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1.Introdução
Este artigo busca pensar os cemitérios em Salvador a partir de etnografias
realizadas na Quinta dos Lázaros e no Campo Santo, num total de quatro visitas entre os
meses de abril de maio de 2009, em que foram entrevistados três coveiros dois
vigilantes um porteiro, e um diácono.
Investiguei possíveis diferenças entre eles por localizaremse em variadas partes
da cidade e, sobretudo por atenderem a públicos diversos, pois o primeiro é reconhecido
como um lugar onde são enterradas pessoas pobres ou de classe média baixa, em sua
maioria menos notórias, dentre elas policiais, funcionários públicos, indigentes, mas
uma parcela desses mortos detém uma identidade pública bastante marcada, mesmo que
negativamente, malfeitores, e pessoas principalmente ligadas ao mundo do crime e
especialmente ao trafico de drogas, tanto que meu informante citou como bandidos
eméritos dois cangaceiros do bando de lampião, um deles de alcunha o “azulão”, como
famosos. O segundo abriga em seu solo nomes de destaque na sociedade soteropolitana,
desde filhos de artistas famosos, como o de Sheila Carvalho, a morena do "É o tcham",
que foi o primeiro famoso que meu informante citou, Castro Alves, Antonio Carlos
Magalhães e seu filho Luiz Eduardo Magalhães, Thales de Azevedo, Lauro de Freitas,
dentre outros, o que permite que se compreenda a existência de um roteiro turístico que
inclui uma visita às sepulturas de pessoas eméritas, o que pode ser pensado como uma
“... forma de consumo de lazer em que se dá ênfase ao consumo de experiência e prazer
(tais como parques temáticos, centros turísticos e recreativos)...” (FEATHERSTONE,
1995, p.137).
O campo Santo não é o único a possuir um roteiro turístico.Em Buenos Aires,
visitase a Recoleta, e em Montevidéu há um passeio noturno e guiado no cemitério
público municipal mais antigo da cidade ambientado pela música de quatro mulheres
que tocam violino, violoncelo, flauta e oboé em diversos pontos do local, de modo que
o necroturista1, caminha pelas alamedas e desfrutas de toda a beleza da arte cemiterial,
cujos ingressos num total de cem, estavam esgotados na primeira vez que o roteiro foi
realizado, em 26 de março de 2009.2
1 nome dado pelo artigo ao turista de necrópole.2 http://www.mochileiros.com/passeioturisticoemcemiteriot32514.html
1
2.Histórico
No século XVI jesuítas portugueses construíram, afastado do centro da vila uma
casa para repouso para religiosos e alunos uma Quinta que hoje abriga o arquivo
público da Bahia. Em 21 de agosto de 1787, foi inaugurado um hospital para leprosos
sob a invocação de São Cristóvão dos Lázaros3.A Quinta passa a se chamar “dos
Lázaros”, batismo que serve para designar um dos cemitérios dando nome ao bairro,
destinado à época a leprosos (REIS, 1991, p.197).
O Campo Santo, pertence à Santa Casa de Misericórdia, irmandade criada em
Portugal e que foi no Brasil a congregação que teve a primazia da administração dos
primeiros cemitérios, no momento em que os sepultamentos deslocaramse de dentro
para fora das igrejas, administrando também o do Campo da Pólvora, que abrigava a
escória da sociedade: suicidas, criminosos, indigentes, escravos e rebeldes.(REIS, 1991,
p.193). Fundada em 1549, logo após a criação da cidade por Thomé de Souza, teve
desde então como princípio fundamental... “praticar a caridade e prestação de
assistência médica e social aos enfermos e desamparados”4, atuando não só com os
mortos mas também com os vivos, pois estava sob sua responsabilidade o primeiro
hospital da recém fundada capital. Foi alvo da cemiterada, revolta da população local,
capitaneada pelas ordens religiosas e ordens terceiras além de outras organizações
leigas, que aconteceu em Salvador em 25 de outubro de 1836, ocasião em que
destruíram a pedras e paus e fogo, o recém construído Campo Santo, manifestandose
contra a lei que proibia enterros em igrejas, mas também contra a concessão do
monopólio da Santa Casa na administração de enterros por 30 anos (REIS, 1991, p.13).
