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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO ÁREA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS BEATRICE GUIMARÃES NÓBREGA O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL: UMA ABORDAGEM ANTIFORMALISTA ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO DE SANTI ROMANO Florianópolis/ SC 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

ÁREA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS

BEATRICE GUIMARÃES NÓBREGA

O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL: UMA ABORDAGEM

ANTIFORMALISTA ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO

INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO A PARTIR DO ORDENAMENTO

JURÍDICO DE SANTI ROMANO

Florianópolis/ SC

2008

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BEATRICE GUIMARÃES NÓBREGA

O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL: UMA ABORDAGEM

ANTIFORMALISTA ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO

INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO A PARTIR DO ORDENAMENTO

JURÍDICO DE SANTI ROMANO

Dissertação submetida à Universidade

Federal de Santa Catarina para a

obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Junior

Florianópolis/ SC

2008

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BEATRICE GUIMARÃES NÓBREGA

O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL: UMA ABORDAGEM

ANTIFORMALISTA ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO

INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO A PARTIR DO ORDENAMENTO

JURÍDICO DE SANTI ROMANO

Essa dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de

Mestre em Direito e aprovada em sua forma final pela Coordenação do Curso de

Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área

Relações Internacionais.

Banca examinadora:

Presidente e orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Junior.

Membro: Prof. Dr. Jorge Fontoura

Membro: Prof. Dr. André Lipp Pinto Basto Lupi

Coordenador do Curso: Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer

Florianópolis, 11 de abril de 2008.

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AGRADECIMENTO

A Deus, força do meu viver.

Ao meu orientador, prof. Dr. Arno Dal Ri Junior, pela paciência, ensino

e provocações nesses dois anos de mestrado, contribuindo de maneira determinante

para a minha formação acadêmica “sobre as mais sólidas rochas”.

Ao prof. Dr. Airton Cerqueira Leite Seelaender, por sua co-orientação,

demonstrando a grandeza da academia em dialogar com as diferenças.

Aos primeiros mestres, Rogério Zuel Gomes, Alexandre Morais da

Rosa, Wagner Menezes e Florisbal de Souza Del’Omo, pelas orientações do

passado e pelo incentivo e amizade sempre presentes.

Aos demais professores e funcionários do Curso de pós-graduação em

Direito da UFSC pela lição deixada de entrega e dedicação à academia.

Aos companheiros de mestrado e, em especial, aos amigos do grupos

de pesquisa jus gentium, pelas discussões e inquietações em busca da

compreensão do direito internacional.

Aos meus tios, Maria Teresa e Celso Guimarães, que tão prontamente

me acolheram nesses dois anos, na sedutora ilha que faz jus a sua magia.

Aos meus pais, Ivone Guimarães Nóbrega e Guilherme Nóbrega [in

memoriam] por serem o exemplo que conduziu, conduz e conduzirá o meu

caminhar.

Aos meus irmãos e melhores amigos, Guilherme Antônio, Ciro Dimitri e

Dario Alexandre pelo fiel companheirismo de lágrimas e risadas.

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“Grau, teurer Freund, ist alle Theorie. Und grün des Lebens goldner Baum!”

“Todas as ciências são cinzentas. Verde e frondosa é a árvore da vida!”

Johann Wolfgang von Goethe - Faust I

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RESUMO

A relação entre direito internacional e direito interno corresponde a uma das questões freqüentemente presentes nos estudos do direito internacional. Procurar compreender essa relação exige uma predeterminação de conceitos. Conceitos tais como “direito”, “Estado”, “direito interno” e “direito internacional”. A partir da determinação desses conceitos torna-se possível delinear como ocorre a relação entre direito internacional e direito interno. O jurista italiano Santi Romano propôs uma concepção antiformalista dos conceitos de direito, de Estado, de direito interno e de direito internacional. Ao identificar o direito como “instituição”, Romano amplia a definição do direito, não a reduzindo a tão-somente normas jurídicas. Conseqüentemente a partir dessas concepções antiformalistas, Romano apresenta uma peculiar leitura quanto à relação entre direito internacional e direito interno. O presente trabalho, por meio do método dedutivo de abordagem, tenta demonstrar que, a partir das concepções antiformalistas de Romano, a relação entre o direito internacional com o direito interno define-se como o dualismo de preeminência internacional. A Teoria Dualista de preeminência internacional apresenta diferenças significativas das demais construções jurídicas acerca da relação entre o direito internacional e o direito interno. Diferenciação esta perceptível no presente trabalho, por meio do método auxiliar comparativo, ao abordar a Teoria Monista de primazia do direito interno, a Teoria Monista de primazia do direito internacional e a Teoria Dualista tradicional. Ao lado das demais construções jurídicas em matéria, a construção romaniana ressalta-se por suas peculiaridades. Para Romano, a instituição “comunidade internacional” caracteriza-se como uma instituição complexa, composta pelas instituições estatais. E ainda ambas as instituições identificam-se como ordenamentos jurídicos originários, há relevância entre as mesmas. Isso significa, para Romano, que há uma relação dualista. Contudo, com preeminência do direito internacional devido à complexidade da instituição “comunidade internacional” e à relevância por “conteúdo” expressando, destarte, as peculiaridades da construção romaniana perante as demais, conforme tenta demonstrar o presente trabalho.

Palavras-chaves: Direito interno. Direito internacional. Instituição. Dualismo de preeminência internacional.

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ABSTRACT

The relationship between International Law and National Law frequently corresponds to one of the subjects present in the studies of the International Law. To try to understand that relationship demands that the concepts are exactly defined. These concepts are "law", "State", "national law" and "international law". Starting from the definition of those concepts it becomes possible to delineate how the relationship between International Law and National Law happens. The Italian jurist Santi Romano proposed a not formalist conception of the right concepts, of State and national law and of the international law. Identifying the law as "institution", Romano enlarges the definition of law, and does not reduce it merely to juridical norms. Consequently, starting from those not formalist conceptions, Romano presents a peculiar reading about the relationship between International Law and National Law. The present work, using the deductive approach method, tries to demonstrate that starting from Romano's not formalist conceptions, the relationship among the International Law and the National Law is defined as the dualism of international superiority. The Dualist Theory of international superiority presents significant differences from the other juridical constructions concerning the relationship between the International Law and the National Law. This differentiation is perceptible in the present work through the comparative auxiliary method, when approaching the Monist Theory of the national law primacy, the Monist Theory of the international law primacy and the traditional Dualist Theory. Beside the other juridical constructions also considered, the romanian construction is pointed out by its peculiarities. For Romano, the "international community" institution is characterized as a complex institution, composed by several state institutions. And both institutions still identify as original juridical orders, because there is relevance among them. That means for Romano, that there is a dualist relationship. However, with superiority of the international law due to the complexity of the "international community" institution and to the relevance for a "content" showing the peculiarities of the romanian construction in front to the other ones, as the present work try to demonstrate.

Key-words: National Law. International Law. Institution. Dualism of international superiority.

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LISTA DE SIGLAS

AG – Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas

CS – Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas

CIJ – Corte Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas

OIT - Organização Internacional do Trabalho

ONU- Organização das Nações Unidas

OMC - Organização Mundial do Comércio

SSC – Sistema de solução de controvérsias da Organização Munidal do Comércio

STF – Supremo Tribunal Federal

UE – União Européia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11

1 A TEORIA DO “ORDENAMENTO JURÍDICO” DE SANTI ROMANO ..................16

1.1 A proposta paradigmática antiformalista para a definição do direito........16

1.1.1 Da objetividade do direito............................................................................24

1.1.2 Da organização social.................................................................................26

1.1.3 Do conceito de direito .................................................................................28

1.1.4 Da concepção de instituição .......................................................................30

1.1.5 A teoria da necessidade..............................................................................41

1.2 O Ordenamento Jurídico................................................................................45

1.2.1 Norma jurídica.............................................................................................49

1.2.2 Sanção jurídica ...........................................................................................52

1.2.3 O ordenamento jurídico e as relações simples ou jurídicas ........................55

1.3 A concepção romaniana de Estado ..............................................................57

2 AS CONSTRUÇÕES JURÍDICAS ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO

INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO.................................................................70

2.1 A construção jurídica monista acerca da relação entre direito

internacional e direito interno ................................................................................72

2.1.1 O monismo de primazia do direito interno segundo Hans Kelsen...............72

2.1.1.1Da concepção de Estado .......................................................................79

2.1.1.2 Da concepção de direito interno............................................................86

2.1.1.3 Da concepção de direito internacional ..................................................90

2.1.1.4 Da relação entre direito internacional e direito interno ..........................95

2.1.2 Monismo de primazia internacional segundo Alfred Verdross .................. 100

2.1.2.1 Da concepção de Estado ....................................................................106

2.1.2.2 Da concepção de direito interno..........................................................110

2.1.2.3 Da concepção de direito internacional ................................................112

2.1.2.4 Da relação entre direito internacional e direito interno ........................121

2.2 A construção jurídica dualista acerca da relação entre direito

internacional e direito interno ..............................................................................128

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2.2.1 Dualismo voluntarista segundo Karl Heinrich Triepel................................128

2.2.1.1 Da concepção de Estado ....................................................................131

2.2.1.2 Da concepção de direito interno..........................................................132

2.2.1.3 Da concepção de direito internacional ................................................133

2.2.1.4 Da relação entre direito internacional e direito interno ........................137

3 O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL .....................................143

3.1 A noção romaniana do ordenamento jurídico internacional ....................143

3.1.1 Definição do direito internacional ..............................................................157

3.2 A relação dos ordenamentos jurídicos entre si .........................................163

3.2.1 Os momentos de exercício da relevância .................................................166

3.2.2 A relação entre ordenamento jurídico internacional e ordenamento jurídico

estatal......................................................................................................................175

3.3 O dualismo de preeminência internacional................................................180

3.3.2 A escola antiformalista italiana e a relação entre direito internacional e

direito interno...........................................................................................................197

3.3.2.1 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Roberto

Ago..........................................................................................................................200

3.3.2.2 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Riccardo

Monaco ...................................................................................................................211

3.3.2.3 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Piero

Ziccardi....................................................................................................................223

CONCLUSÃO .........................................................................................................235

REFERÊNCIAS.......................................................................................................245

ANEXO A - As principais fases da produção acadêmica de Santi Romano, no

seu desenvolvimento cronológico ......................................................................257

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INTRODUÇÃO

As discussões em torno do tema “relação entre direito internacional e direito

interno” concorrem de modo significativo para a construção do conhecimento

jurídico. Podem ser destacadas como dois indicativos desta contribuição tanto a

riqueza de sua argumentação teórica quanto a relevância de sua aplicabilidade

prática. Indicativos os quais, igualmente, justificam a pertinência do tema escolhido.

A riqueza da argumentação teórica do referido tema deve-se à

predeterminação de certos conceitos que se apresentam como indispensáveis para

a compreensão do mesmo. Adotar uma concepção sobre o que é o próprio “direito”

acaba por condicionar a leitura de como ocorre a relação entre direito internacional e

direito interno. Além da definição do conceito de “direito”, outras como de “Estado”,

de “direito interno” e de “direito internacional” são imprescindíveis para a

identificação da relação em questão. Juntamente com a compreensão desta, a

predeterminação de tais conceitos contribui para a construção do conhecimento

jurídico, uma vez que, as divergências de tais concepções alicerçam as diferentes

teorias elaboradas acerca dessa relação.

Já a relevância da aplicabilidade prática do referido tema deve-se por este

envolver a questão do tratamento constitucional ao direito internacional. Isso

significa que, toca a questão de como a Constituição do Estado se posiciona frente

ao direito internacional, se há ou não previsão nesta quanto a certas matérias que

ultrapassam as fronteiras estatais, como: reconhecimento de princípios do direito

internacional, questões concernentes aos tratados internacionais, reconhecimento

da jurisdição internacional, aplicação das normas jurídicas internacionais pelos

tribunais estatais, dentre outras. Essas matérias expressam a aplicabilidade prática

do referido tema, pois se referem à relação entre direito internacional e o exercício

das funções estatais [legislativa, executiva e judiciária], contribuindo juntamente para

a construção do conhecimento jurídico, uma vez que seu objeto não deveria

distanciar-se da realidade fática. Ademais, esses dois indicativos revelam que o

tema em questão, ainda que freqüentemente presente nos estudos do direito

internacional, não se limita a este, justificando também a pertinência do tema

escolhido.

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Particularmente, quanto à riqueza da argumentação teórica do referido

tema, ressalta-se que não foram poucas as tentativas para definição de tais

conceitos como “direito”, “Estado”, “direito interno” e “direito internacional”, seja

segundo posicionamentos formalistas, seja segundo posicionamentos

antiformalistas. Conseqüentemente, dessa diversidade de concepções resultaram

diferentes construções jurídicas acerca da relação entre direito internacional e direito

interno. Construções jurídicas dentre as quais se encontram a Teoria Monista e a

Teoria Dualista, que decorreram dos divergentes enfoques de tais conceitos. Se de

uma lado, o direito entendido como um sistema unitário de normas jurídicas, cujas

fontes e objetos identificam-se, leva a uma leitura monista da relação em matéria,

por outro, o direito compreendido como sistema separado de normas jurídicas, cujas

fontes e objetos diferenciam-se, conduz a uma leitura dualista de tal relação. A

delimitação do tema escolhido, então, ocorre com a adoção de determinadas

concepções de tais conceitos os quais, por conseguinte, definirão como ocorre a

relação entre direito internacional e direito interno, ou seja, se esta corresponde a

uma relação monista ou dualista.

A partir dessas considerações o presente trabalho adota as

concepções antiformalista de direito, de Estado, de direito interno e de direito

internacional do jurista italiano Santi Romano. Particularmente, adota as concepções

propostas por Santi Romano nas obras “O Ordenamento Jurídico”, de 1918 e o

“Corso di diritto internazionale”, de 1926. Ao propor uma definição antiformalista do

direito que o amplia, Romano rompe com paradigmas formalistas que identificam o

direito a tão-somente normas jurídicas. O direito, para Romano, é instituição. E

instituição corresponde a uma unidade social organizada, como o Estado e a

comunidade internacional. Desse modo, Romano considera os vocábulos “direito”,

“instituição”, “organização” e “ordenamento jurídico” como sinônimos.

Conseqüentemente, tais concepções romanianas levam a uma peculiar definição da

relação entre o direito internacional e o direito interno. Nesse sentido, o presente

trabalho apresenta a seguinte indagação: a partir dessa abordagem antiformalista de

Romano, qual a relação entre o direito internacional e o direito interno? Ao visar uma

possível resposta a tal indagação, levanta-se como hipótese básica que a partir de

uma abordagem antiformalista de Romano, a relação entre direito internacional e

direito interno pode corresponder ao dualismo de preeminência internacional, uma

vez que para Romano, a instituição “comunidade internacional” caracteriza-se como

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uma instituição complexa, compostas pelas instituições estatais. E, ainda ambas as

instituições sejam identificadas como ordenamentos jurídicos originários, há

relevância entre as mesmas. Isso significa, para Romano, que há uma relação

dualista. Contudo, com preeminência do direito internacional devido à complexidade

da instituição “comunidade internacional” e à relevância por “conteúdo”. O que

expressa a peculiaridade da teoria dualista romaniana perante as demais, conforme

tentar-se-á demonstrar no decurso do presente trabalho.

Nessa consecução, por meio do método dedutivo de abordagem, o

presente trabalho tentará demonstrar que a partir das concepções antiformalistas

romanianas de direito, de Estado, de direito interno e de direito internacional,

propostas na obra “O Ordenamento Jurídico”, a relação entre estas esferas jurídicas

pode corresponder ao dualismo de preeminência internacional. Tentar-se-á

demonstrar, então, que a leitura romaniana da relação entre a instituição

“comunidade internacional” e a instituição “Estado” se expressaria por meio da

Teoria Dualista de preeminência internacional. Para tanto, também será utilizado o

método comparativo com o propósito de auxiliar no desenvolvimento do presente

estudo, uma vez que, serão abordadas as demais teorias acerca da relação do

direito internacional com o direito interno para possibilitar o exame de construções

jurídicas que podem divergir ou assemelhar à construção jurídica romaniana

levantada como hipótese. Ademais, ressalta-se que o presente trabalho

desenvolverá o referido tema por meio da técnica de análise de fonte primária

documental e documentação indireta, pertinentes ao estudo da relação entre o

direito internacional e o direito interno.

A fim de demonstrar que a partir das concepções antiformalista de

Romano a relação entre direito internacional e direito interno pode corresponder ao

dualismo de preeminência internacional, o presente trabalho discorrerá sobre o

referido tema de acordo com a ordem de abordagem que segue. O primeiro capítulo

apresentará algumas das concepções antiformalistas de Romano, presentes na obra

“O Ordenamento Jurídico”. No primeiro momento, será feita uma abordagem

introdutória quanto à proposta paradigmática antiformalista para a definição do

direito. Na seqüência, apresentar-se-á algumas concepções determinantes de

Romano, presentes na obra “O Ordenamento jurídico”, as quais correspondem: à

questão da objetividade do direito, a concepção de organização social, o conceito

romaniano de direito, a concepção de instituição e a respectiva fonte do direito

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[teoria da necessidade]. Após a explanação de tais concepções, abordar-se-á a

concepção romaniana de ordenamento jurídico, destacando as seguintes

considerações de Romano quanto: à norma jurídica, à sanção jurídica e, por último,

ao ordenamento jurídico e às relações simples ou jurídicas. Por fim, discorrer-se-á

sobre a concepção romaniana de Estado enquanto instituição, mencionando, dentre

outras questões, o caráter jurídico da potestade, a extensão de personalidade e a

relevância jurídica do território e da cidadania, referentes ao Estado.

O segundo capítulo abordará as demais construções jurídicas

acerca da relação entre o direito internacional e o direito interno, sendo estas o

monismo de primazia do direito interno, monismo de primazia do direito internacional

e o dualismo. Nesta secção, então, destacar-se-á as concepções de direito, de

Estado, de direito interno e de direito internacional de um dos representantes de

cada teoria anteriormente mencionada. Após a abordagem de tais concepções,

discorrer-se-á sobre os enunciados da respectiva teoria que expressa como ocorre a

relação entre direito internacional e direito interno de acordo com cada um destes

representantes. Desse modo, primeiramente abordar-se-á as concepções do jurista

austríaco Hans Kelsen, juntamente com os enunciados da Teoria Monista de

primazia do direito interno. Na seqüência, tratar-se-á das concepções do jurista

austríaco Alfred Verdross, correspondentes aos enunciados da Teoria Monista de

primazia do direito internacional. E por fim, será feita abordagem das concepções do

jurista alemão Karl Heinrich Triepel, que fundamentam a Teoria Dualista tradicional.

Reitera-se que a abordagem desta secção visa possibilitar um exame comparativo

entre as teorias que abordará e a teoria romaniana correspondente à hipótese

levantada, no presente trabalho, e a ser discorrida na secção seguinte.

O terceito capítulo, portanto, abordará o dualismo de preeminência

internacional. Nesta, tentar-se-á demonstrar que, segundo a concepção

antiformalista de Romano, a relação entre direito internacional e direito interno

corresponde ao dualismo de preeminência internacional. Para tanto, no primeiro

momento, apresentar-se-á a noção romaniana de ordenamento jurídico

internacional, bem como a definição de Romano de direito internacional. Em

seguida, tratar-se-á a questão da relação dos ordenamentos jurídicos entre si, do

modo como Romano percebe tal relação. Desta maneira, destacar-se-á os

momentos de exercício da relevância, bem como destacar-se-á como Romano

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compreende a relação entre ordenamento jurídico internacional e ordenamento

jurídico estatal. Após tais considerações, será feita a abordagem sobre o dualismo

de preeminência internacional. Neste momento, primeiramente mencionar-se-á as

concepções dualistas [tradicional] do jurista italiano Dionisio Anzilotti e, na

seqüência, tratar-se-á da peculiar concepção dualista de Romano, demonstrando

que a relação do direito internacional com o direito interno pode corresponder ao

dualismo de preeminência internacional. Por fim, discorrer-se-á sobre a escola

antiformalista italiana e a relação entre direito internacional e direito interno, expondo

o posicionamento de alguns dos representantes desta escola. Representantes como

Roberto Ago, Riccardo Monaco e Piero Ziccardi, os quais expressam a influência

dos ensinamentos de Romano em suas concepções.

Espera-se, portanto, com o presente trabalho corresponder aos

indicativos inicialmente mencionados os quais justificam a pertinência do tema

escolhido. Ao abordar as concepções antiformalistas de Romano sobre o “direito”, o

“Estado”, o “direito internacional” e o “direito interno” e ao tentar demonstrar que a

partir de tais concepções a relação entre o direito internacional e o direito interno

corresponde a um dualismo de preeminência internacional, buscar-se-á, juntamente,

fomentar tanto a riqueza da argumentação teórica quanto a relevância da

aplicabilidade prática do tema em questão, a fim de que, assim, o presente trabalho

possa contribuir positivamente para as discussões acadêmicas em torno do tema

“relação entre direito internacional e direito interno”.

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1 A TEORIA DO “ORDENAMENTO JURÍDICO” DE SANTI ROMANO

Não são poucas as inquietações dos que se dedicam à construção

do conhecimento jurídico. A fim de perceber e apontar para um determinado objeto o

qual possa ser identificado como o definidor do direito, os que se lançam em tal

realização partem, em um primeiro momento, de um estado de dúvida.1 Partem de

um desprendimento de concepções sobre conceitos considerados alicerces na

construção do próprio conhecimento jurídico. Desse modo voltam-se,

inevitavelmente, para a seguinte indagação: qual a definição do direito?

Em contribuição a estas tentativas de definir o direito, Santi

Romano elaborou sua concepção de ordenamento jurídico2 propondo uma

identificação institucionalista do mesmo. Para tanto, Romano percorre desde a

emanação do direito por meio da “necessidade social” até a constituição de um

concreto estado plural de ordenamentos, alicerçando, por conseguinte, a construção

de um conhecimento jurídico antiformalista.

1.1 A proposta paradigmática antiformalista para a definição do direito

As abordagens acerca da definição do direito não ocorrem de modo

independente, descontextualizadas de tendências jurídicas filosóficas e culturais

1 A dúvida exercendo assim a sua função primordial, como “meditava” René Descartes, ao desconstruir todo o conhecimento para a partir daí erigir o edifício do saber. “O que então poderá ser considerado verdadeiro? Talvez nada mais, a não ser que há nada de certo no mundo.” Vide: DESCARTES, René. Meditações metafísicas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 42 2 Conforme se verificará no decorrer deste primeiro capítulo, da concepção de ordenamento jurídico de Romano destaca-se, como bem adverte Antonio Tarantino, o trinômio necessidade-instituição-pluralidade. In: TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1976. p.12

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emergentes em certo momento. Não ignoram, portanto, a quebra paradigmática3 no

conhecimento jurídico. Tais quebras, ao contrário, vão ao encontro da assertiva de

que há uma concreta relação de causa e efeito4 entre os distintos posicionamentos

de tal conhecimento científico. Para que se passe, então, a expor a proposta

antiformalista romaniana da definição do direito, cabe por ora contextualizar a

mesma, ou melhor, expor as causas a que esta proposta reagiu. Trata-se de

contemplar as tendências que contribuíram para a construção do conhecimento

jurídico alicerçado em concepções formalistas do direito, as quais se opuseram as

concepções de viés antiformalistas, como a romaniana, concretizando, assim, a

relação causa e efeito.

A partir do entendimento de que as palavras não possuem um

significado próprio, mas sim o significado que lhes é atribuído pelo uso, Roberto Ago

realiza um aprofundado exame da expressão “direito positivo” no âmbito do direito

internacional. Nesse sentido, Ago expõe que variados foram os significados

atribuídos a esta expressão na construção do conhecimento jurídico formalista.5

Aponta-se para o sistema jurídico medievo [séculos V ao XV] como precursor no uso

do termo jus positivum. Este era, então, empregado com o escopo de traçar uma

distinção entre o direito natural, de origem “independente” da vontade humana, e o

direito posto, originado por um ato legislativo, ato de vontade humana.6 Já nos

séculos XVII e XVIII, a expressão “direito positivo” permanece compreendida como

um direito posto, como um ato de vontade humana, revelando-se como uma

concepção ligada à fonte, à origem do direito. No referido período, lex positiva, jus

positum, jus positivum e jus voluntatium identificavam-se como sinônimos,

3 Por ora, concebe-se a expressão “paradigmática” no sentido de sociológico, conforme proposto por Thomas Kuhn. Logo, um paradigma sociológico “[...] indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada.” Tais membros, assim, partilham de uma matriz disciplinar, ou seja, “[...] ‘disciplinar’ porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; ‘matriz’ porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada.” As propostas paradigmáticas do conhecimento jurídico, portanto, partilham de uma mesma matriz disciplinar, compreendendo esta no sentido exposto. Ver, a respeito: KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 220; 228-229 4 Relação esta pela qual Descartes condiciona o conhecimento a uma causa primeira, de modo que haja “[...] tanta realidade na causa eficiente e total quanto em seu efeito [...]”. In: DESCARTES, René. Meditações metafísicas. p. 42 5 AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. v. 1. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1957. p. 04 6 Idem. Ibidem., p. 05

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expressando o mesmo sentido de “direito positivo”. Sinônimos os quais se

distinguiam de um jus naturale, até então entendido como existente.7

Por conseguinte, o século XIX é marcado por um posicionamento

jurídico formalista, que se afasta cada vez mais de concepções jusnaturalistas.

Neste período, é possível constatar uma crescente preocupação acerca da

secularização do direito8 juntamente com a preocupação de reconhecer o homem,

dotado de razão, como juiz frente à natureza.9 A adoção de tal modelo positivista de

ciência aponta tanto para a observação empírica quanto para a experiência dos

fatos como os meios de se obter o conhecimento científico.10 Enquanto proposta

paradigmática, a filosofia jurídica positivista11 de tal período, constituiu-se sob certos

princípios que repudiam “[...] conceitos valorativos (construções metafísicas,

racionalistas e jusnaturalistas), [...]”.12 Por outro lado, a mesma enaltecia

formalidades ao exigir um rigor técnico na produção do direito como construção

7 AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 05-06 8 Dentre alguns dos acontecimentos do século XVIII, relevantes para a caracterização da esfera jurídica do século subseqüente, Antonio Carlos Wolkmer destaca “[...] com referência ao século XVIII é o inegável desenvolvimento de seu Direito, marcado pela consolidação histórica de um processo de racionalização, da afirmação de uma cultura individualista e liberal, da distinção entre o Direito e a moral, e da progressiva secularização do Direito rumo à unicidade e à positivação.” Cf.: WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 187 9 Fazendo uma analogia à Revolução Copernicana, considerando, no entanto, o homem racional como o centro da natureza, Immanuel Kant volta-se à Crítica da Razão Pura como um tratado de método a fim de legitimar a Metafísica enquanto ciência, partindo-se de um conhecimento racional, a priori e a posteriori, como meio de leitura da natureza. “Compreender que a razão só discerne o que ela mesmo produz segundo seu projeto, que ela tem de ir à frente com princípios dos seus juízos segundo leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas, mas sem ter de deixar-se conduzir somente por ela como se estivesse presa a um laço; [...]. A razão tem que ir à natureza tendo numa das mãos os princípios unicamente segundo os quais os fenômenos concordantes entre si podem valer como leis, e na outra o experimento que ela imaginou segundo aqueles princípios, na verdade para ser instruída pela natureza, não porém na qualidade de aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe.” A propósito: KANT, Immanuel. Prefácio à segunda edição. In: _____. Crítica da razão pura. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1991. p. 13 10 WOLKMER, op. cit., p. 188 11 “[...] a filosofia do positivismo jurídico, que prosperou principalmente a partir da metade do século XIX e acabou impondo-se como principal tendência do Direito contemporâneo, constitui-se na mais vigorosa reação às correntes definidas como jusnaturalistas, que buscavam definir a origem e a essência do Direito na natureza, ou mesmo na razão humana. A doutrina positivista procurou banir todas as considerações de teor metafísico-valorativas do Direito, reduzindo tudo à análise de categorias empíricas na funcionalidade de estruturas legais em vigência.” In: WOLKMER, op. cit., p. 191 12 WOLKMER, op. cit., p. 192

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lógico-sistemática, limitando esta produção à vontade estatal que se perfaz por meio

de normas jurídicas.13

A composição dualista do direito entre positivo e natural,14 portanto,

foi reduzida somente à concepção de direito positivo excluindo, desse modo, o jus

naturale, não o considerando mais como válido. Nesse contexto, ao significado da

expressão “direito positivo”, se atribui o sentido de norma jurídica. Limitou-se ao

sentido de um voluntarismo estatalista preocupado com o rigor formal da origem do

direito, enfim, de sua fonte.15 Isso significa que, o direito identificava-se a somente

“norma jurídica”, resultante da produção monista estatal. Conseqüentemente, tal

definição reducionista desencadeou reações de oposição.16 Destarte, surgem no

final do século XIX “[...] proposições doutrinárias que se manifestam contrárias ao

dedutivismo lógico e ao formalismo abstrato do legalismo exegético.”17 Nessa

perspectiva, o antiformalismo passa a se constituir como proposta paradigmática do

conhecimento jurídico.18

13 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. p. 192. Vale mencionar que as seguintes escolas, do positivismo jurídico característico de tal período, são destacadas por Wolkmer, a escola da Exegese Francesa, a Escola Analítica Inglesa e a Escola do Formalismo Conceitual na Alemanha. Cf.: Idem. Ibidem., p. 192-199. Nesse sentido, Ago destaca a corrente normativista, fortemente presente na escola alemã, segundo a qual “[...] in sostanza, tutto il diritto è diritto positivo nel senso di diritto «posto», ad eccezione [...] dell’inconoscibile norma-base, debba poi questa considerarsi come un’ipotesi indimostrabile, o come un postulato, o come una norma morale.”. Vide: AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 29. Cabe por ora mencionar que a questão acerca da “norma base”, será melhor abordada na secção 2.1.1, do presente trabalho. 14 Vale ressaltar que o sentido da palavra “dualismo”, por ora mencionada, corresponde à composição do direito entre direito positivo e natural, concebida pelas doutrinas do direito, tanto interno quanto internacional, por volta do século XVIII. Consoante os dizeres de Ago, “La composizione dualistica è, in altri termini, ritenuta típica del diritto vigente in ambedue i tipi di Società, ed in ambedue è il diritto positivo che si appoggia, per la sua esistenza, al diritto naturale, in quanto è precisamente una norma di diritto naturale quella che conferisce, da una parte alla volontà del legislatore statale e d’altra al consenso degli Stati, la potestà di dar vita a norme obbligatorie.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 08 15 “Non solo, infatti, si afferma che il diritto posto in essere da «fonti formali» è il solo diritto che sai veramente tale, ma dal quadro delle «fonti formali» del diritto positivo si vengono ad escludere tutti quei fatti che non costituiscono manifestazioni dirette o indirette di volontà dello Stato, in quanto solo allo Stato si riconosce la potestà di porre in essere norme giuridiche.” Vide: AGO, op. cit., p. 13 16 Nesse sentido, contextualiza Wolkmer, “Não é de se estranhar que, num cenário dominado pelo positivismo jurídico formalista, diversas reações sociais e políticas provenientes da sociedade começassem a afetar o discurso e a prática dos juristas. O desenvolvimento do capitalismo, os novos interesses e os conflitos das massas populares e os progressos científicos gerados pela etapa posterior da revolução industrial impulsionaram o surgimento de interpretações que questionavam o rigor conceitual e o distanciamento da teoria jurídica da dinâmica social. Assim, a vida humana e as mudanças dos novos tempos não poderiam ficar amarrados ao naturalismo mecanicista e aos ditames autônomos da letra da lei.” Cf.: WOLKMER, op. cit., p. 200. 17 WOLKMER, loc. cit. 18 Por fim, quanto aos variados sentidos atribuídos a expressão “direito positivo”, desde uma ato de vontade humana até a um ato de vontade restritamente estatalista, manifesta por meio da produção de normas jurídicas sinônimas, ou não, do termo eficácia, passando por um positivismo sociológico, Ago, encerando o levantamento etimológico de tal expressão, aduz que “Il positivismo giuridico,

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Os movimentos de oposição à identificação do direito como tão-

somente uma produção normativa estatal, gradativamente conquistaram seu

espaço. Dentre esses movimentos encontra-se o da sociologia do direito, o qual

compreendia o direito como produto da sociedade. A sociologia jurídica tem como

um de seus principais expoentes o representante da escola do Direito Livre alemã

Eugen Ehrlich [1862-1922].19 Trabalhando a questão do “direito vivo”, o mesmo se

volta para uma concepção de direito indissociável daquela de sociedade. Nesse

sentido, enquanto produto da sociedade, a razão de ser do direito corresponderia a

esta, à própria sociedade.

As teorias do pluralismo jurídico também se encontram nesse

movimento de oposição, o qual vai de encontro ao posicionamento formalista. O

pluralismo jurídico tanto contrapõe a produção legal centralizada no monismo estatal

[única fonte do direito] quanto reconhece a presença de outros ordenamentos

jurídicos coexistentes a este estatal.20 Particularmente, as teorias pluralistas partiam

de críticas às concepções individualistas do direito, concomitante a um Estado de

políticas liberais.21 Por isso, seus precursores igualmente22 defendiam a concepção

social do direito. Para esta última, o direito se voltava à preservação de uma

sociedade mais coesa, onde o indivíduo não é somente titular de direitos. Ao

indivíduo também seriam impostos deveres.23 Dentre os representantes das teorias

pluralistas, pode-se destacar o jurista francês Léon Duguit [1859-1928],24 o qual

compreendia objetivamente o direito como um fenômeno social que encontrava seu

nell’intento, che è stato il suo grande merito, di pervenire ad isolar la sfera del diritto e a distinguerla da quella di altri ordini di conoscenze, nell’aspirazione a porre come oggetto della scienza giuridica soltanto cio che può realmente chiamarsi diritto, separandolo in modo netto da quelle che sono unicamente aspirazioni, espressioni soggettive di esigenze ideali di giustizia, o non meno soggettive deduzioni da asseriti principi di carattere razionalistico, ha commesso tuttavia un errore: quello di seguire un aprioristico concetto di diritto che lo ha condotto ad essere troppo restrittivo nel tracciare la línea di demarcazione.” AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 57-58 19 BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. Baurueri, SP: Manole, 2005. cap. 7, p. 284-288 20 Idem. Ibidem., p. 310 21 BILLIER, loc. cit. 22 Ainda que defendendo convergentemente certos posicionamentos, como a concepção social do direito, os representantes das teorias pluralistas divergiam em alguns pontos. Como bem ressalta Jean-Cassien Billier, “O que as separa são as perspectivas de reflexão sobre a reconstrução institucional do direito estatal traçada por suas doutrinas.” Apresentando assim diferentes concepções acerca do “Estado”, das fontes do direito e quanto à definição do mesmo.Vide: BILLIER, loc. cit. 23 BILLIER, op. cit., p. 303-313 24 DUGUIT, León. Fundamentos do direito. Florianópolis: Letras Contemporâneas Oficina Editorial, 2004

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fundamento na solidariedade social25. Esta por sua vez, unia os homens uns aos

outros, tanto pelas suas semelhanças quanto pelas suas diferenças, ou seja, pela

divisão do trabalho. Juntamente com tal concepção objetiva do direito, o Estado,

segundo Duguit, é desprovido de personalidade jurídica, sendo então identificado

como um fato. Contudo, Duguit adverte que “Uma construção jurídica só tem valor

quando é síntese de fatos reais [...].”26 Por isso, o Estado enquanto abstração não

possuiria personalidade jurídica. Destarte, a realidade correspondente ao Estado

seria a interdependência social que abrange governantes e governados. O Estado

corresponderia a uma concreta sociedade de indivíduos, e não a uma pessoa

jurídica abstrata. De acordo com Duguit, o direito objetivo, produzido [anteriormente]

e fundamentado nas ações realizadas no seio social [vinculadas pela solidariedade

interdependente], é posteriormente positivado.27 Desse modo, competiria aos

governantes positivá-lo ao exercerem suas devidas funções.

Outro expoente das teorias pluralistas do direito corresponde ao

sociólogo russo Georges Gurvitch.28 Para o referido autor, o fundamento do direito

corresponderia a um fato normativo vivido ou experimentado. Sendo este fato

identificado como o fato de constituição de qualquer comunidade, esta em essência,

baseada em uma comunidade de interesses. Quanto à normatividade, a mesma

decorreria justamente porque tal fato, para se constituir, se encontraria condicionado

à aprovação e ao reconhecimento de um dado valor pelos membros que constituirão

o grupo. Logo, os grupos sociais seriam os fatos normativos, sendo que o Estado se

configuraria como apenas mais um destes. Presentes, então, os elementos29 para

25 Ao encontrar o direito objetivo seu respectivo fundamentado na solidariedade social, acerca do direito subjetivo Duguit considerava este como derivado, direta e logicamente, do direito objetivo. Apresentando, assim, a seguinte distinção entre ambos, “Direito objetivo ou regra de direito é a norma de conduta que se impõe aos indivíduos que vivem em sociedade, norma cujo respeito se considera, num momento dado, pela sociedade, como a garantia de interesse comum, e cuja violação determina reação coletiva contra o autor de tal violação. [...] Direito subjetivo é um poder do indivíduo que vive em sociedade. É um poder para o indivíduo obter o reconhecimento social do objeto que pretende, quando o motivo que determina o seu ato de vontade é um fim considerado legítimo pelo direito objetivo.” In: DUGUIT, León. Fundamentos do direito. p. 07 26 Idem. Ibidem., p. 58 27 DUGUIT, loc. cit. 28 BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. p. 320-330 29 Acerca dos elementos, apontados por Gurvitch, como necessários para que um dado grupo social seja identificado como fato normativo, Billier destaca “[...] quando a formação do grupo representa para seu membros uma autoridade qualificada e impessoal; quando a autoridade não pode ser qualificada senão quando encarna um valor, que consiste em realizar a justiça cujo conteúdo é historicamente variável; quando, enfim, a autoridade é dotada de um eficiência real.” Cf.:Idem. Ibidem., p. 323.

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que um determinado grupo social possa ser identificado como fato normativo,

destacando principalmente o elemento “organização”, tal grupo, para Gurvitch,

comportará um direito. Nesse sentido, o referido autor distingue o direito presente

nos grupos sociais em dois momentos: um corresponde ao direito organizado e

outro ao direito espontâneo.30 Os grupos sociais seriam, então, próprias fontes do

direito, o que vai ao encontro do posicionamento antiformalista das teorias

pluralistas, uma vez que restaria por reconhecido como direito o que for ordenado

por qualquer grupo social desde que identificado como fato normativo. Isso afastaria,

destarte, o entendimento de que compete somente ao Estado a produção do que

vem a ser considerado direito.

Por fim, dentre os movimentos antiformalistas que se contrapõem

aos posicionamentos formalistas do direito, vale destacar a corrente do

institucionalismo, sendo considerado o sociólogo francês Maurice Hauriou [1856-

1929] um de seus precursores. Segundo o referido autor, tanto as construções do

conhecimento jurídico subjetivistas como as objetivistas não tenham sido suficientes

para definir, ou melhor, explicar o “direito”.31 O sistema jurídico subjetivista, nos

dizeres de Hauriou, foi construído sobre a base da personalidade jurídica.

Entretanto, este sistema teria falhado a respeito de certas questões.32

Primeiramente, acerca do reconhecimento do direito consuetudinário, o qual

independe de vontade,33 bem como, no que se refere à teoria da personalidade ao

não explicar a questão da continuidade, visto que o poder de vontade pode ser

descontínuo.34 Já acerca do sistema jurídico objetivista, o referido autor menciona

que os adeptos deste consideravam as regras de direito como coisa existente em

si.35 O direito considerado como produto da massa das consciências [sociedade].

Contudo, segundo Hauriou, este sistema não explicava onde se encontrava, na

sociedade, o poder criador de tais regras, sendo que havia uma preocupação maior

como o efeito [direito produto da sociedade], à causa [iniciativa e força de origem do

30 “Os fatos normativos, [...], comportam de um lado um direito organizado, ou seja, as regras, os órgãos competentes e os procedimentos – é a camada superficial do direito -; por outro lado, o direito espontâneo – é a camada mais profunda -, intimamente ligado ao que pode gerar o direito e conseguir assim modificar até o direito organizado.” Vide: BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. p. 324 31 HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. Tradução de Arturo Enrique Sampay. Buenos Aires: Abeledo – Perrot,1968. p. 31 32 Idem. Ibidem., p. 33 33 Idem. Ibidem., p. 34 34 Idem. Ibidem., p. 35 35 HAURIOU, loc. cit.

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direito].36 Ambos os sistemas teriam falhado ao não abordar a questão da fundação

tanto dos Estados quanto do próprio direito, uma vez que “[...] é fácil admitir que o

fundamento do Estado, e o da regra de Direito são fundamentos do Direito.”37

Conseqüentemente, isso favoreceu a ascensão da teoria institucionalista e a

respectiva questão da fundação das instituições,38 uma vez que objeto essencial de

tal teoria seria “[...] demonstrar que a fundação das instituições apresentam um

caráter jurídico e que deste ponto de vista os fundamentos de duração jurídica são

também jurídicos”.39 Porém, mesmo sucedendo essa discussão entre sistemas

jurídicos subjetivistas e o objetivistas, a teoria institucionalista não ignora os

elementos de tais construções do conhecimentos jurídico, justamente porque,

conforme Hauriou, em uma instituição corporativa pode-se encontrar em momentos

determinados elementos tanto de um como do outro sistema jurídico.40

Nesse contexto, impulsionando um desenvolvimento devidamente

fundamentado de tal corrente institucionalista, o jurista italiano Santi Romano [1875-

1947] destaca-se também como um de seus expoentes. Ao propor sua respectiva

concepção de ordenamento jurídico, Romano fornece bases sólidas para a proposta

paradigmática antiformalista de definição do direito. Conforme será abordado, o

jurista siciliano rechaça qualquer identificação deste, tão-somente a norma jurídica.41

Uma vez contextualizado na corrente institucionalista do conhecimento jurídico,

36 HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. p. 35-39 37 Idem. Ibidem., p. 39. Livre tradução do original: [...] es fácil admitir que el fundamento del Estado, y el de la regla de Derecho son fundamentos del Derecho. 38 HAURIOU, loc. cit. 39 HAURIOU, loc. cit. Livre tradução do original: [...] su objeto esencial era demonstrar que la fundación de las instituciones presenta un caráter jurídico y que desde este punto de vista los fundamentos de la duración jurídica son también jurídicos. 40 HAURIOU, loc. cit. Vale por ora ressaltar que quanto à concepção de instituição proposta por Maurice Hauriou, bem como as demais questões a esta concernentes, serão abordadas na secção 1.1.4, deste presente trabalho, ao destacar as divergências que há entre esta e a concepção romaniana de instituição. 41 Das definições já propostas, segundo Romano, ainda que possuam algum ponto em comum, como a assertiva de que o “ [...] direito constitui uma regra de conduta [...]”, restam por insuficientes, ao levar a uma visão reducionista do direito tão-somente enquanto norma jurídica. Considerando tal “[...] inadequação e insuficiência [...]”, Romano se propôs a traçar uma definição do direito, a qual, não exclui o ponto de convergência das demais. Mas sim, integra outros elementos que “[...] parecem ser essenciais e característicos [...]” para o contorno do direito. Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. Tradução de Arno Dal Ri Jr. cap. 1. Mimeografado. p. 09-10. Cabe advertir que, para efeitos do presente trabalho, ao que concerne as menções referentes a Romano, as expressões norma jurídica e lei, serão consideradas como sinônimas.

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antagônica aos posicionamentos formalistas, passa-se, por conseguinte, a

apresentar tal proposta antiformalista romaniana da definição do direito.42

1.1.1 Da objetividade do direito

A partir da premissa de que o homem é um ser social, este

procuraria se agregar aos demais, formando o corpo social. Para tanto, o homem

reconhece o outro como um sócio propenso a colaborar espontaneamente e

respeitar mutuamente suas liberdades, perfazendo uma troca recíproca.43 No

entanto, Romano adverte que esta propensão individual à colaboração e ao respeito

pode faltar, fazendo com que ocorram controvérsias que inviabilizam tal coexistência

entre os homens.44 Surge, devido a esta ausência, a necessidade de uma

consciência superior à individual,45 que reflita e represente a unificação do homem

para com os demais. Esta consciência, então, que “[...] encarna as razões da

coexistência e do sistema em que os indivíduos se unificam, que tem o papel de

mediador [...], é fornecida pelo direito.” Desse modo, adviria desta consciência

superior o aspecto de objetividade do direito.46

Compreender, então, a proposta antiformalista romaniana presente

na sua definição do direito requer o abandono de construções teóricas que

caracterizam determinado momento do conhecimento jurídico.47 A noção de um

estado de natureza, onde o indivíduo mesmo se encontrando isolado, é titular de

42 Quanto à contribuição de Romano na construção do conhecimento jurídico, Billier ressalta que “[...] é preciso fazer justiça à incontestável originalidade da doutrina de Santi Romano, que soube desenvolver-se em uma época em que os enfoques sociológicos do direito estavam quase totalmente ausentes na Itália e quando Kelsen estava a ponto de forjar sua concepção normativista.” Vide: BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. p. 336 43 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 19 44 ROMANO, loc. cit. 45 Quanto à superação dessa consciência individual, Romano menciona que “[...] se afirma que o direito é feito de normas, as quais foram retiradas da consciência de quem deve observá-las adquirindo uma existência autônoma. Isto não significa que o direito não tenha a sua raiz profunda nesta consciência, não seja projetado pelo seu íntimo e não seja luminoso reflexo desta, mas ele a transcende, a supera e a ela se contrapõe.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 46 ROMANO, loc. cit. 47 A respeito de certas construções teóricas presentes no conhecimento jurídico, Wolkmer destaca algumas que caracterizam a Escola de Direito Natural dos séculos XVII e XVIII, como “estado de natureza”, “contrato social” e “sociedade civil”. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. p. 131-134

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direitos os quais subjetivamente lhe são natos48, resta afastada por Romano,

justamente por identificar uma consciência fornecida pelo direito a qual supera a

consciência individual. Isso significaria que seria posta de lado qualquer relação de

subjetividade com o que vem a se identificar e definir o próprio direito.

Consoante o jurista italiano, essa definição do direito não se

limitaria à concepção de norma jurídica posta, mas sim, se estenderia a ponto de

considerar também o ente que põe esta norma jurídica, o fornecedor de tal

consciência superior, o qual não corresponderia à autoridade competente para o

exercício da função legislativa estatal.49 Desse modo, o que caracterizaria a

objetividade do direito, seria justamente “[...] a impessoalidade do poder que elabora

e fixa a regra, ao fato de que este mesmo poder é algo que transcende e se eleva

sobre os indivíduos, que se contextualiza como este mesmo direito.”50 Afasta-se,

ademais, qualquer correlação entre objetividade do direito e norma jurídica escrita.51

Conceber a objetividade do direito por meio da impessoalidade de

sua fonte, possibilitaria, portanto, não reduzi-lo a tão-somente norma jurídica,

escritas ou não. Conseqüentemente, isso permitiria a análise de momentos

materialmente anteriores à manifestação do direito.52 A objetividade do mesmo seria

apontada em momentos materiais que nem sempre são manifestos posteriormente

por meio de normas jurídicas, o que possibilitaria a identificação de tais momentos

com a própria definição do direito. Desse fenômeno adviria uma copiosa delineação

da concepção de direito, que não excluiria as normas jurídicas, mas também não se

esgotaria nelas53.

48 Tais concepções de um estado de natureza onde o indivíduo encontrava-se isolado e livre expressam o contexto político no qual se construiu um conhecimento jurídico na passagem de uma Estado absolutista para o Estado nação. Como bem menciona Wolkmer “A organização centralizada de poder que se institui sob a forma secularizada monárquica de Estado absolutista transforma-se no Estado nacional, liberal e representativo do século XVIII, gerenciador das leis do livre mercado do liberalismo econômico e tutor das relações de competição privada.” In: WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. p. 105 49 Vale mencionar que a questão de Romano conceber o legislador como um mediador entre a respectiva fonte do direito e sua manifestação por meio de norma jurídica, será exposta na secção 1.1.5, do presente trabalho. 50 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 20-21 51 “Não se afirma que a norma seja objetiva somente porque esteja escrita ou de modo formulada com exatidão. Se fosse assim esta não se diferenciaria das muitas outras normas jurídicas algumas em que tal sentido não são totalmente precisas como, por exemplo, os costumes. ” Cf.: Idem. Ibidem., p. 20 52 Idem. Ibidem., p. 22 53 ROMANO, loc.cit.

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1.1.2 Da organização social

Ao trabalhar a definição do direito, o jurista siciliano apresenta um

elemento que positivamente contribui para ampliar a extensão desta concepção,

ultrapassando a mera identificação de direito apenas como norma jurídica. Romano

traz o vocábulo “organização” para a esfera jurídica, com o propósito de expressar

um dos elementos basilares de sua definição de direito.54 Concernente a esta

questão da “organização”, Paolo Grossi ao trabalhar o resgate do direito enquanto

“ordenamento do social”, ressalta a importância de Romano como precursor em

trazer tal termo para a esfera jurídica, identificando-o com o próprio direito. Nessa

perspectiva, Grossi apresenta a seguinte concepção de “organização”, a qual vai de

encontro à romaniana,

Organização, de fato, significa sempre o primado da dimensão objetiva, com um resultado que acomete beneficamente a todos os componentes da comunidade organizada; significa sempre superação de posições singulares em seus isolamentos para obter o resultado substancial da ordem, substancial para a própria vida da comunidade.55

Desse modo, segundo Grossi, “[...] o direito organiza o social,

coloca ordem no desordenado conflito que ferve no seio da sociedade; é antes de

tudo ordenamento”. O conceito de organização, então, acaba por ser afastado de

qualquer outro que não o jurídico.56 Isso significa que “organização”, não

corresponderia ao sentido de algo pré-jurídico, como por exemplo, a organização

enquanto ordenamento social [momentos pré-jurídicos], sentido este encontrado nos

escritos sociológicos ou até mesmo jurídicos.57 Antes de qualquer manifestação do

direito por meio de normas jurídicas, haveria uma organização, a qual se identifica

54 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p.12 55 Idem. Ibidem., p.13 56 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 36 57 ROMANO, loc. cit. No tocante à identificação da palavra “organização” com a definição de direito, Romano ressalta que “[...] deve se observar (e isso é essencial para nós) que o conceito de organização não pode servir para o jurista enquanto que não for reduzido a conceito jurídico. Para fazer isso não basta certamente parafraseá-lo ou mencioná-lo com outras palavras de significado idêntico ou afim. Enquanto se falar de “corpus mysticum”, de estrutura ou de edifício ou sistema social, ou mesmo de mecanismo para diferenciar a organização do organismo natural, se utiliza uma terminologia que também pode ser exata, que pode servir para tornar imaginosa e plástica a idéia, mas que não é jurídica e, conseqüentemente, mesmo podendo ajudar o jurista, não o libera da obrigação de substituí-la por uma outra que tenha ao mesmo tempo a forma e a substância necessárias para assumir aquele conceito no mundo que é seu e que não é, ao contrário, o da sociologia.” Cf.: ROMANO, loc. cit.

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com o direito. Logo, “[...] o direito não é somente norma de relação, mas é sobretudo

e antes de tudo, organização”.58 Ainda quanto à utilização desta expressão na esfera

jurídica, Antonio Tarantino adverte que o fato de Romano não ter especificado mais

sua concepção de organização ocorre porque

[...] considerava que esta é evidente por si e que não pode ser reduzido a uma união de normas organizativas, sendo formada também por outros aspectos. Aspectos que podemos indicar, a exemplo, na impossibilidade de definir o direito normativo, na não menção de sanção no conceito de norma, na consideração da identidade do momento genético da instituição e do direito.59

Por conseguinte, a concepção de sociedade abordada por Romano

consiste em uma unidade harmônica. Quer isso dizer, uma unidade organizada que

compreenderia os indivíduos, os quais nela se encontram, mas ao mesmo tempo,

difere destes. A sociedade deveria ser compreendida, então, como um ente

[organizado], uma unidade efetivamente constituída, e não uma simples relação

entre indivíduos, na qual seriam estranhos os elementos do direito.60 Essa leitura

vem ao encontro da noção romaniana de objetividade do direito. Conforme abordado

na secção anterior, para Romano, é o direito [objetivamente considerado] que

forneceria a consciência superior à individual, que refletiria e representaria a

unificação do homem para com os demais. Em outras palavras, forneceria a

consciência que reflete e representa esta unidade harmônica que corresponde à

sociedade organizada. Direito e organização seriam, portanto, objetivamente

identificados nessa unidade harmônica, ou seja, na sociedade.

Ao ter por certo justamente esta relação homogênea de reflexo e de

representação da sociedade [como unidade harmônica] pelo direito [objetivamente

considerado], Romano propõe sua concepção sobre o conceito de direito, uma

noção segundo a qual seria inconcebível pensar em direito sem pensar em

sociedade, bem como pensar em sociedade sem pensar em direito. Nesse sentido,

conforme observa Antonio Tarantino, “Precisamente, Romano considerava que não

58 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 71 59 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.36. Livre tradução do original: Accennando, poi, al rilievo mosso al Romano, di nona ver specificato il concetto di organizzazione, crediamo di poter affermare che egli non lo abbia, ulteriormente, precisato próprio perchè riteneva che esso è evidente di per sè e che non può essere ridotto ad um insieme di norme organizzative, essendo formato anche da altri aspetti. Aspetti che possono essere indicati, ad esempio, nell’impossibilità della sanzione al concetto di norma, nella considerazione dell’identità del momento genético dell’istituzione e del diritto. 60 ROMANO, op. cit., p. 25. Nesse sentido, Romano refere-se a simples relação entre indivíduos como, por exemplo, a relação de amizade. Relação esta na qual seriam estranhos os elementos do direito. Cf.: ROMANO, loc. cit.

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é admissível uma sociedade sem direito, uma sociedade sem organização [...].”61

Conseqüentemente, o jurista siciliano ao considerar “[...] o direito com organização

dos fatos sociais permanentes, alegava que não é possível um direito à parte da

sociedade.”62

1.1.3 Do conceito de direito

Tais percepções, como a objetividade do direito e a identificação do

mesmo com a organização social, já bastam para alicerçar a assertiva de que o

direito não se manifesta tão-somente e nem se esgota em normas jurídicas. Mas

sim, em sua extensão, se manifesta em momentos anteriores a estas. Não obstante,

seguindo o propósito de apresentar uma definição do direito, Romano expõe quais

são os elementos essenciais que devem se fazer presentes no conceito do direito,

segundo sua definição.63 Ressalta-se que alguns desses elementos são

coincidentes com tais percepções e vão também ao encontro da assertiva

mencionada.

Onde há direito, há sociedade. Onde há sociedade, há direito.

Partindo de tal premissa, expressada nos brocardos latinos ubi ius ubi societas e ubi

societas ibi ius, para Romano, conceituar o direito, inevitavelmente, conduziria ao

conceito de sociedade.64 Desse modo, “direito” e “sociedade” são considerados,

como sentidos recíprocos que mutuamente se completam. O primeiro elemento que

deve ser levado em conta nessa concepção romaniana de direito, portanto, consiste

61 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.31. Livre tradução do original: Com precisione, il Romano considerava che non è ammissibile una società senza diritto, cioè una società senza organizzazione [...]. 62 TARANTINO, loc. cit., Livre tradução do original: [...] il diritto come l’organizzazione dei fatti sociali duraturi, sosteneva che non è possibile un diritto avulso dalla società. 63 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 24 64 Nesse sentido, Grossi buscando resgatar os traços essenciais de uma “realidade mal compreendida”, ou seja, o direito, ensina que humanidade do direito e, sua respectiva socialidade correspondem ao ponto de partida para tal empreendimento. Humanidade, pois o direito “[...] nasceu como o homem e para o homem [...]”, logo, socialidade uma vez que “[...] o direito não é escrito numa paisagem física que aguarda ainda o inserir-se humano, mas é escrito na história, na grande ou na pequena, que, dos primórdios até hoje, os homens constantemente teceram com sua inteligência e seus sentimentos, com seus idealismos e seus interesses, com seus amores e seus ódios. É no interior dessa história construída pelos homens que se coloca o direito, ali e somente ali”. Ressaltando ainda o autor, “O direito é de fato dimensão intersubjetiva, é relação entre vários sujeitos (poucos ou muitos) e é marcado pela sua essencial socialidade”. Ver, a respeito: GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. p. 08

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em compreender a sociedade como uma entidade constituída que se identifica com

o direito, sendo além disso, uma entidade que difere dos indivíduos que dela fazem

parte. Resta, enfim, afastada qualquer identificação do direito com a esfera tão-

somente individual, não social.65

De acordo com o referido jurista siciliano, a ordem social seria outro

elemento que deveria contar no conceito do direito.66 Se pensar em direito é pensar

em sociedade, e pensar em sociedade é pensar em organização, indubitavelmente,

pensar em organização é pensar em direito e vice-versa. Romano adverte que todo

e qualquer elemento que poderia levar à noção de desordem, como por exemplo,

puro arbítrio ou força material, deveria ser excluído do conceito do direito.67 De tal

elemento, o autor deduz o princípio de que “[...] toda a manifestação social, somente

pelo fato de ser social, é ordenada ao menos o que diz respeito aos seus

consócios”.68

Logo, sendo a organização um dos elementos que constituem o

conceito do direito e, a concepção de sociedade, segundo Romano, o direito põe a

ordem social. No entanto, esta ordem social posta pelo direito não se manifestaria

tão-somente e nem se esgota em normas jurídicas. Como terceiro elemento cabe,

segundo o jurista siciliano, a afirmação de que o direito, antes de ser norma jurídica

ou de referir-se a simples relações sociais, “[...] é organização, estrutura, posição da

mesma sociedade em que se realiza e que este constitui como unidade, como

entidade por si só.”69 O direito como uma expressão de sociedade organizada.

Após serem feitas as primeiras considerações sobre a definição de

direito, o qual se manifestaria em momento anterior a normas jurídicas, poder-se-ia

levantar as seguintes indagações: qual seria, então, a primeira manifestação do

direito, para Romano? Manifestação a qual concomitantemente assentaria esses

elementos do conceito do direito? Em resposta a esta questão, o autor apresenta

sua concepção de instituição ao desenvolver a sua respectiva teoria

institucionalista.70

65 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 25 66 ROMANO, loc. cit. 67 ROMANO, loc. cit. 68 Idem. Ibidem., p. 26 69 ROMANO, loc. cit. 70 Vale mencionar que segundo Tarantino, a teoria da instituição, concretiza o pensamento científico romaniano, pois nesta “[...] considerata nel suo momento genético, si presenta come teoria della necessita, mentre, considerata nel suo momento essenziale, inteso come vita e vitalità, si presenta

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1.1.4 Da concepção de instituição

Tanto pela objetividade quanto pela sua identificação com

organização social, a definição de direito proposta por Romano não se esgota em

normas jurídicas. Estas seriam tão-somente mais um dos meios de manifestação do

mesmo e não o próprio direito na totalidade. A partir de tais observações, a primeira

manifestação do direito, precedente às normas jurídicas, consistiria na “instituição”, a

qual “[...] é a primeira, originária e essencial manifestação do direito”.71

O vocábulo “instituição” é, desse modo, trazido para a esfera

jurídica. Ainda que sob certa influência de concepções limitadas já aduzidas na

terminologia técnica do direito,72 passa a ser atribuída a “instituição” uma outra

conotação, ampliando-a, a ponto de a mesma ser equiparada com a própria

definição de direito.

Nesse passo, conforme mencionado, Romano é também

considerado como um dos precursores da teoria institucionalista, ao lado do

sociólogo francês Maurice Hauriou.73 Contudo, ambos apresentem concepções

divergentes. Por isso, o jurista siciliano preocupa-se em discorrer sobre a distinção

que se apresenta entre sua concepção de “instituição” e a concepção de Hauriou.74

Pois, para Romano o conceito de “instituição” se identificaria com o de direito,

ambos corresponderiam a um fenômeno homogêneo. Trata-se, portanto, de uma

concepção que diverge daquela fornecida por Hauriou. Tendo em vista que, de

acordo com este sociólogo francês, uma instituição apresenta três elementos

essências, quais sejam,

[...] uma idéia de obra ou de empresa que se realiza e dura juridicamente em um meio social; para a realização desta idéia, se organiza um poder que proporciona os órgãos necessários; por outro lado entre os membros do grupo social interessado na realização da idéia, se produz manifestações de

come teoria dell’istituzione.” In: TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p. 29 71 ROMANO, O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 38. 72 Dentre tal influência, pode-se apontar a da concepção de “instituição” de Maurice Hauriou, conforme será exposto por conseguinte. 73 “O institucionalismo de Hauriou estendeu-se a vários países, afirmando-se não só na França, onde ainda é marcante a sua influência em todos os quadrantes do Direito, mas também na Itália, graças às contribuições originais e altamente valiosas de Santi Romano.” Vide: REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 235 74 ROMANO, op. cit., p. 28-31

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comunhão dirigidas por órgãos do poder e regulamentadas por procedimentos.75

Nesse sentido, Hauriou adverte que há dois tipos de instituições. No

primeiro caso, se trataria das instituições que se personificam, denominadas

“corporações”, como por exemplo, a instituição “Estado” ou as associações, e assim

por diante.76 O segundo caso corresponderia às instituições que não se

personificam, denominadas “instituições coisas”, como as regras de direito

socialmente estabelecidas.77 As instituições que se personificam teriam a presença

dos três elementos mencionados.78 Primeiramente, no que se refere “à idéia de obra

a realizar em um grupo social” [ou “idéia diretriz”], esta, segundo Hauriou, se

caracteriza por ser o elemento mais importante de toda instituição.79 Uma vez que

todo corpo constituído “realizaria uma obra”, não se confundindo, porém, com a idéia

de “fim” ou com a de “função” da instituição. Justamente porque, essa “obra a

realizar”, ou “idéia diretriz”, seria interior, iria além das funções de uma instituição e

possuiria uma existência objetiva quando propagada no meio social. Competiria,

então, aos membros de tal instituição [sujeitos desta] levar tal idéia diretriz. No caso

da instituição “Estado”, por exemplo, tanto os cidadãos quanto os órgãos do governo

corresponderiam aos sujeitos desta idéia.80

No que concerne ao segundo elemento, ou seja, o “poder

organizado posto a serviço desta idéia para que a mesma se realize”, Hauriou toma

como referência novamente a instituição “Estado”.81 Tal organização corresponderia

à separação dos poderes a fim realizar sua idéia diretriz. Este “poder organizado”

deveria ser compreendido como um poder de direito, e não simples força, suscetível

de criar o próprio direito. Conseqüentemente, esta organização dos poderes tornaria

possível a produção do direito. A instituição, assim, se identificaria como fonte

primeira deste direito. Contudo, seria uma fonte submetida à “idéia diretriz”.82

75 HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. p.39. Livre tradução do original: [...] una isntitución es una idea de obra o de empresa que se realiza y dura jurídicamente en un medio social; para la realización de esta idea, se organiza un poder que le procura los órganos necesarios; por otra parte entre los miembros del grupo social interesado en la realización de la idea, se producen manifestaciones de comunión dirigidas por órganos del poder y reglamentadas por procedimentos. 76 Idem. Ibidem., p. 40 77 Idem. Ibidem., p. 40-41 78 Idem. Ibidem., 41-47 79 HAURIOU, loc. cit. 80 HAURIOU, loc. cit. 81 Idem. Ibidem., p. 47-49 82 HAURIOU, loc. cit.

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Por fim, conforme mencionado, o terceiro elemento presente nas

instituições ditas corporações corresponderia às “manifestações de comunhão que

se produzem em um grupo social” relativas a sua idéia e a sua realização. Neste,

considerando novamente a instituição “Estado”, tais manifestações adviriam de uma

harmonização de vontades, seja de seus membros [cidadãos], seja dos órgãos do

governo.83 Desse modo, a análise de tais manifestações de comunhão seriam

possíveis somente tendo em consideração as consciências individualmente e não

coletivamente.84 Para Hauriou, seria uma pluralidade de consciências individuais

que, por um fenômeno de interpsicologia, se moveriam conjuntamente em direção a

uma idéia comum, uma comunhão, à luz da “idéia diretriz”.85

O ponto contrastante entre a concepção romaniana e a de Hauriou

no que se refere à “instituição”, corresponde, portanto, à identificação desta como

próprio direito proposta por Romano. Desse modo, o jurista siciliano se opõe à

identificação desta como fonte, tal como entende Hauriou.86 Acerca desta distinção

de concepção de instituição entre Romano e Hauriou, a questão da “necessidade”, é

assim apontada por Tarantino como ponto divergente entre ambas concepções

mencionadas.87 Segundo Tarantino na concepção romaniana a necessidade

identifica-se como fonte do direito, já na concepção atribuída por Hauriou a

necessidade não encontra espaço, uma vez que o objetivo de instituição, segundo

este, “[...] era o de demonstrar que o direito nasce da organização de um poder em

torno de uma idéia.”88 Enquanto organização social e direito possuem o mesmo

sentido para Romano, a organização social [o segundo elemento presente em dada

83 HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. p. 49 84 Idem. Ibidem., p. 50. “Analizar el fenómeno de la aparición de una conciencia colectiva, [...] equivale a disminuir esta realidad, porque la conciencia colectiva estaría ligada a la formación de una opinión intermédia en el campo social, es dicer, en le conjunto de los espíritus. Por el contrario, la refracción de una misma ideia directriz en una pluralidad de conciencias individuales, reserva el papel dirigente de las más altas conciencias a las consecuencias que deben obtenerse por la acción. Entre los dos análisis, existe la diferencia que separa la explicación de los progresos de la civilización por acción de las ‘élites’, y la explicación por la sola evolución del médio. La comunión en la idea es Ariel; la conciencia colectiva es Calibán.” Vide: Idem. Ibidem., p. 51 85 HAURIOU, loc. cit. 86 Consoante os dizeres de Romano “[...] não acreditamos que a instituição seja fonte do direito,e que conseqüentemente este seja um efeito, um produto da primeira, mas acreditamos que entre o conceito de instituição e o de ordenamento, considerado no seu todo e integralmente, existe um perfeita identidade”. Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 31 87 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.30 88 TARANTINO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] poichè scopo dell’istituzionalista francese era quello di dimostrare che il diritto nasce dall’organizzazione di um potere attorno ad un’idea.

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instituição] conforme Hauriou, se encontra em um momento “pré-jurídico”. O que faz

com que Hauriou considere o direito como um produto de tal organização.89

Consoante o sociólogo francês, neste momento pré-jurídico a “idéia diretriz” estaria

em estado de objetividade que corresponderia ao momento de incorporação da

instituição,90 que se personificaria quando a referida “idéia diretriz” passasse para o

estado de subjetividade. Esta subjetividade se expressaria pelos atos de vontade

consciente das manifestações de comunhão dos membros de um agrupamento

corporativo, por meio da intervenção de algum dos órgãos de governo, como por

exemplo, a lei.91 A manifestação do direito, enfim, ocorreria em um momento

posterior a organização da instituição.92 A organização social se encontraria,

portanto, em uma etapa pré-jurídica, pré manifestação de comunhões.

O jurista siciliano, por sua vez, ao enfatizar a identificação que

existe entre instituição e a primeira manifestação do direito, discorre sobre algumas

características fundamentais das instituições, entre tais, uma efetiva unidade social,

ou seja, para ser considerado instituição no sentido proposto, deve tal entidade ter

uma existência objetiva e concreta que notoriamente externe sua individualidade

enquanto corpo social.93

Outra característica diz respeito à natureza de sua manifestação, ou

seja, ser social e não tão-somente individual. Isso significa que um só indivíduo não

89 Nos dizeres de Hauriou, “Solo el poder organizado puede crear situaciones jurídicas, y solo él puede mantenerlas; ahora bien: la realización social de una idea de obra o de empresa no puede obtenerse si no se crean y mantienen situaciones jurídicas en ella y en torno de ella.” Cf.: HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. p. 60 90 O momento de incorporação da instituição para Hauriou identifica-se como o segundo para a personificação de uma dada instituição. Para Hauriou, o triplo movimento de incorporação de uma instituição como o Estado, por exemplo, correspondem à interiorização, incorporação e personificação. Cf.: Idem. Ibidem., p. 52 91 Idem. Ibidem., p. 61-62 92 Romano não ignora a contribuição de Hauriou para a construção do conhecimento jurídico, reconhecendo seu mérito por “[...] re-conduzir ao mundo jurídico o conceito de instituição entendido de um modo amplo, do qual até agora tínhamos somente traços”. Contudo, Romano também reconhece certas limitações de Hauriou, mencionando que este “[...] foi levado pela idéia de moldar as suas instituições a imagem e semelhança da maior entre essas, ou seja, o Estado, ou melhor, o Estado moderno, enquanto tratava-se de delinear uma figura generalíssima, cujas características contingentes podem variar e variam, na realidade, infinitamente”. ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 29 e 30 93 Idem. Ibidem., p. 32. “Desse modo, quando, na linguagem comum, se fala, por exemplo, da instituição da imprensa, ou na linguagem técnico-jurídico, da instituição ou, freqüentemente, do instituto da doação, da compra-e-venda, etc. não se quer falar de efetiva unidade social, mas, no primeiro caso, da manifestação de determinadas forças que na realidade estão desunidas e freqüentemente divergentes, e, no segundo caso, das várias relações ou normas individuais, que, tendo em vista a figura comum das características típicas que apresentam, são reagrupados somente do ponto de vista conceitual.” Cf.: ROMANO, loc. cit.

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corresponderia a uma instituição.94 No entanto, a ligação de homens entre si não

consistiria em condição única para a sua existência. De acordo com Romano, o

substrato desta pode ocorrer de dois modos: pela ligação de homens entre si unidos

por interesses, comuns ou contínuos, por um objetivo, etc.; ou por um conjunto de

meios, não sendo assim composta por homens, mas sim administrada e dirigida

pelos mesmos.95

Enquanto efetiva unidade social, a instituição caracteriza-se

também como uma entidade fechada, que por possuir uma individualidade peculiar,

pode ser examinada em si e por si.96 Isso, contudo, não obsta que a mesma se

correlacione com as demais instituições, haja vista que, este caráter fechado da

instituição não significa que sua autonomia seja absoluta em relação às demais

instituições, mas sim e somente, relativa.97

Por fim, uma quarta característica fundamental da instituição diz

respeito a sua permanência, como uma unidade fechada.98 Quer isso dizer que, a

manutenção de sua respectiva identidade independeria da alteração das suas

peculiaridades, tais como as pessoas que dela fazem parte, os indivíduos que são

seus elementos, os seus meios, os seus interesses, os seus destinatários, o seu

patrimônio, etc.99

Cabe advertir que Romano, propositalmente, ao expor as

características fundamentais de uma instituição, não fez qualquer menção ao

vocábulo “organização”. Conforme já abordado na secção anterior, este vocábulo foi

trazido pelo autor para a esfera jurídica, afastando-se das demais concepções que o

atribuíam um sentido não-jurídica. Muitas das quais foram utilizadas em

94 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 33 95 ROMANO, loc. cit. Ainda quanto às instituições que possuem como substrato um conjunto de meios, Romano menciona que tais meios podem ser “[...] materiais ou imateriais, pessoais ou reais, destinados a servir permanentemente a um determinado fim, a favor não de pessoas que pertençam às mesmas instituições, mas de pessoas estranhas, que são somente os destinatários e não os membros desta última.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 96 Idem. Ibidem., p. 34 97 ROMANO, loc. cit. 98 Idem. Ibidem., p. 35 99 ROMANO, loc. cit. Quanto a esta característica fundamental da instituição, vale mencionar as considerações feitas por Billier à mesma, qual seja, “A organização deve, [...], constituir uma unidade estável e permanente e, nesse sentido, sua identidade não é abalada pelas mutações que ocorrem em um dos elementos que a constituem (as pessoas, o patrimônio ou suas regras). Em outras palavras, a ordem interna dessa organização “oferece uma aquisição de personificação” e lhe permite apresentar-se como uma individualidade com vontade própria.” Sendo assim, a instituição, conforme será abordado posteriormente, identificada com o próprio ordenamento jurídico. Vide: BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. p. 337

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conceituações da palavra “instituição”, mas sem qualquer identificação com o

conceito de direito. Reitera-se que a concepção romaniana de organização

corresponde a de direito, bem como esta àquela. Logo, segundo o autor “Não

existem dúvidas quanto ao fato da instituição ser uma organização social”.100

A questão de identificar a organização, mais especificamente, uma

organização social com o próprio direito apresenta-se fortemente determinante no

posicionamento de Romano, a ponto do jurista siciliano mencionar que mesmo as

entidades consideradas ilícitas frente ao ordenamento jurídico do Estado enquanto

tais “[...] possuem uma organização interna e um ordenamento que considerado em

si e por si não pode deixar de ser qualificado como jurídico.”101 Ao referir-se às

noções de Romano, Miguel Reale ressalta que “A concepção institucional do jurista

italiano é de cunho estritamente jurídico, mantendo-se no plano científico-positivo,

sem qualquer subordinação da juridicidade a critérios deontológicos.”102 Ao admitir

que as entidades ilícitas identificam-se com o direito, por encontrarem-se

organizadas, é afastada qualquer relação de dependência entre o direito e as

questões morais, o que fundamentaria a negação do caráter de juridicidade de tais

entidades seria apenas conseqüência de um julgamento de valor ético, tendo em

vista que estas entidades normalmente apresentam-se como imorais ou delituosas.

Esta negação do caráter de juridicidade ainda estaria condicionada pela

demonstração de que o direito positivado deveria ser necessário e absolutamente

dependente da moral. No tocante a este tratamento de Romano às entidades ilícitas,

Tarantino destaca que o jurista siciliano

[...] não enfrentou, com o seu conceito de instituição, o problema da ética do direito. O problema central da instituição é aquele da ordem social, por isso, da organização da instituição, da sua estrutura. [...] cada instituição considerada com ente existente, independentemente da finalidade que persegue, moral ou imoral, licito ou ilícito, realiza uma própria ordem.103

100 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 36 101 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. Tradução de Arno Dal Ri Jr. cap. 2. Mimeografado. p. 15. Ressaltando ainda Romano, quanto à juridicidade presente em tais entidades ditas ilícitas, “A eficácia de tal ordenamento será aquela que será, segundo a sua constituição, os seus fins, os seus meios, as suas normas e as sanções da qual poderá dispor. Será, de fato, frágil, se forte será o Estado; poderá algumas vezes ser também tão potente a ponto de minar a existência do próprio Estado; mas isso não tem nenhuma importância para a avaliação jurídica do ordenamento.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 102 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 524 103 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.32. Livre tradução do original: [...] non ha affrontato, con il suo concetto di istituzione, il problema dell’eticità del diritto. Il problema centrale dell’istituzione è quello dell’ordine sociale, cioè dell’organizzazione dell’istituzione, Della sua struttura. [...] ciascuna istituzione, considerata come ente esistente, indipendentemente dallo scopo che persegue, morale o immorale, lecito o illecito, realizza um proprio ordine.

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No entanto, Romano ressalta que demonstrar tal dependência da

moral seria até certa ingenuidade, devido à inexistência, por vezes, de tal

dependência.104 Por isso, ao jurista competiria apenas “[...] constatar a existência de

ordenamentos objetivos, institucionais e por isso jurídicos, cada um na sua própria

órbita, que são, ao contrário, antijurídicos a respeito do direito do Estado, que os

exclui da sua esfera, ou melhor, os combate”.105 Ante tal posicionamento romaniano

dicotômico, entre direito e as questões morais, Tarantino ainda comenta que

Romano

[...] concretizava a essência da instituição na função ordinante do direito e a concretizava em uma atividade que se desenvolve não para realizar uma finalidade ou outra, mas para obter uma solda entre fato e direito. E partindo desta observação ele terminava por atribuir o caráter de juridicidade também às associações ilícitas.106

Não tergiversando a importância das demais características

fundamentais presentes na concepção romaniana de instituição,107 vale ressaltar a

aquela correspondente à autonomia relativa.108 Uma vez que é justamente esta

característica que leva a observação de que uma instituição pode estabelecer

relações com outras instituições, bem como destas fazer parte mais ou menos

104 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 15 105 Idem. Ibidem., p. 16 106 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.33. Livre tradução do original: [...] concretizzava l’essenza dell’istituzione nella funzione ordinante del diritto e la concretizzava in un’attività che si svolge non per realizzare uno scopo o un altro, ma per ottenere una saldatura fra fatto e diritto. E próprio partendo da siffatta osservazione egli finiva con l’attribuire il carattere di giuridicità anche alle associazioni illecite. 107 Refere-se, por ora, as demais características já mencionadas como, por exemplo, a instituição enquanto unidade de natureza social, ou seja, uma unidade social, fechada e permanente. 108 É pertinente a observação feita por Tarantino no sentido de que a questão da autonomia relativa surge em consideração às instituições complexas, ou em mais de uma simples ou mais de uma complexa, e não em consideração a uma única instituição simples, individual e isolada. Cf.: Idem. Ibidem., p. 34. Livre tradução do original: Questo problema (quello dell’autonomia relativa o assoluta) non sorge nella considerazione, individuale ed isolata dell’istituzione semplice, ma nel caso dell’istituzione complessa (fatto giuridico che comporta il principio di subordinazione) oppure nel caso de più istituzioni semplici o di più istituzioni complesse (realtà giuridica che comporta il principio di coordinazione). Assim, considerando o Estado como uma instituição complexa, Romano menciona que as normas jurídicas “[...] que são elementos de outras instituições dependentes do Estado, e algumas vezes aquelas estabelecidas por elas, desde que tais instituições sejam autorizadas a fazê-lo” podem ser complementares àquelas normas jurídicas diretamente estatais. A “autonomia”, portanto, seria o poder, atribuído a tais instituições dependentes, para elaborar normas jurídicas. Logo, tal poder “[...] deriva sempre do Estado, que o atribui em medidas diferentes, conforme os casos, e está, portanto, inteiramente subordinado às normas estatais, para validade, extensão e eficácia das normas que dele promanam.” ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 115

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integrante.109 Nesse momento, Romano apresenta uma classificação, não

exaustiva,110 acerca das características fundamentais que as instituições possam vir

a assumir ao relacionarem-se entre si.111

A primeira classificação divide-as em originárias, derivadas e

intermediárias, conforme a fonte que estabelece o ordenamento jurídico de dada

instituição.112 No primeiro caso existiria a independência quanto à fonte que

estabelece o ordenamento, ou seja, a instituição seria concreta e estabeleceria o

seu próprio ordenamento, cuja fonte estaria em si, como por exemplo, ocorre com o

Estado. No segundo caso, da derivada, a instituição [inferior] seria dependente da

fonte que estabelece seu ordenamento, ou seja, compete a uma outra instituição

[superior] estabelece-lo, como ocorre com os municípios. No terceiro caso, da

instituição intermediária ocorrerá quando seu respectivo ordenamento é misto, ou

seja, parte originário e parte derivado, característica que também pode ser assumida

pelos Estados.113

Outra classificação elaborada pelo autor italiano se refere à

finalidade da instituição, entre fins particulares e fins gerais.114 A primeira seria de

caráter limitado, sendo que a eficácia de seu ordenamento jurídico se restringiria a

somente uma, ou algumas, esferas da vida humana, como a econômica, a religiosa,

etc. No que concerne à segunda, a eficácia de seu ordenamento jurídico seria

irrestrita, ilimitada, como ocorre, por exemplo, com o Estado. Esta generalidade dos

fins do Estado enquanto instituição significaria que a eficácia de seu ordenamento

jurídico será sempre extensível a todas as manifestações da vida individual que, por

sua própria natureza, possam ser levadas em consideração pelo direito. Mesmo

109 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 34 110 Romano adverte, ao mencionar das diversas características fundamentais que as instituições possam vir a ter ao relacionar-se entre si, que “[...] já que estas características variam em formas infinitas - e não é o caso de tentar fazer uma classificação completa delas -, é necessário que a nossa tarefa seja limitada a salientar as figuras que, do nosso ponto de vista, parecem mais importantes.” Vide: Idem. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 27 111 ROMANO, loc. cit. Cabe, por ora, mencionar que abordar-se-á na secção 3.2, do presente trabalho, as questões como: qual o fundamento da relação entre as instituições, bem como as diferentes naturezas do condicionamento de um ordenamento para com o outro, o que possibilita, conseqüentemente, a identificação da classificação a seguir apresentada nesta secção 1.1.4. 112 ROMANO, loc. cit. 113 ROMANO, loc. cit. 114 Idem. Ibidem., p. 27 - 28

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possuindo esta característica de generalidade, o Estado não seria considerado como

ente universal.115

Outra característica que, consoante Romano, também deve ser

observada na mensuração da eficácia do ordenamento jurídico de uma instituição

concerne aos elementos que a compõe,116 uma vez que, para o autor, o substrato de

uma instituição pode-se dar de diferentes modos.117 Contudo, ressalta o autor que o

ordenamento jurídico de uma instituição poderia valer além do âmbito delineado

pelos elementos constitutivos da mesma, como no exterior, por exemplo, quando

seus respectivos destinatários encontram-se fora desta.118

Quanto às simples e à complexa, Romano a entende como uma

classificação decorrente da relação de uma instituição com as demais, fazendo com

que destas, aquela faça parte mais ou menos integrante.119 Cabe mencionar que a

distinção entre instituição simples e complexa não coincide com aquela entre

originária e derivada, ainda que possuam certa ligação. Logo, contrapondo-se a

simples, há a instituição complexa, a qual seria uma “instituição de instituições”. Isso

significa que, sendo uma instituição em si, maior e superior, a complexa seria

composta por outras instituições, menores e inferiores. Desse modo, segundo

Romano, se estabeleceria uma relação de subordinação.120 Contudo, esta mesma

relação ocorreria em diferentes graus: ou a instituição deriva da complexa; ou a

instituição é em parte originária; ou a instituição é originária no que concerne ao seu

próprio ordenamento, no entanto dependente de uma [instituição] maior acerca de

certos direitos e deveres relativos a esta ou a outras alheias à mesma, como por

exemplo, na relação do Estado e a comunidade internacional.121

Outra distinção entre instituições destacada por Romano consiste

entre as perfeitas e as imperfeitas.122 Distinção a qual depende de outras

115 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 27-28 116 Idem. Ibidem., p. 28 117 Vale lembrar que conforme já mencionado no tocante às características fundamentais de uma instituição, a natureza de suas manifestação deve ser social. Todavia, o substrato desta instituição pode-se dar de dois modos diversos, ou pela ligação de homens entre si unidos por interesses, comuns ou contínuos, por um objetivo, etc., ou por um conjunto de meios, não sendo assim composta por homens, mas sim administrada e dirigida pelos mesmos. 118 ROMANO, loc. cit. 119 ROMANO, loc. cit. 120 ROMANO, loc. cit. 121 ROMANO, loc. cit. Vale ressaltar que essa questão da comunidade internacional enquanto instituição complexa será novamente abordada no Capítulo 3, do presente trabalho. 122 Idem. Ibidem., p. 29

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características já apontadas. Para o jurista siciliano, uma instituição pode ser

considerada perfeita quando é originária, ou seja, existe independência quanto à

fonte que estabelece o ordenamento. Além disso, esta instituição perfeita poderia

ser ainda ou simples ou complexa. Já no que se refere à imperfeita, esta se apoiaria

em outras instituições.123 Contudo, uma instituição imperfeita poderia ser originária

ou derivada das outras. Quando originária é coordenada ou não inteiramente

subordinada à outra, já quando subordinada a esta outra a instituição imperfeita é

derivada.124

No que concerne à personalidade jurídica: a instituição que possui

tal qualidade dispõe de “[...] um poder próprio cujo seus membros, que podem ser

também outras instituições, permanecem subordinados, e constituem o fulcro da sua

organização”.125 A instituição que não possui personalidade jurídica seria,

conseqüentemente, desprovida de tal poder. Nesse caso, Romano menciona que a

relação com seus respectivos membros se dá de dois modos: ou não há

subordinação permanecendo os seus membros em uma relação igualitária, como

ocorre, por exemplo, na comunidade internacional; ou o fulcro de sua organização

constitui na “[...] supremacia de um ou mais de seus membros sobre os outros”.126

Por último, acerca da relação de dependência entre as instituições,

são destacadas três situações.127 Primeiro, quando há uma dependência unilateral,

ou seja, quando somente uma instituição declara ser dependente da outra, enquanto

esta não depende daquela.128 Uma outra situação ocorreria quando as relações

recíprocas entre instituições são coordenadas baseadas ou na igualdade, ou em

certa posição de subordinação e de co-respectiva supremacia. Por fim, quando não

há dependência entre as instituições, desse modo, são reciprocamente

independentes.129

A instituição seria, então, a primeira manifestação do direto,

justamente porque todos os elementos presentes no conceito de direito, tais como

“sociedade enquanto entidade constituída [objetividade]”, “ordem social”, bem como

“ser esta posta pelo direito”, restam por identificados com as características

123 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 29 124 ROMANO, loc. cit. 125 ROMANO, loc. cit. 126 ROMANO, loc. cit. 127 ROMANO, loc. cit. 128 ROMANO, loc. cit. 129 ROMANO, loc. cit.

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fundamentais de uma instituição. Dentre tais características vale mencionar: uma

efetiva unidade social [objetividade]; a natureza social de sua manifestação; ser uma

entidade fechada a qual pode ser examinada em si e por si; e permanente,

acrescentando-se ainda a ressalva de ser uma organização social. Destarte, os

elementos do conceito do direito frente às características fundamentais da instituição

levam a uma mútua identificação de concepções a ponto do jurista siciliano as

equiparar com a concepção de ordenamento jurídico. Segundo Jean-Cassien Billier,

A ilustração perfeita da teoria da institucional italiana nos é fornecida pela ordem interna da empresa [...]. A empresa não pode reduzir-se ao grupo de sociedades que a compõem – a sociedade-mãe e suas filiais que lhe servem de suporte jurídico. Não dispondo da personalidade moral, a empresa não dá nascimento a uma nova pessoa autônoma independente do grupo de sociedades. De qualquer forma, ela constitui nos fatos uma unidade organizacional: suas decisões internas que, vistas do exterior, parecem decisões de uma de suas sociedades, são de fato decisões tomadas pela empresa, ou seja, por aqueles que controlam em definitivo a sociedade-mãe.130

Contudo, para que se possa tecer as devidas considerações acerca

da concepção de ordenamento jurídico proposta por Romano, resta responder à

seguinte indagação: se, conforme visto, a concepção de instituição corresponderia à

primeira manifestação do direito, logo, a instituição não se identificaria como fonte do

direito, pois é o próprio direito. Qual seria então, segundo Romano, este momento

originário do direito? A fonte131 do ordenamento jurídico, que se manifestaria antes

da própria instituição? É justamente para abordar esta questão concernente à fonte

do direito que Romano desenvolve sua “teoria da necessidade”.

130 BILLIER, Jean-Cassien; MARYOLI, Aglaé. As teorias antiformalistas. In: _____. História da filosofia do direito. p. 338. Logo, conforme Romano, tal entidade, como por exemplo, uma empresa, corresponde a um ordenamento interno autônomo, de modo que “[...] o caráter de instituição que deve ser atribuído a esta ou aquela entidade advém da sua estrutura, do seu direito interno [...]”. Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 60 131 Acerca da questão “fonte do direito”, vale por ora mencionar os dois questionamentos os quais Widar Cesarini Sforza entende como inevitáveis ao se trabalhar com tal questão. Segundo o referido autor, uma primeira indagação que pode ser feito corresponde ao “como reconhecer o direito?”, e a segunda seria “por que tal norma é considerada jurídica?”. Desse modo, Sforza aduz que aquela é respondida ao trata da fonte de conhecimento jurídico, sendo que esta é respondida considerando da fonte qualificativa do direito [condição de validade]. Ver, a respeito: SFORZA, Widar Cesarini. La crisi delle fonti. In: L’antiformalismo giuridico: un percorso antologico. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1999. p. 341-351. Tal entendimento assim caracteriza o posicionamento do referido autor, o qual ao abordar “A crise das fontes”, defende um positivismo jurídico, compreender o direito tão-somente como norma jurídica, o que leva o mesmo a identificar a “fonte do conhecimento jurídico” com a própria definição de direito, ou seja, com a lei. Tal posicionamento, no entanto, vai de encontra ao entendimento de Romano, o qual por compreender o direito como não tão-somente norma jurídica, identifica a sua respectiva fonte em momento anterior tanto a própria instituição, quanto à norma jurídica. Conseqüentemente não há uma identificação entre fonte do direito [correspondente a fonte de conhecimento jurídico] e a definição do que se concebe por direito, conforme será exposto na secção seguinte. Cf.: Idem. Ibidem., p. 343

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1.1.5 A teoria da necessidade

Independentemente de qualquer valoração comparativa, no que se

refere a sua contribuição para o estudo do direito, bem como de qualquer rigor

categórico, a produção científica de Romano pode ser dividida em dois períodos

distintos.132 Entre 1894 e 1909, sua preocupação estava voltada em trabalhar a

questão do direito como fato, contemplando pontos como a identificação da fonte do

direito, abordando neste a necessidade. Já entre 1909 e 1947, superando a

abordagem acerca da fonte do direito, volta-se para a questão da definição do

mesmo, elaborando duas de suas teorias: o institucionalismo e o pluralismo, ambas

do ordenamento jurídico.

