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1 SUMÁRIO Tendo por base a definição formal de direito de trabalho, enquanto “conjunto de normas e de princípios relacionados com o fenómeno do trabalho subordinado e agrupados em função de uma Ciência jus laboral geográfica e historicamente determinada”, a partir de normas imperativas de direito público e de direito privado com delimitação constitucional, procuramos com este trabalho evidenciar princípios estruturais que permitam ensaiar uma dogmática, em diálogo com a sociedade atual, que obste à alteração dos seus parâmetros por critérios alheios ao direito, ao sabor das conjunturas socioeconómicas que descaracterizem o direito do trabalho enquanto disciplina da proteção dos direitos fundamentais dos sujeitos na relação económica laboral. Este trabalho procura descortinar se os parâmetros laborais essenciais estão suficientemente consolidados e, em face de que critérios estritamente económicos ou políticos, o direito laboral está em condições de reagir autonomamente na regulação de novas realidades, assentando essa reação na prevalência de princípios estruturantes que fizerem eleger ao plano dos direitos fundamentais certas situações do direito jus laboral, princípios que fundamentam a autonomia dogmática do Direito do Trabalho, partindo da análise específica do direito ao trabalho enquanto direito fundamental e do seu alcance, nomeadamente quando se tem de confrontar com outros direitos com proteção constitucional que necessariamente o restringe.

Tendo por base a definição formal de direito de trabalho ... · ao Direito do Trabalho _, I ongresso Nacional de Direito do Trabalho, Memórias, Almedina, Coimbra, 1998, p 328

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1

SUMÁRIO

Tendo por base a definição formal de direito de trabalho, enquanto “conjunto de

normas e de princípios relacionados com o fenómeno do trabalho subordinado e

agrupados em função de uma Ciência jus laboral geográfica e historicamente

determinada”, a partir de normas imperativas de direito público e de direito privado

com delimitação constitucional, procuramos com este trabalho evidenciar princípios

estruturais que permitam ensaiar uma dogmática, em diálogo com a sociedade atual,

que obste à alteração dos seus parâmetros por critérios alheios ao direito, ao sabor

das conjunturas socioeconómicas que descaracterizem o direito do trabalho enquanto

disciplina da proteção dos direitos fundamentais dos sujeitos na relação económica

laboral.

Este trabalho procura descortinar se os parâmetros laborais essenciais estão

suficientemente consolidados e, em face de que critérios estritamente económicos ou

políticos, o direito laboral está em condições de reagir autonomamente na regulação

de novas realidades, assentando essa reação na prevalência de princípios

estruturantes que fizerem eleger ao plano dos direitos fundamentais certas situações

do direito jus laboral, princípios que fundamentam a autonomia dogmática do Direito

do Trabalho, partindo da análise específica do direito ao trabalho enquanto direito

fundamental e do seu alcance, nomeadamente quando se tem de confrontar com

outros direitos com proteção constitucional que necessariamente o restringe.

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2

ABSTRACT

Based on the formal definition of employment law, as the "set of rules and principles

related to the subordinate labor phenomenon and grouped according to one Labor

Science geographically and historically determined", derived from the mandatory rules

of public and private law with constitutional boundaries, we seek with this work to

evidence structural principles that enable us to test one dogmatic dialogue with

contemporary society, in order to which prevent the modification of its parameters

through criteria unrelated to the work law, freely influenced by the socio-economic

conjunctures which mischaracterizes the work law as a discipline of protection of the

fundamental rights of the individuals under the labor economic relationship.

This piece of work tries to unveil whether fundamental labor parameters are

sufficiently consolidated and, in response to what criteria - strictly economic or

political, labor law is able to react autonomously in the regulation of new realities,

being this reaction based on the prevalence of structuring principles, that raises to the

plan of fundamental rights certain situations of jus labor law, principles that underlie

the dogmatic autonomy of the labor law. Based on a specific analysis of the right to

work as a fundamental right and at its range, particularly when we have to confront

with other rights, constitutionally protected, which necessarily restricts him.

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AGRADECIMENTOS

Para a realização deste trabalho foram vários os intervenientes que colaboraram directa e

indirectamente, os quais merecem o meu reconhecimento e gratidão e sem os quais teria

sido muito mais difícil chegar ao fim desta etapa, que representa um importante marco na

minha vida pessoal e profissional. Desta forma, manifesto a minha gratidão a todos os que

estiveram presentes nos momentos de angústia, de ansiedade, de insegurança, de exaustão

e de satisfação.

Ao meu orientador, Professor Doutor Pedro Romano Martinez, pela dedicação, empenho e

disponibilidade, apesar do seu horário demasiado preenchido, com que direccionou e

acompanhou esta dissertação, assim como pelos comentários e sugestões.

Ao Marco, que sempre soube compreender as minhas falhas e as minhas ocupações

permanentes.

Ao Pedro pelo apoio, pela amizade, pelas palavras de incentivo e pela preocupação com o

meu bem-estar nos momentos de fadiga.

À minha mãe pela paciência compreensão, apoio incondicional, incentivo e motivação

imprescindíveis para a efectivação deste trabalho.

Finalmente, de modo especial, quero agradecer ao meu pai, pela motivação, afecto, carinho,

compreensão, encorajamento que sempre manifestou no decurso da realização deste

trabalho, mas sobretudo pelo exemplo de vida que sempre me incutiu.

O meu muito obrigado!

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO

SESSÃO 1. DIREITO DO TRABALHO COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL

1.1 Direitos Sociais como Direitos Fundamentais 9

1.2 Direito do Trabalho e Princípios Fundamentais 15

SESSÃO 2. O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AO TRABALHADOR

2.1 A Importância da Teoria dos Princípios 20

2.2 O princípio da proteção do trabalhador 24

2.2.1 O princípio do favor laboratoris como manifestação do

princípio da proteção 29

2.2.2 O Direito ao Trabalho e o princípio da segurança no emprego 34

SESSÃO 3. DIREITO AO TRABALHO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

3.1 Contornos e amplitude do normativo constitucional 39

3.2 Sujeitos titulares e sujeitos destinatários do Direito Fundamental

ao Trabalho 42

3.3 O Direito ao Trabalho como Direito de Defesa 52

3.4 O Direito ao Trabalho como Direito de Proteção 54

3.4.1 A dignidade da pessoa humana como núcleo duro do direito

fundamental ao trabalho 56

CONCLUSÕES 59

BIBLIOGRAFIA 64

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INTRODUÇÃO

Sendo a segurança um atributo da relação laboral, um dever-ser reconhecido

constitucionalmente, conforme artigo 53º da CRP, no quadro dos direitos, liberdades e

garantias dos trabalhadores, a precariedade no emprego surge hoje como um

fenómeno de afrontamento jurídico a este princípio ao perder o seu carácter

esporádico ou marginal e passar a representar uma característica estrutural do

emprego.

As consequências do emprego precário são múltiplas e a diversos níveis, quer no plano

individual, quer no plano social.1 À incerteza remuneratória, à quebra do estatuto

profissional contínuo e evolutivo, acresce hoje a segmentação do mercado de

trabalho, o risco de exclusão, o desinvestimento em formação profissional e a

dissimulação do desemprego real.

Podemos dizer que na atualidade a segurança no emprego tem um efeito conformador

e marcante sobre o Direito do Trabalho, enquanto ordenamento jurídico que visa

corrigir o desequilíbrio entre as partes da relação, procurando proteger a parte

contratual mais vulnerável.

A precariedade traduz-se numa debilidade de vínculo jurídico-laboral, relativamente

aos parâmetros que definem o trabalho estável ou permanente.

A precariedade, nas suas múltiplas formas, aumenta a debilidade e até a inexistência

de estruturas representativas dos trabalhadores que possam opor-se à supremacia do

empregador na relação, tornando-a ainda mais desigual, levando ao risco de

dependência funcional e económica passe a ser também pessoal, atento o modo como

a relação laboral se desenvolve.2

1 “O trauma provocado pela perda de emprego afeta profundamente a própria personalidade do

trabalhador implicando, com frequência, perturbações fisiológicas e psíquicas que reclamam tratamento médico adequado. O trabalhador sente-se humilhado, inútil, atingido no seu brio profissional, vítima de uma medida injusta, objeto de piedade pública ou particular.” Jorge Leite, Comunicação nas I Jornadas Luso-Hispano-Brasileiras, Lisboa, 1982, subordinada ao tema A estabilidade e a promoção do emprego face à legislação do trabalho, p 57.

2 Numa expressão feliz do autor brasileiro Márcio Túlio Viana, “a empresa repete com seus

empregados os movimentos das ondas do mar, ela o expulsa de um modo e o recolhe de

outro”. Expulsa o empregado formal, para transformá-lo em informal, terceirizado ou

subempregado, externalizando seus riscos. Depois o recolhe, usando de sua energia de

trabalho, mas agora de forma mais barata, desqualificada, sem conhecimento do modus

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Desde as múltiplas formas de trabalho atípicas que se vêm desenvolvendo, do

teletrabalho ao trabalho no domicílio, prestado através de meios informáticos e de

telecomunicações, à flexibilidade no tempo e local de trabalho, do prazo contratual às

múltiplas formas de cessação do contrato de trabalho admitidas ao empregador, a

redução drástica dos encargos com a cessação do contrato de trabalho, são múltiplos

os traços proeminentes da precariedade da relação laboral.3

Peça mais recente com relevância nesta matéria foi a assinatura, em 17 de Maio de

2011, de um Acordo denominado “Memorando de Entendimento sobre as

condicionalidades de política económica”, entre o Ministro de Estado e das Finanças

de Portugal, pelo Governador do Banco de Portugal e pela chamada Troika, constituída

pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário

Internacional, envolvendo ainda os três partidos políticos que costumam formar

governo.

Na mesma data foi assinado o “Memorando de Políticas Económicas e Financeiras”

que enquadra o acordo estabelecido entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e

que se baseia nos mesmos pressupostos do acordo com a União Europeia.