3.Etnografia na cidade
Estudar a cidade, fazer antropologia na cidade, é sempre um desafio na medida
em que não há uma homogeneidade. Apesar de alguns autores defenderem que a
acumulação capitalista tende a homogeneizar os setores urbanos da sociedade, entendo
que a visão mais esclarecedora é o reconhecimento de dois processos simultâneos e 3 informações constantes no site www.saltur.salvador.ba.gov.brsite4 site da anta Casa de Misericórdia de Salvador (www. santacasaba.org.br)
2
complementares, defendida por Oliven, que na pesquisa realizada em Porto Alegre,
percebeu que:
“... membros de diferentes estratos sociais (a grande maioria dos quais passou a maior parte de suas vidas em grandes cidades) têm práticas e orientações semelhantes em áreas que envolvem dimensões de vida instrumentais (tais como trabalho) como também em aspectos mais fortemente sujeitos a influencias ideológicas (tais como educação e questões políticas genéricas). Eles, entretanto, tem diferentes práticas e orientações em áreas que envolvem dimensões de vida mais pessoais(tais como família, religião e vida associativa) e em aspectos que tem conseqüências e significados diversos de acordo com a posição social (tais como questões políticas específicas).” (OLIVEN,1980, p.35)
Por esse motivo, a pesquisa que realizei priorizou a maneira como os indivíduos
pensam define e articulam os enterros porque o fato de compartilharmos patrimônios
culturais com os membros da nossa sociedade, não nos faz esquecer que a cidade tem
muitas descontinuidades, onde as visões de mundo são diferenciadas e contraditórias,
sendo justamente isso que permite, pesquisar grupos diferentes do nosso na cidade, pelo
constante movimento de compartilhamento de valores gerais e estranhamento de outros
(VELHO 1980, p.16), e porque as interpretações e os esquemas locais de significação
são muito importantes (HANNERZ, 1997, p.11).
4. A localização
Pensar nas especificidades é pensar na localização dos mesmos no contexto da
cidade. A Quinta dos Lázaros, fica distante do centro na Baixa de Quintas, um bairro
pobre, com pequenos comércios locais, instalado numa longa rua em aclive, circundado
de três outros cemitérios, o da Ordem Terceira do Carmo, da Ordem Terceira de São
Francisco, e o Israelita que formam um largo, cujo acesso se faz a pé ou de carro, pois o
transporte público passa no sopé da ladeira. O Campo Santo encontrase na Federação,
bairro considerado de classe média, próximo a avenida Centenário, ao Barra Shopping e
a UFBA, servido por linhas de ônibus freqüentes e até estacionamento pago e vigiado.
Ambos, porém tem uma similaridade, encontramse circundados por favelas: O Calabar
faz fronteira com o Campo Santo e o Alto do céu com a Quinta dos Lázaros.
Poderíamos pensar neste passo, nos valendo de Da Matta, quando refere que no Brasil
3
qualquer estudo urbano deve tratar da dicotomia entre centro e periferia, Lázaros seria
um cemitério periférico e o Campo Santo um central, com maior importância do centro
em detrimento da periferia. Há autores como Hannerz que discordam deste
posicionamento no sentido de que”...a nova organização global da cultura não pode ser
entendida nos termos dos modelos centroperiferia existentes, mesmo daqueles que
admitem múltiplos centros e periferias.”.(HANNERZ, 1997, p. 7 apud
APPADURAI,1990, p.6)
5. Os cemitérios e suas especificidades
5.1. A Quinta dos Lázaros
É o cemitério onde se enterra de forma mais econômica, pois ele atende a um
público pobre, e de classe média baixa. Não há nele mausoléus, ou outros tipos de
túmulos suntuosos. A divisão se dá entre carneiros5 (foto 01), em oito espaços uns sobre
os outros e covas feitas na terra (foto 02), onde geralmente, são enterradas pessoas que
não podem pagar. Na terra, o número máximo de enterros por dia é de dez. O corpo
sepultado permanece três anos se for nas gavetas e 2 anos se na terra, e depois os ossos
são retirados e colocados num ossuário. Espacialmente é bem organizado, porém não há
capricho na manutenção das carneiras e nem nos corredores que dão acesso a elas, que
se encontravam mal limpos e cuidados. Um carneiro custa 400 reais e a utilização das
salas de velório 120, donde se percebe, que a despeito de atender usuários com menos
recursos, ainda é caro. No setor dos não pagantes estão os coveirosjardineiros6, que são
trabalhadores contratados, não sendo funcionários públicos e recebendo salários
menores do que os coveiros de carreira7, havendo um declarado conflito entre eles, e
uma marcante distribuição espacial em termos de atividades.