A teoria da necessidade foi trazida para a esfera jurídica,133 por

Romano, quando este depara com a problemática de identificação da fonte do

direito. Identificá-la em consonância com os pensamentos antiformalistas,

tergiversando identificações já sedimentadas que consideravam a lei como fonte

primeira do direito. O alcance da necessidade como fonte do direito, segundo a

doutrina romaniana, não se limitaria apenas identificá-la como fonte da “lei”.134 Mas

também, correspondê-la à fonte do direito “[...] escrito e não escrito, das

modificações parciais e provisórias do ordenamento, das modificações duradouras e

da instauração de um novo ordenamento”.135 Uma vez que, consoante os

ensinamentos de Romano, a necessidade ao ser considerada como fonte primeira

132 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.11 133 Acerca da teoria da necessidade abordada por Romano na sua produção científica, Tarantino ressalta não ser aquele o pai de tal teoria, mas sim o cientista jurídico que desenvolveu a teoria da necessidade de modo diferente do apresentado, até a exposição dos seus respectivos trabalhos. Ver a propósito: Idem. Ibidem., p.06. Livre tradução do original: [...] sulla teoria della necessità del Romano non vogliamo affermare che egli è il padre di siffatta teoria, ma intendiamo precisare che egli è lo scienziato del diritto che ha raccolto sull’argomento quanto si andava affermando e sostenendo prima de lui, che con il suo método ha esaminato e verificato tale teoria da diversi aspetti in diversi saggi, e che poi, nel 1909, quando la ritenne verificata sufficientemente, la espose. Vale mencionar que devido ao contexto político em que tal teoria foi apresentada, “La necessità come fonte del diritto non poteva trovare pieno accoglimento nel regime fascista perchè [...] essa è espressione di realismo giuridico e non di giusvolontarismo.” Cf.: Idem. Ibidem., p.13 134 Idem. Ibidem., p. 14 135 TARANTINO, loc. cit. Livre tradução do original: Ciò non significa, però, che la teoria della necessità del Romano si limiti a sostenere che la necessità sia fonte solo dei decreti-legge; infatti,[...], nella dotrina romaniana, essa è fonte del diritto scritto e non scritto, delle modificazioni parziali e provvisorie dell’ordinamento, delle modificazioni durante e delle instaurazioni di nuovi ordinamenti.

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do direito, desempenha também o papel de limitadora da função legislativa exercida

pelo órgão estatal competente para tanto.136

A necessidade, portanto, no primeiro momento consistiria na fonte

do direito. Este, entendido por Romano como algo “[...] que surge imediatamente e

diretamente das forças sociais [...]”,137 de modo tão preciso a ponto de impedir “[...]

que entre as próprias necessidades sociais que determinam a norma jurídica e o

resgate e a declaração desta última se interfira a atividade racional dos órgãos

competentes para tal declaração”.138 Quanto a este sentido da necessidade “como

fonte do direito”, vale mencionar a observação feita por Tarantino ressaltando a

distinção entre este e o sentido da mesma empregado pelas teorias naturalistas, “[...]

na necessidade de Romano a racionalidade se concretiza na organização da

instituição, na necessidade do direito natural, ao invés, esta se concretiza no direito

que está inserido na mente humana ou que é descoberto pela razão humana.”139

Isso significa que a necessidade, além de produtora primária, identifica-se com o

próprio direito. O que faz com que o legislador apenas declare o direito já presente

na sociedade organizada.140 O direito não seria um produto da atividade deste, mas

sim da necessidade. As normas jurídicas expressariam, então, a necessidade

trazida, colhida, e consagrada em ato por meio do exercício da função do

legislador.141

136 Ao abordar a questão acerca do limite da função legislativa no direito italiano, Romano destaca que além da necessidade, o costume e certos princípios jurídicos, escritos ou não, vinculam o legislador no desempenho de sua atividade originária, impedindo assim que o mesmo atue arbitrariamente, não correspondendo aos anseios sociais. Cf. ROMANO, Santi. Osservazioni preliminari per una teoria sui limiti della funzione legislativa nel diritto italiano. In: _____. Scritti minori. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1950. p. 198 137 Idem. Ibidem., p. 194-195. Livre tradução do original: [...] di quel diritto che scaturisce immediatamente e direttamente dalle forze sociali [...]. 138 Idem. Ibidem., p. 195. Livre tradução do original: [...] che tra i bisogni sociali stessi che determinano la norma giuridica e il rinvenimento e la dichiarazione di quest’ultima si frapponga l’attività razionale degli organi competenti a questa dichiarazione. 139 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p 26. Livre tradução do original: [...] nella necessita del Romano la razionalità si concretizza nella organizzazione della istituzione, nella necessità del diritto naturale, invece, essa si concretizza nel diritto che è ínsito nella mente umana o che si scopre attraverso la reagione. 140 ROMANO, op. cit., p. 195 141ROMANO, loc. cit. Livre tradução do original: La necessità, cosi intesa, non è um presupposto della regula iuris, ma è essa stessa diritto, nel senso che questo è un suo prodotto immediato e, per dir così, di primo grado; il legislatore non fa che prenderne atto e consacrarla [...]. Vale mencionar que Romano ao trabalhar sua teoria das fontes do direito, mesmo considerando a necessidade como fonte primeira deste, não ignorou o importante papel que a lei também desempenha como fonte do direito. Pois Romano, “[...] não só trabalhou a distinção entre ius scriptum e ius non scriptum e suas respectivas fontes, não só afirmou a prevalência do direito não-escrito sobre o direito escrito, mas observou que, nos Estados modernos, das leis, entendida como fonte, nasce a maior parte do

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Romano, ao eleger a necessidade como fonte primeira do direito,

“[...] colocava o fundamento de validade das normas na necessidade, tais em

conformidade à realidade, a um fato social.”142 Logo, uma norma jurídica seria válida

e verdadeira se expressasse uma realidade, correspondendo a um “ser”, ou seja,

uma necessidade social. E não se apenas correspondesse a um “dever ser”.

A necessidade, então, enquanto fonte primária do direito

desempenharia um papel relevante para o legislador ao exercer a sua função

originária, pois este, por ser o mediador entre as necessidades sociais e as normas

jurídicas, encontrar-se-ia também limitado a tais necessidades na produção do

direito enquanto normas jurídicas. Desse modo, é a própria necessidade social que

permite ao legislador modificar e dinamizar a produção normativa a fim de responder

aos anseios sociais. 143

Portanto, a necessidade nos dois sentidos acima mencionados seja

como fonte do direito, seja também como limitadora da atividade originária do

legislador, atribuiria consistência jurídica ao preceito segundo o qual “[...] veta aos

órgãos legislativos a declaração de novo direito que não seja motivado por uma

necessidade [...]”.144 Necessidade esta, enquanto fonte e limitadora, encontrada na

própria sociedade, na consciência social. O referido preceito, então, vai ao encontro

do primeiro elemento destacado por Romano na sua conceituação de direito, qual

seja, a compreensão da sociedade como uma entidade constituída a qual se

identifica com o direito. Nesse contexto, o legislador corresponderia a um “mediador”

que declararia o direito, acompanhando o dinamismo social, e não um “criador” do

direito. Ademais, tal preceito ainda fomenta a assertiva segundo a qual “[...] o jurista

não deve subordinar a realidade ao conceito, mas sim o conceito à realidade”.145 Ao

primar sempre por esta realidade, tanto social quanto jurídica, a referida assertiva

expressa o sincronismo e a interação que deve haver entre fato e direito. Obtêm-se,

direito.” O que para Tarantino, ao considerar que o direito não escrito prevalece sobre o escrito Romano quis expressar que “[...] che la legge, come fonte, va considerata come lo strumento técnico-legislativo attraverso cui entrano a far parte dell’ordinamento giuridico i nuovi spazi che, man mano, vengono ad essere conquistati dalla istituzione, mediante la funzione dinamica della sua struttura..” In: TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p. 27 142 Idem. Ibidem., p. 24. Livre tradução do original: [...] poneva il fondamento della valità delle norme nella loro conformità allá realtà, ad un fatto sociale. 143 ROMANO, Santi. Osservazioni preliminari per una teoria sui limiti della funzione legislativa nel diritto italiano. In: _____. Scritti minori. p. 195 144 ROMANO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] vieti agli organi legislativi la dichiarazione di nuovo diritto che non sia motivata da una necessità [...]. 145 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 45.

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então, a união destas duas realidades ao se considerar que a necessidade presente

na consciência social identifica-se com o próprio direito, antes de qualquer mediação

pelo legislador.146 Este, apenas a declararia posteriormente por meio da norma

jurídica. Nesse sentido, seria o conceito [norma jurídica] que deveria seguir a

realidade [necessidade social enquanto direito], e não o contrário. O que enfatiza,

destarte, o primeiro elemento do conceito de direito aduzido por Romano.

Todavia, caso o legislador ao exercer sua função não observar o

preceito acima mencionado e declarar um novo direito que não seja motivado por

uma necessidade, provocaria, conseqüentemente, o rompimento entre a realidade

social e a norma jurídica. Desse modo, o legislador não estaria declarando o direito,

mas sim o transformando, o que foge os limites de sua competência.147 Contudo,

mesmo quando verificado a ocorrência de tal rompimento entre o fato e o direito

manifestado pelo legislador, competiria ainda à própria necessidade retomar o

equilíbrio. Quer isso dizer que, enquanto fonte e limitadora, cabe a necessidade

retomar o este equilíbrio entre a realidade, social e jurídica, e a sua manifestação

por meio da norma jurídica.148

Considerada, portanto, a necessidade tanto como fonte primeira do

direito quanto como limitadora da função exercida pelo legislador, resta assentado o

entendimento da teoria institucionalista segundo a qual a instituição identifica-se com

o próprio direito. Afasta-se, então, qualquer correspondência da instituição como

fonte do direito, justamente porque competiria à necessidade originar o mesmo que

posteriormente é declarado pelo legislador. Evidencia-se nesse sentido, a noção

romaniana da manifestação do direito em um momento anterior à produção das

normas jurídicas, pois estas seriam apenas “declaradas” pelos legisladores. O que

significa, que o direito já estaria constituído na instituição. A necessidade como fonte

146 TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. p.18. Livre tradução do original: [...] deve esistire un sicronismo ed un’interazione fra fatto sociale e diritto e per ottenere cio, come sutura e collegamento delle due realtà, quela sociale e quella giuridica, poneva, come s’è visto, la necessità, la faceva ”adagiare nella coscienza sociale e la considerava como diritto formato in manera definitiva già prima d’essere rinvenuto dal legisladore. 147 Idem. Ibidem., p.28. Livre tradução do original: Se il legislatore non svolge il suo compito, cioè se non dichiara, ma trasforma il diritto che trova nella coscienza colletiva, si stabilisce una frattura fra la realtà giuridica, come espressione dei bisogni sociali, e il diritto emanato dal legislatore. 148 TARANTINO, loc. cit. Livre tradução do original: Proprio siffatta frattura, quando si verifica, mette in moto la necessità, la quale può ristabilire l’equilibrio fra fatto e diritto [...]. Vale mencionar alguns dos meios, apontados por Tarantino, pelos quais a necessidade pode restabelecer o equilíbrio entre o fato e o direito, este enquanto norma jurídica, quais sejam, “[...] o attraverso una modificazione parziale e provvisoria dell’ordinamento, o attraverso una modificazione duratura, o, addirittura, per mezzo della instaurazione di fatto di un nuovo ordinamento costituzionale.” In: TARANTINO, loc. cit.

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do direito e este identificado como “instituição”, expressam, enfim, o ordenamento

jurídico149 concebido por Romano.

1.2 O Ordenamento Jurídico

“Objetividade do direito”, “organização social”, “instituição” e “direito”

são todas expressões que se identificam mutuamente perfazendo em uma

amálgama a qual Romano equivale ao ordenamento jurídico.150 O ordenamento

jurídico, destarte, corresponderia a um corpo social unitário o qual é em si e por si

jurídico, justamente por ser organizado. Nesse contexto, vale destacar a máxima

preconizada pela teoria institucionalista de Romano: “Todo ordenamento jurídico é

uma instituição e, vice-versa, toda instituição é um ordenamento jurídico”.151 Com

esta concepção, Reale menciona que o jurista siciliano

149 Concernente à expressão “ordenamento”, Giovanni Tarello traça posicionamento determinantes no processo de especialização e tecnização de tal expressão. Segundo o referido autor, o vocábulo “ordenamento”, era freqüentemente encontrado no contexto de doutrinas jus políticas, sem muita preocupação técnica. A questão da especialização e da tecnização do mesmo ocorreu, consoante Tarello, quando doutrinadores do direito atribuíram-lhe além de um adjetivo, qual seja, “jurídico”, um conceito para identificá-lo como expressão da linguagem do direito. Desse modo, aponta-se para o “ordenamento jurídico” como uma expressão cujo respectivo conceito corresponde a emergências doutrinais, tendo em consideração as tradições doutrinais nas quais tais emergências foram verificadas. Por conseguinte, Tarello destaca três trabalhos doutrinais como contribuidores no processo de especialização e tecnização do “ordenamento jurídico”: o conceito atribuído por Romano, em 1917-1918, emergente de um pluralismo institucional italiano; o atribuído por Kelsen [Rechtsordnung], no período de 1925-1935, no contexto de uma doutrina germânica formalista; e, por fim, o atribuído por Bobbio, em 1955, emergente de um normativismo italiano do segundo pós-guerra. A propósito: TARELLO, Giovanni. Ordinamento giuridico. In: Cultura giuridica e politica del diritto. Bologna: il Mulino, 1988. p. 173-204. Ressalta-se que na secção seguinte será abordada a conceituação de tal expressão “ordenamento jurídico”, atribuída por Romano. 150 É conspícua a identificação de conceitos feitas por Romano ao desenvolver sua respectiva teoria institucionalista, como bem expressa a seguinte citação, “[...] o conceito que nos parece necessário e suficiente para trazer em termos exatos o conceito de direito, como ordenamento jurídico considerado no seu todo e unitariamente, é o conceito de instituição.” Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 26 151 ROMANO, loc. cit. Traçando um paralelo entre a concepção aristotélica de direito [justo] e a concepção de ordenamento jurídico de Romano, alguns pontos podem ser apontados como convergentes em tais empreendimentos. Para tanto, vale mencionar algumas contribuições dos ensinamentos aristotélicos destacadas por Michel Villey ao abordar os precedentes da “Filosofia do direito dos teólogos do cristianismo”. Considerando o direito como um objeto de uma investigação, Aristóteles extraiu a definição do direito da experiência e da observação da linguagem, que corresponde ao reflexo da experiência. Sendo que esta experiência colhida na natureza, a qual, conforme a concepção aristotélica, não é constituída apenas por causas matérias, mas sim também por causas finais. Cada ser tem uma natureza, e esta corresponde ao que ele [o ser] “deve ser”, sua forma, seu fim, não limitando-se tão-somente ao seu “ser” material. A noção de natureza assim implica referências aos fins. Nesse sentido, a observação da natureza do homem, leva a

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[...] resolve ele o fenômeno jurídico no fenômeno social-institucional e este no fenômeno jurídico, identificando-os, visto como instituição e norma nascem ‘uno actu’, relacionadas em ‘mútua implicação’ [...].152

O direito não se proporia tão-somente a consagrar o princípio da

coexistência dos indivíduos. Para Romano, o direito está muito além, propondo-se a

consagrar princípios que superam as fraquezas e limitações dos indivíduos,

concebendo entidades sociais mais poderosas e duradouras do que os indivíduos,

em que perpetuariam certos fins além da vida natural dos mesmos.153 Além disso,

ao que concerne a relação direito e moral, Reale ainda destaca que

Ao ilustre jurisconsulto peninsular pareceu dispensável, dado o plano de sua pesquisa de natureza estritamente científico-positiva, propor-se o problema do valor, dos interesses ou dos fins, mas estes resultam implícitos ou

compreender que o fim do mesmo é a política. Logo, o homem é um animal político em potencial, feito para viver em sociedade, realizando tal finalidade de sua natureza na polis. Contudo, diversos são os interesses dos cidadãos presentes nesta. O que mantém, portanto, o equilíbrio entre tais cidadãos corresponde, segundo Aristóteles, ao direito [justiça distributiva e justiça comutativa]. O direito assim somente pode ser percebido em organizações sociais consideradas como polis. A experiência então colhida na natureza destas, por meio do método de observação, revela a existência de um direito natural [justo natural], correspondente a um método experimental. No entanto, esta primeira manifestação do direito [justo natural] a qual se dá no seio da polis, leva a algumas incertezas, uma vez que a natureza é uma desconhecida que se busca compreendê-la por intermédio da experiência sensível, bem como pela seu caráter mutável, ou seja, a mobilidade própria da natureza, independente de qualquer ato de vontade, o que revela um direito por essência móvel. Desse modo, a observação da natureza é incapaz de conduzir a soluções concretas; seu estudo corresponde apenas um primeiro momento da elaboração do direito, fazendo-se necessária a redação de lei precisas. Consoante a concepção aristotélica, então, a elaboração do direito [fontes] resulta de dois momentos: um corresponde ao justo natural [da natureza], cujo valor é universal; e, o justo positivo [da convenção], ou seja, leis de valor local, determinadas pelo legislador ou pelo juiz, que não são opostas, mas complementares ao justo natural. As leis [direito positivo] assim exprimem e completam o justo natural. O legislador trabalha sobre a base do justo natural ao qual acrescenta, contudo, algo de sua vontade própria [limitada], para fazer dele um justo completo. Por conseguinte, tanto o justo natural como o justo positivo devem ser obedecidos. Competindo àquele (direito natural), tendo em vista seu caráter mutável, limitar e designar, respectivamente, à atuação e os atuantes na determinação do que vem a se constituir como direito positivo. A propósito: VILLEY, Michel. A filosofia do direito de Aristóteles. In: A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Primeira parte. Título 1. cap. 3, p. 38-66. Ver também: ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução Mário da Gama Kury. Brasília: 4 ed. Editora Universidade de Brasília, 2001 e, ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2002. Voltando-se para a questão de apontar para alguns pontos, não exaustivamente, convergentes entre a concepção aristotélica e a romaniana de direito, pode-se identificar os seguintes: 1) ambos por meio do método de observação identificam o direito se manifesta em um primeiro momento dada organização social, a polis de Aristóteles e a “instituição” de Romano; 2) para ambos, o direito não se esgota em normas jurídicas, ou seja, em um direito positivo [sentido tradicional], este corresponde a um segundo momento de manifestação do direito; 3) o legislador assim exerce a função de um mediador, seja entre o direito natural [justo natural] e a lei, conforme Aristóteles, seja entre a necessidade social e a lei, segundo Romano, estando por ambos [direito natura e necessidade] limitado. Considerando tais pontos convergentes, pode-se perceber que a concepção romaniana de direito revela certa influência dos ensinamentos aristotélicos, principalmente em identificar a amplitude dos contornos que definem o mesmo. 152 REALE, Miguel. Filosofia do direito. p. 525 153 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 37

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subentendidos em um dos termos da implicação [mútua implicação entre instituição e norma], cujo processo representa a dinâmica do direito.154

O Estado e as demais entidades públicas, como foram as

Comunas, por exemplo, são consideradas instituições para Romano. Logo, providas

de um ordenamento o qual é sempre e necessariamente jurídico, devido ao fato de

tais instituições se identificarem como uma organização social.155 Dessa

observação, o jurista siciliano deduz o corolário que fundamenta o princípio que o

mesmo chama de “pluralidade de ordenamentos jurídicos”. Pois, se cada instituição

corresponde a um ordenamento jurídico, haverá tantos ordenamentos jurídicos

quantas instituições.156 Haveria um conspícuo estado plural, ainda que algumas

instituições se integrem perfazendo outra mais complexa. Nesse sentido, alguns

ordenamentos ao mesmo tempo em que permanecem distintos sob determinados

pontos, constituem sobre outros pontos parte de uma mesma instituição a qual

integram, ou seja, de um ordenamento jurídico maior.157

O reconhecimento desse pluralismo percebido pelo autor, se faz

cada vez mais presente nas discussões construtoras do conhecimento jurídico

contemporâneo.158 O monopólio estatal das fontes, resta desse modo

gradativamente profanado ou iludido.159 A respeito desta pluralidade de

ordenamento jurídicos, Grossi destaca que a mesma tem, atualmente, seu aspecto

na globalização jurídica. Logo,

[...] diante da impotência, da surdez e da lentidão do direito oficial dos Estados, uma auto-organização dos particulares, os quais, por conta própria, graças à obra de especialistas privados, inventam instrumentos adequado a ordenarem as suas trocas jurídicas, dando vida a um canal jurídico que se coloca ao lado e escorre junto com aquele do Estado, prevendo juízes privados cujas decisões os sujeitos se empenham em observar. 160

154 REALE, Miguel. Filosofia do direito. p. 525. Porém, Reale entende que “Sem a indagação da dimensão axiológica do fato social não nos parece possível nem mesmo a correlação pretendida por Santi Romano entre fato institucional e norma jurídica.” Vide: Idem. Ibidem., p. 526 155 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 37. 156 Idem. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 02-03 157 Idem. Ibidem., p. 02 158 Nessa perspectiva, vale citar, a título de exemplo, a produção acadêmica sobe o “direito alternativo”. Uma vez que este é compreendido como uma expressão do direito não estatal, por isso, pertencente ao campo do pluralismo jurídico. Refere-se, então, ao pluralismo jurídico como o fundamento teórico para o uso alternativo do direito. Cf.: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo L. de. Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balaços preliminares. In: ______. Introdução à sociologia jurídica alternativa. São Paulo: Acadêmica, 1993. cap. 12 e, PRESSBURGER, T. Miguel. Direito, a alternativa. In: ______. Direito Insurgente, uma alternativa? Rio de Janeiro: Ajup. [199?] p. 21-35 159 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. p. 60 160Idem. Ibidem., p. 60-61

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Nesse contexto, para Antonio Carlos Wolkmer, seguindo essa noção

de pluralidade enfatiza que a crise paradigmática do modelo jurídico tradicional seria

reflexo de uma cultura liberal individualista, uma vez que esta não mais atenderia às

necessidades fundamentais da esfera social, com seu modelo de monismo estatal

na chamada “produção do Direito”. Wolkmer, então, propõe um novo paradigma do

direito, assim designado de “pluralismo jurídico comunitário-participativo”.161

Ressalta-se, por ora, que o referido autor, ao fazer um resgate do “[...] período das

grandes e vigorosas contribuições doutrinárias sobre o pluralismo jurídico [...]”,162

aponta para Romano como um dos precursores de tal construção do conhecimento

jurídico.

Ao conceber o ordenamento jurídico enquanto corpo social unitário,

Romano passa a enfatizar o quão destoante são as demais definições do direito.

Definições as quais contemplam o ordenamento jurídico apenas enquanto um

conjunto ou um complexo de normas jurídicas. 163 Tal fenômeno as distanciariam de

refletir a realidade. Nesse contexto, Romano mesmo que compreendendo o

ordenamento jurídico como uma unidade em si, não ignora essas concepções

fragmentárias do direito. Por isso, tece algumas considerações acerca de duas

questões relevantes ao se propor a definir o direito, a questão das normas jurídicas

e a questão da sanção jurídica164.

161 No dizeres de Wolkmer, apresenta-se assim com tal proposta “A clara indicação de um novo paradigma da validade para o Direito alicerçado num certo tipo particular de pluralismo, capaz de reconhecer e legitimar normatividades extra e infra-estatais (institucionalizadas ou não), engendradas por carências e necessidades próprias das contingências de sujeitos coletivos recentes, e de apreender as especificidades das representações formadas juridicamente no contexto de sociedades do Capitalismo periférico, marcadas por estruturas de igualdades periféricas e pulverizadas por espaços de conflitos intermitentes. Cabe advertir, entretanto, que essa opção é por um pluralismo progressista, de base democrático-participativa. Exclui-se, assim, qualquer aproximação com a tendência de pluralismo político e jurídico, advogada pela propostas neoliberal ou neocorporativista (...)”. In: WOLKMER, Antonio Carlos.Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. rev. atul. São Paulo: Alfa Omega, 2001. p. 77 162 Idem. Ibidem., p.197. Nesse sentido, ver também: CÁRCOVA, Carlos Maria. O pluralismo jurídico em seu desenvolvimento histórico. In: ______. A opacidade do direito. São Paulo: LTr, [199?]. p. 64-73 163 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 14. 164 Quanto aos pontos relevantes para a definição do direito, Romano precisamente os aborda como “características formais” do direito, pois tais pontos, conforme o referido autor, são freqüentemente utilizados como características das normas pelas doutrinas as quais definem o direito apenas como norma jurídica. Romano assim refere-se aos seguintes pontos: objetividade da norma e sanção jurídica. Cf.: Idem. Ibidem., p. 19. Vale lembrar que, por ora, quanto a referida característica formal “objetividade da norma”, serão feitas considerações acerca da concepção de norma jurídica aduzida por Romano, não limitando-se tão-somente à “objetividade” da mesma. Uma vez que a questão da “objetividade”, já foi abordada na secção 1.1.1, ao tratar-se da “objetividade do direito”.

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1.2.1 Norma jurídica

A expressão “ordenamento jurídico”, por vezes, acaba por ser

utilizada de modo limitado, correspondendo apenas à idéia de regra e de norma

jurídica.165 Tal fato, segundo o jurista siciliano, torna árdua a tarefa de fazer com que

tal expressão corresponda a qualquer outra noção que não seja a de norma jurídica,

ainda que não se excluísse esta daquela noção. Por outro lado, para Romano, o

significado da expressão “ordenamento jurídico”, não se reduz somente às normas,

mas sim se amplia a ponto destas o integrarem.

Ao entender que o ordenamento jurídico corresponde a um corpo

social unitário o qual é em si e por si jurídico, tal “unidade” passaria a expressar o

significado do ordenamento jurídico. Esta, portanto, seria concreta e efetiva, não

obtida por meio de um procedimento de abstração.166 O que a constituiria,

entretanto, algo diferente das normas jurídicas, e até certo ponto, independente

destas.167 Nesse sentido, Romano afasta a possibilidade de entender o

165 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 24. No que concerne ao sentido ontológico, as normas jurídicas, segundo Romano “[...] são aquelas que, sendo elementos integrantes de uma instituição, podem dizer-se institucionais. São freqüentemente designadas com outros nomes, alguns dos quais se referem apenas a determinadas espécies de normas, enquanto outros, embora propriamente lhes indiquem um gênero ou uma espécie, são, entretanto, empregados num sentido que as compreende totalmente: assim, por exemplo, o nome de leis. Mais precisamente, a norma jurídica ou a lei nesta acepção ampla, pode ser definida como uma prescrição ou determinação preventiva que concorre para constituir a ordenação jurídica, ou melhor, que atribui a um ou mais fatos determinado caráter jurídico.” No que concerne a normas jurídicas enquanto lei, vale destacar algumas considerações de Romano feitas a esta. Tendo em vista os aspectos de prescrição e prevenção, a lei pode apresentar-se com um caráter de abstração por preceder ao fato a qual anuncia, bem como um caráter de novidade, sendo então constitutiva da ordenação jurídica, já que estabelece prescrições e determinações antes inexistentes. Não obstante, a mesma também pode apresentar-se como um fato ou uma série de fatos, afastando assim o caráter de abstração, como ocorre, por exemplo, na formação de um novo Estado quando implicitamente a este fato há normas jurídicas, mesmo que não expressas, que o realiza materialmente. Por fim, o conceito de lei pode ser ainda relativo, pois o que é considerado lei para dada ordenação, pode não ser para outra, sendo portanto irrelevante para esta última. Vide: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 107-108 166 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 14. Como bem ressalta Romano a unidade do ordenamento jurídico, por ser concreta e efetiva, não se dá por meio de um procedimento de abstração, como por exemplo, ocorre com a lei. Pois, segundo Romano, a lei, enquanto ato de vontade emanado por dada autoridade competente, não é uma volição concreta e em ato. Mas sim, volição preliminar porque “[...] precede o fato jurídico e não tem a concreção imediata deste último.” O caráter de abstração da lei se dá justamente por ser anterior ao fato a qual enuncia, dependendo deste fato para que a mesma se concretize. O que contrapõe a unidade do ordenamento jurídico, o qual enquanto corpo social é fato que se concretiza, independentemente de qualquer lei para tanto. Sendo esta, portanto, tão-somente uma das manifestações do ordenamento jurídico, integrando tal unidade. In: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 107-108 167 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 16

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ordenamento jurídico apenas por uma das partes que no mesmo está

compreendida, como as normas jurídicas.168 Isso significa que, o ordenamento

jurídico não poderia ser identificado como um conjunto destas partes. Ao conceber o

direito como um “ordenamento observado”, Grossi também posiciona-se no sentido

de compreender o direito em momentos anteriores ao de tão-somente normas

jurídicas. Assim como Romano, Grossi não exclui estas do ordenamento jurídico,

uma vez que se originam da observância do mesmo. Portanto, “[...] o direito não é

imediatamente um comando, porque reside naquele mundo objetivo de posições,

relações e coordenações fechado em si por um valor. O direito nasce antes que a

regra; o direito já está na sociedade que se auto-ordena.”169

A unidade do ordenamento jurídico, para Romano, provém de uma

força do próprio ordenamento de expansão e de adaptação, mesmo que tal força

seja latente.170 Seria o caso, por exemplo, dos conceitos substancialmente

diferentes que advêm do trabalho dos hermeneutas, ao interpretarem a lei

considerando esta como inserida em uma unidade, com as demais leis.171 O que

revelaria um ordenamento jurídico unitário. E além disso, Romano ressalta que este

ordenamento jurídico unitário é algo dos elementos materiais que o compõe, como

as normas jurídicas.172 Disso resulta que, para conceber adequadamente as

“normas jurídicas” na teoria institucionalista, se faz necessário antepor o conceito

unitário do ordenamento jurídico.173

A partir de tal unidade, as normas jurídicas seriam representadas

mais como um objeto e um meio da atividade do ordenamento jurídico unitário a um

elemento integrante de sua estrutura. Com esta concepção romaniana, as normas

jurídicas não seriam consideradas os únicos elementos essenciais do ordenamento

jurídico, pois este, considerado na sua unidade “[...] é uma entidade que por um lado

168 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 16 169 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. p.19-20 170 ROMANO, op. cit., p. 16 171 Idem. Ibidem., p. 15. No tocante à unidade do ordenamento jurídico, Romano menciona que esta foi por vezes intuída na formulação das teorias sobre a interpretação das leis, no entanto, lamenta o referido autor desta intuição não ter sido explorada nos demais trabalhos de definição do direito. Pois, nas teorias de interpretação das leis, estas não são interpretadas de maneira isolada. Cada lei que é emanada une-se às precedentes e ao ser interpretada, é considerada nesta unidade, neste contexto onde está inserida. No trabalho do hermeneuta está uma espécie de amálgama, em considerar a lei na sua unidade. Porém, por vezes, da interpretação considerando o todo, pode-se trazer à discussão um conceito substancialmente diferente, proveniente de uma força própria do ordenamento jurídico. Sendo esta força diversa da que as normas individuais possuem e independentemente da vontade do legislador que a elaborou. Cf.: ROMANO, loc. cit. 172 Idem. Ibidem., p. 14 173 ROMANO, loc. cit.

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se move conforme as normas, mas sobretudo, por outro, ele mesmo as move quase

como se elas fossem peões em tabuleiro de xadrez”.174 Pelo próprio significado que

a expressão “ordenamento jurídico” traz consigo, o autor enfatiza que esta leva a

uma noção muito mais ampla e anterior a que tão-somente normas jurídicas. Ainda

que por vezes estas possam coincidir com alguns aspectos essenciais do

ordenamento jurídico, mas não o único aspecto.175

Devido a essa amplitude, as normas jurídicas também podem ser

encaradas como uma manifestação do direito, no entanto, reitera-se, não a primeira

nem a única.176 Conforme já abordado anteriormente,177 o direito na sua objetividade

não corresponderia somente à norma posta, mas sim à entidade que a põe, sendo

concebido desde momentos materiais anteriores às normas jurídicas. Essa

amplitude da definição do direito leva a entender a norma jurídica como mais uma

manifestação do direito, não sendo a primeira. Ao partir da noção de objetividade e

considerando a organização como elemento integrante do conceito do direito, a

primeira manifestação deste seria a instituição, e não a norma jurídica178. A definição

do direito, portanto, não se esgotaria em normas jurídicas, mas também não as

excluiria, considerando-as tão-somente como mais uma manifestação.

Não obstante as observações feitas no sentido de que a norma

jurídica possa ser considerada tanto como objeto e meio de atividade quanto como

mais uma manifestação do ordenamento jurídico, Romano, contrapondo concepções

formalistas do direito, ressalta que o que tornaria uma norma “jurídica” seria a

organização, e não os aspectos extrínsecos que a envolvem.179 Por isso, a primeira

174 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 17. 175 ROMANO, loc. cit. Quanto à compreensão de normas jurídicas como objeto e meio da atividade de um ordenamento jurídico, Romano ilustra tal entendimento mencionando que quando são feitas referências ao direito italiano ou ao direito francês, por exemplo, “[...] não é verdade que se tenha em mente somente uma série de coletâneas oficiais de leis e decretos. Ao contrário, os juristas, e ainda mais os não juristas – que ignoram as definições do direito que mencionamos - pensam em algo mais vivo e animado.” Advertindo ainda o referido autor “É, em primeiro lugar, a complexa e variada organização do Estado italiano ou francês; os numerosos mecanismos ou engrenagens, os vínculos de autoridade e de força que produzem, modificam, aplicam, garantem as normas jurídicas, mas que não se identificam com essas.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 176 Idem. Ibidem., p. 20 177 Refere-se a secção 1.1.1, do presente trabalho. 178 Idem. Ibidem., p. 38 179 Nesse passo, Romano adverte que para algumas daquelas concepções, ditas formalistas, que definem o direito apenas como norma jurídica, o que diferencia o direito das demais normas é justamente suas características formais, ou seja, a juridicidade de uma norma se dá devido aos aspectos extrínsecos desta, ao seu invólucro e não aos aspectos intrínsecos desta, a sua substância. De modo que o direito pode assim ser considerado mais como forma à norma. Cf.: Idem. Ibidem., p. 18

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posição do direito não poderia ser determinada por uma manifestação tardia deste,

tal como a norma jurídica. Para Romano, onde há um ente social organizado, ou

seja, uma instituição, logo há direito, desse modo, “O direito não pode ser somente

norma posta pela organização social, como freqüentemente se afirma, mas é a

organização social que, entre as suas outras manifestações, põe também a

norma”.180 Contudo, esta organização não poderia ser confundida como uma norma

ou um conjunto de normas. Uma vez que pode ser anterior a esta ou posterior,

ligando-se a mesma.181 O caráter jurídico de uma norma, enfim, deve ser encontrado

já na instituição, a qual não poderia atribuir tal caráter a norma, se não o possuisse,

ou seja, se a instituição não fosse identificada com o próprio direito.

1.2.2 Sanção jurídica

No mesmo passo em que a “norma jurídica” é merecedora de uma

outra concepção, a partir da unidade do ordenamento jurídico na qual esta integra, a

“sanção jurídica” apresenta-se como uma questão também merecedora de

considerações por Romano, no âmbito da teoria institucionalista. Devido a sua

freqüente menção nas demais definições reducionistas, o jurista siciliano igualmente

180 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 43. Concernente a este entendimento de Romano, de que o direito não se resume a norma jurídica posta, ou seja, ao direito posto por dado ato de vontade, vale, por ora, voltar-se a observação feita por Tarantino no sentido de que “Il carattere di involontatietà del diritto romaniano à deducibile dal principio secundo cui norme giuridiche sono solo quelle norme che fano parte e sono espressione dell’istituzione. Particularmente, nella concezione romaniana del diritto le norme si distinguono in norme che nascono insieme e contemporaneamente con l’istituzione, le quali, come tali, sono ius involuntarium, puramente e semplicemente, e norme che durante la vita dell’istituzione, sono emesse da appositi organi. Queste, essendo emanate attraverso una procedura determinata, si presentano come atti di volontà, ma in sostanza, sono volotà del legislatore, non per acquistare efficacia, mas per essere maggiormente conosciute.” In: TARANTINO, Antonio. La teoria della necessita nell’ordinamento giuridico: interpretazione della dottrina di Santi Romano. 21. Enfim, “[...] o aspecto normativo do direito está estreitamente conjugado com seu aspecto institucional, e este último, mesmo quando não é cronologicamente anterior, é sempre logicamente preponderante e decisivo, já que é aquele que imprime a cada uma das normas o caráter jurídico: as normas jurídicas são as normas emanadas, ou, se não emanadas, protegidas e tuteladas pela instituição, isto é, normas institucionais.” In: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 73. 181 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 44.

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atribui à “sanção jurídica” um outro sentido consoante à noção do ordenamento

jurídico como uma unidade182.

O ordenamento jurídico, não obstante o fato de corresponder a um

corpo social unitário o qual é em si e por si jurídico, justamente por ser organizado,

pode também corresponder a uma “força”.183 Força a qual, ainda que latente, atua

de modo indireto sendo “[...] garantia prática que não dá lugar a nenhum direito

subjetivo e, deste modo, a nenhuma norma da qual tal direito advenha, freio inato e

necessário do poder social.”184 Desse modo, a sanção jurídica não estaria contida ou

ameaçada em alguma norma específica. Mas, sim, seria imanente, objetivamente,

no próprio ordenamento jurídico unitário.185

Por conseguinte, Romano refere-se a alguns entendimentos que

acabam por favorecer sua noção de que a sanção jurídica não seria um elemento

necessário e essencial do direito, enquanto norma jurídica. Como também,

favoráveis até mesmo sua noção de que o direito não identificar-se-ia com as

normas, esgotando-se nestas. O autor refere-se àqueles entendimentos no sentido

de que a sanção consistiria em um elemento ou uma característica do direito,

enquanto norma jurídica, bem como de que o direito consistiria em uma adição de

normas a outras que ameacem sanção, uma vez que ao se afirmar que a sanção é

um elemento do direito, enquanto norma jurídica, levaria ao entendimento de que o

direito não se esgota nestas. Expressaria, por outro lado, o sentido de que as

normas jurídicas “[...] são ligadas, ou melhor, suspensas, por outros elementos de

onde advém a sua força.”186 Tais elementos se fariam presentes em momentos

anteriores às normas jurídicas, fomentando a ampla definição do direito, não o

182 Cabe ressaltar que Romano ao abordar esta segunda questão, o da “sanção jurídica”, adverte que “Aqui não é o caso de mencionar as muitas questões sobre o que deve ser entendido por sanção, e, conseqüentemente, examinar se é oportuno substituir tal palavra por qualquer outra que nos forneça melhor conceito: se é possível falar de uma obrigatoriedade irrefragável do direito; se trata-se de uma coação ou, como alguns preferem dizer, co-atividade; se, ao contrário, baste, como acreditamos, uma simples garantia, direta ou indireta, imediata ou mediata, preventiva ou repressiva, segura ou somente provável, e conseqüentemente incerta, já que é, em certo sentido, pré-ordenada e organizada no mesmo edifício do ordenamento jurídico.” Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 22 183 Idem. Ibidem., p. 23 184 ROMANO, loc. cit. 185 Nesse sentido, pode-se mencionar, a título ilustrativo, as leis do campo do direito constitucional. As quais, conforme Romano, são leis cuja garantia de observânica “[...] é somente aquela que decorre do fato de que são elementos de uma instituição, à qual é imanente, mesmo latente, uma força de coerção, mesmo que seja indireta ou apenas moral.” 186 Idem. Ibidem., p. 22-23

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reduzindo somente às normas.187 Essa força se manifestaria em momentos

anteriores ao da manifestação do direito, por meio de normas jurídicas. Conforme

mencionado anteriormente, para Grossi o direito corresponderia a um “ordenamento

observado”, e não um comando a ser obedecido. Segundo o mesmo autor, a

observância refere-se a uma tomada de consciência, uma aceitação mais ativa,

diferentemente da obediência, uma aceitação passiva. De modo que a sanção não

consiste em um elemento necessário e essencial ao direito, a sua observância, o

que vai ao encontro do posicionamento de Romano. No dizeres de Grossi, “A assim

chamada “sanção”, definível como a medida colocada em ato para castigar a

inobservância, é somente um expediente estranho à estrutura do direito, à sua

fisiológica.” Grossi, então, adverte que

Nós somos muito freqüentemente ofuscados por aquilo que acontece no Estado, que é um ordenamento autoritário, onde o direito se deforma em comando e onde o evento terrível da sanção é uma espécie de apêndice normal do comando, tão normal a ponto de fazê-la tornar-se parte integrante desse comando. Mas trata-se de apêndice e que tem como objeto um evento absolutamente hipotético: a possível inobservância.188

A partir da consideração, de que a sanção não é elemento

necessário da norma jurídica, fica clara, portanto, a compreensão das espécies de

normas jurídicas, destacadas por Romano, segundo a categoria da

obrigatoriedade,189 justamente porque, ainda que indiretamente, todas as normas

jurídicas seriam obrigatórias. O que pode ocorrer, no entanto, é distinção quanto ao

grau de tal obrigatoriedade, “absolutas ou cogentes” e “supletivas ou dispositivas”.190

Certas normas jurídicas, de elevado grau de obrigatoriedade, devem ser observadas

incondicionalmente, ou seja, independentemente de qualquer previsão de sanção

nas mesmas. 191 Seriam assim, denominadas “absolutas ou cogentes”. Já acerca

das segundas, as “supletivas ou dispositivas”, seriam aquelas que “[...] suprem a

falta ou integram a insuficiência de uma vontade diversa, autorizada a prevalecer

sobre elas ou derrogá-las”.192 Além dessa distinção, cabe ainda destacar uma outra

187 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 22-23 188 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre o direito. p. 24-25 189 Ao versar sobre as várias espécies de normas jurídicas, Romano as distingue conforme as seguintes categorias: quanto à fonte, quanto ao conteúdo, quanto à obrigatoriedade, quanto à extensão e quanto à hierarquia. In: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 109-113 190 Idem. Ibidem., p. 111. 191 ROMANO, loc. cit. 192 ROMANO, loc. cit.

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a qual também expressaria essa correlação entre a questão da obrigatoriedade das

normas jurídicas com a questão da sanção jurídica, uma vez que, conforme

mencionado, as norma jurídicas de alto grau de obrigatoriedade independeriam de

qualquer previsão expressa de sanção para tanto. Nesse sentido, Romano destaca

a distinção, dentre as normas jurídicas “absolutas ou cogentes”, entre leis “perfeitas”

e leis “mais ou menos imperfeitas”. Aquelas seriam acompanhadas de sanção, e

estas seriam desacompanhadas de sanção.193 Enfim, mesmo que a norma jurídica

seja da espécie “imperfeita” seria obrigatória.194 Isso evidencia, destarte, a

concepção romaniana de que a obrigatoriedade do ordenamento jurídico independe

de qualquer sanção prevista expressamente em lei porque a mesma encontra-se

imanente no próprio ordenamento jurídico.195

1.2.3 O ordenamento jurídico e as relações simples ou jurídicas

A percepção romaniana do ordenamento jurídico pela sua

objetividade, que se expressa enquanto corpo social unitário organizado, sendo em

si e por si jurídico, implica algumas conseqüências para a definição do direito. Duas

entre estas seriam a não redução do direito a tão-somente norma jurídica e a noção

de que a sanção não corresponde a um elemento desta. Ainda uma terceira

conseqüência seria o afastamento de qualquer identificação do ordenamento jurídico

com uma simples relação entre duas ou mais pessoas. Ao identificar o conceito do

193 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 111 194 ROMANO, loc. cit. 195 Quanto a outras considerações antiformalistas do direito, concernente à sanção jurídica, vale mencionar a importância que Duguit atribuiu a esta, ao abordar a questão direito público e direito privado. Consoante Duguit, não há uma distinção entre os mesmos. Pois, sendo o Estado desprovido de personalidade jurídica e identificado como um fato, qual seja, a interdependência social que abrange governantes e governados, a regra de direito imposta a estes é a mesma, cooperar na solidariedade social. Contudo, Duguit destaca que caso seja adotada alguma distinção entre direito público e direito privado, aplicando aquele somente ao Estado, tal distinção somente se dá sob o ponto de vista da sanção jurídica. “Os atos jurídicos de direito público e os de direito privado são formados dos mesmos elementos e têm, no fundo, o mesmo caráter. Mas a sanção do direito público e a sanção do direito privado não podem existir nas mesmas condições, a verificação de uma situação de direito público não pode obter-se da mesma maneira que a duma situação jurídica de direito privado. Só nisso consiste a diferença (aliás, de grande importância) entre direito público e direito privado.” O autor assim ilustra que “Nenhuma das disposições de direito público que criam obrigações ao Estado pode ser sancionada diretamente pelo constrangimento, visto que o Estado, senhor do constrangimento, não pode exercê-lo diretamente contra si mesmo.” A propósito: DUGUIT, León. Fundamentos do direito. p. 82-89

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ordenamento jurídico com o de instituição, Romano adverte que esta não pode ser

equiparada a uma só pessoa física, nem a uma relação jurídica, seja entre duas, ou

mais, pessoas.196

A partir desse entendimento, Romano traça uma importante

distinção entre a instituição e uma simples relação.197 A primeira seria uma entidade

em si e estável, que, por ser organizada identifica-se com o ordenamento jurídico.

Uma simples relação, ao contrário, corresponderia a uma aproximação mais ou

menos transitória, entre entidades, não se identificando com um ordenamento

jurídico. No entanto, seria possível que uma relação se modificasse tornando uma

instituição, mas “[...] somente quando, devido a forças internas ou externas, os seus

termos se modificam permanecendo estavelmente ligados em uma posição

orgânica, ou seja, como membros de uma entidade em si”.198

Desse modo, tendo em vista o fato de que o direito não se reduziria

à norma jurídica, uma instituição, por sua vez, não se reduziria a uma relação

individual ou a uma relação jurídica. Ademais, caso não bastasse aquela distinção

entre instituição ser uma “entidade permanente” e a “transitoriedade” de uma

simples relação entre entidades, o jurista siciliano ainda destaca a questão da

objetividade, de uma instituição contraposta à subjetividade de uma relação

jurídica.199 Esta ocorreria entre duas entidades diferentes, podendo ser pessoa física

ou jurídica, o que significaria, para Romano, uma relação de maneira subjetiva.200

Subjetividade que decorreria tanto por aspectos ou órgãos advindos das entidades

envolvidas quanto de direito ou obrigações advindos das mesmas. Já quanto à

instituição, Romano ressalta sua objetividade.201 Enquanto corpo social unitário e

organizado, a instituição seria pré-ordenada às relações. Estas, por sua vez, quando

ocorridas no seio da instituição seriam qualificadas como “jurídicas”, ou seja,

relações jurídicas.202

196 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 57. Contudo, se uma só pessoa física, ou uma relação jurídica bastam para identificar-se como instituição, segundo a concepção romaniana, uma pessoa jurídica, ao contrário, “[...] é por si mesmo, uma instituição”. Cf.:Idem. Ibidem., p 61. Cabe mencionar que a questão do caráter de personalidade jurídica de uma dada instituição será abordada na secção 1.3, do presente trabalho. 197 Idem. Ibidem., . p. 56 198 ROMANO, loc. cit. 199 Idem. Ibidem., p. 54. 200 ROMANO, loc. cit. 201 ROMANO, loc. cit. 202 ROMANO, loc. cit.

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Além disso, “A instituição é unidade; a relação jurídica ou não

jurídica postula a pluralidade.”203 De modo que, consoante Romano, para surgir uma

instituição se faz necessário muito mais do que uma simples relação entre pessoas.

Seria necessário que entre tais pessoas “[...] se estabeleça uma relação mais

estreita e mais orgânica. É necessário que se forme uma superestrutura social da

qual dependam ou sejam dominadas não somente as suas relações individuais,

mas, também a sua própria posição genética”.204 Nessa perspectiva, não seria

possível uma instituição constituída por duas pessoas físicas.205 Por outro lado,

duas,206 ou até mesmo uma pessoa jurídica, poderiam constituir uma instituição.

1.3 A concepção romaniana de Estado

Ao prosseguir no trabalho de construção do conhecimento jurídico

propondo uma definição para o direito, Romano depara com conceituações as quais,

inevitavelmente, não podem ser ignoradas aos que se dedicam à compreensão

sobre “o que é o direito”. Dentre tais conceituações encontra-se a de “Estado”.

Apresentar, então, uma definição para o direito, exige, ou até por vezes, condiciona

o que se concebe por Estado. E isso se evidencia com a verificação da existência ou

não de uma identificação entre este e o próprio direito.207

203 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 54 204 ROMANO, loc. cit. 205 Contudo Romano adverte que no tocante à impossibilidade de duas pessoas físicas, considerando suas respectivas individualidades, constituírem uma instituição “Isto, se note bem, não exclui o fato de que possam existir instituições cujo elemento pessoal seja representado por somente duas pessoas. Em tal caso é necessário que tal elemento seja integrado com algum outro, que tenha a eficácia coesiva e unificadora que de outro modo faltaria.” Ilustrando ainda o referido autor, com o exemplo da sociedade conjugal , a qual “[...] considerada em si e por si, seria somente uma relação, pode assumir, e geralmente assume, a figura jurídica da família, ou seja, de uma instituição”. Cf.: Idem. Ibidem., p. 54 - 55. 206 Acerca de duas pessoas jurídicas constituírem uma instituição por si, Romano menciona que tal possibilidade pode se dá sem que para tanto ocorra outra intervenção estranha ou concurso de outros elementos. Segundo o autor “Isto acontece devido ao fato da sua estrutura interna ser toda criada pelo direito, o qual, conseqüentemente, pode plasmá-la e direcioná-la precisamente ao objetivo de que essa constitui uma verdadeira unidade, mesmo se esta, por sua vez, não deva ser considerada uma pessoa. Deste modo, uma comunidade internacional e um direito internacional poderiam, sem dúvida, continuar a subsistir mesmo quando os Estados se reduzissem somente a dois.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 55 207A questão da definição do “Estado”, consoante Romano, é uma questão jurídica, devendo ser examinada de acordo com as várias ordenações positivas, cada uma podendo assumir uma concepção diversa de Estado. Todavia, adverte o referido autor, que tais concepções apresentam

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A instituição, de acordo com a concepção romaniana, corresponde

a um corpo social unitário, o qual é em si e por si jurídico, justamente por ser

organizado, possibilitando sua identificação com o próprio direito, ou seja, com o

ordenamento jurídico. Nesse passo, enquanto ente social organizado a instituição se

expressaria por diversos meios, nos quais há uma organização social. O que

permitiria, portanto, apontar para o Estado como um de tais meios pelo qual uma

instituição se manifesta. Por isso, Romano entende que o Estado corresponderia a

uma instituição. O Estado é instituição, sendo identificado com o próprio

ordenamento jurídico,208 uma vez que “[...] não pode existir direito antes e fora da

instituição justamente porque falta a organização que torna jurídica a norma.”209

Desse modo, uma vez identificados como o mesmo fenômeno e

não como distintos,210 a partir do momento em que há um Estado há,

concomitantemente, um ordenamento jurídico correspondente ao regime estatal. O

direito é, então, essência do próprio Estado.211 Enquanto instituição, o Estado seria a

própria entidade jurídica, a qual existe por meio do direito. Este não corresponderia,

portanto, como uma finalidade do Estado, mas sim, como própria existência.212

Enfim, “[...] o Estado não tem, mas é uma ordenação jurídica”.213 Não a única, mas

uma das demais ordenações jurídicas existentes.214

uma noção em comum a respeito do que seria o Estado, “[...] ao menos sobre um ponto de vista prático e teórico: as divergências são, sobretudo, de ordem doutrinária e teórica e, por sorte, raramente repercutem na linguagem legislativa ou oficial, dando lugar a incertezas de interpretação”. In: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 61 208 No dizeres de Romano, “A primeira e mais genérica nota de noção de Estado que deve ser ressaltada é aquela pela qual o Estado constitui uma “instituição”, no sentido de “ente” ou “corpo social”. Isto implica que o Estado não se reduz a uma pluralidade de indivíduos e nem tampouco a uma relação ou a uma séria de relações interpostas entre indivíduos. Ele é uma unidade firme e permanente; tem uma existência objetiva e concreta, exterior e visível; possui uma organização ou estrutura que absorve os elementos que dele fazem parte e que é superior e preordenada aos mesmos elementos e às suas relações, de modo que não perde a sua identidade com as mutações de tais elementos.” In: ROMANO, loc. cit. 209 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 43 210 Idem. Ibidem., p. 40 211 Idem. Ibidem., p. 41. Contudo, vale por ora ressaltar que, mesmo sendo o direito considerado como essência do próprio Estado, Romano desenvolveu sua respectiva teoria institucionalista no sentido de definir o direito como instituição, ou seja, como um corpo social unitário e organizado. Identificando assim o direito como instituição, e não tão-somente como Estado. De modo que o Estado expressa-se como mais uma instituição. Tal identificação, do direito como instituição, se dá justamente para permitir a identificação do direito [existência] em organizações sociais anteriores ou diferentes à concepção de Estado moderno, como por exemplo, nas Comuna e no ordenamento jurídico canônico. O que resta, portanto, afastado por Romano qualquer redução do direito a tão-somente o ordenamento jurídico estatal. Cf.: Idem. Ibidem., p. 37-39 212 Idem. Ibidem., p. 42 213 Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 73 Sendo todo ente social identificado como instituição, e conseqüentemente, identificado como ordenamento jurídico, o Estado, segundo Romano corresponde a um ente social, logo a uma instituição, sendo portanto próprio ordenamento jurídico.

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O Estado corresponderia a um ordenamento jurídico,215 a um ente

real, que tem existência própria216 e não a uma abstração ou ficção. A realidade do

Estado encontra-se “[...] condicionada, unicamente, pela positividade da ordenação

jurídica que nele se concretiza [...].”217 Justamente porque, o ordenamento jurídico

identifica-se como instituição e esta, por sua vez, como uma real unidade social

organizada. Logo, para Romano, o Estado é ordenamento jurídico, é instituição, é

unidade social concreta e realmente organizada. Contudo, o fato do Estado

corresponder a um ente social, não significa que ao mesmo deve ser atribuída a

personalidade jurídica.218

Ao que concerne esta personalidade jurídica do Estado, ou seja,

considerá-lo como pessoa jurídica, Romano refere-se à mesma como uma questão

de qualidade,219 a qual poderia ou não estar presente em um determinado ente. O

Desse modo, Estado e direito correspondem ao mesmo fenômeno, não há uma heterogeneidade entre os mesmos. Nesse sentido, como bem adverte Romano “Se, às vezes, se diz que o direito é a alma e o princípio vital dos corpos sociais e, portanto, do Estado, isto não significa que direito e corpo social sejam duas coisas diversas, porém unidas, e muito menos que o primeiro seja um produto ou uma função do segundo, porque aquela idéia pretende rebater o conceito segundo o qual um não pode separar-se do outro nem material, nem conceitualmente, como não se pode separar, a não ser por uma abstração falha, a vida do corpo vivente”. Cf.: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p.74 214 Idem. Ibidem., p. 75. O que vai ao encontro da assertiva de que o ordenamento jurídico estatal não corresponde ao único. Cabe por ora destacar que a questão da relação deste ordenamento [sua autonomia e possível não exclusividade] com outros, mais especificamente como o ordenamento jurídico internacional, corresponde ao objeto de abordagem do Capítulo 3, do presente trabalho. 215 Ao identificar o Estado como ordenamento jurídico, Romano adverte que para tanto, não se deve conceber um ordenamento jurídico como tão-somente normas jurídicas. Pois isso, segundo autor, levaria ao absurdo, mencionando ainda o mesmo que os que mantêm “[...] firme a doutrina tradicional que reduz o conceito de ordenação jurídica ao de norma, encontra-se na necessidade lógica de concluir que o Estado não é mais do que uma norma, conclusão esta que devido à sua antítese com a realidade não carece de confutação”. In: ROMANO, loc. cit. 216 Idem. Ibidem., p. 62. A existência própria do Estado deve-se justamente por este identificar-se como ordenamento jurídico, que “[...] cingindo numa unidade os vários elementos que o integram, se contrapõe às demais ordenações jurídicas, cada uma das quais tem por sua vez uma unidade distinta”. Cf.: ROMANO, loc. cit. Reiterando-se que será abordado no Capítulo 3, do presente trabalho, a relação entre o ordenamento jurídico estatal e os demais, especialmente, o ordenamento jurídico internacional. 217 Idem. Ibidem., p.63 218 ROMANO, loc. cit. Nesse sentido Romano menciona que “[...] todas as pessoas jurídicas, que são coletivas e complexas, são entes sociais, mas a recíproca não é verdadeira: há entes e também Estados que se apresentam como ordenações objetivas, já que a qualidade de pessoa não se encontra neles a não ser quando assumem posições particulares [...]”. Cf.: ROMANO, loc. cit. 219 Acerca da atribuição desta qualidade, denominada “personalidade jurídica”, a um determinado ente Romano destaca, como condicionantes para tanto, que “[...] uma instituição assume o caráter de pessoa quando esta, ou do seu próprio ordenamento, ou de um outro, sempre porém tendo por base o seu próprio ordenamento, é considerada como entidade dotada de própria vontade, ou seja, quando a vontade materialmente manifestada por certos indivíduos, que são elementos em sentido amplo (membros, órgãos, administradores) da instituição, com as formas e para as finalidades que impõe a estrutura, passa a ser considerada vontade da instituição. Isso significa que aquilo que se personifica é somente um ordenamento objetivo, pensado e construído, fazendo com que possa produzir aquele efeito, que possa ser considerado como uma entidade capaz de querer, ou por si mesmo ou por

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fato de o Estado ser ordenamento jurídico não significaria necessariamente que o

mesmo corresponderia a uma pessoa jurídica.220 Como bem destaca Romano “Nem

toda ordenação jurídica é pessoa, mas toda pessoa jurídica que seja corpo social

[...] é uma ordenação [...]”.221 Isso significa que, nem toda instituição possui

personalidade jurídica, contudo toda pessoa jurídica corresponderia a uma

instituição. A atribuição de personalidade jurídica a uma instituição não consistiria

em uma característica fundamental da instituição, e logo, do Estado também.222

Ainda acerca dessa questão da personalidade jurídica estatal, subsistiria uma

distinção entre dois momentos de tal ente social: estático e dinâmico.223 No

momento estático, o Estado seria identificado como ordenamento jurídico [objetivo]

independentemente de ser considerado como pessoa jurídica.224 Neste momento,

seria indiferente possuir ou não a qualidade de “personalidade jurídica”. No entanto,

Romano também considera o momento dinâmico do Estado, ou seja, quando este

concretiza relações e ações com demais entes “[...] diretamente ou por meio de

outros, afirmando poderes ou direitos seus ou cumprindo suas obrigações [...].”225

Neste momento a instituição estatal revela-se como pessoa, estando presente a

outros”. Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 62 220 Ao que concerne a esta questão da personalidade jurídica do Estado, vale apontar a mesma como mais uma das distinções [além das mencionadas na secção 1.1.4, do presente trabalho] entre a concepção de instituição atribuída por Romano e por Hauriou. Pois, segundo este uma instituição pode personificar-se, sendo então denominada de corporação. Dentre as corporações, destaca-se o Estado. Logo, o Estado corresponde a uma instituição personificada. Quanto a esta questão, personificação, segundo Hauriou, tomando como exemplo a instituição corporativa Estado, esta se realiza por meio de um triplo movimento: 1) de interiorização, onde “[...] los órganos de gobierno, con sus poderes de voluntad, actúan por el bien común dentro del marco de la idea diretriz del Estado”; 2) de incorporação, quando no caso dos Estados, chegaram a etapa de governo representativo, corresponde a uma etapa de “una continuidad puramente objetiva de la idea y de su acción, […] no se produce ninguna manifestación de comunión que comprenda a todos los miembros del grupo” e, 3) de personificação, onde “El Estado recién se personifica cuando llega al estádio de la libertad política con la participación de los ciudadanos en el gobierno […].” Logo, assim como a personificação individual, a personificação da instituição ocorre pois “[...] las manifestaciones comunión entre los miembros del grupo son crisis subjetivas, al cabo de las cuales la propia idea directriz del Estado pasa al estado subjetivo en las conciencias de los sujetos”. A personificação diz respeito então, conforme Hauriou, à continuidade da ação e da idéia diretriz de uma instituição, a qual passa do estado objetivo para um subjetivo, expressando-se por meio de atos de vontade consciente, das manifestações de comunhão dos membros de uma agrupação corporativa, por meio da intervenção de algum dos órgãos de governo, como se dá com a lei. In: HAURIOU, Maurice. La teoria de la institucion y de la fundacion. p. 56-62 221 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p.77 222 Conforme já mencionado na secção, 1.1.4, do presente trabalho. Romano não considera a atribuição de personalidade jurídica como uma das características fundamentais da instituição. Mas apenas apresenta uma distinção entre instituições que possuem e as que não possuem personalidade jurídica. 223 Idem. Ibidem., p. 78 224 ROMANO, loc. cit. 225 ROMANO, loc. cit.

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qualidade “personalidade jurídica”.226 O Estado, portanto, poderia ser identificado em

ambos os momentos: somente como ordenamento jurídico [desprovido de

personalidade jurídica] e como pessoa jurídica [ e, logo, como ordenação jurídica

também].

Nesse contexto, Romano critica com veemência os

posicionamentos fundados em critérios absolutos que respectivamente afirmam,227

negam, ou são intermediários,228 acerca da qualidade de pessoa jurídica do

Estado.229 Particularmente, quanto aos que negam reconhecer a personalidade

jurídica do Estado ainda que sob qualquer condicionante, o jurista siciliano entende

que tal posicionamento é inadmissível.230 Principalmente a respeito dos que

entendem que o Estado não é pessoa porque é fonte do direito e superior ao

mesmo, identificando, desse modo, o Estado com os governantes, ou com seus

governados.231 O que Romano rechaça uma vez que identifica o Estado como

próprio direito, e não fonte deste.232

Por outro lado, uma vez atribuída a personalidade jurídica ao

Estado, competiria ao direito positivo [interno] correspondente a cada Estado,

abordar questões concernente à admissibilidade, aos caracteres e à extensão da

226 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 78 227 Para os que reconhecem o Estado como pessoa (principalmente correntes jusnaturalistas), Romano se contrapõe aos que condicionam a própria existência do Estado somente como pessoa, não havendo qualquer outro momento em que há um ente que possa ser considerado Estado, que não enquanto pessoa jurídica. Nesse sentido, Romano opõe-se afirmando que os Estados possuem uma tendência a personificar-se, mas que esta qualidade não é condição para sua existência, “[...] pode-se dizer que todo Estado, enquanto é um ente unitário e perpétuo, que sobrepuja a transitória existência dos indivíduos que o compõem, que tem uma própria missão histórica para cumprir, que compreende numa ininterrupta continuidade de tempo, ações, fins diversos e gerações distantes, tem suscetibilidade e tendência a personificar-se. Para que ele constitua uma efetiva e real pessoa jurídica, é mister que tenha uma estrutura correspondente, uma ordenação adequada que pode faltar”. In: ROMANO, loc. cit. 228 A respeito dos posicionamentos intermediários, que reconhecem a personalidade jurídica do Estado, somente em algumas manifestações, Romano adverte, “[...] não há nenhuma atividade estatal que se possa dizer absolutamente livre do direito”. In: Idem. Ibidem., p. 80 229 Idem. Ibidem., p. 78 230 No tocante aos posicionamentos que negam a personalidade jurídica do Estado, Romano destaca que, se tais posições não reconhecem o Estado como sujeito, resta reconhecer este como objeto. Assim, o Estado é identificado como um instituto ou uma instituição, todavia, não no sentido romaniano de ordenamento jurídico. Nesse sentido, Romano menciona a distinta concepção desprovida de juridicidade, qual seja, “[...] o Estado instituto ou instituição seria em substância o Estado-objeto; porém, um objeto que se intui a fim de não poder considerar na mesma medida dos objetos em sentido estrito. Algumas vezes isto é colocado em evidência expressamente; assim quando, analisando o conceito de instituição, nota-se que há duas espécies de instituições, capital, e as que são corpos sociais; estas últimas “se aproximam” de um conjunto de coisas, de tal modo que nada mais são que “coisas ativas.” Cf.: Idem. Ibidem., p.83. 231 Idem. Ibidem., p.79 232 ROMANO, loc. cit.

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mesma.233 Porém, o autor destaca algumas considerações acerca da personalidade

jurídica dos Estados, que podem ser apontadas como comuns a todos entes

estatais. Dentre tais considerações, encontra-se a questão da “unidade da

personalidade jurídica estatal”.234 O Estado, enquanto pessoa, corresponderia a

manifestação uma só vontade no seu respectivo âmbito interno. Não se reduzindo

assim “[...] a duas pessoas distintas: uma política ou pública, outra civil ou

privada”.235

Ademais, além da unidade, outra consideração abordada

concernente à personalidade jurídica estatal corresponde a sua possível

classificação. Nesse contexto, o autor entende que alguns pontos são pacíficos

como considerar o Estado como entes [pessoas] territoriais, bem como pessoa

pública e não privada.236 E esse pontos se expressariam como os mais relevantes

da referida classificação.237 Já acerca dos demais, não seriam tão pacíficos e

relevantes. O jurista siciliano apenas ressalta que a personalidade jurídica do Estado

classifica-se ainda como uma corporação.238 Classificação esta que envolveria a

questão dos membros que compõem determinada pessoa jurídica. Como será

abordado na seqüência, um dos seus elementos essenciais do Estado, segundo

Romano, é o povo, ou seja, uma coletividade de pessoas, independentemente da

qualidade de tais pessoas [consideradas individualmente]. No entanto, “[...] o caráter

de corporação é útil somente para classificar o Estado enquanto pessoa jurídica.”239

233 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 81 234 ROMANO, loc. cit. 235 ROMANO, loc. cit. Cabe por ora ressaltar que a questão da unidade da personalidade jurídica estatal corresponde, segundo Romano, a um princípio “[...] que vale para o seu direito interno e não diz respeito à personalidade que pode ser atribuída ao Estado por outra ordenação distinta e independente da sua.” Continuando ainda o referido autor “Assim, por exemplo, a personalidade internacional, que possui fonte própria e que vale em sua própria esfera, não está inteiramente coligada com um direito interno e pertence também aqueles Estados que não tem esta última, com a qual se une ou unifica”. Advertindo-se que esta questão da personalidade jurídica internacional será aprofundada no Capítulo 3 do presente trabalho. Cf.: Idem. Ibidem., p. 82 236 ROMANO, loc. cit. 237 ROMANO, loc. cit. 238 ROMANO, loc. cit. 239 ROMANO, loc. cit. No tocante a tal classificação da personalidade jurídica do Estado, Romano aduz que se discute se este ente territorial consiste em uma corporação ou uma instituição em sentido estrito. Entendendo, conforme já mencionado, que a personalidade jurídica do mesmo corresponde a uma corporação, o referido autor, ainda cita como tal classificação não é pacífica e pode variar, partindo-se do que se concebe tanto por corporação, quanto por instituição em sentido estrito. Logo, “[...] entender por corporação a pessoa jurídica que cuja vontade é formada pela generalidade de seus membros e por instituição aquela cuja vontade é constituída por indivíduos que não têm tal qualidade, o Estado seria uma corporação na hipótese de existir um governo democrático e uma instituição em hipótese contrária. E assumindo um caráter intermediário se tivesse um governo

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Não seria útil, entretanto, quanto às demais classificações estatais, que não de

pessoa jurídica, como por exemplo, o Estado enquanto instituição [esta no sentido

romaniana].

A qualidade de pessoa jurídica do Estado seria uma “atribuição” a

este que não condicionaria a sua existência. Pelo contrário, seria esta qualidade que

se encontraria condicionada à existência de um ordenamento jurídico.240 Portanto, a

identificação primordial do Estado enquanto ente social corresponde como

ordenamento jurídico e não como pessoa jurídica.

Desse modo, os elementos que constituiriam o Estado não seriam

encontrados em momentos extra ou pré-jurídicos.241 Por isso, para Romano, tais

elementos são própria expressão de juridicidade,242 originam-se simultaneamente ao

surgimento do Estado e de seu respectivo ordenamento. Dentre os elementos

apontados como constitutivos do Estado, Romano destaca: o governo, o território e

o povo.243

não inteiramente democrático, de maneira que se poderia definir como uma corporação institucional ou instituição corporativa.” Vide: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 82 240 Idem. Ibidem., p. 84. Nos dizeres de Romano “[...] a qualidade de pessoa inerente ao Estado é uma ulterior especificação de sua figura, da qual não se pode prescindir, de ordenação jurídica: se faltar a personalidade, permanece sempre tal figura que representa um genus, no qual se distinguem duas espécies: Estados com e Estados sem personalidade”. In: ROMANO, loc. cit. 241 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 65. 242 Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 64. Nos dizeres de Romano, referindo-se ao ordenamento jurídico, “[...] é justamente tal ordenamento que determina a estrutura estatal e fornece às suas partes a condição de seus elementos; em outras palavras, que Estado e ordenamento jurídico estatal são a mesma coisa.” Cf.: Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 67 243 Conforme mencionado anteriormente, a personalidade jurídica do Estado é assim entendida por Romano como uma qualidade a qual ao Estado pode ou não ser atribuída. Relacionando tal qualidade com os elementos apontados como constitutivos do Estado, Romano destaca que, quanto ao elemento governo, “Quando o Estado assume a qualidade de pessoa jurídica, o poder de governar pertence somente a ele, assim se contrapõe como autoridade a todos os membros que dele fazem parte, mesmo se eles contribuem diretamente como seus órgãos, ou através de representantes, para constituir aquela vontade, que, uma vez constituída, é considerada como vontade do Estado”. O que demonstra assim a relação entre o Estado enquanto pessoa jurídica e o elemento governo. Cf.: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p., 64-65. No entanto, esta qualidade de pessoa jurídica pode faltar ao Estado. Nesse sentido, Romano relaciona ausência de tal qualidade com o elemento povo. Pois, segundo o referido autor, a falta de personalidade jurídica ao Estado fomenta a posição de que o povo efetivamente corresponde a um elemento constitutivo do Estado, justamente por manifestar a vontade deste, enquanto não pessoa jurídica. O que vai de encontro aos que entende que o povo não corresponde a um elemento constitutivo do Estado, tendo em vista que este enquanto pessoa jurídica manifesta sua vontade por meio dados funcionários que agem em nome do Estado (pessoa), e não o povo.). Cf.: Idem. Ibidem., p. 67. Tais menções de Romano, relacionado a questão da qualidade de pessoa jurídica do Estado, aos seus respectivos elementos constitutivos, vem a corroborar com o entendimento do mesmo no sentido de que “[...] o aspecto mais geral e indefectível do Estado não é aquele da personalidade, mas aquele pelo qual ele se apresenta como ordenação jurídica [...]”. Cf.: Idem. Ibidem, p. 89

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No que concerne ao elemento governo, o referido autor adverte que

toda e qualquer instituição, por ser organizada, dispõe de um poder que a

governe.244 Todavia, o governo estatal apresentaria características peculiares que

possibilitariam distinguir tal governo das demais instituições. Nesse passo, se

caracterizaria por corresponder tanto a uma instituição autoritária, não paritária,245

quanto a uma instituição autônoma,246 distinta das que são governadas por terceiros

sujeitos.247

O Estado consistiria, segundo Romano, a um ente territorial.248 De

modo que posicionamentos no sentido de não considerar o território, como um

elemento essencial do Estado, são rechaçados:249 “[...] a própria palavra “Estado”,

que advém de stare, implica a idéia de uma sede fixa”,250 uma vez que nos próprios

textos escritos do direito encontram-se expressões como “no Estado” e “fora do

Estado”, as quais subjazem uma concepção de Estado juntamente com a de seu

244 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p.64 245 Acerca desta distinção entre instituições, conforme Romano, uma instituição identifica-se como paritária quando “[...] constam de sujeitos colocados em pé de igualdade jurídica, de maneira que o poder pertença em igual medida a todos os sujeitos, os quais não podem exercê-lo senão de comum acordo, como por exemplo, ocorre pelo menos em regra na comunidade internacional.” Já as instituições autoritárias, como o Estado, “[...] a um ou mais sujeitos é atribuída uma posição superior perante os demais e a sua vontade; se mantida dentro de certos limites é para estes últimos decisiva.” Romano, no entanto adverte que o Estado, identifica-se como instituição autoritária, mesmo quando para a formação da vontade do governo considera-se a generalidade de seus membros, como ocorre no Estado democrático, bem como quando considera-se a maioria um apenas um número limitado de pessoas. In: ROMANO, loc. cit. 246 As instituições identificam-se como autônomas, quando “[...] se governam, inteiramente ou em parte, com a sua vontade, se são pessoas jurídicas, ou, se desprovidas de personalidade, com a vontade de pessoas que são seus elementos [...]”. Cf: Idem. Ibidem., p. 65 247 Idem. Ibidem., p. 64- 65 248 Idem. Ibidem., p. 65 249 Dentre alguns dos posicionamentos que não consideram o território como elemento essencial do Estado, Romano rechaça os seguintes: os que desvinculam a concepção de Estado a uma sede fixa, de modo a possibilitar a existência de Estados nômades, atribuindo o conceito de Estado a povos que não possuem uma sede fixa; quanto aos territórios ocupados, em tempos de guerra, estes continuam a existir mesmo que o território esteja ocupado por terceiros; e, mesmo no caso quando há um território comum para vários Estados, caso em que “[...] a mesma entidade física pode constituir duas ou mais entidades jurídicas, se o direito a considerar em diversos momentos ou funções, que não se excluem.”, ou seja, mesma superfície material, mas juridicamente possui objetos diferentes. Cf.: Idem. Ibidem., p. 65-66. Ainda no tocante a questão do território estatal e da cidadania dos indivíduos que neste se encontram, Romano também rechaça os que se posicionam no sentido de esvaziar a relevância jurídica do território Estado, bem como de tratar a questão da cidadania como uma condição política (não jurídica), um pressuposto de direitos e deveres. Pois, tais posicionamentos inclinam-se para a concepção de que o direito é posterior ao Estado, de maneira que a questão território e cidadania encontrar-se-iam em momentos pré-jurídicos. O que opõe o entendimento institucionalista de Romano, visto que Estado e ordenamento jurídico são fenômenos idênticos, não havendo qualquer relação de causa e efeito entre ambos. Cf.: Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 66-67 250 Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 65

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respectivo território.251 Ademais, a assertiva de que o Estado é ente territorial seria

evidenciada pela atribuição de qualificações a este ente enquanto comunidade ou

corporação,252 que possibilitam a identificação de qual espécie de comunidade

corresponderia ao Estado, quais sejam: quanto ao vínculo que une seus respectivos

membros;253 o Estado como comunidade necessária, e não voluntária;254 e, o Estado

como ente político.255 Desse modo, conforme menciona Reale, a palavra “território”

deixa de corresponder apenas “[...] ao assento geográfico, em que reside certa

coletividade.” O sentido de “território”, atribuído por Reale, vai, destarte, ao encontro

do referido por Romano, ou seja, “Território é, portanto, o espaço social submetido à

soberania jurídica e política de um determinado Estado.”256

Por fim, perfazeria os elementos que constituem o Estado, o

elemento povo, ou seja, as pessoas vinculadas a este, enquanto governo e

território.257 O povo corresponderia a uma unidade, um complexo de indivíduos,

onde estes são considerados na coletividade, e não, cada um isoladamente.258 De

modo que as constantes mutações dos respectivos membros que compõem o

elemento povo, não interfeririam na sua extensão [maior ou menor], nem o

modificariam. Sendo, portanto, o elemento povo, considerado na coletividade dos

membros de um dado Estado do qual fazem parte. Isso permitiria a designação

deste ente como “comunidade” ou “corporação”, independentemente de qualquer

251 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 67 252 A própria correspondência do Estado como comunidade ou corporação subentende a identificação deste como ente territorial, pois “Nem toda comunidade ou corporação é territorial, mas todos os entes territoriais pertencem à categoria das entidades sociais desde que haja uma população ligada ao território.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 68 253 Nesse sentido, “O vínculo que une seus membros não é o de sangue ou de descendência comum, mas o da convivência numa sede fixa e determinada, pelo menos enquanto se tem em vista a maior parte da população.” Logo, a comunidade do Estado não se identifica como uma comunidade familiar ou de estirpe. In: ROMANO, loc. cit. 254 O Estado como comunidade necessária e não voluntária, significa que “[...] dele fazem parte todos aqueles que, independentemente de sua vontade e mesmo contra esta, são considerados pela ordenação jurídica pertencentes ao Estado.” Advertindo ainda Romano que “Todos os entes territoriais têm esta característica.” Independem assim de qualquer ato de vontade, como um contrato social, por exemplo, para que constituíam o mesmo. In: ROMANO, loc. cit. 255 O Estado além de ente territorial qualifica-se como ente político referindo-se as suas finalidades, ou seja, aos seus respectivos escopos gerais. Entes políticos, segundo Romano, correspondem aos “[...] entes que se propõem finalidades que num certo momento podem determinar e circunscrever; entretanto, esses entes são suscetíveis de assumir outras finalidades sem mudar de natureza.” Desse modo, aduz o referido jurista que todos os entes territoriais, como o Estado, são políticos, “[...] porque em regra a sua esfera de competência estende-se, potencialmente, a uma série indefinida de interesses que se manifestam no âmbito de seu território.” In: ROMANO, loc. cit. 256 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. p. 344 257 ROMANO, op. cit., p.67 258 ROMANO, loc. cit.

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atribuição de personalidade jurídica.259 Há nesse sentido, para Romano, uma

identidade entre o Estado e os membros que deste fazem parte, o povo.260

Ao identificar o Estado ao ordenamento jurídico estatal, ambos

como o mesmo fenômeno, Romano considera que os elementos constitutivos do

Estado são expressões de juridicidade. Igualmente, ao referir-se à questão da

potestade do Estado, ou seja, o poder de pôr um novo direito, vem entendido que

este não implicaria em um poder precedente ao direito.261 Tal posicionamento

equivocado apenas encontraria abrigo nas concepções reducionistas do direito que

o identificam tão-somente a normas jurídicas. Identificado o Estado com o

ordenamento jurídico o autor ressalta que a própria potestade do Estado, por sua

vez, ocorreria em momento jurídico com o surgimento do mesmo, idêntico a sua

autolimitação,262 não restando qualquer momento em que o Estado não se encontre

limitado.263

Destarte, Romano reitera que o Estado consistiria em um ente

complexo, pelo qual se deve considerar a integralidade dos elementos que o

constituem,264 que seriam própria expressão de sua respectiva juridicidade.

Contudo, identificado como ordenamento jurídico, como instituição, ou melhor, como

mais uma instituição, como seria possível, segundo essas noções romanianas,

diferenciar tal ente estatal dos demais entes territoriais, dos demais ordenamentos

259 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 67. Ao desconsiderar, por ora, a personalidade jurídica do Estado, enquanto comunidade a qual o povo corresponde a um elemento essencial, Romano afasta os posicionamentos contrários no sentido de que o povo não seria um elemento do Estado por não constituir a vontade deste, alegando que apenas o conjunto de seus funcionários corresponderia a seu elemento. O que Romano opõe-se afirmando que “[...] a definição do Estado como comunidade se delineia sem considerar a qualidade da pessoa jurídica, que ele não pode não ter, não tem tido por muito tempo e, em poucas ordenações, não tem nem mesmo presentemente.” Sendo o povo, enfim, um elemento essencial do Estado, independentemente de a este ser atribuída ou não o status de pessoa jurídica. Cf.: ROMANO, loc. cit. 260 Diferencia-se, então, o Estado dos demais entidades “[...] que não são constituídas por pessoas que sejam seus membros, mas que existem em proveito de estranhos, que são apenas seus destinatários.” In: ROMANO, loc. cit. 261 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 65. 262 Por conceber o Estado e o ordenamento jurídico como mesmo fenômeno, bem como que a potestade estatal não ocorre em um momento extra ou pré-jurídico, Romano ressalta que a teoria da autolimitação do Estado não pode ser acolhida. Pois, “Mesmo sendo verdade que o Estado se autolimita quando põe o seu ordenamento jurídico, não existe algum momento em que este não seja limitado, justamente porque, desde a sua origem, ele é um ordenamento: a sua autolimitação pode ser somente uma limitação ulterior. Desse modo, a lei nunca é, como freqüência se acredita, o começo do direito: é ao contrário, uma complementação ao direito precedente (na hipótese em que este tenha lacunas) ou uma modificação do mesmo.” O que apenas vem a fomentar a manifestação do direito em momento anterior a uma de suas expressões, por meio das normas jurídicas. Cf.: ROMANO, loc. cit. 263 ROMANO, loc. cit. 264 Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 70.

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jurídicos? Nesse sentido, o caráter específico, o qual possibilitaria diferenciar o

Estado dos demais entes, dos demais ordenamentos jurídicos, corresponderia à

“soberania”. Nesse passo, “[...] é Estado todo o ente territorial soberano.”265 A

“soberania” é entendida no sentido amplo e genérico, como o de independência

absoluta, de não submissão,266 de maneira que, o significado do adjetivo “soberano”,

também corresponderia ao de independente.

A partir dessa noção de “soberania” como independência, o Estado,

enquanto soberano e identificado como ordenamento jurídico, corresponderia à

própria fonte jurídica.267 Quer isso dizer que, o ordenamento jurídico estatal seria

originário, pois a instituição estatal é soberana. Não haveria outra fonte para este,

que não o próprio Estado. Desse modo, o ordenamento jurídico estatal “[...] se põe e

se modifica por si, portanto, sua eficácia e sua validade não lhe são dadas por

outros, mas é puramente interna.”268 Tal independência do ordenamento jurídico

estatal iria ao encontro da classificação, proposta pelo jurista siciliano, acerca das

características fundamentais que as instituições possam vir a assumir ao

relacionarem entre si.269 Por ser soberano, o Estado caracteriza-se como um

ordenamento jurídico originário, independente quanto à fonte que estabelece seu

ordenamento.270

O Estado, portanto, considerado como instituição originária atribui à

soberania tanto um significado de “independência”, quanto um sentido positivo,

como “[...] uma força ou eficácia superior à das outras ordenações existentes no seu

âmbito e que lhe são subordinadas”.271 O que evidenciaria, por sua vez, o caráter de

instituição complexa do Estado, onde outras instituições encontram-se a este

subordinadas. Desse modo, o Estado teria sempre uma soberania interna,

distinguindo-se dos demais entes justamente por tal motivo, por ser sempre

soberano.272 O que definiria, enfim, o Estado como sendo “[...] toda ordenação

jurídica territorial soberana, isto é, originária”.273

265 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 86. 266 Idem. Ibidem., p. 86-87. 267 Idem. Ibidem., p. 89 268 ROMANO, loc. cit. 269 Vale mencionar que tal classificação foi abordada na seção 1.1.4, do presente trabalho. 270 ROMANO, loc. cit. Ressaltando Romano que nesse sentido “[...] originário e soberano são dois adjetivos sinônimos, que podem ser utilizados promiscuamente”. In: ROMANO, loc. cit. 271 ROMANO, loc. cit. 272 No entanto Romano apresenta uma distinção entre soberania interna e soberania externa, do Estado. A primeira, é atribuída pelo direito interno deste e independente da soberania externa, “[...] por isso pode-se afirmar corretamente que o Estado tem uma soberania interna, mesmo quando

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Ao propor sua definição do direito, contribuindo para a construção

do conhecimento jurídico antiformalista, Romano identificou o mesmo como uma

unidade social organizada, ou seja, uma instituição. Por conseguinte, identificou esta

com o próprio ordenamento jurídico. Tal fenômeno permite traçar um cenário jurídico

plural, pois onde há uma instituição, há direito; onde há uma unidade social

organizada, há direito. Ao voltar-se para os demais conceitos, relevantes para a

própria definição do direito, mais precisamente para o de “Estado”, o identifica como

uma unidade social organizada. Logo, como uma das instituições existentes, por

conseguinte, como um ordenamento jurídico estatal.

O direito é instituição, o Estado é instituição, conseqüentemente, o

Estado é direito. No entanto, direito enquanto instituição, enquanto unidade social

organizada, não correspondendo, assim, às demais concepções que identificam o

Estado ao direito reduzindo, todavia, este a tão-somente normas jurídicas, ignorando

manifestações anteriores as estas, como a própria organização social. A concepção

romaniana de Estado o identifica como uma instituição, como um ordenamento

jurídico originário, presente em um cenário jurídico plural, onde há diversos entes

sociais organizados, diversas instituições, ou seja, diversos ordenamentos jurídicos.

Contextualizado nesse cenário jurídico plural o ordenamento

jurídico estatal depararia com demais ordenamentos, concretizando desse modo a

relação de instituições entre si, relações estas não homogêneas, dependentes de

peculiares características que permitem distinguir uma instituição da outra. A

instituição “Estado”, conforme abordado, diferencia-se por sua soberania, ou seja,

por corresponder a um ordenamento jurídico originário. O que, porém, não exclui

que o referido ordenamento jurídico estatal relacione-se com demais instituições, as

quais também possuem traços peculiares. Instituições por vezes também

complexas. Dentre as quais, há uma instituição onde o próprio ordenamento jurídico

estatal compreendido está, qual seja, o ordenamento jurídico internacional.

desprovido de uma soberania externa: externa em relação ao direto estatal”. Cf.: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 92. Já quanto a soberania externa, por ora, vale apenas mencionar que esta pode ser atribuída ou negada a um Estado, pelo direito de uma comunidade mais ampla, como o ordenamento jurídico internacional. In: ROMANO, loc. cit. Esta questão, acerca da soberania externa será abordada no Capítulo 3 do presente trabalho. 273 ROMANO, loc. cit. Sendo que a expressão “ordenação jurídica”, segundo Romano, pode ser substituída por “ente”, “comunidade” ou “instituição”. Ademais, ao Estado que for atribuída a qualidade de pessoa jurídica, defini-se, consoante o referido autor como “[...] ‘pessoa jurídica territorial soberana’.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 93

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A partir, portanto, da definição do direito proposta por Romano, bem

como da sua concepção de Estado, prossegue o presente trabalho como o escopo

de abordar como ocorre a relação entre os ordenamentos jurídicos internacional e

interno.274 Para tanto, apresentar-se-á na seção seguinte as demais leituras acerca

de tal relação, as quais ainda que divergentes, indubitavelmente, contribuíram e

contribuem para a construção do conhecimento jurídico.

274 Cabe ressaltar que a expressão “direito interno”, empregada no presente trabalho, corresponde ao direito interno do Estado, ou seja, ao direito estatal. “Direito interno é a designação técnica que os internacionalistas costumam atribuir ao Direito Nacional de um Estado.” AKEHURST, Michael. O direito internacional e o direito interno. In: Introdução ao direito internacional. Tradução de Fernando Ruivo. Coimbra: Livraria Almedina, 1985. cap. 4. p. 53. Não se referindo, portanto, ao direito interno de outros entes, como uma organização internacional, por exemplo. Reitera-se que, o objeto de estudo do presente trabalho diz respeito à relação entre direito internacional e direito estatal. Não obstante, a crescente preocupação acadêmica em compreender a relação que ocorre entre o direito internacional geral e o direito interno próprio das organizações internacionais, bem como deste com o direito estatal e de outras organizações internacionais. O primeiro caso, envolve uma discussão quanto o alcance do art. 103, da Carta de São Francisco, de 1945. Tendo em vista que, consoante o referido dispositivo “No caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.” ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta de São Francisco, 1945. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documento_carta>. Acesso em: nov. 2007. Consultar também: REUTER, Paul. O carácter sistemático do direito internacional. In: Direito internacional público. Tradução de Maria Helena Capêto Guimarães. Lisboa: Presença, [198-?]. cap. 2. p. 24-49. Já quanto ao segundo caso, cabem duas considerações. Primeiramente, acerca da relação entre do direito interno de uma organização internacional e o externo a esta. Um caso ilustrativo de tal relação corresponde ao da União Européia [UE] e os demais Estados ou organizações internacionais, conforme menciona Jorge Fontoura, “A União Européia inclusive. Quando a Comissão Européia assina tratados com outros blocos ou com outros Estados, são esses tratados incorporados por chancela legislativa, o que é ínsito do dualismo, numa das raras atuações efetivas do Parlamento Europeu. Logo, a Europa é monista internamente, porém, em relação ao resto do mundo extracomunitário, continua tão dualista como todos os que precisam de escudos.” Ver, a respeito: FONTOURA, Jorge. A participação de particulares no processo de solução de controvérsias. In: Seminário jurídico: la dimensón jurídica de la integración, 8., 2003, Rosário. Disponível em: http://www.aladi.org/nsfaladi/sitio.nsf/biblio2004. Acesso em: dez. 2007. p. 02. Por conseguinte, a segunda consideração diz respeito à produção normativas das organizações internacionais, ou seja, o fenômeno da soft law e a relação de transnormatividade. Vide: MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade. Ijuí: Unijuí, 2005; LUZZATO, Riccardo. Il diritto internazionale generale e le sue fonti. In: CARBONE, S.; LUZZATO, R.; MARIA, A. (Org.). Istituzioni di diritto internazionale. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 2003. cap. 2. p. 73-74.

