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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO MESTRADO JOSIAS JOSÉ FREIRE JÚNIOR FILOSOFIA DA LINGUAGEM FILOSOFIA DA HISTÓRIA ORIGEM DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN GOIÂNIA 2010

Universidade Federal de Goiás - FILOSOFIA DA …...Agradecimentos Agradecer é um exercício fundamental e sempre típico. Primeiro agradeço aos professores que contribuíram para

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO MESTRADO

JOSIAS JOSÉ FREIRE JÚNIOR

FILOSOFIA DA LINGUAGEM – FILOSOFIA DA HISTÓRIA ORIGEM DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN

GOIÂNIA

2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO

JOSIAS JOSÉ FREIRE JÚNIOR

FILOSOFIA DA LINGUAGEM – FILOSOFIA DA HISTÓRIA ORIGEM DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN

GOIÂNIA

2010

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JOSIAS JOSÉ FREIRE JÚNIOR

FILOSOFIA DA LINGUAGEM – FILOSOFIA DA HISTÓRIA ORIGEM DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN

GOIÂNIA 2010

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de História, da Universidade Federal de Goiás, como requisito para a obtenção do Título de Mestre em História. Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e Culturas de Migração. Orientador Professor Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação na (CIP)

GPT/BC/UFG

F866f

Freire Júnior, Josias José.

Filosofia da linguagem – filosofia da História [manuscrito] :

origem do conceito de História de Walter Benjamin / Josias José

Freire Júnior. - 2010.

xv, 162 f.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás,

Faculdade de História, 2010.

Bibliografia.

1. Filosofia da Linguagem 2. Epistemologia 3. História. Teoria

da História I. Título.

CDU: 101:81

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JOSIAS JOSÉ FREIRE JÚNIOR

FILOSOFIA DA LINGUAGEM – FILOSOFIA DA HISTÓRIA ORIGEM DO CONCEITO DE HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN

Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História da Universidade

Federal de Goiás, para obtenção do título de Mestre, aprovada em

____/_____/2010 pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes

professores:

_____________________________________________________

Professor Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva (UFG)

Presidente

_____________________________________________________

Professor Dr. Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado (UNIFESP)

Argüidor

_____________________________________________________

Professor Dr. Márcio Pizarro Noronha (UFG)

Argüidor

_____________________________________________________

Carlos Oiti Berbet Júnior (UFG)

Suplente

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À Camila, claro.

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Agradecimentos

Agradecer é um exercício fundamental e sempre típico. Primeiro agradeço

aos professores que contribuíram para a formação daquilo que hoje se realiza uma

etapa, em nome de todos, ao professor Luiz Sérgio Duarte pela presença de

espírito. Agradeço aos amigos sempre próximos, entre eles o João Victor e o

Rodrigo – dois amigos de dois momentos jamais distintos. À família pela força e em

nome dela aos pais, pela obstinação, quase natural. Por fim à Camila, sobretudo

pela paciência.

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“La vida, como un comentario de otra cosa que no alcanzamos, y que está ahí al alcance del salto que no damos”.

J. Cortázar, Rayuela (p.378).

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RESUMO

O presente trabalho, intitulado “Filosofia da Linguagem – Filosofia da História:

Origem do Conceito de História de Walter Benjamin” consiste na apresentação de

algumas idéias acerca do conceito de história do filósofo alemão Walter Benjamin

(1892-1940). Objetiva-se estabelecer um debate conceitual entre alguns aspectos da

filosofia da linguagem, da teoria da experiência, da filosofia da arte e da

epistemologia de Walter Benjamin para apresentar a estrutura e o desdobramento

de sua concepção, de seu conceito de história a partir sua filosofia da linguagem. Tal

objetivo pode ser ilustrado pela afirmação de que a origem – uma categoria da

filosofia benjaminiana – do conceito de história de Walter Benjamin se estabelece no

interior de sua filosofia da linguagem. Dessa forma o trabalho se inicia com um

comentário e a análise de dois notáveis textos do filósofo alemão, onde esse expõe

sua filosofia da linguagem. A reflexão proposta neste trabalho passa também pela

análise de um grupo de ensaios em que aparece a teoria da experiência, bem como

pela reflexão acerca do ensaio de Walter Benjamin onde a relação entre sua filosofia

da linguagem e sua filosofia da arte se elucida. Por fim se desdobra a análise e os

comentários do texto fundamental da teoria do conhecimento e do conceito de

história benjaminianos, onde os vínculos – a estrutura e o desdobramento – do

conceito de história do filósofo aparecerão de forma mais clara em sua filosofia da

linguagem. Voltar ao pensamento de Walter Benjamin a partir do campo da Teoria

da história deve significar o esforço de, através da atualidade de sua filosofia, em

particular, de seu conceito de história, problematizar e ampliar as discussões acerca

do estatuto e das condições da produção do conhecimento histórico.

Palavras-chave: Filosofia da linguagem, história, teoria da história.

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ABSTRACT

This work, named "Philosophy of Language - Philosophy of History” presents some

ideas about the concept of history of the German philosopher Walter Benjamin

(1892-1940). It aims to establish a dialogue between conceptual nuances of the

philosophy of language, theory of experience, philosophy of artworks and

epistemology of Walter Benjamin to present the structure and the deployment of its

design, its concept of history from his philosophy language. Such intent may be

submitted by the assertion that in the origin - a category of Benjamin‟s philosophy -

the concept of history Walter Benjamin is established within his philosophy of

language. Thus this work opens with a commentary and analysis of two remarkable

writings of German philosopher, where it states his philosophy of language. The

reflection proposed in this work also involves examining a series of tests that appears

in the theory of experience and by reflection on the essays of Walter Benjamin where

the relationship between his philosophy of language and philosophy of artworks that

illuminates. Finally unfolds analysis and commentary of the text's fundamental theory

of knowledge and the concept of history, where the connections - the structure and

deployment – of the philosopher's concept of history appear more clearly within and

in his philosophy of language. Back to the writings of Walter Benjamin from the

landscape theory of history must mean the effort by to update his philosophy,

particularly his concept of history, broaden the discussion about the status and

conditions of production historical knowledge.

Key-words: Philosophy of language, history, theory of history.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.....................................................................................................

12

CAPÍTULO 1 Das Teorias à Filosofia da Linguagem de Walter Benjamin: Expressão e Tradução..............................................................................................................

20

1.1 Teoria e Filosofia da Linguagem no Ensaio Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana...................................................................

23

1.2 Teoria da Tradução: A Atualidade da Filosofia da Linguagem de Walter Benjamin.....................................................................................................

47

CAPÍTULO 2 Filosofia e Linguagem: Teoria da Experiência – Crítica do Conhecimento da Arte.......................................................................................................................

68

2.1 A Filosofia da Linguagem como Fundamento da Filosofia da Experiência de Walter Benjamin.....................................................................................

69

2.2 Pesadas Achas, Leves Cinzas: Teoria Crítica do Conhecimento e Filosofia da Arte..........................................................................................

83

CAPÍTULO 3 Sobre a Categoria da Origem: Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin..............................................................................................................

109

3.1 Exposição da Verdade. Apresentação da epistemologia crítica de Walter Benjamin.....................................................................................................

111

3.2 Origem - Da Filosofia da Linguagem ao Conceito de História........................................................................................................

124

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................

141

REFERÊNCIAS....................................................................................................

150

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Introdução

Um dos movimentos típicos do campo da teoria da história é o de permanente

retorno, em diversas perspectivas, às questões fundamentais da história enquanto

ciência, enquanto disciplina acadêmica, mas de forma ainda mais geral, da história

como produção cultural e da história como resultado das inquietações de alguns

espíritos humanos. Se a teoria da história é o campo da história que se refere aos

fundamentos da ciência da história, aos seus limites e as suas possibilidades, é

certo que discussões sobre os elementos constitutivos da história, em perspectivas

mais específicas ou mais gerais, sejam mais que recorrentes, sejam necessárias.

As questões acerca da linguagem figuram entre as discussões fundamentais

da teoria da história. Tal fato se justifica pelo papel central que a linguagem ocupa

na história enquanto produção de conhecimento científico acerca do passado. De

forma mais ou menos explícita, as teorias da história necessitam fazer referência à

linguagem do historiador, de suas fontes, etc.

Outro movimento comum do campo de teoria da história é o retorno ao

pensamento dos ditos clássicos, pela repercussão dessas obras, pela sua

importância na história das reflexões acerca da história e pela riqueza de possíveis

debates, que emanam da obra de um mesmo indivíduo. Sem dúvida um destes

clássicos é o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), clássico para diversas

áreas da produção intelectual, entre a filosofia e a crítica literária, a história e a

estética, entre tantas outras. Como a maioria das obras clássicas, a de Benjamin

tem sido bastante citada, mas muito pouco “estudada” (SELIGMANN-SILVA, 1999,

“Deveria ser dito, pois, que a maravilha é o objeto eminente de uma tal inteligência. A aparência da cerrada facticidade, que adere à pesquisa filológica e lança o pesquisador no encantamento, dissipa-se no ponto em que o objeto é construído na perspectiva histórica. As linhas de fuga desta construção convergem na nossa própria experiência histórica. Com isto, o objeto constrói-se como mônada. Na mônada torna-se vivo aquilo que, como fragmento ou achado textual, jazia em mítica rigidez”. Walter Benjamin (BENJAMIN, apud, AGAMBEN, 2008, p. 137).

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p. 15) senão em áreas bastante específicas e, já de acordo com Jeanne Marie

Gagnebin, um dos “buracos negros” da reflexão acerca da obra benjaminiana se

localiza em sua “teoria da história” (GAGNEBIN, 1999, p. 01). Poderíamos atribuir

mais uma vez à concentração dos estudos benjaminianos em determinados campos

aquela lacuna.

Pelo menos dez anos depois das constatações dos dois clássicos leitores da

obra de Walter Benjamin a partir do cenário brasileiro, é fundamental perceber as

alterações neste cenário. Walter Benjamin tem sido mais estudado do que nunca no

Brasil e pelos menos dois fatores contribuem com a expansão do cenário dos

estudos benjaminianos 1: a publicação das Passagens e a disseminação e

consolidação de grupos e núcleos de estudo e pesquisa da obra do filósofo. O

cenário talvez seja o mais favorável aos estudos da obra de W. Benjamin no que se

refere à bibliografia em português, aos encontros, aos seminários e colóquios

voltados exclusivamente à sua obra e à profusão de obras de grande qualidade cujo

tema é sua filosofia. Sem dúvida este é o cenário mais propício para as reflexões

acerca da obra de Walter Benjamin a partir de outros campos, a partir de outras

perspectivas.

Este trabalho se dedica à obra de Walter Benjamin com o objetivo de

apresentar seu conceito de história, sua teoria da história. Apresentaremos o

conceito de história de Walter Benjamin a partir de sua filosofia da linguagem e de

sua teoria-crítica do conhecimento no intuito de atualizá-la 2 às demandas do campo

da teoria da história. Assim elegeremos o conceito de história do filósofo alemão

como centro transitório – firmado apenas em favor de nossa leitura – da constelação

que a obra benjaminiana forma. Nosso objetivo principal é – através de nossa leitura

específica dessa obra – apresentar a origem do conceito de história de Walter

Benjamin em sua filosofia da linguagem. Trata-se de um esforço no sentido de

enfatizar o lugar da concepção de história no interior da obra de Walter Benjamin

através da apresentação dessa a partir de uma categoria de seu pensamento: a

origem (Ursprung). Tanto a importância do conceito de história, quanto seu caráter

central ou ainda sua origem na filosofia da linguagem de W. Benjamin são

1 Em uma olhadela informal ao cenário brasileiro.

2 “D'où le caractère éphémère de cette revue, dont elle a d'emblée conscience. C'est là le just prix que

rèclame sa recherche de la véritable actualité” (BENJAMIN, 2000b, p. 273).

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elementos dados da recepção de sua obra. Tomaremos então este dado como

possibilidade de realçar o conceito de história – ênfase transitória, que corresponde

ao momento que nossa empreitada explicitamente é – de Walter Benjamin para

torná-lo atual às reflexões que partem do interior da ciência da história 3,

especificamente, da teoria da história.

Nas linhas que se seguem apresentaremos mais alguns detalhes, mais

algumas idéias acerca dos objetivos, da abordagem e da nossa proposta de leitura

da filosofia de Walter Benjamin, visando apresentar nosso trabalho e introduzir

alguns elementos que nos acompanharão pelas próximas páginas. Paralelamente

ao anúncio de nossa empreitada apresentaremos sumariamente os momentos de

nosso texto. Nas linhas finais dessa Introdução nos esforçaremos por iluminar um

pouco mais nossas perspectivas de leitura da filosofia de Benjamin a partir do

campo da teoria da história.

Os capítulos e as respectivas seções de nosso texto, bem como a forma

através da qual os temas da filosofia da Walter Benjamin serão discutidos é nosso

principal argumento na tarefa de apresentar a origem de se conceito de história em

sua filosofia da linguagem. Para eleger como ponto privilegiado na constelação da

obra benjaminiana seu conceito de história, primeiro destacaremos como sua

filosofia da linguagem não apenas fundamenta, mas contém os elementos, os

conceitos e as idéias que, ao serem transpostas para a reflexão epistêmica-crítica,

formam o conceito de história do filósofo.

Tomar a filosofia da linguagem de Walter Benjamin como portadora dos

elementos, dos conceitos e das idéias que formarão o seu conceito de história têm

um duplo significado. O primeiro se refere à unidade descontínua da obra – e do

pensamento que essa pode manifestar – de W. Benjamin; unidade que não deve ser

argumento de legitimação ou justificativa de coerência, mas amostra de sua tensão

inerente e a dupla exigência de manter esta tensão. Constituída em momentos

marcados por interesses, perspectivas e temas distintos, a obra benjaminiana é fruto

3 Discutir a obra Walter Benjamin a partir do campo da teoria da história – que se presta a

problematizar e fundamentar a cientificidade do conhecimento histórico – pode parecer estranho aos olhos de quem conheça a obra do filósofo. É sobre a especificidade da teoria da história que será nas linhas a seguir discutida a possibilidade de atualizar o pensamento benjaminiano para este campo. Ou, em outras palavras, aquela estranheza é nosso dado.

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de um pensamento, cujo caráter descontínuo, heterogêneo e por vezes até

contraditório não deve ser recusado em favor de qualquer mera unidade, mas ao

mesmo tempo não pode ser dividido em simples fases 4.

O segundo significado da tarefa de localizar os elementos, os conceitos e as

idéias de formarão o conceito de história na filosofia benjaminiana da linguagem se

refere ao esforço atualizar a filosofia de Benjamin: lidar com os conceitos em uma

perspectiva benjaminiana em favor da exposição de seu próprio pensamento 5. Não

se trata, obviamente, de pensar, escrever ou qualquer cosia que lembre uma

incursão empática na subjetividade do filósofo, trata-se muito mais – e mais simples

– de forçar os conceitos, isolá-los, destituí-los de unidade para depois reagrupá-los,

procedimento não apenas típico da obra de W. Benjamin, mas que ele executou,

certamente, com mestria. Tal é o esforço de apresentar a origem lingual da teoria da

história de Benjamin.

Em nosso Primeiro Capítulo apresentaremos algumas idéias acerca da

filosofia da linguagem de Walter Benjamin. Discutiremos na primeira seção deste

primeiro capítulo aquele que talvez seja um de seus textos mais difíceis, complexos 6

e ricos de sua ensaística, o Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem

Humana (BENJAMIN, 1992), ou simplesmente, Sprachaufsatz. Apresentaremos

como, sob a influência principal de três tradições filosóficas, Walter Benjamin passa

de uma teoria a uma peculiar filosofia da linguagem. Na segunda seção do nosso

Capítulo, comentaremos o prefácio-ensaio A Tarefa – Renúncia do Tradutor

(BENJAMIN, 2001). Tal seção tem um lugar muito importante no interior de nosso

texto: no prefácio – não por acaso prefácio à tradução benjaminiana dos Tableaux

parisiens – a análise do que chamamos, em alguns momentos de nosso texto de

“cerne” – as “sementes preciosas, mas insípidas” – da filosofia benjaminiana da

4 Naturalmente qualquer análise de uma obra exige a clarificação da singularidade de cada texto, de

cada momento; quando nos referimos à setorização do pensamento de Benjamin colocamos em dúvida o procedimento de isolar, de tomar a multiplicidade de sua obra como estática, dividi-la em uma suposta fase “teológica” oposta à fase “materialista”, por exemplo. 5 Grande número de trabalhos gravitam em torno deste esforço: apresentar, em uma perspectiva

benjaminiana determinadas histórias, manifestações artísticas, movimentos sociais, etc. Sem pretensões para além do exercício conceitual e do imbricamento de problemáticas nosso trabalho segue, naturalmente, as tendências específicas de seu momento. 6 Reino da sobredeterminação; exatamente por tê-la como tema, ou, para aquecer a terminologia

benjaminiana, por tê-la como seu Sachgehalt.

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linguagem no contexto do prefácio-ensaio já possibilita a visualização – em sua a

aparição fugidia – da idéia de história de Walter Benjamin 7.

A problematização da passagem da teoria à filosofia da linguagem no interior

da filosofia de Walter Benjamin em nosso Primeiro Capítulo deve então preparar as

discussões seguintes bem como definir os elementos relevantes da filosofia

benjaminiana da linguagem em nossa empreitada. No estilo benjaminiano, ao

primeiro capítulo caberia muito bem o rótulo de Prefácio de nosso percurso.

Em nosso Segundo Capítulo apresentaremos alguns comentários acerca de

um grupo de textos – dois ensaios, um programa e dois artigos – de Walter

Benjamin que caracterizam e exercitam sua filosofia da linguagem, formulada e

realizada nos dois textos comentados no Primeiro Capítulo. O programa, como se

espera de um, traça as perspectivas à reflexão da filosofia formulada no

Sprachaufsatz, mas também marca o movimento interno, o desdobramento da

filosofia apresentada. Os dois ensaios apresentam explicitamente a transposição da

filosofia benjaminiana da linguagem para uma teoria crítica da experiência e da

cultura 8. Os dois artigos – um comentado na primeira seção e o outro o tema da

segunda – confrontam as idéias de Walter Benjamin sobre a linguagem com a

tradição da filosofia e da crítica que lhes foram contemporâneas.

Em relação à segunda seção de nosso Segundo Capítulo, deve ser ainda

ressaltado que é nela que comentaremos a passagem, a transposição da filosofia da

linguagem à teoria crítica do conhecimento da arte, que lança as bases – inclusive

conceituais – tanto para a epistemologia crítica quando para o conceito de história

de W. Benjamin, temas e idéias cujos comentários aparecerão no derradeiro

Terceiro Capítulo. Aquela transposição aparecerá claramente em nossos

comentários do ensaio sobre As Afinidades eletivas de Goethe (BENJAMIN, 2009), o

Wahlverwandtschaftenessay. O famoso ensaio de crítica, cujo tema explícito é o

romance de Goethe, reúne nada menos do que o conceito de crítica, a filosofia da

7 A apresentação da origem do conceito de história de Walter Benjamin no medium de sua filosofia da

linguagem poderia muito bem se limitar à reflexão acerca destes dois textos. O interesse pelo conceito, além, claro, do interesse pela idéia de história de Walter Benjamin se justifica pelo status deste trabalho como momento específico, como passagem de outro momento maior. Justifica-se ainda mais pela nossa leitura particular do conceito de origem, onde, como veremos, damos uma ênfase especial – mas particular – à elaboração conceitual. 8 Que imbricada ao conceito de história de Walter Benjamin formará o fundamento de sua

historiografia revolucionária.

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arte, a realização da filosofia da linguagem e a semente conceitual da epistemologia

e da teoria da história de Benjamin. Toda atenção àquele texto será insuficiente:

estaremos satisfeitos – satisfazendo o proposto – com a articulação da leitura

possível e necessária ao nosso intento.

O termo de nossa passagem pela filosofia de Walter Benjamin chegará em

nosso Terceiro Capítulo. Dividido em duas seções, sua matéria será os comentários

a outro prefácio benjaminiano, na verdade, ao mais célebre deles. Neste Terceiro

Capítulo aparecerão nossas análises do prefácio epistêmico-crítico ao livro Origem

do drama barroco alemão (Ursprung des Deutschen Trauerspiels) (BENJAMIN,

1984; 1991). A Erkenntniskritische Vorred será analisada nas duas seções desse

capítulo. Se nos dois capítulos precedentes apresentamos a transposição entre

teoria e filosofia da linguagem, sua realização na teoria da experiência e na idéia de

crítica, nosso Terceiro Capítulo responderá pela análise dos dois elementos

remanescentes na composição filosofia da linguagem–origem–conceito de história

que representa nosso trabalho. O tema do derradeiro capítulo será a reflexão acerca

da categoria da origem e do conceito de história de Walter Benjamin.

Em sua primeira seção, nosso Terceiro Capítulo conterá os desenvolvimentos

acerca da epistemologia crítica de Walter Benjamin. Mediante os comentários de

sua peculiar doutrina das idéias apresentaremos de que forma ela se constitui a

partir das idéias de linguagem, conhecimento e verdade do filósofo alemão, idéias

que convergem na categoria da origem (Ursprung) tema da segunda seção de nosso

último capítulo.

A apresentação da categoria da origem, seus comentários e seu significado

como articulação e constituição do conceito de história de Walter Benjamin, cujo

medium é sua filosofia da linguagem, aparecerá assim nas linhas finais de nosso

trabalho. Em nossa leitura a categoria origem aparecerá como idéia do conceito de

história de Walter Benjamin, como órgão de seu conceito de verdade histórica e de

história filosófica, bem como dessas duas como fundamentos de seu conceito de

história. Ao realçarmos o a categoria da origem estaremos enfatizando o conceito de

histórico na obra de Walter Benjamin.

Apresentaremos, no interior da filosofia benjaminiana cujas análises dos três

capítulos figurarão tão somente como amostra, a Origem como transposição entre

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filosofia da linguagem e filosofia da história, transposição cujo medium é a idéia de

linguagem e na qual o conceito de história se torna o centro transitório de sua obra.

Apresentaremos a categoria origem como dissolução histórica da aparente

estabilidade sob a qual qualquer texto, como letra morta, conserva.

Outro aspecto que deve se evidenciar ao longo de nosso trabalho se refere ao

seu ritmo, à forma através da qual as discussões são colocadas e encaminhadas.

Não existe uma ordem cronológica para a disposição dos textos em suas

respectivas seções; apresentamos a produção benjaminiana de acordo com nosso

objetivo. E ainda, das primeiras análises em direção ao termo de nosso trabalho as

reflexões não só se tornaram mais complexas, mas também serão colocadas de

acordo com o que nos parece ser um dos motivos principais do desdobramento

próprio à obra benjaminiana: a resposta na filosofia [Gegenstück in der Philosophie]

exige que, no interior do discurso [Apparatur] (BENJAMIN, 1991, p. 691)

determinado elemento seja velado para que seu conceito de história se desvele.

Sob a dinâmica constelacional da filosofia de Walter Benjamin a origem

aparecerá assim como a possibilidade de evidenciar o duplo significado que emerge

ao se tomar a filosofia da linguagem do filósofo como portadora dos elementos, dos

conceitos e das idéias que formam o seu conceito de história; como a estabilização

que só é aclamada em favor da permanente dinâmica. A categoria da origem, tal

como a apresentaremos, permitirá assim tanto a exposição da unidade filosófica da

obra de Walter Benjamin quanto a ênfase em sua atualidade. A origem é

exatamente o que este duplo significado evidencia sobre a verdade (na

epistemologia crítica), sobre as obras e, no conceito benjaminiano de história, sobre

o passado.

Como atualizar à teoria da história um conceito aparentemente anti-histórico,

no sentido convencional – não apenas “clássico” – do termo, de narrar algo sobre o

passado? Propomos apresentar sua origem – o dissipar da falsa aparência – em

uma filosofia da linguagem cujo tema é a disjunção inalienável da linguagem, mas

que se recusa a fazer do luto dessa fragmentação uma triste recolha dos fragmentos

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ou uma entusiástica ovação ao império da dissonância. Possível ou não, a tradução

é uma exigência, um encargo 9, como ainda veremos.

O conceito benjaminiano de história que emergirá de nossos esforços deverá

assim matizar o fato de que o passado “não poder mais não ter sido” da mesma

forma que o “ter sido” impede-o irrevogavelmente de ser novamente e exige um

novo modo de ser cuja transitoriedade deve culminar com sua dissolução, histórica,

mas que pertence ao âmbito da rememoração e que por isso, se opõe à história.

Esse conceito de história como rastro – como “aparição de uma proximidade, por

mais longínquo esteja aquilo que o deixou” (BENJAMIN, 2006, p. 490) [M 16a, 4] –

como lampejo irreversível que se precipita na desaparição, cujo lugar é esse instante

mesmo do precipitar, poderá aparecer com mais clareza e apenas talvez ao final das

reflexões que se seguem.

9 “Rien n‟est intraduisible en un sens, mais en un autre sens tout est intraduisible, la traduction est un

autre nom de l‟impossible. En un autre sens du mot „traduction‟, bien sûr, et d‟un sens à l‟autre ill m‟est facile de tenir toujours ferme entre ces deux hyperboles qui sont au fond la même et se traduisent encore l‟une l‟autre” (DERRIDA, apud, SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 45). Seligmann-Silva ainda traduz: “Nada é intraduzível em um certo sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível; a tradução é um outro nome do impossível. Num outro sentido da palavra „tradução‟, é certo, e de um sentido ao outro é-me fácil sempre resistir entre essas duas hipérboles que no fundo são as mesmas e se traduzem ainda uma a outra” (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 45, nota 38). Essa é a disjunção permanente demaniana que a origem apresenta em termos de teoria do conhecimento e no conceito de história de Walter Benjamin: ela não excluí ou supera a tensão, faz dela renúncia e tarefa, encargo.

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1. Das Teorias à Filosofia da Linguagem de Walter Benjamin: Expressão e Tradução

O tema desse nosso primeiro capítulo é a filosofia da linguagem de Walter

Benjamin; mais especificamente, a passagem da teoria benjaminiana da linguagem

– composta notadamente por três matrizes de influência – a uma peculiar filosofia da

história, a partir da qual se desdobrará os conceitos de experiência e crítica – temas

de nosso segundo capítulo – bem com sua epistemologia-crítica e seu conceito de

história, como veremos ao termo de nossa empreitada.

Apresentaremos nas linhas a seguir nossos esforços no sentido de

apresentar, a partir da filosofia da linguagem de Walter Benjamin sua filosofia da

história. Na primeira seção deste capítulo apresentaremos alguns comentários

acerca da teoria e da filosofia da linguagem apresentada pelo jovem Walter

Benjamin no célebre ensaio Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem

Humana (BENJAMIN, 1992), o Sprachaufsatz.

Na segunda seção desse primeiro capítulo deteremos nossa atenção sobre

àquele que talvez seja o texto mais importante no sentido de tentar localizar as

origens do conceito de história de Walter Benjamin em sua filosofia da linguagem: o

ensaio A Tarefa-Renúncia do Tradutor (BENJAMIN, 2001), prefácio a algumas

traduções benjaminianas do poeta Charles Baudelaire, texto amplamente conhecido

por seu tom hermético e por sua importância no interior da filosofia de W. Benjamin.

Como anunciamos, partiremos do célebre ensaio Sobre a Linguagem em

Geral e Sobre a Linguagem Humana, escrito entre 1915 e 1916, ensaio o filósofo

alemão apresenta a base de sua filosofia da linguagem. Apresentaremos os temas

desenvolvidos neste ensaio após algumas breves considerações acerca de certa

“Totalidades são transmissíveis somente de forma velada. O Nome de Deus é acessível, mas não pronunciável. Pois somente o fragmentário nela presente torna a língua falável. A „verdadeira‟ língua não pode ser falada, não mais do que o concreto absoluto pode ser realizado.” Gershom Scholem (SCHOLEM, 1999, p. 229)

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tradição filosófica, que claramente influenciou W. Benjamin em sua teoria da

linguagem. Mas a passagem por estas idéias não tem as pretensões de mapear as

origens ou as influências desta tradição sobre o pensamento benjaminiano acerca

da linguagem; tão somente prepararemos o terreno conceitual para as discussões

centrais de nossa primeira seção. Tornar discutível alguns conceitos largamente

utilizados Walter Benjamin no Sprachaufsatz é o intuito da olhadela à tradição

filosófica nos primeiros parágrafos da primeira parte deste nosso capítulo primeiro.

Após esta apresentação – quase ao modo benjaminiano – destes temas da

filosofia da linguagem em certa tradição filosófica iniciaremos nossos comentários

acerca do ensaio de 1915-16. A forma de abordagem deste texto de difícil leitura

será detalhadamente exposta nas primeiras linhas da seção. Por ora faz se

necessário apenas uma ressalva. Nossa distinção entre teoria da linguagem e

filosofia da linguagem é um recurso meramente operativo e não tem pretensões de

ser nenhuma descoberta na exegese dos textos benjaminianos. Entendemos por

teoria da linguagem as formulações de Walter Benjamin que recorrem amplamente à

tradição judaica, às filosofias pós-kantianas e ao idealismo alemão. A teoria da

linguagem apresentada no ensaio em questão é a arquitetura a partir da qual se

desenvolverá sua filosofia da linguagem, esta teoria aparece quase que

exclusivamente ao longo da obra de W. Benjamin neste ensaio não publicado,

escrito nos anos de juventude, à época de leitura restrita àqueles que lhe eram mais

próximos, desenvolvido a partir de temas herméticos sem nenhuma pretensão

didática 10. A filosofia da linguagem de Benjamin não se restringe ao seu ensaio

Sobre a Linguagem... – apesar de aparecer de forma seminal ali – desenvolvendo-

se, de acordo com as especificidades, ao longo de toda sua obra, em seus diversos

enfoques, desde seus trabalhos de crítica literária, passando por sua peculiar

10

Texto sobre o qual Jacques Derrida escreveu: “O que precede deveria conduzir-me de preferência a um texto anterior de Benjamin, Sur le langage em général et sur le langage humain (1916), igualmente traduzido por Maurice de Gandillac no mesmo volume [...]. A referência a Babel é aí explícita e acompanha-se de um discurso sobre o nome próprio e sobre a tradução. Mas, diante do caráter aos meus olhos bastante enigmático desse ensaio, sua riqueza e suas sobredeterminações, tive que adiar essa leitura e me ater a „A tarefa do tradutor‟. Sua dificuldade não é sem dúvida menor, mas sua unidade permanece mais aparente, melhor centrada em torno de seu tema” (DERRIDA, 2006, p. 26-27). A consideração de Derrida acerca do ensaio Sobre a Linguagem... deve servir exclusivamente a um propósito: aumentar nossa responsabilidade perante a leitura-empreita que nos propomos, não apenas na primeira, mas também na segunda seção de nosso primeiro capítulo que, pelo título, já deve revelar seu caráter central no interior de todo nosso projeto.

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historiografia do século XIX, até seus últimos textos, em especial, as teses Sobre o

Conceito de História. A teoria como suporte conceitual e a filosofia como movimento

reflexivo intra-conceitual talvez fosse uma definição acertada de nossas pretensões

ao dividir filosofia e teoria da linguagem nas abordagens da obra Walter Benjamin.

Preferimos uma definição mais aberta e menos comprometida com conceituações

ociosas, em nosso texto, a filosofia da linguagem benjaminiana aparece como

contrapartida filosófica dos movimentos de sua teoria da linguagem, essa

profundamente relacionada com determinada tradição, quase não colocada em

debate ao longo da vida do filósofo, mas subentendida ao longo de seus escritos.

Sua filosofia da linguagem, exposta em seus textos, material crítico por excelência,

pano de fundo de sua filosofia da história, como tentaremos apresentar em nosso

trabalho.

Na segunda seção de nosso primeiro capítulo, como também já

mencionamos, apresentaremos algumas considerações acerca da filosofia da

linguagem de Walter Benjamin que deverão girar ao redor de seu ensaio A Tarefa-

Renúncia do Tradutor. Este texto reconhecidamente central na obra filosófica de

Benjamin exigirá de nosso método de exposição algumas peculiaridades e até talvez

certas extravagâncias. Nossa discussão se desenvolverá a partir de três temas,

como esclareceremos de forma mais detalhada no momento mais propício, em sua

seção pertinente. Estes temas não se separam no interior do ensaio, ao contrário, se

sobrepõe, nossa divisão assim será meramente operatória. Estes temas são: a

relação da obra original com a obra traduzida, a relação entre linguagem do original

e língua da tradução e, por fim, a apresentação do conceito de tradução como

passagem típica, no interior do pensamento benjaminiano, de uma concepção de

linguagem – que se desenvolve em sua peculiar filosofia da linguagem – para sua

filosofia da história. Não nos adiantaremos mais aqui nas nossas discussões, exceto

pela ressalva que repetiremos algumas vezes: a despeito da complexidade do

ensaio sobre a tarefa do tradutor ele é interpretável, a tensão mais grave se

estabelece no que se refere à forma desta interpretação: suas interpretações mais

célebres tomam o texto benjaminiano como base para discussões externas à obra

do filósofo – isto, claro, com exceções, que ainda apontaremos. Articular o ensaio

sobre o tradutor à obra de Walter Benjamin, quando intenta-se algo para além de

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uma mera nota, passa por uma tensa reflexão sobre a própria forma de exposição

das idéias do filósofo. Apesar dos riscos optamos, como ficará mais claro no

momento oportuno, por uma exposição mais benjaminiana – quanto ao ritmo

entrecortado à espreita dos conteúdos relevantes – do ensaio A Tarefa-Renúncia do

Tradutor.

Ao final do capítulo apresentaremos breves considerações, quase

ensaísticas, sobre a passagem, sobre a transposição da teoria e da filosofia da

linguagem de Benjamin para o contexto da teoria da experiência e da elaboração do

conceito de crítica, temas de nosso segundo capítulo.

1.1 Teoria e Filosofia da Linguagem no Ensaio Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana

Antes de nossos comentários e da apresentação do debate acerca do célebre

ensaio Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana, passaremos

por algumas idéias que nos familiarizarão com o tema do ensaio, ao mesmo tempo

que poderemos reconhecer os contornos da originalidade do ensaio de W.

Benjamin. Lançaremos algumas idéias acerca da filosofia da linguagem do

romantismo de Iena – a partir da interpretação do pensamento de dois seus mais

conhecidos representantes – para em seguida passarmos por um autor que marca o

ponto de encontro entre as filosofias da linguagem de Benjamin e a filosofia do

também chamado primeiro romantismo. Sem pretensões de demora sobre estas

duas concepções de linguagem – do primeiro romantismo e a filosofia de Georg

Hamann – as linhas a seguir devem aparecer como uma espécie de epígrafe aos

comentários acerca do ensaio benjaminiano. As afinidades entre as filosofias a

seguir apresentadas devem emergir ao fim desta primeira seção com os comentários

do texto de Benjamin.

O pensamento de Walter Benjamin foi reconhecidamente influenciado pelo

romantismo de Iena, ou primeiro romantismo, que inclusive teve seu conceito de

crítica de arte como tema da tese de doutoramento do crítico alemão, escrita em

1919 (BENJAMIN, 1999b).

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Partiremos neste momento de algumas considerações sobre o a filosofia da

linguagem do primeiro romantismo. O problema da origem da linguagem apresenta,

nos textos de Walter Benjamin, uma clara ligação com o filosofia da linguagem do

chamado Primeiro romantismo, ou romantismo de Iena. A questão da linguagem se

apresentava, para os românticos, no interior de uma “filosofia da história de caráter

messiânico” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 24); essa questão era colocada a partir

de reflexões sobre a “essência da linguagem” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 25), no

sentido, seguindo Márcio Seligmann-Silva, de uma problematização acerca da

“íntima relação entre linguagem e verdade” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 24), o que

possibilitou àqueles filósofos uma visão “mágica” da linguagem (SELIGMANN-

SILVA, 1999, p. 25), muito parecida com a apresentada por W. Benjamin. Esta

magia da linguagem para os proeminentes filósofos da cidade de Iena – Friedrich

Schlegel (1772-1829) e Novalis (1772-1801) – indica um rompimento com

determinada concepção instrumental da linguagem, uma concepção “reducionista”

(SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 25), que tomaria a língua como simples meio de

comunicação, ou tentaria purificar a linguagem de seus elementos que poderiam

comprometer a clareza do pensamento.

Acerca deste conceito de magia da linguagem é fundamental perceber que

não se tratava, nem para G. Hamann nem para os românticos de Iena, de negar no

interior da linguagem sua função comunicativa, sua estrutura instrumental: o

conceito de linguagem dos românticos foi marcado pela tensão inerente entre magia

e instrumentalidade. Seguindo as palavras de Seligmann-Silva:

“A concepção romântica da linguagem comporta, portanto, um conflito interno: se a linguagem, por um lado é vista – enquanto língua decaída – como simples signo funcional e meio de comunicação, por outro lado, ela também comporta um âmbito irredutível, não-conceitual – reflexos daquela linguagem original perdida, que dão a ela um caráter mágico, mais nobre, não instrumental” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 28).

A base desta concepção mágica da linguagem que, ao mesmo tempo em que

reconhece seu caráter comunicativo – mas dentro desta função, sua instabilidade –

em tensão com uma certa “dignidade” desta linguagem, é, de acordo com

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Seligmann-Silva, idéias acerca da origem da linguagem, que também recorrem à

idéia da “queda”:

“[...] Nesta filosofia romântica da linguagem, podemos perceber claramente três „etapas‟, ou níveis de linguagem: em primeiro lugar a „linguagem anterior a queda‟, na qual não há distância entre os signos e os elementos designados, nela o homem compreende se mediação a linguagem da natureza e das coisas, enfim: esta é a linguagem do conhecimento absoluto. Com a „queda‟ o homem encontra a pluralidade das línguas, a perda da capacidade de capacidade de compreender a natureza e as coisas, as palavras se distanciam daquilo que elas indicam e o homem como que „conhece a ignorância‟. Finalmente, esta filosofia da linguagem compreende também a „restituição‟ da linguagem „originária‟, o trabalho de colher os cacos perdidos daquela antiga construção harmônica que estão espalhados entre os edifícios de nossa linguagem moderna” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 26).

A partir da apresentação do tema da origem da linguagem no romantismo de

Iena, nesta bela passagem de Márcio Seligmann-Silva, fica evidente a proximidade

entre o pensamento primeiro-romântico e as idéias acerca da linguagem de Walter

Benjamin. Inconteste a afinidade entre o pensamento dos românticos de Iena e o

pensamento acerca da linguagem de W. Benjamin, passemos rapidamente sobre

algumas idéias que contribuíram na formulação tanto das idéias do romantismo,

quanto de Benjamin, de forma que, sem minimizar a importância do pensamento dos

românticos na filosofia de Benjamin, possamos ter um quadro mais amplo, e mais

complexo, das influência que o filósofo alemão recebeu no seu pensamento sobre a

linguagem.

Como nos referimos acima, as idéias do primeiro romantismo acerca da

linguagem devem ser compreendidas como uma tentativa de romper com uma

concepção empobrecida da linguagem, que a toma como mero meio de

comunicação de algo externo a ela. A apresentação benjaminiana da origem da

linguagem – bem como das idéias que o influenciaram – só pode ser razoavelmente

compreendida se evitarmos a redução desta concepção ao mítico, que ao contrário

das idéias acerca da linguagem até agora expostas – possuem como cerne, e isto é

mais importante do que qualquer alternativa mágica, a tensão inerente a linguagem,

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como afirmou Seligmann-Silva citado acima – estabilizam a linguagem, ou como

meio neutro, ou como totalmente inefável em sua peculiaridade.

No interior da concepção de linguagem dos românticos de Iena encontramos

elementos de um tema fundamental em nosso contexto. As etapas da linguagem, na

passagem entre totalidade, queda e linguagem da reflexão – que visa à restituição

daquele absoluto, mas que só pode ser pensado enquanto perdido: “[...] Para os

românticos, não apenas a nossa linguagem decaída guarda elementos que apontam

para a perda do estado de totalidade, mas também o mundo e a natureza podem,

para eles, ser lidos como um universo simbólico, através do qual se obtém uma

mediação com absoluto [...]” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 29). A perda do absoluto

na linguagem, por analogia, representa a perda da totalidade no conhecimento do

mundo, que a partir da reflexão, tem o seu trabalho de restituição – no oscilar do

movimento reflexivo entre individualidade e totalidade, entre fragmento e absoluto –

como tarefa. Ainda de acordo com Márcio Seligmann-Silva, esta concepção de

absoluto fragmentado – e de tarefa de restituição – foi um tema muito importante

para o pensamento primeiro-romântico, e terá considerável repercussão no

pensamento de Benjamin, sob a “doutrina da escritura do mundo”; nas palavras de

Seligmann-Silva: “A doutrina da escritura do mundo – ou do mundo como escrita –

implica uma semiotização sui generis do mundo: tudo é escritura, signo, mas signo

opaco, não há um sentido transcendental que fornece a unidade (do sentido) do

mundo.” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 30). Tal postura pode já ser encontrada no

pensamento de Johann Georg Hamann (1730-1788), que influenciou tanto o

pensamento de Benjamin quanto a filosofia dos primeiros românticos.

O filósofo J. G. Hamann elaborou uma crítica peculiar da filosofia do

Iluminismo, baseada especialmente em respostas-críticas à obra marco da

Aufklärung, a Crítica da Razão Pura. Voltar-se para a relação entre linguagem e

conhecimento, a partir de uma concepção não instrumental da linguagem – uma

linguagem não esterilizada pelo purismo da razão pura – na obra de Hamann

aparece como uma recusa da simplificação da linguagem: recusando tanto a

essencialidade última – a mística como fim na linguagem –, quanto sua

instrumentalidade – postura de recusa que se repete como comentamos, no

romantismo de Iena, com o reconhecimento de uma tensão imanente à linguagem,

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“decaída”, mas detentora dos resquícios da linguagem original, bem como, como

veremos, na concepção de linguagem apresentada por Walter Benjamin – em favor

da não separação, melhor, da re-reunião, da linguagem e do conhecimento, e, no

limite, a reunião da linguagem e do pensamento:

“Ao mesmo tempo em que põe em relevo o poder da linguagem, Hamann recusa a sua idolatria, acentuando as dores da dificuldade que crescem, inúmeras, reproduzindo-se: quanto mais se pensa nela, mais vontade temos de nos calar. E, no entanto, precisamente por isso, é necessário voltar a pensar, repetidamente, sem descanso, aceitando o perigo dos escolhos, ser apanhado no centro do vórtice”. (MOLDER, 1992, p. 116)

A filosofia da linguagem de J. G. Hamann revisa a dicotomia entre

sensibilidade e conceito – revisão que apareceu, como aponta a comentadora do

texto de Hamann, na Terceira Crítica, pela substituição da relação entre intuição e

conceitos pelos conceitos de imaginação e de entendimento (MOLDER, 1992, 127)

– pelas vias de expansão do conceito de linguagem, na tentativa de “corrigir” a

separação conceitual que originalmente não existia, na dupla significação da mesma

palavra, a palavra logos:

“Não é possível determinar, fixando a priori, a relação entre imagem e o conceito, cuja dinâmica formativa e matamorfósica provém dos movimentos vivos da língua; tal indeterminade é comparável a um fogo ardendo indefinidamente – próximos ao logos heraclitiano –, que se precipita no calor das suas cinzas as inumeráveis configurações que toma, desencadeando a ressonância expressiva das palavras e alimentando inesgotavelmente toda conceptualização, isto é, na finitude própria da linguagem experiencia-se a infinitude [...]”. (MOLDER, 1992, 128).

