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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS DA LINGUAGEM JULIANA DA ROSA PLAUTO E A ESCRAVIDÃO: A FIGURAÇÃO DOS ESCRAVOS PLAUTINOS NA COMÉDIA ROMANA Mariana MG 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE …‡ÃO... · 11 Introdução Por volta do terceiro quartel do século IV a. C., surge na Grécia Antiga a chamada Comédia Nova.Diferentemente

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS: ESTUDOS DA

    LINGUAGEM

    JULIANA DA ROSA

    PLAUTO E A ESCRAVIDO: A FIGURAO DOS ESCRAVOS

    PLAUTINOS NA COMDIA ROMANA

    Mariana MG

    2017

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS: ESTUDOS DA

    LINGUAGEM

    PLAUTO E A ESCRAVIDO: A FIGURAO DOS ESCRAVOS

    PLAUTINOS NA COMDIA ROMANA

    Juliana da Rosa

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Letras: Estudos da

    Linguagem da Universidade Federal de

    Ouro Preto como parte dos requisitos

    para a obteno do ttulo de Mestre em

    Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Agnolon

    Mariana MG

    2017

  • Catalogao: www.sisbin.ufop.br

    R788p Rosa, Juliana da. Plauto e a escravido [manuscrito]: a figurao dos escravos plautinos nacomdia romana / Juliana da Rosa. - 2017. 86f.:

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Agnolon.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deCincias Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Programa de Ps-Graduao em Letras. rea de Concentrao: Estudos da Linguagem.

    1. Plauto, 254a.C.-184a.C. 2. Escravido. 3. Teatro latino. 4. LiteraturaClssica. 5. Escravos. I. Agnolon, Alexandre. II. Universidade Federal deOuro Preto. III. Titulo.

    CDU: 821.124-22(043.

  • Cum uideatur autem res leuis, et quae a scurris, mimis, insipientibus denique saepe moueatur, tamen habet uim

    nescio an imperiosissimam et cui repugnari minime potest.

    Quintiliano

  • DEDICATRIA

    Este trabalho dedicado minha irm, Sabrina da Silva (in memoriam), e a Gustavo

    Sartin, meu querido amigo e incentivador.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, a Alexandre Agnolon, pela dedicada e paciente orientao.

    Agradeo ainda aos membros das bancas de qualificao e de defesa, e ao Programa de

    Ps-Graduao em Letras da UFOP. Por fim, por toda a sorte de apoio que me

    concederam at aqui, registro amor e gratido aos meus familiares e aos meus amigos.

  • RESUMO

    Procuramos, com esta pesquisa, discutir a imagem do escravo romano retratada nas

    obras de Plauto. A partir das comdias do autor e de demais fontes antigas, pretendemos

    ilustrar de que maneira a representao do escravo reflete tambm a hierarquia

    particular da domus romana.

  • ABSTRACT

    This work aims at discussing the imagery of the Roman slave portrayed in Plautine

    comedy. Plauto's comedies and other sources illustrate how the portrayal of the slave

    reflects the unique hierarchy present in the Roman domus.

  • Sumrio

    Introduo ....................................................................................................................... 11

    Captulo I ........................................................................................................................ 15

    Simplex orationis condimentum: as subespcies do riso na Antiguidade e suas

    implicaes na comediografia ........................................................................................ 15

    Breve histria do riso .................................................................................................. 15

    As comdias Antiga, Mdia e Nova ........................................................................... 24

    Excurso sobre a imitatio e contaminatio cmicas ...................................................... 34

    Captulo II ....................................................................................................................... 41

    Dominus et servus: como se relacionavam senhor e escravo na Roma Antiga .............. 41

    Captulo III ..................................................................................................................... 55

    Qui non edistis, saturi fite fabulis ............................................................................... 55

    Consideraes finais ....................................................................................................... 85

    Referncias ..................................................................................................................... 88

  • 11

    Introduo

    Por volta do terceiro quartel do sculo IV a. C., surge na Grcia Antiga a

    chamada Comdia Nova. Diferentemente da Comdia Antiga, sua predecessora, que

    tinha por objetivo discutir questes polticas e tornar alvo de crticas figuras pblicas, a

    Comdia Nova se valia de personagens estereotipados, abordando como tema principal

    as relaes familiares. Entre a Antiga e a Nova, existiu, tambm, algumas peas

    pertencentes a uma fase de transio. A esse conjunto de comdias deu-se o nome de

    Comdia Mdia. sobre os textos da Comdia Nova que nos debruaremos.

    Apesar de se valer do modelo grego, contudo, a comdia romana construiu o que

    se pode chamar de sua verso particular da comdia grega. Assim, embora seja

    evidentemente uma cpia da comdia grega, o teatro de Roma possui elementos

    prprios em sua composio, criados pelos seus maiores expoentes: Plauto e Terncio.

    Titus Maccius Plautus, autor oriundo da Sarsina, na mbria, delimitou seus

    escritos aos textos dramticos. Ettore Paratore, em Histria da literatura Latina, (1983),

    afirma que mais de 130 peas foram atribudas ao autor, tamanha era sua fama, e que

    por um sculo e meio manteve-se a discusso sobre quais seriam as obras autnticas, e

    quais as esprias. Somente Varro Reatino, depois de intensa pesquisa, ps fim ao

    debate e tornou-se uma sumidade no campo da filologia latina. De acordo com Paratore,

    Varro dividiu as 130 comdias atribudas a Plauto em trs grupos distintos: 90 dessas

    eram certamente ilegtimas. Das 40 restantes, 19 de autoria duvidosa e, portanto,

    nomeadas de pseudo-varronianas e, por fim, 21 seguramente plautinas e, por isso,

    chamadas de varronianas. Paratore destaca que de to contundente essa classificao, de

    fato somente 21 comdias continuaram a ser traduzidas e lidas ao longo do tempo.

    Em vista disso, e sabendo do destaque que os escravos romanos possuem nos

    enredos teatrais, pretendemos abordar a representao do escravo na comdia,

    analisando sua performance nas peas de Plauto. Organizamos, assim, este trabalho a

    fim de discutir a figura do escravo na comdia e os problemas que sua presena implica

    para o gnero. Para tanto, sistematizamos a pesquisa da seguinte maneira: no primeiro

    captulo, apresentaremos uma breve discusso acerca do riso na Antiguidade; em

    seguida, desenvolveremos algumas reflexes sobre os trs perodos nos quais

    convencionou-se dividir a comdia clssica; aps esse panorama, abordaremos, no

  • 12

    segundo captulo, o escravo e a forma como a escravido era pensada no mundo

    romano; por fim, no terceiro e ltimo captulo, traremos a anlise das peas de Plauto a

    fim de estabelecer uma articulao com as discusses a respeito do papel do escravo na

    Roma Antiga.

    A respeito do riso, destacaremos, primeiramente, Aristteles com a Potica e a

    Retrica. na Potica que reconhecemos o primeiro esforo de situar a comdia frente

    aos demais gneros. A anatomia da comdia exposta por Aristteles e delimita o que

    cabe, ou no, ao texto cmico. Na Retrica, por sua vez, Aristteles aponta a utilidade

    do riso como fora que move a audincia.

    J em Roma, Ccero (106 43 a.C.) discute, em seu dilogo Sobre o Orador, o

    riso como uma ferramenta em prol do discurso. Procuraremos desenvolver, tambm,

    uma reflexo apoiada nos preceitos de Quintiliano (35 95 d.C.), que por sua vez traz

    esclarecimentos de algumas categorias de anlise do risvel. Embora sejam autores

    extemporneos a Plauto, acreditamos que contribuiro para a discusso que

    desenvolveremos na pesquisa, uma vez que abordam o riso teoricamente e o tratam

    como estratgias de discurso que, assim como Aristteles j preconizava, movia a

    audincia dos espetculos teatrais.

    Erich Segal, na obra Roman Laughter: The Comedy of Plautus (1987), faz um

    estudo do riso na comdia plautina. Procuramos nos pautar, ainda, de um estudo que

    parece em muito dialogar com a obra de Segal, que Literatura Clssica Latina

    (2013), de Jos Ernesto de Vargas e Thais Fernandes. Enquanto Segal parece nos

    apontar que uma comdia, deslocada de seu contexto histrico ou de um esprito de

    comunidade em comum, no atinge seu objetivo que claramente o riso, Vargas e

    Fernandes indicam semelhanas entre nosso senso de humor e o dos romanos, embora

    se trate de sociedades to distantes temporal e geograficamente.

    Por fim, exploraremos conceitos importantes trazidos por Zlia de Almeida

    Cardoso em seu livro A literatura latina (2011), que, como uma das autoridades

    brasileiras nos estudos da literatura latina, tambm no poderia deixar de abordar o

    risvel. Para a autora, h importantes marcaes textuais no texto original, em Latim,

    que naturalmente provocavam o riso do espectador. A autora expe questes como o

    fato de que nos textos do comedigrafo romano, muitas personagens eram construdas

    exclusivamente com a finalidade do riso.

  • 13

    Ilustra ainda outro recurso cmico utilizado por Plauto, a maneira como o autor

    elabora os prlogos de suas comdias. Em O cartagins, o autor direciona um discurso

    quase que didtico aos espectadores, no perdendo, como defende Cardoso (2011),

    nenhuma oportunidade de provocar o riso no pblico:

    Estou com vontade de imitar o Aquiles de Aristarco:

    Vou usar o mesmo comeo daquela tragdia:

    Faam silncio, calem-se e prestem ateno:

    quem ordena que vocs ouam o rei de Histri...onice.

    Sentem-se em seus bancos com boa disposio de esprito:

    tanto os que no comeram como os que esto de barriga cheia.

    Os que comeram, agiram com a cabea;

    Os que no comeram, que se fartem, agora, com a comdia.

    Quem tinha que comer, puxa vida!

    foi burrice ter vindo sem comer.

    Vamos, anunciador, mande o pessoal prestar ateno.

    Faz horas que estou esperando que voc faa a sua parte.

    Use sua voz; ela que lhe d meios de vida e comida.

    Se voc no falar, morrer de fome, calado.

    (Pl. Poen. 1-35, apud Cardoso, 2011: 31-32).

    Em outras palavras, podemos dizer que a obra de Plauto se trata de uma

    literatura composta de uma maneira um tanto peculiar, ainda que fruto de uma tradio,

    a fim de provocar o riso.

    No que tange discusso sobre a escravido, nosso aporte terico pautado,

    basicamente, nos estudos de Joly, sobretudo em A escravido na Roma antiga: poltica,

    economia e cultura (2005) e Tcito e a metfora da escravido: um estudo de cultura

    poltica romana (2004). Dessas obras, pretendemos extrair as reflexes do autor acerca

    da natureza da escravido e de como essa condio, na sociedade romana, modificava as

    relaes entre os indivduos.