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2 AS CONSTRUÇÕES JURÍDICAS ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE DIREITO

INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO

Uma das questões relevantes para os que se dedicam ao estudo da

construção do conhecimento jurídico, particularmente, do direito internacional, se

refere à relação entre este último e o direito interno. Por isso, esta questão se

encontra com certa freqüência nos estudos do direito, principalmente do

internacional. Relevante, uma vez que sua apreciação perpassa por questões como

a do fundamento do direito internacional,275 bem como exige uma pré-determinação

de concepções inevitáveis para compreensão da mesma.276 Concepções como

275 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. 3. ed. Lisboa: Almedina, 2002. p. 83 276 Não foram, nem serão poucos os estudos elaborados sobre a problemática da relação entre direito internacional e direito interno. Seja pela sua importância teórica, seja pelo seu aspecto prático, a compreensão e possível solução para este “problema”, segundo Paul Reuter, atraiu a atenção de muitos internacionalistas, e não diferentemente, dos demais juristas. Cf.: REUTER, Paul. O carácter sistemático do direito internacional. In: Direito internacional público. p. 36-37. Cada doutrinador expõe tal problema por meio de diferentes modos de abordagem. Além de se referir aos posicionamentos clássicos, alguns doutrinadores discorrem sobre seus aspectos técnicos, como Reuter, trabalhando à questão das fontes [costume e fontes convencionais]; bem como a natureza da relação em causa [recepção; conflito; devolução –reenvio-; e complemento ]. Vide: Idem. Ibidem., p. 24-49. Já outros autores como Hildebrando Accioly destacam os “momentos distintos” dessa relação como da incorporação das fontes internacionais ao ordenamento jurídico interno e a posição hierárquica neste ordenamento. Cf.: ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento.Relações do DI com o direito interno. In: Manual de direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. cap. 7. p. 64-69. Quanto às diferentes abordagens da relação entre direito internacional e direito interno, dentre os internacionalistas, consultar: com ênfase ao tratamento dado pelo Brasil – MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 1 v. e SOARES, Guido Fernando. Curso de direito internacional público. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004. cap. 10. p. 201-239; com ênfase ao tratamento dado pela Grã-Bretanhã - AKEHURST, Michael. O direito internacional e o direito interno. In: Introdução ao direito internacional. p. 53-65; com ênfase ao tratamento dado pela Itália – IVALDI, Paola. L’ adattamento del diritto interno al diritto internazionale. In: CARBONE, S.; LUZZATO, R.; MARIA, A. (Org.). Istituzioni di diritto internazionale. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 2003. cap. 4. p. 118- 149; e CONFORTI, Benedetto. L’ applicazione delle norme internazionali all’interno dello Stato. In: Diritto internazionale. 5. ed. Napoli: Scientifica, 1999. cap. 3. p. 293-342; com ênfase ao tratamento dado pela Espanha - RIDRUEJO, José Antonio Pastor. Las relaciones entre el derecho internacional y los derechos internos. In: Curso de derecho internacional público y organizaciones internacionales. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1996. cap. 3. p. 191-209 e, com ênfase ao tratamento dado pela França - REUTER, Paul. O carácter sistemático do direito internacional. In: Direito internacional público. p. 24-49. Dentre os demais juristas que mencionam tal relação, consultar: REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Quanto à questão do aspecto prático

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“direito”, de “Estado”, “direito interno” e “direito internacional” são imprescindíveis

para que se possa definir como ocorre tal relação. A interdependência entre essas

concepções e a definição desta relação, se verifica por meio das diferentes

construções jurídicas sobre a matéria. Conforme será observado na presente seção,

dessa diversidade e peculiaridade de concepções resultaram as construções

jurídicas monista277 e dualista tradicional278 acerca da relação em tela.

acerca da relação do direito internacional com o direito interno, esta pode ocorrer sobre dois pontos de vista: a aplicação do direito interno na jurisdição internacional e a aplicação do direito internacional pela jurisdição interna. No primeiro caso, o direito internacional positivo não menciona expressamente qual o posicionamento adotado acerca dessa relação. Contudo, tanto a Corte Internacional de Justiça, quanto à doutrina internacionalista referem-se ao art. 27, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, com expressão da prevalência da aplicação direito internacional. Tendo em vista que, segundo o referido dispositivo “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.” Cf.: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, 1969. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira [Org.]. Coletânea de direito internacional. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 438-479. A respeito do segundo caso, Akehurst ressalta que “A atitude do Direito interno em relação ao Direito Internacional é muito mais difícil de resumir que a do Direito Internacional face ao interno. Não é por acaso que as leis dos diferentes países variam em grande medida a este respeito.” Cf.: AKEHURST, Michael. O direito internacional e o direito interno. In: Introdução ao direito internacional. p. 54. No caso do Estado brasileiro, vale mencionar que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, não faz menção em nenhum de seus dispositivos sobre o posicionamento adotado pelo Estado brasileiro acerca dessa relação. Apenas expressa em alguns de seus dispositivos certas questões referentes aos tratados: art. 5, § 2 e §3; Art. 49, I; art. 84, VIII; art. 102, III, b. Vide: BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. Devido à falta de um dispositivo que explicitamente determine qual o tratamento a ser dado à relação entre direito internacional e direito interno brasileiro, resta, portanto, aos tribunais nacionais tal incumbência. Por ora, ressalta-se que será feita referência, em nota, na secção 3.3, do presente trabalho, quanto ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal [STF] brasileiro a esta relação. 277 Na presente seção será abordado o monismo “normativista”, que parte da concepção do direito como uma unidade de normas jurídicas. Tal unidade estaria fundamentada em uma norma jurídica superior. Não serão, portanto, abordadas as demais construções monistas que fundamento a unidade do direito em outros planos. Como o monismo do direito natural, segundo o qual “[...] o Bem Comum universal se subordina aos Bens Comuns de todas as sociedades particulares [...].” Bem como o monismo sociológico fundamentado em uma sociedade universal única que englobaria, então, as sociedades particulares. A propósito: REUTER, Paul. O carácter sistemático do direito internacional. In: Direito internacional público. p. 36. Truyol y Serra refere-se a Georges Scelle como representante de tal monismo sociológico, destacando a sua teoria do “desdobramento funcional”, segundo a qual devido à falta de órgão próprios do direito internacional, os órgãos estatais corresponderiam a órgãos internacionais. In: TRUYOL y SERRA, Antonio. Fundamentos de derecho internacional publico. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1970. p. 110-111 278 A título de esclarecimento, no presente trabalho, a expressão “dualismo tradicional” refere-se às noções dualistas de dois de seus representantes, o jurista alemão Karl Heinrich Triepel e o jurista italiano Dionisio Anzilotti, cujas respectivas concepções serão abordadas no decorrer do trabalho.

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2.1 A construção jurídica monista acerca da relação entre direito internacional

e direito interno

2.1.1 O monismo de primazia do direito interno segundo Hans Kelsen

A construção monista com primazia do direito interno foi proposta pelo

jurista austríaco Hans Kelsen [1881-1973]. Para abordá-la, volta-se para o edifício

conceitual kelseniano erguido na obra “A Teoria Pura do Direito” [reine Rechtslehre],

de 1934.279 Obra na qual Kelsen discorre como “logicamente possível” o monismo

tanto de primazia do direito interno quanto de primazia do direito internacional no

que concerne à relação entre essas ordens jurídicas. Porém, adverte-se que a

presente pesquisa adotou a construção monista kelseniana de primazia do direito

interno, limitando-se a esta, mesmo que em trabalhos posteriores Kelsen tenha

defendido com maior veemência o posicionamento monista de primazia do direito

internacional.280 Além disso, como bem observa Martti Koskenniemi, foi em tal obra

279 Quanto aos comentários sobre a referida “Teoria Pura do Direito” de Kelsen consultar, dentre outras, as seguintes obras: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Unb, 1999; Idem. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006; BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002; GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005; MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justiça na obra de Hans Kelsen. Belo Horizonte: Del Rey, 2005; MONCADA, L. Cabral, Filosofia do direito e do Estado. Coimbra: Coimbra, 1995; MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995; MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofía del derecho: moderna y contemporânea. Madrid: Tecnos, 1999; REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001; Idem. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002; Idem. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005; VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria geral do direito: teoria da norma jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993; WARAT, Luis Alberto. Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del derecho. In: MEZZAROBA, O.; DAL RI JÚNIOR, A.; ROVER, A. J.; MONTEIRO, C. S. (Coord.). Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 241-254 e, Idem. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. 2 v. 280 Conforme comenta José Ridruejo, “[...] si en el año 1926 sostuvo KELSEN que la norma fundamental podia ser colocada bien en el Derecho interno, bien en el Derecho Internacional, dependiendo ello de factores éticos o políticos, posteriormente entendió que se debía de insertar en lê Derecho Internacional.” Ver, a propósito: RIDRUEJO, José Antonio Pastor. Las relaciones entre el derecho internacional y los derechos internos. In: Curso de derecho internacional público y organizaciones internacionales. p. 195. Nesse sentido, consultar também: CASANOVAS, Oriol. Unity and pluralism in public international law. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 2001 p. 08

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que Kelsen apresentou sua respectiva teoria do direito positivo, ou seja, sua teoria

geral do direito desenvolvida por volta de 1920.281

O direito, segundo a concepção kelseniana, corresponde ao objeto da

ciência jurídica. Em tal assertiva, ainda que não tão evidente, estaria contida a

afirmação de que as normas jurídicas correspondem ao objeto da ciência jurídica.

Por conseguinte, a conduta humana somente seria considerada objeto da ciência

jurídica “[...] na medida em que é determinada nas normas jurídicas como

pressuposto ou conseqüência, ou - por outras palavras – na medida em que constitui

conteúdo de normas jurídicas.”282 Para Kelsen, seja em seu momento estático, ou

em seu momento dinâmico,283 o direito se define como uma ordem social e coativa

que se manifesta por meio de normas jurídicas. E justamente devido a certas

peculiaridades destas, se tornaria possível distinguir o direito das demais ordens

sociais. Conseqüentemente, se tornaria também possível delimitar o objeto da

281 A primeira edição da “Teoria Pura do Direito” data de 1934, por conseguinte, a segunda edição, de 1960. Ver a respeito: KOSKENNIEMI, Martti. International law as philosophy: Germany 1871-1933. In: The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 241. Ao referir-se a Kelsen, como um dos protagonistas da reflexão jurídica do século XX, Grossi destaca alguns dos “vários e bons motivos” pelos quais os ensinamentos kelsenianos se fizeram e ainda se fazem presentes entre os juristas. Nos dizeres de Grossi, “[...] em primeiro lugar, porque não é um filósofo que fala, mas um jurista técnico e empenhadíssimo em grandes operações constitucionais, mesmo sendo nutrido por excelentes bases filosóficas e dotado de uma notável força especulativa; em segundo lugar, porque a sua aventura é autenticamente intelectual, respeitabilíssima como tentativa apaixonada de pesquisa de novas fundamentações epistemológicas para a scientia iuris após tantas dúvidas demolidoras no que diz respeito a sua cientificidade acumuladas ao longo da Idade Moderna; em terceiro lugar [...], porque, mesmo se toda a sua obra pode ser vista como um grandioso exorcismo contra o poder através da sua racionalização formal-normativa, tendo colhido a norma como pilar da ordem jurídica; o tempo da sua produção como momento necessariamente essencial; o comando, como evento essencial; a coerção como conteúdo essencial, manifestação essencial a sua forma [...]”. Cf.: GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Júnior. 2 ed. rev. e atual. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007. p. 61-62 282 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 79. “Pelo que respeita à questão de saber se as relações humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas”. In: KELSEN, loc. cit. 283 Quanto à teoria estática e à dinâmica do direito, Kelsen ensina que “A primeira tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, o Direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito e seu movimento”. In: Idem. Ibidem., p. 80. Kelsen ainda ressalta que um sistema de normas, o qual é considerado como uma ordem jurídica, ou seja, um sistema de normas jurídicas, possui essencialmente um caráter dinâmico. Uma vez que uma norma jurídica somente é válida por ser criada por uma forma estabelecida. “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada - por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta”. Cf.: Idem. Ibidem., p. 221

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ciência jurídica.284 Enquanto ordem social, Mario Giuliano ressalta que um dos

aspectos da teoria pura refere-se àquele de que não existiria uma realidade social,

uma comunidade real, pré ou fora de um ordenamento jurídico.285 O que distinguiria

esta ordem social das demais seriam algumas de suas peculiares características.

Desse modo, além de ordem social, o direito, segundo Kelsen, se

caracteriza por ser uma ordem coativa.286 Isso significa que o direito enquanto

sistema de normas jurídicas reage contra condutas humanas socialmente

perniciosas por meio de um ato de coação [a sanção]. A sanção seria, então, um

elemento integrante, parte constitutiva, de toda norma jurídica.287 Um ato de coação

o qual poderia ser precedente288 ou posterior a tal conduta perniciosa [o ilícito]. Bem

como, poderia ser aplicado ao seu destinatário, ainda que contra a vontade deste,

com atos de coerção.289 Tal caráter de ordem coativa executada até por meio de

284 Diferentemente de outros ramos científicos como a psicologia ou a sociologia, a ciência jurídica, segundo Kelsen, pretende mostrar a conexão de imputação entre os elementos de seu objeto, e não uma conexão causal, como se dá com aqueles ramos. Para tanto, a ciência jurídica prima pelo princípio da imputação ao invés do princípio da causalidade. Nos dizeres de Kelsen “[...] o sentido específico do ato através do qual é produzida a relação entre o pressuposto e conseqüência numa lei [...] jurídica é uma norma, pode falar-se de uma relação normativa – para distinguir de uma relação causal. ‘Imputação’ designa uma relação normativa. É esta relação – e não qualquer outra – que é expressa na palavra “dever-ser”, sempre que esta é usada numa lei [...] jurídica”. Kelsen ainda adverte que o número de elos de uma série imputativa, diferente da causal, é limitado. Sendo a conduta humana, tida como ilícita, o ponto terminal da imputação. In: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 101-102 285 GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. Padova: Cedam, 2003. p.106 286 Assim como o direito, as demais ordens sociais podem prescrever ações humanas, valendo-se do princípio retributivo, die Vergeltung, o qual significa reagir a determinada conduta com um prêmio ou um castigo. Ambos, prêmio e castigo, pode ser compreendido no termo “sanção”. Contudo, Kelsen adverte que comumente designa-se por sanção somente a pena, o castigo. Sendo que uma ordem social, como a jurídica, pode “[...] prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem, como a privação de bens [...] ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra. Desta forma, uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita - ou seja, na hipótese de uma ordem jurídica, como juridicamente prescrita -, na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção (no sentido estrito).” In: KELSEN, op. cit., p. 26. A “sanção”, conforme Kelsen, não corresponde em si mesma uma dever. Pode, no entanto, a sanção ser estatuída como dever, mas não necessariamente. A sanção, portanto, “[...] é o ato coercitivo que uma norma liga a uma determinada conduta cuja conduta oposta é, desse modo, juridicamente prescrita, constituindo conteúdo de um dever jurídico. Também pode exprimir-se isto dizendo: a sanção é o ato coercitivo que constitui o dever jurídico”. Nesse sentido, vale mencionar que, da mesma forma que sanção não corresponde a um dever, Kelsen destaca que “responsabilidade” também não é um dever. A responsabilidade corresponde a uma “[...] relação do indivíduo contra o qual o ato coercitivo é dirigido com o delito por ele ou por outrem cometido.” In: Idem. Ibidem., p. 138 287 GIULIANO, op. cit., p. 108 288 “Se o conceito de sanção á alargado nestes termos, já não coincidirá com o de conseqüência do ilícito. A sanção, neste sentido amplo, não tem necessariamente de seguir-se ao ato ilícito: pode precedê-lo”. In: KELSEN, op. cit., p. 45 289 Idem. Ibidem., p. 35. Nos dizeres de Kelsen “Atos de coerção são atos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência, com o emprego da força física”. In: Idem. Ibidem., p. 122. Quanto ao recurso da força física, segundo Kelsen “[...] é a ordem jurídica que, taxativamente, determina as condições sob as quais a coação física deverá ser aplicada e os

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atos de coerção distinguiria também290 o direito das demais ordens sociais, como a

moral, por exemplo.291 No entanto, Kelsen adverte este ato de coação não

necessariamente precisa ser voltado a um ato de um único indivíduo, pode referir-se

à unidade da ordem jurídica.292 Por conseguinte, diferentemente das sanções

correspondentes às demais ordens sociais, as correspondentes à ordem jurídica

seriam de “caráter social imanente”. Isso significa que, se realizam dentro da

sociedade, bem como são executadas pelos homens. Kelsen afasta, desse modo,

qualquer relação de “origem” ou de “execução” supra-humana, de caráter

transcendental.293 O elemento “coação” torna-se um fator significativo para a

identificação das relações sociais caracterizadas enquanto ordem social assim

chamada de “direito”. Dois são, então, os aspectos que permitem distinguir um

comando proveniente do ordenamento jurídico, de um outro qualquer. Primeiro, que

tal comando [jurídico] deve pressupor uma norma fundamental [die Grundnorm].

Essa juridicidade dependeria, nos dizeres de Oriol Casanovas, de considerações

tecnicamente jurídicas.294 Além disso, deve expressar um sentido coativo o qual se

concretiza dentre dos limites de toda experiência possível. Para François Rigaux,

indivíduos que a devem aplicar. Dado que o indivíduo a quem ordem jurídica atribui poder para aplicar a coação pode ser considerado como órgão da ordem jurídica [...].” Cf.: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 40 290 Outra distinção seria a mencionada no parágrafo acima, ou seja, a questão da norma fundamental ser pressupostas, anterior, a um comando proveniente do ordenamento jurídico. 291 Idem. Ibidem., p. 37 “Uma ordem normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ordem coercitiva. Mas os atos de coerção podem ser estatuídos – e é este o caso da ordem jurídica, [...] – não só como sanção, mas também como reação contra situações de fato socialmente indesejáveis que não representam conduta humana e, por isso, não podem ser consideradas como proibidas.” Logo, a característica da coação psíquica não distingue a ordem jurídica das demais ordens sociais, as quais igualmente exercem certa coação aos seus destinatários. Conceber o direito enquanto ordem coativa, então, significa que este, além da coação psíquica, este “[...] estatuiu atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como conseqüência dos pressupostos por ele estabelecidos.” In: Idem. Ibidem., p. 38 292 Nos dizeres de Kelsen, “O ato de coação normado pela ordem jurídica pode [...] ser referido à unidade da ordem jurídica, ser atribuída à comunidade jurídica constituída pela mesma ordem jurídica, ser explicado como reação da comunidade jurídica contra uma situação de fato considerada socialmente nociva e, quando esta situação de fato é uma determinada conduta humana, como sanção.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 36. Uma ordem jurídica pode, portanto, reagir não somente contra um ato de um indivíduo, mas também contra fatos socialmente nocivos, justamente pelas sanções da ordem jurídica serem de caráter socialmente imanente. Ainda ao que concerne a questão da reação da comunidade jurídica, Kelsen entende esta como “[...] todos os subordinados à ordem jurídica”. Desse modo, uma determinada conduta de um indivíduo pode ser punida se atentar com esta comunidade, e não tão-somente contra um outro indivíduo. O que permite considerar como, assim protegido dos atos humanos perniciosos, os animais, as plantas e os objetos inanimados. In: Idem. Ibidem., p. 35 293 Idem. Ibidem., p. 30. Nesse sentido, Kelsen adverte que um ordenamento pode ser considerado eficaz [no sentido normativo] quando a conduta dos indivíduos se conformam com as normas justamente por receio de serem aplicadas as penas previstas. Cf.: Idem. Ibidem., p. 28 294 CASANOVAS, Oriol. Unity and pluralism in public international law. p. 08

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este entendimento kelseniano refuta qualquer concepção de direito de cunho

jusnaturalista, uma vez que para a pureza do direito “[...] deve centrar em regras

positivas que estejam fundamentadas na hipotética Grundnorm, uma premissa

formal pura sem qualquer motivação em considerações filosóficas ou morais, sem

qualquer engajamento político ou valores sociais.”295 Desse modo, Kelsen reitera a

relevância de tal elemento “coação” para a definição do direito. Pois somente por

meio da coação se tornaria possível levar em consideração a conexão que há entre

o direito e o Estado. Uma vez que este “[...] é essencialmente uma ordem de coação

e uma ordem de coação centralizadora e limitada no seu domínio territorial de

validade”.296

“O Direito é uma ordem de coerção e, como ordem de coerção, é –

conforme o seu grau de evolução - uma ordem de segurança, quer dizer, uma ordem

de paz”.297 Contudo, Kelsen adverte que o direito, ainda que identificado como uma

ordem que estabelece a paz na comunidade jurídica [constituída pela ordem

jurídica], não significaria qualquer reconhecimento de um juízo de valor de “justiça”.

Ou seja, a “justiça” não corresponderia a um elemento presente no conceito de

direito aduzido por Kelsen.298 A justiça, segundo o mesmo, seria uma exigência

presente na “moral”, e não no direito. Logo, na relação entre direito e moral, estaria

contida a semelhante relação entre direito e justiça. Além disso, a Teoria Pura do

Direito identifica-se com uma tendência antiideológica.299 Como bem menciona Luis

Alberto Warat, “A teoria pura de Kelsen é uma negativa absoluta de toda metafísica

295 RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 09, n. 2, 1998. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 01 set. 2007. p. 09. Livre tradução do original: [...] must centre on positive rules which rely on the hypothetical Grundnorm, a purely formal premise without any reliance on philosophical or moral considerations, without any engagement with political or social values. 296 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 60 297 Idem. Ibidem., p. 41 298 Idem. Ibidem., p. 54. Kelsen, ao comentar a questão de tomar a “justiça” como critério da ordem normativa a designar como “direito”, aduz que “Um conceito de Direito que conduz a uma tal conseqüência não pode ser aceito por uma ciência jurídica positiva. Uma ordem jurídica pode ser julgada como injusta do ponto de vista de uma determinada norma de Justiça. O fato, porém , de o conteúdo de uma ordem coercitiva eficaz poder ser julgado como injusto, não constitui de qualquer forma um fundamento para a não considerar como válida essa ordem coercitiva.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 55 299 Idem. Ibidem., p. 118. Ainda segundo o referido autor, a tendência antiideológica de tal teoria comprava-se “[...] pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo, manter este isento de qualquer confusão com um Direito “ideal” ou “justo”. Quer representar o Direito tal como ele é, e não como ele deve ser: pergunta pelo Direito real e possível, não pelo Direito “ideal” ou justo. Neste sentido é uma teoria do Direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o Direto positivo.” In: KELSEN, loc. cit.

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e do Direito Natural ou de uma justiça, que não seja juridicamente válida”.300 Enfim,

para Kelsen, o direito enquanto ordem social [ordem de coerção], corresponderia a

um sistema de normas jurídicas que estatuem sanção. E que por isso, se distingue

das demais ordens sociais, com a moral [normas morais], por conseguinte,

distingue-se do juízo de valor “justiça”.301

O direito seria distinto da moral, bem como a ciência jurídica seria

distinta da Ética. Nesse passo, quanto a uma possível relação entre direito e moral

Kelsen ressalta que a finalidade da ciência jurídica não corresponde a uma

valoração ou apreciação do seu objeto. Ou seja, não corresponde a uma valoração

ou apreciação das normas jurídicas. Mas sim, corresponde a uma descrição de tal

objeto alheio a quaisquer valores [wertfreie], de seu conteúdo.302 Por isso, Andityas

de Matos, menciona que Kelsen não realiza uma depuração axiológica no direito, o

que ocorreria é que segundo a concepção kelseniana “[...] a ciência jurídica não

pode prescrever valores, mas apenas descrever seu objeto, ou seja, normas

jurídicas que têm valores como conteúdo.”303 Para Kelsen, o único “valor” que pode

ser identificado no direito corresponderia ao “valor jurídico”. Valor este decorrente do

fato de o direito ser norma, e não outro valor, como de cunho moral. Ao retomar a

questão concernente à relação entre o direito e a moral, Kelsen menciona que esta

não se relacionaria com a questão conteúdo. Mas sim, que se relacionaria com a

questão forma, pois ambas seriam normas, as jurídicas e as morais, ambas

determinariam condutas. Essa, portanto, corresponde à única relação entre o direito

300 WARAT, Luis Alberto. Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del derecho. In: MEZZAROBA, O.; DAL RI JÚNIOR, A.; ROVER, A. J.; MONTEIRO, C. S. (Coord.). Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. p. 248. Livre tradução do autor: La teoría pura de Kelsen es uma negativa absoluta de toda metafísica y del Derecho Natural o de una justicia, que no fuera jurídicamente válida. 301 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 67. Acerca da distinção entre direito e moral, Kelsen destaca que “Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – [...] – se concebem como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui qualquer sanção desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não encontrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física”. In: Idem. Ibidem., p. 71 302 Idem. Ibidem., p. 77 “A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois se a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever”. Cf.: KELSEN, loc. cit. 303 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justiça na obra de Hans Kelsen. p. 115

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e a moral, segundo Kelsen. Uma relação devido à questão da forma. Logo, são

normas que constituem valores, jurídicos e morais, respectivamente. Não haveria

qualquer outra relação entre estas duas ordens sociais, como a questão de validade,

por exemplo.304

Quanto aos domínios de validade de uma norma jurídica, consoante

Kelsen, estes corresponderiam ao: domínio espacial- temporal;305 ao domínio

pessoal e ao material das normas.306 Nesse sentido, considerando tanto seu

respectivo domínio pessoal quanto material, a conduta humana a ser regulada por

uma norma corresponderia: ou a uma ação determinada, ou a uma omissão de tal

ação.307 Desse modo, a regulamentação da conduta humana ocorreria tanto por

uma forma positiva quanto por uma forma negativa.308

O “ser” [sein] do direito, portanto, corresponde para Kelsen a um

“dever-ser” [sollen] que tende, segundo Giuliano, a determinar a realidade.309 Ainda

que considerada como uma herança kantiana, tal distinção kelseniana entre ser e

dever-ser expressaria que “O dever-ser tem um significado normativo (lógico-formal),

sendo muito mais amplo que o dever moral.”310 Um dever-ser no tríplice sentido de:

ser-prescrito, ser-autorizado e a um ser-permitido, designado como norma jurídica

304 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 74. Segundo Kelsen, “[...] a validade das normas jurídicas positivas não depende do fato de corresponderem à ordem moral, que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito positivo, uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral”. In: Idem. Ibidem., p 77 305 Tais domínios podem ser fixados tanto pela própria norma jurídica, bem como por uma outra norma superior. Vide: Idem. Ibidem., p. 13. A questão do domínio espacial será objeto de abordagem da seção 2.1.1.4, do presente trabalho. Contudo, acerca do domínio temporal, vale mencionar, nos dizeres de Kelsen, “Relativamente ao domínio temporal de uma norma positiva, devem distinguir-se o período de tempo posterior e o período de tempo anterior ao estabelecimento da norma. Em geral, as normas referem-se apenas as condutas futuras. No entanto, podem referir-se também a condutas passadas.” In: Idem. Ibidem., p. 14 306 Concernente ao domínio de validade pessoal e material, de uma norma, Kelsen ressalta que corresponde à conduta humana, aquela que pela norma é regulada. Apenas a conduta dos homens, ou aqueles fatos conexos a esta, podem ser conteúdo de uma norma. Logo, o domínio de validade material de uma norma refere-se a este conteúdo, a matéria que a norma regula. Identificando-se, primeiramente, com a conduta humana. Por conseguintes, “O domínio material de validade de uma ordem jurídica global, porém, é sempre ilimitado, na medida em que uma tal ordem jurídica, por sua própria essência, pode regular sob qualquer aspecto a conduta dos indivíduos que lhe estão subordinados.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 15-16 307 Idem. Ibidem., p. 16 308 “[...] toda a conduta humana que é fixada num ordenamento normativo como pressuposto ou como conseqüência se pode considerar como autorizada por esse mesmo ordenamento e, neste sentido, como positivamente regulada. Negativamente regulada por um ordenamento normativo é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não é positivamente permitida por uma norma proibitiva – sendo assim, permitida num sentido meramente negativo”. Cf.: Idem. Ibidem., p.17-18 309 GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. p. 105 310 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justiça na obra de Hans Kelsen. p. 32

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tendo por destinatário a conduta humana. A “fonte” do direito então, no sentido

jurídico-positivista de Kelsen, corresponde ao próprio direito.311 E este, segundo a

concepção kelseniana, se identifica como um sistema lógico e monista de normas

jurídicas. O ordenamento jurídico concebido, então, segundo comenta Antonio

Truyol y Serra, como uma pirâmide escalonada de normas cuja unidade

gnoseológica deve-se aos seu fundamento último, a Grundnorm.312 Desse modo,

Rigaux destaca que a proposta kelseniana do direito como um sistema lógico e

monista de normas jurídicas, encontra quatro elementos básicos,

[…] i) a identificação de direito e Estado; ii) a idéia uma ordem legal corresponde a um composto de normas, a validade de tais normas encontra-se em uma norma básica hipotética, a Grundnorm; iii) a exclusão de qualquer elemento factual na construção da ordem legal, e; iv) o repúdio a qualquer referência a outras premissas não-lógicas, como as morais ou direito natural.313

Kelsen, portanto, contribui para a construção do conhecimento jurídico

de viés “normativismo positivista”. Contribuiu tanto ao identificar o direito a um

sistema de normas jurídicas, quanto ao excluir qualquer outra concepção, como a

jusnaturalista do direito, que ultrapassasse os limites de toda experiência possível.

2.1.1.1Da concepção de Estado

Conforme o enunciado da teoria dinâmica do direito, este, o direito,

resultaria em um contínuo trabalho de construção, não findo, mas sim em

311 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 259. Acerca do uso da expressão “fonte”, Kelsen adverte o quão esta é utilizada de modo equivocado, uma vez que frenqüentemente aponta-se para representações não jurídicas, como princípios morais e políticos, como sendo fontes do direito. Segundo a concepção kelseniana, a fonte do direito só pode ser o direito, ou seja, todos os métodos de criação jurídica, tendo para tanto, a Grundnorm como o último fundamento de validade. “A equivocada ou pluralidade de significações do termo “fonte do Direito” fá-lo aparecer como juridicamente imprestável. É aconselhável empregar, em lugar desta imagem que facilmente induz em erro, uma expressão que inequivocadamente designe o fenômeno jurídico que se tem em vista.” In: KELSEN, loc. cit. 312 TRUYOL y SERRA, Antonio. Fundamentos de derecho internacional publico. p. 60 313 RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. p. 03. Livre tradução do original: […] i) the identification of law and states; ii) the idea that the legal order is a compound of norms, the validity of wich relies on a hypothetical basic norm, the Grundnorm; iii) the exclusion of any factual element in the construction of a legal order, and; iv) the repudiation of any reference to other non-logical premises, such as morals or natural law. Vale mencionar que dentre tais elementos básicos, alguns serão melhor abordados nas secções seguintes do presente trabalho.

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elaboração. Uma vez em movimento volta-se, por conseguinte, às questões: “como

seria produzido tal direito?”; “qual sua respectiva origem?”; e “qual o método de

produção jurídica responsável pelo seu dinamismo?”. Não obstante às demais

preocupações, mais precisamente no que concerne à questão “origem”, Kelsen ao

conceber a Rechtsordnung, ou seja, o direito como um sistema de normas jurídicas,

identificou uma determinada fonte [primeira] deste. Uma fonte considerada como

legitimadora do caráter coativo das normas jurídicas, e logo, do direito enquanto

ordem coercitiva. Tal fonte corresponde à “norma fundamental”. No entanto,

voltando-se para as demais questões, Kelsen reconhece a necessidade de um

“método”. Um método para que o direito possa se expressar por meio de tais normas

jurídicas. Um caminho a ser, então, percorrido da fonte primeira até sua

manifestação por meio de tais normas jurídicas. Este “caminho” a ser percorrido é,

portanto, identificado por Kelsen como o “Estado”.314

Nesse contexto, o autor procura superar certos dualismos, como

aquele estabelecido entre o direito privado e direito público.315 Bem como, segundo

Kelsen, aquele de função meramente ideológica, estabelecido entre o Estado e

direito.316 Warat, então, comenta que “Tais dicotomias têm para Kelsen uma nítida

coloração ideológica, já que servem para afirmar, por fatos anteriores ao Direito

314 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 310. “[...] àquilo que se concebe como forma do Estado é apenas um caso especial da forma do Direito em geral. É a forma do Direito, isto é, o método de criação jurídica no escalão mais elevado da ordem jurídica, ou seja, no domínio da Constituição. Com o conceito de forma de Estado caracteriza-se o método de produção de normas gerais regulado pela Constituição.” In: KELSEN, loc. cit. 315 Acerca do dualismo entre o direito público e o direito privado, Kelsen relativiza tal oposição considerada com absoluta para alguns posicionamentos mais tradicionais da ciência jurídica, desse modo a Teoria Pura do Direito “[...] transforma-a de uma oposição extra-sistemática, quer dizer, de um distinção entre Direito e não-Direito, entre Direito e Estado, numa distinção infra-sistemática; precisamente porque desse modo, também decompõe e destrói a ideologia que está ligada à absolutização da oposição em causa, comprova o seu caráter de ciência.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 312 Dentre algumas alegações pelas quais Kelsen descorda da absoluta distinção entre o direito público e o direito privado, vale mencionar que tal absolutização “[...] cria também a impressão que só o domínio do Direito público, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o setor de dominação política e que estaria excluída no domínio do Direito privado”. In: Idem. Ibidem., p. 313 316 Quanto ao dualismo que se apresenta entre direito e Estado, Kelsen refuta e menciona a função meramente ideológica de tais posicionamentos que tendem a distinguir o direito do Estado. Nesse passo, os adeptos a este entendimento atribuem ao Estado certa personalidade jurídica, identificando-o com pessoa, como sujeito de direitos e deveres. Enquanto pessoa, o Estado então manifesta sua vontade por meio de normas jurídicas, ou seja, o Estado independe, preexiste e cria o direito. Segundo Kelsen, este dualismo apresenta-se tão somente como uma função ideológica, pois, “O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. [...] Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de fazer o Direito.” O direito desse modo, justificaria o Estado, o qual somente o “poder” identifica-se com sua originária natureza. Cf.: Idem. Ibidem., p. 316

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positivo, determinados conteúdos sem justificá-los cientificamente”.317 Nessa

perspectiva, para o jurista austríaco, a única possibilidade de haver um

conhecimento do Estado, liberto de qualquer função ideológica ou explicações

metafísicas, seria identificando-o como uma ordem da conduta humana. Isso

significa, identificá-lo como uma ordem jurídica.318 Se o Estado é freqüentemente

identificado como uma organização política, corresponderia a uma ordem de

coação.319 Logo, enquanto organização política, o Estado significaria uma ordem

jurídica.320 O Estado e o direito se identificariam, o que para Giuliano, corresponde

ao aspecto principal da doutrina pura, pois contrapõe àquela tradicional concepção

de Estado como um realidade pré-jurídica.321 Porém, Kelsen adverte que nem toda

ordem jurídica corresponde a um Estado, uma vez que, para tanto, seria necessária

uma organização no sentido estrito do vocábulo, como um determinado grau de

centralização.322 Conforme ressalta Paulo Bonavides, o Estado para a concepção

kelseniana pertence “[...] ao mundo do dever ser, do sollen, se explica pela unidade

das normas de direito de determinado sistema, do qual ele é apenas nome ou

sinônimo.”323

317 WARAT, Luis Alberto. Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: MEZZAROBA, O.; DAL RI JÚNIOR, A.; ROVER, A. J.; MONTEIRO, C. S. (Coord.). Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 75. Ao referir-se quanto a este posicionamento kelseniano antidualista, Warat destaca a identificação de direito e Estado, apontada por Kelsen, a partir de uma perspectiva estritamente normativista. Por conseguinte, “Ambos passam a ser vistos como um conjunto de normas. Elimina-se assim a distinção clássica entre Direito público e Direito privado, pois essa distinção provoca a intervenção da política na Ciência do Direito. Dito de outro modo: a distinção entre o Direito e o Estado preservaria miticamente o caráter de neutralidade do Estado, que se identificaria então com o Direito público e o conjunto de valores transcendentes que lhe são atribuídos. As transgressões, as ilicitudes, ficariam dessa forma ideologicamente circunscritas à esfera do Direito privado. Pelo caráter público do Estado, sugere-se que este nunca poderia cometer transgressões.” Cf.: WARAT, loc. cit. 318KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 316 319 A expressão de “ordem de coação”, conforme os dizeres de Kelsen, se dá por meio da “organização política” do Estado, pois “[...] o elemento ‘político’ específico desta organização consiste na coação exercida de indivíduo a indivíduo e regulada por essa ordem, nos atos de coação que essa ordem estatui.” In: KELSEN, loc. cit. 320 Idem. Ibidem., p. 317 321 GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. p. 104 322 KELSEN, op. cit., p. 317. Nesse sentido, Kelsen aduz que “Para ser um Estado, a ordem jurídica necessita de ter o caráter de uma organização no sentido estrito da palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização. O Estado é uma ordem jurídica relativamente centralizada.” Ressaltando-se ainda que é justamente este grau de centralização que permite a diferenciação de uma ordem jurídica como o Estado, das demais ordens sociais com a pré-estatal e a supra-estatal, ordens coercitivas mas por sua vez descentralizadas, segundo o referido autor. In: KELSEN, loc. cit. 323 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. p. 42

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Já enquanto comunidade social, o Estado apresentaria três elementos

essenciais a sua composição. Contudo, uma vez identificado como ordem jurídica,

tais elementos somente poderiam ser definidos juridicamente, o que significa que

“[...] eles apenas podem ser apreendidos como vigência e domínio de vigência

(validade) de uma ordem jurídica”.324 Nesse contexto, Kelsen destaca os seguintes

elementos: a população, o território e o poder exercido por um governo estatal

independente.325

Acerca do primeiro elemento, população, Kelsen o identifica aos

indivíduos que pertencem a um dado Estado, os quais conjuntamente se

encontrariam submetidos a uma determinada ordem coercitiva, relativamente

centralizada. O que permitiria identificar um indivíduo como pertencente ou não a um

Estado seria, portanto, a ordem jurídica sob a qual aquele está submetido.326

O território do Estado, consoante Kelsen, corresponde a um pedaço

tridimensional,327 rigorosamente delimitado. Logo, enquanto ordem jurídica, o

território do Estado “[...] apenas pode ser definido como o domínio espacial de

vigência de uma ordem jurídica estadual”.328 Todavia, Kelsen ressalta que não se

deve considerar tão-somente o espaço sob o qual uma ordem jurídica é vigente,

mas também o tempo. O elemento tempo deveria ser considerado juntamente com o

elemento espaço, pois os Estados podem surgir, bem como se extinguir.329

Por fim, quanto ao elemento “poder do Estado”, Kelsen refere-se

àquele exercido por um governo sobre uma população pertencente a um

determinado território estatal. O elemento que faria com que tal relação de poder

324 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 318 325 KELSEN, loc. cit. 326 Idem. Ibidem., p. 319. “A questão de saber se um indivíduo pertence a determinado Estado não é uma questão psicológica mas uma questão jurídica. A unidade dos indivíduos que formam a população de um Estado em nada mais pode ver-se do que no fato de que uma e a mesma ordem jurídica vigora para estes indivíduos, de que a sua conduta é regulada por uma e a mesma ordem jurídica. A população do Estado é o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica estadual”. Cf. KELSEN, loc. cit. 327 A tridimensão do elemento território, de acordo com Kelsen, significa que a tal elemento “[...] pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região compreendida dentro das fronteiras do Estado.” In: KELSEN, loc. cit. 328 A título de esclarecimento, vale advertir que o presente trabalho manteve em suas respectivas citações diretas a expressão “ordem jurídica estadual”, conforme se encontra mencionada na tradução para o português da obra “Teoria Pura do Direito”, por ora utilizada. Contudo, no decorrer do texto do presente trabalho, quando não mencionado em citação direta, a opção feita foi pela expressão “ordem estatal”, e não “ordem jurídica estadual.” 329 Idem. Ibidem., p. 320. Prosseguindo ainda o referido autor “E, assim como a existência do Estado no espaço é o domínio espacial de vigência da ordem jurídica estadual, assim a existência temporal do Estado é o domínio temporal de vigência da mesma ordem jurídica.” In: KELSEN, loc. cit.

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diferencie-se das demais seria, justamente, o fato desta relação ser juridicamente

regulada.330 O poder soberano do Estado, então, uma vez este considerado como

ordem jurídica, seria expressão desta. Logo, a soberania seria expressão do direito,

seria uma qualidade do ordenamento estatal.331 “O poder do Estado não é uma força

ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do Direito. Ele não é

senão a eficácia da ordem jurídica”.332 Desse modo, a questão de ser ou não um

Estado identificado como soberano, refere-se à questão de saber se a respectiva

ordem jurídica estatal é ou não considerada como suprema. Nessa identificação

kelseniana entre direito e Estado, Arnaldo Vasconcelos menciona que “A soberania

torna-se a fonte exclusiva de criação do Direito.”333 Isso significa que, sendo a ordem

jurídica estatal suprema, não estando subordinada a outra, o Estado seria, portanto,

identificado como soberano.334

Ao discorrer sobre o momento dinâmico do direito, precisamente

quanto às funções atribuídas à ordem estatal, Kelsen enfatiza que de um modo

imediato o Estado não cria nem aplica o direito. Mas sim, que o Estado o observa.335

Isso significa que criação e aplicação do direito seriam atribuições distintas de sua

observância. Segundo Kelsen, a observância do direito seria a conduta que evita a

sanção. É a conduta oposta àquela que liga o ato coercitivo da sanção. Nesse

sentido, o uso de uma permissão positiva, por exemplo, poderia ser designado como

observância do direito,336 que seria assim considera como uma função imediata.

Função concretizada por meio da administração estatal enquanto função do

Estado.337 Já a criação e aplicação do direito seriam designadas como funções

330 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 320. “O que faz com que a relação designada como poder estadual se distinga de outras relações de poder é a circunstância de ela ser juridicamente regulada, o que significa que os indivíduos, que como governo do Estado, exercem o poder, recebem competência de uma ordem jurídica para exercerem aquele poder através da criação e aplicação de normas jurídicas – que o poder do Estado tem caráter normativo. O chamado poder estadual é a vigência de uma ordem jurídica estadual efetiva.” Cf.: KELSEN, loc. cit. 331 Idem. Concetto ed essenza della sovranità. In: Il problema della sovranità e la teoria del diritto internazionale: contributo per uma dottrina pura del diritto. Milano: Giuffrè, 1989. cap. 02. p. 17 332 Idem. Teoria pura do direito. p. 321 333 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria geral do direito: teoria da norma jurídica. p. 123 334 Vale mencionar que a secção 2.1.1.4, do presente trabalho, abordará a questão acerca dessa relação entre a ordem jurídica estatal e a ordem jurídica internacional. 335 KELSEN, op. cit., p. 327 336 Idem. Ibidem., p. 263 337 “Se, porém – como no caso da administração estadual que não tem, ou não tem primeiramente, o caráter de criação ou aplicação do Direito mas o de observância do Direito -, a conduta dos órgãos funcionarizados é atribuída ao Estado, é considerada como função do Estado (no sentido estrito), então o fim do Estado (no sentido amplo) é realizado imediatamente através desta função do Estado (no sentido estrito). Nestes termos, poderemos distinguir uma administração estadual mediata, cuja função não difere da jurisdição, pois é, com esta, função de criação e aplicação do Direito, e uma

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jurídicas num sentido estrito. Seriam, então, funções mediatas do Estado

concretizadas por meio da administração estatal enquanto função de governo.338

Ao considerar o Estado enquanto ordem jurídica, Kelsen não se

esquiva de abordar alguns pontos entendidos como insofismáveis para

determinados posicionamentos do conhecimento jurídico. No entanto, pontos

considerados como problemáticos frente à concepção kelseniana de Estado. Dentre

tais encontra-se a errônea interpretação da metáfora antropomórfica que considera o

Estado entidade real, um super-indivíduo.339 Nesse sentido, Kelsen destaca que do

problema de considerar o Estado como pessoa jurídica, como sujeito agente,340

administração estadual imediata, que difere essencialmente da função judicial porque é observância do Direito e porque, na medida em que tenha função também função criadora do Direito, possui um caráter jurídico-negocial e não um caráter jurisdicional.” Cf.: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 295 338 Idem. Ibidem., p. 263. Kelsen concebe a administração estatal em duas partes diferentes na sua estrutura jurídica: uma corresponde a função estatal, aquela imediata; e a outra corresponde a função de governo, aquela mediata. Sendo que compete a esta o exercício da função de criação e aplicação do direito por meio dos “[...] chefe de Estado e dos membros de gabinete, dos ministros ou secretários de Estado assim como, em grande medida, dos órgãos da administração submetidos ao governo [...].” Cf.: Idem. Ibidem., p. 327. Segundo Kelsen, a criação e aplicação do direito corresponde a um único ato. Pois, “[...] todo ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção de uma norma inferior”. Por conseguinte, “A questão de saber se um ato tem o caráter de criação jurídica ou de aplicação do Direito está dependente do grau em que a função do órgão que realiza o ato é predeterminada pela ordem jurídica.” Contudo ressalta uma possível exceção a esse ato uno, uma vez que há “[...] atos que apenas são aplicação do Direito e não criação jurídica: são os já mencionados atos através dos quais os atos de coerção estatuídos pelas normas jurídicas são executados. E há um ato de positiva criação jurídica que não é aplicação de uma norma jurídica positiva: a fixação da primeira Constituição histórica, que se realiza um aplicação da norma fundamental, a qual não é posta mas apenas pressuposta”. Cf.: Idem. Ibidem., p. 261-262 339 Idem. Ibidem., p. 198 340 Idem. Ibidem., p. 322. Acerca de tal problema, Kelsen menciona que o mesmo suscita outras questões como: quais os critérios segundo o qual certos atos, postos por indivíduos determinados, são atribuídos ao Estado, o critério segundo o qual estes atos são qualificados como atos ou funções do Estado, ou, o que é o mesmo, a questão de saber por que determinados indivíduos são considerados como órgãos do Estado ao porem determinados atos.” Por conceber o Estado como ordem jurídica, Kelsen então aduz que “O Estado, como pessoa, é a personificação desta ordem. No entanto, [...], deve notar-se que, ao lado deste conceito de Estado,se utiliza um segundo, diferente daquele mas intimamente ligado com ele, nele incluído, e nos termos do qual, quando o Estado é representado como pessoa agente, ele tão-somente é, também, a personificação de uma ordem jurídica; não, porém, da ordem jurídica total, que regula a conduta de todos os indivíduos, que vivem dentro do seu domínio territorial de vivência – e, desse modo, constitui o Estado como uma comunidade jurídica a que pertencem todos estes indivíduos que vivem sobre um determinado território - , mas de um ordem jurídica parcial que é formada por aquelas normas da ordem jurídica nacional estadual que regulam a conduta dos indivíduos que tem o caráter de órgãos, funcionam segundo o princípio da divisão do trabalho e são qualificados como “funcionários”. Esta ordem jurídica parcial constitui uma comunidade jurídica parcial à qual apenas pertencem estes indivíduos.” Vide: Idem. Ibidem., p. 324. Desse modo, percebe-se que o Estado corresponde a personificação da ordem jurídica parcial, lhe sendo atribuída a função imediata de observação do direito. O Estado se personifica enquanto ordem jurídica parcial, e não total uma vez a função de criação e aplicação do direito são atribuídas ao governo, ou seja, uma função mediata do Estado.

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decorrem: a questão da “representação”;341 e, a questão dos direitos342 e deveres343

concernentes ao Estado.344

A Teoria Pura do Direito destarte fundamenta a tese da identidade do

Estado e do direito. Por isso, “O Estado não é, como os indivíduos humanos, um

objeto da disciplina jurídica, mas é a própria disciplina jurídica, um específico

ordenamentos jurídico.”345 O Estado é concebido por Kelsen como uma ordem da

conduta humana. Logo, concebido como uma ordem de coação relativamente

centralizada.346 Concepção esta que revelaria certa originalidade, segundo

Bonavides, ao “[...] banir do Estado todas as implicações de ordem moral, ética,

histórica, sociológica, criando o Estado como puro conceito [...].”347 Desse modo, o

jurista austríaco enfim ressalta que sendo necessário corresponder o Estado a uma

pessoa jurídica, o Estado seria a personificação de tal ordem coercitiva. E somente

assim o Estado poderia se auto-obrigar.348 O que restaria por afastada qualquer

entendimento dual no sentido de que o Estado cria o direito, a fim de que este

341 A representação vem contraposta ao sentido a esta atribuído como de que “o órgão estadual “representa” o Estado”, ou seja, como uma identidade de vontades entre representado e representante. Tal concepção é afastada pelo referido autor sob a alegação do caráter fictício desta identificação de vontades. Kelsen, portanto, atribui ao conceito de “representação” o seguinte significado, “[...] que o indivíduo que realiza a função está juridicamente, ou ético-politicamente apenas, vinculado a realizar esta função no interesse do indivíduo ou dos indivíduos aos quais, precisamente por isso, essa função é atribuída.” Cf.: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 333 342 Os direitos apontados como do Estado corresponderiam aos direitos reflexos [direito subjetivo], ou seja, àqueles que quando exercidos constituem a função de um indivíduo o qual tenha a qualidade de um órgão do Estado [que tal conduta possa ser atribuída ao Estado]. Nesse sentido, segundo os dizeres do referido autor Cf.: Idem. Ibidem., p. 314. Dentre tais direitos, Kelsen menciona o direito do Estado punir o delinqüente, os direitos reais e os direitos de propriedade do Estado [este correspondente ao patrimônio do Estado o qual desempenha o principal papel na atribuição operada em relação ao Estado como aparelho burocrático de funcionários, por exemplo]. Cf.: Idem. Ibidem., p. 344 343 O fato de considerar o Estado como sujeito de deveres, inevitavelmente, remete a outras questões como o ilícito estatal e a responsabilidade do Estado. Nesse sentido, Kelsen ao conceber o Estado como personificação de uma ordem jurídica, a este compete um dever “ético-político” de observar o direito, e não um dever jurídico. Uma vez que entende-se por este como “[...] observar uma determinada conduta quando a ordem jurídica liga à conduta oposta um ato coercitivo a título de sanção [...]”. In: Idem. Ibidem., p. 335 344 Idem. Ibidem., p. 334-345 345 GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. p. 104 346 Ao considerar o Estado, enquanto ordem de coação relativamente centralizada, Kelsen refere-se que a unidade formal do território jurídico, de um Estado, não tem de estar ligada à unidade material do conteúdo jurídico, esta pode variar por causas geográficas, por exemplo. In: KELSEN, op. cit., p. 350 347 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. p. 42. Porém, para Paulo Bonavides, ainda que com certa originariedade, tal concepção kelseniana escureceria a realidade estatal, o que: “Chega à hipertrofia, já descomunal, do elemento formal – o poder, posto que dissimulado este na santidade inviolável de normas concebidas como direito puro.” In: BONAVIDES, loc. cit. 348 Consoante Kelsen “De uma auto-obrigação do Estado apenas se poderia falar no sentido de que os deveres e direitos que são atribuídos à pessoa do Estado são estatuídos por aquela mesma ordem jurídica cuja personificação é a pessoa do Estado”, e não em momento posterior. Cf.: KELSEN, op. cit. p. 346

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justifique àquele,349 tentando legitimar o Estado com a expressão “Estado de

direito”.350

2.1.1.2 Da concepção de direito interno

As noções kelsenianas sobre o “direito” e o “Estado” condicionam sua

compreensão de “direito interno”. O direito seria identificado como uma ordem

coativa [soberana] da conduta humana, que por meio de normas jurídicas liga aos

fatos [pressupostos] atos de coerção determinados pelo próprio direito, como

conseqüência.351 Já o Estado seria identificado como uma ordem jurídica. O direito

interno resta então identificado por Kelsen como as “normas estatais”. Isso significa

que o que leva à identificação de normas como sendo estatais, seria o modo de

produção de tais normas, cujo fundamento último de validade é a Grundnorm.

Norberto Bobbio ressalta que a concepção juspositivista da unidade do direito

reconduz a questão das fontes jurídicas, considerando que estas “[...] são

hierarquicamente subordinadas e existe uma única fonte de qualificação, vale dizer,

uma única autoridade que atribui direta ou indiretamente caráter jurídico a todo o

conjunto de normas.”352 Portanto, a partir desta norma fundamental a ordem jurídica

349 A identificação do Estado com o direito é apontada por Kelsen como um pressuposto de uma genuína ciência jurídica. Ressaltando ainda o autor que “Quando, porém, penetramos a identidade de Estado e Direito, quando compreendemos que o Direito, o Direito positivo, que não deve ser identificado com a Justiça, é precisamente aquela ordem de coerção que o Estado se apresenta como sendo um conhecimento que não se deixe prender a imagem antropomórficas mas penetre, através do véu da personificação, até as normas postas por atos humanos, então é absolutamente impossível justificar o Estado através do Direito.” Bem como “[...] é igualmente impossível justificar o Direito pelo Direito, quando esta palavra não seja empregada, primeiro, no sentido de Direito positivo, e, depois, no sentido de Direito justo, de Justiça.” In: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 352 350 Ao referir-se a tal expressão, qual seja, “Estado de direito”, Kelsen adverte que “Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo.” Contudo a mesma não é totalmente refutada pelo referido autor, pois a expressão “Estado de direito”, segundo Kelsen, “[...] é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica”. Logo, nesse sentido particular esta expressão corresponde a “[...] ordem jurídica relativamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis [...]”. Cf.: Idem. Ibidem., p.346 351 Idem. Ibidem., p. 356. Vale por ora lembrar que, segundo Kelsen, o “dever-ser jurídico”, ou seja, o que liga na proposição jurídica [norma jurídica] o pressuposto e a conseqüência, abrange três significações as quais coincidem com as três funções normativas, “[...] a de um ser-prescrito, a de um ser-competente (ser autorizado) e a de um ser-(positivamente)-permitido das conseqüências.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 87 352 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. p. 200

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interna seria construída de modo escalonado, com diferentes níveis de normas

jurídicas.353 De acordo com Rigaux, o direito estatal, interno, correspondia para

Kelsen como um ponto central de seu pensamento ao abordar questões da distinção

entre normas jurídicas e demais normas, como as morais. “O conhecimento de

Kelsen como jurista constitucional obviamente influenciou seu pensamento nesta

questão. Direito estatal forneceu o melhor exemplo de uma unidade lógica

abarcando todo aspecto da vida humana e apto para transformar toda situação em

uma relação jurídica (Rechtsverhaltnis).”354

Nesse momento dinâmico do direito estatal, quando a produção das

normas jurídicas é regulada pelo próprio direito,355 Kelsen aponta para a

Constituição como sendo essa Grundnorm estatal.356 É a Constituição do Estado a

norma superior que determina a produção de todas as demais normas estatais

inferiores. Por conseguinte, a Constituição seria o fundamento último de validade

que constitui a unidade da ordem estatal, ou melhor, constitui uma “unidade formal”,

conforme comenta Bobbio.357 A regulamentação da produção das normas jurídicas

gerais pela Constituição, diria respeito à determinação “[...] do órgão ou dos órgãos

que são dotados de competência para a produção de normas jurídicas gerais – leis e

decretos”,358 bem como, quanto à competência dos tribunais para aplicação do

353 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 247 354 RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. p. 06. Livre tradução do original: Kelsen’s scholarship as a constitucional lawyer obviously influenced his thought in this regard. State law offered the best example of a logical unit encompassing all aspects of human life and apt to transform every situation into a legal relationship (Rechtsverhaltnis). 355 KELSEN, op. cit., p. 80 356 Nesse passo, Kelsen adverte que a Constituição como “norma fundamental”, deve ser considerada em sentido material, e não formal, sendo que a Constituição material refere-se “[...] a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais. Esta Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou através [...] de um ato legislativo. [...] A Constituição material pode consistir, em parte, de normas escritas, noutra parte de normas não escritas [...].” Já quanto à Constituição em sentido formal, Kelsen menciona “[...] um documento designado como “Constituição” que - como Constituição escrita – não só contém normas que regulam a produção de normas gerais, isto é, a legislação, mas também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, além disso, preceitos por força dos quais as normas contidas neste documento, a lei constitucional, não podem ser revogadas ou alteradas pelas mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos”. Ainda quanto a este último sentido, Kelsen adverte que “Estas determinações representam a forma da Constituição que, como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento de Direito positivo de qualquer ordem jurídica estadual.” No entanto, vale novamente ressaltar que Kelsen ao apontar para a Constituição como a Grundnorm estatal, é segundo o sentido material daquela. Cf.: Idem. Ibidem., p. 247-248 357 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. p. 199 358 KELSEN, op. cit., p. 248

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direito costumeiro.359 Ademais, segundo Kelsen, a Constituição que regula a

produção de tais normas jurídicas gerias, pode também determinar, prescrevendo ou

excluindo, o conteúdo das futuras leis.360 Bobbio, então, menciona que seria essa

relação de subordinação [momento dinâmico] que constituiria a unidade do direito

para os juspositivistas, dentre os quais destaca Kelsen, pois ao contrário dos

jusnaturalistas, o direito constituiria uma unidade

[...] não porque as suas normas possam ser deduzidas logicamente uma da outra, mas porque elas todas são postas (direta ou indiretamente, isto é, mediante delegação a autoridades subordinadas) pela mesma autoridade, podendo assim todas serem reconduzidas à mesma fonte originária constituída pelo poder legitimado para criar o direito.361

Diante dessa construção escalonada da ordem jurídica estatal, após a

norma superior, Kelsen refere-se para as normas gerais produzidas pela

legislação362 ou pelo costume.363 A Constituição, norma superior, poderia então

instituir como fato produtor do direito tanto um fato legislação [atos que põem

normas] quanto um fato consuetudinário. Para Kelsen, o sentido subjetivo de tais

fatos, como um “dever-ser”, tão-somente poderiam ser pensados, enquanto norma

jurídica objetivamente válida, se tais fatos estivessem inseridos na Constituição.

Além disso, inseridos como fatos produtores de normas jurídicas. 364 Kelsen ainda

menciona que consoante o princípio da lex posterior, o direito legislativo e o direito

consuetudinário podem ser revogados, reciprocamente, um pelo outro.365

359 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 248 360 Idem. Ibidem., p. 249 361 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. p. 199-200 362 “A produção de normas jurídicas gerais, regulada pela Constituição em sentido material, tem, dentro da ordem jurídica estadual moderna, o caráter de legislação.” Sendo que, conforme já mencionado, a regulamentação, pela Constituição, deste caráter de legislação corresponde à determinação dos órgãos ou órgão, competentes para a produção das respectivas normas jurídicas gerais. In: KELSEN, op. cit., p. 248 363 Idem. Ibidem., p. 250 364 Idem. Ibidem., p. 251. Ainda que uma Constituição origine-se por via consuetudinária, e não legislativa, “[...] e se consideram os órgão aplicadores do direito com competentes para aplicar o direito consuetudinário”, Kelsen afirma que o pressuposto para que o costume seja considerado como fato produtor do direito é a Constituição, ou seja, esta em sentido lógico-jurídico. Conforme o referido autor “Esta situação não pode ser interpretada como se o costume fosse instituído fato produtor de Direito pela Constituição jurídico-positiva, consuetudinariamente criada. Isso seria uma petitio principii. Com efeito, se a Constituição jurídico-positiva, que regula a produção de normas gerais, pode ser produzida por via consuetudinária, já se tem de pressupor que o costume é um fato produtor de Direito. [...] a norma fundamental, como Constituição em sentido lógico-jurídico, se não refere imediatamente a uma Constituição em sentido lógico-jurídico, se não refere imediatamente a uma Constituição em sentido jurídico-positivo – só mediatamente se referindo à ordem jurídica posta em conformidade com ela – mas se refere imediatamente a esta ordem jurídica consuetudinariamente criada.” Cf.: KELSEN, loc. cit. 365 Idem. Ibidem., p. 252

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Nessa perspectiva, vale ressaltar que dentre os escalões de produção

das normas jurídicas estatais, Kelsen parte da norma superior, a Constituição, para

as inferiores, legislação e costume. Desses, parte para o processo judicial e

administrativo.366 Ademais, esse escalonamento do meio de produção das normas

jurídicas gerais torna possível que uma distinção, entre as mesmas, seja feita.

Desse modo, Kelsen distingue as normas jurídicas gerais produzidas como “leis”, em

seu sentido formal,367 das normas jurídicas gerais produzidas como “decretos”.368

Aquelas seriam provenientes da atividade do Parlamento, enquanto estas seriam

provenientes do exercício de uma autoridade administrativa. O que esses escalões

de produção das normas jurídicas estatais teriam em comum, portanto, seria o seu

respectivo fundamento de validade. Logo, seria a norma superior, “Constituição”.

O direito interno, ou seja, a ordem estatal é definida por Kelsen como

um sistema unitário de normas jurídicas. Unidade essa possível justamente por este

sistema escalonado de normas jurídicas ter um único fundamento último de

validade, que se identifica com a Constituição. Enfim, a Constituição é apontada por

Kelsen como a norma superior, a Grundnorm estatal. Conseqüentemente, todos os

demais meios de produção de normas jurídicas estatais retirariam da Constituição o

seu sentido subjetivo como “dever-ser”. Somente desse modo, todos esses meios

passariam a ser pensados enquanto própria norma jurídica, objetivamente válida.369

366 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 250 367 Idem. Ibidem., p. 255. Bem como a distinção apresentada entre os sentidos de uma Constituição, formal e material, Kelsen aduz uma distinção também quanto ao sentido da lei, formal e material. A lei segundo seu sentido material corresponde a toda norma jurídica geral. Em contraposição a este, a lei em sentido formal corresponde toda e qualquer norma jurídica geral produzida em forma de lei, ou seja, por meio da atividade do Parlamento e publicada por determinada maneira, a determinação assim se dá pela sua forma de produção, e não quanto ao conteúdo da norma geral produzida. In: KELSEN, loc. cit. 368 KELSEN, loc. cit. Sendo as “leis”, aquelas normas jurídicas formais produzidas por meio do Parlamento eleito pelo povo, os “decretos” identificam-se com aquelas normas gerais que provêm não do Parlamento. Mas sim, aquelas normas gerias que provêm de uma autoridade administrativa. Cf.: KELSEN, loc. cit. 369 Cabe ainda mencionar que outra conseqüência dessa construção escalonada das normas jurídicas internas, cuja norma superior é a Constituição, refere-se à questão da modificação de tais normas. Nos dizeres de Kelsen “[...] a simples lei não tenha a força para derrogar a lei constitucional que determina a sua produção e o seu conteúdo, de que esta lei somente possa ser modificada ou revogada sob condições mais rigorosas, como sejam uma maioria qualificada ou um quorum mais amplo. Quer isto dizer que a Constituição prescreve para a sua modificação ou supressão um processo mais exigente, diferente do processo legislativo usual; que, além da forma legislativa, existe uma específica forma constitucional.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 249

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2.1.1.3 Da concepção de direito internacional

Conforme mencionado, o direito é concebido por Kelsen como uma

ordem coativa [soberana] da conduta humana. Por isso, o direito liga aos fatos, pelo

mesmo definidos como pressupostos, a atos de coerção determinados, igualmente

pelo direito, como conseqüentes. Deste enfoque, Kelsen volta-se para o plano

internacional, mais precisamente, para a questão quanto à presença ou não de tal

ordem coativa no plano internacional.370 Segundo Koskenniemi, “Dentre os

problemas para os quais a teoria pura estava habilitada a oferecer uma solução

logicamente coerente eram aqueles da natureza do Estado e das relações entre

soberania e direito internacional.”371 A partir, então, de tal definição do direito, Kelsen

busca identificar se há ou não um direito internacional.372 “A questão decisiva é,

portanto: o Direito internacional estatui atos coercitivos como sanções?”373 Nesta

perspectiva, vale anteriormente tecer algumas considerações quanto à concepção

kelseniana de direito internacional.

Ao buscar definir o ordenamento jurídico internacional, Kelsen adverte

que somente o processo de elaboração das normas jurídicas internacionais pode

definir o direito internacional. 374 Nem mesmo o objeto que as normas jurídicas

internacionais regulam seria capaz de definir o direito, somente a forma que tais

normas são produzidas possibilitaria esta definição. Conforme lembra Rigaux, “Um

dos básicos argumentos de Kelsen é o de que não existe nenhuma diferença na

370 Acerca da contribuição dos ensinamentos kelseniano para a construção do conhecimento jurídico internacional, segundo Charles Leben, “Kelsen, however, devoted a great deal of space to reflections on international law and to ways of incorporating this specific topic into general theory of law. Of the 387 titles listed by the Hans Kelsen Institute of Vienna, 106 deal with international law, ahead of legal theory (96 titles) and constitucional law (92 titles).” Ver, a respeito: LEBEN, Charles. Hans Kelsen and the advancement of international law. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 09, n. 2, 1998. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 15 set. 2007. p. 01. Nesse sentido, além das questões encontradas na obra “Teoria pura do direito” [1934], Rigaux destaca, dentre outros, os seguintes trabalhos de Kelsen, Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts [1920]; Law and Peace in International Relations [1942]; The Oliver Wendell Holmes Lectures [1942]; Peace through Law [1944]; Principles of International Law [1952]. Vide: RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. p. 01 371 KOSKENNIEMI, Martti. International law as philosophy: Germany 1871-1933. In: The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960. p. 241. Livre tradução do original: Among the problems to wich the pure theory was able to offer a logically coherent solution were those of the nature of the State and the relationship between sovereignty and international law. 372 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 355 373 Idem. Ibidem., p. 356 374 Idem. Ibidem., p. 373

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natureza de assuntos do direito estatal e do direito internacional.”375 Quer isso dizer

que, somente o modo de produção das normas jurídicas internacionais, poderia

definir ou determinar o direito internacional. Nesse contexto, dentre tais meios de

produção das normas jurídicas internacionais, Kelsen destaca: o costume dos

Estados; os tratados firmados entre os Estados; e as organizações internacionais,

constituídas por meios de tratados firmados entre Estados. 376

Por conseguinte, essa produção de normas jurídicas internacionais

poderia envolver todos, ou apenas alguns Estados, o que conseqüentemente

permitiria identificar escalões entre normas jurídicas internacionais, ou seja, uma

distinção de grau, superior ou inferior, entre as mesmas.377 Desse modo, são três os

escalões de normas jurídicas internacionais abordados por Kelsen: no primeiro

[superior] estão as normas do direito internacional geral;378 no segundo

[intermediário] encontram-se as normas do direito internacional pactício;379 e, por

fim, no terceiro [inferior], estão as normas jurídicas criadas pelos tribunais

internacionais ou demais organizações internacionais, constituídas por meio de

tratados. Kelsen ainda ressalta que tais grupos de normas, correspondentes a cada

escalão, se relacionam de modo subordinado, e não coordenados.380

Quanto ao objeto do direito internacional, volta-se para a questão de

identificar quais condutas seriam as reguladas pelas normas jurídicas internacionais.

375 RIGAUX, op. cit., p. 05. Livre tradução do original: One of Kelsen’s basic contentions is that there exists no difference in the nature of the subject-matter of state law and international law. Nesse sentido, Rigaux ainda comenta que esta afirmação kelseniana “[…] reinforced the rarefied atmosphere of tradicional international law. It led as dismantling of separation of both branches of law according to their respective fields: state jurisdiction concerns relationships between the state and its subjects (public law) and dealings betweem citizens themselves (private law), while international law only contemplates relations among states. Kelsen’s teory brought into focus an idea largely accepted nowadays and which the contemporary evolution of international law has overwhelmingly confirmed: international law is not confined to relations among states, it can encompass all human activities.” A propósito: Idem. Ibidem., p. 05 376 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 373. Para os adeptos ao normativismo, como Kelsen, o costume internacional não decorreria da vontade dos Estados. De acordo com Casanovas, para os normativistas o costume internacional [assim como as demais normas jurídicas internacionais] resultaria de um mecanismo específico do direito internacional. Os elementos, então, são destacados por Casanovas a prática pelos Estados [elemento material] e a obediência a esta [elemento espiritual]. Vide: CASANOVAS, Oriol. Unity and pluralism in public international law. p. 29 377 KELSEN, op. cit., p. 359 378 As normas de direito internacional geral, segundo Kelsen, são aquelas que impões deveres e atribui direitos a todos os Estados. “O Direito internacional consta de normas que originariamente foram criadas através de atos de Estados – quer dizer, dos órgãos para o efeito competentes segundo as ordens jurídicas dos Estados singulares – para regulamentação de ralações interestaduais, atos esses que operam tal efeito pela via do costume.” In: KELSEN, loc. cit. 379 O direito internacional pactício corresponde aquelas normas que “[...] não vigoram em relação a todos os Estados, mas apenas em relação a dois ou a um grupo maior ou menor de Estados. Constituem simplesmente comunidades parcelares.” In: KELSEN, loc. cit. 380 KELSEN, loc. cit.

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Isso significa identificar o objeto regulado por estas normas, diante da concepção

kelseniana de direito como uma ordem coativa da conduta humana, manifestada por

meio das normas jurídicas. Nesse sentido, Kelsen menciona que as normas jurídicas

internacionais regula “[...] não só a conduta dos Estados, ou seja, não só regula

mediatamente a conduta dos indivíduos, como também regula imediatamente a

conduta desses mesmos indivíduos”. 381

O ordenamento jurídico internacional destarte, impõe deveres e confere

direitos aos Estados. Logo, são impostas aos Estados obrigações de adotarem uma

determinada conduta, na medida em que liga à conduta oposta a esta, sanções.382

Quanto à questão inicialmente levantada, se o Direito internacional estatui atos

coercitivos como sanções [?], Kelsen responde positivamente. Logo, haveria sim um

direito internacional. Com tal constatação, Kelsen refutaria os demais

posicionamentos céticos quanto à existência desta ordem jurídica. Conforme

ressalta Charles Leben,

Esta é a conclusão [inexistência do direito internacional] que Kelsen enfaticamente recusa, mesmo que feita por positivistas estritos (como Austin) ou por realistas que entendem não poder haver um direito internacional até este momento uma vez que o poder de coerção dos estados está concentrado nas mãos de uma única autoridade (Raymond Aron).383

Além disso, comenta ainda Leben que, “Contra tais argumentos Kelsen

afirma que o direito é definido pela sanção, que a sanção consiste na coerção física

e que o direito internacional possui de fato disponível este tipo de sanção.”384 Nessa

381 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 373. “A imediata imposição de deveres aos indivíduos pelo Direito internacional não se opera de fato por maneira a que uma determinada conduta destes indivíduos seja ligada a sanções específicas do Direito internacional: represálias e guerra. Os deveres que o Direito internacional põe diretamente a cargo dos indivíduos são constituídos através de sanções específicas do Direito estadual: penas e execuções. A estatuição e execução destas sanções pode ser deixada pelo Direito internacional a uma ordem jurídica estadual, com no caso do delito internacional da pirataria.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 363 382 Idem. Ibidem., p. 360. Nos dizeres de Kelsen “O Direito internacional impõe deveres e confere direitos aos Estados. Impõe aos Estados a obrigação de adotarem um determinada conduta, na medida em que liga à conduta oposta as sanções [...] – represálias e guerra – e, assim, proíbe esta conduta, considerando-a delito, e prescreve a sua contrária.” In: KELSEN, loc. cit. 383 LEBEN, Charles. Hans Kelsen and the advancement of international law. In: European journal of international law. p 02. Livre tradução do original: It is this conclusion that Kelsen forcefully dismissed, whether it be reached by strict positivists (like Austin) or by realists who hold that there can be no international law until such time as the power to coerce states is concentrated in the hands of a single authority (Raymond Aron). 384 LEBEN, loc. cit. Livre tradução do original: Against these arguments Kelsen asserts that law is defined by sanction, that sanction consists in physical coercion and that international law does indeed have this type of sanction available to it.

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perspectiva, Kelsen destaca duas peculiares sanções,385 específicas da matéria

internacional: a represália e a guerra.386 Desse modo, os Estados poderiam sim

serem sancionados, por meio de represálias e guerras, caso adotem um conduta

proibida, prescrita no direito internacional.387 Logo, segundo a concepção kelseniana

385 Atribui-se às sanções do direito internacional esse qualificativo de “peculiar” justamente pelas mesmas, segundo Kelsen, não serem “[...] na verdade, qualificadas quer como penas, quer como execução civil [...]”. No entanto, o referido autor adverte que tal como estas, as sanções do direito internacional representam “[...] uma privação compulsória de bens ou, o que significa o mesmo, uma lesão, estatuída pela ordem jurídica, de interesse de um Estado (que alias em outras circunstâncias, são protegidos) por parte de um outro Estado.” Depende, portanto, do que se concebe por “sanção”, para que se possa afirmar a presença destas, ou não, no direito internacional. Conforme enfim menciona Kelsen “Se se admite que, segundo o Direito internacional vigente, um Estado apenas pode recorrer às represálias ou à guerra contra um outro quando este se recuse a indenizar os prejuízos que lhe foram ilicitamente causados, e que estes atos de coerção apenas podem ser efetivados com o fim de obter a indenização, então existe um certo parentesco entre as sanções do Direito internacional geral e a execução forçada do Direito civil.” Cf.: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 123-124. Vale lembrar por ora que as duas espécies de sanções do direito, abordadas por Kelsen, correspondem à pena [sentido estrito] e à execução civil. In: Idem. Ibidem., p. 121. Se a constatação da existência ou não do direito internacional hodierno partir dessa leitura condicionada a existência ou não de sanções internacionais, talvez não seja mais possível hesitar que há sim um direito internacional. Para tanto, basta, em um primeiro momento, verificar a atuação de determinadas organizações internacionais, principalmente, de seus sistemas de solução de controvérsias. Dentre tais sistemas, um dos quais cabe destacar por sua “eficácia e efetividade” corresponde ao da Organização Mundial do Comércio [OMC] aprovado na Rodada do Uruguai [concluída em 1994] e estabelecido no Entendimento sobre Solução de Controvérsia. A respeito desta “eficácia e efetividade” do Sistema de Solução de Controvérsias [SSC] da OMC, consultar: FONTOURA, JORGE. Embraer versus Bombardier, a anatomia de um caso. In: DEL’OLMO, Florisbal de Souza. [Coord.]. Curso de direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao prof. Dr. Luís Ivani de Amorim Araújo pelo seu 80º aniversário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 392-403. Quanto à construção de um ordenamento econômico multilateral e as sanções disponíveis no SSC da OMC, ver também: DAL RI JÚNIOR, Arno. O direito internacional econômico em expansão: desafios e dilemas no curso da história. In: ______; OLIVEIRA, Odete Maria [Orgs.]. Direito internacional econômico em expansão: desafios e dilemas. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 27-168; VIRZO, Roberto. A sucessão entre organizações internacionais e a transformação do GATT em OMC. In: Idem. Ibidem. p.171-193 e, MAVROIDIS, Petros C. Remédios no sistema jurídico da OMC: entre um rochedo e um lugar difícil. In: Idem. Ibidem. p. 229-321 386 Por represália Kelsen entende como “[...] uma agressão à esfera de interesses de um Estado - noutras circunstâncias proibida pelo Direito Internacional – agressão essa que se realiza sem a vontade, ou melhor, mesmo contra a vontade desse Estado e, neste sentido, é um ato coercitivo, ainda que seja levada a cabo – por falta de resistência do Estado atingido – sem o emprego de coação física, isto é, sem o emprego da força das armas.” No entanto, pode haver o emprego de força na represália. A agressão aos interesses de um Estado, protegidos pelo direito internacional, corresponde desse modo à causa legitimante da sanção represália. Do contrário, não observando tal violação, a própria represália pode ser considerada como um delido do direito internacional. In: KELSEN, op. cit., 356 -357. Por guerra, entende-se “[...] a ação, realizada por meio da força armada, que um Estado dirige contra outro, sem se atender ao fato de haver ou não reação contra aquele por meio de uma ação da mesma espécie, isto é, por meio se uma contra-guerra.” Bem como a represália, o recurso à guerra, sem que para tanto tenha ocorrido um violação do direito internacional, ou seja, contra a ofensa dos interesses de um Estado, corresponde a um delito internacional. Cf.: KELSEN, loc. cit. Quanto à distinção entre tais sanções, Kelsen menciona que “A diferença entre uma represália realizada com a força das armas e uma guerra é meramente quantitativa. A represália é uma agressão limitada à ofensa de determinados interesses, a guerra ;é uma agressão ilimitada à esfera de interesses de um outro Estado.” In: Idem. Ibidem., p. 356 387 Quanto à questão de responsabilidade estatal Kelsen menciona a “responsabilidade coletiva dos membros do Estado”, pelo cometimento de conduta prescrita pelas normas jurídicas internacionais. E continua ainda o autor “Esta responsabilidade coletiva é responsabilidade pelo resultado, pois o fato

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de direito, há sim uma ordem jurídica internacional, ainda que descentralizada.

Nesse sentido, como bem menciona Leben, é justamente a questão da

descentralização da ordem jurídica internacional que permite Kelsen “[...] imaginar

as relações entre estados como sendo assunto de propriedade do direito e acima de

todo o direto responsável para o progresso”. A questão de não haver qualquer poder

acima dos Estados, não impede o reconhecimento kelseniano de uma ordem jurídica

internacional, uma vez que “[...] direito implica submissão às regras e não a pessoa

do soberano [...]. Isso significa que mesmo que uma ordem jurídica descentralizada

pode ser expresso como uma verdadeira ordem.” Leben ainda destaca que segundo

a concepção de Kelsen a diferença entre uma ordem jurídica centralizada e uma,

descentralizada ocorre no “grau” e não na “espécie”, ou seja, a ordem internacional

é mais descentralizada, enquanto a ordem interna é mais centralizada, mas não

totalmente.388

No entanto, Kelsen adverte que tais sanções [represália e guerra] ainda

que atribuídas aos Estados, são dirigidas de modo “imediato” aos indivíduos.389 Para

os indivíduos que efetivamente sofrem o mal, as conseqüências, das sanções

pertencentes ao Estado. Pois tais indivíduos “[...] estão submetidos à ordem jurídica

cuja personificação é o Estado como sujeito de Direito internacional e, enquanto tal,

sujeito do delito de Direito internacional que constitui o pressuposto da sanção”.390

Além disso, a conduta dos indivíduos estaria mediata e imediatamente

regula por estas normas. De modo mediato, uma vez que os deveres impostos e os

direitos conferidos pelo direito internacional referem-se aos Estados. Aos indivíduos

ocorreria apenas mediatamente “[...] por intermédio da ordem jurídica estadual (de

ilícito nem sequer é posto pelos indivíduos contra os quais se dirige o ato coercivo da sanção, e, por conseguinte, também a lesão de interesses causada pelo fato ilícito não provocada intencional ou negligentemente por estes indivíduos.” Cf.: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 362 388 LEBEN, Charles. Hans Kelsen and the advancement of international law. In: European journal of international law. p. 02. Livre tradução do original: [...] to imagine relations between states as being subjected to law propoer and above all to law amenable to progress[...]. […] law involves submission to rules not to the person of the sovereign […]. This means that even a decentralized legal order can be conceived of as a true legal order. Nesse contexto, Leben entende que o Estado se apresenta como modelo para uma centralização da ordem jurídica internacional. No entanto, Leben adverte que isso apenas significa que a ordem jurídica internacional se encaminha para uma centralização, mas não para a constituição de um Estado mundial, como alguns leitores de Kelsen equivocadamente mencionam. Cf.: Idem. Ibidem., p. 05 389“Estas sanções consistem, tal como as sanções do Direito estadual, na privação compulsória da vida, da liberdade e dos outros bens, particularmente de bens econômicos dos indivíduos.” Cf.: KELSEN, op. cit., p. 358 390 KELSEN, loc. cit.

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que apenas o “Estado” é a expressão personificadora).”391 Contudo, Kelsen também

aponta para algumas normas de direito internacional as quais podem impor

diretamente deveres aos indivíduos em singular. Normas que identificariam assim

não somente a conduta, mas também qual o indivíduo, o destinatário, que deve

adotar tal conduta.392

2.1.1.4 Da relação entre direito internacional e direito interno

O direito corresponde para Kelsen a um sistema de normas jurídicas

unitário. Conseqüentemente, o autor identifica em tal unidade o conjunto de normas

decorrentes de ambas as ordens jurídicas. Tanto as normas da ordem jurídica

internacional quanto as da ordem estatal formam este sistema unitário. Enquanto

unidade, é afastada qualquer separação ou distinção da esfera de aplicação das

normas jurídicas internacionais e estatais. Estas não se encontrariam em sistemas

jurídicos isolados.393

Nesse sentido, Kelsen refuta qualquer concepção dualista do direito, ou

seja, qualquer concepção que aponte para dois sistemas jurídicos isolados, um

internacional e outro interno baseado na alegação da existência de conflitos

insolúveis entre as normas jurídicas decorrentes de tais sistemas. Uma vez que tal

concepção, segundo Kelsen, desconsideraria a ordem jurídica internacional como

direito. Pois, havendo um conflito insolúvel entre essas normas jurídicas,

conseqüentemente, não seria possível a validade simultânea das mesmas. Nos

dizeres de Kelsen,

Se houvesse conflitos insolúveis entre Direito internacional e Direito estadual e se, por isso, fosse inevitável uma construção dualista, desde que considerássemos o Direito estadual como um sistema de normas válidas, não só não poderíamos conceber o Direito internacional como Direito, como também o não poderíamos sequer conceber como uma ordem normativa vinculante que se encontra em vigor ao mesmo tempo que o Direito estadual. Apenas poderíamos interpretar as relações submetidas à nossa

391 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 361 392 Idem. Ibidem., p. 363. Tal imposição imediata de deveres aos indivíduos, não estão ligados, conforme Kelsen, a sanções como represálias e guerra. “Os deveres que o direito internacional põe diretamente a cargo dos indivíduos são constituídos através de sanções específicas do Direito estadual: penas e execuções.” In: KELSEN, loc. cit. 393 Idem. Ibidem., p. 364

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apreciação, ou do ponto de vista da ordem jurídica estadual, ou do ponto de vista da ordem jurídica internacional.394

Ademais, Kelsen também discorda da noção dualista de que o direito

internacional seria uma vontade comum separada da vontade individual de cada

Estado.395 Pois esta mesma noção acaba, segundo Kelsen, por colocar o direito

internacional em uma posição superior aos Estados, o que seria contraditório à

alegada separação entre os ordenamentos jurídicos.396 Já ao que concerne às

teorias pluralistas, Kelsen também as critica no sentido de que “Um teórico que

insistisse na visão pluralista teria de proclamar uma ordem jurídica nacional – a do

seu próprio Estado, por exemplo – como a única ordem jurídica válida.”397 O que

seria, para o jurista austríaco, “[...] uma visão tipicamente primitiva, comparável à

visão de que apenas os membros do seu próprio grupo são verdadeiros seres

humanos.”398

De acordo com os enunciados da teoria kelseniana, a unidade do

sistema jurídica ocorre pelo seu fundamento, ou seja, pela Grundnorm. Uma única

norma da qual decorreria a validade jurídica de todas as demais normas jurídicas,

internacionais ou estatais. Por conseguinte, esse sistema unitário possibilita tanto a

identificação da Grundnorm da ordem jurídica internacional e estatal quanto uma

relação de subordinação entre as normas jurídicas de tais ordens. Uma ordem resta,

portanto, superior à outra. Logo, “a norma fundamental do ordenamento superior é,

neste caso, também o fundamento de validade do ordenamento inferior”,399 o que

394 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 365-366 395 Nesse sentido, Kelsen refere-se às noções do dualista Karl Heinrich Triepel, as quais serão abordadas na secção 2.2, do presente trabalho. 396 Idem. L’ordinamento giuridico statale e il diritto internazionale: la costruzione dualística. In: Il problema della sovranità e la teoria del diritto internazionale: contributo per uma dottrina pura del diritto. p. 206-207 397 KELSEN, Hans. Direito nacional e internacional. In: Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. cap. 06. p. 540 398 KELSEN, loc. cit. 399 Idem. Teoria pura do direito. p. 369. Kelsen menciona duas questões resultantes de tal relação subordinação entre duas ordens jurídicas: a determinação do domínio de validade e a determinação do processo de produção. Segundo o autor “A determinação do domínio de validade é [...] a determinação de uma elemento de conteúdo do ordenamento inferior pelo superior.” Prosseguindo Kelsen quanto ao processo de produção, a determinação deste “[...] pode fazer-se direta ou indiretamente, conforme a norma superior determine o próprio processo no qual a inferior é produzida, ou se limite a instituir uma instância que, desta forma, á autorizada a produzir, como bem entenda, normas com validade para um determinado domínio.” Uma ordem encontra-se contida na outra, a inferior na superior. De modo que, “A norma fundamental do ordenamento superior - como escalão máximo do ordenamento global – representa o último fundamento de validade de todas as normas – mesmo das dos ordenamentos inferiores.” In: KELSEN, loc. cit.

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expressa, destarte, a construção monista da relação entre o direito internacional e o

direito interno.