O pensar sobre a linguagem revela os confins comuns a ambos e, nestes confins, o

reconhecimento de que a idéia de um conceito purificado das vicissitudes da língua,

bem como de uma experiência que para além de suas determinações lingüísticas se

tornaria pura o suficiente para não servir para nada, muito menos para qualquer

conhecimento acerca da verdade. Na célebre passagem da Metacrítica, Hamann

utiliza a metáfora da árvore para evidenciar a origem dos conceitos e das intuições

na linguagem:

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“Ora, se a sensibilidade e o entendimento brotam, como dois troncos do conhecimento humano, de uma única raiz comum, de tal modo que os objetos são dados através daquela e pensados através deste, para quê, então, uma separação tão violenta, inadmissível e obstinada naquilo que a natureza uniu? Não será que ambos os troncos murcham e secam, por força de uma dicotomia e de uma cisão da sua raiz?” (HAMANN, 1992, p. 145)

A Metacrítica figura assim como uma crítica ao texto da Crítica da razão Pura,

utilizando os mesmos conceitos dela, com a intenção de corrigir alguns pontos no

“sistema da razão”, exatamente em suas “dificuldades”: “a divisão das faculdades, a

heterogeneidade radical das intuições e dos conceitos” (MOLDER, 1992, 121), mas

especialmente para criticar a hegemonia da razão e de seus direitos, inclusive sobre

si mesma, em detrimento de sua outra parte, a linguagem: “[...] Hamann, que não

sabe falar da razão como Kant, [...] da razão como fundamento de todas as fontes,

objetos e modos do conhecimento [...], considerando-a, antes, irmã de leite da

linguagem, poderia dizer que a razão é constituída e constituinte a um tempo, que,

alheada das forças vivas da linguagem, é um murmuro oco, um odre vazio

[...]”(MOLDER, 1992, 121). Como veremos adiante, a leitura hamaniana da Crítica

da Razão Pura terá especial importância nos conceitos de experiência e nas idéias

acerca do conhecimento no pensamento de Walter Benjamin. No que se refere à

filosofia da linguagem de Walter Benjamin, além das claras influências no que se

refere à teoria da linguagem, a leitura do texto da Metacrítica evidencia a concepção

complexa de linguagem de Walter Benjamin, sua valorização da materialidade da

linguagem e sua importância na constituição – e elaboração – da experiência –

como poderemos ainda ver nos breves comentários acerca do conceito de mimeses

em W. Benjamin. Adiantemos o que por ora será necessário; nas palavras de

Patrícia Lavelle:

“[...] A metáfora da árvore com duas raízes permite compreender que, na perspectiva da leitura de Kant por Hamann, esta faculdade corresponde tanto ao entendimento [...] quanto à sensibilidade [...]. assim, ela se identifica tanto ao pensando quanto ao percebido, à forma inteligível como à matéria sensível da experiência, pois as duas raízes estão ligadas por um único tronco que podemos chamar „razão‟, mas que, segundo Hamann, pode perfeitamente se chamar linguagem, se por esta palavra não designarmos apenas as línguas

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que se exprimem com palavras, mas também aquela que deveria resultar da metacrítica do purismo da razão pura de Kant e que seria uma „língua natural pura‟. Nesta perspectiva, o único „tronco‟ do conhecimento seria a imaginação, cuja atividade esquemática fundamenta tanto a experiência sensível concebida como medium lingüístico quanto a linguagem verbal” (LAVELLE, 2009, p. 102).

A relação entre a filosofia da linguagem de Walter Benjamin e o conceito

kantiano de imaginação – tal como ele pode ser interpretado – elucida importantes

aspectos, tanto sobre o fundamento crítico – afastando assim a interpretação

comum de recaída no irracionalismo – da filosofia da linguagem do crítico alemão e

de sua influência.

Como comentamos, a influência das idéias de Hamann sobre o pensamento

de W. Benjamin se tornou evidente no programa benjaminiano sobre a filosofia do

conhecimento. Apesar do caráter fundamental da purificação da razão na

constituição da arquitetura da crítica, esta separação é ilegítima se a razão, depois

de verificados seus limites e suas possibilidades, não se confrontar novamente com

a questão da linguagem (MOLDER, 1992, 122). Esta idéia que certamente possuí

como fonte original o pensamento de Hamann será fundamental na elaboração da

filosofia da linguagem de Walter Benjamin, pelo reconhecimento da complexidade da

linguagem e de sua importância para o pensamento. Na idéia hamaniana de

reconhecer as “condições de possibilidade do conhecimento” na linguagem, em sua

determinação histórica e ao mesmo tempo em seu caráter infinito – a citação acima,

(MOLDER, 1992, p. 128) – encontramos uma concepção cara a filosofia da

linguagem de Benjamin, que aparecerá como o próprio centro de sua filosofia da

linguagem, nos dois textos, o ensaio Sobre a Linguagem e o prefácio sobre a Tarefa

do Tradutor, comentados abaixo: “Razão é linguagem, logos [...]” (HAMANN, apud

MOLDER, 1992, 124):

“Falar é traduzir: a afirmação da prioridade da linguagem não equivale ao estabelecimento de um a priori, no sentido de um constitutivo atemporal, acorpóreo, próprio da emergência moderna do sujeito e de sua intencionalidade: a linguagem está sempre aí, à nossa frente, [...] abundante, conformativa, generativa [...]. Os seus vestígios vivos [...], encontramo-los na própria constituição dos conceitos, vestígios que são outros tantos pontos orientadores, foco de interpretação. A linguagem é memorial, revelação, augúrio,

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mantendo uma solidariedade íntima, indiscernível com a história e a tradição que a sustenta, qualquer coisa que só se poderia compreender, através da relação entre a palavra latina actio e a palavra grega μίμησιϛ [...], poder de mimar, de apresentar pelo modo vivo da significação, ação revelada intuitivamente pelo gesto concreto, pela expressão testemunhada [...]” (MOLDER, 1992, pp. 124-125)

Como veremos, estas palavras poderiam ter sido escritas acerca da concepção de

linguagem e da filosofia de Walter Benjamin: temas como a linguagem como

tradução, a tensão entre finitude da linguagem e infinitude da língua, a linguagem

mímica como fonte de correspondência... entre outros temas apareceram

atualizados no pensamento benjaminiano.

Apresentaremos a partir deste momento algumas considerações acerca da

filosofia da linguagem de Walter Benjamin. Partiremos do texto Sobre a Linguagem

em Geral e Sobre a Linguagem Humana 11 (BENJAMIN, 1992), texto fundamental da

filosofia da linguagem benjaminiana, de onde se desdobrará – em um percurso nada

linear, certamente – os mais importantes temas tratados em nosso texto. Neste texto

de 1916 (ou de 1915), não publicado durante a vida de Benjamin (BENJAMIN,

2000b, p. 73), o autor apresenta uma teoria da linguagem que se desenvolverá na

formação da filosofia da linguagem presente em sua obra posterior.

Comentaremos o texto apresentando suas considerações mais gerais acerca

de seu conceito de linguagem para depois passar ao desenvolvimento de sua

filosofia da linguagem. A questão acerca da natureza da linguagem é colocada a

partir da apresentação de suas dimensões essenciais: a essência espiritual e a

essência lingüística da língua mesma. Enquanto a essência lingüística é a própria

linguagem, sua essência espiritual deve ser diferenciada dela mesma (BENJAMIN,

1992, p. 179). A distinção entre estas “essências” da linguagem será o argumento

fundamental deste texto, de onde se desenvolverá suas importantes considerações:

a linguagem, em primeiro lugar, não é um meio de comunicação, é a própria

comunicação, e esta comunicação é a do que Walter Benjamin chama de sua de

11

As dificuldades inerentes à interpretação deste célebre texto são comparáveis aos do prefácio epistêmico-crítico ao livro sobre o drama barroco alemão. Como estes textos formam o começo, o meio e o fim da estrutura de nosso trabalho, não poderíamos recorrer à outra estratégia a não ser a do próprio Benjamin em relação à tarefa da interpretação: da fidelidade obstinada à literalidade dos textos – potencializada enquanto tradução, como veremos – talvez seja possível se aproximar da verdade – se houver alguma – inscrita neles.

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sua essência espiritual: “a essência espiritual é idêntica à lingüística só na medida

em que é comunicável” (BENJAMIN, 1992, p. 179). Se na linguagem o comunicado

é sua própria essência lingüística (BENJAMIN, 1992, p. 179), a sua essência

espiritual residira na imediaticidade de sua comunicação. A linguagem não é um

meio de comunicação de conteúdos, é um medium onde o quê se comunica – e não

o comunicado – é a própria linguagem, e o que nela é comunicável, é sua essência

espiritual (BENJAMIN, 1992, p. 180).

Esta emaranhada teoria da linguagem – à primeira vista menos emaranhada

do que realmente o é – se opõe de acordo com Benjamin à “concepção burguesa da

linguagem” (BENJAMIN, 1992, p. 181). O que Benjamin chama de “concepção

burguesa da linguagem” – adiante ele apresentará as conseqüências de modelo – é

o radical oposto à teoria da linguagem que o filósofo alemão apresenta: a linguagem

comunicaria algo através das palavras. Identificamos neste texto programático de

Walter Benjamin uma crítica à instrumentalização da linguagem que acompanhará

seu pensamento – e que tentaremos seguir – ao logo de sua obra até seus últimos

escritos. Para Benjamin “a língua nunca dá meros signos” (BENJAMIN, 1992, p.

189). As críticas de Benjamin aparecem, assim, em dois momentos de seu ensaio,

com a apresentação de uma contrapartida à concepção burguesa da linguagem em

dois pontos desta: a idéia de que se comunica algo através da linguagem, e a idéia

de arbitrariedade das palavras em relação às coisas: “Assim já não pode aceitar-se

a idéia correspondente à perspectiva burguesa da língua, de que a palavra se

comporta de forma aleatória relativamente à coisa, de que através de uma qualquer

convenção seria um signo aposto às coisas (ou ao conhecimento delas)

(BENJAMIN, 1992, p. 188). A recusa da concepção burguesa da linguagem não

significa uma opção por uma concepção mística da linguagem – e não uma teoria

mística, que é o caso do texto aqui comentado. Walter Benjamin é categórico na

oposição de sua teoria da linguagem em relação as concepções místicas da

linguagem, que atribuem à palavra a essência místico-espiritual da língua: “Mas

também é ambígua a recusa da teoria lingüística burguesa pela teoria lingüística

mística [...]. Isto é incorreto porque a coisa em si não tem palavra, é enviada a partir

da palavra de Deus e conhecida no seu nome segundo a palavra humana”

(BENJAMIN, 1992, p. 188). Aqui reside uma das maiores riquezas da obra de

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Benjamin, a crítica aos mitos – tanto em suas formas obscuras quanto nas formas

iluminadas – crítica que recorre à uma terminologia por vezes teológica, outras

vezes materialista, na maioria das vezes, materialista e teológica.

No interior da tradição mística judaica podemos identificar a importância do

elemento material como resquício/indício da totalidade. A identidade entre verdade e

linguagem deve partir de uma concepção de verdade como absoluto e da linguagem

humana como finita. A linguagem humana, desta forma, não comporta a totalidade

que a ultrapassa, visto que frente à verdade resta a incompletude da linguagem

humana, de acordo com o grande especialista em mística judaica – e amigo de W.

Benjamin – Gershom Scholem (SCHOLEM, 1999, p. 09-10). A palavra de Deus, a

partir do conceito de Revelação toma parte na experiência humana através da

linguagem finita, e se estabelece no interior desta em um lugar que ultrapassa as

meras relações de comunicação: “A convicção de que a linguagem, o medium no

qual o espírito do homem se concretiza, possui um lado interior, ou seja, um aspecto

que não se revela totalmente nas relações de comunicação entre os seres forma o

ponto de partida de todas as teorias místicas da linguagem das quais também fazem

parte os cabalistas” (SCHOLEM, 1999, p. 10) e certamente a teoria da linguagem de

Walter Benjamin.

A identidade entre esta concepção de linguagem da mística judaica e a

concepção mágica do romantismo do primeiro romantismo evidencia na teoria da

linguagem de Walter Benjamin a tentativa de se colocar como crítico 12 – e no

conceito de crítica, continuador, como comentamos brevemente no exemplo da

Metacrítica hamaniana – da tradição filosófica moderna.

O conceito de crítica e a teoria do conhecimento de Walter Benjamin são

exemplos da forma através da qual o conceito de mística da linguagem foi

transposto para a esfera do profano, sem perder sua essência – que, como na

linguagem e na verdade, permanece escondida. O elemento místico na teoria da

linguagem de Benjamin só se desdobrou – o próprio Benjamin não retomou de forma

12

É evidente a pertinência da crítica de Benjamin ao que ele chama de “concepção burguesa da linguagem” em relação à crítica benjaminiana da modernidade: W. Benjamin foi tão moderno quanto membro – pelo menos até antes da Primeira Guerra - da burguesia, lugares assumidos no interior de sua obra como pontos, muitas vezes privilegiado da crítica. A crítica à burguesia européia nos textos de Benjamin nos evidenciam não algo sobre sua condição, naquele momento, de (ex)membro da burguesia, e sim do caráter moderno de suas críticas à modernidade.

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explícita o tema da origem da linguagem, apenas de forma sub-reptícia seu

conteúdo místico imanente – sob os objetos do mundo profano, para como que

despertá-lo do sono de sua pura objetividade mítica, no reino das coisas. Nas

palavras de G. Scholem:

“O místico descobre na linguagem uma dignidade, uma dimensão a ela imanente ou, como se diria hoje: algo em sua estrutura que não está orientada para a comunicação de um elemento comunicável, mas, sim – e é precisamente nesse paradoxo que toda a simbólica se fundamenta – para a comunicação de algo não comunicável, que vive sem expressão na própria linguagem, e mesmo se tivesse uma expressão, não teria, de qualquer forma, um significado, um „sentido‟ comunicável” (SCHOLEM, 1999, p. 11)

É a partir desta “dignidade” reconhecida à linguagem que Walter Benjamin

desenvolve sua filosofia da linguagem, contra a concepção meramente comunicativa

– a “concepção burguesa” – e contra qualquer essencialismo que tentasse ver na

mística da linguagem a verdade pura, contrária a concepção mística da linguagem

que reconhece esta dignidade justamente naquilo que na linguagem não se

comunica, isto é, a própria linguagem.

Se para Benjamin a essência espiritual da linguagem é aquilo que nela se

comunica (e não através dela), no caso do ser humano não é diferente: “Na

linguagem do homem é comunicada a sua essência espiritual” (BENJAMIN, 1992, p.

181). Como percebemos esta essência espiritual não é um conteúdo, mas o próprio

comunicável na linguagem. A essência espiritual do homem é comunicada em sua

linguagem e esta comunicação se dá na denominação. A idéia acerca do nome

possuí um caráter central para a filosofia da linguagem de Walter Benjamin. O nome

ilustra a definição do filósofo acerca das essências da linguagem: “O nome é aquilo

através de que nada mais se comunica e, no qual, a própria linguagem se comunica

em absoluto.” (BENJAMIN, 1992, p. 181). O quê o nome comunica acerca do

nomeado? Absolutamente nada, além da comunidade espiritual entre o denominado

e o quê denomina. A ausência de conteúdos comunicados no nome indica, para

Benjamin, a sua singularidade no interior da linguagem: “No nome a essência

espiritual que se comunica é a linguagem” (BENJAMIN, 1992, p. 181).

A magia do nome, o poder nomeador atribuído à palavra peculiar destituída

de conteúdo, o nome como continuidade da palavra criadora, não deve ser

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compreendido como metáfora – ou deve ser compreendida como a metáfora da

ausência de um comportamento metafórico do nome – mas sim como

reconhecimento, por parte de Walter Benjamin, da extensão da linguagem humana

para além de sua função cotidiana, instrumental, mero meio de transporte de

informações – concepção mais ou menos aceita no discurso artístico, mas que ainda

encontra forte resistência no âmbito das ciências, talvez por uma espécie de trauma

que favorece um conceito simplificado, melhor, simplório, de razão.

As palavras acertadas de Susana Kampff Lages acerca deste conceito de

linguagem, precisamente acerca das passagens, das mediações entre os níveis de

linguagem – como aponta Seligmann-Silva sobre o conceito primeiro-romântico de

linguagem – onde o nome e a palavra ordinária, o sopro criador e a palavra

denominadora, não são termos ligados pela decadência; apesar da marca da queda

a palavra humana possuí um resquício, uma frágil força, que não deve ser relegada

em nome de uma falsa aparência de clareza, o desdobrar da língua cindida nos

lampejos de uma pretérita totalidade – que no conceito de tradução aparecerá com

todo sua luz: “E essa idéia de mediação”, disse Lages, acerca da passagem (da

tradução da língua muda das coisas em língua denominadora do homem, resquício

da palavra criadora):

“E essa idéia de mediação tem seu ancestral na instauração do vínculo do homem com as coisas por meio da linguagem como potência mágica. O meio instrumental (Mittel) e o meio propriamente dito (Medium), essa operação mágica é nada mais nada menos que a própria linguagem, desprovida de qualquer função instrumental, que, em seu duplo aspecto concreto, sonoro, material, por um lado, e mental, conceitual, por outro, é capaz de operar, sobretudo por sua capacidade nomeadora, a recriação simbólica do mundo. O resultado desse recurso mágico é a presentificação da coisa por meio da evocação de seu nome, ou seja, a produção de um outro mundo de seres, coisas e objetos, à imagem e semelhança do mundo já criado [...]” (LAGES, 2002, p. 206).

A “evocação do nome” terá na sua forma profana – isto é, na mimese não criadora

da palavra divina na palavra do julgamento, como veremos ao termo dessa seção –

no saber, isto é nada além ou aquém da possibilidade do conhecimento humano. A

teoria do conhecimento baseada em um conceito “simples” de representação –

como Benjamin criticou, e ainda tentaremos acompanhar – encontra aqui já a

formulação das bases de sua crítica, a relação entre sujeito-objeto e conhecimento

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já começa a se formar de maneira mais complexa – e por ora rica – onde o

conhecimento do objeto no nome – ou no juízo – é mais que um simples reflexo;

crítica já esboçada na noção de que o nome não transmite um conteúdo – que seria

“refletido” ou representado pelo conhecimento – mas sim, uma concepção onde a

linguagem é o medium onde o conhecimento se desdobra, como a tradução, entre

linguagem muda das cosias e a denominação humana. A magia do nome, sua

“potência mágica” perde o caráter metafórico quando entendida como recusa da

purificação do conhecimento pelo achatamento da linguagem, sua densidade indica

outro caminho – que passa pelo reconhecimento daquela íntima relação entre

conhecimento e linguagem – uma senda no interior do bosque da linguagem, onde

há uma raiz comum, para troncos arbitrariamente separados. Não anteciparemos os

temas debatidos adiante, voltemos à discussão acerca da teoria da linguagem do

ensaio Sobre a Linguagem... precisamente onde paramos, na importância do tema

do nome na tradição filosófica que marcou o pensamento benjaminiano.

Gershom Scholem enfatiza a importância do tema do nome para a mística

judaica, mesmo antes dos desenvolvimentos mais complexos da teoria mística da

linguagem: “Mesmo antes da especulação sobre a linguagem entre os esotéricos do

judaísmo, o Nome de Deus toma um lugar central nas suas considerações”

(SCOLEM, 1999, p. 17). Ainda de acordo com G. Scholem, a apresentação das

considerações acerca do Nome de Deus no interior de reflexões acerca da mística

da linguagem da tradição judaica – Scholem ressalta o quanto esta relação do

Nome de Deus e da mística da linguagem destoa das idéias dos “autores bíblicos”

(SCHOLEM, 1999, p. 19), isto é, o quanto esta relação se tornou independente do

judaísmo “estritamente rabínico” – esta relação entre Nome e mística da linguagem,

“já indica importantes mudanças”. Nas palavras – importantíssimas para

compreender a teoria da linguagem benjaminiana a partir de uma de suas mais

importantes influências – de Gershom Scholem:

“Da coincidência da palavra e do nome resultaram duas importantes conclusões para o desenvolvimento da mística da linguagem no judaísmo. Através desta identificação, a palavra que comunica algo e, mesmo se apenas na forma do imperativo [...], que participa algo, torna-se um nome que nada comunica exceto a si mesmo. Aquilo que sai para fora é apenas a representação daquilo que já existiria anteriormente no próprio Deus [...]. Na medida em que este nome

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torna-se palavra, ele passa a ser uma parte integrante daquilo que podemos chamar de linguagem de Deus, na qual Deus mesmo tanto se auto-representa, se manifesta, como também comunica a si próprio na sua criação, que passa a ter existência no próprio medium dessa linguagem. Este duplo caráter da palavra divina enquanto nome, determinará de forma abrangente, a teoria lingüística cabalista” (SHOLEM, 1999, p. 19-20).

Passagem absolutamente benjaminiana se tivermos em mente o ensaio Sobre a

Linguagem... Nela encontramos a relação entre o Nome de Deus e seu poder

criador, o Nome como lugar-tenente da potência divina, e ainda mais: a linguagem

nomeadora é o medium da existência das criaturas, que para Benjamin, possuem

em sua linguagem algo como um sopro daquela palavra divina, a nomeação

humana, mimeses originária da palavra criadora, mantinha os resquícios deste

poder até certo momento. Assim como a queda marca a saída da palavra criadora

de si – na “magia do juízo” – W. Benjamin não segue as especulações místicas do

judaísmo – tratadas aqui, evidentemente de maneira muito geral – quanto a natureza

do desenvolvimento da mística do Nome, no momento em que, como língua, passa

a ter letras e, claro, estas letras só poderiam ser da linguagem da revelação: “Estas

letras [da “linguagem divina”] são, porém, as da língua hebraica enquanto

linguagem, primordial e linguagem da Revelação. Com isso começou a verdadeira

especulação da mística da linguagem [...]” (SCHOLEM, 1999, p. 20). Como é sabido

W. Benjamin, apesar das tentativas, não aprendeu hebraico 13 – que talvez tivesse

lhe garantido uma carreira em Jerusalém (e talvez a oportunidade de escapar do

nazismo na Europa alguns anos depois), como a de Scholem – bem como se

aproximou cada vez mais dos objetos do mundo profano. Mas não adiantemos mais

os desdobramentos da filosofia da linguagem de W. Benjamin em direção à sua

filosofia da história.

Por ser o ser humano aquele que, entre as criaturas, denomina e que recebe

o nome, “a essência espiritual do humano é integralmente comunicável”

(BENJAMIN, 1992, p. 182) no nome. Na capacidade exclusivamente humana da

13

“Em diversas tentativas, Walter Benjamin procurou estudar hebraico. Esta não é, para ele, uma língua entre outras, que podemos ou não aprender, que decidimos ou não conquistar. [...] Sempre recomeçados, seus estudos adquirem, para ele, um sentido preciso: uma língua sagrada é inacessível ao profano. O hebraico, como a Palestina – para onde deveria ter-se mudado para ser docente na Universidade de Jerusalém a convite de Scholem – é uma figura da „Terra Prometida‟. Tal como sua viagem, o hebraico é, permanentemente, adiado” (MATOS, 2000, p. 14)

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nomeação se justifica o lugar privilegiado do humano na ordem da criação – que

naturalmente, será perdido, como já sabemos, mas em todo caso, veremos. Sendo a

linguagem a essência espiritual do homem e o que é comunicável na linguagem da

natureza e, portanto das coisas, é a essência destas, a comunicabilidade essencial

das coisas se dá na essência humana.

Em relação à linguagem humana, dotada da capacidade nomeadora, a

linguagem das coisas apresenta suas diferenças. Enquanto a essência espiritual do

homem coincide, na verdade mais, é a sua linguagem, “a própria língua não é

completamente expressa nas próprias coisas” (BENJAMIN, 1992, p. 185). Enquanto

a materialidade das coisas levam em sua superfície uma linguagem muda – apesar

de dotada dos resquícios da essência originária criadora, o que permite que sejam

denominadas – a “comunidade mágica da linguagem humana” é “imaterial”

(BENJAMIN, 1992, p. 185), imaterialidade representada no som, símbolo dos ecos

do sopro criador. A partir desta diferenciação a filosofia da linguagem de Walter

Benjamin começa a se desdobrar a partir desta teoria da linguagem. Antes, mais um

ponto merece ainda nossa atenção.

Segundo Walter Benjamin a “equiparação” das essências espiritual e

lingüística, na tradição filosófica, desenvolveu em uma “graduação, em níveis, de

todo ser espiritual” (BENJAMIN, 1992, p. 184). Esta graduação em “níveis de ser”

serviu, no interior da metafísica da linguagem – Benjamin cita o exemplo da

escolástica – para uma graduação das essências, uma filosofia que visava o

estabelecimento de hierarquia entre espírito e linguagem, em graus de ser. Para o

filósofo alemão no conceito de revelação esta equiparação entre essências espiritual

e lingüística pede um importante conceito no interior da filosofia da linguagem – que

inclusive se mostra de “grande amplitude metafísica” (BENJAMIN, 1992, p. 184).

De acordo com o filósofo, o conceito de revelação apresenta a questão –

sempre presente no interior das reflexões lingüísticas – acerca do “conflito entre

expresso e exprimível e não expresso e não exprimível” (BENJAMIN, 1992, p. 184).

Relação entre o que se mostra e o que não se mostra no interior da linguagem.

Contrariamente à tradição que estabelece a “relação entre espírito e linguagem” na

forma em que o espiritual seja o quê não se expressa na linguagem – o mistério,

etc., Walter Benjamin apresenta suas idéias acerca desta relação: “[...] Quanto mais

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profundo, ou seja, existente e real for o espírito, tanto mais ele é expresso e

exprimível” (BENJAMIN, 1992, p. 184). Aqui o “mais expresso” deve corresponder ao

“puro espiritual”. Esta idéia reforça a concepção benjaminiana de que a linguagem

nada comunica além de sua essência: a expressão lingüística há de comunicar

apenas o que na linguagem existe de mais elevado espiritualmente, na revelação.

Mas, e na linguagem que não é revelação? Aqui chegamos a outro ponto importante

da teoria da linguagem apresentada por W. Benjamin. De acordo com o filósofo:

“Mas aqui anuncia-se que apenas a essência espiritual mais elevada, tal como se

manifesta na religião, se apóia só no homem e na linguagem” (BENJAMIN, 1992, p.

185). A revelação pertence aos domínios da linguagem humana, linguagem

nomeadora, onde coincidem as essências espiritual e lingüística do homem, através

da qual a linguagem das coisas torna conhecimento. Mas não toda a linguagem é

abarcada por esta esfera superior da revelação: “[...] a arte, sem excluir a poesia,

não assenta na derradeira súmula do espírito da língua, mas sim no espírito material

da língua, ainda que na sua beleza perfeita” (BENJAMIN, 1992, p. 185). Temos o

primeiro indício de que na linguagem humana, apesar da coincidência entre

espiritual e lingüístico, apesar da língua se comunicar a sim mesma na linguagem

humana, apesar da superioridade do nome enquanto resquício da língua criadora

transformada em língua nomeadora, esta esfera da linguagem humana não abarca

toda a linguagem humana. Passemos a alguns comentários acerca de outro ponto

central, antes de concluirmos nossos comentários deste ensaio.

Através da nomeação o homem conhece as coisas. É no nome que a

linguagem infinita da criação entre em contato com a linguagem finita. A passagem

da linguagem da criação, no nome, para a linguagem das coisas, é chamada por

Benjamin de tradução. No interior da linguagem humana a linguagem criadora

presente no nome recebe o que é comunicado nas coisas. De acordo com Benjamin:

“Para a recepção e espontaneidade”, o nome como resquício da palavra criadora e

recebedor das coisas na nomeação, “recepção e espontaneidade [...] a linguagem

tem a sua palavra própria, e esta palavra também é válida para a recepção do

inonimado 14 no nome. É a tradução da linguagem das coisas para a linguagem do

homem” (BENJAMIN, 1992, p. 189). A tradução é a conversão de uma língua inferior

14

Como veremos em nossos comentários do ensaio sobre A Tarefa-Renúncia do Tradutor.

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– na comunicação espiritual de sua essência – para uma superior. Nomear as coisas

é traduzir a palavra muda das coisas na palavra humana. O conhecimento só se dá

nesta tradução: “Só na tradução pode a linguagem das coisas converter na

linguagem do nome e do conhecimento” (BENJAMIN, 1992, p. 191). Dotado da

linguagem nomeadora, o homem recebeu sua tarefa maior: “receber a linguagem

muda, sem nome, das coisas, e a transformar no nome, em som [...]” (BENJAMIN,

1992, p. 190).

Se o conhecimento das coisas é tradução na linguagem sonora, na linguagem

do nome, que o homem é portador como marca de sua criação, se o nome é o signo

da harmonia entre nomeação criadora e nomeação conhecedora, entre Criador e

criatura, por que a língua é freqüentemente tratada como mero signo? Por que

existe uma diversidade de línguas? Por que certa confusão impera na linguagem

humana? Passemos do desenvolvimento da teoria da linguagem para as reflexões

filosóficas de Walter Benjamin acerca da linguagem.

Antes, algumas palavras sobre a amplitude desta teoria da linguagem.

A teoria da linguagem de W. Benjamin se apresenta de maneira paralela as

críticas acerca do caráter instrumentalista de certas concepções de linguagem,

como uma crítica ao ideal da filosofia como sistema, uma “compreensão

antitradicionalista de filosofia” (Gary Smith apud GAGNEBIN, 2007b, p. 86), de

acordo com Jeanne-Marie Gagnebin:

Esta concepção antitradicionalista “certamente não [consiste] na rejeição da tradição em sua dimensão de herança histórica (pelo contrário, a relação com essa dimensão é um tema-chave da reflexão de Benjamin), nem em sua dimensão de tentativa de apreensão racional do real (não se pode confundir a vertente poético-metafórica ou mesmo os aspectos teológicos do pensamento de Benjamin com uma apologia do irracionalismo). Essa compreensão antitradicionalista remete muito mais a uma recusa do ideal de filosofia como sistema e, paralelamente, a uma reflexão aguçada sobre a especificidade da relação entre linguagem e pensamento na filosofia portanto.” (GAGNEBIN, 2007b, 86).

Não se trata de minimizar ou justificar o caráter teológico ou o caráter

“antitradicionalista” do pensamento de W. Benjamin acerca da linguagem: a

estratégia de retorno a tais temas na reflexão benjaminiana em primeiro lugar não se

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destoa da tradição filosófica, que em algumas circunstâncias faz da negação destas

suas origens, seu tema de legitimidade. Em segundo lugar a peculiaridade do

pensamento benjaminiano só pode ser apreendida no interior da possibilidade de

sua própria atualização, como o próprio crítico fez ao longo de sua obra: qualquer

movimento do pensamento que almeje visar à verdade acerca de algo necessita

passar inevitavelmente pela instância da crítica, como poderemos ver mais

detalhadamente a seguir. Este argumento aparecerá em vários momentos ao longo

de nosso texto. As reflexões acerca da linguagem na obra de W. Benjamin possuem

forte ligação com certa tradição importante, mas não mesma rechaçada, do

pensamento. A linguagem traz ao pensamento – na verdade evidencia nele, posto a

inseparabilidade de ambos – seu caráter histórico em sentido grave, não apenas

suas determinações históricas. Ainda nas palavras de Jeanne-Marie Gagnebin: “[...]

Trata-se, para Benjamin, de ressaltar aquilo que segundo ele faz a especificidade da

filosofia: sua „condição histórica‟, isto é, o pertencer da filosofia à tradição histórica e

lingüística (de linguagem)” (GAGNEBIN, 2007b, p. 89). Reconhecer a historicidade

do pensamento é uma das vias de reconhecimento do caráter lingüístico da história

e do próprio pensamento. Como já afirmamos, voltaremos ainda a tais idéias.

Passemos, agora sim, às conseqüências da teoria da linguagem atualizada no

ensaio Sobre a Linguagem, conseqüências que aqui identificamos como a semente

da filosofia da linguagem de Walter Benjamin, já em estado de germinação, a

despeito de sua aparência insípida em nossos dias.

Walter Benjamin recorre ao texto bíblico para seguir suas considerações

acerca da filosofia da linguagem no ensaio Sobre a Linguagem. O texto bíblico é

seguido, de acordo com o filósofo, por atribuir a si mesmo o estatuto de revelação e,

por isso, voltar-se para a linguagem em seus elementos fundamentais: Aqui “a Bíblia

é de início insubstituível, devido apenas ao fato de que [...] [ela] pressupõe a

linguagem como realidade última, inexplicável, mística, e só observável na sua

evolução”. (BENJAMIN, 1992, p. 185). A utilização do texto bíblico aqui revela de

maneira evidente a tentativa de pensar a linguagem a partir de pontos – “a Bíblia é

de início insubstituível” – que apresentem alternativas ao que Benjamin chama de

concepção burguesa da linguagem. Ao longo de sua obra a metáfora bíblica quase

desaparecerá – ou permanecerá quase escondida? – dando lugar às considerações

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acerca da experiência mágico-lingüística do ponto de vista antropológico (O ensaio

sobre a Faculdade Mimética), de tudo na linguagem que não são meros signos (as

idéias sobre o caráter figural da escrita, bem como da experiência estética da

linguagem, na maioria de seus textos de crítica) e do que na história é linguagem.

Benjamin se refere a um lugar específico da linguagem que, no contexto deste

ensaio, só pode ser pensado a partir da linguagem bíblica.

É fundamental neste momento compreender de que maneira a apresentação

deste conceito místico de linguagem em referência ao mito da criação, segundo o

texto bíblico, representa – ao contrário do que possa parecer à primeira vista – o

reconhecimento da impossibilidade de abarcar o absoluto – representando aqui a

verdade – e a tarefa passa a residir em uma busca que não pode se voltar senão à

materialidade, ao concreto, naquilo que tem de singular. É a inversão de um

procedimento mais conhecido: a busca pela totalidade parte do singular, mas que

jamais pode abandoná-la, jamais visa a dissolução desta singularidade. Como

comenta Thomas Pfau em um conhecido texto, apontando as diferenças acerca das

idéias de conhecimento de Hegel e W. Benjamin a partir do reconhecimento da

ênfase do último em um conceito mais complexo de linguagem, mais problemático,

nas palavras de T. Pfau (PFAU, 1988, p. 1074). O sacrifício da materialidade no altar

do absoluto, de acordo com Pfau, se apresenta também – e têm suas raízes –, na

filosofia especulativa de Hegel, pela “essencial compatibilidade entre expressão

lingüística e experiência” 15 (PFAU, 1988, p. 1075), compatibilidade demonstrada

“através de uma erosão progressiva da condição material do significado” (PFAU,

1988, p. 1076). A atenção à “condição material do significado”, recusada pela “teoria

semiológica de Hegel” é, na interpretação benjaminiana, o reconhecimento de que a

própria palavra (o próprio signo) é mais do que ela visa comunicar – o “caráter

simbólico” da linguagem, para além da mera comunicação, é um dos elementos

centrais da mística da linguagem, como chama a atenção o texto de G. Scholem

citado acima (SCHOLEM, 1999, p. 10), como o reconhecimento de uma “dignidade”

da linguagem – isto é, a recusa de sua simplificação em favor de uma pretensa

clareza na comunicação 16. Ainda de acordo com Thomas Pfau: para Hegel: “[...]

15

Citação baseada na tradução livre do original em inglês. 16

Como temos enfatizado ao longo do texto, não existe um problema na clareza da comunicação, se há algum mal entendido, ele reside na tentativa de limitar a linguagem à função comunicativa em

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Lingüística e entendimento são estruturalmente cognatos, uma premissa que atenta

em sustentar em uma narrativa semiológica que repete sempre de novo a história do

esquecimento progressivo dos aspectos materiais de toda representação

(Vorstellung)” (PFAU, 1989, p. 1077).

Acerca da importância da materialidade da escrita, do signo, o tema do

hieróglifo é recorrente, e nos permite outra aproximação. Márcio Seligmann-Silva

ressalta a valorização do hieróglifo, para o primeiro romantismo, como exemplo da

“escrita místico-simbólica que continha segredos divinos” (SELIGMANN-SILVA,

1999, p. 30), em oposição à “[muitos textos da] estética da Aufklärung”. Mas ao

contrário do simbolismo medieval, continua Seligmann-Silva, “se tem a impressão de

ter perdido a chave para a leitura desta escrita cifrada do mundo”, e cita F. Schlegel:

“Falta o significado do hieróglifo” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 30). Como típico

desenvolvimento da Aufklärung, a filosofia de Hegel desvaloriza o hieróglifo em favor

da pureza da significação, o que Thomas Pfau caracteriza como exemplo da

“erosão” entre o que ele chama de “significação” e materialidade da escrita: “A

intencionalidade latente de toda significação se manifesta particularmente na leitura

e na escrita. Assim a superioridade da escrita alfabética sobre o hieróglifo egípcio”

se manifesta “quando podemos ler a escrita alfabética sem ter qualquer intenção à

sua letra material”, Hegel desvaloriza a escrita hieroglífica “chamando-a de „letra

surda e escrita muda [...]” (PFAU, 1989, p. 1076). O tema da valorização da

materialidade da linguagem – de sua valorização – é fundamental no pensamento de

Walter Benjamin de maneira geral: como ainda veremos, o conceito de “escrita

imagética”, a organização da obra Passagens, as discussões em torno da tradução

da linguagem imagética na escrita e vice-versa; as idéias acerca da historiografia

são alguns dos elementos que evidenciam a presença poderosa (e latente) da

concepção de linguagem de Walter Benjamin em seu conceito de história. Por ora

ainda não poderemos avançar neste tema em favor do esforço de tornar um pouco

mais clara a filosofia da linguagem de W. Benjamin. Voltemos aos comentários do

ensaio Sobre a Linguagem.

favor de uma pretensa clareza na transmissão dos sentidos. Este ponto será enfatizado de forma contundente no ensaio de Walter Benjamin sobre a tradução.

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Para avançarmos em nosso comentário, agora é necessário transpor as

conseqüências da teoria da linguagem apresentada no ensaio Sobre a Linguagem

para as idéias benjaminianas acerca da linguagem, sua filosofia da linguagem

propriamente dita. Para Walter Benjamin atualidade criadora, que no nome está na

linguagem humana enquanto denominação e reconhecimento, foi copiada pela

palavra julgadora. Julga-se de fora da linguagem imediatamente criadora. Para

Benjamin “Este é o verdadeiro pecado original do espírito da língua” (BENJAMIN,

1992, p. 191). O conhecimento sem nome do julgamento. O conhecimento que,

segundo Benjamin, “sai do nome” torna a palavra exterior à palavra “imediata, a

palavra criadora de Deus” (BENJAMIN, 1992, p. 191). Nas palavras de Patrícia

Lavelle, que nos será de grande utilidade adiante por sua leitura do ensaio Sobre a

Linguagem a partir da confrontação com o kantismo: “Se o nome corresponde à

unidade entre matéria e forma da experiência no medium da vida, a duplicidade do

signo é conseqüência da fragmentação que, implicando a separação entre sujeito e

objeto, vem do uso das palavras no juízo” (LAVELLE, 2009, p. 98).

Para Benjamin a multiplicidade das línguas surge neste momento em que o

julgamento toma o lugar da denominação que reconhece: “Uma vez que os homens

tinham lesado a pureza do nome”, seduzido pelo conhecimento sem nome do bem e

do mal, “era apenas necessário verificar-se o fim daquele olhar sobre as coisas, no

qual a sua linguagem flui naturalmente no homem, para desaparecer o fundamento

comum do já abalado espírito da linguagem” (BENJAMIN, 1992, p. 193). “A quem

elege às cegas, fumaça do sacrifício golpeia-lhe / Nos olhos”, cita Benjamin em outro

lugar. O olhar já não é mais o mesmo: o nascimento da palavra humana, julgadora,

marca o “fim daquele olhar sobre as coisas, no qual a sua linguagem flui

naturalmente no homem [...]” (BENJAMIN, 1992, p. 193).

O “pecado original do espírito da língua”, de acordo com Benjamin, apresenta

três significados: o primeiro constata que a linguagem humana se tornou mero meio

de comunicação, a palavra se torna “mero signo”, o principal elemento de crítica de

Benjamin àquela que ele chama de “concepção burguesa da linguagem”, o segundo

significado aponta em direção a exteriorização da magia nomeadora, que se torna

“magia da sentença” (BENJAMIN, 1992, p. 192) – “da magia própria imanente para,

expressamente de fora, se tornar mágica” (BENJAMIN, 1992, p. 191), esta saída da

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magia imanente para uma magia exterior, para um imediatismo da sentença no

“palavreado” será retomado, posteriormente por Walter Benjamin, no interior das

discussões do tema do Mito, especialmente no que se refere às origens míticas do

direito. O terceiro significado, se relaciona à “abstração”, perdido o imediatismo do

nome, o “bem e o mal apresentam-se como inomináveis” – o julgamento é exterior

ao nome, ao “fluir natural da linguagem das coisas no homem” – e assim o bem e o

mal, do exterior da linguagem pura, só podem se tornar alvos da especulação,

objeto do conhecimento (BENJAMIN, 1992, p. 192).

A “queda” deixa a linguagem humana a um passo de sua pluralidade

dissonante. O tema forte da filosofia da linguagem de Walter Benjamin no prefácio A

Tarefa-Renúncia do Tradutor, a pluralidade instituidora do não entendimento. Como

é evidente, o tema da pluralidade das línguas – como desdobramento da “queda” –

tem seu espaço nas teorias místicas da linguagem do judaísmo. Scholem cita –

quase remontando os termos do ensaio Sobre a Linguagem – a presença das idéias

pluralidade das línguas como punição à ousadia do homem na tradição cabalística:

“A linguagem original, paradisíaca, do homem ainda tinha [o] caráter sagrado, ou seja, continuava unida de forma direta e natural à essência das coisas que ela queria expressar. Nessa linguagem continuava presente o eco do elemento divino, pois no sopro do pneuma divino, o movimento lingüístico do Criador transformava-se no movimento lingüístico da criatura. Foi tão-somente a confusão lingüística, surgida no decorrer de uma hybris mágica, com a qual o homem se empenhou – como diz o livro do Gênesis 2:4 – “em fazer um nome” para si, que suscitou as línguas profanas [...] A confusão lingüística constituía-se na grande perda da linguagem da recordação, de maneira que os atingidos tiveram de imaginar e inventar novamente as designações de cada coisa separadamente” (SHCOLEM, 1999, p. 48-49)

A despeito do caráter trágico da “queda” enquanto punição, da pluralidade

como conseqüência da vaidade humana, sabemos que Benjamin não segue a

tradição cabalista – parte dela – a partir do ponto que ela se torna reflexão como

esforço de retornar ao estado originário – vertente que Scholem chama de “mágica”,

no sentido de operar ações na tentativa de reverter o estado de queda por meio da

ação pessoal – e que certamente Benjamin reconheceria como mitológica. Desde já

se faz necessário compreender que a “queda”, a separação do símbolo, é a

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condição da linguagem humana tal como a conhecemos, e que o retorno à condição

paradisíaca só aparece como visada, como uma espécie de chamado ao qual não

se pode renunciar, mesmo jamais aceitando-o, e nunca como objetivo da reflexão –

que encaminharia para uma atitude “mágica”, isto é, mitológica frente ao mundo 17.