    Em relao anlise das peas, contedo do terceiro e ltimo captulo,

    buscamos articular nossas investigaes, feita ao longo da pesquisa, s fontes, i.e., s

    comdias de Plauto. Identificamos, dessa maneira, uma sequncia de trechos que vo ao

    encontro do que propomos nas discusses dos captulos anteriores. Em certa passagem

    de O truculento, a personagem Astfio, um claro modelo de escravo plautino eficaz,

    orienta as outras servas de sua ama que esto dentro de casa. A escrava, assim, no s

    demonstra astcia, pois sabe como agir na situao da qual fala, como tambm orienta

    as outras escravas sobre como proceder nesses casos. A relao entre Astfio e sua ama,

    Fronsio, de certa forma, refora a estrutura social romana, na qual o escravo tem

  • 14

    participao efetiva na domus e, em algumas circunstncias, pode opinar e atuar em

    parceria com o amo.

    Finalmente, nas consideraes finais deste trabalho, procuramos sintetizar as

    discusses construdas a respeito do riso, das comdias antigas e da escravido em

    Roma. Ademais, as consideraes finais tambm apresentaro um breve resumo da

    anlise das peas.

  • 15

    Captulo I

    Simplex orationis condimentum: as subespcies do riso na Antiguidade e

    suas implicaes na comediografia

    Breve histria do riso

    O riso tem um papel social. Antes mesmo que os rituais em honra a Dionsio

    acabassem, com o passar do tempo, transformando-se nas peas encenadas nas

    competies em Atenas, Homero j fazia meno ao riso na Ilada e na Odisseia.

    Segundo Georges Minois, em Histria do riso e do escrnio (2003), o riso era

    parte constituinte do imaginrio blico. Para o autor

    O riso malevolente, ele afirma o triunfo sobre o inimigo: como o riso

    de Ulisses, que acaba de saquear o campo de Reso (ele franqueou o

    fosso para os cavalos a golpes macios, rindo), ou o riso dos aqueus,

    que caoaram do cadver de Heitor. O riso humilha e provoca. uma

    arma duvidosa que se encontra em todas as situaes de conflito: Tu

    no deixars os jnios estabelecidos na Europa rirem de ns, diz

    Mardonios a Xerxes para incit-lo guerra, segundo Herdoto. Um

    pouco mais longe, ele nos mostra o mesmo Xerxes estourando de rir

    quando lhe anunciado que o punho de Esparciates, que defende

    Termpilas, est ocupado em fazer exerccios ginsticos e barbear-se.

    Da mesma forma, Cambase zomba dos deuses gregos no santurio de

    Mnfis. (p. 43).

    contraintuitivo articular, de imediato, o riso com a guerra. Em primeira

    instncia, afora as interaes do mbito particular, natural que pensemos o lugar

    oficial do riso como exclusivo dos teatros. to surpreendente, por isso, encontr-lo

    alojado em situaes de confronto, como nos indica Minois. Na Ilada, em meio

    grandeza dos acontecimentos trazidos na narrativa de Homero, h o conhecido exemplo

    dos guerreiros aqueus rindo de Trsites na assembleia, aps Ulisses t-lo atingido com

    um cetro em 2.270-271: Mas sentou-se, amedrontado; e cheio de dores, com expresso

    desesperada, limpou as lgrimas. Mas os outros, embora acabrunhados, riam-se

  • 16

    aprazivelmente.1 Noutra passagem, aps a morte de Heitor (22.373-374), o riso dos

    aqueus/aquivos apenas sugerido e passa quase despercebido ao leitor: Ah, no h

    dvida de que Heitor est mais mole agora do que quando deitou fogo s naus com

    chama ardente!2 Na Odisseia, por seu turno, h o riso incontido e em sequncia dos

    pretendentes de Penlope, j prximo do fim do poema (20.345-346): Assim falou

    Telmaco. Entre os pretendentes, Pallas Atena instigou um riso inextinguvel e fez com

    que os seus juzos se perdessem.3

    Essa manifestao humana, quase sempre espontnea, tambm retratada, ao

    longo da histria, como ameaadora e provocativa. Na guerra, o riso intimidador. Na

    poltica, por sua vez, instrumento retrico atenuador das tenses intrnsecas aos

    dilogos.

    o que Ccero expe:

    Observou ento Crasso: Ctulo estava brincando, sobretudo porque

    discursa de tal forma, que d a impresso de dever ser alimentado com

    ambrosia. Mas ouamos-te, Csar, a fim de que vejam o desfecho da

    fala de Antnio. E Antnio respondeu: Resta-me muito pouco.

    Contudo, cansado j pelo esforo e pela trilha de minha discusso,

    descansarei durante a fala de Csar como se se tratasse de uma

    oportunssima hospedaria. 4

    [traduo de Adriano Scatolin]

    No excerto acima, vemos Crasso discorrer sobre uma discusso precedente entre

    Antnio e Csar. Antnio afirma que durante o turno de fala de Csar, sua fala serve de

    oportuna hospedaria. A metfora da hospedaria indica que o humor pode ser utilizado

    como uma ferramenta de oratria. Nesse caso, a hospedaria simboliza o alvio da tenso

    1

    Na traduo de Frederico Loureno. No original, l-se: , /

    . / :

    2 Na traduo de Frederico Loureno (2013). No original, l-se: ,

    / .

    3 No original, l-se: : / ,

    .

    4 Cic. de Orat. 2, 234: Tum ille: Iocabatur, inquit, Catulus, praesertim cum ita dicat ipse, ut ambrosia

    alendus esse videatur. Verum te, Caesar, audiamus, ut ad Antonii reliqua redeamus. Et Antonius:

    Perpauca quidem mihi restant, inquit; sed tamen, defessus iam labore atque itinere disputationis meae,

    requiescam in Caesaris sermone quasi in aliquo peropportuno deversorio. LVIII. Atqui, inquit Iulius, non

    nimis liberale hospitium meum dices: nam te in viam, simul ac perpaulum gustaris, extrudam et eiciam.

  • 17

    prpria do dilogo. , pois, o momento de renovao e captao da ateno da

    audincia.

    Ccero, portanto, trata, nesse fragmento, de ilustrar a importncia do riso. Este,

    em primeira instncia, constitui-se como importante instrumento daquele que discursa.

    Quando refinado, o humor auxilia o orador na construo de sua legitimao, i.e., de sua

    auctoritas. o que tambm afirma Aristteles em sua Retrica (2005):

    Relativamente ao ridculo, uma vez que parece ter alguma utilidade nos

    debates (Grgias afirmava, com razo, que necessrio desfazer a

    seriedade dos oponentes com ironia e a ironia com seriedade) j foi

    tratado na Potica quantas so as suas espcies, das quais umas so

    apropriadas ao carter do homem livre, outras no, de modo que o

    orador poder tirar delas a que lhe for mais apropriada. A ironia mais

    adequada a um homem livre que o escrnio. O que emprega ironia f-lo

    para se rir dele prprio, o trocista, para escrnio dos outros5.

    O filsofo grego, nesse trecho de sua obra, reconhece a utilidade do humor no

    discurso e corrobora a ideia de que se trata de instrumento retrico. O riso elevado, a

    ironia, como esclarece Aristteles, est reservado ao homem livre e este pode fazer uso

    dessa estratgia enquanto fora que move a audincia. Na Potica (1449a-b), por sua

    vez, h o primeiro esforo de situar os textos cmicos frente aos demais gneros. A

    anatomia da comdia exposta por Aristteles e o autor delimita o que cabe, ou no, a

    esse gnero:

    A comdia, , como dissemos, imitao de homens inferiores; no,

    todavia, quanto a toda espcie de vcios, mas s quanto quela parte

    do torpe que o ridculo. O ridculo apenas certo defeito, torpeza

    andina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a mscara

    cmica, que, sendo feia e disforme, no tem [expresso de] dor. Se as

    transformaes da tragdia e seus autores nos so conhecidas, as da

    comdia, pelo contrario, esto ocultas, pois que delas se no cuidou

    desde o inicio: s passado muito tempo o arconte concedeu o cro da

    comdia, que outrora era constitudo por voluntrios. E tambm s

    depois que teve a comdia alguma forma, que achamos memria dos

    5 Arist. Rh. 1419a-b:

    , ,

    , ,

    , ' , . '

    ,

    .

  • 18

    que se dizem autores dela. No se sabe, portanto, quem introduziu

    mscaras, prlogo, nmero de atores e outras coisas semelhantes. A

    composio de argumentos [prtica] oriunda da Siclia e os

    primeiros poetas cmicos teriam sido Epicarmo e Frmide; dos

    Atenienses, foi Crates o primeiro que, abandonada a poesia jmbica,

    inventou dilogos e argumentos de carter universal.6

    importante mencionar que, nessa passagem, o estagirita faz aluso poesia

    imbica. O iambo, do grego , caracteriza-se, do ponto de vista estrutural, por uma

    espcie de mtrica particular. Associado a essa estrutura, est o contedo. A poesia

    imbica carregava um tom vituperioso. Em outras palavras, as pessoas que declamavam

    esses poemas dirigiam todo o tipo de injria umas s outras.

    O iambo ainda congrega ambas as manifestaes do risvel discutidas por

    Aristteles. Para o filsofo, entre as possibilidades cmicas, distingue-se o riso

    vituperioso, , do riso ridculo, . Este definido como toda a ao

    cmica que seja andina, no deletria. No toa que o ridculo associado

    diretamente imagem da mscara da comdia, que feia e disforme, ou seja,

    risvel, mas no tem expresso de dor, i.e. no se trata de uma projeo propriamente

    invectiva.

    Um exemplo de como o iambo representa essa interseco entre os dois tipos de

    riso arrolados por Aristteles o poema Margites, atribudo a Homero. O poema, do

    qual restou atualmente apenas fragmentos, traz elementos jocosos no que se refere ao

    seu contedo. Embora de tom provocativo, Margites no carregava o vituprio, mas,

    sim, o ridculo. Escrito no p imbico, o poema teria sido aquele que esboou os

    primeiros traos do que entendemos como a Comdia, sobretudo a Comdia Nova.

    A respeito do poema atribudo a Homero e de sua caracterstica, em certo

    sentido, precursora, Aristteles desenvolveu as seguintes reflexes:

    6 Arist. Poet. 1449a:

    , ,

    . ,

    .

    ,

    , .

    .

    , .

    ,

    .

  • 19

    A poesia, assim, dividiu-se conforme seus caracteres particulares: de

    um lado, os mais venerveis imitaram as belas aes e os feitos de

    homens da mesma categoria; de outro, os mais ignbeis [imitaram] as

    aes torpes, compondo estes invectivas, assim como aqueles, hinos e

    encmios. Certamente, no somos capazes de mencionar poema deste

    tipo de ningum de antes de Homero embora seja verossmil que

    muitos tenham havido ; no entanto, comeando a partir de Homero,

    h o Margites e outros poemas de mesma espcie. Neles, porque

    melhor se lhes ajustava, veio o metro imbico a razo por que ainda

    hoje chamam-no imbico que, nesse metro, as pessoas se

    injuriavam umas s outras. Assim, entre os homens dos velhos

    tempos, uns tornaram-se poetas de verso heroico, outros de iambos.