Identificar então qual ordem jurídica corresponde a superior, e qual

corresponde ao inferior depende da escolha de uma dessas duas ordens, na qual se

encontra a norma fundamental. Nesse passo, o jurista austríaco aborda a

construção monista de primazia do direito interno. Isso significa que a Grundnorm do

sistema jurídico unitário estaria na própria ordem estatal. Esta seria, assim,

considerada como superior face à inferior ordem jurídica internacional.400 Tal

entendimento revelaria a soberania do Estado, ou seja, uma ordem jurídica interna

soberana. Kelsen, pressupõe esta como suprema, como independente.401 Por

conseguinte, a ordem jurídica internacional seria identificada como uma ordem

jurídica delegada pela ordem estatal, como uma parte integrante a esta.402 Segundo

Kelsen, o fundamento último de validade da ordem jurídica internacional,403 portanto,

corresponde a uma norma fundamental pressuposta da ordem jurídico interna,

estatal.404

Dessa construção monista com primazia do ordenamento jurídico

interno Kelsen ressalta duas funções desempenhadas pelo princípio da efetividade,

decorrente da ordem jurídica internacional. As funções são: tanto como determinante

do fundamento de validade; quanto determinante do domínio de validade das ordens

400 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 372. Reitera-se que, no presente trabalho, se adotou a construção jurídica monista de Kelsen com a primazia do direito interno, se limitando a mesma. Não será discorrido, portanto, demais posicionamentos de Kelsen, bem como o seu reconhecimento da possível primazia do direito internacional. 401 “Esta soberania do Estado é o fator decisivo para a admissão do primado da ordem jurídica estadual. Esta soberania não é qualquer qualidade perceptível – ou objetivamente cognoscível por qualquer outra forma -, um objeto real, mas é uma pressuposição: a pressuposição de uma ordem normativa com ordem suprema cuja validade não é dedutível de qualquer ordem superior. A questão de saber se o Estado é soberano não pode ser respondida através de uma análise da realidade natural. Soberania não é o máximo de poder real”. Ainda acerca desta questão de soberania, Kelsen adverte, “Dizer que o Estado é soberano não significa outra coisa senão que a fixação da primeira Constituição histórica se pressupõe como fato gerador de Direito sem que a esse propósito se faça referência a uma norma do Direito internacional que institua este fato como produtor de Direito.” In: KELSEN, loc. cit. 402 KELSEN, loc. cit. 403 Desse modo, a validade tanto do objeto que as normas do ordenamento jurídico internacional regulam quanto pela forma que suas norma são produzidas dependem, respectivamente, da norma fundamental pressuposta da ordem jurídica estatal. Cf.: Idem. Ibidem., p. 373 404 KELSEN, loc. cit. A respeito dessa questão do primado do direito interno, Kelsen então destaca que esta “[...] que tem seu ponto de partida na validade de uma ordem jurídica estadual, o fundamento de validade do Direito internacional é a norma fundamental pressuposta por força da qual a fixação da primeira Constituição histórica do Estado, cujo ordenamento forma o ponto de partida da construção, é um fato gerador de Direito.” In: Idem. Ibidem., p. 378

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estatais.405 Funções essas que contribuem para a demarcação entre a ordem

jurídica estatal ampla e a, estrita.406

A primeira função desempenhada pelo princípio da efetividade da

ordem jurídica internacional corresponde à determinação do fundamento de validade

de toda ordem estatal, seja no sentido amplo, seja no sentido estrito. Enquanto parte

integrante da ordem jurídica interna, o direito internacional encontra-se nesta, em

seu sentido amplo.407 As normas jurídicas do direito internacional compõem o direito

estatal no seu sentido amplo. O que poderia ser compreendido como uma

internacionalização de normas que regulam o comportamento humano, expressando

um monismo de primazia do direito interno. Como bem ressalta Rigaux, “Um

argumento segundo o qual Kelsen conta em sua contemplação da possibilidade

lógica do monismo de primazia estatal era o de que nenhuma matéria pode ser

posta fora dos limites de qualquer sistema jurídico.”408 Desse modo, qualquer

situação humana poderia ser internacionalizada, ou seja, apreendida pelo direito

internacional.409 E uma vez reconhecido estas normas jurídicas internacionais, o

Estado encontra-se submetido ao direito internacional, até mesmo sua respectiva

ordem jurídica em sentido estrito. O Estado deve observar as normas jurídicas

internacionais.410 Contudo, estas normas jurídicas internacionais não correspondem

ao fundamento último de validade da ordem estatal em sentido estrito. Tal norma

fundamental permanece sendo aquela pressuposta da ordem jurídica interna, na sua

unidade, independentemente de qualquer distinção entre ordem jurídica em sentido

405 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 378 406 Ao abordar o monismo de primazia da ordem jurídica interna, Kelsen menciona a relevância de se distinguir duas ordens estatais, a de sentido amplo e a de sentido estrito. Aquela compreende a ordem jurídica internacional reconhecida pelo Estado, ou seja, as normas jurídicas decorrentes do costume e dos tratados, entre Estados. Já as normas jurídicas da ordem estatal em sentido estrito correspondem às decorrentes da Constituição do Estado, bem como as postas por atos legislativos, jurisdicionais e administrativos. Cf.: Idem. Ibidem., p. 379 407 KELSEN, loc. cit. 408 RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. p.10. Livre tradução do original: One argument wich Kelsen relied on in his contemplation of the logical possibility of state-monism was that no subject-matter can be put out of bounds of any legal system. 409 RIGAUX, loc. cit. 410 KELSEN, op. cit., p. 379. A questão de o Estado observar as normas da ordem jurídica internacional, não significa, no entanto, que estas são soberanas. Há, segundo Kelsen, o primado do direito interno sobre o internacional, o que não exime o cumprimento destas pelo Estado, conforme lembra Rigaux, “More than any other legal scholar of his time Kelsen advanced the ideological and metajuridical nature of the concept os sovereignty. The so-called sovereignty of a state, i. e of legal order, is base on the fact that its basic norm does not derive from another legal order, is bound to respect international law it cannot be deemed sovereign; it is only a partial order (Teilordnung), no more and no less than a federated state.”Vide: RIGAUX, op. cit., p. 10

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amplo ou estrito. Pelo princípio da efetividade, portanto, resta determinado que

mesmo que a ordem jurídica em sentido estrito esteja submetida à ordem jurídica em

sentido amplo, onde se encontram as normas jurídicas internacionais reconhecidas,

o fundamento último de validade, ou seja, a norma fundamental permanece na

ordem estatal em seu sentido estrito.411

A segunda função desempenhada pelo princípio da efetividade do

direito internacional, corresponderia à delimitação do domínio de validade das

ordens jurídicas, ampla e estrita, internas.412 Pois, como parte integrante de uma das

ordens estatais [da ampla] o direito internacional limita a outra parte integrante da

ordem estatal, qual seja, a ordem jurídica em sentido estrito.413 O que possibilita

assim a distinção entre estas duas ordens estatais, ocorrendo a supremacia da

ordem estatal em sentido amplo. No entanto, Kelsen ressalta novamente que o

princípio da efetividade do direito internacional não corresponde ao último

fundamento de validade desta limitação. Mas sim, o último fundamento de validade

corresponde à “[...] a norma fundamental pressuposta desta ordem jurídica estadual

que tem o Direito internacional como sua parte integrante”.414

Conceber a relação entre o direito internacional e o direito interno como

um monismo de primazia estatal viria ao encontro da assertiva quanto à unidade do

sistema jurídico enunciada pela “Teoria Pura do Direito”. Unidade tal que possíveis

conflitos entre normas jurídicas, da ordem interna e da ordem internacional, não a

comprometem.415 Por meio desta via, o monismo de primazia estatal alcança a

unidade gnoseológica do direito.416 Uma vez que uma única Grundnorm condiciona

411 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. p. 379 412 KELSEN, loc. cit. 413 Idem. Ibidem., p. 380. Tal limitação da ordem estatal em sentido estrito, leva Kelsen a denominar esta como uma “ordem jurídico-internacionalmente imediata”. Segundo os dizeres do referido autor “Como, no entanto, dentro desta ordem jurídico estadual em sentido amplo, uma parte integrante, a saber, a ordem jurídica estadual em sentido estrito, está subordinada à outra parte integrante, a saber, a ordem jurídica internacional, a ordem jurídica estadual em sentido estrito não é uma ordem soberana mas – tal como as outras ordens jurídicas estaduais e compreende a todas.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 380 414 KELSEN, loc. cit. 415 A questão do conflito de normas jurídicas entre ambas as ordens jurídicas se resolve, segundo os enunciados do monismo com primazia interna, com a aplicação da normas superior, interna, sobre a inferior, internacional. A ocorrência de tal conflito não compromete desse modo o caráter unitário gnoseológico do ordenamento jurídico, como bem ressalta Kelsen “[...] entre lei e a decisão jurisdicional, entre a Constituição e a lei, a Constituição e o decreto, ou, numa fórmula inteiramente geral, entre uma norma superior e uma norma inferior de uma ordem jurídica, não é possível qualquer conflito que destrua a unidade deste sistema normativo, tornando impossível descrevê-lo em proposições jurídicas que não sejam contraditórias entre si.” Vide: Idem. Ibidem., p. 306 416 Idem. Ibidem., p. 383

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a validade do direito internacional e, estatal. Enfim, a norma fundamental

pressuposta da ordem estatal corresponde ao ponto de partida para identificar como

válido o ordenamento jurídico. Ponto de partida para identificar como válidas tanto a

ordem estatal estrita, quanto à ordem estatal ampla, o que vem ao encontro da

construção do monista de primazia interna.

2.1.2 Monismo de primazia internacional segundo Alfred Verdross

Ainda que ambos sejam representantes da teoria normativista,417 Hans

Kelsen e Alfred Verdross apresentam divergentes concepções. Conforme exposto, a

construção monista de primazia do direito interno proposta por Kelsen, tem por

ponto de partida [Grundnorm] a Constituição estatal. Por outro lado, a construção

monista de primazia do direito internacional desenvolvida pelo jurista austríaco

Alfred Verdross [1890-1980]418 adotou como ponto de partida [Grundnorm] o direito

natural, conforme ressalta Truyol y Serra.419 Direito natural produzido no âmbito da

417 Ao fazer a análise doutrinal do direito internacional, no século XX, Alain Pellet destaca como representantes da teoria normativista, os fundadores da escola de Viena: Hans Kelsen, Alfred Verdross e Joseph L. Kunz. Cf.: Pellet, PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 80 418 Vale mencionar que conforme Ignaz Seidl-Hohenvelden, a produção acadêmica de Verdross resultou em grande contribuição tanto para o campo da filosofia do direito, quanto para o campo do direito internacional, uma vez que, Verdross, além de considerar valiosa a sua combinação de lecionar esta duas disciplinas, reiterava que seu sucessor também deveria ser capaz para tanto. Ver, a respeito: SEIDL-HOHENVELDERN, Ignaz. Recollections of Alfred Verdross. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 06, n. 1, 1995. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 12 out. 2007. p. 04 419 TRUYOL y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. Madrid: Tecnos, 1998. p. 142. Contudo, Bruno Simma adverte que a adoção das concepções jusnaturalistas por Verdross não ocorreram desde o início de seus estudos. Pois, no início de sua carreira acadêmica, o autor era fascinado pela filosofia neo-kantiana, tão presente nos estudos de Hans Kelsen. Já na década de 20, Verdross desinteressou-se por teorias jurídicas com preocupações meramente formais e voltou-se para questões substanciais da filosofia do direito, sob influência da contemporânea Wertphilosophie, representada por Franz Brentano [1838-1917], Marx Scheler [1874-1928], Nicolau Hartmann [1882-1950], e pela escola espanhola de direito internacional, representada por Francisco de Vitória [1480-1546] e Francisco Suarez [1548-1617]. Desse modo, Verdross decidiu dedicar-se ao estudo do direito natural e a adotar tais concepções em seus estudos. Não obstante, Simma ainda menciona que o que Verdross manteve do formalismo jurídico da Escola de Viena, corresponde à “[...] the highly developed analytical framework for dealing with problems of positive law. It is precisely this combination of value-oriented philosophy and Kelsenian clarity of legal thoughts that makes the writings of Verdross so appealing.” Vide: SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 06, n. 1, 1995. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 06 out. 2007. p. 05. Nesse sentido, consultar também: QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 75

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comunidade internacional. Para abordar, então, a teoria monista de primazia

internacional se faz necessário perpassar por algumas concepções de Verdross

expostas na obra “Direito Internacional Público” [das Völkerrecht], de 1934.420

Verdross parte da percepção de que a natureza humana não

corresponde a um ser neutro. Por sua vez, esta orientaria o homem a realizar

determinados fins, sendo que em primeiro lugar está o fim de “o homem viver em

sociedade”. Logo, o homem é compreendido e destacado, por Verdross, como um

ser social, autônomo e auto-responsável.421 No entanto, uma sociedade somente

subsistiria se os seus respectivos membros estiverem obrigados entre si, de modo a

respeitarem reciprocamente suas vidas e seus bens. Isso significa, para Verdross,

que uma ordem deve ser estabelecida no seio da sociedade, a fim de evitar, desse

modo, possíveis conflitos entre seus membros; bem como, conceder direitos a

esses.422 Quer isso dizer que, uma ordem positivada restaria por estabelecida.

Entretanto, Verdross adverte que tal organização humana demonstra

que precedem ao direito positivo não somente os homens e suas relações, mas

também, valores determinados pela natureza comum. Adolfo Miaja de la Muela

ressalta que para o jurista austríaco a natureza em seu sentido amplo

compreenderia, além das ciências naturais, a cultura, sendo o direito natural uma

manifestação desta.423 Por isso, aqueles valores determinados pela natureza comum

seriam identificados com os princípios diretivos.424 Contudo, tais princípios diretivos

não poderiam ser configurados de modo arbitrário, mas deveriam atingir uma ordem

de paz: o que por sua vez expressa “[...] a idéia de direito com o direito natural.”425

420 A respeito da referida obra, tanto concepções como a de que o direito positivo corresponde a um valor relativo que varia com o desenvolvimento da civilização, mas que se fundamenta no valor absoluto de justiça, quanto a consideração do direito natural como um ponto de chegada, são posturas de Verdross expressas “[…] en su manual de Derecho internacional público, publicado dos anõs antes del estallido da la Segunda Guerra Mundial y cuyo impacto doctrinal se haría sentir, con ocasión de varias reediciones, en la segunda posguerra.” Cf.: TRUYOL y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. p. 143 421 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. Tradução de Antonio Truyol Y Serra. 6. ed. Madrid: Aguilar, 1976. p. 22 422 VERDROSS, loc. cit. 423 MUELA, Adolfo Miaja de la. Introduccion al derecho internacional publico. 6. ed. Madrid: Atlas, 1974. p. 65 424 VERDROSS, op. cit. p. 22 425 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: [...] la idea del derecho con el derecho natural. Nesse contexto, vale mencionar o destaque que Simma atribui a contribuição de Verdross a esta questão dos princípios gerais do direito, por dois motivos: os diversos estudos feitos por Verdross, cerca de 30 escritos, versando sobre os princípios gerais de direito, bem como pelo fato de as bases da filosofia do direito natural de Verdross tenham se tornado sólidas no tratamento desta questão, dos princípios gerais do direito. In: SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 15

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Então, expressaria a relação entre a “idéia de direito” e o “direito natural”, relação a

qual se estabelece, segundo Verdross, por dois motivos. Primeiro, devido ao fato de

que a “idéia de direito” [die Rechtsidee], “[...] mostra o fim a que toda vida social há

de tender.”426 Enquanto que o “direito natural”, “[...] contém os princípios que

determinam quais são os meios que conduzem a tal fim.”427 O direito natural

corresponderia, desse modo, ao “meio” para a realização da finalidade do direito,

pois neste estariam aqueles princípios. Nessa perspectiva, Fausto de Quadros

comenta que para o jurista austríaco todo o direito positivo seria fundamentado no

valor absoluto da Justiça, mesmo com “[...] a relatividade da sua apreensão pelo

Homem.” Por isso, Fausto destaca que Verdross para superar essa relatividade da

percepção do homem, descobre as regras do direito natural nos “princípios gerais de

direito”, os quais resultariam “[...] necessariamente da natureza do Homem ou dos

grupos humanos, e cuja compreensão, portanto, não apresenta a relatividade a que

conduzia a pureza do jusnaturalismo dos valores.”428

Verdross menciona que o direito positivo além de ter por “fundamento a

sociedade”, o subsolo sociológico, tem também um “fundamento normativo”.

Fundamento normativo o qual está enraizado, segundo o autor, na natureza social e

teleológica do homem.429 Sendo que é justamente esta natureza [social e

teleológica] que impulsionaria o homem a viver em uma ordem de paz. Ordem esta

identificada, por Verdross, como a única possível para que os homens possam

alcançar o pleno desenvolvimento de sua essência. Logo, “Este fim, ao que nos

426 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 22. Livre tradução do original: […] muestra el fin al que toda vida social ha de tender. 427 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: […] contiene los principios que determinan cuáles son los medios que conducen a dicho fin. Desse modo, o direito positivo identifica-se como um complemento ao direito natural, uma vez que os princípios deste deduzidos exigem dos que exercem o poder social a adoção de medidas para assegurar a tranqüilidade, a ordem e a segurança sem determinar qual o meio para tanto. Nesse sentido, Verdross ressalta que tal meio se dá pela positivação do direito, ou seja, o direito natural somente pode ser completado pelo direito positivo. Vide: Idem. Ibidem., p. 17 428 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 76. Ademais, Fausto de Quadros adverte que “[...] não se pode ver nesta posição a adesão à doutrina dos clássicos espanhóis porque VERDROSS não afirma que o Direito Natural seja conhecido pela revelação.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 76. Vale mencionar que o jusnaturalismo dos valores seria aquela variante da escola do direito natural “[...] que coloca o problema do Direito Natural no plano axiológico e descobre-o através de uma progressiva participação da consciência moral nos valores.” Já a outra variante da escola do direito natural seria o jusnaturalismo católico, o qual coloca “[...] o problema do Direito Natural no plano ontológico. Por isso, o Direito Natural só pode ser apreendido pela revelação.” Vide: Idem. Ibidem., p. 74-75 429 VERDROSS,op. cit. p.16.

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incita nossa natureza social, é o que chamamos a idéia de direito.”430 A essência da

idéia de direito pode então, de acordo com Verdross, ser apontada como uma

“ordem de paz”. O direito como um “meio” para um convívio social pacífico [sua

finalidade], que proibiria o recurso à força a ser aplicada de homem para homem.431

A “ordem de paz” é, portanto, considerada por Verdross como a

essência da “idéia de direito”. Conseqüentemente, dessa consideração Verdross

menciona que o positivismo jurídico dogmático432 resta superado. Superado na

medida que concede espaço para concepções jusnaturalistas.433 Uma vez que

passaria a tomar como ponto de partida valores como o de paz, cuja natureza é

complexa por incluir outros valores além daqueles de tranqüilidade, segurança e

ordem.434 Destarte, o direito positivo, conforme Verdross, se presta a esta ordem, a

ordem de paz. Tendo em vista que, “[...] uma regulamentação adequada das

relações sociais favorece a paz, já que em geral é acatada livremente e pode, em

conseqüência, se manter com um mínimo de coação.”435

430 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 16. Livre tradução do original: Este fin, al que nos induce nuestra naturaleza social, es lo que llamamos la idea de derecho. Ressalta ainda Verdross, “La idea del derecho conduce en primer lugar a la formación de pequeños grupos humanos, luego a le de Estados e imperios, y finalmente engendra una comunidad que abarca a todos los hombres.” Cf.: VERDROSS, loc. cit. 431 Idem. Ibidem., p. 18. Admitindo-se, todavia, o recurso à força como reação a uma injúria e por exercício da comunidade contra o culpado da agressão. Vide: VERDROSS, loc. cit. 432 De acordo com Verdross o positivismo jurídico dogmático caracteriza-se por: negar a validade de normas suprapositivas; reduzir todo o direito ao direito positivo o qual é posto por determinadas autoridades, como legisladores e juízes; alegar que o direito positivo constitui um ordenamento plenamente autônomo e hermético; e, que as manifestações de vontade, das autoridades competentes, estão subordinadas umas as outras em uma relação hierárquica, porém não dependem de nenhum ordenamento superior, suprapositivo. Contudo, a fim de apresentar uma possível resposta à questão de saber por que razão as manifestações de vontade das autoridades competentes são obrigatórias, Verdross aborda a divisão presente no positivismo jurídico dogmático entre: o positivismo jurídico ingênuo e o positivismo jurídico crítico. Ambos posicionamentos, segundo o autor, procuraram resolver tal questão, sendo que somente este último apresentou um resposta para tanto, ou seja, o positivismo jurídico crítico, fundado por Hans Kelsen, desenvolveu nesse sentido sua respectiva teoria da norma fundamental. In: p. 20. Nesse contexto, Verdross ainda ressalta que, contrapondo o positivismo jurídico dogmático, o positivismo jurídico moderado, adotado pelo mesmo, corresponde “[…] la doctrina que solo se ocupa del derecho positivo, sin plantear la cuestión de su fundamento normativo.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 20 433 As concepções jusnaturalistas que vêm a ocupar tal espaço devem, segundo Verdross, estar apoiadas em uma “[...] antropologia filosófica que indaga a natureza do homem em todas as direções.”, revelando os traços mutáveis e imutáveis da natureza humana. Tal revelação afasta, conseqüentemente, qualquer “[…] elaboración de un sistema de derecho natural inmutable y completo; pero de los fines existenciales de la naturaza humana pueden deducirse determinados principios generales de validez universal.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 22. Devido à pluralidade de tais princípios, Verdross, ao referir-se a norma fundamental do direito internacional menciona que mais correto seria referir-se a uma “trama de normas fundamentais”, conforme será abordado na secção 2.1.2.3. 434 Idem. Ibidem., p. 21 435 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: […] una regulación adecuada de las relaciones sociales favorece la paz, ya que por lo general es acatada libremente y puede, en consecuencia,

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Consoante Verdross, a norma fundamental de um ordenamento

jurídico, portanto, deve seguir tal idéia de direito. Do direito considerado como uma

ordem de paz, e não uma dominação arbitrária. Desse modo, a norma fundamental

deveria estabelecer uma autoridade limitada.436 Isso significa que a norma

fundamental deveria delimitar a competência das autoridades, as quais produzem

normas jurídicas, com referência a determinados valores que devem realizar.437 De

acordo com o autor o direito não se identifica como uma ordem autônoma e

ilimitada, mas como uma ordem limitada. Justamente porque entende que todo

“dever-ser” constituiria uma formulação normativa de um valor. O próprio direito

positivo, portanto, poderia ser obrigatório somente se estivesse em conformidade

com tais valores,438 que limitariam o direito. Ademais, o direito positivo não poderia

ser considerado isoladamente, sem levar em consideração o determinado meio

social o qual integra. As normas jurídicas, destarte, não deveriam romper com as

demais normas que existem nesse seio social.439 Conforme Vasconcelos, “A partir

dessa redefinição, Verdross retifica, igualmente, a concepção que reduz o Direito à

norma, sem considerações para com os fatos sociais e para com os valores.”440

Para Verdross, então, direito e moral são interdependentes por

necessidade. Não haveria uma separação entre estas duas ordens sociais.441 Nessa

perspectiva, como em todo direito positivo obrigatório,442 o autor ressalta a

necessidade de distinguir três grupos de normas,443 que além de serem reguladoras

manterse con un mínimo de coacción. Por conseguinte, Verdross destaca que a questão do “favorecimento da paz” pode ser então considerada como um ponto segundo o qual direito positivo, de qualquer comunidade, passa a ser julgado e medido. Logo, o direito positivo pode ser considerado mais justo “[...] cuanto mejor conduce a una paz en la concórdia, y tanto más imperfecta, cuanto más alejada está de dicho fin.” In: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. 21 436 Idem. Ibidem., p. 23 437 VERDROSS, loc. cit. Vale mencionar que de acordo com Verdross, a idéia de direito não é unicamente constitutiva, mas sim também regulativa uma vez a mesma é estabelecida para fatos futuros, nem todos previsíveis. Logo, Verdross adverte que todo ordenamento jurídico é imperfeito, pois jamais pode adaptar-se em sua totalidade à realidade. Vide: Idem. Ibidem., p 19-20 438 Idem. Ibidem., p. 23 439 VERDROSS, loc. cit. Acerca de tal ligação das normas jurídicas com as demais normas sociais, Verdross menciona “No pretendemos con ello discutir el mérito del positivismo jurídico de haber distinguido claramente el derecho de las demás normas sociales. Pero esta distinción no há de llevar a romper el nexo que entre ellas existe. El positivismo jurídico rebasa de esta suerte su objetivo, al pretender extraer los hilos jurídicos de la urdimbre normativa en la que el derecho, juntamente con las restantes normas sociales, está entretejido.” In: VERDROSS, loc. cit. 440 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria geral do direito: teoria da norma jurídica. p. 127 441 SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 20 442 E, portanto, no direito internacional também, ainda que fundamentado em valores supranacionais. VERDROSS, op. cit., p. 31 443 VERDROSS, loc. cit.

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da conduta humana, igualmente integrariam a ordem ética do mundo.444 No primeiro

grupo, estariam as normas morais, correspondentes àquelas que obrigam os

homens enquanto personalidades éticas. No segundo, estariam as normas jurídicas,

as quais regulam o comportamento dos homens enquanto seres sociais. E, por

último, estariam as regras de trato social, ou seja, regras de cortesia normas

convencionais.445 Não estaria rompida, portanto, a relação “direito e moral”, o que

para Truyol y Serra significaria a confusão entre moral e direito natural.446

Enfim, o direito, segundo Verdross, pode ser concebido como um

sistema de normas jurídicas que possui um fundamento último, a Grundnorm. No

entanto, esse direito positivado fundamentado está tanto na sociedade, quanto na

natureza social e teleológica do homem. Logo, o direito corresponde a um fim. Este

fim consiste na chamada “idéia de direito”,447 sendo que a essência dessa idéia é a

“ordem de paz”. O direito, então, é o meio pelo qual o homem pode alcançar e

desenvolver a sua finalidade de “ser social”. Uma vez que o direito possibilita um

pacífico convívio social. Por conseguinte, Verdross ressalta que se a “idéia de

direito” indica o fim ao qual toda sociedade deve tender [uma ordem de paz], os

meios para alcance de tal finalidade encontram-se no direito natural. Desse modo, é

no direito natural que estão os princípios que limitam e condicionam a

obrigatoriedade das normas jurídicas que constituem o ordenamento jurídico.448 A

444 Mesmo que distinguidas em três separados grupos, Versdross ressalta que tais grupos normativos “[…] integran, desde luego, por igual el orden ético del mundo […].” A propósito: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. 31 445 Idem. Ibidem., p. 33. “[…] Pero una norma de cortesía internacional puede transformarse en norma de D.I. si los Estados llegan a la convicción de que el comportamiento por ella establecido se ha hecho necesario para el comercio internacional (opinio iuris).” In: Idem. Ibidem., p. 32 446 TRUYOL y SERRA, Antonio. Fundamentos de derecho internacional publico.. p. 27. Para Truyol y Serra, equiparar moral e direito natural seria o mesmo que reduzir o direito ao direito positivo. O critério diferencial entre ambos seria o da regulamentação, ou seja, a regulamentação moral é distinta da jurídica, ainda que considerado o direito natural. Uma vez que a perspectiva social em função da justiça seria comum ao direito natural e positivo, e não à moral. O direito natural abarcaria, então, aquelas ordenações e valorações da conduta humana relacionadas com a justiça natural. Ver, a propósito: Idem. Ibidem., p. 27-28 447 “[…] la idea del derecho es la base de toda comunidad jurídica. Un orden coercitivo que no se guíe en nada por esta idea no es un orden jurídico, sino una dominación arbitraria.” In: VERDROSS, op. cit., p. 18 448 Verdross considera como possível a construção de um conceito puramente formal do direito, bem como concebê-lo como ordenamento coercitivo do comportamento humano. Porém, no âmbito dessa construção formal menciona que deve-se distinguir as meras regras de poder, das regras encaminhadas para realização da idéia de uma comunidade racional e ética. De modo que as meras regras de poder contrárias principalmente à idéia de justiça restam por identificadas como posições isoladas de um ordenamento coercitivo, logo, somente tais posições correspondem a regras não obrigatórias, e não a totalidade do ordenamento. Pois, “[…] las órdenes de quien ejerce el poder solo han de considerarse obligatorias en tanto en cuanto no rebasen los límites impuestos por la idea de una comunidad racional y ética”. Cf.: Idem. Ibidem., p.18-19. Nesse sentido, acerca do direito

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Grundnorm, portanto, do sistema de normas jurídicas concebidas por Verdross,

corresponde a esse direito natural.

2.1.2.1 Da concepção de Estado

A concepção de Estado segundo Verdross, se apóia em referenciais

presentes no direito internacional. A ponto de Verdross alegar a anterioridade da

ordem jurídica internacional à própria formação do Estado, ou seja, do Estado

soberano.449 Para Verdross então, “Os Estados, cuja existência pressupõe o D.I.P.,

se chamam Estados independentes e soberanos.”450 Ainda que discípulo de Kelsen,

Verdross também rompe com a identificação entre Direito e Estado.451 Por partir de

uma leitura internacionalista, questões como “soberania” e “independência” são

condicionantes para Verdross ao discorrer sobre o Estado.

Desse modo, a soberania estatal, segundo Verdross, pode ser

considerada sobre dois aspectos. Primeiro sobre o aspecto interno, correspondendo

a um governo próprio e, na seqüência, por um aspecto externo, correspondendo à

internacional vale por ora mencionar que, de acordo com Verdross, tanto as disposições estatais contrárias ao direito de guerra, quanto qualquer disposição contrária aos direitos humanos fundamentais de toda a comunidade, carecem de força obrigatória, conseqüentemente, tais disposições tornam-se passíveis de resistência por parte de seus respectivos destinatários. Vide: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 19 449 “Un Estado soberano (en el sentido del D.I.P.) es una comunidad humana perfecta y permanente que se govierna plenamente a sí misma, no tiene sobre ella ninguna autoridad terrenal que no sea al del D.I.P., está unida por un ordenamiento jurídico efectivo y se halla organizada de tal manera que puede paticipar en las relaciones internacionales.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 177. Por conseguinte, Verdross destaca as seguintes características de um Estado soberano: não corresponde a uma simples associação de homens para fins particulares; a permanências, ou seja, o Estado sobrevive às sucessões das gerações; pleno autogoverno, o que significa que o Estado pode regular independente e livremente sua forma de Estado e de governo, sua organização interna e sua política interna e exterior; a independência jurídica com relação aos demais Estados, estão subordinado apenas ao direito internacional; submissão direta e imediata dos Estados ao direito internacional; possuir um território próprio não necessariamente com uma delimitação exata, basta que haja um núcleo territorial indiscutível; para que o Estado possa segundo as normas do direito internacional, tem que possuir órgão que trate das questões de suas relações exteriores, bem como tenha capacidade para observar as normas do direito internacional; e, por fim, para que surja um novo Estado não basta a promulgação de um nova ordem jurídica interna, mas sim que esta deva ser efetiva, que se imponha frete aos que infringir suas respectivas normas, pois somente as ordens jurídicas efetivas dos Estados possuem relevância jurídica internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 177-180. 450 Idem. Ibidem., p. 09. Livre tradução do original: “Los Estados, cuya existencia presupone el D.I.P., se llaman Estados independientes o soberanos.” 451 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria geral do direito: teoria da norma jurídica. p. 126

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independência.452 No entanto, o autor adverte que tal concepção de soberania

estatal é relativizada, sem que para tanto sejam comprometidos seus aspectos,

interno e externo. Conseqüentemente, uma concepção de soberania absoluta seria

considerada falha, ao enunciar que o direito internacional positivo resultaria da

vontade unilateral do Estado, de uma autolimitação do mesmo.453 Uma vez que, o

direito internacional positivo é produto da comunidade dos Estados e não de um

único Estado, isoladamente. Por outro lado, a concepção de soberania relativa iria

ao encontro da existência de um direito internacional. Justamente porque seria

próprio do direito internacional vincular os Estados independentes fazendo com que

se constituísse uma comunidade jurídica, ou seja, uma comunidade de Estados.454

A concepção de soberania estatal relativizada não prejudicaria os seus

respectivos aspectos. Desse modo, Verdross entende que noções como “soberania

absoluta” e “não-limitação da autonomia” do Estado, corresponderiam a postulados

da política do direito, não correspondendo assim a postulados do conhecimento

jurídico, já que tais noções tenderiam tanto a eliminar uma realidade sociológica

determinada, quanto a influir sobre a evolução da realidade social.455 Enquanto que,

pelo direito internacional positivo, seria possível a relativização da soberania estatal,

sem comprometê-la sobre seu aspecto interno e externo.456 Ademais, Verdross

452 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 10 453 Nesse contexto, a relativização da soberania estatal aludida por Verdross, se expressa também na sua concepção quanto à natureza jurídica do território. Pois, conforme menciona Pellet dentre as teorias sobre a natureza jurídica do território estatal, quais sejam: a do território-sujeito; a do território-objeto; a do território limite; e a do território-título de competência, Verdross encontra-se como adepto desta última. Uma vez que esta teoria além de não excluir a limitação do poder estatal de governar seu próprio território, considera este território como “[...] um título jurídico essencial da competência do Estado.”, ou seja, confere ao Estado um direito de agir. A propósito: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 423-424. Contudo, Seidl-Hohenveldern, ao referir-se à posição de Verdross como juiz na Corte Européia de Direito Humanos, afirma que este certamente não considerava a soberania estatal como elementar e inalterável, mas sim compreendia que se tal soberania fosse abandonada esta deveria se dar em um grau mundial, amplo. Bem como Verdross posicionava-se favorável a transferência dos mais importantes direitos soberanos às comunidades supranacionais. Cf.: SEIDL-HOHENVELDERN, Ignaz. Recollections of Alfred Verdross. In: European journal of international law. p. 04 454 VERDROSS, op. cit., p. 10. 455 Idem. Ibidem., p. 11. Verdross adverte que o emprego da palavra “soberania” freqüentemente em um sentido político, se revela muito impreciso. “Se dice, p. ej., de un Estado que depende política o económicamente de otro, que ha perdido su soberanía. Mas, como quiera que tal dependencia puede presentar diversos grados y que, por otra parte, existe entre los Estados una dependencia recíproca (interdependencia), este concepto es sumamente impreciso.” In: VERDROSS, loc. cit. 456 O não comprometimento da soberania estatal sobre seu aspecto interno e externo resta demonstrado quando um Estado invoca sua soberania para subtrair-se de uma obrigação jurídico-internacional. Nos dizeres de Verdross, quanto a esta invocação “Señalemos a este respecto que sobre la base del D.I.P. un Estado puede en principio asumir cualquier obligación, incluso renunciar a su independencia e incorporarse a otro. Pero mientras se gobierne a sí mismo y no esté sometido al

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ainda menciona que pela prática internacional, um determinado Estado se considera

soberano em duas situações: a) enquanto não convertido em membro de uma

federação; b) ou enquanto não seja dissolvido no seio de um outro Estado.457 Tal

prática internacional, segundo Verdross, iria ao encontro da assertiva de que a

eliminação da soberania estatal corresponderia a um postulado da política do direito,

não correspondendo a um postulado do conhecimento jurídico. Enfim, Verdross

ressalta que ao conhecimento jurídico compete o fundamento jurídico-positivo da

soberania. Por outro lado, a manutenção e eliminação da soberania competem à

política do direito.458

No que concerne à independência estatal, o autor a destaca como um

dos direitos fundamentais dos Estados, uma vez que a independência expressaria o

respeito recíproco entre os Estados. Respeito recíproco tanto às suas respectivas

políticas, interna e exterior, quanto as suas respectivas ordens internas.459 Essa

independência política estatal significaria a sua autonomia concernente aos seus

assuntos internos e externos, dentro dos limites do direito internacional. Logo,

segundo Verdross, a independência política dos Estados ocorre no sentido de um

para com os outros, e não ocorre no sentido de uma autonomia em relação às

normas jurídicas do direito internacional.460 Isso implicaria, conforme explica

Francesco Capotorti, na liberdade de cada Estado para estabelecer sua ordem

constitucional, regular a forma de governo e o regime constitucional de seu território,

não excluindo a possível limitação de certos aspectos de tal liberdade pelas

obrigações que o Estado assume no plano internacional.461 Os Estados deveriam

observar o direito internacional na realização de ambas esferas políticas, a interna e

a externa. Por conseguinte, dessa independência política dos Estados decorreria o

poder de mando de otro Estado, seguirá siendo jurídicamente soberano e independiente.”Cf.: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 12 457 Idem. Ibidem., p. 11 458 VERDROSS, loc. cit. 459 Idem. Ibidem., p. 210. Dentre os demais direitos fundamentais dos Estados, frente aos deveres fundamentais correlativos, Verdross menciona: da independência, da supremacia territorial e da dignidade dos outros Estados. Desses decorrem princípios como da igualdade e da não-intervenção entre os Estados. Vide: Idem. Ibidem., p. 209 460 Idem. Ibidem., p. 210. Nesse sentido, Verdross ressalta que os Estados ainda que independentes politicamente, permanecem submetidos às normas jurídicas internacionais. A título de ilustração, Verdross menciona a questão da “intervenção” de um Estado em outro, uma vez que esta pode se dá tanto de modo ilícito, quanto lícito, segundo as normas jurídicas do direito internacional. 461 CAPOTORTI, Francesco. Corso di diritto internazionale. Milano: Guiffrè, 1995. p. 12-13

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princípio da igualdade dos Estados. Isso significa que nenhum Estado soberano

estaria subordinado a outro Estado.462

Nesse contexto, Verdross, ao analisar a comunidade dos Estados a

caracteriza pelo fato dos membros não se encontrarem uns ao lado dos outros de

modo incomunicável, e sim, pelas contínuas relações que são estabelecidas e

mantidas entre os mesmos.463 O jurista austríaco destaca, em primeiro lugar, as

relações comerciais dos Estados entre si, relações estas cuja constância seria

facilmente perceptível por meio do desenvolvimento do direito internacional

econômico, desde a regulamentação do comércio de da moeda em nível bilateral, na

Antigüidade, até os acordos multilaterais no âmbito da OMC.464 Verdross, então, ao

lado dessa necessidade dos Estados de estabelecerem e manterem relações

comerciais entre si menciona uma outra que concomitantemente se apresenta a

esta: a constituição de normas jurídicas, ou seja, a necessidade de disciplinar tais

relações, quer pelo costume quer por meio de tratados.465 Além de relações

econômicas, Verdross também destaca o estabelecimento de relações culturais bem

como, por outro lado, o recurso às práticas bélicas. Desse modo, o direito

internacional positivo se encontraria enraizado em seus múltiplos e complexos

fundamentos sociológicos,466 seja sob o sentido positivo, como as relações

econômicas e culturais; seja sob o sentido negativo, como a realização de guerras.

Enfim, Verdross ressalta que foram as relações amistosas entre os Estados que

possibilitaram o surgimento de normas jurídicas para disciplinar o comércio

internacional e a elaboração de tratados culturais. Igualmente, foram as

462 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 212. A respeito do princípio da igualdade dos Estados, Verdross alude que este não corresponde a um direito fundamental autônoma, uma vez que depende de um outro direito fundamental, qual seja, a independência política dos Estados. Não obstante, Verdross ainda enfatiza que esse princípio da igualdade não significa que todos os Estados possuem direitos iguais, mas sim significa que nenhum Estado soberano está submetido a outro. In: VERDROSS, loc. cit. 463 Idem. Ibidem., p. 12 464 DAL RI Jr.; Arno. História do direito internacional: comércio e moeda; cidadania e nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 17-18 465 VERDROSS, op. cit., p. 12. Nesse passo, Verdross ressalta a questão de que o direito internacional positivo tem por fonte e por condição de seu desenvolvimento as necessidades da vida. Pois, segundo o referido autor, as primeiras normas jurídicas que disciplinavam as relações comerciais dos Estados entre si se limitou, a princípio, aos poderes públicos, uma vez que o estabelecimento de tais relações dependia do envio de embaixadores, em tempo de paz e de guerra, ao Estado estrangeiro. Logo, tal prática permitiu o surgimento de normas jurídicas para regular a situação de enviados e embaixadores. Cf.: VERDROSS, loc. cit. 466 Idem. Ibidem., p. 13

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manifestações não-sociais e destrutivas que permitiram o surgimento de regras para

limitação do emprego da força na guerra e inclusão de medidas precavidas.467

Portanto, para Verdross, os Estados, soberanos e independentes

estabelecem e mantêm relações entre si. Conseqüentemente, produzem um

conjunto de normas jurídicas internacionais que, a fim de permitir a realização da

essência da “idéia de direito”, se encontram limitadas e condicionadas a

determinados valores comungados na comunidade de Estados. Nesse sentido, o

autor ressalta que “A comunidade internacional é, pois, mais forte quanto maior seja

o número de valores comuns universalmente reconhecidos”.468 Nessa perspectiva,

Bruno Simma refere-se à influência de Verdross do estoicismo cristão ao trabalhar

esta concepção universalista do direito internacional, uma vez que o estoicismo

cristão considerava o gênero humano como um conjunto de formas, as quais

estavam unidas, moral e juridicamente, com fundamento no direito natural.469

Segundo o jurista austríaco, a comunhão de valores entre os diferentes povos

corresponderia a uma condição para o alcance de um autêntico acordo de vontades,

para a constituição de um direito internacional positivo, que fosse baseado em

convicções jurídicas coincidentes.470 Competiria aos Estados, então, a consecução

destas convergências, por meio do direito internacional.

2.1.2.2 Da concepção de direito interno

De acordo com Verdross, a essência da “idéia de direito” consiste em

uma “ordem de paz”. Desse modo, uma ordem coercitiva somente poderia ser

considerada como “jurídica” se guiada por tal idéia. Segundo o autor, uma ordem

coercitiva seria “jurídica” se a comunidade jurídica a qual esta corresponder estiver

467 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 14 468 Idem. Ibidem., p. 15. Livre tradução do original: “La comunidad internacional es, pues, tanto más fuerte cuanto mayor sea el número de valores comunes universalmente reconocidos.” 469 SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 06 470 “El hecho de esta coincidencia es señal de que las diferencias psicológicas que separan a los pueblos se dan sobre la base de una naturaleza humana común y general, a la que se refiere, por cierto, la Declaración universal de derechos humanos, aprovada por la Asamblea General de la O.N.U. el 10 de diciembre de 1948, en su art. 1°, según el cual todos los seres humanos nacen libres e iguales en orden a la dignidad y a sus derechos, estando todos dotados de razón y conciencia.” In: VERDROSS, op. cit., p.14

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alicerçada em tal idéia. O mesmo, então, ocorreria com a ordem jurídica estatal. Esta

ordem jurídica interna corresponderia àquela que regula o comportamento dos

sujeitos indeterminados, ou seja, uma massa de indivíduos anônimos.471 Por isso,

esta ordem coercitiva interna somente seria considera “jurídica” se observar tal “idéia

de direito”, se buscar promover um convívio social pacífico desses sujeitos

indeterminados.

Conforme mencionado, Verdross em suas abordagens se apóia em

referências presentes no direito internacional, o que é perceptível também em suas

considerações acerca da ordem jurídica interna, mais precisamente, no que se

refere ao já referido princípio da independência política.472 Nesse sentido, Verdross

destaca que, dentre os direitos fundamentais do Estado encontra-se o respeito à

independência política. Logo, os Estado teriam o dever recíproco de respeitar suas

independências políticas, bem como, de respeitar suas respectivas ordens jurídicas

internas, sempre de acordo com o direito internacional,473 uma vez que, a

independência política do Estado ocorreria em relação a um outro Estado e não em

relação ao direito internacional. Para Verdross, por independência política entende-

se “[...] a faculdade dos Estados de decidir com autonomia acerca de seus assuntos

internos e externos no marco do D.I.”474 Os Estados estão obrigados, pelo direito

internacional, a respeitar igualmente ambas as esferas de política, interna e

externa.475 Destarte, duas seriam as expressões de independência dos Estados: a) a

condução de sua política, interna e externa; b) no que diz respeito a suas normas

jurídicas internas em relação aos demais Estados. Contudo, caberia ao direito

internacional condicionar a obrigatoriedade destas normas jurídicas internas.

De acordo com Verdross, compete à ordem jurídica internacional

delimitar o âmbito de validade da ordem jurídica interna de cada Estado.476 Dessa

delimitação, ressalta Benedetto Conforti, decorreria a questão da “competência” de

471 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 112. Tal comunidade de sujeitos jurídico anônimos é contraposta por Verdross à comunidade de sujeitos determinados, como a comunidade internacional, conforme será melhor abordada na secção seguinte do presente trabalho. 472 Tal referencia foi exposta na secção 2.1.2.1 , ao abordar a concepção de Estado aludida por Verdross , mais especificamente, quanto à questão da soberania e independência, estatais. 473 Idem. Ibidem., p. 210. 474 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: […] la faciltad de los Estados de decidir con autonomía acerca de sus asuntos internos e externos en el marco del D.I. 475 VERDROSS, loc. cit. 476 Idem. Ibidem., p. 223

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tal Estado.477 Competência esta entendida como o âmbito de validade das normas

jurídicas que são aplicadas pelo Estado.478 Desse modo, Verdross considera que o

direito internacional delimita a validade: espacial;479 temporal;480 pessoal;481 e

material482 dos Estados. Quer isso dizer que, a competência estatal válida para

aplicação de normas jurídicas em dado “local” e “momento” é determinada pelo

direito internacional.483

2.1.2.3 Da concepção de direito internacional

Muitas foram as contribuições dos trabalhos de Verdross para os que

estudam o direito internacional. Particularmente, sobre questões consideradas como

477 Nessa perspectiva, vale tecer algumas considerações acerca da Teoria da Competência, desenvolvida por Verdross, conforme discorrida por Conforti, em um ensaio dedicado a referida teoria. De acordo com Conforti, a contribuição de Verdross no desenvolver de tal teoria deve-se principalmente por este condicionar a questão da competência estatal ao direito internacional, ou seja, a jurisdição estatal corresponderia a uma competência atribuída ao Estado, pelo direito internacional, de modo que este fixaria as esferas de aplicação de tal competência, quais sejam, a espacial, a pessoal, a material e a temporal. Por conseguinte, dessas quatros esferas, as três primeiras expressam a delimitação do poder dos Estados em relação ao poder dos demais Estados, feita pelo direito internacional. Já quanto à quarta esfera, a temporal, além de ser definida pelo direito internacional, também indica em qual momento a ordem jurídica de um Estado é coercitiva e efetiva, ou seja, as questões como o surgimento, o reconhecimento, a continuidade e a extinção de um Estado competem ao direito internacional. Contudo, a Teoria da Competência pode servir também de argumento para posicionamentos dualistas, e não tão-somente monistas, sobre a respeito da relação do direito internacional com o direito interno. Pois, tal teoria poderia ser compreendida no sentido de que o direito internacional ao atribuir competência ao Estado, estaria atribuindo um direito subjetivo ao Estado pelo qual este poderia exercer sua própria jurisdição com limites, espacial, pessoal e material, definidos, indo ao encontro assim das alegações dualistas de que o direito internacional e o direito interno correspondem a duas ordens jurídicas separadas, cada uma com seu respectivo âmbito de aplicação próprio. A propósito: CONFORTI, Benedetto. The theory of competence in Verdross. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 06, n. 1, 1995. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 12 out. 2007. p. 01 e 05. 478 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 223 479 Acerca da competência espacial de uma ordem jurídica estatal, Verdross alude que “[…] cabe entender dos cosas: o el espacio en que pueden darse los supuestos de hecho típicos, regulados por un ordenamiento jurídico (negocios de derecho civil, actos punibles), o el espacio en el que pueden aplicarse las consecuencias jurídicas (sentencias judiciales, actos administrativos, sanción penal, ejecución).” In: VERDROSS, loc. cit. 480 Já quanto à competência temporal de uma ordem jurídica estatal, Verdross afirma que tais normas “[…] determinan en qué momento un ordenamiento estatal tiene eficacia jurídico-internacional y en qué momento deja de valer. Tratan, pues, del origen, el reconocimiento y la extinción y la extinción de los Estados.” Cf.: VERDROSS, loc. cit. 481 “Las normas acerca de la competencia estatal en orden a las personas determinan qué personas están sometidas a la supremacía personal de un Estado.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 224 482 “El ámbito de competencia material de los Estados nos dice, finalmente, qué objetos (materias) pueden ser regulados por el ordenamiento jurídico-estatal.” In: VERDROSS, loc. cit. 483 Idem. Ibidem., p. 223

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delicadas aos que se lançam em tal empreendimento, dentre tais questões Simma

destaca: o significado e origem dos “princípios gerais de direito”; o estabelecimento

do jus cogens; e a construção da Teoria do Monismo Moderado, ao tratar da relação

entre o direito internacional e o direito interno.484

Segundo Verdross, uma das condições para conhecer o direito

internacional público é não esquecer o fundamento sociológico do direito

internacional positivo. Nesse sentido, Celso D. de Albuquerque Mello menciona que

segundo o jurista austríaco, o critério a ser adotado para definir o direito

internacional seria o da comunidade de que tais normas emanariam.485 Justamente

porque, “[...] o D.I.P. positivo surge e se desenvolve preferivelmente por obra da

cooperação dos Estados, pressupõe uma pluralidade de Estados.”486 Tal pluralidade

significaria a premissa maior para a existência de um direito internacional,487 uma

vez que, caso existisse tão-somente um único Estado mundial, não seria possível a

existência de um direito internacional. “Por isso, o D.I.P. não é ordenamento jurídico

do mundo, mas sim; é, simplesmente um dos possíveis ordenamentos jurídicos do

mundo.”488 Conforme mencionado, Verdross concebe o direito como um sistema de

normas jurídicas cuja finalidade é a paz, o direito como uma ordem de paz, o que

para Jean Touscoz significa que os fins do direito internacional não difeririam de

484 SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 03. Vale por ora mencionar que o presente trabalho, não discutindo a importância das demais contribuições de Verdross, se volta, especificamente, para a questão da construção de Teoria do Monismo Moderado. 485 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. p. 77 486 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p.08. Livre tradução do original: […] el D.I.P. positivo surge y se desarolla preferentemente por obra de la cooperação de los Estados, presupone una pluralidad de Estados. 487 Acerca da denominação de direito internacional, Verdross ressalta que a expressão “direito das gentes”, equivalente à Völkerrecht, droit des gens, law of nations, diritto delle genti, correspondem à tradução da do ius gentium romano, sendo que a doutrina moderna extraiu de tal conceito amplo o de ius inter gentes. No entanto como esta palavra “gentes” somente referia-se, por ora, aos povos politicamente organizados, este ius inter gentes então não corresponderia mais ao ius gentium romano. Mas sim corresponderia ao direito de uma organização política chamada “Estado”, logo, a um direito dos Estados. Conseqüentemente, se passou a adotar a expressão “direito internacional” como aquela referente ao “direito dos Estados”, direito inter-estatal, Staatenrecht. Estas, portanto, equivalente ao droit international, international law, diritto internazionale, e zwischenstaatliches Recht. Ademais, Verdross ainda menciona que essa nova expressão de índole técnica não consegui substituir a anterior “direito das gentes”, tanto por esta última conter mais ressonância emocional e quanto por algumas críticas feitas acerca da limitação daquela a tão-somente corresponder às relações entre Estados e nada mais. Cf.: Idem. Ibidem., p. 03-04 488 Idem. Ibidem., p. 08. Livre tradução do original: Por eso, el D.I.P. no es la ordenación jurídica del mundo, sin más; es, simplemente, una de las posibles ordenaciones jurídicas del mundo. Nesse contexto, devido a essa pluralidade de Estados que compõe a comunidade internacional, Verdross destaca distinção que há entre o direito internacional e direito publico universal, uma vez que este pressupõe um Estado mundial, enquanto aquele pressupõe uma pluralidade de Estados independentes. Cf.: Idem. Ibidem., p. 07

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qualquer outro sistema jurídico, o seu fim também seria o de manter a ordem, ou

seja, uma ordem de paz.489

Enquanto sistema de normas jurídicas um critério que pode ser

utilizado para a classificação das normas jurídicas positivadas,490 possibilitando a

distinção entre essas normas, corresponderia ao da “comunidade” da qual emanam.

Desse modo, o direito internacional emanaria de uma comunidade concreta, a

comunidade dos Estados que, segundo Verdross, vem adquirindo no decorrer da

história uma unidade sociológica e normativa.491 Contudo, o referido autor ressalta

que o direito internacional não se limita a ligar a comunidade tão-somente de

Estados,492 mas liga também a comunidade dos Estados a demais comunidades,

como a Santa Sé e a Ordem de Malta, por exemplo, bem como a outras uniões de

Estados, ou seja, as organizações internacionais.493

Além da pluralidade de Estados, outra condição de desenvolvimento do

direito internacional corresponderia a uma comunhão de valores, entre os distintos

povos da comunidade internacional. Tratar-se-ia de uma base comum entre estes,

como por exemplo, princípios jurídicos coincidentes, os quais, são indispensáveis

para o alcance de um autêntico acordo de vontades.494 Nesse contexto, se

encontraria a norma fundamental do direito internacional. Estaria o fundamento

último de validade segundo o qual os sujeitos do direito internacional devem se

comportar. Estaria, para Verdross, a Grundnorm, do sistema unitário de normas

489 TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. Portugal: Publicações Europa-América, 1994. p. 23 490 Acerca da classificação das normas jurídicas positivadas, Verdross menciona os seguintes critérios: pela comunidade da qual tais normas emanam; pelo objeto de regulamentação; pela índole dos sujeitos das normas; e, pela índole das sanções anexas as normas. Dentre tais critérios, conforme já mencionado, Verdross adverte que somente o primeiro tem por objeto ordenamentos jurídicos concretos, os demais correspondem a meras abstrações das diversos ordenamentos jurídicos. Cf.: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 04 491 Idem. Ibidem., p. 05 492 VERDROSS, loc. cit. 493 VERDROSS, loc. cit. Uma vez que o direito internacional liga a comunidade dos Estados a outras uniões estatais, como as organizações internacionais, por exemplo, Verdross entende que há na própria comunidade de Estados normas particulares que regulam diretamente a conduta dos indivíduos. Tais normas encontram-se dentro (as quais por exclusão de normas jurídicas que regulam a relação entre comunidades soberanas, como por exemplo, as sanções coletivas, correspondem àquelas que são também emanadas das organizações internacionais, mas implicam em sanções individuais, como por exemplo, as medidas coercitivas da Administração. Tais normas constituem um direito interno de um órgão internacional, internes Saatengemeinschaftsrecht. Ressalta-se também que essas normas não se confundem com as normas que regulam as relações dos Estados entre si) e fora das organizações internacionais (correspondem as normas jurídicas, que não no âmbito de uma organização internacional, conferem direitos e impõe deveres diretamente ao indivíduo, são normas jurídicas particulares do direito internacional consuetudinário e de certos tratados internacionais). Cf.: Idem. Ibidem., p. 05-06 494 Idem. Ibidem., p. 14-15

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jurídicas. Esta norma fundamental é identificada pelo autor tanto com os princípios

gerais de direito quanto com as normas do direito convencional e consuetudinário.

No primeiro caso, os princípios gerais de direito495 consistiriam naqueles que

emanam da natureza social das coletividades humanas.496 Conforme comenta

Quadros, para o jurista austríaco, “[...] os princípios gerais de Direito mais não são

do que princípios do Direito Natural.”497 Já as normas do direito convencional e

consuetudinário, seriam aquelas que têm por base os princípios gerais de direito,

tendo em vista que, estes mesmos princípios pressupõem o direito internacional

positivo.498 Conseqüentemente, Verdross ressalta que acerca do direito internacional

o mais correto seria abordar a questão de uma “trama de normas fundamentais”,499

devido à pluralidade de princípios gerais de direito, e não apenas abordar a questão

de uma única norma fundamental.

Além disso, Verdross estabelece uma distinção entre “direito

internacional comum ou geral” e “direito internacional particular”, distinção no sentido

de que o direito internacional comum fixa os marcos limitadores,500 fixa os princípios

que norteiam a produção das normas jurídicas correspondentes ao direito

internacional particular.501 Quer isso dizer que, o direito internacional particular,

495 No tocante aos princípios gerias de direito, como norma fundamental do direito internacional, o autor adverte que ainda que tais princípios encontram-se positivados neste, conforme dispõe o artigo 38 do Acordo constitutivo do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, correspondente a atual Corte Internacional de Justiça, tais princípios não perderam a sua categoria de originário, uma vez que “[…] constituyen en parte el fundamento del D.I., y en parte intervienen directamente en aquellos puntos en que el D.I. no ha estabelecido normas proprias.Cf.: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 24 496 Nesse sentido, Verdross ao considerar os princípios gerias de direito enquanto emanados da natureza social das coletividades humanas, não condiciona que tais princípios sejam necessariamente reconhecidos primeiramente no foro interno de determinado Estado. 497 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 260 498 VERDROSS, op. cit., p. 26 499 VERDROSS, loc. cit. “Esta trama constituye el fundamento normativo que da unidad a las relaciones entre los Estados.” In: VERDROSS, loc. cit. 500 Contudo Verdross adverte, “Marco amplísimo por lo demás, ya que el D.I. común contiene muy pocas normas taxativas.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 113 501 Dentre tais princípios que norteiam a produção de normas jurídicas correspondentes ao direito internacional particular, Verdross destaca: princípio da boa-fé e o abuso do direito; princípios da efetividade; e, o princípio da humanidade. Quanto ao princípio da boa-fé, uma vez que há ausência de órgãos supranacionais na comunidade dos Estados, para que as normas de direito internacional sejam eficazes dependem da observação de boa-fé das mesmas, por parte dos Estados. Somente sobre tal condição, de que os Estados procederão de boa-fé no comprimento de seus compromissos, é que as normas jurídicas internacionais terão eficácia. Ademais, decorre do princípio da boa-fé tanto a questão de que nenhum Estado poderá cobrar de um outro determinada conduta, a qual aquele culposamente a impediu de ser realizada, quanto à proibição do abuso do direito por parte de um Estado. Já acerca do princípio da efetividade, Verdross adverte que considerando o direito internacional como dependente da cooperação e do comum acordo dos sujeitos jurídicos, não havendo qualquer poder central supranacional, o seu respectivo elemento de conservação encontra-

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pressupõe o direito internacional comum, ou seja, este é anterior àquele. Para

Verdross, o direito internacional particular, então, corresponde às normas

convencionais. Normas firmadas entre dois ou mais Estados, sendo possível

também algumas poucas normas particulares de direito internacional

consuetudinário.502 O jurista austríaco além de apresentar esta distinção entre o

direito internacional geral e particular, não chega a apresentar nenhuma subdivisão

entre princípios gerias de direito. Já outros internacionalistas, como Quadros,

destacam duas categorias de princípios gerais de direito: os princípios comuns aos

direitos internos, como da pacta sunt servanda, bona fide, etc., e os princípios

próprios do direito internacional, como “[...] da não ingerência, da não agressão, do

não reconhecimento da aquisição de territórios ou direitos mediante o recurso à

força, da autodeterminação dos povos, a proibição do genocídio, etc.”503 Quadros

ainda ressalta que “[...] o conteúdo e a relevância de alguns destes princípios têm

variado ao longo dos tempos”, como o direito de intervenção para fins de

“assistência humanitária”.504

se especialmente acentuado no mesmo. Disso decorre o importante papel do princípio da efetividade no direito internacional, para sua própria conservação. A título exemplificativo, Verdross menciona que um novo Estado apenas passa a existir perante o direito internacional se seu ordenamento conseguiu efetivamente se impor. Por outro lado, um Estado perece se perde de modo duradouro sua efetividade. No entanto, há uma limitação a tal princípio, pois este rege “[..] solo rige em el marco que el próprio D.I. establece. Si el principio de efetividad valeria sin restricciones, quedaria disuelto todo D.I Por mucho que el D.I. se adapte a los hechos, há de subsistir siempre cierta tensión entre él y los hechos que está llamado a regular.” Vide: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 114-116. Nesse contexto, Verdross destaca a tendência do direito internacional de uma capitulação de fatos ilicitamente consumados, citando por exemplo, a questão da anexação de territórios por um Estado. “Si antes una douctrina ampliamente extendida consideraba extinguido un Estado que al término de unas hostilidades hubiera sido incorporado al Estado vencedor, el D.I. actualmente en vigor solo reconoce eficacia jurídica a una anexión de esta índole en cuanto venga subsanada por un título jurídico. De ello resulta que el D.I.P. mantiene el derecho de la soberanía territorial incluso cuando su ejercicio se hace imposible como consecuencia de una anexión antijurídica.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 116. Por fim, concernente ao princípio da humanidade Verdross ressalta que além de normas jurídicas que delimitam a esfera de poder dos Estados ou harmonizam seus interesses, no direito internacional há também normas que visam à proteção da pessoa humana. Tais normas decorrem de Convenções firmadas pelos Estados, as quais são inspiradas por ideais comuns, não representando interesses próprios dos Estados. Como primeira expressão do princípio da humanidade, Verdross menciona a proibição de certos princípios quanto ao tratamento de escravos, no Congresso de Viena de 1815. Ademais, Verdross também ressalta que o princípio da humanidade desempenha importante papel na humanização do direito de guerra, regulamentando a situação dos feridos, prisioneiros de guerra, etc. Cf.: Idem. Ibidem., p. 116-117 502 Idem. Ibidem., p. 113 503 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 262 504 Idem. Ibidem., p. 262-263

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Ademais, Verdross destaca também outras características presentes

na ordem jurídica internacional, quais sejam: a relativa falta de órgãos centrais;505 a

questão da responsabilidade internacional;506 o caráter incompleto do direito

internacional;507 a fundamental relatividade dos deveres jurídico-internacionais e a

aparição de deveres comunitários;508 o caráter individual do direito internacional e os

primeiros contatos de um direito internacional social;509 as normas taxativas e

dispositivas no direito internacional;510 e, a mediatização do homem e sua paulatina

505 Segundo Verdross, essa característica deve-se ao fato de que na comunidade internacional, não há uma órgão legislativo central, nem uma jurisdição obrigatória para resolução de conflitos. Desse modo, o direito internacional se diferencia pelo seu caráter corporativo, ou seja, suas normas gerais surgem de uma cooperação dos Estados, bem como a pacífica solução de seus conflitos tem como único caminho o mútuo acordo das partes. A questão de o Conselho de Segurança da ONU como um poder coercitivo central, ao mesmo tempo que para Verdross significa um “germe de um governo mundial”, revela a debilidade da comunidade internacional face ao direito de veto dos Estados, membros permanentes, que compõe tal Conselho. Cf.: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 105 506 Quanto à responsabilidade, o direito internacional, conforme Verdross, somente exige o alcance de um determinado resultado impondo um dever internacional, o que significa que a organização estatal está sujeita a um determinado comportamento. Para tanto, o direito internacional pode ou não indicar qual o órgão estatal a atuar para tal resultado. Contudo, não há uma identificação entre o órgão a atuar, no primeiro momento, e aqueles que sofreram as conseqüências jurídicas de tal atuação estatal, ou seja, a totalidade de seus cidadãos. Logo, o direito internacional é regido pelo princípio da responsabilidade coletiva, a qual não exclui uma possível responsabilidade individual de órgãos culpáveis. O sujeito responsável então para o direito internacional não corresponde ao Estado enquanto organização, uma vez que esta pode ser alterada, mas sim o povo organizado em Estado. Cf.: Idem. Ibidem., p. 106-107 507 O caráter incompleto do direito internacional se dá, regra geral, pelo fato de o direito internacional compreender normas abstratas , consuetudinárias e convencionais – decorrentes de tratados, as quais necessitam ser concretizadas por meio das normas estatais de execução. Aos Estados assim compete a dupla função tanto de criadores do direito internacional, por cooperação, quanto de executores do mesmo, por meio de dispositivos internos. In: Idem. Ibidem., p. 108 508 Os deveres jurídicos-internacionais, em um primeiro momento, se estabelecem somente com os Estado interessados entre si, existindo somente entre Estados particulares envolvido em dada questão. Nesse sentido, segundo Verdross, ocorrendo uma infração do direito internacional, a princípio, somente o Estado lesionado pode protestar em um órgão central da comunidade dos Estados. Contudo, o referido autor aduz que a tendência de reclamações coletivas, envolvendo mais de um Estado, decorrem tanto quando se trata de violações fundamentais ao direito internacional, as quais afetam diretamente todos os Estados, quanto pelo direito internacional organizado por organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas [ONU] que reconhecem deveres para a comunidade estatal bem como sanções coletivas. In: Idem. Ibidem., p. 109 509 Tal caráter individual, de acordo com Verdross, se deve ao pouco desenvolvimento, no direito internacional geral, da idéia de comunidade. Pois, o direito internacional geral não chega a proibir os Estados a atenderem seus interesses políticos e econômicos, o que pode conseqüentemente, vir a prejudicar um outro Estado. Porém, o referido autor menciona a tendência da construção de um direito internacional social, principalmente, por meio da atuação de organizações internacionais, como a ONU e suas respectivas instâncias, como o Conselho Econômico e Social, as quais visam fortalecer a solidariedade internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 111 510 Nesse sentido, Verdross refere-se a normas no direito internacional as quais os Estado não podem modificar entre si e que condicionam a validade de tratados a serem firmados, a sua observância. Por conseguinte, nulo será o tratado firmado que não observar a tais normas, como as de direitos humanos ou àqueles princípios pertencentes à ordem pública e que constituem respectivamente seu jus cogens, ou seja, as normas imperativas de direito internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 112-113. Acerca da contribuição de Verdross para o estabelecimento do jus cogens, Simma alude que ainda que o conceito de jus cogens permaneça indeterminado, por se basear em filosofia de valores como o

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atenuação. Segundo Simma, uma conseqüência da alegação do jurista austríaco a

respeito da relativa falta de órgãos centrais seria o caráter provisório e temporal das

normas jurídicas internas contrárias ao direito internacional, uma vez que a

descentralização da estrutura deste permite que os Estados regulem suas questões

domésticas. Nesse sentido, Simma adverte que é justamente esta distinção, esta

relativa autonomia, entre o direito internacional e o direito interno concebida por

Verdross, que possibilita a ocorrência de conflito entre ambas ordens jurídicas.511

Quanto à característica da mediatização do homem, conforme

Verdross, os indivíduos, a princípio, não são sujeitos do direito internacional,512 mas

são súditos de um Estado. O sujeito mais importante do direito internacional

corresponderia a povos organizados em Estados,513 uma vez que, pelo direito

internacional geral, os indivíduos não poderiam fazer valer por si mesmo um direito

perante uma organização internacional. Dependeriam, para tanto, da representação

de seus respectivos Estados.514 Contudo, Verdross não ignora a tendência a tal

inclusão do indivíduo como sujeito do direito internacional que se manifesta por meio

dos tratados de proteção aos direito humanos,515 bem como, o possível acesso dos

direito natural, o que as concepções de Verdross ofereceram foram uma ligação natural entre o jus cogens codificado (como por exemplo, a questão do respeito aos direito humanos e o uso da força nas relações internacionais) e a possibilidade de uma fundamentação filosófica para tanto. Ver, a respeito: SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 22 511 SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 14. 512 “Sujetos del D.I. son aquellas cuyo comportamiento regula directamente el orden jurídico internacional. Estos sujetos difieren mucho entre sí.” In: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. P.174. 513 Vale ressaltar que os Estados correspondem, para Verdross, aos sujeitos mais importantes do direto internacional, mas não tão-somente os únicos. Desse modo, todos os sujeitos do direito internacional encontram-se imediata e diretamente submetidos a este, sendo que o que serve de base para atribuição de tal qualidade de sujeito é justamente essa vinculação direta ao direto internacional. Vide: Idem. Ibidem., p. 179. Nesse contexto, Verdross destaca os seguintes sujeitos de direito internacional: os Estados; a Santa Sé; as uniões de Estados [organizações internacionais]; rebeldes e insurrectos; países sob tutela; a Ordem de Malta; o Comitê da Cruz Vermelha; e, o indivíduo, em determinados casos. Cf.: Idem. Ibidem., p.177-207. Ademais Verdross apresenta a seguinte classificação a fim de estabelecer as distinções entre os mesmos: sujeitos de deveres e sujeitos de direitos; sujeitos ativos e sujeitos passivos; sujeitos permanentes e sujeitos transitórios; sujeitos originários e sujeitos admitidos posteriormente; sujeitos com ou sem autogoverno; diferenças entre a capacidade jurídica e a capacidade de fato; e, por fim, sujeitos do direito internacional comum e sujeitos do direito internacional particular. In: Idem. Ibidem., p.175-177. Contudo, Verdross ainda enfatiza que os únicos sujeitos classificados como “originários” do direito internacional são os Estados e a Santa Sé, ou seja, conforme Verdross “[...] es perfectamente factible considerar a los Estados como únicos sujetos del DI. propriamente dichos, y a los demás sujetos, como ,<personas jurídicas> de D.I.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 175- 177 514 Idem. Ibidem., p.109 515 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p.110. Vale, por ora, mencionar que a questão quanto aos demais sujeitos do direito internacional, bem como referências quanto ao

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indivíduos a órgãos internacionais, contra um Estado violador de tais direitos.516 Já

Hildebrando Accioly enfatiza que este movimento de inclusão do indivíduo na

sociedade internacional tornou-se evidente, principalmente, após as atrocidade

cometidas com a segunda guerra mundial.517

Ao considerar os povos organizados em Estados, como sujeito mais

importante do direito internacional, Verdross reporta a uma outra característica do

direito internacional. A característica da relativa “escassez de sujeitos”, ou seja, os

sujeitos normais do direito internacional correspondem às comunidades

individualmente determinadas. Isso significa que, os sujeito do direito internacional

são sujeitos determinados.518 Logo, as normas do direito internacional levam em

conta as situações concretas. No entanto, o autor também adverte que pode ser

equivocada a afirmação de que o direito internacional somente possui situações

concretas, tendo em vista que, nele também prevaleceriam normas gerais. E, além

disso, regularia situações não tão concretas, como por exemplo, os tratados que

fixam as fronteiras estatais.519

reconhecimento da personalidade jurídica do indivíduo serão abordadas no Capítulo 3, do presente trabalho. 516 VERDROSS, loc. cit. Ao que concerne ainda à questão do direito internacional e o papel do indivíduo, Verdross adverte que se a comunidade dos Estados diretamente regulasse o comportamento dos indivíduos, ou seja, dos cidadãos de um Estado, e por conseguinte lhe concedessem direito de recorrer regularmente a um órgão jurídico internacional contra as decisões de seu respectivo Estado, “[…] dejarían automáticamente de existir los Estados como comunidades jurídicas con plenitud de autonomía” Cf.: Idem. Ibidem., p. 11. Desse modo, não haveria mais um direito internacional devido ao desaparecimento de tal comunidade dos Estados, haveria sim um direito político universal mais ou menos desenvolvido, expressando um Estado mundial. Nesse contexto, Verdross ressalta que tanto a comunidade dos Estados quanto tal Estado mundial não correspondem a entidades, de ordenação social do mundo, rígidas e extremas, deve haver uma forma intermediária que corresponda mais a uma dessas entidades à outra. Segundo Verdross, a comunidade dos Estados, por exemplo, permite certas exceções que possibilitam regulamentação direta da conduta dos indivíduos, sem que para tanto se torne um Estado mundial e não mais uma comunidade plural de Estados. Nesse sentido, Verdross menciona como uma de tais exceções as previstas no direito internacional regional, como o direito de petição perante a Corte Européia de Direito Humanos ou uniões estatais com a constituição de órgãos supranacionais, as quais não alteraram a estrutura do direito internacional comum. In: VERDROSS, loc. Cit. 517 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de direito internacional público. p. 353 518 Nesse aspecto, Verdross contrapõe aos sujeitos determinados do direito internacional os sujeitos indeterminados do direito interno, os quais correspondem a uma massa de indivíduos anônimos. Desse modo, Verdross menciona que quanto ao conteúdo das normas, de uma comunidade de sujeitos jurídicos anônimos, somente pode ser regida mediante regulamentos típicos, por simples atos típicos, enquanto as normas de uma comunidade de sujeitos determinados tendem a ter por conteúdo situações concretas. Cf.: VERDROSS, op. cit., p. 112. 519 Idem. Ibidem., p. 111. Contudo Verdross menciona que o direito internacional não regula somente as relações dos Estados entre si, mas algumas atividades dos indivíduos que ultrapassam esta concepção limitada. Novas categorias que permitem uma divisão entre o direito internacional em sentido mais amplo, o qual regula demais realidades jurídicas com a questão dos indivíduos, por exemplo, e em sentido mais restrito, o qual regula relação dos Estados e outras comunidades

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Por fim, Verdross discorre sobre a possibilidade da adoção de uma

Constituição para a comunidade internacional,520 ou seja, para a comunidade dos

Estados. Comunidade a qual se encontra constituída sobre normas que os Estados

têm considerado como supostas e anteriores a elaboração do direito internacional

positivado, normas que foram desenvolvidas pelo costume internacional e por uma

série de tratados coletivos.521 Isso corresponderia ao que Bonavides considera como

uma tendência de “constitucionalização do Direito Internacional”, ou seja, uma

tendência a qual “Manifesta-se através da inspiração que a ordem constitucional

oferece aos internacionalistas, abraçados, com fervor, à idéia de implementação de

uma comunidade universal de Estados devidamente institucionalizada.”522

Verdross, então, ressalta que com a criação da Organização da

Nações Unidas [ONU], seu respectivo acordo constitutivo, a Carta de São Francisco,

de 1945, poderia ser apontado como uma Constituição. A Carta, para Verdross,

como uma possível Constituição, no sentido formal, da comunidade universal dos

Estados. Porém, o jurista austríaco destaca algumas ressalvas que deveriam ser

feitas a tal adoção. Dentre tais encontram-se o fato da Carta pressupor a existência

de um direito internacional anterior à mesma, sendo este o ponto de partida e, o fato

de alguns princípios presentes na Carta terem sido apenas mencionados, sem ser

objeto de maior desenvolvimento para orientar sua respectiva interpretação.523

soberanas. E ainda que gradualmente o direito internacional sob o sentido estrito vem convertendo-se ao sentido mais amplo, Verdross ressalta que o núcleo ao redor do qual encontram-se as normas jurídicas internacionais corresponde ao direito internacional no sentido estrito. In: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 06-07 520 Idem. Ibidem., 118 521 VERDROSS, loc. Cit. 522 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 47 523 VERDROSS, op. cit., p. 118-119. A respeito da Carta de São Francisco, ao levantar a questão se tal Carta substituiu o direito internacional geral ou se sua respectiva validade está baseada neste, Verdross adverte que a Carta, além de estar baseada no direito internacional geral e de completar suas lacunas jurídicas-políticas neste, também depende do direito internacional geral para a promoção das alterações de seus dispositivos, ou seja, de seu desenvolvimento. Cf.: Idem. The Charter of the United Nations and general internacional law. In: LIPSKY, George A. (Org.). Law and politics in the world community. Los Angeles: University of California Press, 1953. p. 153. Dentre os argumentos apresentados por Verdross para tal compreensão cabe destacar, dentre outros: o próprio preâmbulo da Carta ao expressar que as obrigações decorrentes de demais fontes do direito internacional; o artigo 51 da Carta que prevê o exercício do direito de legítima defesa ainda que o Conselho de Segurança [CS] não tenha tomado as medidas necessárias; quanto às recomendações da Assembléia Geral [AG] que não possuem um efeito legal positivo competindo aos Estados-membros a adoção dos meios para executá-las, estando tais Estados assim limitados pelo direito internacional geral; os artigos 108 e 109 que não descartam a possibilidade de alterações na Carta; e, por fim o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça o qual dispões sobre as fontes do direito internacional mencionado dentre essas o costume internacional e os princípios gerais de direito.Cf.: Idem. Ibidem., p. 155-161. Ainda a respeito dessa questão da adoção de uma Constituição para a comunidade internacional, Luigi Ferrajoli defende a idéia de um “constitucionalismo do direito

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Nesse sentido, Bonavides também refere-se a Carta da ONU como um dos

documentos que expressaria a tendência da “constitucionalização do Direito

Internacional”, mencionando ainda que a Carta “[...] estivesse a criar nos três órgãos

básicos – a Assembléia Geral, o Conselho de Segurança e a Corte de Justiça,

respectivamente – a imagem dos três Poderes: o Executivo, o Legislativo e o

Judiciário [...].”524

2.1.2.4 Da relação entre direito internacional e direito interno

No tocante à relação entre ordem jurídica internacional e ordem jurídica

interna, Verdross destaca que somente uma teoria pode corresponder à realidade

jurídica que revela a possibilidade de conflitos entre direito internacional e direito

interno. Conflitos esses não de caráter definitivo e que encontram suas respectivas

soluções no próprio sistema jurídico unitário. Sistema o qual é constituído por ambas

as ordens. Verdross, então, denomina a referida teoria de “Teoria do Monismo

Moderado” ou “estruturado” [gemäβigter], rejeitando os posicionamentos

voluntaristas.525 Teoria esta erguida sobre a base da primazia do direito

internacional. Conforme Alain Pellet, uma vez que o enunciado da teoria monista

considera a ocorrência de uma interpenetração das duas ordens jurídicas, a interna

e a internacional, sendo possível a apresentação de conflitos entre tais normas, seus

partidários divergem quanto à questão da relação hierárquica entre estas

jurídicas.526 Nesse contexto, Pellet destaca o posicionamento de Verdross, o qual

representa o monismo de primazia internacional, subordinando assim as normas

internacional”. Um constitucionalismo com intuíto de superar a crise atual dos Estados como sujeito soberano. Vide: FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. Tradução de Carlo Coccioli. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 48. Para tanto, Ferrajoli destaca o papel desempenhado pela ONU. Segundo Ferrajoli “A crise dos Estados pode ser, por tanto, superada em sentido progresivo, mas somente se for aceita sua crescente despotencialização e o deslocamento (também) para o plano internacional das sedes do constitucionalismo tradicionalmente ligadas aos Estados: não apenas as sedes de enunciação dos princípios, como já aconteceu com a Carta da ONU e com as Declarações e Convenções sobre os direitos, mas também as de suas garantias concretas.” Essa transferência das garantias concretas se realizaria, de acordo com Ferrajoli, com uma reforma da atual jurisdição da Corte Internacional de Justiça da ONU [CIJ]. In: Idem. Ibidem., p. 53 524 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 48 525 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 86 526 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 96

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jurídicas internas à supremacia das normas jurídicas internacionais. Desse modo,

Pellet ao referir-se a tal entendimento do jurista austríaco, menciona

Na sua opinião, o ponto de partida é inevitavelmente o princípio do primado do direito internacional, porque as diferentes coletividades estatais não estão dotadas da soberania no sentido pleno do termo. No edifício jurídico universal, o direito internacional sobrepõe-se naturalmente aos diversos direitos nacionais.527

Conseqüentemente, os enunciados de tal teoria contrapõem assim os

demais posicionamentos acerca da relação do direito internacional com o direito

interno. Posicionamentos como a teoria dualista e a teoria do monismo radical.528 Tal

teoria monista e moderada mantém a distinção entre o direito internacional e o

direito interno, o que permite justamente perceber a superioridade do direito

internacional. Por isso, Quadros refere-se a esta como a mais satisfatória entre os

internacionalistas.529 Já Bohdan T. Halajczuk considera a mesma concordante com a

527 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 98. Quanto ao monismo de primazia do direito internacional, dois são os fatos que, segundo Truyol y Serra, impulsionaram Verdross a abandoar posições dualistas e positivistas e adotar aquela, quais sejam “[…] la permanencia de las obligaciones internacionales del Estado incluso en el caso de un cambio revolucionario de su constitución, y la dificuldad de fundamentar de forma satisfactoria el derecho consuetudinario.” Cf.: TRUYOL y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. p. 143. Ainda quanto à teoria monista, Simma ao referir-se ao monismo de primazia internacional de Verdross, discorre sobre as bases da teoria monista, ou seja, da concepção de unidade do direito internacional e do direito interno. Nesse sentido, Simma menciona que a teoria monista foi desenvolvida simultaneamente na Holanda, França e Áustria, destacando os seguintes representantes: Dutchman Hugo Krabbe [influenciado por Vitória e Suarez], Léon Duguit, Georges Scelle e Hans Kelsen. Ver, a respeito: SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 13 528 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 97. Concernente aos demais posicionamentos, Verdross refuta as concepções dos adeptos à teoria dualista que afirmam que o direito internacional e o direito interno correspondem a dois ordenamentos independentes devido às normas de direito internacional obrigarem somente as comunidades soberanas, Verdross adverte que os tratados internacionais além de ser fonte do direito internacional, podem obrigar também o âmbito interno do Estado, bem como algumas normas de direito internacional consuetudinário podem obrigar diretamente os indivíduos. Juntamente, quando uma lei interna ao ser aplicada vier a prejudicar um outro Estado, este está autorizado pelo direito internacional a exigir a não aplicação de tal lei, sendo aquele Estado fica obrigado a satisfazer tal demanda. Isso significa que o direito interno, de acordo com Verdross, pode ficar submetido a um controle jurídico-internacional, indo de encontro à alegação da total independência de ambos ordenamentos, uma vez que os atos internos do Estado podem surtir efeitos no plano internacional, plano este ao qual o Estado permanece obrigado. Cf.: Idem. Ibidem., p. 95-96. Já quanto às concepções dos adeptos ao monismo radical, Verdross também se opõe as mesmas por afirmarem que toda norma estatal contrária ao direito internacional é nula. Pois Verdross menciona que algumas tendências mais recentes posicionam no sentido de que um órgão estatal, como um tribunal, por exemplo, estão diretamente obrigados pelo direito internacional a não aplicar uma lei interna excepcionalmente, quando da aplicação desta incorrer em um delito internacional. Nesse caso, do cometimento de um delito internacional o tribunal estatal terá que considerar a lei interna como nula. In: VERDROSS, loc. cit. 529 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 86

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prática internacional, justamente por considerar que “[...] uma lei contrária ao d. i.

pode ser válida na ordem interna, porém falta validade na internacional.”530

Contudo, Verdross ainda adverte que tal teoria mesmo mantendo a

distinção, “[...] ressalta ao mesmo tempo sua conexão dentro de um sistema jurídico

unitário baseado na constituição da comunidade jurídica internacional.”531 Nesse

sentido, Simma adverte que é precisamente esta distinção, esta relativa autonomia,

entre o direito internacional e o direito interno concebida por Verdross, que

possibilita a ocorrência de conflitos entre ambas ordens jurídicas. E por conseguinte,

expressa os enunciados do monismo moderado, uma vez que tais conflitos não são

definitivos, sendo os mesmos resolvidos de acordo com os procedimentos jurídicos

internacionais. O que demonstra assim a unidade do sistema jurídico, bem como a

primazia do direito internacional.532

Desse modo, seguindo a concepção monista, Verdross considera o

direito internacional e o direito interno como contídos em um único sistema jurídico.

Porém, a distinção entre os mesmos facilmente seria percebida. Nesse sentido,

Quadros aborda que “[...] o monismo moderado reconhece ao legislador nacional um

campo bastante amplo de liberdade de acção.”533 Ademais, segundo Verdross para

perceber a distinção entre direito internacional e interno, bastaria tomar por

referência, por exemplo, os tribunais estatais e os tribunais internacionais.534 Os

tribunais estatais aplicam leis do seu respectivo Estado, ainda que contrárias ao

direito internacional, enquanto que os tribunais internacionais aplicam as normas do

direito internacional. Para os tribunais internacionais as leis, decisões judiciais e atos

administrativos de um determinado Estado correspondem a meros fatos, passíveis

de serem medidos consoante o direito internacional.535 Logo, podem ser qualificados

segundo a concordância ou oposição ao direito internacional.536 “Nenhum Estado

pode subtrair-se a uma obrigação jurídico-internacional invocando o direito

530 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. Buenos Aires: Ediar, 1978. p. 32. Livre tradução do original: una ley contraria al d. i. puede ser válida en el orden interno, pero carece de validez en el internacional. 531 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 97. Livre tradução do original: […] pero subrava al proprio tiempo su conexión dentro de un sistema jurídico unitario basado en la constitución de la comunidad jurídica internacional. 532 SIMMA, Bruno. The contribution of Alfred Verdross to the theory of international law. In: European journal of international law. p. 13 533 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 86 534 VERDROSS, op. cit., p. 97 535 VERDROSS, loc. cit. 536 VERDROSS, loc, cit.

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124

interno.”537 Por conseguinte, um tribunal internacional poderia impor a um Estado

que derrogue ou não aplique uma lei contrária ao direito internacional. E mesmo que

para um juiz estatal o direito interno preceda o internacional, Verdross enfatiza, “[...]

a precedência interna da lei sobre o D.I. é tão somente de caráter provisório [...]”,

uma vez que a lei estatal contrária ao direito internacional pode ser modificada ou

derrogada.538 Nesse sentido, Verdross refere-se ao caso de um Estado [prejudicado]

demandar contra um outro Estado [descumpridor do direito internacional]. O Estado

[descumpridor], então, por estar obrigado ao direito internacional, deve modificar ou

derrogar a lei contrária a este.539 Assim, o Estado [descumpridor] deve observar o

que determina o tribunal internacional: “Mediante este procedimento um conflito

originário entre o D.I. e o direito interno se resolve a favor do D.I.”540

Mesmo que adepto da teoria do monismo moderado, Verdross não

ignora argumentos que podem ser levantados para contrapor tal posicionamento.541

O primeiro argumento seria aquele de que o direito internacional geral não conhece

uma jurisdição obrigatória, uma vez que depende do reconhecimento prévio dos

Estados. Já o segundo argumento se refere à falta de um órgão unitário do direito

internacional que obrigue as partes, que comprove o ato ilícito internacional e, que

disponha da eliminação de uma lei que seja contrária ao direito internacional.

Segundo o autor, a ausência de órgãos centralizados pode ser considerada por

alguns como uma multiplicidade de direitos estatais externos.542 Não obstantes tais

argumentos, Verdross subsistiriam deveres jurídicos-internacionais competentes dos

Estados, conseqüentemente, vinculam os mesmos ao direito internacional. Nesse

sentido, Verdross cita como exemplo o dever de agir de boa-fé ao julgar qualquer

fato jurídico-internacional, bem como o dever de que nenhum Estado pode decidir

isoladamente um questão jurídico-internacional que venha a surtir efeitos para os

demais Estados.543 Ademais, esses deveres vêm ao encontro da alegação de que o

537 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 97. Livre tradução do original: Ningún Estado puede sustraerse a una obligación jurídico-internacional invocando su derecho interno. 538 Idem. Ibidem., p. 98. Livre tradução do original: […] la precedencia interna de la ley sobre el D.I. es tan solo de carácter provisional […]. Vale mencionar que este carácter provisório do direto interno, foi anteriormente abordado na secção 2.1.2.3, do presente trabalho, ao ser referida a característica de relativa falta de órgãos centrais, presente na ordem jurídica internacional. 539 Idem. Ibidem., p. 98 540 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: Mediante este procedimiento el conflito originario entre el D.I. y el derecho interno se resuelve a favor del D.I. 541 Idem. Ibidem., p. 103-104 542 Idem. Ibidem., p. 103 543 VERDROSS, loc. cit.

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direito internacional precederia normativamente o direito interno. Porém, a primazia

do direito internacional, “[...] somente poderá ser alcançada dando aos Estados a

possibilidade de fazer valer e executar sua faculdades jurídicos-internacionais

mediante um procedimento arbitral ou judicial.”544

Ainda a respeito da primazia do direito internacional, Verdross esta não

deveria ser confundida com outras questões, como aquela de saber se uma norma

jurídica internacional pode ser aplicada diretamente aos indivíduos.545 De acordo

com Verdross a esta questão dos indivíduos não cabe um resposta geral, uma vez

que dependeria da solução da controvérsia e da finalidade das respectivas normas

do direito internacional. Para o autor, qualquer previsão constitucional que venha a

reconhecer a aplicação direta das normas internacionais aos indivíduos não supre

tal finalidade das normas internacionais. Quer isso dizer que, as normas

internacionais somente poderiam ser aplicadas diretamente aos indivíduos se o

próprio direito internacional, por meio de seu conteúdo “[...] queira dar espaço a tais

direitos e obrigações.”546

Nesse contexto, Verdross discorre sobre o tratamento dado pelas

Constituições estatais à questão do direito internacional, mais precisamente, sobre a

possibilidade de uma Constituição estatal prever a aplicação imediata de uma norma

de direito internacional geral por um de seus respectivos tribunais, sem o intermédio

do direito interno, ou seja, sem que tal norma seja “expressa” como uma norma de

direito interno.547 Seria o denominado “princípio da aplicação imediata”. No entanto,

esse princípio não significaria que uma norma de direito internacional, contrária ao

direito interno, deva ser imediatamente aplicada pelo tribunal estatal. Segundo

Verdross, os tribunais estatais devem interpretar os preceitos jurídicos internos de

acordo com os internacionais, mas, se mesmo assim permanecer uma contradição,

os tribunais estatais devem aplicar sua lei própria. A aplicação imediata do direito

internacional, portanto, estaria limitada a não contrariar os dispositivos internos. Para

esse entendimento, Verdross refere-se a um outro princípio, de que as normas de

direito internacional integram parte do direito interno, justamente porque este

544 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 103. Livre tradução do original: [...] solo podría alcanzarse dando a los Estados la posibilidad de hacer valer y ejecutar sus faculdades jurídico-internacionales mediante un procedimiento arbitral o judicial. 545 Idem. Ibidem., p. 104 546 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: […] quieran dar lugar a tales derechos y obligaciones. De modo que, faltando esta vontade do próprio direito internacional […] no puede suplirla ninguna disposición constitucional, por bienintencionada que sea.” Cf.: VERDROSS, loc. cit. 547 Idem. Ibidem., p. 100

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princípio enuncia que as normas de direito internacional geral são “[...] equiparadas

as demais normas do direito interno, fazendo com que uma norma jurídica

internacional pode ver-se privada de eficácia interna por uma norma legal

posterior.”548 Disso resulta que, o direito interno isoladamente não poderia tender à

primazia das normas de direito internacional, “[...] por não poder descartar a

possibilidade de conflitos entre os Tribunais Supremos dos Estados e as instâncias

de decisão internacionais.”549

Por isso, Verdross entende como impróprias as Constituições estatais

que consideram o direito internacional como parte integrante do direito interno sobre

esses dois aspectos: prever a aplicação imediata de uma norma de direito

internacional; bem como condicionar a validade deste ao reconhecimento por parte

do direito interno.550 Tais concepções conduziriam à equivocada percepção de que o

direito internacional vincularia somente os Estados que o reconheceriam, assim

como, tais concepções expressariam certa ambigüidade caso a norma interna ao

reconhecer o direito internacional, reconheça também a superioridade deste.551

Enfim, no que concerne o tratamento de uma Constituição estatal

acerca da validade do direito internacional, Verdross adverte que a validade deste

independe de qualquer previsão constitucional: “[...] validade internacional do D.I.P.

na comunidade dos Estados depende exclusivamente da constituição de dita

comunidade e não da constituição deste ou daquele Estado.”552 Porém, que as

Constituições estatais poderiam dispor quanto aos meios de execução internos das

normas jurídico-internacional. Isso significa que os meios para por as normas

internacionais em prática, podem estar previstos nas Constituições,553 já que grande

548 VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 101. Livre tradução do original: […] equiparadas a las demás normas del derecho interno, por lo que una norma jurídico-internacional puede verse privada de eficacia interna por una norma legal posterior. 549 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: [...] por no poder destacar la posibilidad de conflictos entre los Tribunales Supremos de los Estados y las instancias de decisión internacionales. Pois um tribunal estatal pode negar a existência de uma norma de direito internacional e um determinado Estado, prejudicado com tal falta de reconhecimento, pode demandar em um procedimento jurídico-internacional o reconhecimento da norma em questão. In: VERDROSS, loc. cit. 550 Idem. Ibidem., p. 99 551 VERDROSS, loc. cit. 552 VERDROSS, loc. cit. Livre tradução do original: […] validez internacional del DIP em la comunidad de los Estados depende exclusivamente de la constitución de dicha comunidad y no de la constitución de este o aquel Estado. 553 VERDROSS, loc. cit. Nesse passo, Verdross enfatiza que a questão da “validade interna” de uma norma de direito internacional deve ser compreendida no sentido do “meio de execução” desta norma, pois “[…] el D.I.P. solo obliga a los Estados a cumplir sus normas, dejando, en cambio, a su apreciación la modalidad del cumplimiento.” Cf.: VERDROSS, loc. cit. Conseqüentemente, dessa livre adoção, por cada Estado, do meio de execução das normas do direito internacional diversos são os

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parte das normas de direito internacional não estabelecem um órgão próprio para

sua respectiva aplicação. Destarte, cabe a cada Estado determinar previamente qual

o órgão competente para tanto.554

Por último, o autor também aborda a questão da execução interna dos

tratados internacionais, também confiada ao direito interno de cada Estado, previsto

em sua Constituição. Desse modo, Verdross discorre sobre alguns dos sistemas

existentes.555 O primeiro corresponde ao princípio segundo o qual o tratado somente

tem eficácia interna quando executado por meio de uma lei ou regulamento, sem

questionar a primazia do direito internacional sobre as leis internas.556 Já outro

sistema, equipara os tratados internacionais às leis internas. No entanto, exige a

aprovação do Parlamento interno para a celebração do tratado.557 O terceiro sistema

consiste naquele pelo qual os tratados prevalecem sobre as leis internas.

