301
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO VOZES DA ORTODOXIA O Sínodo de Missouri e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil: processos de formação e relações nos contextos da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Ciência da Religião por Arnaldo Érico Huff Júnior. Orientador: Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias Juiz de Fora 2006

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE …livros01.livrosgratis.com.br/cp010968.huff.pdf · ao contrário, assegurava que os cristãos tinham uma tarefa social e política

  • Upload
    buidan

  • View
    230

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO

    VOZES DA ORTODOXIA

    O Snodo de Missouri e a Igreja Evanglica Luterana do Brasil: processos de formao e

    relaes nos contextos da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio como requisito parcial obteno do ttulo de doutor em Cincia da Religio por Arnaldo rico Huff Jnior. Orientador: Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias

    Juiz de Fora

    2006

  • Livros Grtis

    http://www.livrosgratis.com.br

    Milhares de livros grtis para download.

  • Para meus pais, Pastor Arnaldo e Dona Lgia, pelo exemplo de

    vida e de dedicao s pessoas e ao seguimento de Jesus,

    bem como pelo amor que deles tenho recebido.

  • Agradecimentos

    So vrias as pessoas s quais se deve agradecer ao final de um curso de doutorado.

    Pessoas que tiveram importncias diferentes. Umas um papel mais acadmico, outras mais

    afetivo. Ainda outras, ambos. Todas fundamentais.

    Comeo por agradecer minha namorada, Deliane, pelo abrigo que me deu em seu

    corao a cada momento, e tambm pelo apoio, compreenso, incentivo e pacincia quem j

    escreveu um trabalho acadmico sabe que essa uma qualidade importante; bem como sua

    famlia pelas diversas acolhidas sempre carinhosas.

    Tambm aos muitos amigos e colegas que tornaram minha estada em Juiz de Fora uma

    aventura prazeirosa. De modo muito especial: aos amigos da universidade, Luis e Ana, Gigi,

    Eduardo e Snia, Zwinglio e Elisa, Quico, Paulo e Ana, nio, Ednilson, Paulo Webler,

    Vernica, Leandro; aos amigos da msica: Roger, Nanda, Rafa e Gustavo; bem como aos

    amigos da Comunidade Evanglica Luterana Redentor, na pessoa do pastor Lademir.

    Algumas pessoas de longe permaneceram tambm por perto. Valiosamente: Gugu,

    Augusto, Volmir e Tita, Agenor, Fred Pieper, Luciano e Suzana, Csar, Xandy, Dani, Jerson.

    Ao professor Zwinglio, orientador e amigo, devo uma deferncia especial pela

    sabedoria em me deixar livre estando ao mesmo tempo presente.

    Aos demais professores do PPCIR, minha gratido pela acolhida concomitantemente

    profissional e amiga, especialmente a Lus Dreher, Francisco Pereira Neto, Marcelo Camura

    e Ftima Tavares. Tambm a Antnio Celestino, pela ateno na secretaria.

    Menciono ainda os professores e amigos que me acolheram em Amsterdam, na Vrije

    Universiteit, aos quais devo muito: Andr Droogers, Marjo de Theje e Tijo Salverda, de modo

    especial.

    Outras pessoas foram tambm generosas e contriburam na elaborao deste trabalho.

    Cito a Anneliese Dalmoro, bibliotecria do Seminrio Concrdia, a Ana van Meegen, da

    biblioteca da Faculdade de Cincias Sociais da Vrije Universiteit Amsterdam, ao prof. Carlos

    Moris, do Instituto Histrico da IELB, e tambm aos amigos Roberto Radnz e Eliseu

    Teichmann, que gentilmente me enviaram por e-mail seus trabalhos de doutorado e de

    mestrado, respectivamente.

  • Professores que estiveram comigo em outras pocas tiveram tambm papel

    fundamental em minha formao. Devo agradecer sincera e especialmente a Nelson Kirst, na

    EST, a Dinarte Belato, na UNIJU, e a Arnaldo Schler (falecido em 1999), no Seminrio

    Concrdia.

    Agradeo ainda aos funcionrios, membros e amigos da Comunidade Evanglica

    Luterana da Paz, do CENASA e do SEMEAR, por terem tantas vezes me abrigado

    proporcionando infraestrutura e afeto, tambm desta vez durante as pesquisas para a tese em

    Porto Alegre e So Leopoldo.

    Menciono finalmente s agncias de fomento FAPEMIG e CAPES, que tornaram este

    doutorado possvel em termos materiais, e ao povo brasileiro, que com seu trabalho mantm o

    ensino pblico gratuito.

    A todos um abrao sincero e minha gratido,

    Arnaldo rico Huff Jnior,

    Juiz de Fora, 31 e julho de 2006.

  • O que nascido da carne carne; o que nascido do Esprito esprito. No te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas no sabes de onde vem, nem para onde vai; assim todo o que nascido

    do Esprito. Jesus

    O que torna o protestantismo protestante o fato de ele poder transcender o prprio carter religioso e confessional e a

    impossibilidade de se identificar completamente com qualquer de suas formas histricas particulares ... O protestantismo tem

    um princpio situado alm de suas realizaes. Paul Tillich

    Quem sabe se a terra segue o seu destino, bola de menino para sempre azul... Quem sabe o homem mata o lobo homem e

    olha o olhar do homem que seu igual... Quem sabe a festa chega floresta e o homem aceita a mata e o animal... Quem

    sabe a riqueza e toda beleza estar nas mesas da terra do sul... Eu sou a atlntica dor plantada no lado sul...

    Milton Nascimento

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 1

    1. A IELB e o problema da pesquisa ........................................................................................ 2

    2. O que j se produziu e a abordagem desta pesquisa ........................................................... 11

    3. Um modo de ver a histria da IELB ................................................................................... 17

    3.1. Mito e teologia na forma do discurso ............................................................................... 17

    3.2. A prtica discursiva religiosa entre estruturas e eventos .................................................. 21

    3.3. Elaborao de memrias e produo de identidades na histria ...................................... 29

    4. Um modo de fazer a histria da IELB ................................................................................ 39

    4.1. As fontes e seu tratamento ............................................................................................... 39

    4.2. Escrita e organizao do texto .......................................................................................... 44

    5. O locus poltico deste discurso ............................................................................................ 48

    PARTE I: PROCESSOS FORMATIVOS DO LUTERANISMO DA LC-MS E DA IELB....52

    CAPTULO 1: FORMAES DO LUTERANISMO NO CONTEXTO EUROPEU .......... 53

    1. O processo de Confessionalizao ...................................................................................... 53

    2. Lutero e Melanchthon: justificao pela f, confisses e nova durao ............................. 55

    3. A doutrina dos dois reinos e o mundo social ...................................................................... 63

    4. A Confessionalizao territorial .......................................................................................... 68

    5. A Era da Ortodoxia e a influncia da filosofia .................................................................... 71

    6. Ortodoxia e Pietismo ........................................................................................................... 76

    7. O Racionalismo entre a Ortodoxia e o Pietismo ................................................................. 80

    8. Algumas consideraes ....................................................................................................... 84

  • CAPTULO 2: O SCULO XIX E A FORMAO DO SNODO DE MISSOURI E DA IELB ........................................................................................................................................ 87

    1. Transformaes nos territrios alemes sob a Revoluo Francesa ................................... 87

    2. Restaurao modernizante e represso ................................................................................ 90

    3. A Unio Prussiana ............................................................................................................... 93

    4. Despertamento e Confessionalismo: uma outra reao ...................................................... 95

    5. O Stephanismo .................................................................................................................. 101

    6. Imigrao e crise nos Estados Unidos ............................................................................... 107

    7. C. F. W. Walther e a fundao do Snodo de Missouri ..................................................... 113

    8. A imigrao alem e os primrdios do Luteranismo no Brasil ......................................... 126

    9. O incio das atividades do Snodo de Missouri no Brasil ................................................. 129

    10. Algumas consideraes ................................................................................................... 134

    PARTE II: O SNODO DE MISSOURI E A IELB EM DUAS CONJUNTURAS NO BRASIL ................................................................................................................................ 139

    CAPTULO 3: O SNODO DE MISSOURI NO BRASIL DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ............................................................................................................................ 140

    1. Teuto-estadunidenses, teuto-brasileiros e a I Guerra ........................................................ 140

    2. Proibio do idioma alemo, nacionalidade, confessionalidade ....................................... 145

    3. Alemes, no, Luteranos! .................................................................................................. 151

    4. Em portugus, ingls ou alemo, importava a pregao da Palavra ................................. 157

    5. Os missourianos e os riograndenses .................................................................................. 161

    6. Os missourianos e o poder pblico ................................................................................... 169

    7. Uma investida extramuros: o incio da misso em Lagoa Vermelha ................................ 174

    8. Os missourianos e o Catolicismo ...................................................................................... 176

    9. Roma, o Anticristo: Hasse e os contornos de um discurso fundamentalista ..................... 185

    10. Algumas consideraes ................................................................................................... 194

  • CAPTULO 4: A IGREJA EVANGLICA LUTERANA DO BRASIL AO FINAL DO REGIME MILITAR .............................................................................................................. 197

    1. O Brasil dos anos 80 ......................................................................................................... 197

    2. A IELB no Brasil dos anos 80 .......................................................................................... 200

    3. Ainda luteranos e confessionais ........................................................................................ 207

    4. Um af evangelstico ......................................................................................................... 212

    5. Luteranos, sim, mas tambm cidados .............................................................................. 222

    6. Uma aproximao do poder pblico ................................................................................. 233

    7. IELB e IECLB em dilogo ................................................................................................ 241

    8. Guerra e paz com o Catolicismo ....................................................................................... 247

    9. Confisso, cincia e demais religies ............................................................................... 254 10. Algumas consideraes ................................................................................................... 260

    CONCLUSO ...................................................................................................................... 262

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 270

  • Resumo

    A tese trata dos processos de formao da Igreja Luterana - Snodo de Missouri e da

    Igreja Evanglica Luterana do Brasil e de suas relaes socioculturais nos contextos da I

    Guerra Mundial e do final do Regime Militar. A questo central gravita em torno da

    construo de discursos, memrias e identidades do Luteranismo confessional e ortodoxo

    destes grupos na Alemanha e nos Estados Unidos e de sua posterior recriao no Brasil.

    Abstract

    The dissertation deals with the processes of formation of The Lutheran Church -

    Missouri Synod and the Evangelical Lutheran Church of Brazil, focusing on its sociocultural

    relations in the differing contexts of World War I and the final phase of the Military Regime.

