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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS CUIABÁ-MT/2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA

CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS

CUIABÁ-MT/2014

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JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA

CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos de Linguagem. Linha de pesquisa: Práticas textuais e discursivas: múltiplas abordagens Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.

CUIABÁ-MT/2014

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Ficha catalográfica

Alcântara, Jean Carlos Dourado de. Curta-metragem: gênero discursivo propiciador de práticas Multiletradas / Jean Carlos Dourado de Alcântara – Cuiabá: UFMT, 2014. 138 f. :il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagem, Programa de pós-graduação em estudo de linguagem, 2014. Orientação: : Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha. 1. Linguística. 2. Curta-metragem. 3. Linguagem - filosofia. 4. Teoria – cinema. 5. Bakhtin, Mikhail

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Dedico esta conquista ao pequeno Matheus, que veio ao mundo para me constituir enquanto sujeito pai.

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AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, em especial à Maria Santíssima

de Lima;

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – MeEL, em especial à

Divanize Carbonieri;

À Secretaria Estadual de Educação de MT – SEDUC, em especial à Angelise Cecília

Carmo Verlangieri;

Ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMT – Sintuf-MT, em especial à

Leia Souza de Oliveira;

Aos teóricos e autores consultados para esta pesquisa, em especial ao Mikhail

Bakhtin;

A todos os meus professores, desde a pré-escola até o mestrado, em especial à

professora Simone de Jesus Padilha;

A todos os amigos e colegas que contribuíram com este trabalho, em especial à

Dinaura Batista de Pádua;

A todos os familiares que contribuíram com este trabalho, em especial à Donata

Alves Bonfim (minha mãe).

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RESUMO

Diante do crescente aumento dos recursos audiovisuais que têm adentrado o espaço escolar atualmente, esta pesquisa objetiva refletir sobre o uso didático da linguagem audiovisual, mais especificamente a do curta-metragem, por professores de língua portuguesa na construção de suas práticas de ensino. Discutimos, neste trabalho, não apenas o caráter pedagógico dessa ferramenta, mas também o seu potencial de produzir transformação nos alunos, tornando-os sujeitos ativos na construção e negociação de sentidos. Buscamos também, por meio do estudo da linguagem cinematográfica, caminhos que levem à valorização e respeito ao cotidiano, à diversidade e à pluralidade dos estudantes, conforme preceituado pelos PCN. Nossas reflexões têm como base as experiências de professores que se serviram do projeto Curta na Escola, desenvolvido pela Petrobrás, desde 2006, o qual disponibiliza em seu site curtas-metragens brasileiros, acompanhados de sequências didáticas, para uso de profissionais cadastrados. Nos relatos selecionados, buscamos verificar, por meio das práticas de ensino, as concepções de linguagem adotadas pelos professores, bem como sua relação com a linguagem do cinema e seus sistemas representativos. Esta pesquisa está respaldada pela teoria enunciativo-discursiva, de abordagem sócio-histórica, elaborada pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. Além disso, buscamos, à luz da teoria do cinema, compreender o processo de produção de sentidos pela linguagem audiovisual, utilizada nas produções cinematográficas. E, por fim, estabelecemos um diálogo entre as duas teorias, a fim de constatar a natureza dialógica também presente na linguagem cinematográfica. Para isso, aplicamos, nos enunciados fílmicos, bem como na análise dos relatos, categorias bakhtinianas, tais como: dialogia, exotopia, excedente de visão, cronotopia etc. Após análise dos dados, concluímos que os professores ainda carecem de formação para lidar com a linguagem audiovisual numa perspectiva enunciativo-discursiva. Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para que os docentes preencham essa lacuna ao lidar com as representações cinematográficas. Palavras-chave: Dialogismo. Cinema. Curta-metragem. Discurso. Linguagem.

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ABSTRACT

In view of the growing amount of audio-visual resources that have entered into the

school currently, this research aims to reflect about the didactic use of audiovisual

language, specifically the short film, by Portuguese teachers in the development of

teaching practices. The intention was to discuss not only the pedagogical nature of

this tool, but also its potential to produce a transformation in students, making them

active subjects in the construction and negotiation of meanings. Through the study of

film language, It also sought paths that lead to the valuing and respect to the daily

situations, to the diversity and plurality of the students, as specified by the NCP. Our

reflections will be based on the experiences of teachers who have used the Short

School project, developed by Petrobras since 2006, which provides on its site

Brazilian short films. Each short is accompanied by didactic sequences, for use by

registered educators. We seek to verify In selected reports, through teaching

practices, conceptions of language adopted by teachers, as well as their relationship

with the language of cinema and its representative systems. This research is

anchored in the enunciation-discursive theory, of social-historical approach,

developed by Russian philosopher Mikhail Bakhtin. In addition, we seek, in the light

of the cinema theory, understand the process of meaning production of audiovisual

language, used in film productions. And, finally, we establish a dialogue between the

two theories, in order to determine the dialogic nature also present in film language.

To achieve this We applied Bakhtinian categories in the analyze the reports, such as:

dialogism, exotopy, surplus of seeing, chronotope etc. After analyzing the data, we

concluded that teachers still need training to tackle with the audiovisual language in a

enunciative-discursive perspective. Through this research, We intend to contribute

for the teachers fill the gap by dealing with cinematic representations.

Keywords: Dialogism. Cinema. Short film. Speech. Language.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO I 16

GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,

POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS 16

1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica 17

1.2 Curta com personalidade 20

1.3 Demarcando território 21

1.4 Espaço público e independência: a reconquista 24

1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo 26

1.6 Pertinência didático-pedagógica 31

CAPÍTULO II 38

CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO 38

2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo 39

2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin44

2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do

discurso cinematográfico 48

2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva 48

2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida 54

2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada 57

2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento 61

2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo 65

2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido 72

CAPÍTULO III 80

ANÁLISE DOS DADOS 80

3.1 Fundamentos Metodológicos 80

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3.2 Procedimentos metodológicos 82

3.3 Análise dos relatos 85

3.4 O Lobisomem e o Coronel 86

3.5 Velha História 92

3.6 Ilha das Flores 97

3.7 Negócio Fechado 105

3.8 Xadrez das Cores 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS 118

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124

ANEXOS 129

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INTRODUÇÃO

O Cinema, há muito tempo, tem sido notadamente uma profícua ferramenta

pedagógica utilizada pela escola nas aulas de linguagem. Contudo, segundo Duarte

(2002), essas instâncias culturais não se reconheciam enquanto parceiras na

formação social do sujeito. Isso acontecia porque o filme, na maioria das vezes, era

utilizado como pretexto para introduzir algum conteúdo curricular, ou como forma de

preencher o tempo. Tal postura se deveu, em parte, à omissão dos teóricos em

educação em refletir e orientar práticas educativas nas quais o texto fílmico

estivesse presente, gerando um hiato entre cinema e educação.

No entanto, segundo Sousa (2005), a partir dos anos 2000, com Robson

Loureiro, Rosália Duarte e Marcos Napolitano, emerge uma preocupação no meio

acadêmico em impingir um caráter educativo formal aos estudos de cinema e sua

relação com o ensino. A partir daí, com a presença cada vez mais frequente dos

filmes em ambientes escolares, tornou-se evidente a necessidade de assumir o

cinema enquanto objeto de pesquisa obrigatório nos estudos educacionais.

Essas iniciativas investigativas acerca do uso de filmes, inicialmente longas-

metragens, em sala de aula, revelaram o potencial desse recurso para desenvolver

nos estudantes certa medida de competência nos âmbitos socioculturais, linguísticos

e comunicacionais. Todavia, por questões estruturais, curriculares e temporais, o

uso do longa mostrou-se inadequado. Atualmente ele tem sido utilizado de forma

cada vez mais esporádica nas escolas, como em datas comemorativas, semanas

culturais ou eventos científicos promovidos pelas instituições de ensino. Por outro

lado, os filmes de curta-metragem, dada a sua duração e relativa acessibilidade,

resolveriam esse inconveniente. No entanto, os professores ainda não aderiram

plenamente ao gênero curta como elemento pedagógico substituinte dos longas-

metragens em sala de aula.

Diante disso, colocada a necessidade de pensar sobre a incontestável

presença do cinema na escola, considerando também a exiguidade dos estudos que

se dedicam a deslindar essas questões acerca do curta-metragem, coube-nos

propor esta pesquisa, cujo objetivo geral é elaborar uma descrição reflexiva acerca

das concepções e formas como esse gênero discursivo vem sendo utilizado pelos

professores em sala de aula. A ideia é conhecer melhor os reflexos, implicações e

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potencialidades pedagógicas concernentes ao uso dessa ferramenta no âmbito

escolar. Além disso, buscamos também investigar a razão da parca adesão por

parte dos educadores a essa variante curta do cinema e, em que pese à resistência

em utilizá-la de forma mais efetiva, procuramos fundamentar, teórica e

pragmaticamente, a eficácia do seu emprego no ensino de língua materna.

E como objetivos contíguos, tencionamos oportunizar novas perspectivas com

relação à linguagem cinematográfica, dar a conhecer possibilidades outras de leitura

que esse gênero proporciona, tanto nos aspectos cultural e ideológico quanto no

aspecto textual. Ambicionamos também propiciar ao leitor parâmetros de análise e

interpretação do texto fílmico, de como explorar os recursos e estratégias utilizados

pelo discurso cinematográfico e seus modos de significação e produção de sentido;

empenhamo-nos igualmente em demonstrar o efeito potencializador que as

narrativas fílmicas exercem na capacidade dos alunos de interpretar textos verbais,

por meio do confronto com outros gêneros que circulam socialmente, bem como as

possibilidades de uso didático de curtas-metragens nas atividades de leitura e

escrita.

Tais objetivos nortearão a busca de respostas às nossas perguntas de

pesquisas: 1- Qual a concepção de linguagem adotada pelo professor de Língua

Portuguesa na sua prática com curta-metragem? 2- Quais as motivações levam o

professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula? Por último e não

menos importante: 3- Quais as dificuldades mais recorrentes encontradas nesse

processo?

Ao levantarmos tais questões, partimos dos pressupostos de que os recursos

mencionados no parágrafo anterior, em princípio, fortes aliados metodológicos nas

aulas de Língua portuguesa, vêm sendo utilizados, na maioria das vezes, de forma

infecunda, banalizada e deturpada, sendo relegados ao plano do mero

entretenimento, ou pretexto para o ensino da norma culta da língua, ou ainda como

meio de abordar temas transversais; e que tais fatores podem obstar a aplicação, de

forma efetiva, dos aspectos comunicativos da linguagem não verbal, bem como

mitigar seu potencial discursivo.

E para confirmar, ou não, essas e outras conjecturas, partimos das

experiências concretas vivenciadas em sala de aula por professores de língua

portuguesa que fizeram uso de curtas-metragens, conforme relatos publicados no

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site do projeto Curta na Escola1, desenvolvido pela Petrobrás. O objetivo do projeto

é incentivar o uso de filmes de curta metragem brasileiros como material de apoio

pedagógico em sala de aula. A iniciativa já consolidou, e vem ampliando a cada dia,

uma rede colaborativa de aprendizagem em torno de conteúdos relacionados ao uso

desses recursos em escolas de todo o país. Essa rede é alimentada por meio de

comentários, discussões em fóruns e, principalmente, pelo envio dos relatos por

parte dos professores que fizeram uso dos filmes com seus alunos em suas práticas

de ensino.

PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

Idealizado em 2006, o projeto oferece indicações de uso pedagógico para

centenas de curtas, cuja exibição é disponibilizada por meio do site. Profissionais

especializados produzem pareceres sobre como utilizar os curtas em cada

disciplina, bem como orientações de como abordar os temas transversais utilizando

as temáticas apresentadas nos filmes. Aos professores cadastrados é concedido um

espaço no banco de relatos, no qual suas experiências e estratégias relacionadas ao

uso dos curtas-metragens, baseadas nos pareceres dos especialistas ou não,

1 Disponível em: <http://www.curtanaescola.org.br/ >. Acesso em: 15/06/2013.

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podem ser compartilhadas com milhares de outros educadores. E para aqueles que

possuem cadastro, é permitida a criação de sua própria cinemateca para fazer uso

dela no momento mais adequado, além de poderem compartilhar os links dos filmes

assistidos nas redes sociais das quais fazem parte. Os curtas são organizados e

classificados a partir de critérios como faixa etária, séries em que podem ser

trabalhados, bem como as disciplinas e os temas transversais aos quais podem ser

relacionados.

PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

Em 2007 o projeto lançou, em DVD, a Coleção Curta na Escola, que já está

no terceiro volume. São três compêndios compostos de seleções de curtas-

metragens, considerados pela equipe de educadores do projeto de alto potencial

didático. Todos os filmes selecionados vêm acompanhados de planos de aulas

elaborados por uma equipe multidisciplinar de professores, que indicam alguns

caminhos possíveis para uso didático dos curtas em diversas disciplinas, dentre elas

Língua Portuguesa. Até o momento, cerca de 4 mil escolas da rede pública de todo

o país já foram beneficiadas com os DVDs da coleção, patrocinada pela Petrobrás e

distribuída de forma gratuita. Para esta pesquisa vamos utilizar o primeiro volume da

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coleção, o qual contém oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações

metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa.

PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

É nesse universo que se encontra nosso objeto de pesquisa, o qual será

explanado mais detalhadamente na seção metodológica. Passemos agora à base

teórica que fundamenta esta pesquisa.

Este trabalho está calcado na teoria do pensador russo Mikhail Bakhitn,

principalmente no que diz respeito à concepção de linguagem, dialogia, alteridade e

interação verbal. Outros conceitos desenvolvidos pelo filósofo, tais como exotopia,

excedente de visão, arquitetônica, cronotopia e a relação que ele estabelece entre o

ético e estético, bem como entre o autor e o herói, também serão imprescindíveis

para nosso estudo e fundamentais para entendermos melhor a linguagem

cinematográfica. Tais noções tornam-se especialmente importantes para discutir a

autonomia entre as vozes que se fazem presentes nas produções cinematográficas

de hoje, cada vez mais centralizadas na figura do diretor. A base do pensamento

bakhtiniano reside na estreita relação que ele estabelece entre o mundo ético, ou

seja, o mundo em si, a realidade, e o mundo estético, ou seja, sua representação

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por meio da linguagem. A partir daí, ele estrutura a arquitetônica do seu

pensamento, na qual a relação com o outro ocupa um lugar de centralidade.

Acreditamos sim que seja possível abordar o estudo da linguagem

cinematográfica sob a ótica de Bakhtin, embora este nunca tenha realizado algum

estudo sobre o cinema e seu sistema de significação. No entanto, partindo do

pressuposto de que o cinema tornou-se um meio de informação e expressão

artística, a linguagem passa a compor de forma intrínseca esse processo. E sendo

a linguagem a ponte necessária para qualquer interação, julgamos pertinente pensar

a linguagem do cinema e seu potencial educativo à luz das teorias bakhtinianas

acerca das interações sociais. Robert Stam (1992) obteve sucesso ao aplicar o

pensamento de Bakhtin à teoria do cinema, quando empregou, ao analisar

Macunaíma (1969), o conceito de carnavalização, que tem como mote central a

sátira e a inversão da hierarquia dominante, presente no texto “A Cultura Popular na

Idade Média e no Renascimento” (BAKHTIN, 1987).

Assim também procedendo, tentamos, na medida do possível, erigir nossas

análises dos filmes e das experiências relatadas pelos professores com base nas

categorias do pensamento bakhtiniano mencionadas acima, visando identificar e

esclarecer os processos linguísticos e interacionais presentes na relação entre o

sujeito social professor, o aluno e a linguagem cinematográfica, bem como seus

efeitos de sentido, seja na sala escura do cinema, seja no ambiente formal da

escola. Como constatado por Robert Stam (1992, p.59), “Embora a influência de

Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que

vão da crítica literária à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua

fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...)”.

E assim como Stam (idem), prosseguimos reverberando esse diálogo

imaginário com Bakhtin a respeito de um tema sobre o qual o pensador russo nunca

tinha mencionado. Atende-se, portanto, sua convicção com relação à capacidade

das obras, ao caírem no grande tempo, de se enriquecerem com novos sentidos,

sendo o “autor um prisioneiro de sua época, de sua atualidade, esperando que os

tempos posteriores o libertem dessa prisão” (BAKHTIN, 2003, p.364).

No que se refere à ordenação metodológica, este trabalho está organizado

em três etapas que, embora distintas, se complementam. A primeira parte dedica-se

à contextualização histórica e caracterização do gênero curta-metragem, bem como

à fundamentação do seu potencial didático em sala de aula. No segundo capítulo,

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mergulhamos nas concepções teóricas sobre linguagem e cinema, bem como sobre

o uso de meios audiovisuais, sobretudo o cinema, no processo de letramento em

língua materna. E por último, buscamos demonstrar, por meio das análises dos

relatos, como interpretar um enunciado audiovisual, de modo a encará-lo como uma

unidade de sentido e não como mera ilustração para explicar o conteúdo do

currículo. Além disso, nessa etapa, ressaltamos as múltiplas possibilidades de

exploração didática que o gênero curta-metragem oferece para trabalhar de forma

dialógica o estudo de linguagem, embora não seja essa a sua natureza. Os

fundamentos e os procedimentos metodológicos da pesquisa e análise dos dados

estão detalhados no capítulo III.

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CAPÍTULO I

GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,

POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS

Neste capítulo, buscamos oferecer ao leitor uma noção do conceito de curta-

metragem, suas características definidoras e sua evolução como gênero discursivo.

Pretendemos, também, abordar seus aspectos históricos, bem como a política

econômica que, de certa maneira, deu os contornos que atualmente ele apresenta.

E por último, idealizamos elencar algumas vantagens de usar este gênero nas aulas

de linguagem, sobretudo se comparado com o longa-metragem. Na última seção,

procuramos fundamentar a aplicabilidade, bem como a pertinência pedagógica de

usar o curta-metragem como instrumento de ensino nas aulas de língua portuguesa.

Além disso, pretendemos, tendo como norte balizador os PCN, apresentar

possibilidades de aplicação concretas desse recurso em sala de aula.

Discutimos ainda o papel a ser desempenhado pelo professor na utilização

dessa ferramenta, desde a escolha do material até o desfecho do processo, com

vistas a contribuir para o ainda tímido emprego dos curtas no ensino de língua

materna. E, embora este trabalho não seja sobre curta-metragem, e sim sobre

professores que fazem uso dele em sua prática de ensino, faz-se mister trazer à luz

informações de natureza técnico-histórica sobre esse tipo de filme, que nos ajudarão

a entender melhor a importância desse gênero como um canal por meio do qual

múltiplas vozes puderam e ainda podem ecoar seus pensamentos de modo livre e

democrático.

Nos primórdios da história do cinema, a definição do curta-metragem era

associada a uma limitação técnica. Dessa forma, a produção de curtas não era uma

questão de escolha de seus produtores; ao contrário, tratava-se da única forma

possível de realização cinematográfica naquele momento embrionário das

produções cinematográficas. Mais de cem anos se passaram, as possibilidades e

aparatos tecnológicos se multiplicaram, os avanços estéticos vieram e algumas das

características e critérios que identificavam um curta-metragem naquela época ainda

são válidos até hoje: um curta-metragem é definido pela sua extensão. Todavia,

esse conceito foi adquirindo propriedades controversas. Cada vez mais surgiam

posições díspares e opiniáticas em torno da definição de um curta-metragem.

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Segundo definição da maioria dos dicionários, esse tipo de produção é definido

como Filme Curto, cuja duração é geralmente inferior a 30 minutos.

No entanto, as características de um curta-metragem vão muito além do seu

formato. Outras propriedades relacionadas à sua curta duração conferem-lhe

peculiaridades discursivas importantes, como o reduzido número de personagens e

diálogos, condensação narrativa que, por sua vez, leva à condensação da

linguagem e da ação; tempo da história, na maioria dos casos, linear;

verossimilhança com a realidade, grande carga emotiva e sugestiva, além de

apresentar desfechos geralmente surpreendentes. E, pela sua natureza

cinematográfica, é grande a possibilidade de veicular conteúdos culturais com

valores educativos. Por isso mesmo, torna-se uma fonte inesgotável e valiosa para

trabalhar aspectos da interação humana, como cultura e linguagem.

Mas algumas dúvidas ainda restam com relação ao que vem a ser um curta-

metragem. Ribeiro (2013) problematiza levantando a seguinte indagação: Embora

quase todos os dicionários estipulem o limite máximo de 30, 40 e até 50 minutos,

haveria um limite mínimo para um filme curto? Outra controvérsia lembrada por ela

refere-se ao nome “curta-metragem”, em oposição ao “longa-metragem”. Dessa

relação, pode-se deduzir, pondera a pesquisadora, que ambos estariam inseridos na

categoria “filme cinematográfico”. No entanto, a realidade sugere outra classificação

aos curtas, a de “produção audiovisual”, uma vez que sua difusão e exploração

comercial não estão, a princípio, direcionadas para as telas das salas de cinema,

embora partilhe das características definidoras de um filme cinematográfico. Essa

questão será tratada com mais profundidade na seção que se segue.

1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica

Para além de uma investigação sobre a definição do curta-metragem, faz-se

necessário um levantamento histórico do processo de formação e transformação

pelo qual o curta passou desde que se fez presente no Brasil. Qualquer conclusão

sobre o assunto baseada apenas em sua conjuntura atual seria superficial e até

mesmo equivocada. Na abordagem dialógica na qual nos baseamos, entendemos

que qualquer concepção, sobre qualquer assunto, é construída de forma dialogal

com os aspectos sócio-históricos que a constituem. Assim, consideramos

indispensável conhecer a história do gênero curta-metragem desde sua gênese no

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Brasil, bem como os fatos e circunstâncias sócio-políticas e culturais com os quais

se relacionou.

Desde 1895, com a invenção dos irmãos Lumière, mesmo com imagem

ampliada, o que se via eram filmes no formato curto, o único disponível naquele

período, haja vista as limitações da época. Superada essa fase, com a evolução

técnica e estética, da qual rapidamente se apropriou a indústria cinematográfica, o

curta adquire um caráter de complemento, uma espécie de coadjuvante do longa-

metragem. Perde sua posição de atração principal e assume uma posição

complementar em relação ao longa, formato que prosperava e atingia o gosto da

maioria das pessoas, cada vez mais submetidas à cultura de massa - motivo

suficiente para um maciço investimento da indústria cultural, que logo organizou um

sistema de comércio cinematográfico, de distribuição e, principalmente, de exibição,

que crescia dia a dia, o que resultou na consolidação da cultura do entretenimento

(NETO, 2012).

Diante desse fenômeno, já na década de 1950, o cinema passa a ser

encarado principalmente como divertimento, fator que passa a balizar o mercado

cinematográfico, tornando-se uma febre mundial, seguindo, em todos os cantos, o

modelo norte-americano. O fato é que o curta foi, de forma progressiva e rápida,

perdendo seu espaço, uma vez que o longa caiu no gosto popular - critério

necessário e suficiente, na lógica de mercado, para investir sem reservas no produto

em questão, no caso o longa-metragem. Ao curta restou a função de laboratório

para inovação e experimento de novas linguagens por parte da indústria

cinematográfica, sobretudo pelo seu baixo custo de produção. E o longa é eleito o

formato apropriado para competir no acirrado mercado do entretenimento

(BERNADET, 1995; DUARTE, 2002; NETO, 2012).

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e a implantação do Estado Novo

no final da década de 1930, o curta-metragem adquire novos e imprescindíveis

papéis, agora, com proteção oficial. Não deixou de ser um complemento, mas desta

feita com status de oficialidade, novos tempos para o curta-metragem. O gênero

deixa de assumir uma posição de coadjuvante e passa a protagonizar um papel

fulcral, não nas salas de cinema, mas na educação. Os curtas-metragens passam a

ser instrumentos de ensino e meio de veiculação da ideologia varguista, baseada no

nacionalismo integrador. Isso só foi possível devido às mudanças realizadas no

processo de produção, distribuição e exibição de filmes, até então regulado apenas

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pelas leis de mercado. A ideia dos getulistas de universalização do ensino e da

informação, principalmente a oficial, valorizou os canais de difusão cultural e impôs

uma nova relação entre cinema e o poder (ALENCAR, 1988; NETO, 2012).

É nesse cenário que surge o intelectual, extremamente nacionalista,

admirador ardoroso dos novos meios de comunicação de massa, Roquette Pinto. É

ele quem vai conduzir um inédito processo de construção de uma legislação para a

indústria cinematográfica, até então regida apenas pelo mercado. A partir disso, ao

filme estrangeiro foi imposta a obrigação de pagar uma taxa, a qual tinha o objetivo

de financiar a produção de filmes curtas nacionais de caráter educacional. Uma

medida governamental fixa uma proporção de filmes educativos nacionais a serem,

obrigatoriamente, exibidos nas salas de cinema em todo o país. E, em 1936, o

governo pedetista de Getúlio Vargas, tendo como mentor intelectual Roquette Pinto,

cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que passa a produzir filmes

curtos de caráter educativo. “Em seis anos, o órgão produziu cerca de 200 curtas

escolares, encaminhados para escolas e institutos culturais, bem como para os

circuitos de exibição pública de todo o país” (apud: Neto, 2012, p. 33).

Até aqui, temos um quadro no qual o curta-metragem figura como agente

didático de brasilidade, totalmente financiado pelo estado, não passando de mero

reprodutor de conhecimento e de propaganda ideológica, situação que impedia a

produção ficcional e autoral, uma vez que a perspectiva artística não interessava ao

financiador. A visão de que a narrativa ficcional e o entretenimento visando ao lucro

cabiam ao longa-metragem perpetuou absoluta até a década de 1960

(ALENCAR,1988; BERNARDET, 1995).

E é nesse período que alguns cineastas mineiros, entre eles Humberto

Mauro, começam a criar um ambiente fértil para o renascimento, ou retomada, da

chamada produção autoral. Ele inaugura um período em que os produtores,

influenciados por movimentos como o francês Nouvelle Vague, e o americano

Cinema Direto2, passam a buscar novos modelos estéticos produzidos pelo então

cinema moderno do pós-guerra. Um novo modelo de curta-metragem se impõe aos

certames brasileiros, graças, em parte também, a festivais internacionais, que

2 Movimentos artísticos dos cinemas francês e americano que se inserem no movimento contestatário

próprio dos anos sessenta. Participavam desse movimento novos cineastas, sem grande apoio financeiro. Os primeiros filmes dessa escola eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma vontade comum de transgredir as regras normalmente aceitas para o cinema mais comercial.

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passam a influenciar a estética, inclusive, de longas. Inaugura-se, então, como

veremos em seguida, uma nova etapa para o curta-metragem no Brasil (NETO,

2012).

1.2 Curta com personalidade

A partir do final da década de 1950, jovens autores, sedentos de expor suas

habilidades em produzir narrativas ficcionais, sem uma finalidade propriamente

didática, mas como expressão estética, ávidos a mostrar suas visões de mundo por

meio da sétima arte, cansados de produzir um cinema acrítico e de ser sala de

espera para os longas internacionais, partem para uma nova etapa da produção de

curtas no Brasil. Nesse período passam a abordar livremente os reais problemas da

sociedade brasileira, bem como explorar com mais liberdade os aspectos da

linguagem cinematográfica, agora voltada para uma nova estética, a do cinema

novo. Apesar dos primeiros filmes dessa época ainda serem, em parte, financiados

por órgãos fomentadores do governo e ainda apresentarem resquícios do modo

didático de produção, ainda um pouco reticentes diante das avançadas técnicas

trazidas pelas vanguardas da época, já era possível perceber um discurso mais

ousado, independente, diferente dos “envernizados”, produzidos pelo INCE (NETO,

2012).

É nessa época que os curtas brasileiros de ficção, como Couro de Gato, de

Joaquim Pedro (1961), ganham vários prêmios em festivais internacionais,

fenômeno que reforça a convicção da capacidade de produtores brasileiros

realizarem curtas autorais de ficção, de forma independente, afastando-se cada vez

mais do padrão “Complemento Nacional”. E, para coroar o bom momento do curta

nacional, uma tendência já praticada na Europa chega ao Brasil. Tratava-se de um

expediente que juntava alguns curtas transformando-os em um longa, estratégia

que, além de reduzir significativamente o custo da produção, garantia-lhes um

espaço na exibição pública nas principais salas de cinema do país. Foi assim com

Couro de gato, acoplado a Um favelado, de Marcos Farias, por sua vez acoplado

ao Zé da cachorra, de Miguel Borges, também acoplado ao Escola de samba,

alegria de viver, de Carlos Diegues e ao Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman,

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formando o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE3 (ALENCAR,

1988; NETO, 2012).

Com o crescente interesse dos jovens autores pela produção cinematográfica,

surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. A UNB, com Nelson Pereira e

Jean-Claude Bernardet, toma a frente no projeto de fundar um curso de graduação

em cinema, sonho interrompido pelo endurecimento do regime militar. Diante dessa

tentativa frustrada, Pereira realiza nova investida, desta vez bem sucedida, em

Niterói – RJ, fundando o curso de cinema da UFF. Já Bernardet volta a São Paulo e

cria o curso de cinema na ECA – USP. O formato curto, por questões financeiras,

será o modelo de filme escolhido para as produções universitárias. E mais uma vez

o curta-metragem é protagonista num momento importante da história. Em uma

época de crescente endurecimento político, eles serão um importante instrumento

estético de militância e resistência.

Com a criação de vários cursos de cinema pelo país, o Jornal do Brasil,

visando à produção dessa nova geração de cineastas, prestes a se lançarem no

mercado, cria o Festival Brasileiro de Cinema Amador. Na sua primeira edição, em

1965, teve como tema o quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro. Os filmes

foram exibidos no cinema Paissandu, ponto de encontro de muitos diretores

famosos e críticos consagrados de cinema. Jovens produtores, os quais ficaram

conhecidos como „geração Paissandu‟, sonhavam com uma carreira de cineasta.

Eles queriam ser vistos e comentados pelos seus ídolos presentes no festival. Todos

desejavam fazer parte do movimento de mudança em processo. Muitos curta-

metragistas tiveram suas carreiras de cineasta alavancadas com o sucesso obtido

pelo festival, que passa a se chamar, a partir de 1971, Festival Nacional de Curta-

metragem. Começa aí uma nova era para o curta no Brasil.

1.3 Demarcando território

Os novos produtores queriam ser reconhecidos e exigiam a intervenção do

estado na política de distribuição e exibição de filmes nacionais; no entanto, não

abriam mão da experimentação de novas linguagens e da crítica frente ao sistema

que ficou conhecido como anos de chumbo. O fato era que o governo possuía

3 Centro Popular de Cultura, organização associada à União Nacional de Estudantes - UNE, criada

em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma "arte popular revolucionária".

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programas de fomento oficiais via Embrafilme, mas jamais financiaria filmes de

caráter crítico, que revelassem as mazelas da sociedade brasileira da época. Na

concepção oficial, o cinema deveria prestar-se unicamente a entreter a população.

Esta era a função primeira do cinema: proporcionar filmes com abordagens lúdicas,

pouco politizadas, desvinculados da vida concreta. Por outro lado, os autores da

época queriam fazer uso expressivo de uma estética não oficial, a estética das ruas,

dos guetos, do lixo, experimentar novas linguagens, não padrão, como forma de

fazer frente ao regime militar (ALENCAR, 1988).

Diante de toda essa dificuldade de ordem financeiro-estrutural e da

imprescindibilidade de testemunhar cinematograficamente aquele período histórico

de forma crítica, surge o associativismo. Era preciso garantir o direito de expressar

visões díspares da propaganda oficial, que também se utilizava do mesmo recurso,

porém muito mais bem paramentada (MOURA, 2003). Esse movimento foi fruto da

luta política por mais espaço e liberdade estética. Nessa toada, é fundada, em 1973,

a Associação Brasileira de Documentaristas, que, apesar do nome, acolhia não só

os produtores de documentários, mas também os curta-metragistas ficcionistas.

Essa iniciativa produziu um efeito muito positivo para os produtores da época, os

quais tiveram seus filmes vistos em vários festivais amadores e profissionais de

curta-metragem. Esse período teve seu auge no início dos anos 80 com a criação da

CORCINA - Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos (ídem).

Mas era preciso ampliar a esfera de circulação dessas produções, as quais só eram

exibidas em festivais e centros culturais.

A grande luta dos produtores era a regulamentação da exibição dos curtas

ficcionais nas salas de cinema, dominadas exclusivamente pelos grandes produtores

de longas. Depois de muitas reivindicações e debates com produtores e governos, a

ABD conseguiu, finalmente, em 1979, a elaboração e aprovação da chamada Lei do

Curta. Tal dispositivo legal pôs fim a uma inquietude de há muito por parte dos curta-

metragistas ficcionais. A lei regulou a exibição do curta ficcional, experimental e

documentários nas salas do circuito comercial de todo o país. O órgão responsável

por fiscalizar e fazer com que a lei se cumprisse foi o CONCINE – Conselho

Nacional de Cinema4. Esse acordo estendeu a obrigatoriedade, em todo o país, de

4 O CONCINE tinha como objetivo formular políticas para o cinema brasileiro, bem como normatizar e

fiscalizar as atividades cinematográficas no país, como produção, reprodução, comercialização, venda, locação, permuta, exibição, importação e exportação de obras cinematográfica.

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exibição de curtas-metragens brasileiros antes dos longas estrangeiros. Começava

aí um novo ciclo para o gênero curta-metragem no Brasil.

Diante do sucesso alcançado pelos curta-metragistas independentes,

produtores da grande indústria cinematográfica começaram a produzir seus próprios

curtas de baixa qualidade, com o único objetivo de fazer com que o público se

voltasse contra o gênero e protestasse contra sua obrigatoriedade nas salas do

circuito oficial de cinemas. Mais uma vez, foi necessária a intervenção do CONCINE,

o qual, por meio de uma resolução, institui o chamado “sistema do curta-metragem”.

Essa medida criava um júri especial composto por membros da ABD, da Embrafilme,

do Sindicato dos Produtores de curta-metragem e por intelectuais pesquisadores de

cinema, os quais passaram a selecionar os filmes considerados aptos a serem

exibidos, garantindo com isso a qualidade das obras a serem assistidas pelo púbico.

Além disso, outra resolução do CONCINE cria um fundo, mantido por um percentual

da renda das sessões de cinema em todo o país, para fomentar a produção do

curta, fato que o levou a presenciar sua melhor fase, sendo chamada, segundo

Caetano (2006 apud NETO, 2012), de “Primavera do Curta”.