Prevalecem, mas não é ignorada a possibilidade de ocorrer conflitos entre o direito

interno e o internacional, que se resolveriam por meio de um procedimento jurídico-

internacional. É este terceiro sistema que expressaria os enunciados da teoria do

monismo moderado.558

O direito, portanto, é concebido por Verdross como um sistema unitário

de normas jurídicas, no qual se identifica o direito fundamental da independência

política dos Estados. Independência tanto na condução de suas respectivas

políticas, interna e exterior, quanto em suas ordens internas. Porém, a

independência de tal ordem interna se evidencia mais em relação aos demais

Estados que em relação ao direito internacional. Pois, a autonomia do direito interno

passa a ser relativizada quando se considera a ordem jurídica internacional. Nesse

passo, tem-se a possibilidade da ocorrência de conflitos entre ambas ordens

jurídicas, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de as normas jurídicas internacionais

e internas comporem um sistema jurídico unitário. Segundo, devido à autonomia

relativa das normas jurídicas internas face ao direito internacional. Desse modo, na

sistemas internos decorrentes do modo escolhido para tanto. Verdross, então, menciona que “Uno de estos sistemas consiste en que toda norma jurídico-internacional en particular tiene que ser puesta en práctica por una ley o un reglamento en cada caso, para poder ser aplicada por los tribunales y autoridades administrativas.” Tal processo, segundo Verdross não corresponde à transformação do direito internacional em direito interno, mas sim na execução de uma norma superior pro uma norma inferior, a interna. In: VERDROSS, Alfred. Derecho internacional publico. p. 99 554 VERDROSS, loc. Cit. 555 Idem. Ibidem., p. 101 556 VERDROSS, loc. cit. 557 Idem. Ibidem., p. 102 558 VERDROSS, loc. cit.

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ocorrência de conflitos, qual ordem aplicar? Em resposta a tal indagação é que

Verdross enuncia a Teoria do Monismo Moderado, como a única possível de

corresponder à realidade jurídica, justamente por não descartar essa possibilidade

da ocorrência de conflitos entre normas jurídicas. Além disso, por tal teoria manter a

distinção, ou seja, a autonomia relativa entre ambas ordens jurídicas. Verdross

entende que, no primeiro momento, compete aos tribunais estatais a aplicação do

direito interno. Por um lado, a aplicação deste pode contrariar o direito internacional.

Entretanto, o direito interno compõe um sistema jurídico unitário juntamente com o

direito internacional, o qual precede normativamente o direito interno. Por isso, para

o autor, caso a aplicação de uma norma interna contrariar o direito internacional e

ainda lesar um outro Estado, este pode levar tal conflito para ser resolvido por meio

de um procedimento internacional de caráter judicial ou arbitral. A “moderação”

assim se expressa pela relativa autonomia da ordem jurídica interna perante a

internacional. No entanto, a concepção monista exige a eleição de uma de tais

ordens jurídicas como sendo hierarquicamente superior à outra. Enfim, é nesse

sentido que Verdross elege a primazia do direito internacional, uma vez que a

Grundnorm, a qual provoca a unidade do sistema jurídico, encontra-se na ordem

jurídica internacional. Ordem esta que precede, portanto, a existência do direito

interno, assim como, o sobrepõe na resolução de um possível conflito entre normas

jurídicas, interna e internacional.

2.2 A construção jurídica dualista acerca da relação entre direito internacional

e direito interno

2.2.1 Dualismo voluntarista segundo Karl Heirinch Triepel

Apontado como um dos precursores do positivismo voluntarista

clássico,559 o jurista alemão Karl Heinrich Triepel [1868-1949], contribuiu para a

559 Ao abordar a doutrinas internacionalistas do século XIX, Pellet destaca como expoentes da escola de positivismo voluntarista clássico dois autores alemães: Georg Jellinek [teorizador do direito público geral] e Karl Heinrich Triepel [internacionalista], destacando que tal escola “[...] define-se por dois

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construção do conhecimento jurídico internacional. Mesmo que revelador de um

nacionalismo acentuado, conforme destaca Koskenniemi,560 as peculiares

concepções de Triepel refletiram nos estudos do direito internacional.

Particularmente, deve-se a Triepel um minucioso estudo sobre a relação entre direito

internacional e direito interno,561 difundido no curso que ministrou na Academia da

Haia, em 1923, intitulado de “As relações entre o direito interno e o direito

internacional”, no qual Triepel expõe sua respectiva Teoria Dualista tradicional.562

O direito é concebido por Triepel como um conjunto de regras jurídicas,

cuja finalidade consiste em regular as relações presentes na sociedade.563 Para

tanto, tais regras expressariam um conteúdo de vontade superior às vontade

traços característicos: é estatista e voluntarista, por admitir que o Estado é a única fonte de direito e, por conseguinte, este último só pode depender da sua vontade.” Cf.: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 80. Nos dizeres de René-Jean Dupuy, “As escola voluntaristas ensinam a submissão do Estado ao Direito apenas como resultado da sua própria vontade. Para uns, a explicação deste fenômeno encontra-se na autolimitação do Estado pelo Direito (Jellinek); para outros (Triepel), as normas internacionais derivam do conjunto de objectivos pretendidos por tratados que exprimem assim uma vontade nova feita da união das vontades estaduais (Vereinbarung).” Vide: DUPUY, René-Jean. O direito internacional. Tradução de Clotilde Cruz. Coimbra: Livraria Almediana, 1993. p. 25 560 Ao que concerne ao nacionalismo acentuado de Triepel, destaca Koskenniemi tanto o fato de Triepel não se opor ao ensino, nas universidades alemãs, do direito internacional combinado com outros ramos do direito público, bem como o fato de Triepel deixar de ser membro do Institut de Droit International, em 1919, como forma de protesto contra o então firmado Tratado de Versalhes. Ver, a respeito: KOSKENNIEMI, Martti. International law as philosophy: Germany 1871-1933. In: The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960. p. 211 561 Ainda que os tribunais nacionais tenham sido considerados como os que se ocupam, assiduamente, de assuntos os quais uma questão de direito interno pode estar ligada a uma, de direito internacional, o exame de tal relação corresponde primeiramente a um interesse altamente teórico. Nesse sentido, “Tratar a fundo as relações entre os dois sistemas jurídicos, é tratar graves problemas da ciência jurídica geral, ou da filosofia do direito.” In: TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito, Belo Horizonte, MG, ano XVII, n. 6, out. 1966. p. 09 562 Além dos estudos voltados para a questão da relação do direito internacional com o direito interno, dentre outros trabalhos de Triepel, vale destacar a obra Völkerrecht und Landesrrecht, de 1899, considerada como referencial na produção acadêmica do mesmo. A propósito: TRUYOL y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. p. 117. Ademais, para Truyol y Serra, a referida obra pode ser considerada como a responsável por formular “La más célebre de las teorias pluralistas es la que podemos denominar dualismo clásico [...]. Nesse sentido, Truyol y Serra, ao discorrer sobre a relação entre o direito internacional e o direito interno refere-se a Triepel como aquele que dentre os representantes das “teorias pluralistas”, desenvolveu o “dualismo clássico”. In: Idem. Ibidem., p. 107. Cabe ainda ressaltar que outros aspectos, bem como as concepções de outro representante da Teoria Dualistas tradicional, serão objeto de abordagem do Capítulo 3, do presente trabalho. Nesta seção 2.2, se limita a trabalhar as concepções da Teoria Dualista tradicional propostas por Triepel. 563 Ainda que concebendo o direito com um conjunto de regras jurídicas, Triepel não as dissocia de noções sociológicas, pois o direito rege relações sociais. Destarte, “As relações sociais são a matéria, o direito é a sua forma. Regular as relações sociais; eis o objeto e o fim de todo o direito.” Cf.: TRIEPEL, op. cit., p.22

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individuais. Quer isso dizer que são limitadoras das vontades individuais:564 “A

formação da regras jurídica é, assim, uma declaração de vontade, declaração

segundo a qual alguma coisa deva passar a ser um direito.”565 Nesse passo, se tais

regras jurídicas expressam o conteúdo de uma vontade, esta vontade por sua vez

provém de algo. Segundo Triepel, provém de uma fonte jurídica.566

Nessa perspectiva, existiriam duas bases sob as quais se ergue a

distinção entre as regras jurídicas pertencentes ao direito interno e ao direito

internacional. Uma das bases teria por consideração a vontade de onde emanam

tais regras jurídicas. Isso significa, a questão da fonte do direito [direito estatal,

direito canônico e o direito costumeiro].567 Já a outra base, teria por consideração a

questão das relações sociais as quais as regras jurídicas regem [direito público e o

direito privado, o direito penal e o direito administrativo].568 Ademais, a partir dessas

duas bases, Triepel menciona a possibilidade de uma subdivisão de ambas, que

adota como critérios a mesma divisão principal, ou seja, há um direito penal italiano;

um direito penal inglês; e assim por diante.569 O autor ainda refere-se a certos

grupos de regras jurídicas que se distinguiriam das outras ao ser analisada a

totalidade das mesmas. A estas correspondem, segundo Triepel, as regras do direito

internacional570 e as regras do direito interno. Distinção decorrente tanto da questão

de fonte, quanto pelas particularidades das relações sociais que regem.571

564 Segundo Triepel, a diferença substancial entre a diversidade de regras jurídicas decorre da diversidade de direito e obrigações que tais regras dão vida. Cf.: TRIEPEL, Karl Heinrich. Diritto interno e diritto internazionali. Traduzione di Giulio Cesare Buzzati. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1913. p. 13-14 565 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 14 566 “Denominamos fonte jurídica a vontade de onde deriva a regra jurídica.” In: Idem. Ibidem., p. 14 567 Idem. Ibidem., p. 09 568 TRIEPEL, loc. cit. 569 Idem. Ibidem., p. 10 570 Vale, por ora, advertir que Triepel ao discorrer sobre as normas jurídicas de direito internacional refere-se àquelas de direito internacional público, e não de, privado. Nos dizeres de Triepel, “é preciso salientar, desde já, que não falamos senão do direito internacional público. Determinar o caráter do direito internacional privado seria tarefa à parte.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 11 571 Idem. Ibidem., p. 10. Ainda quanto a esse certos grupos, Triepel menciona o direito administrativo canônico, o qual distingue-se das demais regras jurídicas, “[...] tanto por sua fonte jurídica especial, como pela categoria particular de relações sociais que regem.” In: TRIEPEL, loc. cit.

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2.2.1.1 Da concepção de Estado

Enquanto representante da escola positivista voluntarista, Triepel

concebe o direito como um conjunto de regras jurídicas produzidas por uma

vontade. Tratar-se-iam, segundo Pellet, de regras impostas aos membros de uma

coletividade, sendo que a vontade que as produz decorre de um ser superior aos

membros desta coletividade.572 Superior, justamente porque tais regras jurídicas

seriam impostas a todos aqueles que a compõe. Ademais, para Triepel, essa

vontade além de superior é autônoma. Autônoma, uma vez que não está

subordinada ao conteúdo das regras jurídicas que produz.573 Logo, de acordo com o

autor, é o Estado esse ser superior, o qual expressa sua vontade por meio das

regras jurídicas. Entendimento este, que expressaria um voluntarismo estatalista e

autoritário.574 Combinação a qual iria ao encontro do sentido preciso do positivismo

jurídico575 e revelaria, segundo Quadros, a inspiração hegeliana e neo-hegeliana do

Estado como a mais alta encarnação do espírito objetivo.576

Contudo, a concepção de Estado exposta por Triepel pode decorrer de

uma percepção não só jurídica, mas também sociológica.577 Pois, de acordo com o

referido jurista, “O Estado é mais que um simples ponto de imputação. O Estado é

uma verdadeira personalidade; é personalidade independente, distinta da soma de

indivíduos que a compõem.”578 O fato de conceber o Estado enquanto pessoa, a

qual manifesta a vontade superior, não significaria o desvincular de qualquer noção

572 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 100 573 Idem. Ibidem., p. 101 574 PELLET, Alain ; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 101. Quanto a este voluntarismo estatalista e autoritário, Pellet ainda ressalta que o mesmo está em perfeita harmonia com a questão da soberania estatal. Cf.: PELLET, loc. cit. 575 Concernente a essa combinação, Pellet menciona o sentido preciso do positivismo jurídico, “[...] uma vez que o direito se baseia na vontade do Estado, só existem regras positivas fundadas sobre a sua vontade que são expressa e regularmente formuladas pelos órgãos do Estado tendo competência para exprimir a sua vontade, órgãos que sejam democrática ou autoritariamente constituídos. Ou seja, o critério do direito positivo assenta, para o jurista voluntarista, na competência do órgão que o elabora e na regularidade do procedimento utilizado para esse fim.” In: PELLET, loc. cit. 576 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 59 577 Nesse sentido, Triepel opõe-se a demais concepções, como a de Hans Kelsen, por exemplo, que separam a concepção de Estado das noções sociológicas, logo, “Não é justo dizer que é preciso, no interêsse da clareza metódica, separar as noções jurídicas das sociológicas. Ao contrário: não se pode fazer a menor idéia do direito sem pensar nas relações sociais por êle regidas.” Cf.: TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p.22 578 TRIEPEL, loc. cit.

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sociológica. O Estado, então, não deixaria de corresponder a um ente constituído

por uma população, um território e um governo. O que restaria enfatizado com tal

concepção é a personificação de um ente a fim de identificá-lo como fonte de uma

vontade.579 Personificar o ente estatal a ponto de condicionar o seu próprio

surgimento ao consentimento, a vontade, dos demais Estados levaria a considerar o

ato de “reconhecimento” como um quarto elemento constitutivo do Estado,580 além

dos elementos população, território e governo.

2.2.1.2 Da concepção de direito interno

Conforme mencionado, direito interno e direito internacional são

considerados por Triepel como conjunto de regras distintas. Distinção esta erguida

sobre duas bases. A primeira destas consiste na vontade de onde emanam tais

regras jurídicas. Isso significa, a questão da fonte jurídica. Desse modo, concernente

ao direito interno, esta fonte corresponderia ao Estado. Para Triepel, o direito interno

corresponde ao “[...] direito estabelecido por um Estado”.581 No entanto, o autor não

desconsidera outras regras, como as decorrentes do direito costumeiro; ou

decorrentes de corporações públicas; ou da autonomia das comunas. Contudo tais

regras poderiam ser consideradas, uma vez ressaltada que são estabelecidas no

interior de uma comunidade nacional.582 O que possibilita, por sua vez, a

identificação de um estado plural de direito, ou melhor, estado plural de direito

interno.583

579 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 570 580 PELLET, loc. cit. Os autores voluntaristas clássico, como Triepel, em oposição a concepção “declarativa”, representam a concepção “atributiva ou constitutiva” do surgimento do Estado, ou seja, segundo tal posicionamento a formação completa do Estado depende além dos três elementos, população, território e governo, de um quarto elemento, o reconhecimento. A existência de um Estado novo, portanto, fica condicionada a manifestação da vontade dos demais nesse sentido. Conseqüentemente, os demais Estados, perante este “[...] beneficiam assim de uma posição privilegiada, mesmo superior, visto que, sem o seu acordo, nenhum Estado novo pode participar como Estado na sociedade internaiconal.” Vide: Idem. Ibidem., p. 570-571 581 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p.10 582 TRIEPEL, loc. cit. 583 TRIEPEL, loc cit. Nesse sentido, Triepel adverte quanto à possibilidade de uma fonte secundário [concorrentes], no âmbito interno de um Estado, sendo que as várias fontes de direito disciplinam diversas relações de um mesmo indivíduo e não disciplinam às mesmas relações. A título de ilustração, Triepel menciona como por exemplo o casamento, segundo o qual há tanto um legislação

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Já a segunda base suporte que permitiria tal distinção consistiria,

segundo Triepel, nas relações sociais, ou seja, corresponde às relações sociais

regidas por determinadas regras jurídicas. A respeito do direito interno, Triepel,

menciona que a este compete reger as relações entre os súditos de um Estado.584

Súditos considerados como submetidos a este Estado. Nesse sentido, seriam “[...]

em primeiro lugar, indivíduos nacionais, ou estrangeiros, que estão sujeitos à

soberania do Estado, em razão apenas do fato de sua permanência em seu

território.”585

Por fim, vale mencionar que Triepel destaca duas espécies de regras

jurídicas estatais: uma de direito privado e outra de direito público.586 As primeiras

regem as relações entre os indivíduos de um Estado. Enquanto as de direito público

regem as relações entre o próprio Estado e seus respectivos súditos.587 Segundo

Triepel, o direito interno, portanto, corresponde àquelas regras jurídicas decorrentes

principalmente da vontade do Estado. Mas, conforme mencionado, não tão-somente

deste. Contudo, já as relações sociais que o direito interno rege correspondem, tão-

somente, as que envolvem os indivíduos.

2.2.1.3 Da concepção de direito internacional

A concepção de direito internacional apresentada por Triepel permite

identificá-lo como adepto ao voluntarismo. Além disso, Koskenniemi menciona que

esta, revela o seu nacionalismo acentuado, uma vez que para Triepel, o direito

estatal, quanto um a legislação canônica para o indivíduo que venha a se casar segundo as regras jurídicas provenientes de ambas as fontes. In: TRIEPEL, Karl Heinrich. Diritto interno e diritto internazionali. p. 17 584 Idem. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p.10 585 TRIEPEL, loc. cit. 586 TRIEPEL, loc. cit. 587 Idem. Ibidem., p.11. Nesse contexto, Triepel ainda discorre sobre as regras jurídicas decorrentes de um Estado as quais “[...] se referem também às relações entre seus súditos e os Estados estrangeiros, ou entre êstes e êle próprio. Mas trata-se ordinariamente de caso em que o Estado estrangeiro se apresenta no papel de simples particular, por exemplo, quando um govêrno se entrega ao comércio, ou à indústria.” Enfim, Triepel ressalta que em tais casos, “Seja como fôr, é certo que essas leis regulam relações entre sujeitos que o legislador crê poder considerar como lhe sendo submetidos.” Cf.: TRIEPEL, loc. cit.

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internacional representava um vazio preenchido pela vontade dos Estados.588 As já

referidas bases distintivas, também possibilitam a Triepel definir o direito

internacional. No primeiro caso, quanto às relações sociais, o direito internacional

rege as relações sociais que se estabelecem entre os Estados iguais,589 sendo que

o direito internacional não competiria as relações que ocorrem entre o Estado

federado e seus estados-membros. Bem como, não competiria as relações entre os

indivíduos e os demais Estados estrangeiros; ou entre indivíduos pertencentes a

Estados estrangeiros. Triepel, contudo, enfatiza que ao direito internacional compete

reger unicamente as relações dos Estados coordenados entre si,590 uma vez que o

indivíduo não pode ser considerado como sujeito do direito internacional.591 Nem os

demais grupos sociais existentes no interior dos Estados, podem ser considerado

sujeitos do direito internacional.592 O direito internacional, portanto, rege somente as

relações entre os Estados iguais, logo, coordenados.593

A segunda base distintiva, ou seja, a fonte jurídica, também vem

identificada, pelo autor, como uma fonte própria do direito internacional, ou seja, o

588 KOSKENNIEMI, Martti. International law as philosophy: Germany 1871-1933. In: The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960. p. 211 589 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 11 590 Idem. Diritto interno e diritto internazionali. p. 21. De modo que, para Triepel, as relações jurídicas entre os Estado coordenados entre si são de natureza individualista, privada. Enquanto que as relações jurídicas entre um Estado soberano e um Estado subordinado são de natureza pública. Vide: TRIEPEL, loc. cit. 591 Idem. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 12. Nesse sentido, Triepel alude “O particular, do ponto-de-vista de uma comunidade de direito que prende os Estados como tais, é incapaz de ser investido de direitos e deveres próprios, decorrentes do sistema jurídico dessa comunidade.” Desse modo, ressalta Triepel “Não se pode conceber o indivíduo no quadro do direito internacional propriamente dito, senão como objeto de direitos e deveres internacionais.” In: TRIEPEL, loc. cit. Acerca de tal questão do indivíduo enquanto sujeito do direito internacional, Triepel, tendo em consideração o período deste seu trabalho, 1923, menciona que tanto a previsão que permite o particular a apresentar recurso perante a Corte Internacional de Presas, quanto ao acesso a um tribunal de um Estado estrangeiro, dependem primeiramente da vontade dos Estado se conceder a referida permissão. Logo, ainda assim, o indivíduo não pode ser considerado sujeito do direito internacional pois, ainda está condicionado à vontade do Estado. Cf.: Idem. Ibidem., p. 12-13. Nesse sentido, Triepel considera como equivocada o termo “direito internacional privado”, por este voltar-se principalmente para reger relações entre particulares, indivíduos, não sujeitos do direito internacional. Tais regras compõem então o direito interno-internacional, conforme será posteriormente abordado. Desse modo, o “direito internacional privado” não corresponderia a um verdadeiro direito internacional, tendo em vista que somente os Estados são sujeitos desse. Vide: Idem. Diritto interno e diritto internazionali. p. 26 592 Idem. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 13. Dentre tais grupos sociais, Triepel destaca “[...] as comunas, as associações comerciais, as companhias de estrada de ferro, por exemplo, pouco importando se sejam, ou não dotadas de personalidade jurídica, que prestem, ou não, serviço público.” 593 TRIEPEL, loc. cit. Contudo, Triepel não descarta a possibilidade de uma alteração na identificação dos sujeitos do direito internacional, como bem demonstra na seguinte alegação “Talvez a dissolução ameaçadora do Estado moderno coloque grandes grupos econômicos em lugar dos Estados, e produza, por conseguinte, um direito internacional inteiramente nôvo.” Cf: TRIEPEL, loc. cit.

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ente que emana a vontade superior de onde derivariam as regras jurídicas

internacionais.594 Isso significaria a identificação um ente sem ignorar, conforme

ressalta Giuliano, a ausência de um Estado superior, ou melhor, supra-ordenado aos

demais Estados.595 Triepel, então, adverte que tal vontade não pode decorrer de um

único Estado, nem de leis internas concordantes de um determinado grupo de

Estados, tendo em vista a pluralidade de Estados membros da comunidade

internacional.596 Enquanto, voluntarista, as regras jurídicas internacionais

dependeriam do consenso dos Estados,597 transcendendo a vontade de um Estado

singular.598 De acordo com o autor, o único meio possível de preencher esta vontade

consistiria na “vontade comum”. Vontade comum proveniente da união das vontades

particulares dos Estados.599 O que Triepel assim denomina de die Vereinbarung, ou

seja, uma união de vontades,600 expressando interesses iguais e comuns.601 A

Vereinbarung602 seria portanto encontrada nos “[...] tratados pelos quais vários, ou

594 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 14. Nesse contexto, vale mencionar que segundo Koskenniemi a identificação do direito como um produto da vontade legislativa concebida por Triepel, foi amplamente compartilhada por muitos internacionalistas, não tão-somente da Alemanha. Tal aceitação se deu a ponto de Koskenniemi ressaltar “Law became psychology writ large: to know it was to see it as the effect of a human voluntas.” A propósito: KOSKENNIEMI, Martti. International law as philosophy: Germany 1871-1933. In: The gentle civilizer of nations: the rise and fall of international law 1870-1960. p. 190 595 GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. p. 80 596 Mesmo que representante da escola voluntarista, André Lupi comenta que Triepel “[...] critica a teoria da autolimitação, pois esta não explica como a vontade do Estado pode criar um direito entre o Estado emissor da vontade e outro Estado.” Uma vez que, para Triepel essa vontade superior não decorreria de um único Estado, nem de leis internas concordantes destes. Vide: LUPI, André Lipp Pinto Basto. O costume como fonte do direito internacional. In: ______. Os métodos no direito internacional. São Paulo: Lex, 2007. cap. 2. p. 69 597 CASANOVAS, Oriol. Unity and pluralism in public international law. p. 21 598 MORELLI, Gaetano. Nozioni di diritto internazionale. 7. ed. Padova: Dott. Antonio Milani, 1967. p. 12 599 TRIEPEL, op. cit., p. 14. Nos dizeres de Triepel, “Só pode ser fonte de direito internacional uma vontade comum, de vários, ou numerosos, Estados.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 14-15 600 Ao utilizar a expressão Vereinbarung, Triepel ressalta a distinção que há na doutrina alemã entre esta é o vocábulo der Vertrag, uma vez que este, representa os contratos os quais são “[...] acôrdos firmados entre várias pessoas para declarações de vontades de conteúdos opostos.” Enquanto que a Vereinbarung expressa uma verdadeira união de vontades, logo, de vontades comuns. In: Idem. Ibidem., p. 15. Quanto a tal distinção de significados, Truyol y Serra ao discorrer sobre a referida Vereinbarung concebida por Triepel, menciona que tais termos alemães, Vereibarung e Vertrag, são equivalentes, a diferença entre ambos resultou da doutrina ao considerar uma convergência de vontades na Vereibarung. Ver, a respeito: TRUYOL y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. p. 117. Já Giuliano refere-se àquela distinção apresentada por Triepel destacando a Vereibarung como um tratado-acordo ou tratado-normativo e o Vertrag com uma tratado-contrato. In: GIULIANO, Mario.op. cit., p. 80 601 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 63 602 A respeito de tal proposta de Triepel de uma Vereibarung, Koskenniemi ainda que referindo-se a mesma como uma tentativa de Triepel seguir uma direção mais internacionalista, considera que a referida proposta do jurista alemão falhou enquanto construção intelectual de um domínio autônomo e cultural do direito internacional. Vide: KOSKENNIEMI, op. cit., p. 211. A respeito da Vereibarung,

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um número determinado, de Estados que adotam regras jurídicas que devem reger

sua conduta de modo permanente, ou seja, direito objetivo, ou por meio de uma

declaração tácita de vontades, ou seja, direito internacional costumeiro.”603 Gaetano

Morelli comenta que nessa vontade coletiva, o Estado encontra uma vontade

superior e diversa da sua considerada individualmente, tornando impossível que um

Estado se desligue das obrigações que da mesma decorrem.604 Nessa perspectiva,

também Pellet destaca que a respeito do fundamento do costume internacional, a

Vereibarung, expressaria assim o enunciado da teoria do acordo tácito, contrapondo

a doutrina da formação espontânea do direito costumeiro,605 teoria a qual é

defendida por juristas italianos, como Roberto Ago.606

Ainda que negada por autores como Santi Romano, a Vereinbarung é

referida por Paul Reuter como um elemento medular da teoria dos tratados ao

enfatizar a vontade comum para alcance de objetivo idêntico.607 O que

corresponderia a finalidade dos tratados multilaterais tão recorridos no hodierno

direito internacional.608 Além disso, Quadros menciona que a teoria da Vereibarung

foi adotada pela moderna doutrina soviética do direito internacional,609 representada

pelo professor Grigory Tunkin, entendendo que as vontades dos Estados capitalistas

Pellet discorre sobre algumas críticas feitas a esta concepção de Triepel, como por exemplo, a falta de demonstração quanto à proibição de um Estado retirar-se da Vereibarung após o ingresso para melhor explicar a superioridade dessa vontade comum frente à vontade isolada, como também a falta de menção de Triepel a um possível órgão superior competente para a unificação de tais vontades. In: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 104. Acerca das demais críticas à Vereibarung, consultar: GIULIANO, Mario. La comunità internazionale e il diritto. p.82 603 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 15 604 MORELLI, Gaetano. Nozioni di diritto internazionale. p. 12 605 PELLET, op. cit., p. 329-330. Nessa perspectiva, Quadros critica a teoria voluntarista ao considerar o costume com uma “pacto tácito”, alegando o “[...] o artificialismo desta construção: [...] quando um novo Estado entra na Comunidade Internacional fica vinculado a todo o Direito consuetudinário comum, para o qual, na realidade, a sua vontade em nada contribui.” Vide: QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 65 606 Cabe advertir que as concepções de Roberto Ago, inclusive quanto ao costume internacional, serão abordadas na secção 3.3.2.1, do presente trabalho. 607 REUTER, Paul. Introducción al derecho de los Tratados. Tradução de Eduardo L. Suárez. .México: Fondo de Cultura Económica , 1999. p. 15 608 Nesse sentido, Reuter ao discorrer sobre o desenvolvimento histórico do fenômeno convencional, ou seja, dos tratados, ressalta que [...] los tratados multilaterais y las organizaciones internacionales constituyen los fatores principales de la evolución del fenómeno convencional, y ambos son el resultado de la creciente solidaridad internacional. Vide: REUTER, loc. cit. 609 Segundo Quadros, seria “[...] uma doutrina característica da fase pós-estaliniana, ou seja, da coexistência pacífica entre capitalismo e socialismo, e que depois se consolidou na era da Perestroika.” In: QUADROS, op. cit. p. 64

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e socialistas, ainda que divergentes, “[...] tendiam para um fim comum e estavam

condicionadas uma à outra.”610

O direito internacional, portanto, é concebido por Triepel como um

conjunto de regras jurídicas peculiares. Regras as quais, regem as relações sociais

que envolvem unicamente os Estados, soberanos e coordenados, entre si. Como

também, emanam da vontade comum dos mesmos. Nesse contexto, a Vereibarung

corresponderia à expressão dessa vontade comum. E, conseqüentemente,

fundamentaria o direito internacional em um voluntarismo multilateral.

2.2.1.4 Da relação entre direito internacional e direito interno

Uma primeira questão que se deve levar em conta quanto à

abordagem de Triepel acerca da relação entre direito internacional e direito interno

consiste na já referida distinção entre regras jurídicas do direito internacional e

regras jurídicas do direito interno. Triepel parte, portanto, da concepção de que

ambos são noções distintas611 e não somente ramos ou partes distintas do direito.

Mas sim, de que ambos são sistemas jurídicos diferentes.612 Por isso, ainda que em

íntimo contato, tais sistemas jurídicos jamais se superpõem. Uma vez que cada um

rege relações sociais distintas, bem como provém de fontes jurídicas diferentes. A

essa leitura dicotômica da relação entre o direito internacional e o direito interno

Triepel a denomina de “Teoria Dualista”,613 a qual projetaria, segundo Halajczuk, o

nacionalismo.614 Consoante os enunciados desta, jamais ocorreria certa

concorrência entre as regras decorrentes de tais fontes distintas.

610 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. P. 64. Quadros, então, enfatiza que o núcleo essencial dessa moderna doutrina soviética “[...] enunciava-se, pois, do seguinte modo: a força obrigatória do Direito Internacional deriva de vontades divergentes mas que prosseguem um fim comum e se condicionam reciprocamente.” 611 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 09 612 Idem. Ibidem., p. 15 613 Idem. Ibidem., p. 18. Segundo Valério de Oliveira Mazzuoli, “Foi Alfred von Verdross quem, em 1914, cunhou a expressão ‘dualismo’, a qual foi aceita por Karl Heinrich Triepel, em 1923, seguido posteriormente por Strupp, Walz, Listz, Anzilotti, Balladore Pallieri e Alf Ross.” Vide: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Relações entre o direito internacional público e o direito interno estatal. In: Curso de direito internacional público. p. 47 614 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. p. 33. Ao contrário do monismo o qual, para Halajczuk, projetaria o cosmopolitismo e o universalismo.Vide: HALAJCZUK, loc. cit.

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Conseqüentemente, se descarta a possibilidade da ocorrência de conflitos entre as

mesmas.615 Portanto, o que há é uma situação de dualidade, dois sistemas jurídicos

distintos e independentes.616

Desse modo, Triepel concebe o direito internacional como um sistema

jurídico diferente do direito interno. Seja pelas distintas relações sociais que rege,

seja pelas distintas fontes jurídicas. Um se apresentaria como “fato” para o outro e

não como um ordenamento jurídico.617 Contudo, o autor não ignora as possíveis

relações recíprocas que ocorrem entre os mesmos,618 divididas em duas formas não

excludentes: as relações entre as fontes; e as relações entre os conteúdos do direito

internacional e do direito interno.619 Quanto às primeiras,620 somente em um caso

isso seria possível, ou seja, no caso de uma fonte preponderante poder ordenar uma

outra fonte inferior a: criação de regras621 e direito; a regulamentação de certas

615 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 16. Nesse contexto, Dupuy ao comentar que os adeptos ao voluntarismo naturalmente são levados ao dualismo, destaca que além das duas já mencionadas por Triepel, uma terceira divergência entre as duas ordens jurídicas então separadas corresponde “a estrutura das ordens jurídicas”. Nos dizeres de Dupuy, “[...] a das fontes do Direito – uma resulta do conteúdo internacionalista dos Tratados, a outra da Constituição interna; a dos sujeitos de Direito: Estado para a primeira, indivíduos para a segunda; a das estruturas das ordens jurídicas: uma leva a descentralização ao ponto de recusar toda e qualquer autoridade superior aos Estados, a outra (o Estado) é sempre suficientemente centralizada para que uma autoridade organizada condicione os governados.” A propósito: DUPUY, René-Jean. O direito internacional. p. 25. De tais divergências entre os dois sistemas jurídicos, Rigaux menciona que Hans Kelsen, ao abordar sua teoria monista, refutava principalmente a concepção de Estado proposta por Triepel no contexto da teoria dualista, particularmente sob dois pontos: primeiro por Kelsen identificar direito e Estado, não sendo este fonte daquele, e em posteriormente que os atos estatais na ordem internacional eram considerados como um direito subjetivo, e não uma manifestação da pessoa, Estado. Cf.: RIGAUX, François. Hans Kelsen on international law. In: European journal of international law. p. 03 616 Triepel assim refuta qualquer concepção monista que unifique a fonte dos dois sistemas jurídicos, internacional e interno, bem como que considere a possibilidade de conflito entre regras jurídicas do direito internacional e o direito interno. In: TRIEPEL, op. cit., p. 18-24. E quanto aos tratamentos de Constituições estatais no sentido de considerar o direito internacional como parte do direito interno, Triepel adverte que tal posicionamento significa que direito internacional será parte do interno somente na medida em que este o adotar, ou seja, que o direito internacional se converteu em interno, em virtude de uma regra jurídica interna, sendo necessário a intervenção do poder estatal, o que não deixa de expressar certo dualismo. Cf.: Idem. Ibidem., p. 25-27. Tendo em vista tais posicionamentos Triepel ressalta “Insistimos, por conseguinte, na tese: como a fonte do direito interno é a vontade de um só Estado, e como a fonte do direito internacional é a vontade comum, de vários ou se numerosos Estados, trata-se de dois sistemas jurídicos diferentes.” In: Idem. Ibidem., p 21 617 MORELLI, Gaetano. Nozioni di diritto internazionale. p. 75 618 TRIEPEL, op. cit., p. 28 619 TRIEPEL, loc. cit. 620 A partir da concepção de fonte jurídica como vontade jurídica, Triepel menciona que a relação existente entre a fonte do direito interno e a fonte do direito internacional somente pode ser considerada importante quando “[...] por motivos jurídicos, uma se encontra em face da outra em relação de dependência, isto é, quando a vontade criadora do direito deva ser considerada como jurídicamente determinável pela vontade que constitue a outra fonte jurídica.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 43 621 Quanto a tal ordenação do direito internacional para que o direito interno produza determinadas regras jurídicas, Triepel reitera o direito internacional diversas vezes é obrigado a recorrer ao direito interno para o desempenho de sua tarefa. Por conseguinte, Triepel menciona que uma única regra

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matérias; e, a proibição de legislar em certas direções, sem que a violação desta

proibição resulte em nulidade de tal regra jurídica.622 Já acerca das relações

recíprocas quanto ao conteúdo,623 Triepel destaca: a recepção de direito estrangeiro

e a apropriação do direito estrangeiro. A respeito da recepção do direito estrangeiro,

jurídica internacional pode produzir inúmeras ordens de direito interno, todas estas ordens com a finalidade comum de “[...] realizar o direito internacional na vida interior do Estado.” Cf.: TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 46. Nesse contexto, todo sistema jurídico estatal divide-se nas seguintes categorias: direito interno internacionalmente relevante e direito interno internacionalmente indiferente. Particularmente, quanto à primeira categoria a relevância se dá, pois há a manifestação de um direito e de um dever do Estado, sendo que esta categoria se subdivide, quanto à atividade dos governantes ao que concerne a sua legislação, em direito conforme [autorizado e ordenado, pelo direito internacional] e em direito contrário ao direito internacional. Triepel então atribuir maior importância ao direito conforme ordenado, uma vez que este além de significar um meio para que a vida social se desenvolva de certa maneira, corresponde a “[...] todo direito interno cuja criação se apresente como cumprimento de dever internacional, ou então o direito que o Estado criou sem ser em cumprimento dêsse dever, mas que seja agora obrigado a conservar.” De modo que caso algum Estado descumpra tal dever, cometerá um “delito internacional permanente”. Vide: Idem. Ibidem., p. 49 e 51. Acerca desse direito conforme ordenado, Triepel ainda o divide entre: direito interno imediatamente ordenado [uma regra jurídica, ou tratado, impõe ao Estado o dever de ter, criar, determinado direito, e o Estado cumpre] e direito internacionalmente indispensável [atos que o Estado toma, como de governo, administrativos ou judiciais, para realização do ato que o direito internacional ordena, por exemplo, o Estado é “[...] obrigado por prescrições do direito internacional a punir alguns crimes; segundo o princípio nulla poena sine lege, o ato ordenado pelo direito internacional não pode ser realizado sem a existência da lei penal estatal; por conseguinte, não é principalmente o direito internacional, mas o direito interno, que força o legislador a agir.” O direito internacionalmente indispensável não será o mesmo em todos os Estados por depender do número e da intensidade das relações internacionais que este estabeleça.]. Cf.: Idem. Ibidem., p. 46-60. Contudo, Triepel ainda ressalta que a divisão do sistema jurídico estatal nas duas categorias anteriormente mencionadas, direito interno internacionalmente relevante e direito interno internacionalmente indiferente, não coincide com uma outra divisão que há no sistema jurídico estatal, qual seja, o direito interno-internacional e o resto do direito interno. Nessa distinção, aquele, o direito interno-internacional, diz respeito às relações internacionais sendo que há uma parte neste que é internacionalmente indiferente, como por exemplo, o direito internacional privado e o direito penal internacional. Enquanto que na parte correspondente ao resto do direito interno, há um direito interno que é internacionalmente relevante, como por exemplo, “A Suécia e a Noruega, enquanto ligadas por uma união real, eram reciprocamente obrigadas a ter o mesmo rei: o direito da sucessão ao trono que, por êste motivo, ambas deviam conservar, era internacionalmente importante, mas não interno-internacional.” In: Idem. Ibidem., p. 47. Por fim, após a explanação quanto a tais distinções do sistema jurídico interno, Triepel alude que a questão da responsabilidade do Estado corresponde a principalmente função prática do direito internacionalmente indispensável, uma vez que esta responsabilidade do Estado, de caráter territorial, “[...] nasce mais frequentemente de atos de seus súditos, para falar com maior precisão, de atos de pessoas que se encontrem em seu território [...].” In: Idem. Ibidem., p. 61 622 Idem. Ibidem., p. 45. Acerca dessa relação de preponderância de fontes, Triepel ressalta que somente nesse sentido é “[...] que se manifesta a qualidade, que possui o direito internacional, de ser um sistema jurídico superior ao direito interno. Se o Estado é investido pelo direito internacional, de direitos e deveres, estes direitos e deveres internacionais podem referir-se à atividade consagrada pelo Estado à criação de seu direito objetivo.” Cf.: TRIEPEL, loc. cit. 623 No tocante as relações recíprocas sob a forma de conteúdo, Triepel menciona que estas podem se dar tanto pelas semelhanças, como também pela diferença de seus respectivos conteúdos, sendo que Triepel opta por trabalhar a questão das semelhanças, uma vez que “Se se fizer abstração das questões jurídico-políticas, ou jurídico-históricas, será mais importante estabelecer a similitude de duas ordens jurídicas, que sua diferenças.” Ao voltar-se, portanto, para a questão das semelhanças de conteúdo, Triepel ressalta que a manifestação jurídica desta semelhança, por meio das regras jurídicas de cada sistema, não ocorre modo simultâneo. Pois esta semelhança corresponde a uma reprodução, onde uma foi produzida anteriormente a outra. Cf.: Idem. Ibidem., p. 28

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tal relação ocorreria em raríssimos casos, porque “Não se pode naturalmente falar

de recepção do direito internacional pelo Estado, a não ser que o conteúdo da regra

de direito internacional corresponda exatamente ao conteúdo da regra jurídica

internacional; tôda modificação do direito exclui a noção de recepção jurídica.”624

Isso significa que, recepção corresponderia a “reprodução integral” do conteúdo de

uma regra jurídica pertencente a um sistema jurídico em uma regra jurídica

pertencente a outro sistema. O que ocorreria é a “reprodução integral”. Por outro

lado, concernente à apropriação do direito estrangeiro, não ocorreria a reprodução

integral. O que ocorre nessa relação é a “conversão do conteúdo” de uma regra

pertencente a um sistema jurídico em uma regra pertencente ao outro sistema

jurídico. Quer isso dizer que o conteúdo de uma regra jurídica internacional se

converteria em conteúdo de uma regra jurídica interna. No entanto, Triepel também

ressalta a excepcionalidade desta questão, a qual denomina de “apropriação”.625 O

624 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 34. Logo, para Triepel, expressões como aceitação, apropriação e incorporação somente poderiam ser consideradas como sinônimos de recepção, se corresponderem ao sentido pelo autor atribuído, ou seja, de um reprodução exata do conteúdo da regra jurídica de um sistema, em uma regra jurídica de um outro sistema. Cf.: TRIEPEL, loc. cit. Contudo, Triepel adverte que há outras formas de receber uma regra do direito estrangeiro, mas não no sentido anteriormente exposto, ou seja, de reprodução integral, ainda que tais formas sejam comumente denominadas com aquelas expressões sinônimas de recepção. Conforme Triepel, quatro são essas formas: 1) por meio de uma convocação explícita de regras jurídicas expressamente formuladas por outra fonte (quando um Estado incorpora integralmente uma lei de um outro Estado, por exemplo); 2) por aceitação expressa, quando “[...] expressamente estabelecido que certos fatos devam ser regidos como certos outros ou sejam por outra fonte jurídica, sem que o conteúdo das normas desta última seja mencionado no regulamento.”, sendo que tais fatos não correspondem ao mesmo em questão; 3) por meio do reenvio tácito, quando a primeira fonte pode reenviar ao direito formulado de uma segunda fonte, para que certos fatos venham a ser regidos como certos outros o sejam na primeira fonte, sem que o conteúdo das regras desta restam por mencionados no regulamento; e, por fim, 4) por meio do reenvio também tácito, quando a primeira fonte pode reenviar ao direito, por ora, não formulado de uma segunda fonte, para que certos fatos venham a ser regidos como certos outros o sejam na primeira fonte, sem que o conteúdo das regras desta restam por mencionados no regulamento. Quanto a essas três últimas formas, Triepel menciona que na Alemanha as mesmas são denominadas de “[...] regras jurídicas por assinatura em branco, que operam recepção de direito.”, sendo que tal recepção não corresponde a uma reprodução na integra da regra jurídica estrangeira, pois qualquer modificação no conteúdo já não se trata de tal recepção, no sentido atribuído por Triepel. Nesse passo, Triepel ainda adverte quanto à confusão que é feita entre tais regras jurídicas em branco que recepcionam o direito estrangeiro, mas não no sentido de reprodução integral, das “regras jurídicas por assinatura em branco que não operam recepção”, ou seja, regras que reenviam ao direito estrangeiro, mas não se apropriam de seu conteúdo. Neste caso, a título de ilustração Triepel refere-se caso “[...] o código civil francês dispuzer: ‘a mulher francesa, que se casar com um estrangeiro, seguirá a condição de seu marido’, será evidente que êsse código não incorpora, no direito francês, o conteúdo das leis estrangeiras que regem as condições dos homens que se casam com mulheres francesas.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 28-29. Ressalta-se que, por corresponderem a relações recíprocas, a recepção, tanto no sentido de reprodução integral ou não, pode ocorrer dar tanto do direito internacional pelo direito interno, como do direito interno pelo direito internacional. 625 Idem. Ibidem., p. 17. Concernente a apropriação, Triepel menciona que essa conversão do conteúdo de uma regra jurídica de direito internacional, em direito interno, não pode ser concebida como uma simples translação de uma regra de direito internacional para o direito interno. Logo, “Não

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caráter de exceção da apropriação ocorre justamente porque “[...] jamais a formação

do direito internacional público pode substituir a formação do direito interno [..]”.626

Bem como, o direito interno não pode produzir uma regra jurídica internacional,627

uma vez que, para Triepel, há independência entre as respectivas fontes jurídicas.

Por isso, um tratado, firmado por um Estado, teria apenas validade internacional,

sendo obrigatório somente para os Estados e não para os seus respectivos

súditos.628

Dessas duas formas de relações entre sistema jurídico internacional e

sistema jurídico interno vale ressaltar uma outra questão, expressiva para a

concepção dualista, ou seja, a não subordinação das fontes jurídicas, e o

conseqüente não condicionamento de validade. De acordo com Triepel, este

condicionamento somente é possível caso a fonte superior “[...] que decide da

existência, ou inexistência, de uma regra jurídica, esteja em relação imediata com os

sujeitos aos quais o autor dessa regra se dirige.”629 O que, portanto, não ocorreria na

relação de preponderância da fonte jurídica internacional, sobre a interna. Uma vez

que nessa relação a fonte internacional vincula os Estados, e não os súditos deste

os quais não são considerados sujeitos do direito internacional.630 Por isso que,

consoante Triepel, os titulares das funções públicas, como os juízes, por exemplo,

“[...] são todos obrigados a aplicar o direito interno, mesmo contrário ao direito

internacional.”631 O direito internacional vincularia tão-somente seus sujeitos, os

Estados.

se trata, em semelhante “apropriação”, de recepção, mas de reprodução sob forma modificada.” Nesse sentido, a título ilustrativo Triepel refere-se a questão do Tratado de Extradição o qual obriga um Estado a entregar um criminoso, sendo que compete a lei interna de execução obrigar “[...] as autoridades policiais a se apoderarem do criminoso refugiado, e as aurotiza a remeter o malfeitor para o estrangeiro.” Vide: TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 17 626 TRIEPEL, loc. cit. Triepel então enfatiza “Um tratado de direito internacional não é, portanto, em si mesmo, meio de criação do direito interno; jamais.” In: TRIEPEL, loc. cit. 627 Idem. Ibidem., p. 18 628 Idem. Ibidem., p. 17. Destaca então Triepel “[...] é inexato dizer que a publicação do tratado o torna obrigatório para os súditos do Estado: não é o tratado, é a norma estatal, criada talvez pelo simples meio de publicação do tratado, que é obrigatória para os súditos do Estado.” Cf.: TRIEPEL, loc. cit. 629 Idem. Ibidem., p. 44 630 TRIEPEL, loc. cit. Adverte, enfim, Triepel “Deve-se, então, desde logo, afastar tôda tentativa de considerar como nula uma lei realmente, ou aparente, contrária ao direito internacional; e a máxima – lex posterior derogat legi priori – é tão inaplicável ao direito internacional recente, em relação ao direito interno mais antigo, quanto ao direito interno recente, em relação ao direito internacional mais antigo.”Cf.: TRIEPEL, loc. cit. 631 Idem. Ibidem., p. 45. Concernente a tal questão Triepel ainda menciona que “Certamente, existe presunção geral de que o direito interno é conforme às regras de direito internacional, e o juiz nacional tem de levar isto em consideração; entretanto, se a presunção fôr desfeita, não é permitido

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As diferentes construções jurídicas acerca da relação entre direito

internacional e direito interno revelam que diversas podem ser as leituras do

encontro de concepções tais como “direito”, “Estado”, “direito interno” e “direito

internacional”. Leituras essas que se expressam por meio dos enunciados das

diferentes teorias sobre tal relação. Portanto, quando o direito é concebido como um

sistema unitário de normas jurídicas, constituído tanto pelas normas jurídicas

internacionais quanto pelas normas jurídicas internas, no qual a Constituição estatal

corresponderia à norma última de validade, do encontro dessas concepções resulta

o enunciado da Teoria Monista de primazia do direito interno.

Quando o direito, por sua vez, é concebido como um sistema de

normas jurídicas, provenientes tanto da ordem jurídica internacional quanto da

ordem jurídica interna, no qual o direito natural produzido no âmbito da comunidade

internacional corresponde à norma última de validade, do encontro dessas

concepções resulta o enunciado da Teoria Monista de primazia do direito

internacional.

Por outro lado, quando o direito internacional e o direito interno são

concebidos como um conjunto de regras jurídicas distintas, as quais tanto decorrem

de fontes jurídicas distintas quanto regem relações sociais distintas, do possível

encontro dessas concepções resulta o enunciado da Teoria Dualista. Nesse passo,

do encontro das concepções de direito, Estado, direito interno e direito internacional

propostas por Santi Romano, na obra O Ordenamento Jurídico,632 também resulta

uma peculiar leitura. Leitura da relação entre o ordenamento jurídico internacional e

o ordenamento jurídico interno, expressa por meio do enunciado da teoria a qual

abordar-se-á na secção seguinte.

ao juiz colocar o direito internacional acima do direito de seu próprio país.” In: TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Revista da Faculdade de Direito. p. 45 632 Cabe, por ora, mencionar que as concepções romanianas de direito, Estado e direito interno já foram apresentadas no Capítulo 1, do presente trabalho, reservando-se, portanto, a concepção romaniana de direito internacional, bem como sua respectiva leitura da relação que se dá entre o este e o direito interno para o Capítulo 3, do mesmo.

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3 O DUALISMO DE PREEMINÊNCIA INTERNACIONAL

As concepções como “direito”, “Estado”, “direito interno” e, “direito

internacional”, conforme já mencionado, são imprescindíveis para que se possa

definir como ocorre a relação entre direito internacional e direito interno. Diferentes

foram as construções jurídicas acerca desta relação, devido à diversidade e à

peculiaridade de tais concepções. Santi Romano ao propor estas mesmas

concepções por meio da doutrina “institucionalista” forneceu uma contribuição

importante para a compreensão de como ocorre tal relação. A partir das concepções

institucionalistas de Romano, na presente secção tentar-se-á demonstrar qual é a

leitura de Romano acerca da relação entre os ordenamentos jurídicos internacional e

interno. Tentar-se-á ainda destacar a contribuição desses ensinamentos de Romano

para a formação da escola antiformalista italiana de direito internacional, analisando

nesta a relação entre direito internacional e direito interno. Em particular, serão

analisados os modos como Roberto Ago, Riccardo Monaco e, Piero Ziccardi, todos

representantes da escola antiformalista italiana de direito internacional, concebem tal

relação.

3.1 A noção romaniana do ordenamento jurídico internacional

Santi Romano entende que para qualquer proposta de definição de

direito a ser apresentada, se deve partir da questão do direito internacional. Por

conseguinte, ao propor a definição “institucionalista” do direito, Romano não se

esquivou de apreciar essa questão.633 Por isso, constrói sua definição de direito

633 No tocante à questão da existência do direito internacional, Romano, nem a discute e, conseqüentemente, afasta qualquer ceticismo nesse sentido. Consoante suas palavras “De fato, não nutrimos dúvidas quando consideramos errôneas ou incompletas as definições que chegam a negar o

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fazendo com que o mesmo não seja reduzido a tão-somente normas jurídicas. O

direito se manifestaria materialmente em momentos anteriores a estas, o que,

conseqüentemente, ampliaria os limites que o definem. A primeira manifestação do

direito corresponderia, portanto, à instituição. Logo, o direito para Romano é

instituição, ou seja, um corpo social unitário, o qual é em si e por si jurídico,

justamente por ser organizado. Tendo em consideração essa concepção

institucionalista do direito, Romano também se volta para questão da definição do

direito internacional. Para Piero Ziccardi, Romano colocou o direito internacional em

primeiro plano, ao considerar este a “pedra de paralelo” da sua respectiva definição

do direito.634 Nesse sentido, a seguinte indagação é levantada pelo jurista siciliano:

qual seria a instituição correspondente à primeira manifestação do direito

internacional?

Romano compreende que, sendo a instituição “Estado” a

correspondente à primeira manifestação do ordenamento jurídico nacional, a

“comunidade internacional”635 corresponderia à primeira manifestação do direito

direito internacional, seja na sua existência, seja – o que não é muito diferente – na sua autonomia, enquanto o consideram como uma externalização ou projeção do direito interno dos vários países.” Cf.: ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 44 634 ZICCARDI, Piero. Le dottrine giuridiche di oggi e l’insegnamento di Santi Romano: il diritto internazionale. In: ______. Vita giuridica internazionale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992. p. 313. Conforme será abordado no decorrer desta secção 3.1, vale por ora mencionar algumas das contribuições de Romano ao direito internacional, segundo Ziccardi: negar a razão de ser do problema quanto ao “fundamento do direito internacional”, ao considerar que o problema seria aquele de verificar a existência ou não de uma sociedade internacional; identificar o direito internacional como uma expressão da coexistência dos Estados, e não como um produto desta; questão das “fontes jurídicas” do direito internacional ao afirmar sua independência da vontade dos Estados, apontando para a existência de princípios fundamentais inerentes a própria estrutura da sociedade internacional, bem como para o costume internacional não no sentido de um acordo tácito, mas sim que tanto os princípios como o costume seriam expressões imediatas e originárias do direito internacional; e a desnecessária predisposição de sanções para garantir a eficácia de um ordenamento jurídico internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 313-315 635 No decorrer de sua explanação acerca do ordenamento jurídico internacional, Romano esclarece quanto à identificação deste a uma única instituição chamada “comunidade internacional”, instituição de instituições a qual compreende todos os Estados. Afasta-se assim qualquer entendimento no sentido de existirem “[...] tantas comunidades quantas seja as relações de cada Estados com outros Estados”. Concepção esta que provém de correntes positivistas que reduzem o conceito de direito internacional somente ao de acordo normativo, advertindo Romano que “[...] deveríamos concluir desta teoria o fato de que cada um de tais acordos forma, mais do que uma comunidade, uma simples relação, limitada não somente ao número de Estados que participam do acordo, mas também ao objeto especial pelo qual estes entram no acordo. Negar-se-ia, deste modo, a existência de um direito internacional geral, que somente poderia ser concebido como uma abstração da doutrina, ou seja, como o conjunto dos princípios comuns às relações entre todos os Estados ou maior parte desses.Tais princípios não constituem uma verdadeira unidade jurídica, sendo expostos juntos somente por comodidade e brevidade de tratamento. O direito internacional positivo seria somente o direito particular de cada Estado com cada um dos outros com que este mantém uma relação [...].” O que, indubitavelmente, conforme Romano, é contrário à realidade, restando portanto errôneas tais

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internacional.636 Comunidade esta, considerada por Romano como um ente

político.637 Ente o qual necessariamente postula um ordenamento jurídico que o

constitui e regula, ou seja, postula um ordenamento jurídico internacional.638

Enquanto instituição complexa, Romano entende que o fator

determinante da comunidade internacional é a necessidade dos Estados de “[...]

viverem em contínuas e permanentes relações, ou seja, de organizarem-se em uma

sociedade, que sempre se estende mais, e corresponde ao maior dos entes sociais

[...].”639 Essa necessidade dos Estados se relacionarem entre si é considerada por

premissas que não reconhecem uma única comunidade dos Estados, logo, a unidade do direito internacional.Cf.: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 52-53. No presente trabalho optou-se por referir-se a primeira manifestação do ordenamento jurídico internacional como “comunidade internacional”, e não como “comunidade de Estados”, conforme por vezes mencionado por Romano na obra “O ordenamento jurídico”, de 1918. Nesta obra, o autor italiano utiliza tanto a expressão “comunidade internacional”, quanto principalmente a expressão “comunidade dos Estados”. No entanto, Romano ao referir-se a essa também como a uma “instituição de instituições” deixa em aberto quais instituições compõe a comunidade internacional. Nesse sentido, em estudos posteriores Romano já expressamente refere-se a comunidade internacional como uma “comunidade de instituições”, composta não somente pelos Estados, mas também por outras instituições. Vide: ROMANO, Santi. Oltre lo Stato. In: _____. Scritti minori. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1950. p. 345-369; ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. 4ed. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1939. p. 17-22; e, Idem. Princípios de direito constitucional geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. Cabe ainda advertir que, no presente trabalho, as expressões “comunidade internacional” e “sociedade internacional” são utilizadas como sinônimos. Optou-se por tal identificação de expressões, uma vez que nas obras de Romano e de seus sucessores utilizadas, neste Capítulo, vez cita “comunidade internacional”, vez cita “sociedade internacional”, sem destacar claramente uma distinção entre ambas. Porém, outros trabalhos enfatizam a diferença entre tais expressões. Nesse sentido, quanto ao debate acadêmico acerca da distinção entre: “comunidade internacional” e “sociedade internacional”, consultar: OLIVEIRA, Odete Maria. Relações internacionais: estudos de introdução. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 130-146 e, MENÉNDEZ, Fernando M. Mariño. Derecho internacional público: parte general. 2. ed. Madrid: Trotta, 1995. p. 18 636 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 49 637 A comunidade internacional, para Romano, corresponde a um ente político, assim como a instituição estatal, conforme mencionada na secção 1.3, do presente trabalho. No entanto, cabe por ora recordar que a qualidade de “ente político” refere-se as suas finalidades, ou seja, aos seus respectivos escopos gerais. Entes políticos, de acordo com Romano, consistem em “[...] entes que têm escopos gerais, ou seja, entes que se propõem finalidades que num certo momento podem determinar e circunscrever; entretanto, esses entes são suscetíveis de assumir outras finalidades sem mudar de natureza. Daí a diferença dos entes que têm escopos singularmente determinados, por exemplo, uma sociedade comercial [...].” Desse modo todos os entes territoriais são políticos, mas nem todos os entes políticos são territoriais. Nesse sentido, Romano, destaca como entes políticos: a comunidade internacional, a federação dos Estados, os partidos que se dizem precisamente políticos, etc. Vide: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 69. 638 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 49. Cabe, por ora, mencionar um esclarecimento apresentado por Capotorti, a respeito da identificação do termo “direito internacional” e a expressão “ordenamento jurídico internacional”. Esta expressão, “[...] implica che il diritto, obbietivamente considerato, sia um fenomeno ordinatore, ossia che esso realizzi un ordine nella società di cui è l’espressione.” Quer isso dizer que, o direito internacional corresponde a um fenômeno ordenador da comunidade internacional. A propósito: CAPOTORTI, Francesco. Corso di diritto internazionale. p. 01 639 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 01. Livre tradução do original: [...] di vivere in continui e permanenti rapporti, cioè di organizzarsi in uma società, che va sempre più estendendosi, ed è anzi il maggiore degli enti sociali [...].

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Manuel Diez de Velasco como o requisito material para a existência do direito

internacional, tal requisito foi e continua sendo a “[...] coexistência de entes políticos

organizados sobre uma base territorial, não subordinados a nenhuma autoridade

superior”, cujas relações vêm alcançando paulatinamente uma estabilidade com

base no mútuo interesse.640

Por considerar esse fator da necessidade de se relacionarem, Romano

ao classificar as coletividades humanas entre necessárias e voluntárias, ressalta que

a comunidade internacional seria uma comunidade necessária.641 Isso significa que

o ingresso de um determinado membro na comunidade internacional independe de

qualquer manifestação de vontade deste, bem como, independe de qualquer

manifestação de vontade dos demais membros. Destarte, pertencer a esta

comunidade corresponde a uma atribuição necessária que não se esgota na simples

vontade de um sujeito que da mesma é membro.642 Nesse mesmo sentido, Capotorti

ainda adverte que devido ao caráter da comunidade internacional como “necessária”

a cada Estado compete apenas constatar a coexistência com os demais e não,

escolher entre existir isolado ou em comunidade.643 Desse modo, para Romano, a

comunidade internacional não é limitada, nem ao fator tempo, nem quanto ao

número de membros. Logo, corresponde a uma comunidade perpétua e aberta ou,

segundo Capotorti, uma comunidade universal.644 Aberta a todos os entes que

responderiam a certas condições para que desta venham a ingressar. Condições,

consoante Romano, que independem da manifestação de vontade dos demais

membros.645

Ao ser considerada uma instituição, a comunidade internacional

apresentaria as mesmas características fundamentais646 identificadas por Romano

nas demais instituições. A atribuição de personalidade jurídica, contudo, não é uma

dessas características fundamentais.647 Por isso, a comunidade internacional

640 VELASCO, Manuel Diez. Instituciones de derecho internacional público. 12. ed. Madrid: Tecnos, 1999. p. 58. Livre tradução do original: la coexistência de entes políticos organizados sobre una base territorial, no subordinados a ninguna autoridad superior. 641 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 20 642 ROMANO, loc. cit. 643 CAPOTORTI, Francesco. Corso di diritto internazionale. p. 02 644 CAPOTORTI, loc. cit. 645 ROMANO, op. cit., p. 18 646 No que se refere às características fundamentais da instituição ver a secção 1.1.4, do presente estudo. 647 No entanto, Romano não exclui a possibilidade de uma instituição possuir personalidade jurídica. Mas adverte que tal atribuição não significa uma condicionante para a existência da mesma.

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também seria desprovida de personalidade jurídica não se identificando como

pessoa jurídica. De nenhum modo interfere no seu caráter de organização. 648 Já

Pellet ressalta que a comunidade internacional “[..] poderia e deveria ser

reconhecida com sujeito de direito internacional”, ou seja, ser atribuída a mesma a

personalidade jurídica internacional.649 Pellet, então, destaca alguns tratados que

referem à expressão “comunidade internacional” em seus dispositivos650 e

menciona: “Assiste-se, no entanto, a um reconhecimento progressivo, lento e

prudente, de uma certa personalidade jurídica da comunidade internacional, da qual

não sabemos se é necessário limitar a dos Estados ou se se trata de uma noção

mais globais [...].”651

Ainda que desprovida de personalidade jurídica, Romano adverte que

seus sócios, ou seja, os entes que a constitui, possuem personalidade jurídica.

Conseqüentemente, para Romano, os indivíduos não são membros desta instituição.

Enquanto instituição de instituições, Romano entende que os entes estatais

consistem nos principais membros da comunidade internacional. Todavia,

subsistiriam exceções. Uma desta consiste na Santa Sé, a qual possui

648 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 45. Quanto ao caráter de organização, Romano afasta a possibilidade de condicionar a questão da existência de organização da comunidade internacional, com a necessidade de existência personalidade jurídica da mesma. Conforme adverte o autor, “Parece-nos, contudo, que o conceito de organização implique necessariamente em uma relação, assim entendida, de superioridade e de correlativa subordinação. De fato, já que todos os Estados deveriam estar sujeitos a tal poder fazendo com que nenhum e nem mesmo uma maioria destes tivesse preeminência sobre os outros, o mesmo poder somente poderia se referir à comunidade, o que significaria que ela necessariamente deveria ser constituída em uma pessoa. Conseqüentemente, se deveria admitir que as comunidades onde subsiste uma igualdade em sentido absoluto – como acontece na comunidade internacional -, somente se tornariam juridicamente organizadas quando fossem pessoas jurídicas. Ora, parece que esta tese seja arbitrária e não possa ser demonstrada.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 45-46. Como conseqüência, então, decorrente da “não-personalidade jurídica” da comunidade internacional, Romano destaca a ausência tanto de poderes, direitos e deveres próprios desta, quanto de órgãos que manifestem sua vontade de agir em nome de seus membros. Tais atribuições, para Romano, somente podem ser referidas aos membros ou sujeitos que da comunidade internacional fazem parte, e não à comunidade em si mesma, em sua unidade. In: Idem. Corso di diritto internazionale. p. 17. Nesse sentido, “Há ordenações nas quais a qualidade de pessoa pertence somente aos indivíduos e aos entes particulares que nele se compreende: assim na comunidade internacional, tal qualidade é atribuída aos seus membros e não à própria comunidade.” Vide: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 77. 649 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 412 650 Pellet cita como exemplo, o artigo 53, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969. In: Idem. Ibidem., p. 411. Ademais, além desta Convenção, Fernando Menéndez também menciona as diversas referências à comunidade internacional nas Resoluções da Assembléia Geral [AG] da ONU e na jurisprudência internacional. Cf.: MENÉNDEZ, Fernando M. Mariño. Derecho internacional público: parte general. p. 20-21 651 PELLET, op. cit., p. 411

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personalidade jurídica, mas não corresponde a uma instituição estatal.652 Não

obstante tais considerações, outros internacionalista, como Touscoz, entendem que

o Estado não corresponderia ao “[...] único nem o principal sujeito do Direito

Internacional”, mas sim que apenas prioritariamente o Estado seria considerado

sujeito deste, ao lado das organizações internacionais, organizações não-

governamentais, sociedades transnacionais e pessoas singulares.653 Por isso,

Touscoz enfatiza que

[...] o Direito internacional não deve ser definido como sendo o Direito que rege as relações internacionais definidas com base na noção de Estado, mas que o Direito Internacional rege a sociedade internacional, sendo esta muito mais complexa e diversificada que a sociedade inter-estadual.654

652 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 18. Ainda acerca dos membros da comunidade inernacional, ou seja, dos sujeitos do direito internacional vale mencionar algumas considerações de Romano. Os Estados são os principais membros da comunidade internacional. Mas não os únicos. A Santa Sé e a Ordem Militar de Malta também são destacados por Romano como membros da comunidade internacional, mas como sujeitos sui generis. Os demais entes e indivíduos que dependem inteiramente dos Estados não são considerados sujeitos do direito internacional, como: órgão do Estado [como o chefe deste]; entes públicos que compõe o Estado [como as Províncias]; entes privados; e, os indivíduos. Porém, Romano ressalta algumas exceções. Seriam alguns entes cujo vínculo de dependência dos Estados se suspende ou atenua, como: os movimentos de insurreição nacional [possuim personalidade jurídica não definitiva]; os futuros Estados [espécie de antecipação da personalidade jurídica internacional]; as colônias autônomas [possuim governo próprio, mas dependem da metrópole]; e, as uniões de Estados ou de colônias. Cf: Idem. Ibidem., p. 59- 77. Não obstante tal posicionamento de Romano, entendimentos mais recentes passam a considerar outros entes como também membros da comunidade internacional. Nesse sentido, Sergio M. Carbone no texto I soggetti e gli attori nella comnità internazionale, ao discorrer sobre os entes com personalidade jurídica internacional, destaca os seguintes: os Estados, como principais membros; insurgidos, como a Organização para Libertação da Palestina; a Santa Sé; a Soberana Ordem de Malta; e as organizações internacionais. A propósito: CARBONE, Sergio M. I soggetti e gli attori nella comunità internazionale. In: CARBONE, S.; LUZZATO, R.; MARIA, A. (Org.). Istituzioni di diritto internazionale. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 2003. cap. 1, p.03- 26. A respeito da personalidade jurídica internacional dos indivíduos, Carbone ressalta dois fenômenos recentes que favorecem o reconhecimento desta: responsabilidade penal individual e “[...] la progressiva affermazione dei diritti internazionali dell’uomo e delle corrispondenti forme di tutela direttamente previste a favore degli individui anche in âmbito internazionale.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 27-28. Quanto aos atores da comunidade internacional, os quais ainda que desprovidos de uma verdadeira e própria personalidade jurídica internacional, estão presentes e participantes dos processos e mecanismos de cooperação entre os Estados, principalmente nas relações econômicas internacionais. Tais atores citados por Carbone são: as organizações não-governamentais e as empresas multinacionais. In: Idem. Ibidem., p. 32-33. Por fim, Carbone adverte que frente à globalização “La tendenza è verso una struttura della Comunità internazionale nella quale, da un lato, l’indipendenza e la sovranità territoriale degli Stati risultano allentati e, dall’altro, la disciplina internazionale dei rapporti economici e sociali si estende grandemente e dipende non solo dagli Stati, ma da una pluralità di altri soggetti e ‘attori’ il cui coordinamento spetta in misura sempre maggiore ad organizzazioni internazionali.” Vide: Idem. Ibidem., p. 35. Ainda quanto à questão da personalidade jurídica internacional do indivíduo, como uma expressão do confronto, entre tradição e evolução, presente na comunidade internacional, consultar: Ver, a respeito: NASCIMBENE, Bruno. L’individuo e la tutela internazionale dei diritto umani. In: Ibidem. cap. 10. p. 337-371 653 TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 25-26 654 Idem. Ibidem., p. 24

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Uma vez considerado o vocábulo “instituição”, como sinônimo de

organização, a comunidade internacional seria, portanto, organizada. Por isso, para

Romano, ainda que sendo a uma comunidade anárquica, é organizada. Não

significaria falta de organização o fato da comunidade internacional ser desprovida

de personalidade jurídica e de órgãos por meio dos quais expressaria sua suposta

vontade.655 Romano enfatiza que a palavra “organização”, nesse contexto, deve ser

considerada em sentido amplo.656 Organização no sentido de uma estrutura estável

e permanente de um determinado ente, o qual tomaria um verdadeiro corpo.657

Ademais, a condição de igualdade e de recíproca independência na qual se

encontram os Estados da comunidade internacional representaria um efeito de tal

organização.658 Ainda que inexistente qualquer relação de subordinação entre um

Estado para com os demais, há organização.659

655 Segundo Capotorti, dentre as características da comunidade internacional, ou seja, necessaria, universal e paritária, esta última corresponde a uma determinante para diferenciar o direito internacional do direito interno. Isso significa que, o estado de paridade de seus membros decorre da falta de uma autoridade superior, capaz de se impor juridicamente sobre os mesmos. “Questa mancanza di autorità contribuisce dunque in notevolissim amisura a differenziare il diritto internazionale dal diritto statale [...].” In: CAPOTORTI, Francesco. Corso di diritto internazionale. p. 02-03. Ainda quanto a esse caráter anárquico, Akehurst discorre que, diferentemente da estrutura estatal interna, “Os Estados criam, em grande medida, o Direito Internacional para si mesmo e não necessitam de aceitar uma nova norma se com ela não estão de acordo; não têm obrigação de comparecer perante um tribunal internacional se de antemão não se comprometeram a fazê-lo, e não existe um executivo centralizado encarregado da aplicação do direito.” Ver, a propósito: AKEHURST, Michael. O carácter jurídico do direito internacional. In: Introdução ao direito internacional. p. 07 Porém, Akehurst também ressalta que esse estado de anarquia não prejudica a obrigatoriedade das normas jurídicas internacionais. “Existem outros fatores, inerentes à própria natureza do Direito Internacional e da sociedade internacional que induzem os Estados a actuarem em conformidade com ele.” Os fatores, então, mencionado por Akehurst são: a inexistência de um poder legislativo o que leva os Estados a construírem o direito para si mesmo; a norma consuetudinária freqüentemente utilizada como base do direito internacional; o fato de os Estados serem poucos numerosos, o que significa que cada um deles entra em constante contato com cada um dos restantes; e também o fato de os Estados se apoiarem em um determinado território, o que faz com que o mesmo não possa escolher seus vizinhos, devendo, portanto, conviver com os mais próximos. Cf.: Idem. Ibidem., p. 09-13 656 Quanto ao significado da palavra “organização”, além de trazê-la para a esfera jurídica, conforme já mencionado nas secções 1.1.3 e 1.1.4 do presente estudo, Romano aponta para dois sentidos que a mesma pode apresentar, ou seja, o amplo e o estrito. Cabe aqui mencionar que segundo o último, organização corresponde a um ente que possui tanto vontade própria quanto órgãos pelos quais expressa sua vontade. Nesse sentido, a comunidade internacional não seria organizada. Por isso, Romano adota o sentido amplo da palavra organização. In: ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 06 657 Idem. Ibidem., p. 06-07. No dizeres de Romano, “In tale senso, la comunità internazionale è organizzata.” 658 Tais condições, mencionadas por Romano, como expressão da organização da comunidade internacional, também são mencionados por Ricardo Seitenfus. Contudo, este último as destaca como pressupostos básicos para a existência de uma sociedade internacional como a atual. Ou seja, uma sociedade internacional onde as “organizações internacionais” desempenham “[...] um papel de prestadoras de serviços internacionais dos Estados”. Vide: SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 36. Nos dizeres de Seitenfus, “Há dois pressupostos básicos para que exista uma sociedade internacional organizada

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Então, de acordo com Romano, a comunidade internacional

corresponde à primeira manifestação do direito internacional, justamente por tal

comunidade apresentar-se organizada e objetivamente existente.660 Devido a esta

objetividade, Romano posiciona-se no sentido de que o surgimento da comunidade

internacional independe de qualquer manifestação de vontade, seja por meio de um

acordo de todos, seja por meio de um acordos provenientes de cada um dos

Estados.661 A questão da fonte material do direito internacional não dependeria da

vontade de um ente, como o Estado. Portanto, Romano nega qualquer

condicionamento da existência do direito internacional à vontade de um ou de todos

os Estados, bem como, nega o esgotamento do mesmo em normas jurídicas

internacionais, expressas por meio de acordos.

Essa concepção objetiva do direito internacional vai ao encontro de

uma outra assertiva romaniana, de que o estado de recíproca independência e

igualdade,662 presente entre os Estados da comunidade internacional, revelaria a

existência [objetiva] de um ordenamento jurídico internacional. De um ordenamento

jurídico internacional anterior a esse estado, de independência e igualdade. Porém,

nem todos internacionalistas reconhecem este estado de igualdade na sociedade

internacional, devido a sua “pluridimensionalidade”,663 pois segundo Touscoz “Na

realidade, a sociedade internacional não é (se ousarmos a esta expressão) uma

«desolada planície inter-estadual», «horizontal», na qual os Estados se defrontam

nos moldes da atual: por um lado, a presença de múltiplos Estados que são sujeitos desta sociedade e, por outro, que estes Estados se considerem reciprocamente em igualdade de condições jurídicas, ou seja, que exista um respeito mútuo entre eles.” In: SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. p. 38 659 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 46. Porém, quanto ao estado de igualdade no qual se encontram Estados da comunidade internacional, Romano adverte que este princípio comporta exceções tendo em consideração membros de natureza diversa dessa comunidade, como um Estado e a Santa Sé, por exemplo. Romano também não exclui a possibilidade de ocorrer certa desigualdade entre os próprios Estados, membros de mesma natureza, ainda que os efeitos de tal distinção sejam mais importantes para a política que para o direito, como ocorre com as “grandes potências” e as “potências secundárias”. Cf.: Idem. Corso di diritto internazionale. p. 19 660 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 45 661 Idem. Ibidem., p. 25-26. Nesse sentido, consoante mencionado na secção 2.2.1.3, do presente trabalho, Karl Heinrich Triepel, adepto ao voluntarismo, concebe o direito internacional como um vazio preenchido pela vontade dos Estados, ou seja, a fonte jurídica de onde derivariam as regras jurídicas internacionais corresponderia à vontade comum proveniente da união das vontades particulares dos Estados, a assim denominada de die Vereinberung. 662 Idem. Corso di diritto internazionale. 19 663 Para Touscoz, isso significa que a sociedade internacional “[...] compões-se de membros muito variados que mantêm relações também elas muito diversas, que o Direito Internacional regula.” In: TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 25

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ou procuram estabelecer entre si equilíbrios mais ou menos precários.”664 Contudo,

para o jurista siciliano existiria sim um ordenamento jurídico anterior ao estado de

independência e igualdade entre os Estados. Para essa afirmação, Romano ainda

encontra amparo ao contrapor dois posicionamentos reducionistas do direito

internacional, que identificam este somente enquanto normas jurídicas, expressas

por meio de acordos de vontade, uni ou multilaterais dos Estados. Conforme lembra

Quadros, no âmago da tese voluntarista, “[...] mora a ideia de que a existência e a

obrigatoriedade do Direito resultam sempre da qualidade da vontade que a cria. É

essa vontade que confere valor à norma.”665 Então, segundo o jurista siciliano, os

que fundamentam o direito internacional na vontade unilateral do Estado já

pressupõem que o Estado estaria constituído e em vigor,666 o que expressaria

assim, por sua vez, certa independência e igualdade do mesmo. Por outro lado, são

refutados os posicionamentos no sentido de que o direito internacional surgiria do

acordo pré-jurídico entre os Estados [vontades multilaterais], justamente porque este

posicionamento levaria a uma visão distorcida em pensar um Estado isolado, o qual

não pertenceria a tal comunidade, caso não manifestasse sua vontade de nesta

participar.667 Tais posicionamentos seriam contrários à concepção de Romano de

que o próprio estado de independência e igualdade no qual os Estados se

encontram provém do fato dos mesmos estarem organizados na instituição

complexa que pertencem.668 Assim sendo, a organização desta instituição complexa

“comunidade internacional” independeria de qualquer manifestação de vontade dos

seus membros. Conseqüentemente, o ordenamento jurídico internacional também

independeria de qualquer manifestação de vontade dos mesmos.

664 TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 25 665 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 58 666 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 48 667 Idem. Ibidem., p. 48-49 668 Idem. Ibidem., p. 51. Nesse contexto, Romano ressalta que a “[...] hodierna condição de igualdade e de independência dos Estados não é hoje pré-jurídica, mas determinada pela estrutura de sua comunidade.” A organização da comunidade dos Estados, então, já revela sua juridicidade, independentemente de qualquer manifestação de vontade por parte de seus membros. Cf.: ROMANO, loc. cit. Ademais outras críticas voltadas às concepções voluntaristas. Nesse sentido, Touscoz questiona: “[...] o que foi feito pela vontade não poderá ser desfeito?” Cf.: TOUSCOZ, op. cit., p. 46. Já Quadros critica, além do fundamento do costume internacional, a questão do desligamento desse acordo firmado entre os Estados destacando que, “De facto, os Estados são tão livres de chegar a acordo, seja qual for o seu conteúdo, como se desligarem dele.” Outra crítica também mencionada por Quadros seria a de que os voluntaristas, ou melhor, da teoria da Vereibarung, não conseguem “[...] explicar por que motivo é que quando uma das vontades se retira a norma não desaparece.” Vide: QUADROS, op. cit., p. 64

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Além disso, conforme mencionado,669 Romano traz o vocábulo

“organização” para a esfera jurídica. Segundo a concepção romaniana

“organização”, “ordenamento jurídico” e “instituição” possuem o mesmo significado.

Por isso, ao ser traçado um paralelo com a própria formação do Estado, Romano

afirma que a formação da comunidade internacional também se dá em um momento

pré-jurídico.670 A partir do instante em que esta comunidade encontra-se organizada,

se identificaria como uma “instituição”. Logo, já haveria um ordenamento jurídico,

haveria o direito internacional.

A “organização” em que se encontra a comunidade internacional

decorreria tanto da igualdade e da recíproca independência entre seus membros,671

quanto da impessoalidade do poder que permite e determina sua existência. Ao

destacar a “organização” em que se encontra a comunidade internacional, claro está

que Romano a equipara a uma instituição. Logo, a primeira manifestação do

ordenamento jurídico internacional corresponderia à instituição “comunidade

internacional”. Além disso, Romano enfatiza que os elementos essenciais que

devem se fazer presentes no conceito do direito672 se expressariam por meio desta

instituição. Destarte, Romano apresenta o seguinte enunciado como conceito de

direito internacional,

[...] é o ordenamento imanente da comunidade dos Estados; que nasce com esta, sendo desta inseparável; que é necessário procurá-lo na instituição em que se concretiza tal comunidade, mais do que normas singulares advinda de acordos particulares; e que este é, conseqüentemente, antes de mais nada, no seu aspecto unitário, organização ou instituição.

A primeira manifestação do ordenamento jurídico internacional

corresponderia, portanto, à comunidade internacional, nascendo aquele juntamente

com esta. Por isso, para o autor, o direito internacional consiste em um ordenamento

jurídico originário, pois não decorreria de um outro ordenamento, como por exemplo,

do direito estatal. Por conseguinte, o ordenamento jurídico internacional “[...] se põe

669 Nesse sentido, retomar as secções 1.1.3 e 1.1.4, do presente trabalho. 670 ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 1. p. 50 671 Idem. Corso di diritto internazionale. p. 19 672 Conforme mencionado na secção 1.1.3, do presente estudo, os elementos essenciais que devem se fazer presentes no conceito de direito correspondem, segundo Romano: a compreensão da sociedade como entidade constituída a qual se identifica com o direito; ordem social; e consideração de que o direito antes de ser norma jurídica ou de referir-se a simples relações sociais, é organização em que se realiza na sociedade.

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e se modifica, por suas própria forças e possui, então, uma eficácia e uma validade

que não lhe é anunciada de fora, mas que lhe é inata.”673

Ao discorrer sobre as “fontes do direito internacional”,674

particularmente as “não voluntárias”, Romano reforça esse seu entendimento de que

a primeira manifestação do ordenamento jurídico internacional corresponde à

“comunidade internacional”. E enquanto originário, o mesmo se põe e se modifica

por suas próprias forças. Nesse sentido, a fonte primeira do direito internacional

consiste, segundo Romano, nos “princípios fundamentais ou constitucionais”, uma

vez que, tais princípios “[...] se põe com a própria existência, da qual não podem se

separar, da comunidade internacional mais ampla (e agora são de direito geral) ou

673 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 20. Livre tradução do original: [...] esso si pone e si modifica da sè, per propria forza ed há quindi un’efficacia e una validità che non gli è comunicata dal di fuori, ma gli è inata. 674 Cabe ressaltar que, Romano não considera como “fontes do direito internacional”: a comitas gentium [seriam normas de cortesia, um complexo de regras observados nas relações internacionais entre os chefes de Estado, não seriam um costume jurídico]; a jurisprudência e a doutrina [não põe normas novas, apenas auxiliam na compreensão das já existentes]; e os atos diplomáticos [podem documentar, mas não constituir o direito internacional]. In: Idem. Ibidem., p. 40. Concernente às fontes do direito internacional, Touscoz discorrer sobre a distinção entre: formais e materiais. Segundo Touscoz, as fontes formais do direito internacional correspondem aquelas normas jurídicas que “[...] são prescrições de alcance geral elaboradas segundo processos estabelecidos cuja execução é sancionada através da coação social organizada [...].” Por outro lado, para Touscoz, as fontes materiais do direito internacional levariam em conta as suas origens profundas, por isso “[...] remete para o problema mais geral dos fundamentos do Direito Internacional.” A propósito: TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 203. Nessa perspectiva, as fontes formais do direito internacional, freqüentemente, são identificadas com o rol previsto no art. 38, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça [CIJ], de 1945. Conforme o referido dispositivo: “1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: a) as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c) os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d) [...] as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras gerais de direito. 2. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes com isto concordarem.” Vide: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Estatuto da Corte Internacional de Justiça, 1945. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira [Org.]. Coletânea de direito internacional. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 236- 245. Ao referir sobre a falta de hierarquia entre as fontes formais do direito internacional [art. 38, do Estatuto da CIJ], particularmente entre os tratados e o costume, Lupi questiona “[...] por que figuram primeiro os tratados, que são normas de abrangência parcial?” Nesse sentido, Lupi, primeiramente, destaca que o art. 7º, da XII Convenção da Haia, de 1907, para criação do Tribunal de Presas, já expressava uma certa preferência, uma vez que, neste dispositivo havia um rol hierarquizado de fontes a serem utilizadas pelos juízes, na seguinte ordem: primeiro os tratados, por conterem o consentimento expresso dos Estados; em seguida os costumes, por manifestarem o consentimento tácito dos Estados e por fim os princípios gerais e a eqüidade. No que diz respeito, então, ao art. 38, do Estatuto da CIJ, Lupi comenta que “[...] pode-se afirmar que o fato de os tratados figurarem antes do costume na lista do artigo deve indicar apenas a maior facilidade de uma Corte decidir um litígio concreto com base em normas específicas aplicáveis ao caso e às partes, mais comumente relacionadas à fonte convencional.” Cf.: LUPI, André Lipp Pinto Basto. O costume como fonte do direito internacional. In: ______. Os métodos no direito internacional. p. 57-58

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da comunidade internacional mais restrita (no caso são de direito particular).”675 Os

princípios constitucionais são os poucos que surgem com a própria comunidade

internacional.676 Conseqüentemente, não decorrem da vontade dos Estados, nem

mesmo do costume internacional,677 bem como, não se confundem com os

princípios do direito natural.678 No entanto, tais princípios constitucionais não

corresponderiam às únicas fontes “não voluntárias” do direito internacional. Além

disso, Romano considera o costume internacional como uma importante “fonte

involuntária” do mesmo.679

Contudo, o direito internacional também se manifestaria em momentos

posteriores à instituição comunidade internacional. Momentos os quais não são

675 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p.31. Livre tradução do original: [...] si pongono con la stessa esistenza, da cui non possono separarsi, della comunità internazionale più ampia (e allora sono di diritto generale) o delle comunità internazionali più ristrette (nel qual caso, sono di diritto particolare). De acordo com Romano, enquanto os princípios do direito internacional geral são involuntários, o do particular decorrem da vontade dos Estados.Cf.: Idem. Ibidem., p. 33. Vale, por ora, mencionar que tal distinção entre direito internacional geral e direito internacional particular será objeto de abordagem da próxima secção, 3.1.1, do presente trabalho. 676 Romano adverte que não são muitos tais princípios, dentre estes se encontra o “[...] il principio che pone gli Stati che sono membri della comunità internazionale in una posizione di eguaglianza [...].” In: Idem. Ibidem., p. 32 677 Consoante Romano, a não identificação com costume internacional ocorre porque nem sempre os princípios constitucionais se formam gradativamente, pouco a pouco, como se dá com o costume internacional. Cf.: ROMANO, loc. cit. 678 ROMANO, loc. cit. Para Romano, os princípios constitucionais diferem dos princípios do direito natural. Justamente porque os princípios constitucionais “[...] sono elementi istituzionali della comunità, cioè si sono trasfusi nella sua organizzazione, atteggiandola in un modo o nell’altro e determinandone l’assetto esteriore, formale e oggettivo.” In: ROMANO, loc. cit. 679 De acordo com Romano, o costume internacional caracteriza-se por dois aspectos. Primeiro, por decorrer da constante uniformidade de um determinado modo de agir ou não agir, tanto dos membros da comunidade internacional como dos respectivos órgãos destes. Bem como, que tal comportamento seja considerado jurídicamente obrigatório para todos estes membros. Por isso, o costume internacional encontra-se mais freqüente no direito internacional geral. Romano ressalta que o costume internacional não significa um acordo tácito de vontades. Mas sim, que o costume possui uma origem involuntária e seu valor decorre do convencimento que sua observação é obrigatória. E tal convencimento, “[...] não é ato de vontade, mas qualquer coisa que domina e vincula a vontade.” Ao contrário de um acordo tácito, o qual pode surgir em um breve momento, o costume internacional se forma lentamente, em um longo período de tempo. Por fim, Romano ainda destaca os três efeitos do costume no ordenamento jurídico internacional: introdutivo, por gerar norma nova; interpretativo e, abrogativo, por porder extinguir outras normas. Cf.: Idem. Ibidem., p. 33- 35. Livre tradução do original: [...] non è atto di volontà, ma qualche cosa che domina e vincola la volontà. Ainda que com a notável proliferação dos tratados, Lupi menciona que “[...] o costume internacional continua regulando vastas áreas do Direito Internacional [...]”, como, por exemplo, a responsabilidade internacional. Além disso, Lupi ressalta a permanência do costume entre as principais fontes formais do direito internacional revelada pela sua utilização na CIJ, nos tribunais internacionais ad hoc e no Tribunal internacional do Direito do Mar, por exemplo. Vide: LUPI, André Lipp Pinto Basto. O costume como fonte do direito internacional. In: ______. Os métodos no direito internacional. p. 59-63. Nesse contexto, quanto ao pressuposto grau de homogeneidade da base social [comunidade internacional] que o costume internacional representa; bem como quanto aos momentos em que falta tal hogeneidade o que pode levar à crise nas regras consuetudinárias; e o conseqüente papel da ONU na superação de tal crise, por meio da codificação dos costumes e de suas declarações de princípios; consultar: A propósito: LUZZATO, Riccardo. Il diritto internazionale generale e le sue fonti. In: CARBONE, S.; LUZZATO, R.; MARIA, A. (Org.). Istituzioni di diritto internazionale. p. 51-60

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excluídos pelo autor, sendo então identificados como “fontes voluntárias” do direito

internacional.680 Nesse contexto, encontram-se as normas jurídicas decorrentes da

vontade dos Estados, que seriam expressas por meio das convenções firmadas

entre os Estados pertencentes à comunidade internacional.681 Enfim, consoante

Romano, são normas jurídicas identificadas como manifestação do direito

internacional, mas não a primeira ou única.