    The central question is how the construction of discourses, memories and identities of these

    groups orthodox and confessional Lutheranism happened both in Germany and the United

    States and how it was later recreated in Brazil.

  • SIGLAS

    AC Apologia da Confisso de Augsburgo

    CA Confisso de Augsburgo

    IECLB Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil

    IELB Igreja Evanglica Luterana do Brasil

    LC-MS The Lutheran Church-Missouri Synod

    MC Mensageiro Christo

    ML Mensageiro Luterano

    ULBRA Universidade Luterana do Brasil

  • INTRODUO

    De fato, luteranismo no tem nada que ver seja com poltica, ou Kultur, ou zonas de interesse, ou qualquer outro assunto deste mundo (Johannes Kunstmann, 1918).1 Enquanto vivem neste mundo, os cristos no podem afastar-se do contexto scio- poltico em que Deus os colocou e tm a tarefa sagrada importante de atuarem social e politicamente para melhorar o mundo em que vivemos. (Johannes Gedrat, 1984).2

    A despeito das diferenas, as frases acima tm algo em comum. Para alm de seus

    primeiros nomes, os respectivos autores compartilhavam alguns dados significativos, apesar

    das notrias diferenas em termos de contedo, viso de mundo e momento histrico.

    Primeiramente, a pertena institucional de ambos era a mesma: a Igreja Evanglica Luterana

    do Brasil (IELB), na qual ocuparam posies de liderana, destacando-se o cargo de

    presidente. Some-se a isso o fato de ambos possurem ascendncia alem. E acresa-se a

    filiao de ambos a um tipo de religio que chamaremos de Luteranismo Confessional

    Ortodoxo, trao que conferiu igreja a que pertencem posturas doutrinrias notadamente

    uniformes ao longo de sua histria. Sublinhe-se por fim que, por serem ambos pastores-

    lderes, eram representantes do discurso oficial de sua igreja.

    As diferenas nos pronunciamentos so, por outro lado, latentes. Kunstmann

    afirmava que o Luteranismo no tinha nada que ver com as questes deste mundo. Gedrat,

    ao contrrio, assegurava que os cristos tinham uma tarefa social e poltica sagrada. como

    se o primeiro apontasse somente para o cu e o segundo tambm para a terra. Eram modos

    diferentes tanto de entender o lugar da religio na sociedade, quanto os seus prprios lugares

    enquanto seres humanos. Note-se tambm que, apesar de ambos se pronunciarem desde um

    mesmo lugar, isto , o discurso oficial da IELB, ao passo que Kunstmann se referia apenas ao

    universo do Luteranismo, Gedrat tinha como referncia o universo do Cristianismo como um

    todo. Eram, tambm nesse sentido, perspectivas notoriamente diferenciadas.

    1 MC, 31/10/1918, suplemento para leitores em ingls: In fact, Lutheranism has nothing to do whatsoever with politics, or Kultur, or zones of interest, or any other affair of this world. [Todas as tradues so do autor]. 2 ML, 01-02/1984, p. 7-8.

  • 2

    Antes de continuarmos por perguntar o que mudou e o que no mudou relativamente

    s concepes e prticas religiosas e polticas da IELB ao longo do sculo XX, convm que

    esclareamos algo sobre ela enquanto organizao e que acerquemos, ainda que de modo

    inicial, o que representa em termos religiosos e tnicos, para que ento possamos delimitar o

    problema mais precisamente, aclarar nossa abordagem terico-metodolgica, explicar o

    tratamento das fontes, a forma deste escrito e apontar o locus desde o qual escrevemos.

    1. A IELB e o problema da pesquisa

    O Luteranismo veio ao Brasil com os imigrantes europeus, principalmente a partir

    do sculo XIX, desde 1824. Atualmente, as organizaes mais expressivas que representam o

    Luteranismo no pas so a Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil (IECLB), que

    conta com cerca de 800 mil membros, e a Igreja Evanglica Luterana do Brasil (IELB), com

    perto de 200 mil.3 Alm destas, a tradio luterana conta no pas com a Associao de

    Comunidades Luteranas Livres e com a Igreja Evanglica Congregacional do Brasil, tambm

    existindo ainda algumas comunidades luteranas livres, no modelo das Freigemeinden. Todas

    essas denominaes tm, entretanto, sua origem em um mesmo povo imigrante e razes

    comuns no sculo XIX.4 Dentre estas, alm da IELB, tambm a IECLB, por sua importncia

    nos processos que analisaremos, receber nossa ateno.

    A IECLB fruto direto da emigrao dos territrios alemes para o Brasil, tendo

    sido fundada, em 1949, pela unio entre o Snodo Riograndense (criado em 1886), o Snodo

    Evanglico-Luterano de Santa Catarina, Paran e outros Estados da Amrica do Sul (criado

    em 1905), a Associao de Comunidades Evanglicas de Santa Catarina e Paran (1911) e o

    Snodo Evanglico do Brasil Central (1912). O processo conferiu ao grupo um carter deveras

    plural, pelo fato de existirem entre eles tanto luteranos quanto calvinistas, entre outros, e

    tambm de ter havido entre seus pastores tanto aqueles que obtiveram formao teolgica em

    universidades quanto os que a receberam em academias de misso.5

    A IELB, diferentemente, foi o resultado das atividades missionrias de um nico

    snodo teuto-estadunidense, o Deutschen Evangelisch-Lutherischen Synode von Missouri,

    Ohio und andern Staaten (Snodo Evanglico Luterano Alemo de Missouri, Ohio e outros

    3 Ren GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 10. 4 Martin DREHER, Histria do povo luterano, p. 49. 5 Ricardo RIETH, Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB, p. 259-261; tb. Martin DREHER, Histria do povo luterano, p. 52.

  • 3

    Estados), fundado em 1847, atualmente conhecido como The Lutheran Church - Missouri

    Synod, LC-MS (A Igreja Luterana - Snodo de Missouri).

    Deu-se assim que, em 1900, sabendo da presena de alemes luteranos no sul do

    Brasil, o Snodo de Missouri passou a enviar missionrios a fim de prestar atendimento

    religioso aos imigrantes teutos no Rio Grande do Sul. Dessa atividade surgiu, em 1904, o 15o

    Distrito do Snodo de Missouri, que se tornou, em 1920, Snodo Evanglico Luterano do

    Brasil e, em 1954, Igreja Evanglica Luterana do Brasil.6

    Segundo dados oficiais da IELB, os membros a ela filiados esto divididos em mais

    de 1.800 congregaes e pontos missionrios, atendidos por mais de 500 pastores. Tambm

    afiliadas ao grupo esto centenas de escolas, o Seminrio Concrdia, a Editora Concrdia, um

    nmero pequeno mas crescente de instituies de servio social e a Universidade Luterana do

    Brasil (ULBRA) em 2001, a quarta no conjunto das universidades do pas em nmero de

    alunos e a terceira entre as particulares.7 Alm disso, o grupo mantm uma programao

    diria de mensagens pelas rdios do pas, coordenada pela organizao Cristo Para Todas as

    Naes (CPTN). 8

    Em termos de relaes internacionais, a IELB participa do International Lutheran

    Council (ILC) [Conselho Luterano Internacional], organizao de igrejas luteranas

    confessionais alternativa Lutheran World Federation (LWF) [Federao Luterana Mundial],

    de posturas teolgicas mais diversificadas.9

    A clula bsica da estrutura organizacional da IELB a congregao, comunidade

    de luteranos formalmente constituda e reunida sob a responsabilidade de uma diretoria local e

    de um ou mais pastores. Duas ou mais congregaes unidas formam uma parquia.

    Congregaes e parquias unidas formam um distrito. Para a administrao dessa agremiao

    de congregaes, h uma Diretoria Nacional, eleita para um mandato de 4 anos. Acima da

    Diretoria Nacional, um Conselho Diretor, composto por representantes dos distritos. E ainda

    acima do Conselho Diretor, a Conveno Nacional, composta por representantes das

    congregaes, a qual responsvel tambm pela eleio da Diretoria Nacional. Ao lado desta

    estrutura, existem algumas agremiaes em nvel nacional internas ao grupo, chamadas de

    organizaes auxiliares, so elas: a Liga de Servas Luteranas do Brasil (LSLB), a Liga de

    6 Mrio L. REHFELDT, Um gro de mostarda, p. 110. Walter STEYER, Os imigrantes alemes no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 14. Quanto datao da primeira mudana no nome do grupo, h discordncia entre autores: Rehfeldt situa-a em 1920, Steyer, em 1937. 7 As informaes sobre a universidade foram extradas da Folha de So Paulo por Ren GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 10. 8 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). 9 Idem.

  • 4

    Leigos Luteranos do Brasil (LLLB), a Juventude Evanglica Luterana do Brasil (JELB), a

    Associao Nacional de Educao Luterana (ANEL) e a Associao de Entidades Sociais da

    IELB (AESI).10

    Um dos traos que tem acompanhado a IELB sua identidade tnica teuta. Assim,

    por exemplo, ainda que a organizao esteja presente atualmente em todos os estados da

    Federao e no Distrito Federal (alm de manter uma comunidade no Uruguai e de ter

    empreendido misses na Argentina, Paraguai e Portugal, hoje igrejas independentes), h uma

    maior concentrao de congregaes da IELB nos estados do Rio Grande do Sul, Santa

    Catarina, Paran e Esprito Santo, no por coincidncia, pontos de referncia da imigrao

    alem. De outra forma, dos 815 pastores arrolados pela IELB em seu site em 2005, somente

    cerca de 10% tm sobrenomes reconhecidamente portugueses, como Machado, Oliveira,

    Santos, Silva ou Souza, enquanto que os demais portam principalmente sobrenomes alemes,

    como Hoffmann, Krger, Lange, Muller, Schmidt, Schneider ou Sonntag. Traos tnicos

    podem, portanto, ser percebidos sem esforo at os dias atuais.11

    A caracterstica da instituio que mais nos interessa, porm, articula-se em termos

    religioso-doutrinrios. Conforme o Artigo 3o de seus Estatutos, o grupo define-se da seguinte

    maneira: A IELB aceita todos os livros cannicos das Escrituras Sagradas, do Antigo e do

    Novo Testamento, como palavra infalvel, revelada por Deus. Como nica exposio correta

    da Escritura Sagrada, ela aceita os livros simblicos da Igreja Evanglica Luterana, reunidos

    no Livro de Concrdia do ano mil quinhentos e oitenta (1580), e no admitir alterao

    alguma desta norma.12

    Ao subscrever, assim, completamente o Livro de Concrdia, o qual contm

    confisses de f e doutrina do Luteranismo, a IELB define-se oficialmente como uma igreja

    luterana confessional. Para fins de tratamento terico, opto por acrescentar o termo ortodoxo

    categoria anterior, a fim de diferenciar entre a confessionalidade da IELB e a de outros

    grupos que tambm fazem uma opo confessional sem serem necessariamente ortodoxos,

    como o caso da IECLB, que j em seu nome se apresenta como Igreja Evanglica de

    Confisso Luterana no Brasil. A IELB no , portanto, a nica igreja luterana a dizer-se

    confessional. A IECLB tambm o , porm com outra compreenso de confisso. A

    10 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). 11 A partir de dados extrados de IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial). Muitos destes 815 no esto envolvidos diretamente em atividades pastorais, o que explica a diferena entre os pastores arrolados e os que so efetivamente contados entre os mais de 500 mencionados anteriormente. Tb. Arnaldo E. HUFF JNIOR, The orthodoxy must go on...: official discourses and political identities among confessional German Lutherans in Brazil, p. 1. 12 IELB, Estatutos, regimento e cdigo de tica pastoral, p. 15.