Trata-se de um programa de governo previsto para ser aplicado em Portugal durante

três anos, em que estão consignados e aprazados um conjunto de medidas concretas a

executar durante esse período, nomeadamente no plano laboral.

Tendo como título “Mercado de Trabalho”, no memorando da Troika, o texto versa

sobre legislação laboral, com relevância para o assunto objeto desta nossa reflexão: o

direito ao trabalho como direito fundamental e inerente à dignidade humana.

De acordo com este programa elaborado pelos representantes das entidades credoras

para ser aplicado pelo Governo de Portugal, deve ser revisto o sistema de prestações

no desemprego, diminuindo o seu tempo de duração. Esta medida é fundamentada

como sendo uma medida para diminuir o desemprego de longa duração dado que a

operandi do processo produtivo, sem crítica, sem expectativa e sem garantia de nada, incluída

aí a própria manutenção no emprego. 3 “Na verdade, a precariedade só se tornou um fenómeno impressivo quando perdeu o carácter

esporádico ou marginal para invadir os contrafortes do emprego considerado estável ou permanente”, Maria Regina Gomes Redinha, “A Precariedade do Emprego – uma interpelação ao Direito do Trabalho”, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Memórias, Almedina, Coimbra, 1998, p 328

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razão de ser deste, segundo os seus autores, será não a falta de oferta mas o

desinteresse do trabalhador em empregar-se.

Prevê também a alteração da legislação laboral, com especial incidência na diminuição

de direitos existentes, nomeadamente no que diz respeito à segurança no emprego,

ainda que tendo por fundamentação a promoção do emprego, o direito ao trabalho.

A Proposta de Lei nº 46/XII, publicada em Separata ao Diário da República de 18 de

Fevereiro de 2012, e já aprovada na Assembleia da República, dá corpo ao Memorando

de Entendimento em matéria laboral, procedendo à terceira revisão do Código de

Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.

De acordo com o seu preâmbulo, nas soluções consagradas consideram-se observados

os valores fundamentais da legislação laboral consagrados na Constituição. Entre elas

avultam as que dizem respeito à flexibilização do tempo de trabalho, o alargamento

dos despedimentos permitidos ao empregador por motivos objetivos, todas elas tendo

em comum o alargamento das situações que reforçam a precariedade e parecem pôr

em crise o direito constitucional da segurança no emprego.

Na alteração legislativa já aprovada, ao mesmo tempo que se alude ao reforço da

contratação coletiva, impõe-se imperativamente uma redução acentuada de diversas

componentes da remuneração do trabalho, sobrepondo normas legais menos

favoráveis ao trabalhador a regulações convencionais em vigor, tudo indica em

contramão daquele que foi até hoje o âmbito afirmativo dos princípios fundamentais e

estruturantes do Direito do Trabalho, enquanto objeto autónomo da Ciência do

Direito.

As alterações ao regime da cessação do contrato de trabalho e aos montantes

compensatórios devidos são peças fundamentais naquilo que parece ser um

retrocesso aos princípios fundamentais prosseguidos pelo Direito do Trabalho e que

encontram consagração constitucional.

O despedimento por inadaptação passa agora a ser permitido mesmo nas situações

em que não tenham sido introduzidas modificações substantivas, nomeadamente

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tecnológicas, do posto de trabalho.4 O despedimento tanto pode agora ter lugar por

uma redução na produtividade como pelo incumprimento de objetivos fixados. Ou

seja, é reforçado o direito de decisão do empregador, ao mesmo tempo que é

afrouxado o dever de direção sobre a atividade laboral concreta desenvolvida.

No âmbito das compensações por cessação do contrato de trabalho, é estabelecido,

imperativamente, um teto, penalização que passa a ter efeitos retroativos ao aplicar-

se também a todos os contratos em vigor, o que também não deixa de ter relevância

no reforço da precariedade laboral.

O Direito ao Trabalho no ordenamento jurídico-constitucional português tem um

conteúdo mais amplo que a garantia de segurança no emprego consagrado no artigo

53º da CRP5 6. Qual, então, o conteúdo mínimo e delimitador do Direito ao Trabalho

como direito fundamental?

Essa será a reflexão que vamos procurar verter ao longo desta nossa dissertação, não

deixando de ter em conta a importância da precariedade versus segurança no

emprego, no conteúdo e conformação do próprio Direito ao Trabalho.

4 Sobre o conceito de justa causa, Pedro Romano Martinez, “A Justa Causa de Despedimento”, I

Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Memórias, p 173 e ss. 5 “A segurança no emprego, respeita aos trabalhadores subordinados e pressupõe a existência de

uma situação jurídica laboral, visando assegurar a sua subsistência e o seu normal desenvolvimento. Em contrapartida, o direito ao trabalho refere-se genericamente aos cidadãos – e, nos termos do art. 15º, nº 1 da CRP, aos estrangeiros e apátridas -, abrangendo, em conjugação, aliás, com o disposto no artigo 47º, nº 1 da CRP, e como transparece expressamente do artigo 58º, nº 2, alínea b), o exercício de qualquer profissão ou género de trabalho, ainda que se trate de trabalho independente. O direito ao trabalho, entendido nesta aceção ampla e na sua dimensão positiva, deve ser assegurado a todos (…). Acórdão do TC nº 372/91.

6 “(…)A garantia da segurança no emprego não se esgota na proibição de despedimentos

injustificados, intervindo não apenas quando está em causa a cessação do contrato de trabalho ou do vínculo à função pública, mas também quando se coloca o problema da subsistência ou insubsistência da relação laboral efetiva (Acórdãos nºs 285/92 e 39/97 do TC) – em conjugação com a consagração do direito dos trabalhadores à ‘organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal (…)’ (art. 59º, nº 1, alínea b) da CRP), pois, para que o trabalhador se possa realizar, é preciso que ele possa trabalhar ou, o mesmo é dizer, que possa exercer a prestação pessoal e profissional para que foi contratado (Acórdão nº 951/96).” Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, anotação ao art. 58º, p 591.

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SESSÃO 1. DIREITO AO TRABALHO COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL

1.1 Direitos sociais como direitos fundamentais

Os direitos sociais têm uma relevância plena enquanto direitos fundamentais,

reconhecida a sua natureza específica, da qual resultam diferenciações num quadro de

uma dogmática unitária e abrangente de proteção jurídica dos direitos fundamentais.

Na Constituição Portuguesa, os direitos sociais estão reconhecidos expressamente

como direitos fundamentais, importando sempre apurar qual o alcance dogmático

desse reconhecimento.

O plano da discussão tem passado por se apurar se, sendo os direitos sociais direitos

fundamentais, não têm uma especificidade que aconselhe um tratamento dogmático e

um regime jurídico especiais, substancialmente diversos do enquadramento e regime

que merecem os direitos da liberdade. Por outras palavras, se apesar da consequente

vinculação jurídica à norma constitucional, o tipo de vinculação, de subordinação, de

efetividade, de instância e alcance do controlo de vinculação, podem, ou até devem,

ser muito diversos.7

Os direitos fundamentais garantem juridicamente o acesso individual a bens que, pela

sua importância para a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da

personalidade, a autonomia, a liberdade e o bem-estar das pessoas, a Constituição

entendeu merecedores de proteção máxima, forte e estável.

7 “O problema atual dos «direitos sociais» ou direitos a prestações em sentido estrito está em

«levarmos a sério» o reconhecimento constitucional de direitos com o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à cultura, o direito ao ambiente. Independentemente das dificuldades (reais) que suscita um tipo de direitos subjetivos onde falta a capacidade jurídica poder (= jurídico, competência) para obter a sua efetivação prática (=acionabilidade), não podemos considerar como simples «aleluia jurídico» o facto de as constituições (como a portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978) considerarem certas posições jurídicas de tal modo fundamentais que a sua garantia, ou a falta desta, não pode ser deixada aos critérios (ou até arbítrio) de simples maiorias parlamentares. Neste sentido se acolherá, como ponto de partida, a recente formulação de R. ALEXY: 1) Direitos fundamentais são posições de tal modo importantes que a sua garantia ou não garantia não pode ser deixada a simples maiorias parlamentares; 2) um cidadão encontra-se, com base numa norma garantidora de direitos fundamentais, sob o ponto de vista do direito constitucional, que a sua garantia não pode ser deixada a simples maiorias parlamentares.” J.J. Gomes Canotilho, Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008, pp 51-52.

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“A consagração constitucional dos direitos fundamentais impõem ao Estado e a cada

um dos seus poderes constituídos deveres de subordinação e vinculação jurídica de

que, em geral, resultam para os particulares, correspondentes pretensões e direitos de

realização cuja consistência pode, tende ou aspira a traduzir-se na titularidade de

direitos subjetivos públicos, ou seja, direitos a exigir judicialmente o cumprimento dos

respetivos deveres estatais.” 8

Os deveres estatais correlativos dos direitos fundamentais começaram por ser

entendidos, na primeira fase do Estado constitucional, o Estado de Direito liberal,

como deveres de não intervenção, deveres de abstenção, de não interferência nas

esferas de liberdade e autonomia dos particulares. Nessa altura, à luz da ideologia e

dos interesses da cidadania burguesa, os direitos fundamentais identificavam-se com

direitos de liberdade, sobretudo o direito de propriedade. Aos bens cujo acesso é hoje

garantido pelos direitos sociais – o bem-estar, a habitação, a saúde, a educação, a

segurança social -, o homem burguês chegava pelos seus próprios meios. Tudo o que

havia que assegurar era que o Estado respeitasse e protegesse o acesso individual,

permanecendo, por isso, as tarefas de promoção praticamente ausentes das

Constituições e das funções do Estado.

À medida que os não possuidores alcançaram direitos de cidadania e a natureza liberal

do Estado deu lugar a uma nova fase do Estado constitucional, o Estado social e

democrático de Direito, não apenas se alargou o elenco dos direitos considerados

fundamentais, a partir da I Guerra Mundial, com a inclusão de direitos sociais nas

Constituições, como se modificou a conceção constitucional – mesmo quando a letra

da Constituição permanecia inalterada – sobre a natureza e tipo de deveres estatais

correlativos aos direitos fundamentais.