Ante as conquistas e transformações pelas quais passou o filme curto no

Brasil, os frutos não tardariam a chegar. Um dos curtas mais aclamados de todos os

tempos, Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, ganha o Festival de Berlim, em

1989, sendo eleito pela crítica europeia um dos 100 curtas mais importantes do

século XX. Esse sucesso foi resultado da intensa interação entre produtores de

curtas ficcionais e documentaristas que conviveram por muito tempo na ABD,

período em que sofreram influências mútuas dos estilos e linguagens de cada

gênero. Resultado disso, tivemos o curta mencionado, que, dentro de um panorama

metalinguístico, faz uma paródia dos estilos já consagrados, além de criticar a

suposta objetividade e autoridade da linguagem documental até então praticada,

sem deixar de ser também um documentário, embora haja controvérsia. O mesmo

sucesso é obtido por A garota das telas (1988) e Frankestein Punk (1986),

de Cao Hamburger, e A revolta dos carnudos, de Eliana Fonseca (1988) (NETO,

2012). Contudo, o “sistema do curta-metragem”, cujo sucesso era patente, teve seu

fim com a chegada de Fernando Collor ao poder em 1990. Com sua avidez por

privatização, põe fim à Embrafilme, aos CONCINES e conselhos afins. Mais uma

vez, o curta precisa se reinventar, uma nova batalha recomeça.

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1.4 Espaço público e independência: a reconquista

A era Collor desestruturou um sistema que vinha funcionando de forma

equilibrada. A produção cinematográfica reduziu drasticamente, inclusive dos

longas. Em meio a essa falta de perspectiva para a produção e exibição de filmes

curtos nacionais, as salas de exibição do circuito de cinema voltam a sofrer o

monopólio dos filmes estrangeiros, sobretudo das produções homogêneas norte-

americanas. É nesse cenário desanimador que produtores apaixonados e amantes

do gênero, frutos da “primavera” da década anterior, engendram, em 1990, o

Festival Internacional de Curtas de São Paulo e, anos depois, no Rio de Janeiro,

criam o Curta Cinema. Esses dois espaços foram os responsáveis pela

reorganização e reestruturação do gênero, tornando-se referenciais de apoio, crítica

e divulgação do curta-metragem até os dias de hoje. Produções como Esta não é

sua vida e A matadeira (1991), de Jorge Furtado, revelam que os novos cineastas

mantêm muito da estética da época primaveril dos curtas, mas apresentam uma

nova tendência significativa.

Nota-se, nesse período, um certo arrefecimento da ficção e um ressurgimento

da preocupação com as questões sociais, fato que reivindica uma estética que

explore o aspecto poético da linguagem, sem, contudo, perder a ligação com a

realidade, com a vida. Essa tendência pode ser percebida nos documentários Vala

Comum (1994), de João Godoy e Socorro Nobre (1995), de Walter Salles (RAMOS,

2004). Outro fenômeno importante é o surgimento de subgêneros do curta-

metragem, como o curta-piada5 e o curta-portifólio6, os quais ganham simpatizantes

e depreciadores na mesma proporção. Independentemente da aprovação ou

desaprovação dos cinéfilos de plantão, o fato é revelador, na medida em que

evidencia a potência criativa desse gênero. E essa plasticidade criativa do gênero

curta ocorre em razão de não haver restrição a que estão submetidos os longas

comerciais no seu processo de criação e produção.

Essa nova retomada da produção de filmes curtas no Brasil demonstrou que,

por fim, o gênero tinha alcançado uma estabilidade permanente. Tal afirmação é

5 São curtas que contam, de forma humorada, histórias que teriam tudo pra ser um drama. Uma

forma descontraída de fazer crítica social. Como forma de denúncia, brincam com elementos que revelam as mazelas sociais. 6 São curtas produzidos por diretores que possuem a intenção de atuar com longas. Por isso não têm

compromisso com a estética e linguagem próprias do gênero. Esse tipo de produção está bem próximo dos padrões comerciais de um longa, porém no formato curto.

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possível por duas razões. A primeira está vinculada ao fato de diretores já

consagrados preferirem criar seus filmes no formato curto, deixando de encará-lo

apenas como trampolim para uma carreira de produtor de longas. Já era possível

construir uma carreira cinematográfica como produtor de curta-metragem. A

segunda razão tem a ver com o incentivo governamental e apoio advindos de

instituições privadas.

Com o impeachment de Collor e ascensão dos tucanos ao poder, cria-se a

chamada renúncia fiscal em favor das artes, e põe-se em prática o plano de retomar

a produção cinematográfica brasileira. Leis de incentivo à cultura são criadas e

milhares de espaços dedicados à arte são espalhados pelo país, tais como os do

Banco do Brasil e do Itaú, para citar os mais importantes. Isso permitiu que outras

regiões, para além do eixo Rio – São Paulo, entrassem para o circuito dos festivais.

No entanto, um fenômeno ainda mais contundente iria selar, de uma vez por todas,

o futuro do curta-metragem.

Em 1995, surge uma novidade que impactaria todos os aspectos da produção

humana, fossem eles científico, cultural ou comercial. Trata-se da Internet. Nunca

uma estrutura de rede representou tão bem o “Tecendo a Manhã”, de João Cabral

de Melo Neto. Enfim, o galo canta e todos podem ouvir, porque há tantos galos

quanto necessários a postos na rede, levando o seu grito a outro e a outros até que

todos possam ouvi-los, e com uma rapidez que João Cabral sequer sonhava. É o

espaço de exibição de filmes curtos mais eficaz e democrático que um produtor

independente puderia desejar. Em 1998, surge o site Portacurtas, que reúne em um

portal milhares de curtas nacionais e os disponibiliza, online, para quem quiser

assistir, em qualquer lugar do planeta. Isso numa época em que a tecnologia

webstreaming7 e a banda larga estavam apenas começando. O site é patrocinado

pela Petrobrás, financiadora das principais produções cinematográficas do país.

O Portacurtas possui atualmente mais de oito mil curtas catalogados, é o

maior banco de dados online de curtas brasileiros. O projeto disponibiliza as fichas

técnicas de todos os filmes, numa cinemateca acessível 24h por dia. Além desse

7 Tecnologia que permite a transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo através das redes. Com

ela, o usuário consegue assistir a filmes ou escutar música sem a necessidade de fazer download, o que torna mais rápido o acesso aos conteúdos online.

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espaço, há outros espaços virtuais, como o Youtube e o Vmeo8, onde o próprio

produtor pode atuar como divulgador e exibidor de seus trabalhos. Por meio da rede,

produtores independentes podem organizar seus próprios festivais, abordando os

temas que desejarem, como é o caso do Festival Internacional de Cinema na

Internet, o Fluxus9.

Tal realidade proporcionada pela internet, na avaliação de Moletta (2009),

levou ao rompimento definitivo da fronteira entre produção cinematográfica e

audiovisual, acabando com a barreira entre película e fita, porque, na web, a

reputação de uma produção não está na bitola do filme ou no formato mini DV ou

HD; o prestígio de um filme está na quantidade de acesso e comentários dos

usuários, através do qual se obtém, em tempo real, a reação do público.

Assim, finalmente, o gênero curta-metragem atingiu sua maturidade, tanto em

independência quanto em público, conquistando de vez liberdade temática, esfera

de circulação e suporte infinitos. A Internet é um espaço onde as hegemonias ainda

encontram resistência. Lugar onde a tendência única perde sua força, um verdadeiro

sítio de exploração, no qual se acomodam e se compatibilizam todas as estéticas,

todas as linguagens e discursos. A internet, espaço não oficial, passou, num

movimento contrário, a influenciar decisivamente os espaços oficiais,

retroalimentando a exibição de filmes nos espaços físicos, impactando a frequência

do público tanto nas salas de cinema quanto nos centros culturais. Os festivais e

premiações, frequentemente, acabam contemplando diretores que começaram sua

carreira cinematográfica na internet.

1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo

Quando pensamos na vasta produção cultural existente no mundo, das mais

variadas natureza, ordem, tipo, categoria, gênero, padrão e outros termos

classificatórios que possam existir, esbarramos com a dificuldade de encontrar

sistemas e teorias classificatórios que deem conta da complexidade dos fenômenos

culturais que atualmente presenciamos. Encontrar uma teoria capaz de abarcar esse

mundo cultural que se nos apresenta, cujas características principais são a

8 Assim como o Youtube, trata-se de um serviço de compartilhamento de vídeos na Internet. Possui

também versões para celulares e tablets. Com ele o usuário pode fazer vídeos e postar diretamente na rede.

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plasticidade, versatilidade e mutabilidade nos parece uma incumbência quase

impossível. De todas as teorias que se propõem a cumprir tal tarefa hercúlea, a que

nos parece mais adequada aos nossos tempos é a teoria de gênero discursivo

concebida pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Isso porque suas proposições

teóricas levam em conta aqueles aspectos pertinentes à produção cultural acima

citados: plasticidade, versatilidade e mutabilidade. Nas palavras dele:

O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a sua vida (BAKHTIN, 2003, p. 91).

Embora Bakhtin nunca tenha abordado questões referentes à produção

cinematográfica, restringindo-se, como os demais teóricos do Círculo que se

incumbiram do estudo do gênero discursivo, à análise de produções literárias nas

formas impressas e orais, consideramos profícua a aplicação de sua teoria sobre

gênero discursivo ao estudo específico do curta-metragem brasileiro. Não seremos

pioneiros em estabelecer essa aproximação entre Bakhtin e o cinema. O

pesquisador de cinema Robert Stam também enveredou por esse caminho:

Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica literária à antropologia e à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...) Estarei conduzindo, portanto, um diálogo imaginário com Bakhtin a respeito de um tópico sobre o qual ele nunca se pronunciou: o cinema (STAM, 1992, p.58-59).

No entanto, o que pretendemos, de maneira singular neste capítulo, é aplicar

a teoria de gênero discursivo ao curta-metragem, especificamente. Trata-se de uma

categoria cinematográfica que emprega uma estética própria em seus filmes, cujas

características discursivas guardam especificidades, como conteúdo temático

inclinado para a crítica social, esfera própria de circulação, estrutura composicional

diferenciada, entre outras, que nos autorizam a classificá-lo como um gênero

discursivo dentro da concepção de gênero de Bakhtin. É importante salientar que

não estamos questionando sua classificação enquanto gênero cinematográfico, o

qual tem seus princípios definidores alicerçados na teoria do cinema. Não é nosso

escopo aqui questionar tal classificação.

Para Bakhtin, o fator responsável pela organização e uso adequado, de forma

orientada, plausível, de modo a garantir a inteligibilidade da linguagem, não é o

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sistema abstrato da língua, a gramática, e sim o gênero. De acordo com o filósofo, é

o gênero que regula as ações de linguagem nas diversas esferas da atividade

humana. Ele é encarregado de guardar e fornecer ao usuário da língua, sempre que

necessário, as tendências, vocações e propensões mais constantes e regulares da

linguagem, acumuladas ao longo das gerações de falantes, o que asseguraria uma

“relativa estabilidade” aos enunciados em determinada esfera comunicacional.

Ao gênero cabe ainda, segundo o autor, a função de organizador das formas

de pensamento apropriadas a determinados tipos de enunciados, além de

mantenedor de meios e recursos expressivos utilizados em determinada cultura, de

modo a garantir a comunicabilidade entre os seus falantes hodiernos e a

continuidade dessas matrizes discursivas junto a comunidades futuras. Poderíamos

afirmar também, dentro de uma perspectiva dialógica, que, pelo gênero, e só por

meio dele, é que conseguimos acessar nossas memórias, inclusive a de futuro. Sim,

só é possível acessar a memória de futuro10 por meio do gênero projeto e outros

afins, já a memória do passado é recuperada recorrendo a nossos conhecidos

arquivos, cartas, biografias, memórias, relatos, e outros tantos.

No entanto, não podemos concluir daí que os gêneros do discurso são

imutáveis e limitados. Com a mesma força que procuram manter essa estabilidade

comunicativa, os gêneros se renovam, se adequam, aglutinam novas tendências,

dialogam com outros gêneros, com o mesmo objetivo de manter a comunicabilidade.

Porque o mesmo risco que correria o falante de viver um pandemônio linguístico

caso não houvesse essa relativa estabilidade na língua, ele correria se não

acompanhasse as mudanças impostas pela dinamicidade das interações sociais em

constantes transformações. É por isso que, às vezes, os gêneros se reorganizam,

desaparecem, surgem novos, alguns predominam mais em determinada região

geográfica do que em outras, às vezes se subdividem em subgêneros, de acordo

com as demandas sociais. Tudo isso revela a amplitude dessa teoria, bem como a

diversidade amalgamar do gênero discursivo. Nas palavras de Bakhtin:

A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera de atividade contém um repertório

10

Para Bakhtin, o sentido concreto do presente é o resultado da fusão entre a memória do passado e a memória do futuro, o devir. Aquela que faz com que o sujeito não se baseie apenas num passado, mas num devir, tornando-o um ser inacabado. As projeções do que se quer realizar constituem a memória de futuro, interferindo na forma de pensar e de se posicionar perante a vida.

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inteiro de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).

E no que se refere ao curta-metragem, podemos dizer que se trata de um

gênero discursivo na concepção bakhtiniana? Um ponto de partida para refletirmos

sobre essa indagação é levantar as seguintes questões: Trata-se de uma atividade

humana? Produz enunciados concretos? Esses enunciados circulam em alguma

esfera específica de atividade humana? São utilizados para cumprir uma função

social? A resposta a todas essas perguntas é sim. Bakhtin afirma que só é possível

acessar determinada realidade via gênero do discurso, “como um filtro através do

qual visualizamos a realidade da vida social” (BARROS, 2012, p. 36). Neste ponto,

podemos afirmar que o curta-metragem é um gênero discursivo. Ele nos

proporciona, por meio de sua estética peculiar e seu forte vínculo com o real,

embora seja um enunciado da esfera artística, um contato com a realidade social,

sob um ponto de vista ímpar, singular e crítico ao mesmo tempo, com que, por outro

meio, não teríamos a mesma experiência.

Se pensarmos que o curta, no seu processo histórico, como vimos na seção

anterior, para além de suas conceituações e caracterizações formais, ganhou uma

conotação discursiva muito forte, na medida em que é pensado como instrumento

meio de crítica social, podemos afirmar que o mesmo cumpre uma função social,

assim como o cinema de entreter, a notícia de informar, a receita de orientar, o

artigo de expressar opinião, etc. Com isso, queremos dizer que o curta-metragem é

um gênero que tem como principal função fazer a crítica social. Não apenas pelo

caráter “marginal” que ocupou na história do cinema, mas também pela sua

capacidade atual de influenciar e ser influenciado. Portanto, se, conforme afirma

Bakhtin, só é possível cumprir uma função social por meio de um gênero, podemos

concluir que o curta-metragem é um gênero por meio do qual o enunciador cumpre

uma função social.

Sobre esse assunto, é pertinente lembrarmos as considerações do

pesquisador Sidney de Paulo (2009), o qual destaca a função social como elemento

determinante do gênero e não seus aspectos formais. Como exemplo, ele cita o

texto literário adaptado para o cinema; ao transformar-se num roteiro, deixa de

pertencer ao campo literário e passa a compor o campo do cinema. Isso acontece

porque, de acordo com Bakhtin, o gênero está relacionado à atividade humana. Com

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outro exemplo, ele fecha a questão: Uma receita de bolo não constitui gênero receita

de bolo pelo simples fato de ter em sua composição termos do campo semântico

culinário, ou por apresentar estrutura sequenciada, ou por apresentar verbos

predominantemente no imperativo. Receita de bolo apresenta-se como gênero

quando, em um evento social, por exemplo, uma visita, o anfitrião, ao preparar um

bolo, segue um roteiro de como fazê-lo. A mesma estrutura poderia estar no meio de

uma carta e, neste caso, não ser mais uma receita de bolo (Paulo, 2009, p. 69).

Sendo assim, torna-se improdutivo ficar questionando se um texto com uma

estrutura composicional parecida com uma receita presente em uma letra de canção

pertence ao gênero canção ou receita, já que o gênero está relacionado à atividade

humana. Ao ouvir uma canção no momento de lazer, com objetivo de relaxar ou

dançar, enfim, se divertir, isso é letra de canção, é ponto pacífico, pois se presta à

função social de entretenimento. Se um texto, mesmo apresentado uma estrutura

composicional típica de um poema, é utilizado para fazer um bolo de café da manhã,

então será do gênero receita. Pois o elemento determinante de um gênero é a sua

função social, sua relação com as atividades humanas. Nesta toada, um parecer de

um juiz, com a forma de um poema, nunca deixará de ser uma sentença, a menos

que saia da esfera jurídica e adquira outra função, a de produzir prazer literário.

Portanto, a esfera em que o enunciado circula e sua função social são

determinantes para definir o gênero, e não sua estrutura composicional, seu formato.

Todo gênero, de acordo com a teoria, necessita se materializar em algum tipo

de texto. Portanto, afirmar que o curta-metragem constitui um gênero discursivo

equivale dizer que o curta consiste em um texto. Sim, trata-se de um texto fílmico,

que, assim como qualquer outro tipo de texto, possui seus sistemas específicos de

significação, compostos principalmente de imagens e sons, os quais, ao serem

manipulados, por meio de planos, luzes e movimentos de câmera, além de outros,

produzem determinados efeitos de sentido. Assim, podemos afirmar que o objeto de

análise em questão, o gênero curta-metragem, está materializado no texto fílmico,

que se utiliza da linguagem cinematográfica para produzir seus sentidos, assim

como o texto verbal utiliza a escrita.

Quando pensamos no conteúdo temático, será que o curta-metragem nos dá

alguma garantia do assunto que será tratado? Se pensarmos de forma isolada, a

resposta é não, assim como ocorrerá com qualquer outro gênero. No entanto, se

contextualizarmos, a resposta é clara. Entre um longa-metragem exibido sábado à

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tarde, na sala de cinema do Shopping Pantanal, em Cuiabá, e um curta-metragem

exibido no centro cultural de São Paulo, durante o Festival Internacional de Curta-

Metragem, de qual desses dois enunciados espera-se um conteúdo voltado para a

crítica social? A resposta é óbvia.

Assim, o curta-metragem, enquanto gênero, atende àqueles requisitos formais

relacionados por Bakhtin em sua teoria, quais sejam: estilo de composição,

conteúdo temático, esfera de circulação e suporte de veiculação; embora, como já

frisado anteriormente, sua característica central deve estar relacionada ao uso social

e não à forma. Pois, como sabemos, o gênero é moldado o tempo todo pelo

contexto a sua volta, exposto a mudanças sociais e tecnológicas, em que novas

tendências e meios expressivos surgem numa velocidade assustadora, gerando

múltiplas combinações e possibilidades enunciativas e, consequentemente,

diferentes formas composicionais. Como reforça Stam: “O gênero cinematográfico,

da mesma maneira como antes dele o gênero literário, também é permeável às

tensões históricas e sociais” (STAM, 2003, p.29).

Coerentemente, não cabe aqui tentarmos estabelecer uma delimitação teórica

fechada para o gênero curta-metragem, pois acreditamos que mais importante do

que definir o gênero é refletir sobre as múltiplas possibilidades de relacioná-lo de

forma dialógica a outros gêneros, estabelecendo diálogos com outros discursos,

absorvendo contribuições advindas das mais divergentes áreas, tanto em termos

éticos quanto estéticos, assim como tem sido em todo seu processo histórico, para,

a partir daí, estabelecermos uma ponte com a educação, conforme veremos na

próxima seção.

1.6 Pertinência didático-pedagógica

Quando analisamos uma narrativa por meio de um curta-metragem, podemos

perceber facilmente a riqueza de elementos linguísticos e extralinguísticos, próprios

da interação humana, o que nos faz aproximar do texto fílmico e seus mecanismos.

As imagens que constituem o texto nos remetem automaticamente a um universo

cultural reconhecidamente nosso ou próximo de nós. Essa característica,

principalmente nas produções brasileiras, abre caminho para abordagens de

conteúdos socioculturais, além de revelar aspectos interculturais que nem sempre

são mostrados com tanta expressividade nos livros didáticos. Não queremos aqui

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defender a exclusividade de um recurso, no caso, o audiovisual. Compreendemos

que todos devem igualmente ser valorizados. No entanto, pretendemos colocar em

xeque a pretensa hegemonia que algumas escolas e professores ainda persistem

em atribuir ao livro didático.

Isso não significa que vamos tecer neste trabalho uma comparação crítica

entre os recursos que temos disponíveis em nossas escolas. Apenas desejamos

despertar uma consciência que contemple e respeite as diversidades culturais de

nossos alunos. E esse respeito às diferenças precisa reverberar também nas formas

e meios de ensinarmos e, ainda, nas escolhas dos instrumentos didáticos. Nesse

aspecto, merece aplausos a iniciativa do projeto Curta na Escola, que nos oferece a

oportunidade de diversificarmos nossas abordagens no ensino de linguagem,

fornecendo-nos direcionamento para trabalharmos textos fílmicos que nos

aproximam do mundo concreto onde os professores e alunos vivem de verdade.

De fato, ao “ler” um curta-metragem, a tarefa de recuperar os elementos

extraverbais fica menos árdua, porque a maioria deles está à mostra no texto,

potencializados por meio dos recursos da linguagem cinematográfica, como

mudanças de planos e efeitos sonoros. Tomemos, como exemplo, o curta 10

Centavos, o qual mostra o drama de um garoto, morador do subúrbio ferroviário de

Salvador, que ganha a vida guardando carros no centro histórico da capital baiana.

Ao contemplarmos esse objeto estético, notamos a existência de um elemento

vincular com a realidade, o que torna o processo de interação mais fluido.

Acreditamos que isso aconteça por se tratar de uma forma de representar a vida,

que, de alguma maneira, nos conecta ao enunciado, sem comprometer seu valor

artístico. Um dos fatores que proporcionam essa conexão é a imagem. Ela nos

permite fazer associações com a nossa realidade e ativar processos cognitivos que

levam à compreensão do enunciado. Por exemplo, na imagem em que o garoto

aparece pegando o trem, é possível, mesmo que não haja esse meio de transporte

na localidade de alguns, perceber realidades análogas entre o mundo representado

e o mundo real do aluno, como a precariedade do transporte público e o sofrimento

de quem o utiliza.

Mas isso vale também para o longa, alguém poderia questionar. Sem dúvida,

alguns filmes de longa-metragem também possuem esse potencial de estabelecer

uma estreita relação com o contexto sociocultural, oferecendo possibilidades de

atividades variadas e dinâmicas, portanto atrativas. Em suma, qualquer produção

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audiovisual pode vir a ser um excelente instrumento para explorar a linguagem, bem

como os aspectos socioculturais. O problema começa quando consideramos o

tempo de cada aula na escola, geralmente 40 ou 50 minutos. Tendo em vista esse

fator, teremos que trabalhar apenas trechos de um filme longo. Ao utilizar essa

estratégia, compromete-se a compreensão ativa do aluno, pois ele terá pouco

elemento para oferecer uma resposta ao enunciado, além de desperdiçar o potencial

expressivo do recurso. Por mais que escolhamos um trecho que melhor represente a

obra toda, por mais que contextualizemos a obra, dificilmente conseguiremos

envolver os alunos na história e, principalmente, apreender o discurso. Isso porque

nos longas e nos romances, o discurso aparece disperso ao longo da obra.

E qual é problema disso? Ora, considerando o contexto de sala de aula, em

que nem sempre é fácil estabelecer uma relação de continuidade, sobretudo nas

escolas públicas, em que a falta de assiduidade de professores e alunos é notória, o

estudante corre o risco de não identificar os fios discursivos presentes no filme e, por

consequência, não entender a obra. E, com base na concepção bakhtiniana de

dialogia, não podemos compreender um discurso sem sua contraposição com outros

discursos presentes no enunciado. Dificuldade que o professor não vai encontrar se

utilizar um curta-metragem, pois, em apenas uma sessão, o aluno consegue

assimilar e identificar os elementos discursivos produtores de sentido presentes na

obra, permitindo que ele estabeleça as várias relações necessárias para uma

compreensão ativa, refletindo e refratando os temas abordados na interação.

Não menos importante é o cuidado de não submeter o aluno a longos

períodos de exibição de um filme de que ele não goste. Pode ocorrer de o professor

não realizar uma boa escolha e a classe não apreciar o filme, impedindo o

envolvimento da turma na narrativa. Querendo ou não, todos somos, em certa

medida, expectadores críticos, e já passamos, pelo menos uma vez, pela

desagradável situação de termos que assistir até o fim a um filme que não nos

despertou interesse. Com o curta, esse risco é quase nulo, pois seu caráter

compacto apresenta argumentos sintetizados, menor número de elementos

secundários durante a narrativa, o que dificulta o desvio da atenção por parte do

telespectador. Contudo, usar excessivamente e sem critério, seja qual tipo for de

obra cinematográfica, pode levar também à perda de interesse.

A ideia de incorporar o uso de curtas-metragens no ensino de linguagem está

de acordo com as orientações dos PCN, na medida em que apresentam amostras

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da língua real e comunicação contextualizada, capazes de desenvolver nos

telespectadores uma atitude ativa, transformando-os em agentes sociais. Isso faz

todo sentido, porque, ao assistir a uma produção cinematográfica em aula, é (ou

deveria ser) desencadeado um movimento semelhante àquele que ocorre ao assistir

a um filme em outro espaço, em que o indivíduo, por meio de processos pessoais de

assimilação e interpretação acaba, naturalmente, desenvolvendo competências,

tanto de natureza comunicativa, como de uma forma geral (DUARTE, 2002). De fato,

os PCN lembram que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela

comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Ou seja, o aluno

precisa ter vontade, e esse processo deve ser natural, assim como ocorre em outras

esferas em que ele atua.

Assim, ao assistirem ativamente a um curta-metragem, os alunos deverão se

sentir em uma ação concreta, real, como fazendo parte de seu dia a dia e não

apenas como atividade escolar; caso contrário aquele processo desencadeador de

capacidades e habilidades, visto anteriormente, não será disparado. Acreditamos

que o curta-metragem contribui com esse conjunto de processos mentais, detonador

da compreensão ativa e de competências comunicativas dos alunos, preparando-os

para eventuais interações verbais em diferentes esferas. Isso acontece porque

entram em contato com representações de diversas situações contextualizadas com

a sua própria realidade. E, no processo de interpretação e associações, trazem à

tona aspectos práticos, comuns do seu cotidiano.

O curta Xadrez das Cores, de Marco Schiavon, 2004, pode ser um bom

exemplo. A narrativa mostra a tensa relação entre patroa e empregada. Cida é uma

mulher negra, de 40 anos, que vai trabalhar para dona Stella, uma senhora branca

de oitenta anos, extremamente racista. Por ser esta uma situação vivida por

milhares de pessoas no mundo, aqui já se estabelece um link com a realidade. Cida,

apesar de ser tripudiada frequentemente pela patroa, consegue - na arena da

palavra, demonstrando habilidade e competência comunicativas, adequando seu

discurso à situação, mantendo os ritos discursivos protocolares exigidos na relação

patroa – empregada - inverter o “jogo” a seu favor. Esse enunciado, embora seja da

esfera artística, possui um vínculo com a realidade, o que leva o telespectador a se

conectar com a obra. E é isso que faz ativar nele os processos desencadeadores de

competências e habilidades na interação com o filme.

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Esse diálogo com a realidade concreta, mais presente nos curtas-metragens,

torna-se especialmente útil para entendermos essa natureza social da linguagem, de

que falava Bakhtin, pois evidencia a linguagem como produto das interações sociais

entre sujeitos reais, sem as quais a língua torna-se irreal, abstrata. Compreendendo

melhor: numa produção cinematográfica que mostra uma situação de interação entre

um europeu branco, o dominador, e um africano negro, o dominado, em que a

linguagem utilizada por ambos é homogênea, predominantemente do dominador, a

língua é artificializada. Essa linguagem apresentada nessa relação jamais estaria

presente numa real interação social entre tais sujeitos. Essa representação

monoglota do real perde a força vincular com a realidade concreta, diminuindo

sensivelmente seu potencial desencadeador de habilidades e competências

comunicativas. Além disso, transmite uma ideia distorcida da realidade, por maquiar

a linguagem com intuito de atingir a um gosto padrão. Ocorre também o apagamento

do sujeito; sua identidade cultural é anulada, uma vez que esse se constitui nas

interações verbais, necessariamente dialógicas.

Por outro lado, essa força comunicativa, do falar real, da língua praticada pelo

sujeito falante concreto, está presente sobremaneira nos curtas-metragens, que

apresentam sujeitos reais, inseridos numa sociedade, que se comunicam e

interagem de forma heterogênea, apresentando suas variedades linguísticas e os

acentos próprios dos sujeitos da interação, sem a tentativa de artificializar a

linguagem. Isso quer dizer que, de forma polifônica, o negro falará com as suas

idiossincrasias linguísticas; como podemos perceber na personagem Cida, do Curta

Xadrez das Cores, o jovem com suas gírias imanentes, a mulher com seus usos

expressivos característicos e o homossexual com seus estilos e marcas discursivas,

sem contudo ser estereotipado, como acontece em alguns filmes hollywoodianos

que trazem representações desses sujeitos. Essa heteroglossia linguística presente

nos curtas-metragens de cunho autoral, presentes no projeto Porta Curtas, favorece

o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, isso porque o indivíduo

se identifica por meio de grupos, classes, categorias, gêneros e pela linguagem. Se

ele não se vê numa representação, só lhe restará assumir uma posição passiva,

imaginativa, diante do discurso apresentado.

A esse respeito, podemos citar como exemplo o curta produzido em 2006 por

Gustavo Melo, Pintinho, Picolé e Pipa. Essa narrativa mostra a euforia das crianças

do Morro do Vidigal no dia em que passa o carro do “troca-troca”, o qual permuta

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garrafa velha, bacia velha e outros utensílios por picolé, pintinho e pipa. Esse filme

retrata a heterogeneidade inerente da favela, e a força expressiva dele está, do

princípio ao fim, na linguagem. Logo no início, a Kombi aparece e o alto-falante

“grita”: “Alô, garotada, o carro do troca-troca está passando, garrafa velha, bacia

velha, panela velha, o moço troca por picolé, pintinho e pipa”. É tão real que parece

ser a própria rotina da favela. E o que provoca esse efeito de realidade é

exatamente a linguagem utilizada, aquela que se usaria naquele contexto. Num

outro momento da narrativa, que também demonstra, por meio da linguagem, o

vínculo com a realidade, ocorre quando uma garrafa cai e se quebra, um dos amigos

de Pedrinho diz: “Esse moleque é o maior vacilão! Espera só eu pegar ele na rua,

vou destruir ele!”, reproduzindo o discurso do traficante que domina as favelas

cariocas, e em quem muitas crianças do morro se espelham.

Para além das habilidades comunicativas, o uso do curta-metragem permite-

nos conhecer os aspectos sociais e culturais de um povo. Os curtas permitem a

análise da cultura do país que o produziu, pois, assim como acontece com qualquer

produto cultural, eles revelam hábitos e costumes de quem os produziu. Assim, um

curta-metragem pode se apresentar como projeção socioeconômica e cultural do

seu país de origem, dos seus anseios, desejos, lutas e perspectivas. Por exemplo,

no festival de Cannes11 de 1960, houve uma participação significativa de curtas-

metragens africanos. Nessa época, havia um forte movimento anticolonial por lá.

Esse desejo de liberdade, de se livrar do colonialismo, foi demonstrado nos filmes

curtos apresentados no festival. A voz da liberdade, reprimida em seu próprio país

pelos verdugos europeus, ecoou e ganhou força, ironicamente, na terra dos

colonizadores (MOURA, 2003).

Isso reflete o que Bakhtin (1992) postulou sobre a ideologia do cotidiano,

aquela que é libertadora, o espaço onde todos os arquétipos da oficialidade ilusória

e alienante são desnudados e virados de ponta-cabeça. Bakhtin (1987) chamou a

isso de carnavalização. Assim, uma produção artística que não tem compromisso

com a estética monológica, limitadora e conformadora, financiada pelo capital, está

livre para mostrar, denunciar e provocar reflexão. Dentro dessa perspectiva, estavam

os filmes longas produzidos no Brasil, na década de 50, no chamado Cinema Novo,

11

Festival de Cannes é um festival de cinema criado em 1946, um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema do mundo. Acontece todos os anos no mês de maio, na cidade francesa de Cannes. O mercado de filmes é, em boa medida, influenciado pelo festival.

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no qual jovens cineastas, revoltados com o sistema e os critérios de financiamento

de filmes, comandados pelas grandes companhias cinematográficas, resolveram

reivindicar um cinema com mais realidade e menos ilusão, com mais conteúdo e

menos capital (BERNARDET, 1995).

Os filmes dessa época eram constituídos segundo a ideologia do cotidiano.

Utilizavam-se da estética do lixo, aquela que choca, que revela o lado feio, sombrio

e miserável da sociedade. Por isso mesmo, não recebiam ajuda financeira do

capital, sendo produzidos com pouco ou quase nada de recurso financeiro. Esse

modo de fazer cinema contrapunha-se à estética utilizada nas representações

hollywoodianas, que mostravam sempre um mundo ideal, perfeito, todo mundo

consumindo; um mundo de glamour e fantasia, totalmente abstrato, descolado da

realidade e da língua utilizada nas interações sociais reais. É verdade que nem

todos os longas possuem essa natureza seriada de produção, no entanto, uma parte

considerável deles são, principalmente os famosos enlatados americanos.

Assim, encerramos este capítulo, no qual traçamos, de forma breve, um

panorama histórico do gênero curta-metragem no Brasil, situamos essa forma de

expressão cultural dentro da concepção bakhtiniana de gênero discursivo, além de

demonstrar sua viabilidade didática. No capítulo que segue, abordaremos o

arcabouço teórico no qual foram embasadas nossas análises e reflexões.

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CAPÍTULO II

CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO

Neste capítulo, travamos um debate acerca das possibilidades de diálogo

entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a teoria do cinema, primordialmente no

que se refere à compreensão do fenômeno da linguagem cinematográfica. Para

tanto, como já mencionado no capitulo anterior, contamos, para esta reflexão, com

os estudos realizados pelo pesquisador e professor de Teoria Literária, o inglês

Robert Stam, o primeiro a estabelecer essa interação.

Nossa proposição neste trabalho foi repensar alguns conceitos de Bakhtin e

empregá-los na assimilação da linguagem cinematográfica, levando em conta as

peculiaridades do gênero curta-metragem. Nessa empreitada, revisitamos alguns

conceitos e concepções do pensamento de Bakhtin, como dialogia, heteroglossia,

alteridade, exotopia, cronotopia, arquitetônica, interação verbal, dentre outros, a fim

de oferecer ao leitor uma nova perspectiva de análise dos textos fílmicos, ao fazer

uso de categorias que, até pouco tempo, eram utilizadas apenas em análise de

textos verbais.