  • 5

    confessionalidade da IELB reveste-se, na verdade, de traos diferenciados, pelos quais torna-

    se fator central a definir pertenas e prxis.

    Pode-se entender, de modo ideal, que o Luteranismo Confessional Ortodoxo um

    tipo de Luteranismo que tem oficialmente como normas incondicionais de f e prtica: 1) a

    Bblia, considerada como a palavra de Deus inspirada e infalvel e 2) as Confisses Luteranas

    agrupadas no Livro de Concrdia de 1580, consideradas como a verdadeira exposio de tal

    palavra de Deus. Os seguintes escritos compem o Livro de Concrdia: os trs Credos

    Ecumnicos, a Confisso de Augsburgo (1530), a Apologia da Confisso de Augsburgo

    (1530), os Artigos de Esmalcalde (1537), o Catecismo Menor (1529), o Catecismo Maior

    (1529) e a Frmula de Concrdia (1577).13 So estes os Livros Simblicos do Luteranismo. A

    assuno de que a nica interpretao correta da Bblia, a infalvel revelao de Deus, est

    apresentada no Livro de Concrdia o critrio oficial para pertena individual e grupal s

    instituies do Luteranismo de tipo ortodoxo-confessional, bem como um fator central na

    busca pela manuteno da unidade de igrejas e organizaes.

    Na verdade, a identificao da igreja-me Snodo de Missouri e da IELB com a

    questo da inerrncia verbal da Bblia marcou profundamente suas construes identitrias

    durante o sculo XX, refletindo a tenso da busca de reconciliar o Luteranismo Ortodoxo a

    questes contemporneas. Conforme Mary Todd, o Snodo de Missouri redefiniu durante o

    sculo XX sua identidade confessional a fim de assegurar a imutabilidade de suas crenas

    diante das rpidas foras de mudana histrica que estiveram em movimento. A proibio do

    ministrio feminino no grupo, assentada sobre o argumento de uma fixa subordinao da

    mulher em funo da defesa de uma ordem da criao, , segundo a autora, um exemplo de

    tal reao, que considera relativamente recente.14 O que aconteceu na IELB nesse perodo

    deu-se de modo semelhante, a saber, um processo de articulao s transformaes na

    sociedade brasileira e mundial, por vezes na contramo das mesmas, a fim de garantir a

    propagao de suas verdades religiosas e a perpetuao do grupo. So, portanto, identidades

    construdas nos contatos e trocas sociais.

    13 LIVRO DE CONCRDIA, passim. 14 Mary TODD, Authority vested: a story of identity and change in the Lutheran Church-Missouri Synod, p. 3-5. A posio poltico-acadmica da autora fica clara j na introduo do livro, sua tese de doutorado: A narrative of inconsistency records the struggle of this historically ethnic denomination to define itself over against the rapid social changes of the twentieth century, changes that have threatened both its intent and its attempt to remain in the world but not of the world (p. 5) [Uma narrativa de inconsistncia registra a luta desta denominao historicamente tnica para definir-se diante das rpidas mudanas sociais do sculo vinte, mudanas que tm ameaado ambas, sua intencionalidade e sua busca por permanecer no mundo sem ser do mundo].

  • 6

    H, nesse contexto, como que um ncleo duro e aglutinador das crenas da IELB e

    da LC-MS, o corao de seu sistema religioso oficial e herana forte da Reforma do sculo

    dezesseis: a crena de que o ser humano salvo somente pela f por meio de Jesus, e no por

    qualquer tipo de boas obras. A salvao eterna, nessa viso, fruto exclusivo da graa e

    compaixo de Deus, ao passo que as obras tornam-se uma conseqncia da vida crist, no

    uma necessidade para alcanar a Deus. De acordo com tal concepo, Deus quem vem aos

    homens, e no os homens que a ele chegam. A sustentao dessas crenas garantida pelo

    entendimento de que elas esto reveladas na Bblia diretamente por Deus, em sua palavra

    inspirada e infalvel, a qual foi, por sua vez, exposta corretamente apenas nas Confisses

    Luteranas de 1580. A verdadeira igreja de Cristo na terra , por conseguinte, somente aquela

    que assim se posicionar. Em tais crenas no so admitidas alteraes de nenhum tipo e os

    pastores devem atender ao chamado divino de atalaias e propagadores dessa verdade.15 Ao

    redor desse ncleo duro foram sendo derivadas e elaboradas doutrinas, discursos, memrias e

    identidades que fundamentam aes e polticas individuais e grupais, e que ao mesmo tempo

    constituem outros ncleos, relativos, por exemplo, s esferas da educao, da misso, da

    diaconia, etc. O todo desse conjunto forma uma estrutura que fundamenta a IELB enquanto

    instituio. Atravs de tal estrutura cultural e social as pessoas, ento, elaboram sentidos nas

    situaes concretas da vida. Nesse processo, todavia, essa prpria estrutura colocada em

    prtica e re-vista, de modo que pode sofrer deslocamentos, rearranjos e mesmo

    transformaes mais ou menos substanciais, numa dinmica no necessariamente linear ou

    evolutiva. E comeamos, assim, a delinear nosso problema.

    Vejamos um exemplo. As concepes religiosas do ncleo duro do Luteranismo

    Confessional no so novas e podiam j ser encontradas, ao menos em parte, em Lutero, no

    sculo XVI. De fato, o modo como os luteranos constroem a memria de seu lder carismtico

    faz dele uma figura central na constituio de suas identidades grupais e individuais. Dizer-se

    luterano, diferentemente de dizer-se catlico, assembleiano, presbiteriano, umbandista ou

    batista, constitui uma identidade que principia por atrelar-se ao prprio fundador do

    movimento, figura central da reforma alem: Martinho Lutero.

    Um dos fatores de convergncia dessas identidades o braso conhecido como rosa

    de Lutero, criado e explicado pelo prprio reformador.

    15 IELB Igreja Evanglica Luterana do Brasil (site oficial).

  • 7

    (Disponvel em: . Acesso em: 15/08/2005)

    Sobre a rosa, explicou Lutero:

    Primeiro, deve haver uma cruz preta dentro de um corao o qual retm a sua cor natural para que eu seja lembrado que a f no Crucificado nos salva. Pois quem cr de corao ser justificado (Romanos 10.10). Embora seja uma cruz preta, que mortifica e que tambm deve causar dor, ela deixa o corao em sua cor natural. Ela no corrompe a natureza, isto , ela no mata, mas mantm vivo. "O justo viver por f" (Romanos 1.17), mas pela f no Crucificado. Tal corao deve estar no meio de uma rosa branca, para mostrar que a f d alegria, conforto e paz. Em outras palavras, ela coloca o crente em uma rosa branca, de alegria, pois esta f no d paz e alegria como o mundo d (Joo 14.27). por isso que a rosa deve ser branca, e no vermelha, pois o branco a cor dos espritos e dos anjos (conforme Mateus 28.3; Joo 20.12). Tal rosa deve estar numa rea de azul celeste, simbolizando que tal alegria em esprito e f o comeo da futura alegria celestial, que j comea, mas obtida em esperana, pois ainda no revelada. Ao redor dessa rea est um crculo dourado, simbolizando que tal bno no cu dura para sempre; sem fim. Tal bno vai alm de toda a alegria e bens, assim como o ouro o melhor metal, o mais valioso e precioso. Este o meu compendium theologiae [o sumrio da teologia]...16

    A imagem discursiva e iconogrfica criada por Lutero, publicada na pgina oficial

    da IELB na internet, ainda hoje um lugar importante de convergncia identitria entre

    luteranos no mundo todo, dada sua capacidade de sntese das crenas grupais. Tais

    identidades, todavia, no adquirem necessariamente um mesmo contedo ou uma mesma

    forma, como vemos, por exemplo, no logotipo da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

    16 IELB - Igreja Evanglica Luterana do Brasil (Site oficial).

  • 8

    (Disponvel em: . Acesso em: 15/08/2005)

    O logotipo indicativo dos modos pelos quais uma ortodoxia religiosa pode ser

    designed e redesigned, e de como antigos contedos em formas novas podem embasar

    identidades grupais.17 Trata-se de uma adequao de Lutero s necessidades de marketing do

    mundo capitalista.

    De fato, o Luteranismo da IELB no revela anlise histrica a unanimidade que

    seu discurso oficial sustenta. Basta que vejamos as declaraes citadas na epgrafe. Ao lado

    de permanncias seculares, manifestam-se, tanto sincrnica quanto diacronicamente, fissuras,

    descontinuidades, possibilidades latentes ou reprimidas de transformao ou divergncia. Se

    existem, assim, na IELB, crenas, doutrinas, discursos e modos de agir que remontam

    Reforma e a Lutero ou s tradies do Cristianismo bblico, estas estruturas estiveram e esto,

    ao mesmo tempo, sujeitas a reformulaes e interpretaes locais conforme a realidade

    histrica em que forem inseridas e vividas. H como que uma via de mo dupla entre o que se

    entende como herana e tradio e as dinmicas da existncia histrica. Assim, se por um

    lado, as doutrinas e teologias so constantemente reforadas no ritual e na educao, e

    histrias hericas dos momentos de origem das crenas so contadas e recontadas, em

    processos que tendem a confirmar e garantir a permanncia da confessionalidade ielbiana; por

    outro lado, estas estruturas so constantemente desafiadas atualizao, negociadas e

    disputadas internamente, no seio da prpria igreja, e externamente, na fronteira com outros

    grupos e estruturas. O que pode ou no ocasionar transformaes de maior ou menor alcance.