Mais do que como imperativo de retorno, a exteriorização da palavra

nomeadora na mimese da palavra criadora, no juízo, na palavra julgadora, abriu a

linguagem humana – pelo seu status a partir de então – deve ser compreendida

como a possibilidade da reflexão, diríamos, do pensamento. Neste sentido, continua

Patrícia Lavelle: “O saber que repousa sobre a queda da linguagem no juízo não

implica, [...] a ação condenável sobre o plano moral 18, mas é ele que permite ao

homem julgar moralmente suas próprias ações, isto é atribuir valor e sentido a elas”

(LAVELLE, 2009, p. 100). A abstração conduz assim a reflexão sobre a linguagem,

onde seu estado de fragmentação – a partir da “queda” – é a própria condição de

possibilidade desta reflexão: “[...] Se abismando no pecado original do espírito

lingüístico, a subjetividade se retorna sobre ela mesma, apreende a sua própria

realidade e se vê como o „mero reflexo de si mesma em Deus” (LAVELLE, 2009, p.

101). Outra concepção de linguagem não poderia visar, a partir da aparência – a

materialidade – da fragmentação da língua o que nela existe de essencial, do todo,

ou seja: da verdade. A raiz do procedimento alegórico benjaminiano parte desta

concepção de linguagem – muito semelhante à dos primeiros românticos e, sem

dúvida tributária da metacrítica hamaniana enquanto atualização do criticismo –

onde seu estado de fragmentação é condição e possibilidade de visar – por mais

precária, não-garantida e passageira, fugaz. Seguindo ainda Lavelle: “Nesta

perspectiva, o sujeito que se pensa a si mesmo nos juízos reflexivos se vê como o

„medium da reflexão‟ onde o medium do espírito ou a linguagem dos puros nomes

pode ser apresentado como idéia, pelos desvios analógicos da alegoria.” (LAVELLE,

2009, p. 101). Nestes desvios – antecipando brevemente um dos temas centrais de

nosso texto ainda por discutir – alegóricos o desdobramento da filosofia da

linguagem em teoria do conhecimento e, posteriormente, em filosofia da história:

17

Veremos as conseqüências de uma concepção mágica da linguagem na obra de Goethe mas não nos adiantemos. 18

Ao contrário, como também veremos na seção citada na nota anterior, a ausência de julgamento na palavra humana que deve julgar que acarreta uma violação moral.

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“Segundo Benjamin, „na imagem do mundo da alegoria‟, a perspectiva subjetiva”,

isto é: na materialidade da linguagem, a marca da cisão entre sujeito e objeto “é

totalmente incluída na economia do todo”, uma possível reconciliação simbólica,

“Assim, a alegoria indica que a aparecia do mal apresenta na realidade a redenção”

(LAVELLE, 2009, p. 101). Aqui já começamos a delimitar os perímetros do cerne de

nosso trabalho. Naturalmente não poderemos saltar etapas. Voltemos às reflexões

finais do ensaio Sobre a Linguagem.

Nos últimos parágrafos do texto de Walter Benjamin ele apresenta ainda

algumas idéias fundamentais em nosso contexto. Como já havia apontado no

começo do ensaio, recusar a “teoria lingüística burguesa” em favor de uma “teoria

mística” é uma atitude, pelo menos, “ambígua” (BENJAMIN, 1992, p. 188). Essa

afirmação se torna um pouco mais clara agora: o desdobramento filosófico da teoria

da linguagem apresentado na primeira parte do ensaio parte do momento figurativo

da queda. O estado paradisíaco é tão irrecuperável quanto essa recuperação é

desnecessária. Nenhuma filosofia pode se negar a reflexões que incluam uma

“teoria dos signos”. A materialidade da linguagem, sua exterioridade em relação ao

nome não pode ser recusada por nenhuma filosofia da linguagem ao preço de sua

“fragmentação” (BENJAMIN, 1992, p. 195). A linguagem da arte se assenta – ao

contrário da palavra revelada – no “espírito material da língua” (BENJAMIN, 1992, p.

183). E é a atenção ao seu caráter material – que para Walter Benjamin, a escrita, é

apenas um exemplo –, ao seu caráter simbólico que deve se voltar aquele que não

toma parte nem em uma idéia instrumental acerca da linguagem nem em uma

concepção mítico-essencialista. O dado é a linguagem material, mas esta

materialidade não pode ser considerado apenas em sua exterioridade: “Em todo

caso, a linguagem não é apenas comunicação do comunicável”, apesar, de

naturalmente sê-la – “mas, simultaneamente, símbolo do não comunicável”

(BENJAMIN, 1992, p. 196) 19.

Por fim, Benjamin encerra o texto com uma imagem, significativamente

semelhante às imagens de F. Kafka, que introduzirá a segunda parte de nossa

seção: “A linguagem da natureza é comparável a uma senha secreta, que cada

sentinela passa à próxima na sua própria linguagem, mas em que o conteúdo da

19

Grifo nosso.

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senha é a linguagem da própria sentinela.” (BENJAMIN, 1992, p. 196). O texto

explicitamente se refere à tradução como passagem entre línguas, cuja “unidade

deste movimento da língua” (BENJAMIN, 1992, p. 196) é a linguagem superior 20.

Mas esta imagem – e o seu significado, a saber, a filosofia da linguagem de Walter

Benjamin – só poderá ficar um pouco mais clara se nos demorarmos um pouco mais

sobre outro ensaio do filósofo.

1.2 A Teoria da Tradução: A Atualidade da Filosofia da Linguagem de Walter Benjamin

O ensaio A Tarefa-Renúncia do Tradutor (Die Aufgabe Des Übersetzers)

(BENJAMIN, 2001) foi escrito em 1921 e publicado em 1923, como prefácio da

tradução da obra Tableaux parisiens de Charles Baudelaire, tradução realizada por

Benjamin nesse período (BENJAMIN, 2000b, p. 263). Nossos comentários acerca

deste texto terão como centro a filosofia da linguagem que serve de apoio à

apresentação dos temas centrais do ensaio de Benjamin: a tarefa do tradutor e o

problema da tradução. A filosofia da linguagem benjaminiana presente neste

prefácio já possui as reflexões acerca do conhecimento e da verdade, que marcam

em nosso texto a passagem de suas discussões acerca da linguagem para sua

filosofia da história. Mais uma vez a luz deste texto só poderá ser captada pelas

frestas do inteligível – talvez traindo o próprio tema do texto: o apego à materialidade

literal – o procedimento de nossa interpretação do ensaio Sobre a Linguagem – é a

nossa única alternativa frente a este texto imensamente rico e difícil.

Nossa discussão se desenvolverá a partir de três momentos. Estes momentos

são temas que foram demarcados no interior do ensaio sobre a tarefa do tradutor

para tornar seu comentário menos dependente das metáforas benjaminianas, isto é,

apresentar as idéias de Walter Benjamin contidas neste ensaio de maneira um

pouco mais inteligível para nosso contexto e ao mesmo tempo aumentar as

possibilidades de articulá-las com as discussões que nos propomos.

20

A tradução não leva a uma linguagem superior, ou indica a direção a uma linguagem superior, a tradução é o próprio movimento da língua em direção a esta linguagem superior.

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Em primeiro lugar comentaremos a relação da obra original com a obra

traduzida, relação que Walter Benjamin qualifica como uma relação vital, isto é, a

tradução pode funcionar como continuação enquanto desdobramento da vida do

original, a tradução autêntica aparece como procedimento que, enquanto tarefa,

pode revelar algo da verdade acerca da obra original.

Em seguida comentaremos sobre a relação entre linguagem do original e

língua da tradução no intuito de elucidar a peculiaridade da idéia de que a tradução

pode revelar algo de verdadeiro acerca do original, peculiaridade que para W.

Benjamin reside no fato de que a relação lingüística entre original e tradução

aparece como uma relação essencial, mas por vezes preterida em favor da

comunicação de sentidos e conteúdos e da semelhança entre original e tradução.

De acordo com W. Benjamin se a relação entre o texto original e sua tradução for

encarada como ele propõe, essa relação lingüística apresentará algo acerca da

essência da língua em geral. Esta idéia acerca essência da linguagem apresentada

pelo relacionamento não instrumental entre as línguas da obra original e de sua

tradução vincula claramente este ensaio com aquele comentado na seção anterior,

Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana. O que de verdadeiro

se apresenta na relação essencial entre as linguagens do original e de sua tradução

é algo de verdadeiro acerca da própria linguagem, e daqui, da própria experiência

humana e do conhecimento.

No terceiro momento de nossos comentários apresentaremos de que

maneira, para Walter Benjamin, aqueles aspectos essenciais da linguagem que se

revelam a partir de uma tradução autêntica – que revela algo de essencial e

verdadeiro no interior da relação entre línguas diversas – é um conceito de

linguagem que confere um novo estatuto, uma especial “dignidade”, não apenas a

linguagem, mas também ao ramo que compartilha da mesma raiz que a linguagem,

o conhecimento humano.

A leitura do prefácio sobre a tarefa-renúncia do tradutor que se segue é

naturalmente uma interpretação que – como toda interpretação – privilegia alguns de

seus aspectos em detrimento de outros para tentar apresentar a forma através da

qual as idéias de Walter Benjamin acerca da tradução possibilitam a conexão de sua

filosofia da linguagem à sua teoria do conhecimento e filosofia da história. Antes de

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prosseguir é importante ressaltar o grau de atenção ao texto e a tensão que

acompanhará nossa leitura: “A leitura desse texto, que por sua própria arquitetura

demanda uma interpretação [...] já pressupõe, na língua” do leitor do prefácio,

“semelhantes formas de construção de sentido, em que objeto e tonalidade

expressiva se interpenetram tornando o significado um composto híbrido – mas não

fusional – entre aquilo que significa o significante, e o significado” (LAGES, 2002, p.

201). Evocar a dificuldade da leitura deste texto em nosso contexto deve significar

uma única coisa: não há leitura da Tarefa-Renúncia do Tradutor que escape ao seu

ritmo, não há justificativas aos eventuais erros de interpretação, pois cada nota de

interpretação é pressuposto da leitura – como em qualquer outro texto – mas que

neste caso, desde o primeiro momento, precisa ser assumida como interpretação.

Apesar do recurso declarado de não nos deixarmos seduzir pelas metáforas

benjaminianas 21, o ritmo de nosso comentário deverá dar contada tarefa de

apresentar a possibilidade de a linguagem figurar, exatamente lá onde ela cessa de

ser figuração, algo sobre o que W. Benjamin chama de essência, este poder de dizer

algo sobre si mesma que revele algo sobre o conhecimento humano.

A tradução para Walter Benjamin não se destina ao leitor (BENJAMIN, 2001,

p. 191), pois seu objetivo não é comunicar algum conteúdo, nem mesmo comunicar

algo do original (BENJAMIN, 2001, p. 189). Contra a concepção de tradução como

comunicação de conteúdos presentes no original Walter Benjamin apresenta um

conceito de tradução que, para ser compreendido em sua complexidade, se deve

voltar ao original, que possuí tão somente a “lei formal” da tradução (DERRIDA,

2006), este retorno ao original se legitima em um índice pertencente a ele, que

Benjamin chama de “traduzibilidade”. Nas palavras do crítico alemão: “A tradução é

21

Susana Lages acerca das metáforas benjaminianas: “Benjamin lança mão de algumas imagens para descrever a relação entre tradução e original. Como observou De Man, o uso dessas imagens, tais „tropos‟, por parte de Benjamin, não leva a uma ilustração transparente das teses defendidas; elas atuam de modo paradoxalmente desestruturador do texto, de tal forma a deixar o leitor sempre num estado de suspensão, de questionamento. As imagens não fecham, mas abrem novas questões à medida que vão sendo introduzidas no texto.” (LAGES, 2002, p. 221). Se nos for permitido adicionar algo: as metáforas benjaminianas não ilustram de forma transparente as idéias intencionadas; as metáforas justapostas como fragmentos de uma natureza petrificada de alguma exposição da “exótica” fauna de algum lugar, típica da Belle Èpoque, já aludem ao método de exposição de Walter Benjamin, neste prefácio-ensaio ainda de forma germinal, enquanto no prefácio ao livro sobre o drama barroco alemão e nos trabalhos tardios este recurso peculiar aparece de forma exuberante. Este procedimento já evidencia os fortes elementos do estilo benjaminiano sob a influência da lírica de Baudelaire, do surrealismo e de seu próprio projeto de filosofia da história.

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uma forma 22. Para compreendê-la como tal, é preciso retornar ao original. Pois nele

reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua traduzibilidade” (BENJAMIN,

2001, p. 191).

A tradução enquanto forma reside no original, estão é o original que deve ser

visado se quisermos apresentar uma idéia autêntica – em oposição à “má tradução”

(BENJAMIN, 2001, p. 191). O que determina a possibilidade da tradução – a lei de

sua forma – encerra-se na traduzibilidade da obra. Para Benjamin a traduzibilidade,

índice essencial no original, determina a tradução e a permite relacionar-se com o

original – uma relação íntima, mas que não determina o original, senão naquilo que

lhe sobrevive (posto residente em seu caráter essencial): para Benjamin a tradução

visa o original essencialmente – mesmo a tradução não sendo essencial ao original

– na continuação de sua vida: “Pois a tradução é posterior ao original e assinala, no

caso de obras importantes, que jamais encontram à época de sua criação seu

tradutor de eleição, o estágio de continuação de sua vida” (BENJAMIN, 2001, p.

193). A tradução revela no original a continuação de sua vida, caso esse original, a

tradução se relaciona ao original a partir da continuação de sua vida: reside sobre

algo posterior à época do original, algo que na época do original, ainda não era

acessível: por isso se relacionam, são possíveis e desdobram a partir da

continuação da vida, da sobrevivência, da sobrevida, e não da vida do original, lá de

sua época.

Desta forma fica evidente que para Walter Benjamin a tradução se relaciona

com o original a partir da possibilidade de ultrapassar a vida desse: nas traduções

“[...] a vida do original alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais

tardio e vasto desdobramento” (BENJAMIN, 2001, p. 195). Na tradução algo para

além da vida – que é caracterizado por sua constante renovação – do original se

realiza, tardiamente – em momento posterior a sua vida, posterior a sua época,

momento de sua sobrevida – e, vastamente: maior que o original, mais extenso,

mas, mais importante, mais intenso – trata-se da vastidão mutável, tardia, daquela

vida. A idéia de vida das obras não é uma metáfora, não se refere à vida meramente

orgânica e muito menos a qualquer tipo de vida psicológica – não “trata-se de

22

Sobre relação entre a tradução como forma presente na traduzibilidade, nossa citação das considerações de Patrícia Lavelle sobre a filosofia da linguagem de Hamann como antecipação de algumas idéias da Terceira Crítica.

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estender o império da vida sob o débil cetro da alma [...]” (BENJAMIN, 2001, p. 193).

O “domínio da vida” só pode ser determinado a partir da história (BENJAMIN, 2001,

p. 193): trata-se aqui – na relação vital entre a língua do original e a língua da

tradução – não “tanto da sua vida quanto de sua sobrevivência” (BENJAMIN, 2001,

p. 193). Na “vida mais vasta”, a história, a tradução se relaciona com a vida do

original, naquilo que esta vida tem de sobre- e de continuação da vida [Über- e

Fortleben]. A imagem da vida aparece neste momento para assinalar que é onde a

vida encontra a história – na morte, no inumano, no inefável, ou, como preferimos,

naquilo que ela tem de transitório, de passadidade e de esquivo – é onde o original

continua, ou melhor, se apresenta – se torna, transforma presente – na tradução. A

sobrevivência das obras é assim a pós-vida de seu original na tradução:

“A insistência com que Benjamin fala da sobrevivência (Überleben), da continuidade da vida (Fortleben) e do renascer da obra (Aufleben) nas potenciais traduções é, na verdade, índice invertido da presença da morte em toda dimensão vital 23, uma vez que se trata não tanto da vida (Leben) em si, mas de algo que a faz ultrapassar (Über), avançar (Fort) ou elevar (Auf) para além de um certo limite” (LAGES, 2002, p. 221) 24.

Aquilo que W. Benjamin mostra na vida, melhor, na continuação da vida, do

original é algo que pertence à “esfera” da vida, mas é diferente dela, pois pertence a

uma “esfera mais elevada” da vida; aquilo que mudando – como vida que é – lhe

permanece: “Todas as manifestações finalistas da vida, bem como sua finalidade em

geral, não são conformes, em última instância, às finalidades da vida, mas à

expressão de sua essência, à exposição de seu significado” (BENJAMIN, 2001, p.

195). Qual a essência da sobrevida do original que a tradução tende a expressar?

“[...] O mais íntimo relacionamento das línguas entre si” (BENJAMIN, 2001, p. 195).

Esta apresentação essencial – “mediante a tentativa” é, de acordo com Benjamin

“intensiva”, uma “atualização germinal” que “dificilmente pode ser encontrada no

âmbito da vida não-lingüística [Sprachlicher Leben]” que “constituí uma convergência

muito particular [...]. Consiste no fato de que as línguas não são estranhas umas às

outras, sendo a priori – e abstraindo de todas as ligações históricas – afins naquilo

23

Mais um tema fundamental presente no conceito de história de Walter Benjamin que tem sua origem nas considerações acerca da linguagem. 24

A confrontação com as palavras do original foi possível graças à tradução bilíngüe de S. K. Lages.

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que querem dizer” (BENJAMIN, 2001, p. 195). Há algo de essencial nas línguas, que

as apresenta como não totalmente estranhas entre si: a parte os desdobramentos,

está é a única constatação acerca do essencial, que não se comunica, nem é

apreensível, apenas por aproximação, na operação da tradução.

A tradução de acordo com W. Benjamin não pode determinar o original, ao

passo que apenas revela sua sobrevivência, sua sobre-, sua pós-vida enquanto

continuação – que não é progresso, visto que está história é a história da vida da

obra – do original. O caráter histórico dessa vida – que se apresenta pelo caráter

vital da história – do original é a sua sobrevivência – “nas gerações posteriores” – e

nela a continuação da sobrevida é eterna pois, de acordo com Benjamin, na

tradução a atmosfera alcançada pelo original interdita a eternidade de sua vida para

garantir outra vida 25, não tanto vida, mas história, em termos benjaminianos:

“Na tradução o original evolui, cresce, alçando-se a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura da língua, onde, naturalmente, não poderá viver eternamente [in welchem es freilich nich auf die Dauer zu leben vermag], como está longe de alcançá-la em todas as partes de sua figura, mas à qual no mínimo alude de modo maravilhosamente penetrante, como o âmbito predestinado e interdito da reconciliação e da plenitude das línguas. Jamais o original o alcança até a raiz, integralmente: mas nele está tudo aquilo que numa tradução ultrapassa a mera comunicação” (BENJAMIN, 2001, p. 201)

O que a tradução tenta para além da vida do original renova essa vida pela

apresentação daquilo que é essencial, já presente no original, ainda não revelado:

“reconciliação” e “plenitude” [Versöhnungs e Erfüllungsbereich] das línguas, um

âmbito “predestinado” e “interdito” [vorbestimmten e versagten]. Reconciliação

predeterminada, plenitude interditada. A tradução no interior da sobrevida da língua

do original se faz, se determina e se desdobra a partir destes termos.

A relação entre tradução e original é marcada pelo lugar reservado ao

original. Sua importância não está em ser origem, e sim em marcar a passagem – a

possibilidade desta passagem, na verdade – entre dois momentos, entre línguas,

entre épocas... É sobre esta passagem que o texto sobre a tarefa-renúncia do

25

Veremos um movimento análogo a este na filosofia da arte benjaminiana, na segunda seção segundo capítulo.

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tradutor se desdobra. A traduzibilidade é o índice que determina – no sentido de

medir a possibilidade – essa passagem. Nas esclarecedoras palavras de Susana

Lages: o conceito de traduzibilidade

“Pressupõe, por um lado, a aceitação de uma distância, de uma separação de um fundo textual reconhecido como anterior, por definição, inapreensível em sua anterioridade; por outro, implica a destruição voluntária desse texto anterior e sua reconstituição, em outro tempo, outra língua, outra cultura, enfim em uma situação de alteridade ou outridade radical” (LAGES, 2002, p. 204).

A traduzibilidade inerente á linguagem do original indica a possibilidade de

sua destruição em favor de sua continuação; traduzibilidade aparecerá na filosofia

da história como atualização, tem algo a ver com a destruição como pressuposto da

criação e como possibilidade, inerente à vida lingüística da obra – o que tem de vida

na língua do original – de mudar para nascer, com outra configuração, em favor de

algo que talvez seja uma verdade não-revelada na não problematicidade da língua

adequada ao sentido do original. Destruição que visa brechas entre a harmonia da

língua do original para, talvez, entrever ali, algo já obscurecido pelo status da língua

original. Ainda de acordo com S. Lages as reflexões de Benjamin apareceram em

uma tradição específica, que “trazem aportes importantes para a moderna reflexão

sobre a linguagem, preocupada em explorar a linguagem como via privilegiada e

determinante para nosso conhecimento do mundo” (LAGES, 2002, p. 166). Apesar

de não fazer parte de nossas pretensões mapear as peculiaridades desta tradição

bem como a posição de Walter Benjamin em relação a ela, fazer referência, mesmo

que de passagem, à tal tradição contribui para justificar o empenho na tentativa de

compreender o pensamento do filósofo alemão, a despeito de sua terminologia e

idéias complexas, para além do objetivo de repensar sua filosofia da história a partir

de suas reflexões sobre a linguagem. Tal como exposta por Walter Benjamin, a

tarefa-renúncia do tradutor se assemelha em sua forma à tarefa de comentar o

prefácio sobre a tradução.

Ao assumir o dever, a tarefa [Aufgabe] o tradutor renuncia [aufgeben] à vida

do original em favor da continuação dessa vida em outra língua, nem na língua do

original, nem na língua do tradutor. A tradução “significa uma língua mais elevada do

que ela própria [...] permanecendo com isso inadequada a seu próprio conteúdo [...]

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grandiosa e estranha” (BEJAMIN, 2001, p. 201). A reconciliação predeterminada, a

não estranheza das línguas entre si aparecem no estranhamento na linguagem da

tradução, estranhamento em relação ao outro e estranhamento em relação ao

próprio. Plenitude só pode significar algo de grandioso oferecido ao mundo pós-

babélico; grandiosidade interditada, apesar da sua busca, encaminhada por

tentativas, ser renúncia, ao mesmo tempo é dever [Aufgaben]. A tradução visa à

língua que a ultrapassa e a faz precária: a tarefa do tradutor faz a língua da tradução

ser tão estranha quanto a estrangeira (histórica, lingüística e culturalmente

estrangeira a língua do original), para que possa visar, sempre como tentativa, o que

há de afim 26 entre as línguas.

Dessa forma a tradução pode revelar a afinidade oculta entre as línguas

estranhas, afinidade que se apresenta pela idéia de reconciliação dos modos de

designar que se excluem, mas para além deles mesmos e nas relações entre si se

complementam no que W. Benjamin chama de pura língua: “Essa língua, porém, em

que frases, obras e juízos isolados jamais se entendem, razão pela qual, entretanto,

as línguas permanecem dependentes da tradução é aquela na qual, entretanto, as

línguas coincidem entre si, completas e reconciliadas no seu modo de designar”

(BENJAMIN, 2001, p. 205). Percebemos que existe entre tradução e original uma

relação vital, uma relação acerca da continuação e desdobramento da vida do

original, a tradução estabelece relação com original para além da vida deste,

garantido sobre seu caráter de passado a desestabilização que garante a passagem

da língua do original da rigidez do cânone à dinâmica de uma nova vida, em outro

tempo, em outra língua, numa outra vida. Percebemos também que a sobrevida do

original na tradução se relaciona a algo de essencial, mas interdito que existe entre

as línguas. Algo na continuidade do original revela uma essência para além da

individualidade da língua do original e da tradução, uma força – uma frágil força, tal

qual um heliotropismo, duas expressões benjaminianas, de outro contexto, mas

reveladoras em relação ao caráter paradoxal desta essencialidade – que indica que

as línguas não são totalmente estranhas entre si, afinidade revelada pela estranheza

26

“Afim: adj. [...] XVI. Do latim affinis „vizinho [...].” (CUNHA, 2007, p. 20) Verbete “afim” no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa.

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entre língua do original e da tradução. Seguindo o prefácio sobre a tarefa-renúncia

do tradutor, Walter Benjamin apresenta mais detalhes sobre esta idéia.

A sobrevivência do original, a sobrevida de sua língua na outra vida que é o

choque com a língua da tradução, deve ser encarada como uma desestabilização do

original – De Man fala em “descanonização”. Esta “desestabilização” do original, ao

contrário do que possa parecer, não iterdita à um fim a-histórico, messiânico, a

produtividade do traduzir, e isto precisa ser mais uma vez enfatizado. Ao contrário

do que também uma razoável parcela de certa bibliografia tende a apresentar, a

destruição do original – bem como a destruição da estabilidade da língua do

tradutor, lembremos do Sófocles de Hölderlin 27 – já pressupõe a produtividade,

visando sempre o momento da construção. Mais uma vez nas esclarecedoras

palavras de Susana Lages:

“Como o tempo, uma tradução é caracterizada por uma certa instabilidade, uma vez que se define como mediadora, não apenas entre as duas culturas espacialmente distantes, mas também entre dois momentos históricos diversos. A tradução ocupa um espaço de passagem, no qual não se fixam momentos cristalizados, identidades absolutas, mas se aponta continuamente para a condição diferencial que a constitui. Simultaneamente excessivo e carente, poderoso e impotente, sempre o mesmo texto e sempre um outro, o texto de uma tradução ao mesmo tempo destrói aquilo que o define como original – sua língua – e o faz reviver por intermédio de uma outra língua, estranha estrangeira” (LAGES, 2002, p. 215).

Estes apontamentos fundamentais, apresentados de forma impecável, para nosso

contexto possuem os temas sobre os quais nos debruçamos nesta seção e que, no

caso de nossa interpretação, custosamente são expostos ainda de forma

embaraçada. A relação entre o conceito de tradução, como desdobramento de sua

teoria da linguagem, e o conceito de tempo como marca da transitoriedade, ao

mesmo tempo de apontar para a abertura, para o novo, a idéia da filosofia da

linguagem como passagem para a filosofia da história – realizada na obra

Passagens – bem como o estatuto da escrita submetido à tarefa do tradutor,

27

Ver: CAMPOS, Haroldo de. A Palavra Vermelha de Hölderlin. In: CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva, 1977. pp. 93-108.

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submetido à diferença, a oscilação, a tensão 28 – a dialética benjaminiana, como

veremos – entre excesso e carência, poder e impotência – frágil força messiânica –

como nas outras construções dialético-benjaminianas: destruição/construção,

mesmo/outro, histórico/natural, morte/vida... Ao redor desta idéia ainda

tremulamente esboçadas que gira nosso trabalho, esta idéia que na filosofia da

linguagem de Walter Benjamin aparece como a “condição diferencial” da linguagem

evidenciada pela tradução, condição que de forma muito feliz Susana Lages expõe

naquele pequeno trecho (LAGES, 2002, p. 215), acima. O que torna peculiar a

filosofia da história de Benjamin é a maneira através da qual esta condição

desdobra-se dos domínios da vida lingüística para os domínios da vida histórica – da

experiência histórica como historiografia, para adiantarmos a idéia que ressurgirá

nas últimas palavras deste trabalho. Como ainda não é o tempo oportuno, deixemos,

melhor, levemos as considerações de Susana. K. Lages ao longo de nossa tentativa.

Voltemos ao tema da relação entre língua do original e da tradução.

Acompanhamos até agora que a tradução não se dirige ao leitor – bem como

o original também não se dirige – que a autêntica tradução se relaciona

exclusivamente àquilo que no original permanece, na transformação e na

descontinuidade, na maturação, na sobrevida da sua linguagem. Pudemos também

acompanhar que nem por visar à originalidade – à origem – do original a tradução

pode ser lhe semelhante; ao contrário, é na exclusão da semelhança, na

apresentação da essência mutável de ambas as línguas, na descontinuidade dos

modos de designar que se pode visar à afinidade entre as línguas, que na língua da

tradução recobre o conteúdo original como, nas palavras de W. Benjamin, como

dobras de um “manto real” (BENJAMIN, 2001, 201). As dobras da linguagem da

tradução elevam a vida do original, como comentamos, para apresentá-la naquilo

que ultrapassa ambas as linguagens – tanto a língua do original quanto a língua do

tradutor – na visada à pura língua. Por isso a tarefa do tradutor é “insolúvel” – sem

deixar de ser tarefa é já renúncia [Aufgabe / aufgeben] – “insolúvel numa solução

qualquer” (BENJAMIN, 2001, p. 205). Só a visada – enquanto tarefa – à língua pura

28

Jamais mera oposição: um dos temas mais importantes do pensamento de Benjamin: opor o aparentemente harmônico, harmonizar o aparentemente díspar, para ir além da oposição ou da harmonia, como veremos em sua peculiar dialética imanente à categoria da origem: este é o próprio cerne do conceito de história de Benjamin – cuja estrutura e desdobramento reside em sua filosofia da linguagem.

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– enquanto renúncia – pode ultrapassar a singularidade e o isolamento das línguas

individuais.

A relação entre visada, o visado e modo de visar – a designação, o modo de

designar e o designado, o simbolismo, o simbolizante e o simbolizado, figuram no

ensaio benjaminiano como contra-exemplos, como a utilização das metáforas na

evidenciação do caráter não metafórico, na interpretação demaniana, do lugar do

sentido na filosofia da linguagem benjaminiana. O sentido, para Walter Benjamin,

“não se esgota no designado”. A transmutação do sentido na relação original-

tradução deve voltar-se para além do designado – que permanece isolado nos

modos de designar tomados como autônomos. A crítica à tradição da representação

explicita-se na separação entre significante e significado pela indicação da

necessidade de ultrapasse daquele, em nome deste, extrapolação apresentada pelo

reconhecimento da precariedade do modo de designar em relação ao objeto da

designação, pela constatação do sentido para lá do designado 29.

Se a tradução deve visar o quê está além das singularidades das línguas em

suas afinidades, não é possível entender a tradução como reprodução de

semelhanças ou como transmissão de sentido – se o essencial está para além

disso. O essencial ultrapassa a singularidade da língua, o quê elas partilham de

essencial não pode ser identificado assim as suas singularidades, mas ao mesmo

tempo não pode partir senão delas:

“Toda afinidade meta-histórica entre as línguas repousa sobre o fato de que, em cada uma delas, tomada como um todo, uma só e mesma coisa é designada, algo que, no entanto, não pode ser alcançado em nenhuma delas, isoladamente, mas somente na totalidade de suas intenções reciprocamente complementares: na pura língua” (BENJAMIN, 2001, p. 199).

No interior da multiplicidade das línguas as coisas são designadas, mas os modos

de designar são diferentes (a diferença, no original, entre Gemeinte e Art des

29

A crítica a noção tradicional de representação, que aparecerá mais forte e mais complexa nas considerações benjaminianas acerca de sua teoria crítica do conhecimento, que tentaremos acompanhar na segunda parte de nosso trabalho, se esboçam aqui por esta noção que já pode ser interpretada como a separação entre objeto do conhecimento e a sua representação no conhecimento, pela idéia de ir além do que representa para encontrar, na individualidade das formas de representar, algo que escapa à representação, algo que talvez indique algo de verdade que escapa à tradição da filosofia da representação.

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Meinens) (BENJAMIN, 2001, p. 199). Esse modos de designar que, para Benjamin,

“em última instância, almejam excluir-se mutuamente” (BENJAMIN, 2001, p. 199),

pertencem também àquela vida lingüística em constante transformação – que na

verdade têm na junção benjaminiana de vida e história, o emblema da

transformação que (pode) apresentar o essencial, ao invés de se opor a ele, que em

muitos momentos aparece como pura negatividade – e que por se transformar pode

– deveria, talvez – se harmonizar com o designado, na pura língua. Harmonia que,

visada pela tradução como sua tarefa-renúncia [Aufgabe], está reservada ao “fim

messiânico” da história da multiplicidade das línguas: “A que medida está da

revelação aquilo que elas ocultam? Em que medida pode, sabendo-se dessa

distância, o elemento oculto tornar-se presente?” (BENJAMIN, 2001, p. 201). Os

resquícios da palavra criadora na mudez da natureza não diminuíram a distância

entre o visar e o visado, entre a modo de significar e o significado, mas no

reconhecimento desta distância alude à dívida, ao encargo e à renúncia [aufgeben]

do tradutor. A reconstrução do modo de designar do original – que almeja aquela

harmonia, a conversão da forma peculiar – e por isto múltipla nas várias linguagens

– no próprio designado, na língua pura é comparada, em uma das mais belas

imagens de Walter Benjamin, a reconstrução da ânfora, onde os fragmentos não

voltarão à integridade anterior à quebra, mas devem reconfigurar “amorosamente”

àquele todo perdido: “[...] a tradução deve ao invés de procurar assemelhar-se ao

sentido do original, ir reconfigurando, amorosamente, chegando até aos mínimos

detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam

reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como os cacos são fragmentos

de um vaso” (BENJAMIN, 2001, p. 207). Original e tradução como fragmentos de

uma língua maior, no movimento de reconciliação motivado pela tradução que

“inflama na continuação da vida das obras o infinito reviver das línguas” (BENJAMIN,

2001, p. 199).

Dessa forma a “pura língua” é apresentada como possibilidade da harmonia

das formas de visar das linguagens diversas: “[...] Nas línguas tomadas

isoladamente, incompletas, aquilo que nelas é designado nunca se encontra de

maneira relativamente autônoma, como nas palavras e frases isoladas; encontra-se

em constante transformação, até que da harmonia de todos aqueles modos de

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designar ele consiga emergir como pura língua” (BENJAMIN, 2001, p. 199). A

passagem do designado ao modo de designar (Gemeinte e Art des Meinens), sua

diferenciação enquanto reconhecimento do encargo do tradutor, visando – apenas

visando – a harmoniosa complementação, onde o visado e modo de visar se fundem

O que determina o sentido – “poético” – para o original é a “maneira com que

o designado se liga ao modo de designar” (BENJAMIN, 2001, 207), e não a relação

imposta entre ambos, e que na tradução é aquela visada à harmonia ideal dos

modos de designar. A famosa metáfora do vaso quebrado apresenta esta imagem

benjaminiana tão importante ao longo de toda a sua filosofia:

“Assim como os cacos de um vaso, para poderem ser recompostos, devem seguir-se uns aos outros nos menores detalhes, mas sem se igualar, a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido original, ir reconfigurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso” (BENJAMIN, 2001, p. 207).

Retenhamos alguns elementos desta citação. Primeiro fica evidente a

influência da mística luriânica 30 na metáfora do vaso. Além disso, temos a idéia da

recolocação dos fragmentos, que não podem nem devem ser coincidentes também

é fundamental. Outro elemento que deve ser ressaltado nesta imagem benjaminiana

30

Nas sempre belas palavras de Jeanne-Marie Gagnebin: “Esta comparação [na metáfora da ânfora estilhaçada] provém da mística de Isaac Luria, que, respondendo à deportação dos judeus da Espanha em 1492, ensina a profunda copertença da História e do Exílio. Na criação, Deus opera uma espécie de autolimitação, de contração que permite ao mundo surgir num „lugar‟ ocupado somente por sua plenitude inominável. A luz divina, que emana do Criador, é tão forte que as criaturas, semelhantes a frágeis recipientes de argila, não conseguem retê-la e quebram. Esta quebra dos vasos ou Schebira está na fonte desta des-ordem originária da qual sofre o mundo, deste estilhaçamento, desta disposição universal à qual somente a recolha messiânica porá fim. Notemos aqui que Deus mesmo está afetado por esta fratura essencial; sua Schechina, sua „presença‟, interpretada às vezes também como sua metade feminina, separa-se dele e toma o caminho do exílio” (GAGNEBIN, 1999, p. 26). Ainda sobre a “recolha messiânica que porá fim” ao estilhaçamento originário: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las” (BENJAMIN, 1994, 226), na nona tese Sobre o Conceito de História. Ainda sobre o tema do Exílio: “Os próximos meses definirão o que será de nós. Algures teremos de encontrar moradia. Você, que tem mais experiência do que eu em matéria de viver na diáspora, pode muito bem fazer uma idéia do que isso representa” (carta de Gershom Scholem a Benjamin de 29 de dezembro de 1936) (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 257)

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é a noção de reconfiguração, no interior na língua de chegada, dos modos de

designar do original, evidencia mais uma vez o caráter transformador da tradução 31,

que no interior desta transformação visa algo que não muda, que é chamado de

essencial, e que se apresenta como o que forma uma unidade na fragmentação dos

modos de designar no próprio designado: só ultrapassado pelas descontinuidades

da pluralidade dos modos de designar o designado purifica-se das pretensões da

representação e pode talvez afirmar em seu isolamento algo que vai além dele – em

direção à coisa mesma, na senda imaginada, para uma língua pura que restituiria o

que da coisa jamais é apreensível.

O messianismo da filosofia da linguagem de Walter Benjamin não pode ser

compreendido senão como contrapeso à imanência, a materialidade do mundo e

das palavras, para que não sejam simplificadas.

A tradução não pode dessa forma meramente reproduzir o sentido do original

a relação entre tradução e original deve ser compreendida, para Walter Benjamin,

como uma relação – na sobrevida deste – de afinidade entre as línguas em direção

– apenas em direção – a língua pura. Nas palavras de W. Benjamin:

“Diante do sentido, sua língua tem o direito, aliás, o dever, de despreender-se, para fazer ecoar sua própria espécie de intentio enquanto harmonia, complemento da língua na qual se comunica, e não sua intentio enquanto produção de sentido” (BENJAMIN, 2001, p. 207-209).

No cerne da filosofia da linguagem de Walter Benjamin, semente dura que

germinará em uma filosofia onde os ramos alcançam diversos espectros do

pensamento, a conceito de intenção peculiar ao filósofo alemão retornará em nossas

reflexões sobre sua teoria do conhecimento e seu conceito de história. Por ora não

desenvolveremos este tema, mas ressaltamos sua importância e a necessidade de

acompanhá-lo em breve, a partir de suas primeiras manifestações neste contexto. A

autonomia do simbolizado em relação à noção de sentido, a fidelidade à palavra

estrangeira em favor da recriação poética da língua tem como exemplo emblemático

as transcriações 32 de Hölderlin sobre a poesia de Sófocles.

31

E a origem do conceito benjaminiano de história em sua filosofia da linguagem realizada no ensaio-prefácio A Tarefa-renúncia do tradutor. 32

Na expressão de Haroldo de Campos citada por Gagnebin (GAGNEBIN, 1999, p. 25), do texto que também citamos na nossa nota número 19.

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O exemplo da tradução de Friedrich Hölderlin (1770-1843) da obra de

Sófocles aparece no prefácio de Walter Benjamin como exemplo da literalidade que

visa, no original, a conservação do que nele há de essencial, mesmo que ao preço

da comunicação, pois como comentamos a essência não pertencem à esfera do

comunicável ou daquilo que comumente chamamos de sentido: a tradução “deve

abstrair do propósito de comunicar e, em larga medida, do sentido, sendo-lhe o

original essencial apenas pelo fato de já ter eliminado para o tradutor e sua obra o

esforço e a ordem próprios do comunicar” (BENJAMIN, 2001, p. 207). A obra de arte

não visa seu receptor – a polêmica afirmação de Walter Benjamin no início do

ensaio sobre a tarefa-renúncia do tradutor – por isso a tradução deve seguir aquilo

que no original já realizou este propósito de não comunicar. Essencial na linguagem

do original é aquilo que nele não se comunica, é o sinal da dignidade de sua

linguagem marcada em seu status de cânone. A literalidade monstruosa das

traduções hölderlinianas só poderiam querer visar algo de maior, de mais

importante, talvez de mais verdadeiro, mas certamente de não revelado entre – ao

mesmo tempo em uma e em outra, nunca isolada em uma ou na junção de ambas,

sempre na tensão do aproximar – as línguas envolvidas na tarefa do traduzir

A sobrevida do original marca o fim de sua própria vida: a tradução expõe no

desdobramento da língua do original o caráter histórico – a marca da humanidade

das linguagens á qualquer coisa de permanente, chamada por Benjamin de pura

língua – da vida da língua do original, transportando-a, como já apresentamos, para

outros ares, outra atmosfera, “mais elevada”, menos propícia à vida, mas muito mais

favorável àquilo que ultrapassa a marca do histórico – e da vida lingüística do

original – no todo da língua, o Benjamin chama de essencial. Essência como

contrapeso do que se deve reter acerca da tradução: é do estranhamento, da colisão

entre as línguas diferentes, que talvez possa ser revelado algo de verdadeiro, até

então escondido pelas pretensões de comunicação de sentido ou de semelhança de

conteúdo: as afinidades entre as línguas que, como resquícios de algo

linguisticamente puro – interdito ao âmbito da vida não lingüística – sinal das

afinidades percebidas no que pode aparecer como maior – maior que ambas as

línguas, do original e língua do tradutor – conjunção no fragmentário, como na

imagem do vaso da mística luriana, im-posta como tarefa insolúvel enquanto

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acabamento, baseada no ritmo da tentativa. Não pode haver resquícios da pura

língua senão na materialidade (no caráter profano, na obra posterior de Benjamin)

da multiplicidade das línguas humanas, por isso a tradução visa às palavras, no que

no interior de cada língua elas possuem de estranho entre si, para apresentar – ir

apresentado – a verdade fundamental de que a linguagem é mais do que o quê se

comunica através dela, é maior do que a junção de todas as palavras, maior que a

união de todas as línguas; a verdade de que do interior da linguagem não há a

supremacia do humano, um domínio intuído pela idéia de que o que existe além

aparece fugazmente nos abalos inerentes à tarefa do tradutor. Nas palavras de

Walter Benjamin:

“Em todas as línguas e sem suas construções resta, para além

do elemento comunicável, um elemento não comunicável, um elemento – dependendo do contexto em que se encontra – simbolizante ou simbolizado. Simbolizantes são apenas os que se encontram nas construções finitas das línguas; simbolizados o que estão no devir das próprias línguas” (BENJAMIN, 2001, p. 209).

A filosofia da linguagem de Walter Benjamin apresentada no prefácio acerca da

tarefa-renúncia do tradutor torna mais complexa a idéia tradicional de representação

indicar que sempre resta algo na equação da linguagem – por isso a linguagem deve

parecer tão pouco com uma equação, como no prefácio ao livro sobre o drama

barroco, comentado a seguir – resta algo para além, tanto da própria palavra, em

sua materialidade, quanto daquilo que ao longo da história da língua – da sobrevida

de nossa linguagem cotidiana – constitui o que entendemos por conhecimento,

verdade e experiência. A semântica epistemológica reage – de maneira a evidenciar,

como nos testes químicos entre substâncias – a riqueza tanto da polissemia

histórica das palavras quanto da história da própria experiência constituída a partir

da linguagem; um dado fundamental da filosofia da história de Walter Benjamin é a

noção de historiografia como experiência histórica, de escrita da história como

apresentação da experiência histórica constituída lingüisticamente - como veremos

na última parte de nosso trabalho.

