempre únicos. Marca digital da Sylvia. [...] Ficávamos horas batendo papo por telefone. Em geral, no final da tarde. Sobre qualquer assunto. Desimportâncias e importâncias. Assunto puxando assunto, fofocas pululando, contação de idéias, de quebra-paus, de descobertas, de vexames vexaminosos. (ABRAMOVICH, 2007, p. 33)
Ao ler sobre a troca de cartas entre Sylvia e Fanny, recorro aos estudos de Lícia
Beltrão em sua tese, A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível. Inspirada
na carta a Lobato que Mary Arapiraca escreve para concluir a sua tese, Prólogo de
uma paidéia lobatiana fundada no fazer especulativo: a chave do tamanho, Beltrão
escreve Cartas a uma orientadora cúmplice. Na segunda carta, a pesquisadora tece
45No livro “Se a memória não me falha” e também em “Livro Aberto: confissões de uma inventadeira de palco e
escrita”, podemos conhecer um pouco mais sobre a história familiar de Sylvia Orthof e sobre o episódio em que descobriu a sua descendência judia.
109
considerações sobre os usos da carta de foro íntimo, no fazer literário e no contexto
educacional.
Ao visitar as correspondências trocadas entre Fernando Sabino, Hélio
Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, presentes no livro Carta para
mim, de Paulo Mendes Campos, a pesquisadora captura nos textos o aspecto da
amizade e o lê em diálogo com as considerações de Jorge Larrosa no texto Sobre a
lição ou do ensinar e do aprender na amizade e na liberdade: a amizade seria uma
unidade que suporta e preserva a diferença: “um nós que não é senão a amizade de
singularidades possíveis” (LARROSA, 2009, apud BELTRÃO, 2006, p. 237).
O estudo de Beltrão (2006) desperta a minha curiosidade para visitar os escritos
de Larrosa, nos quais eu capturo um excerto que me remete à amizade entre Sylvia e
Fanny: “[...] a amizade de ler com implica-se na amizade de aprender com, no se en-
con-trar do aprender.” (LARROSA, 2017, p. 2922)46 Penso que, mesmo distantes
fisicamente, Sylvia e Fanny, através das correspondências, dos textos de literatura e
de crítica literária trocados, liam uma com a outra, aprendiam uma com a outra, se
encontravam no aprender.
Sylvia, no Rio de Janeiro, se aventurando pela literatura, escrevendo e ilustrando
os mais de cento e vinte livros publicados. Livros sobre fadas e bruxas fora dos
padrões, anjinhos pouco angelicais, bichos-do-pé de estimação, luas apaixonadas e
indignadas, galinhas revolucionárias, ovelhas que gostavam de feijoada, chaleiras que
são mães, velhotas atrapalhadas, meninas que descobrem o encanto do teatro e até
fantasmas travestis. Sylvia também se aventurando pelos palcos, nunca esquecendo
sua paixão primeira. A Fada Carioca coordenou muitos grupos de teatro, entre eles o
Teatro do Livro aberto, em que adaptam para o teatro os livros de literatura infantil
escritos por Sylvia.
Enquanto isso, em São Paulo, Fanny dedicando-se a fazer palestras,
ministrando cursos, escrevendo livros, sempre pensando a educação em contexto
macro, o ensino de artes plásticas, a formação de professores, as práticas
pedagógicas, a cultura da infância e a literatura infantil. Fanny também se dedicou à
crítica literária e, mais tarde, à escrita de textos literários. Entre os livros publicados
por ela, podemos citar: Quem educa quem? (1985), Que raio de professora sou
46Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas
não são numeradas.
110
eu?(1991b), Professor não duvida! Duvida?(1998b), ambos voltados para o trabalho
docente. Entre os literários, podemos citar: Cruzando caminhos(1998a), Quem
manda em mim sou eu(2004), De surpresa em surpresa(2008) e Dias difíceis(2002).
A escritora também publicou o livro autobiográfico Ziguezagues: andanças de uma
educadora e escritora (1996).
Ao lermos os livros escritos por Fanny e Sylvia, podemos encontrar algumas das
facetas das autoras como as suas concepções educacionais, suas concepções de
criança, suas relações pessoais e profissionais e seus posicionamentos políticos e
ideológicos. Somados a esse aspecto estão as marcas de amizade e afeto entre as
escritoras que podem ser lidas em diálogo com a alegria cultural. O lugar da amizade
na alegria cultural está em aprender com o outro, em se aproximar da cultura com a
ajuda do outro ou junto ao outro. Pelos escritos de Fanny e Sylvia, podemos perceber
o quanto uma aprendia com a outra.
Sylvia e eu fomos amigas de sempre. De cara. Sem possibilidade de recuar no afeto. Encantamento total. Primeiro como companheiras de ofício, centradas em crianças. Ela como escritora, eu como crítica. Falei da importância da literatura dela em jornais, televisão e livros para professores. Mais tarde, fiz várias orelhas e prefácios para seus livros. Li muitos de seus escritos, antes dela enviar para alguma editora publicar... quando estancava, duvidando da qualidade deles. Aplaudi muitos, sugeri reescrever uma ou outra parte de vários. Uma vez bronqueei. Achei a tal escrevinhação preguicenta, muitos pontos abaixo do seu talento. Ela nem pestanejou. Reescreveu inteirinha. Contou isso no seu livro-depoimento Livro Aberto. Continuamos superpróximas quando eu engatinhava numa iniciante ficção. [...] Sempre tive a maior admiração pela cabeça dela. Queria que ela me emprestasse aquela cabeça, por uns quinze minutos. Pra eu também ver o que não percebia, misturar o imisturável, enxergando o mundo com aquele olhar que só ela tinha. ( ABRAMOVICH, 2007, p. 37-38)
A potência afetiva dessa amizade, na qual havia espaço para aprendizagens,
que me inspira a escrever este ensaio no qual discorrerei sobre o diálogo entre a
produção literária de Sylvia Orthof e as “as alegrias políticas” ou “alegrias da ação”,
categoria que integra o conceito macro de “alegria cultural escolar”, e a potência para
a criação de proposições pedagógicas a partir desse diálogo.
Da obra de Sylvia Orthof, a pesquisa foi realizada nos livros que compõem o
mote “Sylvia Othof e a Política”, são eles: Papos de anjo (2014), Quem roubou meu
futuro? (2004), Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro (2015), Ervilina e
o Princês ou Deu a louca em Ervilina (1986) e O fantasma travesti(1988).Da obra de
Georges Snyders, foram valorizados os escritos que tratam da alegria que o autor
111
denomina de “alegrias da ação”, presentes nos livros Alegria na escola(1988), Feliz
na universidade: estudo a partir de algumas biografias(1995) e Alunos felizes: reflexão
sobre a alegria na escola a partir de textos literários(1993). Somam-se a esses dois
acervos, as palavras dos pesquisadores Antonio Campos, Jonas Medeiros e Marcio
Ribeiro sobre a ocupação estudantil das escolas públicas em São Paulo no ano de
2016. Esse fato foi capturado, pois o compreendo como relevante no cenário
educacional brasileiro e, principalmente, por se apresentar como possibilidade para o
tecer de reflexões acerca das alegrias políticas.
Conforme explicitado em Pontos de tecer pesquisa, para a escrita do presente
ensaio, optei pela simulação de um diálogo entre as autoras, fundamentado na
“filosofia do como se”, de Hans Vaihinger (2011), que ressalta a contribuição dos
constructos ficcionais para a produção científica. A estratégia utilizada foi motivada
pela leitura de três textos: Literatura infantil: reflexões sobre o termo atrelado – infantil
(2012), escrito por Lícia Maria Freire Beltrão, em que a pesquisadora desloca os
dizeres de teóricos sobre leitura e literatura infantil e os entrega aos integrantes do
Sítio do Picapau Amarelo, para que eles dialoguem acerca de concepções, da história
da literatura infantil e dos seus usos pedagógicos; Senhor da Linguagem e
Invencionices pela Paz: Entrevistando Monteiro Lobato(2002), de autoria de Mary de
Andrade Arapiraca, texto em que a pesquisadora estabelece um diálogo ficcional com
o pai da literatura infantil brasileira; e por fim, o livro Sylvia Sempre Surpreendente
(2007), de Fanny Abramovich. Nele, a autora textualiza, conforme imagina, a chegada
de Sylvia ao céu. Inspirada nesses textos, no ensaio ora iniciado, eu textualizo, como
imagino, a chegada de Fanny ao céu, o que também se configura como uma forma
de homenagear postumamente Fanny, cujo falecimento aconteceu no mês de
novembro de 2017, enquanto a minha pesquisa se encontrava em curso.
Não posso deixar de ratificar, conforme já exposto na seção Ponto de tecer
pesquisa, que as proposições pedagógicas do presente ensaio não foram registradas
em seções específicas, como no ensaio Dos trilhos às trilhas da invenção, da música
e das artes visuais: Sylvia Orthof e Tato Gost em diálogos intertextuais, mas aparecem
distribuídas ao longo do texto.
112
Feitas essas considerações, vamos “saracotear no céu”47 com Sylvia, Fanny e
conferir os diálogos entre a produção literária de Sylvia Orthof e as alegrias políticas.
3.2.2 A chegada ao céu
Junto à Fada Carioca, a Cigarra Ruiva foi “saracotear no céu”. Creio que no céu
inventado por ela, cheio de arte, cores, um céu “embasbacante”, para usar uma
“palavra-Fanny”. Para lembrar a sua juventude, quando participou de grupos de teatro
(ABRAMOVICH, 1996), Fanny chegou fantasiada de funcionária dos Correios
Celestes e, assim que chegou no firmamento, foi logo recebida por um Monteiro
Lobato ansioso por notícias do plano terreno, pois, como a escritora nos contou em
Sylvia Sempre Surpreendente(ABRAMOVICH, 2007), no céu passava um correio
especial, lento, mas eficiente, e Lobato sempre recebia livros e recortes de revistas,
além de assinar um clipe com novidades da literatura para crianças e jovens. Assim
que Fanny chegou, o Pai de Emília, logo estranhou aquela entregadora com cabelos
vermelhos e cara de bistrô48. Enquanto a falsa entregadora segurava o riso, Lobato
se lembrou que conhecia aquele rosto dos livros de literatura infantil que lhe haviam
chegado. Ao reconhecer Fanny, Lobato anunciou: uma pessoa te espera!
Enquanto o Pai da Emília conduzia a Cigarra Ruiva, eles passaram por diversas
nuvens. Fanny, ao vir rostos conhecidos, saudosos, foi revirando lembranças.
Passaram por uma nuvem e Fanny observou Silney Siqueira49, Júlio Gouveia50, Lúcia
Lambertini51 e Fauzi Arap52, trocando experiências sobre o fazer teatral e sentiu
47 Referência aos livros “Sylvia Sempre Surprendente”, de Fanny Abramovich, “Saracotico no Céu”,
de Sylvia Orthof. 48 Fanny Abramovich escreve sobre Sylvia Orthof: “Sinto falta dos seus presentes muito dos incríveis...
a mesa de botequim de verdade, onde janto quase toda noite... dos leques e sombrinhas chineses, dum dum cadeado de vidro fechado e sem chave, duma boina de veludo francesa, exclusiva para ser usada num bistrô com a minha cara” (ABRAMOVICH, 2007, p. 14) Sylvia Orthof escreve sobre Fanny Abramovich: “Fanny entrou, de repente, neste capítulo sobre Paris porque ela tem qualquer coisa de bistrô. Se bistrô fosse gente (bistrô é uma misturinha de café com botequim francês, pãozinho brioche, jornal, livro, vinho), bistrô seria Fanny. (ORTHOF, 1996, p. 15) 49 Diretor de teatro, contracenou com Fanny no Teatro Paulista do Estudante (TPE), dirigido por Beatriz
Segall. (ABRAMOVICH, 1996) 50 Diretor de teatro que dirigia o Teatro Escola de São Paulo (TESP), do qual Fanny participou na
juventude. O grupo do TESP se apresentava na televisão, as peças eram transmitidas ao vivo.(ABRAMOVICH, 1996) 51 Atriz que interpretou a boneca Emília na primeira transmissão do Sítio do Picapau Amarelo da
televisão brasileira.(ABRAMOVICH, 1996) 52 Formado em engenharia civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, dedicou a sua
vida profissional ao teatro, sendo um dos mais importantes diretores de teatro do país.(ABRAMOVICH, 1996)
113
saudade. Lembrou que o teatro foi para ela uma grande escola e, pelo que nele
aprendeu, trabalhou com teatro-educação por muitos anos (ABRAMOVICH, 1996).