A produção de normas jurídicas, por meio de acordos, se identificaria

como uma manifestação posterior deste ordenamento jurídico internacional.

Conforme Romano, os acordos de vontade firmados entre os Estados valem para

momentos do direito internacional em que “[...] se trata de por novas normas, novas

instituições, de modificar os precedentes, e assim por diante.”682 Portanto, não se

esgotando o ordenamento jurídico internacional em tais momentos de produção de

normas.683 Isso porque, nem todos os princípios de direito internacional se

encontrariam previstos nos acordos firmados entre os Estados,684 o que expressaria,

destarte, o viés antiformalista ao conceber o direito.

Ao considerar tais posteriores manifestações do direito internacional

como fontes jurídicas, o jurista siciliano não faz referência a outras manifestações da

ordem internacional mencionada por outros internacionalistas, ou seja, os atos

unilaterais tanto dos Estados quanto das organizações internacionais. A respeito

daqueles, Halajczuk aborda que “A manifestação de vontade de um estado pode

produzir o efeito jurídico desejado; esta classe de declaração se chama negócios

jurídicos unilaterais”,685 e destaca os seguintes: notificação, reconhecimento,

680 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 35-39 681 As seguintes espécies de convenção são destacadas por Romano: as escritas [recebem o nome de tratado] e as não escritas [acordos verbais ou declarações tácitas]; as públicas e as secretas [de rara eficácia após o princípio da publicidade dos tratados]; as especiais [entre poucos membros] e as coletivas; e por fim, as perpétuas [tempo indeterminado] e as temporárias. In: Idem. Ibidem., p. 36. Segundo Romano, todas as convenções são fontes do direito internacional, o que pode ser diferentes são apenas as espécies, e não seu gênero. Cf.: Idem. Ibidem., p. 38 682 Idem. O conceito de ordenamento jurídico. In: O Ordenamento Jurídico.. 1. p. 49 683 No tocante aos acordos firmados entre os Estados, Romano ainda adverte que “[...] que tais acordos não possuem, como muitos acreditam, uma vida própria, independente da pré-existência do direito objetivo e, nem menos, como acreditam outros, retiram a sua eficácia do costume. Estes, ao contrário, se apóiam em um princípio colocado no surgimento da comunidade internacional e que se tornou seu com a sua constituição, com as atuais características institucionais.” In: ROMANO, Santi. O conceito de ordenamento jurídico. Cf.: Idem. Ibidem., p. 50 684 Idem. Ibidem., p. 51. 685 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. p. 93. Livre tradução do original: La manifestación de voluntad de un estado puede producir el efecto jurídico deseado; esta clase de declaración se llama negócios jurídicos unilaterales.

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protesto, renúncia e promessa.686 Por outro lado, da presença cada vez mais intensa

das organizações internacionais decorrem seus atos unilaterais, ou seja, seu direito

derivado.687 Para Velasco as organizações internacionais por meio de suas

atividades contribuem para a formação deste “[...] ao incorporar novas técnicas

centralizadas e institucionalizadas de criação de normas internacionais,

indiretamente, a influir nos procedimentos tradicionais de elaboração do Direito

internacional [...].”688

Para o jurista siciliano, então, a primeira manifestação do ordenamento

jurídico internacional corresponde à instituição “comunidade internacional”. As

normas jurídicas internacionais seriam apenas uma segunda manifestação de tal

ordenamento jurídico. Contudo, nem todos os posicionamentos doutrinários

coadunam com tal entendimento de Romano. Nesse sentido, para alguns

internacionalistas a primeira manifestação do direito internacional ocorre por meio

das normas jurídicas. Segundo Reuter, o direito internacional corresponde a uma

ordem jurídica, sendo que “Qualquer ordem jurídica é caracterizada pelas normas,

gerais ou individuais que a constituem pelo caráter ordenado desse conjunto e por

uma plenitude mais ou menos marcada (ausência de lacunas).” Para Reuter, três

são as condições para identificação das normas jurídicas internacionais: enunciarem

uma obrigação; enunciarem uma obrigação jurídica e não política ou moral; e por

fim; enunciarem uma obrigação jurídica internacional. Esta condição de “obrigação

jurídica internacional”, significa que “[...] a norma posta em causa se refira às outras

normas do DI no que diz respeito à sua validade, eficácia e sanção.” Entendimento o

qual se deve por Reuter conceber o caráter sistêmico do direito internacional. O que

exige assim a compatibilidade uma norma posta em causa com as demais regras já

admitidas no sistema.689

686 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. p. 93-94 687 VELASCO, Manuel Diez. Instituciones de derecho internacional público. p. 183 688 Idem. Ibidem., p. 182. Livre tradução do original: [...] al incorporar nuevas técnicas centralizadas e institucionalizadas de creación de normas internacionales, bien indirectamente, al influir en los procedimientos tradicionales de elaboración del Derecho internacional [...]. 689 REUTER, Paul. O carácter sistemático do direito internacional. In: Direito internacional público. p. 24-25. A respeito das demais concepções do direito internacional como um sistema de normas jurídicas, consultar também: como um sistema jurídico autônomo que decorre do consentimento dos Estados [consentimento: convencional, como os tratados; e não convencional, como os costumes e os princípios gerais] dos Estados, vide: REZEK, Francisco. Direito internacional público. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005; como um conjunto de normas jurídicas que regulam as relações mútuas entre Estados e demais pessoais internacionais, vide: ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002

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Por fim, o jurista siciliano contrapõe tanto as concepções reducionistas

do direito quanto às que alegam a inexistência de um direito internacional devido à

anarquia da comunidade internacional com a conseqüente carência de leis, de juízes

e de autoridades executoras.690 Para Romano, as leis que correspondem ao direito

internacional possuem natureza diversa daquelas do direito estatal. Desse modo, a

vontade dos Estados, os costumes e os princípios fundamentais originam as leis do

ordenamento internacional.691 No tocante à ausência de juízes, “[...] o conceito de

direito não se fixa àquele de juiz, mas logicamente, se não historicamente, o

precede.”692 Enfim, a garantia do direito internacional não dependeria de qualquer

agente de execução, uma vez que o próprio direito internacional permite certas

medidas coercitivas, como por exemplo, a própria guerra.693

3.1.1 Definição do direito internacional

A definição do direito internacional por ser, de acordo com Touscoz,

uma tarefa doutrinal difere de acordo com o que cada autor entende como mais

próximo da realidade e que ofereça “[...] o melhor fundamento teórico e prático à

análise e à aplicação do Direito Internacional”.694 Nesse sentido, para Romano, o

direito internacional695 somente poderia ser definido senão indicando o ente, ou

melhor, a instituição na qual este se manifestaria. A comunidade internacional

690 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 04. Livre tradução do original: Si à detto tavolta, anzi insistentemente, che il diritto internazionale non è diritto, perchè in esso non si hanno nè leggi, nè giudici, nè autorità esecuzione, («ni legislatuer, ni juge, ni gerdame», oppure «ni code, ni tribunal, ni force publique»). 691 Idem. Ibidem., p. 05 692 ROMANO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] il concetto di diritto non si lega aquello del giudice, ma logicamente, se non sotricamente, lo precede. 693 Idem. Ibidem., p.06. Livre tradução do original: Spesso viene rilevato che esso permette uma serie di misura coercitive, e fra queste la guerra, come mezzi di autotutela. 694 TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 23 695 Quanto à denominação direito internacional, Accioly menciona que “A expressão direito internacional (international law) surge com Jeremias Bentham, em 1780, que utilizou em oposição a national law e a municipal law.” Accioly ainda adverte que “Traduzida para o francês e demais línguas latinas como direito internacional , a expressão tem sido criticada, visto que para elas a palavra nação não tem o mesmo significado de Estado, como em inglês.” Contudo, atualmente a denominação direito internacional é pacificamente utilizada. In: ACCIOLY, op. cit., p. 05. Ademais, Romano também refere-se a outras expressões também utilizadas para denominação do direito internacional: ius gentium, ou ius inter gentes [Zouch], direito dos povos [Volkerrech]; direito dos Estados [Staatenrecht – Kant]; direito interestatal. Cf.: ROMANO, op. cit., p. 01-02

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corresponderia, assim, a esta primeira manifestação do ordenamento jurídico

internacional. Seria nesta comunidade unitária que o mesmo se concretizaria. Além

disso, o autor ainda ressalta que a comunidade internacional seria composta

principalmente pelos Estados, os quais necessitam estabelecer relações contínuas

entre si, expressando uma organização social. E logo, expressando o maior dos

entes sociais.696 Essas seriam algumas das principais características da primeira

manifestação do direito internacional, ou seja, da instituição “comunidade

internacional”.697 Contudo, o ordenamento jurídico internacional também se

manifestaria em momentos posteriores à instituição “comunidade internacional”.

Nesse contexto, Romano, destaca algumas observações quanto a esta segunda

manifestação do direito internacional por meio das normas jurídicas.

A primeira dessas corresponde a certas concepções do “direito

internacional” consideradas, por Romano, como equivocadas. Equivocadas em dois

sentidos extremos: por vício e por excesso.698 No primeiro caso, trata-se daquelas

que definem o direito internacional como ordenamento das relações estabelecidas

somente entre Estados sem admitir qualquer exceção [uma vez que, para Romano,

existe a possibilidade de exceção].699 Conforme já mencionado, a concepção

romaniana de direito internacional não ignora a possibilidade de outros entes que

não são Estados fazerem parte da comunidade internacional, como por exemplo, a

Santa Sé,700 ainda que os Estados sejam considerados como os principais membros

da instituição “comunidade internacional”. No segundo caso, as equivocadas por

excesso, Romano aponta para aquelas que consideram que o direito internacional

regulamentaria toda e qualquer relação entre Estados.701 Entretanto haveriam certas

relações entre Estados que não compete ao direito internacional regulamentar.702

Quando um Estado estrangeiro, por exemplo, compra uma propriedade de um outro

Estado, esta relação rege-se pelo direito civil deste último.703

696 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 01 697 Características essas as quais foram abordadas anteriormente, na secção 3.1, do presente trabalho. 698 Idem. Ibidem., p. 02 699 ROMANO, loc. cit. 700 ROMANO, loc. cit. 701 ROMANO, loc. cit. 702 ROMANO, loc. cit. 703 ROMANO, loc. cit. Conforme já mencionado na secção anterior, do presente estudo, outras concepções também refutadas por Romano correspondem àquelas que negam a existência do direito internacional e apenas reconhecem o direito interno, pois isso significa, para Romano, a negação da própria comunidade internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 03

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Quanto ao direito internacional positivo, ou seja, as normas jurídicas de

direito internacional, estas para Romano não se confundem com a justiça, bem

como, não se confundem como o direito natural,704 mas corresponderiam a leis.

Ainda que os órgãos legislativos estejam ausentes na sociedade internacional, como

âmbito interno do Estado,705 tais normas são consideradas leis por Romano. Leis de

uma outra natureza, uma vez que decorreriam ou da vontade comum dos Estados

ou dos costumes e dos princípios fundamentais, não sendo, portanto, resultantes de

um ato de vontade de uma única autoridade e impostas a sujeitos que não

participaram de sua formação.706

Outra observação feita por Romano diz respeito à distinção entre o

direito internacional geral e o direito internacional particular.707 Conforme Romano, o

primeiro corresponde à instituição “comunidade internacional”, ou seja, o direito de

toda a comunidade. O direito internacional geral, então, inclui tanto a sua estrutura

fundamental, quanto os princípios e normas jurídicas que interessam a todos os

Estados.708 Por isso, consiste principalmente um direito não escrito.709 Por sua vez,

o direito internacional particular, segundo Romano, pode assumir um duplo aspecto

em sua concretização,710 quando este se concretiza em uma comunidade menor,

como uma associação de Estados, por exemplo. Outro aspecto corresponderia

quando este se concretizar nas relações que se estabelecem com um número

determinado de Estados. Neste caso, Romano refere-se, por exemplo, a um tratado

de extradição entre dois Estados.711 Nessa perspectiva, o autor menciona que o

direito internacional particular é principalmente um direito escrito, resultante dos

tratados firmados entre os Estados, podendo também decorrer de princípios

basilares de comunidades menores.712 Contudo, mesmo com esse duplo aspecto de

704 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 05 705 De acordo com já mencionado na secção anterior, do presente trabalho, a ausência de órgão legislativo, executivo e judiciário, na comunidade internacional, não comprometem, para Romano, a o reconhecimento da existência de um direito internacional. In: ROMANO, loc. cit. 706 ROMANO, loc. cit. Nesse sentido, Romano ainda adverte que o conceito de lei, como norma jurídica, não se esgota no conceito de lei como de autoridade, a qual corresponde somente a uma espécie da lei. In: ROMANO, loc. cit. 707 Idem. Ibidem., p. 08 708 ROMANO, loc. cit. 709 Idem. Ibidem., p. 10 710 Idem. Ibidem., p. 08 711 ROMANO, loc. cit. 712 Idem. Ibidem., p. 10

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sua concretização,713 o direito internacional particular não significaria uma outra

instituição, diferente da mais ampla, ou seja, da comunidade internacional. Nesse

sentido, Alessandro Migliazza menciona que não seria possível traçar uma distinção

entre um ente organizado [direito internacional geral] e um outro também organizado

[direito internacional particular] a partir da alegação de normas internacionais

especiais, pois estas integrariam aquela e por isso se relacionariam entre si.714 Logo,

o direito internacional particular estaria contido no direito internacional geral, uma

vez que este corresponderia ao da comunidade internacional como um todo.715 O

direito internacional geral, portanto, seria o fundamento do particular, não podendo

este ser contrário àquele. Porém, ainda que considerando a universalidade como a

vocação do direito internacional [geral], Touscoz adverte que “[...] na prática, as

regras ou instituições verdadeiramente universais são relativamente raras.” Por outro

lado, Touscoz ressalta a existência de “[...] numerosas normas e instituições que

regem as sociedade internacionais parciais, isto é, limitadas no espaço [...] ou

limitadas a certos sujeitos de Direito [...]”, o que corresponderia ao direito

internacional particular.716

Ademais, Romano destaca uma segunda distinção que ocorre entre

direito internacional público e direito internacional privado. Segundo o jurista italiano,

o direito internacional público “[...] é o que se põe com o concurso de todos ou ao

menos de muitos membros da comunidade internacional porque têm valores em

713 Quanto às relações estabelecidas entre determinados números de Estados, Romano enfatiza que as mesmas somente podem ser consideradas jurídicas se suas bases encontram-se no ordenamento de uma comunidade institucional, ou seja, na comunidade internacional geral. Segundo Romano, a autonomia dos Estados para estabelecerem relações com os demais, decorre da sua posição na comunidade internacional, o que se subentende uma organização, e, logo, um ordenamento jurídico. Vide: ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p.09 714 MIGLIAZZA, Alessandro. Il fenomeno dell’organizzazione e la comunità internazionale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1958. p. 192-193. Migliazza ainda ressalta que o direito vigente na ONU seria o direito internacional geral e não, particular, pois tal direito contribuiria para a formação do direito internacional geral e integraria a sua estrutura. Contudo, Migliazza não descarta a possibilidade que apenas em raríssimos casos as normas jurídicas de uma comunidade organizada como a ONU, por exemplo, poderia ser considerada como especial em relação ao direito internacional geral no sentido do âmbito de aplicação, porém tal especialidade estaria de acordo com o direito internacional geral. Já entre a comunidade internacional [geral] e, a comunidade “igreja Católica” e a comunidade estatal haveria um sistema de relações que permitiria pressupor uma autonomia destas em relação àquela comunidade internacional. Ver, a respeito: Idem. Ibidem., p. 189 e 192 715 ROMANO, op. cit., p. 08. Nesse contexto, ainda quando algumas menções são feitas a um direito internacional europeu, americano, asiático e africano, Romano adverte que essas não correspondem a um complexo de normas internacionais positivas diversas, separadas do direito internacional geral, mas sim a princípios, doutrinas que normas jurídicas propriamente ditas. In: Idem. Ibidem., p. 09 716 TOUSCOZ, Jean. Direito internacional. p. 23-24. A respeito das limitações espaciais, Touscoz cita como exemplo, as normas regionais, própria de certas atividades como o direito dos transportes aéreos. Já acerca das limitações pelos sujeitos, Touscoz faz referências aos tratados bilaterais entre os Estados. Cf.: Idem. Ibidem., p. 23-24

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suas relações recíprocas.”717 O direito internacional público, então, regula as

relações imediatamente e diretamente entre Estados e outros membros da

comunidade internacional.718 Já o direito internacional privado “[...] é posto por um

único membro da comunidade, em regra por um único Estado, com base em uma

autonomia que lhe é reconhecida pelo direito internacional público.”719 As normas

jurídicas do direito internacional privado regulariam as relações do Estado do qual

emanam e o particular, de um outro Estado, ambos envolvidos em determinada

questão [relação]. Sendo que obrigariam somente esses envolvidos.720 Romano

afasta os posicionamentos no sentido de que o direito internacional privado não

seria internacional, mas somente um direito interno, como por exemplo, o

posicionamento de Karl Heinrich Triepel de que o direito internacional privado seria

um direito “interno-internacional”.721 Para o autor italiano, o direito internacional

privado decorre do ordenamento jurídico internacional. Decorre uma vez que este: o

permite; o limita; o impõe e diz respeito a relações pertinentes à esfera interna do

ordenamento estatal, nas relações que colocam um Estado frente ao outro.722 Desse

modo, por direito internacional privado entende-se “[...] o complexo de normas com

as quais um Estado regula a eficácia de seu direito no espaço, tendo considerado o

direito dos demais Estados com os quais coordena o seu próprio.”723 Segundo

Romano, o direito internacional privado, portanto, depende do público, justamente

porque é este que tanto concede a autonomia aos Estados para regular a eficácia de

seu direito no espaço, quando o limita frente ao ordenamento interno dos demais.724

Por fim, uma última observação feita por Romano quanto à definição do

direito internacional, corresponde a clássica distinção entre o direito de paz e direito

de guerra.725 Nessa observação, Romano brevemente refere-se às diferentes

posturas tomadas pelo direito internacional em relação aos momentos em que os

717 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 10. Livre tradução do original: [...] è quello che si ponte col concorso di tutti o almeno di più membri della comunità internazionale perchè abbia valore nelle reciproche relazioni. 718 Idem. Ibidem., p. 11 719 Idem. Ibidem., p. 10. Livre tradução do original: [...] é posto da un singolo membro della comunità, di regola da un singolo Stato, in base ad una autonomia che gli è riconosciuta dal diritto internazionale publico. 720 ROMANO, loc. cit. 721 Conforme abordado na nota n. 620, secção 2.2.1.4, pg. 138, do presente trabalho. 722 Idem. Ibidem., p. 11 723 ROMANO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] il complesso delle norme con cui uno Stato regola l’efficacia del suo dirito nello spazio avendo riguardado al diritto degli altri Stati com cui coordina il próprio. 724 Idem. Ibidem., p. 13 725 ROMANO, loc. cit.

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Estados se encontram em conflitos, aos Estados beligerantes, aos Estados neutros,

bem como aos momentos em que os Estado convivem pacificamente. 726

Uma outra distinção não mencionada por Romano, mas atualmente

recorrente na definição e delimitação do objeto de estudo do direito internacional

corresponderia àquela entre as áreas científicas “direito internacional” e “relações

internacionais”. De acordo com Ricardo Seitenfus, enquanto que a disciplina de

relações internacionais “[...] encena um observatório da vida internacional, o DIP

constitui um determinante do comportamento dos seus atores e configura, então, um

dos objetos de estudo das relações internacionais.”727 Ao direito internacional, então,

competiria “[...] a responsabilidade de ordenar, do ponto de vista formal, as relações

internacionais.”728

O ordenamento jurídico internacional, portanto, manifesta-se em dois

momentos distintos: por meio de uma instituição e por meio das normas jurídicas. A

primeira manifestação corresponde à instituição na qual este se concretiza, ou seja,

a comunidade internacional. Nesta primeira manifestação, o jurista italiano aponta

para algumas características do ordenamento jurídico internacional, enquanto

instituição,729 ou seja, uma comunidade internacional complexa, originária,

necessária, perpétua, aberta e desprovida de personalidade jurídica. O segundo

momento de manifestação do ordenamento jurídico internacional acontece por meio

das normas jurídicas internacionais. Deste segundo momento, Romano destaca as

seguintes observações quanto à definição do direito internacional: as relações que o

mesmo rege comportam exceções, não se limitando tão-somente a relações

interestatais; suas normas jurídicas são consideradas leis de uma outra natureza,

decorrentes da vontade comum dos Estados ou dos costumes e dos princípios

fundamentais; a distinção entre direito internacional geral e direito internacional

particular; a distinção entre direito internacional público e direito internacional

privado; e, por fim, a distinção entre direito de paz e direito de guerra. A noção

romaniana de ordenamento jurídico internacional, ao considerar esses seus dois

momentos de manifestação tanto refuta qualquer negação da existência de um

726 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 13 727 SEITENFUS, Ricardo. Direito internacional público. 4. ed. Livraria do advogado: Porto Alegre, 2006. p. 30 728 SEITENFUS, loc. cit. Ver também: MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. p. 92-93 729 Vale lembrar que tais características do ordenamento jurídico internacional enquanto instituição foram abordadas na secção 3.1, do presente trabalho.

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direito internacional quanto ultrapassa as concepções que tentam reduzir o mesmo a

somente normas jurídicas.

3.2 A relação dos ordenamentos jurídicos entre si

Ao identificar a concepção de ordenamento jurídico a de instituição,

Romano apresenta uma leitura plural do direito que se expressa por meio do

princípio da “pluralidade de ordenamentos jurídicos”. Uma vez considerado o

ordenamento jurídico como corpo social unitário organizado, sendo em si e por si

jurídico, existirão tantos ordenamentos jurídicos quantos corpos sociais unitários

organizados. Quer isso dizer que, existirão tantos ordenamentos jurídicos quantas

instituições existirem. De acordo com o jurista siciliano, algumas instituições podem

se encontrar integradas a outra mais complexa. Mas, ainda assim certas

peculiaridades concernentes a uma determinada instituição permitiriam a sua

diferenciação para com as demais. Conseqüentemente Romano menciona a

possibilidade de diferentes ordenamentos jurídicos se relacionarem entre si,

principalmente, devido ao estado de autonomia relativa que as instituições

apresentam.730 No entanto, o que fundamenta tais relações entre instituições é a

“relevância”731 que um ordenamento jurídico pode ter para com outro. Relevância

que corresponderia à causa propulsora do relacionamento de ambos, a ponto de

Romano afirmar que ordenamentos jurídicos irrelevantes entre si, não se

relacionam.732 Contudo, esta relevância, de um ordenamento para com o outro, é

730 Conforme se verificou na secção 1.1.4, do presente trabalho, Romano apresenta uma classificação, não exaustiva, acerca das características fundamentais que as instituições possam vir a assumir ao relacionarem entre si, tendo em vista a autonomia relativa das mesmas. Vale, por ora, mencionar que nesta secção, 3.2, abordar-se-á qual o fundamento de tal relação entre as instituições, bem como as diferentes naturezas do condicionamento de um ordenamento para com o outro, o que possibilita, conseqüentemente, a identificação daquela classificação apresentada na secção 1.1.4, do presente trabalho. 731 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 30 732 Quando falta a relevância de um ordenamento jurídico para como outro, os mesmos não se relacionam entre si. Ocorre assim a questão da “irrelevância”, entre ordenamentos jurídicos, a qual, segundo Romano, possui um conteúdo em si e por si negativo, não podendo a mesma ser definido de outro modo, ou seja, a irrelevância significa uma “não relevância” entre ordenamentos jurídicos. A irrelevância, então, pode ser total ou parcial [implícita]; bem como pode ser recíproca ou unilateral [quando o ordenamento jurídico que é considerado irrelevante para um outro, atribui certa relevância

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jurídica e não somente de caráter político.733 Por conseguinte, “[...] para que exista

relevância jurídica, é necessário que a existência, o conteúdo ou a eficácia de um

ordenamento se demonstre condicionada por um outro ordenamento. Tal fenômeno

tendo por base um título jurídico.”734

Nessa perspectiva, um determinado ordenamento jurídico somente

relacionar-se-á com um outro que lhe seja juridicamente relevante, a ponto de estar

ao outro condicionado. Um condicionamento por três meios: quanto a sua

“existência”; ao seu “conteúdo”; ou a sua “eficácia”. Além disso, Romano ainda

ressalta que o título jurídico o qual alicerça esta relevância jurídica pode apresentar

naturezas diversas.735 Portanto, não tergiversando a diferença entre instituições e

considerando os três modos de condicionamento, o autor propõe uma distinção

quanto à natureza do título jurídico em que tal relevância se baseia.

No primeiro caso, o jurista siciliano refere-se a duas instituições que

podem estar em uma relação de superioridade e dependência entre seus

ordenamentos jurídicos.736 Essa relação de “subordinação” consistiria, assim, na

natureza de um título jurídico. Isso significa que uma instituição pode estar

compreendida em uma outra, concorrendo para a constituição desta última. Desse

modo, um ordenamento jurídico pode encontrar-se em um estado de subordinação e

de inferioridade em relação ao outro que o compreende. Porém, para Romano o

condicionamento do ordenamento jurídico inferior ao superior, pode corresponder a

diferentes graus e efeitos,737 por exemplo, um ordenamento jurídico inferior pode

estar condicionado a outro no tocante a sua existência e validade, como por

exemplo, a relação do Estado com demais entes que do mesmo dependem.738 Já

em outra relação, o ordenamento jurídico inferior pode não estar condicionado

quanto a sua validade a um outro ordenamento jurídico superior. Este, então, ainda

que em posição de superioridade, não poderia declarar inválido o ordenamento

a este que não o considera]. Cf.: ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 67 733 Nesse sentido, Romano ao abordar a concepção de relevância jurídica, ressalta que esta “[...] não deve ser confundida com a importância que um ordenamento pode ter para um outro, e nem mesmo com a uniformidade material de mais ordenamentos que não seja quista ou mesmo determinada por uma exigência não jurídica, mas somente política, de conveniência e oportunidade.” Cf.: ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. Cf.: Idem. Ibidem., p. 30 734 ROMANO, loc. cit. 735 Idem. Ibidem., p. 31 736 ROMANO, loc. cit. 737 ROMANO, loc. cit. 738 ROMANO, loc. cit.

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inferior. De acordo com Romano, esta é a relação que ocorre entre o ordenamento

jurídico internacional e o, interno.739

A outra natureza do título jurídico apontada por Romano, consiste

naquela onde um ordenamento jurídico é “pressuposto” ao outro. Deste modo, ao se

considerar a existência de um ordenamento jurídico mais complexo, se entenderia

que há outros ordenamentos inseridos naquele [complexo].740 Nesse contexto, para

o jurista italiano, “[...] o direito internacional pressupõe o direito estatal [...],”741

justamente porque, a comunidade internacional, enquanto uma instituição complexa,

tem por pressuposto as instituições estatais que da mesma são membros.

A natureza do título jurídico também poderia dizer respeito a uma

relação na qual dois ou mais ordenamentos jurídicos, interdependentes entre si, “[...]

dependam de um ordenamento que lhes é superior: fazendo com que possam ser

reciprocamente relevantes para os trâmites deste último, enquanto os coordena.”742

A título de exemplo, Romano refere-se ao direito internacional superior,

concomitantemente, aos ordenamentos internos.743

Como quarta natureza do título jurídico Romano refere-se àquela

relação em que há uma “relevância unilateral” por parte de um ordenamento a um

outro. Tal fenômeno ocorreria quando em uma determinada relação entre dois

ordenamentos jurídicos um destes, espontaneamente, condiciona alguns pontos de

seu “conteúdo” e “eficácia” ao outro ordenamento “[...] do qual é de fato

independente, mas que deste modo para ele se torna relevante.”744 Nessa

perspectiva, a relação entre dois ordenamentos jurídicos, independentes de fato,

torna-se, voluntariamente, uma relação de subordinação, quanto ao “conteúdo” e à

“eficácia” do ordenamento. Segundo o autor, tal relação ocorre com o direito

internacional privado, “[...] quando um Estado, por si e pela sua própria vontade,

concede um determinado lugar no seu ordenamento ao ordenamento dos Estados

estrangeiros.”745

739 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 31 740 Idem. Ibidem., p. 32 741 ROMANO, loc. cit. Quanto a essa relação de pressuposição, Romano ainda menciona a necessidade de estabelecer a diferença entre “[...] pressuposto necessário e essencial – cuja perda de força determina o fim do outro ordenamento – e pressuposto que influi somente sobre o conteúdo ou sobre outros momentos.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 742 ROMANO, loc. cit. 743 ROMANO, loc. cit. 744 ROMANO, loc. cit. 745 ROMANO, loc. cit.

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Por fim, Romano discorre sobre a natureza do título jurídico analisando

a sucessão entre dois ordenamentos jurídicos, que ocorre quando um torna-se

relevante para o outro porque se transfundiu neste outro [que o compreendeu].

Transfusão esta a ponto daquele deixar de existir de modo independente, bem

como, aquele passa a determinar a estrutura do ordenamento jurídico que o

compreendeu.746

A relevância jurídica de um ordenamento para com o outro, conforme

Romano, pode manifestar-se por três diferentes meios de condicionamento, como

por existência, conteúdo, ou eficácia. Essa relevância jurídica teria por base um

título jurídico, o qual pode apresentar naturezas diversas, conforme as cinco acima

mencionadas. Desse modo, analisando os três “meios de relevância” juntamente

com as cinco “naturezas dos títulos jurídicos” em que esta se baseia, o jurista

siciliano passa a abordar os momentos em que esta relevância é exercida.747

3.2.1 Os momentos de exercício da relevância

A relevância por “existência”, de acordo com Romano, pode ocorrer

tendo por base tanto o título jurídico de “subordinação”, quanto o título jurídico de

“pressuposição”. Primeiramente, o autor discorre sobre esta relevância por

“existência” tendo por base o título jurídico de “subordinação”, advertindo que um

requisito para que esta possa ocorrer é o “reconhecimento” de tal estado

subordinação por ambos os ordenamentos jurídicos, o superior e o inferior.748 Nesse

sentido, o jurista siciliano ainda salienta a distinção que há entre a existência total e

a parcial. A “existência total” consistiria naquela em que o ordenamento jurídico

superior e o inferior são exercitados na mesma esfera,749 sendo que, por isso,

746 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 32 747 Idem. Ibidem., p. 33 748 Idem. Ibidem., p. 37. Para que a existência de um ordenamento jurídico, então, dependa de um outro é necessário uma relação de subordinação reconhecida por ambos os ordenamentos, ou seja, não somente exigida pelo ordenamento jurídico superior, mas também reconhecida pelo inferior. Todavia, se esta subordinação for somente uma exigência do ordenamento superior e não reconhecida pelo inferior, a existência deste não dependerá daquele, mas somente a sua eficácia dependerá daquele, seno este o caso da relevância por “eficácia”, a qual será abordada posteriormente. Cf.: ROMANO, loc. cit. 749 Idem. Ibidem., p. 38

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possuiriam os mesmos súditos e território, e assim por diante. Conseqüentemente, o

superior poderá “[...] invalidar seja a existência integral da instituição subordinada,

seja a existência de parte de seu ordenamento.”750 Isso significa que o inferior

depende do superior em três momentos: criação, existência posterior e, criação e

existência posterior. Por outro lado, a “existência parcial” ocorreria quando o

ordenamento jurídico superior e inferior possuem esferas de exercício diferentes.

Logo, o superior poderá “[...] suprimir totalmente o inferior; mas, enquanto este

existir, o ordenamento superior não poderá invalidar diretamente seus atos, suas

normas, etc. [...].”751

Quanto à questão da “existência total” Romano, em primeiro lugar, se

refere ao caso do condicionamento da existência de um ordenamento jurídico

quando a relação de subordinação entre ambos for “absoluta”, uma vez que, tanto a

instituição inferior na sua integralidade como os elementos que a compõem estão

dominados pelo ordenamento jurídico superior.752 Nesse sentido, vem mencionado a

título de exemplo “[...] a população e o território de um município que são também

população e território do Estado.”753 A existência [criação] da instituição “município”

depende, portanto, da instituição estatal. Desse modo, o ordenamento jurídico

superior será fonte imediata do ordenamento jurídico inferior. Contudo, Romano

também se refere ao caso em que o condicionamento da existência de um

ordenamento jurídico para com um outro ocorrer de modo “não-absoluto”.754 Neste

caso, o ordenamento jurídico superior corresponderia ao “fundamento” do inferior, e

não o originário deste. Isso significa que o superior não corresponderia à fonte

originária do inferior, mas sim, a uma condicionante e limitadora da autonomia da

instituição inferior.755 Por isso, somente algumas das partes do ordenamento jurídico

inferior ficariam condicionadas quanto a sua existência ao superior, e não a sua

criação: “Em todo caso, o ordenamento superior determina as condições de validade

do ordenamento inferior.”756 Nesse sentido, Romano também refere-se, como

750 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 38 751 ROMANO, loc. cit. 752 Idem. Ibidem., p. 33. Para Romano, uma relação de subordinação entre dois ordenamentos jurídicos, na qual não há um “domínio absoluto”, não condiciona necessariamente a existência de um ao outro. Cf.: ROMANO, loc. cit. 753 ROMANO, loc. cit. 754 Idem. Ibidem., p. 34 755 ROMANO, loc. cit. 756 Idem. Ibidem., p. 33

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exemplo, a instituição “município”. Pois esta, após ser criada pelo Estado

[condicionamento de sua existência, ou seja, uma subordinação absoluta], possui

certa autonomia também atribuída pelo Estado, a qual pode ser exercida dentro de

determinados limites [subordinação não-absoluta].757 Ainda são mencionados outros

exemplos de subordinação não-absoluta, como as instituições públicas e privadas,

as quais estarão sujeitas à instituição estatal, uma vez que este permite que as

mesmas venham a surgir, mas também lhe atribuem certa autonomia.758 Reitera-se

que tais casos, então, correspondem a “existência total”, segundo a distinção feita

por Romano [existência total e parcial], uma vez que na existência total, o

ordenamento jurídico superior poderá invalidar seja existência integral ou parte, da

instituição inferior.

Já no tocante a “existência parcial”, Romano refere-se à relação que se

estabelece entre um Estado federado e seus respectivos Estados-membros. Uma

vez que, “[...] existe um ponto em que falta uma absoluta e completa subordinação, e

é precisamente este ponto que impede entre tais entes aquela fusão que, onde

fosse realizada daria lugar a um Estado unitário.”759 Ponto este que para o jurista

italiano expressa que o Estado-membro é totalmente originário em relação ao

Estado federal. Isso significa que em tal ponto, não haveria qualquer dependência.

No entanto, não é descartado pelo autor a possibilidade de um Estado federal

tornar-se um Estado unitário, devido a previsão constitucional, explicita ou

implicitamente.760 Contudo, nesta situação “[...] se poderia continuar a admitir que os

Estados-membros sejam verdadeiros Estados, mas tal qualidade deles seria

certamente precária e condicionada.”761

Ao lado do título jurídico de subordinação, o segundo caso em que a

relevância por “existência” pode ocorrer baseia-se no título jurídico de

“pressuposição”. Nesse estado, a existência do ordenamento jurídico superior

depende em certo sentido do ordenamento jurídico inferior. Logo, o ordenamento

757 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 33 758 Idem. Ibidem., p. 34-35. Todavia, Romano adverte que a autonomia atribuída pelo Estado a instituições públicas e privadas podem ser retiradas das mesmas, consideradas em sua unidade, bem como “[...] voltando-se aos súditos delas, que são também seus súditos, elidir e neutralizar a potestade da instituição que eventualmente fosse exercida em sentido contrário a sua.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 35 759 ROMANO, loc. cit. 760 Idem. Ibidem., p. 36 761 ROMANO, loc. cit.

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jurídico inferior seria pressuposto ao superior.762 Ocorreria o inverso da posição de

dependência que se estabelece no estado de subordinação.763 Porém, isso não

significaria que o inferior será fonte do superior.764 O jurista italiano destaca dois

exemplos dessa relações. O primeiro seria o caso dos Estados-membros serem

pressupostos do Estado federal. E o segundo seria o caso do ordenamento jurídico

estatal ser pressuposto do ordenamento jurídico internacional.765 Para Romano, o

direito dos Estados-membros de um Estado federal é pressuposto deste, naquele

ponto em que falta uma absoluta e completa subordinação, ponto o qual, conforme

mencionado, expressa o caráter originário do direto de um Estado-membro.766

Além dos momentos de exercício da relevância por “existência”,

também são salientados os momentos de exercício da relevância por “conteúdo”.

Nesse sentido, para o jurista siciliano a relevância de um ordenamento jurídico para

com um outro no que se refere ao “conteúdo” pode ocorrer de diversos modos,

dentre os quais Romano destaca cinco:767 o ordenamento superior corresponde à

fonte, imediata ou mediata, de um ordenamento inferior; ordenamento superior não é

fonte, mas influi de outros modos sobre o conteúdo de ordenamentos inferiores;768

ordenamento superior que influi sobre o conteúdo de mais ordenamentos

submetidos, mas entre si independentes;769 o ordenamento que determina por si

mesmo o próprio conteúdo tendo em conta outro ordenamento submetido ou

independente; e, por último, o ordenamento que se incorpora a um outro.

No primeiro caso, em que o ordenamento superior corresponde à fonte,

imediata ou mediata, de um ordenamento inferior, aquele “[...] devido a sua

superioridade determina diretamente ou indiretamente o conteúdo que um outro

ordenamento deve ter.”770 Como fonte imediata, é citado o caso, por exemplo, da

instituição “Estado” que determina certas condições quanto ao conteúdo que deverá

762 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 38 763 ROMANO, loc. cit. 764 Idem. Ibidem., p. 39 765 Ressalta-se que esta relação de pressuposição entre o ordenamento jurídico interno e o internacional, será abordada na secção 3.2.2, do presente trabalho. 766 ROMANO, loc. cit. 767 Idem. Ibidem., p. 43 768 Vale mencionar que esta questão do “ordenamento superior não é fonte, mas influi de outros modos sobre o conteúdo de ordenamentos inferiores”, será abordada na secção 3.2.2, do presente trabalho. 769 Vale mencionar que esta questão do “ordenamento superior que influi sobre o conteúdo de mais ordenamentos submetidos, mas entre si independentes”, será abordada na secção 3.2.2, do presente trabalho. 770 ROMANO, loc. cit.

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ter o ordenamento municipal, condicionando a validade da autonomia atribuída a

este.771 E no caso do ordenamento superior ser a fonte mediata do inferior, Romano

refere-se ao ordenamento estatal o qual é fundamento, e limita assim a autonomia

das instituições privadas.772

Conforme mencionado, o quarto modo de relação quanto ao conteúdo

ocorre quando um o ordenamento ao determinar por si mesmo o próprio conteúdo

tem em conta outro ordenamento submetido ou independente. Quer isso dizer que

um ordenamento jurídico determina unilateralmente o seu próprio conteúdo em

relação a outro ordenamento jurídico que está submetido ou independente àquele

[que unilateralmente determina seu conteúdo].773 Esse quarto modo de relação

quanto ao conteúdo poderia ocorrer em dois estado: de “submissão” e de

“independência”. O estado de “submissão” ocorreria, entre o ordenamento estatal e

o ordenamento jurídico de um Município: “[...] enquanto o direito Estatal é relevante

para o conteúdo do direito municipal devido a força da sua superioridade,

reciprocamente este último pode ser relevante para o primeiro, devido às próprias

disposições estatais.”774 No segundo caso, o estado de “independência”, tem-se

como exemplo a “relação”775 entre dois ordenamentos estatais. Esta seria uma

questão característica do “direito internacional privado”,776 uma vez que este versa

sobre casos em que o Estado, por si, espontaneamente, coordena o seu

771 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 43 772 ROMANO, loc. cit. 773 Idem. Ibidem., p. 47 774 ROMANO, loc. cit. Assim, alguns órgãos próprios e imediatos do Estado não são constituídos por este, uma vez que o exercício de tais funções serão exercitadas, também de acordo com os interesses estatais, por órgãos dos Municípios. Cf.: ROMANO, loc. cit. 775 A palavra “relação” foi, por ora, colocada entre aspas, pois conforme será mencionado na seqüência Romano refere-se a esse modo de condicionamento como uma “coordenação unilateral das competências legislativas”, onde, por ser unilateral, um Estado não estabelece, necessariamente, uma relação com o outro ordenamento jurídico. 776 Nesse contexto, Romano destaca que o ordenamento jurídico internacional age de dois modos sobre os Estados: primeiramente, enquanto instituição, limitando-se a indicar a posição geral de seus membros, posição esta juridicamente relevante; e, em segundo lugar, com normas individuais que impõe deveres e atribui direitos aos Estados em suas relações entre si. Desse modo, o direito internacional acaba por influenciar o direito interno tendo em conta esses dois modos. Quanto ao primeiro, devido à posição que um Estado ocupa, juntamente com os demais, influencia o mesmo a autolimitar-se; já no segundo caso, influencia devido às relações que os Estados estabelecem entre si as quais também resultam em deveres e direitos. Por conseguinte, Romano destaca que devido a tais ações e influência do direito internacional os Estados começam a limitar o efetivo conteúdo de seu próprio ordenamento jurídico e assim a coordenar os seus ordenamentos entre si. Nessa coordenação entre os ordenamentos estatais é que Romano menciona o “direito internacional privado”, referindo-se então, a questões envolvendo um ordenamento estatal para com o outro, e não ao ordenamento jurídico internacional, no sentido geral em que age sobre seus membros. Cf.: Idem. Ibidem., p. 49

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ordenamento jurídico com aquele de outros Estados.777 O conteúdo de certas

matérias, podem ser irrelevantes para o ordenamento jurídico de um Estado. Desse

modo, o seu ordenamento se ocupa da mesma só negativamente, ou seja, deixando

que outro Estado a regule,778 a fim de “[...] impedir os conflitos e concursos das

potestades legislativas de mais ordenamentos, que podem ter em comum a mesma

matéria.” Todavia, a matéria regulada pelo outro Estado somente valerá para o

Estado que a põe, e não a todos Estados da comunidade internacional.779 Nesse

caso o Estado também levaria em conta o fato de que uma pessoa, uma coisa ou

uma certa relação possam envolver vários ordenamentos jurídicos.780 Por isso, tal

Estado regularia por conta própria esta questão, escolhendo um daqueles

ordenamentos. Mas isso não impediria que, dentre estes, o Estado pudesse

escolher o seu próprio ordenamento.781 Duas, então, seriam as finalidades desse

quarto modo de relação quanto ao conteúdo ocorrendo em um estado de

independência: regulamentar uma matéria considerada irrelevante para um

determinado ordenamento estatal; e, evitar um possível conflito entre ordenamentos

estatais. Consoante Romano, para alcançar essas finalidades não significa que um

Estado venha a conferir competência legislativa ao Estado estrangeiro.782 Mas sim,

significa uma questão de “reenvio formal” ao direito estrangeiro.783 Para Romano,

esta questão está ligada assim ao “[...] princípio de que o direito estatal se auto-

limitou, o que significa que o direito estrangeiro é chamado a imperar em um campo

em que este não impera [...].”784 Conseqüentemente, o direito estrangeiro não

poderia valer como parte do direito estatal, mas sim permanece como estrangeiro.785

777 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 48 778 “Cada Estado regula somente a própria competência legislativa e a regula também quando a limita.” Cf.: Idem. Ibidem., 53 779 Idem. Ibidem., p. 50 780 Idem. Ibidem., p. 51 781 ROMANO, loc. cit. Segundo Romano, trata-se assim de um conflito que se apresenta primeiramente perante o legislador e não perante ao juiz. Cf.: ROMANO, loc. cit. Tais normas, então, Romano as denomina de “normas de colisão”, pois visam evitar conflito ou concorrência entre ordenamentos jurídicos estatais quanto a mesma matéria. Vide: Idem. Ibidem., p. 52 782 ROMANO, loc. cit. Isso, então, corresponde a uma coordenação unilateral das competências legislativas de vários Estados que vincula apenas o Estado que a realiza, e não todos da comunidade internacional, segundo Romano, “Trata-se de um processo que se realiza no âmbito interno do Estado que se limita por si mesmo, por sua conta, e atribui um valor qualquer ao ordenamento de um outro Estado sem entrar em relação com este último”. Cf.: Idem. Ibidem., p. 53 783 Idem. Ibidem., p. 52 784 ROMANO, loc. cit. 785 ROMANO, loc. cit. Romano, portanto, refuta qualquer concepção de reenvio no sentido de que “[...] a lei estrangeira conseqüentemente deva ser transformada em lei própria do ordenamento que ela faz apelo.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 55

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Segundo o jurista italiano, então, o reenvio ao direito estrangeiro implica em duas

hipóteses: “[...] (1) delimitação do ordenamento jurídico de um Estado, como

premissa da (2) declaração de que uma determinada matéria é regulada pelo direito

estrangeiro como tal.”786 Portanto, o Estado ao autolimitar o seu ordenamento

jurídico, unilateralmente, já condicionaria o conteúdo de certas matérias ao

ordenamento jurídico de um outro Estado. Conteúdo este que seria aplicado

enquanto direito estrangeiro, não sendo “nacionalizado”. Além disso, surtiria

conseqüências apenas para aquele primeiro Estado que o aplica.

Por último, o quinto modo destacado, trata de quando um ordenamento

jurídico se incorpora a um outro. Nesse, a relevância do conteúdo se daria entre

ordenamentos jurídicos que não estão vigentes contemporaneamente,787 como

ocorreria nos modos anteriormente mencionados. Esse quinto modo consistiria na

influência de um ordenamento jurídico, que é extinto, no conteúdo de um outro, que

o incorpora, caso o qual poderia ocorrer entre instituições da mesma natureza, como

um Estado que anexa outro, bem como, poderia ocorrer entre instituições de

naturezas diversas, como um Município que é incorporado por um Estado.788

Romano, então, ressalta que a questão da incorporação de uma instituição por

outra, corresponderia à união de dois ordenamentos jurídicos.789 Desse modo, o

ordenamento jurídico incorporado poderia persistir, se mantendo por um

determinado período,790 como também, este poderia modificar o seu conteúdo,

ocorrendo assim o fenômeno de sucessão entre ordenamentos jurídicos.791 No

entanto, enquanto não ocorrer essa modificação, o ordenamento jurídico

incorporado influencia o ordenamento jurídico que o incorporou.792

Além da relevância por “existência” e por “conteúdo”, Romano, enfim,

discorre sobre os momentos de exercício da relevância por “eficácia”. Quer isso

786 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 53 787 Idem. Ibidem., p. 55 788 Idem. Ibidem., p. 55-56 789 Idem. Ibidem., p. 56 790 Nesse sentido, Romano aborda que o ordenamento jurídico incorporado se re-coliga ao incorporador, “[...] no qual trava o seu fundamento jurídico, como as outras partes que compõem este último.” Não prejudicando, contudo, a identidade objetiva de se próprio ordenamento [incorporado], até que o incorporador o modifique e o substitua. Vide: Idem. Ibidem., p. 57 791 ROMANO, loc. cit. De acordo com Romano, a sucessão entre ordenamentos jurídicos ocorre quando o que incorporou modifica o ordenamento incorporado, “O sucessor é o sujeito anexador perante àquele anexo total ou parcialmente, e o objeto da sucessão é o ordenamento deste último ou uma parte sua, mais ou menos organicamente determinada.” Vide: ROMANO, loc. cit. 792 ROMANO, loc. cit.

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dizer quanto aos efeitos tanto internos, quanto externos de um ordenamento jurídico

para com os demais.793 O jurista siciliano, primeiramente, adverte que a regra

segundo a qual a eficácia de um ordenamento jurídico é questão “interna”, limitada

pelo âmbito de domínio de um outro ordenamento jurídico, não é absoluta e

comporta exceções.794 Para Romano, a eficácia de um ordenamento jurídico é

também uma questão “externa”. Isso significa que leva em conta os efeitos

“externos”, a eficácia de um ordenamento jurídico para um outro. Nessa perspectiva,

os casos de eficácia externa se apresentariam nas relações entre os ordenamentos

jurídicos, quando um é total ou parcialmente dependente do outro; nas relações

entre mais ordenamentos jurídicos independentes, por disposição unilateral de um

ou de cada um desses; nas relações entre mais ordenamentos jurídicos em que um

é pressuposto do outro;795 e, nas relações entre mais ordenamentos jurídicos que se

sucedem um ao outro.

O primeiro caso consiste nas relações entre ordenamentos jurídicos,

quando um é total ou parcialmente dependente do outro. Nesse caso se teria por

base o título jurídico de “subordinação”.796 Por conseqüência, se a subordinação

entre ambos ordenamentos jurídicos for total, “[...] é claro, que o ordenamento

superior poderá determinar qual eficácia este possa ou deva ter também para o

ordenamento inferior e, vice-versa, qual eficácia este último tenha para o

primeiro.”797 A título de exemplo, Romano se refere à dependência do ordenamento

jurídico municipal para com o estatal, uma vez que este condiciona a eficácia

daquele.798 Já quanto à subordinação parcial, é mencionada como exemplo, a

relação entre o Estado federal e os seus respectivos Estados-membros.799

O segundo caso corresponde às relações entre mais ordenamentos

jurídicos independentes, por disposição unilateral de um ou de cada um desses.

Neste, Romano refere-se “[...] a relação de independência, que acontece entre os

direitos internos dos vários Estados.”800 Relação esta examinada, segundo o jurista

793 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 58 794 ROMANO, loc. cit. 795 Vale mencionar que este caso, “das relações entre mais ordenamentos jurídicos em que um é pressuposto do outro”, será abordada na secção 3.2.2, do presente trabalho. 796 ROMANO, loc. cit. 797 ROMANO, loc. cit. 798 ROMANO, loc. cit. 799 Idem. Ibidem., p. 59 800 ROMANO, loc. cit.

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siciliano, pelo direito internacional privado.801 Certa eficácia é, então, reconhecida ao

direito estrangeiro, contudo, se trata de uma eficácia que não coincidiria com a que

lhe é própria no seu âmbito interno.802 O que ocorreria é a atribuição de valor fora de

tal âmbito interno, somando a sua eficácia interna.803 Entretanto, esta eficácia

somada poderia vir a ser reduzida, uma vez que o reconhecimento da mesma pelo

outro ordenamento jurídico [nacional] fica condicionado a questões como a não

contrariedade da ordem pública e dos bons costumes.804 Essa norma jurídica, que

estabelece os efeitos de uma norma ou de um ato jurídico estrangeiro, deveria ser

então, considerada como uma norma jurídica nacional. Por outro lado, a norma e o

ato jurídico do outro ordenamento permanecem como “estrangeiros”,805 não sendo

estes, segundo Romano, “nacionalizados”, ainda que tal norma e ato jurídico sejam

aplicados e venham a surtir seus efeitos no ordenamento jurídico [nacional] que os

reconhece.806

Por fim, o caso das relações entre mais ordenamentos jurídicos que se

sucedem um ao outro, ou seja, “[...] um ordenamento jurídico já extinto continue a ter

certos dos seus efeitos em um outro que representa a continuação dele.”807 Seria o

caso, por exemplo, de um ordenamento jurídico incorporador que venha a aplicar e

reconhecer a eficácia de certas normas jurídicas do ordenamento jurídico

incorporado, as quais “[...] tinham sido revogadas antes da união [...].” Mas que

ainda não correspondiam ao ordenamento jurídico incorporador.808

A autonomia relativa das instituições, portanto, possibilita que as

mesmas relacionem-se entre si. A causa propulsora desse relacionamento

corresponderia à “relevância” que, por sua vez, se expressa pelo condicionamento

de um ordenamento jurídico a um outro, por meio da “existência”, ou do “conteúdo”,

ou da “eficácia”. Ademais, devido à diversidade da natureza do título jurídico em que

801 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 59 802 ROMANO, loc. cit. 803 ROMANO, loc. cit. 804 Idem. Ibidem., p. 60 805 Idem. Ibidem., p. 61. Nos dizeres de Romano, “Desse modo, acreditamos, [...] que a sentença estrangeira cuja execução é permitida por um outro Estado no próprio âmbito não é “nacionalizada”, e muito menos, por exemplo, a nomeação de um cônsul, cujo deste se concede o exequatur.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 806 ROMANO, loc. cit. No dizeres de Romano, “[...] tudo isso demonstra que a eficácia de uma lei estrangeira é determinada pela lei nacional, sem que a lei estrangeira cesse, por esta última, de existir com tal e se transforme também em lei nacional.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 62 807 Idem. Ibidem., p. 63 808 ROMANO, loc. cit.

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esse fenômeno da “relevância” se baseia, são também diferentes, os momentos em

que a mesma é exercida. Não diferentemente, o ordenamento jurídico internacional

e o ordenamento jurídico interno também estabelecem relações entre si. Isso

significa que um é relevante para o outro. Por fim, três são os diferentes meios de

condicionamento em que a “relevância” se manifesta, bem como, são diferentes as

naturezas do título jurídico em que a mesma se baseia.

Ao partir de tais considerações, Romano inicia a sua análise das

peculiaridades que se apresentam na relação que se estabelece entre direito

internacional e direito interno. Peculiaridades as quais serão abordadas na secção

seguinte, do presente trabalho.

3.2.2 A relação entre ordenamento jurídico internacional e ordenamento jurídico

estatal

Conforme já abordado, três são os meios que condicionam uma

instituição a uma outra. Quer isso dizer que um ordenamento jurídico pode ser

relevante ao um outro por sua existência, seu conteúdo ou sua eficácia. Além disso,

tal relevância baseia-se em diferentes títulos jurídicos. Acerca desses meios de

relevância entre ordenamento jurídico internacional e ordenamento jurídico interno,

Romano entende que, quanto às condicionantes de “existência” e de “validade”,

baseadas no título jurídico “de subordinação”, não há qualquer dependência entre

ambos os ordenamentos.809 Não haveria uma relação de “subordinação” quanto à

“existência” e a “eficácia” do direito internacional para com o direito interno, e vice-

versa, o que expressaria a separação entre os dois ordenamentos jurídicos.

Segundo os dizeres de Romano “O direito internacional, enfim, nos oferece o

exemplo de um ordenamento superior àqueles dos Estados, que, todavia não

dependem dele nem no que concerne a sua existência integral, nem no que se

refere à validade das suas manifestações individuais.”810 Nesse contexto, Romano

destaca duas proposições que fomentam essa sua assertiva. Primeiramente, a

809 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 36 810 ROMANO, loc. cit.

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autonomia interna do Estado em manifestar seu próprio ordenamento jurídico, a qual

não é atribuída pelo direito internacional, ou seja, é de caráter originário a autonomia

estatal.811 Isso significa que “[...] a existência ou não de um Estado, ou seja, do

ordenamento jurídico estatal, é de fato independente do direito internacional, sendo

objeto estranho ao seu conteúdo, matéria a ele subtraída.”812

Já na segunda proposição, Romano alega que “O direito internacional

se dirige somente aos Estados, cada um considerado na sua própria unidade, não

seus órgãos ou súditos [...].”813 Desse modo, o direito internacional não condicionaria

a validade das condutas de tais órgãos e súditos do Estados.814 Para o jurista

siciliano, não competiria à esfera da “eficiência” do direito internacional “[...] o poder

de negar validade às manifestações individuais do ordenamento estatal.”815

Entretanto, ao contrário do título jurídico de “subordinação”, Romano

ressalta que tendo por base o título jurídico de “pressuposição”, existe uma relação

entre ordenamento jurídico internacional e interno, no que concerne ao

condicionante de “existência”. Conforme anteriormente mencionado, no estado de

“pressuposição”, a existência do ordenamento jurídico superior dependeria do

ordenamento jurídico inferior. Mas isso não significa que o inferior é “fonte” do

superior. Particularmente na relação entre o ordenamento jurídico internacional e o,

interno, “O direito estatal é, pois, manifestamente, o pressuposto necessário do

direito internacional.”816

Uma vez que, a comunidade internacional, enquanto instituição, tem

como um de seus membros a instituição estatal, ao ser considerada a existência do

ordenamento jurídico internacional pressupõe-se a existência do ordenamento

jurídico interno. Consoante Romano, referindo-se ao direito internacional, “[...] o

conjunto dos ordenamentos estatais é uma condição da sua mesma existência.”817

Condição de existência baseado em um estado de pressuposição, e não de

subordinação. O direito internacional, então, impõe deveres e atribui direitos aos

811 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 36 812 Idem. Ibidem., p. 37 813 ROMANO, loc. cit. 814 ROMANO, loc. cit. 815 ROMANO, loc. cit. 816 ROMANO, loc. cit. 817 Idem. Ibidem., p. 39

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Estados.818 Impõe deveres e atribui direitos a entes não físicos, mas sim jurídicos,

como a instituição estatal. Por isso, Romano entende que se faz necessária a

organização de tal ente não físico para que o mesmo possa expressar sua vontade,

mais precisamente, para que o Estado possa expressar sua vontade por meio de

seus órgãos.819 Essa organização, contudo, não seria determinada pelo

ordenamento jurídico internacional, mas sim pelo “[...] próprio direito estatal, que,

conseqüentemente, constitui o pressuposto daquele.”820 Pressuposto este jurídico e

não somente de fato, uma vez que o ordenamento jurídico internacional “[...] atribui

ou reconhece aos Estados uma personalidade nas suas relações recíprocas.”821 A

organização estatal corresponderia, portanto, a uma questão jurídica para o

ordenamento jurídico internacional, e não apenas a uma questão fática.822 Ademais,

Romano ainda adverte que o direito internacional “[...] somente pressupõe, em

diferente medida e com efeitos diferentes, a organização dos Estados, não se

ocupando de tal organização nem mesmo para declarar que não quer dela se

ocupar, mas levando sempre em consideração a mesma.”823 Isso significa que

competiria somente ao ordenamento jurídico interno organizar-se e definir qual o

órgão competente para a manifestação da vontade estatal. Ao ordenamento jurídico

internacional, competiria apenas reconhecer a vontade do Estado [já organizado],

independentemente do órgão que a emana.

Como mencionado, aos Estados são impostos deveres e atribuídos

direitos pelo direito internacional, os considerando em sua unidade e não os

considerando em suas partes individuais. No entanto, Romano não ignora que

algumas destas partes do ordenamento jurídico interno podem ser relevantes para o

818 Vale ressaltar que conforme Romano, os Estados são considerados pelo direito internacional em sua unidade (personalidade de cada Estado), como se fossem fechados, e “[...] não nas suas partes individuais e, por isso, não nas normas e nos preceitos dos quais são compostos [...].” Cf.: ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 39 e 41 819 Idem. Ibidem., p. 39 820 ROMANO, loc. cit. 821 Idem. Ibidem., p. 40 822 Romano para enfatizar essa importância da “organização estatal” para o ordenamento jurídico internacional, menciona que “[...] se alguns Estados são considerados sem capacidade, e assim, por diante, são problemas que não se resolvem convenientemente a não ser tomando em consideração a constituição interna dos Estados.”, tais problemas então dependem da organização interna do Estado, e não do direito internacional. Desse modo, um Estado não organizado pode não fazer parte da sociedade internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 42 823 Idem. Ibidem., p. 41

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ordenamento jurídico internacional.824 Partes, como por exemplo, certas garantias825

de que tais deveres e direitos serão observados, porque na comunidade

internacional seus membros se encontram em um estado de igualdade.826 Isso,

contudo, não prejudicaria a separação entre os dois ordenamentos jurídicos, bem

como, não prejudicaria a possível contrariedade do direito interno em relação ao

direito internacional. As divergências entre tais ordenamentos poderiam ocorrer em

determinadas relações e em determinados casos,827 entretanto, Romano não deixa

de ressaltar que a sociedade dos Estados é regulada pelo direito internacional.828

Conseqüentemente, para o jurista italiano, um determinado Estado pode não fazer

parte desta sociedade, uma vez que este Estado não “[...] seja organizado ou

constituído assegurando [...] a conformidade da sua conduta às regras daquela

sociedade.”829

Outro meio de relevância entre o ordenamento jurídico internacional e o

ordenamento jurídico interno é aquele referente ao “conteúdo”, em particular, ao

referir-se à relação em que “um ordenamento superior não é fonte, mas influi de

outros modos sobre o conteúdo de ordenamentos inferiores.”830 Isso significa que,

nessa relação há uma superioridade limitada do ordenamento jurídico superior, o

internacional, “[...] não somente pelas suas próprias características ou pelas suas

mesmas normas, mas também por uma independência própria e originária do

ordenamento inferior, que se conforma com aquela superioridade.”831 Contudo, a

superioridade limitada do direito internacional não prejudicaria a separação entre tais

ordenamentos jurídicos, já que o direito internacional não poderia condicionar a

824 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 41. A respeito dessas partes relevantes, o direito internacional “[...] não influi, mas, não obstante, sente a necessidade de levá-las em consideração, de indicá-las como elementos constitutivos daquela unidade que é personalidade de cada Estado.” Cf.: ROMANO, loc. cit. 825 Quanto à questão dessas “garantias”, não se encontrarem no mesmo ordenamento jurídico das normas jurídica que visam proteger, Romano menciona que se deve entender também por “garantia”, “[...] aquelas indiretas e relativas sobre as quais um ordenamento pode se assentar, estas podem bem se encontrar na estrutura interna dos seus sujeitos, na sua mesma organização, e, conseqüentemente, nos pressupostos do mesmo ordenamento”, como se dá com o caso das garantias do direito internacional presentes no direito interno. Cf.: Idem. Ibidem., p. 43 826 Tendo em vista este estado de igualdade “[...] o ordenamento interno de cada Estado reconhecido contém, implicitamente ou explicitamente, a norma fundamental que impõe aos seus órgãos, ao menos como regra, o respeito ao direito internacional e a emanação daqueles atos que fazem com que seja respeitado pelos súditos.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 42 827 ROMANO, loc. cit. 828 ROMANO, loc. cit. 829 ROMANO, loc. cit. 830 Idem. Ibidem., p. 43 831 Idem. Ibidem., p. 44

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“existência” nem a “validade” do ordenamento jurídico interno. Além disso, o direito

internacional não poderia também determinar “imediatamente” o “conteúdo” deste

direito interno. Contudo, o jurista italiano não descarta a possibilidade de o direito

internacional determinar “mediatamente” o conteúdo do direito interno.832 Nesse

sentido, o direito internacional poderia influenciar de um modo “não imediato” o

conteúdo do direito interno “[...] impondo ou proibindo, ou , ao contrário, autorizando-

o a fazer tais coisas.”833 No entanto, caso o Estado não viesse a observar essas

previsões do direito internacional, e conseqüentemente, o conteúdo de seu

ordenamento jurídico contrariar o direito internacional, o Estado “[...] terá violado um

dever internacional relevante seu, mas o seu ordenamento interno será, em si e por

si, plenamente legítimo.”834 Portanto, de qualquer forma, competiria ao Estado

determinar o conteúdo de seu ordenamento interno, seja este influenciado ou não

pelo direito internacional.

Ainda quanto ao “conteúdo”, existiria uma outra relação possível entre

ordenamento jurídico internacional e interno que ocorreria no sentido de que o

ordenamento jurídico superior [internacional] influiria sobre o conteúdo de outros

ordenamentos jurídicos, independentes entre si, mas ao mesmo submetidos.835

Seria uma influência no sentido de “coordenação”, fazendo com que o direito

internacional coordenasse os diferentes ordenamentos jurídicos estatais. O direito

internacional ao propor a coordenação entre os demais ordenamentos estatais,

condicionaria o conteúdo destes, limitando-os a certos critérios “[...] que em algumas

vezes comportam o dever negativo de não estendê-lo a não ser de ao próprio

território e aos próprios súditos, outras, comportam o dever positivo de se referir em

certas matérias ao direito dos outros Estados.”836

Enfim, além dos meios de relevância por “existência” e por “conteúdo”

Romano também discorre sobre a relevância por “eficácia” entre ordenamento

832 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 44 833 ROMANO, loc. cit. 834 ROMANO, loc. cit. Nesse contexto, Romano menciona que “Somente desse ponto de vista e nesse sentido, é possível então falar, [...], de uma legislação, explícita ou implicitamente, direta ou indiretamente, imposta, proibida ou permitida ao Estado pelo direito internacional”, ou seja, somente por uma influência, de modo que o direito internacional não constitui o direito interno. Cf.: ROMANO, loc. cit. Essa influência decorre, destarte, em primeiro lugar do “[...] exercício de um direito subjetivo ou da observância de um dever subjetivo que advém ao Estado [...]” do direito internacional, frente aos demais Estados. Vide: Idem. Ibidem., p. 45 835 Idem. Ibidem., p. 46 836 ROMANO, loc. cit.

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jurídico internacional e ordenamento jurídico interno.837 Conforme já abordado, a

relevância por “eficácia” refere-se aos efeitos tanto internos, quanto externos de um

ordenamento jurídico para com os demais. Dos casos referentes à questão da

eficácia externa,838 o autor destaca aquele das relações entre mais ordenamentos

jurídicos em que mesmo um sendo pressuposto do outro, pode surtir seus efeitos

para o outro.839 Esse seria um caso que ocorreria entre ordenamento jurídico

internacional e interno, tendo em vista a relevância por eficácia, uma vez que a

eficácia de um tratado está “[...] condicionada à emanação, por parte dos Estados

contraentes, ou de Estados terceiros, de um direito objetivo que assim, se vem

emanado, tem efeito de fazer verificar a condição posta àquele tratado.”840 Além

disso, o jurista siciliano ainda menciona que se o direito internacional influencia

mediatamente o direito interno para emanação de tais normas jurídicas, 841 o direito

estatal também teria efeitos para o direito internacional. A eficácia externa do direito

estatal se tornaria relevante para o internacional, quando determinadas disposições

deste dependeriam de tais normas jurídicas internas para assim surtirem seus

efeitos.842

3.3 O dualismo de preeminência internacional

A construção jurídica dualista acerca da relação entre direito

internacional e direito interno parte da concepção de separação entre estas duas

esferas jurídicas distintas, cujas respectivas normas possuiriam fontes jurídicas e

regulariam relações sociais diferentes.843 Conseqüentemente, não haveria conflitos

837 ROMANO, Santi. A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e as suas relações. In: O Ordenamento Jurídico. cap. 2. p. 63 838 Vale lembrar que os demais casos destacados por Romano quanto à eficácia externa, já foram mencionados anteriormente, na secção 3.2.1, do presente trabalho. 839 ROMANO, loc. cit. 840 Idem. Ibidem., p. 62 841 Idem. Ibidem., p. 63. Desse modo, conforme já mencionado, tendo em consideração a relevância por “conteúdo”, o direito internacional ainda que não de imediato, mas indiretamente pode influenciar o conteúdo do direito interno. 842 ROMANO, loc. cit. 843 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 96. Nesse contexto, Pellet menciona que “Numa perspectiva extrema, são duas ordens jurídicas indiferentes uma a outra, as quais não têm outros pontos de contacto senão a responsabilidade internacional.” In: PELLET, loc. cit. Quanto à questão da responsabilidade internacional dos Estados,

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entre tais normas jurídicas e a possível comunicação entre tais ordens jurídicas

dependeria da observação de certas condições.844 Os partidários do dualismo

fundamentam suas concepções em diferenças determinantes, percebidas entre

ambas as esferas.845 Nesse passo, ao lado do jurista alemão Karl Heinrich Triepel,

aponta-se também para o jurista italiano Dionisio Anzilotti como um dos

representantes do positivismo voluntarista846 e principalmente da Teoria Dualista

tradicional.847 Ambos, Triepel e Anzilotti são freqüentemente apontados pelos

Marinoni expõe algumas contrariedades ao tratamento dado à mesma pelos adeptos do dualismo, como Karl Heinrich Triepel e Dionisio Anzilotti. Vide: MARINONI, Mario. La responsabilità degli Stati: per gli atti dei loro rappresentanti. Roma: Athenaeum, 1911. 844 “[...] as comunicações entre as duas ordens jurídicas só podem realizar-se através de processos próprios a cada ordem jurídica e pela transformação de cada norma característica da ordem jurídica noutra norma característica da outra ordem.” Isso significa que “[…] um tratado não será recebido em direito interno senão à custa da sua introdução formal nesta ordem [...] e de sua transformação em lei ou regulamento nacional: é nesta última qualidade que será aplicado em direito interno.” In: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 96. Nesse sentido, menciona Wendpap “Aos olhos da doutrina dualista uma norma jurídica internacional não gera, imediatamente, direitos e obrigações para os súditos de um Estado. É imprescindível a mediação das normas de reconhecimento do ordenamento jurídico estatal para que a norma internacional seja vista como hábil a produzir efeitos.” Para tanto, Friedmann destaca a questão da vontade política, a qual pode ser considerada como uma condicionante dessa introdução na ordem estatal, “Do ponto de vista interno as normas internacionais são emuladoras de uma decisão política (fonte formal), centelha ígnea do processo de formalização (processo legislativo). Sem essa decisão política – ato de soberania – não há internalização e não se deve perder de vista que a legitimidade política é que torna a norma imperativa.” Cf.: WENDPAP, Friedmann; KOLOTELO, Rosane. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 108-109 845 PELLET, op. cit., p. 96 846 CASANOVAS, Oriol. Unity and pluralism in public international law. p. 21 847 Ao referir-se aos representantes da teoria dualista Mazzuoli menciona que enquanto Karl Heinrich Triepel pode ser considerado defensor do “dualismo radical”; Dionisio Anzilotti pode ser considerado como defensor do “dualismo moderado”. Uma vez que este “[...] permitia que, em certos casos, o Direito Internacional fosse aplicado internamente pelos Tribunais sem que houvesse a recepção formal.” A propósito: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Relações entre o direito internacional público e o direito interno estatal. In: Curso de direito internacional público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. cap. 2, p. 49-50. Nesse sentido, Mazzuoli adverte que o STF assume uma posição dualista moderada. Segundo Mazzuoli, tal posição deve-se porque o STF não tem exigido a transformação do tratado em uma lei interna. Mas sim, que o tratado após sua aprovação pelo Congresso Nacional e a troca dos respectivos instrumentos de ratificação seja promulgado internamente, por meio de um decreto de execução presidencial. Não se exige, portanto, que o tratado seja transformado em uma lei interna, apenas sua promulgação por meio de um decreto executivo. “Para o Supremo Tribunal Federal tal decreto executivo, enquanto momento culminante do processo de incorporação dos tratados internacionais ao sistema jurídico brasileiro, é manifestação essencial e insuprimível, considerando-se seus três efeitos básicos: a) promulgação do tratado internacional; b) a publicação oficial de seu texto; e c) a executoriedade do ato internacional.” Por isso, Mazzuoli considera o posicionamento do STF como “dualismo moderado”. Cf. Idem. Ibidem., p. 51. No mesmo entendimento, ver também: ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de direito internacional público. p. 67. Porém, Mazzuoli ressalta que o STF “[...] jamais conseguiu demonstrar o dispositivo constitucional no qual se fundamentou para dizer da obrigatoriedade da promulgação do decreto presidencial. Em nenhum artigo a Constituição de 1988 diz caber ao Presidente da República promulgar e fazer publicar tratados; o texto constitucional [art. 84, inc. IV] somente se refere à promulgação e publicação das leis (e sabe-se já que, quando a Constituição quer se referir a tratados ela o faz expressamente).” In: MAZZUOLI, op. cit., p. 47-66. Por outro lado, ainda que a Constituição brasileira não traga explicitamente qual o tratamento a ser dado a esta questão da relação entre o direito internacional e o direito interno, Estevão Ferreira Couto lembra que “[...] a competência do STF

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demais internacionalistas como expoentes tanto do voluntarismo quanto do

dualismo.848

Ao analisar a relação acerca do direito internacional com o direito

interno, Anzilotti levanta o problema quanto à “aplicação do direito internacional por

um órgão judiciário de um determinado Estado.” Por conseguinte, o jurista italiano

considera a questão do fundamento do direito internacional como determinante para

a resolução do problema levantado.849 Segundo o autor, são frutos da influência das

teorias do direito natural, no século XVIII, no direito internacional: a falta de uma

clara distinção entre fontes do direito internacional e do direito interno; a

indeterminação do conteúdo próprio do direito internacional; bem como a

indeterminação de sua relação com o direito interno.850 Para Anzilotti, essa falta de

clareza e indeterminação repercutem diretamente sobre o problema levantado, uma

vez que, conceber as duas esferas jurídicas como uma unidade resulta na perda do

caráter geral do problema,851 que se refere à “aplicação do direito internacional por

um órgão judiciário de um determinado Estado.” Somente uma concepção dual

dessas duas esferas permitiria a análise de tal problema.

Nesse sentido, Anzilotti destaca dois critérios os quais demonstram a

distinção e a contraposição entre direito internacional e direito interno: a vontade que

põe e a relação que regula, cada um dos respectivos ordenamento jurídicos.852

Quanto ao primeiro critério, a vontade que põe o direito internacional corresponde a

vontade coletiva dos Estados, a qual se manifesta pelos acordos e no costume

internacional.853 Conforme menciona Morelli, a base do ordenamento internacional,

para controlar a constitucionalidade dos tratados está definida desde a Constituição de 1967/69, deixando claro que a norma internacional pode ser revogada pela constituição. Vê-se, então, que aos tribunais é dado um papel preponderante no equacionamento da relação interno-internacional.” Ver, a respeito: COUTO, Estêvão Ferreira. A relação entre o interno e o internacional: concepções cambiantes de soberania, doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 61. Por conseguinte, Couto ao discorrer sobre o tratamento dado pelo STF a esta questão destaca duas fases da jurisprudência brasileira. Primeira fase, com o Recurso Extraordinário n. 71.154-PR de 1971, posiciona-se com um “monismo radical”. E segunda fase, com o Recurso Extraordinário n. 80.004-SE de 1977, posiciona-se com um “monismo moderado”. Enfim, Couto menciona que o posicionamento do STF varia de acordo com cada caso em análise. Nesse sentido, quanto ao posicionamentos do STF de acordo com matéria tratada, inclusive para as questões de direitos humanos, consultar: Idem. Ibidem., p. 60-81 848 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 84 849 ANZILOTTI, Dionisio. Scritti di diritto internazionale pubblico. Padova: Società Poligrafica Editoriale, 1956. p. 289 850 Idem. Ibidem., p. 293-294 e 313 851 Idem. Ibidem., p. 314 852 Idem. Ibidem., p. 319 853 ANZILOTTI, loc. cit. Cabe advertir que esta vontade coletiva dos Estados abordada por Anzilotti, não corresponde, porém, a já mencionada Vereinbarung, entendida Karl Heinrich Triepel como uma

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para Anzilotti, corresponderia a norma fundamental da pacta sunt servanda.854 Já o

direito interno decorre da vontade competente de um único Estado, incluindo nesta

os costumes.855 A respeito do segundo critério, as normas jurídicas internacionais

regulariam as relações de entes coordenados e autônomos que se encontram

unidos em uma comunidade anárquica, ou seja, os Estados.856 Por outro lado,

Anzilotti menciona que as normas jurídicas internas regulam as relações que se

estabelecem no centro de uma sociedade juridicamente organizada,857 o que

conduziria a idéia de subordinação e preeminência. Esse dois critérios, segundo

Anzilotti, se explicam858 justamente porque se as relações reguladas pelo direito

internacional se estabelecem entre entes coordenados e autônomos, suas

respectivas normas jurídicas não poderiam emanar de um ente superior que

subordine os demais a sua vontade.859 Aquelas normas jurídicas seriam aplicadas

nos casos interindividuais, enquanto estas seriam aplicadas nos caso

interestatais.860 Tendo em vista esses dois critérios, não haveria, portanto,

identidade formal entre ambos ordenamentos jurídicos. Mas somente haveria

analogia material e de conteúdo. Analogia esta quando do direito internacional

decorressem direitos ou deveres recíprocos aos Estados para que os mesmos

uniformizassem suas leis ou emanassem determinada norma jurídica.861 Não

haveria identidade formal, pois a vontade de cada Estado em emanar

posteriormente suas leis internas, observando tal conteúdo, difere da vontade

coletiva que emanou os conteúdos para uniformização das leis internas.862

união de vontades, de vontades comuns. Segundo Lupi, a Vereinbarung foi rejeitada por Anzilotti, uma vez que esta seria incompatível com o exame empírico. Lupi, então, refere-se a Anzilotti como um dos ícones da corrente voluntarista que “[...] posteriormente assimilou as teses do positivismo lógico”. Por isso, “Como a maior parte dos demais autores dessa corrente, é dualista, explica o costume pela ficção do acordo tácito e esboça uma visão contratual do Direito Internacional, como soma de relações bilaterais.” Ver, a respeito: LUPI, André Lipp Pinto Basto. O costume como fonte do direito internacional. In: ______. Os métodos no direito internacional. p. 72 854 MORELLI, Gaetano. Nozioni di diritto internazionale. p. 13 855 ANZILOTTI, Dionisio. Scritti di diritto internazionale pubblico. p. 320 856 ANZILOTTI, loc. cit. Nesse contexto, Anzilotti ressalta que quanto ao direito subjetivo, por ser concebido sobre as bases e os limites do direito objetivo, seria impossível compreender outro sujeito de direitos e deveres pelo direito internacional que não os Estados. Os direitos e deveres subjetivos internacionais são então postos pela vontade coletiva dos Estados e para regular as relações entre os mesmo. Desse modo, Anzilotti adverte que o indivíduo não pode nem descumprir um dever internacional, nem favorecer-se de um direito internacional. Vide: Idem. Ibidem., p. 322-323 857 Idem. Ibidem., p. 320 858 ANZILOTTI, loc. cit. 859 Idem. Ibidem., p.320-321 860 MENÉNDEZ, Fernando M. Mariño. Derecho internacional público: parte general. p. 504 861 ANZILOTTI, op. cit., p. 322 862 Idem. Ibidem., p. 321-322

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O problema da aplicação do direito internacional por um órgão estatal é

retomado por Anzilotti quando este menciona que as controvérsias reguladas pelo

direito internacional somente poderiam ser resolvidas por tribunais arbitrais

internacionais863 e não por uma autoridade judiciária de um Estado. Esta, segundo

Anzilotti, não poderia aplicar o direito internacional diretamente.864 Já a respeito das

controvérsias de competência do órgão estatal, o jurista italiano propõe que tal

problema somente pode ser resolvido tendo em consideração a distinção entre as

“questões principais” e “questões prejudiciais e incidentais”.865 Logo, se excluiria

toda a possibilidade de aplicação do direito internacional no caso das questões

principais,866 aplicando-se nestas somente as normas jurídicas internas.867 O único

caso em que o direito internacional poderia ser aplicado pela autoridade judiciária do

Estado se refere as questões prejudiciais e incidentais.868 Além disso, Fernando

Menéndez destaca que para Anzilotti por meio da recepção de tal norma jurídica

internacional ocorreria a mudança do “[...] valor formal da norma, seus destinatários

e o próprio conteúdo.”869 Enfim, ante os dois critérios destacados por Anzilloti, a

relação que ocorre entre direito internacional e direito interno corresponde, portanto,

a uma relação dual,870 em que diretamente não competiria ao órgão estatal interno

aplicar o direito internacional.

863 ANZILOTTI, Dionisio. Scritti di diritto internazionale pubblico. p. 323 864 Idem. Ibidem., p. 410 865 Idem. Ibidem., p. 324 866 ANZILOTTI, loc. cit. 867 Idem. Ibidem., p. 410. Conforme Anzilotti, nas questões principais aplica-se somente as normas jurídicas internas, ainda que de algum modo possa estar dependente ou co-ligado ao direito internacional. “In tutti questi casi il diritto internazionale può fornire al giudice i criteri necessari per la retta interpretazione del principio giuridico applicabile, non mai la norma che risolve la controvérsia.” Como ocorrer, por exemplo, com as questões de direito internacional privado, as quais correspondem, para Anzilotti a normas jurídicas internas. Cf.: ANZILOTTI, loc. cit. 868 Idem. Ibidem., p. 324. Anzilotti ao discorrer sobre a aplicação jurídica do direito internacional em via prejudicial e incidental, aborda a questão de no decorrer de uma controvérsia competente ao direito interno tornar-se necessário ao tribunal interno considerar os princípios e as regras do direito internacional. “Accade frequentemente, infatti, che l’applicazione di una norma giuridica interna dipenda da premesse di fatto o di diritto, che non possono essere stabilite se non in base alle norme giuridiche internazionali.” A controvérsia é de competência do direito interno, mas a mesma está estreitamente relacionada com o direito internacional. Nesse sentido, Anzilotti cita como exemplo, efeitos da guerra sobre os tratados, sobre as relações jurídicas entre os privados, transmissão das obrigações patrimoniais dos Estados nas mudanças territoriais, personalidade e condição jurídica dos Estados, etc. Cf.: Idem. Ibidem., p. 410-411 869 MENÉNDEZ, Fernando M. Mariño. Derecho internacional público: parte general. p. 505. Livre tradução do original: [...] el valor formal de la norma, sus destinatários y el próprio contenido. 870 Ao comentar a teoria de Anzilotti, Marinoni destaca esta concepção dual de Anzilotti ao referir-se a questão da responsabilidade dos Estados, uma vez que ao estabelecer os dois critérios de distinção entre o direito internacional e o direito interno, a responsabilidade de um Estado decorreria da prática de um ato contrário às normas jurídicas internacionais por um órgão do Estado. Este considerado como o que declara a vontade estatal, independentemente de ser ou não o competente para tanto,

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Nessa perspectiva, ao lado de Triepel e de Anzilotti, o jurista siciliano

Santi Romano também propõe uma leitura dualista871 da possível relação entre

ordenamento jurídico internacional e ordenamento jurídico interno. Esta se forma a

partir das concepções institucionalistas do autor e não voluntaristas, o que vai de

encontro ao entendimento de Halajczuk o qual afirma que “[...] o dualismo concorda

com o voluntarismo: porque o estado expressa sua vontade ao aceitar a validade da

norma, e logo a transforma em uma lei.”872 A leitura romaniana parte, porém, da

questão “instituição internacional frente à instituição estatal”,873 preocupando-se,

então, com a primeira manifestação do direito internacional que independe de

qualquer manifestação de vontade.

Segundo Romano, o princípio fundamental a ser levado em conta

nessa relação corresponde ao da “separação dos dois ordenamentos jurídicos”.874

Tal leitura expressa, assim, os enunciados da Teoria Dualista acerca da relação

entre o direito internacional e o direito interno. Contudo, o dualismo romaniano,

apresenta certas peculiaridades em comparação a outros posicionamentos já

mencionados no presente trabalho, tais como os de Triepel e de Anzilotti. A

construção jurídica de Romano, portanto, está alicerçada sobre determinantes como

a distinção das “fontes jurídicas” e das “esferas de eficácia”, de cada um dos

referidos ordenamentos jurídicos.875 Além disso, o dualismo de Romano também

segundo o direito interno do Estado. In: MARINONI, Mario. La responsabilità degli Stati: per gli atti dei loro rappresentanti. p. 96. 871 Quanto ao termo “dualismo”, Pellet menciona que “Para uma parte da doutrina contemporânea, o termo dualismo exprime mal a diversidade dos sistemas jurídicos existentes: na realidade existem não apenas dois, mas uma pluralidade de ordens jurídicas [...].” Nesse contexto, Pellet se refere a Santi Romano por este considerar, como será abordado posteriormente, a comunidade internacional como uma “instituição de instituições”, existindo tantos ordenamentos jurídicos quanto instituições. In: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 97. Contudo, vale advertir que tal pluralidade não prejudica a relação dualista entre a instituição internacional [comunidade internacional] e a instituição interna [Estado]. 872 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. p. 34. Livre tradução do original: [...] el dualismo concuerda con el voluntarismo: porque el estado expresa su voluntad al aceptar la validez de la norma, y luego al transformarla en una ley. 873 Conforme já mencionado em nota anterior, Romano destaca que o ordenamento jurídico internacional age de dois modos sobre os Estados: em primeiro lugar, enquanto instituição, limitando-se a indicar a posição geral de seus membros, posição esta juridicamente relevante; e, em segundo lugar, com normas individuais que impõe deveres e atribuem direitos aos Estados em suas relações entre si [caso do direito internacional privado]. A leitura dualista que Romano apresenta, a qual será por ora abordada, leva em conta, principalmente, o primeiro modo pelo qual o ordenamento jurídico internacional age sobre os Estado. Uma relação de uma instituição para com outra instituição, ou seja, a relação da instituição “comunidade internacional” com a instituição “Estado”. 874 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 45 875 Destarte, Romano ressalta a separação de ambos ordenamentos jurídicos, o internacional e o interno, tanto na questão da fonte jurídica, quanto na questão da eficácia, reiterando a identificação de tais instituições como autônomas e originárias, refutando, conseqüentemente, a discussão acerca

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revela a preeminência do ordenamento jurídico internacional, na relação em

questão.876

Em primeiro lugar, no que se refere à separação das fontes. Neste

ponto, Romano ressalta a autonomia e o caráter originário de ambas as instituições,

a internacional e a estatal.877 Conforme já mencionado,878 dentre as diferentes

naturezas do título jurídico em que se baseia a relevância de um ordenamento

jurídico para com o outro, Romano menciona a natureza do título jurídico de

“subordinação”, ou seja, o estabelecimento de relações entre os ordenamentos

jurídicos pode ocorre em um estado de subordinação, sendo que esta poderia se

estabelecer em diferentes graus e efeitos, como o de existência ou de eficácia

[validade]. Mais precisamente, no que concerne à relevância por “existência”, o

reconhecimento desse estado de subordinação por parte de ambos os

ordenamentos jurídicos [superior e o inferior] corresponderia, para Romano, a um

requisito para a ocorrência da subordinação. Isso significa que, seria necessário o

reconhecimento recíproco de tal estado de subordinação por parte dos

ordenamentos jurídicos, para que possam condicionar sua existência de maneira

subordinada. Desse modo, uma vez reconhecido reciprocamente o estado de

subordinação, uma instituição inferior compreendida em uma outra superior

dependerá desta seja para sua própria constituição, seja para a sua posterior

existência. Nesse sentido, Romano destaca a distinção que há entre a existência

total e existência parcial, entre uma instituição superior e uma instituição inferior.879

da primazia de um ordenamento sobre o outro. Cf.: ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 47. Conforme abordado no segundo capítulo, do presente trabalho, essa discussão a respeito de primazia de um ordenamento sobre o outro decorre dos posicionamentos “monistas”, acerca da relação entre o direito internacional e o direito interno, dividindo-se assim, em “monismo de primazia do direito interno” e “monismo de primazia do direito internacional”. 876 A título de esclarecimento da estrutura desta secção, 3.3, cabe mencionar que na seqüência será feita a abordagem de tais determinantes da leitura dual romaniana, distinção da: fonte jurídica e esfera de eficácia. Para posteriormente, ao final da mesma secção, enfatizar a questão da preeminência do ordenamento jurídico internacional nessa relação dualista com o direito interno. 877 Idem. Ibidem., p. 45 878 Nesse sentido recorrer às secções: 3.2, “A relação dos ordenamentos jurídicos entre si”; e, 3.2.1, “Os momentos de exercício da relevância”, do presente trabalho. 879 Vale por ora lembrar que, consoante mencionado na secção 3.2.1, do presente trabalho, na “existência total” o ordenamento jurídico superior pode invalidar seja a existência integral do inferior [quando a subordinação absoluta, ou seja, o ordenamento jurídico superior será fonte imediata do ordenamento jurídico inferior], seja somente parte da instituição inferior [quando o superior for o fundamento do inferior, e não o originário deste, ou seja, o superior não corresponde à fonte originária do inferior, mas o condiciona e limita a autonomia da instituição inferior de manifestar por si mesma o seu próprio ordenamento. No entanto, o ordenamento superior determina as condições de validade do ordenamento inferior]. Já na “existência parcial”, há um ponto em que falta uma absoluta e completa subordinação entre o ordenamento jurídico superior e o inferior, porém, a posterior

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Contudo, tal reconhecimento recíproco não ocorreria entre ordenamento jurídico

internacional e interno. O direito internacional não reconhece um estado de

subordinação para sua existência frente ao direito interno, e vice-versa. Desse

modo, em tal estado de “subordinação”, o ordenamento jurídico internacional não

poderia: constituir; suprimir; nem declarar inválido, o ordenamento jurídico interno, e

vice-versa.880

Enquanto fontes distintas e autônomas, ambas as instituições,

internacional e estatal, possuem caráter originário.881 Por conseqüência, para

Romano, as “esferas de eficácia” de ambos os ordenamentos jurídicos também

seriam distintas.882 Dentre as diferentes naturezas do título jurídico em que se

baseia o estabelecimento de relações entre os referidos ordenamentos a natureza

do título jurídico de “subordinação”, poderia ocorrer em diferentes graus e efeitos,

como o de existência, acima abordado, ou de validade [eficácia]. Particularmente, no

que se refere à relevância por “eficácia”, tendo por base esse estado de

“subordinação”, Romano ressalta que não há qualquer dependência entre

ordenamento jurídico internacional e ordenamento jurídico interno.883 Em um estado

de subordinação, a eficácia do direito internacional não dependeria do direito interno,

e vice-versa. A questão da “esfera da eficácia” seria, assim, determinante para a

concepção dualista romaniana. Romano afirma que, a “esfera de eficácia” é

irrelevante considerando o estado de “subordinação” entre ordenamento jurídico

internacional e interno, o que expressaria a separação entre esses dois

ordenamentos jurídicos. A validade das normas jurídicas de um desses

ordenamentos não dependeria do outro em um sentido de subordinação. Duas

proposições fomentam essa afirmação que permite uma leitura dualista.