    Da mesma maneira que Homero era poeta excelente no que tange aos

    assuntos elevados, pois era nico no s pelo que era, mas tambm

    [porque] comps imitaes dramticas, assim tambm traou antes de

    todos os esquemas da Comdia, pois que dramatizou no o vituprio,

    mas o ridculo: ora, o Margites , portanto, um anlogo em relao

    Comdia, exatamente como a Ilada e a Odisseia o so para a

    Tragdia7. [tradues de Alexandre Agnolon]

    Logo, se, de acordo com Aristteles, na tragdia e na epopeia que moram os

    deuses e homens nobres, na comdia que so representados os homens inferiores, por

    contraponto. De fato, assim que Plauto representa a ao humana em suas comdias:

    so os personagens-tipo o escravo, o velho, a meretriz, o soldado fanfaro, o jovem

    apaixonado que tornam seus textos cmicos. Todos esses tipos formam uma

    compilao de homens sem virtudes, diferentes de heris como Heitor ou Eneias, por

    exemplo. Estes, personificaes da ideia de honra heroica, modelo e espelho das classes

    elevadas, pouco lembram o velho tomado pela ganncia, o escravo dotado de

    subterfgios, ou a meretriz empenhada em despojar seus amantes.

    Esse riso andino presente nas comdias de Plauto, por conseguinte, est

    diretamente associado ao riso sem expresso de dor, que trata dos temas mais

    particulares e domsticos, em contraponto temtica grandiosa das epopeias. O riso da

    comdia nova, a qual representa os homens inferiores, no se concentra sequer em

    figuras pblicas. No tem, assim, por objetivo, fazer denncias, reclamar grandes

    7Arist. Poet. 1448b:

    , , ,

    . , ,

    , . 2

    , .

    .

    ( ),

    , ,

    , .

  • 20

    acontecimentos. O ridculo, retratado em Plauto, , dessarte, o riso da vida privada, das

    questes menores e mais corriqueiras.

    Quintiliano tambm aborda a temtica, ainda que se aproxime muito do que

    Ccero j discutia. Muitos autores afirmam que o tratado de Quintiliano a respeito do

    humor, De risu, seja apenas uma extenso do que sustentava Ccero. Percebemos esses

    pontos de encontro entre De oratore e De risu, a ttulo de exemplificao, no excerto

    abaixo, extrado da obra de Quintiliano:

    Muitas vezes, ele irrompe involuntariamente e se torna visvel no

    apenas pela expresso do rosto e da voz, como tambm sacode todo o

    corpo com sua fora. Por outro lado, como eu disse, o riso transforma as

    situaes mais pesadas, como, por exemplo, ao abrandar com muita

    frequncia o dio e a ira [...] Portanto, a palavra picante ser semelhante

    quilo que no insosso, como que um simples tempero do discurso,

    que sentido por uma percepo latente tal qual acontece com o paladar

    e que estimula e afasta o discurso do tdio. De fato, so coisas picantes:

    assim como o sal espalhado na comida com um pouco de abundncia

    (mas sem exagero) d a ela algo de seu prprio gosto, tambm o dito

    picante possui no discurso algo que cria em ns a sede de ouvi-lo8

    [traduo de Ivan Neves Marques Junior].

    O riso, portanto, pensado por Quintiliano como algo irresistvel e involuntrio,

    que toma todo o corpo ao se apresentar; e embora a prpria manifestao do risvel seja,

    como j mencionava Aristteles, uma ao menos virtuosa que aquela imitada no

    drama, ela semelhante a qualquer coisa que no seja insossa. O riso , pois, nas

    palavras de Quintiliano, o tempero do discurso.

    A propriedade de conferir sabor, digamos assim, aos dilogos vai muito ao

    encontro da metfora da hospedaria criada por Ccero. Se , pois, com o riso que se

    acrescenta o tempero aos debates para afast-los do tdio, por conta desse

    diferencial que o interlocutor e a audincia encontram o descanso de longos debates

    travados.

    8Quint. Inst. l6. 9. 19: Erumpit etiam invitis saepe, nec vultus modo ac vocis exprimit confessionem, sed

    totum corpus vi sua concutit. Rerum autem saepe, ut dixi, maximarum momenta vertit, ut cum odium

    iramque frequentissime frangat. [...]Salsum igitur erit quod non erit insulsum, velut quoddam simplex

    orationis condimentum, quod sentitur latente iudicio velut palato, excitatque et a taedio defendit

    orationem. Sales enim, ut ille in cibis paulo liberalius adspersus, si tamen non sit inmodicus, adfert

    aliquid propriae voluptatis, ita hi quoque in dicendo habent quiddam quod nobis faciat audiendi sitim.

  • 21

    Embora no tenha sido a pauta maior de tericos da Antiguidade e muitas fontes

    no terem resistido s aes do tempo, tratados como os de Aristteles, Ccero e

    Quintiliano revelam que o riso foi parte relevante das reflexes do mundo greco-

    romano. Mais tarde, tambm ele seria tema da teologia medieval e, atualmente,

    permanece foco de diversos trabalhos. Erich Segal, por exemplo, afirma no prefcio de

    seu livro Roman Laughter: The Comedy of Plautus (1987), que

    O riso uma afirmao de valores compartilhados. , como Bergson

    constantemente nos lembra em seu ensaio, um gesto social. Comdia

    sempre precisa de um contexto, de uma comunidade, ou pelo menos

    de um esprito comum. Alm disso, o fato de que a comdia antiga era

    apresentada para um pblico o qual se constitua de um inteiro corpo

    cvico sugere que o riso, s vezes poderia at ser um gesto nacional9

    [traduo nossa].

    O que o autor parece apontar que uma comdia, deslocada de seu contexto

    histrico ou de um esprito de comunidade em comum, no atinge seu objetivo que

    claramente o riso. Desse modo, poderamos ser imediatamente levados a enquadrar as

    comdias gregas e romanas nessa categoria, tendo em foco a distncia temporal que nos

    separa dessas obras antigas. Se considerarmos, no obstante, a herana e memria

    cultural legada por gregos e romanos nossa sociedade moderna, talvez possamos

    acreditar que temos, de certa forma, esse esprito em comum com os antigos,

    mencionado por Segal. Sobre essa inegvel herana dos romanos, Jos Ernesto de

    Vargas e Thais Fernandes em Literatura Clssica Latina (2013), nos lembram que:

    Uma forte marca da permanncia romana no Ocidente est, sem

    sombra de dvida, na chamada cultura latina, presente nos povos

    assim reconhecidos: italianos, portugueses, espanhis, franceses e

    outros. Manifesta, sobretudo, na emotividade e na to cantada em

    verso e prosa sensualidade, Alguns se referem ao machismo, mas

    quanto a isso, perguntamos: diz respeito apenas aos latinos? Manifesta

    tambm no humor, no riso, no sarcasmo. Os romanos, por exemplo,

    costumavam designar as pessoas pelos seus atributos fsicos, surgindo

    assim alguns nomes comuns at os nossos dias, bonitos, sonoros, mas

    que em sua origem no passavam de pilhria. O nome do famoso

    escritor Ccero, por exemplo, passou a existir por conta de um

    9 No original: Laughter is an affirmation of shared values. It is, as Bergson constantly reminds us in his

    essay, a social gesture. Comedy always needs a context, a community, or at least a communal spirit.

    Moreover, the fact that ancient comedy was presented to an audience which constituted an entire citizenry

    suggests that laughter might at times even be a national gesture.

  • 22

    antepassado seu que tinha uma berruga no nariz no formato de um

    gro-de-bico ( o que significa a palavra cicer em latim), foi o que

    bastou para que toda a famlia recebesse tal herana. Segundo consta,

    o imperador Cludio, o que sucedeu Calgula, era manco. Claudius,

    em latim, significa coxo, de onde o nosso verbo claudicar. Tibrio,

    da mesma forma, no escapou do humor romano, o povo o chamava

    pejorativamente de Bibrio, uma aluso ntida ao ato de beber. Isso

    no parece coisa de brasileiro? (p. 35).

    Outro ponto a se considerar que, a despeito da distncia temporal, as comdias

    de autores como Menandro e Plauto ainda nos fazem rir; assim como dipo Rei, de

    Sfocles, ainda nos comove. Bremmer e Roodenburg (2000), em um estudo a respeito

    da histria do humor, traduzem muito bem esse contexto no excerto abaixo. Nele,

    abordam no apenas a escassez de informaes referentes origem dos manuscritos

    Filgelos o que nos coloca, novamente, diante das dificuldades em torno das

    pesquisas em relao s fontes antigas como tambm nos demonstram o quo atual

    o humor dos gregos e romanos:

    Uma srie de manuscritos, nenhum deles posterior ao sculo X,

    chamada Filgelos, ou Amante do Riso, contm uma coleo de 265

    piadas. Felizmente seu autor e propsito so desconhecidos e apenas

    uma piada se refere a um evento que pode ser datado: os jogos

    comemorativos do milnio de Roma, em 21 de abril de 248 d.C. A

    coleo deve ter sido reunida no sculo III, mas a natureza tardia de

    seu vocabulrio sugere claramente que a edio final s teria sido feita

    no incio da em bizantina, provavelmente antes do sculo VI. Uma fonte

    foi, com certeza, a coleo de Plutarco de apophthegmata, que aqui

    aparece regularmente em forma diluda de piada. [...] Das 265 piadas,

    110 so relativas ao scholastikos, literalmente algum que d palestras

    ou assiste a elas (scholas). o estudante, o advogado e tambm o

    professor pedantes em suma, na feliz traduo de Barry Baldwin, o

    intelectualide. As piadas podem sugerir uma certa graa, como no

    nmero 55: Um jovem e gracioso scholastikos vendera seus livros

    quando lhe faltou dinheiro. Ele ento escreve a seu pai: Me d os

    parabns, pai, j estou ganhando dinheiro com os meus estudos! (pp.

    35, 36).

    Fora de seu contexto, a piada do jovem que ganha dinheiro vendendo os livros

    que tinham por finalidade lhe servir de instruo poderia ser facilmente confundida

    como uma anedota atual. Os elementos da histria e seus pressupostos (o jovem que

    estuda s custas do pai, o qual, naturalmente, espera o retorno financeiro do filho) so

  • 23

    reconhecidos pelo leitor atual e provocam o efeito de humor pelo surpreendente

    desfecho e pelo carter universal de todos esses componentes.