5.2 O Campo Santo
5 Gaveta ou urna, nos cemitérios, onde se enterram cadáveres.6 Meu informante assim se auto denominou, pois enterram os mortos na terra e também mantém como parte do seu trabalho
roçar , capinar , manter o “jardim” o cemitério em ordem.7 são aqueles que cuidam apenas do sepultamento nas carneiras
4
Inicialmente, é mister ter claro que há dois Campos Santos, a saber: o dos
mausoléus e carneiros, ou seja, o espaço dos pagantes e o outro que chamei de telúrico,
no qual os corpos são enterrados diretamente na terra, e gratuitamente.
O setor pagante (fotos 03, 04, 05 e 06) é todo pavimentado com lajotas e
espaços razoáveis entre as tumbas de modo que se transita com tranqüilidade entre elas,
sem precisas caminhar por sobre os defuntos. A entrada principal se dá através de um
grande portão de ferro e uma alameda com alguns degraus que desemboca na igreja,
muito bela, em cujo interior no piso encontramse muitas sepulturas, da época em que
se enterrava dentro das igrejas. Ele também possui muitas árvores que na parte mais
antiga sombreiam as lápides, permitindo um clima confortável e até refrescante nos dias
quentes. Além disso, possui muitas placas indicativas dos quadros8, e funcionários que
indicam a localização desejada. Os carneiros são mais baixos, não excedendo a cinco
gavetas dispostas verticalmente.
Na parte posterior, já fazendo divisa com a favela encontrase o local dos mortos
que não podem pagar. Esse espaço é em declive, com apenas uma parte com escadas, de
modo que o caixão para chegar lá em baixo precisar ser levado pelas mãos, pois não há
como o carro de transporte funerário alcançar o local desejado. Nesse espaço, também
quem realiza os enterros são coveirosjardineiros, que percebem um salário mínimo
mensal, com a possibilidade de ao fim de alguns anos de trabalho, ascender à posição de
coveiros, que é menor remunerada e goza de melhor status.
6. O cemitério reproduz a cidade
Toda a constituição quer espacial, quer simbólica que encontramos nas cidades,
são em maior ou menor grau reproduzidas nas necrópoles. No que respeita ao
espaçamento, os lugares por onde se caminha equivalem às ruas, com suas placas
indicativas permitindo ao visitante saber onde ele está e onde quer chegar, indicando
desta forma o endereço do morto, os quadros correspondem às quadras, além de
vizinhança temos o serviço religioso, prestado por padres e diáconos, missas, capelas,
administração do espaço, plano diretor, garis, polícia e tantas outras situações. Há os
bairros nobres, cujo metro quadrado é caro, no Campo Santo representado pelos 8 espaços semelhantes a quadras onde estão, um certo número de sepulturas.
5
mausoléus e os carneiros, estes mais acessíveis. A quinta dos Lázaros também tem
diferenças entre os espaços mais caros – pagos e os gratuitos, também possui ruas e
quadros (foto 07). A parte telúrica dos dois cemitérios reproduz o lado pobre das
cidades, pois como nos bairros populares as ruas são mal delineadas, sem pavimentação,
com acentuadas subidas e descidas, que são de difícil acesso. Para MARANHÃO (1987,
p.36), ‘‘No decurso desses últimos séculos presenciamos uma radical mudança das
práticas funerárias e dos sentimentos e pensamentos a elas associados. Não obstante,
algo permaneceu inalterado: a visível estratificação das condutas funerárias, reflexo da
existência de uma sociedade de classe.”
O status do morto em vida é mantido na morte. Se a pessoa é muito importante,
colocará seu corpo a descansar num mausoléu que identifica o status que teve em vida.