Olhou para a direita e viu outra nuvem em que Ilina Ortega53, Patrícia Stokoe54 e
Ariel Buffano55, numa conversa latino americana sobre música, fantoches e expressão
corporal. Artistas encontrando intersecções entre diferentes modalidades artísticas.
Fanny logo pensou em sua formação como educadora, nos anos passados como
professora e coordenadora do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem56.
Lembrou dos cursos feitos no Brasil, em Paris, Roma, Argentina; repetiu mentalmente
a sua escolha profissional, a mesma que ela nos contou em seu livro Ziquezagues:
A educação de uma pessoa inteira. Com alegrias, tristezas, raivas, tirando de letra ou suando pra dar conta do que está a fim de fazer. Uma educação sensível, arteira, de corpo inteiro. Uma educação pra cada um descobrir quem é, do que gosta, no que empaca, até onde pode ir, o que é difícil encarar. Abrindo espaços desconhecidos, internos e externos. Crescendo. [...] Uma educação pra ajudar a entender este mundo, perceber até onde a vista alcança, aprender a enxergar melhor e ir tentando transformar tudo com o que não se concorda que aconteça neste mundo. Começando por si mesmo.(ABRAMOVICH, 1996, p.1-2)
Já emocionada, Fanny olhou mais adiante e viu uma nuvem pequenina, onde
dois senhores conversavam: eram Paulo Freire57 e Antonio Candido58. Ficou
imaginando o que conversavam e teve certeza de que o diálogo deveria estar
relacionado à literatura, política e emancipação humana. Lembrou-se do tempo em
que estudou na Universidade de São Paulo (USP):
Lá estava eu, mergulhada de corpo e alma na rua Maria Antônia. Na USP! Xeretando tudo, fuçando o que dava, estudando, conspirando, teatrando, rindo, me mexendo por inteira. Participando da História.
53Professora de música do Ginásio Israelita Brasileiro ScholemAleichem, escola em que Fanny
Abramovich estudou e trabalhou. (ABRAMOVICH, 1996) 54 Professora de expressão corporal, bailarina e pedagoga com a qual Fanny fez estágios durante a
sua passagem pela Argentina. (ABRAMOVICH, 1996) 55 Importante titeriteiro argentino, manuseador de fantoches e marionetes, com o qual Fanny fez aulas
durante a sua passagem pela Argentina. (ABRAMOVICH, 1996) 56 Conforme Vieira (2013, p. 7), o Ginásio Israelita Brasileiro ScholemAleichem “Surgiu do fruto da
intensa militância dos judeus progressistas em São Paulo, tendo como objetivo a disseminação dos ideais antifascistas no cenário social brasileiro, por meio de uma educação pluralista e inovadora. Tinham como desafio colocar abaixo o dogmatismo, visando experimentar a libertação da criatividade e a renovação cultural dentro do espaço escolar.” De acordo com Salvadori (2014, p. 23) a mãe de Fanny, Elisa Kauffmann Abramovich, foi diretora da escola durante os primeiros anos de sua fundação (1949-1963). 57 Importante educador brasileiro, se destacou no trabalho com a alfabetização de adultos, assim como
pela luta por uma educação emancipadora. 58 Ilustre estudioso da literatura brasileira e professor da Universidade de São Paulo.
114
Fiz todo o curso de Pedagogia sem maiores dificuldades. Já trabalhava com educação, e não me deslumbrei com novidades que não eram tão novidadeiras assim... Queria mais, queria saber mais, precisava me instrumentalizar melhor. Além das matérias do curso, fui fazer Estética, como outra escolha. Estudei, como aluna ouvinte, Teoria e Crítica Literária e Filosofia do Conhecimento com grandes professores da época. (ABRAMOVICH, 1996, p. 14-15)
Todas essas lembranças fizeram Fanny desejar se juntar a Paulo Freire e a
Antonio Candido, mas Lobato, percebendo o desejo da Cigarra Ruiva em se desviar
da rota, insistiu dizendo que a escritora teria muito tempo para prosear com os velhos
conhecidos, mas, antes de qualquer coisa, uma pessoa precisava vê-la. Ao dizer isso,
deram alguns passos, e Fanny abriu um sorriso.
Logo à frente da escritora, Ângela Lago59 terminava de colorir uma nuvem,
enquanto Maria Heloísa Penteado60 dava sugestões sobre as cores a serem usadas.
Na nuvem estavam: Tatiana Belinky61 que inventava um limerique por minuto; Cecília
Meireles62 que olhava as nuvens e recitava: “[...] Todos querem ser cantores, / quando
a Estrela da Manhã/ brilha só, no céu sombrio,/ e, pela margem do rio, / vão descendo
os carneirinhos/ como carretéis de lã... (MEIRELES, 2001); Maria Clara Machado63
que ensaiava peças com anjinhos, enquanto uma senhora, muito loura a ajudava na
montagem dos figurinos. Fanny olhou mais de perto e reconheceu, La Orthof, mais
loura do que nunca, pulou de felicidade.
A Fada Carioca olhou para a Cigarra Ruiva e, em seguida, partiram para um
abraço que guardava a saudade de duas décadas. Após o abraço, Sylvia foi logo
avisando que recebeu o conselho para que ela conhecesse a sua família
59 Ângela Lago foi uma escritora e ilustradora brasileira, nascida em Belo Horizonte- MG que dedicou
grande parte da sua vida profissional às produções destinadas à infância. Entre as suas produções estão: ABC Doido, O Cântico dos Cânticos, Uma palavra só, O fio do riso e Cenas de rua. 60 Nascida em São Paulo, Maria Heloísa Penteado, trabalhou como autora e ilustradora de livros
infantis, entre os seus trabalhos é possível citar: Lúcia Já-Vou-Indo, A Menina que o Vento Roubou e Adormeceu a Margarida. 61 Tatiana Belinky nasceu em São Petersburgo, mas veio morar no Brasil durante a infância. Foi
escritora de literatura infantil e trabalhou escrevendo peças para o Teatro Escola de São Paulo (TESP), dirigido por seu marido, Júlio Gouveia, grupo no qual Fanny Abramovich trabalhou na juventude. Entre os livros infantis publicados por Tatiana Belinky estão: Os dez sacizinhos, O livro dos disparates com os limeriques da Tatiana e O grande rabanete. 62 Nascida no Rio de Janeiro, Cecília Meireles foi professora, jornalista, poeta e cronista. A escritora é
um importante nome para a literatura nacional de autoria feminina. Entre os seus livros, destaco: Escolha o seu sonho, Mar Absoluto e Ou isto ou aquilo. 63 Mineira de Belo Horizonte, Maria Clara Machado é um importante nome da dramaturgia brasileira,
tendo se dedicado especialmente as produções destinadas à infância. Fundadora do grupo de teatro Tablado, entre cerca de trinta peças infantis escritas pela autora, destaco Pluft, o fantasminha, O cavalinho azul e A bruxinha que era boa.
115
(ABRAMOVICH, 2007). Falou que adorou a avó de Fanny e que elas estavam
trabalhando em ótimos bonecos. Quanto à mãe de Fanny, juntas já tinham militado
por várias causas, e ela não imaginava que os anjinhos tinham tantas demandas para
resolver com os humanos que habitavam o firmamento.
Fanny perguntou à Sylvia se ela sabia como andava a produção literária voltada
para as crianças no plano terreno, e a Fada Carioca respondeu que, vez ou outra,
pintava alguém interessado em literatura infantil pelas bandas celestes. Antes de
Fanny, chegara por lá Ângela Lago e contara várias novidades. Fora isso, Sylvia
também contou que assinava o mesmo clipe que Lobato64 e recebia jornais e livros de
literatura infantil, o problema é que há meses não passava um entregador dos Correios
Celestes. Ouvira falar que o problema estava no diálogo entre os Correios Celestes e
os correios terrenos, mas até o presente momento não chegara nenhuma notícia
muito esclarecedora.
Ao ouvir Sylvia, Fanny lembrou que ainda carregava uma bolsa com as
novidades levadas da Terra ao firmamento. Havia muita coisa a ser contada! Por isso,
Fanny convidou La Orthof para um suco de frutas, e ingressaram em verdadeiros
papos de anjo.
3.2.3 “Papos de Anjo”
Sentadas numa nuvem, Fanny começou a esvaziar a bolsa de carteiro cheia de
novidades terrestres. A primeira coisa que ela tirou foi o livro Sylvia Orthof: um
ramalhete de histórias, organizado por Cristiane Villaça e José Prado e publicado pela
editora Bambolê. Sylvia engasgou: quantas pessoas queridas se mantinham
interessadas em sua obra! Quantos depoimentos comoventes, quantas vozes
reunidas para falar sobre ela. Ficou tímida. Tratou logo de agradecer e guardou o
mimo para ser desfrutado aos pouquinhos.
A segunda coisa que Fanny tirou da bolsa foi o livro Escolas de Luta, escrito por
Antonia J. M. Campos, Jonas Medeiros e Marcio M. Ribeiro, publicado pela editora
Veneta e que integra a Coleção Baderna. Fanny já ia explicando que aquele livro era
64 Referência ao livro Sylvia Sempre Surpreendente: “Lobato deu uma de Emília. No céu passava um
correio especial. Lento, mas eficiente. Trazendo encomendas para tidos. Para ele, livros e recortes de jornais. Assinava um clipe com as novidades da Literatura para crianças e jovens. Acompanhava de perto, sem perder nadissimamente nada do importante.” (ABRAMOVICH, 2007, p. 44)
116
um presente para sua mãe, Elisa Kauffmann Abramovich, sempre atenta às questões
políticas do país e muito interessada nos caminhos da educação nacional, mas Sylvia
ficou muito curiosa, desconfio que o motivo especial foi a palavra baderna, uma
palavra muito sugestiva. Logo, Fanny teve que explicar do que se tratava65.
O livro narra um episódio que marcou a história do movimento estudantil
brasileiro: a ocupação das escolas estaduais do estado de São Paulo. Tudo começou
quando, no dia 23 de setembro do ano de 2015, foi publicado, na capa do caderno
Cotidiano da Folha de São Paulo, o anúncio da transferência de cerca de um milhão
de alunos da rede estadual do estado de São Paulo, com vistas a reorganizar as
escolas, valorizando os ciclos de seriação. Na mesma data, o então secretário de
Educação do estado, Herman Voorvald, foi entrevistado pelo jornal “Bom Dia São
Paulo”, da Rede Globo de Televisão, para tratar da reorganização da rede estadual
de ensino. No parecer de Campos, Medeiros e Ribeiro (2016) apenas dois argumentos
fundamentavam a reorganização escolar: o primeiro seria os dados coletados pela
Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) e o segundo, um estudo
conduzido pela Cima (Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação
Educacional), um órgão da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-
SP). Os dados coletados pela Fundação Seade indicavam a perda de milhões de
alunos pelo Sistema Estadual de Ensino nos últimos dezessete anos e, em
decorrência disso, haveria nas escolas salas de aula sem atividades. O estudo
conduzido pela Cima sugeria que o desempenho dos estudantes nas escolas de ciclo
único cresceria cerca de 10% acima da média atual.
Quando o único documento com a pesquisa da secretaria se tornou público,
especialistas em educação questionaram o rigor da pesquisa e a sua seriedade, em
virtude da consideração de apenas uma variável, ou seja, o número de ciclos, quando
outros fatores como o número de alunos por sala e o índice socioeconômico poderiam
ser considerados.
Foi dito pelo secretário que pais e comunidade escolar poderiam compreender
melhor a reorganização numa reunião chamada de “Dia E” ( Dia da Educação), mas,
em lugar de um diálogo, em que os diferentes sujeitos fossem ouvidos, o que ocorreu
65 Todas as informações sobre o movimento estudantil contra a reorganização escolar no estado de São Paulo
pesquisei, lendo Escolas de Luta, de autoria de Campos, Medeiros e Ribeiro.
117
foi apenas uma exposição de uma decisão já tomada pela gestão da Secretaria de
Educação.
Os estudantes não ficaram felizes com a proposta da reorganização, e a falta de
diálogo por parte da Secretaria de Educação e do Governo do Estado foi um fator
agravante, visto que muitos estudantes ficaram sabendo da informação através da
mídia ou de boatos. Acontece que a falta de comunicação não foi o único fator que
colaborou para a indignação dos estudantes, a proposta de reorganização escolar foi
rejeitada como política pública.