    Zlia de Almeida Cardoso (2011), enquanto uma das veteranas especialistas nos

    estudos da literatura latina no Brasil, tambm aborda o risvel e nos aponta que, na

    comdia latina, especificamente em Plauto, era frequente o uso de expresses burlescas

    e ultrajantes, que naturalmente provocavam o riso do espectador. A autora ainda

    observa que, nos textos do comedigrafo romano, muitas personagens eram elaboradas

    exclusivamente com a finalidade de provocar o humor na plateia: da seu carter

    frequentemente caricatural (p. 32-33).

    Ainda sobre o texto plautino, a autora afirma:

    A linguagem de Plauto extremamente trabalhada como recurso

    cmico em si. Manejando a lngua, o escritor se vale de todas as

    oportunidades para demonstrar sua capacidade de comedigrafo hbil

    em fazer rir. Os nomes das personagens so muitas vezes estranhos e

    engraados: Filoplemo, Engsilo, Estalagmo (Os prisioneiros);

    Terapontgono (O gorgulho); Agorstocles, Anterstila, Antemnides,

    Colibisco, Sincerasto (O cartagins); Arttrago, Pirgopolinice (O

    soldado fanfarro). Neologismos e helenismos ponteiam o texto,

    provocando efeitos engraados. Em O cartagins, Plauto insere

    numerosas frases em idioma pnico, provavelmente desconhecido,

    mas excelente como recurso cmico, graas presena de

    combinaes fnicas inusitadas (p. 33).

    importante destacar ainda o uso de elementos variados em prol do riso no

    processo compositivo dos comedigrafos antigos, como o recurso de atribuir aos

    personagens nomes incomuns. Ao discorrer sobre Plauto, Cardoso (2011) aborda essa

    ferramenta em favor da comdia:

    Plauto se vale exclusivamente da espcie dramtica denominada fabula-

    palliata, a pea cmica ou tragicmica de assunto grego. As histrias se

    passam em cidades gregas se que, como ainda afirma Paul Veyne,

    um mundo imaginrio se situa realmente em algum lugar. As

    personagens tm nomes gregos estranhos nomes, por vezes, por isso

    mesmo carregados de alto teor humorstico (p. 253)

  • 24

    Outro fator importante, para o qual Cardoso nos chama a ateno, o processo

    de traduo. Para ela,

    Grande parte desses recursos (cmicos) se perde na traduo.

    Dificilmente podem ser mantidas, em outro idioma, as aliteraes

    colidentes, as repeties cheias de comicidade, os trocadilhos

    espirituosos, maliciosos, muitas vezes, responsveis por expressivo

    nmero de confuses (p. 33).

    Dessa forma, difcil contrariar as evidncias de que uma pea teatral, situada

    em seu contexto histrico, em sua poca, muito mais rica em elementos cmicos e

    permite ao pblico uma gama muito maior de possibilidades risveis. preciso

    mencionar tambm o fato de que esses textos, em sua maioria, foram construdos para

    serem encenados e, mais uma vez, parte do humor perdida ao no se poder recuperar o

    efeito visual. Assim, muito possivelmente, um romano da poca de Plauto, que assistiu

    s peas do comedigrafo, tinha muito mais a desfrutar que ns.

    As comdias Antiga, Mdia e Nova

    Ao sistematizar o volume de comdias composto na Antiguidade, tericos adotaram

    uma quase unnime diviso para o perodo. A comdia, portanto, surge em trs

    momentos distintos: primeiramente, surge o que se chama de Comdia Antiga, ou

    tica; em seguida, um perodo controverso, tendo em vista que nem todos os estudiosos

    o reconhecem como tal: a Comdia Mdia; por fim, os textos de Menandro, Plauto e

    Terncio, por exemplo, compem o que se denomina por Comdia Nova.

    Uma das dificuldades para compreendermos esse perodo provm do fato de que

    parte das peas da Comdia Antiga se perdeu com o tempo. Como representantes desse

    perodo, conhecemos Aristfanes, Crates, Cratino, Euplide e Magnes. Dos quatro

    ltimos, todavia, no nos restou qualquer fragmento. De Aristfanes, no obstante, das

    quarenta peas que lhe foram atribudas, restou-nos onze, como sustenta Stace10

    . Entre

    as mais conhecidas obras do ateniense esto As vespas, As aves, As nuvens e Lisstrata

    (tambm conhecida como A greve do sexo), entre outras mais. O autor, que em 375

    10

    Of Old Comedy (486-404), a purely Athenian comedy, we have only the eleven plays of Aristophanes;

    of Cratinus and Eupolis nothing remains (Stace, 1968, p. 64).

  • 25

    a.C.11

    faleceu em Atenas (mesma cidade em que nasceu, por volta de 445 a. C.), deixou

    antes de sua morte, contudo, um legado que no apenas abarcou o que hoje

    compreendemos por Comdia Antiga. H quem afirme que o grego tambm possui uma

    pea representante da posterior Comdia Mdia, a respeito da qual trataremos pouco

    mais afrente. Alguns autores defendem que a pea Pluto (ou Um deus chamado

    dinheiro) no mais pode ser considerada parte da Comdia Antiga, por seu enredo

    diferenciado.

    A mais proeminente caracterstica dos textos desse primeiro perodo a temtica

    direcionada a figuras pblicas. Figuras polticas, de maneira geral, e at mesmo

    tragedigrafos como em As rs, pea na qual o deus Dionsio desce at o Inferno

    para resgatar Eurpedes, porque, de acordo com o deus, a Grcia no possua mais

    qualquer escritor de tragdias que estivesse sua altura eram personagens desses

    textos cmicos. A lgica dessas peas era, de certa maneira, efetivar algum tipo de

    denncia, algum tipo de queixa que fosse publicamente compartilhada.

    Uma pea teatral, geralmente encenada ao pblico e concorrente em concursos

    de comdia, que exibe um deus que precisa descer ao submundo para resgatar o maior

    tragedigrafo de sua poca, deixa bem clara a sua crtica: as peas que, aps a morte de

    Eurpedes, eram encenadas, j no apresentavam as qualidades que o tragedigrafo

    conseguia magistralmente agregar aos seus textos. Trata-se, ainda que em tom de

    humor, de uma cida crtica, de uma mensagem ignominiosa, direcionada aos

    tragedigrafos contemporneos. Esse era o cenrio das comdias apresentado aos

    cidados da polis. Essa era a Comdia Antiga.

    Ainda para exemplificar toda a acidez da Comdia Antiga, Berthold (2011)

    afirma que a comdia As nuvens, de Aristfanes era, na verdade, famosa, ou

    famigerada, por seus ferozes ataques a Scrates e que o comedigrafo grego via a si

    mesmo como o defensor dos deuses [...] e como o acusador das tendncias subversivas e

    demaggicas na poltica e na filosofia de Atenas (p. 121).

    H quem afirme tambm que o desenvolvimento da comdia no mundo grego

    acompanhou de certa forma o desenvolvimento da polis. Para compreendermos esse

    ponto, convm relembrar as palavras de Vernant (2002), quando explica que:

    11

    In Aristfanes. Pluto ou Um deus chamado dinheiro. So Paulo: Ed.34, 2007, p. 9.

  • 26

    O que implica o sistema da polis primeiramente uma extraordinria

    preeminncia da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

    Torna-se o instrumento poltico por excelncia, a chave de toda

    autoridade no Estado, o meio de comando e de domnio sobre outrem.

    Esse poder da palavra de que os gregos faro uma divindade: Peith,

    a fora de persuaso lembra a eficcia das palavras e das frmulas

    em certos rituais religiosos, ou o valor atribudo aos ditos do rei

    quando pronuncia soberanamente a themis; [...] A palavra no mais o

    termo ritual, a frmula justa, mas o debate contraditrio, a discusso, a

    argumentao.(p. 54).

    No trecho acima, Vernant chama a ateno para uma importante caracterstica do

    sistema grego. Para ele, um dos grandes valores da polis est no destaque e na

    importncia que ela confere palavra, fora persuasiva, traduzida, inclusive, em

    divindade. preciso considerar, desse modo, que uma civilizao to voltada fora da

    palavra, como era a grega, concederia, por conseguinte, ateno s crticas retratadas

    por seus comedigrafos.

    Outro fator importante relacionado polis o carter pblico dado s questes

    sociais. Vernant expe:

    Uma segunda caracterstica da polis o cunho de plena publicidade

    dada s manifestaes mais importantes da vida social. Pode-se mesmo

    dizer que a polis existe apenas na medida em que se distinguiu um

    domnio pblico, nos dois sentidos diferentes, mas solidrios do termo:

    um setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados; prticas

    abertas, estabelecidas em pleno dia, opondo-se a processos secretos.

    Essa exigncia de publicidade leva a apreender progressivamente em

    proveito do grupo e a colocar sob o olhar de todos o conjunto das

    condutas, dos processos, dos conhecimentos que constituam na origem

    o privilgio exclusivo dos basileus, ou dos gene detentores da arch. (p.

    55).

    Colocar, assim, sob o olhar de todos as decises referentes polis trazia proveito

    populao, que por consequncia no estava mais sujeita arbitrariedade das decises

    de seus representantes. Enquanto no passado os cidados eram refns das ordens reais

    levando-se em considerao que os reis representavam supostamente a vontade

    divina , no sistema da polis, por seu turno, as decises comuns a todos eram pblicas

    e passveis de discusso.

  • 27

    A polis grega, assim, sustentando-se no poder da palavra, expandiu-se

    politicamente por quase um sculo. A liberdade que a argumentao sobre as decises

    forneceu ao povo grego permitiu o progresso do mundo helnico. Tal progresso, como

    discorre Romilly (1998), coincide com o desenvolvimento da tragdia grega:

    A tragdia grega, com sua safra de obras-primas, durou ao todo oitenta

    anos. Em uma relao que no pode ser causal, esses oitenta anos

    correspondem exatamente ao perodo da expanso poltica de Atenas.

    [...] A cada ano, o teatro v novas peas, apresentadas em festivais, na

    forma de concurso, por squilo, por Sfocles, por Eurpedes. [...]

    Diversas obras de Sfocles, e quase todas as de Eurpedes, foram

    representadas depois da morte de Pricles, no decurso da Guerra do

    Peloponeso, na qual Atenas, prisioneira de um imprio que j no

    conseguia manter, sucumbe finalmente sob os golpes de Esparta.

    Depois de 27 anos de guerra, Atenas perde, em 404, todo o poder

    conquistado aps as guerras mdicas. Naquela data, haviam passado

    trs anos da morte de Eurpedes, e dois da de Sfocles. Foram

    encenadas ainda algumas peas deles que no haviam sido acabadas ou

    representadas. E isso foi tudo. [...] A partir de 405, Aristfanes, em As

    rs, no via outro meio de preservar o gnero trgico, a no ser

    procurando nos infernos um dos poetas desaparecidos. [...] O pice da

    tragdia terminou ao mesmo tempo em que acabava a grandeza de

    Atenas (p. 8).