Inicialmente, nos empenhamos em trazer à baila a concepção de linguagem

para Bakhtin, pois entendemos que, ao pensar em quaisquer conceitos da sua

teoria, faz-se necessário articulá-los à concepção de linguagem adotada pelo Círculo

e a tudo o que está envolvido nessa noção. Procuramos também estabelecer

paralelos e pontos de contato entre a ideia de interação verbal apresentada por

Bakhtin e a concepção de cinema enquanto linguagem, especialmente quando

tomada pela esfera educacional. E, por fim, envidamos esforços no sentido de

evidenciar a proficuidade das categorias bakhtinianas na análise dialógica do

discurso cinematográfico.

A razão que nos move em direção a esse árduo e complexo, porém

necessário, empreendimento é a premência de realizar uma leitura mais crítica da

linguagem audiovisual, cada vez mais sofisticada e sutil e cada vez mais presente

na vida de nossos alunos, nas mais variadas esferas das quais eles participam, por

meio do cinema, televisão, publicidade, computadores, jogos eletrônicos, celulares,

tablets etc. Por esse motivo, torna-se imperioso compreendermos como o mundo é

representado pela indústria cinematográfica, sobretudo nas produções

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padronizadas, como acontece com alguns filmes produzidos pela indústria o

entretenimento. Para tanto, consideramos extremamente adequadas as ideias e

categorias bakhtinianas, as quais nos oferecem um novo horizonte para analisar o

cinema, levando em conta, além da dimensão estética, a dimensão ética (social,

cultural, ideológica), presentes nas obras cinematográficas.

2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo

Para começarmos essa reflexão, faz-se mister trazer à baila o modo de

pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin

denominou de “objetivismo abstrato”, para, de forma dialógica, trazer à luz a

concepção de linguagem construída pelo Círculo. Essa corrente, da qual o mestre

genebrino Ferdinand de Saussure é compositor e regente, nos apresenta a seguinte

dicotomia: Língua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcação considerado a

dimensão social da linguagem, e o segundo é encarado pelo linguista como

expressão individual de cada sujeito falante.

Saussure, ao instituir as categorias analíticas fundamentais para estudo da

língua, como a fonética e a morfologia, baseou-se nos estudos da linguística

comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as

línguas mortas e as estrangeiras. Saussure não negava o aspecto social da língua,

contudo o modo de fazer ciência da sua época exigia que o objeto de estudo

apresentasse comportamentos idênticos, portanto passíveis de normatização, como

a fonética, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a língua atava a diversidade, a

pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de

regras.

Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenômeno da linguagem,

as variações sociais da língua, bem como as variantes individuais dos falantes não

podiam ser consideradas nos estudos linguísticos. Para os estruturalistas, esses

fatores eram considerados desordenados, demasiadamente heterogêneos e

aleatórios, fugindo do padrão e do rigor exigidos pela ciência. Isso fez com que a

fala assumisse um papel quase que irrelevante, nos estudos linguísticos do final do

século XIX, a fim de não inviabilizar o projeto estruturalista de instituir uma unidade

da língua como sistema.

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Esse modelo positivista de conceber a linguagem como um sistema abstrato,

tomando por base suas características formais, passíveis de serem repetidas,

seguindo o modo de fazer científico da época, levou à ideia de que a língua é um

fenômeno estático. Tal concepção admitia que o sentido é pré-fabricado, fechado

dentro de um sistema de normas linguísticas, como se a linguagem fosse uma

espécie de espelho do mundo, refletindo verdades únicas e universais, e que, para a

compreensão do enunciado, os aspectos sociais da língua eram irrelevantes. Tal

postura desconsiderava, portanto, as diversidades e multiplicidades do signo,

deixando a intencionalidade dos falantes em segundo plano (BRAIT, 2011).

Por outro lado, em oposição ao pensamento de Saussure e dos estruturalistas

que se seguiram, Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da fala, ou seja, a

dimensão que leva em conta a pluralidade das manifestações linguísticas em

circunstâncias concretas de interação social. Ele acreditava que a realidade

fundamental da linguagem estava centrada na interação entre os falantes, no seu

uso real e não em um ponto de vista ideal, intangível. Ele concebia a linguagem não

como um sistema abstrato, mas como algo vivo, dinâmico e coletivo, parte de um

diálogo cumulativo entre o eu e o outro, entre muitos “eus” e muitos outros (STAM,

1992). Mas Bakhtin não nega a existência da língua enquanto sistema, já que “por

trás de todo texto, encontra-se o sistema da língua” (BAKHTIN, 2003, p. 332). Ao

contrário de desqualificar qualquer estudo sério da estrutura da língua, o filósofo

russo considera-o adequado para estudar as suas unidades (fonemas, morfemas,

orações). Por outro lado, com sua translinguística12, ele demonstra que linguística

estruturalista não é suficiente para explicar o funcionamento, no âmbito social, da

linguagem, que possui como unidade mínima o enunciado, irrepetível, instável e

inclassificável.

Para Bakhtin, a estabilidade da língua constitui-se um mito, pois, para ele, a

mutabilidade do signo é uma das características constitutivas da linguagem. Sobre

isso, ele esclarece:

Assim, o elemento que torna a forma linguística um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma linguística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão das palavras

12 Disciplina proposta por Bakhtin, que visa ao estudo e análise de elementos externos à língua

enquanto sistema. Tal disciplina daria conta dos aspectos dialógicos e polifônicos da linguagem, principalmente da fala, não contemplados pela linguística.

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no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo (BAKHTIN, 2003, p. 94).

Spinelli (2005) enfatiza que o dinamismo social do signo, historicamente

gerado, vivifica esse mesmo signo. Ela lembra ainda sua dimensão político-

ideológica, por meio da qual é ressignificado o tempo todo na arena da palavra,

onde as classes e grupos sociais, com seus interesses e conflitos permanentes, se

apropriam dele, dando-lhe novos significados. A essa capacidade que possuem os

signos de extrair variáveis tons e valorações sociais, a depender das situações

sócio-históricas, Bakhtin (apud SPINELLI 2005, p.34) denominou de

“multiacentualidade”.

Acertadamente, a partir das reflexões realizadas por Bakhtin e o seu Círculo,

no início do século XX, em obra conjunta denominada Marxismo e Filosofia da

Linguagem, os estudos de linguagem, atualmente, vêm adotando uma postura que

supera a visão estruturalista de língua. Os linguistas hodiernos, sobretudo os

sociolinguístas, têm assumido uma postura que leva em conta os mecanismos

variáveis responsáveis também pela produção de sentidos. Essa nova atitude situa,

par e passo, estrutura linguística e a dimensão histórica, cultural, social e ideológica

da linguagem, copartícipes na significação dos signos. Assim, apresentam-se novas

possibilidades de entender e significar o mundo, baseadas numa concepção

dialógica de linguagem que contempla as pluralidades, desfazendo, de uma vez, o

mito do sentido pré-fixado.

Tais reflexões em torno das concepções de linguagem fazem-nos recordar de

um conceito bakhtiniano, o qual nos parece bastante produtivo para enriquecer este

debate. Trata-se da noção de forças centrípetas e centrífugas, que nos ajuda a

compreender esse jogo dialético mencionado por Bakhtin, que, segundo o filósofo,

caracteriza toda a linguagem. Desta forma, as forças centrípetas atuariam numa

direção favorável à concepção estruturalista de linguagem, atuando na

normatização. De outro lado, as forças centrífugas agiriam de forma corroborativa

com a concepção interacionista, tendendo às diversificações da língua, embora

ambas as forças existam e atuam independentemente da concepção de linguagem.

Para ele, essas forças convivem, dialética, simultânea e ininterruptamente. Nas

palavras do autor:

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(...) esta estratificação e contradição reais não são apenas a estática da vida da língua, mas também a sua dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolvendo-se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união, caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação (BAKHTIN, 1998, p. 82).

Diante dessa explanação dialógica das concepções de linguagem, conforme

prenunciado na introdução deste capítulo, passemos agora a um fecundo diálogo

entre tais conceitos e o cinema. Acreditamos que essa aproximação nos fornece

subsídios que nos possibilitam identificar qual concepção de linguagem tem balizado

os produtores de filmes. Entendemos que a crítica feita por Bakhtin ao “objetivismo

abstrato”, no âmbito da linguagem verbal, seja perfeitamente aplicável ao sistema

imagético utilizado pelo cinema, cujas possiblidades de interpretação são

potencializadas pela natureza de sua linguagem. O simples fato de mudar o ângulo

de uma imagem por meio do jogo de câmeras já possibilita a produção de novas

interpretações.

Mas, para que essa relação seja concebível, precisamos deixar claro que

encaramos o cinema como linguagem. Esse posicionamento nos permite aplicar ao

cinema a mesma metáfora que Bakhtin (1992) utilizou em Marxismo e Filosofia da

Linguagem para explicar a natureza dialógica da linguagem, a qual se constitui uma

ponte entre um eu e um tu. Essa alegoria revela a igual importância atribuída por

Bakhtin ao locutor e ao interlocutor na construção dos enunciados, dado que, se, por

um lado, essa ponte tem o eu por sustentação, necessariamente precisará de um

segundo pilar de apoio, o tu.

Tendo como base essa linha de raciocínio, o autor de uma obra

cinematográfica e o espectador possuem, ou deveriam possuir, igual relevância no

procedimento comunicacional, pois ambos fazem parte do processo de interação e

contribuem diretamente para a produção de sentidos. Nessa perspectiva, o texto

fílmico é considerado, então, como uma criação solidária de sentido, cuja

propriedade não é exclusiva do autor nem do telespectador. Trata-se, porém, do

resultado de uma interação verbo-visual entre os sujeitos da enunciação, a qual gera

seus sentidos na relação, afastando a ideia de uma mensagem encerrada em si,

com um sentido imanente.

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No entanto, como bem disse Bakhtin (1998, p.82), paralelas a essa tendência

centrífuga natural da linguagem de descentralização e desunificação, existem as

forças centrípetas ideológicas e centralizadoras na indústria cinematográfica

também; sobretudo nos longas americanos, os quais sofrem a pressão centrípeta da

ideologia dominante, do poder institucional, hegemônico, financiado pelo capital, no

qual predomina a voz masculina, branca, heterossexual e euro-americana, tendendo

à “monoglossia”. Assim, as produções cinematográficas que privilegiam a linguagem

hegemônica demonstram adotar uma concepção monologizante da linguagem.

Nesse modelo de pensar a linguagem, o sentido é unidirecional, partindo

invariavelmente do emissor até encontrar o receptor. Nesse paradigma,

diferentemente da concepção dialógica de linguagem, retira-se do telespectador

qualquer participação na produção de significados, uma vez que o sentido da

mensagem vai depender apenas do diretor da obra cinematográfica. Trata-se de um

modelo hermético, cujo emissor é ativo e o receptor totalmente passivo. Neste caso,

o sentido do filme é algo dado, pronto e acabado, e não produzido dialogicamente.

Na outra ponta, em contrapartida à hegemonia da linguagem utilizada pelos

enlatados, estão os “dialetos”, ou equivalentes, que destoam do padrão euro-

americano, como o curta-metragem, o cinema engajado e o documentário

independente, os quais recebem influências das forças centrífugas radiadas pela

ideologia do cotidiano, privilegiando o periférico e o marginal, em oposição ao central

e ao dominante. Essas produções se utilizam de linguagens cinematográficas que

demonstram respeito às pluralidades das identidades linguísticas dos grupos

representados nas narrativas, tendendo à “heteroglossia” e revelando, portanto, a

partir de nosso prisma teórico, uma filiação à concepção interacionista de linguagem.

Assim, propomos explorar a pertinência das categorias conceituais de Bakhtin

para pensar um cinema que adote uma concepção de linguagem em que se valorize

o outro, o diferente e o multicultural. Nessa proposta, deve-se chamar a atenção

para o uso crítico dos conceitos e categorias de Bakhtin, especialmente sua visão de

linguagem baseada no dialogismo, que permita identificar um cinema que assuma

uma postura democrática e heteroglota, em que as múltiplas vozes tenham seus

espaços garantidos. Nessa direção, recomendamos ao professor fazer uso didático

dos curtas-metragens do projeto Curta na Escola. Voltaremos a falar desse assunto

no capítulo III, porque na próxima seção abordaremos as especificidades da

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linguagem cinematográfica e como o conhecimento dessa pode contribuir para uma

compreensão ativa do discurso cinematográfico.

2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin

Logo quando surgiu o cinema, buscou-se provar que se tratava de uma

sétima arte, ou seja, um meio de expressão artística, status já desfrutado por outras

seis formas de arte, até então a literatura, a pintura, a música, a escultura, a dança e

o teatro. Assim, para atingir tal escopo, ele precisava ser dotado de uma linguagem

específica, diferente das demais formas de expressão artística existentes. Mas isso

não se deu do dia para a noite, como queriam alguns. O processo de construção de

uma linguagem cinematográfica aconteceu de forma progressiva. Isso porque, no

início, o que havia era uma simples reprodução do real, o que, para muitos não

constitui arte, não havendo, portando, a necessidade de uma nova linguagem.

Apenas com a descoberta e desenvolvimento de procedimentos de expressões

fílmicas, capazes de produzir uma experiência para além da mera visualização do

real, é que se pôde falar em linguagem cinematográfica.

Nesse ponto, o conceito bakhtiniano de “transfiguração estética” nos ajuda na

compreensão do processo de formulação de uma linguagem artística que fosse

própria da sétima arte. Para Bakhtin (2010), o acabamento estético só se dá no

plano da criação por meio de uma linguagem que sirva de filtro entre o real e o

estético. Nessa perspectiva, não há arte e, consequentemente, não há linguagem

cinematográfica se não houver essa transfiguração, ou transformação estética do

mundo real, caso em que não passará de mera reprodução da realidade. Uma vez

detentora de uma linguagem própria, por meio da qual o cineasta pudesse se

expressar, o cinema pôde se constituir enquanto arte, pois só por meio da linguagem

é possível essa transfiguração estilística.

No texto fílmico, esse processo ocorre por meio da mobilização de recursos

próprios da linguagem cinematográfica, como angulação de tomadas, iluminação,

cenário etc., os quais transformam a matéria-prima do cinema, a imagem do mundo

visível, em elementos significativos para seu público. Sobre isso, Roberto Stam

esclarece:

O cinema é uma linguagem, não apenas em um sentido artístico metafórico mais amplo, mas também como um conjunto de

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mensagens formuladas com base em um determinado material de expressão, e ainda como uma linguagem artística, um discurso ou prática significante caracterizado por codificações e procedimentos ordenatórios específicos (STAM, 2003, p. 132).

Em outras palavras, o cinema se constituiu como linguagem porque

desenvolveu, ao longo de sua existência, e continua desenvolvendo, códigos

próprios, bem como estilos que caracterizam o discurso cinematográfico. O cinema

passou a possuir uma sintaxe, por meio da qual se relacionam e se organizam os

planos, as cenas e as sequências. Além disso, desenvolveu uma metalinguagem,

com elevado potencial de significação. Assim, temos os diversos tipos de plano (o

geral, de conjunto, americano, close etc.); os movimentos de câmera (travelling,

panorâmica etc.); as angulações (plongée, contre-plongée, etc.) e a montagem, cada

um contendo uma carga semântica peculiar13.

Com isso, interessa-nos acentuar que as produções cinematográficas são

discursos, ou seja, formas de produção de sentidos, os quais recorrem a uma

linguagem para se concretizarem; neste caso, a linguagem cinematográfica. Assim

sendo, em se tratando do texto fílmico, é essencial conhecermos os elementos que

compõem essa linguagem, e como ela se constitui em discurso, dentro de suas

especificidades enquanto texto não verbal; de modo a nos constituirmos

consumidores críticos e conscientes, sendo capazes de, a partir de uma

compreensão ativa, oferecermos respostas, concordando, discordando ou negando,

mas nunca assumindo uma posição de indiferença.

E, enquanto produtor de discurso, o cinema possui seu próprio “tato”,

categoria utilizada por Bakhtin para se referir ao processo regulador da dinâmica

social que se realiza entre os interlocutores da interação verbal. Processo esse que,

no ato comunicacional, modula a voz e a expressão corporal do locutor, levando em

conta as condições do interlocutor, com vistas a estabelecer condições discursivas

favoráveis ao projeto enunciativo do locutor (BRAIT, 2007).

O Cinema tem seu próprio modo de modular e regular a interação com seus

telespectadores. Por exemplo, a angulação, o enquadramento e outros recursos de

sua linguagem podem sugerir essa ou aquela interpretação; podem estabelecer

relações de distanciamento, intimidade, companheirismo e, até mesmo, de

dominação com seus interlocutores.

13

Esses e outros elementos que compõem a linguagem do cinema serão explicados no final deste capítulo, na seção Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido.

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Disso, podemos concluir que, embora o cinema tenha uma linguagem com

seus códigos e métodos próprios de significação, não se trata de um sistema

fechado, com os sentidos prontos e acabados encerrados em seu sistema. O

discurso cinematográfico, evidentemente, não apresenta apenas uma significação, e

sim modos de significação. Ora, modos indicam maneiras, isso quer dizer que o

significado está por vir, indicando que existe aí um trabalho de interpretação do

enunciado imagético.

De qualquer maneira, a possibilidade de ler e compreender um texto fílmico,

embasado no conhecimento dos recursos próprios da linguagem do cinema,

certamente habilitará o leitor a produzir sentidos mais fluentes. Entender o sentido

das sombras produzidas pela manipulação de luzes e suas texturas, por exemplo,

requer do telespectador uma leitura em nível mais profundo. Isso enfatiza o fato de

que uma leitura ativa de um texto fílmico se efetiva também pela exploração dos

recursos e estratégias da linguagem do texto cinematográfico.

É verdade que a maioria de nós tem competência suficiente para assistirmos

a um filme sem precisarmos estudar a linguagem cinematográfica, visto que a

imagem em movimento parece ser compreensível em si mesma. De fato, a leitura

superficial do texto cinematográfico, passível de ser decodificado, pode ser feita por

qualquer sujeito. Mas porque estamos insistindo aqui na necessidade de conhecer,

minimante, a linguagem cinematográfica e suas estratégias discursivas? A

professora Rosália Duarte explica:

(...) A maior parte de nós aprende a ver filmes pela experiência (...) e conversando com outros espectadores. (...) Mas isso não significa que devamos deixar o conhecimento da gramática cinematográfica para os especialistas. Ao contrário, conhecer os sistemas de significados de que o cinema utiliza para dar sentido às suas narrativas aprimora nossa competência para ver e nos permite usufruir melhor e mais prazerosamente a experiência com filmes (DUARTE, 2002, p. 38).

Além disso, segundo Brait (2006), não há outra forma de apreendermos o

discurso senão pela materialidade da linguagem, por meio da qual ele se manifesta.

Portanto, desenvolver uma competência adequada para a apreensão do discurso

cinematográfico implica na compreensão do funcionamento de sua linguagem. Além

disso, referindo-se ao uso da sétima arte como instrumento pedagógico, Duarte

(2002) recomenda que esse uso seja de modo reflexivo e responsável. Isso implica

obter uma compreensão satisfatória dos elementos que compõem o discurso fílmico,

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de modo a aprimorar nossas atividades de análise e interpretação do texto

cinematográfico.

Em busca dessa competência, muitos pesquisadores, atualmente, recorrem a

modelos de análises baseados na semiótica estrutural, nos quais o analista não

precisa conhecer o processo sócio-histórico em que está inserido o produto cultural

a ser analisado. Basta que saiba decodificar o signo cinematográfico (imagem, som,

cor, movimentos, ângulos, enquadramento) por meio do processo analítico descritivo

chamado decupagem14. Nessa perspectiva as imagens guardariam em si mesmas o

poder de gerar os significados independentemente de sua origem e da forma em

que são apresentadas.

O problema, ao nosso ver, é que essa ordenação analítico-mimética, presente

nesse modelo sistêmico de análise, produz interpretações limitadas, não acrescenta

muita coisa ao processo de ensino-aprendizagem por meio do cinema, uma vez que

abre mão daquilo que promove o inesperado, o irrepetível, o novo, qual seja, o

sócio-histórico. E mesmo abrindo mão desse elemento, fatores sociais externos

acabam sendo determinantes na interpretação dos dados, ainda que os analistas

dessa corrente não reconheçam, talvez porque o processo fuja de seu controle e do

pseudo rigor cientifico.

Por outro lado, procuramos demonstrar em nossas análises dialógicas do

discurso cinematográfico que a compreensão das formas expressivas próprias da

linguagem cinematográfica está vinculada necessariamente a uma leitura reflexiva e

dinâmica. E esse processo envolve, necessariamente, enunciadores e enunciatários,

os quais, juntos, negociarão o significado do enunciado. As ideias de Bakhtin

introduzem nesse debate os aspectos sociais e culturais da linguagem, propondo

uma abertura dos mecanismos de produção de sentido, superando a ideia de

sistema fechado de códigos linguísticos. Ao contrário, ele aponta um horizonte de

possibilidades significativas para além de uma gramática do filme. É o que o leitor

verá nas próximas seções, nas quais abordamos algumas categorias bakhtinianas,

consideradas de capital relevância para compreendermos a maneira pela qual os

aspectos internos da linguagem cinematográfica se articulam com os fatores

externos e como a dimensão ética se articula com a dimensão estética na produção

de sentido.

14

Processo pelo qual um texto fílmico é dividido quadro a quadro a fim de que se realizem anotações

técnicas para posterior análise.

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48

2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do

discurso cinematográfico

Bakhtin nos oferece, para além de um arcabouço teórico, uma postura

filosófica, na qual compreendemos que o discurso e seus efeitos de sentido jamais

serão objetos pacíficos, passíveis de submissão a qualquer tipo de monologismo.

Bakhtin rechaça qualquer sistema de pensamento que se pretenda hegemônico,

detentor de verdades únicas. Interessante notar que essas concepções extrapolam

as teorias e ocupam uma dimensão prática, porque, para ele, a vida é maior que a

teoria. É esse pensamento que permeou este subcapítulo, no qual pormenorizamos

alguns dos principais conceitos do vasto pensamento de Bakhtin, relacionando-os

aos modos de significação do texto cinematográfico, sobretudo do curta-metragem.

O primeiro mergulho será sobre a concepção que permeia toda a obra de

Bakhtin. Trata-se da noção de dialogismo, sem a qual é impossível realizar qualquer

pesquisa sobre o pensamento do filósofo russo. Embora esse conceito apareça

sempre relacionado a outros, achamos por bem estudá-lo separadamente. Outras

categorias, amplamente discutidas nos meios acadêmicos hoje em dia, como

cronotopia, exotopia, excedente de visão e arquitetônica também serão abordadas

neste capítulo. Além disso, trouxemos à tona um assunto bastante explorado por

Bakhtin, qual seja a relação entre o autor e o herói, potencializada na linguagem

cinematográfica. Sem demora, passemos à apreciação desses e outros conceitos,

os quais consideramos fundamentais para compreendermos a dinâmica da

linguagem cinematográfica.

2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva

A noção de dialogismo é pedra fundamental na rede teórica de Bakhtin. O

filósofo russo e seus companheiros do Círculo utilizam-se da própria interlocução

para estabelecer a ideia de dialogismo. O conceito nasce justamente de uma intensa

interação dialógica com o discurso da linguística saussuriana, por meio da qual

Bakhtin revela a natureza dialógica da linguagem, contrapondo-se ao discurso

estruturalista, o qual enfatiza e valoriza as formas linguísticas fixas e padronizadas.

Ao contrário, Bakhtin nos apresenta um signo variante, elástico e flexível, que leva

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em conta a situação de uso, os participantes da interação verbal, com suas

valorações e visões de mundo a respeito do objeto e dos sujeitos do discurso.

Portanto, a palavra/discurso não pode ser um acontecimento individual, monológico;

ela está sempre em diálogo com outras palavras/discursos que já vieram e as que

ainda virão (BAKHTIN, 1992).

Portanto, os analistas que buscam fundamentação para suas reflexões nos

princípios elaborados pelo círculo de Bakhtin não podem perder de vista esses

aspectos constitutivos do discurso, ou seja, para além de sua composição linguística

estruturante, baseada nas regras da língua, há também uma parcela importante de

historicidade agindo concomitantemente à forma e ao conteúdo na produção de

sentido. Por essa razão, qualquer estudo que se faça do discurso carece de uma

orientação dialógica, pois o sentido é, muitas vezes, exterior a ele. É nessa acepção

que a significação é histórica, pois a história dá o contorno aos discursos, os quais

aprovam, desaprovam, estabelecem acordos sociais, geram novas polêmicas e

apagam antigas, a depender do momento histórico e dos atores sociais envolvidos

na produção dos enunciados.

Nessa perspectiva, Fiorin salienta que: “A História não é exterior ao sentido,

mas é interior a ele, pois ele é que é histórico, já que se constitui fundamentalmente

no confronto das vozes que se entrechocam na arena da realidade” (FIORIN, 2010,

p. 41). Perceber a relação do texto com a história nesse movimento dialético,

constitutivo do discurso, descrito por Fiorin, é fundamental para a captação dos

sentidos de um texto. Assim, analisar um texto historicamente não significa,

portanto, fazer uma descrição da época em que o enunciado foi produzido, ou um

levantamento biográfico de seu autor, ou relatar fatos acerca de suas condições de

produção, e sim colocá-lo em diálogo com outros discursos que vieram antes dele,

contemporâneos a ele, e com aqueles que ainda virão.

Por conseguinte, conforme demonstrado por Bakhtin, todo discurso é, por

natureza, dialógico. Isso é o mesmo que dizer: todo discurso é constituído a partir de

outro discurso. Desse modo, um enunciado sempre será uma resposta a outro que

veio antes dele, uma tomada de posição com relação ao discurso do outro.

Podemos afirmar, com base nisso, que um discurso só existe em função do outro, e

que ele sempre será heterogêneo, pois sempre haverá nele a presença de pelo

menos duas vozes confrontando-se, completando-se ou conformando-se.

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Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes próximas que soam simultaneamente. ( ...) Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica mediante uma confrontação do sentido. (...) Mesmo entre produções verbais profundamente monológicas, observa-se sempre uma relação dialógica (BAKHTIN, 2003, p. 354 - 356).

Tomemos como exemplo o discurso de que se deve valorizar a cultura

cuiabana, o seu modo de falar, suas danças e o seu folclore. Essa afirmação revela

pelo menos duas vozes: uma do cuiabano pátrio, proveniente da terra que, ao

perceber sua cultura e seus costumes sendo, aos poucos, sobrepostos pela cultura

dos imigrantes vindos principalmente do sul e do sudeste do país, busca resgatar e

manter suas tradições. E, por outro lado, a voz do colonizador, o desbravador que

procura impor seus hábitos e métodos como sinônimos de vanguardismo e

modernidade. Ora, numa sociedade em que não houvesse esse processo migratório

com intuito de colonizar/explorar as regiões recônditas, tal enunciado não teria razão

de ser. Nesse sentido é que Fiorin afirma que “o discurso deixa ver o seu direito e o

seu avesso” (FIORIN, 2010, p. 40).

Assim é o funcionamento real do enunciado. Devido a sua natureza dialógica,

só é possível compreendê-lo, independente do espaço social em que foi produzido,

quando se leva em conta que ele foi constituído num processo de oposição ao seu

avesso, ou seja, ao seu outro na cadeia comunicativa. A palavra do outro, portanto,

é requisito para que haja qualquer discurso. Tomemos como exemplo o discurso dos

modernistas que se opunha à visão de mundo dos parnasianos. O preciosismo

rítmico e vocabular destes, bem como sua preferência por temas relacionados a

paisagens, consoantes a sua visão acerca da arte, segundo a qual ela deveria existir

por si só, são contrapostos pelos modernos, para quem a arte deveria ser engajada,

voltada ao cotidiano, ter uma função social. É a percepção dessa oposição que

atribui historicidade a ambos os discursos, e é na apreensão desse movimento

contraditório, inerente aos enunciados, que se constitui o sentido.

Fiorin (2010) nos explica que essa historicidade discursiva apresenta no fio do

discurso vozes enunciativas, que são percebidas pelos interlocutores graças a sua

capacidade de apreender os diferentes discursos que se formam e circulam em

determinada época, numa formação social específica. A partir daí é que darão

sentido aos enunciados, segundo a ideologia de cada um, porque o texto será

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sempre incompleto, esperando alguém que lhe dê acabamento. Esse é o sentido do

dialogismo.

Essa teoria deve especialmente interessar ao analista do discurso,

principalmente àquele que se propõe a analisar os produtos de uma cultura tomados

como linguagem, seja ala artística ou não, como, por exemplo, um filme,

documentário, propaganda etc. Todo enunciado, segundo Bakhtin, deve ser situado

historicamente. Isso implica assentir que nenhuma análise discursiva, que se

pretenda dialógica, deve deixar de considerar esse caráter diacrônico do enunciado,

ou seja, assumir que toda situação discursiva será sempre situada num tempo e

num espaço. Assim, ao analisar o uso que o professor vem fazendo do curta-

metragem em sala de aula, incumbência do capítulo III, usaremos como critério

metodológico a verificação da subjacência deste modo de conceber a linguagem no

emprego do cinema como recurso didático.

Para tanto, partimos da premissa de que uma análise fílmica significativa não

pode abrir mão de nenhum elemento que concorra para a compreensão ativa do

enunciado. Desta forma, exige-se do professor-analista a responsabilidade de

mantenedor dos fios dialógicos do discurso com o qual está interagindo, juntamente

com seus alunos. Portanto, deve-se incluir no bojo da análise tanto as

representações quanto os mecanismos utilizados nas representações, bem como

seus aspectos contextuais na relação com o tempo e o espaço. Expressando de

outra forma, a análise deve contemplar os recursos narrativos específicos da

linguagem cinematográfica, pois, para Bakhtin (2003), as diferentes vozes do

discurso manifestam-se na superfície do texto, por meio dos diversos procedimentos

composicionais; no caso do texto fílmico, os movimentos de câmera, fotografia,

edição etc., elementos que dialogam de forma direta com os temas representados,

sendo eles que, de fato, produzem os tons sociais desejados pelo diretor nas

representações. Mas também não se pode perder de vista as metáforas sociais

presentes no texto fílmico, os temas transversais, como querem os PCN.

Aprofundando mais essa noção de dialogismo na análise do texto fílmico, nos

emerge a ideia bakhtiniana de autor, a qual diferencia da visão romântica, que

supervaloriza a originalidade e individualidade no processo criativo. Em oposição a

isso, Bakhtin, por meio do dialogismo, assinala a inverossimilhança de a criação de

um produto cultural ser o resultado direto de uma mente única. Para ele, um

enunciado, seja da esfera artística ou não, será sempre fruto de um intrincado

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diálogo com outros enunciados. Nessa toada, podemos concluir que uma obra

literária sempre manterá relação dialógica com outras obras anteriores e

contemporâneas a ela, da mesma natureza textual, ou não. Assim, um filme do

século XXI, por exemplo, pode estabelecer interdiscursividade com um romance do

século XX. Nas palavras de Bakhtin: “Em cada palavra há vozes, vozes que podem

ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas, inapreensíveis, e

vozes próximas que soam simultaneamente” (BAKHTIN, 2003, p. 354).

O filósofo estabelece que, nas criações enunciativas, sobretudo as artísticas,

os sentidos são constituídos a partir de pelo menos duas vozes. Interessa-nos, aqui,

compreender o conceito de vozes em Bakhtin, e como esse entendimento pode

contribuir para uma análise dialógica do discurso cinematográfico. Bakhtin lembra

que, a partir de um mesmo lugar enunciativo, é possível perceber diferentes vozes

de diferentes lugares enunciativos, de diferentes épocas. Em razão disso, Barros

(2012) ressalta a necessidade de o analista aprender a ouvir e distinguir essas

vozes, entendidas como posições discursivas no fio dialógico da comunicação

humana.

Dialogicamente, a autora nos auxilia na tarefa de identificar, de forma

enunciativa, algumas das vozes a serem ouvidas no texto fílmico, embora seu objeto

fosse de natureza literária. A primeira voz a ser ouvida é a do “destinatário suposto”,

muito importante no processo de interpretação, pois o autor de uma obra fílmica

elabora sua arquitetônica discursiva (forma e conteúdo) pensando nesse

destinatário. Não menos importante - talvez o mais importante, considerando o

contexto de sala de aula - está o “destinatário real”, aquele que de fato assiste ao

filme. Amorim (2002, Apud BARROS, 2012) ressalta a relevância da participação

deste na construção de sentidos, pois o processo de interpretação resulta em um

segundo texto, baseado no qual o primeiro, por meio das relações dialógicas, poderá

fazer sentido.

Seguindo esse percurso, a autora menciona ainda o lugar do objeto discursivo

como sendo mais uma voz presente num texto fílmico a ser ouvida pelo professor-

analista. Perceber essa voz pode ser determinante para uma compreensão ativa e,

consequentemente, para a assunção de uma postura responsiva ante a obra

analisada. Isso porque o mesmo objeto já foi abordado por outros autores, em outras

obras, sob vários pontos de vistas, impregnado de apreciações ideológicas,

circulado em outras esferas enunciativas, sob diferentes intencionalidades. Como

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reflete Barros (2012, p.32): “O objeto discursivo é um palco de encontro de opiniões,

visões de mundo, correntes e teorias. E isso confere ao objeto discursivo um

potencial dialógico infinito de possibilidades de sentidos”.

Por fim, ela faz referência à instância do autor-criador como sendo outra voz

que requer especial atenção do analista do discurso. Especial porque nem sempre é

fácil perceber a presença deste no discurso, embora saibamos que ele se faz

presente com seu olhar, seu ponto de vista, falando de determinado espaço

enunciativo. É assim como bem ressalta Amorim (2002, apud BARROS, 2012, p.

31): “Se diante de um discurso, pensa-se que todo o dito está presente no

enunciado, resulta-se em nada para analisar”. Portanto, para tornar perceptível a voz

dessa instância enunciativa nomeada por Bakhtin de autor-criador, no caso de um

texto fílmico, o analista terá que contrapor discursos, atentar às formas utilizadas na

representação do assunto, ou seja, os enquadramentos, a obliquidade de sua

câmara, o jogo de luz, a seleção do figurino, a aplicação das cores, bem como a

escolha e abordagem do objeto discursivo.

A noção bakhtiniana de dialogia nos revela seu caráter multimodal, pois nos

dá conta de sua aplicabilidade a qualquer tipo de texto. Considerando nosso objeto,

o texto cinematográfico, o dialogismo aponta não apenas para o diálogo entre as

personagens do filme, mas também para o diálogo com outros filmes anteriores,

bem como entre as vozes sociais que se fazem ouvir no interior da narrativa, entre

as trilhas sonoras e entre as imagens. Além disso, há o diálogo que interfere na

produção final do enunciado, o qual acontece entre produtores, diretores e atores.

Há, por fim, o diálogo com o público, que também conforma a obra, uma vez que

suas possíveis reações valorativas são consideradas no processo de produção,

levando-o a assumir um papel de coautoria na obra. Enfim, um enunciado qualquer,

como um filme, um livro, uma peça, sempre será recepcionado, julgado, avaliado e

apreciado segundo os valores do outro, baseados nos costumes de uma época e de

um lugar, e todos esses elementos conformadores concorrem dialogicamente para

atribuir sentidos ao enunciado.