    Dito isso, as questes centrais que nos acompanharo nesse estudo so as seguintes:

    Como se deu a formao desse Luteranismo Confessional Ortodoxo? Como pastores e lderes

    da IELB construram tal Luteranismo no Brasil? Que percepes acerca do lugar da igreja na

    sociedade foram geradas nesse contexto? Para recortar a espessura destes processos,

    tematizaremos a produo de discursos, identidades e memrias.

    17 Jeremy STOLOW, Designing orthodoxy: paradoxes of authenticity and addressivity in a Jewish orthodox press; tb. Arnaldo rico HUFF JNIOR, Imagens de Lutero no luteranismo brasileiro: polticas e identidades na Igreja Evanglica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Ps-Ditadura Militar.

  • 9

    Propomos, com essas questes, um olhar de problematizao por sobre uma igreja

    que tem sido considerada freqentemente como um bloco monoltico e unnime. Queremos

    observar num recorte de tempo longo o surgimento de seus discursos em disperso,

    descontinuidade e rarefao, como dizia Foucault.18 Como veremos, uma ortodoxia, mesmo a

    mais hermtica, pode ser compreendida em termos de suas transformaes e permanncias

    pelas relaes historicamente datadas. A histria que pretendemos contar no ser vista,

    portanto, como tendo um sentido, um alvo a perseguir como uma flecha disparada de um

    ponto de vista supra-histrico; uma histria que lana por sobre o passado um olhar de fim do

    mundo, fora do tempo. No queremos agregar histria da IELB um valor teleolgico, mas

    antes coloc-la no caleidoscpio para percebermos a mirade de fatos e acasos e disputas que

    a atravessou.19

    s questes que colocamos poderamos, ento, alinhar ainda uma outra srie de

    questes de acercamento mais especficas, como por exemplo: Como as crenas organizaram

    os discursos e prticas polticas oficiais do grupo e como foram estas reconstrudas em

    diferentes conjunturas? Como so negociadas as identidades polticas, tnicas e religiosas em

    questo? Quais modos de estar no mundo so gerados pelas identidades construdas a partir

    dessas crenas e das interaes sociais do grupo religioso? Que mudanas em termos de

    cultura poltica podem ser identificadas? Quais relaes de poder esto em movimento interna

    e externamente? Quais so os discursos sobre o outro (e sobre o self) em termos de religio,

    etnicidade, nacionalidade e poltica? Como esses discursos so transformados, reconstrudos,

    reinterpretados? De que modo as mudanas polticas e econmicas brasileiras influenciaram e

    causaram alteraes nesses discursos? Como os pastores e lderes da IELB responderam a

    essas mudanas? Enfim, como essa ortodoxia confessional tem sido praticada e recriada no

    Brasil?

    O primeiro entrave que nos deparamos na elaborao destas questes deu-se no

    campo da percepo do tempo. Logo ficou claro que seria difcil uma compreenso adequada

    do assunto IELB somente atravs de um recorte sincrnico. Era preciso uma percepo de

    longa durao que abarcasse a formao das crenas e discursos que foram re-vividos no

    Brasil. Por outro lado, um trabalho que abarcasse o todo do sculo XX, e que no pretendesse

    18 Michel FOUCAULT, Arqueologia do saber, passim. 19 Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria, p. 248, 264; Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, histria, p. 271: nessa perspectiva, o sentido histrico escapar da metafsica para se tornar o instrumento privilegiado da genealogia se ele no se apia em nenhum absoluto. Ele deve ser apenas essa acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa agir as separaes e as margens uma espcie de olhar que dissocia, capaz de se dissociar dele mesmo e apagar a unidade desse ser humano que, supostamente, o conduz soberanamente na direo do seu passado.

  • 10

    ser raso, no caberia no espao e no tempo que uma tese de doutorado deve ter atualmente.

    Optamos assim por uma estruturao do argumento em trs recortes temporais divididos em

    duas partes. A primeira, de longa durao, tratar dos processos formativos das

    macroestruturas que perfazem o Snodo de Missouri e a IELB e de como foram sendo gerados

    discursos, identidades e memrias oficiais. A segunda parte corresponder anlise da IELB

    nos contextos brasileiros da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar. Teremos, assim,

    uma anlise diacrnica e outra sincrnica, a partir das quais poderemos ter uma idia da

    formao de discursos e estruturas e de suas reconstrues brasileiras. Acreditamos, nesse

    sentido, que uma tal perspectiva poder nos proporcionar uma boa percepo das

    movimentaes que perfizeram a implantao desse tipo de religio no Brasil e dos processos

    de recriao que envolveram os atores em questo nesses diferentes perodos.

    Por que a escolha dos contextos da I Guerra e do final da Ditadura? Primeiramente

    porque constituem momentos suficientemente diferentes, poltica e religiosamente, na histria

    do grupo e do Brasil, para possibilitar uma comparao, em funo mesmo de sua distncia

    temporal. Segundo, por apresentarem dinmicas suficientemente fortes em meio sociedade

    brasileira para demandar posicionamentos IELB e a seus pastores e lderes. No contexto da I

    Guerra, pela primeira vez o grupo foi alvo de transformaes ocorridas na sociedade

    brasileira. Da declarao de guerra por parte do Brasil Alemanha, em 1917, resultaram a

    proibio do uso do idioma alemo (que durou somente at o final do conflito), o fechamento

    de escolas alems e um impedimento das atividades missourianas no pas, porque totalmente

    dependentes da lngua e da cultura germnicas. O recurso utilizado foi, de um modo geral, o

    de argumentar que a igreja nada tinha que ver com poltica, mas apenas com a pregao da

    palavra. Ao final da ditadura, por sua vez, a lngua oficial da IELB j no era mais o alemo,

    mas o portugus, as atividades haviam se expandido para quase todas as regies do pas e

    praticamente todo o clero era formado no Brasil. Em tal processo, na experincia das mazelas

    que envolveram o pas naquele perodo, os lderes da IELB passaram a manifestar-se tambm

    sobre questes desse mundo, como poltica, corrupo, pobreza, etc. As diferenas entre os

    discursos e identidades construdas, bem como as disputas relativas a estas, so claras. A

    anlise dos documentos ajudar, porm, a perceber que tais diferenas no se restringiram

    somente s posies polticas, mas tm a ver com questes de percepo do prprio lugar da

    igreja na sociedade, de sua responsabilidade e de suas relaes com os demais grupos sociais;

    questes, portanto, de fundo tambm teolgico.

    Todavia, por tratar-se de um estudo sobre discursos, memrias e identidades de

    pastores e lderes, e portanto oficiais, que recorrem ao mbito da teologia, escapa

  • 11

    delimitao do objeto a esfera de ao do leigo comum, to interessante e cara a boa parte das

    abordagens empreendidas atualmente sob a inspirao dos estudos culturais, da histria das

    mentalidades ou da histria cultural, e que buscam uma compreenso de totalidade.20 De fato,

    nossa anlise, no uma histria vista de baixo, ainda que por vezes estaremos procurando

    tal perspectiva. Uma histria desde baixo precisa ainda ser escrita sobre a IELB. Todavia,

    alm de nossa preferncia pessoal, h atualmente alguma relevncia poltica no estudo de

    ortodoxias e fundamentalismos em sua acepo oficial, tendo em vista os confrontos

    existentes em nvel mundial. Para acessar tais questes, faz-se necessria tambm uma

    abordagem vista de cima. hora de relativizar, e a histria uma boa companheira nesse

    esforo. Por outro lado, estaremos contemplando sujeitos histricos que, ligados por laos

    estruturais de solidariedade, em alguma medida representam a IELB como um todo, tambm

    porque foram eleitos para isso por processos mais ou menos democrticos.

    2. O que j se produziu e a abordagem desta pesquisa

    Os estudos dedicados ao Protestantismo no Brasil no so poucos. O nmero,

    contudo, diminui se procurarmos por pesquisas dedicadas ao Luteranismo. E rareiam ainda

    mais se buscarmos pelos estudos histricos sobre a IELB ou que a incluam. Alm das

    dissertaes inditas de Paulo Buss (Relations between the Lutheran Church-Missouri Synod

    and the Igreja Evanglica Luterana do Brasil), Agenor Berger (A postura da Igreja

    Evanglica Luterana do Brasil frente ao regime militar [1964-1985]), Eliseu Teichmann

    (Imigrao e Igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturao do luteranismo no

    Rio Grande do Sul), Srgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: a Igreja Luterana Snodo de

    Missouri nos pores do Estado Novo) e da tese de Roberto Radnz (A terra da liberdade, o

    protestantismo luterano em Santa Cruz do Sul no sculo XIX), existem alguns poucos artigos,

    como os de Ricardo Rieth (Igreja Evanglica Luterana do Brasil: uma abordagem histrica;

    Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB; Luteranismo rio-grandense no sculo 20: da

    independncia institucionalizao) e de Srgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: o Estado

    Novo e a Igreja Luterana Snodo de Missouri), e os textos publicados de Carlos Warth

    (Crnicas da Igreja), Roberto Radnz (Do poder de Deus depende), Walter Steyer (Os

    imigrantes alemes no Rio Grande do Sul e o luteranismo) e Mrio Rehfeldt (Um gro de

    mostarda [originalmente, The first fifty years of the history of the Igreja Evanglica Luterana

    20 Ver, p. ex. Michel de CERTEAU, A inveno do cotidiano; Carlo GINZBURG, O queijo e os vermes; Jacques LE GOFF e Pierre NORA (Orgs.), Histria.