    Podemos relacionar, dessa maneira, no apenas o gnero trgico ao desenvolvimento da

    polis, mas tambm a prpria tragdia comdia. Se assumirmos o fato de que a tragdia

    tinha como elemento constitutivo personagens que equivaliam a figuras pblicas, como

    reis basta rememorarmos dipo, Laio, Creonte e que todo o seu enredo, mesmo

    quando afetava uma famlia em particular, como o caso da de Antgona, trazia

    consequncias para a polis, podemos dizer tambm que esse mesmo teor pblico das

    aes est presente nas primeiras comdias gregas.

    dipo, ao desposar sua me e matar seu pai, no interfere unicamente no destino

    de seu ncleo familiar. A morte dos irmos de Antgona, consequncia muito bem

    amarrada tragdia pessoal de dipo, no resulta apenas em desgraa para a famlia,

    mas altera a vida da cidade, que perde uma sequncia de governantes. Os reis mudam,

    em dipo Rei. As leis so questionadas e desafiadas, em Antgona. E tudo isso est

    sujeito ao julgamento e s ponderaes dos cidados. A catstrofe da famlia , em

    sntese, pblica.

  • 28

    A Comdia Antiga movimenta elementos pblicos em seus enredos. O riso

    provocativo desse gnero est intimamente atrelado liberdade de expresso,

    publicidade dos fatos. o que declara Stace (1968):

    Of Old Comedy (486-404)) a purely Athenian comedy, we have only

    the eleven plays of Aristophanes; of Cratinus and Eupolis nothing

    remains. Mythological travesty, political satire, fantasy, and vulgar

    jesting - all this is in evidence. The Chorus is important, and peculiar to

    Old Comedy are the agon and parabasis. The satyric atmosphere of Old

    Comedy depended on freedom of speech. (p. 64)

    Nesse sentido, novamente, reforamos a relao entre a Comdia Antiga e a

    Tragdia. Outras caractersticas, no entanto, so frequentemente atribudas aos textos

    cmicos dessa poca. o que expe Konstan (1995), quando explica que

    Old Comedy, as it is represented by the eleven extant plays of

    Aristophanes, was given to burlesque and topical humor. The plots are

    fanciful: on the eve of a truce in the great war, Trygaeus, the protagonist

    of Peace, conceives and executes the plan of flying to heaven on a giant

    dung beetle in order to free the goddess Peace, who is being kept in

    chains, and bring her back to earth; in Birds, a character in search of a

    more harmonious country than Athens sets himself up as ruler over a

    city of birds. Even where realism is not violated so extravagantly, the

    comic heroes fasten upon and carry out wildly implausible schemes,

    like establishing a private treaty with the enemy (Acharnians), or

    bringing the Peloponnesian War to an end by means of a sex strike

    engineered by women on both sides (Lysistiata). Bold actions; earthy

    humor; immediate social or political relevance; personal attacks on

    contemporary figures that break the dramatic illusion; choruses in the

    guise of animals such as wasps, birds, and frogs, or dressed as clouds

    all mark. Old Comedy as an exuberant and satirical genre, rich in

    fantasy and spunk. (p. 3-4).

    Um gnero exuberante e satrico, como o autor define as peas da poca.

    Ainda articulando aquilo que caracteriza a Tragdia e a Comdia Antiga, percebemos,

    mais uma vez, o quo pblica a temtica de Lisistrata, por exemplo. A pea tem como

    pano de fundo a guerra do Peloponeso. Aborda, ainda, as consequncias da articulao

    das mulheres desses soldados. Todos esses temas so transformados e esse destaque

    matria pblica da vida em sociedade diminui proporo que a Comdia Antiga se

    desenvolve.

  • 29

    Grimal (2002) pensa, para alm do teor pblico das tramas, as funes desse

    gnero:

    Parece pois que desde meados do sculo V, as funes da

    comdia antiga tica eram mltiplas: destinada a provocar o riso,

    como nos kmoi, que tinha parcialmente absorvido, mostrava ao

    mesmo tempo, supostamente, com maior ou menor fidelidade (e

    parcialidade), as opinies e as aspiraes do povo das aldeias;

    recuperava tambm as antigas mascaradas semianimalescas, do

    agrado dos camponeses. E a estrutura que adquirira permitia aos

    poetas cmicos preencherem todas estas funes (p. 51).

    Ainda que estabeleamos essas diferenas e separemos peas por perodos

    distintos, importante destacar o que j advertia Hunter (2010), quando explica que a

    tradio cmica, bem como ocorre com todas as manifestaes artsticas, no acontece

    de maneira a ter seu incio e fim to distintos. Trata-se, evidentemente, de uma

    sistematizao de percepes:

    A histria da comdia antiga a histria de uma tradio continuamente

    em evoluo, e no de uma srie de perodos distintos. Tanto

    Aristfanes quanto Menandro competiam como poetas cmicos nos

    grandes festivais atenienses em honra a Dionsio, e os estudiosos

    antigos ligaram ambos ao mesmo gnero dramtico, enquanto

    reconheciam ao mesmo tempo as mudanas que ocorreram ao longo do

    tempo. (p. 8)

    A Comdia Antiga talvez tenha, assim, agregado a si novos elementos que a

    transformaram e as peas desse perodo passaram, desse modo, a fazer parte do que

    alguns denominam Comdia Mdia. Temos neste estgio, na histria da comdia

    clssica, um impasse. No unnime o reconhecimento desse perodo situado entre as

    comdias Antiga e Nova.

    A pea Pluto, de Aristfanes, considerada por alguns tericos como o nico

    exemplar da Comdia Mdia. O autor, que em 375 a. C. faleceu em Atenas (mesma

    cidade em que nasceu, por volta de 445 a. C.), deixou antes de sua morte, contudo, esse

    legado. Alguns autores defendem que a pea Pluto (ou Um deus chamado dinheiro) no

  • 30

    mais pode ser considerada parte da Comdia Antiga, por seu enredo diferenciado. Um

    considervel nmero de estudiosos a trata, portanto, como uma pea pertencente a esse

    perodo de transio entre a Comdia Antiga e a Nova, sendo supostamente o nico

    exemplar da Comdia Mdia. Um deles Grimal (2002), quando afirma:

    Quaisquer que sejam as intenes do poeta, o que nos interessa aqui

    que a estrutura desta comdia [Pluto], mesmo conservando vestgios

    da que encontramos na comdia antiga (assim o agn, o debate entre

    Crmilo e a Pobreza), apresenta uma unidade de intriga muito maior.

    Por esta razo, Pluto considerada como o primeiro exemplo do que

    se chamou a comdia mdia. Nesta pea, por outro lado, esto

    esboados caracteres nitidamente personalizados do que na comdia

    antiga; assim, a velha mulher apaixonada por um jovem, e este que

    aceita, a troco de dinheiro, o amor mulher, pela qual no sente nada,

    so j, ainda que em esboo, situaes e perfis que encontraremos na

    comdia nova (p. 59-60).

    Mais adiante, ainda discorrendo a respeito da Comdia Mdia, o autor informa

    que

    Parece que a comdia mdia concedeu grande espao a tipos sociais,

    que reaparecero na comdia nova, como o soldado fanfaro, o

    cozinheiro, o parasita, o filsofo ridculo, mas que, na comdia mdia,

    tm um papel mais importante do que aquele que depois tero (p. 60).

    Por esses motivos, autores como Stace no consideram Pluto uma obra

    representativa desse perodo, preferindo defender que apenas alguns poucos fragmentos

    do perodo remanesceram, sem incluir nesse conjunto o texto de Aristfanes.12

    Berthold (2011) tambm parece defender a ideia de que Aristfanes no faz

    parte da Comdia Mdia. Para ela, o fim da Comdia Antiga definido com a morte de

    Aristfanes:

    Com a morte de Aristfanes, a era de ouro da comdia poltica antiga

    chegou ao fim. Os prprios historiadores da literatura na Antiguidade

    j haviam percebido quo grande era o declive entre as comdias de

    Aristfanes e as de seus sucessores, e traaram uma ntida linha

    divisria, atribuindo tudo o que veio depois de Aristfanes, at o

    12

    After Old Comedy, Middle Comedy (404-336), which was a period of transition. No play has

    survived, but fragments suggest that social comedy and mythological travesty were prominent themes

    (Stace, 1968, p. 64).

  • 31

    reinado de Alexandre, o Grande, a uma nova categoria a Comdia

    Mdia (mese) (p. 124).

    Apesar de no muito sabermos sobre esse perodo de mudanas no cenrio da

    comdia clssica, parece claro o incio do uso de temas familiares e a cada vez menos

    frequente temtica poltica e filosfica, antes to caras Comdia Antiga. Sabendo que

    o tema familiar o condutor de todas as peas da Comdia Nova, a Comdia Mdia, ou

    o fim da Comdia Antiga, como preferem alguns autores, s pode ser compreendida,

    portanto, como um perodo de transio. Assim, medida que surge um novo

    direcionamento dos padres de enredo adotado pelos autores gregos, nasce o que se

    chama de Comdia Mdia. nesse perodo, ento, que os comedigrafos tiram de cena

    a vida poltica e do lugar cotidiana no que tange temtica das peas. Segundo

    Berthold:

    a comdia agora retirava-se das alturas da stira poltica para o menos

    arriscado campo da vida cotidiana. Em vez de deuses, generais,

    filsofos e de chefes de governo, ela satirizava pequenos funcionrios

    gabolas, cidados bem de vida, peixeiros, cortess famosas e

    alcoviteiros (p. 124).

    A autora ainda menciona que houve cerca de quarenta representantes desse

    perodo. O mais conhecido teria sido Antfanes, com mais de duzentas peas em seu

    nome. Outros autores como Anaxandrides de Rodes, ubulo, Alxis e Timocles

    tambm so citados por Berthold. Para ela, tudo o que sabemos desse perodo est

    retratado ou em pequenos fragmentos, ou em pinturas em vasos. Logicamente, o pouco

    material remanescente faz dessa parte da Literatura Clssica uma fonte de muitas

    conjecturas.

    Do perodo que se segue, todavia, possumos bem mais que fragmentos e

    pinturas. basicamente em funo de um novo nome da comdia, Menandro, que

    conhecemos a Comdia Nova Grega. Quanto s peas de Menandro, Halliwell (2008,

    404-415) destaca a alta frequncia dos momentos de tristeza e choro nos enredos o

    que haveria servido para quebrar a expectativa de riso da audincia e adicionar certa

    dose de indeterminao experincia teatral. Para ele, alm disso, os enredos criados

    por Menandro conduziam a audincia identificao com as personagens de ambos os

  • 32

    lados de um dado conflito, ao mesmo tempo em que essas personagens agiam em

    funo de seu entendimento apenas parcial da situao, o que acentuava para a

    audincia a ironia das situaes retratadas.

    No que diz respeito aos elementos mais propriamente referentes estrutura,

    forma, nas comdias novas gregas que passamos a perceber, por exemplo, a extino

    dos coros. Por conta das novidades dos enredos, at mesmo a composio dos palcos foi

    alterada. De acordo com Berthold:

    O coro, que j na Comdia Mdia havia sido posto de lado,

    desapareceu completamente nas obras de Menandro. Como os atores

    no entravam mais vindos da orquestra, a forma do palco foi alterada.