As intenções pedagógicas da reorganização não faziam sentido para os
estudantes. Com a mudança proposta pelo governo, muitos estudantes teriam que
migrar de uma escola para outra, pois as escolas atenderiam um único ciclo, o que
poderia ser um problema para famílias cujos filhos estudassem em ciclos diferentes,
e os irmãos mais velhos fossem os responsáveis por acompanhar os mais novos.
Muitos estudantes teriam que estudar mais longe de casa, o que implicaria gastos
com transporte público. Ainda é preciso ressaltar que os alunos, com necessidades
educacionais especiais, também seriam atingidos. Logo, decidiram que era preciso
tomar providências, se mobilizar para que as suas opiniões fossem ouvidas.
Nesse processo, as redes sociais, principalmente o Facebook, rede social muito
usada para compartilhamento de textos, fotos e vídeos, foram importantes
instrumentos para a organização dos estudantes. Muitas das mensagens postadas
revelavam a identificação dos estudantes com a sua escola, a escola como um espaço
topofílico e o desejo de salvar aquele lugar. Acerca disso, os autores destacaram que
É comum a suposição de que a condição precária da educação pública venha acompanhada de um desprezo dos próprios alunos pela escola e pelos professores. Ao longo do processo de mobilização foi verificado o contrário: que, apesar da condição precária das escolas, os alunos têm uma relação positiva com a escola pública (ou o desejo de uma relação positiva projetado no pouco que se tem). Mesmo quando a relação com a escola não é positiva como nos casos acima, os alunos se mobilizam para salvá-la [...](CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 257)66
Mobilizados, os estudantes começaram a organizar atos de rua pelas redes
sociais. Durante os atos, os estudantes tiveram que enfrentar uma forte repressão por
parte da polícia, além da falta de apoio da mídia. Mas, mesmo assim, eles mantiveram
66 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
118
seu objetivo: demonstrar insatisfação e tentar dialogar com a Secretaria de Educação
e com o governador. Campos, Medeiros e Ribeiro estimam que aconteceram
manifestações em cerca de sessenta cidades do estado de São Paulo.
Ouvindo a narrativa, Sylvia começou a lembrar de uma das personagens de seus
livros: Valéria, cuja história está escrita em Quem roubou o meu futuro?. Valéria e
seus amigos, um grupo de adolescentes, resolvem formar um grupo de teatro. Entre
as descobertas, próprias da convivência uns com os outros, Valéria e sua amiga Lila
descobrem que a crise pela qual estavam passando não era apenas a crise da
adolescência, mas a crise política e econômica enfrentada pelos brasileiros. No livro,
Sylvia vira personagem e entrega à Lila o texto teatral Quem roubou o meu futuro?.
Lila apresenta o texto ao grupo que se emociona e Valéria conclui que fazer teatro
pode ser uma forma de lutar por um país melhor (ORTHOF, 2004). Tal como fez com
Lila, Sylvia ficou com muita vontade de ter entregado o texto Quem roubou meu
futuro? aos estudantes de São Paulo, pois acreditava na potência da arte para
transformações sociais.
Sylvia ficou surpresa, quando voltou a acompanhar o que Fanny narrava e a
amiga falava, justamente, da arte no movimento estudantil. Fanny dizia: “Também
ocorreram manifestações nas escolas. Em uma delas, os estudantes, de olhos
vendados, começaram a cantar a música ‘Cálice’, composta por Chico Buarque e
Gilberto Gil, que ficou conhecida como um grito contra a ditadura militar no Brasil,
enquanto três estudantes faziam a marcação da canção com instrumentos de
percussão. Em um determinado momento, os estudantes combinaram os versos de
cálice com outros versos, possivelmente de autoria deles”:
Está na hora de crescer/ passar a limpo esse país,/ devolver pra nossa gente o dom de ser feliz./ Onde é que está o nosso futuro e nossa paz/, que só promete mas só faz tirar do povo./ Onde é que está o nosso direito de viver,/nosso direito a fazer um mundo novo. (ALUNOS... 2015)
Nesse momento, Sylvia deu um salto e contou para Fanny, que o acontecido em
São Paulo lhe lembrava uma conversa que tivera há alguns anos com um amigo judeu
que acabara de chegar no firmamento, o nome dele era George Snyders. Tudo
começara quando a mãe de Fanny, Elisa Abramovich, decidiu montar um comitê de
recepção para os judeus que chegavam ao céu, possivelmente lembrando dos tempos
em que trabalhou na Organização Feminina Israelita de Assistência Social (OFIDAS),
acolhendo judeus, vítimas de perseguições em suas pátrias, que chegavam ao Brasil
119
(SALVATORI, 2014). Com o comitê montado, formado por judeus de todas as partes
do mundo, a cada judia ou judeu que chegava pelas bandas celestes, um grupo era
convocado para recepcioná-la ou recepcioná-lo.
No dia 27 de setembro de 2011, receberam a notícia que um judeu estava a
caminho, seu nome era Georges Snyders e ele era francês. Sylvia estava entre as
pessoas do grupo responsável por recepcioná-lo. Sendo assim, ela preparou o seu
melhor francês e foi. Snyders chegou ao céu animado, no caminho acenou para
alguns conhecidos. Elisa Abramovich também estava no grupo e logo começou uma
conversa animada com Snyders sobre política. O francês começou falando sobre o
marxismo, mas rapidamente a conversa se direcionou para questões pedagógicas.
Elisa contou a Snyders algumas histórias sobre o tempo em que trabalhou no Ginásio
Israelita Brasileiro Scholem Aleichem.
Ao ouvir as experiências progressistas do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem
Aleichem, Snyders começou a falar sobre um conceito que ele cunhou como “alegria
cultural escolar”. Sylvia, aos sons da palavra alegria, exclamou “Ave, alegria” e se
interessou ainda mais pela conversa. Snyders explicou que a alegria cultural escolar
refere-se ao contato dos estudantes com a cultura cultivada, com o patrimônio cultural
produzido pela humanidade, nas diferentes áreas, dos poemas e artes visuais às
grandes descobertas científicas. Porém, não um simples contato, a alegria cultural
também é a alegria de compreender, de se comover, até mesmo de saber fazer
(SNYDERS, 1993). A alegria cultural é um contato em que o estudante é afetado pelo
patrimônio cultural da humanidade e que, diante dele, se sente um produtor de
sentidos.
Sylvia contou a Fanny que esse “olhar produtivo” e a “associação da sua própria
experiência à do autor” lembrava a ela muito do que ela lhe havia contado sobre o ato
em que os estudantes cantaram a música Cálice, de Chico Buarque , intercalada com
versos da autoria deles. Dialogando com Snyders (1993), os estudantes fizeram
nascer no texto de Chico Buarque e Gilberto Gil, ecos que nunca haviam ressoado,
não se sentiram esmagados pela obra-prima, mas renovaram os seus sentidos,
através de novos versos e uma nova melodia, acreditaram que poderiam dialogar com
aquele texto e assim o fizeram.
Fanny, ouvindo a tudo com atenção, ficou curiosíssima para conhecer Georges
Snyders, ficou cheia de orgulho em saber que a mãe continuava militando lá pelas
bandas celestes, já ia levantando com mil ideias na cabeça, quando Sylvia lembrou a
120
ela que a história ainda não havia terminado. O que aconteceu, os estudantes
continuaram a realizar atos de rua? Os governantes dialogaram? A reorganização foi
adiante?
Assim, Fanny continuou a contar que, com o passar das semanas, os atos nas
ruas começaram a se enfraquecer, e não havia nenhum sinal de que os responsáveis
pela reorganização se disponibilizariam para dialogar. Frente a isso, os estudantes
tiveram que mudar de estratégia. Durante as manifestações nas ruas e, através de
grupos do WhatsApp67, alunos tiveram contato com a cartilha Como ocupar um
colégio? produzida pela seção argentina da “Frente de Estudiantes Libertarios68”,
inspirada na luta dos estudantes chilenos, a cartilha foi traduzida para o português por
integrantes do coletivo O Mal Educado69.
A partir do contato dos estudantes com o material e da necessidade de criar
estratégias para que suas reivindicações fossem ouvidas, as ocupações das escolas
começaram a se apresentar como uma alternativa difícil, extrema, mas que talvez
lograsse sucesso. A ideia das ocupações foi fortalecida pelo apoio de uma Frente
puxada pelo coletivo O Mal Educado, que organizou assembleias regionais em
escolas em prol do fortalecimento da luta nos bairros e articulações entre as escolas
envolvidas. Nessas assembleias regionais, também era divulgada a cartilha Como
ocupar um colégio? e exibido o documentário A rebelião dos pinguins que trata da luta
de estudantes secundaristas chilenos.
A arte se fez presente no movimento dos estudantes desde o seu início. Além
das assembleias regionais, é importante registrar a paródia da canção “Baile de
Favela”, composta por Mc Foice e Mc Martelo, intitulada “Escolas de Luta”, que
rapidamente se tornou um hit do movimento.
Enquanto Fanny contava a Sylvia sobre o desenvolver do movimento de luta dos
estudantes, os anjinhos que voavam por ali por perto, ao ouvirem sobre o hit “Escola
de Luta”, rapidamente performaram Mc Foice e Mc Martelo e cantaram:
Estado veio quente/ Nós já tá fervendo/ Quer desafiar/ Não tô entendendo/ Mexeu com estudante/ Vocês vão sair perdendo/ (por quê)/ O Fernão é Escola de Luta/ Andronico é Escola de Luta/ Ana
67 Aplicativo multiplataforma de troca de mensagens instantâneas, que também permite a realização de
chamadas de voz e vídeos em smartphones. 68A Frente dos Estudantes Libertários é uma organização político-social de militância estudantil de orientação
anarquista. 69Coletivo criado com o objetivo de registrar e divulgar experiências de luta e organização estudantil, com
objetivo de fortalecer o movimento dos estudantes.
121
Rosa é Escola de Luta/ Fica preparado/ Que se fecha/ Nós ocupa [...] (FOICE, MARTELO, 2015)
Sylvia se arrepiou, se emocionou, agradeceu aos anjinhos e pediu para Fanny
continuar a contar. A Cigarra Ruiva nem pestanejou e continuou a falar. Contou que
depois das assembleias regionais, o mosquitinho da ocupação escolar já tinha picado
vários estudantes e muitos começaram a se organizar, para isso os grupos do
WhatsApp foram muito importantes. Os estudantes também começaram a se
encontrar em sigilo. Dessas reuniões para as primeiras ocupações, tudo aconteceu
num ritmo muito acelerado.
Mobilizados, os estudantes começaram a ocupar as primeiras escolas, mas as
ocupações de diferentes escolas não ocorreram de forma premeditada, os estudantes
não orquestraram uma onda de ocupações. Cada escola tomou a decisão
autonomamente, mas é inegável que as notícias circulando pelas páginas do
Facebook colaboraram para semear as notícias e estimular estudantes de escolas
que ainda não haviam sido ocupadas.
Na medida que os estudantes levavam à frente a ideia de ocupar as escolas,
eram realizadas, em cada unidade, assembleias para decidir ou não pela ocupação.
Majoritariamente, a decisão era pela ocupação. Assim, começavam os desafios. O
primeiro desafio dos estudantes era o diálogo com a gestão das escolas que, na
maioria dos casos relatados, se mostrava hostil. Quando começavam as negociações
pelas chaves das escolas, o “poder” sobre o portão das escolas se mostrou como um
importante ponto de confronto. Em muitos casos, a polícia militar foi acionada e houve
muitos casos de assédio e violência, mas os estudantes resistiram.
Quando conseguiam se estabelecer nas escolas, uma das primeiras ações era
a realização de assembleias para montagem das comissões como as de limpeza,
cozinha e segurança. É importante ressaltar o protagonismo feminino nas ocupações:
Quanto ao protagonismo das meninas durante o movimento, este foi evidenciado pelos registros fotográficos dos trancamentos de ruas, em especial inúmeras imagens de embates com policiais militares – #LuteComoUmaGarota se tornou uma hashtag famosa e uma frase comum em memes que viralizaram nas redes sociais. Mas no dia a dia da luta também era possível observar que as alunas assumiram uma função organizadora (no seu sentido mais amplo) no cotidiano da ocupação, assegurando o foco da luta. Nas 30 entrevistas realizadas pelos autores, o protagonismo feminino foi visível: eram as meninas as mais indicadas pelos companheiros de ocupação para servirem de porta-vozes e frequentemente exerciam um papel informal de
122
liderança na dinâmica do grupo. (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p.)70
É importante citar que as meninas também levantaram a voz, quando a elas
eram destinadas atividades como as relacionadas a limpeza e a cozinha apenas pelo
fato de serem meninas. Houve casos em que as meninas se responsabilizaram até
pelas comissões de segurança, uma das mais complicadas, visto que muitas
ocupações sofreram ataques por parte da gestão da escola, da polícia militar e de
desconhecidos.