A referência ao simbólico aparece de forma elucidativa aqui. Tradicionalmente

a idéia de símbolo remete a noção de reunião – talvez em algum momento também

no ritmo da tentativa – de algo já separado. A reunião do simbolizante e do

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simbolizado evoca o “devir das línguas” que a partir das afinidades apresentadas

pelo choque entre as línguas do original e da tradução visarão – como uma espécie

de heliotropismo – a idéia da pura língua. Sem ultrapassar a materialidade e algo da

vida lingüística do original a visada da tradução faz referência nas línguas ao quê

Walter Benjamin chama de um sentido “grave” [Schweren] e “estranho” [fremdem] –

o sentido que em outra ocasião foi chamado de “monstruoso” que não é outro senão

a certeza que a linguagem é tão pouco natural – inumana (De Man) – quanto maior

que a espessura cotidianamente atribuída à função comunicativa. Benjamin

continua: “Desvinculá-la” da idéia de mera comunicação “transformar o simbolizante

no próprio simbolizado, recobrar a pura língua plasmada no movimento da

linguagem – esse é o único e grandioso poder da tradução” (BENJAMIN, 2001, p.

209).

A relação entre as línguas do original e tradução evidencia assim este

“movimento da linguagem”, a sua vida autônoma em relação a sua função

comunicativa, a dignidade da linguagem que recobre a filosofia de história de Walter

Benjamin com uma luz peculiar. Acompanhemos uma das passagem da teoria da

tradução de W. Benjamin para seu conceito de história a partir de algumas idéias de

Paul de Man em seu texto sobre o ensaio de Benjamin, o conhecido texto

Conclusões, „A Tarefa do Tradutor‟ de Walter Benjamin (DE MAN, 1989) 33.

Paul De Man assinala com propriedade uma das configurações entre original

e tradução presentes no ensaio de W. Benjamin. A distinção entre tradução e poesia

apresentada por Benjamin (BENJAMIN, 2001, p. 203-205) enfatiza, de acordo com a

leitura de De Man, o caráter “secundário” – em relação à linguagem do original – da

tradução. O original precede a tradução no sentido desta agir sobre os

desdobramentos posteriores a ele – mesmo que seja a partir de sua sobrevida, ou

nas palavras de Benjamin, sobre a vida posterior ou continuação da vida do original.

33

Depois de algumas indicações, chegamos ao célebre, e para nossa leitura, fundamental texto de Paul de Man. Acerca da polêmica ao redor deste texto, sua vinculação ou não à certa tradição estranha ao pensamento benjaminiano – de acordo com alguns comentadores – acreditamos na independência da leitura de De Man – e de nossa leitura da leitura dele – em relação às considerações de Carol Jacobs (JACOBS, Carol. In the Language of Walter Benjamin. London: Johns Hopkins University Press, 1999). Se isto não diminui a importância das críticas de Irving Wohlfarth (Walter Benjamin‟s Image of Interpretation, NGC, 1979) as leituras da obra de Walter Benjamin pelos críticos estadunidenses naquela década, pelo menos não nos compromete, visto que nossos objetivos com a leitura do comentário demaniano são bastante específicos. Além de, como é de se esperar, não concordemos com alguns aspectos da leitura de Paul De Man.

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Assim como a passagem do original – de algo do original – para além dele mesmo –

além, também, da própria linguagem do tradutor – efetuada pela tradução só se dá

nos domínios da vida lingüística, estamos de acordo neste aspecto com a leitura

demaniana da relação entre tradução, crítica e história com seus originais:

“Todas [estas] atividades – a filosofia crítica, a teoria literária, a história – se assemelham no fato de não se assemelharem àquilo de que derivam. Mas todas elas são intralingüísticas: relacionam-se com aquilo que no original pertence à linguagem, e não com o sentido como correlativo extralingüístico suscetível de paráfrase e imitação. Desarticulam, desfazem o original, revelam que o original esteve sempre já desarticulado. Revelam que o seu malogro, que parece ser devido ao fato de serem secundárias em relação ao original, revela uma malogro essencial, uma desarticulação original que se encontrava já no original. Matam o original, ao descobrirem que o original já estava morto. Lêem o original da perspectiva de uma língua pura (reine Sprache), uma língua que seria inteiramente liberta da ilusão do sentido – forma pura, se assim o quiserem; e, ao fazê-lo, trazem à luz um desmembramento, uma descanonização que já lá se encontrava no original desde o princípio.” (DE MAN, 1989, p. 113).

Dois aspectos enfatizados por Paul De Man possuem um papel central em nossas

discussões. Primeiro a relação entre crítica, tradução e história, secundárias em

relação aos seus originais – a obra de arte, a obra de arte em sua linguagem

estrangeira, e o passado – mas como possibilidade de desdobramento daquilo que é

essencial aos originais, que se encontra na linguagem deles. No ensaio sobre a

tarefa da tradução Benjamin compara crítica e tradução, atribuindo a segunda

especial importância na apresentação da continuação da vida das obras

(BENJAMIN, 2001, p. 203). À história não é atribuído explicitamente esta capacidade

de desdobrar a vida do original, sendo identificada com este próprio desdobrar, na

peculiaridade da vida histórica – tema também fundamental na filosofia da história

de Walter Benjamin que comentaremos em nosso segundo capítulo. Mas, na obra

posterior de Benjamin, a história recebe sim este poder de desdobrar a vida do

passado, enquanto sobrevida, ou morte, como nos diz De Man, desdobramento

também a partir de um movimento de desestabilização, de descanonização, de

destruição daquilo que no passado representa harmonia – transformar o inacabado

em algo acabado, e o acabado em algo inacabado (BENJAMIN, 2006, p. 513) [N 8,

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1] - para evidenciar aquilo que da morte pode representar vida, da interrupção,

continuidade. Se a crítica literária, em relação à tradução, apresenta “um momento

ainda que menor, na continuação da vida das obras” (BENJAMIN, 2001, p. 203), a

história claramente ocupa um lugar proeminente entre elas, não em questão de

hierarquia, mas de raio de alcance: a crítica sobre uma obra, a tradução sobre a

linguagem, a história sobre o passado.

O segundo aspecto enfatizado por De Man tem grande importância em

nossos desenvolvimentos. História e tradução se equivalem no procedimento de se

relacionar com seus originais a partir da linguagem desses, buscando para além da

“ilusão do sentido”, na historiografia a ilusão da representação do passado, da

captura de uma verdade passiva, a ser descoberta na apreensão do que foi como

ele era. A reine Sprache é a perspectiva da recusa e da destruição desta ilusão, é o

contrapeso que trava a balança, lançando ao chão os pratos nos quais se equilibram

representação e objeto, subjetividade e objetividade, imanência, materialidade e

história enquanto processo; reine Sprache que aparece como os motivos teológicos

na teoria da linguagem, simplesmente interditando qualquer segurança acerca do

conhecimento sobre a linguagem, desestabilizando qualquer tentativa de conhecer a

língua, pelo reconhecimento de que razão e verdade são irmãs, e não podem

legislar uma sobre a outra; reine Sprache que na tradução se encontra na afinidade,

na continuidade entre as línguas estranhas, e que na história aparecerá, na crítica

às construções historiográficas estáveis, harmônicas, totais 34: pela acentuação do

que lá está morto algo de vida, talvez, possa continuar. Por fim, a citação de De Man

evidencia o elemento central de nossa trabalho: a filosofia da linguagem de Walter

Benjamin aparece em seu conceito de crítica, de conhecimento e de história, esta

idéia que se apresenta como tema da origem do conceito de história benjaminiano

em sua filosofia da linguagem.

Sobre a tarefa do tradutor, continua Paul De Man acerca da tradução: “A

tradução, na medida em que se desarticula o original, na medida em que é pura

língua e se ocupa apenas da língua, é arrastada para aquilo a que [Benjamin] chama

a insondável profundeza, algo de essencialmente destrutivo, que está na própria

34

Como veremos na segunda seção de nosso segundo capítulo, este é o mesmo lugar do “sem-expressão”, e na derradeira seção de nosso trabalho: este é o lugar da origem.

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língua” (DE MAN, 1989, p. 113). Esta insondável profundeza é apresentada nos

usos benjaminianos de duas distinções: Das Gemeinte e Art des Meinens, por um

lado e simbolizante e simbolizado, por outro lado.

Dois elementos marcam as considerações de Paul de Man acerca da

demarcação, por parte de Walter Benjamin, dos conceitos de “designado”, Das

Gemeinte e “modo de designar”, Art des Meinens. Primeiro, o questionamento por

parte de Walter Benjamin, do que De Man chama de “ilusão do sentido” – que, como

também notou De Man, reaparece na filosofia do conhecimento de Benjamin (DE

MAN, 1989, p. 111) – e a crítica à idéia de intencionalidade da linguagem humana,

atribuindo à linguagem um lugar específico, não-intencional – pelo menos de parte

da linguagem – um “lugar” que Walter Benjamin qualifica como “mágico”, na mesma

terminologia do ensaio Sobre a Linguagem, reconhecendo a este âmbito o caráter

essencial. Paul De Man utiliza a idéia do “inumano” para caracterizar o conceito de

pura língua de Walter Benjamin. Ao fim de seu texto, De Man, ao ser questionado –

na transcrição do debate – esclarece seu conceito de inumano:

“O „inumano‟, [...] não é uma espécie de mistério qualquer, ou uma espécie de segredo; o inumano é: estruturas lingüísticas, o jogo de tensões lingüísticas, acontecimentos lingüísticos que ocorrem, possibilidades que são inerentes à linguagem – independentemente de qualquer intento [...] ou de qualquer aspiração ou de qualquer desejo que possamos ter” (DE MAN, 1989, p. 126).

Acreditamos ser bastante pertinente a observação de De Man. O âmbito da pura

língua é aquilo de lingüístico que escapa ás intenções, a representação como

tradicionalmente entendida, ao mero transporte de sentido. O quê pode ser

questionado em sua postura é apresentar outro conceito, não menos problemático

por sua carga cultural, especialmente como seu oposto, o “inumano”, como definição

deste âmbito da linguagem hoje reconhecido, apesar de certas reservas até certo

ponto compreensíveis, como âmbito legítimo da linguagem e espaço de produção de

conhecimento específico sobre o mundo – e não é de hoje este reconhecimento. O

próprio Walter Benjamin chamou, em textos publicados, de “mágica” esta esfera da

linguagem para além da intencionalidade; e certamente este conceito de magia tal

como exposto, se desvincula de concepções míticas e teológica, assumindo em um

âmbito totalmente profano, em termos benjaminianos, o encargo de demarcar o para

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além do intencionado, do controlado, naquilo que faz parte da experiência humana,

inclusive em setores reconhecidamente do âmbito do conhecimento.

A diferenciação no interior da linguagem do que é passível de intenções e do

não-intencional, da visada e do modo de visar, é a condição para o reconhecimento

do isolamento das línguas – e a impossibilidade de qualquer transmissão,

semelhança ou hierarquia entre a língua do original e a da tradução. Reconhecer o

caráter não intencional de parte da linguagem – a forma de designar não é

controlável – é o primeiro passo para identificar, justamente onde não há controle,

onde não há legislação humana, a afinidade entre as línguas, o convergir dos modos

de designar no designado. Nas palavras de Jacques Derrida 35:

“O modo de visada sozinho designa a tarefa de tradução. Cada „coisa‟, na sua identidade presumida a si [...] é visada segundo modos diferentes em cada língua e em cada texto de cada língua. É entre os modos que a tradução deve procurar, produzir ou reproduzir uma complementaridade ou uma „harmonia‟. E desde o momento que completar ou complementar não retorna a uma intimação de nenhuma totalidade mundana, o valor da harmonia convém a este ajustamento, àquilo que se pode chamar aqui de acordo das línguas. Esse acordo deixa ressoar a pura linguagem e o ser-língua da língua, anunciando-o mais que o apresentando. (DERRIDA, 2006, p. 67).

A metáfora do título do prefácio aqui comentado não deve deixar dúvida – na

verdade, sua única função é anunciar esta dúvida, mantê-la permanentemente –

acerca deste encargo: o tradutor deve ter a possibilidade de anunciar as

ressonâncias da pura língua, como sinal de sua ausência e de sua força, tal como a

frágil força messiânica do historiador apresentado nas teses Sobre o Conceito de

História. A diferença, como ainda veremos, passa pela gravidade do apelo e pelas

conseqüências de sua renúncia.

35

A breve referência ao texto de Derrida não pode iludir o leitor quanto a sua importância em nosso debate. Em alguns momentos nossas idéias foram guiadas, nos primeiros desenvolvimentos, pelas idéias do filósofo da différance, antes de tomarmos nosso próprio caminho.

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2. Filosofia da Linguagem: Teoria da Experiência – Crítica do

Conhecimento da Arte

Neste segundo capítulo apresentaremos a relação entre a filosofia da

linguagem com as teorias da experiência e a crítica do conhecimento de Walter

Benjamin. A primeira seção se dedicará a mais algumas reflexões sobre a filosofia

da linguagem de Benjamin em caráter mais amplo, o que permitirá à sua passagem

às reflexões sobre os conceitos de experiência e conhecimento, que correspondem

ao segundo momento de nossa primeira seção e às discussões que serão

desenvolvidas ao longo da segunda seção deste capítulo.

Assim em nossa primeira seção apresentaremos primeiro alguns comentários

sobre o retorno da filosofia da linguagem de Walter Benjamin em quatro textos

posteriores à elaboração de seu conceito de história. O comentário sobre estes

textos visa elaborar uma reflexão sobre a transposição dos temas teológicos da

filosofia benjaminiana em um estilo mais “profano”. Veremos com o conceito de

linguagem de Benjamin mantém a mesma complexidade, mas adquire um tom

diferente, que a aproxima do caráter histórico de sua teoria do conhecimento. Ao fim

desta primeira seção retornaremos a um texto anterior à década de 1920, com

intuito de elaborar a passagem da filosofia da linguagem à teoria-crítica da

experiência, ao projeto de ampliação do conceito de experiência.

Na segunda seção deste segundo capítulo apresentaremos uma análise mais

detalhada do ensaio As afinidades eletivas de Goethe, elaborado entre 1919 e 1922.

Este texto marca, no contexto de nosso trabalho, a elaboração fundamental da teoria

do conhecimento artístico da filosofia benjaminiana, através da apresentação do

conceito de crítica do filósofo alemão. Intimamente ligado à sua filosofia da

linguagem, o ensaio sobre o romance de Goethe figura como texto básico, bem

como o analisado na seção seguinte, à filosofia da história de Walter Benjamin:

neste longo ensaio são apresentadas as categorias de crítica e comentário, os

“Pois a aparência não apenas está representada nesta obra, mas se encontra também na própria representação da obra. Somente por isso a aparência pode significar tanto; somente por isso a representação significa tanto.” Walter Benjamin. (BENJAMIN, 2009, p. 101)

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conceitos de mito e história e as idéias acerca da verdade e da redenção que

estarão presentes nos últimos textos do filósofo judeu-alemão, aqueles através dos

quais apresentaremos seu conceito e sua filosofia da história.

2.1 A Filosofia da Linguagem como Fundamento da Filosofia da Experiência de Walter Benjamin

Neste primeiro momento de nosso segundo capítulo ressaltaremos alguns

aspectos da filosofia da linguagem de Walter Benjamin e sua importância na

constituição do conceito de história do filósofo alemão. Ressaltaremos alguns

elementos já apresentados nas seções anteriores, com objetivo de fortalecer a

composição teórica dos conceitos, bem como suprir eventuais lacunas das

complexas discussões precedentes. Indicaremos ainda alguns elementos

determinantes na compreensão da passagem filosofia da linguagem – filosofia da

história por alguns apontamentos acerca de questões relevantes a este tema que se

desenvolveram em outro contexto da obra do filósofo alemão em outros lugares

além dos ensaios de 1916 e de 1923. Por fim encaminharemos alguns pontos que

deverão ser desenvolvidos no capítulo seguinte, mas que exigem uma maior

conexão com o tema da filosofia da linguagem benjaminiana.

Em um texto de 1933 – dez anos após a publicação do prefácio sobre a tarefa

do tradutor – Walter Benjamin elaborou algumas considerações sobre sua filosofia

da linguagem, em um tom bastante diferente do utilizado nos ensaios entre o fim da

década de 1910 e início dos anos 1920. Nos ensaios A Doutrina das Semelhanças

(BENJAMIN, 1994) e Sobre a Faculdade mimética (BENJAMIN, 1999). Apesar do

tom diferenciado, a temática da filosofia da linguagem é apresentada intimamente

conectada com os problemas discutidos na sua filosofia da juventude. Retenhamos

alguns aspectos apresentados nestes dois pequenos textos.

Em ambos os textos Walter Benjamin apresenta alguns considerações acerca

de sua peculiar teoria da mimese, a capacidade de produzir semelhanças

(BENJAMIN, 1994, p. 108), como forma específica de elaboração da experiência

humana, baseada nas relações ancestrais entre homem e natureza, onde a

linguagem não era um dado estranho entre estas esferas. Perceber semelhanças

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“extra-sensíveis” (BENJAMIN, 1994, p. 110) pelo comportamento mimético, bem

como reconhecer tais semelhanças nas atividades cotidianas são comportamentos

que atribuem à experiência certa densidade, que aparece nas considerações sobre

a filosofia da linguagem benjaminiana, que nos impede de tomar a maneira pela qual

o homem experimenta o mundo e sua existência de forma instrumental; isto é, as

considerações de Walter Benjamin acerca da faculdade mimética, da capacidade de

produzir e reconhecer semelhanças – correspondências entre os elementos

experienciados cotidianamente – assim como nas críticas à determinado conceito

instrumental de linguagem, passa por uma crítica de determinado conceito de

experiência que toma como dados estanques a relação entre sujeito e objeto,

tomando o primeiro como instância autônoma e purificada de determinação exterior,

e o segundo como instância passiva, dócil, apreensível tal como é, e representada

no conhecimento de forma estável, como condição de acesso à verdade. Para uma

melhor compreensão das idéias de Walter Benjamin neste desdobramento

específico de sua teoria da experiência, tomemos alguns dados históricos sobre a

idéia da mimese.

Em um artigo importante a professora J. Marie Gagnebin faz uma discussão

acerca do conceito de mimese através da abordagem de alguns aspectos da

tradição filosófica em que este conceito se insere. Discutindo as idéias de Platão e

de Aristóteles sobre a mímesis 36, Gagnebin apresenta o cenário de onde surge o

debate entre Walter Benjamin e Theodor Adorno (GAGNEBIN, 1993).

De acordo com J. M. Gagnebin 37 na tradição grega conceito de mímesis está

profundamente relacionado à idéia de “representação artística”, conceito distante

das tradições contemporâneas que relacionam a mímesis á imitação. Já no interior

36

Em respeito aos autores utilizados no debate acerca do conceito de mimese, grafaremos a palavra de acordo com a forma utilizada em seus textos, por exemplo, Gagnebin utiliza a grafia mímesis. Quando desenvolvermos nossas idéias sobre o termo, grafaremos “mimese” – ou, naturalmente, quando a bibliografia assim o fizer, por ser uma palavra relativamente conhecida nos debates e incorporada na língua portuguesa – apesar de possuir definição diferente utilizada em nosso contexto. Acreditamos não haver motivos para mais debate acerca da grafia da palavra, como tantas outras que assumem significação diferente quando apresentadas nas discussões, mas não alteram a grafia. A referência no corpo do texto acerca da significação diferente da palavra neste contexto é suficiente. 37

Assim como a professora Gagnebin, nosso objetivo não é fazer uma análise pormenorizada do conceito de mimese na tradição filosófica, apenas introduzir o debate para dotar o desenvolvimento teórico menos fragmentado é nossa idéia. Além disso, uma exegese filosófica do conceito demandaria outro trabalho nas proporções do nosso.

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da filosofia platônica, de acordo com Gagnebin, o conceito de mímesis foi relegado

ao plano do não verdadeiro, do que é representado sobre a representação que os

objetos figuram, e não do próprio ser da verdade: “[...] A imagem mimética é,

primeiro, na sua falta essencial de ser: em relação à idéia, à forma primeira que os

objetos reproduzem inabilmente, a imagem poética ou plástica não é mais que

cópia, afastada por três graus do ser verdadeiro [...]. Essa imagem é [assim] capaz

de iludir” (GAGNEBIN, 1993, p. 69). A filosofia de Platão, desta forma, é construída

no sentido de resistir ao poder da mímesis – que lembremos, possui a conotação de

“apresentação da beleza do mundo” (GAGNEBIN, 1993, p. 68), isto é, a

representação artística da experiência do mundo.

Se Platão encarou a mímesis como uma ilusão, uma distorção a ser

combatida, o mesmo não ocorreu no pensamento aristotélico, de acordo com

Jeanne Marie Gagnebin. Sigamos as palavras da professora Gagnebin: “A poética

de Aristóteles também será normativa, como toda estética clássica, mas as suas

normas advêm do emprego apropriado das palavras, dos ritmos, da trama à

finalidade da beleza da obra, não em vista de sua fidelidade a um modelo exterior”

(GAGNEBIN, 1993, p. 70). Se nos for permitido adequar as considerações aos

nossos desenvolvimentos, para Aristóteles, no que se refere à produção artística, há

um pequeno desvio da tradição platônica, no que se refere à valorização não tanto

do grau de verdade com o qual a arte representa este ou aquele objeto, mas uma

preocupação um pouco maior com a forma de representação. Continuando com as

palavras de Gagnebin: “A definição aristotélica ressalta, em oposição à Platão, o

ganho trazido pela mímesis ao conhecimento, pois o que é conhecido”, na atividade

mimética, artística, “não é tanto o objeto reproduzido enquanto tal [...] mas muito

mais a relação entre imagem e objeto” (GAGNEBIN, 1993, p. 70).

Este ponto nos permite abreviar as discussões de Gagnebin ao nosso modo.

A teoria benjaminiana da mimese, em afinidade com as idéias aristotélica, também

enfatiza a peculiar produção de conhecimento da atividade mimética, superando a

identificação entre mimese e ilusão na relação de produção de conhecimento.

Enfatizar a relevância do saber sobre a “relação entre imagem e objeto” faz parte da

tentativa benjaminiana de resgatar ao conceito de mimese uma dignidade

específica, relacionada ao projeto de ampliar o âmbito das experiências humanas;

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para além da restrição de que o conhecimento da verdade só se realiza na tomada

do objeto em seu ser mesmo, na não problematicidade da representação do objeto

no conhecimento e em descartar a possibilidade de conhecimento verdadeiro numa

atividade que não seja estabelecida sobre a posse do objeto do conhecimento.

Por isso a conexão fundamental entre filosofia da linguagem e teoria da

mimese no pensamento benjaminiano, para Jeanne Marie Gagnebin: A teoria

benjaminiana da mímesis “se encontra, em primeiro lugar, na sua filosofia da

linguagem” (GAGNEBIN, 1993, p. 79). A experiência mimética, chamada por

Benjamin nos ensaios de 1933 de capacidade de produzir e perceber semelhanças

extra-sensíveis, é a capacidade de reclamar à experiência humana um

conhecimento peculiar para além da estabelecida relação sujeito objeto, reconhecer

que a experiência humana do mundo produz conhecimentos, que podem ser

verdadeiros, não apenas a partir do “objeto reproduzido”. Voltemos aos ensaios de

1933 para tentar tornar estas idéias mais claras.

A capacidade de produzir semelhanças extra-sensíveis, a faculdade mimética

se refere no interior da filosofia benjaminiana, à possibilidade de reconhecer e de

possibilidade de conhecimento para além da equação percepção-ordenação-

entendimento. Não se trata de recusar o conhecimento advindo da sensibilidade,

trata-se de atribuir à experiência humana uma amplitude maior no que se refere à

produção de conhecimento, como ainda veremos.

Para Walter Benjamin o ser humano, na natureza, é dotado da “capacidade

suprema de produzir” e perceber “semelhanças” (BENJAMIN, 1994, p. 109). Esta

“capacidade mimética” – produzir e reconhecer semelhanças – se modificou ao

longo do tempo (BENJAMIN, 1994, p. 109), o que para Jeanne Marie Gagnebin é

uma característica original da teoria benjaminiana da mimese (GAGNEBIN, 1993, p.

80). A possibilidade de reconhecer o caráter mais amplo da experiência humana, a

possibilidade de um conhecimento verdadeiro fora do âmbito da relação estanque

entre sujeito-objeto e representação-conhecimento, está na atenção às

peculiaridades da linguagem. Nas palavras de W. Benjamin: “[...] Possuímos um

cânone de acordo com o qual o significado das semelhanças não-sensíveis pode ser

pelo menos em parte esclarecido. Este cânone é a linguagem” (BENJAMIN, 1999, p.

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721) 38. É para o interior da linguagem, para além de seu âmbito instrumental-

comunicativo, que a faculdade mimética migrou e se transformou ao longo do tempo.

A experiência da mimese, como “leitura ancestral”, relacionada às experiências de

compreensão do universo que escapava à instrumentalidade da tradição do

conhecimento como captura do objeto pelo sujeito na sua representação estática,

que Walter Benjamin ilustra com a busca pela visão – a clarividência - na leitura dos

astros, a astrologia (BENJAMIN, 1994, p. 11), na leitura das entranhas ou na dança,

migrou para a linguagem humana, estabelecendo-se no interior de sua esfera

mágica.

A linguagem é o principal reservatório da faculdade mimética. Para Benjamin

isto é evidente na relação entre a materialidade da linguagem com sua dimensão

simbólica, seu significado. Nas palavras do próprio Benjamin: “É digno de nota que

esta [concepção mimética da linguagem escrita] pode esclarecer melhor ainda que

certas configurações sonoras da linguagem, através da relação entre imagem escrita

de palavras ou de letras como o significado, ou com a pessoa nomeadora”

(BENJAMIN, 1994, p. 111). Benjamin continua: “A escrita transformou assim, ao lado

da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extra-

sensíveis” (BENJAMIN, 1994, p. 111).

Como apresentamos brevemente Walter Benjamin elaborou uma teoria da

mimese de certa forma relacionada à poética aristotélica no que se refere ao

reconhecimento da atividade mimética na produção de conhecimento, mesmo que

seja de um tipo peculiar de conhecimento, onde a ênfase não recai com maior

importância na representação perfeita do objeto no conhecimento, mas no que pode

haver de verdadeiro – ao seu modo peculiar – na própria relação do conhecer, na

própria experiência do conhecimento, utilizando nossas palavras. Também como

comentamos Walter Benjamin, de maneira original, atribuiu à faculdade mimética um

desdobramento histórico, que resultou de sua migração das leituras ancestrais – das

formas primitivas de conhecer o mundo que também podem, mesmo que

peculiarmente, serem chamadas de verdadeiras – para a linguagem humana, oral,

38

Apresentamos aqui uma tradução livre da versão em inglês do texto. Apesar de publicado em português pela Relógio D‟Água (BENJAMIN, 1992), optamos pela versão dos Escritos escolhidos da Harvard University (BENJAMIN, 1999) pela aproximação da tradução de alguns conceitos de acordo com nossos objetivos (por exemplo, o conceito de “semelhanças não-sensíveis”, “nonsensuous similarity”, que aparece na tradução portuguesa como “semelhanças não físicas”).

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sonora – nas “teorias onomatopaicas” (BENJAMIN, 1994, p. 110) – mas

especialmente na linguagem escrita, na relação entre materialidade da língua e seu

significado, para além de sua estrutura sintática, lá naquele âmbito mágico,

essencial. Até agora acompanhamos, nos desenvolvimentos benjaminianos dos

ensaios de 1933, o aproveitamento de sua filosofia da linguagem em uma peculiar

teoria da experiência e do conhecimento que, como veremos logo a seguir, possui

um desenvolvimento mais ou menos autônomo, paralelo em relação á sua teoria

mimética. Mas antes precisamos esclarecer um aspecto fundamental desta teoria,

que marca a particularidade do tom destes dois ensaios em relação à filosofia da

linguagem benjaminiana, um aspecto fundamental em nossos desenvolvimentos.

À experiência lingüística, de acordo com Walter Benjamin, deve ser

reconhecida uma densidade que permita considerá-la para além das relações

instrumentais de comunicação e de representação do conhecimento. Mas esta

densidade, esta dignidade, nos ensaios de 1933 não pode ser colocada em relação

de hierarquia com o outro lado da linguagem. Nas palavras de Benjamin no Doutrina

das Semelhanças: “Essa dimensão – mágica, se se quiser – da linguagem e da

escrita não se desenvolve isoladamente da outra dimensão, a semiótica”

(BENJAMIN, 1994, p. 112). A mesma idéia em Sobre a Faculdade Mimética: “[...] O

elemento mimético da linguagem pode, como uma chama, manifestar-se apenas

através de uma espécie de portador. Este portador é o elemento semiótico. Assim, o

nexo do significado das palavras ou sentenças é o poder através do qual, como em

um flash 39, as semelhanças aparecem” (BENJAMIN, 1999, p. 722). O elemento

semiótico não é desprestigiado em relação à dimensão mágica, nos textos de

juventude de Walter Benjamin. Mas a peculiaridade dos ensaios de 1933 é que essa

dimensão mágica, a capacidade de reconhecer e produzir semelhanças na

linguagem humana, só se desenvolve só se apresenta, com a presença do elemento

semiótico. O fato de Walter Benjamin enfatizar esta co-participação de materialidade

e caráter mágico na possibilidade de produzir e reconhecer semelhanças, ir além,

39

Veremos, em breve, que esta caracterização do aparecimento das semelhanças, como um relâmpago, reaparece no conceito benjaminiano do sem-expressão, de origem e de imagens dialéticas. A origem – enquanto desdobramento, (des)mobilização e atualização – da filosofia da história de Walter Benjamin pode e deve ser apresentada em sua filosofia da linguagem, como defenderemos ao longo de nosso trabalho.

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em direção aos conceitos de experiência e conhecimento mais amplos, tem grande

importância em nosso desenvolvimento. De acordo com o filósofo:

“Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação

da faculdade mimética: um medium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetram tão completamente, que ela se converteu no medium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no correr da história.” (BENJAMIN, 1994, p. 112)

Para interior da esfera mágica da linguagem – desvinculada da função

comunicativa – se dirigiu, ao longo da história, a capacidade de perceber e produzir

semelhanças, a linguagem, medium: lugar de refúgio da capacidade mimética e

lugar de produção das semelhanças, de correspondências entre as coisas. A

linguagem humana – que permite a identificação e a produção de semelhanças, de

correspondências, a capacidade suprema de experienciar linguisticamente o mundo

e reconhecer esta experiência a partir de um conceito de linguagem que valoriza sua

materialidade enquanto medium do sentido, seu caráter simbólico desvinculado da

função comunicativa, enfim, algumas peculiaridades que pudemos conhecer nas

seções precedentes.

Veremos no capítulo seguinte de nosso trabalho o quanto este equilíbrio entre

semiótico e mágico se tornará importante no desdobramento da teoria crítica do

conhecimento e no próprio conceito de história de Walter Benjamin. Esta

preocupação aparece em outro texto de Walter Benjamin acerca da linguagem, que

citaremos de passagem aqui.

No texto Problemas da Sociologia da Linguagem (BENJAMIN, 1992), escrito

no ano de 1934, publicado em 1935 na Zeitschrift für Sozialforschung, periódico da

chamada Escola de Frankfurt (BENJAMIN, 2002, p. 86), Walter Benjamin elabora

uma arqueologia das mais conhecidas teorias sócio-históricas da linguagem para

demonstrar de que maneira elas estão ainda relacionadas a um conceito de

linguagem atrelado à idéia de comunicação de conteúdos e de linguagem resumida

á sua estrutura. Passando por idéias de Lévy-Bruhl, Ernst Cassirer (BENJAMIN,

1992, p. 202), identificadas a uma atribuição mitológica à origem da linguagem,

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recusada pela oposição etnológica entre primitivo e civilizada; seguindo por

considerações acerca da teoria materialista-dialética de Nikolaus Marr (BENJAMIN,

1992, p. 207) e pelas análises sintático-lógicas de Rudolf Carnap (BENJAMIN, 1992,

p. 212), Walter Benjamin chega às discussões dos lingüistas que se ocuparam com

desenvolvimento cognitivo das crianças (J. Piaget e Wygostski), especialmente

relacionados às experiências de Richard Paget, acerca do caráter gestual da

linguagem originária (BENJAMIN, 1992, p. 224), para aí encontrar indícios para seu

conceito mimético de linguagem:

“Se outros”, os lingüistas comentados ao longo do artigo (Cassier, Lévy-Bruhl, Marr e Carnap, entre outros), “negligenciaram para além da função semântica da linguagem o seu caráter imanente de expressão, as suas forças fisiogonomónicas [fisiognômicas 40], aos olhos de Paget, este caráter e estas forças, não menos que aquela função, parecem dignos e capazes de um desenvolvimento ulterior. Ele volta assim a dar um lugar de honra a esta antiga verdade de que, recentemente, [Kurt] Goldstein foi o primeiro a dar uma formulação [...]” (BENJAMIN, 1992, p. 228)

Então Benjamin cita Kurt Goldstein, como método de apresentação de seu próprio

prelúdio, um “ponto de vista” que deverá estar “no início de toda sociologia da

linguagem” (BENJAMIN, 1992, p. 229):

“[...] A partir do momento em que o homem usa a linguagem para estabelecer uma relação viva com ele próprio ou com os seus semelhantes, a linguagem já não é um instrumento, não é um meio; é uma manifestação, uma revelação da nossa essência mais íntima e do laço psicológico que nos liga a nós próprios e aos nossos semelhantes” (GOLDSTEIN, apud, BENJAMIN, 1992, p. 229)

Na citação anterior de Walter Benjamin, em sua citação das idéias de Goldstein,

podemos identificar os elementos da filosofia da linguagem benjaminiana no mesmo

tom peculiar dos ensaios de 1933, Sobre a Faculdade Mimética e Doutrina das

Semelhanças. As forças “fisiognômicas” da linguagem, seu caráter “imanente de

expressão” devem ser encarados como manifestações, em contextos diferentes –

lembremos que este texto de 1935 foi publicado pela revista do Instituto, da Escola

de Frankfurt 41 – do caráter mágico da linguagem, de sua esfera que se relaciona ao

40

Fisiognômicas, no português brasileiro do professor alemão que estuda, entre outras coisas, Benjamin e Guimarães Rosa, Willi Bolle (BOLLE, 2000). 41

E talvez o qualificativo “mágico” não caísse bem aí.

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conhecimento humano como citação dos conhecimentos ancestrais, modificadas ao

longo do tempo, mas que se mantiveram como força vida, como chama – cujo

portador é indispensável, nos termos do Sobre a Faculdade Mimética – que talvez

possa revelar algo de verdadeiro sobre a experiência humana, para além da forma

com que ela é tomada de acordo com a tradição moderna.

Pontuamos até agora alguns aspectos da teoria da mimese de Walter

Benjamin onde é possível estabelecer correlações seguras com sua filosofia da

linguagem. Este relacionamento se tornará ainda mais evidente, e mais importante

em nosso intento de formular os desdobramentos do conceito de história de W.

Benjamin a partir de sua filosofia da linguagem e de sua teoria crítica do

conhecimento, ao percebermos que o projeto de ampliação dos domínios da

experiência cognitiva em relação ao conceito moderno de experiência, possuí uma

gestação paralela à filosofia da linguagem benjaminiana, bem como uma íntima

relação.

O freqüentemente citado texto Sobre o Programa da Filosofia Vindoura 42

(BENJAMIN, 2000b), foi escrito em 1917-1918, alguns anos depois do ensaio Sobre

a Linguagem... e não foi publicado durante a vida de seu autor (BENJAMIN, 2000b,

p. 110). A proposta de Walter Benjamin neste texto programático – não apenas no

seu título – é apresentar uma proposta de revisão do conceito de conhecimento

kantiano, em favor de sua ampliação, pela consideração de que a idéia de

experiência, tal como apresentada no sistema filosófico de Immanuel Kant (1724-

1804), possui grandes limitações. As afinidades e a proximidade com o programa

hamaniano da Metacrítica são inquestionáveis, como veremos. Passemos

brevemente por alguns de seus aspectos mais importantes.

O ensaio Sobre o Programa da Filosofia Vindoura atribui à filosofia por vir a

tarefa de dar continuidade ao projeto filosófico kantiano. De acordo com Walter

Benjamin a continuação da filosofia sistemática de Kant deveria partir de uma

revisão de seus pressupostos, passando pela necessidade de uma ampliação dos

domínios da epistemologia do kantismo. A epistemologia kantiana deverá ser revista

e ampliada pela filosofia do futuro, de acordo com Walter Benjamin, por ser baseada

em um conceito de realidade muito simplificado. Esta simplificação, ainda de acordo

42

“On the Program of the Coming Philosophy”, na versão que utilizamos.

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com Benjamin, aparece no conceito de experiência apresentado pelo célebre filósofo

de Königsberg, modelado de acordo com preceitos da física moderna. Nas palavras

de W. Benjamin:

“O conceito de experiência assim identificado e determinado [pelo conceito da física moderna] permaneceria sustentado pelo antigo conceito de experiência [...] O conceito de uma experiência auto-evidente, nua, primitiva, que, para Kant, como para o homem que de alguma maneira compartilhava o horizonte de seu tempo, mostrou-se ser a única experiência dada, a única experiência possível. [Este conceito se caracterizou assim por ser] temporalmente limitado” 43 (BENJAMIN, 2000b, p. 101).

Assim para Walter Benjamin o conceito do de experiência da filosofia kantiana

foi – como toda filosofia – determinado pelo seu tempo, filho de uma visão de mundo

peculiar de sua época. Rever criticamente o conceito de experiência do kantismo,

para então atualizar sua filosofia, deve ser a tarefa da filosofia futura que se atribua

a responsabilidade de dar continuidade ao projeto iluminista. Este elemento é

fundamental para a compreensão de diversos momentos da filosofia benjaminiana:

as críticas ao ideal de conhecimento do Iluminismo, sua crítica radical à

modernidade de seu tempo em textos posteriores, aparecem sempre como projeto

filosófico de crítica e atualização, de acordo com as demandas específicas de sua

época. A apresentação da marca do histórico no interior de qualquer pensamento,

da sua linguagem, de todas as épocas e de cada coisa aparece como ferramenta

crítica por excelência no interior do projeto filosófico benjaminiano. Por ora

continuemos os comentários do texto de 1918.

O chamado para a atualização da filosofia criticista não deve assim ser

compreendido como uma recusa da tradição Iluminista e, especificamente com a

renúncia ao pensamento de I. Kant. Walter Benjamin expõe de forma clara que,

confrontando o pensamento kantiano com as demandas específicas de seu tempo –

o início do longo século XX – deve-se criticar, separar, escolher o que deve ser

posto de lado, os elementos que devem permanecer e ainda aqueles passíveis de

atualização: “É de grande importância para a filosofia futura reconhecer e separar os

elementos da filosofia kantiana que deverão ser adotados e cultivados, os que

43

Novamente citamos uma tradução livre da edição do texto em inglês.

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deverão ser retrabalhados, e ainda os que deverão ser rejeitados” (BENJAMIN,

2000b, p. 101-102).

Outro elemento central do texto Programa da Filosofia Vindoura é a

importância atribuída por Walter Benjamin à revisão do conceito de conhecimento da

filosofia kantiana, partindo também de uma revisão do conceito de experiência e de

uma crítica eficaz à metafísica (BENJAMIN, 2000b, p. 102). Como em vários

momentos de sua obra, W. Benjamin apresenta neste texto a necessidade de criticar

o que ele chama de metafísica e de mito presentes no interior do que identifica

como o projeto Iluminista, causados pela “cegueira” específica daquele tempo. Para

Benjamin o conceito “superficial” de experiência do pensamento iluminista bloqueou,

no interior de seu projeto filosófico, uma crítica eficaz aos elementos mitológicos e

metafísicos, que ao serem simplesmente recusados – ou negociados em favor do

conhecimento possível – retornaram sub-repticiamente nas idéias epistemológicas

as quais foram atribuídos os poderes de libertar a humanidade da servidão do mito.

Seguindo as reveladoras palavras de Walter Benjamin do ensaio de 1918:

“A inadequação entre experiência e metafísica manifesta-se

no interior da epistemologia como elementos de uma metafísica especulativa [...]. Esses elementos são fragmentos, resquícios metafísicos na epistemologia, um fragmento, resquício daquela „experiência‟ superficial daquele século que se inseriu furtivamente na epistemologia. Não se pode duvidar de que a noção, simplesmente sublimada, de um eu individual, que receba as sensações por meio dos sentidos e forma sua idéia em sua base, tem grande importância para o conceito de conhecimento de Kant. Essa noção é, no entanto, uma mitologia, e sempre quando seu conteúdo de verdade é considerado, é sempre a mesma mitologia epistemológica” (BENJAMIN, 2000b, p. 103) 44.

Benjamin compara o conceito de conhecimento da filosofia kantiana – que tem por

base uma epistemologia fundamentada no que Benjamin chama de um conceito

44

Tradução um pouco modificada. Na edição em inglês lemos: “The inadequacies with respect to experience and metaphysics manifest themselves within epistemology itself as elements of speculative metaphysics. […] All of this is a thoroughly metaphysical rudiment of epistemology, a piece of just that shallow „experience‟ of these centuries which has crept into epistemology. It simply cannot be doubted that the notion, sublimated though it may be, of an individual living ego which receives sensations by means of its senses and forms its ideas on the basis of them plays a role of the greatest importance in the Kantian concept of knowledge. This notion is, however, mythology, and so far as its truth content is concerned, it is the same as every other epistemological mythology.” (BENJAMIN, 2000, p. 103).

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“superficial” de experiência – à visão de mundo dos “povos primitivos”, dos “doentes”

e dos videntes (“clarividentes”) 45 que confundem sensações com a própria realidade

e buscam a partir daquelas, o conhecimento verdadeiro dessa. Veremos que em

muitos momentos Walter Benjamin apresenta a necessidade de retornar aos

pressupostos da tradição filosófica – especialmente a que, por excelência, se

atribuiu a quase sagrada tarefa de purgar o pensamento da metafísica – para

identificar nestes pressupostos os aspectos mitológicos que sem mantém

arraigados. Este não é o momento de julgar o quanto são pertinentes as críticas de

Walter Benjamin à filosofia kantiana. Importante é perceber que as observações de

W. Benjamin acerca da permanência das construções mitológicas – uma experiência

totalmente abarcável, um conhecimento purificado da subjetividade, etc. – são de

grande relevância para compreendermos o inacabamento do projeto filosófico

Iluminista – e da própria modernidade, se podemos atribuir um nome para nossa

época.

Comentamos brevemente até agora, acerca do ensaio Sobre o Programa da

Filosofia Vindoura, de que maneira, para Walter Benjamin a revisão da filosofia

kantiana passa por uma reavaliação de seu conceito de conhecimento, reavaliação

que não pode acontecer senão pela reformulação de sua epistemologia e pela

ampliação do conceito de experiência que está em suas bases. Tomando o conceito

de experiência de forma mais ampla, não reduzindo-o à concepção de realidade que

é apresentada como modelada pela mecânica clássica, a filosofia futura poderá

responder à algumas demandas contemporâneas, para Walter Benjamin.

Detenhamo-nos em mais um aspecto deste ensaio.