O material utilizado é caro e sofisticado, como mármore, granito, os enfeites de bronze
ou cobre, os tipos de letras que adornam a lápide em bronze, além de uma profusão de
Estátuas de anjos, Santos, deusas gregas e tantas outras que fazem parte do que é
chamado de arte cemiterial. As flores também demonstram a importância do morto,
quando a morte é recente ou ele é importante, quer social como particular e
afetivamente, o tumulo está sempre coberto de flores. Uma outra forma que podemos
perceber de distinção social é a lavação dos túmulos. É claro que de modo geral quer
num como noutro cemitério, no período que antecede ao dia de finados, é comum às
pessoas e famílias, mandarem recuperar as casas de seus mortos. Mas o que há no
Campo Santo, especificamente na parte dos mausoléus, é um exército de empregados
contratados para permanentemente, lavarem e repararem os túmulos. Podemos pensar
que a pessoa que em vida teve empregados para servirlhe em sua casa e na limpeza e
manutenção de sua vida privada continuam a reproduzir esses serviços após sua morte,
de modo que o status que teve em vida se mantém na morte, pois a tumba bem limpa,
ornada e rica, é um dos sinais que demonstram o lugar a que esse morto pertencia, como
também a estilos e maneiras compatíveis com sua classe, no dizer de Park ;“Sob essas
circunstâncias o status do indivíduo é determinado num grau considerável por sinais
convencionais – por moda e “aparência” – e a arte da vida reduzse em grande parte a
esquiar sobre superfícies finas e a um escrupulosos estudo de estilos e maneiras.”
(PARK, 1979,p.62)
6
7. Os necrotérios e a privacidade
Nessa etnografia uma das primeiras questões que surgiram diz respeito as
diferentes formas de privacidade. No campo Santo, para fotografar e transitar no espaço
cemiterial foi necessário autorização da administração. As imagens, que se encontram
no anexo deste trabalho, só foram conseguidas após minha identificação aliada a uma
narrativa detalhada do objeto de estudo, e ainda houve uma expressa recomendação de
não identificar os nomes dos mortos nem de suas famílias, o que traduz a preocupação
com a privacidade dos mortos e de seus familiares. Por outro lado, se alguém circula
com uma sacola, ou comportase com o que os guardas definem como ‘atitudes
suspeitas’ a rígida segurança intervém coibindo possíveis furtos de metais caros, ou a
utilização do espaço para a realização de trabalhos de magia, ou até a retirada de terra
de cemitério, muito usada para esses fins. Já na Quinta não há controle algum ao acesso
e nem proibição alguma de fotografar, além da circulação ser livre.
Mas há ainda um outro aspecto: a privacidade ao velar o morto. O Campo Santo
possui oito salas de velório, individuais, nas quais ao centro há um espaço para colocar
o caixão. Com janelas que abrem para a rua, bancos laterais, cortinas, banheiros
coletivos para todas as salas divididos entre masculinos e femininos, sendo um lugar
ventilado e aprazível, com castiçais para colocar velas e acomodar com conforto
parentes e amigos, e há ainda a opção de velar da igreja, utilizando o espaço da nave
central para depositar a urna funerária, incluindo missa de corpo presente, que custa 800
reais. Na Quinta, por seu turno, não há nenhuma sala de velório individual, todas são
coletivas, abrigando dois e até três urnas mortuárias simultaneamente,
independentemente de elas serem aquelas reservadas aos pagantes, como a dos não
pagantes. Na verdade o que as torna diferentes é a ornamentação, as primeiras são
revestidas de azulejos e ladeada por bancos e na segunda o espaço é mínimo, cobertos
com azulejos de péssima qualidade, sem porta, apenas sendo fechada ou uma grade de
ferro se assemelhado mais a um canil do que um lugar onde se vela um morto, e o
espaço entre as duas urnas é tão pequeno que com certeza, os parentes ficam do lado de
fora, e se chovendo estiver, tomarão um bom banho porque não há nenhuma cobertura,
que possa abrigas as pessoas.(foto 08)
7
Além da privacidade há uma marca da higienização e organização na primeira e
do afrouxamento dela no segundo. No campo Santo, há um contingente de garis que
varrem e colhem as folhas do cemitério, os coveiros e os guardas comunicamse com a
administração através de rádios, e na entrada das salas de velório há um quadro, que
relaciona as pessoas que estão sendo veladas (foto 09), e a que hora serão enterradas.
Isso vem a demonstrar o quanto a classe média e média alta valoriza sua
privacidade e sua individualidade, de modo a ter na morte um momento particular. Os
pobres, por seu turno, acostumados a viverem em espaços em que há mais socialização,
pois se observarmos, geralmente essas pessoas possuem maior proximidade física de
seus vizinhos, reproduziram estes tipos de relações na morte.