Nesse momento, Sylvia parou e ficou imaginando: teriam essas meninas lido o
Manual de boas maneiras das fadas que rompe com as representações das fadas
através da paródia e da ironia? Ou quem sabe Ervilina e o Princês, paródia ao conto
A princesa e a Ervilha, de Hans Christian Andersen que conta a história de uma
pastora que recusa o casamento com um príncipe? Será que elas conheceram a
história de Uxa, uma bruxa que, às vezes, decide ser fada, faz muita bagunça e mostra
que ninguém é bom ou ruim o tempo inteiro? A Fada Carioca ficou com “uma vontade
louca” de saber como andavam as bibliotecas escolares, se perguntava o que
estavam lendo as meninas e também os meninos pelo Brasil afora, sentiu uma
pontinha de saudade do plano dos vivos.
De repente, o pensamento de Sylvia se voltou a Snyders, lembrou do amigo
judeu, falando sobre “o que é natural”:
As instituições, os comportamentos, tantos sentimentos habituais e até as crises e as guerras, porque existem, porque são tais, chegam a nos parecer evidentes, imutáveis, comandados por uma espécie de destino e é o que faz com que frequentemente nem mesmo encaremos nem mesmo tentemos mudá-los: Não que isso nos satisfaça, mas antes isso nos parece inevitável; o costume acaba por embotar o que deveria parecer o mais insuportável – mas subsistem a angústia e o ódio contra o que parece impor-se a nós. (SNYDERS, 1988, p. 73)
Aquelas meninas, ao recusarem ser colocadas para limpar e cozinhar pelo fato
de serem meninas, se manifestaram contra o insuportável, questionaram o que
poderia parecer imutável, ou seja, a manutenção das mulheres em um lugar que lhes
foi imposto pela sociedade patriarcal, o lugar de quem exclusivamente cuida da casa
e dos que nela habitam. Usando as palavras que ouvira de uma senhora francesa,
70 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
123
Simone de Beauvoir, enquanto passava por uma nuvem onde um grupo animado
refletia sobre a condição das mulheres em diferentes esferas, Sylvia pensou: aquelas
meninas se manifestaram contra a imanência e reivindicaram o direito à
transcendência (BEAUVOIR, 2016).
Quando voltou a prestar atenção na narrativa de Fanny, a Cigarra Ruiva contava
o seguinte:
Na primeira semana, as ocupações começaram a crescer pouco a pouco, sendo
que o momento de maior expansão do número de ocupações ocorreu no final de
semana entre a primeira e a segunda semana de ocupações. Ao total, duzentas
escolas chegaram a ser ocupadas, em diversas partes do estado, sendo que o interior
protagonizou um grande número de ocupações.
Os primeiros dias de ocupações apresentaram grandes desafios para os
estudantes, desafios que foram singulares de escola para escola. Na maioria dos
casos, houve desentendimento com a gestão, que se valia de estratégias que visavam
ao desmonte das ocupações. Também era frequente a presença da polícia que
aparecia nas ocupações por chamados, em sua maioria, da gestão da escola. Outro
desafio enfrentado pelos estudantes foi a suspensão do fornecimento de água e de
luz. Algumas escolas passaram dias sem abastecimento hidráulico e elétrico.
Apesar das muitas tentativas de desmonte, as ocupações, em geral, foram bem
sucedidas. Um ponto a ser destacado é a participação da comunidade nos arredores
da escola. Nas ocupações em que os estudantes conseguiram dialogar com a
comunidade e trazê-la para o seu lado, aumentava o sentimento de proteção aos
estudantes. A comunidade, na qual estavam incluídos os pais e familiares dos
ocupantes, também colaborou com a doação de alimentos.
Através das páginas do Facebook, o país acompanhava o dia a dia das
ocupações. Os registros feitos nas páginas também eram uma forma de documentar
as ações de cuidado dos estudantes para com a escola, a citar, os mutirões para
pequenas reformas e limpeza. As ocupações também foram uma forma de
aproximação entre os estudantes, de estreitamentos de laços. Antes, separados em
grupos por idade, gênero ou orientação sexual, no momento das ocupações, se
achavam unidos por uma causa.
Novamente Sylvia lembrou o livro Quem roubou o meu futuro?. Recordou as
descobertas de Valéria, ficou refletindo como a arte e a vida podem conversar. Pensou
num trecho específico da narrativa: “Hoje Lila veio me visitar e descobri que ela é
124
totalmente diferente do que eu imaginara. A gente tem mania de rotular as pessoas e
custa a descobrir que, sobretudo na nossa idade, as pessoas mudam, crescem, se
modificam.” (ORTHOF, 2004, p. 21) Tal como Valéria, percebeu que Lila era uma
pessoa diferente do que ela acreditava, os estudantes também puderam perceber que
os seus colegas eram diferentes do que eles imaginavam. A experiência transformou
a forma como um olhava para o outro, afinal, pessoas, sobretudo nessa idade,
mudam, crescem, se modificam.
Sylvia também se lembrou da conversa com Snyders. Contou a Fanny que o
educador pensava também na importância do trabalho em grupo para a construção
da alegria cultural. Falou que Snyders considerava um esforço cultural a união de
pessoas com objetivos heterogêneos, em prol de um interesse comum. Nas palavras
do francês:
Esforço cultural cada vez diferente, é claro, mas que visa toda vez conduzir a convicção, fortificar a convicção de que os avanços importantes não podem ser a obra de um só: sem o apoio do grupo e particularmente sem essa duração e essa diversidade de esforços possíveis no e para o grupo, nenhum de nós teria conseguido... E esse objetivo vale a pena. (SNYDERS, 1988, p. 29)
Fanny, cada vez mais interessada em conhecer Snyders, recobrou o turno de
fala dizendo:
Além disso, as ocupações foram uma oportunidade para os estudantes
aprenderam mais sobre a democracia, pois a opção por montar uma gestão pautada
na horizontalidade implicava constantes assembleias para que as decisões fossem
tomadas com a participação de todos. Campos, Medeiros e Ribeiro (2016, p. 1967)71
afirmam:
Uma ocupação é uma forma muito singular de luta: pessoas se dispõem a viver juntas em um determinado espaço por tempo indeterminado, tendo que se organizar diariamente e lidar com suas necessidades de infraestrutura, alimentação, higiene, atividades etc. para que a ocupação se mantenha viva e, portanto, para que o coletivo possa alcançar seu objetivo (neste caso, a derrubada da “reorganização escolar”). O comprometimento e a dedicação necessários, em comparação com a organização de um protesto de rua, por exemplo, são muito maiores. Se esta ocupação for autogerida de maneira horizontal – como foi no caso dos secundaristas –, isto tende a fazer com que toda atividade ou decisão, por mínima que seja,
71 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
125
se torne uma experiência no exercício da democracia e da horizontalidade.
Em virtude das aulas convencionais estarem suspensas em razão das
ocupações, os estudantes propuseram que voluntários lhes oferecessem aulas e
oficinas. Entre as pessoas que se dispuseram a oferecer aulas e oficinas estavam
representantes de movimentos sociais, artistas que têm visibilidade na grande mídia,
como Gregório Duvivier, grupos de teatro, professores e estudantes universitários. As
escolas se transformaram em verdadeiros centros culturais. Os momentos de
atividade representaram a inclusão de repertórios que ainda não compõem,
prioritariamente, os repertórios escolares. Dentre esses repertórios, podemos citar: as
questões feministas, raciais e do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros).
Sylvia interrompeu Fanny para ressaltar que a presença de diferentes atores
sociais na escola foi muito pertinente. Afinal, os problemas educacionais não dizem
respeito apenas a alunos, professores e comunidade escolar, mas são problemas
sociais, são responsabilidade de todos. Resolveu, mais uma vez,citar Snyders, pois
ouvira dele que “a crítica política da escola é mistificadora enquanto ela é crítica
política só da escola: seria um meio de inocentar a sociedade, silenciar sobre suas
responsabilidades” (SNYDERS, 1988, p. 195).
Fanny aproveitou para dizer que
A questão do ensino está ligada à da fome, da subnutrição, da saúde do aluno. É vinculada com o problema da moradia, de o estudante ter um lugar para se concentrar, ficar, ler, escrever. De ocupar todo o dia do aluno, balanceando seu tempo com todas as atividades fundamentais para o crescimento humano, e não considerar satisfatórias jornadas de três ou quatro horas diárias. Está na reação flamejante ao fato de a instrução só ser obrigatória por lei, insensível à existência do trabalho da criança, mão-de-obra baratíssima e necessária para a renda familiar. A questão do ensino não existe em separado. Tem de estar inserida numa preocupação global para que todos os problemas sejam tratados com seriedade e verdade. E noção de urgência! (ABRAMOVICH, 1988, p. 123-124)
Fanny continuaria a falar mais sobre educação e política, mas percebeu no olhar de
Sylvia que ela ansiava por terminar de ouvir a história do movimento dos estudantes,
por isso continuou a narrar:
Foi no contexto das aulas e oficinas, ministradas por diferentes atores sociais
que os estudantes construíram o que se tornou uma palavra de ordem para o
movimento: “por uma educação que nos ensine a pensar e não a obedecer”. Fanny
126
abriu o livro Escolas de Luta para ler uma consideração essencial para
compreendermos as ações dos estudantes e a sua relação com a escola:
A experiência abriu os horizontes dos estudantes, e a palavra de ordem “por uma educação que nos ensine a pensar e não a obedecer” rapidamente entrou para o repertório do movimento como um todo, aparecendo nas redes sociais e em cartazes em manifestações e nas fachadas das escolas ocupadas. Porém, é importante destacar que isso não significa uma rejeição completa do modelo tradicional – simplesmente significa o desejo de uma escola que trate os alunos como seres humanos, estimule a realização plena de suas capacidades intelectuais e inclua no seu papel social a formação de cidadãos (e não apenas trabalhadores). Para os secundaristas, o pensamento crítico é parte fundamental de uma “educação de qualidade”, junto com o melhor desempenho nas disciplinas do currículo tradicional, indispensável para garantir a entrada em uma boa universidade e oportunidades no mercado de trabalho, o que eles também desejam. Diferentemente do que afirmaram alguns analistas, não se tratou de uma revolta contra a instituição da escola, pelo contrário, é uma valorização dela como espaço de formação.(CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 2438)72
Sylvia começou a refletir, acreditava que a literatura poderia contribuir para uma
educação libertária. Ficou se lembrando do livro Mudanças no galinheiro mudam as
coisas por inteiro que narra a história de um dia em que o Sol acordou resfriado e a
Lua teve que trabalhar por duas noites seguidas, como o Sol não apareceu, o Galo
não pôde cantar e se pôs a implicar com a Galinha, reclamando da casa e da criação
dos pintinhos. A Galinha, diante das reclamações, começou a refletir que a casa e a
criação dos pintinhos também eram responsabilidade do Galo, e, embora ele
implicasse com sua fraqueza, ela poderia aprender a ser forte, assim, decidiu cantar.
O canto da Galinha fez o Dragão, que trabalhava para a Lua e fazia tudo que lhe
mandavam, perceber que era a hora dos fracos cantarem e se revoltou contra o
autoritarismo da Lua, que, por sua vez, se indignou por ter que trabalhar dobrado sem
receber nada em troca e foi pedir um pagamento ao Sol, que decidiu ticar bom pois
mais um dia de resfriado lhe custaria muito caro.