    As cenas mais importantes eram agora apresentadas no logeion, uma

    plataforma diante da skene de dois andares. A comdia de caracteres,

    com as intrigas e nuanas individuais de dilogo, exigia a atuao

    conjunta mais concentrada dos atores, bem como um contato mais

    estreito entre o palco e a plateia (p. 129).

    Se os coros estavam extintos na Comdia Nova, os prlogos, por sua vez,

    ganhariam destaque. Nesse momento da pea, os prologuistas direcionam seus discursos

    diretamente plateia. Diria Hunter que, no entanto,

    Menandro pelo menos parece ter dados aos seus prologuistas alguma

    desculpa para fazerem narrativas longas e no dramticas. Na Samia,

    Msquion explica que, estando em lazer, ele tem bastante tempo para

    fazer um longo relato (vv. 19-20), e na Cistellaria de Plauto (=

    Synaristosai de Menandro) a velha bomia introduz sua narrativa

    notando que o excesso de vinho a deixou tagarela (vv. 120-2). Essas

    desculpas no so o resultado de nenhum constrangimento que o

    poeta sente em relao conveno do prlogo, mas sim um aparato

    para o humor sofisticado (p. 44-45).

    Hunter ainda aborda o uso do prlogo na Comdia Nova Romana, e explica:

    Na Comdia Romana encontramos, em prlogos expressos por

    divindades ou por personagens da pea, discursos introduzidos por um

    prologus (locutor-do-prlogo), que no tem outro papel alm deste

    na pea e que no finge ser um deus, tampouco qualquer personagem

    humano especfico. [...] O prologus romano preenche, ento, de certa

  • 33

    forma, a funo de anunciador de festival que ocorre ao ar livre (p.

    45).

    Percebemos, assim, novas estruturas e novos usos de estruturas anteriores. Trata-

    se, mais uma vez, da literatura sendo reinventada a partir da assimilao de novos

    elementos. Assim como a Comdia Mdia introduziu novos temas ao expectador,

    tambm inovou a Comdia Nova com sua nova frmula para estruturar as peas. Inovou

    Plauto em relao s comdias de Menandro. A Comdia Nova Romana, tendo a Grega

    como modelo, igualmente se reinventou e acrescentou elementos prprios da cultura

    romana ao seu teatro.

    A Comdia Nova, em oposio Comdia Antiga, trata dos temas restritos ao

    mundo particular. Se nas peas de Aristfanes a temtica envolvia assuntos pblicos e

    figuras conhecidas podiam servir de personagens, no ltimo estgio da comdia

    clssica, tanto na Grcia quanto em Roma, os homens que eram imitados eram

    annimos. Berthold (2011) corrobora tal ponto ao afirmar que

    A comdia agora retirava-se das alturas da stira poltica para o menos

    arriscado campo da vida cotidiana. Em vez de deuses, generais,

    filsofos e de chefes de governo, ela satirizava pequenos funcionrios

    gabolas, cidados bem de vida, peixeiros, cortess famosas e

    alcoviteiros (p. 124).

    E se por um lado a comdia deixa de tratar da vida pblica, poltica, ela passa, por

    outro, a abordar temas universais, como o amor, a traio, o desejo de enriquecimento e

    todas as vivncias que experimentamos no cotidiano. Hunter (2010) a esse respeito

    afirma que:

    A relativa raridade de referncias a personalidades e poltica

    contempornea na Comdia Nova provavelmente chocar um leitor que

    venha direto de Aristfanes. Os poetas no escreviam mais em favor

    dos interesses restritos dos atenienses, mas para o mundo helnico como

    um todo, e isso se refletia na natureza universal dos problemas com os

    quais se confrontavam as personagens (p. 13).

    Alm disso, as peas passam, diferentemente do que ocorria na Comdia Antiga, a

    retratar um humor com constante conotao sexual. Como j no representam mais

  • 34

    grandes poetas, ou trazem divindades que participam do enredo muito mais por

    luxria13

    do que por causas maiores, como foi o caso de Dionsio, em As rs, as

    comdias desse perodo retratam o velho, a cortes e, com bastante destaque, o escravo.

    Articula-se a essa ideia a afirmao de Hunter (2010), quando o autor declara que:

    A vulgaridade ocasional acaba aparecendo, mas normalmente nas bocas

    de personagens de baixa classe social. improvvel que na vida real

    esse tipo de linguagem fosse restrita dessa forma, mas a Comdia Nova

    pode ser vista como pertencente ao final de um longo processo de

    aumento de inibio em todas as artes pblicas. J nas peas de

    Aristfanes do incio do sculo IV no encontramos humor sexual

    extensivo nas cenas em que se poderia esper-lo (p. 12)

    A respeito da estrutura das peas, Gassner (2010) demonstra como o teatro de

    Menandro passou a ter suas prprias convenes. De acordo com o estudioso, a maioria

    das cenas

    [...] desenrola-se na rua e o espectador informado de toda ao

    passada no interior da casa por meio de longos solilquios, geralmente

    dirigidos ao pblico. Utilizavam-se diversas desculpas para trazer as

    personagens para fora da casa. Entretanto, esses estratagemas no

    esmaecem a ao mas, na verdade, tornam-na mais vivaz e as ruas de

    Menandro transformam-se em palco de agitadas complicaes (p. 107)

    Excurso sobre a imitatio e contaminatio cmicas

    Manifestou-se, de modo muito semelhante, a Comdia Nova em Roma. Isso

    porque grande parte da literatura latina era produzida tendo como parmetro a grega.

    West & Woodman (1979), no prefcio de Criative Imitation and Latin Literature,

    definem que Imitatio is neither plagiarism nor a flaw in the constitution of Latin

    literature. It is a dynamic law of its existence (p. IX). A imitao de seus

    predecessores, destarte, no configurava para os antigos, como configura atualmente, a

    13 Ver Am., de Pl.

  • 35

    ideia de plgio. A Antiguidade mostra-se contraria ideia que fazemos hoje rano

    ainda do Romantismo de associar a imitao e os processos mimticos de

    composio potica cpia e ao plgio, porquanto a perpetuao de uma memria, de

    uma tradio literria, registrada e reconhecida em composies posteriores, sempre foi

    estabelecida como virtude dos grandes poetas.

    Dessa maneira, no apenas era aceitvel trazer para as composies latinas o

    esprito dos textos helnicos, como tambm era prtica incentivada por autores de

    renome, como, por exemplo, Horcio. West & Woodman (1979) demonstram, por meio

    das palavras do poeta, que:

    Horace attacks his own imitatores as 'a pack of slaves', seruum pecus: he is not here condemning them because they copied him, which might of course be flattering, but because they did so in superficial and trivial respects. (p.2)

    Isso parece evidenciar, portanto, que, para Horcio, a imitao em si de seus trabalhos

    no era o que o molestava, mas o fato de fazerem-na de modo superficial, sem que o

    esprito da obra imitada fosse restaurado. Est exposta, a partir da, a tnue diferena

    entre imitatio e aemulatio, uma vez que o processo da aemulatio, , para os autores,

    algo semelhante quilo que postula (Gaillard, 1997, p. 18):

    Entendamos por ele (pelo carter imitativo) que a originalidade

    somente pode significar um enriquecimento da tradio e que uma

    obra literria nunca poder surgir como tranqilo bloco cado aqui

    sob um desastre obscuro ou por um golpe de sorte. No h dvida

    que, para o poeta antigo, seria um desastre no ter na memria os versos de um mestre a quem admirar e imitar, a um autor, fundador de

    um gnero ou virtuoso em habilidade e talento. necessrio, com

    efeito, advertir que a antiguidade desconfia da inovao absoluta;

    em Roma, a expresso res novare, fazer algo novo, significa

    revolucionar no sentido negativo do termo e implica em transtornos

    que so por vezes temerrios e perigosos.

    A originalidade plautina, portanto, s poderia enriquecer a literatura latina se por ela

    estivesse atravessada uma tradio. E a tradio que Plauto emulava era,

  • 36

    principalmente, a Comdia Nova grega, e em especial, Menandro. West & Woodman

    (1979, p.2) explanam que:

    Comedy also was very 'imitative'; scenes and characters were freely borrowed and improved, and it is easy to see that Plautus and Terence played the game on much the same terms, language apart, as their

    Greek predecessors.

    Essa interface entre autores gregos e romanos denota, pois, a permanncia de

    uma memria do riso helnico, presente em Plauto. Denota ainda mais que uma

    memria do riso: a memria e a circulao de modelos cmicos da tradio helenstica,

    bem como a aplicao, por parte dos comedigrafos latinos Plauto principalmente

    , de estratgias compositivas j teorizadas entre os helensticos, como pode deixar

    entrever os prlogos que, alm de apresentarem os argumentos da comdia, no deixam

    de ser metadiscursivos. Assim, chegamos a um ponto importante: a existncia de um

    efervescente helenismo romano, muito consciente, inclusive, da influncia que

    recebe do mundo helenizado.

    A esse respeito, em sua obra Os limites da helenizao (1991), Momigliano

    expe que:

    Os intelectuais gregos e romanos tiveram que aprender que em Roma

    a helenizao subentendia respeito pela ordem dominante. A maioria

    dos escritores se sujeitou e foi recompensada. Lvio Andrnico, ex-

    escravo grego, alcanou respeitabilidade e influncia; foi-lhe

    permitido ter o seu prprio collegium, um privilgio cobiado

    (Festo p. 333 M. = 446L.). nio foi levado da Sardenha para Roma por Cato: uma informao (Corn. Nep. Cato 1.4) que no me parece

    ter sido invalidada pelo professor E. Badian (Ennius, Fondation Hardt

    En- tretiens XVII, p. 155-6, 1972). Ccero descreveu nio como

    amigo dos Cipies (Cie. Pr Arch. 9.22) e dos Flvios Nobiliores

    (Tusc. Disp. 1.3; Brutus 79). Terncio desfrutava do convvio de

    Cipio Emiliano e C. Llio. Pelos prlogos de Heautontimorumenos e

    Adelphoe, ficamos sabendo que os seus rivais tentaram desacredit-lo

    por isso. Refm em Roma desde 167, Polbio entrou naturalmente

    para o mesmo crculo em condies de clientela semelhantes. Vista

    como um todo, a assimilao da cultura e da lngua gregas foi fcil e

    rpida. Os filsofos e retricos gregos se tornaram parte da forma de

    vida romana.[...] O grego se tornou praticamente compulsrio para a

    sustentao do imprio romano. (pp. 24-25)

  • 37

    Do ponto de vista histrico, portanto, esses elementos ajudam a demonstrar que

    as relaes culturais ou a delimitao das fronteiras culturais no vasto territrio do

    mediterrneo antigo eram muito mais complexas do que se costuma pensar.