8. As cruzes e suas identificações numéricas indivíduo versus pessoa
Nos dois cemitérios telúricos, todas as sepulturas são marcadas por uma cruz de
cimento, a qual exibe apenas um numero, não um nome, que para ser identificado, o
interessado precisa buscar na administração, o registro correspondente (fotos 10 e 11).
Essa identificação com numerais é um complicador em certos aspectos, pois como os
quadros onde elas se encontram possuem partes em declive, e a ação das chuvas
provoca um deslocamento de areia morro abaixo, resulta o ocultamento das cruzes e de
seus números identitários.
A freqüência maciça a casa dos mortos se dá no dia de finados, trabalhando os
coveirosjardineiros, incessantemente para colocarem em ordem números, cruzes, e dar
cabo do mato, retirando a areia que as ocultou, pois a pronta identificação é cobrada
pelos familiares, às vezes até responsabilizandoos por eventuais danos que a chuva
tenha causado, tendo eles que recuperarem para não terem problemas com a
administração da casa.
Em contrapartida, onde estão os carneiros bem como os mausoléus há uma
identificação detalhada do morto, além do nome, também as datas de nascimento e
morte, e mensagens de seus familiares e em certos casos até fotografias. Porque esta
diferença na identificação destes mortos?
8
Da Matta defende a tese que a sociedade brasileira é marcada por um
movimento dicotômico entre indivíduos e pessoas. Desta forma, ser “indivíduo” é ser
povo, é ser nada, é não ter padrinho, é ser pobre e ter que submeter as leis e regras
gerais, é ter um tratamento igualitário, que sempre é sinônimo de tratamento inferior
(Da MATTA, 1983, p.184). Já ser pessoa é ser importante, é ter poder, é ter padrinho, é
ter notoriedade, é também se distinguir, é ser muito mais importante do que o individuo
(Da MATTA, 1983, p 179.), e que “... é a partir dessa perspectiva que nasce a
necessidade de pensar o mundo como altamente hierarquizado, pois o mundo pertence
de fato às superpessoas.” (Idem 181)
Nesta marcada hierarquização, aqueles que tem dinheiro, que são da classe
média e média alta, precisam ser pessoas, devidamente marcadas no seu status e na
reprodução de seu modo de vida, por isso suas tumbas precisam ser tão detalhadamente
identificadas, e também é o lugar onde são representadas as muitas façanhas e feitos
realizados durante suas vidas, que podem ser traduzidos nos agradecimento, carregados
de sentimentos dos familiares, e até em alguns casos, gratidão explícita de instituições
as quais foram beneméritos ou prestaram relevantes serviços.
Os pobres são indivíduos a quem lhes é legado o anonimato, gozando de menor
importância, não carecendo de uma identificação precisa.
‘... É como se tivéssemos duas bases através das quais pensássemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da repressão, seguimos sempre o código burocrático ou a vertente impessoal e universalizante, igualitária do sistema. Mas no caso das situações concretas, daquelas que a ‘vida’ nos apresenta, seguimos sempre o código das relações e da moralidade pessoal, tomando a vertente do ‘jeitinho’ da ‘malandragem’ e da solidariedade como eixo de ação. A primeira escolha, nossa unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a repressão foram feitos. Desta separação, muitas conseqüências importantes se derivam9.”(Da Matta, 1983, p.169).
Para o autor, numa cidade pequena, não se usa essa forma de fuga do anonimato,
simplesmente porque o anonimato não existe (p.170), donde se conclui a dicotomia
entre pessoa e indíviduo se faz presente na modernidade das cidades. Mas, como ser
pessoa é ser importante é estar acima na escala hierárquica, os indivíduos almejam ser
pessoas. No Campo Santo, isso ficou claro, quando numa das sepulturas numeradas, os
9 grifos meus
9
familiares e/ou amigos, colocaram por sobre a cruz numerada uma grossa corrente de
prata numa flagrante identificação de quem ali jazia, buscando uma marca de distinção.
8.2 – A hierarquia entre os coveiros
A marcada hierarquia tratada por Da Mata, existe também nos dois cemitérios
estudados, entre aos coveiros e os coveirosjardineiros. Os primeiros são os que têm
entre 10 a 15 anos de pratica, funcionários públicos ,percebendo salários mais altos e
realizando um trabalho tido como “mais fácil”, pois enterram nos carneiros, onde se
limitam a retirar a tampa de cimento, e após a entrada do caixão, cobrilo novamente.