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2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida

Bakhtin, mantendo sua coerência teórica, na qual sempre priorizou a vida

concreta como centro irradiador do discurso, independente de sua natureza, também

se ancora nos eventos da vida vivida como ponto de partida para se pensar a arte.

Tal afirmação se fundamenta no texto assinado por Voloshinov, sob o título Discurso

na vida e discurso na arte, de 1926, para quem a arte mantém uma relação

indissociável com a vida. De acordo com essa ideia, ao contemplarmos um objeto

estético, um livro, uma pintura, um filme, estamos diante de um todo acabado, no

qual se fundem elementos éticos, relacionados com o processo de maturação e

criação desse objeto, da ordem da vida, do concreto, e elementos estéticos,

relacionados à linguagem utilizada, ao tratamento dado ao conteúdo, à forma e ao

material usados na elaboração do discurso artístico. Nisso constitui a

indissolubilidade entre a vida e a arte. Nas palavras do filósofo:

A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos leitores (BAKHTIN, 1998, p.358).

Toda atividade estética possui como princípio ativador um olhar valorativo que

o autor atribui a determinado aspecto do mundo vivido. Para Tezza (2003), a

palavra, no caso da literatura, ou a imagem, no caso do cinema, já entram na arte

carregadas de intenções, opiniões, acentos sociais, com todas as marcas

ideológicas do autor, ou seja, é a vida concreta que dará ou não o contorno do

objeto artístico. De fato, todo objeto estético, enquanto enunciado, possui uma

historicidade, é socio-historicamente situado; ele foi instaurado dentro de um

contexto por um enunciador, que, detentor de um ponto de vista, de forma não

aleatória, escolheu seu objeto discursivo sabendo quem era seu destinatário

imediato, a respeito de quem possuía uma imagem e, estrategicamente, selecionou

o material, para então poder dar forma ao seu discurso, seja ele artístico ou não.

Portanto, o ato estético nasce de uma necessidade ética do ser humano. Isso

porque o sujeito bakhtiniano, que é ético, além de conhecer o mundo,

necessariamente, precisa se posicionar diante dele, porque possui uma natureza

axiológica. E mais do que isso, necessita responder ao mundo de acordo com a

compreensão e visão que só ele possui acerca deste. Nisso consiste a noção de

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ética para Bakhtin. Não se trata apenas de seguir códigos e regras criados pela

sociedade, mas articular isso com a unicidade dos eventos concretos, que nem

sempre são contemplados por um código fixo. Trata-se da premência do sujeito de

assumir uma postura diante do mundo, sem álibi, como diz Sobral (2009), deixar sua

assinatura no mundo. E é a partir desse posicionamento ético, sob um

direcionamento axiológico assumido pelo autor-criador, que se instaura o processo

criativo do objeto estético.

E essa perspectiva axiológica pela qual o objeto estético é concebido o

impede de ser mera reflexão/reprodução da realidade vivida. Como bem lembra

Aumont (2001, p.116 apud GARCIA, 2011, p.12), referindo-se ao texto fílmico, “no

cinema, o mundo que se vê nas telas não é tal qual o mundo da vida, pois se assim

fosse, seria mera fotografia viva”. Os objetos mostrados no cinema só adquirem

status de arte quando são apresentados em qualidade de signo ideológico. E essa

transmutação só é possível por meio da linguagem atravessada ideologicamente e

axiologicamente. Como enfatiza Stam (1992, p.24), “[...] o significante artístico não é

um mero acessório técnico para transmitir a realidade, mas uma parte da realidade

que é importante em si”.

Para exemplificar, recorremos ao filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos

Santos, 1963. Na célebre cena da morte da cachorra Baleia, a câmera é posicionada

ao nível do animal, propiciando ao expectador, num plano conjunto15, uma

perspectiva do ponto de vista da personagem. Após levar o tiro, ela se deita e vê a

casa se distanciando, efeito produzido pela técnica, conhecida como zoom out16. Na

mesma perspectiva, são mostrados preás em meio a gramas reluzentes, produzindo

um brilho que se alternava com uma imagem opaca, granulada. O brilho era

produzido por um fenômeno conhecido no meio fotográfico de luz estourada17, e o

efeito granulado pode ser obtido usando um filme de alta sensibilidade à luz.

Todo esse cuidado na montagem dos planos que compõem essa cena revela

uma postura axiológica que evidencia respeito aos animais. Na medida em que o

autor promove a humanização de Baleia, na hora de sua morte, indica também

15

Enquadramento de um cenário, no qual um ou mais personagens podem ser vistos e identificados facilmente. É utilizado para contextualizar o local onde ocorrerá todo o resto da cena, assim como para mostrar quais personagens participam desta cena. 16

Movimento aparente de afastamento em relação ao que é filmado, provocado por uma manipulação das lentes da câmara, sem que a câmara em si execute qualquer deslocamento ou rotação. 17

Fenômeno que ocorre em filmagens ou fotografias quando a íris da câmera é ajustada para entrar mais luz do que necessário, neste caso causando o estouro da luz.

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traços de um discurso da esfera religiosa, cuja crença no paraíso o autor-criador

compartilha. A cena da morte da cachorra Baleia foi vista por milhares de pessoas

que não assistiram ao filme, justamente porque não se trata da simples reprodução

do que seria a morte de um animal, mas da visão transmutada artisticamente de um

evento da vida, no caso, a morte. Essa condensação artística da vida concreta

elabora uma outra realidade, uma realidade estética diferente da realidade ético-

cognitiva; mas, de acordo com a concepção bakhtiniana de arte, esta realidade não

pode ser indiferente àquela (BAKHTIN, 2003).

Pensar nessa relação entre ética e estética nos remete a dois conceitos

fulcrais para compreendermos o engendramento dessas duas dimensões que

envolvem o enunciado artístico. Trata-se das noções de excedente de visão e

alteridade. O objeto estético sempre vai ser resultado do jogo de perspectivas ou

pontos de vista entre o autor-criador e o seu outro, com relação ao herói, ou

tema/conteúdo do objeto discursivo. Segundo Bakhtin, o princípio básico dessa

relação é marcado por um estar-do-lado-de-fora, ou exotopia, sem a qual é

impossível qualquer ato criador.

Essa posição exotópica do sujeito criador, ou fora de si, é o lugar de onde se

consegue enxergar o mundo, seus acontecimentos e as posições discursivas não

acessíveis de sua posição social no mundo. O autor-criador, para compor o conjunto

de vozes sociais presentes em sua obra, precisa realizar esse movimento em que

ele se desprende de seu campo social de visão, se dirigindo ao campo social de

visão do outro e, de posse do olhar do outro - o excedente de visão, que do seu

lugar não teria -, retorna à posição de origem, dando acabamento estético à obra e,

num processo contínuo e infinito, atualizando sua visão de mundo acerca do objeto

estético e da vida (TEZZA, 2003).

Nesse movimento, o autor é transformado alteritariamente pelo outro na

relação, o qual passa a ser parceiro do processo criativo, pois empresta seu olhar

para o artista compor um todo acabado do objeto que, sozinho, da sua posição, não

poderia. Importante ressaltar que, sem esse movimento exotópico, ele conseguiria

apenas refletir/reproduzir, monologicamente, a realidade, pois não teria o substrato

de visão do outro; e não tendo, não haveria transformação, comprometendo assim o

processo constitutivo de criação que, necessariamente, deve conter a relação eu-

outro. Portando, Bakhtin nos mostra que só é possível refratar a realidade por meios

exotópicos.

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Mas se o processo alteritário é uma via de mão dupla, como se dá o acesso,

por parte do outro, o destinatário, ao excedente de visão proporcionado pelo olhar

do autor? Isso acontece no momento em que o interlocutor consome o produto

cultural do qual ele mesmo participou na construção. Pensando em um filme, Duarte

(2002) afirma ser o cinema uma forma de alteridade, como sendo o outro que reflete

a nós mesmos na tela. De fato, se o espectador participa da relação que se

estabelece no ato criativo (autor – herói (tema do objeto estético) – destinatário), da

qual resulta o produto final (o filme), parte dele está refletida na tela. E lá está

também o excedente de visão proporcionado pelo autor, o qual ele, o espectador, da

sua posição no mundo, não possui; atualizando assim também sua visão de mundo

acerca do objeto discursivo representado na tela do cinema.

Cabe aqui enfatizar a responsabilidade do autor-criador e o seu compromisso

em fornecer ao seu público, ao seu outro, portanto, o excedente de visão que só o

autor dispõe, necessário para que os seus outros possam também se constituir

nessa relação alteritária, iniciada lá atrás, com o autor pessoa, ao contemplar um

acontecimento da vida. O agir ético na vida impedirá que o sujeito-outro na relação

negue ou escamoteie seu excedente de visão quando, por exemplo, no caso do

cinema, expõe representações estereotipadas, visões de mundo romantizadas ou

distorcidas, discursos univocais, contribuindo para a constituição de indivíduos

alienados.

2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada

O conceito de cronotopia está no alicerce sobre o qual Bakhtin engendrou sua

teoria de gênero do discurso. Em suas reflexões, ele identificou um entrelaçamento

indissolúvel entre o espaço e o tempo, determinante na articulação do discurso, bem

como nas relações de sentido que os sujeitos possam potencialmente vir a construir.

Segundo ele, assim como o espaço indica a presença do tempo, o tempo se

materializa no espaço, apresentando-se como categorias totalmente aliadas e

indissociáveis, em que um não se manifesta sem o outro. Bakhtin, portanto, atribui

ao cronotopo a responsabilidade de trazer para a superfície do enunciado os

elementos que participam da sua constituição, como o espaço, o tempo, os sujeitos,

o contexto imediato, as visões de mundo etc., graças à sua capacidade de

condensar em um espaço definido os índices temporais (BAKHTIN, 1998).

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Bakhtin, por meio de sua pesquisa sobre o gênero romance, chegou à

conclusão de que é possível conhecer, a partir da análise cronotópica da narrativa, o

mundo no qual ela foi concebida. Essa viabilidade se constrói por meio da

percepção dos elementos cronotópicos presentes na história, que, por intermédio de

mecanismos da enunciação, remetem a outros elementos que vão além do

enunciado, determinando a constituição da narrativa e fornecendo indicações

precisas acerca do lugar e do tempo históricos nos quais a obra foi produzida, tais

como a visão de mundo da época, a cultura do povo, os comportamentos sociais, a

realidade local etc. Nas palavras do filósofo:

No romance, o mundo todo e a vida toda são apresentados em um corte da totalidade da época. Os acontecimentos representados no romance devem abranger, de certo modo, toda a vida de uma época (BAKHTIN, 2003, p.246).

Dessa forma, o cronotopo atua de forma peremptória na definição do gênero

de um enunciado, a que, ao ser concebido, o autor-criador, ainda que

provisoriamente, confere acabamento, conduzido por um movimento coercitivo da

conjuntura espaço-temporal na qual o enunciado é elaborado. Ou seja, o contexto

histórico (tempo-espaço) é um fator determinante no processo de composição do

enunciado, outorgando-lhe o contorno na sua materialidade linguística, definindo seu

conteúdo temático, estilo composicional, esfera de circulação e suporte; em outros

termos, definindo seu gênero. Assim, o cronotopo constitui-se o principal agente

responsável pela organização estruturante do enunciado, munindo-o, inclusive, de

entoação expressiva, somando-se aos fatores que lhe conferem unicidade ante o

momento social e histórico de sua produção e recepção.

Embora Bakhtin tenha desenvolvido o conceito de cronotopia tendo como

base o estudo do romance, as conclusões a que chegou sinalizam para a

possibilidade de deslocamento dessa categoria para outras instâncias discursivas.

Assim, procederemos, a partir de agora, a demonstrar a proficuidade da sua

aplicação às narrativas cinematográficas. Assim como no romance, entender as

relações cronotópicas presentes no texto fílmico torna-se imensamente importante

para a compreensão ativa do enunciado. E não pode ser de outra forma porque,

como bem acentua Xavier (2003, p.24, apud CAMARGO, 2009, p.70), “o espaço-

tempo construído pelas imagens e sons obedecerá a leis que regulam as

modalidades narrativas que podem ser encontradas no cinema” (XAVIER, 2003,

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p.24). Assim, se o diretor de um curta-metragem deseja, por exemplo, mostrar a

tensa relação entre o tráfico e moradores de uma comunidade, o cronotopo mais

adequado escolhido para esse fim provavelmente será o morro, como acontece no

curta Mina de Fé (2004), de Luciana Bezerra, no qual ela narra a difícil história de

Silvana, cujo amor de sua vida é o chefe do tráfico.

Mas a escolha do morro não se dá pelo morro em si, enquanto formação

geológica, e sim pela sua dimensão cronotópica, que implica uma imbricação

espaço-temporal que necessariamente revela elementos representativos de um

espaço social definido, que se constituiu num período histórico determinado. Desta

forma o sentido atribuído a morro não é fixado baseado na sua forma físico-

estrutural, mas numa conjuntura sócio-espaço-temporal. Assim, quando me refiro a

morro em um contexto interiorano, trata-se de um cronotopo que remete o

espectador a uma ideia de natureza, paz, tranquilidade; enfim, uma relação espaço-

temporal diferente do cronotopo morro no contexto urbano carioca, por exemplo, o

qual submete o interlocutor a um ambiente de violência, insegurança, medo,

desordem, conflito etc. Nessa perspectiva, temos que:

O movimento visível do tempo histórico é indissociável da ordenação natural de uma localidade (Lokalität) e do conjunto dos objetos criados pelo homem, consubstancialmente vinculados a essa ordenação natural (BAKHTIN, 2000, p.251 apud PAULINO, 2013, p. 212).

Ainda tratando dessa relação entre conteúdo ideológico e a constituição dos

cronotopos no cinema, nos vem à mente a expressão o lado humano não

acompanha o tecnológico, refrão de uma música composta pelo poeta mato-

grossense, Antônio Sodré. Tal enunciado evoca dois cronotopos que, como diz a

música, soam antagônicos. O lado humano, ou seja, as questões de humanidades

geralmente são tratadas pelo cinema em espaços cronotópicos que revelam ou que

suscitam os atributos humanos; neste caso poderíamos pensar em uma casa,

hospital, fazenda, escola, igreja, enfim, espaços sociais que trazem consigo esse

aspecto humano. Como exemplo, poderíamos citar o filme O presente18, no qual o

diretor deseja transmitir lições voltadas às questões de humanidade. Para isso,

utiliza no filme os cronotopos casa, hospital, fazenda, igreja e cemitério.

18 Filme de 2006, do diretor Michael O. Saibel. Conta a história de Jason, que para receber a herança do avô bilionário precisa cumprir 12 tarefas, ao fim das quais é bem sucedido. Cada uma dessas tarefas tem o objetivo de promover alguma mudança nele.

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Por outro lado, desejando o diretor transmitir um discurso que enfatize

avanços tecnológicos, a velocidade do mundo digital, conceitos ligados à

modernidade, mesmo que seja para fazer uma crítica, como no filme Feitiço do

Tempo19, ele usará cronotopos que revelem as marcas dos feitos tecnológicos

entalhados no espaço social, como aeroportos, ambientes de jogos eletrônicos,

shopping-centers, estúdios de televisão, escritórios de grandes corporações

multinacionais, bancos etc. No caso do filme mencionado, um dos cronotopos

utilizados foi o estúdio de TV e, não por acaso, o protagonista Phil é o homem do

tempo numa importante rede de televisão americana, representação social

invariavelmente vinculada à agitação e ao estresse do dia a dia de uma redação de

TV. Nos dois enunciados mencionados, tempo e espaço são apreendidos como

elementos intrinsecamente relacionados e significativos para a qualidade e a

compreensão dos filmes, por meio dos quais ideias, conceitos e visões de mundo de

um determinado tempo e espaço vêm à tona.

Bakhtin, magistralmente e até de forma poética, exprime esse efetivo vínculo

entre o espaço e o tempo, corroborando para a compreensão dessa inexorável

relação. Nas suas palavras:

O tempo se revela acima de tudo na natureza: no movimento do sol e das estrelas, no canto do galo, nos indícios sensíveis e visuais das estações do ano [...]. Por outro lado, teremos os sinais visíveis, mais complexos, do tempo histórico propriamente dito, as marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por sua mão e por seu espírito: cidades, ruas, casas, obras de arte e de técnica, estrutura social, etc. (BAKHTIN, 2000, p. 243).

De fato, o espaço é o lugar onde o tempo é percebido, onde indubitavelmente

ele existe, o tempo necessita do espaço concreto para poder passar. Essa

necessária relação é bastante explorada pela linguagem cinematográfica a fim de

obter ou não a sensação do percurso temporal. Em uma história na qual se deseja

produzir um efeito de sentido que resulte numa sensação de temporalidade estática,

imobilidade e inércia de suas personagens, o diretor provavelmente apresentará, no

decorrer da narrativa, espaços com poucas ou quase nenhuma ação humana.

Assim, ainda que se passem vários anos, um vilarejo continuará com o mesmo

19

Filme de 1993, do diretor Harold Ramis. Narra a história de Phil (Bill Murray), um arrogante meteorologista de televisão incumbido de fazer uma reportagem na cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, sobre as comemorações do Dia de Groundhog. Trata-se de uma festividade em que se acredita que o Groundhog, uma espécie de marmota, pode prever o fim do inverno no dia 2 de fevereiro. No dia seguinte, Phil acorda no hotel e percebe que o dia anterior se repete em detalhes.

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número de habitantes, de ruas e de praças, as casas com as mesmas cores e a

mesma mobília.

Em outra ponta, tencionando o autor marcar a passagem do tempo, ele

salientará as ações humanas realizadas em um espaço determinado, como a

construção de uma escola, de uma estação de trem, de uma indústria qualquer, ou

seja, “as marcas visíveis da atividade criadora do homem, as marcas impressas por

sua mão e por seu espírito” (idem). Neste caso, a sensação de que o tempo “andou”

fica óbvia. É como se o tempo se materializasse no espaço (BAKHTIN, 1998). Além

disso, cabe destacar os sinais visíveis mais complexos, do tempo histórico,

mencionados por Bakhtin: todo legado histórico da humanidade, entre os quais se

encontram as artes, as técnicas, as estruturas sociais, os feitos científicos, os

saberes e pensamentos, cada um destes marcando seu próprio tempo, em seu

próprio espaço.

2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento

O conceito de arquitetônica também nos ajuda a compreender a imbricada

relação existente entre as dimensões ética e estética presentes nos enunciados

fílmicos, conceitos impossíveis de serem pensados de forma isolada. Dito de outra

forma, tal categoria nos mostra como os elementos extralinguísticos (da vida

concreta) penetram o enunciado por dentro, no processo de acabamento (BAKHTIN,

2003). Por elementos extralinguísticos entendemos todos os componentes que

integram determinado horizonte social, no interior do qual os enunciados são

produzidos. Horizonte que pode ser imediato ou mais amplo. Um enunciado

concreto sempre será proferido num dado contexto cultural ou numa situação mais

restrita; apenas nessas circunstâncias é que ele fará sentido, poderá ser verdadeiro

ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso (BAKHTIN, 1998). Bakhtin se ocupa,

portanto, em demonstrar como o sujeito, em suas atividades estéticas, se revela

eticamente. Isso implica na assunção da responsabilidade pelo ato enunciativo, pois

ao enunciar, o sujeito se mostra, porque o faz a partir de um lugar único, que só ele

pode ocupar no momento da enunciação.

E como se efetiva essa relação dialógica entre o plano do conteúdo, no qual

se inserem os atos éticos e sociais, e o plano formal, responsável pela maneira de

organizar e compor os discursos? Para o filósofo russo, todo objeto estético, seja da

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esfera artística ou não, pressupõe a existência de um conteúdo e sua forma, além

disso, de um material, com o qual o autor trabalhará; no caso do discurso

cinematográfico, a imagem e o som. A obra estética (totalidade arquitetônica), o

produto com acabamento, embora inacabado, resulta da articulação desses três

elementos, sem os quais ele não existiria. Ao dar corpo ao conteúdo, por meio do

material, o sujeito criador o faz com base nas relações axiológicas que mantém com

o teor do enunciado e com seu interlocutor. Ao produto decorrente dessa imbricação

ético-estética, Bakhtin denominou de forma arquitetônica. Dito de outra forma,

arquitetônica é o processo pelo qual o autor estrutura de forma valorativa o

conteúdo, conferindo-lhe, em um certo material, uma composição específica.

Isso implica uma relação de interdependência entre a forma composicional e

a arquitetônica, na qual a segunda determina a primeira e esta não se realiza sem

aquela (BAKHTIN, 2010[1920-24]). Como exemplo, podemos citar os filmes

americanos que retratam o ataque da Al-Qaeda às Torres Gêmeas do complexo

empresarial do Word Trade Center, na cidade de Nova York, em setembro de 2001.

Tal acontecimento do mundo concreto contém um caráter altamente trágico, cuja

perspectiva político-histórica possui uma importância crucial para os Estados Unidos

e para o Mundo, um evento que se tornou um divisor de águas para a humanidade.

Portanto, a forma composicional de narrar artisticamente esse fato provavelmente

será consoante à sua arquitetônica, constituída pelo caráter trágico, politico, étnico,

religioso, sob o qual está imerso o acontecimento. De fato, tal conteúdo não poderia

ser representado por outras formas composicionais senão o drama e o

documentário. Dos 10 filmes pesquisados sobre o tema, setenta por cento deles

pertencem ao gênero Drama e os outros trinta são documentários, formas

composicionais mais adequadas para realizar a arquitetônica desse evento,

conforme quadro abaixo20.

FILME ANO DIRETOR ORIGEM GENERO

11 de Setembro 2002 Sean Penn + 10 EUA + 6 Drama

As Torres Gêmeas 2006 Oliver Stone EUA Drama / Histórico

Reine sobre mim 2007 Mike Binder EUA Drama

Zona Verde 2010 Paul Greengrass EUA Drama

20 Disponível em: http://educacao.uol.com.br/album/2013/09/11/veja-11-filmes-e-documentarios-que-

relembram-os-atentados-de-11-de-setembro-de-2001.htm, acesso em 15/03/2014.

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Voo 93 2006 Paul Greengrass EUA Drama / Histórico

102 Minutos que

Mudaram o Mundo

2008 Nicole

ittenmeyerSeth

EUA Documentário

People – Histórias

de Nova York

2005 Tony Sahoub EUA Drama / romance

Inside 9/11 2005 National

Geographic

EUA Documentário

Guerra ao terror 2010 Kathryn Bigelow EUA Guerra / Drama

Fahrenheit 11 de

Setembro

2004 Michael Moore EUA Documentário

Quadro 1: Levantamento dos gêneros utilizados nos filmes sobre o “11 de setembro”

Segundo Bakhtin (1992), quando o sujeito enuncia, ele assume a

responsabilidade diante da vida concreta, do conteúdo do seu ato de fala, por isso

um agir ético. Para ele, o sujeito é integralmente responsável e responsivo.

Responsável por assumir todos os atos de sua vida, “sem álibi na existência”, e

responsivo porque sua fala não é um ato isolado, mas responde a outros discursos

com os quais dialoga. E ao refletir sobre seu ato responsável, sua decisão de falar

sobre o fato concreto, ele confere valores ao seu ato e lhe dá acabamento, por isso

um agir estético. O filósofo russo valoriza esse diálogo entre o agir concreto do

falante – ética - e o refletir sobre essa ação e lhe dar acabamento – estética;

estabelecendo assim uma relação indissociável e complementar entre realidade e

cultura, conteúdo e processo, entre a repetibilidade do conteúdo e a irrepetibilidade

do como enunciar.

Portanto, a produção de um filme será sempre o resultado da relação

dialógica entre o particular - aquilo que está presente apenas no ato enunciativo do

cineasta - e o geral – aquilo que cada ato tem em comum com todos os atos

relacionados a um determinado fato, ou seja, o conteúdo. Para Bakhtin, não há uma

primazia de um sobre o outro, mas uma equipolência entre o ético e o estético na

produção de atos enunciativos que compõem a cadeia comunicacional; o que,

segundo ele, leva à integralização arquitetônica de todas as dimensões do ser

humano. Donde concluímos que considerar um texto segundo a arquitetônica

bakhtiniana, seja qual for a sua natureza material, significa olhar não só para a

organização das palavras, mas para a organização dos discursos.

No caso do texto fílmico, analisá-lo arquitetonicamente implica considerar o

momento histórico em que ele está inserido, o pensamento corrente e as questões

que afetam a humanidade na ocasião de sua produção que justificam o discurso

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materializado no seu enunciado. Porque, mesmo sendo evento único e irrepetível,

ele se constitui dentro de um contexto, sendo, portanto, profundamente influenciado

por essas questões, tanto no seu aspecto formal, quanto no seu conteúdo.

Consoante a isso, Faraco (2009b) enfatiza a importância de o professor valorizar em

sua prática pedagógica a concepção de texto que leve em conta, necessariamente,

a forma arquitetônica bakhtiniana. Segundo ele, o analista do discurso que se coloca

numa perspectiva dialógica deve apropriar-se desse conceito, considerando sempre

as duas dimensões constitutivas do discurso: a interna e a externa. Só assim

conseguirá (re)estabelecer as relações dialógicas e valorativas produtoras de

sentidos, mantendo aberta a possibilidade de resposta.

Ao propor a exibição de um curta-metragem, por exemplo, com o objetivo de

ensinar a linguagem ou linguagens utilizadas no filme, não é possível fazê-lo apenas

considerando sua forma composicional predominante. É preciso levar em conta sua

forma arquitetônica, pois esta também o constitui enquanto enunciado. É importante

olhar para o filme como um todo acabado, sem retirá-lo de sua situação de

produção, circulação e recepção; conhecer seus produtores, compará-lo com outros

filmes que tratam do mesmo tema, produzidos em outro tempo-espaço,

estabelecendo as relações existentes entre eles, fazendo com que o aluno perceba

que não se trata de um enunciado que se basta a si mesmo, isolado, autônomo, mas

que pertence a uma categoria discursiva, que traz consigo concepções artísticas de

estilo, época e gênero, as quais concorrerão no processo de significação.

Para além dessa abordagem externa, o professor deverá também, em

conjunto com a turma, considerar a dimensão interna do texto fílmico, ou seja, sua

forma composicional, estilo, etc. Isso permite a familiarização do aluno com a

linguagem cinematográfica utilizada para produzir o gênero em questão. Dessa

forma, o aluno terá uma visão da totalidade demandada na elaboração de um

enunciado audiovisual: veículo, público alvo, suporte, posicionamento ideológico

diante de um fato, articulação com a política pedagógica da escola etc. Tais

cuidados contribuirão para que se torne sujeito de seu próprio discurso. O filme,

portanto, entra na escola como fonte de informação social, propiciando uma reflexão

sobre os aspectos socioculturais e a possibilidade de explorar uma nova linguagem.

Assim, tal abordagem arquitetônica propicia o desenvolvimento de uma

compreensão responsiva no aluno, levando-o a assumir cada vez mais

posicionamentos críticos e valorativos diante das questões que forem apresentadas.

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2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo

Neste subcapítulo, promovemos algumas reflexões sobre os textos

multimodais e como eles têm sido tratados pelos teóricos que pensam o letramento.

Investigamos e propomos estratégias utilizadas pelos educadores no letramento de

textos que circulam socialmente, os quais se utilizam de múltiplas formas de

representação. Coerentemente, inserimos o Círculo de Bakhtin nessa discussão,

destacando suas valiosas contribuições para essa temática. E no final,

apresentamos ao leitor uma breve abordagem dialógica dos principais signos

cinematográficos e como estes são mobilizados para produzir os efeitos de sentido

pretendidos pelo cineasta. Esperamos que essa ferramenta possa ser uma

importante, mas não a única, fonte de pesquisa para professores que pretendam

fazer uso dessa poderosa linguagem em suas aulas.

Quando pensamos em texto, a primeira coisa que nos vem à mente é o texto

na sua forma estrita, ou seja, um conjunto de palavras e frases encadeadas,

passíveis de interpretação. No entanto, adotamos aqui o conceito de texto elaborado

por Bakhtin em 1960, no seu ensaio O problema do texto na linguística, na filologia e

em outras ciências humanas: “Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer

conjunto coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história

das artes plásticas) opera com textos (obras de arte)” (BAKHTIN, 2003, p.329). Ele

parte do pressuposto que todas as interações sociais se dão por meio de textos

multimodais. Isso equivale a dizer que, ao interagirem, os sujeitos fazem uso de uma

variedade de modos comunicacionais, inclusive o audiovisual, para expressar suas

ideias e emoções.

Tal diálogo entre as várias modalidades de linguagem faz-se necessário para

compreendermos o pressuposto freiriano de que “a leitura do mundo precede

sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura

daquele” (FREIRE, 1989, p. 20). Ambos os pensadores referiam-se ao aspecto

cultural presente em qualquer texto, inclusive no cinematográfico. Para eles, os

textos são potencializados pela leitura de cunho cultural baseada na vivência do

sujeito leitor, conferindo-lhes diferentes horizontes interpretativos e expressivos,

ampliando visões de mundo, proporcionando hipóteses e inferências, bem como

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despertando o senso crítico na prática de interpretação textual, em qualquer sistema

modal.

Diante disso, instaurou-se a consciência de que ler vai muito além da

decodificação das palavras. E, apesar de já haver o reconhecimento da existência

de múltiplas formas de representação, elas eram encaradas distintamente, ou seja,

não havia integração ou complementaridade entre elas. Só a partir dos anos 80,

teóricos da linguagem passam a conferir, cada vez mais, relevância ao estudo das

imagens enquanto signos integrados, semeando a ideia de letramento visual no

âmbito educacional (KRESS & VAN LEEUWEN, 2001).

Por conseguinte, o conceito de texto multimodal passa a conquistar espaços

cada vez mais importantes nos estudos de linguagem, passando a ser encarado

como mais uma forma de representação, além da linguagem verbal, capaz de

comunicar as ideias dos sujeitos falantes (idem). Portanto, os modos de constituir os

enunciados não estão isolados uns dos outros, todos estão igualmente integrados

pelas situações concretas de comunicação, não há primazia de um sobre o outro,

conforme nos esclarece Bakhtin:

A comunicação verbal entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção. Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução. Graças a esse vínculo concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimônias, etc.) (BAKHTIN, 1992, p. 124).

Tal assertiva nos faz perceber que qualquer iniciativa de proporcionar

letramento visual não pode e não deve basear-se numa visão reducionista de

oposição entre visual e verbal, mas, ao contrário, carece de uma abordagem

integradora entre ambos os modos de retratar a realidade, vez que esse tipo de

representação se faz presente, de forma cada vez mais relevante, em quase todas

as esferas de interação das quais os alunos participam, tais como a jornalística,

artística, publicitária ou recreativa, por meio das reportagens, notícias, charges,

anúncios, filmes, teatro, etc. Portanto, se compartilharmos os pressupostos

bakhtinianos, rechaçaremos qualquer ideia que vá em direção a substituir o modo

visual pelo modo verbal ou sobrepor aquele em relação a este; ao invés disso,

ressaltamos a importância de outros tipos de comunicação na representação das

ideias. Assim sendo, não podemos adiar mais esse compromisso de entender o

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texto audioverbovisual mais profundamente e proporcionarmos aos alunos

habilidades e competências para lidar com ele.

Diante dessa nova “paisagem semiótica”, abordada mais profundamente por

Kress e Van Leeuwen, a introdução de novas linguagens como recurso pedagógico

para aprendizagem de leitura, escrita e interpretação de texto vai ao encontro das

concepções bakhtinianas e freirianas concernentes às interações verbo-visuais.

Acreditamos que o uso da linguagem cinematográfica no ensino de língua materna

pode se mostrar bastante produtivo nessa tarefa de capacitar os alunos a lidarem

com o modo audiovisual de representar, inserindo-os de vez nessa nova conjuntura

semiótica. Assim, explorar de forma significativa e responsável o filme no contexto

de sala de aula mostra-se essencial na prática pedagógica. Os professores têm a

difícil, mas não impossível, missão de fazer com que os alunos encarem um filme

não apenas como uma forma de entretenimento e lazer, mas também como um

meio de informação, formação social, cultural e até mesmo intelectual. Para tanto,

precisam desenvolver um trabalho de leitura sob a ótica do multiletramento.

Esse conceito, cunhado em 1996, por um grupo de intelectuais conhecido por

The New London Group, traz consigo a ideia de que os modos de representação da

realidade há muito tempo deixaram de se basear em apenas um sistema semiótico,

o verbal. A multiplicidade de semioses utilizadas hoje em dia na comunicação, bem

como dos canais pelos quais as mensagens são transmitidas, além das diversidades

linguísticas e culturais dos falantes, nos coloca diante de um mosaico de formas

representacionais que se integram e complementam, que se completam na

produção de sentidos, atendendo a especificidades situacionais e a múltiplos

propósitos comunicacionais.

Diante dessa abordagem multimodal da linguagem, faz-se mister uma

concepção de letramento que dê conta dessa dinamicidade da linguagem, que

habilite o aprendiz a lidar com uma linguagem em constante mudança, a qual variará

de acordo com o contexto social e cultural no qual está inserida, e que sobrepuje

aquela ideia de alfabetização tradicional, cujas práticas são enfocadas num sistema

de regras imutáveis, cada vez mais distante da realidade dos alunos (ROJO, 2005).

Sabedores desse cenário no qual se insere a comunicação, os responsáveis

por municiar os educadores com paradigmas de ensino introduziram nos PCN, a

partir de 2008, a preocupação com essa dimensão dialógica da linguagem. Isso

significa levar em conta a relação intensa entre língua e as experiências reais de

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uso, num constante movimento que entrecorta os diversos sistemas semióticos

presentes nas interações humanas. Preconizou-se, assim, o multiletramento, a partir

do qual as estratégias de letramento passaram a considerar outras práticas

discursivas, mediadas também pela linguagem não verbal; entre elas, o cinema, as

artes visuais, o rádio, a televisão e a charge. No caso do cinema, em particular, as

orientações curriculares assumem uma postura de reflexão quanto ao discurso

cinematográfico, principalmente no âmbito cultural, em que as identidades sociais

podem receber forte influência das produções artísticas no seu processo de

(re)constituição.

E, ao introduzir o texto fílmico no currículo, a escola assume como uma de

suas funções sociais pensar o cinema para além do entretenimento, como um

elemento cultural de modo reflexivo e crítico. E isso implica reconhecer seu poder

informacional e pedagógico, embora sua função primeira não seja essa. De fato, a

sétima arte possui meios bastante eficazes de incutir conhecimentos e orientar

comportamentos e processos de construção de subjetividades. Como bem diz

Duarte:

Parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional - sua natureza eminentemente pedagógica (DUARTE, 2002, p. 19).