Uma das principais características do conceito de experiência que está na

base dos pressupostos epistemológicos da filosofia kantiana, para Walter Benjamin,

é a “fragmentação da experiência nos domínios das ciências individuais” 46

(BENJAMIN, 2000b, p. 104) que, apesar de ter sido evitada por Kant, se tornou um

dos pressupostos do pensamento neo-kantiano. Estes, ainda de acordo com

Benjamin, foram os grandes responsáveis pela elaboração do conceito “vazio” de

45

Interessantes estes exemplos dados por Walter Benjamin (nuance já ressaltada em algum lugar). Eles reaparecem na obra benjaminiana, por diversas vezes, como detentores da experiência que em nossos dias se deteriora. Este texto é, sem dúvida, um dos mais iluministas de Walter Benjamin. 46

Consideração que aparece em autores muito mais contemporâneos do que nosso filósofo da República de Weimar. Lembremos o texto aqui discutido foi escrito em 1918.

Page 82: Universidade Federal de Goiás - FILOSOFIA DA …...Agradecimentos Agradecer é um exercício fundamental e sempre típico. Primeiro agradeço aos professores que contribuíram para

experiência de sua época. A grande lacuna no conceito de experiência apresentado

pelo neo-kantismo, para Benjamin, é sua cegueira em relação à dimensões da

experiência humana que não podem ser desconsideradas em qualquer projeto

filosófico futuro. Estas dimensões, histórica e religiosa, são relegadas em favor da

objetividade e da certeza, pelo esquecimento de um aspecto inseparável do

conhecimento, a outra face – ou os galhos que emanam do mesmo tronco - da razão

na busca pela verdade. A apresentação deste aspecto encaminhará a conclusão de

nosso capítulo.

A ampliação do conceito de experiência da tradição filosófica tributária ao

pensamento kantiano, de acordo com Benjamin, deve passar pelo reconhecimento

da íntima relação entre conhecimento e linguagem. O reconhecimento do caráter

inseparável destas duas formas de organizar a experiência humana possibilitará a

ampliação do conceito que tenta dar conta desta experiência. Nas palavras de

Benjamin:

“A grande transformação e correção que deve ser levada ao conceito de experiência, orientado em linhas unilaterais [pelo conceito] da mecânica-matemática, pode ser atingido apenas pelo [reconhecimento da] relação entre conhecimento e linguagem, como foi percebido por Hamann, ainda durante a vida de Kant” (BENJAMIN, 2000b, p. 107-108).

A referência ao pensamento de Georg Hamann é reveladora: a atenção ao

conceito de conhecimento não purificado da linguagem, que lhe é inseparável,

possibilitará à filosofia do futuro uma ampliação do conceito de experiência, pelo

reconhecimento da maior complexidade da realidade e conseqüentemente do

conhecimento que lhe possa tangenciar. Na retomada do pensamento de Hamann

neste programa para uma filosofia futura percebemos como se redimensionam as

idéias hamanianas, atualizadas no sentido de, a partir do reconhecimento da

inseparabilidade da sensibilidade e do entendimento – inseparáveis no que há de

lingüístico em ambos – conferir uma profundidade maior ao conceito kantiano de

experiência – e o conceito de conhecimento desse decorrente – não pela simples

recusa da filosofia de Kant, mas sim direção de atualizá-la frente aos novos

desafios. A revisão crítica dos conceitos de experiência e de conhecimento da

filosofia kantiana deve passar dessa forma pelo reconhecimento do caráter

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lingüístico do conhecimento e pelas formas específicas de conhecimento que podem

brotar da linguagem, naquilo que está para além da mera comunicação; reconhecer

o caráter lingüístico do conhecimento – antes de seu caráter “numérico” (BENJAMIN,

2000b, p. 108) – não significa buscar na linguagem o quê ela pode transmitir do

conhecimento, e sim reconhecer algo de verdadeiro na linguagem, antes da

tradução mal-sucedida – por desvinculá-la de sua verdade essencial –, da

separação da palavra logos.

Passemos brevemente pelo que já vimos acerca do texto Sobre o Programa

da Filosofia Vindoura, para encaminharmos as conclusões dessa seção.

Pelo menos três aspectos deste texto de 1918 precisam reter nossa atenção.

Em primeiro lugar o projeto benjaminiano de revisão crítica da filosofia kantiana – e

podemos dizer, um projeto de revisão crítica e de atualização do programa filosófico

iluminista. A continuidade do projeto filosófico kantiano – e o que ele representa na

tradição filosófica – teria como condição uma revisão de seu conceito de

conhecimento – tido por Benjamin como superficial – em favor de um conceito mais

amplo de experiência.

Esta revisão do conceito de conhecimento, como vimos, visaria em primeiro

lugar elaborar uma crítica eficaz à metafísica, esta crítica eficaz da metafísica possui

grande importância no interior da filosofia benjaminiana, e este é o segundo

elemento que precisamos destacar. Para Benjamin a recusa retórica aos constructos

metafísicos arraigados na tradição filosófica ocidental, ao invés de purgar o

pensamento da metafísica, possibilita que esta permaneça – furtivamente – no

interior da epistemologia. Em favor de um conhecimento purificado, o “verdadeiro”, a

“realidade” passaram a depender de construções metafísicas e mitológicas para sua

própria sustentação. O grande problema deste veio metafísico no interior das

epistemologias, que se declaravam as mais livres desta metafísica e daquele mito, é

que estes elementos reprimidos retornariam, nas filosofia, como a face mais

assustadora no pensamento ocidental: a intolerância, a repressão e a violência,

sustentada por mitos transvestidos de verdades. Este procedimento ganhará força

na filosofia da história de Walter Benjamin com a tentativa de despertar as

construções historiográficas das mitologias construídas acerca do passado. O que

foi purificado daquele conhecimento, pretensamente verdadeiro? Este é o terceiro

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aspectos que precisamos reter. O reconhecimento da unidade entre linguagem e

conhecimento, já anunciada na época kantiana por Hamann, é o argumento

benjaminiano em favor de uma revisão e uma expansão dos conceitos de

conhecimento e de experiência para a filosofia do futuro.

Mas, as reflexões benjaminianas poderiam ultrapassar o status de programa e

elaborar-se em uma nova epistemologia, em uma teoria crítica do conhecimento que

fizesse justiça às esfera da experiência – e ainda, a esfera da verdade – visada pela

linguagem? Antes de seguirmos nosso itinerário em direção ao conceito de história

de Benjamin pela ligação entre filosofia da linguagem e epistemologia-crítica,

passemos às idéias benjaminianas sobre as ligações entre teoria crítica do

conhecimento e filosofia da arte.

2.2 Pesadas Achas, Leves Cinzas: Teoria Crítica do Conhecimento e Filosofia da Arte

O ensaio sobre a obra As afinidades eletivas de Goethe foi escrito por Walter

Benjamin entre 1919 e 1922 e publicado em 1924-25, na Neue Deutsche Beiträge

(BENJAMIN, 2000b, p. 356). O período entre 1919 e 1925 marcou intervalo entre a

elaboração de sua tese de doutoramento, O Conceito de crítica de arte no

Romantismo alemão (BENJAMIN, 1999b) e a tese de livre-docência sobre o drama

barroco alemão (BENJAMIN, 1984). Os primeiros anos da década de 1920 foram

marcados pelo aparecimento de importantes textos no interior da obra do filósofo

alemão, entre eles, Crítica da Violência, Crítica do Poder (1921), o célebre e

polêmico texto sobre as origens míticas do direito; A Tarefa-renúncia do tradutor

(1923), comentado na seção anterior; a obra Rua de Mão Única (1923-1926), obra

que marcou a aproximação de Benjamin com o surrealismo e onde se elaborou o

primeiro ensaio de seu método crítico-literário-historiográfico; além do anúncio da

revista Angelus Novus (1922) (BOLLE, 2000, p. 421) embrião da obra Passagens

(BENJAMIN, 2006. Nossa referência a tais textos devem servir apenas como

argumento inicial acerca da importância do ensaio sobre a obra de Goethe em nosso

trabalho. Apresentaremos nas linhas que se seguem, paralelamente aos

comentários acerca deste belíssimo ensaio sobre crítica, epistemologia e filosofia da

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história que é As afinidades eletivas de Goethe, nossos esforços no sentido de

apresentar a origem do conceito de história de Walter Benjamin.

Nossas reflexões serão apresentadas em torno de três pontos. Em primeiro

lugar apresentaremos brevemente o tema do ensaio, isto é, os elementos arrolados

como paisagem para o desenvolvimento das reflexões benjaminianas. Nosso

encargo aqui será apresentar o ensaio benjaminiano como leitura 47 da obra de

Goethe, leitura muito específica, onde a partir da imersão nos elementos da obra

original, a crítica apresenta um espaço onde a reflexão ultrapassa a obra original e

seus comentários, em um movimento semelhante à tradução apresentada no

capítulo anterior.

Em seguida apresentaremos a problemática epistemológica e crítica do

ensaio concluído em 1922 – problemática que Seligmann-Silva preferiu traduzir por

“gnosiológica” (BENJAMIN, 1999b, p. 129) – a partir de uma oposição central na

obra de Benjamin: a relação entre mito e verdade. Por fim faremos algumas

considerações sobre o conceito de crítica apresentado no ensaio.

Nosso itinerário deve ser demarcado por estes três pontos. Primeiramente

faremos uma breve apresentação do tema do ensaio. Nosso encargo aqui será

apresentar o ensaio benjaminiano como leitura da obra de Goethe. Em um segundo

momento desta seção, apresentaremos as problematizações teóricas de Walter

Benjamin acerca do tema da relação entre o mito e da verdade, esboçando assim

seu conceito de crítica e alguns importantes elementos de sua teoria do

conhecimento – que será apresentada de forma mais cuidadosa na seção seguinte

de nosso trabalho. Por fim articularemos algumas idéias com objetivo de apresentar

no interior do ensaio sobre as Afinidades eletivas o conceito de crítica presente na

teoria da história benjaminiana e a relação entre sua filosofia da linguagem e da

história. Naturalmente confrontar-se com o pensamento benjaminiano – e não

apenas o pensamento de Benjamin, mas de tantos outros filósofos – especialmente

em seus textos clássicos, marcados por um ritmo próprio, e como já comentamos,

uma linguagem muitas vezes hermética, exige um exercício de algo como um

espécie de cautela e reverência, incrementadas com ousadia e liberdade. Um

47

Sobre o conceito de leitura em Walter Benjamin, a obra de Márcio Seligmann-Silva, que já nos acompanhou nas reflexões sobre a relação entre a filosofia da linguagem benjaminiana e a filosofia dos românticos de Iena (SELIGMANN-SILVA, 1999).

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trabalho de interpretação que deve lembrar a tarefa da tradução benjaminiana.

Sempre que se fizer necessário elaboraremos breves desvios de nosso itinerário,

dada a complexidade maior ou menor de alguns elementos discutidos.

O texto de Walter Benjamin sobre a obra As afinidades eletivas é reconhecido

como um de seus mais importantes textos de crítica literária e se destaca também

pela apresentação da peculiar teoria do conhecimento benjaminiana, que terá seu

máximo desenvolvimento e sofisticação no prefácio espistêmico-crítico ao livro sobre

o drama barroco alemão, que comentaremos em nosso próximo capítulo. Nossa

análise da crítica benjaminiana ao texto de Goethe tem como pressuposto teórico

fundamental a possibilidade de articular o conceito de crítica de Walter Benjamin,

sua teoria crítica do conhecimento e seu conceito de história através de sua filosofia

da linguagem. Para desenvolvermos nosso pressuposto apresentaremos uma leitura

do ensaio As afinidades eletivas guiada por um fio-condutor peculiar: nossa

interpretação do texto benjaminiano.

O texto As afinidades eletivas de Goethe (BENAMIN, 2009) se configura em

dois matizes, através de duas leituras, que se desdobram em algumas oposições,

em certas justaposições, em cisões e reuniões teórico-conceituais. Uma dupla

estrutura de leitura: a leitura do texto literário As afinidades eletivas e a leitura da

estética e da epistemologia presente nele. Leituras criadoras que, pela interpretação

peculiar do romance de Goethe, apresentam uma amostra do pensamento

benjaminiano e o nos permite experimentar seu estilo.

Em nossa leitura colocaremos no centro do ensaio a problemática presente já

no prefácio aos textos do poeta Charles Baudelaire, A Tarefa-renúncia do tradutor,

de 1923, já comentado acima. O tema da possibilidade de uma verdade imanente,

de algo essencial, daquilo que permaneceria vivo sob o que passa. A tarefa da

crítica, como Walter Benjamin a apresenta no ensaio As Afinidades Eletivas de

Goethe, visa algo que vive a partir daquilo que de morte a obra representa: “[...] O

enigma daquilo que está vivo. Assim, o crítico levanta indagações quanto à verdade

cuja chama viva continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve

cinza do vivenciado” (BENJAMIN, 2009, p. 14). Mas, qual motivo para a escolha do

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texto de Goethe? 48 A filosofia da arte apresentada na obra de Goethe aparece como

reagente ideal para o tema do conceito de crítica primeiro-romântico, como ainda

veremos. Mas antes passemos pelas Afinidades eletivas de Goethe, de Walter

Benjamin

De acordo com a leitura benjaminiana o tema da obra Afinidades eletivas é o

poder mítico que emana do declínio do casamento dos personagens envolvidos. O

casamento em declínio envolve os personagens do romance na trama de destruição

a partir da submissão da decisão das personagens frente aos poderes da natureza,

os poderes míticos; na oposição entre afinidades e eleição. Nas palavras de

Imaculada Kangussu: “Os personagens, quando abandonam a forma legal da

existência, entregam-se às forças naturais, ao „destino‟, e portanto, à ruína”

(KANGUSSU, 2007, p. 156). Apesar destas forças aparecerem tendo como pano de

fundo a desintegração do casamento, o romance de Goethe não tem como objeto o

matrimônio. Nas palavras de Benjamin: “O Objeto das Afinidades eletivas não é o

casamento. Em nenhum lugar do romance as instâncias éticas do casamento

poderiam ser encontradas. Desde o início elas estão em processo de desaparição,

assim como a praia sob as águas durante a maré enchente.” (BENJAMIN, 2009, p.

21). Tais poderes míticos são representados pelo tema do destino, do qual os

personagens não podem escapar por sua omissão, ao escolherem a não escolha se

enredam na trama da obra, onde os poderes míticos só poderiam triunfar:

“Neste círculo, as forças que surgem com o desmoronamento do casamento têm necessariamente de triunfar. Pois são justamente aquelas do destino. O casamento parece uma sina mais poderosa do que a escolha à qual os amantes se apegam” (BENJAMIN, 2009, p. 33).

Tal poder mítico é o “fundamento” do romance, de acordo com W. Benjamin. A partir

desta constatação, a leitura crítica benjaminiana do ensaio será determinada, a partir

da defesa de que, como ainda veremos, o mítico estabelece uma barreira frente ao

conhecimento da obra, mas a proposta de crítica apresentada por Benjamin poderia

superar esta barreira. Enlaçados pelos poderes míticos do destino as personagens

48

Nada de psicologismos nesta pergunta, ela deve aparecer apenas como arbitrariedade em favor da crítica.

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do romance de Goethe, na leitura benjaminiana, têm suas existências e os modos

de agir determinados, por estas forças. Seguindo as palavras de Benjamin: “Essa

espécie fatídica do existir, que engloba em si naturezas vivas num único contexto de

culpa e expiação, o autor desdobrou ao longo da obra toda” (BENJAMIN, 2009, p.

31). A culpa determina nesta obra de Goethe a existência das personagens.

Existência culpada, a qual o destino, sob o império dos poderes míticos.

Mas qual significado destes poderes míticos, o quê dá autoridade à tais forças

para arrastarem as personagens aos seus destinos fatídicos? O conceito de destino

– e, por conseguinte, os poderes míticos que o determinam – devem ser

compreendidos a partir da idéia de culpa, de acordo com Walter Benjamin, o destino

“[...] se desdobra de maneira irresistível na vida culpada. Destino é a correlação de

culpa do vivente” (BENJAMIN, 2009, p. 31). Este conceito de culpa tem um caráter

específico, que Benjamin elucida na passagem a seguir:

“Não se trata aqui de culpa moral [...] mas sim de culpa natural, na qual os homens incorrem não por sua decisão e ação, mas sim por suas omissões e celebrações. Quando, não respeitando aquilo que é humano, eles sucumbem ao poder da natureza, então sua vida é arrastada para baixo pela vida natural [...]. Com o desvanecimento da vida sobrenatural no homem, sua vida natural torna-se culpa, mesmo que em seu agir não cometa nenhuma falta em relação à moralidade. Pois agora está no território da mera vida, o qual se manifesta no ser humano enquanto culpa. O ser humano não escapa ao infortúnio que a vida chama sobre ele. Assim cada movimento dentro dele provocará culpa, cada um de seus atos haverá de trazer-lhe a desgraça” (BENJAMIN, 2009, p. 32).

Passagem fundamental para compreensão da leitura benjaminiana da obra As

afinidades eletivas e para elaboração de seu conceito de crítica. Os poderes míticos

do destino assolam a existência das personagens culpadas. Mas a culpa, como

vemos na citação acima, não é mera culpa moral, que poderia ter sido causada pelo

não respeito às normas do casamento. É o que Benjamin chama de “culpa natural” e

está ligada à relação que aquelas personagens estabeleceram com suas próprias

ações: as personagens foram omissas frente à vida sobrenatural. O afastamento

desta vida sobrenatural aparece como o desrespeito “daquilo que é humano”, como

a violação da tradição (BENJAMIN, 2009, p. 23), a não consideração dos presságios

e de seu simbolismo (BENJAMIN, 2009, p. 29), mas especialmente o não

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reconhecimento da gravidade da situação, a omissão perante à decisão. Nas

palavras da comentadora: “Afinidade não é escolha, é natural: a decisão é

necessária justamente para se transcender a natureza” (KANGUSSU, 2007, p. 159).

Decisão que não foi tomada pelas personagens frente ao desmoronamento do

casamento. A natureza que aqui representa os poderes míticos do destino aparece

em oposição à vida sobrenatural, a decisão frente os poderes da natureza, o caráter

humano da decisão, de manifestar através de sua linguagem juízo acerca da

situação, a capacidade de mostrar o poder da palavra humana frente à natureza

muda. As personagens cegamente seguiram seus destinos: “Não se trata aqui de

julgamento de sua ação, mas julgamento de sua linguagem. Pois eles seguem seu

caminho sentido, porém surdos; enxergando, porém mudos. Surdos perante Deus e

mudos diante do mundo. Ao prestarem contas fracassam, não pelo seu agir, mas

sim pelo seu existir. Eles emudecem” (BENJAMIN, 2009, p. 26).

A referência à filosofia da linguagem benjaminiana nestas passagens é quase

explícita, e fundamentam as bases da crítica ao romance de Goethe, como veremos.

As personagens das Afinidades eletivas incorreram no erro da omissão; falta em

relação à linguagem que, como vimos na primeira seção de nosso trabalho, é o

reflexo do verbo criador, traduzido na linguagem humana. O domínio da natureza se

consolida quando se subtrai da palavra humana a sua capacidade de chamar as

coisas pelo nome. O desvanecimento da vida sobrenatural é a recusa, por parte das

personagens, em compartilhar da capacidade humana de dar nomes às coisas e de

julgar suas ações: não houve juízo errado ou distorcido – nas palavras de Benjamin,

não é “culpa moral” – mas sim uma ausência de juízo que distanciou a criatura do

criador, ao negar a tarefa atribuída por esse a ela. Surdos em relação à vida

sobrenatural – o imperativo atribuído pela palavra criadora àqueles que deveriam

denominar – isto é, a capacidade de ir além da mera vida, e cegos frente aos sinais,

ao simbolismo que adiantava às conseqüências de sua decisão de não decidir, de

suas omissões perante a lei. A epígrafe de Benjamin ao seu trabalho, retirada de um

poema de Klopstock (BENJAMIN, 2009, p. 11) é reveladora: “A quem elege às

cegas, fumaça do sacrifício golpeia-lhe / Nos olhos”.

Os presságios, o “simbolismo da morte” que “entretece” (BENJAMIN, 2009, p.

28) o enredo da obra goethiana não foram levados em consideração pelas

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personagens que seguem silenciosos, isto é na omissão, o caminho de sues

destinos, como dissemos. A mudez das personagens representa o pacto unilateral

com o destino, com as forças míticas da natureza desumana, a qual foi negada o

chamamento humano, o nome, a tarefa atribuída ao homem. A lei que rege o destino

das personagens é “sem nome” (BENJAMIN, 2009, p. 26-27), e essa ausência da

nomeação figura como o domínio das forças míticas do destino, do destino natural

que escapa à vida humana, a sobrenaturalidade do nomear, de chamar as coisas

pelo nome, de desencantá-las. As personagens escolheram não escolher: “Menos

hesitação teria trazido liberdade, menos silêncio teria trazido clareza, menos

complacência, a decisão. [...] Também em outros aspectos o romance demonstra

isso com clareza” (BENJAMIN, 2009, p. 22). O poder mítico da natureza, que emana

para a existência das personagens pelo declínio do casamento, não se relaciona

com o caráter imoral desse, mas sim com a recusa em re-conhecer – em nomear –

os sinais apresentados ao longo do enredo. Seguindo Imaculada Kangussu: “A

clareza da conduta só é verdadeira quando se exprime, caso contrário, é ilusória,

pensa o filósofo”, e ainda: “Uma resolução moral só ganha vida quando é expressa e

rigorosamente transformada em objeto comunicável” (KANGUSSU, 2007, p. 157). As

personagens “emudeceram” no momento da decisão. O silêncio das personagens

assim representa a postura desses perante a natureza inumana: “Com esse silêncio

a aparência instalou-se consumindo o coração mais nobre” (BENJAMIN, 2009, p.

86), e ainda: “Não se expressando em palavras, toda clareza de uma conduta é

aparente e, na verdade, a vida interior daqueles que dessa maneira se preservam

não é menos obscura para eles do que para os demais” (BENJAMIN, 2009, p. 87).

Os poderes míticos se instalaram na vida das personagens como uma “lei

sem nome”, sinal de um “obscuro delito”; arrastando a vida deles ao âmbito da “mera

vida, a qual se manifesta no ser humano enquanto mera culpa” (BENJAMIN, 2009,

p. 32), existência culpada que passa exigir a devida expiação. O mítico, como vimos,

para Walter Benjamin, é o fundamento do romance de Goethe (BENJAMIN, 2009, p.

35), e isto que tentamos esboçar nas linhas precedentes desta seção.

A peculiaridade da interpretação benjaminiana está em apresentar, em um

movimento fundamental de seu estilo filosófico, a maneira através da qual o

conteúdo da obra deve ser considerado pelo crítico o material básico, o primeiro

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nível, de sua tarefa. A crítica visa à verdade, mas exatamente por isso seu universo

é a própria obra e nada mais além dela. Este é o tema principal de nossa leitura: a

vida que permanece na obra sob as cinzas do vivenciado e sobre as pesadas achas

do passado, deve ser buscada na obra, em sua linguagem, em primeiro lugar na sua

materialidade enquanto obra. Aqui tanto as idéias de conteúdo (Gehalt) 49 e de

linguagem da obra só podem ser entendidas em uma perspectiva ampla. Mas as

características da obra de Goethe exigiram da análise benjaminiana alguns

elementos que tornaram sua análise peculiar e de grande relevância no interior de

seu projeto filosófico.

A obra Afinidades eletivas figura, de acordo como a análise benjaminiana,

como um desafio à crítica: o conteúdo material, o “teor factual” do romance é o

poder mítico, que não só estabelece uma relação de exclusão com a verdade, mas

também se transforma em uma barreira à crítica que visa a verdade da obra de arte,

um obstáculo à passagem da materialidade da obra até sua verdade, pela busca,

entre as cinzas, da chama que ainda pode arder. O romance Afinidades Eletivas, na

interpretação da crítica benjaminiana, possuí uma sobreposição entre o tema e o

teor, sobreposição que na verdade existe em toda obra de arte (sob o nome de

conteúdo, muitas vezes relacionado ao tema) – como veremos na problematização

entre os conceitos de beleza e aparência –, mas que naquele romance, pelo caráter

desta sobreposição, obscurece sua verdade. O conteúdo da obra, no sentido de sua

materialidade e de sua trama, do estilo e dos fios de seu texto, é o poder do mito

que arrasta as personagens em direção aos seus respectivos e inescapáveis

destinos. O problema fundamental é formulado assim como a possibilidade de

apresentar a verdade de uma obra de arte que tem, na aparência, uma

configuração, ou melhor, que tem na configuração de sua aparência, o elemento

que, por sua essência, excluí a verdade.

Antes de entrarmos nas considerações acerca da teoria crítica do

conhecimento da arte e de sua epistemologia – gnosiologia – esboçada no ensaio

49

“Teor”, na tradução brasileira (BENJAMIN, 2009, p. 12) na nota número três. A palavra em alemão é mais abrangente que a que correspondente a “conteúdo” (Inhalt) de acordo com as editoras, por aludir inclusive à composição. Utilizamos mesmo assim a palavra conteúdo algumas vezes exatamente para salientar o estilo crítico benjaminiano neste texto, especialmente a maneira através da qual teor e conteúdo são sobrepostos na resolução crítica das Afinidades eletivas, como ainda veremos, na articulação da teoria crítica do conhecimento da arte que tem como figura a personagem Ottilie.

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sobre o romance de Goethe, indicaremos a forma através da qual, de acordo com

Walter Benjamin, o mítico enquanto teor factual da obra, enquanto seu conteúdo,

seu tema e materialidade, se torna uma barreira – e a condição de possibilidade –

enquanto universo da obra – de sua crítica.

Como indicamos de passagem, a verdade que deve se apresentar na obra

Afinidades eletivas enquanto obra de arte autêntica, só pode ser apresentada pelo

trabalho da crítica eficaz, que deve ter por base, fundamento, primeiro nível, o

comentário da obra, deve ter por pressuposto a materialidade da obra e nada a

mais. Nem uma aproximação empática 50, taxada de psicologismo por Benjamin,

nem qualquer mera determinação exterior à obra podem servir à crítica mais do que

seu própria materialidade. Assim Benjamin apresenta a idéia de que – idéia que tem

no interior da história da filosofia Benjamin como um de seus precursores – o

julgamento do autor sobre sua própria obra tem tanto valor quanto a opinião dos

contemporâneos de seu aparecimento: muito pouco contribuem para a tarefa de sua

crítica. Para Walter Benjamin “a história das obras prepara a sua crítica e, em

conseqüência, a distância histórica aumenta o seu poder” (BENJAMIN, 2009, p. 13),

isto deve significar que, primeiro, a história das obras torna “mais nítido aos olhos do

observador” (BENJAMIN, 2009, p. 12) ao decantar os conteúdos de verdade ao

longo do tempo, ao mesmo tempo a separação entre materialidade e verdade, teor

factual e teor de verdade, é o sinal acerca da “imortalidade” da obra (BENJAMIN,

2009, p. 13); idéia que mais uma vez faz forte referência à filosofia da linguagem

benjaminiana, especialmente no que se refere às considerações acerca da tarefa do

tradutor e da relação da tradução com a vida e com a sobrevida da obra, tal como

vimos na segunda seção de nosso trabalho. Vimos que para Benjamin a tradução

ideal, como manutenção da vida da obra através de sua sobrevida, a tradução como

reconhecimento da continuidade da linguagem pelo estabelecimento de suas

descontinuidades, a continuação da vida através da morte 51 da obra; todas estas

idéias se desdobram claramente no ensaio benjaminiano sobre o texto de Goethe.

Trata-se talvez do grande tema de nossa empreita: pensar de que maneira aparece

50

Como ainda veremos com o ensaio de Benjamin sobre o romance de Goethe estabelece uma crítica ferrenha ao psicologismo atribuído, em muitos momentos da filosofia benjaminiana, as ressonâncias de uma má interpretação da filosofia da vida. 51

“Crítica é mortificação das obras” escreveu Benjamin, em carta de 09 de dezembro de 1923, ao amigo Florens Christian Rang (BENJAMIN, 1994, p. 224).

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na obra de Benjamin a íntima relação, a copertença e a passagem filosófica entre

linguagem, história e verdade: verdade e ,linguagem – logos – são irmãs, irmãs na

comunhão de ambas com a história, irmãs naquilo que no interior de suas

respectivas histórias, pode permanecer, ao seu modo.

Ao longo das reflexões de Walter Benjamin podemos assim identificar outro

elemento sua filosofia da linguagem: a verdade que escapa ao âmbito da intenção.

Este aspecto será melhor desenvolvido na oportunidade da análise da filosofia

crítica do conhecimento de Benjamin. O âmbito mágico da linguagem, sua esfera

que escapa à instrumentalidade dos atos da mera comunicação de conteúdos, já

chamado do inumano na linguagem, escapa à intenção do conhecimento por

pertencer aos domínios da verdade, como o quê na obra de arte autêntica

permanece perante o tempo, e aquilo que na história abre a possibilidade de outra

história, como nos propomos a apresentar ao longo de nosso trabalho, nas suas três

partes, sobre a conexão das filosofias benjaminianas da linguagem, do

conhecimento e da história.

Sigamos nossa análise do ensaio sobre As afinidades eletivas pela

apresentação da relação entre mito e verdade no interior da tarefa crítica. Como já

comentamos, para Walter Benjamin: “Querer compreender As afinidades eletivas a

partir das próprias palavras do autor sobre o assunto é esforço inútil” (BENJAMIN,

2009, p. 42). Neste momento W. Benjamin dirige ataques precisos à obra crítica de

Friedrich Gundolf (1880-1931) (BENJAMIN, 2009, p. 60), crítico literário pertencente

ao círculo de Stefan George 52, bastante influenciado pela filosofia da vida, criticado

por Benjamin em vários momentos da obra:

“Esse proton pseudos em quase toda filologia mais recente, isto é, naquela filologia que ainda não se define mediante a investigação da palavra e dos fatos, consiste, se não em derivar a obra literária como produto da essência e da vida do autor, então pelo menos em torná-la mais acessível à compreensão ociosa. [...] Pois em parte alguma [...] conteúdo e [...] essência evidenciam-se de forma mais durável,

52

“[...] Nome proeminente entre os literatos que se reuniram em torno de Stefan George [...]. Escreveu estudos sobre Goethe, veementemente criticado por Walter Benjamin, foi publicado em 1916.” (BENJAMIN, 2009, p. 60), nota 34 das editoras.

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mais marcante e mais apreensível do que na obra.” (BENJAMIN, 2009, p. 56) 53.

A obra de Goethe não pode ser compreendida a partir da vida de seu autor,

pois sua técnica, trabalhou a favor de seu conteúdo – de seu tema e de sua trama: o

mítico, que bloqueia o acesso à verdade da obra de arte autêntica. Numa das

passagens centrais à discussão que nos propusemos, Walter Benjamin escreve:

“O âmbito da técnica poética constitui nas obras o limite entre uma camada superior, que fica exposta, e uma camada mais profunda, oculta. Aquilo que o autor considera conscientemente como sendo sua técnica, aquilo que a princípio também já era reconhecido como tal pela crítica contemporânea, toca por certo nos dados do real no teor factual, mas constitui a barreira contra o seu teor de verdade, do qual nem o autor nem a crítica da época podiam estar plenamente conscientes. A técnica – diferentemente da forma – não é definida pelo teor de verdade, mas sim, de forma decisiva, apenas pelos conteúdos factuais, e é assim na técnica que estes se tornam necessariamente perceptíveis. Pois, para o autor, a representação dos conteúdos factuais, constitui o enigma cuja solução ele deve procurar na técnica. Assim pôde Goethe, através da técnica, assegurar em sua obra a ênfase sobre os poderes míticos” (BENJAMIN, 2009, p. 43).

Passagem fundamental para nossa discussão. Faz-se necessário destacar

cuidadosamente alguns elementos. Primeiro a questão da delimitação teórica por

parte de Benjamin: não apenas a obra de Goethe, analisada, mas as “obras”, de

maneira geral é necessário considerar, possui no âmbito de sua técnica a

constituição do lugar onde se tocam materialidade e a verdade, nas palavras de

Benjamin, entres os teores factual e de verdade. Elementos inseparáveis, mas que

Walter Benjamin já apresenta a separação como parte do procedimento crítico, uma

separação instrumental. Benjamin esboça assim a estrutura de seu procedimento

crítico, e já alude à solução do dilema em torno da obra de Goethe – a peculiaridade

de seu conteúdo – exige uma maior sofisticação em relação ao procedimento crítico,

que não se determina por seu conteúdo, mas por seu próprio estatuto de obra.

53

Não é gratuita nossa insistência neste tema que, origina-se no conceito de linguagem apresentado por Benjamin em seu primeiro textos, e se transformará em um ponto chave no conceito benjaminiano de história, tema sobre o qual nos deteremos no terceiro e derradeiro capítulo de nosso singelo trabalho.

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As dificuldades apresentadas pela obra As afinidades eletivas são inerentes

às obras de arte, figurando naquela, de maneira peculiar, o quanto, impossível

julgar. A escolha do texto de Goethe para apresentação do conceito de crítica

benjaminiano justificaria assim pelo caráter exemplar deste texto que traz em seu

próprio conteúdo, esta peculiaridade das obras de arte autênticas, a trama

sobreposta ao tema, o desafio de apresentar os conteúdos de verdade identificados

com os desafios de evidenciar o tema da redenção na trama.

Um segundo elemento: o autor e a crítica a ele contemporânea não estão

plenamente conscientes da relação entre os teores de verdade e factual, teores aos

quais a relação a distância histórica torna peculiar: “Uma vez, no entanto, que o

fundamento da obra se destaca apenas por sobre o fundamento destes dados [os

“dados do real”, a factualidade], toda crítica contemporânea, por mais elevada que

possa estar, abarca na obra mais a verdade em movimento do que a verdade em

repouso 54, mais a atuação temporal do que o ser eterno” (BENJAMIN, 2009, p. 14).

Outro elemento importante nesta passagem é a relação da técnica

empregada pelo autor e sua obra. A forma é definida pelo teor de verdade 55, a

técnica, pelo teor factual, e é na técnica que as especificidades deste teor se torna

visível, nas palavras de Benjamin, “perceptível”. Para Walter Benjamin a técnica de

Goethe tinha como uma de suas características A manutenção do “mistério” acerca

da composição da obra, e a manutenção deste mistério, por conseqüência, revela

uma vez mais a configuração que o teor factual da obra revela: “[...] É evidente que o

autor destruiu de forma bem deliberada tudo aquilo que revelasse a técnica

inteiramente construtiva da obra. – Se a existência dos conteúdos factuais está de

tal maneira oculta, então sua essência esconde a si mesma. Toda significação

mítica busca o mistério” (BENJAMIN, 2009, p. 44). A técnica representa os

54

A verdade histórica, no conceito de história de Benjamin, deve ser apreendida no momento fugaz de sua imobilização, como ainda veremos. A idéia de “verdade em movimento” já é uma referência às filosofias da história estabelecidas sobre o ideal de progresso e sobre a noção de continuidade, exatamente as filosofias que a proposta benjaminiana de história deve estabelecer uma ruptura. Facilmente localizamos também nesta citação à referência distinção benjaminiana entre conhecimento – “atuação temporal” – e verdade em sua teoria crítica do conhecimento, que também debateremos. 55

Ao fim de seu trabalho sobre o conceito de crítica de arte da filosofia do romantismo alemão, Walter Benjamin enfatiza (BENJAMIN, 1999b) uma importante diferenciação acerca da relação entre os conceitos de arte deste romantismo e o pensamento de Goethe sobre a arte; diferenciação a qual ainda voltaremos, mas que também se evidencia nesta relação entre a determinação da forma pelo teor de verdade e da técnica pelo teor factual.

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conteúdos factuais como enigma, e este é o mistério da significação da obra de

Goethe. Outro exemplo dessa característica, para Walter Benjamin, é a gênese da

obra goethiana: “As afinidades eletivas foram planejadas inicialmente como novela

na esfera do romance Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister; a sua

expansão, contudo forçou-a para fora deste círculo” (BENJAMIN, 2009, p. 73). Para

Benjamin uma das diferenças entre romance e novela é a posição do leitor:

enquanto que a romance “como um sorvedouro, atrai o leitor irresistivelmente para

seu interior” (BENJAMIN, 2009, p. 74) a “novela insiste no seu distanciamento, ela

expulsa todos os seres vivos deste círculo mágico” (BENJAMIN, 2009, p. 74). Para

Benjamin As afinidades eletivas é um romance com esta especificidade de novela,

“apesar de sua extensão”. Como Goethe pôde garantir em seu romance esta

característica da novela? Seguindo Benjamin:

“Ao enobrecer, por assim dizer, a forma do romance mediante a da novela, a cisão parece ter sido dominada à força, a unidade alcançada. O artifício sobrepujante que tornou isso possível, e que se impôs de modo imperioso por parte do conteúdo, consiste no fato de que o poeta se abstém de convocar para o centro dos próprios acontecimentos a participação do leitor. Na medida em que esse centro permanece inteiramente inacessível à intenção imediata do leitor [...] a influência da forma novelística sobre a do romance se denuncia [...].” (BENJAMIN, 2009, p. 73).

O “enigma” da “representação dos conteúdos factuais”, garantidos pela

técnica, expulsa o leitor do cerne do romance – tal como em uma novela – para

manter o mistério que constitui o elemento que configura sua materialidade. Os

conteúdos – o teor factual e a trama, o enredo – são sobrepostos 56: o mistério dos

poderes que enlaçam as personagens é mantido pelo mesmo elemento que garante

a unidade entre a novela inserida e o romance, entre o caráter de novela da obra

que se apresentou como romance.

.E ainda: “Quanto à efetividade da expressão, As afinidades eletivas,

enquanto romance, não são superiores à novela 57 propriamente dita, a qual se

56

Podemos afirmar então que o procedimento benjaminiano de, na tarefa crítica, sobrepor a análise da trama e do teor material da obra (Inhalt e Gehalt) é uma característica das obras: o teor material é invólucro que na sua consumação, na sua mortificação – no arder das chamas, na metáfora da teoria do conhecimento benjaminiana – pode apresentar o brilho do teor de verdade da obra. 57

Trata-se da narrativa “Os jovens vizinhos singulares”, “que Goethe inseriu sob o título de Novele no décimo capítulo da segunda parte do romance” (BENJAMIN, 2009, p. 73) nota 40 das editoras.

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encontra embutida na narrativa. As afinidades eletivas criam uma forma-limite e, em

virtude disso, estão muito mais distantes dos outros romances do que estes entre si”

(BENJAMIN, 2009, p. 74). A teoria estética goethiana foi interpretada e atualizada

por Benjamin a parti da obra “As afinidades eletivas”. Comentaremos brevemente

esta idéia nas linhas a seguir.

O mistério buscado pelo significado mítico da materialidade do romance

(BENJAMIN, 2009, p. 44) se apresenta enquanto barreira à contemplação da

verdade, barreira garantida pela técnica do autor. Mas não se trata meramente de

esconder o que há de verdadeiro na obra, naturalmente. A técnica goethiana, de

acordo com Walter Benjamin, assume este papel, especificamente nesta obra, sob a

influência do conceito de verdade apresentado na filosofia de Goethe.

Para Benjamin o teoria do conhecimento da natureza desenvolvida por

Goethe ao longo de suas incursões pelos domínios da filosofia e da ciência revelam

o elemento que torna emblemática, para as reflexões acerca da crítica, a técnica do

poeta. Benjamin visa – não podemos deixar de reafirma sempre esta nossa

perspectiva – a apresentação de um peculiar conceito de crítica; para isso ele

apresenta uma crítica desta obra de Goethe, escolha que, como já vimos, possui

sua justificação nas próprias características na primeira obra da fase da “velhice” do

grande poeta alemão. Mas qual a origem desta especificidade, que a obra As

afinidades eletivas representam de forma não tão evidente, mas cuja importância em

nosso contexto a torna inegável? Desviemo-nos brevemente do ensaio benjaminiano

sobre As afinidades eletivas.

Walter Benjamin apresenta, na seção final de seu trabalho sobre o conceito

de crítica do romantismo alemão, alguns elementos que possibilitam comparar a

Benjamin, de acordo com as editoras do texto em português, “assinala vários pontos de contraste que a novela,em seu final feliz, apresenta em relação ao desfecho do romance” (BENJAMIN, 2009, p. 73) nota número 40. A análise benjaminiana estabelece também uma relação dialética entre os enredos do romance e da novela inserida, relação destacada por diversos comentadores; seguindo nossa discussão, a sobreposição da trama e do teor do romance alcança destaque nesta relação: os motivos de salvação apresentados na aposição entre novelas e romances foram estabelecidos por Benjamin seguindo sua discussão acerca da possibilidade de vender a barreira do mítico do conteúdo material da obra, tendo como ponto de partida o próprio comentário da obra, na direção de seu trabalho de crítica. Seguindo o argumento benjaminiano: “[...] Na construção das Afinidades eletivas, cabe à novela um significado decisivo. Ainda que somente à luz plena da narrativa principal todos os seus detalhes sejam revelados, estes dão um testemunho inconfundível de que aos motivos míticos do romance correspondem aqueles da novela enquanto motivos da redenção. Se, deste modo, o mítico é abordado no romance como tese, a antítese pode ser encontrada na novela” (BENJAMIN, 2009, p. 78).

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teoria da arte dos românticos e a correspondente teoria presente na obra de Goethe

(BENJAMIN, 1999b). Para Benjamin estas teorias da arte se opõe “em seus

princípios” (BENJAMIN, 1999b, p. 114). A filosofia da arte dos primeiro românicos

pode “ser resumido no fato de eles terem procurado demonstrar em seu princípio a

criticabilidade da obra de arte” (BENJAMIN, 1999b, p. 114), enquanto a “teoria da

arte de Goethe permanece sustentada pela intuição da não-criticabilidade”

(BENJAMIN, 1999b, p. 114). Outra diferenciação, apresentada por Benjamin, entre a

teoria da arte dos primeiros românticos e a de Goethe é a ênfase dada por este a

noção de um a priori do conteúdo – do qual a filosofia primeiro romântica carece – e,

no caso do primeiro romântico Friedrich Schlegel, uma ênfase na “determinação da

Idéia” e da forma da arte (BENJAMIN, 1999b, p. 115). Goethe abarca sua idéia de

arte pela categoria do Ideal, enquanto a ênfase romântica recai sobre a noção de

Idéia, diferenciação esclarecida e resumida por Benjamin: “Com „Idéia‟ entende-se

neste contexto o a priori de um método, correspondendo a ela, portanto, o Ideal

enquanto a priori do conteúdo agregado” (BENJAMIN, 1999b, p. 115), bem como a

ênfase oposta, entre Goethe e os primeiro românticos a este tema: “Tudo que os

românticos declaram acerca da essência da arte é determinação de sua idéia”

(BENJAMIN, 1999b, p. 115) sob a perspectiva primeiro romântica e, acerca do ponto

de vista de Goethe: “De um tal a priori [do conteúdo] parte a filosofia da arte de

Goethe. Seu motivo central é a questão do Ideal da arte.Também o ideal constitui

uma unidade altamente conceitual, a do conteúdo. Sua função é, portanto,

totalmente distinta da da Idéia” (BENJAMIN, 1999b, p. 115). Em favor da clareza, as

palavras de Kátia Muricy sobre o tema:

“As categorias de idéia e ideal retomam, para Benjamin, a problemática relação entre forma e conteúdo: „A Idéia da arte é a Idéia de sua forma, assim como seu Ideal é o Ideal de seu conteúdo‟. Mas, para ele, nem os românticos, nem Goethe conseguiram uma solução que não fosse excludente, antinômica. Os românticos, que souberam analisar de maneira tão rica a questão da forma, não chegaram a compreender o conteúdo da arte no espaço da própria arte, recorrendo às esferas da moralidade e da religião para obter o que Benjamin considera como mera „aparência‟ do que seria o Ideal da arte. Goethe, por outro lado, teria relegado a forma a uma noção – a de estilo – que lhe permitirá considerações apenas normativas. Assim a crítica irá lhe parecer desnecessária e, mesmo, impossível. Só podem existir julgamentos críticos [para Goethe] sobre a maior ou menor perfeição da obra, reservados ao artista

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somente, visto que só ele possuía intuição do arquétipo a que a obra procura elevar-se” (MURICY, 1998, p. 129).