Enquanto pensava, Sylvia folheava o livro Sylvia Orthof: um ramalhete de
histórias, organizado por Cristiane Villaça e José Prado, que Fanny havia lhe
entregado assim que começaram a conversar. De repente, La Orthof se deparou com
72 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
127
o capítulo Novos finais felizes: a revolução do feminino em Sylvia Orthof, escrito por
Cristina Villaça, do qual a autora resolveu sublinhar um excerto no qual Villaça escreve
sobre o livro Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro:
[...] as personagens – o Sol, a Lua Nova, o dragão, o galo e a galinha – assumem sua função na natureza como alegorias das ocupações dos adultos no cotidiano: o trabalho, os cuidados com a casa, a vida em sociedade. Mudanças no galinheiro... é, de fato, uma crítica aos papéis sociais atribuídos arbitrariamente. Com esse texto a autora propõe uma verdadeira revolução: a desobediência ao convencional, uma anarquia em que cada um pode e deve agir da maneira como acha correta. Ela incita o leitor a questionar o mundo de desigualdades em que vivemos e a rebelião proposta no enredo é a denúncia de que uma iminente revisão de paradigmas se faz necessária. Sylvia Orthof anuncia o novo, desafia a imaginação, conduz à reflexão e ao debate, sua literatura indica novas alternativas para a transformação do presente. Não queremos todos um mundo melhor? (VILLAÇA, 2017, p. 132-133)
Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro problematiza o
autoritarismo nas relações. A falta de diálogo. O Sol, ao propor uma mudança tão
grande sem consultar os outros sujeitos implicados, pareceu não dimensionar o
impacto que a sua decisão causaria à existência dos outros. A decisão do sol pode
ser lida em diálogo com o ocorrido em São Paulo. A decisão do Sol dialoga com a do
governador Geraldo Alckmin que decretou a reorganização escolar, sem considerar
as falas dos sujeitos cujas vidas seriam afetadas. A figura da Galinha pode ser lida
em diálogo com as ações dos estudantes da rede estadual de São Paulo que, frente
ao autoritarismo, renunciaram o lugar de fraqueza e aprenderam a ser fortes,
aprenderam a cantar.
A Fada Carioca ficou imaginando como seria fazer uma oficina com os
estudantes na companhia da Cigarra Ruiva e lembrou que Fanny ainda não lhe
contara o final da história. Respondendo ao pedido de Sylvia para que continuasse a
narrativa, Fanny prosseguiu.
Voltando ao ponto em que a presença de diferentes atores na escola colaborou
para o fortalecimento das ocupações, os estudantes optaram pela não associação a
nenhuma bandeira partidária ou a uma entidade estudantil, preservando a autonomia
do movimento. Por falarmos em autonomia, essa é uma das palavras que definem as
ocupações estudantis, a segunda palavra, com certeza é horizontalidade.
A horizontalidade, na forma de condição do movimento, causou estranhamento
em uma audiência de conciliação. A audiência foi convocada pelo Tribunal de Justiça
128
de São Paulo. Estavam presentes na audiência dois desembargadores, o Secretário
de Educação, a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado
de São Paulo (APEOESP) e alunos das muitas escolas ocupadas. A audiência
terminou sem um acordo. Os estudantes continuaram a rejeitar a proposta do governo,
por ignorar as suas pautas, mas um ponto de destaque foi a postura dos estudantes
ao não elegerem líderes e desejarem que a voz de todos fosse ouvida.
As semanas se passaram sem que a gestão da Secretaria de Educação ou o
governo do estado se disponibilizassem a dialogar com os ocupantes. Por outro lado,
as tentativas de desmonte das ocupações continuaram a ocorrer. Houve difamações,
alegaram que os estudantes estavam fazendo baderna e destruindo a escola. A essas
alegações, os estudantes respondiam convidando a comunidade a ir à escola,
distribuíam panfletos explicativos, marcando reuniões com os pais.
A situação começou a mudar após o vazamento de um áudio em que
representantes do governo planejavam desqualificar o movimento estudantil, que se
somariam a tentativas violentas de desocupação. A ambas os estudantes
responderam através das páginas das ocupações no Facebook e através da
inauguração de nova tática de ação: as aulas na rua.
As aulas na rua consistiam em travamentos das avenidas da cidade, onde os
alunos colocavam cadeiras enfileiradas simulando uma sala de aula. Esses atos foram
recebidos com muita repressão por parte da polícia militar do estado de São Paulo.
Ao passo que os estudantes conseguiram dar visibilidade ao movimento. Em
decorrência dos noticiários do estado reportarem aos atos do movimento, a grande
mídia não se mostrou aberta para que os estudantes tivessem voz, falassem sobre o
movimento durante as programações.
Ao ouvir que os estudantes haviam montado salas de aula nas ruas, que
estavam travando as avenidas da cidade, Sylvia, novamente, se lembrou do livro
Quem roubou o meu futuro?, mais especificamente, de um excerto da peça teatral
homônima que integra o livro:
Ei, vocês, que venderam meu futuro/ pelo preço dos trinta dinheiros da corrupção,/ vocês que deram empregos, arruinaram os verdes/ da minha bandeira,/ escutem com atenção:/ sou o novo pensamento,/ para vocês, sou contramão! (ORTHOF, 2004, p.33)
Sylvia percebeu que “andar na contramão” era uma boa metáfora para o que aqueles
estudantes estavam fazendo: Indo de encontro ao que lhes foi imposto, questionando
o que lhes pareceu injusto, exercendo a democracia.
129
Quando voltou a sua atenção à Fanny, a Cigarra Ruiva dizia que a visibilidade
do movimento dos estudantes também foi expandida pela aproximação de artistas que
realizaram shows e rodas de conversa nas escolas ocupadas, entre esses artistas, é
importante que citemos: Criolo, Maria Gadu, Vanguart, Céu, Tiê, Tulipa Ruiz, Pitty,
Fresno, Arnaldo Antunes, Tico Santa Cruz e Mc Sofia, Marisa Monte, Chico César.
Nessa hora, a conversa foi mais uma vez interrompida pelos anjinhos, que
cantavam o refrão: “ninguém tira o trono do estudar/ ninguém é o dono do que vida
dá/ e nem me colocando numa jaula/ porque sala de aula essa jaula vai virar.” (BLACK,
2015). Ao ouvir os anjinhos cantando, Fanny logo se lembrou de contar que muitos
artistas gravaram canções em apoio à luta dos estudantes. Entre eles, está Dani
Black, que convidou André Whoong, Arnaldo Antunes, Chico Buarque, Dado Villa-
Lobos, Felipe Catto, Felipe Roseno, Fernando Anitelli, Hélio Flanders, Lucas
Santtana, Lucas Silveira, Miranda Kassin, Paulo Miklos, Pedro Luís, Tetê Espíndola,
Tiago Iorc,Tiê, Xuxa, Levy e Zélia Duncan para gravarem com ele a música “Trono do
estudar”, cujo refrão foi cantado pelos anjinhos.
Mas não foram somente os cantores que demonstraram apoio às ocupações. Os
estudantes também receberam apoio de diferentes grupos, das torcidas organizadas
de times de futebol, do Corinthians e do São Paulo, de cozinheiros, como Paola
Carosella, que participa como jurada do programa culinário Master Chef. Somando-
se aos encontros presenciais, também circularam dois manifestos, o primeiro
assinado por intelectuais, artistas e figuras públicas e o segundo assinado por
instituições ligadas à educação.
No início do mês de dezembro, foi divulgada uma pesquisa pelo Datafolha que,
além de mostrar que 55% dos paulistas eram favoráveis às ocupações, também
mostrava uma queda na popularidade do governador Geraldo Alckmin.
Não era apenas uma fração da classe média, composta por artistas, universitários e intelectuais que se dispunha a apoiar o movimento dos estudantes. Era também a opinião pública da população em geral que começava a se voltar contra Geraldo Alckmin. (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 4426)73
O segundo fator agravante que colaborou com um desfecho, razoavelmente favorável
às ocupações, foram as ações de promotores do Ministério Público, com o objetivo de
73 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
130
paralisar ou reverter a organização escolar, que começaram a entrar na justiça com
ações civis públicas regionais.
A primeira destas ações foi em Agudos (interior do estado): o promotor de justiça da cidade entrou com ação requerendo que o Judiciário obrigasse o Executivo a não fechar a EE Padre João Batista de Aquino, argumentando que seria um desrespeito ao direito à educação de estudantes “portadores de necessidades especiais”, o que foi substanciado pelo depoimento de duas mães com filhos deficientes. Não se tratou de caso isolado. O fato é que a “reorganização”, enquanto plano concebido burocraticamente, nunca atentou para especificidades como as destes estudantes.
Outras ações civis se somaram à primeira. Promotores buscaram intervir
alegando a falta de transparência e diálogo. Em resposta à ação de uma promotora,
um juiz da Vara da Infância e Juventude, decidiu que a reorganização não deveria ser
realizada e, para embasar o seu argumento, se valeu da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9394/96, alegando que escolas de ciclo único tolheriam as
oportunidades de convívio e interação entre os educandos. O juiz também ponderou
que a reorganização escolar poderia implicar transtornos relacionados ao
deslocamento, à superlotação de salas e, por último, reivindicando o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), o juiz argumentou que a permanência na mesma
escola seria proveitosa para a construção da identidade e para o aprimoramento do
senso de pertencimento das crianças e adolescentes.
No terceiro dia do mês de dezembro, houve, porém, uma grande ação.
Conjuntamente, defensoras públicas, promotores do Ministério Público, entraram com
uma ação pública no Tribunal de Justiça visando impedir reorganização escolar em
todo estado de São Paulo.
Esta atuação do MP (do Geduc, mas também de promotorias regionais antes disso) e da Defensoria, entrando na Justiça com ações civis públicas que pediam a suspensão da “reorganização”, por afrontar princípios constitucionais e a própria legalidade, principalmente a gestão democrática do ensino público e o direito de pais, responsáveis, crianças e adolescentes de participarem do processo decisório da política pública, passou a criar uma espécie de cerco institucional ao Executivo estadual. Houve uma tomada de posição do Poder Judiciário paulista, tanto nos municípios citados (Santos, Agudos e Guarulhos – Presidente Prudente não teve decisão antes do pronunciamento público de Alckmin) quanto no Tribunal de Justiça de São Paulo, o que foi mais um elemento determinante para o que viria a seguir.
Um dia após a ação conjunta dos promotores do Ministério Público e das
defensoras públicas, o governador Geraldo Alckmin se pronunciou, publicamente,
131
revogou o decreto da reorganização escolar, afirmando a suspensão do projeto por
um ano. Horas após o pronunciamento do governador, o secretário da Educação,
Herman Voorvald, deixou o cargo. Campos, Medeiros e Ribeiro (2016) enfatizam que
“Em mais de 20 anos sob controle tucano, pouquíssimas vezes um governador de
São Paulo voltara atrás em uma decisão por conta de pressão de um movimento
social.”
A notícia foi recebida com cautela pelos estudantes, já que ‘suspensão”, não
significa “cancelamento”. Fora isso, ainda não havia nenhum documento assinado que
garantisse a manutenção da decisão. A priori, ocupantes de muitas escolas decidiram
por manter as ocupações. No dia seguinte ao pronunciamento, foi publicado um
decreto que revogava o decreto da reorganização escolar. Após a publicação do
decreto, os estudantes precisaram se posicionar quanto à permanência ou não das
ocupações. Conforme Campos, Medeiros e Ribeiro (2016), por pressões externas ou
espontaneamente, muitas escolas começaram a ser desocupadas. É preciso registrar
que também houve casos de violência como meio para que os estudantes deixassem
as escolas.
Seja pela violência, seja pela avaliação autônoma, foi-se tornando cada vez mais claro que era chegado o momento de realizar a desocupação das escolas. Isto não era, porém, sinônimo de desmobilização, muito pelo contrário: a disposição dos estudantes para lutar permanecia viva.
O fim das ocupações não significou o fim da luta estudantil. Com o grande
movimento representado pelas ocupações, os estudantes redescobriram a força da
coletividade e agiram como agentes inspiradores. Em outros estados do Brasil, como
o Rio de Janeiro e a Bahia, aconteceram ocupações por pautas distintas das de São
Paulo.
Em São Paulo, os estudantes decidiram mudar as suas táticas de luta, visto que
a organização escolar ainda pairava sobre o horizonte. Ao conhecerem melhor as
suas escolas, os alunos descobriram que ainda era preciso enfrentar muitas batalhas,
isso sem falar no compromisso com a transmissão das memórias das lutas às
gerações futuras. Campos, Medeiros e Ribeiro concluem que
Apesar destas vitórias, o movimento dos estudantes paulistas parece ter grandes desafios à sua frente. Em uma primeira abordagem, a jornada de 2015 parece trazer saldos organizacionais relevantes: depois de diversas transformações pelas quais passaram o Comando das Escolas em Luta e outros Subcomandos dele derivados, os secundaristas estão se organizando de maneira autônoma principalmente por regiões ou cidades, além de estarem surgindo
132
outros coletivos de ex-ocupantes e grêmios comprometidos com a continuidade da luta em um nível micro, no interior de cada escola. Também foram formadas algumas chapas constituídas principalmente por ex-ocupantes para disputar as eleições de grêmios estudantis e surgiram ou foram fortalecidos coletivos autônomos que são continuidades das ocupações.