    A imitatio, to reivindicada e difundida pelos poetas romanos, caracteriza-se, ao

    nosso ver, como a representao da memria cultural grega, ou, em outras palavras,

    como a preservao daquilo que no deveria ser esquecido, no necessariamente por ser

    grego, mas, principalmente, por ser uma literatura que, de to exuberante, deveria servir

    de modelo s geraes seguintes. Assim se coloca Horcio, em Ars Poetica, ao referir-

    se ao gregos. O autor orienta seus pares: Vos exemplaria Graeca / Nocturna versate

    manu, versate diurna14

    . Em outras palavras, Horcio recomendava aos poetas latinos

    que compulsassem os seus predecessores helnicos; que, dia e noite, folheassem,

    examinassem aqueles que lhes serviam de modelo. A imitao , desse modo, entendida

    como necessrio procedimento para a consolidao da poesia latina.

    Cabe lembrar, contudo, que no apenas a literatura grega era alvo de emulao.

    O prprio universo literrio romano fazia parte do painel de opes das obras dignas de

    ser imitadas. O carter dualstico da formao da literatura latina era exatamente esse:

    os poetas romanos, ainda que emulassem os gregos, no prescindiam de sua tradio

    autctone. Imitar os gregos no significava para os romanos o abandono de suas

    referncias imediatas, ou seja, propriamente latinas. A tentativa era, portanto, a de

    recorrer, de um lado, poesia e produo artstica helenstica, que era em mbito mais

    global, modo, pois, de inserir-se numa literatura de mbito mais hemisfrico, digamos

    assim; e, de outro, prestar contas sua prpria produo. Isso importa, pois o mos

    maiorum romano pressupunha o culto dos antepassados. Em termos poticos, isso

    significava o culto dos prprios autores (autoridades, portanto) romanos notveis. F-lo

    Virglio: se a Eneida a realizao, talvez mais notvel da poesia latina15

    , somente o

    no s porque imita quer a tradio homrica, quer a tradio helenstica, mas porque

    14

    Hor. Ars. 269-70: Versai vs os modelos gregos com uma mo noturna, com a outra, diurna.

    Traduo nossa.

    15

    Assim defende T. S. Eliot, em seu ensaio O que um clssico? (1991), quando expe que Nenhuma

    lngua moderna poderia aspirar universalidade do latim, ainda que viesse a ser falada por milhes de

    pessoas a mais do que aquelas que falaram o latim e mesmo que se tornasse o veculo de comunicao

    para os povos de todas as lnguas e culturas. Nenhuma lngua moderna pode pretender produzir um

    clssico no sentido em que considero Virglio um clssico. O nosso clssico, o clssico de toda a Europa,

    Virglio. (p. 98)

  • 38

    incorpora os contributos de nio, Nvio e Varro, que, antes de Virglio, eram os

    maiores expoentes das letras latinas.

    No apenas o poema pico latino perpetuava uma tradio autctone. No mbito

    da comdia, o ponto de destaque deste trabalho, podemos observar a mesma recorrncia

    tradio romana. Terncio, ainda que mencione Menandro ao compor o prlogo de

    sua pea Eunuchus, faz meno a Plauto16

    e Nvio:

    A pea que apresentaremos hoje, O eunuco, de Menandro, depois que os edis

    a compraram, ele prprio conseguiu uma permisso para examin-la. Uma

    vez que o magistrado estivesse presente, iniciou-se a ao. Assim, ele

    vocifera que um ladro, e no um poeta, comps a pea, e que, no entanto,

    nenhuma palavra ele escreveu. Gritou que h um Clax, de Nvio, e uma

    antiga pea de Plauto: e da teriam tirado as personagens do parasita e do

    soldado. Se isso um delito, o delito a falta de cuidado do poeta; no que

    desejasse apropriar-se indevidamente. Vocs podero julgar agora se assim

    foi. Existe um Clax de Menandro: nessa pea, h um parasita e um soldado

    fanfaro. Ele [o poeta] no nega que tenha transladado essas personagens da

    pea grega para a sua, O eunuco. Nega veementemente, no entanto, que essas

    peas tenham sido traduzidas antes para o latim17

    . Traduo nossa.

    evidente, enfim, que um legado, seja helnico ou romano, perpassava a poesia latina.

    Dirigir-se a essa tradio, imitar esses autores, parece-nos, trata-se tambm de um

    sofisticado recurso compositivo dos poetas que se inserem no quadro dos grandes

    nomes que Roma nos legou.

    importante notar que, para alm desse recurso de que se utilizava Plauto e

    demais poetas romanos, a contaminatio tambm fazia parte do processo compositivo do

    autor. Contaminare, em latim, conforme Saraiva (2006), consiste em misturar,

    16

    Cf. (Silva, 2009, p. 23): o prlogo de Eunuchus tem como tema central o plgio. O poeta defende-se da acusao de ter roubado o argumento de um Colax j apresentado por Nvio e de uma velha pea posta em cena por Plauto ao transpor para Eunuchus duas personagens provenientes do Kolax de Menandro: o soldado fanfaro e o parasito. Apesar de no remeter-se explicitamente cena do tribunal, como faz em Heautontimorumenos, o tom judicial bem evidente no prlogo.

    17

    Ter. Eu. vv 19-34:

    quam nunc acturi sumus

    Menandri Eunuchum, postquam aediles emerunt, perfecit sibi ut inspiciundi esset

    copia. magistratu' quom ibi adesset occeptast agi. exclamat furem, non poetam

    fabulam

    dedisse et nil dedisse verborum tamen: Colacem esse Naevi, et Plauti veterem

    fabulam; parasiti personam inde ablatam et militis.

    si id est peccatum, peccatum inprudentiast poetae, non quo furtum facere

    studuerit. id ita esse vos iam iudicare poteritis.

    Colax Menandri est: in east parasitus Colax et miles gloriosus: s se non negat personas transtulisse in

    Eunuchum suam ex Graeca; sed eas fabulas factas prius Latinas scisse sese id vero pernegat.

  • 39

    mesclar. [...] ajunctar, reunir vrios contos em um s (p. 297). A contaminatio ,

    destarte, o mecanismo por meio do qual o poeta agrupa elementos distintos, no

    necessariamente oriundos de um mesmo ponto, que se projetam em um arranjo ltimo e

    hbrido. Esse produto final, ainda que composto de elementos pr-configurados e no

    constitudos exatamente com a finalidade que passam a assumir enquanto componentes

    do arranjo hbrido , inovador; , especificamente em Plauto, um novo texto.

    Outra evidncia desse procedimento, enquanto processo compositivo na

    Comdia Nova romana, est no resgate de elementos do teatro grego, como discorre

    Gonalves (2009):

    nesse ambiente [de popularidade da literatura helnica] que Tito

    Mcio Plauto (c.254- 184 a.C.), Pblio Terncio Afer (195/185-159

    a.C.) e outros autores dos quais sabemos principalmente por menes

    de outros autores antigos e fragmentos esparsos, como Ceclio e Lcio

    Lanvino, apresentaram as comdias que vieram a constituir o gnero

    dramtico chamado Comdia Nova romana ou, ainda, comoedia

    palliata, comdia apresentada com o plio (vestimenta tipicamente

    grega). A comdia paliata, como o prprio nome diz, mantinha os

    trajes gregos, mas, alm disso, os personagens mantinham nomes

    gregos (s vezes os mesmos presentes nos modelos, s vezes nomes

    gregos reinventados pelos autores latinos), e tanto o ambiente grego,

    os costumes gregos, como tende-se em muitos casos a crer os

    enredos espelhavam-se nos modelos gregos, geralmente mencionados

    nos prlogos das peas reescritas. Assim, sabemos, em diversos casos,

    de qual autor e de qual comdia grega do perodo da Comdia Nova

    grega o autor romano fez uso para estabelecer o seu texto. No entanto,

    de todos esses modelos, apenas um, o Ds Exapton (Aquele que

    engana duas vezes) de Menandro, original das Bquides, de Plauto,

    resistiu ao tempo, preservado em fragmentos encontrados

    recentemente. (pp. 117-118).

    Plauto, portanto, no apenas compunha seus prlogos maneira de Aristfanes

    retomando o recurso de interpelar a plateia, possivelmente estratgia cmica que

    substitui as partes destinadas ao coro, em comparao com a tragdia tica, como o faz

    em Amphitruo , no somente imita as personagens-tipo de Menandro como o

    caso do velho misantropo Cnmon, da pea Dyskolos, cujos modos agrestes foram

    perfeitamente transmitidos a Euclio, o velho plautino de Aulularia , como ainda

    recupera elementos, pode-se dizer, mais concretos do teatro helnico, como as

    indumentrias, os nomes, os ambientes e costumes dos modelos gregos, conforme

    explica Gonalves.

  • 40

    Outro elemento do teatro grego que juntamente com o pallium e a temtica da

    vida cotidiana foi imitado por Plauto so os escravos. O romano captura do humor

    helnico parte desse modelo, com uma diferena, contudo: os escravos de Plauto saltam

    aos olhos do leitor, tamanho o destaque dado pelo comedigrafo a esses personagens.

  • 41

    Captulo II

    Dominus et servus: como se relacionavam senhor e escravo na Roma

    Antiga

    Para as sociedades grega e romana, de acordo com alguns especialistas, no era

    possvel conceber as relaes humanas sem a escravido. Fbio Duarte Joly em A

    escravido na Roma Antiga (2005) lembra que

    difcil traar um quadro da escravido nesse perodo da histria de

    Roma, pois as fontes de que dispomos so muito tardias, como Tito

    Lvio e Dionsio de Halicarnasso, que escreveram no final do sculo I

    a.C. Contudo, sustenta-se que a escravido sempre esteve presente na

    histria romana (provavelmente mais decorrente de dvidas do que da

    captura em guerras, embora esta tenha sido uma fonte) (p. 34).

    Roma foi uma civilizao que se erigiu a partir de pilares como os exrcitos, o

    movimento contnuo de expanso e, sem dvida, a escravido. Uma repblica que

    vivenciou de muito perto a escravido e com ela tinha uma relao de naturalidade.

    Obtidos ora por guerras, ora por dvidas, os escravos faziam parte da estrutura social

    romana.

    A despeito da dificuldade de se estabelecer verdades sobre a condio dos

    escravos da Antiguidade, pode-se destacar ainda outros ponderamentos a respeito desse

    contexto, como os apontados por Sartin (2007), quando assegura que:

    No especialmente fcil para as pessoas de hoje, vivendo sob a

    proteo da Declarao Universal dos Direitos Humanos, imaginarem

    como, para os antigos, a escravido era tomada como um fato

    corriqueiro da vida social. Em Roma e na Grcia, os prprios escravos

    sequer concebiam a possibilidade da no-existncia da escravido.