O Estado social já não se basta, como anteriormente, com a garantia e proteção da

liberdade e da propriedade do reduzido corpo de cidadãos que possuíam recursos para

procurar, por si próprios, as condições de uma existência digna, mas assume-se como

provedor de todas as pessoas sob sua jurisdição e que, abandonadas às capacidades

próprias e aos recursos proporcionados pelo livre jogo do mercado, seriam incapazes

8 Jorge Reis Novais, Direitos Sociais, Wolters Kluwer / Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p 255.

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de aceder àquelas condições mínimas de existência e, consequentemente, de gozo da

liberdade.

O Estado deixa de ser visto como agente neutro, separado da sociedade civil, que

apenas respeita e garante a segurança das livres trocas individuais e do livre encontro

de autonomias individuais, para passar a ser visto como Estado social, um Estado

preocupado com as desigualdades de facto que distorciam e anulavam as condições de

livre desenvolvimento das autonomias individuais, empenhado ativamente na

prossecução de uma liberdade e de uma igualdade reais.

A partir do momento que a Constituição consagra determinado direito, pretensão,

dever ou obrigação como fundamental, ele impõe-se aos poderes constituídos. A

vinculatividade da respetiva observância não depende do tipo em que for classificado

e integrado, mas apenas da força jurídica diferenciada que a Constituição lhe atribuir,

da natureza material e estrutural do dever.

O que uma parte da doutrina hoje põe em causa9, é se não foi um erro da doutrina

tradicional, no seguimento do pecado original das Constituições alemã e dos Estados

Unidos da América, ter-se centrado numa distinção classificatória – direito da

liberdade ou direito social – como pretenso critério de diferenciação dogmática, não

atendendo àquilo que, de facto e de direito, distingue a aplicabilidade dos direitos

fundamentais.

Aquilo que existe na vida dos direitos fundamentais, nos conflitos ou colisões a que

estão sujeitos, nas restrições e intervenções restritivas que os afetam, na eventual

omissão de realização, aquilo sobre que é necessário decidir juridicamente, é sempre a

vigência, vinculatividade e observância de uma determinada e específica faculdade ou

pretensão, um determinado direito ou dever, nunca o todo.

O primeiro plano que importa ter em conta é qual a natureza e força vinculativa da

norma de direito fundamental, seja ela atinente a direito de liberdade ou a direito

social.

Uma norma constitucional pode ter a natureza de regra ou de princípio,

independentemente de consagrar um direito negativo ou um direito positivo e

9 Jorge Reis Novais, Direitos Sociais, obra citada, p 264

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também, quanto à natureza do dever estatal, não há uma relação de necessidade

entre o tipo de dever estatal e a natureza negativa ou positiva do direito, ainda que,

frequentemente, os respetivos conceitos surjam muitas vezes tratados como idênticos.

Quando o Estado protege o exercício de um direito fundamental, isso significa que os

órgãos responsáveis pela proteção têm que escolher as vias que considerem mais

adequadas, mais oportunas, para proceder a uma proteção tão efetiva quanto possível

e sem pôr em causa a prossecução de outros bens e valores a que também estão

obrigados.

Quando o Estado promove o acesso individual a um bem jus fundamental – e se trata

de uma promoção que envolve custos financeiros -, os poderes públicos beneficiam da

margem acrescida de decisão que lhes é conferida pelo facto de o direito em causa

estar sujeito a uma reserva do financeiramente possível.

A restrição de direito fundamental por ação do poder público pode ter uma

justificação especial – a indisponibilidade de recursos financeiros necessários à

manutenção da proteção ou prestação e a margem de escolha política que aí cabe aos

poderes públicos – e beneficia da atenuação de densidade de controlo judicial que

decorre da ativação, se ela for justificada, daquelas reservas.10

Acompanhando o entendimento e a posição do Professor Jorge Reis Novais nesta

matéria, também sustentamos que, ainda que assim seja, e ainda que a mesma

situação se possa excecionalmente verificar no âmbito de alguns direitos negativos da

10

“A proteção da confiança dos cidadãos relativamente à ação dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de Direito. Sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se refletirem na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, com violação do princípio fundamental da dignidade humana, em mero objeto do acontecer estatal. (…) Nesse sentido, enquanto corolário ou subprincípio concretizador do princípio do Estado de Direito, o princípio da proteção da confiança dos cidadãos, incluindo perante alterações legislativas introduzidas pelo legislador democrático, cobra plena e especial aplicação no domínio das restrições aos direitos fundamentais, na exata medida em que a proteção jus fundamental dos interesses de liberdade contra intervenções estatais que afetem desvantajosamente constitui o âmbito vital em que as necessidades de segurança jurídica são mais prementes e em que a dignidade da proteção da confiança é mais objetivamente justificada. E, uma vez que as garantias jus fundamentais se impõem, vinculativa e diretamente, a todos os poderes públicos, o princípio da proteção da confiança desenvolve, também, ao lado do princípio da proibição do excesso e da igualdade, efeitos genéricos de limites aos limites dos direitos fundamentais.” (Jorge Reis Novais, “As Restrições aos Direitos Fundamentais”, Wolters Kluwer / Coimbra Editora, 2ª Edição, 2010, p 816-817).

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liberdade, o fundamental na indiferenciação dogmática é de que o padrão de controlo

e a sua estrutura se mantêm exatamente os mesmos haja ou não reserva do

financeiramente possível ou do politicamente adequado e oportuno. Ou seja,

tratando-se de direito negativo, continuamos a ter, em qualquer caso, seja o direito

em causa um direito social ou de liberdade, uma restrição, isto é, uma afetação

negativa do acesso individual jus fundamentalmente garantido, e, logo, a necessidade

e adequação de um correspondente controlo de constitucionalidade.

Aquilo que muda com a eventual ativação das reservas do financeiramente possível e

do politicamente adequado é a justificação. Enquanto uma restrição a um direito

negativo de liberdade – cuja realização não mobilizasse recursos financeiros estaduais

ou não envolvesse prerrogativas políticas de avaliação – só podia ser justificada com

base na necessidade de prossecução estadual de outros bens ou fins igualmente

dignos de proteção jurídica e que no caso apresentassem maior peso (a referida

reserva imanente de ponderação), já no caso de direitos sob reserva do politicamente

adequado ou do financeiramente possível a justificação é alargada a razões políticas e

financeiras: o Estado pode ter que restringir porque, no entender dos órgãos

legitimados para fazer escolhas políticas e opções orçamentais, se justifica um tipo ou

modalidade diferente de proteção ou de promoção ou porque o Estado não dispõe dos

recursos financeiros para continuar a assegurar o direito nos termos em que o vinha

fazendo.11

11

Sobre a proibição do retrocesso, e em discordância com a posição do Professor Gomes Canotilho cujo entendimento vamos acompanhar de perto na fundamentação a esta nossa tese, citamos uma passagem de Jorge Reis Novais, “As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição”, Wolters Kluwer / Coimbra Editora, 2ª Edição, 2010, p. 138, nota rodapé 228: “Não consideramos, assim, que se possa retirar dos direitos sociais qualquer imposição juridicamente vinculante de ‘proibição do retrocesso’ ou de ‘qualquer obrigação de não regressividade’, no sentido de conceber os níveis atingidos de realização das prestações estatais como imunes, sob pena de inconstitucionalidade, à eventualidade de regressão, nem, tão pouco, consideramos que os direitos sociais adquiram uma diferente natureza à medida de uma sua realização progressivamente atuada pelo legislador ordinário.

Esta posição não implica que deixemos de acompanhar GOMES CANOTILHO (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7ª Edição, 11ª Reimpressão, 2010, p 337) quando este autor considera que ‘o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (…) em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural’; só que, aí, a invalidade da correspondente atuação dos poderes constituídos funda-se na violação do princípio da confiança ou da segurança jurídica próprios do Estado de Direito e não já numa pretensa violação do princípio da proibição do retrocesso.”

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14

No entanto, estas reservas não invalidam, em cada situação concreta, a possibilidade e

a necessidade de um controlo da legitimidade constitucional da restrição e do seu

alcance: a ativação das referidas reservas pode demonstrar-se infundada, a restrição

pode, em qualquer caso, ter sido excessiva, inigualitária, arbitrária, ter afetado

ilegitimamente a proteção de confiança dos particulares ou posto em causa a

dignidade da pessoa humana.

Quando a Constituição tem um conteúdo e uma força normativa, os seus comandos

impõem-se à observância de todos os poderes constituídos, incluindo os órgãos

diretamente assentes na legitimidade democrática. Se entre esses comandos se conta

a necessária observância de deveres estatais de realização de direitos sociais, daí

resulta, necessariamente, não só o caráter juridicamente devido da prestação desses

deveres, como a dedução dos correspondentes direitos ou pretensões à respetiva

realização.

Uma vez que, em Estado constitucional, com justiça constitucional, cabe ao poder

judicial, em princípio, assegurar o cumprimento desses deveres e observância desses

direitos, então os direitos sociais constitucionalmente consagrados, onde se inclui o

direito ao trabalho, passam a ser direitos individualmente titulados, oponíveis ao

Estado e judicialmente impostos à observância da maioria democrática.

A forma adequada de construção teórica da diferença estabelecida pela Constituição

portuguesa entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e

culturais, ela só é devidamente entendida se for tido em conta o seguinte:

Em primeiro lugar, referindo-se, em abstrato, à dimensão principal dos direitos

fundamentais, esta construção tem de ser aplicada em função do direito, faculdade ou

garantia particular em causa na situação jurídica concreta. A presença das

características referidas de determinabilidade de conteúdo e de natureza dos deveres

estatais envolvidos deve ter como referência o direito invocado no caso concreto,

independentemente de um tal direito ser teoricamente integrável num direito de

liberdade ou no direito social.