Os segundos ficam com a parte mais difícil, pois além de terem que fazer as covas, em
dias de sol ou chuva, são responsáveis por toda a limpeza e manutenção desta parte do
cemitério que fica na terra. Assim suas funções são: roçar, capinar, limpar, arrumar a
terra, recolher o lixo, reacender os números das cruzes e refazer as covas destruídas pela
chuva, e apesar disso possuem salários menores. Meus informantes me disseram que se
com o tempo seriam elevados a categoria de coveiros. Num outro aspecto, os segundos
como trabalham com uma população carentes ou com bandidos e marginais (no caso da
Quinta) em muitas oportunidades são ameaçados pelos familiares do defunto, caso
deixem cair o caixão ao descêlo para a cova, ou se colocam com muita rapidez a areia
por sobre o caixão, relatando inclusive que a família enlutada e descontrolada pela dor
da perda, queria agredilos. Entre estes dois grupos os espaços onde cada um deles
trabalha e as funções são separadas.
9. Os espaços dos cemitérios e seus usos
Espacialmente, em ambos os cemitérios no local de terra, há um lugar reservado
para os anjinhos10. Essas crianças são enterradas separadamente, e isso é um fato
recorrente, principalmente em cemitérios que estudei anteriormente como o de São
Tomaz11. Lá os anjinhos gozavam de um lugar de honra, pois estão sepultados do lado
direito de quem entra e bem na frente do cemitério que ficava atrás da igreja.(fotos 12 e
13).
10 Anjo ou anjinho, para Câmara Cascudo é criança, ou cadáver de criança menor de cinco anos.11 São Tomaz é uma comunidade de 250 famílias aproximadamente, que dista 25 km da sede do Município de LagunaSC, que sobrevivem da pesca artesanal, agricultura e pequena pecuária, possuindo duas igrejas – católicos e crentes e dois cemitérios, onde estudei em 2008 os rituais da morte e seus cemitérios.
10
Em ambos os cemitérios, percebi diferentes ocupações do espaço em vários
momentos do dia. A Quinta dos Lázaros, que não possui vigilância, tanto que não há a
realização de velórios à noite, pela falta de segurança, o dia é utilizado para velar e
enterrar os mortos, mas a noite é o espaço para a entrega de trabalhos (foto 14) no
cruzeiro das almas12. No que respeita a invasão com fins de furto, isso não acontece,
pois não há objetos valorosos para serem furtados. No Campo Santo, o espaço diurno
até as 17:30 horas é freqüentado por funcionários, visitantes, parentes, amigos, padres,
coveiros, lavadores de túmulos, etc, mas a partir deste horário, suas portas são cerradas
e só circulam nele os guardas e os cães, realizandose velórios noturnos, mas ficam
separados do cemitério, ao qual não tem acesso.
...’As descontinuidades significativas no tecido urbano não são resultado de fatores naturais, como a topografia, ou de intervenções como o traçado de ruas, zoneamento e outras normas. Tais descontinuidades são produzidas por diferentes formas de uso e apropriação do espaço, que é preciso, justamente, identificar e analisar.Ruas, praças, edificações, viadutos, esquinas e outros equipamentos estão lá, com seus usos e sentidos habituais. De repente, tornamse outra coisa; a rua vira trajeto devoto em dia de procissão; a praça transformase em local de compra e venda; o viaduto é usado como local de passeio a pé; a esquina recebe despachos e ebós, e assim por diante. Na realidade são as práticas sociais que dão significado ou ressignificam eixos de significação; casa/rua, masculino/feminino; sagrado/profano; público/privado;trabalho/lazer; e assim por diante.”(MAGNANI, 1996 p.3839)
9.1 O cemitério ecumênico
Na etnografia realizada em São Tomaz , constatei que os rituais da morte
estavam sempre ligados à religião, fosse ela católica ou a dos crentes, de modo que
conclui, naquele estudo, que não havia nem morte, nem rituais funerários laicos. Na
pesquisa realizada nos cemitérios de Salvador, pude perceber que urbanização
influenciou consideravelmente na ritualização do morrer, pois neles são admitidas tanto
pessoas que não professam religião alguma, quanto é atribuído espaço para a
manifestação de quaisquer ritos religiosos nos enterros. Caetano13, um dos coveiros
jardineiros entrevistados, relatou que são admitidas no cemitério, quaisquer
12 Cruz existente nos cemitérios onde de homenageia todos os mortos, inclusive aqueles que não se sabe onde estão enterrados e outros que estão em outros cemitérios.13 nome fictício, para preservar a identidade do informante.