Primeiramente, a autonomia interna do Estado seria de caráter originário, não

existência do ordenamento jurídico inferior depende do superior, uma vez que este pode suprimir totalmente o inferior. 880 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 46. Nesse contexto, Romano adverte que, do ordenamento estatal podem emanar normas jurídicas relativas à conduta estatal frente aos demais Estados, da comunidade internacional. Contudo, tais normas jurídicas expressam a vontade unilateral de um Estado, não têm valor para os demais Estados, bem como não fazem parte do direito internacional geral. Uma vez que o ordenamento jurídico internacional, enquanto norma jurídica [segunda manifestação], decorre tão-somente do acordo de vontades entre os Estados da comunidade internacional. In: ROMANO, loc. cit. 881 Quanto ao caráter originário da instituição estatal cabe recorrer ao final da secção 1.3, do presente trabalho, quando refere-se à questão da soberania estatal. 882 ROMANO, loc. cit. 883 Conforme já mencionado na secção 3.2, “A relação dos ordenamentos jurídicos entre si”, do presente trabalho.

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depende do direito internacional. A ordenação do Estado, então, seria considerada

inteiramente autônoma, isso significaria que a instituição estatal poderia tanto não

reconhecer os demais ordenamentos jurídicos que lhe são indiferentes [que não

serão jurídicos], quanto opor-se àqueles que lhe são contrários [serão

absolutamente antijurídicos].884 No entanto, tal qualificação [não-jurídicos e

absolutamente antijurídicos] somente seria válida na relação fundamentada na

relevância por “eficácia” entre ordenamento estatal e um outro ao mesmo derivado

[subordinado]. Já no que se refere aos demais ordenamentos jurídicos autônomos,

como o internacional, que não derivam do ordenamento estatal, ou seja, não estão a

este subordinados [fora da esfera estatal], poderia até ocorrer um certo julgamento.

Contudo, este julgamento não teria valor algum, nem prático nem lógico.885 Já

concernente a segunda proposição, Romano alega que “O direito internacional se

destina aos Estados, cada um considerado na sua unidade, não aos seus órgãos ou

aos seus cidadãos ou súditos; enquanto que para estes últimos possui valor o direito

estatal.”886 Isso permitiria, portanto, que um ato do ordenamento jurídico interno

contrário ao ordenamento jurídico internacional, e vice-versa, venha a ser eficaz.

Todavia, o jurista italiano adverte que, tal contrariedade, ainda que possível e

indiferente para a eficácia de um ordenamento jurídico frente ao outro, não se

presume.887 Enfim, para Romano, “[...] pode ocorrer de um Estado agir em um modo

que poderá ser legítimo para o seu ordenamento, mas antijurídico para o

ordenamento internacional, e vice-versa [...]”, sem que para tanto, o Estado

responda, ou seja, venha a ser responsabilizado por tal ato contraditório.888

No entanto, o fato do ordenamento jurídico internacional encontrar-se

separado do ordenamento jurídico interno não prejudica que ocorram certas

relações entre os mesmos. Porém, relações as quais a natureza do título jurídico em

884 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 76 885 ROMANO, loc. cit. Nesse sentido, Romano cita, como por exemplo, a questão das normas e instituições internacionais que “[...] não sejam reconhecidas ou mesmo que sejam consideradas contrárias aos Estados, embora nenhuma ordenação perca só por isso o seu caráter e a sua eficácia interna.” In: ROMANO,loc. cit. 886 Idem. Corso di diritto internazionale. p. 46. Livre tradução do original: Il diritto internazionale si rivolge agli Stati, ciascuno considerato nella sua unità, non ai loro organi o ai loro cittadini o sudditi; mentre per questi ultimi há valore il diritto statale. 887 Não obstante a possível contrariedade, Romano entende que esta não se presume. Logo, nos casos em que há dúvida, o direito interno deve ser interpretado no sentido de uniformidade com o direito internacional, bem como se o direito interno concede um poder discricionário a uma autoridade sua, esta deve agir de modo não contrário ao ordenamento jurídico internacional. Vide: Idem. Ibidem., p. 46-47 888 Idem. Ibidem., p. 46

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que se baseia a “relevância” corresponda a um estado de “pressuposição” e não de

“subordinação”.889 Direito internacional e direito interno estabeleceriam, então,

relações somente em um estado de “pressuposição”. Conforme abordado, três

seriam os diferentes meios de condicionamento sob os quais a relevância jurídica de

um ordenamento para com o outro poderia se manifestar.890 Dentre esses três,

Romano destaca o condicionamento quanto à “existência”, sendo que este pode vir

a ocorrer entre ordenamento jurídico superior [internacional] e ordenamento jurídico

inferior [interno], baseando-se em um estado de “pressuposição”.891 Nesse sentido,

o ordenamento jurídico interno seria pressuposto ao ordenamento jurídico

internacional. Logo, o direito internacional pressuporia o direito interno. Mas isso não

significa que o inferior é fonte do superior, e vice-versa. O direito internacional,

enquanto instituição complexa, pressupõe a existência da instituição estatal e, logo,

do direito interno.892 Por outro lado, Romano também não descarta a possibilidade

de se considerar que ordenamento jurídico internacional seja pressuposto do

ordenamento jurídico interno.893 Logo, o direito interno pressuporia o direito

internacional quando no direito interno fosse contido, implícita ou explicitamente,

uma norma jurídica que reconhecesse o ordenamento jurídico internacional,

impondo respeito ao mesmo.894 Por isso, Romano entende que a possibilidade do

ordenamento jurídico interno ser contrário ao, internacional, significa uma exceção a

889 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 47. Como já mencionado na secção 3.2.2, ao contrário do título jurídico de “subordinação”, Romano ressalta que tendo por base o título jurídico “de pressuposição”, há certa dependência entre o ordenamento jurídico internacional e o, interno, quanto a condicionante de “existência”. 890 Vale lembrar, condicionamento por “existência”, por “conteúdo”, e por “eficácia”. 891 Tal relevância quanto à existência entre o direito internacional e o direito interno, tendo por base o título jurídico de “pressuposição”, já foi abordada na secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal”, do presente estudo. 892 ROMANO, loc. cit. 893 ROMANO, loc. cit. Segundo os dizeres de Romano “Il principio di separazione non è cosi assoluto da escludere un altro principio, che può dirsi di collegamento fra i due ordinamenti e che deriva dal fatto che essi si pressuppongono a vicenda.” In: loc. cit. 894 Idem. Ibidem., p. 47-48. Como mencionado na secção 3.2.2, aos Estados são impostos deveres e atribuídos direitos, pelo direito internacional, considerando os em sua unidade, e não em suas parte individuais. Contudo, algumas destas partes individuais podem ser relevantes para o ordenamento jurídico internacional, por exemplo, como certas garantias de que tais deveres e direitos serão observados, tendo em vista que o estado de igualdade em que se encontram os membros da comunidade internacional. No entanto, a relevância de tais partes individuais não prejudica nem a separação entre os dois ordenamentos jurídicos, nem a contrariedade do direito interno em relação ao direito internacional.

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essa norma jurídica geral que reconhece o direito internacional, uma vez que, tal

contradição, ainda que possível, não seria presumida.895

Outra relação entre o ordenamento jurídico internacional e interno, que

não vem a prejudicar a separação entre ambos também é destacada por Romano.

Esta corresponde ao condicionamento quanto ao “conteúdo”, tendo por base

novamente o título jurídico de “pressuposição”. Como já mencionado,896 o

ordenamento jurídico superior [internacional] não corresponde à fonte de outros

ordenamentos jurídicos inferiores [interno], mas, influi de outros modos sobre o

conteúdo desses ordenamentos inferiores, como o estatal. Segundo o autor, o

ordenamento jurídico internacional, por vezes, poderia impor, vetar ou permitir ao

Estado a produção de determinadas normas jurídicas que consistirão no “direito

interno internacionalmente relevante”.897 Todos esses três casos [impor, vetar ou

permitir] poderiam ocorre quando o direito internacional procura coordenar os

diferentes ordenamentos jurídicos estatais, por meio da elaboração de leis uniformes

por vários Estados,898 bem como, esses três casos poderiam ocorrer quando o

direito internacional influencia de modo indireto [mediato] o conteúdo do direto

interno. Neste, o Estado é obrigado à determinada conduta que depende da

elaboração de um lei interna para realizá-la.899

895 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 48. Nesse contexto, Romano refuta aqueles posicionamentos que consideram essa certa relação como “re-envio”. Para Romano, essa é uma questão não de re-envio entre dois ordenamentos jurídicos, mas sim de pressuposição, pois tanto o re-envio material, quanto o formal não podem ocorrer na relação entre o ordenamento jurídico internacional e o, nacional. No primeiro caso, porque um ordenamento considera como sua própria uma norma de um outro ordenamento jurídico [a nacionaliza], sem alterar o conteúdo, nem o destinatário, o que não é possível entre o direito internacional e o interno que possuem conteúdos e destinatários diferentes. Já quanto ao re-envio formal, este seria o caso de um ordenamento não regula certa matéria, dita como irrelevante, e remetendo ao ordenamento jurídico de um outro Estado, e não ao direito internacional público, conforme já mencionado na secção anterior, do presente trabalho, atribuindo certa eficácia a normas jurídica estrangeira [que não a nacionaliza]. Cf.: Idem. Ibidem., p. 48-49 896 Refere-se por ora a secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal”, do presente trabalho. 897 Idem. Ibidem., p. 50. No dizeres de Romano, “Il diritto statale imposto, vietato o permesso dal diritto internazionale è diritto interno internazionalmente rilevante; il resto del diritto interno è internazionalmente irrilevante, anche quando regola materie attinenti ai rapporti com altri Stati, se il diritto internazionale lo ignora e non se ne occupa.” In: Idem. Ibidem., p. 51 898 Como mencionado na secção 3.2.2, este corresponderia ao caso, por exemplo, do direito internacional ao propor a coordenação entre os demais ordenamentos estatais, condiciona o conteúdo destes, limitando-os a certos critérios. 899 Idem. Ibidem., p. 50. Ademais, Romano também menciona que, “[...] il diritto internazionale determina, non soltanto relazioni fra esso e il diritto statale oggettivamente considerato, ma anche certe manifestazioni dei poteri dello Stato diversi da quello legislativo: cosi le funzioni esecutive e giurisdizionali, in taluni momenti che attengono alle materie regolate dal diritto internazionale, possono essere da questo imposte, veitate o permesse.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 51

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Por fim, outra relação abordada por Romano que pode estabelecer-se

entre direito internacional e direito interno se refere à relevância por “eficácia”,

baseada no título jurídico de “pressuposição”. Relação a qual também não

prejudicaria a separação entre ambos os ordenamentos jurídicos. Para Romano, nas

relações entre mais ordenamentos jurídicos em que um é “pressuposto” do outro,

um pode também surtir seus efeitos para o outro. Relação esta que ocorreria entre o

direito internacional e do direito interno, conforme já mencionado.900 O jurista

siciliano refere-se, nesse sentido, a questão da eficácia de um tratado o qual

depende da emanação, de normas jurídicas internas para execução do mesmo, para

que assim possa surtir seus efeitos internamente.

Uma vez analisadas tais relações entre ordenamento jurídico

internacional e ordenamento jurídico interno, ainda que separados, um se

apresentaria relevante para o outro, baseada em um estado de pressuposição e não

de subordinação. Disso decorreria que o ordenamento jurídico internacional não

estaria para o ordenamento jurídico interno, e vice-versa, como um simples fato,901

mas sim, que ambos ordenamentos se reconhecem como instituições complexas.

Logo, ambos se reconhecem como ordenamentos jurídicos.902 E ainda que

originários, um ordenamento jurídico “[...] pode, mas não deve necessariamente

negar valor de outro ordenamento [...].”903 O princípio da exclusividade de todo

ordenamento jurídico que seja autônomo e independente, não impossibilita, então,

tal reconhecimento,904 muito menos prejudicaria a separação entre ambos os

ordenamentos jurídicos.

900 Refere-se por ora a secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal”, do presente trabalho. 901 ROMANO, Santi. Corso di diritto internazionale. p. 51. Romano assim refuta demais posicionamentos dualistas que consideram que o direito internacional está para o direito interno como simples fato. Nesse sentido, Pellet ao discorrer sobre a Teoria Dualista, menciona que para os seus partidários, como Karl Heinrich Triepel e Dionisio Anzilotti, o Estados “Ao emitir uma nota contrária, comete uma falta e deve reparar os prejuízos que a sua atitude deve causar aos outros sujeitos. Contudo, a norma interna «internacionalmente contrária» não é «ilegal», ela não pode ser senão uma «facto» pernicioso.” In: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 96 902 ROMANO, op. cit., p. 51 903 ROMANO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] può, ma non deve necessariamente negarei l valore di ogni altro ordinamento [...]. 904 O princípio da exclusividade de todo ordenamento jurídico autônomo e independente, conforme Romano, enuncia que “[...] tais ordenações e, portanto, o Estado, seriam pela sua intrínseca natureza exclusivas e únicas, no sentido de que elas não poderiam reconhecer como jurídicas outras ordenações igualmente autônomas, que por isso seriam reconhecidas somente como fato.” O que para Romano corresponde a “[...] uma doutrina arbitrária e aberrante.” Desse modo, o autor italiana ressalta que “[...] o princípio da exclusividade deve ser entendido no sentido de que a ordenação pode e não deve negar o caráter jurídico de outra. Tal necessidade seria incompatível com o próprio

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Direito internacional e direito estatal, para Romano, mesmo que

separados, se reconhecem como ordenamentos jurídicos, sendo duas instituições

distintas que se relacionam devido à relevância de certas questões para ambas. O

estado de “pressuposição”, portanto, permitiria essa leitura dual romaniana da

relação entre os dois ordenamentos.

Ao referir-se aos posicionamentos dualistas, particularmente aos

tradicionais, Halajczuk comenta que para estes a primazia seria do direito interno,

ressaltando que “[...] atrás da aparente paridade entre os dois ordenamentos

estagnados se oculta um pronunciamento apenas vigilante em favor da ordem

interna.”905 Segundo Halajczuk a norma internacional seria reduzida pelos dualistas

a uma mera declaração que não seria capaz de produzir nenhum efeito, senão por

meio de uma norma interna e não responderiam a nenhuma classe de sanção.906

Como se apresentaria, então, a preeminência do direito internacional segundo a

concepção institucionalista romaniana na relação dualista entre este e o direito

interno?907 Conforme visto, para o jurista siciliano, não há qualquer relação quanto à

existência, conteúdo e eficácia, entre ambos os ordenamentos jurídicos baseados no

título jurídico de “subordinação”. Mesmo assim, o direito internacional corresponderia

a um ordenamento jurídico superior àqueles dos Estados. Como ocorreria, então,

essa preeminência segundo a concepção dualista de Romano?

Nesse momento, reporta-se para a já mencionada classificação

romaniana entre “instituições simples” e “instituições complexas”908 que leva em

conta a relação de uma instituição com as outras, fazendo com que destas, aquela

caráter das ordenações que sendo soberanas não encontram senão limitações que são impostas ou admitidas por elas mesmas.” Cf.: Idem. Princípios de direito constitucional geral. p. 77. Por conseguinte, o ordenamento jurídico de um Estado reconhece, internamente, o de outro Estado, também membro da comunidade internacional, uma vez que, atribui eficácia as normas jurídicas estrangeiras, ainda que sob certos limites e condições; reconhece e tutela os representantes e órgãos do Estado estrangeiro; e, considera a capacidade do Estado estrangeiro no ramo do direito privado.In: Idem. Corso di diritto internazionale. p. 53 905 HALAJCZUK, Bohdan T.; DOMINGUEZ, Maria T. Moya. Derecho internacional publico. p. 33. Livre tradução do original: detrás de la aparente paridad entre los dos ordenamientos estancos se oculta um pronunciamiento apenas velado em favor del orden interno. 906 HALAJCZUK, loc. cit. 907 Ressalta-se que uma das peculiaridades da construção jurídica dualista romania, em comparação aos posicionamentos dos demais partidários do dualismo, pode ser percebida nessa questão da preeminência do direito internacional. Tendo em vista que, em linhas gerais, “[...] os dualistas recusam argumentar termos de «superioridade»: as ordens jurídicas são separadas; as regras internas são «simples fatos» perante o direito internacional [...] e reciprocamente.” In: PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc. Direito internacional público. p. 98 908 Vale lembrar que a classificação das instituições, apresentada por Romano, foi objeto de abordagem da secção 1.1.4, “Da concepção de instituição”, do presente estudo.

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faça parte mais ou menos integrante.909 Para Romano, uma “instituição complexa”

consiste em uma “instituição de instituições”, sendo a “instituição complexa” uma

instituição em si, maior e superior, composta por outras instituições, menores e

inferiores, em uma relação de “subordinação”. Contudo, existiriam diferentes graus

dessa relação de “subordinação”.910 Dentre estes, o jurista siciliano destaca que uma

instituição pode ser originária quanto ao seu próprio ordenamento, no entanto, a

mesma pode depender de uma maior, superior, acerca de certos direitos e deveres

relativos a esta ou a outras alheias a mesma. Nesse grau de “dependência”

encontra-se o caso da relação entre Estados e comunidade internacional.911

Não haveria, deste modo, qualquer relação quanto à “existência” entre

direito internacional e direito interno, baseado em um estado de subordinação. O

ordenamento jurídico estatal, portanto, é originário, assim como, também o

ordenamento jurídico internacional. Um não corresponde à fonte jurídica do outro.

Desse modo a instituição estatal seria originária quanto ao seu próprio ordenamento

jurídico. Igualmente, a instituição “comunidade internacional” é originária quanto ao

seu próprio ordenamento jurídico. Contudo, o direito internacional impõe aos

Estados deveres e atribui direitos próprios de seu ordenamento jurídico.912 Enquanto

instituição superior, a comunidade internacional impõe certos deveres e atribui

certos direitos aos Estados, considerados em sua unidade. Considerados como uma

instituição originária. É neste ponto que se expressaria a preeminência do direito

internacional, que, como a instituição complexa superior, impõe deveres e atribui

direitos relativos ao próprio ordenamento jurídico internacional a uma instituição

inferior originária, como a instituição estatal.

Além disso, conforme já mencionado, um ordenamento superior não é

fonte, mas poderia influir de outros modos sobre o “conteúdo” de ordenamentos

909 Cabe novamente enfatizar que, a distinção entre instituição simples e complexa não coincide com aquela entre originária e derivada, ainda que possuam certa ligação. 910 Conforme mencionado da secção 1.1.4, os diferentes graus em que essa relação de subordinação pode-se dar são: ou a instituição deriva da complexa; ou a instituição é em parte originária; ou instituição é originária quanto ao seu próprio ordenamento, no entanto dependente de uma maior acerca de certos direitos e deveres relativos a esta ou a outras alheias às mesmas. 911 Vale ressaltar, por ora, que tal grau de subordinação entre o direito internacional e o direito interno, corresponde às duas proposições apresentadas por Romano para fomentar sua assertiva quanto à separação entre tais ordenamentos jurídicos, citadas no início da secção 3.2.2, do presente estudo. Desde já se percebe que este grua de subordinação entre ambos os ordenamentos devido a questão da complexidade da instituição comunidade internacional, não prejudica a separação entre ambos ordenamentos jurídicos, tanto pela existência quanto pela eficácia considerando um estado de subordinação. 912 Conforme abordado no início da secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal e o ordenamento jurídico estatal”, do presente trabalho.

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inferiores, principalmente no caso dessa relação entre direito internacional e o direito

interno. Romano, então, refere-se a uma superioridade limitada do ordenamento

jurídico superior, o internacional, não somente pelas suas próprias características,

mas também pela sua originariedade frente ao ordenamento inferior. E este inferior,

consoante Romano, se conformaria com tal superioridade. Contudo, o jurista

siciliano ressalta que a superioridade limitada do direito internacional não

prejudicaria a separação entre este e o direito interno. Por isso, ainda que superior,

o direito internacional não pode influenciar “diretamente” o conteúdo do direito

interno, entretanto, pode influenciar de modo “mediato” o conteúdo do direito

interno913 quando impõe deveres e atribuí direitos próprios de seu ordenamento

jurídico, aos Estados. Ademais, o direito internacional [superior] pode também

influenciar sobre o “conteúdo” de outros ordenamentos jurídicos, independentes

entre si, mas ao mesmo submetidos.914 Se trataria de influência no sentido de

“coordenação”, em que o direito internacional proporia a coordenação dos diferentes

ordenamentos jurídicos estatais. Aqui encontra-se novamente, de modo claro e

evidente, a expressão da preeminência do direito internacional. Direito internacional

que, como a instituição complexa superior, impõe deveres e atribui direitos relativos

a outras instituições [estatais] ao propor um coordenação entre estas.

Desse modo enquanto instituição complexa, a comunidade

internacional é considerada por Romano como uma instituição superior em relação

àquelas que a compõem, com as estatais. Dentre os graus de dependência da

instituição complexa [superior], para com as que a compõem [inferiores], uma

instituição pode ser originária quanto ao seu próprio ordenamento, como no caso a

instituição estatal. No entanto, a mesma pode depender de uma superior, como a

comunidade internacional, acerca de certos direitos e deveres relativos a esta. Isso

significa que o direito estatal em sua unidade pode depender de certos direitos e

deveres relativos ao próprio ordenamento jurídico internacional [originário], como

também, pode depender acerca de certos direitos e deveres relativos a outras

alheias a mesma. O direito estatal em sua unidade pode depender de certos direitos

e deveres relativos aos demais Estados, dependendo para tanto do direito

internacional quando este se propõe a coordená-los.

913 Conforme abordado na secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal e o ordenamento jurídico estatal”, do presente trabalho. 914 Conforme abordado na secção 3.2.2, “A relação do ordenamento jurídico internacional e o ordenamento jurídico estatal e o ordenamento jurídico estatal”, do presente trabalho.

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De acordo com Romano, o Estado corresponde a uma instituição

complexa composta por instituições inferiores,915 com as quais se relaciona com

graus de subordinação diferenciados.916 Da mesma forma, para Romano, a

comunidade internacional também corresponde a uma instituição complexa

composta por outras instituições, principalmente as estatais. A comunidade

internacional também se relaciona de modo peculiar com tais instituições. Peculiar

por Romano conceber à separação entre ambas quanto à “existência”, o “conteúdo”

e a “eficácia”, baseada em um estado de “subordinação”. Porém, a relevância entre

instituição internacional e instituição interna quanto “existência”, “conteúdo” e,

“eficácia” somente ocorrem tendo por base um estado de “pressuposição”. A

superioridade do direito internacional sobre o direito interno, então, decorre da

complexidade da instituição “comunidade internacional”, e não de uma

subordinação, de um ordenamento jurídico estar subordinado a outro, mas sim, da

complexidade que permite certo grau de dependência da instituição estatal [inferior]

para com “comunidade internacional” [superior]. Dependência no que concerne a

certos direitos e deveres relativos ao próprio ordenamento jurídico internacional,

como também, no que se refere a direitos e deveres relativos aos outros

ordenamentos jurídicos estatais quando coordenados pelo internacional, sem para

tanto prejudicar a separação entre ambos os ordenamentos jurídicos. Justamente

porque, segundo Romano, tais deveres e direitos são, respectivamente, impostos e

atribuídos à instituição estatal em sua unidade. E não em suas partes individuais, as

quais lhe são originárias.

Nesse sentido encontra-se a superioridade do ordenamento jurídico

internacional na relação dualista com o direito interno, ou seja, a preeminência da

comunidade internacional devido a sua complexidade,917 por corresponder a uma

915 “Tendo por base os dois princípios, o da pluralidade das ordenações jurídicas e o da sua possível não exclusividade, o Estado deve ser considerado não como a única ordenação jurídica existente, mas como umas das ordenações que constituem o mundo jurídico e que entre si vivem ora em relação de coexistência social, ora em luta, ora ignorando-se umas às outras.” In: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. p. 77 916 Conforme visto na secção 3.2.1, “Os momentos de exercício da relevância”, do presente trabalho. 917 Ainda quanto à complexidade das instituições, vale por ora tecer algumas considerações sobre o texto Lo Stato moderno e a sua crisi, de 1910. Nesse, Romano ao discorrer sobre a crise do Estado moderno, revela a complexidade de instituições como esta estatal, destacando os fenômenos dos reagrupamentos de indivíduos e as corporações presentes na estrutura constitucional do Estado. Para tanto, Romano recorre ao processo que culminou em uma nova forma de estrutura social, ou seja, a Revolução francesa, de 1789, a qual impôs o modelo do Estado moderno personificado, caracterizado tanto por ser uma unidade completa [Estado de polícia], quanto pela impessoalidade do poder público. Nesse contexto, Romano critica tal Revolução por esta ter sido excessivamente

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“instituição de instituições”. Instituição complexa na qual as instituições estatais a

compõem e são pressupostas. Porém, não é criada pelas instituições estatais, não

simples ao não reconhecer os agrupamentos dos indivíduos, a complexidade da sociedade, a qual se fazia tão presente no Estado medieval, uma vez que neste último, as diversas partes que o constituíam não podiam nunca fundir-se em uma completa unidade, de modo que cada uma mantinha-se depositária por força própria e por direto originário de ao menos uma fração da soberania pública. No entanto, organização do Estado moderno se demonstrou insuficiente, frente à necessidade de organizações novas, complementares a esta e não contrárias. A crise do Estado moderno, então, se expressa por meio de um fato fácil de constatar, segundo Romano, corresponde ao fenômeno dos diversos agrupamentos de indivíduos, seja por critérios profissionais, seja por seus interesses econômicos, se multiplicam de modo prodigioso, como por exemplo, as corporações e os movimentos sindicais. O autor italiano ressalta que um dos motivos que fomenta a tendência moderna ao sistema corporativo decorre da simples observação de que as relações sociais que diretamente interessam o direito público não se esgotam naquelas que tem por finalidade os indivíduos, de um lado, e o Estado e as comunidade territoriais menores, de outro. Há as organizações sociais derivantes de vínculos diferentes daqueles territoriais, concomitantemente, há a necessidade de então definir o interesse econômico dos indivíduos que a compõe. Nessa perspectiva, Romano refere-se à exigência da economia da sociedade moderna, a qual permitiu reaparecer uma distribuição e uma organização de indivíduos que primeiramente tinha características e finalidade diversas, mas que é em substancia uma fase nova de uma antiga e contínua exigência social. O sistema corporativista serviria assim para mitigar o individualismo, conseqüente, principalmente das exigências econômicas da sociedade moderna, desenvolvendo um o sentimento de recíproco respeito entre os diversos grupos de indivíduos, contribuindo para uma organização social mais completa e compacta. O movimento corporativo viria a suprir as lacunas e as deficiências do Estado em crise, sendo que tal deficiência pode acabar se ampliando quando os grupos sociais os quais não deveriam se colocar contra o Estado, acabam unindo-se com aqueles que propõem uma radical transformação do poder público, ou seja, aos movimentos antagônicos ao Estado. O que se visa então, de acordo com Romano, é construir e não destruir, essa sim corresponde à tarefa que pode e deve propor-se o ordenamento político, de envolver-se na vida social e, quando terá construído o novo edifício, não contrastam com a sólida e concreta arquitetura do Estado moderno, mas apóiam sua própria base, constituindo como parte integrante do mesmo. Portanto, a crise no Estado moderno pode, conforme Romano, ser caracterizada por dois fenômenos, tanto pelo progressivo organizar-se sobre a base de particulares interesses da sociedade, quanto pela deficiência dos meios jurídicos e institucionais, que a própria sociedade possui para fazer respeitar e valer sua estrutura no seio daquele Estado. O remédio para tal crise, enfim, pode ser encontrado em instituições criadas pelo do Estado e, logo, enquadradas no seu ordenamento. Por último, após discorrer sobre a crise do Estado moderno e sua superação pelo reconhecimento a complexidade da instituição estatal, Romano, enfatiza que um princípio sempre exigente e indispensável frente a essa complexidade institucional corresponde ao “[...] di un’organizazione superiore che unisca, contemoeri e armonizzi lê organizzazioni minori in cui la prima va specificandosi. E quest’organizzazione superiore potrà essere e sara ancora per lungo tempo lo Stato moderno, che potrà conservare quase intatta la figura che attualmente possiede.” Isso significa que, Romano reconhece que o Estado moderno ainda correspondia, ao tempo 1910 em que elaborou o referido texto “Lo Stato moderno e la sua crisi”, a esta organização superior, não descartando, no entanto, o reconhecimento de uma instituição mais complexa e superior ao próprio Estado, ou melhor, a todos os Estados, não ignorando, portanto, a organização internacional. A propósito: ROMANO, Santi. Lo Stato moderno e a sua crisi. In: _____. Scritti minori. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1950. p. 311-325. Essa complexidade da instituição internacional vem ao encontro da assim chamada “constelação pós-nacional”, de Jürgen Habermas. Nos dizeres de Habermas, “O Estado territorial, a nação e uma economia constituída dentro das fronteiras nacionais formaram então uma constelação histórica na qual o processo democrático pôde assumir uma figura institucional mais ou menos convincente. Também só pôde se estabelecer no âmbito do Estado nacional a idéia segundo a qual uma sociedade composta democraticamente pode atuar reflexivamente sobre si de modo amplo graças à ação de uma de suas partes. Hoje essa constelação é posta em questão pelos desenvolvimentos que se encontram no centro das atenções e que leva o nome de ‘globalização’.” In: HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 78

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influencia imediatamente seu conteúdo e nem condiciona sua validade, baseado em

um estado de subordinação. Ordenamento jurídico internacional e ordenamento

jurídico interno, portanto, consistem em instituições complexas distintas que se

relacionam devido a uma relevância no que concerne à “existência”, “conteúdo” e

“eficácia”, somente em um estado de pressuposição. Tudo isso possibilita, enfim, a

leitura dualista romaniana de preeminência internacional em tal relação.

3.3.2 A escola antiformalista italiana e a relação entre direito internacional e direito

interno

A escola italiana de direito internacional é caracterizada por apresentar

uma concepção positiva e realista do direito internacional.918 Concepção esta no

sentido de que seus inúmeros representantes919 dedicaram-se e dedicam-se a um

918 “Positiva era la scuola in quanto basava le proprie costruzioni dottrinali sull’esame della realtà internazionale quale risultava dalla struttura propria di tale comunità e soprattuto dal comportamento dei suoi consociati.” Cf.: SERENI, Angelo Piero. Dottrine italiane di diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. v. 2. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1957. p. 281. No entanto, para Angelo Piero Serene, a escola positiva italiana encontrava-se dividida. Nesse sentido, Sereni menciona que autores como Tomaso Perassi e Gaetano Morelli recorriam freqüentemente ao método dedutivo em suas exposições. E dentre os seus seguidores, ainda que apresentando algumas diferenças, destacam-se: Riccardo Monaco; Piero Ziccardi e Sperduti. Por outro lado, Sereni também menciona outros nomes por reagirem contra a escola positiva, apresentando uma análise crítica a esta, dentre os quais se encontram: Santi Romano; Mario Giuliano; Roberto Ago; Giuseppe Barile e Arangio-Ruiz. Contudo, Sereni ressalta que tais nomes os quais reagiram à escola positiva do direito internacional foram discípulos ou de seguidores, ou de ex-seguidores da referida escola. Cf.: Idem. Ibidem., p. 282- 283 919 Além de Santi Romano, Roberto Ago e Riccardo Monaco, o jurista italiano Piero Ziccardi, ao discorrer sobre a “Evolução e perspectiva da escola italiana de direito inernacional no século XX”, destaca os diversos representantes de tal escola italiana, os quais, significativamente contribuíram para a construção do conhecimento jurídico. Dentre os nomes mencionados por Ziccardi encontra-se: Dionisio Anzilotti; Donato Donati;Tomaso Perassi; Giorgio Balladore Pallieri; Gaetano Morelli; Rolando Quadri; Prospero Fedozzi; Mario Giuliano;Tullio Treves; Tullio Scovazzi; Benedetto Conforti; Manlio Udina; Mario Scerni; Rodolfo De Nova; Alessandro Migliazza; Riccardo Luzzatto; P. L. Lamberdi Zanardi; Giorgio Sacerdoti; Alberto Santa Maria; Fausto Pocar; Bruno Nascimbene; Gabriella Venturini; Sergio M. Carbone; Arangio Ruiz; Laura Picchio Forlati; Giovanni Battaglini; Alberto Miele; Angelo Davi; Flavia Lattanzi; Giuseppe Barile; Luigi Condorelli; Giorgio Badiali; Paolo Benvenuti; Girolamo Strozzi; Eduardo Vita; Francesco Durante; Maria Rita Saulle; Antonio Malintoppi; Aldo Bernardini; Pasquale Paone; Giorgio Gaja; Antonio Cassese; Paolo Fois; Gianluigi Tosato; Sergio Marchisio; Francesco Capotorti; Vincenzo Starace; Ugo Villani; Andréa Giradina; Giuseppe Tesauro; Luigi Sico; Luigi Ferrari Bravo; Paolo Picone; Umberto Leanza; Antonio Tizzano; Massimo Panebianco; Giuliana Ziccardi Capalto; Giuseppe Biscottini; Ludovico M. Bentivoglio; Gian Maria Ubertazzi; Franco Mosconi; Tito Ballarino; Paolo Mengozzi; Natalino Ronzitti; Francesco Francioni; Gerardo Broggini; Riccardo Luzzato; Gian Carlo Venturini e, Lamberti Zanardi. Quanto a uma “[...] possível dimensão brasileira da Escola italiana [...]”, Ziccardi destaca: Arno Dal Ri Júnior; Jorge Fontoura; Naiara Posenato e Maristela Basso. Ver, a propósito: ZICCARDI, Piero. Evolução e

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exame atento e preciso da realidade. A busca pela aproximação da definição do

direito internacional à realidade pela qual este se manifesta e se permite perceber.

Ao aproximar direito internacional e realidade a escola positivista italiana procurou

superar os entendimentos daqueles que identificam o direito internacional aos seus

ideais pessoais,920 principalmente as noções que reduziam o direito internacional a

tão-somente um complexo de normas jurídicas. A escola italiana procurou superá-

los, então, com uma concepção mais ampla do direito: o direito como “instituição”,

como “organização”. O ordenamento jurídico internacional percebido em sua

manifestação real, concretizada na instituição “comunidade internacional”.

Entendimento este que atribuiu à escola positivista italiana, o caráter de escola

“antiformalista” de direito internacional.

A atribuição desse caráter, no entanto, em muito se deve as

contribuições dos ensinamentos de Santi Romano. O reconhecimento do direito

como um “fenômeno social”, provocou notáveis modificações no ensino do direito

internacional,921 sendo que muitas das concepções romanianas influenciaram e

posteriormente foram absorvidas pelos demais membros da escola italiana de direito

internacional.922 Nesse sentido, o valor das contribuições romanianas são

destacados sobre dois prismas.923 Em primeiro lugar, no que se refere à ação crítica

e construtiva de suas concepções em relação às que foram apresentadas

anteriormente.924 E por conseguinte, quanto à permanência e influência de tais

concepções, nas tendências posteriores.925

perspectiva da escola italiana de direito internacional no século XX. In: Revista seqüência: estudos jurídicos e políticos. Tradução de Arno Dal Ri Jr. Florianópolis: Fundação Boiteux. v. 51, ano XXV, dez. 2005. p. 203-227 920 SERENI, Angelo Piero. Dottrine italiane di diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 281 921 ZICCARDI, Piero. Le dottrine giuridiche di oggi e l’insegnamento di Santi Romano: il diritto internazionale. In: ______. Vita giuridica internazionale. p. 307 922 Idem. Ibidem., p. 309 923 Idem. Ibidem., p. 308-309 924 Nesse sentido Ziccardi refere-se à tarefa de Romano em reivindicar “[...] alla scienza giuridica il compito di conoscere per intero il fenomeno sociale, e la ritiene idônea.” A busca em compreender o “ser” do direito, não o limitando ao “dever-ser”. Vide: Idem. Ibidem., p. 305-322. A respeito também do momento em que as noções romanianas forma propostas, Ziccardi enfatiza que seria um erro não levar em conta a “inserção história” dos estudos de Romano. Nesse sentido, Ziccardi refere-se à crise do direito internacional no pós-primeira guerra mundial, devido às tendências contrárias ao internacionalismo. Momento este em que Romano, ao identificar o ordenamento jurídico internacional à comunidade internacional já estaria negando as concepções nacionalistas do direito internacional, as quais o reduziam a pactos firmados entre os Estados como exercício de sua soberania. Cf.: Idem. Ibidem., p. 315 925 Idem. Ibidem., p. 308. Segundo Ziccardi, a influênica de Romano nas tendências posteriores ocorreram devido às seguintes razões: a busca para compreensão do “ser”, construindo o direito

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Além da teoria institucionalista, as demais noções e especulações de

Romano contribuíram para a formação da escola antiformalista italiana de direito

internacional.926 Nesta, destacam-se representantes como Roberto Ago, Riccardo

Monaco e Piero Ziccardi, os quais ainda que com algumas modificações, recebem

nas suas obras a influência dos ensinamentos de Romano927 na elaboração de suas

construções jurídicas acerca da relação entre direito internacional e direito interno.

Construções as quais serão expostas na presente secção, consoante a seguinte

ordem de abordagem: concepções de direito; concepção de direito internacional;

concepções de sujeitos do direito internacional; concepções de fontes jurídicas do

direito internacional; e, por fim, a construção jurídica acerca da relação entre direito

internacional e direito interno juntamente com as considerações às demais

construções jurídicas, dualismo tradicional928 e monismo.

dentro da experiência; resolver o problema do “positivismo jurídico” ao identificar o direito e a sociedade, ou seja, identificando o direito existente no mundo dos fatos; e, conseqüentemente, por refutar os demais entendimentos que colocaria o direito assim fora da experiência histórica concreta. Cf.: ZICCARDI, Piero. Le dottrine giuridiche di oggi e l’insegnamento di Santi Romano: il diritto internazionale. In: ______. Vita giuridica internazionale. p. 309-311 926 Conforme já mencionado, muitas das concepções romanianas influenciaram os demais membros da escola antiformalista italiana de direito internacional. Nesse sentido, uma das expressões marcantes dessa influência corresponde a noção do “pluralismo jurídico”. Como bem menciona Capotorti, prevalece na doutrina italiana a concepção dualista, ou melhor, pluralista acerca da relação entre o direito internacional e o direito interno. In: CAPOTORTI, Francesco. Corso di diritto internazionale. p. 179. Tal influência pode ser, então, percebida nos ensinamentos do próprio Capotorti, “L’esistenza della Comunità internazionale, che come sappiamo comprende necessariamente tutti gli Stati indipendenti della terra, e la contemporânea esistenza di un diritto proprio di quella Comunità, sono inseparabili da un terzo dato di fatto, consistente nella pluralità degli ordinamenti statali.” In: CAPOTORTI, loc. cit. No decorrer desta secção, do presente trabalho, poder-se-á verificar o reconhecimento dessa pluralidade de ordenamentos jurídicos estatais por outros doutrinadores italianos. 927 Ao que concerne à concepção institucionalista do direito internacional, Ziccardi menciona que mesmo não concordando com Romano neste ponto, a contribuição desta deve ser reconhecida. Ziccardi não concorda com a mesma alegando à ausência de certas instituições próprias do direito internacional. Bem como que esta concepção pode conduzir ao erro ao considerar como “jurídicas” estruturas sociais que não são objeto de regulação jurídica. Essa amplitude, Ziccardi também atribui ao método de investigação de Romano ser o de indução. O que permite a “[...] rilevazione di fenomeni caratterizabili come giuridici nell’ambito ben più ampio di tutti i fenomeni sociali.” Vide: ZICCARDI, op. cit., p. 316 e 318-319. Contudo, preciosa é contribuição de tal concepção quando “[...] si tratti di indagare sul contenuto e le caratteristiche di sistema giuridici, come quello internazionale, nei quali scarsi e tavolta assenti siano gli elementi istituzionali.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 316 928 Vale novamente esclarecer que no decorrer da presente secção, o termo “dualismo tradicional” refere-se às concepções dualistas de Dioniso Anzilotti e Karl Heinrich Triepel.

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3.3.2.1 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Roberto Ago

Ao investigar o objeto da ciência jurídica, o jurista italiano Roberto Ago

[1907-1995]929 procurou não o distanciar da realidade.930 As afirmações do

positivismo931 e o método historicista de investigação foram adotados por Ago na

elaboração de suas concepções sobre o “direito”.932 Desse modo, segundo o autor,

“O direito é um fenômeno social.” Somente enquanto “fenômeno” a ciência jurídica

pode perceber, captar, compreender e explicar seu objeto, o direito.933 Fenômeno

929 Ao que concerne à atuação de Ago na vida internacional, dentre outras, se destacam: presidente do Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho [OIT], 1954-1955 e, entre 1967-1968; membro da Comissão de Direito Internaional das Nações Unidas; presidente de mesa [1964-1965] e relator nos trabalhos sobre a responsabilidade internacional dos Estados; presidente da Conferência que resultou com a elaboração da Convenção de Viena sobre os direitos dos tratados, de 1969; presidente do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia; juiz do Tribunal Internacional de Justiça [1979-1995]; professor catedrático de direito internacional nas universidade de Milão [1938-1956] e Roma [1956-1982]. A propósito: MIGLIAZZA, Alessandro. Roberto Ago. In: Rivista di diritto internazionale. Tradução de Arno Dal Ri Jr. [S.I.], v. LXXXI, 1998. Mimeografado. p. 01 930 Devido à significante atuação e vasta produção acadêmica, Ago também é referido como um dos principais contribuidores para os estudos sobre a “responsabilidade internacional dos Estados”. Os relatórios de Ago na Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, na década de 60, impulsionaram a reconceituação da questão da responsabilidade internacional dos Estados, no pós-guerra. Ao apresentar pontos como: a classificação das violações do direito internacional segundo a sua menor ou maior gravidade; o alcance das obrigações internacionais a toda a comunidade internacional, e não somente entre dois ou mais Estados; entre outros. Ver, a respeito: NOLTE, Georg. From Dionisio Anzilotti to Roberto Ago: the classical international law of State responsability and the traditional primacy of bilateral conception of inter-state relations. In: European journal of international law. [S. l.]: Oxford University Press. v. 13, n. 5, 2002. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 14 dez. 2007. p. 02. Quanto às demais contribuições de Ago para a questão da “responsabilidade internacional dos Estados” e suas distinções em relação à concepção da mesma de Dionisio Anzilotti, consultar: NOLTE, Georg. From Dionisio Anzilotti to Roberto Ago: the classical international law of State responsability and the traditional primacy of bilateral conception of inter-state relations. In: European journal of international law. Vale mencionar que, apesar de certas concepções divergentes, Ago não oculta a influência, nem sua inquestionável admiração pela vida e obra de Dionisio Anzilotti. Nesse sentido, consultar: AGO, Roberto. Encontros com Anzilotti. In: European journal of international law. Tradução de Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro. [S. l.]: Oxford University Press. v. 3, n. 01, 1992. Disponível em: <http: //www.ejil.org/journal>. Acesso em: 14 dez. 2007. 931 O positivismo sociológico, por ora mencionado, se refere aquele no sentido de atribuído por doutrinas filosóficas do século XIX, as quais valorizavam o método empirista e quantitativo, identificando a “experiência sensível” como a fonte principal do conhecimento. In: JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 222 932 MIGLIAZZA, op. cit., p. 02. Quanto ao método adotado por Ago no decorrer de seus estudos, Migliazza ressalta que Ago procurou conciliar o método empírico de investigação com o método dogmático. Ainda que Ago tenha partido de concepções positivistas, identificando “[...] o estudo do direito internacional com o estudo de um objeto da realidade [...]”, este não ignorou a existência de normas jurídicas internacionais positivadas. A propósito: Idem. Ibidem., p. 08 933 AGO, Roberto. Il caratteri della comunità internazionale e del suo diritto. In: ______. Caratteri generali e origini storiche della comunità internazionale e del suo diritto: introduzione al corso di

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este que por ser social, se concretiza em uma determina coletividade humana.934

Particularmente sobre o direito internacional, o autor, o concebe como um objeto da

realidade.935 Um fenômeno “[...] cuja existência constitui um dado da experiência

evidente [...]”.936 Um fenômeno jurídico que se concretiza em uma coletividade

humana. A ciência do direito internacional, portanto, corresponderia a “[...] aquele

ramo da ciência jurídica que precisamente se propõe a conhecer e descrever o

fenômeno jurídico do modo como ele se manifesta no âmbito daquela coletividade

que vem chamada de Comunidade Internacional”,937 tal definição iria ao encontro da

percepção de Romano de que a primeira manifestação do direito internacional seria

a instituição “comunidade internacional”.

O direito internacional consistiria, então, no direito dessa sociedade, a

comunidade internacional. No mesmo sentido da concepção romaniana, as três

características determinantes, dessa comunidade internacional frente às demais

coletividades humanas, seria, para Ago, a ausência do indivíduo como membro da

mesma, a completa não-institucionalização e, a pluralidade de entidades políticas

soberanas que a compõe.938 A comunidade internacional, segundo Ago, caracteriza-

se como uma coletividade não-homogênea939 e complexa940, formada por entes não-

diritto internazionale. Napoli: Scientifica, 2002. p. 13. Livre tradução do original: Il diritto è un fenomeno sociale. 934 AGO, loc. cit. Porém, Quadros discorda de tal posicionamento de Ago, expondo que “[...] não aceitando nós um entendimento lato da regra ubi societas ibi ius, o simples facto de uma regra vigorar no grupo social não a identifica como regra jurídica, e não nos diz que motivo ela obriga.” Quadros ainda menciona que “a construção de AGO representa a cúpula das teorias sociológicas que, reconduzindo o Direito Internacional à Sociedade Internacional, lhe dão um simples pseudofundamento. Elas podem explicar se a norma vigora ou não – mas não se ela é uma verdadeira norma jurídica.” Cf.: QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 72 935 MIGLIAZZA, Alessandro. Roberto Ago. In: Rivista di diritto internazionale. p. 02 936 AGO, Roberto. Scienza giuridica e diritto internazionale. Milano: A. Giuffrè, 1950. p. 10. Livre tradução do original: [...] cui esistenza costituisce un dato di esperienza evidente [...]. 937 Idem. Il caratteri della comunità internazionale e del suo diritto. In: ______. Caratteri generali e origini storiche della comunità internazionale e del suo diritto: introduzione al corso di diritto internazionale. p. 14. Livre tradução do original: [...] quella branca della scienza giuridica che si propone precisamente di conoscere e descrivere il fenomeno giuridico, quale esso si manifesta nel quadro di quella colletività che viene chiamata Comunità internazionale. 938 Idem. Ibidem., p. 27 939 Idem. Ibidem., p. 07. A característica da comunidade internacional como “não-homogênea” decorre da diversidade de seus membros. Segundo Ago, a comunidade internacional, diferentemente da estatal, é composta por entes não-físicos, ou seja, por entes políticos. Dentre tais entes políticos, os Estados são destacados por Ago como os entes primários da comunidade internacional. Contudo, o jurista italiano não ignora a existência de outros entes políticos na comunidade internacional. Nesse sentido, Ago refere-se a outros entes políticos não-estatais, como por exemplo: a Santa Sé; os movimentos de insurreição; e, as associações entre Estados, as quais nascem de modo artificial por meio de acordo entre os Estados. Cf.: Idem. Ibidem., p. 22 e 24 940 Idem. Ibidem., p. 21. O caráter “complexo” da comunidade internacional decorre tanto da estrutura de seus entes primários, os Estados, quanto dos demais entes políticos que são identificados como

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físico, mas sim políticos.941 Uma pluralidade de sociedades juridicamente

organizadas, não correspondendo a uma sociedade formada por indivíduos,942

caracterizada, também, por ser uma coletividade completamente não-

institucionalizada.943 Desse modo, em tal sociedade não se admitem relações de

subordinação, seja reciprocamente entre seus membros, seja de tão-somente um

único membro em relação aos demais. Desse modo, torna-se evidente que em tal

sociedade são admitidas somente relações de coordenação de caráter igualitário,944

o que iria ao encontro do posicionamento de Romano. Uma vez que, de acordo com

Ago, a comunidade internacional se identifica com uma comunidade de Estados.945

Consequentemente, o ente político primário da comunidade internacional

corresponde ao Estado, ou melhor, a pluralidade dos Estados. Por isso, a mesma se

identifica como uma comunidade igualitária, uma vez que seus membros exigem

uma absoluta igualdade e independência recíproca.946

Assim como Romano, para Ago a ausência de institucionalização da

comunidade internacional não significa, entretanto, que a mesma não possa ser

organizada.947 Conforme mencionado, o autor não questiona a existência de um

direito internacional, de um fenômeno que se concretiza na comunidade

internacional. Um “fenômeno” que, segundo Ago, necessariamente não significaria

membros da comunidade internacional. Cf.: AGO, Roberto. Il caratteri della comunità internazionale e del suo diritto. In: ______. Caratteri generali e origini storiche della comunità internazionale e del suo diritto: introduzione al corso di diritto internazionale. p. 23. Nesse contexto, vale ainda mencionar que consoante Ago, os Estados também caracterizam como coletividades não-homogêneas e complexas. Tendo em vista que os indivíduos são os seus membros primários ao lado de uma crescente quantidade de entes não-físicos. Cf.: Idem. Ibidem., p. 16 941 Idem. Ibidem., p. 18 942 Idem. Scienza giuridica e diritto internazionale. p. 09. Segundo Ago, uma das características mais marcantes da comunidade internacional dentre as demais coletividades humanas, corresponde ao fato de o indivíduo não estar entre os seus membros. Vide: Idem. Il caratteri della comunità internazionale e del suo diritto. In: ______. Caratteri generali e origini storiche della comunità internazionale e del suo diritto: introduzione al corso di diritto internazionale. p. 18 943 Idem. Ibidem., p. 24. “Si cercherebbe invano nel suo âmbito un apparato istituzionale definibile come suo proprio, che fosse l’espressione della Comunità in quanto tale e che fosse incaricato di agire nell’interesse della collettività. Non c’è, nella sua composizione, un’entità distinta, o un complesso di entità distinte, che abbiano la supremazia su tutti i membri della collettività e che riuniscano quell’insieme di prerogative e di poteri che nelle colletività statuali si denomina potere pubblico. La Comunità internazionale è una colletività senza ‘sovrano’. [...] È dunque anche una colletività non-gerarchizzata [...].” Ver, a respeito: Idem. Ibidem., p. 24-25 944 Idem. Scienza giuridica e diritto internazionale. p. 09 945 Idem. Lezioni di diritto internazionale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1943. p. 03 946 Idem. Il caratteri della comunità internazionale e del suo diritto. In: ______. Caratteri generali e origini storiche della comunità internazionale e del suo diritto: introduzione al corso di diritto internazionale. p. 23 947 Idem. Ibidem., p. 25

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“produto”.948 Desse modo, o direito internacional não seria um produto da

comunidade internacional, do mesmo modo que para Romano a instituição

“comunidade internacional” não seria fonte do direito internacional, mas sim este

próprio, em sua primeira manifestação.

Ao discorrer sobre ambivalência do termo “direito positivo”, Ago adverte

que a idéia de “juridicidade” deve ser desvinculada daquela de “criação” ou de

“posição”.949 Nesse contexto, Ago propõe uma noção mais ampla do termo “direito

positivo” que deveria ser entendido como sinônimo de “direito vigente”, e não em seu

sentido restrito.950 Tal noção estaria desvinculada da idéia de que a juridicidade de

uma norma do direito vigente dependa da identificação de sua “fonte”, ou seja, de

determinar o ente que a tenha criado.951 Nessa noção mais ampla, as normas

jurídicas que se formam de modo espontâneo também passariam a ser

consideradas como “direito positivo”.952 Por isso, Adolfo M. de la Muela ressalta que

948 AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 56. Para Ago, o direito enquanto fenômeno social “[…] si manifesta ed opera nella vita della società; e che quindi è in senso alla società che occorre andarlo a ricercare, ed è in relazione alla società ed alle sue esigenze che bisogna considerarlo ed intenderlo. Ma questo non significa che la «socialità» sia la ragione della «giuridicità», che il diritto sia tale perchè «creato» dalla società, o perchè «volontà del corpo sociale» […].” Cf.:AGO, loc. cit. Nesse sentido, Ago adverte que a juridicidade é um atributo conferido pelo pensamento humano “[...] che riflette sui fenomeni sociali, e che esso riserva ad una determinata categoria di norme, ad un dato complesso di giudizi di cui riscontra la presenza nella vita sociale [...]” e que somente esses fenômenos sociais possuem determinadas características objetivas, as quais revelam em seu conjunto. Cf.: Idem. Ibidem., p. 57. Compete, então, a ciência jurídica salientando tais características objetivas, diferenciar e qualificar “[...] come giuridica la categoria di giudizi nella quale ritrova presenti i caratteri stessi.” Cf.: AGO, loc. cit. Enfim, Ago ressalta que “Sta appunto nella presenza obbiettiva di quei caratteri [...] la ragione della loro giuridicità, della loro qualifica come norme di diritto; non in una loro pretesa «posizione», o «creazione», o «formulazione» dap arte della «società».” Cf.: AGO, loc. cit. Isso significa que, para Ago, a “juridicidade” de uma “norma”, ou seja, que esta possa ser considerada como uma norma jurídica não depende de um meio de criação ou de posição desta “norma”. O que amplia assim a concepção do direito, não o reduzindo tão-somente a norma jurídica produzida por uma determinada vontade e por um determinado meio. 949 Idem. Ibidem., p. 60. Ao abordar essa ambivalência do termo “direito positivo”, Ago menciona que o principal equívoco, e logo o obstáculo para uma concepção mais ampla do direito, corresponderia à determinação do caráter de “juridicidade” de uma norma jurídica. Questão esta que leva à busca da “fonte”, ou seja, “ […] dell’ente e del fatto «creativo» anche di quell diritto che, in realtà, è sorto indipendentemente dal funzionamento di qualsiasi «fonte» […].” Cf.: Idem.Ibidem. p. 62 950 Idem. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 61. “Direito positivo” como sinônimo de “direito vigente” se expressa, segundo Ago, “[…] come indicative, cioè, di tutto quell diritto che l’esperienza riveli storicamente realizzato, facente effettivamente parte di uno dei sistemi giuridici che vivono in senso alle varie società umane esistenti.” Cf.: AGO, loc. cit. Segundo Ago, uma noção mais ampla de “direito positivo” deveria ser adotada, abandonando aquele sentido restrito, “[…] eliminando da tale nozione qualsiasi riferimento al modo in cui il diritto si sia formato, dovrebbe corrispondere ad un abbandono definitivo dell’idea di una coincidenza tra diritto vigente e diritto posto […].” Cf.: Idem. Ibidem., p. 40 951 Idem. Ibidem., p. 63 952 Com tal noção mais ampla de “direito positivo” tornar-se-ia possível, para Ago, distinguir duas categorias de normas jurídicas: as que se manifestam como produto de fatos normativos e as que “[…] si dimostrano vigente e operanti senza essere il prodotto di alcuna «fonte».” Sendo, portanto,

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para Ago as normas centrais [fundamentais] de um ordenamento jurídico, como

aquelas que sobre a própria produção jurídica, seriam de formação espontânea.953

Principalmente no tocante ao direito internacional vigente, Ago ressalta que nem

todas as normas jurídicas internacionais seriam geradas por fatos normativos

propositais, sendo que a parte mais importante do direito internacional não é de

formação positiva, em seu sentido restrito, mas sim de formação espontânea.954

Posicionamento este que também iria ao encontro da concepção romaniana, uma

vez que, conforme mencionado, para o jurista siciliano tanto os princípios

constitucionais do direito internacional quanto o costume internacional teriam

formação “involuntárias”, ou seja, não seriam gerados por fatos normativos

propositais. A questão da identificação da fonte do direito internacional não se

apresentaria, portanto, para Ago, como determinante para a existência desse

ordenamento jurídico, uma vez que há a existência de normas jurídicas

internacionais espontâneas junto às demais normas jurídicas internacionais

decorrentes de alguma fonte determinada.955

ambas identificadas como direito positivo. Cf.: AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 40. O costume corresponderia assim, consoante Ago, a uma norma jurídica de formação espontânea, não sendo possível a sua representação como “fato de produção jurídica”. O direito consuetudinário seria um direito espontâneo. Logo, a suposta “fonte” do costume seria identificada no próprio fato de sua criação espontânea. Cf.: Idem. Scienza giuridica e diritto internazionale. p. 91. Acerca dessa questão quanto às normas jurídicas de formação espontâneas e as normas jurídicas decorrentes de fatos normativos, ou seja, de procedimentos de fato, vide: Idem. Ibidem., p. 78-94. Por outro lado, essa concepção de Ago de “norma jurídica espontânea” provocou alguns posicionamentos contrário a mesma. Posicionamentos que divergiam de Ago no sentido de que com tal espontaneidade seria quase impossível determinar os limites do ordenamento jurídico. A esse respeito consultar: Cf.: SERENI, Angelo Piero. Dottrine italiane di diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 281-300 953 MUELA, Adolfo Miaja de la. Introduccion al derecho internacional publico. p. 61. 954 AGO, Roberto. Diritto positivo e diritto internazionale. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. p. 64. Ademais, Adolfo Miaja de la Muela ainda menciona que o direito espontâneo de Ago “[...] podrían ser perfectamente insertados en una construción iusnaturalista; pero resultan algo forzados en sisfemas como los de los actuales juristas italianos, cuyo bien intecionado realismo se esfuerza en buscar una fundamentación para el Derecho internacional de mayor solidez que la vontuntaria y que la dogmática.” Vide: MUELA, op. cit., p. 63 955 Nessa perspectiva Migliazza ao comentar esses dois grupos de normas no direito internacional destacados por Ago, ressalta que para este tais grupos diferem apenas quanto ao modo de verificação. Uma vez que “[...] os costumes internacionais, que podem ser constatados somente através do método historicista, e as normas pactícias, que podem ser individuadas através da verificação do procedimento de formação delas.” Cf.: MIGLIAZZA, Alessandro. Roberto Ago. In: Rivista di diritto internazionale. p. 05. A separação desses dois grupos de normas no direito internacional apresentados por Ago também revelam, segundo Migliazza, a tentativa de Ago de conciliar um método empírico de investigação com o método dogmático, “[...] este esforço o levou a delinear a existência de duas classes de normas no direito internacional – o direito espontâneo e o direito positivo – e, conseqüentemente, a sustentar que uma e outra podem ser verificadas através de métodos parcialmente diferentes.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 08.

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Diante de tais concepções do direito internacional, Ago passa a

investigar o problema da originariedade deste ordenamento jurídico. O problema de

considerá-lo como um sistema jurídico completo e exclusivo de valoração jurídica.

Não derivado, desse modo, de nenhum outro ordenamento jurídico.956 A relevância

de tal problema se daria devido ao fato deste tocar a questão da “norma

fundamental” do direito internacional. Se esta corresponderia a uma norma cuja

existência pudesse ser provada com um procedimento de indução científica a partir

de dados fornecidos pela experiência.957 Além disso, Ago também destaca a

relevância de tal problema, por este ser um aspecto de um problema mais amplo.

Isso significa que, o problema da originariedade do direito internacional

corresponderia a um aspecto de um outro problema maior, o da relação entre direito

internacional e direito interno.958

Antes de tecer suas considerações acerca da relação acima

mencionada, o autor ressalta seu entendimento quanto à pluralidade de

ordenamentos jurídicos. Segundo Ago, se é logicamente possível que o objeto de

investigação da dogmática corresponda a dois sistemas jurídicos distintos e

originários de valorações jurídicas, como o internacional e o interno, também é

possível que a mesma investigue um objeto de dois ou mais ordenamentos jurídicos.

Consoante Ago, a ciência jurídica “[...] pode se propor qualquer problema relativo ao

conhecimento do fenômeno jurídico [...].”959 Não estando limitada a investigação de

um único sistema jurídico. E o reconhecimento dessa pluralidade de ordenamentos

jurídicos positivos pela ciência jurídica, ou seja, dessa pluralidade de fenômenos

concretos não “[...] prejudica em algum modo a unidade dos conceitos que esta

construiu.”960 Tal concepção revelaria a influência em Ago dos enunciados da teoria

romaniana do pluralismo jurídico.

Reconhecida essa possibilidade de uma pluralidade de ordenamentos

jurídicos, Ago passa a abordar a questão acerca da relação do direito internacional

com o direito interno. De acordo com jurista italiano, não há nenhuma

956 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 30 957 AGO, loc. cit. 958 Idem. Ibidem., p. 31. Segundo Ago, a solução que se apresenta para o problema da relação do direito internacional com o direito interno, contém a resposta para o problema da originariedade do direito internacional. In: AGO, loc. cit. 959 Idem. Ibidem., p. 43. Livre tradução do original: [...] può proporsi qualunque problema relativo alla conoscenza del lfenomeno giuridico [...]. 960 Idem. Ibidem., p. 45. Livre tradução do original: [...] menomi in alcun modo l’unità dei concetti che essa costruisce.

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impossibilidade lógica que venha a impedir que seja concebida tanto a

originariedade, quanto a independência dos ordenamentos jurídicos, internacional e

internos. A solução do problema da originariedade ou não de tais ordenamentos “[...]

deve ser concluída apenas sobre a base rigorosamente científica do exame da

realidade objetiva.”961 Uma vez que do exame da realidade objetiva pode-se

convencer quanto à originariedade do ordenamento jurídico internacional e dos

estatais, e logo, a separação entre ambos os sistemas jurídicos, o internacional e o

interno. Separação por não ser possível constatar seja no ordenamento jurídico

internacional, seja nos ordenamentos jurídicos internos, a existência de alguma

norma jurídica da qual possa ser deduzida a juridicidade da norma fundamental do

outro ordenamento jurídico,962 o que significaria uma relação de subordinação entre

tais ordenamentos jurídicos, inserido em um único sistema jurídico.

Além disso, a completa separação entre sistema jurídico internacional e

interno pode ser também percebida, segundo o autor, tendo em conta o problema do

possível contraste entre as normas de cada um dos respectivos sistemas

jurídicos.963 Conforme o jurista italiano, a experiência demonstra que uma norma

estatal, ainda que contrária a uma obrigação do ordenamento jurídico internacional,

é válida e eficaz no âmbito interno de seu Estado, sendo que esta validade não

significa a comissão de um ilícito internacional, por parte do Estado em questão.964

Isso expressaria, então, a impossibilidade de o ordenamento jurídico interno fazer

parte do ordenamento jurídico internacional.965 Portanto, a observação da realidade

objetiva, para Ago, demonstra a separação, e logo, a originariedade dos sistemas

jurídicos internacional e interno,966 o que iria ao encontro do entendimento de

Romano.

Por conseguinte, dessa separação entre os dois sistemas jurídicos Ago

destaca as seguintes conseqüências: a distinção entre os sujeitos dos respectivos

sistemas jurídicos; a distinção entre as fontes jurídicas; e a não existência de

961 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 45. Livre tradução do original: [...] debba esser ricavata soltanto sulla base rigorosamente scientifica dell’esame della realtà oggettiva. 962 Idem. Ibidem., p. 46 963 AGO, loc. cit. 964 Idem. Ibidem., p. 47 965 AGO, loc. cit. 966 Idem. Ibidem., p. 49-50. Porém, Ago adverte que tal separação não implica necessariamente que a observação das obrigações, do ordenamento jurídico internacional, não tenham relevância para o Estado em sua atividade legislativa. Bem como, Ago não descarta a possibilidade de uma mudança de tal situação. Devido aos inconvenientes que decorrem do fato de o direito internacional não poder anular diretamente uma lei estatal, contrária as suas prescrições. Cf.: Idem. Ibidem., p. 50

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conflitos, nem de relações jurídicas entre os mesmos.967 No primeiro caso, a respeito

dos sujeitos dos respectivos sistemas jurídicos, o autor adverte que tal distinção não

significaria a impossibilidade de que os mesmos entes de fato assim possam ser

considerados. Esses podem ser idênticos, conforme se verifica pela investigação da

realidade objetiva.968 Até mesmo os termos utilizados podem ser idênticos. A

distinção se daria, entretanto, quanto aos sujeitos criados, a partir desses entes de

fato, por cada sistema jurídico.969 Segundo Ago, o “Estado” sujeito do direito

internacional, não se identifica com o “Estado” sujeito do direito interno.970

Enquanto sistemas jurídicos originários, conseqüentemente, as fontes

jurídicas do direito internacional e do direito interno também são distintas. Contudo,

isso não significaria que os meios de produção não possam ser do mesmo tipo.971

Desse modo, o “costume” pode ser identificado como fonte jurídica de ambos

ordenamentos,972 sendo que, o costume internacional identificado como fonte do

direito internacional e o costume do âmbito interno de um Estado identificado como

fonte do direito interno.973

Por último, uma terceira conseqüência destacada por Ago, decorrente

da separação entre os sistemas jurídicos, consiste na inexistência de conflitos entre

os mesmos, bem como, o não estabelecimento de relações jurídicas entre si.974 Tais

conflitos e relações jurídicas somente poderiam ser possíveis de ocorrer quando

sejam compreendidos no “[...] quadro de um ordenamento superior o qual resolva

tais conflitos ou discipline tais relações.”975 Do contrário, enquanto ordenamentos

jurídicos originários, Ago menciona a impossibilidade de tais conflitos e relações

jurídicas. O que apenas poderia ocorrer seria um ordenamento jurídico referir-se

unilateralmente ao outro, e vice-versa.976

Nesse sentido, quando a referência se dá unilateralmente, do

ordenamento internacional para o interno, essa somente poderia ocorrer em um

caráter de fato, o que iria de encontro ao entendimento de Romano segundo o qual

967 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 50 968 Idem. Ibidem., p. 51 969 AGO, loc. cit. 970 AGO, loc. cit. 971 Idem. Ibidem., p. 53 972 AGO, loc. cit. 973 AGO, loc. cit. 974 Idem. Ibidem., p. 54 975 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] quadro di un ordinamento superiore il quale risolva tali confliti o disciplini tali relazioni. 976 AGO, loc. cit.

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a “comunidade internacional” está para o Estado como um ordenamento jurídico e,

vice-versa. Já para Ago isso significa que com relação ao direito internacional “[...]

as leis internas são de mero fatos, e a atividade legislativa estatal aparece como

simples comportamento material do sujeito.”977 Quanto à questão substancial, o

jurista italiano menciona que geralmente o direito internacional se limita a requer do

Estado a realização de um determinado resultado concreto. Não se importando se

tal resultado será obtido mediante a atividade legislativa estatal, ou não.978 A

referência, então, seria apenas um mero comportamento de fato. Um

comportamento “[...] valorado juridicamente do direito internacional [...].”979

Ademais, Ago também discorre sobre a referência a qual se dá

unilateralmente do ordenamento jurídico interno para o internacional. Esse seria o

caso do “reenvio” do direito interno ao direito internacional para determinação do

conteúdo de uma norma jurídica interna.980 Contudo, Ago adverte que tal reenvio

não significa que a norma jurídica interna receba “[...] como própria o conteúdo da

norma internacional indicada [...]”.981 Os tipos de referências feitas do direito interno

ao direito internacional podem ser, segundo Ago, análogos àquelas referências do

direito internacional ao direito interno.982 Dois são então os tipos mencionados. O

primeiro corresponde às referências a fim de “[...] designar mediatamente o próprio

objeto, enquanto um elemento deste seja constituído de uma valoração dada do

direito internacional [...].”983 O segundo tipo, corresponde às referências a fim de “[...]

condicionar uma valoração jurídica interna ao fato da existência de uma certa

valoração internacional.”984 Diante dos mencionados tipos de referências, o autor

977 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 55. Livre tradução do original: [...] le leggi interne sono dei meri fatti, e l’attività legislativa statuale appare come semplice contegno materiale del soggetto. 978 AGO, loc. cit. 979 Idem. Ibidem., p. 56. Livre tradução do original: [...] valutato giuridicamente dal diritto internazionale [...]. A respeito dessa referência do direito internacional ao direito interno, Ago cita como exemplo quando “[...] la norma internazionale richiede como próprio oggetto l’atività di un individuo che nel tale qualifica giuridica penetri affatto nell’ordinamento internazionale, nè che, [...], la norma internazionale ricavi da quella interna il proprio contenuto.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 57 980 Idem. Ibidem., p. 58 981 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] come proprio il contenuto delle norme internazionali indicate [...]. 982 Idem. Ibidem., p. 60 983 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] designare mediatamente il proprio oggetto, in quanto un elemento di questo sia costituito da una valutazione data dall’ordinamento internazionale [...]. Quanto a esse tipo de referência Ago cita, por exemplo, a norma constitucional de um Estado a qual estabelece que o chefe de tal Estado é competente para convencionar os tratados. In: AGO, loc. cit. 984 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] condizionare una valutazione giuridica interna al fatto dell’ esistenza di una certa valutaziene internazionale.

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ressalta novamente que o direito interno, ao fazer referência ao direito internacional,

não requer deste o conteúdo de suas normas jurídicas internas.

A partir de tais concepções da separação, e logo da originariedade dos

sistemas jurídicos em questão, bem como de suas respectivas conseqüências, Ago

apresenta suas considerações quanto à construção dualista e a construção monista

acerca da relação do direito internacional como o direito interno. Primeiramente,

quanto ao posicionamento dualista, apesar de coadunar com a separação entre os

sistemas jurídicos, Ago não concorda com algumas alegações de tal

posicionamento, ou seja, não decorreria “necessariamente” dessa separação dos

sistemas jurídicos as diferenças entre seus conteúdos, como alegado pelo dualismo

tradicional,985 uma vez que, caso houvesse algum princípio “[...] delimitante

juridicamente as matérias que os dois sistemas possam respectivamente disciplinar

[...]”, um sistema decorreria assim do outro.986 Haveria uma relação de subordinação

e não uma separação entre os mesmos, em que, cada ordenamento jurídico, por ser

originário, determina seu próprio conteúdo. Determina livremente a matéria que “[...]

contempla e valora, e nada lhe proíbe de regular fatos e relações contempladas de

outros ordenamentos.”987 E essa não proibição de regular matéria de outros

ordenamentos jurídicos se verifica “[...] da simples observação de uma situação que

hoje existe e que poderia não existir.”988 Não decorrendo de nenhum princípio que

assim estabeleça. O que ocorre é que cada um dos sistemas jurídicos “[...] regulam

matérias de relações completamente distintas [...]”.989 Um de coordenação das

relações estabelecidas entre os Estados, enquanto o outro, das relações ocorrentes

no âmbito interno de um Estado.

Acerca da questão da distinção das fontes jurídicas, Ago também

contrapõe os entendimentos do dualismo tradicional, uma vez que este considerava

985 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 51 986 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] delimitante giuridicamente le materie che i due sistemi possono rispettivamente disciplinare [...]. 987 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] contempla e valuta, e nulla gli vieta di regolare fatti e rapporti contemplati da altri ordinamenti. 988 Idem. Ibidem., p. 52. Livre tradução do original: [...] della semplice osservazione di uma situazione che eggi esiste e che potrebbe non esistere. 989 AGO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] regolano materie di rapporti completamente distinte [...]. Nessa questão, Ago refere-se como correta à alegação do dualista Karl Heinrich Triepel, por este considerar que a distinção do conteúdo do direito internacional e do direito interno decorre da diversidade das relações que cada um regula. E não que a distinção do conteúdo decorra de que um não possa disciplinar a matéria contemplada pelo outro. In: Idem. Ibidem., p. 51-52

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distinta a natureza das fontes jurídicas do direito internacional e do direito interno.990

Já para o autor, conforme mencionado, ainda que as fontes jurídicas sejam distintas,

as mesmas podem ser do mesmo tipo, como por exemplo, o costume internacional e

o costume do âmbito interno de um Estado.991

Quanto à construção monista, são apresentados alguns dos méritos

desta doutrina por esclarecer certas inconseqüências do posicionamento dualista.992

Principalmente, Ago refere-se às críticas do monismo sobre a falta de coerência do

desenvolvimento do posicionamento dualista em relação a sua premissa,993 isso

significa que, ao ser afirmado a separação dos sistemas jurídicos, suas

conseqüências também deveriam ter sido trabalhadas pelos dualistas, e não

somente ter alegado que um ordenamento jurídico é exclusivo, e que por isso

excluiria a juridicidade dos demais, não reconhecendo a pluralidade dos

ordenamentos jurídicos.994 Uma vez que para os monistas, devido à unidade do

sistema jurídico, haveria somente um objeto constituído por este, sendo que os

demais supostos ordenamentos não poderiam ser considerados como jurídicos,

devido ao fato de fazerem parte de um único ordenamento jurídico.995

Contudo, Ago menciona que o principal equívoco do posicionamento

monista é o de considerar a ciência jurídica como uma ciência puramente

normativa.996 Disso decorrem dois erros na construção monista. Segundo o jurista

italiano o primeiro erro corresponde à consideração monista de ser uma

necessidade da ciência jurídica, chegar a um sistema unitário de conhecimento.997

Uma unidade que nega a pluralidades de ordenamentos jurídicos. Já o segundo

erro, decorreria da consideração a respeito da “[...] existência de um só sistema

jurídico positivo no qual todos os demais devam ser fatos juridicamente

990 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 53. Já nessa questão, Ago vai de encontro à alegação do dualitas Karl Heinrich Triepel por este identificar a fonte jurídica a uma vontade estatal. Sendo que, quando de natureza coletiva, produziria o direito internacional, die Vereinbarung. E quando de natureza individual, produziria o direito interno. Cf.: Idem. Ibidem., p. 32 991 Idem. Ibidem., p. 53 992 Idem. Ibidem., p. 42 993 Idem. Ibidem., p. 43 994 AGO, loc. cit. 995 AGO, loc. cit. 996 Idem. Ibidem., p. 44. Segundo Ago, tal noção da ciência jurídica como puramente normativa significa “[...] una scienza il cui unico compito sia quello di arrivare a construire un sistema di proposizioni normative tra loro non contradittorie e ricavate in via deduttiva, [...] dal postulato dell’unità della conoscenza giuridica quello dell’unità del suo oggetto, e quindi dell’esistenza di un único ordinamento giuridico positivo.” In: AGO, loc. cit. 997 AGO, loc. cit.

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englobados.”998 Tais erros não reconhecem, destarte, a pluralidade de

ordenamentos jurídicos revelada pela investigação da realidade objetiva.

Por fim, o direito internacional consistiria no fenômeno jurídico que se

concretiza na comunidade internacional. Comunidade esta singular, que manifesta a

existência desse direito seja por meio de normas jurídicas internacionais

espontâneas, seja por meio de normas jurídicas internacionais decorrentes

procedimentos de fato. Separado, e logo originário, o sistema jurídico internacional

não está subordinado a outro, nem mesmo dependente do sistema jurídico interno.

Tal separação pela distinção ocorreria entre tais sistemas jurídicos no que se refere

aos seus sujeitos, às suas fontes jurídicas, e à ausência de conflitos e de relações

jurídicas entre os mesmos. Da investigação da realidade objetiva, portanto, Ago

constata a separação e a conseqüente originariedade, tanto do ordenamento jurídico

internacional, quanto da pluralidade dos ordenamentos jurídicos internos, revelando,

assim, a influência dos ensinamentos de Romano em suas concepções.

3.3.2.2 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Riccardo

Monaco

O jurista italiano Riccardo Monaco [1909-2000]999 concebe o direito

como mais uma das manifestações da vida em sociedade.1000 Um fenômeno social

ao lado dos demais fenômenos sociais, como o religioso e o político.1001 Para

Monaco, expressões como “direito” e “sociedade” são interdependentes.1002 O direito

não corresponde, portanto, a tão-somente um complexo de normas jurídicas. Estas

últimas apenas concorrem para formação do ordenamento jurídico.1003 Desse modo,

998 AGO, Roberto. Lezioni di diritto internazionale. p. 44. Livre tradução do original: [...] l’existenza di un solo sistema giuridico positivo nel quale tutti gli altri debbono esser fatti giutidicamente rientrare. 999 Professor na Universidade de Roma, aluno de Roberto Ago. 1000 MONACO, Riccardo; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. 9. ed. Torino: G. Giappichelli, 1962. p. 03 1001 Idem. Ibidem., p. 03-04 1002 Idem. Ibidem., p. 04 1003 Idem. Ibidem., p. 05. “Questo concetto del fenômeno giuridico è assai più vasto e comprensivo di quello che risulta dalla pura e semplice soma delle varie regole di diritto che, in un determinato momento storico, hanno vigore nel nucleo sociale considerato. Pertanto, è giuridica non soltanto la norma di condotta che si impone ai consociati, ma anche la stessa organizzazione, la stessa struttura della società.” In: MONACO, loc. cit.

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o ordenamento jurídico consiste, segundo o jurista italiano, em “[...] todo ente que

tenha tomado para si uma própria organização, mais ou menos estável, e, então, um

próprio ordenamentos interno, reduzindo a unidade os elementos que o compõe

[...].”1004 O ordenamento jurídico, para Monaco, se identifica com a “instituição”, e

vice-versa. Entendimento o qual revelaria a forte influência de Romano nas

concepções de Monaco, a ponto de Quadros e Adolfo M. de la Muela referirem-se a

este último como o “grande seguidor” do institucionalismo romaniano.1005 Monaco,

então, ressalta a existência de uma multiplicidade de instituições,1006 e logo, da

pluralidade de ordenamentos jurídicos, dentre os quais se destaca o ordenamento

jurídico internacional.

A noção de ordenamento jurídico internacional encontra-se, destarte,

estreitamente ligada àquela de sociedade internacional,1007 sendo que o direito

internacional surgiu juntamente com esta quando os grupos políticos, como os

Estados, se organizaram, passando a estabelecer relações casuais e esporádicas

entre si.1008 O direito internacional seria, então, definido por Monaco como “[...] o

direito da comunidade internacional ou o direito que regula as relações entre os

Estados e os outros entes soberanos a estes assimilados.”1009 No mesmo sentido

que Romano, as características determinantes desse ramo do direito público1010

1004 MONACO, Riccardo; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 06. Livre tradução do original: [...] ogni ente che abbia assunta una própria organizzazione, più o meno stabile, e, quindi, un proprio organizzazione, più o meno stabile, e, quindi, un proprio ordine interno, riducente ad unità gli elementi che lo compongono [...]. Dentre tais elementos, se destaca os indivíduos que compõe tal ente. 1005 QUADROS, Fausto; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. p. 71 e, MUELA, Adolfo Miaja de la. Introduccion al derecho internacional publico. p. 64 1006 MONACO, op. cit., p. 16 1007 Idem. Lezioni di diritto internazionale pubblico. 4. ed. Torino: G. Giappichelli, 1957. p. 03. Quanto ao método seguido para a definição do direito internacional, Monaco menciona, “[...] un metodo cioè non puramente formalístico, ma anche strettamente positivo, aderente cioè alla realtà del fenomeno sociale al quale il diritto internazionale si riferisce.” Cf.: MONACO, loc. cit. Cabe advertir que a questão da preocupação metodológica de Monaco será abordada posteriormente, nesta secção. 1008 Idem. Ibidem., p. 05. Em outros termos, “Il diritto internazionale nasce dai rapporti dei singoli ordinamenti statuali fra loro e dai rapporti di tali ordinamenti coll’ordinamento internazionale.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 08 1009 Idem; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 68. Livre tradução do original: [...] il diritto della comunità internazionale o il diritto che regola le relazioni fra gli Stati e gli altri enti sovrani ad essi assimilati. 1010 A respeito dos ramos do direito público, vale mencionar que Monaco apresenta uma distinção entre o direito público interno e o direito internacional público. O primeiro caso corresponde ao direito do Estado, ou seja, o ordenamento jurídico do Estado. Já o direito internacional público corresponde àquela parte da atividade jurídica do Estado voltada às relações deste com os demais Estados, enquanto membro da comunidade internacional. Seria um direito dos Estados relativo às suas recíprocas relações. Dessas relações decorrem “[...] norme giuridiche particolari, organi ed istituti i quali sono diversi dalle norme, dagli organi e dagli istituti che costituiscono l’ordinamento interno di

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correspondem, consoante Monaco, a sua autonomia;1011 a sua originariedade;1012 e

a sua organização sobre bases paritárias.1013 Tal caráter paritário, decorre da

ausência de relações hierárquicas entre membros, ou seja, os sujeitos do direito

internacional. Os Estados1014 e demais entes similares a estes, como a Santa Sé, os

movimentos de insurreição nacional, colônias e governos livres são considerados

por Monaco como os sujeitos do direito internacional,1015 os quais, “[...] agem no

direito internacional sobre a base da sua paridade jurídica [...].”1016

ciascuno Stato [...].” Vide: MONACO, Riccardo; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 67. Monaco, então, adverte que “Tutto il diritto pubblico, che non si qualifica come internazionale, è diritto pubblico interno [...].” Nesse sentido ainda que denominado como “direito internacional privado”, Monaco entende que este faz parte do direito público interno de cada Estado. Uma vez que, segundo o jurista italiano, nem sempre a expressão “internacional” junto a alguma norma jurídica refere-se ao direito internacional própriamente dito. Cf.: Idem. Ibidem., p. 70. Para Monaco, em tais casos “[...] la parola «internazionale» non si richiama, per lo più, all’ordinamento internazionale in senso proprio, bensì a norme di diritto interno statuale deputate a regolare rapporti collegati com più Stati, e, quindi, con gli ordinamenti interni di questi.” In: Idem. Ibidem., p. 68 1011 O caráter autônomo do ordenamento jurídico internacional decorre, segundo Monaco, deste em relação ao ordenamento jurídico estatal. Por isso, tal caráter será melhor abordado postetiormente na questão da relação entre tais ordenamentos jurídicos. 1012 Para Monaco, o ordenamento jurídico internacional refere-se à comunidade dos Estados em sua unidade, como um ente social, diversa daquela de cada Estado individualmente. Isso expressa o seu caráter de ordenamento “originário”, “[...] giacchè non ripete la propria esistenza da altri ordinamenti giuridici, ma si pone primariamente nel mondo giuridico, come organizzazione della comunità internazionale.” Cf.: Idem. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. 08 1013 Idem. Ibidem., p. 11 1014 O Estado é juridicamente definido por Monaco como “[...] l’organizzazione política assunta da un popolo stanziato su di un determinato territorio.” In: Idem; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 123. Os elementos que constituem o Estado são: o povo, o território e a organização política. Quanto ao elemento “povo”, Monaco adverte que o Estado não se resolve nessa pluralidade de indivíduos que o compõe, não devendo o Estado ser assim compreendido como um simples complexo de relações entre indivíduos. Mas sim, compreender que o Estado “[...] è un ente, cioè, un’istituzione organizzata, di carattere permanente e visibile, ben distinto dagli elementi che lo costituiscono, perdurante nella sua individualità, nonostante la mutevolezza di questi elementi.” Cf.:Idem. Ibidem., p. 123-124. Por fim, Monaco ainda ressalta que o conceito de “Estado” é único e deve ser estabelecido pela teoria geral do direito. Desse modo, para o jurista italiano não se dever estabelecer um conceito de “Estado”, segundo o direito interno, e um outro conceito de “Estado”, segundo o direito internacional. In: Idem. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. 110 1015 Idem; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 69. Concernente a questão dos sujeitos do direito internacional, Monaco adverte que esta não deve ser identificada com o Estado. Quer isso dizer que, os sujeitos do direito internacional não se reduzem tão-somente aos Estados. Há outros entes, os quais não possuem todas as características dos Estados, mas que são considerados sujeitos do direito internacional, como por exemplo, a Ordem de Malta, além do já mencionados. Monaco, então, ressalta que a investigação sobre os sujeitos do direito internacional se deve pautar sobre o conceito de “personalidade jurídica internacional”, e não sobre o conceito de “Estado”. In: Idem. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. 110 1016 Idem. Ibidem., p. 11. Livre tradução do original: [...] agiscono nell’ordinamento internazionale sulla base della loro parità giuridica [...]. Nesse sentido, Monaco ainda adverte que “[...] mentre si può dire che la società statuale è un’organizzazione gerarchica ed autoritaria, si deve constatare che l’ordinamento internazionale è organizzato in base ai principi dell’autonomia e della parità dei suoi soggetti.” In: Idem. Ibidem., p.12

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Concernente à “fonte jurídica” do direito internacional, Monaco, assim

como Romano, ressalta que o direito internacional não é somente de formação

voluntária.1017 Junto à vontade dos seus sujeitos, existem outros procedimentos de

produção jurídica, os quais concorrem para a formação.1018 Antes de pontuar as

“fontes jurídicas” do direito internacional, o autor destaca as “normas sobre a

produção jurídica” que corresponderiam àquelas que têm por objeto o fato da

criação do direito internacional, fazendo parte da estrutura do ordenamento jurídico

internacional.1019 Seriam essas as normas de “constituição”,1020 postas em um plano

superior à vontade dos Estados e das quais decorreriam o núcleo do ordenamento

jurídico internacional.1021 Essas normas corresponderiam aos “princípios

constitutivos do direito internacional”,1022 que seriam postos juntamente com a

própria existência da comunidade internacional.1023 Por isso, Monaco os considera

anteriores ao “direito consuetudinário”, uma vez que, os princípios constitutivos

seriam imanentes a própria comunidade internacional e não se formariam pouco a

pouco, como ocorre com os costumes internacionais, ou seja, com o direito

consuetudinário,1024 o que revelaria a influência da concepção romaniana acerca dos

princípios constitucionais do direito internacional. Contudo, os costumes

internacionais,1025 os acordos,1026 e os princípios gerais dos ordenamentos

1017 MONACO, Riccardo. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. p. 39 1018 MONACO, loc. cit. 1019 Idem. Ibidem., p. 40 1020 De acordo com Monaco, a palavra “constituição” significa “[...] qualche cosa che sta al di sopra delle stesse fonti delle norme giuridiche, cioè, dei processi di produzione del diritto.” A palavra “constituição” designaria assim a estrutura fundamental de um ordenamento jurídico. Cf.: Idem; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 20 1021 Idem. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. 40 1022 MONACO, loc. cit. Dentre tais princípios constitutivos, Monaco menciona: os que preconizam a obrigatoriedade dos tratados e dos costumes internacionais; a norma que admite o recurso à guerra; a norma que admite a autotutela; e a norma que determina o início da personalidade jurídica internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 42 1023 Idem. Ibidem., p. 40. Nesse contexto, Monaco lembra que a comunidade internacional não decorre de um contrato, ou de um acordo de vontade de todos os Estados. Mas sim, a comunidade internacional é formada por meio de um “[...] un procedimento storico complesso che si è imposto alla volontà degli Stati e non può dirsi che sia la conseguenza di tale volontà.” In: MONACO, loc. cit. 1024 Idem. Ibidem., p. 41 1025 Desse modo, “[...] la consuetudine è contemplata direttamente, come fatto di produzione giuridica, da un principio costituzionale dell’ordinamento internazionale.” Cf.:Idem. Ibidem., p. 43 1026 Quanto às normas jurídicas internacionais decorrentes da manifestação de vontade de seus sujeitos, Monaco aponta para os “acordos” como fonte jurídica destas. “Indipendentemente dalle particolarità che i vari trattati, convenzioni, protocolli ecc. possono singolarmente presentare, ciò che li unifica in una sola categoria e ciò che in senso proprio rappresenta la fonte delle norme giuridiche create mediante tali atti à l’accordo tra i soggetti degli atti medesimi.” Cf.: Idem. Ibidem., p. 51

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estatais1027 são apontados por Monaco como “fontes jurídicas” do direito

internacional.1028

Além de tais concepções, o autor ressalta em seus estudos sua

preocupação metodológica. Preocupação quanto ao método a ser adotado, tanto

para a compreensão do direito internacional, bem com para a compreensão da

relação entre este e o direito interno. Em primeiro lugar, a respeito do método

utilizado para compreensão do próprio direito internacional, Monaco contraria o

posicionamento monista que adota o método dedutivo para tanto. O jurista italiano

adverte que método mais adequado a ser utilizado para compreensão do direito

internacional corresponde ao método indutivo, tendo em vista que no direito

internacional, ao lado dos elementos jurídicos, se encontram fatores econômicos,

sociológicos e políticos. E somente por meio do método indutivo estaria garantido a

obtenção de resultados condizentes com a realidade internacional.1029 Em segundo

lugar, Monaco refere-se ao método utilizado para compreensão do próprio da

questão acerca da relação entre o direito internacional e o direito interno.1030

Momento este em que afirma, “Certamente, a questão do monismo ou do dualismo

entre o direito estatal e o direito interno é em grande parte baseada no método.”1031

Ao voltar-se para a esta questão, da relação entre o direito

internacional e o direito interno, o autor se refere a mesma como “um problema

relevante” para a ciência do direito internacional, por tocar questões essenciais a

esta ciência, tais como as fontes jurídicas, os sujeitos de direito, as atividades

1027 Os princípios gerais dos ordenamentos jurídicos estatais são identificados como fonte do direito internacional, uma vez que “[...] l’ordinamento internazionale comprende i vari ordinamenti statuali e che questi, tavolta, [...], hanno una funzione complementare rispetto al più comprensivo ordinamento internazionale, è possibile tener conto dei principi generali di diritto comuni ai vari ordinamenti statuali.” Vide: MONACO, Riccardo. Lezioni di diritto internazionale pubblico. p. 92. Dentre tais princípios, os jurista italiano cita como exemplo, o princípio segundo o qual a todo fato danoso corresponde o ressarcimento de tal dano pelo autor deste; e certos princípios acerca dos direitos e garantias processuais. Porém, Monaco adverte que essa inserção do direito interno no internacional depende que uma norma jurídica internacional atribua ao direito interno eficácia de fonte jurídica. No caso, Monaco refere-se ao artigo 38, do Estatuto da CIJ, o qual reconhece os princípos gerais de direito como fonte jurídica do direito internacional. Cf.: Idem. Ibidem., p. 92-93 1028 Ao final de tecer suas considerações quanto às fontes jurídicas do direito internacional, Monaco ressalta que a “analogia”, não corresponde a um meio de criação de normas jurídicas internacionais. Mas sim, corresponde somente a um procedimento de interpretação. In: Idem. Ibidem., p. 94 1029 Idem. Ibidem., p. 32 1030 Idem. Ibidem., p. 39 1031 MONACO, loc. cit. Livre tradução do original: Certamente la questione del monismo o del dualismo tra diritto statuale e diritto internazionale è in gran parte imperniata sul metodo. Nessa perspectiva, Monaco ainda menciona que “[...] quando si opera in base al metodo storico-idealistico è chiaro che non può ottenersi un risultato in tutto e per tutto símile a quello ottenuto, [...], in base ad un metodo empirico.” In: Idem. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. Torino: L’Istituto Giuridico della R. Università, 1932. p. 39

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jurídicas exteriores do Estado, e os procedimentos técnicos “[...] por meio dos quais

o direito internacional estende eficácia nos confrontos dos ordenamentos

internos.”1032 Para o jurista italiano, toda construção jurídica acerca de tal relação

deve ser adequada à efetiva realidade histórica a qual a mesma é desenvolvida. Do

contrário, se torna antagônica a aspiração teórica do estudioso [sua construção

jurídica] e o objeto de sua investigação [o concreto fenômeno social].1033 Por isso, ao

abordar essa relação, Monaco parte do conceito da pluralidade de ordenamentos

jurídicos,1034 sobre influência da teoria romaniana do pluralismo jurídico. Segundo o

referido autor, a questão da relação do direito internacional com o direito interno

consiste em “[...] um dos casos de relações entre ordenamentos jurídicos.”1035

Particularmente, no caso do ordenamento jurídico internacional, a relação de maior

relevo corresponderia àquela com o direito estatal.