Em segundo lugar, a questão da determinação ou determinabilidade do conteúdo do

direito deve ser tido em conta, se for o caso, a aplicação conjugada da norma

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15

constitucional de garantia e da norma ordinária que a conforma, uma vez que é da

integração desses dois planos e disposições normativos que resulta, em última análise,

o conteúdo e alcance do direito fundamental protegido.

Em terceiro lugar, ainda que associada e dependente da questão da determinabilidade

de conteúdo, decisivo para a resolução jurídica do caso acaba por ser, não o direito

fundamental como um todo, não o direito fundamental ou a sua dimensão principal

em abstrato, mas o tipo de dever estatal imposto pela norma de direito fundamental

aplicável ao caso concreto e a natureza jurídicas das especiais reservas que, nesse

contexto prático, possam afetar tal dever.

Portanto, independentemente da identificação abstrata e como um todo de um direito

como direito social ou como direito de liberdade, o que conta para a identificação

daquelas caraterísticas diferenciadoras e para a consequente aplicação do regime

constitucional próprios dos direitos, liberdades e garantias é a natureza estrutural do

direito especial que surge na situação jurídica controversa e não apenas a natureza do

direito em que se integra.

1.2 Direito de Trabalho e Princípios Fundamentais

Alguns autores de língua castelhana12 sumariaram a história do Direito do Trabalho em

quatro períodos, numa fundamentação bastante e suficiente quanto aos seus

elementos de significação para o que aqui nos interessa.

O primeiro período é o da “Formação”, e surge em 1802, na Inglaterra. A primeira lei

tutelar no âmbito do Direito do Trabalho intitulou-se “Ato de Moral e da Saúde”, pela

qual se proibia o trabalho dos menores à noite e em horários superiores a 12 horas

diárias. Na França, surgiram em 1806 órgãos destinados a atuar nas relações entre os

donos das fábricas e os operários e, depois, em 1813, é proibido o trabalho de

menores em minas. Na Alemanha, em 1839, é iniciada a proteção legal do trabalho das

mulheres e dos menores.

12

Leon Martin-Granizo, Mariano Gonzalez – rothvoss Y GIL, “Derecho Social”, Madrid, Réus, 1932.

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16

O segundo período é o da “Intensificação”, e tem lugar com o surgimento do

Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1850, e a implantação do seguro social na

Alemanha, em 1883.

O terceiro período é o da “Consolidação”, que tem o seu expoente caracterizador na

conferência do Direito do Trabalho de 1890, em Berlim.

E, finalmente, chegamos ao quarto período, o da “Autonomia”, com o surgimento da

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Tratado de Versailles, em 1919, no

qual se recusa tratar o trabalho como uma mercadoria, pugnando pela igualdade

salarial, repouso semanal, pela proteção do trabalho das mulheres e dos menores e

dispondo sobre direitos sindicais.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem vem proclamar a proibição do trabalho

escravo, o direito ao trabalho, o direito à condição favorável de trabalho, proteção

contra o desemprego, não discriminação de salário, garantia de salário digno, além de

outros meios de proteção social ao trabalhador e direito à organização sindical e à livre

associação.

É em face deste quadro evolutivo transmitido do século passado que o Direito do

Trabalho se vai construindo e estruturando e no presente13 é confrontado com

intervenções legislativas de diferentes naturezas, da flexibilização à

desregulamentação, sob fundamentos diversos, marcando mais que um ponto de

retorno, um caminho de inversão em relação à evolução histórica registada, tornando-

se pertinente apurar que princípios fundamentais imanentes ao Direito do Trabalho

devem conformar o direito do trabalhador ao mínimo de existência com dignidade, à

luz do conceito cultural de direitos inerentes hoje à espécie humana.

A constitucionalização do Direito do Trabalho é uma das primeiras manifestações da

intervenção constitucional no âmbito do direito privado. Com a Constituição de

13

Desde Setembro de 2008 que é notícia proeminente a crise financeira, com início localizado nos Estados Unidos. Começou na chamada falta de pagamentos das hipotecas e contaminou o sistema mundial. Um sistema global baseado no crédito, a “crise de confiança” do sistema bancário teve como resultado o dinheiro ter deixado de circular, o crédito ter diminuído e encarecido, afetando a economia globalizada e, consequentemente, toda a produção de bens e serviços em todo o mundo.

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17

Weimar, de 1919, passam pela primeira vez a ter assento constitucional na Europa

diversos princípios laborais. A partir daí, a maioria dos textos constitucionais passa a

conter direitos coletivos dos trabalhadores, como o da liberdade sindical, da

negociação coletiva e da greve, bem como direitos a prestações do Estado de proteção

social.

Marca esta Constituição a passagem do constitucionalismo liberal, preocupado apenas

com a garantia da autonomia pessoal do indivíduo face ao poder do Estado, para o

constitucionalismo social, caracterizado pelo intervencionismo estadual com fins de

solidariedade e justiça social.

A partir dos anos sessenta e setenta, os direitos fundamentais passam a ser encarados

como componentes estruturais básicos do contrato de trabalho, tendo em conta as

características especiais de uma relação em que a pessoa do trabalhador está inserida

numa organização alheia e submetida a uma autoridade dotada de poder social.

Surge então uma nova categoria dos direitos positivos ou direitos a prestações do

Estado, direitos dos cidadãos às prestações necessárias à sua existência individual, que

têm por sujeito passivo o Estado e se cumprem pela execução de políticas de trabalho,

entre outras que possibilitem usufruir os bens constitucionalmente protegidos.

“Ao consagrar os direitos fundamentais, os textos constitucionais assumem

conscientemente um determinado sistema de valores, cujo fundamento último é a

dignidade humana.”14

O respeito pela dignidade humana, enquanto meio para conformar a ordenação

jurídica das relações sociais, construindo uma ordem, um conjunto de princípios e

regras que regulam objetivamente a realidade sob um ponto de vista jurídica, a partir

do texto constitucional.

Os princípios do Direito do Trabalho, inegavelmente, constituem uma forma de

proteção do trabalhador, já que neste ramo do direito, ao contrário da paridade das

partes existente por regra no Direito Comum, existe uma flagrante desigualdade entre

14

José João Abrantes, Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2005, p 15.

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18

as partes contratantes.15 16 Podemos dizer que o princípio basilar constitutivo do

Direito do Trabalho é o princípio da proteção do trabalhador.

O princípio da proteção é estruturante do seu normativo, institutos, princípios e

presunções, visando atenuar, no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano

fáctico existente na relação laboral.

Como diz Monteiro Fernandes, “O Direito do Trabalho apresenta-se, assim, ao mesmo

tempo, sob o signo da proteção ao trabalhador e como um conjunto de limitações à

autonomia privada individual.”17

Ao contrário do que ocorre no Direito Comum, onde se procura a todo o custo a

igualdade das partes, o Direito do Trabalho tem como finalidade igualar os desiguais,

fazendo surgir o princípio da proteção como estruturante de todo o seu edifício

jurídico.

O Direito do Trabalho tem que ser compreendido não como um mero direito

económico com relevância constitucional (que vai imperando em razão de um

conceção «empresarial» e de sobrevalorização dos mercados) mas como uma Direito

15

João Leal Amado, “Contrato de Trabalho”, Coimbra Editora, 2009, p 13: “Sendo a força de trabalho uma qualidade inseparável da pessoa do trabalhador, o que supõe um profundo envolvimento da pessoa deste na sua execução em moldes hétero determinados, isso implica que o Direito, embora centrado na relação laboral como relação patrimonial de troca trabalho-salário, tenha em atenção essa envolvência pessoal.

A relação de trabalho é uma relação profundamente assimétrica, isto é, manifestamente inigualitária, marcada pela dependência económica e pela subordinação jurídica. Para o trabalhador cumprir é, antes de mais, obedecer, não se limitando a comprometer a sua vontade no contrato, mas também a submeter-se a esse mesmo contrato.”

16 “A garantia da segurança no emprego, à semelhança dos direitos fundamentais dos

trabalhadores em geral, implica naturalmente a compressão, no domínio das relações laborais, da autonomia privada, da liberdade empresarial e de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

a) Com efeito, ‘a Constituição deixa claro o reconhecimento de que as relações de trabalho subordinado não se configuram como verdadeiras relações entre iguais’, procurando proteger a ‘autonomia dos menos autónomos’ (Acórdão nº 581/95). Por isso, embora essa possibilidade

exista (Acórdão nº 242/01 – cfr. ainda Acórdão 523/95), a Constituição, na previsão específica

do artigo 53º, nem sequer se prevê o direito dos trabalhadores a rescindirem com justa causa e indemnização o contrato de trabalho, perante comportamentos graves e culposos do empregador. As limitações impostas pela garantia da segurança no emprego à autonomia contratual da entidade empregadora não são, à partida, inconstitucionais, uma vez que o artigo 53º da Constituição arranca justamente do reconhecimento de que as relações de trabalho subordinado envolvem tipicamente relações de poder, nas quais o empregador assume uma posição de supremacia e o trabalhador carece de especial proteção (Acórdão nº 659/97).” Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, 1ª Edição, p 501, anotação ao artigo 53º.

17 António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 13ª edição, 2006, p 15.

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19

Social Fundamental, atendendo à sua relevância para a dignidade humana, tal como é

expressamente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e parte

integrante do Direito Constitucional português em vigor, por força do artigo 8º, nº 2 da

CRP.

No que respeita à Constituição laboral, Maria do Rosário Palma Ramalho18 faz uma

divisão em duas categorias: Uma categoria comporta os princípios constitucionais

dirigidos a todos os trabalhadores, onde se inclui normas como a que reconhece a

liberdade de escolha da profissão (CRP, art. 47º), o direito ao trabalho (art. 58º, nº 1),

o direito de acesso a cargos públicos (CRP, art. 50º, nº 1), a liberdade de circulação de

trabalhadores e de emigração (CRP, art. 44º) e alguns direitos reconhecidos no art.