    Quando se rebelavam, seus principais objetivos pareciam ser retornar

    s suas terras nativas ou inverter a situao em que estavam,

    escravizando seus antigos senhores. No caso das trs guerras dos

    romanos contra escravos insurgentes, por exemplo, estes formaram

    uma espcie de Estado paralelo incipiente, com governo e hierarquia,

    mas onde a escravido continuava a existir. Os escravos rebeldes da

    Antiguidade lutavam pela prpria liberdade, que, por sua vez, inclua

    o direito de escravizar outrem. Escravos por dvidas e hilotas, por

    outro lado, lutavam no apenas para mudar de condio, mas para

  • 42

    abolir de vez o tipo especfico de sujeio que lhes havia sido imposta

    (p. 31-32).

    O autor ainda nos revela que, na poca, a escravido era considerada natural e

    que a maioria dos filsofos, dentre eles, Aristteles, defendia que alguns seres humanos

    haviam nascido para a condio da escravido e que a esses jamais se poderia ensinar o

    domnio da virtude. Se alguns nasceram para escravizar, portanto, e outros para serem

    escravizados, essa prtica, dizia Aristteles, era inclusive benfica: Uma vez que, de

    acordo com a natureza, alguns homens so escravos e outros livres, evidente que a

    escravido vantajosa para todos18

    . Em suma, a escravido era uma prtica comum e,

    mais que isso, sua no existncia, inimaginvel para a poca.

    Mas de que maneira a escravido se perpetuava? Qual a provenincia desses

    escravos? No contexto social romano, Sartin explica tambm que era concedida aos

    inimigos que fossem considerados civilizados, aps sua derrota, a oportunidade de se

    tornarem aliados. Os inimigos que se recusassem, eram escravizados. Contudo, ao

    tornar-se escravo, o sujeito havia sido salvo da morte, da o nome seruus.

    Agregando ao nosso imaginrio elementos que compem a imagem do escravo

    grego e romano, Rafael Alves Rossi (2011), afirma que

    A escravido por dvidas e o hilotismo configuram-se em duas

    formas de servido que predominaram na Antiguidade. [...] O escravo

    era uma mercadoria que podia ser comprada e vendida; era um

    estrangeiro desenraizado, obtido atravs da guerra, do comrcio, da

    pirataria e encarado como propriedade daquele que o aprisionou e que

    podia ser alugado, vendido ou libertado, se isso fosse da vontade de

    seu senhor; a totalidade do poder do senhor sobre o escravo, no

    dispondo o ser humano escravizado sobre seu corpo (p. 24).

    Outros autores apontam ainda que o grupo social composto por escravos era

    muito diverso e, por isso, difcil definir uma identidade para esses indivduos, pois a

    nica certeza que temos sobre o que tinham em comum a condio servil. Santiago

    Montero em Adivinacin y esclavitud en la Roma Antigua (1995), destaca que

    muito difcil - e metodologicamente perigoso - pretender extrair

    deste tema concluses vlidas para a totalidade dos escravos romanos,

    18

    Arist., Pol., 1.4.1253b-1254a (Apud ARISTOTLE, 1912).

  • 43

    sobretudo porque a heterogeneidade desse grupo social era enorme: os

    escravos domsticos e os rurais, os comprados nos mercados greco-

    orientais ou os vernae, os que trabalham em uma oficina ou em minas,

    no conheceram idnticas condies sociais e tiveram inquietudes

    religiosas muito diferentes entre si19

    (p. 143, traduo nossa).

    Segal (1987), por seu turno, resume de que maneira, no mundo grego e romano,

    o escravo era tratado:

    We are all familiar with Greek arguments for the "natural inferiority" of

    slaves. To Homer a slave was "half a man"; to Aristotle he is merely "a

    living tool." Varro's Roman view of a bondsman as instrumenti genus

    vacate seems to echo the Greek philosopher. Indeed the Roman slave

    was regarded as a mere object, ranked with the inanimate res mancipi.

    The slave had no rights of any sort; his master could torture him, kill

    him, or dispose of him in any way without the slightest repercussion.

    (p.102)

    De certa maneira, corrobora com esse ponto de vista o estudo de Joly (2004),

    mais especificamente o segundo captulo de sua obra Tcito e a metfora da

    escravido, quando o autor afirma que Tcito

    admite como natural que os escravos estejam a servio de seus

    senhores, bem como sujeitos a punies fsicas. Quando o historiador

    tece comentrios positivos sobre a conduta de um escravo porque este

    demonstrou lealdade (fides). Nesse sentido, Tcito fornece alguns

    exemplos do topos do escravo leal, comum na literatura latina. Assim,

    por exemplo, sobre os que vigiavam os filhos de Germnico, diz que

    uma honrosa lealdade (egregia fides) impedia que fossem envenenados

    (Ann., IV, I2). No prefcio de Histrias, afirma que o perodo das

    guerras civis do ano 69 no foi ausente de virtudes, fornecendo bons

    exemplos, como os de escravos que, mesmo sob tortura, no

    denunciaram seus senhores (contumax etiam aduersus tormenta

    seruorum fides, Hist., I, 3), como acontecia em momentos de crise (ver

    Hist., II, 84; IV, I). (pp. 69-70)

    Ainda que Joly seja categrico ao afirmar que esses escravos leais eram figuras

    raras na obra de Tcito na realidade, excees e que a maior parte das relaes

    19

    No original: Es muy difcil - y metodolgicamente peligroso - pretender extraer en este tema unas

    conclusiones vlidas para la totalidad de los esclavos romanos, sobre todo porque la heterogeneidad de

    este grupo social era enorme: los esclavos domsticos y los rurales, los comprados en los mercados greco-

    orientales o los vernae, los que trabajaban en un taller o en las minas, no conocieron idnticas condiciones

    sociales y tuvieron inquietudes religiosas muy diferentes entre s.

  • 44

    entre senhor e servo estava pautada na hostilidade desse grupo que era naturalmente

    incapaz de se mostrar genuinamente leal aos domini, possvel identificar amide na

    poesia latina, mais especificamente em Plauto, a representao do escravo fiel. O que

    regia o comportamento do servo em relao ao dominus, entretanto, o que Joly

    denomina de racionalidade servil, tendo em vista que a conduta do escravo, na

    verdade, estava baseada na satisfao de interesses prprios.

    Se os escravos, assim, agiam de acordo com seus interesses e essa era a base da

    relao com seus senhores, percebe-se claramente a articulao desse binmio

    seruus/dominus com a explanao que Joly faz a respeito da dinmica poltica em

    Roma. Para o autor, as relaes informais entre as aristocracias romanas e o imperador

    implicavam em uma privatizao da poltica do imprio. Nesse sentido

    o imperador fundava seu poder sobretudo em redes de clientela que

    controlava. O patrono era o instrumento com o qual um indivduo que

    almejasse uma certa posio podia entrar em contato com o imperador.

    Para ter acesso aos beneficia imperiais, estabelecia relaes de

    reciprocidade com pessoas prximas ao princeps. Tais amici Caesaris

    eram, principalmente, senadores ou cavaleiros. Por esse sistema, o

    imperador assegurava a importncia de uma elite e estendia seu poder

    pessoal a todas as partes do imprio. [...] A corte imperial funcionava

    como o principal centro de poder, unindo em torno de si uma srie de

    casas das famlias da elite romana. A domus imperial situava-se acima

    dessas, mas as mantinha subordinadas a si, de modo que eram

    estabelecidos outros centros de influncia pelos quais o imperador

    atingia a sociedade. Cada casa de um aristocrata seria uma pequena

    corte que reproduzia os padres da corte imperial, e, assim, contribua

    para legitimar o poder do imperador diante de todos os seus sditos. (p.

    147).

    O poder do imperador, por conseguinte, era legitimado a partir das relaes

    extraoficiais, quando, como afirma Joly, o acesso aos benefcios era catalisado na

    medida em que a relao com a autoridade era mais estreita. A domus constitua-se,

    assim, como uma extenso do poder imperial. A domus, em outras palavras, era uma

    pequena representao dessas articulaes polticas.

    A interao entre escravo e senhor, consequentemente, estaria, portanto,

    diretamente articulada a esse modus operandi. Se o imperador se beneficiava, em certa

    medida, das relaes de reciprocidade com as aristocracias, porquanto estendia e

    perpetuava seu poder no imprio, o dominus seria, de certo modo, o equivalente ao

    imperador, visto que, da mesma maneira como interagiam amici Caesari/princeps, a

  • 45

    relao do senhor com seu escravo tambm reforava a hierarquia da domus e os

    beneficia possveis oriundos dessa interao tambm se faziam possveis.

    Ainda que a representao do escravo na obra de Tcito seja a do sujeito que

    motivado por interesses prprios, pouco voltado autntica fidelidade e que, de maneira

    geral, corresponda forma como geralmente associamos a relao de escravido, isto ,

    a de que as relaes entre escravo e senhor estavam exclusivamente pautadas na

    subservincia hostil, algumas associaes entre essas partes se davam de maneira mais

    agregadora que violenta, ao menos, na produo potica. Fitzgerald (2000) aborda esse

    aspecto ao analisar a pea Captivi, de Plauto. Para o terico, a comdia um exemplo

    de como a natureza desse convvio acabava sendo, por vezes, negociada e repensada:

    [...] Plautus Captivi provides an exemplary study of this aspect of literatures ideological function, showing how the play negotiates the

    contradictions between two widely held views of slavery, which

    Thalmann calls the suspicious and the benevolent models

    respectively. According to the former, the slave is inherently

    untrustworthy, and master-slave relations are necessarily based on force

    and mistrust; according to the latter, the slave is potentially content with

    his lot and faithful, so that master-slave relations are assimilated to

    kinship. The one justifies enslavement (of inherently base people) and

    the other has persuasive, and self-congratulatory, force. In Captivi the

    vicissitudes of war enslave master and slave together, and they engage

    in a scheme to return home that involves exchanging roles, which

    means that they must trust each other; the slave (Tyndarus) remains

    faithful to his master, while the master is true to his paternal role.

    Tyndarus, as the audience knows all along, is in fact of free birth, so it

    is never quite clear whether he is acting as a faithful slave or a morally

    superior free person. But by playing the faithful Tyndarus offagainst

    Stalagmus, the bad slave who kidnapped Tyndarus in the first place,

    Plautus allows both suspicious and benevolent models of slavery to

    hold. (p.9)

    Essa associao entre senhor e escravo na comdia romana, sobretudo em

    Plauto, aproxima-se em certa medida das festividades da Saturnlia, festival em honra a

    Saturno. Nesses festejos, a regra era subverter a ordem social romana e esse ponto fica

    evidente quando se pensa no fato de que os escravos, nesse contexto festivo, eram

    servidos por seus senhores. Segal (1987) aproxima a Saturnlia da Comdia Nova

    quando afirma que

  • 46

    comedy has been described by the psychiatrist Ernst Kris as a "holiday

    for the superego," an