Palavras relevantes de Kátia Muricy para nossa leitura da crítica apresentada

por Walter Benjamin à filosofia romântica da arte e, especialmente, ao pensamento

de Goethe. Enquanto o continuum das formas na idéia de arte dos primeiros

românticos estabelece a “expressão da infinitude da arte e de sua unidade”, o Ideal

na filosofia goethiana “manifesta-se [...] num discontinuum limitado e harmônico dos

puros conteúdos” (BENJAMIN, 1999b, p. 115). Esta diferenciação é de suma

importância para a compreensão da teoria da arte de Goethe, bem como de seu

conceito de natureza, que Benjamin, como indicamos, atualiza mediante uma

correção do conceito de natureza, na crítica da própria obra goethiana, As afinidades

eletivas.

Como um “discontinuum” de “puros conteúdos” o Ideal não aparece de forma

completa nas obras individuais, estes conteúdos, indica Benjamin, “Goethe

denomina-os de arquétipos (Urbilder)” (BENJAMIN, 1999b, p. 115). Em uma nota

elucidativa, Márcio Seligmann-Silva, tradutor e editor da tese de Benjamin, ressalta a

importância do conceito de arquétipo na “visão de mundo de Benjamin, como pode

ser visto em seu conceito de origem (Ursprung) desenvolvido por ele particularmente

em sua introdução do Origem do drama barroco alemão, em que se percebe um

imbricamento desta noção goethiana com a Idéia platônica e com uma concepção

do tempo ligado à tradição judaica, particularmente à questão da redenção”

(BENJAMIN, 1999b, p. 145; nota 53, de Márcio Seligmann-Silva). Não adiantemos o

tema ao redor do qual nossos esforços devem se encaminhar e busquemos nosso

próprio desenvolvimento, reconhecendo é claro, a importância de diversos

comentadores, especialmente Seligmann-Silva, na articulação da temática de nosso

trabalho.

Os arquétipos não aparecem nas obras singulares, o que é outro aspecto que

o diferencia da idéia primeiro romântica: “Certamente as obras singulares participam

dos arquétipos, mas não existe uma passagem de seu domínio para as obras como

a que existe [na concepção primeiro romântica] no medium-da-arte entre a forma

absoluta e as singulares. Em relação ao Ideal, a obra singular permanece como que

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um torso” (BENJAMIN, 1999b, p. 118). Continuemos, mas retenhamos esta

expressão: a obra de arte como torso do Ideal.

Ainda de acordo com Benjamin, o Ideal para Goethe jamais é objeto de

percepção, é apenas intuível, caracterizando assim a impossibilidade de localizar, de

visualizar, o Ideal da arte nas obras individuais; a maior aproximação entre a obra e

o Ideal da arte seria através dos modelos, obras que por suas características se

aproximam do Ideal. Para Benjamin, de acordo com a concepção goethiana, a arte

grega seria a representante destes modelos, análogos ao Ideal por serem “perfeitos

e realizados” (BENJAMIN, 1999b, p. 116). Se a arte pode ser, em seu grau máximo

de perfeição e realização – a arte grega – apenas modelos em relação aos

arquétipos, os puros conteúdos das obras de arte, como vimos, se esses são

invisíveis, formam um “discontinuum” de “puros conteúdos” das obras, que se

conectam não como no conceito de medium primeiro romântico, mas através de uma

“refração” (BENJAMIN, 1999b, p. 116), se são “invisíveis”, “apenas intuíveis”. Onde

então se localizam estas con-figurações originais, puros conteúdos, que Goethe

chama de arquétipos? Benjamin esclarece:

“A fonte originária da arte não se encontra, segundo a concepção de Goethe, no eterno vir-a-ser, no movimento criador no medium-das-formas [como na filosofia da arte do primeiro romantismo]. A arte mesma não faz seus arquétipos – estes se encontram anteriores a toda obra criada, naquela esfera da arte onde esta não é criação, mas, antes, natureza. Abarcar a Idéia da natureza e, deste modo, torná-la apta para ser arquétipo da arte (para ser puro conteúdo), esta era, em última análise, o esforço de Goethe em sua averiguação dos fenômenos originários” (BENJAMIN, 1999b, p. 116)

Veremos ainda a importância do conceito goethiano de fenômeno originário para a

teoria crítica do conhecimento e no seu conceito de história. Goethe conferiu assim,

de acordo com Benjamin, à natureza o papel de “fonte originária da arte”

identificados aos e o fenômeno originário, os quais Goethe investigou

incansavelmente a presença na natureza. Sendo assim, para Benjamin, Goethe

estabeleceu um conceito de natureza que engloba tanto a natureza empírica, visível,

“verdadeira”, quanto a natureza portadora dos puros conteúdos das obras de arte,

“talvez invisível apenas intuível, como um fenômeno originário” (BENJAMIN, 1999b,

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p. 117). Nesta especificação da natureza enquanto exposto e enquanto conteúdo

das obras de arte, para Benjamin, Goethe incorreu em um erro conceitual com

importantes conseqüências:

“[...] Tudo dependeria [para desvencilhar a teoria da arte goethiana no paradoxo em que ela se enredou] aqui de uma definição mais precisa do conceito de „natureza verdadeira‟, na medida em que esta natureza „verdadeira‟ visível, que deve constituir o conteúdo da obra de arte, não apenas não pode ser identificada sem mais com a natureza aparente e visível do mundo, mas antes, até mesmo dever ser diferenciada dela de modo rigorosamente conceitual” (BENJAMIN, 1999b, p. 117)

A não diferenciação, por parte de Goethe, entre a natureza visível e a natureza

intuível, conteúdo da obra de arte e exposta por ela, supervalorizou a natureza

empírica, conferindo a ela o status de portadora de sua compreensão em germe, de

detentora do mistério que envolve a verdade, sob a influência da tradição platônico-

cristã, mas em um contexto pagão, visto que apesar de detentora do mistério da

verdade, a natureza está dada, pronta para ser especulada acerca de seu dom. Mas

quais as conseqüências deste problema conceitual na filosofia da arte de Goethe?

Será possível a formulação de uma solução? Voltemos ao ensaio de Walter

Benjamin sobre As afinidades eletivas.

Até então pudemos acompanhar a discussão benjaminiana na apresentação

do mito como teor factual do romance de Goethe. Percebemos também que esta

configuração que se organiza a partir da significação mítica, que busca o mistério,

não só envolve as personagens do romance, também indica a maneira através da

qual a técnica do poeta, a composição da obra é determinada pelo teor factual.

Desviamo-nos brevemente com objetivo de identificar, no interior do pensamento de

Goethe, tal como Walter Benjamin o apresenta, a gênese desta submissão aos

poderes do mito. Nosso desviou deve servir assim como mera indicação, preparação

de certo território teórico-conceitual para elaboração das discussões seguintes.

Antes de passarmos à apresentação concisa da teoria crítica do conhecimento

benjaminiana e a resolução do problema das Afinidades eletivas que marcam seu

teor de verdade, concluiremos nossa análise o tema do mito e da maneira pela qual

ele é abordado na crítica de Walter Benjamin.

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Vimos que o substrato da crítica é a materialidade da obra; a crítica parte do

universo da obra e sua matéria prima não deve escapar a este universo. Nesta

concepção se fundamentam as críticas de Benjamin à obra de Gundolf – crítica

benjaminiana que tem como o Goethe de Gundolf como pano de fundo de uma

crítica maior ao círculo de Stefan George. Mas por que a obra de Gundolf presta

desserviço à crítica? Por que a materialidade da obra de Goethe, determinada pelo

tema do mito, é uma barreira ao teor de verdade do romance? Benjamin esclarece:

“Somente o rastreio perseverante de sua metodologia é capaz de enfrentar a natureza quimérica da obra de Gundolf. Sem essa arma é esperança inútil lutar com os detalhes, pois uma terminologia quase impenetrável é a sua couraça. Nela, o significado fundamental para todo conhecimento revela-se na relação entre mito e verdade. Essa relação é de exclusão recíproca. Não há verdade, pois não há univocidade – e, portanto, nem sequer o erro – no mito. Porém, como tampouco pode haver verdade sobre ele (já que só há verdade nas coisas objetivas, assim como a objetividade reside na verdade), há, então, no que diz respeito ao espírito do mito, única e exclusivamente uma percepção dele” (BENJAMIN, 2009, p. 65).

Definição fundamental, no interior da filosofia benjaminiana, do tema do mito, que

acompanhará doravante nossas discussões. Verdade e mito se excluem, a verdade

é unívoca e objetiva, mas univocidade e objetividade peculiares que ainda não

poderemos analisar. Não há verdade sobre o mito, apenas percepção, e é

exatamente apenas esta percepção que possibilitaria a presença da verdade: “[...] A

presença da verdade [...] só acontecerá sob a condição de percepção do mito, ou

seja, da percepção de sua indiferença aniquiladora perante a verdade” (BENJAMIN,

2009, p. 66). A crítica benjaminiana da obra de Goethe, por visar a verdade,

necessita evidenciar os elementos míticos que constituem o teor factual da obra,

mas sempre com intuído de partir deles em direção à verdade. Qual o significado de

nosso desvio à tese de doutorado de Benjamin sobre o conceito de crítica de arte do

romantismo alemão? Perceber a gênese dos elementos míticos presentes na obra

As afinidades eletivas a partir do conceito de natureza apresentado por Goethe. Nas

palavras de Benjamin: “Esse conhecimento da natureza, com o qual o autor

acreditava poder sempre comprovar sua obra, completou sua indiferença perante a

crítica. ela não era necessária” (BENJAMIN, 2009, p. 46), tal como vimos na análise

da filosofia da arte de Goethe em comparação a filosofia da arte dos primeiro

românticos. Benjamin continua: “A natureza dos fenômenos primordiais era o

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parâmetro e, passível de depreensão, a relação de cada obra com ela. Mas por

causa desse duplo sentido do conceito de natureza”, a saber, a não diferenciação

entre a natureza portadora dos arquétipos da obra de arte e a verdadeira, “visível”;

ainda seguindo Benjamin: “com demasiada freqüência os fenômenos primordiais,

enquanto arquétipos, converteram-se em natureza, enquanto modelo” (BENJAMIN,

2009, p. 46): a natureza visível, orgânica, passa a ser fonte dos modelos, do Ideal da

arte – que deveriam pertencer ao âmbito da arte, e não da natureza. Benjamin

finaliza:

“Essa visão nunca teria se tornado poderosa se Goethe – solucionando o equívoco elaborado pelo pensamento – tivesse descoberto que apenas no âmbito da arte os fenômenos primordiais – enquanto Ideais – apresentam-se de forma adequada à contemplação, ao passo que na ciência, representa-os a idéia que é capaz de iluminar o objeto para a percepção, mas nunca de transforma-se mediante a contemplação. Os fenômenos primordiais não existem diante da arte, eles estão nela. Na realidade, não podem jamais servir de parâmetro. Se já nessa contaminação do âmbito puro e do empírico a natureza sensível parece exigir o mais alto posto, sua face mítica triunfa na manifestação plena de seu ser. Para Goethe é apenas o caos dos símbolos” (BENJAMIN, 2009, p. 46).

Ao tornar os fenômenos primordiais, presentes na arte, parâmetros estabelecidos

pela natureza empírica, Goethe conferiu poderes a esta, que passou a reivindicá-los

sob sua face mítica. A natureza tornou-se “caos dos símbolos” de onde o poeta, em

sua velhice, especulou sobre os mais altos saberes, tornando-se apegado a diversas

manias e superstições, submetendo a si mesmo e sua obra aos poderes ocultos que

poderiam se manifestar a qualquer momento: o “demoníaco” (BENJAMIN, 2009, p.

48) a autoridade das “palavras órficas” como sinal do destino, a astrologia “como

cânone do pensamento mítico” e o horóscopo (BENJAMIN, 2009, p. 49), o medo do

poder do desconhecido (BENJAMIN, 2009, p. 50) seu “mutismo, ora doloroso, ora

obstinado” (BENJAMIN, 2009, p. 52); são sinais da autoridade mítica concedida à

natureza. A reflexão sobre As afinidades eletivas, para Benjamin, “lança luz sobre

tais fundamentos de sua própria vida” (BENJAMIN, 2009, p. 55), transformada por

sua postura frente ao mundo: “O homem petrifica-se no caos dos símbolos e perde a

liberdade [...]. Ao agir, submete-se a sinais e oráculos. Eles não faltaram na vida de

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Goethe” (BENJAMIN, 2009, p. 54). A obra não determina a vida da mesma forma

que a vida não pode determinar a obra. Trata-se, isso sim, das manifestações da

experiência – indissociável da linguagem e do conhecimento, como vimos – do

poeta em sua vida e nas suas obras.

Como vencer o “caos dos símbolos”, separar o intuível do sensível, o puro do

empírico, para que a vida não submeta-se ao poder do mito? Benjamin, ao elaborar

a crítica do romance de Goethe apresenta, a partir de sua materialidade seu

conteúdo de verdade, a partir da aparência apresentar a verdade. Para tanto,

esboça sua peculiar teoria do conhecimento, sobre a qual nos debruçaremos a

seguir, nas últimas linhas desta seção.

A filosofia da arte benjaminiana, bem como sua teoria crítica do

conhecimento, estabelece, em primeiro nível uma diferenciação conceitual, que já

utilizamos em nossos comentários, mas que neste momento, precisa de maior

atenção. Trata-se da demarcação conceitual entre o que Benjamin chama de “teor

factual” (Sachgehalt) e “teor de verdade” (Wahrheitsgehalt). De acordo com os

editores do texto que aqui utilizamos Gehalt, além da idéia de conteúdo, “conota

também a visão de mundo ou os valores envolvidos na obra” (BENJAMIN, 2009, p.

12, nota 03). Logo de início tal diferenciação aparece no texto de Walter Benjamin:

“A crítica busca o teor de verdade da obra de arte; o comentário, o seu teor factual”

(BENJAMIN, 2009, p. 12). Estes teores não estão separados nas obras, eles são

separados pelo procedimento crítico que visa o teor de verdade e que para isso,

necessita romper a materialidade da obra, ir além da materialidade da obra, mas

sempre partindo dela: “O conteúdo do fato não pode ser derivado nem da percepção

de sua constituição, nem mediante a exploração de suas determinações, e nem

mesmo a partir da intuição de seu conteúdo” (BENJAMIN, 2009, p. 17). A unidade

dos teores se revela apenas na “experiência filosófica” da contemplação 58, por isso,

sua diferenciação “não é ociosa na medida em que aspirar por acesso imediato não

é em nenhuma outra parte mais confuso que aqui” (BENJAMIN, 2009, p. 17). O

comentário deve preceder a crítica, pois a verdade, enquanto perfeição e totalidade

58

Como ainda veremos: experiência filosófica da contemplação como reconhecimento recíproco da totalidade da verdade e do caráter inapreensível dessa totalidade.

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que só podem ser reconhecidas no mundo material respeitando as limitações desse,

através do re-conhecimento de sua condição de materialidade 59.

Vimos que na obra de Goethe analisada por Benjamin exatamente sua

materialidade, de onde deveria partir o comentário em direção à crítica, impede o

acesso desta pela configuração mítica desta materialidade. Mas se a barreira do

mítico puder ser vencida então será possível apresentar na obra de arte goethiana, a

partir do conteúdo que aparentemente exclui a verdade, a verdade desta aparência

de exclusão. Para tanto faz se necessário, de acordo com Benjamin, reconsiderar

alguns aspectos da relação entre verdade e beleza.

Para Benjamin a crítica possibilita reconhecer o teor de verdade da obra de

arte como “mais elevado problema filosófico” (BENJAMIN, 2009, p. 81). Enquanto

“configurações”, as obras de arte autênticas podem servir de base para a formulação

daquele problema filosófico superior, acerca da unidade da filosofia ao redor do

tema da verdade das coisas. Mas se as obras de arte podem ser indagadas – como

irmãs da filosofia, na metáfora benjaminiana – acerca do problema da verdade, se

apresenta mais um problema – que ao fim das considerações benjaminianas será a

resposta para o dilema da crítica da obra goethiana – que por natureza esquiva à

crítica.

A obra de arte, para Walter Benjamin, é uma configuração de onde se é

permitido formular a questão acerca da unidade da filosofia em torno do problema da

verdade, como dissemos. A vida preservada pela obra de arte autêntica, isto é, o

que lhe é essencial, se opõe ao caráter superficial, formal, da obra de arte: sua

aparência. Assim como a crítica deve ser precedida pelo comentário, como partir da

aparência em direção ao essencial, se comumente verdade e aparência se

excluem? É possível, algo na aparência, contribuir para a superação 60 da própria

aparência? Sigamos as palavras de Benjamin: “A forma, todavia, como num

encantamento, converte o caos em mundo por um instante. Por isso, nenhuma obra

de arte, completamente livre desse encantamento, pode aparentar estar viva sem

59

Atribuir ao mundo material o status de parâmetro ao Ideal da arte foi o equívoco de Goethe, o que tornou seu conceito de natureza dependente do mito. 60

Superação aqui jamais pode ser entendida como destruição da singularidade em favor da totalidade, nosso argumento deve nos guiar justamente ao caminho contrário, pelo reconhecimento de que apenas na singularidade a totalidade pode se manifestar, respeitando sempre a condição daquela.

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tornar-se mera aparência e deixar de ser obra de arte” (BENJAMIN, 2009. P. 91). A

vida – a verdade da obra de arte, o enigma 61 sob o qual o crítico deve se debruçar –

só é conferida à obra de arte enquanto aparência de vida 62. Como impedir que a

vida seja abolida na aparência, sem negar a necessidade da aparência para esta

vida? Seguindo Benjamin:

“A vida que se agita nela [na obra] deve aparecer paralisada e como que aprisionada por um instante num encantamento. O elemento nela existente é mera beleza, mera harmonia que inunda o caos – e na verdade, apenas o caos, e não o mundo –, mas que ao inundá-lo, só aparenta dar-lhe vida. O que põe termo a essa aparência, o que prescreve o movimento e obsta a harmonia é o sem-expressão (Das Ausdrucklose)” (BENJAMIN, 2009, p. 91-92).

A apresentação benjaminiana do “sem-expressão” o permite atribuir uma dignidade

à aparência: em seu termo no sem-expressão, a mera aparência deixa de ser

aparência – por um instante, o instante crítico – e pode afirmar o que nela há de

verdadeiro – não aparente essencial: seu teor de verdade. Se a aparência se

imobiliza então pode se revelar o que na sua beleza a relaciona com a verdade.

Benjamin continua:

“O sem-expressão é o poder crítico que, mesmo não podendo separar aparência e essência na arte impede-as de misturarem. Ele tem esse poder enquanto palavra moral. No sem-expressão aparece o poder sublime do verdadeiro, na mesma medida em que ele determina a linguagem do mundo real de acordo com as leis do mundo moral. É o sem-expressão que destrói aquilo que ainda

61

“Se, por força de um símile, quiser-se contemplar a obra em expansão como uma fogueira em chamas vívidas, pode-se dizer então que o comentador se encontra diante dela como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista. Onde para aquele apenas madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a própria chama preserva o enigma: o enigma daquilo que está vivo. Assim, o crítico levanta indagações quanto à verdade cuja chama viva continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado” (BENJAMIN, 2009, p. 14) bem ao estilo benjaminiano, toda força teórica de seu ensaio se concentra nesta metáfora, que aparece nas primeiras linhas do ensaio, e que só agora pode ter seu significado tangenciado. A “obra em expansão” é a história da obra, a história que prepara sua crítica, como a fogueira prepara os materiais para a análise do químico-alquimista. O apenas químico tem como ponto final a análise do material remanescente, o químico alquimista indaga sobre a verdade da chama a partir, tendo como princípio, “as pesadas achas do que foi” e “a leve cinza do vivenciado”. A mesma definição pode ser dada ao historiador benjaminiano, como ainda veremos. 62

A referência o tema da tradução está implícita nesta teoria do conhecimento: a tradução deve partir das línguas individuais, sem poder ultrapassá-las e a partir de sua individualidade reconhecer o frêmito que as refere àquela língua maior.

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sobrevive em toda aparência bela como herança do caos: a totalidade falsa, enganosa – a totalidade absoluta. Só o sem-expressão consuma a obra que ele despedaça, fazendo dela um fragmento do mundo verdadeiro, torso de um símbolo” (BENJAMIN, 2009, p. 92).

O sem-expressão benjaminiano apresenta a partir da aparência na obra de

Goethe o tema da verdade e da beleza: tanto o tema quanto a trama da obra são

resolvidas a partir de seu caráter mítico, sem tomá-lo como ponto final – tal como a

crítica precedente fez – ao contrário, pela estabilização da aparência, pela cesura de

seu caráter de aparência, revelar o que pode existir de verdadeiro. Em mais uma

bela definição, o sem-expressão nas palavras de Gagnebin: “Este gesto de ruptura

salvadora, que também será o do intérprete alegórico, do tradutor e do historiador, é

definido aqui como uma fratura inerente à linguagem mesma, particularmente à

linguagem poética: é a paragem e o sopro marcados pela cesura que escande o

verso ao interrompê-lo” (GAGNEBIN, 1999, p. 103). Elemento fundamental da

definição do sem-expressão: seu caráter lingüístico (BENJAMIN, 2009, p. 92).

O sem-expressão “consuma a obra que ele despedaça”, este é o poder crítico

do conceito de crítica apresentado por Walter Benjamin em seu ensaio: pelo

despedaçamento da obra – tal como a desestabilização da linguagem pela tradução

– a obra é mortificada para, a partir dessa destruição apresentar seu conteúdo de

verdade, sua vida sob as cinzas. O sem-expressão faz da obra “torso de um

símbolo”, tal como em Goethe, a obra está no Ideal: “Seu pensamento [de Goethe]

direcionava-se não para as idéias em devir [como a filosofia da arte romântica, como

vimos brevemente em nosso desvio acima], mas sim para os conteúdos a

configurados, da maneira como a vida e a linguagem os preservam” (BENJAMIN,

2009, p. 15).

Por isso o sem-expressão é a decisão acerca da aparência, a decisão que

faltou às personagens aos serem arrastadas pelos poderes do mítico. Nas palavras

de Imaculada Kangussu: “O momento da decisão, sua repercussão no interior de

quem decide, faz com que este experimente uma clarificação impossível de

conseguir de outro modo. Trata-se, com efeito, da experiência de encontro com o

fundamento moral – e sem-expressão – da decisão” (KANGUSSU, 2007, p. 158). O

sem-expressão como interrupção da aparência é a resolução estética da falsa

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totalidade da aparência mítica e da trama das personagens arrastadas ao destino

pela ausência de decisão:

“A palavra que articula a decisão move-se no âmbito do indizível da moral: apesar de sua claridade não pode justificar os seus motivos, é invariavelmente transcendente, subtrai-se à fundamentação. A palavra moral da decisão implica numa inexpressividade sobre o que motiva a ação. O „saber‟ que determina a ação em seu aspecto moral não é lógico: por mais clara que seja ela não pode fundamentar suas razões completamente” (KANGUSSU, 2007, p. 158).

Assim a verdade da aparência pode se apresentar sem perder o que lhe

caracteriza: estar sob a aparência. A paralisação que o sem-expressão representa

impede que a aparência se desfaça, preservando o caráter de velamento essencial à

verdade: a falsa aparência é destruída, a falsa totalidade. Para Benjamin “o belo,

ainda que ele mesmo não seja aparência, deixa de ser essencialmente belo quando

a aparência desaparece dele” (BENJAMIN, 2009, p. 111), isto é, o belo perde sua

relação com a verdade se a aparência for banida. Assim a tarefa crítica é definida na

relação entre o belo e a verdade:

“Diante, portanto, de todo belo, a idéia do desvelamento converte-se naquela da impossibilidade de desvelamento. Essa é a idéia da crítica da arte. A tarefa da crítica de arte não é tirar o envoltório, mas antes elevar-se à contemplação do belo mediante a percepção mais exata do envoltório enquanto envoltório. [...] Uma vez que somente o belo e, fora este, nada que vele e que esteja velado consegue ser essencial, o fundamento divino do ser da beleza reside no mistério. Assim a aparência nela é exatamente isso: não o velamento supérfluo das coisas em si, mas sim o velamento necessário das coisas para nós” (BENJAMIN, 2009, p. 112-113)

A tarefa da cesura que o sem-expressão representa para a obra de arte

possibilita a apresentação da beleza, e de seu caráter de verdade, sem o

rompimento do invólucro que violaria o segredo e dissiparia a verdade. Nas palavras

de Benjamin, sobre as quais nos debruçaremos longamente no nosso singelo

capítulo seguinte:

“Mas pode a verdade, fazer justiça à beleza? Essa é a questão mais profunda do Symposion. A reposta de Platão é que compete a verdade garantir o Ser da beleza. É nesse sentido que ele descreve a verdade como conteúdo do belo. Mas ele não se

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manifesta no desvendamento e sim num processo que pode ser caracterizado metaforicamente como um incêndio, no qual o invólucro do objeto, ao penetrar na esfera das idéias, consome-se em chamas, uma destruição pelo fogo, da obra, durante a qual sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade luminosa.” (BENJAMIN, 1984, p. 53-54)

A destruição da falsa totalidade pelo sem-expressão faz o invólucro da

aparência arder nas chamas da crítica que, ao consumi-la, apresenta em seu brilho,

o teor de verdade das obras. A discussão dessa forma nos conduz à próxima etapa

de nosso trabalho, a apresentação da teoria crítica do conhecimento de Walter

Benjamin, presente no prefácio epistêmico-crítico ao livro sobre o drama barroco

alemão.

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3. Sobre a Categoria da Origem – Sobre o Conceito de História de Walter

Benjamin

Nosso terceiro capítulo se dedicará à análise do prefácio epistêmico-crítico

(Erkenntniskritische Vorred) ao livro sobre o drama barroco. Ele apresenta nossos

esforços de apresentar o conceito de história de Walter Benjamin a partir da

categoria da origem (Ursprung) apresentado neste prefácio epistêmico-crítico. O livro

Origem do drama barroco alemão (Ursprung des Deutschen Trauerspiels)

(BENJAMIN, 1984; 1991), também conhecido como o Trauerspielbuch, foi

“esboçado” 1916 – como aparece na dedicatória “Entworfen 1916, Verfasst 1925.

Damals wie Heute meiner Frau gewidmet” – e foi escrito por Walter Benjamin entre

1923 e 1925 e apresentado como tese de livre-docência (Habilitationsschrift) à

Universidade de Frankfurt, que foi prontamente recusada sob o argumento da

ininteligibilidade absoluta (MACHADO, 2004, p. 25).

O Trauerspielbuch foi marcado por uma recepção “áspera” (BOLLE, 2000, p.

106), mesmo depois de publicado em 1928 – publicação intermediada por Hugo Von

Hofmannsthal (MACHADO, 2004, p. 26), admirador confesso da filosofia e do estilo

benjaminiano. Os esboços de 1916 “foram escritos durante o verão daquele ano, a

começar por „A Felicidade do Homem Clássico‟ e „Sócrates‟ [...]. A eles seguiram

três fragmentos [...]: „Sobre a Idade Média‟, „Drama barroco e tragédia‟ e a

significação da linguagem no barroco na idade média”, além de um “comentário

completo do Gênese [2-20]: „Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem

Humana” (CAYGILL, 1997, p. 19). Além de citar textualmente o ensaio Sobre a

Linguagem... ao fim do Trauerspielbuch, Benjamin relacionava o ensaio

explicitamente ao Prefácio, inclusive sugerindo que esse poderia substituir o

Sprachaufsatz por suas afinidades (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 126, nota 112).

“Antes de volver a dormirme imaginé (vi) un universo plástico, cambiante, lleno de maravilloso azar, un ciello elástico, un sol que de pronto falta o se queda fijo o cambia de forma. Ansié la dispersión de las duras constelaciones [...]”. Julio Cortázar, Rayuela. (CORTAZAR, 1997, p. 304).

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Marcado pelo caráter hermético de sua linguagem e pela peculiaridade de seu

tema, o Prefácio, como doravante chamaremos o texto que abre o Trauerspielbuch,

foi precedido de uma primeira versão – Fassung der erkenntniskritischen Vorred –

onde a temática teológica se manifestava ainda mais claramente. Quanto à recusa

por parte da academia alemã, Benjamin a respondeu com uma fábula 63, ao passo

que também reconheceu o caráter complexo e radical de seu projeto, caracterizando

ao seu amigo Gershom Scholem como um “atrevimento desmedido” (GAGNEBIN,

1999, p. 17). G. Scholem também compartilhou esta opinião acerca da obra:

“Precisa-se dizer, naturalmente, que Benjamin não tornou as coisas fácies para os

leitores. Ele prefaciou o livro” [Origem do drama barroco] “com um capítulo sobre

epistemologia em que as idéias filosóficas condutoras subjacentes à sua

interpretação eram exibidas como um aviso aos leitores em vez de serem

explicadas”. E Scholem continua: “Esta introdução sempre amedrontou muitos

leitores. Ela se coloca na frente do livro como o anjo com a espada flamejante da

razão absoluta nos portões do paraíso da escrita (SHCOLEM, 1994, p. 196).

Naturalmente tais constatações só podem aumentar nossas responsabilidades

quanto ao comentário do Prefácio.

Sobre o título do Prefácio, nos arriscamos a o ler não como uma recusa de

toda epistemologia, tal como nos parece ser a posição, entre outros comentadores,

de Beatrice Hanssen (HANSSEN, 2000, p. 39). Preferimos manter e ler o Prefácio na

esteira tanto do ensaio Sobre a Linguagem... quanto do programa de 1917-18

(comentado na primeira seção de nosso segundo capítulo): ampliar o raio das

discussões filosóficas pela inserção de mais uma, na verdade, da variante

fundamental. Acreditamos que este seja o sentido da “lembrança” que Jeanne-Marie

Gagnebin atribui à atenção do Prefácio (GAGNEBIN, 2007, p. 89).

Nosso terceiro capítulo desdobrará em dois momentos, cada um, em suas

respectivas seções. Primeiro nossas considerações acerca da epistemologia crítica

de Walter Benjamin, momento que incluiu a apresentação de seu conceito de

63

“Vou contar de novo a história da Bela Adormecida‟: assim começa um prefácio irônico que Benjamin escreveu para a primeira edição da Origem Do Drama Barroco Alemão, e que ele teve a prudência de não publicar. Segundo essa nova versão, a Princesa não é acordada pelo beijo do seu noivo, e sim pela sonora bofetada dada pelo cozinheiro em seu ajudante. O cozinheiro é o próprio Benjamin, a bofetada é a que ele pretende dar na ciência oficial, e a heroína é a Verdade, que dorme nas páginas do seu livro” (ROUANET, 1984, p. 11)

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verdade e de sua teoria das Idéias, pela apresentação do conceito de exposição da

verdade (Darstellung), pela relação entre verdade e beleza e ainda pela reflexão

sobre a relação entre fenômeno, conceito e verdade que culminam na perspectiva

benjaminiana de reflexão sobre o barroco.

Depois passaremos a algumas considerações sobre a categoria origem como

desdobramento – em direção à história – da epistemologia crítica de Walter

Benjamin. Ao retornarmos, nas últimas linhas deste capítulo, aos elementos que

abrem as reflexões do Prefácio, delinearemos o conceito de história do filósofo

alemão, tal como nos propomos em nosso singelo trabalho.

3.1 Exposição da Verdade. Apresentação da epistemologia crítica de

Walter Benjamin

De acordo com Walter Benjamin a filosofia deve se confrontar

permanentemente com a questão da exposição (Darstellung) 64, para Jeanne-Marie

Gagnebin, com a questão da escrita filosófica (GAGNEBIN, 2005, p. 184), com a

atenção não “apenas à ordenação de elementos já recolhidos, mas ao próprio

recolher e acolher desses elementos pelo pensar” (GAGNEBIN, 2005, p. 186). A

atenção ao tema da exposição filosófica é o retorno à “esfera da linguagem visada

pela linguagem” (BENJAMIN, 1984, p. 49), esfera que a dedução more geometrico

renuncia, é o reconhecimento da “codificação histórica” como fundamento da

doutrina filosófica (BENJAMIN, 1984, p. 49), isto é, o reconhecimento do “pertencer

da filosofia à tradição histórica e lingüística (da linguagem)” (GAGNEBIN, 2007, p.

89). O tema da exposição percorrerá inteiramente nosso terceiro capítulo: é

64

Jeanne Marie Gagnebin no artigo Do Conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou Verdade e Beleza chama a atenção para o “mal-entendido” da tradução do termo Darstellung da edição brasileira: “A palavra Darstellung [...] não pode (aliás, nem deve), ser traduzida por „representação‟ como o faz [o tradutor da edição brasileira] Rouanet (que compreendeu perfeitamente o alcance do texto conforme sua „Apresentação‟ [...]) nem o verbo darstellen pode ser traduzido por „representar‟. Mesmo que essa tradução possa ser legítima em outro contexto, ela induz, no texto em questão, a contra-sensos, porque poderia levar à conclusão de que Benjamin se inscreve na linha da filosofia da representação [...] quando é exatamente desta [...] que Benjamin toma distância” (GAGNEBIN, 2005, p. 184) . Gagnebin sugere então que se traduza Darstellung por “apresentação” ou “exposição”. Optaremos por esta segunda sugestão e a justificaremos ao fim desta seção. Quando citarmos a tradução brasileira manteremos a tradução de Sérgio Paulo Rouanet, apenas indicando o termo do original. Citaremos de acordo com os comentadores também as iniciais maiúsculas dos termos “Idéia” e “Ser” quando, naturalmente, não for possível atribuir o uso pelo sentido no contexto.

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exatamente sobre este caráter lingüístico do pensamento que o conceito de história

de Walter Benjamin se desdobra. A filosofia benjaminiana da linguagem como

origem de seu conceito de história, como estrutura e desdobramento desse, será

apresentada através da categoria origem.

A exposição da verdade, a lei de sua forma [das Gesetz ihrer Form]

(BENJAMIN, 1984, p. 50; 1991, p. 208) se opõe ao método como guia para o

conhecimento:

“Se a filosofia quiser permanecer fiel à lei de sua forma, como representação [Darstellung] da verdade e não como guia para o conhecimento, deve-se atribuir importância ao exercício dessa forma [ Übung dieser ihrer Form], e não a sua antecipação, como sistema” (BENJAMIN, 1984, p. 50; 1991, p. 208).

A lei da forma da filosofia é o seu exercício enquanto exposição da verdade,

enquanto atenção à esfera da verdade visada pela linguagem. Enquanto a

exposição exercita tal forma, o sistema a antecipa. Dois elementos já devem prender

nossa atenção. Primeiro, a relação entre conhecimento e verdade e ainda a

confrontação entre exposição da verdade e o conceito de sistema.

Em oposição à demonstração do conhecimento, a exposição que se refere ao

“ser indefinível da verdade” (BENJAMIN, 1984, p. 50) tem no tratado medieval um

exemplo de preparação para seu exercício, de propedêutica (HANSSEN, 2000, p.

39), pois estes “não recorrem, tampouco, aos instrumentos coercitivos da

demonstração matemática” (BENJAMIN, 1984, p. 50), ao contrário, o tratado, tem na

“quintessência de seu método” a exposição da verdade como desvio [“Darstellung is

der Inbegriff ihrer Methode. Methode ist Umweg”] (BENJAMIN, 1984, p. 50; 1991, p.

208).

A exposição da verdade significa uma relação de outra ordem, tanto quanto à

demonstração more geométrico quanto às filosofias sistemáticas. Quanto à forma de

exposição matemática, a exposição da verdade se distancia por conta do caráter

contínuo, pela “linearidade ininterrupta da forma de pensamento matemático-

dedutiva” (MACHADO, 2004, p. 48). Descartes não é citado no prefácio, mas a

oposição da exposição benjaminiana a seu método é clara:

“[...] Benjamin nos fala diretamente do método de interpretação. Ele é digressivo, claramente anticartesiano. [...] Ao triunvirato do método, da subjetividade e da dominação-projeto

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cartesiano, Benjamin opõe um discurso em curto-circuito que a meio caminho interrompe a si mesmo a fim de renovar contato com seu objeto. Procedimento necessário, pensa Benjamin, pois os objetivos da reflexão opõe resistência aos métodos.o método cartesiano é esquecimento de seus objetos [...]” (MATOS, 1999, p. 10).

O olhar daquele que contempla “interrompe”, esquece a si em favor dos seus

objetos: o curto-circuito metodológico – „meta-hódos‟ - da contemplação, do desvio,

da auto-exposição da Idéia enquanto seu método mesmo, que talvez permita, pelo

menos mais uma vez, “aquele olhar sobre as coisas” (BENJAMIN, 1992, p. 193) 65.

No que se refere ao ideal de sistema – e não quanto ao “pensamento

sistemático” 66 – Benjamin no Prefácio “lembra que também existe uma outra

dimensão do pensar, e particular, do pensar filosófico [...]” (GAGNEBIN, 2007, p.

89), dimensão a qual retornaremos, após passarmos pela categoria da origem, nas

últimas linhas de nosso despretensioso trabalho.

O “movimento contínuo” do método do tratado é o desvio, a tarefa-renúncia

contínua, o desvio da representação do conhecimento, do saber que é “posse”, que

é um ter [“Erkenntnis is ein Haben”] (BENJAMIN, 1984, p. 51; 1991, p. 209).

Enquanto conhecer é ter, a verdade “esquiva-se à qualquer projeção no reino do

saber” dos “objetos apropriados na consciência” (BENJAMIN, 1984, p. 51).

A não coincidência entre conhecimento e verdade estabelece no Prefácio a

visada benjaminiana para além da filosofia do cogito – nem apreensível no

65

Ainda, as belas palavras de Olgária Matos: na “A palavra grega idèin (ver) e eidenai (saber) procedem de eidos (idéia) – forma inteligível, aspecto visível. O conhecimento é expresso e interpretado pelos olhos. [...] Na República, [...] o Sol que ilumina o mundo fenomênico é análogo ao bem no Inteligível. A idéia é inteiramente visível, é „nua‟ como verdade que se revela. na nudez encontra-se uma experiência metafísica, religiosa e erótica que atribui clareza ao ver” (MATOS, 2000, p. 19). Mais a frente, Olgária Matos continua: “Já em Descarte, o céu estrelado é desdivinizado. Na Dióptrica e nos Meteoros a luz é „mecanicidade‟, é simples objeto da ciência.” (MATOS, 2000, p. 20). E, por fim, a famosa passagem da Caracterização de Benjamin: “Por isso seu pensamento, no próprio ponto de partida, nega a si próprio o „êxito‟ da rotundidade sistemática e converte o fragmento num princípio. Para poder realizar o que desejava, elegeu a completa extraterritorialidade em relação à tradição manifesta da filosofia. [...] o incomensurável baseia-se numa desmedida entrega ao objeto. Quando o pensamento se aproxima demasiado das coisas, estas se tornam demasiadamente estranhas [...]. Não se trata de que o olhar, como tal, reivindique imediatamente o absoluto: trata-se de que o modo de olhar, toda a ótica, é nova.” (ADORNO, 1992, p.24). 66

Quanto ao afastamento das reflexões contidas no Prefácio em relação ao “ideal de sistema”, mas não em relação ao pensamento sistemático, cf. a própria reflexão da professora J.-M. Gagnebin (GAGNEBIN, 2007) e, ainda: “O conjunto das idéias constituem um sistema, paisagem primordial que existe permanentemente e que os homens esquecem, mas a qual precisam retornar” (MOSES, 1993, p. 180) em uma tradução de nosso punho da tradução para o inglês.

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intellectus archetypus – a consecução do programa filosófico anunciado em 1917-18

(GAGNEBIN, 2007, p. 88):

“Como unidade no Ser, e não como unidade no Conceito, a verdade resiste a qualquer interrogação. Enquanto o conceito emerge da espontaneidade do entendimento, as idéias se oferecem à contemplação. As idéias são preexistentes. A distinção entre verdade e coerência do saber define a idéia como Ser” (BENJAMIN, 1984, p. 52, 1991, p. )

A verdade não coincide com a “coerência do saber”, a verdade é desvio em

relação a esta, e a qualquer coerência, por isso, como preexistentes, são

tangenciadas tão somente pela contemplação. Enquanto o método para o

conhecimento é apropriação ou produção na consciência, o método de

apresentação da verdade é a exposição de “si mesma e, portanto, como forma, dado

juntamente com ela” (BENJAMIN, 1984, p. 52). As “idéias são por certas dadas,

mas não numa intuição, de qualquer ordem que seja” (CRUZ, 2007, p. 62): e este é

um dos aspectos fundamentais da leitura desta primeira parte do Prefácio, a

“articulação idiossincrática da „fontes‟ cognitivas kantianas” (CRUZ, 2007, p. 62).

Walter Benjamin não nega a filosofia do conhecimento, propõe na verdade a

delimitação do seu alcance; a contemplação da verdade cabe à exposição das

Idéias, não ao trabalho do entendimento. O Prefácio realiza e amplia o programa de

1917-18, realização e ampliação marcadas por determinada transposição.

Por isso a verdade só existe enquanto exposição de si. A “exposição da

verdade‟ [...] significa também [...] que a verdade só pode existir enquanto se expõe,

se apresenta, se mostra a si mesma” (GAGNEBIN, 2005, p. 187); seu método

participa assim de sua unidade – a verdade é desvio e, em oposição à “coerência do

saber”, a idéia como Ser é descontinuidade. A consciência do “ser indefinível da

verdade” exige o exercício [Übung] 67 de sua exposição não como um ter, mas como

contemplação, cujo “fôlego infatigável” é sua forma mais autêntica: “Incansável o

pensamento começa sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias

coisas [Ausdauernd hebt das Denken stets von neuem an, umständlich geht es auf

67

Sobre o conceito de exercício (Übung): “Conceito que remete tanto aos exercícios espirituais da mística e dos tratados medievais quanto aos exercícios e performances das vanguardas artísticas” (GAGNEBIN, 2007, p. 91).