11
manifestações religiosas, sejam católicas, crentes, ou até do candomblé, e que já
aconteceu, eles ficarem esperando um longo tempo, até que todo o ritual acontecesse, e
citou que nesse aspecto o único contratempo que houve, foi uma certa feita, um
mulçumano que queria ser enterrado, somente enrolado no tecido, como era sua
tradição, mas a administração do cemitério não permitiu.
10.Conclusão
A despeito de a globalização poder, em certos aspectos, criar uma cidade
hegemônica, esta etnografia pode mostrar o quanto o movimento inverso da busca de
identidade particular existe. Salvador, a terceira maior cidade do país, possui nos dois
cemitérios analisados formas bem distintas de enterrar seus mortos e de tratar os vivos.
Questões como privacidade, higienização, organização, espaçamento e até identificação
destes mortos variam de um para outro, e esta diferença pode ser facilmente visualizada
através das imagens que fazem parte do anexo. As próprias regras de como transitar e
como utilizar o espaço da necrópole são variados, o que me faz concordar com o ponto
de vista defendido por Carmem Rial, na conclusão de seu artigo sobre fastfood diz:
“Se tomarmos exemplos concretos da globalização, e o caso fastfoods como tentei mostrar pode ser visto como um, percebemos que, nas práticas sociais assim como em nível do imaginário, a mundialização se manifesta e é vivida através de duas tendências: de um lado a que conduz à homogeneização à escala planetária; de outra, a que revela a irrupção de localismos. Não pretendo dizer com isso que a homogeneização se confronte com a tradição e que se bata contra as diversidades locais, mas, ao contrario, que o movimento de globalização comporta nele mesmo estas duas tendências, uma unificadora, a outras diversificante.”(RIAL. 1995, p.31)
E conclui:
“Partilhar um símbolo, como sabemos, não significa forçosamente partilhar uma imagem mental, um mesmo significado”.(Idem. p.32).
Há também aspectos dos cemitérios, e dos rituais mortuários,que podem ser
definidos como parte de um universo global, indicado pela articulista acima e também
pelo que Baudrillard,(citado por FEATHERSTONE. 1995, p.140) definiu como “hiper
realidade”, na qual as mercadorias incorporam várias imagens simbólicas e imaginárias,
que modificam o seu valor e uso inicial, transformandoas em mercadorias signos, e que
o acumulo destes signos, imagens e simulações, acontece por meio do consumismo e da
12
televisão. E o mesmo autor também se reporta à cidade pósmoderna como centro de
consumo tanto cultural quanto geral. Na busca de “ser moderno” e de consumir o que
está na moda, de se igualar ao que é chique ou requintado, ou religioso, enfim
dependendo daquilo que se busca enquanto signo, é que formas de consumo vão sendo
criadas, ou copiadas, e que reproduzem aspectos globalizantes podendo ser encontradas
em diferentes lugares. Os guardas do Campo Santo, com seus uniformes bicolores
(camisas verdes e calças pretas), com rádio transmissores, organizadamente vestidos,
com posturas eretas e conduta retraída, são as mesmas imagens dos seguranças
espalhados pelos shoppings centers da cidade. A propaganda, que é a cara da
modernidade, também estava presente, desde a possibilidade dos usuários escolherem
entre uma gradação de enterros caros, sofisticados, baratos e gratuitos, da localização
das sepulturas, da qualidade dos caixões, das flores, da presença ou não de serviço
religioso, da maquiagem do cadáver, do material que cobrirá a sepultura até um mural
existente na administração do Campo Santo onde estavam arroladas dezenas de ofertas
de túmulos, com seus respectivos preços, localização e nomes e endereços para contato.
11. Bibliografia
CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, volume 1, Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 5ª edição, 1984.
DA MATTA, Roberto. Casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil in: A Casa & a Rua – Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p.3169.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro, capítulo IV, Rio de Janeiro:Zahar Editores, 1983, p.139185.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e PósModernismo, editora Studio Nobel, São Paulo, 1995, Capítulo7, p.135154.
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13
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ANEXOS
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Foto 12 Cemitério de São Tomaz sepultura de anjinhos
Foto 13 – Quinta dos Lázaros – sepultura dos anjinhos
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