59º, como o direito à reparação nos acidentes de trabalho; a outra, os direitos

específicos dos trabalhadores subordinados, como o da segurança no emprego e de

proibição dos despedimentos sem justa causa ou por motivos político-ideológicos

(CRP, art. 53º), a maioria dos princípios enunciados no art. 59º da CRP, no que respeita

à retribuição, ao tempo de trabalho ou às férias, e, bem assim, os direitos ou princípios

de incidência coletiva, como o direito de constituição de comissões de trabalhadores

(CRP, art. 54º), o princípio da liberdade sindical (CRP, art. 55º), o direito à negociação

coletiva (CRP, art. 56º) ou o direito de greve (art. 57º).

Já para Menezes Cordeiro, a «constituição laboral» vai apenas “dimanar indicações

importantes em dois planos:

- ela compreenderá – ou poderá compreender – normas e princípios laborais, i e,

normas e princípios de Direito do trabalho que, pela sua importância político-social,

hajam logrado abrigo no texto fundamental; funciona, então, como fonte qualificada

do Direito do trabalho;

- ela exprimirá – ou poderá exprimir – regras relativas às fontes jus laborais e ao seu

modo de concatenação; opera, nessa medida, como fonte indireta do tecido jus

laboral, tornando-se, em qualquer caso, imprescindível para o seu entendimento.”19

18

Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, 2ª edição, Almedina, 2009, p 165.

19 António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1991, p 141.

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20

SESSÃO 2. O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA PROTEÇÃO DO TRABALHADOR

2.1 A Importância da Teoria dos Princípios

Não é possível abordar a questão da importância dos princípios sem aludir aos estudos

de Robert Alexy, jurista alemão, sobre a função dos princípios, estudos que são sempre

referência de todos os manuais de Direito Constitucional ou de Direito do Trabalho,

sempre que está em causa qualquer direito fundamental de cariz social, como o direito

material de trabalho, ou os seus princípios, com relevância constitucional, mais, como

direito fundamental.

Este autor classifica a norma como género, dos quais são espécies os princípios e as

regras.

Ao desenvolver sua teoria dos direitos fundamentais, Alexy adverte que a distinção

qualitativa entre regras e princípios é de grande importância. Afirma que os princípios

são normas que ordenam algo a ser realizado em toda sua extensão, de acordo com as

possibilidades jurídicas e fáticas existentes, ao passo que regras são normas que

podem ser cumpridas, ou não. Por isso, os princípios, ao contrário das regras, são

chamados de “mandados de otimização”, que podem ser realizados em diferentes

graus, consoante as possibilidades jurídicas e fáticas a cada momento. 20

Como refere Gomes Canotilho21, o estudo da disciplina jurídico-constitucional dos

direitos, liberdades e garantias não dispensa como fundamento uma delimitada e

estudada teoria das normas.

Para os seguidores do pensamento de Kelsen22 para quem as normas jurídicas são

apenas regras, ou seja, um julgamento hipotético vinculativo de certas consequências

a certas condições, a positivação dos direitos fundamentais sociais e a vagueza

20

Robert Alexy, citado por J.J. Gomes Canotilho, na obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, obra já citada, p 1254.

21 Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, obra já citada, p

1258. 22

Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Almedina, 2ª Edição (1960), 7ª Edição da tradução portuguesa, 2008, p 49.

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21

característica dos seus enunciados linguísticos acarretam um enfraquecimento da sua

normatividade.

Se aplicarmos este modelo à esfera Constitucional, não poderíamos chegar a outra

conclusão que não fosse a dos positivistas-normativistas, ou seja, entender os direitos

sociais como meros programas de ação não vinculativos, dependentes da atuação do

legislador ordinário para a produção plena de efeitos jurídicos.

Por norma jurídica entender-se-ia apenas aquele dispositivo que já incorporasse bem

delineada a hipótese de incidência e os efeitos jurídicos decorrentes do cumprimento

(ou incumprimento) do comando tipificado.

Por outro lado, os princípios passariam à margem do conceito de norma jurídica, ou

quanto muito, figurariam como normas de segunda categoria.

A ascensão normativa da Constituição, enquanto pilar e centro de gravidade do

ordenamento jurídico, só surgiu, nos países Europeus, após a 2ª Guerra Mundial, e, foi

a partir desse momento, passou a haver um alargamento do conceito de norma

jurídica.

Josef Esser,23 tido como um dos pioneiros na afirmação da normatividade dos

princípios jurídicos, defendeu a “teoria da transformação”, segundo a qual os

princípios pré-jurídicos e universalmente válidos (morais, costumes e políticos) seriam

positivados ou materializados (como normas no sistema jurídico) por meio de decisões

judiciais que os utilizassem como fundamento na solução do caso concreto.

Hoje, de uma maneira geral, não há grandes dúvidas na doutrina relativamente à

normatividade dos princípios, ou seja, do seu caráter não só axiológico como jurídico,

mas mantém-se a dúvida: se regras e princípios são normas, qual a diferença entre

eles?

Existe na doutrina diversas teorias relativas a esta questão, mas vamos partir pela

distinção feita por Robert Alexy e a teoria dos princípios, que defende existir uma

diferença estrutural entre normas e princípios.

23

Citado por Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, p 56

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22

Antes dele, Ronald Dworkin defendeu a ideia da força normativa dos princípios, já que

estes por fazerem referência à justiça e à equidade eram detentores de um conteúdo

material tangenciado pelas variações no seu grau de importância. Assim, as

caraterísticas específicas do caso concreto teriam a hipótese de alterar o caráter

prescritivo dos princípios, ou seja, confrontando o princípio 1 com outras normas-

princípio, 2, 3, etc., este, em determinadas circunstâncias, pode ser considerado como

de menor valor ou importância, naquele caso concreto. No entanto, se tal ocorresse, a

sua validade no plano jurídico não seria afetada.

No outro prato da balança temos as regras. Estas seriam aplicáveis considerando a

estrutura do lícito ou ilícito, e incidiriam sempre que houvesse a concretização da

hipótese de incidência, uma vez que ou elas seriam válidas e, em consequência,

deveriam ser aceites, ou elas seriam inválidas e, assim, excluídas do ordenamento

jurídico.

Alexy apurou as ideias avançadas por Dworkin, ao considerar os princípios como

normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das

possibilidades fáticas e jurídicas existentes.

Segundo Alexy,24 a teoria dos direitos fundamentais está assente na diferença teórico-

estrutural que existe entre princípios e regras, considerando-se um ponto de partida

para as questões relativas às possibilidades e aos limites dos direitos fundamentais.

Para Alexy é claro que tanto as regras como os princípios têm força normativa, porque

ambos dizem o que se deve fazer. Logo a distinção tem de ser feita mediante dois tipos

normativos.

Este autor defende que o ponto decisivo para a distinção entre estes dois tipos

normativos é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado da

melhor maneira possível, que seja escolhida a melhor forma de entre todas as

possibilidades reais e jurídicas existentes. Conclui o raciocínio dizendo que os

princípios são como mandamentos de otimização, na medida em que podem ser

concretizados com graus e intensidades diferentes, conforme lhe permitirem as

24

Citado por Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, obra citada, p 1263.

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23

realidades fáticas e jurídicas. Já no que diz respeito às regras, estas contêm

determinações, no sentido em que as mesmas são ou não cumpridas. Desta forma, se

uma norma é valida, o seu cumprimento deve ser na exata maneira que a mesma

prescreve, não há a possibilidade da sua relativização.

Nesta distinção proposta por Alexy decorre a consequência do carácter prima facie

existente entre regras e princípios. Estes últimos, enquanto normas, ordenam

mandamentos absolutos que o são apenas prima facie, ou seja, representam razões

que podem ser mitigadas por outras razões opostas. Totalmente diferente é o que

ocorre com as regras, estas exigem que se faça exatamente o que elas ordenam. São

mandamentos absolutos.

Os princípios são sempre razões prima facie, ao passo que as regras, a não ser que se

tenha estabelecido uma exceção, razões absolutas. Se este juízo concreto de “dever

ser” decorrente da regra absoluta tem como conteúdo um direito correspondente,

então diz que esse direito é um direito absoluto. Ao contrário para os princípios, cujas

razões são sempre prima facie, produzindo direitos também apenas prima facie

exigíveis.

Alexy elaborou um modelo misto de regras e princípios que surge da vinculação de

ambos. Através das disposições fundamentais, estabelecem-se dois tipos de normas,

ou seja, as regras e os princípios que espelham o caráter duplo das disposições jus

fundamentais. A vinculação de ambos surge quando na elaboração de uma norma

fundamental se inclui uma cláusula restritiva referida a princípio, e

consequentemente, sujeita a ponderação.

O exemplo dado por este autor é o da liberdade artística, mostrando quais podem ser

os aspetos sujeitos a ponderação. O direito a que se faz referência pode ser posto da

seguinte forma: (1) a arte é livre. Desta afirmação poder-se-ia supor que existe uma

garantia ampla da liberdade das atividades no campo das artes, isto significa que, em

prima facie, está proibida toda a intervenção em atividades que pertençam ao campo

das artes, do qual decorre a segunda premissa; (2) estão proibidas as intervenções do

Estado no campo da arte. Se tal disposição fosse entendida como uma regra completa,

estaríamos perante um direito ilimitado, em que não haveria princípios que se

sobrepusessem ao direito à liberdade artística, portanto será necessário o uso de uma

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cláusula restritiva, para construir uma norma com a seguinte estrutura: (3) Estão

proibidas as intervenções do Estado nas atividades que pertençam ao campo da arte,

quando as mesmas não são necessárias para o cumprimento dos princípios opostos de

igual ou superior valor ao princípio da liberdade artística.

Uma norma de direito fundamental pode conter uma cláusula restritiva se fizer

referência a princípios e à sua ponderação. Isto poderá ocorrer sempre que algo que

está estabelecido por disposições jus fundamentais for completado por normas

suscetíveis de subsunção, com recurso a cláusulas que referenciam a ponderação.