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die Sache selbst zurück]” (BENJAMIN, 1984, p. 50; 1991, p. 208). A manifestação da

verdade no método que não se diferencia dela própria revela-se incoerente em

relação à “coerência do saber”: o que for “a idéia como Ser” ela não coincide com a

coerência do saber que é um ter. Ainda de acordo com a leitura de Tupac Cruz:

“[...] A contemplação parece perder toda semelhança com o

exercício de uma faculdade ou capacidade, antes de tudo, [...] para Benjamin, é o caminho mesmo da contemplação de onde a idéia se expõe, de onde se segue a contemplação mesmo é a idéia” (CRUZ, 2007, p. 61)

Voltar sempre, às “próprias coisas” é “considerar um mesmo objeto nos

vários estratos de sua significação” (BENJAMIN, 1984, p. 50), tal é a forma da

contemplação da verdade como desvio; tal como o mosaico que, composto por

“partículas”, em sua “fragmentação caprichosa”, “manifesta o impacto”, o poder do

“transcendente” [“die transzendent Wucht”] “da imagem sagrada” (BENJAMIN, 1984,

p. 51; 1991, p. 208), a contemplação manifesta, na intermitência de seu ritmo, a

verdade como Idéia. O impacto da imagem sagrada que o mosaico revela – pela

con-figuração dos seus fragmentos – se assemelha ao ritmo da contemplação sobre

os fragmentos de pensamento.

Na contemplação “o valor desses fragmentos de pensamento”, desses

“elementos fragmentários e heterogêneos” (BENJAMIN, 1984, p. 51) se mostra

“tanto maior quanto menor sua relação com a concepção básica que lhes

corresponde” (BENJAMIN, 1984, p. 51); nada mais estranho à demonstração, à

“lógica dos sistemas” (BENJAMIN,1984, p. 55). Quanto mais deslocados em relação

a si mesmos, mais são valiosos para a contemplação. Seguindo Francisco Machado:

“Na forma do tratado, a contemplação desemboca em um despedaçamento do objeto. Deste trabalho atento e paciente resulta, portanto, fragmentos de pensamento (Denkbruchstücke) dos mais diferentes tipos, entre os quais dificilmente encontra-se uma relação lógico-matemática ou causal” (MACHADO, 2004, p. 51).

A exposição da verdade, o ritmo intermitente da contemplação, a

manifestação da verdade como descontinuidade da Idéia é também apresentada por

Walter Benjamin como “forma de prosa”. Enquanto que na fala, o locutor estabiliza,

confere coerência ao pensamento através da voz e da “expressão fisionômica”, na

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escrita “é preciso, com cada sentença, parar e recomeçar” (BENJAMIN, 1984, p. 51).

Contemplação como escrita. O que se contempla?

A filosofia original, a doutrina platônica das Idéias, foi retomada por Walter

Benjamin para expor e figurar – na não coincidência entre verdade e saber, que o

Symposion documenta [dokumentarisch], e na relação entre verdade e beleza,

respectivamente – sua teoria da exposição da verdade. Para Beatrice Hanssen, “o

retorno às origens da filosofia, com Platão, faz referência as discussões

relacionadas à verdade e não tanto ao conhecimento, como foi privilegiado pela

filosofia transcendental” (HANSSEN, 2000, p. 39) 68.

O tema da relação entre verdade e beleza desdobra a teoria crítica do

conhecimento da arte, apresentada no ensaio sobre As afinidades eletivas (cf. nosso

segundo capítulo), e prepara a transposição do platonismo de Walter Benjamin para

sua teoria crítica do conhecimento histórico, transposição, como veremos, que tem

por medium elementos da filosofia da tradição judaica por sua vez transpostos para

o contexto específico da filosofia benjaminiana.

A leitura benjaminiana do Symposion destaca dois elementos da relação entre

verdade e beleza: “a verdade como conteúdo essencial do belo [Wessensgehalt der

Schönheit]” e o fato da verdade ser “considerada bela”, tais questões apresentam o

“modo de ser das idéias” (BENJAMIN, 1984, p. 53; 1991, p. 210). A verdade não é

bela em si – em si, ela é sublime, tal como o corpo (cf. MENNINGHAUS, 1993, p.

175), que “se inscreve numa ordem mais alta” – mas para “aquele que a busca”

(BENJAMIN, 1984, p. 53). A beleza é o “elemento representativo da verdade”:

“Não só a beleza é redimida de sua tendência a somente pertencer ao domínio do brilho [...] e da aparência pela sua última ligação à verdade; também esta, a verdade, precisa por assim dizer, da beleza para ser verdadeira: a verdade não pode realmente existir sem se apresentar, se mostrar e, portanto, aparecer [...]” (GAGNEBIN, 2005, p. 190).

Tal como pudemos brevemente discutir nas Afinidades Eletivas, a teoria

crítica do conhecimento da arte de Walter Benjamin visava redimir a aparência pela

relação entre verdade e beleza: enquanto permanecer “fulguração” a beleza mantém

68

Em tradução livre do original em inglês.

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seu conteúdo sob o véu que a preserva. Ainda seguindo Gagnebin: “entre verdade e

beleza haveria uma relação de co-pertencimento”, a beleza deixa de ser mero brilho,

por ter a verdade como sua essência, e a verdade “não pode mais ser uma

abstração inteligível „em si‟, sob pena de desaparecer, de perder sua [...] realidade

efetiva” (GAGNEBIN, 2005, p. 190).

O modo de ser das idéias aparece no Prefácio como o “co-pertencimento”

entre verdade e beleza: a essência da verdade precisa se manifestar materialmente,

não como “desnudamento”, mas como “revelação” que faz justiça ao seu modo de

ser [“dass Wahrheit nicht Enthüllung ist, die das Geheimnis vernichtet, sondern

Offenbarung, die ihm gerecht wird”] (BENJAMIN, 1984, p. 53; 1991, p. 211). Para

Benjamin “[...] o belo preenche a função de abrir um acesso sensível para a

verdade” (MACHADO, 2004, p. 56), acesso que deve fazer jus ao modo do Ser da

Idéia: qualquer forma de desnudamento resolveria o elemento que se manifesta

como o próprio Ser da Idéia: o caráter não fechado de sua manifestação.

Mas a relação entre verdade e beleza revela uma reflexão ainda mais

profunda: a consumação em chamas do invólucro do objeto, a “destruição pelo fogo”

manifesta a “intensidade luminosa” – o brilho de sua aparência – no “ponto mais

alto” atingido por sua forma (BENJAMIN, 1984, p. 53-54). A entrada do objeto na

“esfera das idéias” destrói sua forma – a forma de sua aparência – para que seu

conteúdo brilhe [Schein] como essencial, inscrito em uma ordem mais elevada do

que a mera aparência69.

A metáfora benjaminiana da consumação pelo fogo nos introduz nas

discussões acerca da relação entre fenômeno, conceito e verdade, presente no

Prefácio. De acordo com Walter Benjamin a “coerência dedutiva da ciência,

exaustiva e sem lacunas” não pode servir ao modo de ser da Idéia. A dedução

lógica, que considera “as incoerências como acidentais” é uma das características

“menos filosóficas” de determinada teoria da ciência (BENJAMIN, 1984, p. 55). A

“descontinuidade do método científico” poderia sim fazer justiça á “estrutura

descontínua do mundo das idéias” senão fosse as pretensões de “capturar a

verdade, unitária e indivisível por natureza” (BENJAMIN, 1984, p. 55). A metodologia

na ciência da arte, guiada pelo intuito de obter a verdade, passa por cima de

69

Acerca desta idéia, cf. a parte final da segunda seção de nosso capítulo anterior.

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questões fundamentais, emergidas de sua descontinuidade irrecusável, mas que

não são aproveitadas, em favor de um “verismo científico” (BENJAMIN, 1984, p. 64).

A questão fundamental, que retornará em breve, Walter Benjamin formula um pouco

adiante:

“Somente com esta ponderação, preparada pelo que antes foi dito e que se concluirá no que vem a seguir, será possível decidir se a idéia é uma abreviação indesejável ou o fundamento do verdadeiro conteúdo científico [...]” (BENJAMIN, 1984, p. 64).

Mas que arranjo permite a entrada dos fenômenos no reino das Idéias – o

que está subentendido na imagem da destruição pelo fogo, que consuma e faz

brilhar a forma da obra? Trata-se do segundo momento da epistemologia crítica

benjaminiana, da relação fenômeno-conceito-verdade que comentaremos nas linhas

que se seguem.

Os fenômenos, para Walter Benjamin, ingressam na esfera das idéias – as

coisas e as Idéias pertencem, como veremos, a esferas fundamentalmente distintas

– “apenas em seus elementos, que se salvam” (BENJAMIN, 1984, p. 56). O que

permite a divisão das coisas em seus elementos constitutivos é o trabalho dos

conceitos:

“Desta operação de isolamento resulta o que Benjamin chama de „elementos‟ dos fenômenos. A subordinação dos particulares sob os conceitos é importante apenas na medida em que ela prepara o campo para sua unificação nas idéias, desarticulando a unidade ilusória que os fenômenos oferecem à primeira vista como sua própria” (CRUZ, 2007, p. 58).

Os conceitos dividem os fenômenos, destroem sua unidade ilusória, para que

os mesmos ingressem na ordem das idéias, em sua unidade autêntica, para que

sejam salvos, esta salvação-consumação se dá quando os fenômenos são

“alcançados” em sua representação (Repräsentation) (BENJAMIN, 1984, p. 56;

1991, p. 214) pelas idéias. O dispersão dos fenômenos elaborada pelos conceitos

restituem àqueles sua originalidade:

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“A pesquisa se detém e se mantém no estudo dos fenômenos, não para dar uma descrição ingenuamente positiva, mas, pelo contrário, para lhe restituir sua dimensão de objeto „bruto‟, único e irredutível; ela o imobiliza nessa brutalidade para preservá-lo do esquecimento e da destruição, cujas explicações já prontas são formas recorrentes” (GAGNEBIN, 1999, p. 10)

Mas ao se deparar com a originalidade, com a brutalidade dos fenômenos, o

pesquisador deve perceber que os mesmos já não podem ser salvos do

esquecimento nem da destruição 70, caso contrário o inacabamento seria

sobrepujado pela restituição; a elaboração conceitual adquiriria status de retorno às

origens, retorno que só poderia ser mitológico; e este é um dos mais fortes motivos

do conceito de história benjaminiano, em seu projeto de uma história originária da

modernidade: “longe de transformar a fragmentação da experiência” – a regra da

modernidade – “na interioridade espiritual da consciência” (na vivência, Erlebnis e,

no limite, na supremacia do “débil cetro da alma”) “a sobriedade, para Benjamin,

dissolve ou desintegra (mas com isso reconfigura) o que já está em estado de

desintegração: o corpo desmembrado, inorgânico, lembrança de uma incurável

mutilação” (COMAY, 1997, p. 264). Ao fim desse nosso terceiro capítulo tal conceito

de história deverá aparecer mais claramente ou, pelo menos, de forma um pouco

menos enigmática.

Os fenômenos estabelecem, através da mediação conceitual, uma relação

particular com as Idéias. Relação que se estabelecem “como as constelações com

as estrelas [die Sternbilder zu den Sternen”] (BENJAMIN, 1984, p. 56; 1991, p. 214).

Individualmente as estrelas nada significa para aquilo que figuram, bem como a

constelação não pode existir sem seus pontos constitutivos; seguindo Márcio

Seligmann-Silva: “[...] na epistemologia de Benjamin, o caminho que vai dos

fenômenos até as idéias através dos conceitos também deve ser trilhado

necessariamente no sentido inverso: é através dos conceitos que as idéias são

expostas” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 133).

O significado dos fenômenos para as idéias, de acordo com o Prefácio se

esgota em seus elementos conceituais [“begrifflichen Elementen”], apenas enquanto

elementos divididos e dispersados pelo trabalho conceitual, as coisas adquirem o

70

Como veremos em nossos comentários da categoria da Origem.

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significado que a ordem das idéias representa. Que elementos constitutivos poderão

compor a ordem das idéias, sobre quais fenômenos a elaboração conceitual se

volta? W. Benjamin continua: “o conceito parte do extremo” [“vom Extremem geht

der Begriff aus”] (BENJAMIN, 1984, p. 57; 1991, p. 215). O fenômeno extremo é o

ponto de partida, a base do trabalho conceitual, por representarem não a média,

mas o espaço marcado pelo desdobramento de onde a idéia poderá ser configurada.

Não na média, na abstração que institui uma unidade fenomênica ilusória, mas no

que se apresenta como diferença.

O universal que o particular destituído da falsa unidade, ao ingressar na

ordem das idéias em sua unidade autêntica, se transforma é a configuração onde os

extremos se colidem, através da tarefa peculiar dos conceitos.

A tarefa dos conceitos é assim a salvação platônica dos fenômenos, a

salvação da aparência, que ilumina as idéias – são os conceitos que incendeiam o

objeto que ao arder nas chamas faz a forma da obra atingir o “ponto mais alto da

intensidade luminosa”. A consumação do fenômeno na ordem das idéias

corresponde à sua salvação. A destruição conceitual que possibilita a “imersão nos

pormenores do conteúdo material” [“Versenkung in die Einzelheiten eines

Sachgehalts sich fassen lässt”] (BENJAMIN, 1984, 51; 1991, p. 208). Este é o

significado da justaposição dos “elementos isolados e heterogêneos”: as idéias

permanecem escuras até serem circundadas pelos conceitos: “[...] assim também as

idéias só adquirem vida quando os extremos se reúnem à sua volta” (BENJAMIN,

1984, p. 57).

A tarefa conceitual serve aos fenômenos – na dispersão que os permite

inscrever na ordem das idéias – e as idéias – ao iluminarem a idéia pelo brilho da

consumação da falsa unidade dos fenômenos, quando os fenômenos divididos e

dispersos as circundam, ou, nas palavras do professor Francisco Machado a

“apresentação ou presentificação das idéias se dá na forma de uma configuração

descontínua; [...], [em] que os fenômenos são salvos enquanto extremos”

(MACHADO, 2004, p. 64).

Enquanto prefácio a Vorrede apresenta a problemática da arte teatral alemã

sob a perspectiva epistêmico-crítica de Benjamin. A história da literatura e a filosofia

da arte se diferenciam, pois o pressuposto da primeira é a “existência da

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multiplicidade”, enquanto a segunda “pressupõe unidade”. A primeira visa à média

extraída da multiplicidade, a segunda, a unidade surgida dos extremos, que não é

“heterogeneidade morta”, mas tensão. Baseada em um “sistema de classificação”, a

história da literatura, “numa perspectiva evolucionista” “aparecem apenas como a

margem colorida de uma simultaneidade cristalina” (BENJAMIN, 1984, p. 60). Os

equívocos dos historiadores da literatura estão em seus conceitos de história. Ainda

acerca do caráter não classificatório da idéia, as palavras de Charles Rosen 71:

“[...] O conceito define a classe de fenômenos, a Idéia determina a relação dos fenômenos nas diferentes classes entre si. A tragédia como conceito define um certo número de peças; a tragédia como Idéia figura a relação dessas peças com a história no sentido mais lato” (ROSEN, 2004, p. 180).

Mas qual o significado desse sentido mais lato da história? Não nos apressemos.

Ainda acerca da história da literatura Benjamin afirma que as Idéias não podem ser

alcançadas pela indução acrítica:

“não pode levar a nada a tentativa de chegar às idéias indutivamente, segundo a sua extensão, derivando-as da linguagem usual, para seguir investigando a essência do que foi assim fixado” (BENJAMIN, 1984, p. 61).

A “justaposição de materiais” para “descobrir o que tais fatos tinham em

comum” (BENJAMIN, 1984, p. 61) não representam a tensão dos extremos que

configura a idéia, mas “heterogeneidade morta” 72. A tarefa dos conceitos nada tem

a ver com a invenção de “um conceito abstrato” (BENJAMIN, 1984, p. 62). O caráter

71

Charles Rosen ainda apresenta a aproximação, mas também o distanciamento, da distinção entre conceito e idéias, entre Benjamin e o eminente filósofo do primeiro romantismo: “Novalis utiliza a série infinita como metáfora do processo de descrever a Idéia. Benjamin aceita a distinção entre conceito e idéia e, como Novalis, também aproxima filosofia da arte. Sua descrição de Idéias, porém, não é a de Novalis, e ele emprega metáforas bem diferentes: configuração e constelação” (ROSEN, 2004, p. 180). Ambas as metáforas fazem referência à ao distanciamento em relação teoria das idéias do primeiro romantismo, distância que se tornará abismal quando Benjamin caracterizar as idéias nem como objeto de qualquer tipo de intuição, nem como dadas no mundo fenomênico. Caracterização sobre a qual nos dedicaremos em breve. 72

Em sentido amplo, um dos objetivos de nosso trabalho é criticar o legado historiográfico que se contenta em edificar histórias que representam apenas “heterogeneidade morta”, em favor de minorias, da diversidade, ou o que quer que seja, mas esquecem que pensar totalidades não significa apenas criar totalizações, pensam “o” diferente, sem pensar as desigualdades.

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não classificatório da Idéia a impede de ser objeto de qualquer indução, nas idéias,

“não é o semelhante que é absorvido, e sim o extremo que chega a sua síntese

[wohl aber das Extreme zur Synthese gelangt”] (BENJAMIN, 1984, p. 63; 1991, p.

221).

A abordagem benjaminiana, uma abordagem “filosófica” da arte, se afasta e,

neste caso, rompe, tanto com o nominalismo – exemplificado pela obra de Konrad

Burdach (BENJAMIN, 1984, p. 62) – quanto pelo historicismo psicologista de

Benedetto Croce:

“Enquanto Burdach critica a hipostasiação de conceitos universais de uma época histórica e Croce nega a divisão da arte em classes formadas por vários gêneros e espécies, a fim de que cada obra seja considerada em sua singularidade, Benjamin não lhes opõe. À medida, porém, que eles, por receio da insuficiência material, renunciam à idéia universal e aceitam o universal somente como conceito, também abandonam justamente o particular” (MACHADO, 2004, p. 68).

A recusa de Croce da “divisão da arte em classes formadas por gêneros e

espécies”, mas ao mesmo tempo sua idéia de “classificação genética” permitiu ao

historicista italiano tangenciar “o cerne da doutrina das idéias”, com uma idéia que

se assemelharia à síntese do extremo que a idéia representa, mas a noção de arte

como “intuição” o afastou deste centro, posto o caráter inapreensível, e por isso,

não-intuível da Idéia.

Quando Croce coloca a questão da classificação “genética e concreta” como

um possível retorno aos próprios fenômenos, uma classificação que não se

submeteria aos “processos dedutivos”, mas reconhece seu caráter histórico,

poderíamos dizer, a própria historicidade da classificação como possibilidade de

apresentação da arte como expressão e não como intuição, tal como acontece na

contemplação filosófica da Idéia, o historiador italiano tangenciou o “problema da

origem” (BENJAMIN, 1984, p. 67), tema da próxima seção deste capítulo: por ora, a

possibilidade de estabelecer uma relação histórica com a Idéia da arte.

Antes de finalizarmos esta primeira seção de nosso terceiro capítulo e

passarmos para a reflexão sobre a categoria da origem, faz-se necessário algumas

considerações acerca da leitura de Walter Benjamin da filosofia platônica. De acordo

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com Aléxias Bretas, “[...] ao contrário do eidos de Platão, as idéias de Benjamin não

se radicam em um etéreo reino Inteligível, mas, ao contrário, no horizonte concreto

da facticidade mundana” (BRETAS, 2009, p. 65); os conceitos devem por um lado e

simultaneamente dividir, dispersar e rearticular os fenômenos, e por outro, expor a

Idéia, que só se manifesta quando os extremos às circundam. Apesar da doutrina

das idéias de Walter Benjamin possuir um “cunho explicitamente platônico”, ela

visou também criticar “a visão platônica – metafísica da verdade” (SELIGMANN-

SILVA, 1999, p. 128). Não há para Benjamin uma “via imediata de acesso às Idéias”

(SELIGAMNN-SILVA, 1999, p. 130).

Ao mesmo tempo que a filosofia doutrina das idéias de Platão deve ser

reconhecida como um dos “modelos epistemológicos” 73 que Benjamin recorre na

elaboração de sua epistemologia crítica (GAGNEBIN, 1999, p. 12), é importante ter

consciência desse caráter de crítica frente a tais modelos: “ele não representa

apenas uma aceitação ou reelaboração da tradição filosófica, mas também uma

crítica dessa tradição” (SELIGAMANN-SILVA, 1999, p. 131), elaborada a partir das

“coordenadas” originais do pensamento benjaminiano, o elemento que introduz esta

crítica é a “concepção positiva do material” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 130).

O centro desta releitura benjaminiana da filosofia de Platão é a categoria da

origem, tema central do Prefácio que possibilita o ler como “reabilitação das

dimensões histórica e estética do pensamento filosófico” (GAGNEBIN, 2005, p. 184).

Ainda nas relevantes palavras de Márcio Seligmann-Silva:

“Poder-se-ia argumentar a favor de um platonismo puro de

Benjamin neste texto [no Prefácio] destacando-se o fato de esta „salvação‟ dos fenômenos nas Idéias via conceito dar-se justamente através do recurso de uma fórmula platônica: [...] (o „salvar os fenômenos‟). Mas ocorre que na doutrina platônica os eide existem totalmente separados do mundo sensível (kosmos aisthetos). Eles só podem ser alcançados via anamnesis ou via método da dialektike.” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 132, nota 124)

A reabilitação que nos fala Gagnebin se dá – como anunciado no programa

filosófico benjaminiano – pela articulação “de uma tentativa de superar o dualismo

73

Gagnebin apresenta três modelos epistemológicos aos quais Walter Benjamin recorre criticamente no Prefácio, o primeiro, já podemos conhecer – pelo seu caráter textual explícito: a doutrina das Idéias (GAGNEBIN, 1999, p. 12-13). Os dois outros modelos apresentam-se na categoria da origem e serão comentados na seção seguinte de nosso trabalho.

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entre contingência histórica e transcendência a-histórica das Idéias” (HANSSEN,

1995, p. 811), superação que se apresenta na filosofia benjaminiana pelo seu

conceito de história, pelo significado da história para sua filosofia, através da

categoria da origem. Mas não nos adiantemos, exceto por um breve retorno, que

marcará nossa passagem para nossa próxima seção.

Como vimos Benjamin apresenta a noção de que “compete à verdade garantir

o Ser da beleza” como “questão mais profunda do Symposion” (BENJAMIN, 1984, p.

53), questão acerca de como a verdade pode fazer justiça à beleza: como revelação

e não como desnudamento (BENJAMIN, 1984, p. 53). O “Ser indefinível da verdade”

como exposição aparece na metáfora do incêndio. Em outro momento da primeira

parte do prefácio, momento cuja análise aparecerá nas últimas linhas de nosso

texto, outra imagem se refere ao modo de ser das Idéias, tal como aparece na

relação entre verdade e beleza; desta vez, Benjamin retoma uma fábula, que talvez

tenha esse sentido: “Pode ser esse o sentido da fábula da estátua velada, em Sais,

que uma vez desvelada destruía aquele que com esse gesto julgava descobrir a

verdade” (BENJAMIN, 1984, p. 58), uma fábula, recontada por Salomon Maimon

(HANSSEN, 2000, p. 40). Qual a especificidade do modo de ser das Idéias que

estes dois momentos da tradição ocidental – Platão e Salomon Maimon –

remontam? Buscaremos na categoria origem tal convergência.

3.2 Origem. Da Filosofia da Linguagem ao Conceito de História

Nesta segunda e derradeira parte de nosso terceiro capítulo discutiremos a

categoria da origem com objetivo de apresentar a origem do conceito de história de

Walter Benjamin em sua filosofia da linguagem 74. Nossos comentários se agrupam

em três momentos: Primeiro apresentaremos uma breve introdução teórica ao

conceito de história de Walter Benjamin, a partir de algumas apontamentos, primeiro

74

Como a singela idéia que guia nosso percurso é a exposição da origem do conceito de história de Benjamin em sua filosofia da linguagem, não seguiremos a ordem em que as reflexões benjaminianas aparecem no Prefácio nesta segunda seção. Nosso itinerário é nosso argumento; o retorno obstinado a alguns temas e a rápida passagem por outros, faz parte da estratégia da leitura do Prefácio proposta, a saber, enfatizar o conceito benjaminiano de história a partir da ênfase em sua origem – e da Ursprung da categoria da origem – na filosofia da linguagem, ênfase que faz parte de nossa empreitada em sentido lato, que já anunciamos e voltaremos a comentar, de atualizar – tornar atual – o conceito de história de Walter Benjamin às discussões do campo da teoria da história.

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sobre o tema de sua célebre carta à Florens Christian Rang,e depois, por uma

sucinta revisão da influência que o conceito de fenômeno originário de Goethe

exerceu sobre a Ursprung benjaminiana.

Após esta breve e didática introdução à categoria da origem passaremos à

reflexão sobre suas especificidades e sua complexidade inerente. A cerrada

terminologia benjaminiana, a complexidade e o caráter evidentemente hermético de

seu pensamento se cristalizam também na categoria da origem, mais uma vez, a

literalidade do texto original e de suas traduções serão, bem como participação dos

profícuos comentadores, nossos pontos de apego.

Por fim apresentaremos a categoria origem como elemento constituinte do

conceito de história de Walter Benjamin de acordo com sua filosofia da linguagem.

No interior de nossa leitura do Prefácio categoria da origem, além de ser o

elemento central desse texto, deve aparecer como cerne de nosso trabalho. Nosso

objetivo de apresentar a origem do conceito de história de Walter Benjamin na e

através de sua filosofia da linguagem se legitima pelo fato de que o conceito de

história do filósofo “ganhar seu lugar” (MACHADO, 2004, p. 85) nas discussões da

epistemologia benjaminiana e, mais: passa a ocupar um lugar central no interior da

unidade típica de sua filosofia.

A categoria da origem corresponde à manifestação histórica da Idéia e ao

mesmo tempo a própria Idéia 75, visto que ela é enquanto apresentação de si. Pelo

menos dois elementos ainda conferem à categoria da origem uma importância

especial no interior da filosofia da linguagem e no conceito de história de Benjamin.

Primeiro, por ser a possibilidade: a origem é algo de lingüístico – ela corresponde à

atenção às especificidades da linguagem como o projeto da filosofia da linguagem

de Benjamin. Segundo, por ser o desdobramento: a origem corresponde à

peculiaridade do conceito de história de Benjamin.

Nas linhas que se seguem, após a breve introdução-revisão da construção

conceitual da categoria da origem, percorreremos estes três momentos que marcam

a apresentação do conceito de origem no Prefácio: sua definição-estrutura no

75

Francisco de Ambrosis, entre outros comentadores, ressalta que na primeira versão do Prefácio a origem era explicitamente coincidente com a idéia: “origem é a idéia!”, escreveu Benjamin na primeira versão do prefácio (BENJAMIN, apud, MACHADO, 2004, p. 86).

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interior da epistemologia crítica, sua abertura como categoria lingüística e seu

desdobramento como categoria histórica.

A categoria da origem é claramente uma transposição estrita e obrigatória

[“eine strenge und zwingende Übertragung”] do conceito de fenômeno originário de

Goethe para os domínios da história [“Bereich der Geschichte”] (BENJAMIN, 1982,

p. 577) [N 2a, 4]. No segundo capítulo de nosso trabalho elaboramos algumas

considerações acerca do fenômeno originário de Goethe, o retorno da mesma

discussão aqui seria ocioso, mas, ao mesmo tempo, não esgueirar mais uma vez por

este conceito tão complexo talvez soasse como simplificação. O recurso será

comentar apenas o significado da transposição benjaminiana.

De acordo com J. M. Gagnebin “[...] o protofenômeno de Goethe tenta pensar

a unidade de uma „lei intemporal‟ e de sua „visibilidade temporal‟, esta coincidência

interna, segundo Benjamin, constitui o histórico no sentido pleno do termo”

(GAGNEBIN, 1999, p. 12). O fenômeno originário das especulações de Goethe era a

tentativa de estabelecer o conceito de ciência como arte aposta como epígrafe na

fronte do Prefácio: em cada “objeto estudado” o investigador deveria buscar a

“totalidade universal” (GOETHE, apud, BENJAMIN, 1984, p. 49); e ainda: tal

totalidade seria encontrada e não deduzida. A “historicização da ontologia”

(HANSSEN, 1995, p. 826), a materialização do platonismo, a possibilidade de

perguntar pelo Ser no e a partir da imanência, presente na categoria da origem,

mostra-se assim na mesma direção – mas não o mesmo caminho – das

especulações goethianas. Mas no caso da Ursprung, seu caráter histórico – a

definição de seu lugar – é manifesto. Na concisa e completa definição de Buck-

Morss:

“Benjamin tinha tomado o termo ur-fenômeno dos escritos de Goethe sobre a morfologia da natureza. Goethe observara que, enquanto na ciência física ou química o objeto de conhecimento era uma abstração cognitiva constituída pelo sujeito, na ciência biológica ele era imediatamente percebido no ato de „observação irredutível‟. As leis objetivas e as regularidades dos organismos vivos eram graficamente visíveis em suas formas estruturais. Goethe acreditava que as ur-formas arquetípicas dessas estruturas revelavam a essência da vida biológica, e mais ainda, que elas existiam empiricamente, como uma planta ou um animal entre os outros,

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evidenciando materializações concretas das idéias platônicas” (BUCK-MORSS, 2002, p. 102).

As “materializações concretas” das Idéias não teriam uma forma natural – não

no conceito de natureza de Goethe (BENJAMIN, 199b, p. 117) 76 –, mas histórica, e

a categoria da origem apresenta tal manifestação 77.

Na célebre carta ao amigo Florens Christian Rang (09/12/1923) Walter

Benjamin estabeleceu uma importante ligação entre a temática de seu ensaio sobre

a tarefa-renúncia do tradutor, o ensaio sobre as Afinidades eletivas e sua teoria do

conhecimento (HANSSEN, 2000, p. 26). Tal conexão – que será retomada no

Prefácio em caráter mais amplo – nasce pela diferenciação entre a história da arte e

a história das obras de arte: a história essencial se difere da história “extensiva”

(MURICY, 1998, p. 140). Na tradução de Kátia Muricy:

“Uma interpretação, na verdade, faz jorrar conexões que são atemporais, sem serem por isso desprovidas de importância histórica. As mesmas „potências‟ que o universo da revelação (isto é, o da história) se fazem temporais sob o modo extensivo e explosivo, surgem no universo do mistério (é o da natureza das obras de arte) sob o modo intensivo [...] as idéias são estrelas no oposto do sol da revelação” (BENJAMIN, apud, MURICY, 1998, p. 141).

O caráter de história das obras – a temporalidade “intensiva” que sua

essência preserva – corresponde à sobrevida das obras. A interpretação objetiva,

atemporal da obra de arte reside em sua essência, em sua Idéia, e se opõe à

temporalidade extensiva – mas revela “importantes conexões históricas” –

76

Vale relembrar: “Na verdade, tudo dependeria aqui de uma definição mais precisa do conceito de „natureza verdadeira‟, na medida em que esta natureza „verdadeira‟ visível, que deve constituir o conteúdo da obra de arte, não apenas não deve ser identificada sem mais com a natureza aparente e visível do mundo, mas, antes, até mesmo deve ser diferenciada dela de modo rigorosamente conceitual. Pois, decerto, depois então se colocaria o problema de uma identidade mais profunda e essencial entre a natureza „verdadeira‟ e visível na obra de arte e a natureza (talvez invisível, apenas intuível, como fenômeno originário) presente nas aparições da natureza visível” (BENJAMIN, 1999b, p. 117). O Ideal da natureza [algo como sua verdade] não pode corresponder ao Ideal da arte. O fenômeno originário de Goethe precisou ser criticado para que suas idéias de estrutura e manifestação da totalidade no particular pudessem ser utilizadas na categoria da origem. A totalidade mítica o Urphänomen de Goethe foi interrompido pela crítica benjaminiana, seu conteúdo de verdade – a idéia da origem em seu interior – foi salvo. 77

A Übertragung corresponde ao mesmo movimento da Übersetzung em meios distintos.

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estruturais, da continuidade histórica, tal como o mundo profano experimenta. O

mundo histórico da revelação toca o “universo do mistério”, a (ainda) a-historicidade

peculiar das essências explosivamente, para revelar a importância histórica deste

tanger: estabelecer (estabilizar) a história na Idéia, o vir-a-ser no Ser. Tal como a

tarefa-renúncia do tradutor reconhece a instabilidade primeira da linguagem, ou tal

como no ensaio crítico às Afinidades Eletivas interromper a aparência de falsa

totalidade, a configuração da temporalidade extensa em Interpretação se dá pela

explosão. “A crítica é a mortificação das obras” (BENJAMIN, apud, MURICY, 1998,

p. 142), ainda escreveu Benjamin ao seu amigo. Mas fica evidente que a

Interpretação a-histórica possui uma “importância histórica”: é em favor de outra

história que (por um instante talvez) a história (Geschichte) deva se interromper.

Veremos como tais considerações possuem certa relevância no contexto do

Prefácio – e como elas podem ser entendidas como introdução às discussões

ulteriores. Passemos à uma análise mais cautelosa das considerações acerca da

origem presentes no Prefácio epistêmico-crítico.

Walter Benjamin em primeiro lugar define a categoria origem [Ursprung] como

histórica e a distingue da gênese [Entstehung]: “O termo origem não designa o vir-a-

ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção” [“Im

Ursprung wird kein Werden des Entsprungenen, vielmehr dem Werden und

Vergehen Entspringendes gemeint”] (BENJAMIN, 1984, p. 67; 1991, p. 226). Tal

como um “torvelinho” [Strudel], a origem “arrasta o material produzido pela gênese”

(BENJAMIN, 1984, p. 67-68).

O “ritmo” [Rhythmik] do originário se apresenta como “restauração e

reprodução” [“als Restauration, als Wiederherstellung”], mas por isso mesmo como

“incompleto e inacabado” [Unvollendetes, Unabgeschlossenes] (BENJAMIN, 1984,

p. 68; 1991, p. 226). O ritmo da categoria da origem revela a tradução do ideal no

histórico e do histórico na Idéia pela possibilidade de sua “coexistência significativa”.

De acordo com Seligmann-Silva:

“[...] Benjamin descreve o fenômeno de origem como uma estruturação que comporta na sua relação com as suas diversas conformações no tempo uma dupla perspectiva: uma enfatiza a relação com a história – restauração – e a outra que a marca como

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algo não fechado – não concluído no seu devir” (SELIGAMM-SILVA, 1999, p. 140).

A categoria origem é a confrontação da idéia com o mundo histórico, onde ela

atinge a “plenitude na totalidade de sua história” (BENJAMIN, 1984, p. 68; 1991, p.

226): na dialética imanente à origem revela-se o condicionamento mútuo entre

“único e recorrente” (BENJAMIN, 1984, p. 68; 1991, p. 226). O idealismo, de Platão

ao de Hegel, volta-se às essências e suas relações, não as suas manifestações “no

mundo dos fatos”. A categoria da origem que marca o limite do platonismo

benjaminiano: a salvação platônica das idéias [platonische „Rettung‟] começa pelos

fatos e termina no que, na manifestação da Idéia, tangencia o histórico.

A origem exige a prova de sua autenticidade: a origem é a manifestação da

Idéia na história, a absorção pela idéia das “manifestações históricas”. Nas palavras

de Beatrice Hanssen: “Benjamin localiza a marca da autenticidade [Echtheit] no

fenômeno” (HANSSEN, 2000, p. 45): apenas o duplo movimento de manifestação

histórica das Idéias e de salvação dos fenômenos os marca com o selo da

autenticidade, podem ser reconhecidos como originários. O particular incluído pela

idéia [“steht es in der Idee”] passa a ser “totalidade” [Totalität] (BENJAMIN, 1984, p.

69; 1991, p. 227). A estrutura da Idéia configurada na origem – a tensão entre

isolamento “inalienável” e “totalidade” – é “monadológica”. “A idéia é mônada [Die

Idee ist Monade”] (BENJAMIN, 1984, p. 69; 1991, p. 228). De acordo com o

professor Francisco Machado: “No conceito de origem, Benjamin parece transformar

monadologicamente a história das coisas no tempo em histórica congelada dentro

da idéia” (MACHADO, 2004, p. 92). Na mônada reside a interpretação objetiva dos

fenômenos, o histórico encerrado na “essência” ou na “natureza” dos fenômenos

torna a história natural – “não humana, não-humanista” (HANSSEN, 1995, p. 817) –

a interpretação de objeto dos fenômenos, reconhecendo a não supremacia dos

homens sobre a linguagem, bem como sobre os objetos. A pré e pós-história como

sobrevida, sobrevivência, não a desvincula da Naturgeschichte analisada ao longo

do Trauerspielbuch 78 – ao contrário, relaciona-se com ela essencialmente

(HANSSEN, 1995, p. 812); ainda nas palavras de Francisco Machado:

78

Relacionada ao tema da transitoriedade do mundo histórico, levemente semelhante, ou feita semelhante, às interpretações adornianas posteriores: Adorno “utilizava a história a conectando à

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“O significado de história natural (Naturgeschichte) abrange também as ciências naturais descritivas, como a botânica, a paleontologia e a sua prática de colecionar e desenhar descritivamente objetos. Finalmente o termo história é usado para coleções ou museus, como, por exemplo, museu de história natural” (MACHADO, 2004, p. 91-92).

A sobrevida como não mais aquela vida, como a direção à uma atmosfera

mais elevada, sabidamente menos propícia à vida [“in welchem es freilich nich auf

die Dauer zu leben vermag”] (BENJAMIN, 2001, p. 201), mas que faz referência

àquele “âmbito” fundamental – e fundamentalmente perdido. As imagens dos

museus, especialmente as imagens das salas de taxidermia, são bastante propícias

no que se referem àquele âmbito. A história se petrifica – no instante da origem, da

atemporalidade da Idéia – e é destituída de articulação meramente cronológica

(MACHADO, 2004, p. 91).

A idéia como mônada apresenta uma “imagem abreviada” do mundo, a

exposição da idéia corresponde a “nada menos que a descrição dessa imagem”

(BENJAMIN, 1984, p. 70; 1991, p. 228). A imersão no real que a exposição da idéia

configurada pela origem exige justifica-se, pois pelo caráter monádico da Idéia: ao

tocar a imanência dos fenômenos via despedaçamento, ela interpreta objetivamente

– no curto-circuito metodológico – o real.

A idéia como mônada ressalta dessa forma o aspecto de totalidade da

verdade manifesta, mas ao mesmo tempo a peculiaridade desta totalidade, nas

natureza como seu oposto dialético, como um conceito cognitivo, uma ferramenta teórica para desmitificar os fenômenos sócio-histórico e lhes subtrair seu poder sobre a consciência e sobre a ação. Cada um dos conceitos tinha um pólo estático e outro dinâmico (mito-transitoriedade), e seu significado preciso dependia da forma em que precisavam ser agrupados ao redor do objeto particular analisado de modo que sua significação poderia ser liberta” (BUCK-MORSS, 1981, p. 129, em tradução nossa da versão em espanhol). Mas as afinidades logo se transformaram em desavenças sob um ponto já explícito na citação acima. A leitura adorniana do Trauerspielbuch visavam uma “refuncionalização” [umfunktionieren] de seu suposto elemento não dialético, mas, a qual dialética T. W. Adorno se referia? Buck-Morss: “Adorno notava a ausência de mediação entre os dois pólos [da dialética benjaminiana entre Ur-história e modernidade]”, e mencionava Hegel como um modelo mais adequado que a teologia judaica” (BUCK-MORSS, 1981, p. 286 – novamente nossa tradução). Ainda Agamben, nessa discussão fundamental: Giorgio Agamben comenta a famosa crítica (em um momento tão crítico...) adorniana ao Das Paris des Second Empire bei Baudelaire em 1938: “O fundamento destas objeções [de Adorno à Benjamin, em carta de 10/11/1938] repousa sobre uma interpretação do pensamento marxista e em particular da relação entre estrutura e superestrutura [...]” (AGAMBEN, 2008, p. 139); o “[...] mediador que articula estrutura e superestrutura para salvaguardar o materialismo da vulgaridade é [...] o historicismo dialético hegeliano, que, como todo mediador, apresenta-se indefectivelmente para exigir o seu percentual” (AGAMBEN, 2008, p. 143)

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palavras de Márcio Seligmann-Silva: “O eterno não se confunde com a Idéia, porque

esta existe apenas enquanto mergulhada na história”, bem como a historicidade é

repatriada na Idéia; Seligmann-Silva continua: “o eterno é apenas uma dobra

epifenomênica [...]” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 131) oposto ao céu temos a

história e o que nela é transitoriedade 79.

A Idéia que desce do “céu Inteligível” ao mundo dos fatos brutos, mesmo que

por um instante, como a estrela que cai, manifesta de forma significativa a

“coexistência” dos contrastes, dos extremos ou dos “aparentes excessos do

processo de desenvolvimento” do particular incluído sob o conceito para que,

incluído sob a Idéia, possa se tornar totalidade. A totalidade que a representação da

Idéia – sua configuração enquanto reunião dos extremos – permite a emergência

reúne a história do fenômeno:

“A representação [Darstellung] de uma idéia não pode de

maneira alguma ser vista como bem-sucedida, enquanto o ciclo dos extremos nela possíveis não for virtualmente percorrido. Virtualmente, porque o que está abrangido pela idéia da origem tem na história apenas um conteúdo [Gehalt], e não mais um acontecer [Geschehn] que pudesse afetá-lo” (BENJAMIN, 1984, p. 69; 1991, p. 227).

A totalidade que a manifestação histórica, do conteúdo histórico da Idéia – e

simultaneamente da verdade histórica – como algo de “essencial” permite conhecer

a “pré” e a “pós-história” [Vor e Nachgeschichte] “de tais essências”, de forma

inautêntica – “pragmaticamente” ineficaz – como história natural [natürliche

Geschichte]: “A vida das obras e formas, que somente com esta proteção pode-se

desdobrar com clareza, não contaminada pela vida dos homens, é uma vida natural”

(BENJAMIN, 1984, p. 69; 1991, p. 227):

“Uma vez observado o Ser redimido na idéia [gerettete Sein in der Idee festgestellt], a presença da história virtual inautêntica – pré e pós-história – permanece virtual. Ela não é mais pragmaticamente eficaz, mas precisa ser lida, como história natural, em sua condição perfeita e estática, na essência. Com isso, redefine-se, no antigo sentido, a tendência de toda conceptualização filosófica: observar o

79

Ou algo que se assemelhe à imaginar um sol que falta, que muda de forma; ou um céu com constelações que não sejam fixas.

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vir-a-ser dos fenômenos em seu Ser” [das Werden der Phänomene festzustellen in ihrem Sein] (BENJAMIN, 1984, p. 69; 1991, p. 227-228).

A pré e a pós-história eleva a transitoriedade – virtualmente – ao reino das

Idéias, para ressaltar o elemento histórico delas: o que nela aparece. A idéia de

mônada revela o método de apresentação da verdade como desvio em direção à

imanência: “Origem [...] e mônada: trata-se sempre da mesma idéia de totalização a

partir do próprio objeto e nele [...]” (GAGNEBIN, 1999, p. 11). A Idéia como mônada

apresenta a relação entre singularidade e repetição de forma não-excludente

(HANSSEN, 2000, p. 43): a “dialética imanente à origem” exige a “renúncia à

intenção” e o “movimento contínuo” (BENJAMIN, 1984, p. 50), o parar e recomeçar,

sempre de novo. Singularidade e repetição já não mais se excluem pela dialética

entre “universo da revelação” e o “universo do mistério”, entre historicidade

“extensiva” e “intensiva”, mas se reúnem – se tocam “sob um modo explosivo”

(BENJAMIN, apud, MURICY, 1998, p. 141) – na imagem abreviada do mundo que a

mônada conserva dentro de si.