Além disso, as produções cinematográficas, enquanto produto cultural,

revelam quem somos, como pensamos e como agimos. Portanto, fazer uma leitura

crítica de um texto fílmico significa, em última análise, realizar uma leitura crítica da

realidade de um povo. Só isso já justifica a inclusão do cinema enquanto cultura no

currículo escolar, pois proporciona discussões sobre identidade étnica, política,

moral e religiosa, elementos fundantes de uma nação, proporcionando reflexões

sobre os valores das culturas representadas, questionando, reforçando ou

promovendo novos olhares com relação aos princípios apresentados nos filmes.

A linguagem cinematográfica possui um potencial de letramento capaz de

proporcionar a compreensão de certas ideias, valores e conceitos que seriam

difíceis de assimilar de outra forma, reforçando o caráter pedagógico do cinema. De

fato, os recursos da imagem, a fala direta e os detalhes evidenciados pelo jogo de

câmera facilitam o diálogo e a compreensão do telespectador, especialmente os

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jovens. A sala de aula torna-se, com isso, um espaço semiótico (STAM, 2003), onde

acontece a integração entre os diversos meios de representação, dentre eles o

verbo-audiovisual, em que diferentes códigos estão inscritos ou implícitos; suprindo,

com isso, a escassez de uma abordagem multimodal nas aulas de linguagem, pois

os filmes, como recurso didático, produzem significados que vão além daqueles

gerados no âmbito do linguístico, na medida em que mobilizam modos de

representação que exigem articulação de outros sentidos do leitor.

Cabe à escola, portanto, proporcionar esse tipo de letramento a fim de que o

leitor de textos fílmicos possa adquirir a competência comunicativa para assimilá-los,

assim como já propicia habilidades para a leitura e a escrita tradicionais. Operar

esse tipo de letramento implica considerar as peculiaridades do texto

cinematográfico quanto a seus recursos expressivos, ampliando as possibilidades de

compreensão, interpretação e apreensão do texto por parte do sujeito leitor. Isso

significa estar atento aos elementos expressivos operados pela câmera, os quais

funcionarão como agentes discursivos. Logo, concluímos que os processos de

leitura das imagens em movimento são independentes, pois as imagens geram seus

significados em si mesmas, ou seja, elas não carecem, necessariamente, de uma

estrutura verbal para produzir sentidos.

Isso significa que toda mensagem imagética carrega em si uma carga

significativa sob algum ponto de vista cultural e/ou ideológico, não necessitando de

uma descrição verbal de seus elementos visuais, pois esses são suficientes para

produzirem sentidos em seu processo de leitura. Dessa forma, o uso do close-up, da

câmera detalhe, do plano médio ou plano geral, por exemplo, submete o leitor a

pontos de vistas em relação ao objeto, a que provavelmente não teria acesso em

uma interação estritamente verbal, oportunizando ao telespectador reflexões

valorativas significativas acerca do objeto estético.

Assim, ao proceder a uma análise de um texto fílmico recorrendo à linguagem

cinematográfica e aos recursos utilizados por ela, a capacidade de compreensão

crítica do mundo tende a ficar mais aguçada, pois a cada experiência fílmica, novos

olhares se lançam em direção ao objeto estético, à medida que o olhar vai se

familiarizando com as semioses do cinema. Tais aspectos devem figurar em

qualquer processo de letramento que se pretende crítico, pois oferecem a

possibilidade de ler o mundo de uma forma mais dialógica e oportunizam ao sujeito

leitor o posicionamento crítico diante do objeto estético em estudo.

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De fato, o uso de filmes como recurso educativo tem se mostrado eficaz na

instauração do diálogo entre os conteúdos curriculares e os conhecimentos mais

gerais, de natureza sociocultural. Portanto, conceder espaço para o cinema no

conteúdo escolar, além de possibilitar a integração entre o currículo e as questões

socioculturais mais amplas, prepara o olhar e o coração do aluno para ler o texto

cinematográfico, leva-o a perceber que uma história contada por meio de imagens

possui suas idiossincrasias, as quais precisam ser levadas a sério. Possibilita ao

estudante perceber a dimensão do poder e da importância desta forma de

comunicação no mundo de hoje, o qual se utiliza dela para veicular suas mensagens

e valores, até mesmo de forma subliminar.

Além disso, incluir o cinema no sistema educacional proporciona a

compensação de uma insuficiência existente nos leitores de textos audiovisuais.

Porque, diferentemente do texto verbal, sobre o qual o aluno recebeu, durante toda

sua vida escolar, informações e orientações acerca de sua estrutura, regras, sintaxe,

etc., não houve sequer uma iniciação à linguagem cinematográfica. A eles não foi

ensinado o que significam planos, enquadramentos, movimentos de câmera, efeitos

de luz, fotografia, etc., embora, de forma intuitiva, sempre assistiram a filmes. E a

partir do momento em que o aluno começar a ter conhecimento sobre como

funcionam os mecanismos utilizados pelo cinema, perceberá que ele possui um

vocabulário próprio, que é tão válido e útil quanto o vocabulário da linguagem verbal

para uma compreensão mais qualificada da realidade representada.

Uma vez assumida essa postura, no que se refere ao letramento

cinematográfico, as escolas passariam a trabalhar não apenas o conteúdo dos

filmes como bagagem adicional ao repertório cultural dos estudantes, o que por si só

já constituiria um ganho importante, mas também as técnicas utilizadas pelo cinema,

como música, efeitos sonoros, direção, figurino, cenografia, planos, ângulos,

sequência, movimentos de câmera; poderiam abordar também as escolas

cinematográficas e suas diversidades, talvez um pouco da história da sétima arte,

além dos gêneros cinematográficos. Ou seja, tomariam os enunciados

cinematográficos objetos a serem ensinados e aprendidos.

Mas para que isso seja possível, como acontece em qualquer projeto

educacional que se pretenda eficaz, em que pese os professores não precisarem ser

especialistas em linguagem cinematográfica, o passo inicial precisa ser a formação

dos docentes. Além dos programas oficiais de capacitação, é possível aproveitar o

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conhecimento acumulado de professores que já fazem uso de filmes em sala de

aula, os quais poderiam formar grupos em sua própria escola com o objetivo de

compartilhar suas experiências, ações que já tenham desenvolvido, leituras

realizadas sobre o tema e cursos dos quais tenham participado. Tais iniciativas

certamente vêm a facilitar o acesso dos professores a produções cinematográficas

que contribuam para a formação crítico-reflexiva do educador e ampliar seu

repertório fílmico, além de desenvolver sua competência leitora.

Além disso, não podemos perder de vista que, na definição de projetos

pedagógicos que incluam a utilização de filmes em sala de aula, o uso de tais

recursos precisa estar de acordo com o projeto político-pedagógico da escola. Deve-

se ter em mente que o uso de um filme ocorre a fim de atingir a um objetivo

educacional. Há também a necessidade de estabelecer uma relação com o

conteúdo que está sendo estudado, de acordo com o currículo definido pela escola.

Ademais, o processo de letramento cinematográfico exige cuidados que

precisam ser tomados antes, durante e depois da exibição de cada filme, como a

faixa etária indicada e a elaboração de um roteiro que irá orientar as ações

pedagógicas referentes ao filme. Os professores poderão também elaborar projetos

multidisciplinares, uma vez que o texto cinematográfico possui elementos

multimidiáticos, como texto, cenografia, figurinos, efeitos sonoros e visuais,

permitindo que professores de várias disciplinas desenvolvam trabalhos de forma

conjunta (NAPOLITANO, 2003).

Enfim, como acontece na literatura, em que as competências e as habilidades

vão sendo desenvolvidas aos poucos, o letramento cinematográfico também precisa

ser estimulado de forma gradativa. Assim como Machado de Assis não é indicado

para principiantes em literatura, também não é aconselhável realizar a iniciação dos

alunos com filmes de Eisenstein ou Scorsese, diretores conhecidos por utilizar um

nível de linguagem que exige bastante do espectador. É necessário que se faça uma

introdução adequada à idade, à expectativa e ao nível cultural da turma, de modo

que ela vá, paulatinamente, tendo acesso a obras mais complexas. De uma maneira

ou de outra, o que se espera é que os alunos saiam enriquecidos pelas experiências

obtidas com a sétima arte, com motivação e condições de debater, argumentar e

expressar suas ideias e impressões sobre a obra, seja em forma de comentários em

redes sociais, trabalhos escolares ou artigos de opinião.

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2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido

O cinema é uma forma de contar histórias, dentre outras. Portanto, ele é um

meio de comunicação. Um sujeito que se propõe a narrar uma história, seja ela

verídica ou fictícia, em forma de comédia, drama ou qualquer outro gênero, precisa

fazer-se entender com seu interlocutor, assim como é requerido do autor de um livro

competência comunicacional de modo que seus leitores consigam apreender suas

ideias. Este faz por meio de palavras, orações, estruturas de parágrafos, ou seja, as

ferramentas que ele possui enquanto escritor para expressar seus pensamentos e

produzir suas histórias. Já a produção fílmica é uma arte audiovisual, ou seja, o

autor que deseja se comunicar por meio dela precisa saber como transmitir efeitos

de sentido, emoções, ideias e conceitos utilizando imagem e som. E é aí que entra

os códigos da linguagem cinematográfica.

Ainda utilizando o paralelo com a comunicação escrita, que possui recursos

morfológicos, sintáticos e de figuras de linguagem, os quais produzem efeitos

exclamativos, apelativos, retóricos etc., na comunicação audiovisual temos recursos,

como planos, ângulos, enquadramentos, som, movimentos de câmera e a

montagem, cuja tarefa é produzir os sentidos desejados nessa forma comunicativa.

Mas o que significa cada um desses elementos que compõem essa linguagem e

qual a sua finalidade no processo comunicativo? Esta seção tem a finalidade de

familiarizar o leitor com a linguagem utilizada pelo cinema, bem como demonstrar

sua mobilização na produção dos significados.

Comecemos pelo enquadramento: esse recurso é essencial, porém pouco

valorizado por quem não possui um conhecimento mínimo da linguagem

cinematográfica. Para definir o que é enquadramento, faz-se necessário a

compreensão do que sejam planos e ângulos. Os planos de enquadramento podem

ser entendidos como sendo a distância entre a câmera e aquilo que está sendo

filmado. Dessa forma, a depender da distância, o enunciador altera o sentido daquilo

que está sendo mostrado na imagem.

Existem vários planos predefinidos na linguagem do cinema: o plano geral é

utilizado para revelar o cenário onde se passa a história; o plano médio exibe uma

personagem com um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés; o plano

americano mostra a personagem da altura do joelho para cima; há também o

primeiro plano, que exibe o ator da altura do peito para cima, e por último o plano

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detalhe, utilizado para enfocar ou salientar algum objeto, parte do corpo ou

expressão que o autor deseja destacar (MARTIN, 2003).

Ainda falando em enquadramento, além dos planos de filmagem, há também

os ângulos de filmagem, o que é determinado basicamente pela altura em que se

encontra a câmera no momento da cinematografia. Existem três tipos básicos de

ângulo: o normal, no qual a câmera está na altura dos olhos das personagens; o

plongée, ou câmera alta, quando a câmera está posicionada acima do nível dos

olhos da personagem e voltada para baixo; a contre-plongée, em que a câmera fica

abaixo do nível dos olhos da personagem, voltada para cima. Importante frisar que

este ou aquele plano ou ângulo é escolhido de forma consciente e articulada a fim

de obter o melhor resultado na transmissão de uma ideia. Assim, caso um diretor

queira explicitar a fúria de uma personagem, a fim de transmitir uma ideia,

provavelmente não alcançará êxito se utilizar um plano geral; certamente, o seu

interlocutor não sentirá o efeito desejado. Por outro lado, se fizer uso do primeiro

plano, obterá o resultado esperado (idem).

Com relação ao ângulo, essa intenção será alcançada mais eficazmente se o

diretor explorar o ângulo contre-plongée, o qual imprime na personagem um aspecto

de poder, autoridade e comando, efeito que não será alcançado se utilizado o

ângulo normal. Por outro lado, na hipótese do autor pretender expor a fragilidade,

medo, humilhação ou vulnerabilidade da vítima de uma agressão, sua finalidade

será melhor atingida utilizando o primeiro plano ou plano médio e o ângulo plongée,

conforme demonstrado nas figuras abaixo.

UM Dia de Fúria (SCHUMACHER, 1993) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g4q1Fhq6Ong.

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Nos exemplos acima, retirados do Filme Um dia de fúria (1993), de Joel

Schumacher, podemos notar na primeira figura o uso do primeiro plano e ângulo de

filmagem contre-plongée. Tal enquadramento possibilita ao telespectador sentir a

raiva do personagem, além de destacar sua posição de imponência com relação aos

seus interlocutores. Na figura 02, o plano médio e o ângulo plongée utilizados na

filmagem da cena ressaltam o medo e suscetibilidade das personagens vítimas do

homem furioso. Desta forma, salientamos a extrema importância do enquadramento

na linguagem fílmica para a constituição do discurso cinematográfico (XAVIER,

2008).

Outro recurso não menos importante que compõe a linguagem

cinematográfica é o movimento de câmera. Os mais comuns são o panorâmico, no

qual a câmera é fixada em um lugar, fazendo um movimento horizontal em torno de

si mesma a fim de mostrar o cenário; com esse mesmo objetivo, o title também

mantém a câmera fixa, mas realizando um movimento na vertical; e o terceiro

movimento básico, muito utilizado em filmes de ação, é o travelling, em que a

câmera não está fixada em um ponto específico, ela se movimenta junto com o

objeto ou com a personagem (MARTIN, 2003). Além do movimento de câmera, a

edição ou montagem é um elemento presente em todos os filmes, é o resultado da

união das tomadas produzidas em vários planos, que depois de vários cortes e

emendas formam uma sequência lógica. Ela é responsável por dar sentido às

sucessões de cenas que, organizadas, adquirem um significado (MOLETTA, 2009).

Por conseguinte, os enquadramentos e os movimentos realizados pela

câmera determinam o que veremos e como veremos o objeto estético. Ao realizar

um close up, ou um movimento de zoom in, no qual a câmera aproxima a

personagem, o diretor deseja avizinhar aquela personagem de seu interlocutor, de

modo que este preste atenção naquela, sugerindo certo grau de empatia e

envolvimento entre eles. Por outro lado, num plano geral ou movimento de zoom out,

no qual a câmera afasta o objeto, o diretor pode estar sugerindo uma relação

objetiva, de distanciamento entre o seu interlocutor e a personagem, ou aquilo que

ela representa. Da mesma forma, ao posicionar a câmara em ângulo reto, que

coincida com a linha dos olhos da personagem, o autor pode estar suscitando uma

relação de equivalência (MARTIN, 2003). Tais mecanismos devem ser observados

pelo professor ao proceder a uma análise de qualquer produção cinematográfica,

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pois são elementos fundamentais da linguagem audiovisual, reveladores de

intencionalidades, lembra Napolitano (2003).

Associado à imagem, o áudio vem ganhando cada vez mais importância na

linguagem cinematográfica. É impossível falar de certos filmes sem mencionar sua

trilha sonora; como é caso da música tema criada por Bernard Hermann

especialmente para a cena das facadas no chuveiro em Psicose, de Alfred

Hitchcock; ou Cavalgada das Valquírias, de Wagner, em Apocalipse Now. Hoje em

dia, assistir a um filme sem som faz uma diferença impressionante, o efeito de

sentido produzido na interação é outro. Esse recurso é tão responsável quanto os

demais descritos até agora para a produção de sentido nos enunciados

audiovisuais. A linguagem cinematográfica dispõe de três tipos de áudio: os efeitos

sonoros, a música e o diálogo.

O primeiro refere-se a todo tipo de som que realmente existe na cena. É o

caso de um personagem que, caminhando pela floresta, produz o barulho do pisar

nas folhas secas, ou o ruído da porta se abrindo, ou seja, todo ruído natural que

deveria estar na cena é considerado efeito sonoro. Já a música é aquele som que

não é do ambiente, pode ficar como pano de fundo e tem como objetivo ajudar na

compreensão do telespectador e produzir sensações e emoções que o diretor julgar

relevantes para transmitir sua mensagem. E por fim os diálogos, que são os sons da

conversa ou das falas das personagens (MARTIN, 2003). É interessante destacar

que, mesmo no cinema mudo, o papel do áudio (efeitos sonoros e musicais) é

extremamente importante para captar o sentido e as emoções dos personagens; é

mudo porque não há o som dos diálogos, mas com a música inserida na edição é

possível transferir ao telespectador toda a emoção que o diretor deseja transmitir

com a cena.

O uso adequado desses recursos confere aos enunciados audiovisuais uma

dimensão profissional, com ricas possibilidades discursivas. E, graças a esses

avanços, os filmes, hoje em dia, transmitem aos telespectadores um efeito de

realidade muito forte. Assim, um filme, ao ser assistido, mesmo sabendo que se trata

de ficção, produz uma sensação efetiva, verdadeira. E ao ver um filme no cinema,

na sala escura, esse efeito de realidade se potencializa, pois o telespectador está

totalmente envolvido naquele ambiente do cinema. E para que esse processo

aconteça, estabelece-se, de forma tácita, um pacto de realidade entre o

telespectador e o filme. E isso precisa ser levado em conta pelo professor porque faz

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parte da linguagem cinematográfica. Dessa forma, o aluno/telespectador, atento a

esses mecanismos linguísticos do cinema, se constituirá bastante capaz para

realizar uma leitura mais crítica e satisfatória do enunciado concreto (XAVIER,

2003).

Portanto, os recursos de filmagem, ou seja, a forma, estão atrelados ao

conteúdo ideológico do filme, e o professor deve estar atento a isso porque interfere

no produto final. Em filmes que não se exige muito do expectador, os recursos são

parcos e modestos, os enquadramentos utilizados não vão além dos tradicionais já

comentados nesta seção, o diretor evita utilizar recursos que exijam uma

familiaridade maior com a linguagem cinematográfica. Isso acontece com o cinema

comercial, em que os produtores optam por poucos movimentos de câmera, bem

como os planos básicos: o médio e o close up, no máximo o plano conjunto. Já no

cinema autoral, menos compromissado com o mercado e mais crítico, os

movimentos de câmera são mais livres, exigindo um pouco mais do seu público, o

que inclui a fotografia, a textura, as cores, a intensidade da luz etc.

Quanto à escolha do cenário, estúdio ou locações externas, a colocação dos

objetos nas cenas, não se trata meramente de escolhas estéticas, tem a ver com o

conteúdo ideológico. Por exemplo, o neorrealismo italiano, cuja característica

principal era o uso de elementos da realidade em produções ficcionais, a fim de

representar a realidade social e econômica do final da segunda guerra mundial, se

recusava a fazer filmes em estúdios porque, como parte dessa busca de expor a

realidade e fazer a crítica social, considerava importante realizar suas filmagens nas

ruas, com a luz natural (idem). Um bom exemplo disso é o filme Ladrões de bicicleta

(1948), de Vittorio de Sica, o qual foi filmado, na sua maioria, nas ruas de Roma, na

Itália. O diretor pretendia mostrar o homem do povo, sua escolha tinha relação com

seu princípio ideológico. A sua preferência por atores amadores levou seu público a

crer que se tratava realmente de pessoas comuns, vivendo uma vida real e sofrida.

Sua intenção era expor o aspecto cruel da Roma não romantizada pelos livros,

conforme demonstrado nas figuras abaixo.

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Vidas Secas (SANTOS, 1963) Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=vidas+secas.

E em Vidas Secas (1963), Nelson Pereira, com o objetivo de denunciar o

sofrimento do sertanejo, provocar um sentimento, expor um ponto de vista, explorou

acentuadamente o recurso de contraste da luz natural, principalmente no interior das

casas. Com a abertura demasiada do diafragma, ele provocava a entrada excessiva

da luz, o que na linguagem do cinema é chamado de estouro. Com isso, conseguia

transmitir de forma realística a força opressora do sol na região do semiárido, a fim

de incomodar o seu interlocutor e fazê-lo sentir minimamente o que significa

conviver com o sol o dia inteiro na face. Ele utilizou um recurso expressivo da

linguagem cinematográfica para atingir seu objetivo, conforme pode ser observado

nas figuras abaixo. Já num filme que atendesse à exigência do mercado,

provavelmente teria uma fotografia mais arranjada, menos agressiva, mais fácil de

visualizar.

Vidas Secas (SANTOS, 1963)

Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=vidas+secas.

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Dessa forma, o professor que pretende fazer uso de filmes em sala de aula

não pode perder de vista que uma produção cinematográfica, seja ficção ou

documentário, é sempre um produto sociocultural, resultado de um conjunto de

escolhas, recortes, perspectivas, e que é fruto de um trabalho coletivo, no qual um

leque de profissionais com interesses comerciais, ideológicos e estéticos atuam

decisivamente. Portanto, essas inclinações e propensões pertinentes ao texto fílmico

precisam ser levadas em conta, analisadas e compreendidas pelo educador.

Então, o espírito maior do trabalho com filmes em sala de aula vai além da

decodificação da linguagem, é preciso entender os movimentos dessas escolhas,

problematizar suas prováveis motivações. Nessa perspectiva, como nos sugere

Bakhtin (1998), não podemos ver os filmes, mesmo os de ficção, descolados da

realidade. Embora o cineasta tenha a licença poética para criar, não podemos

desconsiderar o fato de que ele está inserido numa sociedade, numa cultura e num

contexto histórico, dialogando com interesses pessoais, coletivos, políticos e

econômicos.

Portanto, a liberdade de criação artística não implica necessariamente

desconexão com a realidade na qual os produtores estão inseridos. Quaisquer que

sejam as produções, serão sempre frutos de ideologias, valores e visões de mundo,

como é o caso dos enlatados americanos, os quais são produtos de uma indústria

atrelada à forte ideologia hegemônica capitalista. Portanto o professor não deve ficar

preso à intencionalidade do autor, é preciso que o analista aprenda a olhar para

dentro do filme, na dinâmica da narrativa interna, nas suas contradições e valores,

para além daquilo que se fala sobre o filme e para além daquilo que o diretor

tencionava para o filme. Pois o enunciado é dinâmico, histórico, ele não é preso ao

sujeito que o emitiu. Trata-se do:

Diálogo inconcluso, infinito e inacabável, no qual nenhum sentido morre. Não há uma palavra que seja primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado) (...). Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento (BAKHTIN, 2003, p. 413-414).

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A partir do momento em que o enunciado é proferido, passa a ser de

responsabilidade da história, passa a compor o grande diálogo, numa dinâmica

própria e independente dos seus interlocutores.

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CAPÍTULO III

ANÁLISE DOS DADOS

Este capítulo busca responder, mais detalhadamente, as perguntas desta

pesquisa. A mais importante para este trabalho trata da concepção de linguagem

adotada pelo professor de Língua Portuguesa na sua prática com curta-metragem. A

segunda refere-se às dificuldades encontradas pelos docentes ao lidarem com essa

ferramenta. E a última, não menos importante, traz à tona as motivações que levam

o professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula.

3.1 Fundamentos Metodológicos

Para procedermos com nossas análises, tanto dos relatos, quanto dos textos

fílmicos, quando isto se fez necessário ao longo do trabalho, utilizamos o

procedimento teórico-analítico do Círculo de Bakhtin, conhecido por método

sociológico, a partir do qual, Brait (2006) desenvolveu a Análise Dialógica do

Discurso. Assim, calçado nos fundamentos sociológicos, apresentaremos o método

utilizado em nossas análises.

Ao nos depararmos com a tarefa de analisar um enunciado de natureza

verbo-visual, da esfera artística, surge o desafio de decidir qual o melhor método a

ser aplicado, já que as metodologias de análise de texto, disponibilizadas pela

linguística, atendem a critérios específicos de determinada semiose. No caso do

texto fílmico, essa preocupação se majora, pois se nos impõe a necessidade de

estabelecer uma interação discursiva, mediante sons, imagens, cores e palavras, os

quais também se constituem socialmente enquanto signos ideológicos.

E essa dimensão histórico-social, presente em todo enunciado, qual seja sua

natureza semiótica, deve nortear todo o processo de análise. Assim, adotamos, nas

análises dos textos cinematográficos, o Método Sociológico proposto por

Bakhtin/Volochínov (1992, p. 119), porque entendemos ser o procedimento mais

adequado para analisar enunciados na perspectiva de gêneros discursivos.

Esse modelo sugere três passos que o analista deve observar em seu

trabalho de investigação. No primeiro, o pesquisador deve refletir sobre o conteúdo

temático, sempre conectado à situação de produção; em seguida, definir, ou

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reconhecer o gênero quanto a sua estrutura composicional; e, por fim, analisar o

estilo, que no caso do texto fílmico, é representado pela maneira com que a

linguagem cinematográfica e seus códigos são empregados pelo diretor na

estruturação do enunciado. Esse arranjo da linguagem realizado pelo autor é

tomado como pistas pelo analista a fim de alcançar o conteúdo temático do texto.

Brait (2006), ao refletir sobre essa maneira adotada pelos teóricos russos de

estudar os enunciados concretos, apresenta a Análise Dialógica do Discurso (ADD).

Essa teoria, baseada no método sociológico do Círculo de Bakhtin, propõe a

indissolubilidade entre linguagem, história e sujeitos, oferecendo elementos teórico-

metodológicos que possibilitam ao analista uma abordagem sociocultural em suas

análises. Isso porque tal teoria concebe o discurso como pertencente a uma rede

dialógica de relações, da qual os sujeitos da enunciação fazem parte, e na qual são

impingidas suas marcas valorativas (idem). Assim, a ADD vai se ocupar daquilo que

extrapola os limites da superfície textual, ou seja, as relações dialógicas do

enunciado, fronteiras não ultrapassadas por outros métodos de análise discursiva.

Dessa forma, compreendemos que os enunciados verbo-visuais, sobretudo o

gênero curta-metragem, exigem esse percurso teórico-metodológico proposto pelo

Círculo e desdobrado pelos estudiosos do discurso de perspectiva enunciativo-

discursiva. Pois favorece a compreensão, a interpretação e, por conseguinte, a

responsividade aos enunciados midiáticos, os quais permeiam as práticas sociais,

das quais os leitores participam por meio da linguagem. Assim, em que pese este

trabalho não ter como objetivo principal analisar o curta-metragem, e sim o uso

pedagógico que se faz dele, procuramos aplicar os conceitos teórico-metodológicos

da ADD na análise do gênero, quando se fez necessário.

Tal método, burilado por Brait, teve sua arquitetônica construída pelo Círculo

de Bakhtin (1992; 2003) tendo como horizonte inspirador os gêneros do discurso.

Dessa forma, adotando como base a concepção dialógica presente na teoria de

gênero discursivo, entendemos ser este o método mais adequado para fazer análise

discursiva. No caso do nosso objeto de estudo, é perfeitamente aplicável tal método,

porque, como visto no primeiro capítulo, os curtas-metragens são enunciados típicos

que apresentam certos traços de regularidade em sua forma composicional, como a

duração, estrutura narrativa, bem como conteúdos temáticos voltados para a crítica

social. Mas essa regularidade, segundo Rojo (2005), é fruto não apenas de formas

fixas da linguagem, e sim, principalmente, da periodicidade e similaridades nas

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relações sociais dentro de uma esfera comunicacional específica. Dito de outra

forma, tais características, relativamente estáveis, foram sendo adquiridas,

historicamente, a partir das atividades do ser humano em determinado contexto

social de interação ininterrupta.

Tal postura dialógica frente ao nosso objeto de pesquisa inspira, portanto,

uma metodologia sociológica para analisar os textos verbo-visuais. Assim sendo, em

consonância aos preceitos de Bakhtin/Volochinov (1992) e Brait (2006), buscamos

investigar e analisar o gênero curta-metragem a partir de sua dimensão histórica,

entendendo que se trata de tipos históricos de enunciados, portanto de natureza

social, discursiva e dialógica. Dessa forma, ao proceder nossas análises, levamos

em conta a esfera social pela qual os curtas circulam, suas condições de produção,

recepção e interação; a posição discursiva assumida pelo autor no momento da

enunciação, bem como sua valoração com relação ao objeto discursivo e seus

interlocutores.

E, completando o método sociológico, empregado na análise dialógica do

discurso, além desses aspectos relevantes na construção social do gênero, levamos

também em consideração o conteúdo temático, os estilos composicionais, bem

como sua arquitetônica ético-estética, dentre outros fatores enunciativo-discursivos

característicos do gênero curta-metragem, como sua multimodalidade discursiva e

os mecanismos utilizados na construção dos sentidos, próprios da linguagem

audiovisual.

3.2 Procedimentos metodológicos

O primeiro passo para o desenvolvimento desta pesquisa foi a delimitação do

corpus, a fim de selecionarmos os relatos para análise. O recorte inicial se deu com

a escolha do primeiro DVD, de uma sequência de três, da coleção Curta na Escola.

Nesse compêndio há oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações

metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa, dados utilizados

como critério de triagem. O próximo parâmetro de escolha, e um dos mais

importantes, refere-se à origem dos relatos. Inicialmente, pretendíamos analisar,

para cada filme, um relato elaborado por professores que atuassem em escolas

públicas do Estado de Mato Grosso, tanto da zona urbana quanto da zona rural.

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No entanto, constatamos que há apenas três relatos que atendem a esse

critério, embora 12 escolas de Mato Grosso tivessem recebido o material

gratuitamente, dentre elas, a Escola Liceu Cuiabano Maria de Arruda Müller, situada

na capital, e a Escola Licínio Monteiro da Silva, em Várzea Grande. Tínhamos a

intenção de entrevistar os professores que tivessem feito uso do recurso. Foi com

essa finalidade que procuramos as coordenações pedagógicas das duas escolas,

mas não obtivemos sucesso, pois os coordenadores e professores declararam

desconhecer tal material. Diante dessa impossibilidade, adotamos um novo critério,

baseado, primeiramente, na quantidade de relatos produzidos para cada curta-

metragem do DVD escolhido da coleção. Decidimos, então, selecionar os cinco

filmes com o maior número de relatos para compor nosso corpus.

A seleção do relato analisado de cada produção seguiu dois critérios. Primeiro

ele precisava ser oriundo da região representada pelo curta, depois, dentre os que

atenderam a esse requisito, o escolhido foi definido pelo número de acessos que ele

obteve pelos professores internautas que, de alguma maneira, foram beneficiados

pela experiência relatada. Esse último critério foi baseado no seguinte pressuposto:

diante de duas sequências didáticas, nas quais podemos buscar referências

metodológicas, sendo que a primeira apresenta dez acessos, ao passo que a

segunda apresenta mil, naturalmente a segunda se torna um objeto de análise mais

estimulante, passível de se tornar uma investigação mais profícua do que se

adotarmos como matéria de pesquisa o primeiro relato.

Além disso, quanto maior o número de acessos, maior a representatividade

daquela amostra, pois utilizar o material publicado no site significa, em última

instância, uma adesão à concepção de linguagem adotada pelo autor do relato.

Finalmente, adotaremos também como critério de seleção a origem dos relatos.

Daremos preferências aos àqueles provenientes de escola pública e nível de ensino,

prioritariamente, médio. Estabelecemos então o corpus de nossa pesquisa. Os

curtas-metragens selecionados estão relacionados na tabela abaixo, que traz na

segunda coluna o título da obra, bem como seu diretor e o ano; na terceira coluna

está a quantidade de relatos de cada filme; e em seguida vem a região que o filme

vai representar.

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Nº OBRA / DIR / ANO Nº REL

RE- GIÃO

1 O Lobisomem e o Coronel / Elvis K. Figueiredo / 2002

27

Nordeste

2 Velha História / Cláudia Jouvin / 2004 33 Centro-oeste

3 Ilha das Flores / Jorge Furtado / 1989 197

Sul

4 Negócio Fechado / Rodrigo Costa / 2001 14

Norte

5 Xadrez das Cores / Marco Schiavon / 2004 147 Sudeste

Quadro 2: Relação dos Curtas utilizados nos relatos por região.

E, finalmente, o corpus da pesquisa, os relatos selecionados, bem como os

filmes a eles relacionados, estão listados na tabela abaixo, que traz as seguintes

informações: na primeira coluna estão os títulos dos relatos fornecidos pelos

professores/autores, seguido dos seus nomes completos e, na sequência, a escola e

a região que representam, bem como a localidade onde lecionam; na penúltima

coluna encontram-se os curtas-metragens utilizados e, por último, o número de

acessos de cada relato, bem como seu valor percentual, considerando que o

número total de acessos, incluindo os cinco relatos selecionados para análise, é de

1.687. Importante frisar que todas as escolas são da rede pública e, com exceção da

região centro-oeste, que é municipal e da zona rural, todas as outras são estaduais

e estão localizadas na zona urbana.

Título do relato

Professor autor

Escola / região / origem

Curta-metragem utilizado

Número de Acessos

Confronto de poderes

Cleide Brasil Rodrigues

Escola Senador Petrônio Portela / Nordeste / Recife - PE

O Lobisomem e o Coronel

372

O homem e o peixinho

Inez Rosa Herrmann

EM Boa Esperança / C. Oeste / S. J. Q. Marcos - MT

Velha História 187

Uma verdade desconhecida

Antônio Evaldo Jesus Velho

E E E M Melvin Jones / Sul / Caxias do Sul - RS /

Ilha das Flores 603

Minha Língua é minha Pátria

Kelba Assumpção Lima

EEEFM Palmira Gabriel / Norte /Belém - PA /

Negócio Fechado

58

Quem vale mais

Marileia Soares dos Santos

C.E. Almirante Tamandaré / Sudeste / Niterói - RJ /

Xadrez das Cores

467

Quadro 3: Dados dos relatos e de seus autores

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Todos os relatos21 encontram-se em um formulário específico, que traz o título

do relato fornecido pelo professor, o filme utilizado, a data da experiência, o nome do

professor, a localidade e a rede da qual faz parte a sua escola, o nível de ensino, a

faixa-etária e o número de alunos da turma, assim como os temas transversais

abordados na aula. Em seguida, no mesmo formulário, o professor apresenta os

objetivos do uso do curta-metragem escolhido e, logo abaixo, vem a seção na qual o

docente relata uma espécie de sequência didática utilizada por ele antes, durante e

após a exibição do filme, isto é, os procedimentos e estratégias pedagógicas

utilizados para atingir os objetivos relacionados na seção anterior. É aí que ele relata

com detalhes as atividades desenvolvidas em cada etapa da exibição fílmica, como

ele as sistematizou, de modo a ganhar a adesão dos alunos. Por fim, na última

seção, o professor relata o resultado de sua experiência, falando sobre os aspectos

considerados fortes e os que poderiam melhorar, bem como a reação dos alunos.

PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/

3.3 Análise dos relatos

Superada a fase de catalogação dos dados, procedemos à análise

propriamente. Utilizamos o seguinte procedimento: primeiro trouxemos algumas

21

Disponibilizaremos os cinco relatos integralmente na seção de anexos.