Ao ouvir o desfecho da história, Sylvia pensou na importância da transmissão da
memória para as novas gerações, lembrou que “a memória é coisa puladinha, vai e
volta, dá um nó, um laço, adora reticências! (ORTHOF, 1996, p. 18)” e ficou feliz por
terem registrado os acontecimentos em um livro, pois é uma forma da história não se
perder. Pensou ainda que a transmissão da memória do acontecimento também é
importante para o reconhecimento dos mais jovens da potência estudantil para
promoção de mudanças sociais, além de ser um exemplo nacional de luta por direitos
educacionais. A Fada Carioca não pode deixar de rememorar a conversa com
Snyders. O escritor, em certo momento da conversa, falava sobre a importância da
transmissão da memória do povo.
O povo quer transmitir sua herança histórica, a lembrança da opressão e os momentos cruciais nos quais ele foi ator, onde ele traçou um caminho em direção a uma sociedade nova: para numerosos operários, a Comuna aparece não como uma revolta entre outras, ainda menos uma agitação que interrompe uma evolução normal e ordenada, mas a prova típica de uma criatividade operária na ordem política, o testemunho de que o povo pode ser fonte de renovação, é capaz de trabalhar pela sua liberação. (SNYDERS, 1988, p. 119)
Sylvia pensou no protagonismo estudantil e no desejo de mudança daqueles
estudantes, ao compartilhar os seus pensamentos com Fanny, ouviu da Cigarra
Ruiva:
quando apagamos da memória coletiva aquilo que já foi feito, experimentado, bem ou mal sucedido, repetido ou retestado em matéria de educação brasileira, constatamos que estamos perpetuamente descobrindo o primeiro passo, a primeira etapa e jamais passamos para a segunda hipótese ou quinta possibilidade. (ABRAMOVICH, 1998b, p.117)
Ambas concluíram que a transmissão da memória é um importante passo para
continuar a caminhar. E antes que Fanny abrisse a bolsa e continuasse a tirar outros
livros, revistas e recortes de jornais, Sylvia não resistiu e declamou: “todo fim é
recomeço/ todo pouco é o bastante/ toda linha de escrita/ é um traço de horizonte!”
(ORTHOF, 1996, p. 49)
133
3.2.4 Em uma nuvem distante ou Destecendo a ficção
Em sua “filosofia do como se”, Hans Vaihinger ressalta como característica
essencial das ficções científicas, elas serem meios para determinadas finalidades, ou
seja, elas são porta para chegarmos a determinados fins e, como característica
básica, a consciência da natureza ficcional da criação, sem a pretensão de
transformá-la em um fato. (VAIHINGER, 2011) A ficção criada neste ensaio que ora
se finda, foi um artifício para uma reflexão acerca da potência da literatura, aqui
especificamente a produção literária de Sylvia Orthof, para o diálogo e promoção de
alegrias culturais escolares, especialmente as alegrias políticas.
Ao analisarmos o movimento dos estudantes contra a reorganização das escolas
em São Paulo, sob a lente da alegria cultural escolar, é importante ressaltar a
presença da arte em todo movimento. Considerando, como já citado, a alegria cultural
escolar como o contato e a produção de sentido, por parte dos estudantes, frente ao
patrimônio cultural da humanidade, é possível dizer, a partir de uma análise da
releitura produzida da canção Cálice de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil, que
os estudantes se apropriaram do patrimônio que dispunham e o ressignificaram,
unindo o passado ao presente, o que é muito caro para a construção da alegria cultural
escolar.
Pensando na literatura é possível dizer que ela esteve presente em todo o
movimento dos estudantes, desde a produção das releituras de canções, pelos
estudantes ou para/com eles, nos cartazes das manifestações ou nas publicações das
redes sociais. Mas ler a literatura presente nesses lugares é possível em decorrência
de uma renovação, a qual eu me alio, na concepção do que é lido como literário.
Autores, como Florência Garramuño, propõem uma “literatura fora de si”, um campo
expansivo que inclui, entre os textos literários, outros discursos que, a priori, poderiam
não ser considerados como “literários”. Para Florência Garramuño, teórica argentina
e importante expoente nos estudos literários contemporâneos,
A articulação dos textos com e-mails, blogs, fotografias, discursos antropológicos, entre muitas outras variantes; ou, no caso da poesia, a colocação em tensão do limite do verso, que pode incorporar amiúde todas essas outras variantes referidas, cifra nessa heterogeneidade uma vontade de imbricar as práticas literárias na convivência com a experiência contemporânea. Para essa literatura, uma leitura estritamente “disciplinada” ou disciplinar pouco parece poder captar. Nesse campo expansivo também está a ideia de uma literatura que se
134
figura como parte do mundo e imiscuída nele, e não como esfera independente e autônoma. (GARRAMUÑO, p. 220)74
A produção literária de Sylvia Orthof, pelas relações que estabelece com fatos,
notícias, fotografias, também está incluída nessa concepção de literatura fora de si.
Como exemplo, podemos citar o livro Quem roubou meu futuro? (2004b). O livro é
composto por dois gêneros: diário e texto dramático. Entre os temas abordados na
narrativa, se destacam as questões político-econômicas do Brasil no final da década
de 1980. Dentre os livros selecionados para compor o mote “Sylvia Orthof e a política”,
Quem roubou o meu futuro? e Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro
foram os livros que mais dialogaram com a experiência dos estudantes de São Paulo.
Mas, quais as razões para esses diálogos? Seria porque os personagens são
adolescentes como os estudantes de São Paulo? Ou porque o Sol do livro Mudanças
no galinheiro mudam as coisas por inteiro representa uma figura autoritária? Acredito
que não. Para compreender a razão de esses livros dialogarem tanto com a
experiência dos estudantes, volto aos escritos de Snyders.
No livro Alunos Felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos
literários, Georges Snyders busca em textos literários, “fragmentos felizes” para
pensar a alegria cultural escolar. Diferente do caminho trilhado por Snyders, ao
desenvolver a minha pesquisa valorizando os textos literários, eu não busquei
exemplos de alegria cultural escolar vivida pelos personagens literários, mas busquei
nos textos potência para a criação de proposições pedagógicas que fomentem a
alegria cultural escolar. No ensaio que ora se finda, as alegrias buscadas foram as
alegrias políticas, portanto, se os livros Quem roubou o meu futuro? e Mudanças no
galinheiro mudam as coisas por inteiro se apresentaram como mais potentes para o
diálogo com o movimento estudantil de São Paulo, fato que capturo do cenário
educacional brasileiro contemporâneo como exemplo de alegria política, acredito que
esses dois livros apresentam a potência para o fomento das proposições pedagógicas
pretendidas. Parafraseando Georges Snyders (1988), vejo nesses livros uma forma
de colocar o cultural no mesmo nível da vida dos estudantes e afirmar que sobre o
plano cultural também é possível conhecer a satisfação de agir e contribuir para com
os avanços sociais.
74 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
135
4 Confidências a um doce monstrinho
Eu vivo debaixo das roupas, pendurado em cabides, muito prazer em conhecer você, meu nome é Cabidelim e sou um monstrinho armarento e cabidento. (ORTHOF, 2004a, p. 68)
Numa noite de insônia, eu recordava as palavras de Mirian Goldenberg aos
jovens pesquisadores75. No texto Carta a um jovem pesquisador, a socióloga reflete
sobre as alegrias e tristezas do mundo acadêmico, além de destacar as dificuldades
que muitos pesquisadores compartilham ao desenvolver pesquisas de Pós-
Graduação. Ao voltar os meus olhos para porta do meu armário, estranhei ao vê-la
entreaberta. Quando fui fechá-la, vi que algo pulara dele, mas a escuridão do quarto
não permitiu que eu identificasse quem, ou o que, estava à minha frente.
Aproveitei a proximidade do interruptor de luz e, após iluminar o ambiente, vi
quem ali estava: o monstrinho Cabidelim76. Desinibido, o monstrinho pulou em meu
colo e começou a perguntar que olheiras eram aquelas no meu rosto, qual o motivo
da minha cara de sono. Quis saber se eu estava triste. Antes que eu começasse a
falar, Cabidelim, mais rosado do que eu, esperava e, com a sua violeta na cabeça, me
abraçou com os seus braços ouvintes. Cabidelim já fora apresentado na seção Ponto
de tecer pesquisa, mas precisamos rememorar que o monstrinho tem braços
encravados no lugar dos ouvidos e, para ouvir melhor, ele abraça as pessoas.
Contei a Cabidelim que o que eu sentia era o oposto da tristeza, era uma grande
alegria. O monstrinho pediu que lhe fizesse o obséquio de contar, de uma maneira
melhorada, aquela história. Estranhei o vocabulário de Cabidelim, mas lembrei que
ele era doutor pela Escola Superior de Confidências, por fim, decidi contar.
Comecei dizendo que eu estava concluindo a textualização da minha pesquisa
de Mestrado, em que eu havia estudado a alegria cultural escolar em diálogos com os
escritos de Sylvia Orthof, mas não sabia bem como escrever a conclusão do texto,
afinal, a história de uma pesquisa pode ser contada de mil formas (ORTHOF, 1996).
Como já escrevi, Cabidelim era um monstro diplomado, doutor-formadíssimo, por isso,
tentando me ajudar, ele sugeriu que eu falasse sobre a minha pesquisa. Disse que
tinha contatos na Escola Superior de Confidências e que falar com monstrinhos
75 Referência ao livro Noites de insônia: cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador, de Mirian
Goldenberg. 76 Personagem criado por Sylvia Orthof na história Cabidelim, o doce monstrinho.
136
graduandos poderia me ajudar a concluir a minha dissertação. Aceitei a sugestão de
Cabidelim e comecei a preparar a exposição da minha pesquisa para os monstrinhos
da Escola Superior de Confidências.
Decidi que iniciaria a apresentação com um excerto do livro Ave Alegria, de
Sylvia Orthof, visto que nele me inspiro para composição do título da minha
dissertação. A leitura do excerto seria uma porta para dizer aos monstrinhos
graduandos que, no curso da pesquisa, estudei as possibilidades de construção de
proposições pedagógicas sobre a alegria cultural escolar com base na leitura do
universo literário de Sylvia Orthof, com destaque para estes títulos: A onça de Vitalino,
Sonhando Santos Dumont, Cadê a peruca do Mozart?, Papos de anjo, Quem roubou
meu futuro?, Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro, Ervilina e o Princês
ou Deu a louca em Ervilina e O fantasma travesti. Também diria que, com a pesquisa,
objetivei inserir no debate sobre a alegria cultural escolar, proposições pedagógicas
fundamentadas na leitura do universo literário de Sylvia Orthof.
Dito isso, discorreria um pouco sobre o conceito motor da minha pesquisa, a
alegria cultural escolar. O conceito cunhado por Georges Snyders (1995), se refere à
alegria construída através do contato entre os estudantes e o patrimônio cultural da
humanidade na escola e através da escola.
Após essas falas iniciais, eu contaria que a pergunta de pesquisa me conduziu
a dois caminhos que a todo instante se cruzaram. O primeiro deles me levou a
mergulhar no universo literário de Sylvia Orthof, a ler os livros sob uma concepção
polissêmica de leitura e a elaborar dois motes “Sylvia Orthof e o patrimônio cultural da
humanidade” e “Sylvia Orthof e a política. O segundo caminho me conduziu à pesquisa
empírica, ela foi desenvolvida com estudantes universitários, de Pedagogia, Letras e
Bacharelados Interdisciplinares, estudantes de duas turmas de EDC 306 – Leitura e
Produção de Textos, ministrada pela Profa. Lícia Beltrão, na Faculdade de Educação
(FACED/UFBA), nas quais eu realizei o Estágio Docente Orientado.
Os dois caminhos foram geradores de dois ensaios. Os ensaios foram
produtores de ficcionalidades, para tratar delas, como já exposto em Ponto de tecer
pesquisa, recorri às formulações do filósofo alemão, Hans Vaihinger, nas quais ele
reflete sobre o lugar de importância da ficção para o fazer científico.