  • 12

    do Brasil: the Brazilian District of the Missouri Synod]). A editora da IELB lanou tambm,

    recentemente, uma coletnea de biografias e documentos, organizada por Carlos Winterle e

    Martinho Krebs (Histrias da histria da Igreja Evanglica Luterana do Brasil), que parece

    ser uma interessante fonte de pesquisa. Some-se a estes esforos ainda algumas pesquisas do

    autor destas pginas (Espiritualidade, processos e prticas sociais, um estudo sobre

    luteranismo confessional no Brasil; Imagens de Lutero no Luteranismo Brasileiro: polticas e

    identidades na Igreja Evanglica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Ps-

    Ditadura Militar; The orthodoxy must go on..., official discourses and political identities

    among confessional German Lutherans in Brazil).21

    Os trabalhos podem ser ditos alguns mais apologticos, outros menos. Alguns

    mais religiosos, outros mais cientficos. Tais diferenciaes, porm, podem por vezes no

    perceber os teores de f cientfica recorrentes nas anlises ditas puramente acadmicas, e

    que da mesma forma embaam a viso do pesquisador.

    Sem menosprezar qualquer crtica pertinente, nossa questo , todavia, de outra

    natureza. Pretendemos nos afastar daquela historiografia do Protestantismo que, por no ter

    incorporado os avanos tericos no campo da prtica historiogrfica ocorridos no ltimo

    sculo, permanece construindo uma narrativa acontecimental ou fatual, como apontaram j as

    primeiras geraes da Escola dos Analles.22 Evitaremos, portanto, uma compreenso da

    histria como uma srie encadeada de acontecimentos grandiosos protagonizados por heris

    da f, para privilegiar uma problematizao no s destes ditos grandes acontecimentos, mas

    tambm de outros no to valorizados protagonizados por atores aparentemente no to

    importantes, inseridos em jogos de poder ao redor de discursos, memrias e identidades que

    pertencem esfera da religio. Por outro lado, tais discursos, memrias e identidades,

    justamente por pertencerem ao mbito religioso, alm do olhar de uma histria

    problematizada, merecem tambm as possibilidades de interpretao que estudos de cunho

    histrico-fenomenolgico tm oportunizado ao pesquisador.

    Este trabalho, assim, no contexto do que j se produziu, se pretende um estudo de

    histria sociocultural da religio acerca da IELB, com foco principal nos discursos, memrias

    21 As referncias completas encontram-se na Bibliografia, nos pontos 4 e 5. 22 O. DUMOULIN, vnementielle [acontecimental] (histria), p. 315-316. Comeam a aparecer algumas anlises crticas sobre as condies de produo do discurso histrico relativo ao Protestantismo brasileiro. O que , por certo, muito saudvel. Ver, p. ex., Tiago Hideo Barbosa WATANABE, Caminhos e histrias: a historiografia do protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil. Para uma aproximao do Protestantismo brasileiro pelo vis das novas abordagens ver, p. ex., Karina Kosicki BELLOTTI, Mdia, religio e histria cultural; tb. Lyndon de Arajo SANTOS, As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira repblica brasileira.

  • 13

    e identidades religiosas de pastores e lderes. No se trata, portanto, de uma Histria da

    IELB na acepo fatual-positivista do termo, mas da anlise de sries de acontecimentos que

    a envolveram. Todavia, ainda que por meios tericos e metodolgicos por vezes diversos dos

    demais trabalhos e com objetivos diferentes, posiciono-me num esforo semelhante ao dos

    demais autores, em busca de compreenso da IELB enquanto fenmeno religioso. Num

    campo to escorregadio quanto o das cincias humanas, a postura de generosidade , penso,

    imperativo fundamental.

    Em meio aos estudos histricos da religio, podem ser separadas, histrica e

    teoricamente, duas correntes principais. De um lado, temos a chamada histria das religies,

    uma das muitas filhas da teologia e da filosofia, que, surgida no sculo XIX, caracteriza-se

    por analisar as origens e os perodos mais antigos das religies, principalmente a partir de um

    mtodo fenomenolgico, muitas vezes comparativo e filolgico, em busca de uma essncia

    comum s diversas religies. Nessa corrente encontraremos nomes expressivos como os de

    Max Mller, Mircea Eliade e G. Van Der Leeuw. Do outro lado, est aquela que tem sido

    chamada de histria religiosa, representada tambm por reconhecidos estudiosos como Marc

    Bloch, Jacques Le Goff e Carlo Guinzburg. Essa histria religiosa surge na confluncia entre

    a histria literria das doutrinas, a histria eclesistica, a sociologia religiosa e os problemas

    apresentados histria econmica e social pela estratificao scio-profissional das

    civilizaes pr-industriais, que colaborou tambm para o surgimento, nos Annales, da

    histria das mentalidades, hoje reconfigurada em histria cultural. Um trao distintivo da

    histria religiosa em relao histria das religies o estudo especfico de uma s tradio

    religiosa, afastando-se, portanto, do mtodo comparativo. Outra caracterstica a de que os

    estudiosos afiliados histria religiosa apresentam, por vezes, o interesse na religio como via

    de compreenso de questes sociais que transcendem o universo propriamente religioso, em

    direo economia e poltica, por exemplo; no que se diferem tambm dos historiadores das

    religies, em funo do claro interesse destes pelo especfico do fenmeno religioso.23

    Atualmente, entretanto, as fronteiras entre as duas correntes no esto delineadas de

    modo to claro como outrora o que , para mim, fato positivo. Um certo hibridismo terico-

    metodolgico pode ser percebido em diversos esforos, como, por exemplo, no recente

    nascimento da linha de pesquisa histria social e cultural da religio, qual nos

    23 Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distines no campo de estudos da religio e da histria, p. 57-67; Dominique JULIA, A religio: histria religiosa, p. 110-112; tb. Jaqueline HERMANN, Histria das religies e religiosidades, p. 339-340. Ronaldo VAINFAS, Histria das mentalidades e histria cultural, p. 150-153; A. ROUSSELLE, Religio, histria das religies, p. 667-672; C. LANGLOIS, Religio, histria religiosa, p. 658-667.

  • 14

    congregamos no PPCIR da UFJF, vinculada rea de concentrao em cincias sociais da

    religio. Ainda que de fato poucos avanos tenham acontecido no dilogo entre as duas

    tradies, ao menos na nomenclatura a linha de pesquisa aponta para a relativizao de tais

    fronteiras. Assim tambm a Associao Brasileira de Histria das Religies tem sido lugar de

    encontro de pesquisadores interessados em ambas as formas dos estudos histricos acerca da

    religio. O campo complexo e merece, de fato, mltiplos e atentos olhares.24

    No tocante (nova) histria cultural, ou sociocultural como prefiro a exemplo de

    Chartier25 porque enquanto preocupada com a cultura no descuida do social ,

    caracterstica marcante tem sido o dilogo intenso com as demais cincias humanas, como a

    antropologia, a sociologia, a psicologia e a lingstica. Nessa troca, historiadores vm

    trazendo tona uma srie de temas e abordagens inspirados em processos interdisciplinares.26

    Em nosso trabalho construiremos, nessa vertente, um discurso que se movimenta no campo da

    histria em constante dilogo com a antropologia e a sociologia, mas tambm com a teologia,

    uma vez que estaremos tratando de processos sociais e de construes simblico-religiosas

    mais ou menos sistematizadas no mbito da teologia luterana.

    No preciso que explicitemos a dependncia da disciplina da histria para com a

    sociologia e a antropologia, entre outras, principalmente se considerados os desenvolvimentos

    tericos da histria social e cultural ao longo do sculo XX.27 A relao desta para com a

    teologia, entretanto, merece maior ateno. De fato, diversas crticas tm sido apresentadas

    aos cientistas sociais da religio a respeito de seus interesses religiosos, termo empregado 24 Vide, p. ex., Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As cincias das religies, p. 14-15: A primeira contradio (...) est ligada subjacente concepo de histria. De um lado, h quem a entenda de um modo restritivo, terminando por confundi-la com a filologia. Trata-se de uma interpretao redutiva, que corre o risco de ignorar o grande desenvolvimento das cincias histricas no nosso sculo e, sobretudo, o imponente trabalho de reviso historiogrfica que algumas escolas, como a Analles, promoveram, estabelecendo relaes de vital e recproca fecundao entre histria e cincias humanas. Compreende-se, por isso, que, de outro lado, haja quem reinterpretando a histria das religies em funo dessa concepo mais ampla, dinmica, flexvel e aberta de histria a entendeu como uma disciplina de tipo essencialmente histrico, em cujo tronco se enxertariam tambm as contribuies provenientes das diferentes cincias humanas. (...) [Todavia,] o aspecto distintivo de uma histria comparada das religies sempre foi o fato de ter de levar em conta no s o momento diacrnico, mas tambm o sincrnico, no estudo dos fenmenos religiosos. Junto com as questes relativas gnese, ao desenvolvimento e eventualmente ao fim de um fenmeno religioso, o historiador das religies teve de aprender, por uma srie de demandas internas, ao seu prprio campo de estudos, a se envolver com questes relativas continuidade e durao, aos modelos e estruturas. 25 Roger CHARTIER, beira da falsia, a histria entre certezas e inquietudes, p. 21; tb. Peter BURKE, Histria e teoria social, p. 170: A difuso do termo composto sociocultural sugere ainda um grau cada vez maior de conscientizao sobre a importncia da cultura e, inversamente, sobre a maleabilidade da sociedade. 26 Temas como identidades, cultura popular, vida privada, performances, mitos, rituais, culturas hbridas, fronteiras, narrativas, discursos, prticas, so j terminologias usuais que habitam o fazer cotidiano destes novos historiadores. 27 Ver, p. ex., Peter BURKE, Histria e teoria social; tb. Id., A Escola dos Annales (1929-1989), a Revoluo Francesa da historiografia; tb. Franois DOSSE, Histria e cincias sociais.

  • 15

    agudamente por Antnio Pierucci.28 Mais adiante nesta introduo tratarei de buscar um

    acerto de contas com tais crticas, as quais podem ser preciosas. Por hora, contudo, detenho-

    me em definir melhor nossa aproximao da teologia.

    H primeiramente uma diferena, ainda que tnue, entre o discurso religioso e o

    teolgico: o primeiro marcado pelo trao auto-implicativo e pela proximidade para com a

    experincia vivida da religio; o segundo, regrado pelas exigncias da razo e, portanto,

    sistemtico e metdico.29 Se que se pode considerar que estaremos aqui fazendo teologia,

    at este ponto que queremos ir: o da prpria teologia, no o da religio. Telogos, nesse

    sentido, so especialistas numa linguagem, so lingistas que estudam o dialeto de uma

    religio dada, como disse Gross.30 Portanto, mesmo sem pretender sustentar uma

    aproximao totalmente neutra e objetiva, pontuo que no vislumbro aqui uma

    instrumentalizao propositiva do religioso, mas a utilizao de uma teologia compreendida

    enquanto discurso sistemtico sobre mitos, ritos e smbolos de uma dada tradio (no caso, a

    luterana), que pode colaborar na compreenso do fenmeno religioso.31

    Considerando que esta uma tese de doutorado em cincia da religio (e no em

    histria de modo especfico), acolho, assim, o desafio interdisciplinar que tem caracterizado a

    rea e me coloco como historiador da religio a fazer perguntas de ordem antropolgica,

    sociolgica e teolgica ao passado da IELB, e a tentar respond-las em um mesmo processo

    interdisciplinar.