Assim, passa a ser plenamente compreensível a alusão ao caráter duplo das

disposições normativas. Partindo do pressuposto da supremacia da Constituição e da

exigência de se levar a sério as determinações estabelecidas pelas disposições de

direito fundamental, é possível obterem-se diferentes normas jus fundamentais,

quando construídas (ou reconstruídas) de tal maneira que as duas espécies normativas

- normas e princípios, possam ser inferidas do mesmo texto constitucional.

2.2 O Princípio da Proteção do Trabalhador

No caso do direito do trabalho, dependendo das especificidades do caso concreto, a

norma materializada a partir de um único enunciado poderá assumir tanto o caráter de

regra como o de princípio.

Ainda no mero domínio do direito privado (que não consome todo o âmbito do bem

protegido no direito ao trabalho), a autonomia privada e a liberdade contratual, para

serem efetivas, pressupõem a igualdade dos contraentes, quer jurídica, quer real, sob

pena de autodeterminação do sujeito de direito estar antecipadamente excluída.

O recurso aos mecanismos próprios do direito civil, como o abuso de direito ou a boa-

fé, com repercussões no direito laboral através da teoria do despedimento abusivo ou

da imposição de deveres gerais de informação e lealdade, desde cedo se manifestaram

como manifestamente insuficientes, porque, pensados para resolver situações em que

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25

a igualdade das partes está presente, não tocam no cerne dos problemas gerados nas

situações de desigualdade real entre as partes de um contrato.

O reconhecimento desta situação leva o Estado a intervir em proteção da parte que

está em inferioridade no contrato, no sentido de minorar a desigualdade efetiva dos

contraentes. E essa garantia vem a fazer-se pela via da garantia constitucional da

autonomia privada, através de um conjunto de normas que procuram abranger

situações típicas em que isso se verifica, sobressaindo nelas os direitos dos

consumidores e dos trabalhadores.

Ocupando o trabalho um papel central da vida dos humanos, quer enquanto fonte

única de rendimentos na maioria das situações, quer pelo seu relevo psicossocial, leva

a situações de facto em que a parte que não detém os meios de produção e a

estrutura organizativa que lhe está subjacente, não esteja, na generalidade das

situações, em condições de poder influir no conteúdo das cláusulas contratuais que

está a negociar, desequilíbrio esse que se acentua obviamente em conjunturas de

desemprego.

Ao impor limitações ao direito contratual laboral, através de normas imperativas, o

legislador procurou proteger o contraente mais débil e assegurar assim alguma

liberdade contratual, surge como corolário da desigualdade de facto.

Mas, acresce a este, um outro facto, não menos importante: por intermédio do

contrato de trabalho o trabalhador vai ficar numa situação de sujeição em relação à

vontade do outro contraente, que tem o poder de conformar a prestação.

É este conjunto de fatores, de ordem privada e também de ordem pública que está na

génese do Direito do Trabalho, em que o princípio da proteção do trabalhador resulta

como seu princípio fundador e trave mestra de todo a sua estrutura.

A determinação coletiva das condições de trabalho, através do papel assumido pelos

sindicatos, foi um dos instrumentos importantes na reação à desigualdade contratual

manifesta, a par da tutela constitucional desse princípio, enquanto fonte primeira e

suprema do Direito do Trabalho e também do Direito Privado.

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26

Na relação contratual laboral, o poder atribuído ao empregador, nomeadamente o

poder conformador da prestação e o poder disciplinar, condiciona necessariamente a

personalidade do trabalhador. Este sofre restrições à liberdade e ao exercício dos seus

direitos fundamentais, o que leva à necessidade que esses direitos fundamentais se

imponham e superentendam toda a relação laboral.25

Mas, na atualidade, os direitos fundamentais laborais não se confinam à relação

contratual laboral propriamente dita, mas aos direitos da pessoa humana nos seus

múltiplos planos, onde o pendor individual vai sobressaindo, não podendo a condição

de trabalhador os sacrificar a qualquer preço.

Na autonomização dogmática do direito do trabalho, são sempre salientados o

carácter pessoal e a dimensão comunitária da relação laboral.

Para alguns autores, o Direito do Trabalho é entendido como uma parcela do direito

das pessoas, dada a natureza pessoal do vínculo laboral; outros autores associam essa

pessoalidade da relação laboral ao facto de esta se destinar a uma categoria social

determinada; outros ainda realçam o facto de o Direito do Trabalho pôr em crise a

tradicional divisão entre direito público e direito privado, por se debruçar sobre um

negócio jurídico privado mas ser constituído essencialmente por normas imperativas

destinadas à proteção de uma categoria especial determinada, os trabalhadores.26

Na doutrina portuguesa, nos primeiros autores a admitirem a autonomia dogmática do

Direito do Trabalho, como Raúl Ventura27 ou Bigotte Chorão28, o princípio da proteção

ao trabalhador sobressai como princípio orientador do desenvolvimento sistemático

do normativo laboral. O Direito do Trabalho tem o princípio da proteção como

princípio que fundamenta a sua autonomia dogmática.

Este princípio é desenvolvido em diversos princípios menores, no domínio geral da

interpretação e aplicação das fontes (favor laboratoris e direito adquirido), no âmbito

25

Neste sentido, José João Abrantes, Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, obra citada pp 25 e ss.

26 Sobre esta matéria de forma desenvolvida, Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte I

Dogmática Geral, pp 470 e ss. 27

Raúl Ventura, Teoria da Relação Jurídica do Trabalho – Estudos de Direito Privado I, Porto, 1944, p 159.

28 Bigotte Chorão, Notas para um curso do direito do trabalho, Dir., 1970, p 181.

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27

do direito das situações laborais individuais (princípio da invariabilidade da prestação,

princípio da irredutibilidade da retribuição e da igualdade salarial, princípio da

irreversibilidade da categoria e da inamovibilidade e ainda o princípio da estabilidade

no emprego), bem como, no âmbito das situações laborais coletivas (princípio da

autonomia coletiva e da autotutela).29

O princípio da proteção do trabalhador é a linha que norteia todo o sentido da criação

do Direito do Trabalho, voltado para a defesa da parte, na sua esmagadora maioria

mais fraca e desprotegida na relação contratual: o trabalhador. A existência deste

princípio tutelar justifica-se pela história de séculos de dominação pelo mais forte

sobre o mais fraco, que, de tanto desequilíbrio de forças e exploração humana, levou o

Estado a intervir nas relações jurídicas de trabalho para assegurar ao trabalhador um

patamar civilizatório mínimo de dignidade humana.30

O Direito do Trabalho materializa-se nos contratos de trabalho. No plano das relações

entre trabalhador e empregador, a Constituição, tendo em vista conseguir um maior

equilíbrio na relação contratual, tanto individual como coletiva, estabeleceu princípios

mínimos de proteção em face da subordinação, jurídica e pessoal do trabalhador que a

mesma acarreta.

O princípio da proteção que esta realidade impõe e que a função da demarcação das

esferas jurídicas das partes do contrato, ganhou feição analítica na Doutrina do Direito

29

Palma Ramalho, Direito Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, p 509: “ No estádio atual de evolução dogmática do Direito do Trabalho nacional e tendo como base o respetivo sistema normativo, podem reconhecer-se três grandes valorações materiais orientadoras desta área jurídica:

- O princípio da compensação da posição debitória complexa das partes no contrato de trabalho, que tem duas vertentes: o princípio da proteção do trabalhador e o princípio da salvaguarda dos interesses de gestão;

- O princípio do coletivo, que evidencia a omnipresença do elemento coletivo na área jurídica; - O princípio da autotutela laboral, que evidencia a capacidade de sustentação do sistema laboral

em prossecução dos seus interesses e sem dependência da jurisdição exterior.” 30

Palma Ramalho, subscrevendo a posição de José João Abrantes, expressa em Contrat de travail et droit fundamentaux, - contribuition à une dogmatique comunne européenne, avec référence special au droit portugais, Frankfurt am Main, 2000, entende que “a eficácia dos direitos fundamentais no domínio laboral justifica-se, em primeiro lugar, pela componente de poder que inere ao vínculo de trabalho, como correspondente da situação de subordinação do trabalhador. Sendo o elemento de poder ou de autoridade que justifica, genericamente, a imposição de direitos fundamentais no âmbito de vínculos de natureza pública, justificar-se-á idêntica aplicação noutros vínculos que contenham idêntica componente de autoridade, independentemente da sua natureza pública ou privada, uma vez que a invocação direta dos referidos direitos num contexto privado serve exatamente como limite àquele poder.” Direito Trabalho, obra citada, p 175.

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do Trabalho, tradicionalmente concretizada à volta de três postulados: a) In dubio, pro

trabalhador; b) regra da aplicação da norma mais favorável; c) regra da condição mais

benéfica.

Este princípio da proteção é aquele que resulta em primeira linha do Direito

Constitucional do Trabalho, entendendo-se como tal o conteúdo do conjunto de

normas com o seu objeto vertidas na Constituição, e que desdobram nos artigos 53º a

57º inseridas no Capítulo III do Título II, sob a epígrafe Direitos, Liberdades e Garantias,

e nos artigos 58º e 59º, inseridas no Capítulo I do Título III, sob a epígrafe Direitos e

Deveres Económicos.

Com este conjunto de regras, foi constitucionalizado um programa mínimo de

proteção do trabalhador, preservando a sua dignidade e visando a melhoria da sua

condição social, 31não podendo deixar de se ter em conta, também o disposto no

artigo 18º, nº 3 onde o legislador constituinte dispôs que “As leis restritas de direitos,

liberdades e garantias têm de revestir carater geral e abstrato e não podem ter efeito

retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos

constitucionais.” 32

A Constituição portuguesa ao incluir expressamente a livre iniciativa entre os seus

princípios (artigo 61º da CRP), simultaneamente conformou-a ao constranger a relação

31

“(…) de modo direto e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas. Mas quase todos os outros direitos, ainda quando projetados em instituições, remontam também à ideia de proteção e desenvolvimento das pessoas.” Jorge Miranda, A Constituição e a Dignidade da Pessoa Humana, in Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais, Principia Editora, 2006, p 470.