No primeiro dos ensaios, intitulado Dos trilhos às trilhas da invenção, da música
e das artes visuais: Sylvia Orthof e Tato Gost em diálogos intertextuais, eu convidei
os leitores a uma viagem pelos livros que compõem o mote “Sylvia Orthof e o
137
Patrimônio Histórico da Humanidade”, foram eles: A Onça de Vitalino, Sonhando
Santos Dumont e Cadê a peruca de Mozart?. Nesse esse ensaio, também estudei e
compartilhei o processo de criação de proposições pedagógicas pelos estudantes de
EDC 306 – Leitura e Produção de Textos. As proposições objetivaram o fomento da
alegria cultural escolar e foram criadas pelos estudantes a partir das produções
literárias de Sylvia Orthof já citadas.
No segundo ensaio, que recebeu como título Papos de anjo: conversas sobre
literatura, alegrias políticas e escola, eu fiz uma leitura das obras de Sylvia Orthof que
compõem o mote “Sylvia Orthof e a política”, foram elas: Papos de anjo, Quem roubou
o meu futuro?,O fantasma travesti, Mudanças no galinheiro mudam as coisas por
inteiro e Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina. Nesse ensaio as obras foram
lidas em diálogo com o conceito de alegrias políticas, de Georges Snyders,
valorizando um acontecimento do cenário político e educacional brasileiro
contemporâneo: o movimento de luta contra reorganização escolar no estado de São
Paulo, que, entre as suas ações, envolveu a ocupação das escolas por parte dos
estudantes. Em sua textualidade, criei um diálogo ficcional entre Sylvia Orthof e Fanny
Abramovich, motivada pelas marcas de afeto encontradas nas obras das autoras,
especialmente nos livros Sylvia sempre surpreendente, de Fanny Abramovich, e Livro
aberto: confissões de uma inventadeira de palco e escrita, de Sylvia Orthof.
Por falar em afeto, retomaria o exposto em Ponto de tecer pesquisa, e trataria
da importância do conceito de afeto na minha pesquisa. Falaria que fora importante,
para compreensão da alegria cultural escolar, descobrir que Snyders, ao elaborá-lo,
recorreu à filosofia de Spinoza, quando o filósofo escreve sobre as afecções. Para
Spinoza (2009), a alegria é o em afeto que aumenta a potência de ação do humano.
Outro conceito de afeto, importante para minha pesquisa, foi o de Luciana di Leone.
Recupero a citação: “o afeto, ao mesmo tempo, ancora e mobiliza, inscreve e
endereça, identifica e propicia o devir, estabelece genealogias e tira os filhos de casa”
(LEONE, 2014, p. 1384) 77. Se o conceito de afeto de Spinoza colaborou com a minha
compreensão da alegria cultural escolar, o conceito de Leone colaborou com a minha
reflexão sobre a formação de famílias estéticas, conceito que colhi em Sant’Anna
77 Na citação “p.” corresponde à “posição”, visto que o texto foi lido em um leitor digital cujas páginas não são
numeradas.
138
(1994), e também para pensar sobre o lugar de Sylvia Orthof e Fanny Abramovich na
família estética construída por mim.
Quando eu estava a ponto de descrever a organização dos textos, senti um forte
abraço de Cabidelim que sussurrava ao meu ouvido: lembre-se, você falará para
monstrinhos da Escola Superior de C-O-N-F-I-D-Ê-N-C-I-A-S. Quais inquietações
surgiram no correr da pesquisa? O que foi aprendido? O que não foi respondido?
Comecei a pensar nas perguntas do monstrinho e mudei os rumos do texto.
Resolvi continuar o planejamento da minha exposição, contando que aprendi
que a alegria cultural é uma via de mão dupla. Não é possível partilhar a alegria
cultural sem vivê-la. Portanto, realizar uma pesquisa envolvendo a alegria cultural
escolar, é viver a alegria cultural escolar. Como pesquisadora, assumi um
compromisso com a alegria e, nesse compromisso, me dediquei a compreender as
facetas da alegria, a buscar os vestígios dessa alegria.
No movimento de compreender as facetas da alegria cultural escolar, descobri
as alegrias do difícil, aprendi que a alegria não é serenidade satisfeita
(SNYDERS,1993). Recordo quando os amigos me perguntavam sobre a pesquisa, e
eu sempre respondia que, apesar das dificuldades próprias de uma pesquisa de
Mestrado, eu estava alegre. Afinal, seria um paradoxo me dedicar a pesquisar a
alegria e não estar alegre. Confesso que dizia essas palavras sem ter me dedicado a
uma reflexão sobre elas, porém isso mudou quando, numa reunião de orientação, fui
chamada a ficar atenta aos efeitos da pesquisa na minha formação.
No constante movimento de leitura e releitura da obra de Snyders, encontrei
duas formulações que foram muito caras para compreensão desses efeitos. A
primeira formulação foi a seguinte: “Buscar a alegria, empenhar-se com vistas à
alegria é também sentir a angústia, por certo em sua aspereza, mas igualmente em
sua força criadora, que nos impede de estagnar numa dada etapa” (SNYDERS, 1995,
p. 19).
Desenvolver uma pesquisa de Mestrado, para mim, se configurou uma alegria
difícil. Difícil, porque os desafios me alegraram, mas também me trouxeram angústias.
Angústias que ora se expressaram como estímulos, ora como asperezas. Portanto,
quando eu respondia às perguntas sobre a pesquisa dizendo que, apesar das
dificuldades próprias de uma pesquisa de Mestrado, eu estava alegre, eu
também respondia que reconhecia que, na dificuldade, também reside a alegria.
139
É preciso registrar que mergulhar no universo literário de Sylvia Orthof e com ele
estabelecer diálogos também foi uma alegria difícil, porém essa dificuldade não foi
áspera, foi desafiante. Como valorizar a diversidade da obra de Sylvia e fazer uma
seleção que atendesse aos objetivos da pesquisa e respeitasse as suas limitações?
Foi com essa inquietação que viajei pelo universo literário de Sylvia Orthof. Visitei o
planeta dos contos de fadas, peguei carona nos cometas-poemas, explorei as
galáxias dos textos autobiográficos e autoficcionais, me perdi nas constelações dos
textos dramáticos.
Na medida em que seguia pelo universo, fui fazendo escolhas dos lugares aos
quais eu precisava voltar e explorar com mais vagar, observando onde havia sinais
mais expressivos de alegrias culturais. Assim, os motes da pesquisa foram
compostos, mas não sem dificuldade, afinal, cada livro se apresentava como
possibilidade de abordagem de uma faceta distinta da alegria cultural escolar.
Sabendo que outros livros também eram caros à pesquisa, embora optando por não
incluí-los nos motes, eles também fizeram parte da pesquisa, seja inspirando a sua
textualidade, como Ponto de tecer poesia, ou brevemente citados, como Uxa, ora
fada, ora bruxa. Contaria também, como o fiz na seção introdutória da dissertação,
que, após mergulhar no universo literário de Sylvia Orthof, me dediquei a buscar
vestígios da alegria cultural escolar na empiria com os estudantes de EDC 306 –
Leitura e Produção de Textos.
Ao buscar os vestígios da alegria cultural escolar, aprendi sobre as suas
sutilezas. Entendi que a alegria cultural escolar nem sempre se apresenta como uma
árvore frondosa, por isso vi que era necessário aprender a colher sementes. Comecei
a colher sementes com os estudantes de EDC306 Leitura e Produção de Textos, ao
observar as aulas, ao apreciar os textos escritos por eles, nas conversas durante as
aulas-passeio. Dessa maneira, pude reconhecer a potência para alegria cultural
escolar na curiosidade intelectual de um estudante frente à obra de um escritor e
também no diálogo tecido por uma estudante entre um texto lido como clássico e um
repertório contemporâneo.
Após colher as sementes, percebi que a alegria cultural escolar já se fazia
presente nas turmas e comecei a mediação das aulas sobre a alegria cultural escolar.
Foi durante essas aulas e no processo de construção de suas proposições, que
comecei a ver a via de mão dupla da alegria cultural escolar também entre os
140
estudantes. Percebi que a potência para alegria cultural escolar, expressa nas
proposições construídas, estava relacionada às alegrias vividas.
Ver a via de mão dupla da alegria, entre os estudantes, me fez refletir sobre o
meu processo de formação e o dos estudantes. Nesse movimento de reflexão, me
encontrei com a segunda formulação de Snyders que foi cara à minha compreensão
sobre os efeitos da pesquisa em minha formação:
Ter confiança na alegria é também um dever para com o próximo, pois preciso de minha alegria para ficar disponível aos outros - e gostaria de poder convencê-los a participar da alegria, porque ela é inspiração a unir, a comunicar, a partilhar a desfrutar em comum. (SNYDERS, 1995, p. 17)
Percebi que a confiança na alegria colaborava com a criação de comunidades.
Senti-me unida aos estudantes na alegria cultural escolar e acredito que o desejo de
partilhar, comunicar e desfrutar em comum, inspirado pela alegria, me motivou a, no
primeiro ensaio da dissertação, Dos trilhos às trilhas da invenção, da música e das
artes visuais: Sylvia Orthof e Tato Gost em diálogos intertextuais, convidar os
estudantes a viajar comigo, foi uma forma de partilhar com eles as minhas descobertas
sobre os diálogos entre a alegria cultural escolar e a produção literária de Sylvia
Orthof.
No desejo de partilhar a alegria cultural escolar, também conversei muito sobre
o assunto com outros amigos acadêmicos e me deparei com perguntas difíceis de
serem respondidas, a citar: como ser alegre na universidade? Para essa pergunta,
acredito que não haja apenas uma resposta, mas muitas respostas possíveis.
Pensando nos caminhos para encontrar possíveis respostas, volto à ideia de
“comunidade de leitores” proposta por Jorge Larrosa (2017) no livro Pedagogia
Profana, já citado no ensaio Papos de anjo: conversas sobre alegrias políticas,
literatura e escola. Larrosa compreende uma comunidade de leitores como uma
comunidade em que os sujeitos estão implicados na amizade de aprender juntos,
considerando as singularidades, e implicados no se en-con-trar do aprender. Acredito
que o encontro com o patrimônio cultural da humanidade, numa comunidade que
preze o aprender a aprender na amizade, pode ser um caminho para pensarmos a
construção de alegrias culturais no meio universitário.
Quando eu me preparava para discorrer sobre outra inquietação, senti um forte
abraço de Cabidelim, que me fez recordar que eu preparava uma aula para os
monstrinhos da Escola Superior de Confidências. Com sua franqueza singular, o doce
141
monstrinho me disse que eu não teria um semestre inteiro, seria apenas uma aula.
Entendi que chegava a hora de concluir o planejamento da minha fala.
Por fim, quero ainda fazer duas considerações aos monstrinhos. A primeira delas
é: os achados da pesquisa, resultados do diálogo entre a produção literária de Sylvia
Orthof, a alegria cultural escolar e a empiria realizada com os estudantes apontam
para a potência da literatura, para promoção de alegrias culturais escolares em
diferentes áreas do conhecimento, como a política, as artes plásticas, a história, a
música e a própria literatura.
E como segunda consideração, quero enfatizar que a alegria cultural escolar é
uma conquista instável, a todo o momento deve ser cuidada. Os elementos da não-
alegria, como as desigualdades sociais e os problemas educacionais, visto a sua
urgência, podem nos fazer questionar a importância do encontro com o patrimônio
cultural da humanidade. Mediante isso, eu me inspiro nas palavras de Antonio
Candido (2011), ao pensar a literatura como um direito humano, e proponho que
pensemos o encontro com o patrimônio cultural da humanidade como um bem
incompreensível, algo indispensável à vida. Crendo no encontro com o patrimônio
cultural da humanidade como um bem incompreensível, em meio às asperezas e às
angústias, podemos encontrar potência para exclamar: ave alegria!
Ao terminar a preparação da minha apresentação na Escola Superior de
Confidências, Cabidelim e eu nos olhamos e sorrimos, pois também havia encontrado
uma forma de concluir o meu texto dissertativo. Meu amigo Cabidelim é uma graça de
monstrinho, além de ótimo conselheiro, ele é muito abraçador (ORTHOF, 2004a).
142
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152
APÊNDICE A – BIOGRAFIA DE SYLVIA ORTHOF PARA ABERTURA DAS
ATIVIDADES NAS ESCOLAS
A FADA CARIOCA
Jamilly Starling Santos de Jesus
“Você viu? Você ouviu?”
Entre o conto
E o “Faz de conto”,
Eu decido contar
“Esse raio de história”,
De um “livro que ninguém vai ler”.
Lá pras bandas de Petrópolis,
A cidade imperial,
Num dia de “Ciranda de anel e céu”,
Dona Gertrud e seu Gehard
Disseram “Ave alegria”,
Pois nascera sua filha Sylvia
Que “ora foi fada e ora foi bruxa”.