    A partir de uma tal perspectiva, estaria ao menos atenuada a problemtica do

    esquecimento da dimenso social da religio, que caracterizou boa parte da produo da

    cincia da religio atrelada ao modelo histrico-fenomenolgico da histria das religies. Por

    outro lado, evitar-se-ia ao mesmo tempo a to comum abordagem reducionista, seja social ou

    cultural, que demonstra, entre outras coisas, pouco entender sobre religio.32 Situamo-nos,

    dessa forma, no encontro entre uma histria das religies, na linha de Eliade e Van Der

    Leeuw, em funo da preocupao com o especfico da religio e seu significado, e uma

    histria religiosa, na linha de Le Goff e Guinzburg, dado o dilogo que empenharemos com as

    teorias da histria cultural, a sociologia e a antropologia, bem como pelo interesse em uma

    28 Antnio Flvio PIERUCCI, Interesses religiosos dos socilogos da religio; Id., Sociologia da Religio: rea impuramente acadmica; ver tb. as crticas e proposies de Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, especialmente o captulo 10, onde trata sobre o tema Histria das religies, p. 209-229. 29 Faustino TEIXEIRA, O lugar da teologia na(s) cincia(s) da religio, p. 300. 30 Eduardo GROSS, Consideraes sobre a teologia entre os estudos da religio, p. 335. 31 Idem, p. 329. 32 Ver, p. ex., Frank USARSKI, Perfil paradigmtico da cincia da religio na Alemanha, p. 80-82,

  • 16

    tradio religiosa apenas.33 Assumimos, assim, a relao entre uma histria social e cultural

    da religio e aquela abordagem histrico-fenomenolgica anelada por Lus Dreher para uma

    cincia da religio compreendida como exerccio hermenutico humano em seu carter

    positivo. Nas palavras de Dreher:

    A cincia da religio que eu gostaria de praticar uma disciplina que busca enfocar a especificidade da religio e dos fenmenos religiosos, sem cair em redutivismos ou dogmatismos, mas sem, no final das contas, ceder tambm terceira tentao, to prpria da abordagem fenomenolgica: a do descritivismo. (...) o alvo da pesquisa cientfica da religio, criativa mas sempre metodologicamente controlada, ser evitar as camisas-de-fora sem cair em superficialidades e em hibridismos metodolgicos mal fundamentados.34

    Se tomarmos, nesse esforo, a explicao da abordagem fenomenolgica de Husserl

    feita por Antnio Mendona, perceberemos a aproximao para com a perspectiva

    interdisciplinar que propomos. Conforme Mendona, ao enfocar o fenmeno, Husserl

    pretendia desvencilhar-se tanto do psicologismo quanto do empirismo, rumo a uma

    combinao de dependncia mtua de ambos: a experincia (o fenmeno) reside na dialtica

    relacional entre os a priori das conscincias e o vivido.35 Segundo Mendona, uma

    fenomenologia que transcenda o descritivismo e busque a ligao entre as manifestaes

    externas da religio, as teologias ou teodicias e a experincia do sagrado, traz em si o

    atrativo de captar a dinmica das religies: as mudanas histrico-culturais e sociais

    promovem ajustes nos conceitos de maneira a revelar novos perfis do sagrado universal.36

    Nos pomos, assim, em busca de uma atitude hermenutica diante do objeto da

    religio vivida ou praticada. A atividade de tal atitude seria, conforme Pond, a de partir de

    uma fenomenologia emprica para buscar adentrar a experincia existencial interna do

    homem religioso, a fim de a ver de que forma ele enfrenta vital e objetivamente, por meio da

    cultura religiosa em questo, seu drama ontolgico ou seu terror da contingncia. A

    33 Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distines no campo de estudos da religio e da histria, p. 57-67; tb. Mircea ELIADE, Imagens e smbolos, ensaio sobre o simbolismo mgico-religioso, p. 25: (...) negligenciamos um fato essencial: na expresso histria das religies, a nfase deve ser dada palavra religio, e no histria desde a histria das tcnicas at a histria do desenvolvimento humano, s existe uma maneira de se abordar a religio: atentar para os fatos religiosos. Antes de fazer a histria de alguma coisa, muito importante compreender bem essa coisa, em si e por si mesma. 34 Lus Henrique DREHER, Cincia(s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil, p. 176, 175-177. 35 Antonio Gouva MENDONA, Comentrios sobre um texto prvio de Lus Dreher UFJF, Cincia(s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil, p. 191-192. 36 Idem, O presente status do estudo das religies, campo religioso e fenomenologia, p. 173.

  • 17

    discusso epistemolgica e metodolgica se daria, destarte, ao redor das tentativas de melhor

    acessar o ncleo espiritual desse drama ontolgico.37

    Pode-se, todavia, questionar a existncia da possibilidade de se acessar de fato tal

    ncleo espiritual, a experincia do homem religioso, visto que se trata de algo que chega ao

    pesquisador sempre mediado e atravessado por formas contingentes diversas de discurso e

    linguagem a cultura religiosa em questo , alm de sofrer as influncias das estruturas

    sociais e culturais, tanto por parte do sujeito da experincia, quanto por parte do

    pesquisador.38 Essa, porm, no uma dificuldade apenas dos estudos de religio. A

    linguagem a mediao que atravessa, na verdade, o todo das cincias humanas. Qualquer

    fato social ou cultural inacessvel sem linguagem.39

    Na imbricao de tais fatores, sem menosprezar a validade de esforo algum de

    compreenso, limitar-me-ei, aqui, aos efeitos ou sintomas da relao do homem com o

    sagrado, assumindo com Filoramo e Prandi uma autonomia relativa da religio e me

    aproximando, assim, de uma escola mais historicista: a forma como re-construo das

    essncias, as essncias na forma. Ambas as abordagens so, contudo, vlidas, necessrias e

    complementares.40

    Dito isto, entre o meio da cultura religiosa em questo e o homem religioso,

    tratemos de aclarar as questes terico-metodolgicas que nos acompanharo no trajeto deste

    texto, ferramentas pelas quais pretendemos nos apropriar dessa totalidade complexa.

    3. Um modo de ver a histria da IELB

    3.1. Mito e Teologia na forma do discurso

    Nossa pesquisa, como j se pode aferir, versa sobre as construes de significao

    religiosa do mundo em meio aos processos e relaes sociais. Nessa direo, o campo da

    anlise histrica de discursos religiosos pode ser lugar frtil para a aproximao entre as

    perspectivas histrico-fenomenolgica e sociocultural. Explico: uma narrativa mtica pode ser

    37 Luiz Felipe POND, Em busca de uma cultura epistemolgica, p. 43. 38 Robert H. SHARF, Experience, p. 114. 39 Observao de Lus Dreher como membro da banca desta tese. 40 Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As cincias das religies, p. 17-22; Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 11: Atualmente, os historiadores das religies esto divididos entre duas orientaes metodolgicas divergentes, mas complementares: uns concentram sua ateno principalmente nas estruturas especficas dos fenmenos religiosos, enquanto outros interessam-se de preferncia pelo contexto histrico desses fenmenos; os primeiros esforam-se por compreender a essncia da religio, os outros trabalham por decifrar e apresentar sua histria [grifos no original].

  • 18

    entendida como uma forma de discurso religioso: o mito na forma do discurso. Se

    sistematizado, esse discurso mtico ganha forma de teologia, de logos. Nesses discursos

    religiosos, por conseguinte, ao mesmo tempo em que so produzidas identidades e memrias,

    so tambm com elas ou nelas negociados significados nas relaes socioculturais.

    Costuma-se associar, em fenomenologia da religio (e por vezes tambm nas cincias

    sociais), as idias de experincia religiosa, mito e rito, numa circularidade complementar e

    continuada. A lgica a seguinte: o ser humano tem uma experincia do sagrado e atravs da

    narrativa de seus mitos cosmognicos ou de outra natureza e de suas performances rituais

    renova, na reatualizao do evento hierofnico primordial, essa mesma experincia religiosa,

    garantindo, assim, a continuidade daquilo que aconteceu in illo tempore, como dizia Eliade.41

    O mito, portanto, conta uma histria sagrada, quer dizer, um acontecimento

    primordial que teve lugar no comeo do Tempo, ab initio.42 Veja-se, ento, que o mito, alm

    de pertencer esfera do rito, pertence tambm esfera do discurso, da lngua, est ligado

    palavra falada. pela fala que ele se faz conhecer. Trata-se de uma palavra com poder

    decisivo em sua repetio, mas que, por isso, liga-se tambm s demais esferas da vida do

    homem religioso. Da esfera do mito, pode-se ir, por isso, pelo discurso, tambm vida

    cotidiana, s prticas e aes sociais.43

    As j exploradas relaes entre mito e rito so frutferas tambm nesse sentido.

    Enquanto o mito um padro de conceitualizao, diz-se, o rito um padro de

    comportamento. O mito , assim, o complemento do rito: o primeiro uma palavra sagrada, o

    segundo uma ao sagrada; o primeiro o fundamento da religiosidade, o segundo, sua

    expresso. Por trs de um rito est, portanto, sempre uma crena profunda naquilo que o seu

    centro: o mito. O rito, dessa forma, nunca est solto, no existe sem uma base mtica que

    lhe atribua sentido. Por isso, mito e rito so co-operantes, e a relao entre eles estreita ao

    ponto de quase se fundirem.44

    O mesmo vale, pode-se assim dizer, para as relaes entre mito e discurso. Nas

    diversas formas de fala e escrita, ou mesmo de arte se ampliarmos a noo de discurso, o

    41 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 36, p. ex. 42 Idem, O sagrado e o profano, p. 80. 43 G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. II, p. 413; Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 338: preciso que nos habituemos a dissociar a noo de mito das de palavra e de fbula (veja-se a acepo homrica de mythos: palavra, discurso), para a aproximarmos das noes de ao sagrada, de gesto significativo, de acontecimento primordial. mtico no s o que se conta de certos acontecimentos que se desenrolam e de personagens que viveram in illo tempore, mas ainda tudo o que se acha em relao direta ou indireta com tais acontecimentos e com personagens primordiais. [grifos no original] 44 Geo WIDENGREN, Fenomenologia de la religin, p. 135, 189-190:; G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. II. p. 413; Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3.