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informações que julgamos relevantes sobre o curta-metragem, tais como condições

de produção, o enredo, prêmios recebidos, temáticas abordadas, o número de

visualizações no site, etc.; em seguida, apresentamos um pequeno resumo analítico

dos objetivos relatados pelo professor/autor, que, de certo modo, já nos responde,

em parte, uma de nossas questões de pesquisa, qual seja as motivações mais

recorrentes que levam o professor de Língua Portuguesa a se valer de recursos

audiovisuais em sala. No entanto, essa questão é respondida de forma mais

abrangente no final da análise, quando das considerações finais.

Em seguida, partimos para análise da segunda seção do relato, na qual se

encontram as abordagens, as estratégias, os argumentos e as atividades aplicadas

pelo professor ao fazer uso do curta-metragem. Nesta fase, utilizando-se dos

conceitos bakhtinianos inventariados no capítulo II desta dissertação, tais como

dialogismo, vozes e interdiscursividade, buscamos identificar a concepção de

linguagem e de cinema presente nos relatos, bem como mapear as estratégias

utilizadas pelos professores/autores, a fim de revelar posturas mais dialógicas ou

menos dialógicas; mais enunciativas, ou menos enunciativas; mais polifônicas, ou

menos polifônicas, refletidas nas atividades propostas de leitura e escrita. E, no final,

após a análise de todos os cinco relatos, procuramos fornecer respostas integradas

às nossas perguntas de pesquisa.

3.4 O Lobisomem e o Coronel

Esse curta, dirigido e roteirizado por Ítalo Cajueiro (2002), é o resultado da

adaptação de uma história, com autoria desconhecida, contada originalmente em

forma de Literatura de Cordel, tradicional em algumas regiões do Nordeste. O filme

começa com um violeiro cego que, em forma de repente, relata a história de um

poderoso, temido e orgulhoso coronel chamado Benedito, que possuía uma rica

fazenda naquela região. Entre os seus funcionários, havia um peão muito pobre

conhecido por João, apaixonado por Maria, filha do patrão. Em noite de lua cheia, o

pobre homem, acostumado a passar fome, transformava-se em lobisomem. E,

decidido a ir à desforra, devorou Belezura, a vaca preferida do coronel. Sem

encontrar culpado, o fazendeiro, enfezado, resolveu castigar João, dando-lhe uma

surra com chicote. Quatro luas depois, os homens de Benedito, armados com facas

e espingardas esperavam o lobo temido. O grito de Maria anunciava sua presença

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na casa grande da fazenda, que de pronto fora cercada pelos capangas do

fazendeiro, os quais, um a um, iam sendo dissipados. Mas João Vaqueiro havia

poupado sua amada Maria, com quem se casou e teve um filho, o qual nasceu cego

e com rabo de cachorro, denunciando sua verdadeira identidade. O neto de

Benedito, na verdade, o narrador dessa história, vive pela cidade, dedilhando seu

violão, cantando sempre o mesmo caso.

Gostaríamos de enfatizar, antes de iniciarmos a análise do relato selecionado,

a força expressiva do cordel. Talvez o leitor tenha percebido que, de forma dialógica

e intuitiva, eivados pela musicalidade presente no curta, utilizamos no parágrafo

anterior períodos curtos e regulares, que lembram um pouco os versos metrificados,

especialmente as sextilhas, do Cordel; além de algumas rimas, ora consoantes, ora

toantes, embora, no caso da Literatura de Cordel, seja tradição o uso de rimas

consoantes. Tais escolhas acabaram por proporcionar ao interlocutor uma certa

cadência na leitura.

Sem a presunção de impor qualquer caráter artístico a este trabalho,

queremos, apenas, ressaltar o potencial dialógico e alteritário do gênero; aspectos,

inclusive, explorados pela professora/autora do relato a ser analisado. Bakhtin

(2010) nos lembra, por meio de sua reflexão em torno da arquitetônica do enunciado

artístico, que tão importante quanto o que se diz é como se diz, pois ambos os

aspectos serão igualmente determinantes na construção do sentido. Consoante a

isso, as Matrizes de Referência para o ENEM (BRASIL, 2009), com relação às

linguagens, códigos e suas tecnologias, no que se refere à competência de área

número cinco, habilidades 16 e 17, estabelecidas pelo Ministério da Educação,

buscam identificar no aluno sua competência em “relacionar informações sobre

concepções artísticas e procedimentos de construção do texto artístico, bem como a

presença de valores sociais e humanos no patrimônio artístico nacional”.

Essa preocupação pode ser contemplada durante a análise do relato em

questão, cuja autora é a professora Cleide Brasil Rodrigues. Ela leciona Língua

Portuguesa na Escola Estadual Senador Petrônio Portela, na cidade de Recife-PE. A

turma com a qual ela empregou o curta O Lobisomem e o Coronel, em 2010, era

constituída por 35 alunos da Educação de Jovens e Adultos, com faixa etária acima

dos 18 anos. O seu relato intitula-se Confronto de Poderes, a respeito do qual

procederemos à análise a seguir.

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Logo de início, ainda no título, a professora/autora nos fornece indícios de sua

intenção comunicativa em revelar possíveis resquícios de um conflito entre o

sertanejo e o coronelismo; realidade comum em algumas regiões do nordeste,

principalmente durante o período conhecido como República Velha (1889-1930),

quando as relações sociais eram dominadas pelos coronéis, sujeitos sociais

detentores do poder político e econômico. Ela tenciona, por meio da alegoria22 O

Coronel e o Lobisomem, denunciar que ainda persiste, em algumas regiões do país,

esse modelo patriarcal e autoritário nas relações sociais. Esse paradigma relacional

de mando e desmando parece ter se cristalizado em parte de nossa cultura,

sobretudo pelo interior do Brasil, como pode ser constatado nos objetivos

apresentados pela docente:

Conhecer a realidade do povo nordestino e o poder da oligarquia (latifundiário). Retratar a forma de tratamento entre rico x pobre, a vivência no mundo rural, fazer denúncias, mostrar os costumes dentro de uma alegria e singeleza de um povo com uma cultura rica e variada, fazendo o link com o contexto em que vivem: uma comunidade carente e com múltiplos problemas sobre ocupação e poder de seu próprio espaço enquanto cidadão, sem porém deixar de lado as suas raízes culturais.

Tais objetivos levaram a professora a elaborar uma proposta de leitura do

texto fílmico que levasse seus alunos a recuperar situações do seu cotidiano, como

questões de ocupação e poder de seu próprio espaço enquanto cidadãos, para

depois (re)engendrá-las esteticamente. Para tanto, a autora, antes mesmo da

exibição do filme, promovem um debate sobre os conflitos presentes na relação

patrão e empregado, expondo o assunto por meio de alguns gêneros escritos,

colocando em evidência a xilografia presente nos livretos de literatura de cordel e as

marcas características de cada gênero, conforme sequência didática relatada por

ela:

PC- Preparação do espaço pelos alunos para veiculação do filme. Breve relato sobre o enredo do filme, com questionamentos sobre confronto de poderes - padrão x empregado. Exposição sobre diversos tipos de impressão, ressaltando a xilogravura nos livretos de literatura de cordel.

22

Adotamos aqui o conceito de alegoria cunhado por Moisés Massaud (1974, p. 15), o qual a toma como um discurso que carrega uma segunda conotação – um processo mental que dá concretude em nossa imaginação a conceitos abstratos.

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Essa estratégia de problematizar o assunto do filme antes de exibi-lo, por

meio de leituras de outros gêneros - da esfera jornalística, por exemplo - leva o

aluno a situar-se em relação ao contexto social da mensagem enunciada no texto

fílmico. Além disso, tais leituras constituem importante fonte de dados para subsidiar

reflexões acerca dos sentidos construídos sócio-historicamente em torno do objeto

em questão.

Tal tática adotada pela professora atende ao preceito assinalado pelos PCN, o

qual ressalta que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela

comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Isso significa que o

aluno precisa ter vontade, e esse processo deve ser estimulado ou de forma natural,

assim como ocorre em outras esferas em que ele atua. Dizendo de outro modo, o

aluno não aprende a escrever para se interessar pelos assuntos da comunidade,

mas precisa, primordialmente, se interessar pelas questões que os cercam para

apropriar-se de mecanismos de linguagem adequados, sejam eles verbais ou não

verbais, para se expressar acerca dos temas nos quais está inserido.

Ao lançar mão desse expediente metodológico, o qual explora as condições

históricas de produção do enunciado, a professora Rodrigues amplia em seus

alunos a capacidade de interpretação, pois estabelece uma rede dialógica discursiva

através da qual eles amplificam suas percepções de mundo, tornando-se capazes

de compreender criticamente sua própria história de vida, marcada pelos conflitos

com os senhores de terra e patrões com resquícios de práticas coronelistas. Como

pode ser conferido neste trecho do relato da professora:

Exibição do filme, orientando-os para observarem os diversos momentos da história. Realizar pesquisa no ambiente escolar e comunidade local sobre a literatura de cordel. Coletar imagens que reporte ao enredo do filme para elaboração de painel. Exposição do painel no ambiente escolar com reescritura do texto em literatura de cordel.

Abre-se, então, a partir desse engendramento discursivo, a oportunidade para

discutir questões histórico-culturais e socioeconômicas, como o momento pelo qual

passa o país, a condição do trabalhador rural, as relações de trabalho no campo,

etc. Com efeito, é o interesse pela vida que produzirá motivação para escrever; o

fato de saber escrever não motiva o cidadão a se interessar pela vida. Nenhum autor

produz uma reflexão acerca da vida porque domina o código da escrita, mas busca

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conhecimento linguístico para elaborar reflexões sobre a vida, pois a escrita constitui

um meio para tal. Inverter essa ordem natural conduz o aluno ao fracasso escolar.

Essa aproximação entre o texto e a vida do aluno o leva à não-indiferença

para com o outro e para consigo (PONZIO, 2008), pois o impele a agir do seu lugar,

que é único, mesmo que o faça por meio do discurso interior (BAKHTIN, 2010). Isso

acontece porque o aluno é levado a situar-se no mundo, uma vez que o processo

cognitivo é interpelado pelos aspectos volitivo-afetivo, levando em conta suas

particularidades e suas memórias. Esse viés enunciativo-discursivo presente no

curta, que envolve emotivamente o espectador na narrativa, o torna não indiferente

diante de uma história que ele percebe não estar apenas nas telas. E a não-

indiferença perante as questões abordadas no texto fílmico, também presentes na

vida do leitor, em sua comunidade, ocorrerá na mesma proporção em que o

interesse por elas for estimulado pelo professor.

Outro aspecto explorado pela autora do relato tem a ver com a

multimodalidade da linguagem presente no enunciado o Lobisomem e o Coronel.

Segundo Kress e van Leeuwen (2006), o texto que apresenta mais de uma semiose

(verbal, visual, sonoro etc.) exige de seu leitor a necessidade de articular todos os

modos semióticos nele apresentados. É impossível interpretá-lo se focalizar

exclusivamente na linguagem verbal, posto que esta é apenas um dos vários modos

representativos utilizados em textos fílmicos. Toda imagem é passível de

interpretação e, consequentemente, de implicações discursivas. Essa perspectiva

analítica deve ser bem direcionada pelo professor, o qual possui a responsabilidade

de conduzir o raciocínio e as conclusões dos alunos acerca da leitura do texto

fílmico. Atenta a isso, a professora/autora encaminhou as atividades chamando a

atenção dos alunos para o modo como as imagens são apresentadas:

PC- ... ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na realidade de expressão. Exibição do filme, orientando-os para observarem os diversos ambientes e momentos da história e como os personagens são apresentados como uma folha de papel. Coletar imagens que reporte ao enredo do filme para elaboração de painel. Observar As sequências das imagens feito folhas de papel, as expressões em forma humana real com a mistura de desenhos.

Quando ela ressalta a forma como as personagens são mostradas em forma

de papel, evidencia o diálogo que o texto em questão estabelece com a forma

discursiva do Cordel, buscando uma interação entre o leitor desse tipo de literatura

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com a sétima arte. Ao enfatizar a intertextualidade entre os dois gêneros, a

professora sugere aos alunos uma incursão mais profunda no texto, propondo uma

participação mais direta, levando-os à confrontação com outros textos para, a partir

daí, estabelecer uma relação entre as ideias apresentadas, fazendo-os perceber as

singularidades das estruturas e finalidades enunciativas de cada gênero. Conforme

destaque abaixo:

(...) Exposição sobre diversos tipos de impressão. E como os personagens são apresentados como uma folha de papel. ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na realidade de expressão.

Bakhtin (1992) alerta para o fato de que a escolha dos signos

(independentemente do sistema semiótico do qual emergem) é sempre ideológica,

pois trazem consigo marcas políticas e sociais do enunciador, fato que situa a

linguagem entre os mecanismos de poder presentes nas interações entre grupos

sociais. Consoante a isso, a professora Rodrigues chama a atenção dos seus alunos

para mostrar como as imagens são manipuladas discursivamente no filme. Ela

conduz o olhar de seus alunos para a antítese presente no filme, cuja função é

ressaltar a inferioridade de João Vaqueiro ante a opulência ostentada por Benedito.

Numa tomada única, o diretor mostra a riqueza e o poder do patrão por meio da

luxuosa mansão, um ambiente agradável e animais de linhagem nobre e, na

sequência, numa casa em ruínas e inóspita aparecem o empregado e uma cadela

com sinas de inanição, conforme figuras abaixo:

O Lobisomem e o Coronel (FIGUEIREDO, 2002) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_lobisomem_e_o_coronel.

O efeito produzido pelo contraste entre as duas imagens, além de

transparecer a supremacia do patrão, resgata outras imagens no leitor, como a

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precariedade em que vivem alguns trabalhadores, residindo em favelas sem a

menor infraestrutura, convivendo, lado-a-lado, com a suntuosidade de prédios

luxuosos habitados pelos patrões. A professora Rodrigues leva os alunos a perceber

como esses extremos entre ricos e pobres são explorados no texto fílmico, o qual,

por meio de conexões culturais e ideológicas, aciona suas memórias discursivas,

resgatando, de forma interdiscursiva, acontecimentos extrínsecos ao texto, os quais

concorrem para a produção de sentido. Diante disso, resta-nos ressaltar que a

linguagem cinematográfica deve ser devidamente explorada, para que as

possibilidades interpretativas possam aparecer e o potencial do texto fílmico

enquanto recurso pedagógico tenha sentido.

3.5 Velha História

O curta-metragem Velha História, inspirado no conto homônimo de Mário

Quintana, foi produzido em 2004, por Claudia Jouvin, utilizando-se de uma técnica

muito empregada pelos cineastas conhecida como Stop Motion23. A narrativa

mostra, de forma lúdica, a relação de amizade entre um pescador e um peixinho, os

quais andavam sempre juntos e felizes, nos mais diversos lugares. Certo dia, o

homem, convencido da sua atitude inadequada, se sentindo egoísta por privar o

animal de seu convívio familiar, resolve devolvê-lo ao rio. No entanto, ao se

reintegrar ao seu habitat natural, o peixe morre afogado no redemoinho formado na

ocasião em que o pescador o solta na água. O filme ressalta, por meio das imagens,

as características atitudinais humanas ou de um animal de estimação, atribuídas ao

peixe, conforme figuras abaixo:

Velha História (JOUVIN, 2004)

Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=velha_historia

23

Stop Motion (que poderia ser traduzido como “movimento parado”) é uma técnica que utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes de um mesmo objeto inanimado para simular o seu movimento. Essas fotografias são chamadas de quadros e normalmente são tiradas de um mesmo ponto, com o objeto sofrendo uma leve mudança de lugar, é isso que dá a ideia de movimento. Fonte: http://www.tecmundo.com.br/player-de-video/2247-o-que-e-stop-motion-.htm#ixzz2ybThqRyL. Acesso em: 11/02/2014.

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O relato selecionado para análise, intitulado A linguagem (verbal e não-

verbal): instrumento de cidadania, foi elaborado por Nilia Santana Costa Brito,

professora de Língua Portuguesa na Escola Estadual Tancredo de Almeida Neves,

situada no município de São Félix do Araguaia-MT. Ela fez uso pedagógico do curta-

metragem Velha História em uma turma do ensino médio, com faixa etária entre 14 e

18 anos, em outubro de 2010. A princípio, tendo como base a escolha do título do

relato, bem como os objetivos apresentados pela autora, podemos afirmar que a

mesma adota uma concepção dialógica de linguagem, uma vez que conduz seus

alunos num processo de interpretação que leva em conta a interação entre

linguagens, textos, gêneros, suportes e os sujeitos da comunicação. Atitude

necessária para que se estabeleça o sentido do texto, conforme descrito em seus

objetivos:

Possibilitar que os alunos adquiram conhecimentos e habilidades, para que desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação através do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que estabelece com o mundo. Analisar, comparar e distinguir diferentes linguagens; Utilizar-se das tecnologias da comunicação e informação.

Na sequência didática, Nilia Santana apresenta um roteiro coerente de leitura

e reescrita, além de atividades que contribuem para atingir seus objetivos. A

proposta de assistir, inicialmente, ao vídeo sem áudio fez com que os alunos

percebessem que o sentido não está apenas nas palavras, evidenciando, assim, a

importância do extraverbal para a compreensão do todo. Ao solicitar que cada um

produzisse uma narrativa a partir dessa primeira leitura e expusesse o seu texto na

classe, ela ressalta o contexto situacional como sendo um dos elementos

constitutivos do texto, bem como aponta para a multiplicidade de leituras possíveis a

partir do mesmo enunciado, levando seus alunos a refletir acerca dos motivos por

que diferentes situações produzem diferentes sentidos de uma mesma expressão.

Enfim, ela demonstra, de forma contundente, como a situação de produção integra-

se ao enunciado como elemento indispensável à sua constituição semântica

(BAKHTIN, 2003), conforme relato da professora:

Este trabalho é uma das ações do projeto da área de Linguagem que busca apresentar ao educando a importância das múltiplas linguagens (verbal e não verbal) 1º Passo: Exibimos o curta Velha História sem o áudio para os alunos assistirem somente observando

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a sequência de imagens Após assistirem o vídeo, os alunos produziram um texto escrito de acordo com a leitura de imagem realizada por eles durante o filme 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com áudio e para análise entre a leitura feita por eles e o conto.

Outra estratégia utilizada pela professora a fim de promover a interação entre

os leitores e o texto foi o debate oral acerca dos temas abordados no filme. Tal

iniciativa evidencia sua intenção em proporcionar aos alunos experiências que vão

além dos roteiros restringentes fornecidos pelos livros didáticos. E, com vistas à

ampliação da habilidade comunicativa dos alunos, bem como de sua bagagem

cultural e, consequentemente, da sua capacidade de estabelecer conexões com o

mundo que os cerca, a professora promovem a leitura de outros textos com a

mesma temática, produzidos em gêneros diversos, recepcionados por meio de

diferentes suportes e linguagens, de acordo com seu relato:

4° Passo Utilizamos um outro texto: A águia que (quase) virou galinha de Rubem Alves apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de intertextualidade com o conto de Mário Quintana. Utilizamos como recursos de interpretação, a leitura, debate e análise oral dos textos.

Essa forma de arranjar as atividades de leitura utilizada por Nilia, levando em

conta as relações interdiscursivas inerentes aos textos, favorece o trabalho de

interpretação dos alunos na produção de sentidos possíveis aos enunciados. As

marcas deixadas pelo autor tornam-se cada vez mais perceptíveis e recuperáveis na

medida em que se acentuam as interações entre os discursos postos em cena. E

nesse percurso, a professora não ignorou a existência de outros gêneros e canais

discursivos, proporcionando aos seus alunos variadas possibilidades de letramento,

habilitando-os a recepcionar enunciados artísticos nos mais diversos suportes

disponíveis nos dias de hoje (cinema, internet, mídias digitais) e que, até há pouco

tempo, só podiam ser experienciados na esfera literária.

E uma das formas de promover esse letramento é considerar as várias

maneiras de recepcionar um enunciado, estabelecendo relação entre eles, seja na

sua forma essencialmente escrita, em quadrinhos, cinematográfica ou via internet. E

ao estabelecer conexões entre as mais distintas linguagens, gêneros e suportes,

com suas peculiaridades e estruturas próprias, diferentes habilidades no processo

de recepção/leitura serão desenvolvidas e ampliadas pelo leitor. Pois, ao se

relacionar com tal multiplicidade textual, suas capacidades perceptivas serão

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ativadas e aguçadas. Isso é fundamental num mundo em que cada vez mais se faz

uso das novas tecnologias, baseadas em imagens, sons, cores, formas e

movimentos, dos quais eclodem conceitos, ideias, pontos de vistas e ideologias. E

essa preocupação pode ser percebida em Nilia, conforme aponta em seu relato:

(...) percebemos a interatividade dos alunos, bem como o interesse demonstrado. Os alunos mostraram-se bastantes criativos (...) Conforme relatos de alguns, após assistirem o video, puderam perceber que essa prática possibilitou que compreendessem as múltiplas leituras de mundo que é possível através de uma mesma situação.

De fato, a autora demonstra esse cuidado em suas atividades. De forma

comparativa, ela vai problematizando e estabelecendo as relações intertextuais,

levando o aluno a refletir acerca da função social do texto literário, bem como seu

correspondente cinematográfico. Tais textos passam a adquirir um status de fonte

de informação social, proporcionando uma reflexão dos seus valores culturais e

sociais para além dos aspectos puramente linguísticos. Tal abordagem de ensino de

linguagem promove a compreensão responsiva no aluno, tornando-o apto a assumir

posições valorativas, portanto críticas, conforme resultado relatado pela professora:

PN - O uso da intertextualidade realizado entre o filme e o texto de Rubem Alves (apresentado em power point) intitulado A águia que (quase) virou galinha, proporcionou a abertura de outras leituras, a visão dos alunos para compreenderem os diálogos existentes entres textos e autores, bem como serviu de subsídio para que os alunos produzissem sua própria história seguindo a linha de pensamento dos autores, em relação a como o meio em que se vive influencia em nossas práticas cotidianas.

Dessa forma, a autora cumpre as etapas de leitura propostas na sua

sequência didática, na qual, primeiramente delineia os materiais com os quais pode

contar, explora cada um deles, perfazendo seu conteúdo temático, analisando e

discutindo com os alunos pormenores que tenham relação com sua realidade. Ou

seja, a relatora traça um caminho metodológico de modo a favorecer seus

estudantes a produzir inferências, a tirar suas próprias conclusões, a assumir um

ponto de vista, enfim, a se tornarem donos das suas palavras. A professora torna

isso viável porque seus alunos são conduzidos, por meio de atividades efetivas de

leitura de textos de diferentes gêneros, os quais se utilizam de diversas linguagens e

que circulam em variadas esferas sociais, e não textos artificiais produzidos

especialmente para aulas de língua materna.

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Nesse sentido, a autora do relato articula sua aula de forma arquitetônica, do

ponto de vista bakhtiniano, porque os textos são trabalhados de forma dialógica,

mantendo a conexão com a realidade, formando uma cadeia discursiva de modo a

estabelecer as relações de sentidos tanto no plano ético quanto no estético,

conforme relato:

PN - ... Objetivo: Possibilitar que os alunos adquiram sólidos conhecimentos e habilidades, para que desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação e técnicas de trabalho através do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que estabelece com o mundo. 1º Passo: Exibimos o curta Velha Historia sem o áudio ... 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com áudio ,,, tiveram contato com o texto escrito (obra Velha História) Neste passo, oportunizamos o debate e reflexões sobre as importâncias das diversas possibilidades de leitura do aluno. 3º Passo ... produzirem uma análise em que fazem uma relação entre os dois textos ... instigando a escrita de análise comparativa.

Para tanto, levar em conta as condições de produção e recepção dos sujeitos

envolvidos no trabalho de construir sentidos é fundamental para que o texto fílmico

não se torne apenas ilustração para o texto escrito, ou tema para conteúdos

transversais. Consoante com isso, a professora transcende os textos oficiais do livro

didático, bem como a linguagem valorizada pela escola, favorecendo a

compreensão dos textos verbo-audiovisuais, tão comuns nas práticas sociais de

nossos alunos.

PN - 4° Passo Utilizamos outro texto: A águia que (quase) virou galinha de Rubem Alves apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de intertextualidade com o conto de Mário Quintana.

Na última etapa, a professora, fiel a seus objetivos, solicita uma produção

escrita, na qual os alunos utilizaram uma ferramenta que possibilita a criação de

histórias em quadrinhos mesmo por pessoas que não são experientes no uso de

computadores. Trata-se do HagáQuê, software com recursos bastantes e suficientes

para não limitar a imaginação do usuário.

Tal iniciativa proporcionou aos alunos momentos de prazer e descobertas, ao

mesmo tempo em que despertava neles o gosto pela leitura. Apesar dessa prática

social ser muito comum entre os jovens pertencentes às faixas etárias do ensino

médio e fundamental, os quadrinhos ainda não são incluídos como conteúdo

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programático nas grades curriculares das escolas brasileiras, em que pese seu

potencial de abordar o ensino de linguagem de forma lúdica e a grande aceitação

por porte dos jovens (BANDEIRA, 2009).

PN - 5º Passo solicitamos uma produção escrita com um olhar intertextual para os textos trabalhados e o curta Velha História e que o mesmo seja desenvolvido utilizando-se do software Hagáquê, um editor de histórias em quadrinhos com fins pedagógicos.

Com isso, a professora completa o ciclo que, dentro da perspectiva

arquitetônica de Bakhtin, é imprescindível, pois é quando o interlocutor participa

efetivamente da produção sociocultural das práticas letradas, ocasião em que

oferece uma resposta ativa aos enunciados dos autores trabalhados. É quando o

aluno passa de locutário a locutor e entra de vez na cadeia da comunicação infinita,

deixando sua voz nos fios discursivos que compõem o grande diálogo, que é

inconcluso e infinito, dentro do qual nenhum sentido morre, pois que reside na

história, na grande temporalidade (BAKHTIN, 2003), como finaliza a

professora/autora.

... Essa versão final foi apresentada à comunidade escolar em evento cultural na escola através de histórias em quadrinhos montadas pelos alunos com uso do software Hagáquê, que fora confeccionado um livro por turma. O resultado será postado no blogger oficial da escola (tancredonevescola.blogspot.com).

3.6 Ilha das Flores

Filme de 13 minutos, produzido por Jorge Furtado em 1989, Ilha das Flores

começa exibindo o enunciado “Deus não existe”, o que acabou gerando uma

polêmica, responsável, muitas vezes, pelo distanciamento do conteúdo crítico

encaminhado pelo diretor, reduzindo assim o seu valor questionador. O

documentário inicia com a imagem do Sr. Suzuki, um agricultor Japonês que cultiva

tomates no Rio Grande do Sul para “serem trocados por dinheiro” em um

supermercado. O narrador, numa espécie de cadeia terminológica, vai apresentando

definições científicas aos objetos à medida que eles vão surgindo no enredo, num

contínuo discursivo alucinante. Anete, dona de casa, compra tomates colhidos pelo

Japonês a fim de preparar a refeição para sua família. Ao preparar o molho de

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tomate para comer com carne de porco, percebe que um dos tomates não está

adequado para o uso, segundo seu julgamento, e joga-o no lixo.

Esse tomate vai parar numa localidade chamada Ilhas das Flores, lugar onde

é depositado o lixo de Porto Alegre e onde se criam porcos. De alguma maneira, os

donos dos porcos têm acesso ao lixo orgânico trazido pelo caminhão antes do

restante da população. Esse lixo, incluindo o tomate rejeitado pela dona Anete, é

utilizado como alimento dos animais. Nessa ilha, segundo o documentário, há muitas

pessoas que vivem na extrema pobreza e dependem do lixo que foi considerado

inadequado aos porcos para se alimentar.

Nesse ponto, o narrador lembra ao telespectador que o ser humano

diferencia-se do porco por ter um telencéfalo altamente desenvolvido e por possuir

um polegar e que, assim como a galinha, o ser humano é uma criatura bípede, mas

que se diferencia daquela por vários aspectos intelectuais e físicos. Com o objetivo

de causar um impacto reflexivo no espectador, o diretor do filme insinua, por meio da

montagem/edição, uma relação comparativa entre aquelas pessoas, a galinha e os

porcos, que buscam seus alimentos entre os lixos, sugerindo a ideia de que aqueles

seres humanos encontram-se numa posição abaixo dos porcos, os quais têm

prioridade na escolha dos alimentos, em detrimento dos seres humanos, conforme

figuras abaixo.

Ilha das Flores (FURTADO, 1989) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=ilha_das_flores

Em que pese este filme estar catalogado como gênero documentário no site

Portacurtas, sua classificação é um tanto polêmica, sendo que, até o dia de hoje,

não se há um consenso com relação à sua categorização. No site da Casa de

Cinema de Porto Alegre24, cooperativa de cineastas e documentaristas, responsável

pela produção da película, o filme consta como ficção, embora a produtora tenha

sido contratada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS para

24

http://www.casacinepoa.com.br/

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produzir um documentário sobre a temática do lixo no bairro Arquipélagos25, em

Porto Alegre. No início do filme, há uma legenda anunciando não se tratar de um

filme de ficção; por outro lado, em momento algum se intitula como documentário.

Nos créditos finais, há pistas enunciativas que indicam se tratar de uma obra

ficcional, quando apresenta legendas com os dizeres “dona Anete na verdade é Ciça

Reckziegel, sua cliente na verdade é Irene Schmidt, a maior parte das locações foi

rodada na Ilha dos Marinheiros”.

Ao revelar o uso de locações, o diretor está deixando clara a existência de

situações encenadas, portanto ficção. No entanto, após apresentar esses dizeres,

ele encerra uma legenda, em letras garrafais: o “RESTO É TUDO VERDADE”. Mas

verdade não é o mesmo que real. A gravação foi feita, as pessoas e os porcos

estavam lá, as imagens comprovam tudo, é verdade, mas não necessariamente real.

Essa reflexão é importante porque aponta para a necessidade do professor conduzir

o olhar do aluno para perceber a particularidades da linguagem utilizadas num filme,

porque em casos como este são elas que revelarão ao telespectador o projeto

discursivo do enunciador.

Este filme talvez seja inclassificável, pois, conforme abordado no capítulo I,

este curta foi concebido dentro do movimento chamado cinema experimental, em

que os cineastas, entre os quais estava Jorge Furtado, buscavam uma nova forma

de fazer cinema, diferente das práticas e estilos ditos comerciais, ou industriais. Ele

introduziu uma maneira de produzir cinema na qual mescla a linguagem documental

com a linguagem ficcional, intercalando conteúdo informacional e ficção. E, com uma

narrativa dinâmica e atraente, subverte a rigidez com que, em busca do estatuto de

verdade, eram produzidos os documentários até então.

Em Ilha das Flores, Furtado ironiza essa forma padronizada de produzir

curtas comerciais, sobretudo os documentários, fazendo uma brincadeira com o

discurso científico, apresentando os elementos e acontecimentos cotidianos, banais,

por meio de um discurso estruturado nos modelos científicos. Sua ironia ácida chega

ao ponto de fornecer uma definição científica para o “segundo”: Desde 1958 o

segundo foi definido como sendo o equivalente a nove bilhões, cento e noventa e

dois milhões, seiscentos e trinta um mil e setecentos e setenta ciclos de radiação de

um átomo de Césio; ou para prova de história: Uma prova de História é um teste da

25

Região formada por várias ilhas banhadas pelo rios Guaíba, Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí.

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capacidade do telencéfalo de um ser humano de recordar dados referentes ao

estudo da História.

Feitas tais considerações preliminares, vamos ao relato selecionado para

análise, intitulado Uma Verdade Desconhecida, produzido por Antônio Evaldo Jesus

Velho, professor da Escola Estadual Melvin Jones, situada na zona urbana de Porto

Alegre. Ele fez uso do curta com uma turma do ensino médio constituída por 35

alunos e faixa etária entre 14 e 18 anos. Primeiramente, o autor do relato assume

uma postura de credulidade com relação ao enunciado, ou seja, ele encara a

produção de Jorge Furtado como sendo um documentário. Esse posicionamento

revela uma atitude precipitosa, a qual poderia ser repensada caso o professor

tivesse consciência do caráter transgressor da obra, na qual o autor rompe com a

linguagem tradicional dos documentários. Na verdade, trata-se de uma produção

metalinguística, na qual ele utiliza a linguagem documental para produzir um filme

ficcional que ironiza os documentários produzidos segundo os padrões da época.

Olhar para o texto sem considerar tais aspectos extralinguísticos mitiga seu

potencial enunciativo. Bakhtin (2003) nos assegura que conhecer as condições de

produção do enunciado mostra-se relevante para a compreensão ativa e importante

para o leitor oferecer uma resposta. Segundo o autor, existe uma relação entre as

condições de produção do enunciado, a linguagem utilizada e os sujeitos da

enunciação por meio da qual o discurso se processa. Assim, levar em conta o lugar

social ocupado pelo autor na ocasião da elaboração do enunciado pode ser

determinante na compreensão da mensagem. Normalmente, esse background

enunciativo seria desnecessário para um leitor comum, o que não o afastaria da

categoria de leitor crítico, porém, para um leitor que se pretende analista, caso em

que figura o professor Antônio, faz toda a diferença ter consciência do movimento

conhecido como Cinema Experimental ou de Vanguarda, do qual Jorge Furtado foi

um dos precursores.

E um dos princípios que norteavam essa concepção de cinema enfatizava a

necessidade de abordar temas sociais, preferencialmente aqueles que expunham as

mazelas do país, mas sem abrir mão das ferramentas artísticas, como a linguagem

metafórica, que atribuíam caráter autoral às produções, como é o caso de Ilha das

Flores. Essa nova maneira dialógica de produzir curtas no Brasil passou a exigir um

pouco mais do telespectador, o qual teve que acionar uma espécie de filtro crítico do

que é ficção e do que é realidade.

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Essa atitude de produzir documentário com caráter ficcional e ficção com

aspectos documentais não era comum à época, causou incômodo a muitos

telespectadores. A maioria não compreendeu o elemento hiperbólico, mobilizado

pelo autor, que sugeria uma comparação de cunho reflexivo entre seres humanos e

animais que buscam seus alimentos no lixo, como é o caso dos porcos e das

galinhas. Isso gerou um sentimento de revolta entre os habitantes de Ilhas das

Flores e Ilha dos Marinheiros, os quais passaram a ser vistos como aqueles que

dividiam comida com os porcos. Várias equipes de reportagem foram ouvir os

moradores das ilhas, os quais trouxeram a público sua insatisfação com relação aos

efeitos danosos sofridos pelos ilhéus, segundo os quais, foram vítimas de

preconceito e discriminação. Alguns relatam que não conseguiam arranjar emprego

porque eram associados a porcos, outros declaram que se entregaram ao

isolamento por receio de sofrerem alguma espécie de hostilização26.