Sylvia, quando criança,
Gostava de “histórias de perna-fina”,
“Engatadas”, “enroscadas”, “avacalhadas”
“Curtas e birutas”,
“De arrepiar o cabelo”.
Nos seus “vários quinze anos”,
153
Sylvia, também chamada de Sylvia Orthof,
Foi atriz e “guardachuvou doideras”.
Era um tal de “Pererê na Pororoca”,
“Um saracotico no céu”.
Depois, decidiu
Escrever para crianças.
E como contou histórias!
“Contos de estimação”,
“Contos de escola”,
“Contos para rir e sonhar”.
Contava sobre tias, avós,
Velhas, fadas, bruxas
E até monstrinhos “zoiudos”.
Há vinte anos
Sylvia foi “tecer poesia no céu”,
Foi bailar com “Dona noite doidona”,
Foi fazer uma “folia dos três bois”.
Mas antes, deixou para nós
Mais de cem livros publicados,
Como se dissesse, “chorem, não!”
Podemos “jogar conversa fora”
Sempre que houver um “Livro aberto”,
Afinal, “A poesia é uma pulga”
154
ANEXO A – PRODUÇÃO DE SEVERINO PARA ATIVIDADE “SE A MEMÓRIA
NÃO ME FALHA”
UNIVERSIDADE FEDERAL DABAHIA – Faculdade de Educação
EDC306 – Leitura e Produção de Textos
Docente- Lícia Brandão
Discente- Jarbas da Silva Marques
“Se a Memória Não me Falha”
As Moiras e a Linha da História
Conta-se que, certa vez, num reino distante, distantíssimo!,o povo do lugar foi
acometido do terrível feitiço de Apatia. Cada habitante daquele reino desenvolveu
graus variados de desdém para com a vida, de tal modo que felicidade se tornou
palavra que foi riscada do dicionário do povo. Ninguém se importava com nada ou
com ninguém. Tanto fazia se chovia ou fazia sol...! Se raiava o dia, ou caía a noite.
Como se diz por aí, “ninguém sabia o que comera ontem”. E porque não eram mais
admiradas, as flores sucumbiam antes de abrirem seus botões em cor e aroma. E
,como não era mais contemplada, a lua minguou, e o céu cobriu-se de nuvens gris.
Acontece que as três moiras que viviam no alto do Monte Olimpo, reclusas em seu
covil, Atropos, Láquesis e Cloto Lícia,e que passavam a eternidade ocupadas com os
infortúnios dos homens do lugar e o inexorável destino das suas vidas, fazendo uso
da roda da fortuna, com a qual fiavam incansavelmente suposições de como o mundo
mortal poderia vir se tornar, depararam-se com esse paradoxo, em ponto de cruz, na
fluência de composição do tecido da vida. Como então desfiar o nó e refiar a manta
que guardasse a felicidade geral?
Diante aquele ponto em cruz indecifrável que perturbava a estrutura do tecido,
Atropos, aquela que trazia a tesoura nas mãos e era responsável por encerrar os
destinos, propôs que se cortasse a linha naquele ponto em nó, embora soubessem
que, feito isto, encerrar-se-ia definitivamente o destino daquele povo. Todo o reino
sucumbiria ao esquecimento.
Cloto Lícia, aquela que segurava o fio da vida, compadecida com os homens, não
compartilhava com aquela decisão e propôs às outras duas moiras que consultassem
o Oráculo a fim de tentarem desvendar os caminhos da alma humana, antes de
155
tomarem uma decisão tão radical. O Oráculo talvez lhes esclarecesse como desatar
as tramas de Apatia no inconsciente daquele povo.
E do verbo a ação se fez.
Chegando as moiras ao sítio onde o Oráculo repousava e indagarem uma possível
solução sobre o que haveria de ser feito pelo povo daquelas distantíssimas terras,a
divindade levantou-se, afastou com as mãos o dread que lhe escondia as feições,
aproximou-se da fogueira que queimava no centro da caverna, apanhou e cutucou
com um graveto o fornilho do narguilé que havia ao lado, segurou e levou a mangueira
à boca. Pitou sete vezes. Sete vezes soprou contra o fogo a fumaça. E ,com uma voz
grave, que assombrou a caverna, respondeu assim:
- Sou quem sou porque somos todos nós.
As irmãs entreolharam-se contrafeitas, sem entender o sentido daquelas palavras.
Afinal estavam ali em busca de uma orientação! Mas o Oráculo não titubeou diante do
descontentamento das moiras. Agachou-se, riscou a terra com a ponta dos dedos num
transe xamânico e, observando a estrutura das combinações dos riscos, finalmente
afirmou:
- O hoje só pode ser construído pela ressignificação do que foi dito ontem.
Devolveu os cachos do dread sobre a face e, após entrar em novo transe, silenciou.
As moiras voltaram ao seu sinistro covil em polvorosa. Não entendiam como aquelas
palavras poderiam vir ajudá-las a resolver o dilema da causa humana.
Acontece, caros ouvintes, que as palavras de um Oráculo não foram ditadas para
serem entendidas pela razão pura e simples. Por isso mesmo, só três noites exatas
depois, Clotos Lícia teve uma intuição que lhe ocorreu em sonho. Desceria ao reino
dos homens e escolheria o primeiro dos campônios que passasse pela estrada,
submetendo-o a uma prova específica. Se o escolhido passasse pela provação, o
destino dos demais estaria assegurado, e o feitiço de Apatia, finalmente, seria
quebrado, desfazendo-se os nós do destino. Caso contrário, a única solução visível
seria aquela dada por Atropos: que o reino sucumbisse!...
As outras irmãs concordaram, e Cloto Lícia desceu à terra na forma de uma chuva de
ouro, pelo primeiro raio de sol da manhã, justamente no centro do povoado. Logo de
cara, encontrou um camponês muito formoso que passava distraído. A moira, que não
pretendia disfarçar sua divindade, logo foi reconhecida pelos demais campônios que
se reuniram à sua roda para ouvir as razões daquela entidade ter descido das terras
do divino à humilde terra humana. Quando todos estavam finalmente reunidos, Cloto
Lícia proclamou:
- Esse homem que vos aponto foi o primeiro que encontrei ao descer neste reino. Por
isso, tornou-se o eleito que será submetido a uma provação que selará os destinos do
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vosso reino. Para tal feito, me seguirá pela estrada, durante todo o dia de hoje, e
deverá estar atento a tudo que lhe ocorrer durante este dia e a tudo que lhe for dito.
Amanhã, me revelará minunciosamente os detalhes do que foi aprendido.
O pobre camponês ficou aturdido com a responsabilidade a ele conferida porque
ultimamente tudo lhe parecia tão desmotivante... e a atenção lhe escapava facilmente.
Mas sabia que não poderia escapar das determinações das divindades. E por isso
saíram, mortal e imortal, pela estrada afora.
Na manhã seguinte, todo o povo apreensivo se reuniu na praça para assistir à
sentença. O coração do camponês estava acelerado quando ele iniciou suas
lembranças sob o olhar das moiras:
- Se a memória não me falha, encontramos na estrada a ninfa Laíssa que, após uma
profusão de ideias, resolveu presentear Cloto Lícia com uma receita mágica e
saborosa que acabara de realizar.
Dito isto, a trama que a moira Laquesis trazia enrolada nas mãos mudou seu matiz de
cores.
- Se a memória não me falha, encontramos uma série de cartazes produzidos pelo
povo, ao longo da estrada, então Cloto Lícia apontou-me a frase como um gênero
textual. Logo em seguida, o Bruxo Bakhtin apresentou-se e nos disse que toda
enunciação que assuma uma função sociocomunicativa será entendida como um
gênero. Também considerou os aspectos variantes e os aspectos invariantes do
gênero frase. Segundo ele, extensão, leitura rápida, linguagem verbal são aspectos
invariantes do gênero frase. Sobretudo, ao depararmo-nos com um cartaz onde havia
uma sigla muito especifica e fora do entendimento de todos, Cloto Lícia alertou sobre
a característica indispensável da universalidade da frase enquanto gênero, para que
não caíssemos nesse equívoco.
O camponês observou que a seda refez, adquiriu nova textura e passou a dançar no
vento. Isso o estimulou continuar.
- Se a memória continua a me ajudar, ao passarmos pelo rio do tempo, descobrimos
que toda palavra carrega temporalidade. Cloto Lícia alertou que todos os gêneros
exigem de nós uma leitura situada no sentido de reorganizar o texto dentro do contexto
de sua função sociocomunicativa.
O povo começou a vibrar, porque a urdidura do tecido que Laquesis trazia nas mãos
afrouxou seus nós. E porque também perceberam que as nuvens que escondiam o
azul do céu já não estavam mais ali. O camponês entusiasmou-se:
- Se a memória não me falha, antes de seguirmos adiante, o Bruxo Bakhtin nos alertou
que o texto é a manifestação viva da linguagem e que substituir o formalismo
gramatical é uma das formas de tornar o texto mais acessível.
157
Nesse instante, todos ali na praça foram invadidos por um perfume familiar, que há
muito não experimentavam. Eram as rosas que haviam despertado para ouvir as
reminiscências do camponês. E os nós na trama do tecido da vida afrouxaram-se mais
ainda.
- Se a memória não me falha, enquanto continuávamos a jornada sobre o dia, Cloto
Lícia alertou que os gêneros textuais não podem ser aprendidos apenas pela sua
forma, como um produto estático, mas precisam ser compreendidos primeiramente
pelo viés dinâmico da sua produção. Os gêneros estão relacionados e concorrem
dentro de certa atividade sociocultural como formas relativamente estabilizadas.
As moiras ficaram boquiabertas pois perceberam que aquele ponto em cruz paradoxal
estava se desfazendo.
- Se a memória não me falha – continuou o camponês – chegamos, finalmente,
quando a tarde caia, a uma vereda onde várias fadinhas realizavam um sarau de
poesias para homenagear a moira, mas antes fomos convidados a modelar os nossos
melhores desejos pra ofertar e compartilhar. Saímos às pressas das comemorações
porque a noite aproximou-se não sem antes sermos convidados para, na semana
seguinte, irmos ao castelo de Nildão colher pedrinhas preciosas.
Todo o povo vibrou. Os nós do tecido da vida finalmente se desfizeram completamente
e as moiras puderam retomar o seu ofício. Os habitantes do reino ficaram tão
felizes!..., mas tão felizes e agradecidos, que resolveram declarar aquele formoso
camponês como seu legítimo rei. E, somente após todos terem aprendido que a vida
exige atenção, puderam viver felizes para sempre.
Ah! Conta-se que aquele formoso camponês exerceu o melhor reinado da história
daquele povo e ficou conhecido como Jarbas I, o Comunicador.
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ANEXO B – PRODUÇÃO DE LILA PARA ATIVIDADE “VAI PARA O TRONO OU
NÃO VAI?”
Vida, louca vida,
Vida breve.
Se eu não posso te levar,
Quero que você me leve.
Agenor de Miranda Araujo Neto,
Moço boêmio do Leblon.
Rio de Janeiro, cidade maravilhosa.
Aqui, só se for a dois.
Más cabe Caetano, Elis e Gal.
Não quero esquecer Cartola, Maysa e Noel Rosa,
O tempo não para.
Fotografia lá foi estudar,
Nos Estados Unidos da América.
Más, por lá não quis ficar.
O mundo é um moinho.
Tem que ter o Rock’n, roll, Lá vem Barão Vermelho,.
Toca Joplis, Led Zeplin e também os Rolling Stons.
Faz parte do meu show.
E para o dia nascer feliz, beat. Beat?
Alô! Alô Cazuza
Lindinalva Jesus Luz
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Literatura dos poetas malditos
Exagerado!
Viveu como quis, liberdade total
O teu futuro é duvidoso
Bete balanço meu amor...
Sucesso de bilheteria se tornou
Fantasiando um segredo
De um menor abandonado
E disco de ouro para o poeta mirim.
Era bem assim.
Corpo de homem, alma de criança.
Solidão que nada!
Codinome beija flor.
Voava tanto, com suas lindas asas.
E uma pneumonia foi tratar.
Más, foi o HIV que o achou de levar.
Jogado aos seus pés ficou o país.
Um grande vazio deixou,
O filho do João e da dona Lucinha.
Porque o nosso amor a gente faz.
E a você, grande Cazuza!
Todo o amor que houver nesta vida.
160
Pode seguir a tua estrela,
Porque aqui, o tempo não para.