  • 19

    homem religioso faz referncia ao mito, ou a sries de mitos, que fundamentam os discursos a

    ponto de se (con)fundirem, dada sua proximidade na esfera da linguagem. H, nesse sentido,

    tambm uma srie de mitos que fundamentam os discursos do Luteranismo Confessional

    Ortodoxo da IELB, articulados em sua produo teolgica, forma de sistematizar o mito.

    O mito, contudo, est ao mesmo tempo alm da linguagem, uma vez que ao ser

    narrado, ele a ressurreio do que aconteceu in illo tempore, que retorna para fundamentar e

    motivar a existncia humana como um todo.45 Na vida no mundo do sagrado, h, portanto,

    uma dinmica de constante retorno ao tempo mtico das origens. O ser humano religioso

    possui a caracterstica de repetir arqutipos, de querer retornar hierofania primordial,46 e

    pe-se, ento, em movimento a articulao de diferentes temporalidades pela memria. Um

    ritual ou um discurso possui validade, nesse sentido, somente enquanto repetio arquetpica

    do tempo mtico das origens. Nessa repetio, h uma manifestao do sagrado e instaurado

    o universo divino. O ser humano, ento, inserido em tempo e espao sagrados e posto em

    contato com o sagrado, com o numinoso. O tempo mtico que se encontra fora do tempo do

    mundo emprico e profano, em um outro tempo, ao ser reapresentado, re-cria e re-presenta

    o acontecimento em si no , portanto, mera descrio deste.47 Ao ser instaurada, ento, a

    hierofania primeira situa a pessoa no tempo e no espao de uma maneira total, em sua relao

    com os outros, com o mundo e com o sagrado.48

    Um mito, assim entendido, tem a ver com realidades vivas. As pessoas assumem um

    comportamento mtico e, atravs deste, atestam sua realidade, no definida concretamente,

    mas captada atravs do mito, no que se revela uma estrutura inacessvel compreenso

    emprico-racionalista. Pela re-atualizao do mito, as pessoas explicam o mundo e o

    representam simbolicamente. O mito a afirmao, carregada de emoo, do lugar do 45Bronislaw MALINOWSKI, O papel do mito na vida, p. 160: (...) [o mito ] a ressurreio, pela narrativa, de uma realidade primeva, contada para satisfazer profundas necessidades religiosas, anseios morais, submisses sociais, afirmaes e mesmo exigncias prticas. Na cultura primitiva o mito preenche uma funo: expressa, valoriza e codifica a crena; salvaguarda e refora a moralidade; garante a civilizao humana; no um contato despretensioso, mas uma fora ativa muito elaborada; no uma explicao intelectual ou uma fantasia artstica, mas um esquema pragmtico da sabedoria moral e da f primitivas. 46 Mircea ELIADE, El mito del eterno retorno, p. 18; Idem, Tratado de histria das religies, p. 338. 47 Idem, O sagrado e o profano, p. 59: (...) o tempo sagrado por sua prpria natureza reversvel, no sentido em que , propriamente falando, um Tempo mtico primordial tornado presente. (...) Por conseqncia, o tempo sagrado indefinidamente recupervel, indefinidamente repetvel; Idem, El mito del eterno retorno, p. 41; Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63. 48Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 296. De fato, a noo de espao sagrado implica a idia da repetio da hierofania primordial que consagrou este espao transfigurando-o, singularizando-o, em resumo, isolando-o do espao profano a sua volta; tb. Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63: Torna [o mito] o passado e o futuro imediatamente presentes; exprime a solidariedade do homem com seu mundo, e reafirma essa solidariedade diante da dvida humana (...) Atravs dele os homens se ligam a seu ambiente, a seus ancestrais, aos seus descendentes, ao alm que o fundamento de toda a existncia, ao que permanente, alm de toda a mudana.

  • 20

    homem num mundo que tem sentido para ele, bem como de sua solidariedade com esse

    mundo,49 e torna-se assim um precedente e um exemplo, tanto em relao s aes

    sagradas ou profanas do ser humano, quanto em relao prpria condio humana: torna-

    se um precedente exemplar para todas as aes e situaes que, depois, repetiro este

    acontecimento.50

    Sendo assim, o mito/teologia ritualizado ou em forma de discurso serve, tambm,

    como veculo atravs do qual a realidade como um todo transmitida sociedade. Para que

    determinada sociedade se mantenha coesa, ela necessita, por isso, estar em contato regular

    com o mito, e na repetio ritualizada ou no do mito o mesmo preservado e ensinado s

    novas geraes.51

    Nestes processos, porm, pode acontecer o que Eliade chamava, talvez um pouco

    exagerada ou romanticamente, de degradao do mito: o mito pode degradar-se em lenda

    pica, em balada ou em romance, ou ento sobreviver em forma diminuda, nas supersties,

    hbitos e nostalgias, etc., no perdendo, por isso, a sua estrutura nem o seu valor. Os mitos

    vo, assim, por sua reinterpretao, ganhando novas coloraes locais, todavia, sem que os

    modelos originais percam seu poder de reatualizao.52 Pode-se, ento, seguir a orientao de

    Mendona: o sentido desse mito hierofnico deve ser buscado, como de regra, nas condies

    scio-histricas dos seus sujeitos, visto que ele pode sofrer revises constantes e originar

    tanto mudanas como correntes divergentes e excludentes dentro de uma mesma grande

    tradio, como o caso, por exemplo, de correntes como o Liberalismo teolgico e o

    Fundamentalismo no mbito do Protestantismo.53

    com essa esfera, a da re-presentao e da re-construo dos mitos e teologias na

    forma de discursos, que estaremos lidando nestas pginas. Os mitos tornam-se, ento, hieros

    logoi, discursos sagrados.54 Todavia, a pureza das origens que os mitos referem existe, nessa

    perspectiva, somente na forma do discurso e da memria, ou seja, de modo ideal.

    Discursos mtico-religiosos embasam, nessas dinmicas, tanto aes e identidades,

    quanto novos discursos, porque so formas de falar sobre o mundo e de compreend-lo e

    constituem modos de auto-representao e experincias de totalidade. So prticas sociais de

    49Thomas ODEA, Sociologia da religio, p. 63. 50 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 334-335, 347-352; Maurice LEENHARDT, O Mito, p. 92. 51Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3. 52 Mircea ELIADE, Tratado de histria das religies, p. 352-353. 53 Antnio Gouva MENDONA, A persistncia do mtodo fenomenolgico na sociologia da religio: uma aproximao sob o prisma da essncia e da forma, p. 84, 86. 54 Ricardo Artur FITZ, Brasil: os mitos fundadores da nacionalidade, p. 14.

  • 21

    elaborao de memrias e de produo de identidades, exercidas no contexto de estruturas

    sobre e sob as quais agem os atores, em processos contnuos de construo e reconstruo.

    So, por isso, portadores de rico capital simblico.55 possvel, pois, historiciz-los, num

    esforo de superao das dicotomias entre o sincrnico e o diacrnico, pela anlise das formas

    pelas quais uma dimenso incide sobre a outra nas prprias prticas discursivas.56

    Como disse Ciro Flamarion Cardoso, a atividade narrativa, neste sentido, parte

    inseparvel do plano de ao, no s algo incidental ou externo. A vida no somente se vive,

    ela se relata, se conta o tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqncia

    mudamos o relato, ou seja, nossa viso acerca da vida, para levar em conta novos eventos

    incidentes; mas tambm tentamos, na medida do possvel, mudar os eventos para salvar o

    relato, isto , o plano, a verso, o futuro projetado.57

    Nos discursos religiosos do Confessionalismo da IELB, tambm em seu fazer

    teolgico, esto em movimento de construo e reconstruo sries de mitos hierofnicos, ao

    passo que diferentes temporalidades so articuladas para fundamentar as relaes no presente.

    3.2. A prtica discursiva religiosa entre estruturas e eventos

    Enquanto discurso religioso que pe em movimento sries de mitos, teologias,

    memrias e identidades, o Luteranismo Confessional Ortodoxo da IELB pode ser pensado

    como uma formao discursiva. Segundo Foucault; com quem estaremos dialogando para 55 F. YUS, Discourse and identity, p. 3728; Louise PHILLIPS e Marianne JORGENSEN, Discourse analysis, as theory and method, p. 1 e 21; Katherine T. EWING, The illusion of wholeness: culture, self, and the experience of inconsistency, p. 265; Hans SIEBERS et alii, Identity Formation, issues challenges and tools, p. 82; D. E. APTER, Political discourse, p. 11645. 56 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 188-189: J na natureza da ao simblica, sincronia e diacronia coexistem em uma sntese indissolvel. A ao simblica um composto duplo, constitudo por um passado inescapvel e por um presente irredutvel. Um passado inescapvel porque os conceitos atravs dos quais a experincia organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um presente irredutvel por causa da singularidade do mundo em cada ao (...) As pessoas, enquanto responsveis por suas prprias aes, realmente se tornam autoras de seus prprios conceitos; isto , tomam a responsabilidade pelo que sua prpria cultura possa ter feito com elas. 57 Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 67-68. Ainda que antagonista daqueles que considera adeptos do que chama de epistemologia ps-moderna (dentre os quais lista Deleuze, Foucault e Derrida, como infludos por Nietzsche e Heidegger), Flamarion Cardoso, contudo, assume mesmo assim a importncia da dimenso narrativa da existncia, sem referir-se, porm, noo de discurso. Diz Cardoso, p. 79: Tal movimento [ps-moderno] desembocou, previsivelmente, num estado de coisas suspenso entre o niilismo e o pansemiotismo, numa negao da explicao em favor da hermenutica relativista. A crtica aguda e pertinente, anda que unilateral, tem verses mais favorveis e compreensivas em outros tambm eminentes historiadores como Roger CHARTIER, beira da falsia (ver captulos 5 e 8), Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria (especialmente o ensaio final) e Franois DOSSE, A histria prova do tempo, da histria em migalhas ao resgate do sentido (captulos 10 e 14). De minha parte, acolho as advertncias de Cardoso, sem porm, abdicar das possibilidades que o desconstrucionismo de uma epistemologia ps-moderna possa trazer crtica da religio ortodoxa.