Indubitavelmente, “[...] seja o direito estatal, seja o direito internacional

devem ser considerados como duas organizações jurídicas com características

próprias.”1036 No mesmo sentido de Romano, para Monaco, ambos seriam

ordenamentos jurídicos autônomos, originários e assim, separados.

Conseqüentemente, deveriam ser refutados todos os posicionamentos que não

reconhecem o direito internacional como um ordenamento jurídico autônomo, e logo,

originário.1037 Somente tendo por consideração a originariedade tanto do direito

internacional, quanto do direito interno, “[...] se poderá afirmar a primeira posição de

princípios indispensáveis para proceder a uma delimitação mais específica das

respectivas esferas.”1038 Somente considerando a sua originariedade é que o direito

internacional pode ser, enfim, concebido como “[...] organização autônoma de uma

1032 MONACO, Riccardo. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 07. Livre tradução do original: [...] attraverso i quali il diritto internazionale spiega efficacia nei confronti degli ordinamenti interni. 1033 Idem. Ibidem., p. 49 1034 Idem. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. Torino: Torinese, 1949. p. 70. Contudo, Monaco adverte que a pluralidade de ordenamentos jurídicos não significa necessariamente separação entre tais ordenamentos. Pode ocorrer de um depender e estar compreendido em outro. Cf.: Idem. Ibidem., p. 71. Porém, no caso do ordenamento jurídico internacional e o estatal, devido a sua respectiva originariedade, Monaco os considera separados e distintos, conforme será abordado posteriormente nesta secção. 1035 Idem. Ibidem., p. 70. Livre tradução do original: [...] uno dei casi di relazioni tra ordinamenti giuridici diversi [...]. 1036 Idem. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 41-42. Livre tradução do original: [...] sia il diritto statuale, sia il diritto internazionale devono essere considerati come due organizzazioni giuridiche con caratteristiche proprie. 1037 Idem. Ibidem., p. 40-41 1038 Idem. Ibidem., p. 41. Livre tradução do original: [...] si potrà giungere a fermare la prima posizione di principio indispensabile per procedere ad una più specifica delimitazione delle sfere rispettive.

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comunidade, a qual então se apresenta frente aos seus elementos como uma

entidade jurídica definida, havendo uma própria estrutura.”1039 E não, como um

produto da vontade de seus sujeitos, convergiria, novamente, com os ensinamentos

de Romano.

Ao considerar o ordenamento jurídico internacional como autônomo

Monaco também demonstra sua preocupação metodológica. Nesse sentido, discorre

sobre os “pressupostos metodológicos” que atribuiriam ao direito internacional a sua

própria fisionomia.1040 Refere-se aos pressupostos que permitiriam reconhecer a

comunidade internacional como uma ordem estável, a qual se põe e se justifica por

si.1041 Reconhecer uma ordem que não se reduz às normas jurídicas decorrentes da

vontade dos Estados. Mas que sim, se aproximam à realidade do fenômeno jurídico

internacional.1042 Tais pressupostos seriam os já mencionados “princípios

constitutivos do direito internacional”,1043 princípios cujo caráter “[...] não pode ser

ligado nem ao direito consuetudinário, nem àquele resultante dos tratados, mas sim

deve ser pressuposto.”1044 Corresponderiam, portanto, a princípios inerentes a

própria constituição da comunidade internacional, não absolutos, mas dinâmicos por

delinearem a estrutura do ordenamentos jurídico internacional.1045

Enquanto autônomos, cada ordenamento jurídico possuiria sua própria

norma constitucional. Logo, cada um possuirá a respectiva norma que conduzirá a

produção jurídica.1046 Desse modo, a “fonte jurídica” do ordenamento jurídico

1039 MONACO, Riccardo. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 41. Livre tradução do original: [...] organizzazione autônoma di una comunità, la quale quindi si presenta di fronte ai suoi elementi come un’entità giuridica definita, avente una propria struttura. 1040 Idem. Ibidem., p. 42 1041 MONACO, loc. cit. 1042 MONACO, loc. cit. 1043 Cabe mencionar que Monaco ao abordar esta questão, dos “princípios constitutivos do direito internacional”, faz referência aos estudos de Alfred Verdross e a sua inegável contribuição para esclarecimento da mesma. Monaco reconhece a importância dos estudos de Verdross, ainda que este tenha representado o posicionamento monista, conforme exposto na secção 2.1.2, do presente trabalho. Cf.: MONACO, loc. cit. 1044 Idem. Ibidem., p. 43. Livre tradução do original: [...] non può ricondursi nè al diritto consuetudinário, nè a quello risultante daí trattati, bensì deve essere pressuposto. 1045 Idem. Ibidem., p. 44. Devido a esse dinamismo, Monaco não ignora a dificuldade quanto a determinação de tais princípios. Para tanto, o jurista italiano menciona um princípio constitucional do ordenamento jurídico internacional, o qual não prejudica nem a autonomia deste, nem a do ordenamento jurídico interno. Como também não subordina, um ordenamento jurídico ao outro. Segundo Monaco, tal princípio “[...] non significa altro che il diritto internazionale trova nelle istituzione di cui si compone un sistema di garanzie per la sua attuazione, che quindi i singoli ordinamenti statuali in sè e nel loro contenuto normativo sono il pressuposto necessário dell’ordinamento internazionale.” In: MONACO, loc. cit. 1046 Idem. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. p. 72. A “autonomia” encontra, portanto, expressão na produção jurídica originária. Nesse sentido, sobre o caráter de “autonomia”

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internacional seria distinta da fonte jurídica do ordenamento jurídico interno.1047 As

normas de cada ordenamento somente serão consideradas “jurídicas” no seu

próprio âmbito. Isso significa que “[...] as normas internacionais serão válidas

somente nas relações entre os sujeitos do ordenamento internacional, enquanto às

normas internas as são no ordenamento estatal ao qual pertencem.”1048 A normas

jurídica de uma ordenamento estará, então, para o outro como um simples “fato”,1049

já Romano entende que a instituição estatal seria um pressuposto “jurídico” e, não

somente fático, para a instituição internacional. Contudo, Monaco enfatiza que tal

autonomia recíproca entre os ordenamentos jurídicos, um como fato para o outro,

não deve significar um contraste de conteúdo entre os mesmo. Mas sim, que “[...] o

direito internacional encontre correspondência no direito dos vários Estados, os

quais, enquanto membros da comunidade internacional, têm, não mais que a

obrigação, o interesse de adequar-se aos seus preceitos.”1050

Ao considerar a autonomia dos ordenamentos jurídicos, Monaco

menciona que a questão da obrigatoriedade das normas jurídicas internacionais

seria resolvida. Isso porque, enquanto originário, o ordenamento jurídico

internacional adquiria “[...] uma fisionomia própria, distinta e autônoma frente ao

direito estatal [...].”1051 Sua existência não dependeria, assim, sua existência de um

outro ordenamento jurídico, como o estatal. O direito internacional, portanto,

possuiria uma estrutura própria, concentrada em seus princípios constitucionais.

das instituições, Monaco também aborda no texto L’autonomia normativa degli enti internazionali, a presença de tal característica em certos entes internacionais, como as organizações internacionais. No referido trabalho, Monaco discorre sobre a questão do poder normativo tanto interno, quanto externo das organizações internacionais, enfatizando assim a “autonomia” das mesmas. Vide: MONACO, Riccardo. L’autonomia normativa degli enti internazionali. In: Scritti di diritto internazionale in onore di Tomaso Perassi. v. 2. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1957. p. 137-168. 1047 Ao ilustrar essa separação, Monaco refere-se a título de exemplo ao caso de uma Convenção elaborada entre os Estados sobre uma matéria qualquer. O conteúdo de tal Convenção obriga somente os Estados participantes para que adotem uma lei interna conforme o conteúdo da Convenção. Os dispositivos da Convenção correspondem a normas jurídicas internacionais, obrigando somente os Estados. Enquanto estes não emanam suas respectivas leis internas, com o conteúdo da Convenção, aqueles dispositivos continuam sendo normas jurídicas internacionais e não internas. Cf.: Idem. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. p. 72-73 1048 Idem. Ibidem., p. 73. Livre tradução do original: [...] le norme internazionali sono valide solo nei rapporti fra i soggetti dell’ordinamento internazionale, mentre le norme interne lo sono nell’ordinamento statuale a cui appartengono. 1049 MONACO, loc. cit. 1050 MONACO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] il diritto internazionale trovi rispondenza nel diritto dei vari Stati, i quali, in quanto membri della comunità internazionale, hanno, oltre che l’obbligo, l’interesse ad adeguarsi ai suoi precetti. 1051 Idem. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 41. Livre tradução do original: [...] una fisionomia própria, distinta ed autônoma di fronte al diritto statuale [...].

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Conseqüentemente, a eficácia obrigatória das normas jurídicas internacionais

decorreriam de tais princípios, do próprio ordenamento jurídico internacional.1052

Não obstantes tais considerações, Monaco ainda refere-se a alguns

dados que evidenciariam a autonomia dos ordenamentos jurídicos, internacional e

interno. Estes revelariam a separação que consiste na distinção entre os sujeitos, as

normas jurídicas, e as relações reguladas por cada ordenamento.1053 A respeitos dos

sujeitos, enquanto as pessoas físicas e jurídicas são identificadas como os sujeitos

do direito interno, assim como a concepção romaniana, os Estados e entes a este

similares são considerados sujeitos do direito internacional.1054 No tocante às

normas jurídicas, as internas são impostas pelos Estados, estando os seus

destinatários subordinados as mesmas. Já as normas jurídicas internacionais,

decorrentes dos acordos entre os seus sujeitos, são postas sobre o mesmo plano

destes, os quais se encontram coordenados e em igualdade.1055 E por fim, a distinta

natureza das relações reguladas por cada ordenamento jurídico. Segundo a qual, o

direito interno regula as relações entre as pessoas físicas e jurídicas, bem como

entre estas e o Estado. Enquanto as relações reguladas pelo direito internacional

correspondem àquelas entre seus sujeitos, os Estados e os entes a estes

similares.1056

Contudo, ainda que ordenamentos jurídicos separados, Monaco não

ignora a possibilidade de uma recíproca ligação entre ambos.1057 A norma jurídica de

um ordenamento jurídico pode referir-se a norma jurídica do outro, e vice-versa, o

que iria ao encontro do entendimento romaniano sobre relevância por “conteúdo”.

Para tanto, o jurista italiano destaca os seguintes meios: o “reenvio material” e o

“reenvio formal”. No primeiro caso quando um ordenamento jurídico refere-se a uma

1052 MONACO, Riccardo. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 41. Quanto à eficácia das normas jurídicas internacionais, vale mencionar uma distinção apresentada por Monaco. Tal distinção ocorre entre as normas de direito internacional geral e as normas de direito internacional particular. No primeiro caso, a eficácia das normas jurídica é originária. Uma vez que tais normas correspondem à estrutura do ordenamento jurídico internacional, bem como à sua autônoma razão de eficácia. Tais normas determinam toda a produção jurídica derivada. Desse modo, a eficácia das normas de direito internacional particular decorrem destas, das normas de direito internacional geral. Vide: Idem. Ibidem., p. 143-144. 1053 Idem; CANSACCHI, Giorgio. Lo Stato e il suo ordinamento giuridico: istituzioni di diritto pubblico. p. 69 1054 MONACO, loc. cit. 1055 MONACO, loc. cit. 1056 MONACO, loc. cit. 1057 Idem. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. p. 76. Nesse sentido, Monaco ressalta que “Anche la vita degli ordinamenti giuridici, appunto perchè è una vità che sorge direttamente dal terreno sociale, è una vita di relazione, nella quale nessun ordinamento basta a se stesso, ma ha bisogno di riferirsi agli altri.” In: MONACO, loc. cit.

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norma de outro ordenamento jurídico, mantendo o seu conteúdo. O conteúdo da

norma jurídica [referida] permanece idêntico, o que diferencia é a questão da

forma.1058 Já no caso do reenvio formal, permanece a distinção quanto ao conteúdo

entre as normas jurídicas, a referente e a referida. A norma jurídica que é referida

“[...] se limita a estabelecer qualidade ou valorações jurídicas que se tornam

relevantes para a norma referente.”1059

A partir da concepção de ordenamentos jurídicos autônomos, e logo da

separação entre direito internacional e direito interno, Monaco apresenta as

seguintes considerações no que se refere à construção dualista e a construção

monista acerca da relação entre tais ordenamentos. Primeiramente, quanto ao

posicionamento dualista, o jurista italiano concorda com o entendimento no sentido

da separação entre os dois ordenamentos jurídicos.1060 Contudo, diverge de

algumas concepções do dualismo tradicional, em particular posicionamentos

dualistas mais radicais quanto à separação entre ambos. Radicais por insistirem no

princípio da distinção entre tais ordenamentos como “absoluto”, a ponto de não

reconhecerem a possibilidade da relevância de conteúdo de um para ou outro, não

reconhecendo a questão do “reenvio”, seja formal, seja material.1061 Por outro lado,

ainda que separados, Monaco não ignora uma recíproca relação entre ambos. Por

isso, a autonomia, ou seja, a separação entre tais ordenamentos jurídicos não se

encontra prejudicada em virtude do “reenvio”.1062 Partes do conteúdo de um

ordenamento jurídico podem ser relevantes ao outro, tendo em vista “[...] a simples

exigência de serem cada um dos sistemas jurídicos estatais os pressupostos

1058 MONACO, Riccardo. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. p. 77. A título de exemplo, Monaco aborda o caso de “[...] un accordo internazionale in materia di soluzione giudiziaria delle controversie fra Stati, il quale, per l’accertamento delle garanzie processuali di emanazione della decisione, richiami le norme e i principi di diritto processuale di un dato ordinamento statuale, o comuni agli ordinamenti statuali in genere.” MONACO, loc. cit. 1059 Idem. Ibidem., p. 78. Livre tradução do original: [...] si limita a stabilire qualità o valutazioni giuridiche che diventano rilevanti per la norma richiamante. A título de exemplo, Monaco menciona o caso de uma norma jurídica referir-se a outro devido a uma qualidade jurídica prevista nesta. “[...] il caso in cui le norme internazionali che obbligano lo Stato a trattare in un determinato modo i cittadini di un altro rinviano all’ordinamento interno di tale Stato, in base al quale soltanto potrà accertarsi quali sono gli individui che vanno considerati cittadini dello Stato in questione.” In: MONACO, loc. cit. 1060 De acordo com Monaco, a teoria dualista consiste na “[...] única que se adequa a muitas conseqüências práticas, que não poderiam ser explicadas com teoria diversa”. Cf.: Idem. Ibidem., p. 71-72. Livre tradução do original: [...] la sola che si adegua a molte conseguenza pratiche, che non si potrebbero spiegare com teorie diverse. 1061 Idem. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 54. Vale lembrar, “Infatti, mentre il rinvio formale fa salva la distinzione che attiene al contenuto dei due ordinamenti, il rinvio ricettizio è tale da annullare anche questa fondamentale ragione di distinzione.” In: Idem. Ibidem., p. 51 1062 Idem. Ibidem., p. 54

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necessários do ordenamento jurídico internacional.”1063 O que de modo algum

significa uma relação de subordinação que possa prejudicar a separação.1064

No tocante ao posicionamento monista, Monaco entende que este “[...]

não encontra base segura e positiva na realidade atual das relações

interestatais.”1065 Apesar de reconhecer a pureza e o rigor lógico, o jurista italiano

critica a teoria normativista presente na referida construção jurídica mediante duas

observações.1066 Primeiro pela teoria normativista se desinteressar de todas as

reações que ocorrem no âmbito jurídico decorrentes de elementos extrajurídicos.1067

E segundo lugar pelo princípio unitário adotado pela teoria normativista.1068 Para

Monaco, sendo concebido um sistema jurídico unitário, seria ambíguo o

entendimento quanto à possibilidade tanto da primazia do direito internacional, bem

como da primazia do direito interno.1069

Referente a este último, o monismo de primazia interna, o autor o

refuta principalmente devido ao fato deste ignorar o concurso dos demais Estados

na formação do direito internacional. As normas jurídicas internacionais, por sua vez

não poderiam ser entendidas como decorrentes da vontade unilateral de um único

Estado.1070 Monaco também questiona a teoria da autolimitação do Estado, uma vez

que tais declarações da vontade unilateral de um Estado não poderiam ser anuladas

unilateralmente por este, face aos demais sujeitos do direito internacional.1071

Já quanto ao monismo de primazia do direito internacional, Monaco

aponta para alguns pontos controversos desta concepção com a realidade

internacional.1072 Primeiramente, por não existir nenhuma constituição da

comunidade jurídica internacional que autorize aos tribunais estatais a aplicarem

1063 MONACO, Riccardo. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 54. Livre tradução do original: [...] la semplice esigenza dell’essere i singoli sistemi giuridici statuali i pressuposti necessari del diritto internazionale. Nessa perspectiva, Monaco ainda menciona que “[...] nem sempre oordenamento estatal e ordenamento internacional se comportam entre si como sistemas fechados.” Cf.: MONACO, loc. cit. Livre tradução do original: [...] non sempre ordinamento statuale e ordinamento internazionale si comportano tra di loro come sistemi chiuso. 1064 Idem. Ibidem., p. 55 1065 Idem. Ibidem., p. 49. Livre tradução do original: “[...] non trova una base sicura e positiva nella realità attuale dei rapporti interstatuali.” 1066 Idem. Ibidem., p. 32 1067 MONACO, loc. cit. 1068 Idem. Ibidem., p. 33 1069 MONACO, loc. cit. 1070 Idem. Ibidem., p. 11 1071 Idem. Ibidem., p. 12 1072 Idem. Ibidem., p. 36

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imediatamente o direito internacional.1073 Falta, desse modo, uma norma jurídica

internacional hierarquicamente superior que regulamente a questão do controle por

meio dos tribunais nacionais.1074 Por conseguinte, seria necessário uma norma de

direito internacional que assumisse no direito interno superior não só a norma

constitucional, mas todas as normas do sistema unitário.1075 Não havendo mais

qualquer distinção, quanto ao conteúdo, entre tais ordenamentos jurídicos.1076 Além

disso, a concepção monista de primazia do direito internacional também seria

contrária ao que ensina a própria história, tendo em vista que esta revelaria que o

Estado, ao produzir uma norma jurídica de seu ordenamento, exerce uma faculdade

própria e originária, e não uma faculdade a qual foi delegada pelo direito

internacional.1077

Portanto, de acordo com Monaco, o direito internacional consistiria em

um fenômeno que se concretiza na instituição “comunidade internacional”.

Identificado com esta, o direito internacional se caracterizaria por sua autonomia,

originariedade e organização sobre a base paritária. A comunidade internacional,

então, representaria o ordenamento jurídico internacional, cuja “norma de

constituição” corresponderia a determinados “princípios constitutivos do direito

internacional”, os quais seriam inerentes a própria constituição do ordenamento

jurídico internacional. Tais princípios asseguram a “autonomia” e, logo, permitem a

identificação da fisionomia própria do ordenamento jurídico internacional. Diante de

tal caráter, o direito internacional se encontraria, então, separado do direito interno,

ou melhor, da pluralidade dos ordenamentos jurídicos estatais. Separação que se

confirma tendo por base a distinção de suas fontes jurídicas, de seus sujeitos, de

suas normas jurídicas, e das relações que respectivamente regulam. Porém ainda

que separados, Monaco não ignora a possibilidade de uma recíproca ligação entre

ambos ordenamentos jurídicos. O conteúdo de um ordenamento jurídico pode

tornar-se relevante para o outro, e vice-versa. Relevância esta que permite um se

referir ao outro por meio do “reenvio”. Enfim, ao observar a comunidade

internacional, considerar a separação entre tais ordenamentos jurídicos,

corresponde, para Monaco, a leitura mais próxima da “realidade atual das relações

1073 MONACO, Riccardo. L’ordinamento internazionale in rapporto all’ordinamento statuale. p. 36 1074 MONACO, loc. cit. 1075 Idem. Ibidem., p. 36-37 1076 Idem. Ibidem., p. 36 1077 Idem. Manuale di diritto internazionale pubblico e privato. p. 75

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interestatais”, o que igualmente revela a influência dos ensinamentos romanianos

em suas concepções.

3.3.2.3 Da relação entre direito internacional e direito interno segundo Piero Ziccardi

O direito internacional é concebido pelo jurista italiano Piero Ziccardi

[1913-] como o ordenamento jurídico desenvolvido ao longo dos séculos na

sociedade internacional.1078 Este corresponderia, portanto, a um sistema jurídico

originário, completo e que expressa a ordem dessa sociedade internacional paritária

e descentralizada, o que iria ao encontro dos entendimentos romanianos. Por ser

uma sociedade composta por Estados, o objeto do direito internacional identifica-se

como as relações entre os mesmos.1079 Adolfo M. de la Muele comenta que Ziccardi

divide sua tarefa de internacionalista em dois momentos. O primeiro seria um

momento prédogmático no qual Ziccardi se propõe “[...] a aprofundar no estudo da

norma ou normas fundamentais que constituem o fundamento do Direito

internacional por métodos extrajurídicos.”1080 Enquanto no segundo momento

Ziccardi, ao alcançar este resultado, desenvolveria seu trabalho por “leitos

dogmáticos”.1081 Naquele primeiro momento, então, Ziccardi, adotando o método

indutivo,1082 entende que devido a ausência de um órgão centralizador e autoritário o

costume internacional e os tratados seriam as principais fontes do direito

internacional.1083 Mais precisamente, que do costume1084 decorreria o direito

1078 ZICCARDI, Piero. Diritto internazionale. 1 ed. Milão: La Goliardica, [196-?].p. 09 1079 Idem. Ibidem., 10-11. Tal concepção apresentada por Ziccardi corresponde ao direito internacional público. Nesse contexto, Ziccardi diferencia este do direito internacional privado. Segundo o referido autor italiano, o direito internacional privado tem por objeto as normas jurídicas de cada país as quais estabelecem quais as medidas, efeitos e condições o direito vigente em um país estrangeiro encontra reconhecimento no país nacional em questão. Ziccardi, então, ressalta que o direito internacional privado expressa os princípios por meio dos quais ordenamentos jurídicos, das diversas nações, separados e independentes se comunicam. Sua sede formal, portanto, pode ser um direito comum a todos, como por exemplo, por meio das Convenções firmadas entre os Estados. Cf.: Idem. Ibidem., p.10,11 e 14 1080 MUELA, Adolfo Miaja de la. Introduccion al derecho internacional publico. p. 59. Livre tradução do originial: profundizar en el estúdio de la norma o normas fundamentales que constituyen el fundamento del Derecho internacinal por métodos extrajurídicos. 1081 MUELA, loc. cit. 1082 MUELA, loc. cit. 1083 ZICCARDI, op. cit., p. 125 1084 Vale, por ora, tecer algumas considerações quanto à concepção de Ziccardi sobre o “costume”. O costume, para o referido jurista italiano , reflete de maneira imediata a própria evolução da sociedade

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internacional comum ou geral, enquanto que dos tratados1085 decorre o direito

internacional particular. Por isso, o costume é identificado por Ziccardi como a fonte

primeira [primária] do direito internacional, ou seja, sua norma fundamental.1086

O conteúdo do direito internacional consiste, conforme o professor de

Milão, em apresentar a valoração jurídica existente na sociedade internacional, a

qual é composta pelos Estados.1087 Desse modo, os Estados corresponderiam aos

principais sujeitos do direito internacional.1088 O que caracteriza assim o direito

internacional, uma vez que os seus sujeitos são pessoas jurídicas cuja estrutura

interna depende a determinação dos indivíduos os quais interpretam para a

respectiva pessoa jurídica [unidade] as avaliações que o direito internacional realiza

nos seus confrontos.1089 A soberania, consoante o jurista italiano, é um traço

marcante dos Estados, e o que o caracteriza como principal sujeito do direito

internacional. Uma vez que, atribuição de soberania concede ao Estado a plena

internacional no seu conteúdo jurídico-valorativo, sendo fonte estranha a vontade dos Estados. In: ZICCARDI, Piero. Diritto internazionale. p. 124-125. Contudo, Ziccardi adverte que o costume consiste no reconhecimento espontâneo de determinadas regras como juridicamente obrigatória, não se confundindo com noções como: acordos tácitos, comportamento reiterado, e direito não escrito. Ressalta, então, Ziccardi que se deve preferir a uma noção de direito espontâneo, cuja fonte é a própria norma consuetudinária - o costume. E não uma noção de um direito produzido por uma fonte no seu sentido próprio, ou seja, “[...] un fatto giuridicamente valutato come idôneo alla produzione delle norma giuridiche.” Cf.: Idem. Ibidem., p.132 -136. Quanto à questão “inseparável”, segundo Ziccardi, do costume internacional e das fontes do direito internacional, constultar: In: Idem. La consuetudine internazionale nella teoria delle fonti giuridiche. Milano: Giuffrè, 1960. Desse modo, para Ziccardi a norma consuetudinária é ela própria a sua fonte, a norma e a fonte se identificam em uma única entidade. Ziccardi, portanto, menciona que “Em outros tempos, um de nossos mestres, Roberto Ago, preferia falar delas como Direito espontâneo, mas, segundo nosso parecer, a definição essencial é aquela que prescinde da gênese das normas e se limita à sua constatação.” Cf.: Idem. Evolução e perspectiva da escola italiana de direito internacional no século XX. In: Revista seqüência: estudos jurídicos e políticos. p. 205. Enfim, Ziccardi indentifica a norma jurídica consuetudinária a sua fonte jurídica. “Costume internacional” e “fonte jurídica” passam a expressar o mesmo sentido. Por isso, no presente trabalho refere-se, por ora, ao costume como fonte do direito internacional, não prejudicando a sua identificação também como norma jurídica internacional. 1085 De acordo com Ziccardi, os tratados exprime a vontade dos Estados “[...] di influire sulle condizioni della reciproca coesistenza mediante modificazioni delle strutture normative.” In: Idem. Diritto internazionale. p. 124 1086 No sentido de “fonte jurídica”, o costume corresponde a uma fonte de grau superior em relação aos tratados, uma vez que os tratados não derrogam os costumes cujos conteúdos normativos não possuam caráter dispositivo ou supletivo. Cf.: Idem. Ibidem., 125 1087 Idem. Ibidem., p. 138 1088 No entanto, Ziccardi menciona outros sujeitos do direito internacional os quais se distinguem dos Estados quanto a algumas atribuições, como a “soberania”, por exemplo. Dentre tais sujeitos, Ziccardi destaca: a Santa Sé; Estados dependentes – como os protetorados-; e uniões de Estados – como uma confederação. In: Idem. Ibidem., p. 142-149 1089 Idem. Ibidem., p. 139. Nesse sentido quanto à concepção de “Estado”, Ziccardi aponta como equivocado tanto o posicionamento dualista quanto do posicionamento monista. O primeiro por conceber o Estado como um ente real, por si suficiente ao agir no mundo do direito. E já quanto ao posicionamento monista, por este resolver o Estado no indivíduo, apontado para este como sujeito do direito internacional. Cf.: ZICCARDI, loc. cit.

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capacidade no direito internacional.1090 Tal atribuição encontra-se estreitamente

relacionada com a questão da “independência”, a ponto de Ziccardi alegar que um

Estado o qual dependente de outro, não corresponde a um Estado soberano.1091

Muito embora este último possa ser identificado como sujeito do direito internacional,

tendo, contudo, sua capacidade limitada.1092

Acerca da relação do direito internacional com o direito interno, esta é

considerada pelo autor uma das questões fundamentais da matéria, já que nela

encontrar-se o problema de “[...] estabelecer o que é o Estado para o direito

internacional.” 1093 Nesse sentido, Ziccardi refere-se ao Estado como o fato social

correspondente ao ordenamento jurídico estatal, originário, e ao ordenamento

jurídico internacional como aquele sistema jurídico originário, completo e que

expressa a ordem da sociedade internacional composta pelos Estados.1094 Desse

modo, assim como Romano, tanto o ordenamento jurídico internacional como os

ordenamentos jurídicos internos seriam considerados como originários. Dessa

constatação, decorreriam duas observações: a existência de uma pluralidade de

ordenamentos jurídicos e a separação entre os mesmos.

No primeiro caso, enquanto ordenamentos jurídicos originários, poderia

ser constatada a existência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, o que,

porém, não significa que não ocorra uma certa unidade do mundo jurídico, tendo em

vista que “[...] a própria unidade se afirma, ao invés, ainda na ausência de um

sistema jurídico unitário e na presença de uma pluralidade de ordenamentos

jurídicos respectivamente distintos”,1095 concepção esta que expressaria a influência

da teoria romaniana do pluralismo jurídico.

Ao considerar essa unidade juntamente com a pluralidade dos

ordenamentos jurídicos, o autor contrapõe posicionamentos da dogmática na ciência

1090 ZICCARDI, Piero. Diritto internazionale. p. 140. Quanto aos demais sujeitos do direito internacional, os quais possuem sua soberania compartilhada, sua capacidade no direito internacional resta, portanto, limitada, em relação a capacidade estatal. In: ZICCARDI, loc.cit. 1091 Idem. Ibidem., p. 141. “[...] uno Stato è indipendente da ogni altro quando nel suo ordinamento intenro hanno valore giuridico soltanto i comandi emanati dagli organi suoi propri. Uno Stato è invece dipendente quando, nell’interno di questo Stato, siano riconosciuti come giuridicamente obbligatori comandi, norme, dichiarazioni di volontá porvenienti da un altro Stato.” Vide: Idem. Ibidem., p. 143 1092 Idem. Ibidem., p. 141 1093 Idem. Ibidem., p. 115. Livre tradução do original: [...] di stabilire che cosa sia lo Stato per il diritto internazionale. 1094 Idem. La costituzione dell’ordinamento internazionale. 2 ed. Milão: Dott. A. Giuffrè, 2000. p. 355 1095 Idem. Ibidem., p. 354. Livre tradução do original: [...] l’unitá medesima si afferma, invece, anche in macanza di un sistema giuridico unitário, ed in presenza di una pluralità di ordinamenti giuridici ripettivamente distinti.

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jurídica positiva, pois a dogmática “[...] enquanto conhecimento dedutivo do direito

cujo termo inicial é dado da norma fundamental de um determinado ordenamento,

não é um conhecimento que possa ser referido a mais de um ordenamento

jurídico.”1096 A dogmática, desse modo, passa a ser entendida como a parte da

ciência jurídica que se auto-avalia por meio de procedimentos dedutivos para

completar o conhecimento do próprio objeto, ou seja, o direito. 1097 Método dedutivo

que elege um único ponto de partida, no caso, uma única norma base de onde

decorre todo o sistema jurídico. A unidade por meio de tal norma base, reduz o

objeto da ciência jurídica a um único sistema, não reconhecendo, destarte, a

pluralidade de sistema jurídicos. 1098

Em virtude disso, a ciência jurídica não poderia, ser reduzida à

dogmática, bem como, a ciência jurídica não pode ser identificada como tão-

somente uma ciência normativa.1099 Mas sim, deve ser concebida como uma ciência

positiva, cuja sua unidade decorre “[...] da unidade conceitual de seu objeto, vale

dizer da presença, em cada um de seus objetos concretos, de todas as

características cujos traços determinam a individualidade da ciência no próprio ato

de formação de uma experiência específica e autônoma.”1100 A questão da

pluralidade dos ordenamentos jurídicos, portanto, somente pode ser resolvida

baseado na “experiência”. É esta, segundo Ziccardi, que possibilitaria identificar

quantos são os ordenamentos jurídicos positivos.1101 Somente esta demonstraria a

existência de um ordenamento jurídico internacional e, logo, sua originariedade,1102

bem como demonstra a “[...] a originariedade dos Estados nos confrontos do

ordenamento internacional.”

Particularmente quanto a esta pluralidade de ordenamentos jurídicos

estatais originários, o autor enfatiza a possibilidade de coexistência dos mesmos,

1096 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 112. Livre tradução do original: [...] come conoscenza deduttiva del diritto il cui termine iniziale à dato dalle norme fondamentali di un determinato ordinamento, non è una conoscenza che possa essere riferita a più di un ordinamento giuridico. 1097 Idem. Ibidem., 113 1098 ZICCARDI, loc. cit. 1099 ZICCARDI, loc. cit. 1100 ZICCARDI, loc. cit. Livre tradução do original: [...] dall’unità concettuale del suo ogetto, vale dire dalla presenza, in ciascuno dei suoi oggetti concreti, di tutte le carateristiche con il cui rilievo si determina l’individualità della scienza nell’atto stesso della formazione di un’esperienza apecifica ed autônoma. 1101 Idem. Ibidem., p. 114 1102 ZICCARDI, loc. cit.

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fundamentada sobre a distinção das respectivas esferas estatais.1103 Por

conseguinte, tais ordenamentos jurídicos estatais não pressuporiam, nem estariam

subordinados ao ordenamento jurídico internacional.1104 Nesse aspecto, Ziccardi

estaria contrapondo o entendimento romaniano de que a instituição estatal seria

pressuposto da instituição internacional. Consoante Ziccardi, “Ao contrário é o

próprio fato de tal coexistência que constitui a razão de ser do direito internacional,

enquanto deste deriva uma sociedade distinta daquela organizada dos Estados

singulares.”1105 Desse modo, Ziccardi ressalta que a sociedade internacional seria

somente a sociedade resultante do fato de uma coexistência de uma pluralidade de

ordenamentos estatais.1106 Os Estados, de acordo com o jurista italiano, crescem na

atividade da vida social internacional, tendo seus próprios interesses nos em relação

aos interesses dos demais Estados, o que formaria, destarte, o objeto do direito

internacional.1107

No segundo caso, enquanto ordenamentos jurídicos originários,

Ziccardi também considera a separação entre ordenamento jurídico internacional e

ordenamentos jurídicos estatais. Nesse contexto, o jurista italiano discorre sobre o

fator “matéria”, ou seja, a respectiva “esfera social” que permite a distinção entre o

direito internacional e os direitos internos. Tal fator não prejudica, no entanto, a

relativa autonomia da coexistência entre tais ordenamentos.1108 Conforme Ziccardi,

um ponto decisivo da distinção dos ordenamentos jurídicos estatais entre si

corresponderia essencialmente em uma subdivisão material do mundo e da

humanidade em tantas partes separadas, enquanto contraposta cada uma a

outra.1109 Já na distinção entre direito internacional e direito interno esse fator

“matéria” intervém necessariamente um critério dinâmico, e não estático. Um critério

dinâmico devido às variações nas respectivas esferas sociais, internacional e

internas. Isso porque, para Ziccardi, a coexistência entre tais ordenamentos jurídicos

não é expressão de “sociedades parecidas”, distinta somente devido à separação

das respectivas fronteiras espaciais e pessoais. Mas é, ao invés, coexistência de

1103 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 355 1104 ZICCARDI, loc. cit. 1105 ZICCARDI, loc. cit. Livre tradução do original: Al contrario è il fatto stesso di tale coesistenza che costituisce la ragion d’essere del diritto internazionale, in quanto da esso deriva appunto l’esistenza di una società distinta da quelle organizzate daí singoli Stati. 1106 ZICCARDI, loc. cit. 1107 ZICCARDI, loc. cit. 1108 Idem. Ibidem., p. 358 1109 ZICCARDI, loc. cit.

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“sociedades diversas”, a internacional e as internas, que na própria diversidade de

natureza encontra a possibilidade de coexistência.1110

O professor de Milão também cita um outro fator, o qual além de

revelar a distinção entre direito internacional e direitos internos, também determina

uma relativa harmonia entre os mesmo. Tal fator “[...] é constituído pelo fato de que

os Estados, em sua individualidade, determinam o âmbito do próprio ordenamento

[...]”,1111 ou seja, o que Romano entende por autonomia interna do Estado em

manifestar o seu próprio ordenamento. Os Estados formam, neste seu ordenamento

originário, a força social que decide acerca de certas questões do direito

internacional,1112 tendo em vista que, são os próprios Estados que com as suas

convenções ou com os acordos de vontade, decidem à criação de determinadas

normas jurídica restantes no direito internacional.1113 Nesse sentido, Ziccardi enfatiza

a possibilidade de se verificar que não há uma extensão da sociedade internacional

acerca da matéria interna estatal, sem uma correspondente subtração das próprias

matérias à soberania dos Estados.1114

Ademais, essa separação e coexistência entre ordenamento jurídico

internacional e ordenamentos jurídicos internos também se demonstraria, no campo

das normas jurídicas internacionais que influenciam o direito interno.1115 Em cada

Estado reconhecido como sujeito do direito internacional, há necessariamente

presente uma norma direta assegurando a adaptação do direito interno ao direito

internacional.1116 Tal norma, freqüente nos ordenamentos jurídicos estatais,

corresponde a uma evidência, “[...] conseqüência necessária do próprio princípio que

está a base da coexistência entre ordenamento internacional e os ordenamentos

estatais.”1117

1110 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 359 1111 ZICCARDI, loc. cit. Livre tradução do original: [...] è constituito dal fatto che gli Stati stessi i quali, singolarmente presi, determinano l’ambito del próprio ordinamento internazionale [...]. 1112 ZICCARDI, loc. cit. 1113 ZICCARDI, loc. cit. 1114 ZICCARDI, loc. cit. Ainda quanto a esse princípio da não extensão da sociedade internacional na matéria interna estatal sem a subtração das próprias matérias à soberania dos Estados, Ziccardi refere-se a uma situação de contraste entre as exigências de uma parte restrita dos Estados e a convenção jurídica determinante à organização internacional. Nesta situação se trata, contudo, de uma hipótese que não exclui tal princípio, dado que a exigência dos Estados contrários encontra oportuna valorização, em sentido favorável, da parte da nova norma. ZICCARDI, loc. cit. 1115 ZICCARDI, loc. cit. 1116 ZICCARDI, loc. cit. 1117 Idem. Ibidem., p. 360. Livre tradução do original: [...] consegueza del principio stesso che sta allá base della coesistenza tra l’ordinamento internazionale e gli ordinamenti statuali.

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Seria a experiência, portanto, que revelaria tanto a coexistência dessa

pluralidade de ordenamentos jurídicos, quanto a separação entre os mesmos. E

logo, seria a experiência que revelaria a originariedade do ordenamento jurídico

internacional e dos ordenamentos jurídicos internos.1118 Uma vez que “[...] quando a

experiência não revela que uma norma suprema de um ordenamento tem um valor

determinado das valorações de um outro ordenamento, é sem dúvida lícito afirmar

que o ordenamento em questão é originário.”1119 Nesse contexto, por meio da

experiência, vem enfatizada a indubitável existência, ou melhor, a coexistência de

um ordenamento jurídico internacional originário junto aos demais ordenamentos

jurídico estatais, também originários, convergindo com os ensinamentos de Romano.

A partir dessas concepções, o referido jurista italiano apresenta suas considerações

quanto aos posicionamentos, dualista e monista, da relação entre o direito

internacional e o direito interno.

Quanto à construção dualista, Ziccardi salienta às carências e as

contribuições de tal posicionamentos. Carências devido a sua insuficiência

teórica.1120 Contribuições no sentido de que tanto as fontes quanto os sujeitos dos

1118 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 114 1119 Idem. Ibidem., p. 115. Livre tradução do original: [...] quando l’esperienza non rilevi che le norme supreme di un ordinamento abbiano un valore deterinado dalle valutazioni di un altro ordenamento, è senz’altro lecito affermare che l’ordinamento cui si há riguardo è originário. 1120 No texto Diritto Internazionale in Generale, ao propor uma noção mais ampla do direito internacional, a qual se refere aos fenômenos jurídicos e às respectivas experiências, Ziccardi aponta para algumas insuficiências teóricas da doutrina dualista. Primeiramente quanto à redução desta em reconhecer apenas os ordenamentos estatais e o internacional. Convicção a qual exclui ou ao menos comprime qualquer outro ordenamento jurídico. Desse modo, para Ziccardi tal concepção estatalista é utilizada como meio para determinar o que vale como “fenômeno jurídico”, não reconhecendo, assim, a multiplicidade das formações jurídicas espontâneas, reduzindo-as a determinados complexos unitários. Não reconhecendo, portanto, a pluralidade dos ordenamentos jurídicos. Além disso, Ziccardi também critica a equivocada definição dualista de Estado, principalmente da doutrina clássica, por não identificar no Estado, considerado como sujeito do direito internacional, as componentes humanas que são a sua própria realidade. Contudo, tal concepção não erraria ao considerar que o Estado está para o direito internacional como um ente de fato e não um ordenamento jurídico. Porém esta afirmação não esgotaria, o problema de estabelecer de que modo o Estado possa ser configurado pelo direito. Principalmente de que modo o Estado possa ser configurado pelo ordenamento internacional, como um ente de fato, e qual seria a natureza de tal ente. Não explica, portanto, de que modo e com quais características do Estado possa ser verdadeiro. Conforme Ziccardi, a existência de tal problema foi negada pelo dualismo tradicional. Uma vez que este concebeu o Estado como ente absoluto, naturalmente capaz no direito, que ignora as suas próprias razões. Esta concepção se resumiu em uma duplicação do conceito de Estado: de direito no interior e como força no exterior, o que favoreceu as tendências contrárias à observância pelos Estados do direito internacional. Portanto, as insuficiências teóricas das doutrinas dualistas corresponderiam: a concepção reducionista de não reconhecer a pluralidade dos ordenamentos jurídicos; e, o erro em configurar os Estados por meio de noções fictícias, alterando a verdadeira natureza estatal, escondendo, desse modo, os problemas práticos da coexistência dos Estados na sociedade internacional. Ver, a respeito: Idem. Diritto internazionale in generale. In: ______. Vita giuridica internazionale. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992. p. 37-44 e 49-52

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ordenamentos, por serem concebidos como distintos, exprimem de modo eficaz o

contexto histórico de um mundo dividido entre nações rigidamente organizadas em

Estados e que conduzem sua relações recíprocas por meio dos órgãos superiores,

de suas respectivas estruturas estatais.1121 Ainda que tal concepção possa parecer

rígida e limitada, a mesma ainda teria muito a dizer sobre a interpretação do direito

internacional público. Contudo, o jurista italiano enfatiza que o que não pode ser

aceito desse posicionamento corresponde ao seu plano teórico geral. Uma vez que

este “[...] repercute ainda muito próximo de concepções positivista do direito, do

Estado e da soberania.”1122

Já no que se refere à construção monista, o principal equívoco desta

decorreria de sua exigência teórica que afirma a necessária unidade do

conhecimento jurídico e de seu objeto, o direito.1123 A sua investigação sobre o

âmbito unitário dos diversos sistemas jurídicos, além de ser incompatível com a

estrutura paritária e descentralizada do ordenamento internacional, resolveria o

problema da soberania do Estado na produção de seu próprio ordenamento

concluindo que um ordenamento decorre do outro, que há uma subordinação, e que

tais ordenamentos não seriam, portanto, originários.1124

Em busca de um sistema jurídico unitário o posicionamento monista

apontaria para uma norma base, a qual proporcionaria tal unidade. Por meio desta a

teoria monista procurou resolver o problema se existiria dependência dos

ordenamentos estatais e do ordenamento jurídico internacional, em particular quanto

à norma base.1125 Por conseguinte, procurou resolver o problema quanto à

existência, ou seja, a originariedade ou não de tais ordenamentos jurídicos. A

doutrina monista, contudo, teria se iludido ao pensar ter resolvido esse problema por

1121 ZICCARDI, Piero. Diritto internazionale. p. 117. Dentre as contribuições da doutrina dualista, Ziccardi no texto Diritto Internazionale in Generale, destaca: a separação entre ambos os ordenamentos jurídicos, o internacional e o interno; a concepção de o Estado estar para o direito internacional como um fato; e, que o ordenamento jurídico internacional reflete as características de uma sociedade em que se valoram situações e comportamentos da generalidade dos Estados. Vide: Idem. Diritto internazionale in generale. In: ______. Vita giuridica internazionale. p. 49-53 1122 Idem. Diritto internazionale. p. 117. Livre tradução do original: [...] risente ancora troppo da vicino delle concezioni positivistiche del diritto, dello Stato e della sovranità. 1123 ZICCARDI, loc. cit. Segundo Ziccardi, a necessidade de conceber o direito como um único sistema jurídico, para o posicionamento monista, não se demonstra somente por aquela exigência de separar bem o direito de qualquer ordem de valoração normativa, como a internacional. Mas também se demonstra pela intervenção de razões teóricas e principalmente da concepção da ciência jurídica como ciência normativa. Uma unidade que pode se estabelecer mesmo que no confronto de uma pluralidade de ordenamentos distintos. Cf.: Idem. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 346 1124 Idem. Ibidem., p. 343-344 1125 Idem. Ibidem., p. 357

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não contradizer os fatos da experiência, ao reconhecer no princípio da efetividade, o

critério com o qual o ordenamento internacional avalia a juridicidade dos

ordenamentos estatais.1126

Portanto, para Ziccardi, o principal problema da teoria monismo frente à

realidade da pluralidade de ordenamentos jurídicos consistiria na escolha de tal

norma base. Norma esta geral, que tornaria logicamente possível fazer regressar no

sistema todo ordenamento considerado jurídico.1127 Nesse sentido, não haveria um

limite ao sistema jurídico, a não ser o limite decorrente da própria dogmática, ou

seja, um limite imposto pelo próprio sistema jurídico.1128 O erro da teoria monista

para Ziccardi, por meio da escolha dessa norma base, se manifestaria na

necessidade de se negar que se possa ter um limite para as matérias de um

determinado ordenamento jurídico. Limites os quais a própria dogmática não pôde

ignorar-los.1129

De acordo com Ziccardi, tais limites de uma consideração dogmática

dos ordenamentos jurídicos, internacional e interno, devem ser ultrapassados. Isso

possibilita a ciência jurídica investigar o critério que determina, nas relações entre

esses ordenamentos, a possibilidade de uma coexistência como ordenamentos

distintos. Coexistência possível mediante uma côngrua distribuição de matérias

distintas a um e aos outros,1130 o que expressa, destarte, a pluralidade dos

ordenamentos jurídicos.

Não obstante, a questão dos limites dos ordenamentos jurídicos não

poderia ser analisada em relação a normas singulares de um único ordenamento.1131

Algumas normas podem não adquirir um valor positivo em um determinado sistema

jurídico devido a própria estrutura deste sistema. O valor prático de determinada

norma jurídica dependeria da esfera de validade desta norma, a qual apenas se

identifica tendo em consideração outro ordenamento jurídico.1132 Por isso, a

necessidade de a ciência jurídica trabalhar com um objeto que não ignore a

1126 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 358 1127 Idem. Ibidem., p. 346 1128 Idem. Ibidem., p. 347 1129 ZICCARDI, loc. cit. 1130 Idem. Ibidem., p. 349 1131 Idem. Ibidem., p. 350 1132 ZICCARDI, loc. cit.

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existência de sistemas jurídicos distintos, e não unitário como o posicionamento

monista.1133

Conforme já mencionado, a coexistência entre o ordenamento jurídico

internacional e os ordenamentos estatais também se estabeleceria devido à

distinção material, ou seja, devido à distinção entre a sociedade de um e de outro,

respectivamente organizadas.1134 Nesse sentido, Ziccardi ao destacar a distinção

entre tais sociedades contrapõe o posicionamento monista o qual não concebe a

sociedade internacional como distinta da sociedade dos indivíduos.1135 Esta

concepção distorcida se fundamentaria tanto em um preconceito teórico, quanto

sobre considerações de diversas inspirações.1136

Desse modo, partindo a teoria monista da concepção da ciência

jurídica como uma ciência normativa, o Estado passa a ser identificado como

ordenamento jurídico e não como entidade social. Tal afirmação, para Ziccardi,

importa a redução do âmbito social do direito internacional ao indivíduo.1137 uma vez

que mesmo que se alegue que a normas internacionais particulares sejam

endereçadas aos indivíduos, a garantia de sua situação subjetiva, ou seja, do

reconhecimento desta depende das normas internacionais gerais.1138 Caso, então,

se alegue uma restrita transformação do ordenamento jurídico internacional ao

considerar os indivíduos como sujeitos do direito internacional por serem

destinatários das normas jurídicas particulares, o professor de Milão adverte que tal

alegação não seria conceptível, por ser uma transformação que pressupõe uma

côngrua modificação de toda a estrutura organizadora do ordenamento jurídico

internacional.1139 Deveria ser necessariamente obra de normas internacionais gerais,

1133 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 350 1134 Idem. Ibidem., p. 355-356 1135 Idem. Ibidem., p. 356 1136 ZICCARDI, loc. cit. “Constituisce una mera conseguenza dell’incapacità in cui si trovano le dottrine normativistiche, di concepire lo Stato come un ente sociale, la necessita di negar ela stessa lógica ammissibilità di una società di Stati, che non si risolva in ultima analisi, in una società di tutti gli individui sottoposti ai diversi Stati; ma tale conseguenza non há maggior valore delle ragioni teoriche da cui è determinata. Da un punto di vista sostanziale si sostiene invece che, non possendendo il diritto internazionale generale organi diversi da quelli degli Stati stessi, l’attività dei medesimi individui cui gli Stati assegnano lê corrispondenti funzioni è necessaria rispetto alla possibilità che un diritto internazionale viva concretamente [...].” In: ZICCARDI, loc. cit. 1137 ZICCARDI, loc. cit. 1138 Idem. Ibidem., p. 362 “Ne segue che, per affermare la soggettività internazionale dell’individuo, non basta riscontrare il fatto che norme internazionali sembrino dirigersi direttamente all’individuo stesso, occorendo invece dimonstrare che le stesse norme generali del diritto internazionale siano tali da potersi indirizzare direttamente all’individuo.” In: ZICCARDI, loc. cit. 1139 Idem. Ibidem., p. 364

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de modo que a transformação não seria restrita. Consequentemente, o ordenamento

jurídico internacional não seria mais idêntico ao atual.1140

Diante de tais considerações quanto à construção monista acerca da

relação do direito internacional com o direito interno, Ziccardi entende como não

compatíveis as concepções monistas com a atual estrutura do direito

internacional.1141 Isso significa que não seria possível que uma simples mudança do

conteúdo do direito internacional pudesse determinar uma correspondente

transformação do atual regime de separação entre ordenamento internacional e

ordenamento interno.1142 Separação essa percebida pela experiência, ainda que o

reconhecimento da subjetividade jurídica internacional dos indivíduos, alegado pelos

monistas, possa ser identificada como condição da transformação da estrutura do

ordenamento jurídico internacional. Conseqüentemente, ocorreria a substituição da

própria norma base deste ordenamento, ou seja, se deveria conceber um sistema

jurídico unitário, e não plural.1143 Somente por meio de uma transformação da

estrutura do ordenamento jurídico internacional seria possível a concepção de um

sistema jurídico unitário, e logo, do reconhecimento do indivíduo como sujeito do

direito internacional.

Por fim, Ziccardi enfatiza que se na estrutura atual, paritária e

descentralizada, do direito internacional ocorre tal transformação, no sentido unitário

das relações entre ordenamento jurídico internacional e ordenamento interno, não

seria compatível considerar o então “ordenamento jurídico superior” como uma

continuação do atual ordenamento internacional.1144 Uma vez que ocorreria “[...] a

transformação deste em um ordenamento de bases individuais, então autoritário,

hierárquico e concentrado, ainda que tendo autonomias locais de grande

1140 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 364 1141 Idem. Ibidem., p. 365. A respeito de tais incompatibilidades frente à estrutura paritária e descentralizada o direito internacional, Ziccardi menciona que das concepções monistas decorreriam: a não originariedade do ordenamento jurídico estatal e a exclusão de sua soberania dos Estados realizada mediante o conferimento da subjetividade aos indivíduos no ordenamento superior. Cf.: Idem. Ibidem., p. 369 1142 Idem. Ibidem., p. 365 1143 ZICCARDI, loc. cit. Ao comparar a relação do ordenamento jurídico internacional como o interno, com a relação do ordenamento jurídico de uma Confederação com o ordenamento jurídico de seus Estados-membros, Ziccardi menciona que, “[...] in conclusione, l’evoluzione dei rapporti tra la confederazione e gli Stati membri non può concludersi nell’unità sistemática degli ordenamenti stessi, senza transformare totalmente la stessa natura, sia dell’ordinamento superiore, sia di queli statuali.” Com tal comparação, Ziccardi ressalta a necessidade da transformação da estrutura dos ordenamentos jurídicos para que os mesmos possam identificar-se a como uma unidade sistêmica, não plural. Cf.: Idem. Ibidem., p. 369 1144 Idem. Ibidem., p 370

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extensão.”1145 Por conseguinte, nesse ordenamento jurídico internacional

transformado não se poderia encontrar algumas das características distintivas do

atual, bem como, diversa seria sua natureza. Ziccardi afirma que pela simples

aquisição de novas normas jurídicas internacionais, como a questão do indivíduo

perante o direito internacional, por não lhe alterar a natureza deste, excluí a

compatibilidade lógica das concepções monistas com o conceito de direito

internacional.1146 As concepções monistas, portanto, restam por incompatíveis com a

concepção de Ziccardi do direito internacional como um sistema jurídico originário,

completo e que expressa a ordem da sociedade internacional. Sociedade esta, a

qual por ser paritária e descentralizada, tem em seu seio a coexistência, revelada

pela experiência, de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos. O que expressa,

enfim, a influência dos ensinamentos romanianos em tal concepção de Ziccardi.

1145 ZICCARDI, Piero. La costituzione dell’ordinamento internazionale. p. 370. Livre tradução do original: [...] la transformazione di questo in un ordinamento a basi individuali, quindi autoritativo, gerarchico e accentrato, anche se con autonomie locali di grande estensione. 1146 ZICCARDI, loc. cit.

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CONCLUSÃO

A leitura acerca da relação entre direito internacional e direito interno

diferencia-se de acordo com concepções as quais são imprescindíveis para

definição da mesma. “Direito”, “Estado”, “direito interno” e “direito internacional” são

concepções determinantes para que se possa compreender como ocorre a relação

entre o direito internacional e o direito interno. Diante de tais considerações, o

presente trabalho voltou-se para a análise da “relação entre o direito internacional e

o direito interno”. Devido ao amplo alcance do tema em questão, o presente trabalho

o delimitou ao estudar como ocorre tal relação a partir das concepções

antiformalistas do jurista italiano Santi Romano. Para tanto, levantou-se como

hipótese básica que a relação entre direito internacional e direito interno se expressa

por meio dos enunciados de uma Teoria Dualista de preeminência internacional.

Ao apresentar suas concepções na obra “O Ordenamento Jurídico”,

Santi Romano revelou a preocupação com a questão do “ser” do direito. E não com

a questão do “dever ser” do mesmo. Preocupação esta que permitiu considerar o

jurista italiano como um dos contribuidores da construção do conhecimento jurídico

antiformalista. Romano, então, propôs uma definição do direito não tão-somente

enquanto norma jurídica. Na opinião do referido autor, esta seria apenas mais uma

das manifestações do direito. Para Romano, a primeira manifestação do direito

corresponde a “instituição”. Como uma unidade social organizada a “instituição” é

em si e por si jurídica, justamente por representar uma organização. Segundo essa

concepção romaniana, “Direito”, “instituição”, “ordenamento jurídico” são vocábulos

que se identificam. Para Romano, haveriam tantos ordenamentos jurídicos quantas

fossem as instituições. Nesta pluralidade de ordenamentos jurídicos encontraram-se

a instituição “Estado” e a instituição “comunidade internacional”. De acordo com

essa concepção, o Estado identifica-se como uma unidade social organizada, como

um ordenamento jurídico. Logo, identifica-se como uma das instituições existentes e

presente em um cenário jurídico plural. Por isso, o ordenamento jurídico estatal

depara com as demais instituições. E o que diferencia a instituição estatal das

demais é a sua soberania. Conseqüentemente, o Estado corresponde a um

ordenamento jurídico originário. Porém, mencionou-se que Romano não

desconsidera que o ordenamento jurídico estatal se relaciona com demais

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instituições por vezes também complexas como a estatal. Além disso, mencionou-se

que dentre essas instituições complexas, há uma instituição na qual o próprio

ordenamento jurídico estatal está compreendido. Esta instituição complexa

composta pelas instituições estatais corresponde, segundo Romano, a “comunidade

internacional”.

Conforme visto, o direito internacional identifica-se, para Romano, com

a instituição “comunidade internacional”. A primeira manifestação do ordenamento

jurídico internacional seria, então, a “comunidade internacional”. Para Romano, esta

consiste em uma unidade social organizada, pois ainda que anárquica, apresenta

uma estrutura estável e permanente de um ente que toma corpo. Uma unidade

social organizada também, uma vez que seus membros encontram-se em condição

de igualdade e de recíproca independência. Enquanto instituição, a comunidade

internacional se caracterizaria por ser complexa, originária, necessária, perpétua,

aberta e desprovida de personalidade jurídica. Ademais, ao procurar defini-lo,

Romano não ignorou momentos posteriores de manifestação do direito internacional.

Nesse sentido, estariam as normas jurídicas internacionais. Para o jurista italiano,

estas correspondem a leis de uma outra natureza, ou seja, decorrentes da vontade

comum dos Estados ou dos costumes e dos princípios fundamentais. A

consideração dessa segunda manifestação do direito internacional permitiu que

Romano traçasse algumas distinções, como, entre o direito internacional geral e

direito internacional particular; entre direito internacional público e direito

internacional privado; e, por fim, entre direito de paz e direito de guerra.

Particularmente, quanto à relação entre direito internacional e direito

interno, as concepções acima mencionadas bastariam para diferenciar a construção

jurídica romaniana das demais, como o monismo e como o próprio dualismo

tradicional. Mais precisamente quanto a esta última, abordou-se algumas das

principais concepções de dois de seus representantes, Karl Heinrich Triepel e

Dionisio Anzilotti. Verificou-se que ambos destacam a separação entre o direito

internacional e o direito interno, entendendo que um se apresenta como fato para o

outro. Por conseguinte, ambos ressaltam a distinção entre suas fontes jurídicas,

entre as relações sociais que regulam, bem como entre os seus sujeitos. Contudo,

Triepel e Anzilotti concebem o direito como um conjunto de regras jurídicas,

considerando apenas a segunda manifestação do direito, segundo a definição

romaniana. Por isso, para Triepel e Anzilotti o direito depende da manifestação de

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vontade de um determinado ente. Logo, a vontade que põe o direito internacional

corresponde a uma vontade coletiva de todos os Estados [este personificado, um

ente capaz de manifestar sua vontade própria]. Conseqüentemente, tais regras

jurídicas teriam por objeto a regulamentação de uma determinada relação social. As

regras jurídicas internacionais regulariam, então, as relações sociais entre os

Estados. O que justamente determinaria que os sujeitos do direito internacional, para

Triepel e Anzilotti, seriam apenas os Estados, pois tais regras impõem deveres e

atribuem direitos aos Estados. Nesse contexto, a distinção entre essas concepções

e a construção jurídica romaniana já seria perceptível tendo em consideração a

própria definição do direito. Mencionou-se que para Romano, o direito é instituição.

Esta seria a primeira manifestação do direito, não dependendo da vontade de

qualquer ente. O direito internacional corresponderia, portanto, à instituição

“comunidade internacional”, enquanto o direito interno corresponderia à instituição

“Estado”. As normas jurídicas internacionais consistiriam apenas em uma posterior

manifestação do direito internacional, segundo Romano. Por isso, não seriam

condicionantes para a existência do mesmo, bem como não seriam determinantes

para analisar a relação entre direito internacional e direito interno. O que novamente

distancia a concepção romaniana da demais, uma vez que a preocupação de Triepel

e Anzilotti correspondem à aplicação do direito, ou seja, do direito enquanto regra

jurídica. Observou-se que ambos, Triepel e Anzilotti, analisam a relação entre o

direito internacional e o direito interno levantando o problema quanto à aplicação do

direito internacional por um tribunal estatal. As normas jurídicas internacionais

seriam, desse modo, determinantes para a análise de Triepel e Anzilotti da relação

entre o direito internacional e o direito interno.

Por outro lado, Romano analisa a relação entre o direito internacional e

o direito interno a partir da concepção de instituição. Mais precisamente, a instituição

internacional frente à instituição estatal. Por isso, Romano refere-se à mesma ao

discorrer sobre a questão da relevância entre as instituições. A relação entre

instituições somente ocorre quando uma apresenta-se relevante para a outra.

Relevante de três modos, por sua “existência”, seu “conteúdo” ou sua “eficácia”. Tal

relevância se baseia tanto em um estado de “subordinação” quanto em um estado

de “pressuposição”. Nas relações entre instituição “comunidade internacional” e

instituição estatal, Romano as analisa apenas baseadas em um estado de

“pressuposição”. Não há uma relação baseada em um estado de subordinação. As

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relevâncias por existência, conteúdo e eficácia apenas ocorrem baseadas em um

estado de pressuposição.

A esse propósito, Romano destaca duas proposições: a “autonomia

dos Estados” em manifestar seu próprio ordenamento jurídico e que o direito

internacional refere-se aos “Estados em sua unidade”. Proposições que vão ao

encontro dessa “não subordinação”. Desse modo, a “existência” do ordenamento

jurídico internacional não dependeria de modo subordinado do ordenamento jurídico

interno, e vice-versa. Ambas as instituições são originárias e não reconhecem

reciprocamente esta subordinação. Igualmente, o “conteúdo” e a “eficácia” de tais

ordenamentos não dependem de modo subordinado um do outro. Essa não

subordinação concebida por Romano expressa, então, a separação das fontes

jurídicas e da esfera de eficácia entre ordenamento jurídico internacional e

ordenamento jurídico interno. O que se refere, portanto, aos enunciados da teoria

dualista. Por outro lado, para Romano, ainda que separados tais ordenamentos

jurídicos apresentam-se relevantes um para com o outro. Por isso, se reconhecem

como instituições complexas. Reconhecem-se como ordenamentos jurídicos

distintos que estabelecem relações baseadas em um estado de “pressuposição”,

não prejudicando a separação entre direito internacional e direito interno. Destarte,

mencionou-se que a “existência” da instituição “comunidade internacional”

pressupõe a existência da instituição “estatal”, sendo esta pressuposto da primeira,

pois aquela compõe esta. Os Estados já organizados são membros da comunidade

internacional, mas a existência da comunidade internacional independe da

manifestação de vontade de um Estado ou de todos os Estados. O direito

internacional apenas reconhece a vontade dos Estados já organizados. Do mesmo

modo, mencionou-se que o direito internacional pode influenciar no “conteúdo” do

direito interno, baseado em um estado de pressuposição e não de subordinação. O

direito internacional pode influenciar de modo mediato o ordenamento jurídico de um

Estado, bem como, pode influenciar os diferentes ordenamentos jurídicos estatais

quando se propõe a coordená-los. Entretanto, o conteúdo do direito internacional

não depende de modo subordinado do direito interno, e vice-versa [não influência de

modo imediato, devido ao estado de pressuposição]. Ademais, a “eficácia” do direito

internacional poderia ser relevante para o direito interno, e vice-versa. Porém,

novamente baseados em um estado de pressuposição, um pode surtir os seus

efeitos externos no outro, sem prejudicar a separação entre os mesmo. Para

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Romano, essa relação de pressuposição não prejudica a separação entre os dois

ordenamentos jurídicos. Separação tanto de suas fontes, como das respectivas

esferas de eficácia, o que, portanto, expressa os enunciados da Teoria Dualista.

Ainda que todos representantes da teoria dualista as concepções de

Triepel e Anzilotti [dualismo tradicional] apresentam pontos divergentes e

semelhantes de Romano. Algumas diferenças foram destacadas anteriormente,

como a própria definição do direito, bem com o enfoque de análise da relação entre

o direito internacional e o direito interno. Mas além dessas, ressaltou-se que para

Romano ainda que separados o direito internacional e direito interno se reconhecem

como ordenamentos jurídicos distintos que estabelecem relações baseadas em um

estado de “pressuposição”. Um não está para o outro como mero fato e sim, como

ordenamento jurídico. O que vai de encontro ao entendimento de Triepel e Anzilotti.

Contudo em alguns pontos próprios dos enunciados da teoria dualista percebeu-se

que há certa convergência de posicionamentos. Do mesmo modo que Triepel e

Anzilotti consideram a separação entre o direito internacional e o direito interno,

Romano também a considera ao ressaltar a originariedade de tais ordenamentos

jurídicos. Por conseguinte, mantém-se também a distinção quanto às fontes jurídicas

e os sujeitos do direito internacional e do direito interno. Ao que concerne aos

sujeitos do direito internacional, todos reconhecem a autonomia e a paridade dos

Estados entre si, Estados coordenados. Além disso, tanto Triepel e Anzilotti quanto

Romano, não ignoram a possibilidade de tais ordenamentos jurídicos se

relacionarem sem prejudicar a separação entre os mesmos. Seria o caso da relação

devido ao “conteúdo”. Conforme mencionou-se no decorrer do trabalho, para Triepel

corresponderia à questão de recepção de direito estrangeiro e de apropriação do

direito estrangeiro. Já Anzilotti se referiria à uniformização das diferentes leis

estatais e à aplicação do direito internacional pelos tribunais estatais nas questões

prejudiciais e incidentais. E, para Romano seria a relevância devido ao conteúdo, de

modo que o direito internacional influenciaria tanto mediatamente o direito interno

quanto ao propor coordenar os diferentes ordenamentos estatais, sem prejudicar a

separação entre os mesmos.

Juntamente a essa separação dos ordenamentos jurídicos,

demonstrou-se que, de acordo com Romano, a superioridade do internacional deve-

se à complexidade da instituição “comunidade internacional”. Esta como uma

“instituição de instituições”, em que diversas instituições a compõem. Os Estados

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seriam os membros da comunidade internacional. E ainda que originário quanto ao

seu próprio ordenamento jurídico, o Estado pode depender da instituição superior

que o mesmo compõe. Uma dependência que não prejudicaria a separação entre

tais ordenamentos jurídicos. Desse modo, o Estado pode depender do direito

internacional acerca de certos deveres e direitos relativos ao próprio ordenamento

jurídico internacional. Deveres e direitos que lhe são impostos e atribuídos em sua

unidade e não em suas partes individuais. Do mesmo modo, o Estado pode

depender do direito internacional acerca de certos direitos e deveres relativos aos

demais Estados e os quais são coordenados pelo direito internacional. O que

expressa, destarte, os enunciados da Teoria Dualista de preeminência internacional.

Demonstrou-se, também, que essa concepção romaniana da

superioridade do direito internacional pode ser percebida na relação entre tais

ordenamentos jurídicos quanto ao “conteúdo”. Na questão da relevância por

conteúdo, Romano destaca o caso de um ordenamento superior que não é a fonte,

mas que influencia o conteúdo dos demais ordenamentos jurídicos inferiores. Para

Romano, o direito internacional corresponde àquele ordenamento jurídico superior,

enquanto os ordenamentos jurídicos estatais correspondem a estes ordenamentos

jurídicos inferiores. Aquele superior influencia o conteúdo do ordenamento jurídico

estatal [inferior] de modo mediato quanto aos deveres e direitos, os quais são

próprios do direito internacional [superior]. Deveres e direitos próprios do direito

internacional, mas que são respectivamente impostos e atribuídos ao Estado em sua

unidade. Ademais, mencionou-se também que, para Romano, o direito internacional

pode ainda influenciar o conteúdo do direito interno quando se propõe a coordenar

os diferentes ordenamentos jurídicos estatais [direito internacional privado]. Essas

influências do direito internacional no direito interno expressam também os

enunciados da Teoria Dualista de preeminência internacional.

Se a abordagem das concepções dos demais representantes da teoria

dualista permitiu traçar alguns pontos distintivos do posicionamento de Romano,

percebeu-se o quão maior é a distância deste para os posicionamentos monistas.

Abordou-se que dentre as demais construções jurídicas acerca da relação em

matéria, encontra-se a teoria monista, de primazia interna e de primazia do direito

internacional. Nesse momento, destacou-se as concepções de “direito”; “Estado”;

“direito interno” e “direito internacional”, de Hans Kelsen e Alfred Verdross. Ambos

representantes da teoria monista. A partir das concepções de Hans Kelsen,

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discorreu-se que a relação do direito internacional com o direito interno se expressa

nos enunciados da Teoria Monista de primazia do direito interno. A investigação

dessa relação considerada, por Kelsen, como uma das questões que diz respeito ao

objeto da ciência jurídica. Ao abordá-la percebeu-se a preocupação metodológica de

Kelsen ao conceber o direito como um “dever-ser”, como um sistema unitário de

normas jurídicas internas e internacionais cuja unidade e validade somente seriam

alcançados por meio do método de dedução, a partir de uma norma última de

validade, a Constituição estatal. Devido à unidade, tais normas jurídicas se

relacionam baseadas em um estado de subordinação, no qual, para Kelsen,

prevalece o direito interno. Observou-se, destarte, que a preocupação kelseniana

com o “dever-ser” difere da preocupação de Romano com o “ser”. A própria

concepção do direito como um sistema unitário de normas jurídicas seria suficiente

para distingui-la da noção institucionalista de Romano. Além disso, Kelsen ressalta a

relação de subordinação principalmente quanto à existência e quanto à eficácia

entre direito internacional e direito interno. O que seria contrário ao estado de

“pressuposição” em que se baseia a relação de “existência” e “eficácia” entre estes

ordenamentos jurídicos, segundo Romano. Na seqüência, daquelas concepções de

Alfred Verdross abordou-se que a relação do direito internacional com o direito

interno se expressa nos enunciados da Teoria Monista de primazia do direito

internacional. Ao abordá-la percebeu-se que além da preocupação metodológica de

Verdross, sua preocupação teleológica. O direito é concebido como um sistema de

normas jurídicas internacionais e internas cuja unidade e validade deduz-se,

igualmente, da norma última de validade. Norma esta que segue a essência da

“idéia do direito” [fim], ou seja, uma ordem de paz. Contudo, para Verdross, esta

norma última corresponde ao direito natural produzido no âmbito da comunidade

internacional. Novamente, devido à unidade, tais normas jurídicas se relacionam

baseadas em um estado de subordinação. Porém, nesta relação, para Verdross,

prevalece o direito internacional como bem demonstram os tribunais internacionais.

Com as considerações de Verdross também observou-se que esta distingue-se de

Romano, principalmente por ressaltar a questão do conflito entre normas jurídicas

internacionais e internas e a prevalência do direito internacional segundo um estado

de subordinação. A diferença é perceptível justamente porque Romano não

reconhece um estado de subordinação quanto à existência, conteúdo e eficácia para

afirmar a preeminência do direito internacional. O que torna dispensável a questão

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do conflito entre normas jurídicas internacionais e internas. Ainda assim,

demonstrou-se que para Romano a superioridade do direito internacional decorre da

“complexidade” da comunidade internacional e que esta superioridade seria

perceptível também na relevância por “conteúdo”, baseada em um estado de

“pressuposição”.

Enfim, por meio do método de abordagem dedutivo demonstrou-se que

a partir das concepções antiformalistas propostas por Santi Romano, na obra “O

Ordenamento Jurídico”, a relação entre direito internacional e direito interno

corresponde aos enunciados da Teoria Dualista de preeminência internacional.

Teoria a qual tanto se assemelha à Teoria Dualista tradicional quanto se diferencia

desta e da Teoria Monista, de primazia interna e internacional conforme observou-se

por meio do método auxiliar comparativo. O que confirma, portanto, a hipótese

básica levantada no presente trabalho.

Não há dúvidas quanto às contribuições das concepções

antiformalistas de Santi Romano para o hodierno estudo do direito internacional.

Contribuições que são reveladas, seja pela forte influência nas posteriores

tendências da escola italiana do direito internacional, seja pelo desprendimento de

não limitar a definição de direito tão-somente a normas jurídicas. Ao definir o direito

como “instituição”, Romano influenciou os posteriores estudos da escola italiana de

direito internacional. Escola de caráter positivista sociológica devido à preocupação

em identificar o objeto da ciência jurídica com o “ser”. Bem como, de caráter

antiformalista por este objeto identificado não se reduzir a tão-somente normas

jurídicas, mas sim corresponde a um fenômeno social. Nesse sentido, Romano

contribui com seus estudos ao definir este fenômeno social como “instituição”. As

subseqüentes concepções de Roberto Ago, Riccardo Monaco e Piero Ziccardi

revelam essa contribuição, pois partem dessa preocupação em não afastar o estudo

do objeto da ciência jurídica da realidade. Mas sim, procuram aproximá-lo à

realidade seja ao definir o direito como fenômeno social, seja ao analisar a relação

entre o direto internacional e o direito interno. Nesta questão, Ago, Monaco e

Ziccardi reconhecem a originariedade do ordenamento jurídico internacional e o

estatal e, além disso, ressaltam a pluralidade de ordenamentos jurídicos na esfera

internacional, representando um enfoque de abordagem o qual procura não

tergiversar o exame da realidade objetiva.

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O desprendimento de Romano de não limitar a definição de direito a

tão-somente a normas jurídicas também relevam as contribuições de seus

ensinamentos para o hodierno estudo do direito internacional. O direito manifesta-se

em momentos anteriores a esta, tanto no âmbito de uma instituição estatal quanto

no âmbito da instituição “comunidade internacional”. A percepção de tal

manifestação anterior atribui às noções de Santi Romano um valor que ultrapassa o

momento de conclusão da obra “O Ordenamento Jurídico”. Um valor que permite

projetar tais concepções para o contemporâneo estudo do direito internacional.

Compreender o direito internacional em manifestações anteriores a normas jurídicas

[internas ou internacionais] ressalta a complexidade da instituição “comunidade

internacional”. Complexa, devido à pluralidade de ordenamentos jurídicos que a

compõe. Um retrato dessa complexidade, hoje, revela que ao lado dos

ordenamentos jurídicos estatais, demais ordenamentos jurídicos gradativamente se

fazem presentes, como os das organizações internacionais. A partir da leitura

romaniana as Organizações internacionais podem ser identificadas como

“instituição”. Conseqüentemente, instituições que se identificam como ordenamentos

jurídicos, os quais também possuem certa originariedade e são “relevantes” tanto

para os demais ordenamentos jurídicos estatais quanto para o próprio direito

internacional geral. Segundo os ensinamentos de Santi Romano essa “relevância”

significa as relações que os diferentes ordenamentos jurídicos estabelecem entre si.

No caso, as relações estabelecidas entre as instituições “organização internacional”,

“Estado” e “comunidade internacional”. O reconhecimento, hoje, dessa pluralidade

de ordenamentos jurídicos na comunidade internacional surte seus efeitos no próprio

estudo do tema em questão, ou seja, “na relação entre o direito internacional e o

direito interno”. A expressão “direito interno” deixa de significar apenas o direito

estatal. O “direito interno” pode, portanto, significar o ordenamento jurídico das

organizações internacionais o qual também se relaciona com os demais. O que

revela o quão amplo pode ser o alcance do tema em questão. Estuda-se a relação

entre o direito internacional e o direito estatal, bem como a relação entre o direito

internacional e o direito interno das organizações internacionais, com também a

relação deste com o direito estatal. Hoje, é perceptível a pluralidade de

ordenamentos jurídicos que se relacionam entre si na esfera internacional. Contudo,

definição desta relação se mantém, independentemente do número de

ordenamentos jurídicos envolvidos nesta. Independentemente de quantas são as

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partes envolvidas, a leitura de tal relação corresponde ou a uma leitura “monista” ou

“dualista”. Ainda que diferentes sejam os graus de tal monismo ou dualismo. Nesse

sentido, as concepções antiformalistas romanianas também contribuem para o

hodierno estudo do direito internacional, particularmente, para o tema em questão,

para a compreensão dessas relações. Contribuem por Santi Romano apresentar

uma leitura que não ignora a originaridade de ordenamentos jurídicos como o

internacional e os estatais, bem como, não ignora que apesar de tal separação tais

ordenamentos jurídicos são relevantes um para o outro e, por isso se relacionam

sem comprometer tal separação. E além disso, não ignora que algumas relações

entre ordenamentos jurídicos podem ser estabelecidas baseadas em um título de

subordinação. Enfim, essas concepções de Santi Romano apresentam-se como

ponto de partida para uma leitura das relações perceptíveis hoje na pluralidade de

ordenamentos jurídicos presentes na comunidade internacional. Um ponto de partida

para uma possível compreensão de como ocorre a relação entre: o direito

internacional geral e o direito estatal; o direito internacional geral e o direito

internacional particular [interno das organizações internacionais]; bem como, a

relação deste último com o direito estatal.

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ANEXO A – As principais fases da produção acadêmica de Santi Romano, no

seu desenvolvimento cronológico1147

Ao lado de Vittorio Emmanuele Orlando, o jurista siciliano Santi

Romano [1875-1947] é referido como um dos principais fundadores da escola

moderna italiana de direito público. Graduado em Palermo, em 1896, com pouco

mais de 20 anos de idade, as contribuições de Santi Romano para esta ciência

ultrapassaram os confins do direito constitucional e se estenderam também ao

direito administrativo, ao direito internacional, ao eclesiástico e principalmente à

teoria geral do direito com a apresentação de sua obra “O Ordenamento Jurídico”,

de 1918.

Para contextualizar o momento de vida e trabalho científico de Santi

Romano cabe salientar que sua produção acadêmica se desenvolveu em três

períodos distintos da história constitucional da Itália, o que repercutiu no conteúdo e

na orientação geral de seus trabalhos.

No primeiro, de 1897 até 1925/26, quando as radicais reformas

legislativas adotadas pelo governo fascista puseram termo ao funcionamento do

sistema parlamentar italiano, Santi Romano atuou no quadro do Stato di diritto di

netta imponta liberale, derivado do estatuto outorgado pelo rei Carlos Alberto, em

1848. Neste período o desenvolvimento da produção acadêmica de Santi Romano

pode ser destacado de acordo com a seguinte ordem cronológica:

1897 – contribui para o “Tratado de direito administrativo”, dirigido por

Vittório Emmanuele Orlando, publicado a partir da mesma data, com os seguintes

textos em seus subseqüentes volumos: “A teoria dos direitos públicos subjetivos”, “A

comuna: parte geral”, “As jurisdições especiais administrativas” e, “O juízo acerca

dos conflitos de competência administrativa”. Ainda em 1897, contribuiu com o

amplo verbede sobre a “descentralização administrativa”, publicado na “Enciclopédia

Jurídica Italiana”; com o ensaio “Poderes disciplinares da administração pública”,

publicado na Giurisprudenza italiana e, com o estudo dedicado à “Noção e natureza

dos órgãos constitucionais do Estado”.

1147 Todos os dados sobre os três períodos de vida e obra de Santi Romano citados neste “Anexo A” encontram-se na seguinte referência: RUFFIA, Paolo Biscaretti di. A contribuição de Santi Romano par a moderna ciência juspublicista italiana. In: ROMANO, Santi. Princípios de direito internacional geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 09-27.

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1898 – era nomeado, após concurso, professor extraordinário de direito

administrativo da Universidade de Camarino.

1901 – o ensaio sobre “A instauração de fato de uma ordenação

constitucional e a sua legitimação”.

1902 – passava à Módena, à cátedra de direito constitucional.

Contribuiu com os ensaios, “Observações sobre a natureza jurídica do território do

Estado”; “Observações preliminares para uma teoria sobre os limites da função

legislativa no direito italiano” e, com o tratado “Princípios de Direito Administrativo”.

1903 – contribui com o estudo sobre “O direito constitucional e as

outras ciências jurídicas”.

1906 – contribui com o ensaio “Sobre a natureza dos regulamentos

parlamentares”.

1908 – chamado à Universidade de Pisa.

1909 – contribuiu com o estudo sobre o “Direito e correção

constitucional” e, com o artigo “Sobre decretos-leis e o estado de sítio”.

1910 – contribuiu com o ensaio “Estado moderno e sua crise”.1148

1911 – contribui com o estudo sobre “A idade e a capacidade das

pessoas no direito público”.

1912 – contribuiu com o escrito “Os caracteres jurídicos da formação

do Reino da Itália”.

1917/18 – proferiu o discurso inaugural do ano acadêmico do Instituto

Superior de Ciências Políticas e Sociais “Cesare Alfieri”, de Florença, sob o título

“Além do Estado”.1149

1918 – publicou o seu mais fundamental trabalho “O Ordenamento

Jurídico”1150 bem como, o curso de “Direito colonial ” e o curso de “Direito

Eclesiástico”.

1924 – chamado a desempenhar a Cátedra de Direito Constitucional na

Universidade Estatal, de Milão.

1925 – contribui com o ensaio dedicado a “Um particular aspecto de

Estados, a propósito da anexação de FIUME” e, com o estudo “Observações sobre a

plenitude da ordenação estatal”. No mês de janeiro do mesmo ano, Santi Romano

1148 Ensaio romaniano o qual foi utilizado na presente dissertação. 1149 Discurso romaniano o qual foi posteriormente publicado, sendo este ensaio utilizado na presente dissertação. 1150 Tal obra romaniana foi adotada como marco teórico na presente dissertação.

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foi nomeado para a Comissão de dezoito membros, “os Solons”, constituída pelo

presidente do Conselho de Estado, para o estudo das reformas constitucionais.

Contudo, as “relações” apresentadas no final dos trabalhos por esta Comissão não

foram acolhidas por Mussolini.

No segundo período, de 1926 até 1944, quando negou sua adesão à

chamada “República Social Italiana”, criada por Mussolini depois de um armistício

firmado pela Itália, em 1943, com as potências aliadas, Santi Romano se encontrou,

porém, vivendo no âmbito de um “Estado autoritário facista” e, além disso,

assumindo a alta função de presidente do mais elevado órgão jurisdicional e

administrativo, o “Conselho de Estado”. Neste período o desenvolvimento da

produção acadêmica de Santi Romano pode ser destacado de acordo com a

seguinte ordem cronológica:

1926 – publicou o curso de “Direito Constitucional” e o curso de

“Direito Internacional”.1151

1928 – escolhido para o alto cargo de presidente do Conselho de

Estado, em Roma. Contudo Santi Romano não quis renunciar ao ensino

universitário; e, em primeiro lugar, tomou a seu cargo o curso de direito

administrativo e, posteriormente o de direito constitucional devido ao afastamento,

Vittório Emmanuele Orlando, da cátedra.

1930 – publicou o curso de “Direito Administrativo”.

E, por fim, no terceiro, de 1944 até 1947, Santi Romano presenciou o

início de nova fase na vida constitucional da Itália, assinalada pela projeção dos

institutos que haveriam de caracterizar depois o atual “Estado Democrático

Republicano”. Neste período o desenvolvimento da produção acadêmica de Santi

Romano pode ser destacado de acordo com a seguinte ordem cronológica:

1945 – publicou o manual “Princípios de direio constitucional geral”, no

qual a “parte geral” do curso da pré-guerra foi retomada e reelaborada à luz das

exigências da vida democrática do país.1152

1946 – publicou uma 2ª edição da obra “O Ordenamento Jurídico”,

inalterada no texto, mas atualizada nas notas, mencionando e comentando todos os

autores que Santi Romano submeteu a exame [para aprová-las ou criticá-las], com

1151 Esta última obra romaniana foi utilizada na presente dissertação. 1152 Este manual romaniano foi utilizado na presente dissertação.

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teses mais sugestivas, aparecidas durante os 30 anos decorridos desde o primeiro

aparecimento da obra.

1947 – publicou em Milão um volume sob o título “Fragmentos de um

dicionário jurídico” e, até o momento de seu falecimento, Romano estava aprontando

a 4ª edição dos seus “Princípios de Direito Administrativo”.