Embora o professor/autor sinalize com o título de seu relato a compreensão

de se tratar de um documentário, ele utiliza o curta Ilha das Flores para ensinar

figuras de linguagem, ferramentas utilizadas predominantemente em produções da

esfera artística, sobretudo a literatura. Essa aparente incoerência só reforça o

caráter insurgente presente no texto de Jorge Furtado, no qual o professor, em que

pese sua convicção de estar lidando com um curta documental, identifica elementos

da linguagem metafórica empregados em enunciados artísticos. Por outro lado, isso

revela a competência do professor Antônio em perceber o potencial dialógico da

linguagem não verbal, no caso, o texto cinematográfico, para ensinar figuras de

linguagem, conceitos elaborados originalmente para produzir efeitos de sentido em

textos literários. Conforme objetivos apresentados por ele:

Observar a riqueza no uso das figuras de linguagem no nosso dia a dia; Observar que a nossa língua é rica em qualquer área que atue; Interpretação de textos poéticos e publicitários; Observar a transitividade e a mudança da linguagem por área pesquisada; Produzir um vídeo em CD, através de fotos e relatos sobre o próprio Bairro, interagindo com o que assistiu em "Ilha das Flores".

A fim de atingir tais objetivos, o autor desenvolveu uma estratégia que fez

com que seus alunos buscassem informações acerca do tema meio ambiente em

26

Disponível em: http://www.eusoufamecos.net/editorialj/ilha-das-flores-depois-que-a-sessao-acabou

http://www.eusoufamecos.net/editorialj/%E2%80%9Cde-fato-os-porcos-comiam-primeiro%E2%80%9D-diz-jorge-furtado. Acesso em 20 de março de 2013.

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diferentes gêneros da esfera artística, tais como poemas, músicas e fotografias que

retratassem a natureza, a partir dos quais deveriam detectar algumas figuras de

linguagem, como antítese, comparações, paradoxos, metonímia, hipérbole, dentre

outras, para, em seguida, após a conceituação de cada uma delas, identificá-las no

curta Ilha das Flores. O professor propõe também que os alunos estabeleçam

relações entre os conceitos das figuras de linguagem identificadas nos textos

pesquisados com a linguagem utilizada no ambiente em que vivem.

Formou-se 04 grupos e, cada um ficou 02 ou 03 figuras de linguagem para representar, através delas, o que viram no filme e, relacioná-las com o tema "Meio Ambiente" e, com a própria articulação da fala no meio em que vive. Através de colagens, cartazes (com poemas, músicas e figuras) mostrou-se o presente e o futuro do nosso planeta. As figuras de linguagem utilizadas foram: Antítese, metonímia, hipérbole, metalinguística, eufemismo, metáfora, comparação pleonasmo e personificação.

Ele utiliza fotos trazidas pelos alunos, que mostram pessoas muito pobres

habitando casebres ao lado de milionários em prédios luxuosos, para ilustrar o

conceito de antítese. E para demonstrar a ideia de hipérbole, denuncia o exagero de

lixo produzido nos grandes centros. São Paulo, por exemplo, produz, em média,

impensáveis sete mil toneladas de lixo por ano. Além disso, para exemplificar a ideia

de eufemismo, os alunos levaram fotos de construções utilizando materiais

recicláveis, plantações de árvores pelas cidades e até fachadas e outdoors

maquiando eufemisticamente os efeitos da poluição produzida pelas metrópoles,

conforme relatado por ele:

PA - O eufemismo se destacou, no trabalho deles, através de desenhos e montagens com material reciclável mostrando que dentro das cidades os prédios, outdoors e algumas árvores disfarçam a sujeira das cidades. A hipérbole também se destacou com o exagero de lixo produzido pelo homem e jogado na natureza. Fotos de miseráveis junto a prédios austeros e imponentes representam perfeitamente o paradoxo (antítese) da sociedade moderna.

Essa estratégia impávida, empregada pelo professor Antônio, de extrapolar

para a esfera do cotidiano a aplicação de conceitos comumente literários, além de

sinalizar sua disposição empreendedora, e por que não dizer transformadora, revela

uma concepção de linguagem que a toma como algo vivo, dinâmico e coletivo. Além

disso, descarta a ideia de exclusividade e puritanismo literários, assim como fizeram

os modernistas, para os quais tudo podia virar arte, desde que o objeto estético

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fosse redimensionado metaforicamente. Dessa forma, mesmo uma bacia sanitária,

deslocada do seu uso comum e ressignificada alegoricamente pelo artista, pode

adquirir o estatuto de arte. O professor Antônio instaura, portanto, o diálogo entre

arte e vida, propondo uma espécie de desmetaforização, dilatando os conceitos

artísticos para compreender a vida (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926).

O trabalho com diferentes gêneros permitiu ao professor imprimir uma

abordagem interdiscursiva em suas atividades, possibilitando a participação direta

dos alunos, os quais puderam confrontar os diversos discursos e estabelecer os elos

entre as ideias apresentadas no filme e nos textos pesquisados, tanto os da esfera

artística como os das esferas jornalística e publicitária. Além disso, o professor

Antônio promoveu, por meio da produção de um DVD no qual os alunos mostraram

o ambiente em que vivem, uma conexão com a realidade vivida por eles.

O aspecto lúdico foi a produção do próprio DVD sobre o Bairro deles e assim ficaram orgulhosos e ao mesmo tempo chocados pois viram que deveriam e poderiam ajudar mais a modificar o meio em que vivem através da palavra ou seja, através da Língua Portuguesa.

Essa diversidade de gêneros mobilizados pelo professor confere um poder

dialogal muito producente com outros textos que circulam nas esferas das quais

seus alunos participam, pois cada realidade apresentada nos textos trabalhados

proporciona novos olhares sobre o tema, subsidiando o aluno com o substrato ético,

sem o qual a dimensão estética não existe (SOBRAL, 2009). Essa abordagem

dialógica assumida pelo professor permite que o aluno se conceba enquanto autor

criador, uma vez que ele se apropria da palavra, que não é mais só da literatura,

tornando-se dono do discurso, que não é mais só dos textos lidos, içando-o da

condição de mero reprodutor para uma posição de agente refratário do discurso

(BAKHTIN, 1992).

No entanto, em que pese o professor/autor ter explorado o aspecto

interdiscursivo do filme, ele renuncia sua prerrogativa de fazer uso, de forma mais

contundente, do texto fílmico em si, para além de exemplificações de figuras de

linguagem e fonte de temas transversais. Dessa forma, o filme perde um pouco sua

força enquanto texto autônomo, uma unidade discursiva produzida por um autor,

objetivando um interlocutor, sujeitos sócio-historicamente situados. Segundo Bakhtin

(2003), o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas dos

falantes; dito de outra forma, não há outra forma de apreender o discurso, a

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intencionalidade27 ou ideologia senão pela materialidade textual/enunciado. É

preciso olhar para ele, seja qual for a modalidade pela qual se manifesta.

Considerar a dimensão textual do enunciado fílmico, além de externar a

intencionalidade do enunciador, permite maior familiaridade com o funcionamento da

linguagem cinematográfica, uma vez que tais elementos estão ligados por uma

relação de dependência. Por exemplo, no caso do texto fílmico, a intencionalidade

discursiva pode ser revelada pela escolha das imagens, ao serem arranjadas, pelo

jogo de luz, bem como o uso que o diretor faz das cores, dos ângulos, dos planos e

dos cortes. Só o fato de exibir, ou não, esta ou aquela imagem denuncia um

propósito, implica um posicionamento. Tais escolhas “léxico-sintáticas” são

ideológicas, pois foram concretizadas a partir da concepção de mundo do autor,

apontando para o quê e como valorizar, ou não, de modo a direcionar o olhar do

telespectador e atingir a sua intenção discursiva.

Nessa linha de pensamento, perceber que, no curta Ilha das Flores, o diretor,

utilizando-se de um recurso da linguagem cinematográfica, coloca, numa mesma

tomada, o caminhão de lixo e a placa “Ilha da Flores”, é essencial para o analista

compreender o efeito de sentido paradoxal produzido no telespectador. Tal resultado

é possível porque o diretor coloca, num mesmo plano, duas imagens que

representam duas ideias opostas. Ao justapor os quadros, o diretor provoca a

associação de sensações completamente adversas, convivendo lado a lado,

conforme figuras abaixo.

Ilha das Flores (FURTADO, 1989) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=ilha_das_flores

E para reforçar o efeito já criado pela imagem, o texto verbal, narrado em off,

completa: Há poucas flores na Ilha das Flores. Há, no entanto, muito lixo, e 27

Estamos entendendo intencionalidade não como intenção comunicativa, projeto discursivo. Trata-se de marcas discursivas que revelam pontos de vistas e ideologias do autor, mesmo que este não as tenha manifestado explicitamente.

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acrescenta: de flores são extraídos perfumes, ... o lixo é levado para determinados

lugares, bem longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair doenças. Na

expressão Há poucas flores na Ilha das Flores, o autor poderia substituir o nome da

localidade por um elemento anafórico que o referenciasse, uma vez que ele já havia

citado a referida Ilha havia menos de 30 segundos, no entanto não o faz com o

objetivo de acentuar o efeito de sentido desejado: uma experiência paradoxal gerada

pelo jogo de imagens e sua relação com o texto verbal.

Nesse sentido é que professor Antônio poderia ter explorado um pouco mais

os recursos da linguagem audiovisual para marcar textualmente as figuras de

linguagens estudadas. Para cada uma delas, metonímia, antítese, comparação,

hipérbole, dentre outras, há um mecanismo da linguagem cinematográfica a ser

mobilizado capaz de produzir o efeito de sentido desejado, seja o close up, a

justaposição de imagens, o plano, o ângulo, a iluminação, a trilha sonora ou

qualquer outro artifício, produto da criatividade humana. E, ao apreendermos tais

estratégias e procedimentos utilizados pelo autor-criador no acabamento dado ao

objeto estético, a fim de produzir os efeitos pretendidos, captamos também o seu

discurso. Mas para isso é preciso olhar atentamente para o texto filmico, pois é lá

que estão as evidências discursivas, corporificadas nas imagens, sons, luzes, efeitos

especiais, etc.

3.7 Negócio Fechado

Curta dirigido por Rodrigo Costa, produzido em 2001, conta a história de dois

compadres, fazendeiros no interior de Minas Gerais, que se encontram para realizar

um negócio de compra e venda de gado. Juquita formou um lote misto de 50 rezes,

no qual havia vacas leiteiras, novilhas e garrotes. Seu compadre, Jorge, interessado

na compra do gado, fez uma visita ao amigo, que já o esperava com café e

rosquinhas, como era de costume entre eles. A partir daí, começa um longo embate

entre os negociantes. O comprador enxerga diversos defeitos nos animais, já o

vendedor, por outro lado, ressalta as qualidades deles. O ponto de discórdia está no

preço, o dono dos bois pede R$ 20 mil, depois diminui para 19, mas seu vizinho quer

pagar apenas 18. Esse regateio se arrasta por toda a tarde, sem um desfecho

favorável para nenhum dos lados. Há um terceiro interessado na compra do gado,

Marcelo, fazendeiro jovem e moderno, preterido por Juquinha por não regatear. O

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filme é uma adaptação do conto Como a gente negoceia, do mineiro Olavo Romano,

e foi vencedor de vários prêmios, dentre eles, o de Melhor Roteiro no Festival de

Curitiba em 2002.

O relato selecionado para análise, intitulado Minha língua é minha pátria, foi

enviado por Kelba Assumpção Lima, professora de Língua Portuguesa na Escola

Palmira Gabriel, situada na zona urbana de Belém do Pará. Ela fez uso do curta

Negócio Fechado em 2012, numa turma composta por 58 alunos do ensino médio,

com faixa etária entre 14 e 18 anos. Inicialmente, podemos notar, ao analisar os

objetivos relacionados por Kelba, que sua concepção de linguagem está fundada no

dialogismo social. Todos os alvos mirados em seu escopo situam a língua/linguagem

como uma atividade de natureza social e dialógica, tendo como base as interações

sociais, e não apenas o código da língua:

Diferenciar linguagem oral de linguagem escrita. - Desmistificar a questão do uso da língua. - Valorizar as diferenças culturais e linguísticas. - Refletir sobre as variações da língua. - Usar a linguagem com autonomia e sem preconceitos - Perceber diferenças na fala de pessoas de outras regiões. - Rever e aprofundar os conhecimentos sobre a variação linguística.

Mesmo quando estabelece uma finalidade que visa à reflexão do código, o faz

colocando em relação com a linguagem em uso: Refletir a questão da convenção da

escrita em relação à linguagem falada. A fim de atingir tais objetivos, a professora

propõe, conforme a sequência didática, uma atividade denominada por ela de

sensibilização, em que os alunos deveriam:

(...) apresentar palavras e expressões usadas por diferentes grupos sociais e regionais, e, utilizando esses diferentes falares, os mesmos teriam de encontrar argumentos de modo a persuadir um colega a comprar um computador sem CPU e um bilhete de loteria já vencido e não premiado.

Essa atividade de se colocar no lugar do outro, pela língua do outro, coopera

para a compreensão da natureza social da linguagem, ajuda a perceber que os

sentidos das palavras são dados socialmente, negociados com seus falantes, de

acordo com o contexto mais imediato ou mais amplo (BAKHTIN, 1992). Dessa

forma, um representante comercial de um grande frigorífico e um grande criador de

gados jamais participariam de uma negociação nos termos utilizados pelas

personagens, conforme transcrição abaixo:

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- Ocê veio aqui para comprar as novilha que eu falei? - É foi... mas não tem pressa não. Primeiro vamo ter dois dedos de prosa, depois a gente fala de negócio. Soube do Adamasceno?

(...) - Bom. Então vamo ao que interessa... E esse preço? Como é ? - Ué? Aquele mesmo uai! Gadão de primeira né meu filho... - Ocê pediu quanto mesmo? Foi dezessete mil não foi? - Que dezessete mil homem, cê ficou bobo! - Quanto é que foi então uai? - Eu pedi foi vinte mil... E dezessete mil tá é aí na sua cabeça. - É... Danado de salgado. Assim num sai negócio não!!

Por outro lado, tal diálogo seria perfeitamente possível entre dois compadres

do interior de Minas Gerais que estivessem realizando um negócio de compra e

venda de gado. Pois o contexto em que estariam inseridos, bem como os acentos

valorativos evidenciados pela entoação expressiva dos falantes tornariam os

enunciados adequados e compreensíveis naquela situação comunicativa.

A professora Kelba prossegue, na sequência didática, solicitando aos alunos

que pesquisem sobre o Estado brasileiro em que a história se passa, bem como as

características de seus personagens, o uso que fazem da língua, sua classe social,

idade, aspectos culturais da região, as variações linguísticas regionais e dialetais,

além do cenário. Ao proceder assim, ela chama a atenção dos alunos para as

escolhas realizadas pelo autor a fim de atingir seu propósito discursivo. E faz isso

direcionando o olhar dos alunos para o texto fílmico:

Assistir ao filme, observando os seguintes aspectos: Estado brasileiro onde a história se passa. Análise da fala dos personagens. Fazer anotações a partir da leitura do filme: Frases que caracterizem a língua formal; Frases que apresentam variações dialetais. Reconhecimento das variedades linguísticas. O cenário. Perfil dos personagens nome, idade escolaridade, classe social. Linguagem utilizada. Justificar com exemplos.

A autora do relato conduz os alunos, por meio da análise de elementos

enunciativo-discursivos, de maneira a apreender os discursos que emergem a partir

desse olhar para dentro do texto fílmico. Pesquisar as características culturais do

Estado onde a história se passa, por exemplo, pode levar o estudante a perceber a

motivação pela qual o autor optou por utilizar o interior de Minas como pano de

fundo para narrar seu causo e, por conseguinte, verificar sua intencionalidade

discursiva. Ora, o interior de Minas retrata a tranquilidade da vida campestre. O

autor traz à tona o discurso bucólico e saudosista, que valoriza a vida no campo, a

tradição, o modo de ser sertanejo. Essa ideia é apresentada na seção introdutória do

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filme, quando são exibidas fotos em preto e branco, esmaecidas e puídas, de

casarões antigos em meio a plantações e criações.

Esse recurso tem como objetivo ativar a memória afetiva do telespectador, a

fim de resgatar um período, não muito distante, em que a maioria das famílias

habitavam pequenos vilarejos, conheciam-se quase todos pelo nome e sabiam a

genealogia de grande parte dos moradores, embora a história se passe no ano de

199728. Nesse período já havia fazendas equipadas com aparelhos eletrônicos,

telefone e até celulares, no entanto, o autor valoriza os elementos típicos do campo.

Ele começa com um plano médio, em que aparece um dos compadres se dirigindo à

casa do outro, utilizando como meio de transporte o cavalo; no plano seguinte, um

close no fogão à lenha, onde dona Celinha, esposa do compadre Juquita, prepara o

café da tarde; em seguida, em plano americano, mostra a dona de casa coando a

bebida no tradicional coador de pano.

Na mesma sequência, a imagem seguinte, em plano geral, mostra parte da

fazenda onde é possível identificar carros de boi transportando capim, além de

gados pastando em volta da casa. A sequência termina com Juquita numa rede na

varanda, manipulando um fumo de corda. Essa sucessão de imagens do cotidiano,

intercaladas em planos relâmpagos e curtos, tendo como fundo musical uma batida

de viola, constitui-se um recurso cinematográfico utilizado pelo diretor para salientar

a rotina da vida na fazenda, conforme figuras abaixo. Todas essas escolhas - o

cenário, os objetos, a linguagem usada, a forma como são apresentados - são

realizadas com base numa visão de mundo que revela a intencionalidade do autor. E

a professora Kelba atrai o olhar dos alunos para esses elementos textuais quando

pede para que eles exemplifiquem com passagens do filme suas impressões e

inferências acerca do discurso presente na obra.

Negócio Fechado (COSTA, 2001) Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=negocio_fechado3350

28

É possível deduzir o tempo da história por meio do selo que aparece no para-brisa do carro da personagem Marcelo. Esse adesivo, fornecido pelo Detran de cada Estado, com o ano corrente impresso, serve para informar que o licenciamento do veículo naquele ano está pago.

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E, ao propor que os alunos pesquisem sobre o espaço, o cenário e a cultura

local onde foram gravadas as cenas, a professora pretende que os estudantes

percebam as implicações cronotópicas e seus efeitos enunciativos presentes no

texto. Ao realizar a pesquisa, os alunos certamente notaram que toda a trama da

narrativa acontece, quase que exclusivamente, no espaço da fazenda (cozinha,

varanda, curral, porteira etc.), no interior de Minas Gerais. Trata-se de cronotopos

que adquiriram, historicamente, na sua relação com o tempo e com o homem, uma

carga semântica e, a depender da forma como são manipulados esteticamente,

produzem efeitos de sentidos que trazem a ideia de quietude, constância e

invariabilidade. Por outro lado, a estrada, espaço representado brevemente no filme,

constitui o cronotopo do encontro, da velocidade e da mudança, exatamente de

onde emerge o conflito entre o tradicional e o novo, representados pelo embate

entre Marcelo e Juquita e tudo o que eles representam.

Marcelo, então, apresenta-se como elemento desestabilizador da vida pacata

da cidade, rapaz novo, com visual e costumes urbanos, traz consigo o ritmo

alucinante dos grandes centros. Por meio de uma antítese imagética, o cavalo e a

camionete na estrada de chão, o autor evidencia esse choque cultural, esse

confronto entre o moderno e o tradicional, representados pelos meios de transporte

utilizados pelas personagens Jorge e Marcelo, respectivamente. O jovem,

interessado na compra das novilhas, convida o fazendeiro, que fora até a estrada

sondar o seu compadre, a entrar no carro a fim de olhar o gado. Juquita, por sua

vez, recusa o convite e diz que vai andando mesmo, e sai caminhando na frente do

carro, ao passo que Marcelo, habituado com a velocidade, se irrita profundamente a

ponto de buzinar para que o fazendeiro saísse da sua frente.

Essa imagem, na verdade, constitui-se uma crítica sarcástica e debochada à

agitação exacerbada da cidade, que acaba gerando o estresse e ansiedade comuns

nas pessoas de hábitos urbanos. O autor dá voz aos camponeses e, com aquele

gesto da personagem Juquita, diz: aqui no campo as coisas são diferentes,

respeitem o nosso modo de viver, nosso ritmo, nossos costumes e tradições. Por

outro lado, Marcelo, habituado à velocidade com que as coisas acontecem na

cidade, familiarizado com o modelo citadino de se fazer negócio, ao analisar o lote

de novilhas, sem barganhar, saca imediatamente o talão de cheques e compra as

rezes do senhor Juquita. Este, por sua vez, decepcionado pela ausência da

pechinha, volta atrás e desfaz o negócio.

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Assim, embora o autor tenha concedido espaço ao discurso urbano, da

modernidade e tecnologia, a voz predominante no curta é a do campo, tanto que o

filme termina exatamente como começou, o compadre Jorge chegando à fazenda e

Juquita dizendo: Celinha! Tá chegando visita. Manda a Maria trazê um cafezinho.

Isso indica um movimento circular e rotineiro, reforçando a sensação de que o tempo

não passa naquele lugar e que não se pretende mudanças. Essa percepção só pôde

ser alcançada pelos alunos porque a autora/relatora os conduziu para uma leitura

além do texto, mas que necessariamente passa por ele, dando-lhes condições de

interpretar o enunciado, estabelecendo conexão com outros textos, ideias, culturas,

enfim, com o mundo.

Além disso, sutilmente, a professora, por meio de questionamentos, aguça a

percepção dos alunos a fim de que eles percebam esse contradiscurso presente no

texto, o avesso do bucólico: o discurso urbano, que tem como princípio valorativo a

velocidade, elemento primordial nos universos virtuais, onde os negócios são

fechados sem ao menos conhecermos as pessoas com quem estamos negociando,

sem o olho-no-olho e o aperto de mão, gestos finalizadores de uma transação

comercial, nos moldes interioranos.

Qual seria o final desta história no contexto econômico e social atual? Quanto a atitude do fazendeiro: estava correto em não vender o gado, ainda que por um preço maior, apenas por se sentir desrespeitado em sua maneira de fazer negócio?

Nesse mesmo movimento, a questão (Qual seria o final desta história no

contexto econômico e social atual?), levantada pela professora, leva o aluno a

compreender a influência determinante das condições de produção na elaboração

do enunciado. Com essa proposta, ela induz os alunos a refletir, num movimento

inverso: como seria essa narrativa caso o autor quisesse enfatizar o discurso da

modernidade em detrimento ao discurso bucólico? Destarte, Kelba impele seus

alunos a um movimento exotópico que os permitirá, alteritariamente, vislumbrar outro

lado, permitindo, nesses entreolhares, construir o seu próprio olhar, constituir-se, de

modo a tornar-se dono de seu discurso.

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3.8 Xadrez das Cores

Filme de Marcos Schiavon, vencedor de vários prêmios29, já participou de

inúmeros festivais e já teve mais de 84 mil visualizações no site. Foi produzido no

Rio de Janeiro, em 2004, e relata a difícil convivência entre duas mulheres, patroa e

empregada, branca e negra, respectivamente. História recorrente no cotidiano

brasileiro, que retrata a difícil relação entre a classe patronal e empregados

domésticos em grande parte do país. Dona Stella (interpretada por Mirian Pyres), é

viúva, idosa, sem filhos, doente e solitária, totalmente dependente. Cida

(interpretada por Zezeh Barbosa) é a empregada, uma jovem senhora negra, pobre,

também sem filhos, trabalhadeira, honesta, independente, moradora de uma

comunidade muito pobre do Rio de Janeiro, que perdeu seu filho quando este tinha

10 anos, morto a tiros por traficantes. Dona Stella contratou Cida como sua

empregada e cuidadora. E, apesar da eficiência e da honestidade de Cida, a patroa

a distratava com palavras ofensivas, discriminatórias e preconceituosas.

O prazer de dona Stella era humilhar sua funcionária, apenas porque era

negra. Tudo que Cida fazia, e fazia muito bem, não era suficiente para agradar a

patroa, cada vez mais intolerante e pirrônica. Mesmo nos momentos de diversão, ela

gostava de jogar xadrez, era perversa e racista. E foi justamente seu único

divertimento o instrumento de libertação de Cida e dela própria, o xadrez. Dona

Stella gostava do jogo, mas não tinha companhia. Ela sempre ficava diante do

tabuleiro manuseando as peças, sem ter com quem jogar. Cida, observando a

atitude de sua patroa, procurava ajudá-la, mas não sabia como, pois não conhecia

os regulamentos. Então ela pediu à sua patroa para lhe ensinar. Dona Stella, mesmo

aborrecida, o fez, até porque seria a única forma de ela se divertir um pouco.

Assim, a empregada aprendeu as regras e tornou-se parceira de dona Stella

sempre que queria passar o tempo. No entanto, a patroa usava o jogo para

discriminar sua empregada. No início das partidas, ela sempre escolhia, de forma

impositiva, as peças brancas, e para Cida sobravam as peças pretas. Como dona

29

Finalista no Grande Prêmio TAM do Cinema Brasileiro - 2005; Melhor Curta - Júri Popular no Festival de Cinema Brasileiro de Miami - 2005; Melhor Filme - Júri Popular no Festival de Cinema de Goiás – 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba – 2005; Prêmio Especial no Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba - 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Festival de Goiânia - 2005; Melhor Atriz no Jornada de Cinema da Bahia – 2005; Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Mostra Cine Rota 22 - 2005

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Stella tinha mais habilidade, sempre ganhava, e toda vez que “comia” uma peça

preta, jogava-a no lixo, ressaltando o seu desprezo pelos negros. Certo dia, Cida

comprou um jogo de xadrez. Em casa, enquanto manipulava as peças, observou as

crianças brincando na comunidade onde ela morava. Então resolveu fazer do xadrez

uma saída para que aquelas crianças não vivessem a situação de violência pela

qual passou o seu filho.

Cida convida as crianças para conhecer o xadrez. Elas, uma a uma, se

aproximam e começam a jogar. Cansada de tanto ser humilhada, desiste de

trabalhar na casa da patroa racista. O sobrinho de dona Stella contrata outra

empregada. Uma mulher branca, loura. Mas a nova empregada não cuidava da

idosa como fazia a empregada negra. Assim, ela foi dispensada. O sobrinho volta a

procurar por Cida, que reluta, mas termina voltando para o emprego. Só que com

outra visão da vida, consciente de sua importância no “tabuleiro da vida” e do seu

potencial transformador. Assim, ela passou a se impor. E, a partir de então,

começou a jogar com as peças brancas, e a patroa, num sinal de mudança de

atitude, aceitou jogar com as pedras pretas. As duas acabam se tornando amigas.

O relato selecionado para este curta-metragem foi produzido pela professora

Marileia Soares dos Santos, que leciona no Centro Educacional Almirante

Tamandaré, em uma escola estadual, situada na zona urbana da cidade de Niterói-

RJ. A relatora fez uso do filme com uma turma de 33 alunos, do ensino fundamental

II, e faixa etária entre 10 a 14 anos. Os temas abordados por ela na aula, a partir da

visualização do filme, foram: cidadania, comunicação, cultura, discriminação,

diversidade, ética e preconceito racial. O seu relato teve 467 acessos, mais de 27 %

do total de 1687, um dos relatos mais bem conceituados, com 4 estrelas. Tais dados

revelam que, além de ser uma sequência didática bem feita, o trabalho é de

qualidade, e que existe um número considerável de pessoas que compartilham com

sua visão de mundo no que se refere ao assunto em questão.

Inicialmente, identificamos três eixos gerais no objetivo declarado pela

professora Marileia, ao fazer uso do curta-metragem em sua aula. O primeiro está

relacionado a questões práticas do currículo e do calendário escolar:

O intuito maior de passar este filme foi a proximidade com o "Dia da Consciência Negra". Que por lei é obrigatório em todas as escolas estaduais fazer apresentações teatrais ou quaisquer outras atividades. Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e

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se conscientize de que a discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade.

A segunda tendência expressa em seus objetivos é de natureza ética-moral,

quase panfletária, em favor da igualdade racial:

Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e se conscientize de que a discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade.

E a terceira, e que nos interessa para esta análise, diz respeito à linguagem e

ao uso que se faz dela:

Desenvolver a capacidade de dialogar, respeitando o seu opositor. Trabalhar a oralidade, através da exposição de ideias de maneira clara e concisa. Oportunizar o aluno a expor possíveis casos de discriminação que tenha sofrido ou presenciado. Estimular o aluno à observação cuidadosa dos diálogos, identificando os possíveis casos de transgressão da norma culta.

Por meio da análise dos objetivos e das estratégias utilizadas nas atividades

subsequentes desenvolvidas pela professora, percebe-se que a mesma abandona

completamente o objeto, do qual se fez valer apenas para principiar um debate

sobre preconceito e discriminação racial, porém abrindo mão da materialidade

discursiva da qual dispunha: o texto fílmico. O curta tornou-se apenas um pretexto,

por meio do qual uma exigência da grade curricular da escola fosse cumprida. Desta

forma, o curta-metragem não foi concebido como um texto, na sua dimensão

linguístico-enunciativa; o que seria possível por meio da exploração dos recursos

discursivos presentes na linguagem cinematográfica utilizada no filme.

Explorar dialogicamente a materialidade do texto fílmico significa perceber

como os elementos linguísticos se articulam na produção dos efeitos de sentidos

desejados pelo diretor e captados pelo telespectador. Por exemplo, como o figurino

e a maquiagem, dois importantes sistemas de significação usados no cinema, das

personagens do curta Xadrez das cores contribui para a construção da imagem

valorativa que o telespectador concebeu delas, bem como a impressão que o autor

deseja atribuir a elas; o que as roupas revelam de suas personalidades, da

sociedade em que estão inseridas, e quais visões de mundo pode apresentar

alguém que se veste ou se maquia como as heroínas do filme. Essa abordagem

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enunciativa-discursiva pode oferecer ao aluno subsídios necessários para que ele

possa assumir uma posição de interlocutor ativo-responsivo (BAKHTIN, 2003).

E para que isso aconteça de maneira eficiente, reconhecemos a premência

de uma formação adequada do professor, visando o aprimoramento da sua

capacidade de leitura das linguagens utilizadas pelo cinema. Assim, o que vamos

ponderar aqui cumpre o intuito de evidenciar, não uma fragilidade da professora,

mas a necessidade de habilitar os professores a trabalhar com textos fílmicos na

escola, um dos objetivos desse trabalho, salientar a imprescindibilidade da inclusão

dessa demanda nos cursos de formação continuada.

Por outro lado, ainda baseado nos objetivos explicitados pela autora do relato,

o terceiro eixo mencionado acima, o que diz respeito à linguagem, a docente

manifesta preocupação com a aquisição de habilidades e competências discursivas

do aluno, sugerindo que essas fossem desenvolvidas por meio de processos

interacionistas, como diálogos, exposição de situações vividas, respeito aos

interlocutores. Isso sinaliza para uma concepção de linguagem que valoriza sua

natureza dialógica, embora o último objetivo relacionado por ela e algumas

expressões de seu repertório léxico indicarem um resquício da concepção

estruturalista de linguagem: Estimular o aluno à observação cuidadosa dos diálogos,

identificando, de maneira clara e concisa, os possíveis casos de transgressão da

norma culta.

Em que pese o seu cuidado em promover a competência discursiva em seus

alunos por meio de recursos interacionistas, a professora/autora não especificou, em

seus objetivos, por meio de que gêneros e para quais esferas da atividade humana,

das quais seus alunos participam, ou poderiam vir a participar, ela estava buscando

desenvolver as habilidades e competências discursivas. Segundo Bakhtin (2003),

qualquer ato de comunicação se dá por meio de gêneros do discurso, e a escolha do

gênero é determinada, dentre outros, pela intencionalidade do falante e pela esfera

por onde o seu discurso irá circular.

Evoluindo com a análise, agora examinando as estratégias e atividades

empregadas pela docente, chegamos à interdiscursividade, um dos conceitos que

integram a noção de dialogismo. Percebemos que a professora fez uso de um texto

do gênero letra de canção, da esfera musical, estabelecendo, de forma

interdiscursiva uma relação de conformidade entre os textos:

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Um aluno comprometeu-se em baixar da Internet músicas com teor do preconceito. Uma vez de posse do CD (com músicas de Gabriel O Pensador), o mesmo foi apresentado em sala...

Entendemos que essa abordagem intertextual adotada pela professora

contribuiu para o desenvolvimento e uma compreensão ativa-responsiva em seus

alunos. Ao ouvirem a música, outros temas e assuntos surgiram como uma resposta

ao enunciado do filme, e mais do que uma simples resposta, um posicionamento

crítico e valorativo frente às questões polêmicas em torno do preconceito e do

racismo, segundo ela:

(...) gerando mais uma discussão: "Por que o negro, quando se destaca na sociedade opta por casar com uma mulher branca (de preferência loura)? "Por que tal comportamento não se verifica com a mulher que ascende socialmente?" A experiência gerou outros desdobramentos, inclusive estimulando a pesquisa.

No entanto, consideramos que o tema poderia ser abordado sob outros

prismas, contrário inclusive, utilizando, além da letra de canção, outros gêneros,

como artigos de opinião, reportagens, notícias de jornal, poesias, propaganda,

piadas, etc. Com tal encaminhamento, a professora promoveria mais

espontaneamente uma compreensão ativa-responsiva, obtendo resultados mais

satisfatórios na interpretação textual. Bakhtin (2003) nos lembra que um enunciado,

seja da esfera artística ou não, será sempre fruto de um intricado diálogo com outros

enunciados. Desta forma, podemos concluir que um filme sempre manterá relação

dialógica com outras produções anteriores e contemporâneas a ele, da mesma

natureza textual ou não. Porque “em cada palavra há vozes, às vezes infinitamente

distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, e vozes próximas,

que soam concomitantemente” (BAKHTIN, 2003, p. 330).

Por outro lado, explorando a relação indissolúvel entre vida e arte, a

professora, por meio de uma peça teatral, recupera algumas das situações do

cotidiano de sua comunidade.

Surgiu a ideia de se montar uma peça abordando o tema do preconceito racial. Assim foi feito. Pensaram sobre como agir, considerando uma situação de discriminação. Durante a peça, percebia-se a indignação de alguns através da expressão fisionômica e/ou através de interjeições.

Essa iniciativa resultou em uma atividade estética-discursiva, por intermédio

da qual os alunos recriaram, a partir da realidade concreta, um novo enunciado

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acerca do racismo e o preconceito racial. De fato, todo discurso é resultado de uma

espécie de transfiguração do mundo vivido (SOBRAL, 2009). Para tanto, a

professora os conduziu por um processo exotópico, a partir do qual se apropriaram

do olhar daquele que pratica o racismo e de quem sofre esse tipo de preconceito. E

esse novo objeto discursivo criado, resultante dessa elaboração estética, trouxe

consigo as marcas ideológicas de seus autores e suas visões de mundo, porque foi

construído por meio de uma linguagem que por sua vez é composta de signos

ideológicos (BAKHTIN, 1992).