As noções do essencial como pré e pós-história remontam a idéia de

continuação da vida na linguagem e das obras, presente no prefácio-ensaio A

Tarefa-renúncia do Tradutor (como nos referimos acima) e no ensaio sobre As

afinidades eletivas – como o próprio Benjamin elucida em uma nota (BENJAMIN,

1984, p, 69, nota 14); como o “devir das próprias línguas” (BENJAMIN, 2001, p. 209)

ou “o enigma daquilo que está vivo” sob as cinzas da fogueira que arde e representa

a “obra em expansão” (BENJAMIN, 2009, p. 14) a absorção da “série das

manifestações históricas” pela idéia (BENJAMIN, 1984, p. 68), o desdobramento “da

vida das obras e formas” (BENJAMIN, 1984, p. 69) apresentam a Idéia estruturada

entre “isolamento inalienável e a totalidade” como mônada e tem na categoria da

origem sua realização, sua efetivação: relacionando-se com a pré e a pós-história

dos fatos “o único e o recorrente se condicionam mutuamente” (BENJAMIN, 1984, p.

68) em “uma construção histórica da filosofia” e “uma reconstrução filosófica da

história” (BUCK-MORSS, 2002, p. 84) a Idéia se expõe na descontinuidade histórica;

a transitoriedade mundana se paralisa [feststellen] na Idéia, não em favor de uma

harmonia – que tomaria a origem por retorno – mas pelo reconhecimento de que a

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origem destrói a aparência – para melhor recolher o fragmentado – e tem como ritmo

a restauração [Restauration] e o inacabamento [Unabgeschlossenes] da história,

como reconhecimento que essa é também, uma forma de rememoração. Ainda nas

palavras de Beatrice Hanssen:

“A vida natural ou a história natural das obras de arte 80 reside

salva e aparentemente estabilizada, paralisada [to set at standstill, no original] (festgestellt) na Idéia ou na essência do fenômeno. [...] Na medida que a história estava encerrada na essência ou na „natureza‟ das Idéias, história natural também significa a „dinamização‟ histórica das intransigentes Idéias ou essências” (HANSSEN, 2000, p. 47).

A noção benjaminiana de idéia enquanto mônada revela o sentido da história

virtual, inautêntica (pré e pós-história) para história humana. Qualquer que for o

sentido, ele é revelado pelo torvelinho que arrasta o curso histórico em direção ao

Ser, e o “mergulha” na história. A crítica benjaminiana do conhecimento histórico tem

a origem na sua filosofia da linguagem: enquanto na noção tradicional de história a

transitoriedade histórica e a intransigência divina (que a governa) se excluem

(HANSSEN, 2000, p. 44) determinada concepção de história é marcada pela

manifestação não apenas dos desígnios, mas da própria ordem do imponderável –

evidentemente, na parte que cabe a ela – na história humana 81.

A origem enquanto categoria histórica, enquanto salto originário, ou fissura ou

explosão [Ur-Spr-ung] 82 permite determinar, configurar [fest-zu-stell-en] o vir-a-ser

no Ser, o histórico na Idéia. Seguindo Francisco Machado: “A idéia surge na história

como uma forma, que tem uma estrutura atemporal” (MACHADO, 2004, p. 100), isto

80

Não apenas da arte: a pós-vida da obra em sua linguagem, a pós-vida dos fatos em sua representação lingüística na exposição das idéias. 81

“Certamente, os advindos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentaram nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o messias” (BENJAMIN, 1994, p. 232) 82

“In ihm ist die Wahrheit mit Zeit bis zum Zerspringen geladen. (Dies Zerspringen, nichts anderes, ist der Tod der Intentio, der also mit der Geburt der echten historischen Zeit, der Zeit der Wahrheit, zusammenfällt).” [Nele, a verdade está carregada de tempo até a ponto de explodir. (E esta explosão, e nada mais, é a morte da intentio, que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o tempo da verdade)]. (BENJAMIN, 1982, p. 578; 2006, p. 505) [N 3, 1].

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é, a idéia contém “os limites de seu próprio desdobramento” (SELIGMANN-SILVA,

1999, p. 141).

Mas qual é elemento mediador, o meio que permite a reflexão, o

reconhecimento do condicionamento do único e do recorrente, da restauração e do

inacabamento, que permite o pensar na história e na Idéia? 83 Antes, mais uma

observação sobre o modo de ser da Idéia, um elemento que até agora foi protelado.

Vimos ao longo da primeira seção de nosso capítulo que a verdade e o saber

não coincidem, pois o método do conhecimento é a apreensão, enquanto a verdade

se manifesta na exposição – e como forma, exposição e Idéia coincidem - da Idéia,

exposição enquanto manifestação inerente ao Ser da verdade. Através da

lembrança original da não coincidência da verdade e do saber Walter Benjamin

desenvolve um dos elementos mais importantes de sua epistemologia crítica, e pela

possibilidade deste elemento unificar e nortear nossas discussões, preferimos

discutir a categoria da origem antes e, só agora, voltarmos a tal elemento. Tal não

coincidência tem duas matrizes, os conteúdos daquela lembrança original: a filosofia

platônica e a filosofia da teoria da linguagem de origem judaica 84.

83

Formulando melhor: o que permitiu a transposição do fenômeno originário de Goethe para outro domínio; o que permitiu a junção das fábulas Platão e Maimon, a configuração entre transitoriedade e a-historicidade? 84

Assim como as duas fábulas que são contadas acerca do “Ser indefinível da verdade” foram recontadas por Platão – onde na releitura benjaminiana “Eros [...] não atraiçoa seu impulso original quando dirige a paixão para a verdade, porque também a verdade é bela” (BENJAMIN, 1984, p. 53) – e por Salomon Maimon. Sobre a leitura benjaminiana de Salomon Maimon e sua referência no Prefácio, a breve citação de Beatrice Hanssen (HANSSEN, 2000, p. 40) e a passagem de Abraham P. Socher: “In an early draft of the „Epistemo-Critical Prologue‟, in his brilliant but failed Habilitationsschrift [...] Benjamin quoted a passage from Maimon‟s discussion of the Guide of the Perplexed in his autobiography [Lebensgeschichte]. In his account of Maimonide‟s discussion of in what sense the two tablets of Sinai had been written with „the finger of God‟, Maimon ha repeated a striking comment […]. With regard to Maimonide‟s claim that the tablets were not artificial but merely „the work of God‟ […]. . Local Jewish dignitaries had shown him stones ostensibly brought from Mount Sinai, each of which had the impression of a bush, in Hebrew sneh, like the burning bush encountered by Moses in his initial revelation. Remarkably, Narboni says, when he broke the rocks, each of the resulting pieces retained the image of the bush, and he takes this as empirical confirmation of Maimonides‟ philosophical claim […]. Benjamin was also struck by the image of the mark on the stones of Sinai, whose „peculiar nature consist in the fact that it reproduces itself immediately on ever single piece that has broken off… and this in infinity‟. […] In Benjamin‟s fertile mythological imagination, the shards of the stones upon which the original revelation had been engraved became something like signatures of the divine impressed on the physical world” (SOCHER, 2006, p. 154-155). Os motivos da filosofia da linguagem benjaminianos são evidentes: as marcas da “sarça ardente” nas pedras onde a verdade foi revelada, a fragmentação das pedras, a manifestação da “assinatura, marca” de Deus no mundo material, mas especialmente o fato de que, mesmo depois de quebradas, mantém a marca original. Se não for exceder sobremaneira a benevolência de nossos leitores, mais duas ou três palavras sobre a filosofia de Salomon Maimon: “A inteligibilidade dos fenômenos que as ciências da natureza pretendem estabelecer ao impor-lhes a legalidade causal só

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A não coincidência entre verdade e saber é também apresentada por Walter

Benjamin pela afirmação de que as Idéias não podem ser objetos de nenhum tipo de

intuição, nem empírica nem intelectual: “A essência das idéias não pode ser

pensada como objeto de nenhum tipo de intuição [Anschauung], nem mesmo da

intelectual” (BENJAMIN, 1984, p. 58; 1991, p. 215).

O conceito de “visão” [Schau] exemplifica uma distorção esotérica das

filosofias que almejaram tomar a verdade por acessível por meio de qualquer tipo de

intuição. Nem mesmo a intelectual – “a versão mais paradoxal” das visões – pode

aceder à esfera da verdade posto que ela escapa à qualquer intenção [Intention].

Nas palavras de Benjamin:

“A verdade não entra nunca em nenhuma relação [Relation], e muito menos em uma relação intencional. O objeto do saber, enquanto determinado pela intencionalidade do conceito, não é a verdade. A verdade é uma essência não intencional, formada por idéias. O procedimento próprio à verdade não é portanto uma intenção voltada para o saber [nicht ein Meinen im Erkennen], mas uma absorção total nela, e uma dissolução [sondern ein in sie Eingehen und Verschwinden]. A verdade é a morte da intenção [Die Wahrheit ist der Tod der Intention]” (BENJAMIN, 1984, p. 58; 1991, p. 216).

Como já vimos, por pertencerem a “uma esfera fundamentalmente distinta

daquela que estão os objetos que ela apreende” as idéias não são os conceitos nem

as leis dos fenômenos; “as idéias se relacionam com as coisas como as

constelações com as estrelas” (BENJAMIN, 1984, p. 56), por isso o “Ser da verdade

seria possível mediante uma indução completa, para nós inatingível, pelo que a viabilidade daquela fica irremediavelmente comprometida. O fracasso da filosofia kantiana [para S. Maimon] reside justamente nesta impossibilidade „de construir uma ponte através da qual tornasse possível a passagem do transcendental ao particular‟ [Maimon]” (FERREIRA, 1992, p. 211); e ainda: “a remissão maimoniana para a ficção necessária de um „entendimento infinito‟, mais uma proposta metodológica que uma hipótese metafísica, representa o esforço para resolver de modo positivo a insuficiência encontrada na posição do problema crítico. Unicamente uma perspectiva genética do conhecimento constitui o método adequado à fundação da verdade: o saber „real‟ será aquele que produz em si o objeto e a totalidade de suas condições, que os „constrói‟ efetivamente e na plenitude das suas relações” (FERREIRA, 1992, p. 214). Agora, as palavras do próprio: “Vê-se [...] que a lógica [...] não pode dar nenhuma característica segura da realidade dessas formas, e que os conceitos que determinam os objetos especiais têm de permanecer inteiramente fora da lógica, que abstrai de toda matéria” (MAIMON, 1992, p. 243), dessa insuficiência da lógica no retorno ao particular nasce a filosofia peculiar de Maimon entre um “dynamically monistic rationalism and [...] a dualist skepticism”: “Insofar as the world was intelligible, individuality and personality were annihilated; insofar as the world was not intelligible, philosophical consensus was unattainable” (FRANKS, 2000, p. 109-110). A categoria benjaminiana da origem certamente é uma crítica – como mortificação e continuação – assim como ao “a-historicismo” de Platão, à crítica maimoniana ao pensamento de Kant.

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é distinto do modo de ser das aparências” (BENJAMIN, 1984, p. 56). Ainda seguindo

Benjamin:

“A estrutura da verdade requer uma essência que pela ausência de intenção [Intentionslosigkeit] se assemelhe à das coisas, mas lhe é superior pela permanência. A verdade não é uma intenção, que encontrasse sua determinação através da empiria, e sim a força que determina a essência de empiria. O ser livre de qualquer fenomenalidade, no qual reside exclusivamente esta força [Gewalt], é a do Nome” (BENJAMIN, 1984, p. 58; 1991, p. 216)

A verdade é a força que determina a empiria – “as relações de afinidades

mútuas”, e tal força reside no ser do nome: naquilo que na linguagem é radicalmente

distinto de qualquer intenção, e que ressalta o quão distante – e ao mesmo tempo,

essencial – está a verdade manifesta na facticidade, a verdade histórica. O caráter

não-intencional da verdade, portanto sua não coincidência com o saber, sua

descontinuidade em relação à demonstração ou à indução acrítica, manifesta-se na

força “livre de qualquer fenomenalidade”. O Nome, como pudemos ver em nosso

primeiro capítulo, não transmite nenhum conteúdo, não exige nem a reflexão nem o

juízo: o nome é linguagem pura, uma centelha da reine Sprache, pois o homem não

possuí o poder Nomeador 85, de chamar as coisas pelo nome e traduzir a mudez da

natureza em criação. Se a exposição da verdade é a tarefa de restaurar o caráter

“simbólico da palavra”, ela só pode ser enquanto reminiscência, que como bem

sabemos, só existe enquanto incompletude, ou, como Aufgabe/aufgeben.

Benjamin retoma então, em um tom mais profano, as idéias do ensaio Sobre

a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana: “A idéia é algo de lingüístico,

o elemento simbólico presente na essência da palavra” (BENJAMIN, 1984, p. 58-59).

A anamnesis (ἀνάμνησις) benjaminiana não é Ideal, mas lingüística (HANSSEN,

2000, p. 40), da linguagem [Die Idee is ein Sprachliche] (BENJAMIN, 1991, p. 216);

temos uma transposição [Übertragung] – não apenas do fenômeno originário de

85

A partir da análise da categoria da origem e da constituição do conceito de história de Walter Benjamin nos termos de sua filosofia da linguagem, da transposição não apenas do platonismo, mas também da teoria da linguagem da mística judaica no contexto do prefácio e especialmente após a passagem pela tarefa-renúncia do tradutor, qualquer ponderação acerca da ânfora mesma e não de seus fragmentos não faz sentido, visto que ajuizar e constituir sentido faz parte das atribuições da linguagem posterior pós-ânfora; à reflexão resta o exílio, a errance que se depara na estância, com algo igualmente peregrino, para lembrá-lo, talvez, de sua condição inalienável e do imperativo de sua tarefa – “predestinada” e “interdita”.

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Goethe – mas da anamnesis platônica à esfera da história, transposição cujo meio é

a filosofia da linguagem de Walter Benjamin.

A verdade como “morte da intenção”, o caráter lingüístico, portanto histórico,

do pensamento, ao reunir a filosofia da linguagem em uma epistemologia crítica

tanto amplia o esfera da reflexão filosófica (em direção ao histórico) quando do

conceito de história (no que tange à uma verdade que não seja causal nem

abstração à custa do histórico). Nas palavras de Seligmann-Silva:

“O conceito de Idéia de Benjamin, enquanto Nome, apresenta, portanto, uma das concretizações do seu programa da filosofia futura de 1917-18, já que [...] Benjamin indicara nesse texto a linguagem como o único meio de se poder corrigir a concepção kantiana de experiência e conhecimento. A linguagem supera”, o conceito de linguagem de Benjamin, “aquela concepção tradicional, vale relembrar, justamente porque ela incorpora ao lado de seu elemento simbólico o comunicativo, isto é, uma instância histórica.” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 136, nota 134).

Ou ainda, de acordo com Alexia Bretas: “Malgrado as refrações teológicas,

não é demais ponderar que é somente no contexto laico da crítica do conhecimento

histórico que deve ser entendido o elogio extemporâneo do regime de visibilidade

das idéias, que o autor comparará às constelações.” (BRETAS, 2009, p. 64). A

epistemologia-crítica de Walter Benjamin – ao nascer de uma filosofia da linguagem

que se distancia de uma perspectiva meramente instrumental ou mística –

transforma e traz para o cerne de seu pensamento seu peculiar conceito de história:

“a verdade na esfera lingüística colocou ao mesmo tempo um outro momento no

primeiro plano: a história” (STEINER, apud, SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 136, nota

133).

A categoria da origem apresenta o cerne da concepção benjaminiana de

história, a teoria acerca da qual construir sua filosofia da história. Nas palavras de

Susan Buck-Morss:

Construir 86 “uma filosofia extraída da história [...] reconstruir o material histórico como filosofia. [...] Uma representação concreta e

86

Susan Buck-Morss está apresentando à concepção historiográfica do Passagen-Werk; o que explicitamente corresponde a uma transposição-atualização do conceito de história do Prefácio, onde

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gráfica da verdade, em que as imagens históricas tornam visíveis as idéias filosóficas. Nelas, a história atravessava o coração da verdade sem proporcionar um marco totalizador. Benjamin entendeu estas idéias como „descontínuas‟. Como resultado, os mesmos elementos conceituais aparecem em várias imagens, em configurações tão variadas que seu significado não pode ser fixado em abstrato. [...]. uma construção histórica da filosofia que seja simultaneamente [...] uma reconstrução filosófica da história, onde os elementos ideacionais de filosofia se expressem como significados cambiantes dentro de imagens históricas que, em si mesmas, são descontínuas [...]” (BUCK-MORSS, 2002, p. 84).

A expressão da verdade no reino material, “dentro de imagens históricas”, é

uma expressão lingüística, de linguagem. A origem é uma categoria histórica, bem

como a Idéia é lingüística. A esfera da verdade que a filosofia da exposição deve

visar emerge da reunião destas dimensões: a historicidade da origem é a

manifestação – a lembrança – nas línguas profanas daquilo que pertence ao seu

lado simbólico.

O caráter irremediavelmente perdido da reunião do fragmentado atribui à

categoria da origem a duplicidade de seu ritmo: “o original é simultaneamente o

absolutamente primordial e o radicalmente novo” (MOSES, 1993, p. 181), e ainda,

nas palavras de Gagnebin: “[...] a origem [...] na medida em que é inconclusão,

historicamente aberto e gerador de história, representa inseparavelmente o

aparecimento do outro” (GAGNEBIN, 1993, p. 24).

Se a epistemologia-crítica de Walter Benjamin redefine a “tendência de toda

conceptualização filosófica” (BENJAMIN, 1984, p. 69) sobre o modo de ser da

verdade na sua manifestação histórica na categoria da origem, o conceito de história

também naturalmente se altera:

“Benjamin percebia a natureza histórica como uma expressão de transitoriedade essencial da verdade em seus extremos contraditórios – como extinção e morte, de um lado, e como potencial criativo e possibilidade para a mudança, de outro” (BUCK-MORSS, 2002, p. 96).

se localiza – tendo a filosofia da linguagem como medium – a origem do conceito de história de Walter Benjamin.

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Tal é a estrutura do “futuro aberto”:

“A origem benjaminiana visa [...] uma retomada do passado, mas ao mesmo tempo – e porque o passado enquanto passado só pode voltar numa não-identidade consigo mesmo – abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo” (GAGNEBIN, 1999, p. 14).

Isso significa para Benjamin que a história “não é apenas uma ciência, mas

igualmente uma forma de rememoração” (BENJAMIN, 2006, p. 513) [N 8, 1]: a

rememoração pode desencantar o futuro, mesmo que seja proibido; Benjamin, como

vimos, não aprendeu hebraico.

O ritmo da “não-identidade”, da “abertura” do “inacabamento constitutivo” do

passado é conferido à categoria da benjaminiana da origem pela filosofia da

linguagem que a constitui. A origem no fluxo do vir-a-ser manifesta na história, como

a linguagem na tradução ou a vida das obras na crítica, o pertencimento essencial

entre linguagem e pensamento: seu caráter histórico.

Tal como a lembrança da semântica da palavra logos, evocada pela metáfora

hammaniana da árvore, a lembrança do caráter histórico da verdade manifesta, por

um lado, o elemento lingüístico do pensamento e da verdade que o determina

(feststellen), mas também, por outro lado, que o passado compartilha com a

linguagem a fragmentação originária que os torna permanentemente restauração e

inacabamento. A reine Sprache, o Ausdrucklose e a Ursprung, são o

reconhecimento, a rememoração de que a linguagem, a natureza e a história

apresentam em sua imanência a mortificação que esperam.

A estrutura e o desdobramento do conceito de história de Walter Benjamin,

sua origem, aparece assim em sua filosofia da linguagem e em seu conceito de

história, no reconhecimento do caráter lingüístico, portanto histórico, da verdade. O

conceito benjaminiano de história é marcado pela fragmentação essencial, pela

disjunção permanente, que não pode ser recuperado de maneira alguma por

qualquer tipo de reconstrução ou redenção teológica 87, algo que não pertenceria à

87

Na bonita tradução de Maurice de Gandillac do Theologisch-politisches Fragment: “Au mouvement spirituel de la restitutio in integrum qui conduit à l'immortalité, correspond une restitutio séculière qui

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ordem do profano, mas pertence à ordem sobre a qual a história deve ser erigida,

mas como a dissolução de algo já radicalmente dissolvido 88.

Dissolução como reconhecimento. Reconhecimento de que o historiador ao

aceitar seu encargo, deve se dispor à renunciar e fazer dessa renúncia o tom de seu

ofício: se quiser dizer algo sobre o passado reconhecer que inevitavelmente e em

primeiro lugar não poderá fazê-lo. Fazer dessa renúncia seu ofício e a partir dela,

fazer aquilo que, de algum modo, faz de algo do passado algo presente. Dissolução

(Er-lösung) que é o ritmo do reconhecimento de que o passado sempre escapa, ou

está ao alcance do salto que não damos.

conduit à l'éternité d'un anéantissement, et le rythme de cette réalité séculiére etérnellement èvanescente, èvanescente das sa totalité, evanescente dans sa totalié spatiale, mais aussi temporelle [...]” (BENJAMIN, 2000c, p. 264-265). 88

“Não se trata tampouco de abrir à força a carapaça da máquina de modo a resgatar a teologia como conteúdo reprimido ou oculto. Esse gesto de resgate – a interpretação como repetição ou elucidação de um original perdido ou escondido – seria tão pouco pertinente quanto a hermenêutica da desconfiança ou do desmascaramento [...]. afinal, uma vez que „teologia‟ não representa aqui nenhum conteúdo a ser recordado mas, na verdade, o próprio poder de recordar – em suas notas Benjamin qualifica a recordação como a „quintessência‟ de uma repetição teológica judaica da história [...] – não fica claro como exatamente tal quintessência poderia jamais se essencializar de modo a emergir intacta – pois é a própria memória e não uma determinada memória que permanece escondida ou ocluída, ela permanece igualmente inacessível a qualquer resgate hermenêutico. O que foi ocluído ou esquecido é de fato a única força contra o esquecimento: a memória como tal tornou-se distorcida ou deslocada” (COMAY, 1997, p. 265). Ainda Peter Szondi: “É assim que o espírito utópico de Benjamin se aproxima do passado. Esse era o pressuposto da planejada história originária da modernidade. A tarefa é tão paradoxal quanto a união de esperança e desespero que se manifesta nela. Embora o caminho para a origem seja um caminho de volta, ele é um retorno a um futuro que, embora já passado e pervertido na sua idéia, conserva mais promessas do que a imagem atual do futuro” (SZONDI, 2009, p. 22)

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Considerações Finais – Sobre a Tarefa do Historiador

Sob o título de considerações finais elaboraremos um exercício de reflexão

que visa justapor o conceito de história de Walter Benjamin a algumas questões do

campo da teoria da história. Dessa forma acreditamos poder concluir nosso trabalho,

revisitando alguns temas nele discutido, ao mesmo tempo que o vinculamos ao

nosso campo e, por meio desta vinculação, enfatizarmos o caráter não conclusivo

das reflexões que se voltam à filosofia de Walter Benjamin, especialmente no que se

refere ao seu conceito de história.

Comentaremos algumas questões relevantes no interior do debate da teoria

da história com intuito de apresentar algumas possibilidades de ampliar e

complexificar estas questões lendo o conceito de história de Walter Benjamin como

elemento de desestabilização e de imperativo á reflexão permanente. Passaremos

brevemente 89 por algumas idéias de filósofos e historiadores para apresentar no

interior do campo da história três problemas que ao termo de nossas considerações

serão confrontados e matizados pelo conceito de história de Walter Benjamin; a

saber, as questões sobre a linguagem, sobre o método e sobre o sentido da história.

Em primeiro lugar o conceito de História de Walter Benjamin figura como uma

abertura à linguagem. Mas o próprio conceito de linguagem é ampliado quando o

seu caráter comunicativo deixa ser sua função exclusiva. Considerar o caráter

lingüístico do conhecimento é colocar no centro das discussões teóricas a questão

89

O risco de passarmos por demais brevemente pelas discussões teóricas deverá ser compensado pela unidade de sentido que forneça perspectivas para atualização, tradução das questões – que, adiantemos, permanecerão questões – dispostas pela nossa leitura do conceito de história de Walter Benjamin ao campo da teoria da história. Acerca do suposto risco de lançar questões inconciliáveis por pertencerem a matrizes teóricas distintas, argumentamos com o reconhecimento da efetividade e da radicalidade deste risco na empreitada proposta.

“O curso da história como se apresenta sob o

conceito de catástrofe não pode dar ao pensador

mais ocupação que o caleidoscópio nas mãos de

uma criança, para a qual, a cada giro, toda

ordenação sucumbe ante uma nova ordem. [...]

– O caleidoscópio deve ser destroçado”.

Walter Benjamin, Parque Central (BENJAMIN,

1989, 154).

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tanto da apresentação do conhecimento quanto do caráter de linguagem, isto é,

enquanto possibilidade e desafio da interpretação. Nas palavras de Paul Ricoeur:

“Com efeito, as coisas seriam mais simples se a forma escriturária da historiografia não contribuísse com seu valor cognitivo, se a explicação/compreensão fosse completa antes de ser comunicada por escrito a um publico de leitores” (RICOEUR, 2007, p. 289).

Mas à produção do conhecimento histórico é exigido o confronto com seu caráter

lingüístico, o reconhecimento que a produção do saber desse campo envolve no

elemento duplo da problemática da representação – a representação lingüística de

um conhecimento que representa algo sobre o passado – que a narrativa histórica

abarca: “A ausência seria assim desdobrada entre a ausência como visada pela

imagem presente e a ausência das coisas passadas enquanto concluídas em

relação ao seu „ter sido” (RICOEUR, 2007, p. 294) 90.

A dupla inscrição da problemática da representação – pelo reconhecimento

do duplo vínculo lingüístico da prática historiográfica – também aparece em algumas

reflexões do teórico-historiador Reinhart Koselleck. Ao discutir a semântica dos

conceitos históricos como possibilidade de elaboração de uma “história conceitual” –

e de como essa problematiza alguns aspectos de determinada história social por

conta da não coincidência das dinâmicas dos significados dos conceitos, por um

lado, e das estruturas por eles designados, do outro lado 91 – Koselleck considera

dois níveis da prática historiográfica: o primeiro consiste no exame de fatos

“articulados linguisticamente”, o segundo nível se refere à construção de “fatos não

90

O recurso de Ricoeur à noção de representância como desdobramento limite da problemática da epistemologia do conhecimento histórico em uma “ontologia do ser-no-mundo” apesar de partir de tradição inteiramente outra (tradição que inclusive Walter Benjamin tinha como um dos projetos “demolir” – tema que infelizmente não poderemos discutir aqui) estabelece afinidades com a historicidade peculiar da verdade apresentada pela epistemologia crítica benjaminiana. De acordo com Ricoeur o termo representância – a “representação-suplência”, a representação como manifestação da ausência, em termos exageradamente gerais – encera em sua semântica a crítica permanente à tradição da Vorstellung mas que, aparentemente, na nossa particular e superficial leitura se inscreve sob a ordem de um conceito de conhecimento ligado e depende por demais dos ritmos da produção do conhecimento na consciência. 91

Não exageremos em nossa celeridade: “Tal procedimento [da Begriffsgeschichte] parte do princípio de traduzir significados lexicais em uso no passado para nossa compreensão atual. A partir da investigação de significados passados, tanto a história dos termos quanto a história dos conceitos conduz à fixação desses significados sobre a perspectiva contemporânea. Enquanto esse procedimento da história dos conceitos é refletido metodologicamente, a análise sincrônica do passado é completada de forma diacrônica. A redefinição científica de significados lexicais anteriores é um dos mandamentos básicos dos estudos diacrônicos” (KOSELLECK, 2006, p. 104).

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articulados linguisticamente no passado”, mas que pode ter esse caráter lingüístico

“recuperado” (KOSELLECK, 2006, p. 116). A atenção a estes dois níveis não é outro

senão ao que chamamos da abertura à linguagem promovida no interior das

discussões do campo da teoria da história 92.

A representação do conhecimento histórico deve figurar como o primeiro

elemento de não-resolução, de abertura permanente das reflexões do campo da

teoria do conhecimento histórico acerca da produção historiográfica.

O segundo elemento realçado pelo conceito de história de Walter Benjamin se

refere ao objeto sobre o qual a produção do conhecimento histórico se debruça. O

caráter descontínuo, fragmentário e intrinsecamente plurívoco do passado também é

uma questão que se inscreve sob a ordem da problemática da representação e que

tem o caráter lingual da construção da verdade do passado como perspectiva, mas o

estatuto do passado também adquire sentido acerca da questão do método da

produção do conhecimento. O método nessa perspectiva não se resume às regras

metódicas da produção historiográfica, mas tem um sentido mais amplo, acerca da

própria possibilidade de, passando pelos os resquícios do passado preservados

enquanto “fonte” poder-se construir uma narrativa acerca daquele passado. Nesse

sentido o pressuposto dessa leitura do método é que a fragmentariedade do

passado não pode ser resolvida pela linguagem do historiador, pois essa também

compartilhar de distância instransponível em relação à qualquer totalidade – ou da

supremacia sobre a linguagem ou da reconstrução do passado.

A atenção aos rastros do passado como tensão produtiva e não apenas como

heterogeneidade morta exige um método de renuncie á pretensão de capturar em

suas malhas qualquer coisa do passado que não carregue aquilo que a caracteriza

enquanto passado: a fragmentariedade e o não-fechamento do sentido – que se

difere de qualquer produtividade neste caso, pelo seu caráter negativo. A condição

de ambivalência do objeto historiográfico também revela uma tensão de segundo

grau acerca da condição da própria produção, do caráter histórico, da historicidade

particular da produção do conhecimento histórico. A prática historiográfica é

constituída sempre a partir de uma negociação, de um lugar específico, e por isso

92

Abertura que em nada se relaciona à concepção de que uma atenção à linguagem consideraria uma desatenção em relação ao rigor que a exposição da verdade exige.

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não pode fazer da ficção de estabilidade conferida por este presente uma negação

da incompletude de sua tarefa. As palavras de Michel de Certeau:

“A frágil e necessária fronteira entre um objeto do passado e uma práxis presente se movimenta, desde que, ao postulado fictício de um dado a compreender, se substitua o exame de uma operação sempre afetada por determinismos e sempre a retomar, sempre dependente do lugar onde se efetua numa sociedade e, não obstante, especificada por um problema, métodos e uma função próprios” (CERTEAU, 2008, p. 48)

O pressuposto de que as determinações do lugar do historiador constroem seu

objeto – mas nem por isso deixa de ser um objeto a ser construído por regras e

métodos específicos – é um problema do método em sentido amplo, pois trata-se

tanto da delimitação formal daquilo convencionalmente chamado de “fonte” quanto

do significado de delimitar algo do passado 93.

Por fim algumas reflexões acerca do problema do sentido histórico no

contexto específico da constituição histórica racional de sentido em tensão com a

ausência de sentido do passado. Deteremos um pouco mais atenção a tal tema, pois

ele permitirá a reunião das questões precedentes e seu confronto com nossa leitura

do conceito de história de Walter Benjamin.

O historiador e teórico alemão Jörn Rüsen apresenta no Apêndice à edição

brasileira “Razão Histórica” algumas questões relacionadas a possibilidade da teoria

da história “identificar e descrever um tipo específico de racionalidade para a

história” (RÜSEN, 2001, p. 150) científica, possibilidade que deve dialogar com as

críticas contemporâneas ao modelo “clássico” de ciência. Um dos pontos fortes

destas críticas, segundo J. Rüsen seria a suposta oposição entre a narrativa

histórica e conhecimento científico, pois aquela conteria elementos que

93

Ainda nas palavras de Michel de Certeau: “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera, em regime diferente, os mitos que se constroem sobre um assassinato ou morte originária, e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer” (CERTEAU, 2008, p. 57). A definição da história de De Certeau reúne os três elementos que elencamos nestas considerações finais como perspectivas matizadas pelo conceito de história benjaminiano; a saber a co-pertença entre linguagem e história, a ampliação do conceito de método no sentido de problematizar a relação clássica entre sujeito e objeto e ainda, como veremos, a relação entre sentido histórico e a ausência de sentido do passado como tensão constitutiva da historiografia.

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invariavelmente estabeleceria uma relação de exclusão com a pretensa

cientificidade do conhecimento histórico. Nestas críticas, escreve Rüsen, “uma

qualidade estética da história é contraposta à racionalidade metódica de seu

conhecimento” (RÜSEN, 2001, p. 150).

Para responder a tal questionamento, J. Rüsen propõe a apresentação da

“racionalidade específica do conhecimento histórico” (RÜSEN, 2001, p. 151), isto é,

o teórico alemão propõe pensar o que ele chama de “qualidade estética” do

conhecimento histórico, representado por sua forma intrinsecamente narrativa, não

como exclusão em relação à cientificidade do conhecimento histórico, mas como a

peculiaridade de sua racionalidade: “a racionalidade do conhecimento histórico não

pode ser isolada de uma racionalidade política e de uma estética” (RÜSEN, 2001, p.

151).

O paradigma teórico proposto por Jörn Rüsen toma a inserção das dimensões

cognitiva, política e estética da constituição histórica de sentido como possibilidade

de apresentar a racionalidade típica do conhecimento histórico, onde “diversidade e

pluralidade não são incompatíveis com coerência” (RÜSEN, 2001, p. 170).

Na sua elaboração do paradigma teórico-historiográfico da ciência da história

Rüsen propõe a radicalização da “alteridade do passado” em “contraposição à auto-

afirmação histórica do presente” (RÜSEN, 2001, p. 169) bem como a crítica à

supremacia do agir humano pelo incremento da “consciência do sofrer” (RÜSEN,

2001, p. 70), do reconhecimento também da passividade como elementos

irrecusáveis da constituição histórica de sentido. Tais elementos contribuem para

com a percepção de que existem diversos tipos de racionalidade, que mesmo frente

à diversidade e complexidade das modalidades da constituição histórica de sentido

não necessita abrir mão de sua racionalidade própria e, por isso de sua

cientificidade específica. Tal perspectiva racional exige uma crítica ao paradigma

clássico de ciência, se fundamentando sobre uma pretensão de racionalidade que

“vai além de uma mera racionalidade metódica” (RÜSEN, 2001, p. 170). A própria

racionalidade, na perspectiva de Jörn Rüsen, passa a se fundamentar nestas

pretensões: “É racional articular o leque dos múltiplos tipos de racionalidade em uma

racionalidade própria ao pensamento histórico” (RÜSEN, 2001, p. 173-174).

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A narrativa histórica, ainda de acordo com Jörn Rüsen é um importante

exemplo desta racionalidade típica do conhecimento histórico: a experiência

histórica contemporânea exige como elemento de constituição de sentido a própria

ausência de sentido – e o Holocausto, para Rüsen, é o exemplo-limite dessa

negatividade (RÜSEN, 2001, p. 170-171). A estratégia estética da apresentação

narrativa da negatividade pela narrativa histórica deve preservar os potenciais de

sentido que emanam desta negatividade, desta ausência de sentido. Concluí Jörn

Rüsen:

“A significação do passado tornado presente como história tem de ser incondicionalmente preservada – e de maneira que o sentido do tempo, como fator de orientação da vida humana prática, vigorosamente evidenciado pelo constructo narrativo de uma história, vá além dos limites da experiência, possa mesmo contrapor-se à experiência histórica e se torne plausível. „Sentido‟ receberia a marca empírica e lógica da ausência e da falta, sem tornar-se, contudo, mero „vazio‟. [...] A narrativa histórica deve levar em conta essa dialética negativa da constituição do sentido mediante um modo de narrar – pela recusa e pela inversão das estratégias tradicionais da narrativa que constroem a história a partir da experiência histórica, e mediante uma reflexividade intensificada do modo narrativo, com a qual se demonstra o alcance limitado dos critérios de sentido utilizados. Pela integração da „inenarrabilidade‟ da história, como condição da narrativa histórica, a razão histórica torna-se modesta e apta a tomar conhecimento de algo diverso dela mesma” (RÜSEN, 2001, p. 173) 94.

Temos assim três questões candentes do debate do campo da teoria da

história que podem ser reconfiguradas ao serem imbricadas junto com o conceito de

história de Walter Benjamin. Frente às três problemáticas, realçamos três

características do conceito de história benjaminiano.

No que se refere à abertura à linguagem vimos que a categoria da origem

atribuiu ao seu conceito de história, atribuição cujo medium é sua filosofia da

linguagem, os elementos da “não-identidade” como “abertura” e “inacabamento

94

As referências de Jörn Rüsen à teoria da história de Walter Benjamin não são apenas implícitas, explicitamente, no próprio “Apêndice”, sua a dívida em relação à filosofia da história benjaminiana no que se refere às idéias acerca da “dialética negativa da constituição histórica de sentido” (RÜSEN, 2001, p. 172).

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constitutivo”. A disjunção permanente que a linguagem apresenta deve ser mantida

na produção historiográfica e teórica da história sob o imperativo da irrecusável

condição lingüística, portanto histórica, da produção do conhecimento histórico. Tal

condição não pode servir de argumento em favor da exclusão – pois seu limite

pertence à outra ordem – da cientificidade do conhecimento histórico, ao passo que

tampouco pode resolvê-la. Na terminologia benjaminiana: o conceito de história de

Walter Benjamin exige a decisão acerca de que a “idéia”, e sua manifestação

histórica pela tensão que a categoria da origem apresenta, “é o fundamento do

verdadeiro conteúdo científico, em sua expressão lingüística” (BENJAMIN, 1984, p.

64). O fundamento da ciência é sua linguagem, medium da produção e reprodução

do conhecimento – que pertence a uma ordem distinta daquela evocada pelo caráter

simbólico das palavras – que não faz referência à rememoração – pois àquela é

atribuído o acabamento, a esta, o inacabamento – mas nem por isso deixa de ter o

sentido da lembrança da palavra logos.

Deparamo-nos também com a questão acerca do método historiográfico, ou,

em outras palavras, da questão acerca da possibilidade de escrever sobre o

passado – para além do como e das diretrizes dessa escrita. Na perspectiva do

conceito de história de Walter Benjamin a verdade é a manifestação no descontínuo

reino das Idéias e, como justamente manifestação, leva o traço desta

descontinuidade. A origem apresenta a descontinuidade e a transitoriedade como a

marca da empiria inalienável à exposição das idéias e à salvação dos fenômenos. A

dignidade da palavra anunciada pela filosofia da linguagem de Walter Benjamin

aparece em seu conceito de história como a dignidade do mundo empírico, das

coisas. A crítica aos métodos das ciências clássicas traz – assim como a categoria

da origem trouxe ao centro da filosofia benjaminiana seu conceito de história – a

experiência da materialidade do mundo para o centro do conceito de história de

Walter Benjamin.

Por fim o conceito de história de Benjamin pode reconfigurar a discussão

acerca do sentido do passado, da possibilidade da significação do passado

ultrapassar, quando assim for exigido, os limites da própria experiência histórica.

Tanto as reflexões sobre a linguagem quanto àquelas acerca da materialidade do

mundo a qual se referem a este conceito de história que toma a significação do

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passado como encargo, mesmo que esta significação, mesmo que o sentido do

passado ultrapasse e se contraponha a experiência histórica. A dignidade atribuída à

linguagem e ao mundo das coisas se desdobra sobre o passado, cujo sentido ou

mesmo a ausência de sentido não deve ser recusada em favor de qualquer

experiência histórica, nem mesmo da narrativa historiográfica a qual nos

costumamos chamar de história.

O conceito de história de Walter Benjamin é o elemento que, tendo como

medium sua peculiar filosofia da linguagem e voltando sua atenção à fraternidade

entre linguagem e pensamento, reconhece também pertencer ao mesmo tipo de

vida, melhor, de sobrevida da linguagem, da materialidade e do passado. Os três,

mesmo pertencentes à ordens distintas, portam um sentido afim. Um sentido

relacionado à algo “tão impossível de reencontrar quanto de esquecer”.

Mas a questão acerca da possibilidade de transpor o conceito de história de

Walter Benjamin para as discussões do campo da teoria da história ainda é

profundamente problemática: a mera transposição das idéias do filósofo alemão

acerca da história não se adéqua a qualquer perspectiva historiográfica que não

problematize tal transposição 95. A crítica deve ser a mortificação das obras, pois

apenas em outra vida elas poderão continuar a viver. Na perspectiva benjaminiana a

problematização daquela transposição, tal como a tradução, corrói tanto o original

quanto a tradução – tanto a filosofia quanto a teoria que aqui se confrontam – em

favor de um movimento maior, que é sempre movimento, a reflexão, aquela espécie

de travessia em meio a qual o real se dispõe.

Refletir sobre o conceito de história de Walter Benjamin a partir do campo da

história não deve jamais significar que tomamos sua filosofia como instrumento

argumentativo ou como mero exemplo da negatividade. O conceito benjaminiano de

história deve ser aquele elemento permanentemente desagregador imerso nas

95

O próprio Rüsen reconhece as dificuldades de responder a questão da constituição negativa de sentido: “Como realizar essa dialética negativa da constituição de sentido na especificidade da narrativa histórica é uma questão aberta” (RÜSEN, 2001, p. 172). O eminente historiador e teórico alemão ao elaborar suas reflexões resguarda (eficientemente) a cientificidade peculiar do conhecimento histórico ao reconhecer o seu limite. O conceito benjaminiano de história se apresenta além desse limite e a reflexão teórica que tente de algum modo atualizá-lo ao seu campo deve reconhecer tal perspectiva, ao preço da simplificação da filosofia benjaminiana.

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reflexões do campo da teoria da história. A categoria da origem, neste espaço de

uma crítica permanente, que não permite a cristalização teórica de qualquer

resolução, seria aquele elemento – no que se refere à constituição histórica de

sentido – que inscreve no sentido a “marca empírica e lógica da ausência e da falta”

(RÜSEN, 2001, p. 173, grifos nossos), que apresenta a disjunção inerente a

qualquer “realidade” do passado, bem como inerente à qualquer discurso histórico,

inclusive, o do campo da teoria da história.

Se o trabalho que aqui se encerra foi apresentado como transitório – como

passagem entre a filosofia da linguagem e o conceito de história de Walter Benjamin

e como, ao final, tradução do conceito de história benjaminiano e algumas

perspectivas do campo da teoria da história – talvez a atualidade da filosofia

benjaminiana se apresente. Atualidade pronta a se desvanecer frente a outras

demandas, no interior de um movimento maior, o da reflexão.

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Referências Obras de Walter Benjamin Citadas no Trabalho

BENJAMIN, Walter. As afinidades Eletivas de Goethe. In: BENJAMIN, Walter.

Ensaios Reunidos: Escritos Sobre Goethe. Tradução de Mônica Krausz Bornebusch,

Irene Aron e Sidney Camargo; supervisão e notas de Marcus Vinicius Mazzari. São

Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.

________________. Passagens. Edição alemã de R. Tiedemann, organização e

edição brasileira de Willi Bolle; colaboração na edição brasileira de Olgária C. F.

Matos; tradução do alemão de Irene Aron; tradução do francês de Cleonice P. B.

Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo,

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