  • 22

    pensar o discurso, abraando, porm, principalmente sua metodologia, antes de sua filosofia

    da histria; uma formao discursiva existir quando entre um certo nmero de enunciados se

    puder descrever um sistema de disperso e entre os objetos, os tipos de enunciao, os

    conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlaes,

    posies e funcionamentos, transformaes). Uma formao discursiva, nessa tica, est

    sujeita a regras prprias, ou seja, condies a que esto submetidos os elementos (...)

    condies de existncia (mas tambm de coexistncia, de manuteno, de modificao e de

    desaparecimento).58 Conforme o autor, uma formao discursiva, em sua positividade e

    materialidade, constitui, nesse sentido, um a priori histrico, compreendido como um

    conjunto de regras que caracterizam uma prtica discursiva em certo espao e tempo.59 Tal

    prtica discursiva, empreendida por sujeitos condicionados histrica e discursivamente, o

    objeto da anlise histrico-social do discurso que almejamos aquilo que Foucault chamava

    de arqueologia e genealogia: o estudo das condies de produo e das prticas das regras e

    ordens do discurso.60

    Todo acontecimento discursivo, e por isso tambm o mtico-religioso, se d, nessa

    tica, no ambiente ou, melhor dizendo, na disperso de uma formao discursiva. Com o

    discurso confessional luterano no diferente. Formaes discursivas pressupem-se, assim,

    no em continuidade bem arrumada, mas em sistemas de disperso. A formao da ordem do

    discurso acontece no mediante a ao de um sujeito consciente visando um fim. No que

    dito, apresentam-se preconceitos, reticncias, salincias e reentrncias inesperadas de que os

    locutores no esto nem um pouco conscientes. Ou, em outro sentido, h, sob o discurso

    consciente, uma gramtica determinada pelas prticas e gramticas vizinhas, que a observao

    atenta do discurso revela.61 Trata-se ento de perceber a prtica discursiva religiosa tanto em

    suas determinaes mtico-estruturais, quanto em suas relaes scio-histricas.

    58 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 40; tb. Eni Pulcinelli ORLANDI, Os falsos da forma, p. 17-18: A formao discursiva dispe sobre o que o sujeito pode e deve dizer em uma situao dada numa conjuntura dada, de tal forma que, remetendo seu discurso ideologia, essa formao far que suas palavras tenham um sentido e no outros possveis. pela remisso formao discursiva que se identifica uma fala. 59 Maria do Rosrio GREGOLIN, Foucault e Pcheux na anlise do discurso, dilogos e duelos, p. 91; Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 142-149. Perceba-se a uma correlao possvel, ainda que em esferas diferenciadas, da concepo de Foucault com o a priori fenomenolgico, independentemente de seu distanciamento terico e poltico da fenomenologia de seu contemporneo Jean-Paul Sartre. Para uma aproximao da idia de sujeito livre em Sartre e o tema da religio ver Frederico Pieper PIRES, Liberdade e religio no existencialismo de Jean-Paul Sartre. 60 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, passim; Id. A ordem do discurso, passim; Id. Nietzsche, Genealogia, Histria, passim. 61 Paul VEYNE, Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria, p. 252.

  • 23

    Tornam-se heuristicamente interessantes, aqui, as relaes que se pode fazer entre

    prtica, acontecimento ou evento e formao discursiva religiosa, se pensarmos a ltima

    como estrutura sociocultural que articula mitos, teologias, memrias e identidades.

    Conforme Pierre Chaunu, numa perspectiva histrico-social, pode-se entender

    estrutura como tudo o que, numa sociedade, numa economia, dotado de uma durao

    suficiente para que seu movimento escape observao comum.62 Sob um outro prisma,

    antropolgico, a poderamos compreender, segundo Marshall Sahlins, como o conjunto das

    relaes simblicas de ordem cultural.63 Se unirmos as perspectivas, de modo a se

    complementarem, entenderemos, ento, que uma estrutura possui uma durao longa, ou seja,

    uma existncia na histria, e que consiste em relaes socioculturais.

    Prtica, por sua vez, segundo Sherry Ortner, pode ser considerada como qualquer

    tipo de ao humana portanto tambm o discurso na qual se perceba a reverberao de

    relaes de assimetria, desigualdade e dominao, bem como de padres de cooperao,

    reciprocidade e solidariedade, em um contexto histrico e cultural especfico. Assim

    compreendido, o estudo da prtica acima de tudo o estudo de todas as formas de ao

    humana, mas de um ngulo poltico particular, sempre em relao a uma estrutura social

    e cultural.64

    Uma prtica discursiva, nessa tica, no se d pela performance de atores livres,

    conscientes e autnomos, mas condicionados por estruturas socioculturais. Conforme

    Foucault a prtica discursiva o prprio conjunto de regras annimas, histricas, sempre

    determinadas no tempo e no espao, que definiram, em uma dada poca e para uma

    determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de exerccio da

    funo enunciativa, ou seja, o que um sujeito histrico institucionalmente localizado pode

    dizer sob contingncias estruturais.65 Poderamos afirmar, assim, que a prtica discursiva d-

    se em relao a regras estruturais do discurso.

    Todavia, uma das crticas que se faz anlise do discurso foucaultiana a da falta de

    espao em sua teoria para a mudana social, tanto pelo determinismo de seu materialismo

    62 Apud M. AYMARD, Estruturas, p. 309-310. 63 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 9. 64 Sherry ORTNER, High religion, p. 11 e 12: So the study of practice is after all the study of all forms of human action, but from a particular political angle; p. 12: Practice is action considered in relation to structure () Human action considered apart from its structural contexts and its structural implications is not practice [Prtica ao considerada em relao estrutura () A ao humana considerada separadamente de seus contextos estruturais e de suas implicaes estruturais no prtica]; idem, Theory in anthropology since the sixties, p. 149, 157. 65 Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 133; Maria do Rosrio GREGOLIN, Foucault e Pcheux na anlise do discurso, p. 89.

  • 24

    discursivo, quanto pela morte do homem que sustenta.66. Faz-se necessrio pontuar, ento,

    que a ordem do discurso condiciona, mas no de modo absoluto. Penso que um olhar

    adequado deva deixar algum espao para ao do sujeito entre as estruturas e os

    acontecimentos ou eventos, como prefere Sahlins, de modo que se conceba que ao mesmo

    tempo em que a histria ordenada culturalmente ou pela estrutura, tambm a cultura-

    estrutura ordenada historicamente. Nessa perspectiva, pode-se pensar as dinmicas da

    formao discursiva mtico-hierofnica sob a tica do binmio histria-cultura. A sntese

    desse processo desdobrar-se-ia nas aes criativas dos sujeitos histricos, em prticas situadas

    em eventos discursivo-religiosos.67

    Nessa concepo, um evento acontece simultaneamente em dois planos: como ao

    individual e como representao coletiva; ou melhor, como relao entre certas histrias de

    vida e uma histria acima e alm dessas outras,68 como o mito. A ordem cultural, a estrutura

    segundo Sahlins, existe somente in potentia, seu significado consiste nos usos, nas prticas

    diramos, de pessoas e comunidades. , portanto, nas prticas, nos discursos, nos eventos, que

    os significados culturais so realizados in presentia. Um evento de fato um acontecimento

    de significncia e, enquanto significncia, dependente na estrutura por sua existncia e por

    seu efeito. (...) Um evento no somente um acontecimento no mundo; a relao entre um

    acontecimento e um dado sistema simblico69 e social, diramos. Dessa forma, a prtica

    discursiva do Confessionalismo Ortodoxo da IELB se d em eventos que adquirem

    significao no contexto de suas narrativas mtico-hierofnicas. Nessa atualizao dos mitos,

    todavia, as estruturas so sujeitadas a transformaes e re-significaes locais.

    Sahlins completa, ento, sua teoria com o conceito de estrutura da conjuntura: a

    realizao prtica das categorias culturais em um contexto histrico especfico, assim como se

    expressa nas aes motivadas dos agentes histricos, o que inclui a microssociologia de sua

    interao,70 ou, de outra forma, um conjunto de relaes histricas que, enquanto

    reproduzem as categorias culturais, lhes do novos valores retirados do contexto

    pragmtico.71 Nessa perspectiva, a prtica entendida como uma espcie de sociologia

    66 Ver, p. ex., Peter BURKE, Histria e teoria social, p. 210. 67 Marshall SAHLINS, Ilhas de histria, p. 7; p. 19: necessrio fazer o reconhecimento terico, encontrar o lugar conceitual do passado no presente, da superestrutura, na infraestrutura, do esttico no dinmico, da mudana na estabilidade () O problema agora de fazer explodir o conceito de histria pela experincia antropolgica da cultura. 68 Idem, p. 143-144. 69 Idem, p. 190-191. 70 Idem, p. 15. 71 Idem, p. 160; tb. cf. M. AYMARD, Estruturas, p. 310: o par estrutura/conjuntura deve permitir apreender a totalidade da diacronia e toda a espessura do real. A pesquisa se apropria, no nvel de seu encaminhamento, assim como da apresentao de seus resultados, de uma dupla hierarquizao. Do instante (o fatual) durao

  • 25

    situacional do significado e aplica-se compreenso geral de mudana cultural e social. O

    que acontece, segundo o autor, que a estrutura tem uma diacronia interna, o que ocasiona

    que os conceitos bsicos [sejam] conduzidos atravs de estgios sucessivos de combinao e

    de recombinao, produzindo ao longo do caminho termos novos e sintticos.72

    A prtica, assim, tanto emerge da estrutura, quanto a reproduz e transforma. A

    estrutura, ao mesmo tempo em que tem um efeito poderoso e mesmo determinante sobre as

    prticas, por elas reproduzida e recriada. Podemos ento perguntar: Como a estrutura forma

    a prtica (discursiva)? Como a prtica (discursiva) forma a estrutura?, a fim de compreender

    a gnese, reproduo e mudana de forma e significado de um determinado todo

    social/cultural o Luteranismo Confessional Ortodoxo , levando em considerao suas

    relaes de poder e hegemonia.73

    Uma instituio como a IELB, nessa tica, ao mesmo tempo um sistema de

    relaes sociais, arranjos econmicos, processos polticos, categorias culturais, normas,

    valores, ideais, padres emocionais, e assim por diante,74 que formam estruturas que influem

    nas pr