Outro ponto positivo a ser ressaltado na prática da professora Marileia com o

curta-metragem Xadrez das Cores foi o envolvimento dos alunos que, mesmo

divididos em grupos, não permaneceram isolados, houve de fato uma interação

entre eles. A preparação feita pela professora, uma aula antes, com a leitura da

sinopse do filme, bem como as discussões realizadas após a exibição do filme,

contribuíram para a ampliação do debate acerca do tema proposto. Além disso, ela

se mostrou conhecedora da realidade e das necessidades dos alunos, trazendo para

a aula temas de interesse da comunidade onde eles residem. E, ao permitir que os

alunos se expressassem a partir de suas próprias vivências, demonstrou ter

consciência da importância da participação dos alunos no processo de ensino-

aprendizagem, situando-os numa posição de protagonistas na construção do

conhecimento, por valorizar suas vivências prévias de leitura e de mundo

(KLEIMAN, 2009).

Para encerrar, sentimos falta de uma abordagem enunciativa em seu trabalho

com o texto fílmico, na medida em que não situou o enunciado na corrente

discursiva em que ele está inscrito: produção, circulação e recepção, ou seja, seu

contexto de produção. Para Bakhtin (1992), a enunciação sempre será o produto da

interação entre pelo menos dois sujeitos, que são pessoas que vivem, ou viveram

em um tempo, numa localidade, com seus costumes, ideologias, valores, posição

social (vozes), os quais determinam a forma, o conteúdo, bem como as entoações

discursivas do enunciado. Dentro de uma concepção interacionista de linguagem,

não é possível conceber o enunciado divorciado do sujeito que o produz e do seu

interlocutor.

Tal abordagem é importante porque leva os alunos a refletirem sobre a função

social do texto, o que o autor pensa sobre esse assunto, a quem pode interessar,

em quem o autor pensava ao elaborar o enunciado, que sentidos queria construir.

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Conhecer esses aspectos enunciativos permite ao aluno tomar seu turno no discurso

e oferecer uma resposta ao locutor, que, por sua vez, almeja uma compreensão

responsiva dos seus outros. Porque todo mundo que produz um enunciado espera

uma resposta daquele para quem se dirigiu. Pois, “o locutor termina seu enunciado

para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do

outro” (BAKHTIN 2003, p.294).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegar neste ponto do trabalho, esperamos sintetizar, de forma inteligível

e objetiva, o que abordamos ao longo da dissertação, bem como apresentar nosso

ponto de vista e algumas contribuições acerca do tema tratado nesta pesquisa.

Inicialmente, apresentamos a definição e os aspectos caracterizadores do curta-

metragem, com ênfase na sua autenticidade, brevidade temporal e condensação

narrativa, atributos que o colocam em vantagem frente ao longa, quando se trata do

uso pedagógico desses. Seguidamente, apresentamos os fatores históricos,

políticos e econômicos que marcaram a trajetória do gênero, desde seu nascimento

até sua consolidação. Compreender esses caminhos, às vezes subversivos, pelos

quais trilhou o curta-metragem no Brasil, foi de fundamental importância para que

pudéssemos constituir uma percepção valorativa a respeito do nosso objeto de

pesquisa, para, em seguida, defender sua viabilidade como recurso pedagógico.

No capítulo seguinte, buscamos evidenciar a profícua relação existente entre

o pensamento de Mikhail Bakhtin e o cinema, enquanto linguagem, uma vez que

entendemos suas produções, dentre elas o curta-metragem, como gêneros

discursivos, por meio dos quais o homem se manifesta em alguma esfera de

atividade da qual participa. Procuramos responder também, na medida do possível,

algumas questões fundamentais que afetam o ensino de linguagem, na sua relação

com as multimodalidades, em especial o modo audiovisual de representar. Para

tanto, recuperamos a concepção de linguagem como interação social, delineada

pelo círculo de Bakhtin, além dos conceitos de gênero discursivo, dialogia,

arquitetônica, cronotopia, exotopia, vozes, ético e estético. Tais categorias nos

serviram de base para pensar a linguagem cinematográfica, bem como para

fundamentar nossas reflexões e análises acerca dos relatos feitos por professores

que fizeram uso de curtas-metragens, do projeto Curta na Escola, em suas aulas de

língua portuguesa.

Durante todo o percurso deste trabalho, defendi entusiasticamente a

aplicação dos conceitos de Bakhtin à reflexão acerca da linguagem do cinema e seu

uso em sala de aula, porque acreditamos que suas ideias podem contribuir

decisivamente para superar as concepções tradicionais que encaram o cinema de

forma monoglota e unidirecional, na qual o telespectador não passa de um receptor

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de informações enviadas pelos produtores dos filmes. E Bakhtin antecipou em 80

anos essa chaga social que aflige a humanidade atualmente, qual seja a

monologização promovida pela mídia. Nesse mesmo capítulo, apresentamos a

concepção dialógica de linguagem, postulada pelo teórico russo, baseada na qual

acreditamos ser possível que os leitores/espectadores possam se colocar como

sujeitos que interpretam ativamente, que negociam dialogicamente os sentidos dos

enunciados audiovisuais.

Nosso trabalho mostrou, também, que a obra do pensador russo é igualmente

adequada para pensar o multiletramento, na medida em que nos apresenta a

necessidade de articulação entre os sentidos e os modos com os quais são

produzidos os enunciados. Consequentemente, essa constatação levou os

professores a rever suas práticas de ensino de leitura e de escrita, o que fez com

que formas alternativas, polifônicas e heterogêneas de discurso passassem a ser

consideradas no âmbito escolar. Consoante essa realidade, os PCN de Língua

Portuguesa, no início dos anos 1990, apontam práticas pedagógicas baseadas na

concepção interacionista de linguagem como paradigma de ensino, abrindo caminho

para que as escolas, enfim, adotem uma política capaz de garantir ao aluno o papel

de sujeito ativo no processo de produção de sentidos, no qual ele possa negociar

um sentido alternativo ao discurso hegemônico da maioria dos livros didáticos, cujas

interpretações eram predefinidas pelos seus autores.

Após o inventário teórico que nos habilitou a realizar análise crítica de objetos

culturais, bem como o uso pedagógico que se faz deles, caso do texto fílmico,

partimos para análise do corpus selecionado. Direcionamos nosso olhar para os

elementos discursivos presentes nos relatos dos professores a fim de buscar

respostas às nossas perguntas de pesquisa. Com relação à primeira, que diz

respeito à concepção de linguagem adotada pelos professores ao fazerem uso dos

curtas-metragens, percebemos, no geral, por meio dos objetivos e estratégias

apresentados, uma forte inclinação de cunho interacionista. No entanto, a execução

dos planos de aula, na prática, ainda revela, em alguns casos, um certo

monologismo, principalmente quando se trata dos gêneros e da multiplicidade de

sistemas representativos disponíveis atualmente aos professores. Isso pôde ser

constatado na escolha dos textos a serem trabalhados após a exibição dos filmes,

limitando-se, na maioria das vezes, em textos verbais e gêneros do cânone escolar.

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A resposta as duas perguntas de pesquisa seguintes talvez explique essa

aparente incoerência. Buscamos responder, por meio da análise dos relatos, quais

as dificuldades encontradas por eles ao lidarem com os modos midiáticos de

representar, além de identificar as motivações dos professores para fazer uso de

textos audiovisuais em sala de aula. No que se refere às dificuldades, destaca-se a

falta de perícia para lidar com a linguagem audiovisual, tanto em níveis técnicos e

organizacionais; a não articulação com o currículo e o desconhecimento dos códigos

utilizados nos textos fílmicos completam o rol de obstáculos, que prejudicam o uso

adequado de filmes em sala de aula, levando a uma situação de aparente

incoerência, descrita no parágrafo anterior.

No que tange às motivações que levam os docentes a fazer uso do cinema

nas suas aulas de linguagem, as experiências narradas revelaram professores em

busca de novos mecanismos que proporcionassem a eles o uso pedagógico de

elementos socioculturais, dos quais seus alunos fossem consumidores em situações

reais, levando-os, consequentemente, a se sentirem incluídos no processo de

ensino-aprendizado. A escolha, quase óbvia, foi o produto cultural mais consumido

pelos jovens da atualidade: os filmes. Em que pese o pouco conhecimento do

sistema representativo audiovisual utilizado pelo cinema, é de longe a linguagem

com maior alcance e maior poder de persuasão entre os jovens.

Durante a análise dos relatos, além de prover respostas às nossas perguntas

de pesquisa, pudemos efetuar outras constatações com relação ao uso pedagógico

do nosso objeto de pesquisa, dentre elas sua efetiva exequibilidade em todos os

níveis de ensino, bem como seu potencial em desenvolver nos alunos habilidades e

competências comunicativas. Destacamos sua riqueza de conteúdo, cujo cunho

sociocultural proporciona atividades que exigem compreensão, destreza e

interatividade muito próximas das que são vividas pelos estudantes em seu dia a

dia. Isso favorece a formação de sujeitos sociais que sejam capazes de se adaptar

e, consequentemente, se comunicar na atual sociedade, a qual recebe uma

overdose diária de enunciados imagéticos; alguns com carga reflexiva bastante

qualificada, como é caso dos curtas-metragens disponíveis no projeto Curta na

Escola, produções com potencial de elevar o cinema de mera indústria cultural ao

status de arte.

Refletimos também acerca do papel do educador na utilização de um produto

cultural, cujo uso per se não garante o aprendizado. Trata-se de um objeto que não

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possui natureza didática, exigindo do professor habilidade nesse processo, que vai

desde a elaboração dos objetivos, passa pela escolha do material adequado e, por

fim, culmina na aplicação de estratégias que atinjam seu escopo. A análise dos

relatos evidenciou que, para atingir o sucesso nessa empreita, o professor precisa

ter em mente que os curtas somente se constituirão enquanto recursos didáticos

quando empregados de forma significativa, relacionando-os ao conteúdo curricular,

qualquer uso que se faça deles descolados dessa perspectiva não passará de

diversão aos alunos. Assim, reforçamos que, ao se servir de um enunciado

audiovisual como apoio didático, esse deve ser encarado como tal, ou seja, como

um meio de aprendizagem, o qual exigirá do professor organização, método e

avaliação, conforme nos lembra Napolitano (2003, p.16).

Portanto, entendo que aquilo que justifica a presença o texto cinematográfico

nas aulas de Língua Portuguesa é a sua finalidade pedagógica, pois, embora seu

propósito primeiro seja o entretenimento, seu papel no ambiente escolar deve

priorizar a construção do conhecimento. E esse princípio passa pela capacitação

reflexiva dos docentes. Isso significa que os centros de formação de professores

precisam reformular suas estratégias, normalmente centradas na formação tecnicista

e conteudística, buscando uma rota que conduza o professor a refletir sobre suas

práticas pedagógicas, e não apenas repetir fórmulas repassadas pelos cursos de

formação continuada.

Durante o percurso dessa pesquisa, constatei, enquanto professor, que não

basta apenas possuir conhecimento teórico sobre a linguagem cinematográfica, é

preciso adquirir uma consciência reflexiva acerca de nossa prática social com o

cinema, sem a qual todo conhecimento teórico acerca desse objeto será inútil. E isso

se faz necessário não apenas em sala de aula, mas em todas as esferas em que a

linguagem audiovisual se fizer presente. Eis a chave desse nó: a articulação do

conhecimento adquirido, teórico, mas também empiricamente, com as práticas

sociais das quais somos sujeitos, inclusive a profissional. E isso só será possível

ante uma atitude reflexiva de nós, docentes.

Não acredito na capacidade desses cursos de formação oferecidos pelos

Cefapros em despertar essa consciência reflexiva com relação ao uso do cinema em

sala de aula. Afirmo isso com base nas motivações que levam os profissionais de

educação a buscarem tais capacitações, quais sejam o acúmulo de pontos para

garantir emprego, melhores turmas ou certas regalias oferecidas pela direção da

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escola. Ou seja, a formação virou moeda de troca para os docentes conseguirem

alguma vantagem, a qualificação, de fato, vem, não raro, e quando vem, em

segundo plano. Assim sugiro que os cursos direcionados a professores sobre o uso

de cinema em sala de aula não apresentem esse caráter mercadológico, eles não

precisam possuir essa condição de treinamento obrigatório, valendo pontos,

centrados em repetição tecnicista e fórmulas de como usar o filme em sala de aula.

Poderia ser uma ação em forma de oficina baseada num modelo reflexivo,

assim, só participariam da oficina aqueles professores que estivessem dispostos a

conjugar formação teórica e práticas sociais, das quais eles e seus alunos fizessem

parte. Penso que esse tipo de iniciativa surtiria um efeito mais abrangente e mais

significativo na qualificação reflexiva de educadores para utilização das produções

cinematográficas nas suas práticas pedagógicas. Tais professores, muito

provavelmente, estariam aptos a extrair da linguagem cinematográfica todo seu

potencial educativo, tornando-se leitores capazes de realizar uma leitura crítica dos

filmes e, consequentemente, da realidade social. Tal cenário levaria o cinema a um

patamar bem além de mero suporte de ilustração de conteúdo.

Com relação à recepção dos alunos a esse tipo de recurso, os relatos

revelaram que eles aderiram sem reservas às atividades propostas pelos

professores, embora, no meu entendimento, o nível de exploração da linguagem

audiovisual presente nos filmes tenha ficado muito aquém. Assim, cabe ao docente

promover ainda mais o uso didático adequado dessa ferramenta, impulsionando seu

emprego em sala de aula, fazendo dela um meio recorrente de mostrar a realidade e

suas contradições, sempre confrontando-a com outros gêneros discursivos, a fim de

proporcionar ao aluno uma experiência nova enquanto leitor, sem subestimar sua

capacidade de interpretação.

Almejo que este trabalho suscite outras ideias de aplicação pedagógica do

curta-metragem, fonte inesgotável de material sociocultural, e que seu

inquestionável poder interacionista possa ser utilizado cada vez mais como meio de

refletir e refratar a realidade de forma direta e expressiva.

Assim, encerro este trabalho com a convicção de que os curtas-metragens do

projeto são grandes aliados do professor de língua portuguesa na formação de

leitores de textos que se utilizam de múltiplas linguagens. Enfatizo que existem

outras estéticas cinematográficas além daquelas utilizadas por Hollywood, e que o

gosto do público, além de ser motivador para a indústria cinematográfica, pode ser

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motivado por professores engajados em mostrar a seus alunos outras possibilidades

do texto fílmico, além daqueles com os quais estão familiarizados.

Espero que nossas reflexões possam colaborar com aqueles que desejam

fazer uso dessa rica linguagem, em que todo movimento de câmera atende a uma

intenção, que nenhum corte ou close up são aleatórios e que cada plano atende a

uma função discursivo-enunciativa, aguardando o devir para lhe completar o sentido,

sendo apenas uma questão do tempo grande.

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PICOLÉ pintinho e pipa. Direção: Gustavo Melo. 15 min. 2006. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=picole_pintinho_e_pipa. Acesso em: 20 março de 2013. PONZIO, Augusto. Filosofia moral e filosofia da literatura. In: PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008. p. 29-48. RIBEIRO, C.G. O curta-metragem como recurso didático para aula de E/LE. 2013. 146 p. Dissertação (Mestrado em Linguagem) – Universidade de Coimbra, Coimbra. ROJO, Roxane. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola, 2005. p. 184-207. _________ Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: parábola editorial, 2009. SILVA, Cristiane; Gobbi, Beatriz; SIMÃO, Ana. O uso da análise de conteúdo como uma ferramenta para a pesquisa qualitativa: descrição e aplicação do método. Revista de Administração da UFLA. [on-line]. Vol 7. n. 01. Lavras. UFLA, publicado em janeiro de 2005. P. 70-81. Disponível em: http://ageconsearch.umn.edu/bitstream/44035/2/revista_v7_n1_jan-abr_2005_6.pdf. ISSN: 2238-6890. Acesso em: 20/04/2013. SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009. SOUSA, B.J. O cinema na escola: aspectos pedagógicos do texto cinematográfico. 2005. 142 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Católica de Goiás, Goiânia. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992. __________. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. SPINELLI, Egle Müller. Estudos cronotópicos em narrativas audiovisuais. Revista Galáxia, São Paulo, 31 n. 10, p. 31-50, dez. 2005. TEZZA, Cristovão. Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Ed. Rocco; Rio de Janeiro, 2003. VELHA história. Direção: Cláudia Jouvin. 6 min. 2004. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=velha_historia. Acesso em: 20 de julho de 2013. VIDAS secas. Diretor: Nelson Pereira dos Santos. 1963. Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=vidas+secas. Acesso em: 12 de março de 2014.

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XADREZ das cores. Direção: Marco Schiavon. 22 min. 2004. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_xadrez_das_cores. Acesso em: 15 de junho de 2012. XAVIER, Ismael. (2008). O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra.

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ANEXOS

Dados dos Relatos (como aparecem no site)

I. Confronto de poderes

Titulo do Relato: Confronto de poderes

Filme Utilizado: O Lobisomem e o Coronel

Professor-Autor: cleide brasil rodrigues

Escola: Escola Senador Petronio Portela - PE

Data do Relato: 09/11/2007

Objetivos

Conhecer a realidade do povo nordestino e o poder da oligarquia (latifundiário).

Vivenciar a cultura popular com seus versos e rimas no cotidiano do povo

nordestino. Apropriar-se da forma de reescrever textos na forma de literatura de

cordel. Conhecer os diversos tipos de impressão (livros, jornais, revistas,

panfleto,etc.), ressaltando a xilogravura pela expressividade de seus traços na

realidade de expressão.

Sequência de atividades

Preparação do espaço pelos alunos para veiculação do filme. Breve relato dobre o

enredo do filme, com questionamentos sobre confronto de poderes - padrão x

empregado. Exposição sobre diversos tipos de impressão, ressaltando a xilogravura

nos livretos de literatura de cordel. Exibição do filme, orientando-os para observarem

os diversos ambientes e momentos da história e como os personagens são

apresentados como uma folha de papel. Realizar pesquisa no ambiente escolar e

comunidade local sobre a literatura de cordel. Coletar imagens que reporte ao

enredo do filme para elaboração de painel. Exposição do painel no ambiente escolar

com reescritura do texto em literatura de cordel.

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Resultado

Ficaram todos encantados com o enredo da história, as sequência das imagens feito

folhas de papel, as expressões em forma humana real com a mistura de desenhos,

mas que retrataram a forma de tratamento entre rico x pobre, a vivência no mundo

rural, sonhos de uma jovem, lendas e fantasias na canto do violeiro em noite

enluarada, onde faz denúncias, mostra os costumes dentro de uma alegria e

singeleza de um povo com uma cultura rica e variada. Este curta faz um resgate da

oralidade do povo nordestino, valorizando a cultura do Nordeste. Ao realizar

pesquisa sobre a literatura de cordel todos comentaram que sentiram-se como

personagens de cada história em seus contexto da realidade em que vivem numa

comunidade carente e com múltiplos problemas sobre ocupação e poder de seu

próprio espaço enquanto cidadão, sem porém deixar de lado as suas raízes

culturais. Na confecção do painel muitas questões foram discutidas, tais como,

proceder a coleta de imagens que retratassem o enredo da história numa visão de

personagens reais e imaginários - figuras em forma humana e de papel, desenhos,

caricaturas, xilografia, etc. Ao expor o painel no ambiente escolar todos ficaram

fascinados pela forma de produção e confecção em que os alunos demonstraram ter

adquirido conhecimentos e informações sobre a cultura popular do Nordeste.

II. A linguagem (verbal e não-verbal): instrumento de cidadania

Titulo do Relato: A linguagem (verbal e não-verbal): instrumento de cidadania

Filme Utilizado: Velha História

Professor-Autor: Nilia Santana Costa Brito

Escola: Escola Estadual Tancredo de Almeida Neves - MT

Data do Relato: 19/10/2010

Objetivos

Possibilitar que os alunos adquiram sólidos conhecimentos e habilidades, para que

desenvolvam hábitos de leitura e escrita/interpretação e técnicas de trabalho através

do uso das linguagens verbal e não verbal buscando desenvolver sua

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expressividade, construírem sentidos e informações a partir da interação que

estabelece com o mundo. Analisar, comparar e distinguir diferentes linguagens;

Utilizar-se das tecnologias da comunicação e informação.

Sequência de Atividades

Este trabalho é uma das ações do projeto da area de Linguagem que busca

apresentar ao educando a importancia das multiplas linguagens (verbal e não

verbal) 1º Passo: Exibimos o curta Velha Historia sem o áudio para os alunos

assistirem somente observando a seqüência de imagens Após assistirem o video, os

alunos produziram um texto escrito de acordo com a leitura de imagem realizada por

eles durante o filme 2º Passo O grupo assistiu ao filme novamente com audio e para

análise entre a leitura feita por eles e o conto. Nesse momento tiveram contato com

o texto escrito (obra Velha História) Neste passo, oportunizamos o debate e

reflexões sobre as importâncias das diversas possibilidades de leitura do aluno. 3º

Passo De posse das produções dos alunos ao assistirem a seqüência de imagens e

do Conto "Velha História" de Mário Quintana, estes foram incentivados a produzirem

uma análise em que fazem uma relação entre os dois textos (diferenças e

semelhanças entre a idéia do autor e a possibilidade de leitura oferecida pela

seqüência de imagens do curta assistida sem o recurso do áudio. Neste momento

estaremos instigando a escrita de análise comparativa. 4° Passo Utilizamos um

outro texto: A águia que (quase) (outro suporte ) virou galinha de Rubem Alves

apresentado no formato POWER POINT estabelecendo uma relação de

intertextualidade com o conto de Mário Quintana. Utilizamos como recursos de

interpretação, a leitura, debate e análise oral dos textos, instigando a importância da

permanência de cada ser vivo em seu habitat, o respeito e amor mútuo por cada

espécie. 5º Passo Como último passo, solicitamos aos alunos uma produção escrita

com um olhar intertextual para os textos trabalhados e o curta Velha História e que o

mesmo seja desenvolvido utilizando-se do software HagáQuê, um editor de histórias

em quadrinhos com fins pedagógicos.

Resultado

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De posse do plano de trabalho, começamos a colocar em prática nas turmas de 1º

ano e percebemos a interatividade dos alunos, bem como o interesse demonstrado,

já que se tratava de uma aula diferenciada e com uso de instrumentos lúdicos. Os

alunos mostraram-se bastantes criativos ao realizar a leitura da sequencia de

imagens do curta Velha História, o qual de inicio fora apresentado sem o audio, o

que possibilitou a criação imaginária de uma nova história por cada um, segundo

sua leitura e percepção das imagens apresentadas no curta. Conforme relatos de

alguns, após assistirem o video, dessa vez com audio, puderam perceber que essa

prática possibilitou que(essa atividade serviu para que eles) compreendessem as

múltiplas leituras de mundo que é possível através de uma mesma situação. O uso

da intertextualidade realizado entre o filme e o texto de Rubem Alves (apresentado

em power point) intitulado A aguia que (quase) virou galinha, proporcionou a

abertura de outras leituras, a visão dos alunos para compreenderem os diálogos

existentes entres textos e autores, bem como serviu de subsídio para que os alunos

produzissem sua própria história (apropriar-se do dicurso dono de seu próprio

discurso) seguindo a linha de pensamento dos autores, em relação a como o meio

em que se vive influencia em nossa práticas cotidianas. Essa versão final foi

apresentado a comunidade escolar em evento cultural na escola através de histórias

em quadrinhos montadas pelos alunos com uso do software Hagá Quê, que fora

confeccionado um livro por turma. O resultado será postado no blogger oficial da

escola (tancredonevescola.blogspot.com) Professores de linguagem que atuaram:

Laura Neide de Sousa Ferreira Pinheiro, Nilia Santana Costa Brito.

III. Uma verdade desconhecida

Titulo do Relato: Uma verdade desconhecida

Filme Utilizado: Ilha das Flores

Professor-Autor: Antônio Evaldo Jesus Velho

Escola: Escola Estadual Melvin Jones - RS

Data do Relato: 29/10/2007

Objetivos

1º- Observar a riqueza no uso das figuras de linguagem no nosso dia a dia. 2º-

Observar que a nossa língua é rica em qualquer área que atue. 3º- Interpretação de

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textos poéticos e publicitários. 4º- Observar a transitividade e a mudança da

linguagem por área pesquisada. 5º- Produzir um vídeo em CD, através de fotos e

relatos sobre o próprio Bairro, interagindo com o que assistiu em "Ilha das Flores".

Sequencia das atividades

Formou-se 04 grupos e, cada um ficou 02 ou 03 figuras de linguagem para

representar, através delas, o que viram no filme e, relacioná-las com o tema " Meio

Ambiente" e, com a própria articulação da fala no meio em que vive. Montaram 04

espaços e em cada mostrou-se através de vídeo, o meio ambiente do bairro deles, o

lixo, a poluição do mangue. Através de colagens, cartazes ( com poemas, músicas e

figuras ) mostrou-se o presente e o futuro do nosso planeta. As figuras de linguagem

utilizadas foram: Antítese, metonímia, hipérbole, metalinguística, eufemismo,

metáfora, comparação pleonasmo e personificação.

Resultado

O resultado foi positivo e produtivo pois os alunos montaram standers na sala de

aula e as outras turmas foram convidadas a assistir as apresentações. Eles puderam

entender o uso das funções da linguagem no dia a dia e, com isso ajudá-los na

interpretação de textos poéticos e publicitários. O aspecto lúdico foi a produção do

próprio DVD sobre o Bairro deles e, assim ficaram orgulhosos e ao mesmo tempo

chocados pois viram que deveriam e poderiam ajudar mais a modificar o meio em

que vivem através da palavra ou seja, através da Língua Portuguesa. A figura de

linguagem "Personificação" foi a que mais se destacou tanto no filme como na

representação feita, por eles, através de bonecos. O eufemismo se destacou, no

trabalho deles, através de desenhos e montagens com material reciclavel mostrando

que dentro das cidades os prédios, outdoors e algumas árvores disfarçam a sujeira

das cidades. A hipérbole também se destacou com o exagero de lixo produzido pelo

homem e jogado na natureza. Fotos de miseráveis junto a prédios austeros e

imponentes representam perfeitamente o paradoxo (antítese) da sociedade

moderna.

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IV. Minha Língua é minha pátria

Titulo do Relato: Minha Língua é minha pátria

Filme Utilizado: Negócio Fechado

Professor-Autor: Kelba Assumpção Lima

Escola: EE – Centro Educacional Teodoro Sampaio - PA

Data do Relato: 14/09/2012

Objetivos

Diferenciar linguagem oral de linguagem escrita. - Desmistificar a questão do uso da

língua. - Valorizar as diferenças culturais e linguísticas. - Refletir sobre as variações

da língua. - Usar a linguagem com autonomia e sem preconceitos - Perceber

diferenças na fala de pessoas de outras regiões. - Rever e aprofundar os

conhecimentos sobre a variação linguística - Refletir a questão da convenção da

escrita em relação à linguagem falada.

Sequência das atividades

1º MOMENTO: 1.Sensibilização. Apresentar palavras e expressões pertencentes ao

grupo semântico de alguns grupos sociais e regiões. Solicitar que, usando diferentes

falares, encontrem argumentos para persuadir um colega a comprar: Um

computador sem CPU, um bilhete de loteria já vencido e não premiado. 2.Questões

para reflexão sobre variações linguísticas, preconceito linguístico... 2º MOMENTO:

1.Leitura e análise do texto Declaração Mineira de Amor aos Amigos 2.Leitura do

filme " Negócio Fechado". Falar um pouco sobre o filme; Estimular para que os

alunos imaginem o que pode ter acontecido no final da história. As diferentes

hipóteses serão anotadas na lousa. Estabelecer como foco da discussão futura a

forma de falar dos personagens. Assistir ao filme, observando os seguintes

aspectos: O gênero textual explorado pelo autor. Estado brasileiro onde a história se

passa. Análise da fala dos personagens. (É parecida com a nossa?O que há de

diferente? Escrevemos como falamos? Por quê? Fazer as seguintes anotações a

partir da leitura do filme: Frases que caracterizem a língua formal; Frases que

apresentam variações dialetais. 3.Discussão do filme. Eixo central da

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discussão:reconhecimento das variedades linguísticas, respeitando a diversidade.

Aspectos a serem discutidos: 1. O conteúdo do filme (as impressões e opiniões). 2.

O cenário. 3. Perfil dos personagens nome,idade aproximada,grau de escolaridade,

classe social. 4.Linguagem utilizada. 5 Elementos que mais chamaram atenção nas

cenas. Justificar com exemplos. 6.Qual seria o final desta história no contexto

econômico e social atual? Redigir um parágrafo argumentativo a partir do

questionamento abaixo: "Quanto a atitude do fazendeiro: estava correto em não

vender o gado, ainda que por um preço maior, apenas por se sentir desrespeitado

em sua maneira de fazer negócio? " 3º MOMENTO: 1.Apresentação do conteúdo

Variações Linguísticas 4º MOMENTO Avaliação diagnóstica e processual;auto-

avaliação.

Resultado

O filme Negócio Fechado foi utilizado como recurso introdutor do tema a ser

explorado - Variações linguísticas - , a fim de despertar os alunos para o assunto em

questão. Foram incluídas múltiplas linguagens; o estudo de textos e a aula

expositiva que transcorreram após apresentação do vídeo, serviram para referendar

os pontos importantes apresentados no filme, aprofundar o assunto e introduzir

ideias que tenham passado despercebidas. O trabalho foi extremamente gratificante;

o filme é leve e divertido; com apresentação de tipos interessantes que retratam uma

cultura única do interior, trazendo para a sala de aula uma atmosfera diferenciada

das aulas comuns, promovendo os resultados alcançados que superaram as

expectativas. A associação do uso do filme aos conteúdos teóricos e leitura de

textos sobre o tema contribuiu para motivar e fixar o aprendizado, reforçar a

capacidade de argumentação, facilitar a compreensão do tema, abrir espaço para

debates e discussões. Alguns fatores responsáveis pelo sucesso do trabalho foram:

o planejamento detalhado da atividade, direcionando a classe para questionamentos

pertinentes; o uso da linguagem cinematográfica cheia de símbolos e significados a

serem desvendados pelo espectador, misturando envolvimento, enredo, movimento,

desafio e suspense, provocando, desse modo, ampla capacidade de comunicação,

promoção da curiosidade, reflexão e do imenso potencial de aproveitamento no

processo educativo. Percebeu-se um maior interesse por parte do aluno, na

apreensão dos conteúdos específicos; a sua participação durante os debates foi

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constante, servindo como fontes de experiências emocionais e cognitivas, que

permitiram ampliar a visão de mundo e aperfeiçoar as competências, habilidades e

atitudes. Enfim, pudemos constatar que o trabalho com filmes constitui uma

ferramenta valiosíssima para o processo educacional. Foi muito bom!

V. Quem vale mais

Titulo do Relato: Quem vale mais

Filme Utilizado: Xadrez das Cores

Professor-Autor: Marileia Soares dos Santos

Escola: CE – Almirante Tamandaré – RJ

Data do Relato: 30/10/2008

Objetivos

O intuito maior de passar este filme foi a proximidade com o "Dia da Consciência

Negra". Que por lei é obrigatório em todas as escolas estaduais fazer apresentações

teatrais ou quaisquer outras atividades. Fazendo com que toda a comunidade

escolar participe e se conscientize de que a discriminação racial não pode

permanecer no ""seio"" da sociedade. O intuito maior de passar este filme foi a

proximidade com o "Dia da Consciência Negra". Que por lei é obrigatório em todas

as escolas estaduais fazer apresentações teatrais ou quaisquer outras atividades.

Fazendo com que toda a comunidade escolar participe e se conscientize de que a

discriminação racial não pode permanecer no ""seio"" da sociedade. Desenvolver a

capacidade de dialogar, respeitando o seu opositor. Trabalhar a oralidade, através

da exposição de ideias de maneira clara e concisa. Oportunizar o aluno a expor

possíveis casos de discriminação que tenha sofrido ou presenciado. Estimular o

aluno à observação cuidadosa dos diálogos, identificando os possíveis casos de

transgressão da norma culta.

Sequência das Atividades

Leitura da sinopse do filme, na aula anterior. Apresentação do filme com posterior

debate. Depois os alunos produziram resenha, onde tiveram, mais uma vez, a

oportunidade de analisar e questionar valores. Pesquisa de músicas, cujas letras

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revelam certo teor de preconceito. Pesquisa e análise de músicas, cujas letras,

abordam as questões do preconceito racial e social. Organização de esquetes sobre

o tema para apresentação na "Semana da Consciência Negra.

Resultado Foi uma experiência gratificante, pois os alunos conseguiram expor, sem receios,

situações vivenciadas. Neste momento a discussão tomou outro rumo, quando uns

defendiam e outros atacavam a questão do aborto. c) Houve também o grupo dos

acomodados. Aqueles que consideram que os fatos funcionam assim mesmo e não

tem mais nada a fazer. Também aqui gerou-se outro debate muitíssimo importante,

pois o grupo dos que pensam que a vida é uma constante luta e que não devemos

desanimar nunca, tentava influenciar os colegas no sentido de que os mesmos não

deveriam desanimar nem aceitar, passivamente, a imposição da sociedade. Alunos

mais tímidos sentiram-se estimulados a dar seus depoimentos, demonstrando

confiança no grupo. Surgiu a ideia de se montar uma peça abordando o tema do

preconceito racial. Assim foi feito. Pensaram sobre como agir, considerando uma

situação de discriminação. Durante a peça, percebia-se a indignação de alguns

através da expressão fisionômica e/ou através de interjeições. Importante ressaltar

três posições diferenciadas: a) um grupo reagiu com sentimento de raiva, sugerindo,

inclusive, a agressão física da personagem que discriminava a empregada. b) Outro

grupo reagiu de maneira totalmente contrária, defendendo o perdão, pois

considerava que a personagem da senhora já tivera sido punida, quando foi

obrigada a fazer um aborto. Um aluno comprometeu-se em baixar da Internet

músicas com teor do preconceito. Uma vez de posse do CD (com músicas de

Gabriel O Pensador), o mesmo foi apresentado em sala, gerando mais uma

discussão: "Por que o negro, quando se destaca na sociedade opta por casar com

uma mulher branca (de preferência loura)? "Por que tal comportamento não se

verifica com a mulher que ascende socialmente?" A experiência gerou outros

desdobramentos, inclusive estimulando a pesquisa, a observação atenta do

emprego da língua de acordo com o padrão culto e de detalhes que podem justificar

o comportamento das personagens.