Acrescenta ainda o Autor, a partir daquilo que ele considera a consciência jurídica portuguesa da dignidade da pessoa humana e dos diferentes preceitos constitucionais, se pode sintetizar de entre as seguintes diretrizes básicas:

“a) A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; (…)

h) A dignidade pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas”. P 472.

32 Palma Ramalho, a propósito da importância do Direito do Trabalho constitucionalizada, escreve:

“Encontrando-se a Constituição no topo da hierarquia normativa, os princípios e normas que ela consagra, na matéria que nos ocupa, têm importância a três níveis: ao nível legislativo, porque condicionam genericamente a produção normativa infra-constitucional; ao nível da interpretação e aplicação das normas laborais, porque funcionam como critérios gerais nessa interpretação; e, no que respeita às normas percetivas se reporta, pelo vigor da sua imposição a entes públicos e privados, suscitando-se, designadamente quanto a este último âmbito, a vexata quaestio da eficácia horizontal ou privada das normas constitucionais.” Direito Trabalho, obra citada, pp 166-167.

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29

poder-sujeição decorrente do exercício dessa liberdade, o que criou a necessidade

histórica e a necessidade lógica da concomitante afirmação da proteção do trabalho

positivada no artigo 58º da CRP, através da consagração do direito ao trabalho, a par

de outros direitos que constituem o conteúdo mínimo da proteção do trabalhador na

relação laboral, expressos nomeadamente no artigo 59º da CRP.

A tutela outorgada pelo princípio da proteção vai para além do direito material do

trabalho, estendendo-se ao direito processual do trabalho, nomeadamente quanto ao

ónus da prova e celeridade processual, atendendo à situação real das partes e à

natureza da relação jurídica.33

2.2.1 O princípio do favor laboratoris como manifestação do princípio da proteção

O significado essencial do favor laboratoris, enquanto expressão do princípio

fundamental de proteção e norteador da aplicação das normas juslaborais – princípio

basilar e clássico do Direito do Trabalho consagrado no revogado artigo 13º, nº 1 da

LCT, desdobra-se nas seguintes preposições:

a) O Direito do Trabalho consiste num ordenamento de caráter protetivo e

compensador da assimetria típica da relação laboral;

b) Esta função tutelar do Direito do Trabalho é cumprida através de normas que, em

regra, possuem uma natureza relativamente imperativa (normas imperativas mínimas

ou semi-imperativas, normas de ordem pública social);

c) Daqui decorre que, no tocante às relações entre a lei e a convenção coletiva, o

princípio da prevalência hierárquica deve articular-se com o princípio do favor

laboratoris, ou seja, em princípio o regime convencional poderá afastar-se do regime

legal, desde que a alteração se processe in meliu e não in pejus;

33

Palma Ramalho também reconhece a importância atual do princípio da proteção ao trabalhador no sistema jurídico-laboral português, mas recusa a qualificação deste princípio como valor fundamentante do Direito ao Trabalho, colocando-o a par do princípio da salvaguarda dos interesses de gestão do empregador, classificando ambos os princípios como vertentes paralelas do princípio da compensação. Direito Trabalho, obra citada, p 519.

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30

d) Trata-se, pois, de uma técnica de resolução de conflitos entre a lei e a convenção

coletiva, pressupondo que, em princípio, as normas juslaborais possuem um caráter

relativamente imperativo, isto é, participam de uma imperatividade mínima ou de uma

«inderrogabilidade unidirecional»;34

Trata-se de duas faces da mesma moeda: favor laboratoris e imperatividade mínima

das normas juslaborais.

O artigo 13º, nº 1 da LCT fixava a diretriz fundamental em matéria de relacionamento e

coordenação entre a lei e a convenção coletiva, ao prescrever que «as fontes de direito

superiores prevalem sempre sobre as inferiores, salvo na parte em que estas, sem

oposição daquelas, estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador».

O favor laboratis sofreu uma alteração substantiva com o Código de Trabalho de

2003.35

O artigo 4º, nº 1 do CT2003, preceitua que «as normas deste Código podem, sem

prejuízo do disposto no número seguinte, ser afastadas por instrumento de regulação

coletiva de trabalho, salvo quando delas resulte o contrário».36

O número 1 deste artigo traduziu-se num atestado de óbito do favor laboratoris

relativamente à contratação coletiva, dele se extraindo que, em princípio, o Direito do

Trabalho legislado possui um caráter facultativo. Daqui resulta um Direito de Trabalho

neutro, não protetor, em que o Estado recua e abandona a definição de trabalho à

autonomia privada.

Face ao contrato individual o critério já era outro, conforme se extraía do número 3

daquele artigo 4º: «As normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de

34

João Leal Amado, Contrato Trabalho, obra citada, p 38. 35

“Se esta norma do art.º 4º/1 não for inconstitucional, deixará de valer neste ramo de direito, como diretriz ou linha de orientação geral, a regra atualmente vigente segundo a qual, de entre várias normas, do mesmo ou de diferente nível hierárquico, aplicáveis a um dado caso, deverá optar-se pela que for mais favorável ao trabalhador.” Jorge Leite, Código do Trabalho – algumas questões de(in)constitucionalidade, in Questões Laborais, Ano X – 2003, nº 22, p 271.

36 O princípio do tratamento mais favorável é ainda objeto de outras referências ao longo do

Código de Trabalho, como no nº 4 do art. 3º, a propósito da relação entre as normas legais e o contrato de trabalho; no art. 476º, a propósito da relação entre os instrumentos de regulação coletiva de trabalho e o contrato de trabalho; no art. 503º, nº 3 sobre a sucessão de convenções coletivas de trabalho; nos artigos 7º, nº 1 e 8º, nº 1 a propósito de conflitos de leis laborais no espaço.

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31

trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se

delas não resultar o contrário».

Com o CT2003, o legislador reformula o esquema de imperatividade das normas do

trabalho, passando a haver:

a) Normas imperativas de ordem pública legal que se subdividem em: i)

imperativas absolutas – que não podem ser afastadas sem em sentido mais

favorável nem em sentido menos favorável aos trabalhadores; ii) imperativas-

máximas – que podem ser afastadas em sentido menos favorável ao

trabalhador; e iii) imperativas-mínimas – que podem ser afastadas em sentido

mais favorável ao trabalhador.

b) Normas convénio-dispositivas – que podem ser modificadas por convenção

coletiva, mesmo em sentido menos favorável para o trabalhador, mas não por

contrato individual; e

c) Normas supletivas – que podem ser afastadas por contrato individual de

trabalho.

Com o CT2003, passa a poder alterar-se o contrato de trabalho por convenção ou

acordo coletivo in pejus.37

Segundo Monteiro Fernandes,38 “Deixa de constituir referencial interpretativo (…) O

ponto de partida da operação interpretativa-qualificativa incidente sobre a norma

legal já não é a presunção de que essa norma admite variação em sentido mais

37

No Acórdão nº 306/2003 do TC, publicado no DR, I-A, de 18-07-2003, afirma a Juíza Conselheira Maria Helena Brito, no seu voto de vencida a propósito do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador: “(…) não tenha consagração num preceito constitucional determinado(…) não pode deixar de se considerar um elemento estruturante da Constituição laboral portuguesa. A Constituição Portuguesa rejeita um modelo liberal e intervém diretamente no mundo do trabalho, definindo um estatuto social mínimo cujo respeito impõe não apenas às entidades privadas, mas também às entidades públicas, e, desde logo ao próprio legislador. (…) Ora, a meu ver, do princípio do Estado Social consagrado na Constituição Portuguesa é possível retirar o ‘princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador’. Tal significa que as várias normas injuntivas constitucionais no domínio laboral devem ser interpretadas no sentido de que estabelecem uma tutela mínima, isto é, ao Estado cabe definir e garantir um programa, que os destinatários podem concretizar, melhorando, mas não piorando, as condições que derivam da lei. (…) Assim, mal se compreenderia que as medidas adotadas pelo Estado, por exemplo para assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nos termos do artigo 59º, nº 2 da CRP, pudessem depois ser afastadas por instrumentos de regulamentação coletiva menos favoráveis.”

38 António Monteiro Fernandes, Direito Trabalho, 13ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, p 124)

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32

favorável ao trabalhador, mas a de que admite variação em qualquer dos sentidos. Tal

presunção só é afastada se da norma legal resultar inequivovamente que nenhuma

variação é legítima, ou que só o será num dos sentidos possíveis».

Para José João Abrantes e Helena Brito a inflexão normativa do art. 4º do CT2003

configura uma inconstitucionalidade material, porque o ordenamento jurídico nacional

passa a albergar no seu seio normas cujo conteúdo conflitua com o entendimento

exposto de garantia do favor laboratoris na CRP.

Também João Leal Amado identifica a consagração constitucional de um princípio do

tratamento mais favorável do trabalhador, nomeadamente no art.59º, nº 2 da CRP,

que estabelece também um dever de o legislador laboral assegurar um conjunto de

direitos mínimos intangíveis, que com a redação dada ao novo art. 4º do CT2003

parece representar uma desregulação, retraindo-se o legislador da sua missão ao abrir

um espaço mais amplo de ação à negociação coletiva. Defende também que o art. 4º

do CT2003 representa “um verdadeiro atestado de óbito” do princípio do favor

laboratoris relativamente às Convenções Coletivas, porque daquela se retira a

natureza tutelar do Direito do Trabalho cedeu terreno face a um Direito mais neutro,

em que o Estado cede a sua missão tradicional de definição das condições de trabalho

à autonomia coletiva. Por conseguinte, tornando-se mais flexível, tornou-se

simultaneamente menos garantístico.

O Tribunal Constitucional no Acórdão nº 306/2003, de 25 de Junho, considerou a

norma do CT2003 constitucional.

Pedro Romano Martinez, que conduzia a questão a um conflito hierárquico de normas,

o qual devia ser resolvido de acordo com as regras gerais, no âmbito da LCT, entende

hoje que este princípio deve apenas ser entendido numa perspetiva histórica, sem

aplicação prática.39

39

Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, I Volume, Parte Geral, Lisboa, 1998, p 342 e Direito do Trabalho, Almedina, 2010, 3ª Edição, pp 238 e 239: “O princípio do tratamento mais favorável tem, contudo, de ser entendido no contexto atual. Hoje, o direito do trabalho, autonomizado do direito civil, continua a privilegiar a proteção do trabalhador subordinado, mas com normas próprias. As normas de direito do trabalho foram elaboradas tendo em vista a proteção do trabalhador, e com elas constituem, em si, um sistema coerente, retomar a ideia tradicional do favor laboratoris é um contrassenso.”

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33

Já para Palma Ramalho, este princípio tradicinal do Direito do Trabalho mantém-se

atuante ainda hoje e tem múltiplas aplicações, em sede de interpretação do contrato

do trabalho e das fontes laborais e como critério de resolução do conflitos de fontes

no tempo, no espaço e hierárquicos.40

Tendo o princípio da proteção alcançado um patamar constitucional e constituído a

essência do Direito do Trabalho, o princípio do favor laboratoris não é mais do que

uma manifestação deste princípio.

A imperatividade das normas do Direito do Trabalho só assumem este caráter em

razão deste princípio potestivo, não havendo outro princípio fundamental que o

suporte e legitime.

É nossa opinião que a imposição imperativa de normas legais mais desfavoráveis a

trabalhadores abrangidos por convenções ou contratos individuais de trabalho mais

favoráveis, viola este princípio fundamental.41 E viola também o art. 18º, nº 3 da CRP.

Ao nível da lei, encontram-se também diversas aceções ou projeções do princípio da

proteção ao trabalhador, e que são a razão do seu tratamento doutrinário como

princípios laborais, ainda que com um âmbito mais restrito, como: a) a garantia da

irredutibilidade da retribuição, que impede a respetiva redução pelo empregador (CT,

art. 129º, 1, d)); b) a garantia da irreversibilidade da categoria, que limita fortemente a

descida de categoria do trabalhador (CT, art. 129º, 1, e) e art. 119º); c) a garantia da

invariabilidade da prestação, que limita a possibilidade de fazer variar a prestação de

trabalho (CT, art. 118º, 1); d) a garantia da inamovibilidade, que abrange o local de

40

Palma Ramalho, Direito Trabalho, I, obra citada, p. 501. 41

“O Código do Trabalho desenvolve no domínio laboral as regras gerais em matéria de aplicação da lei no tempo: assim aplica-se a nova lei aos contratos de trabalho e aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho em execução e em vigor, bem como aos entes laborais coletivos existentes, mas ressalvam-se as situações jurídicas decorrentes de factos pretéritos. Por outro lado, e tal como já decorria do CT 2003, não há referências ao carácter mais favorável do regime anterior como condição para a sua ressalva pela lei nova.

No entanto, a aplicação prática destas regras não se tem revelado fácil por força de conjugação de dois fatores: a dificuldade em determinar o que seja uma «situação totalmente passada» para efeitos de não sujeição ao Código, tendo em conta que muitas situações e direitos laborais são de formação lenta e nem todos são ressalvados expressamente; e a circunstância de o Código do Trabalho ter entrado em vigor no decurso do ano civil, quando aquelas situações jurídicas se encontravam em formação. Em suma, esta matéria não é isenta de dúvidas.” Palma Ramalho, Direito Trabalho, obra citada, p. 289.

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34

trabalho (CT, art. 129º, 1, f) e art. 194º); e) as garantias inerentes ao exercício de atuar

no âmbito do poder disciplinar (CT, arts. 329º a 331º).

As alterações legislativas em curso ao CT2009 vão mais longe, impondo

imperativamente normais legais menos favoráveis ao trabalhador, revogando quer

convenções, quer normas do contrato individual de trabalho em vigor in pejus,

consagrando não só o afastamento deste postulado enquanto manifestação do

princípio da proteção entendido como princípio fundamental do Direito do Trabalho,

como pondo em crise o próprio princípio quando conformado pelo número 3 do artigo

18º da CRP.

A verdade é que no plano Comunitário, está consagrado o princípio da norma social

mínima o que, atento o seu primado, suscitará problemas de articulação com o direito

interno.

2.2.2 O Direito ao Trabalho e o princípio da segurança no emprego

Uma das manifestações mais significativas do princípio da proteção do trabalhador e

que interfere diretamente como o direito ao trabalho é o princípio da segurança no

emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa42 e ainda a tutela da

personalidade no domínio laboral.

Preceitua o art. 53º da CRP que “é garantida aos trabalhadores a segurança no

emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos

ou ideológicos.”

O artigo 53º da CRP, tal como as restantes normas constitucionais precetivas, por força

do art. 18º, nº 1 da CRP são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e

privadas, razão pela qual, nas relações laborais, mesmo na falta ou insuficiência da

legislação ordinária, as normas constitucionais que respeitem a direitos, liberdades e

42

No mesmo sentido Palma Ramalho, a qual salienta “ a sua importância decisiva para o equilíbrio global do sistema jus laboral e o facto de ser, direta ou indiretamente, responsável pela evolução de outros regimes laborais – como, por exemplo, o regime do período experimental e o regime do contrato de trabalho a termo – bem como algumas tendências perversas do atual sistema laboral (…).”, obra citada, p 515.

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garantias dos trabalhadores, sendo precetivas – como a segurança no emprego -, são

aplicáveis às entidades patronais. Acresce que as leis de revisão constitucional terão de

respeitar o direito do trabalhador à segurança no emprego, conforme art. 288º, alínea

e) da CRP, constituindo limites materiais da revisão.

Este preceito tem uma das suas restrições quanto aos despedimentos por justa causa

por motivos políticos ou ideológicos precisamente na Lei dos Partidos Políticos,43 onde

o nº 1 do art. 38º manda aplicar às relações laborais entre os partidos e os seus

funcionários as leis gerais do trabalho e, no nº 2 do mesmo artigo, considera como

justa causa para o despedimento a infidelidade política ou ideológica.

São manifestações deste princípio fundamental na legislação laboral44, as limitações ao

trabalho precário – através da tipificação das situações em que é possível recorrer à

contratação a termo45, ao trabalho temporário46 ou à comissão de serviço47 -, as

limitações à modificação do contrato – quer quanto ao horário de trabalho48, ao local

de trabalho49, à natureza da prestação50, a suspensão ou redução da atividade

laboral51, alteração do cálculo da retribuição52-, e as limitações à cessação do contrato

de trabalho.53 54

O regime da cessação do contrato de trabalho tem uma natureza imperativa,

conforme 339º do CT2009 e a natureza do seu regime é uma consequência direta do

princípio fundamental da segurança no emprego constitucionalmente prevista.

43

Lei Orgânica nº 2/2003, de 22 de Agosto, posteriormente alterada pela Lei Orgânica nº 2/2008, de 14 de Maio.

44 De forma desenvolvida, Romano Martinez, “Trabalho e Direitos Fundamentais, compatibilização

entre a Segurança no Emprego e a Liberdade Empresarial”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, Edição da Faculdade de Direito de Lisboa e distribuída pela Coimbra Editora, 2010, pp 241 e ss.

45 CT2009, arts. 139º e ss.

46 CT2009, arts. 172º a 192º

47 CT2009, arts. 161º a 164º.

48 CT2009, art. 217º

49 CT2009, arts. 129º, alínea f), 194º e 196.

50 CT2009, art. 120º

51 CT2009, arts. 194º e ss.

52 CT2009, art. 129º, alínea d)

53 CT2009, arts. 338º e ss.

54 Sobre a cessação do contrato de trabalho, ver a monografia de Ricardo Nascimento (tese

mestrado), Da Cessação do Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 2008, onde trata a resolução por justa causa a pp 164 e ss.

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36

Nos termos da lei, a resolução do contrato pelo empregador depende da existência de

justa causa, cujas situações objetivas e subjetivas estão tipificadas na lei.

Romano Martinez, num estudo realizado sobre o direito fundamental à segurança no

emprego versus o direito fundamental à liberdade de iniciativa económica,

entendendo que o direito à segurança no emprego e o direito de propriedade privada,

principalmente na sua vertente da liberdade empresarial, art. 61º, nº 1 da CRP, estão

muitas vezes em rota de colisão, sendo ambos direitos fundamentais que ocupam a

mesma posição hierárquica, nenhum prevalecendo sobre o outro55, conclui que o

Código de Trabalho na sua versão de 2009 estabeleceu um equilíbrio, admitindo

limitações recíprocas: “A harmonização entre a segurança no emprego e a liberdade

empresarial implica restrições em ambos os direitos; equilíbrio que, contudo, pode

suscitar dúvidas de perfeita compatibilização entre tais direitos, porque nota-se uma

diferença significativa em dois momentos: execução e cessação do contrato. Na

realidade, durante a execução do contrato de trabalho, tendo em conta os diversos

meios conferidos ao empregador de adaptar as regras contratuais às necessidades

empresariais, dir-se-á que foi dado especial relevo aos direitos de propriedade privada

e à liberdade de iniciativa económica, sem descurar a segurança no emprego; de modo

diverso, na fase de cessação do contrato de trabalho, com exceção do despedimento

coletivo, o enfoque é quase exclusivo para a segurança no emprego em detrimento da

liberdade de iniciativa económica, podendo entender-se que, na solução legal, foi dada

prevalência ao primeiro dos direitos mencionados. Dito de outro modo, verifica-se que

a segurança no emprego, constante do art. 53º da CRP, não obstante o seu âmbito ser

mais amplo, é entendida primordialmente como modo de obstar à cessação do

contrato de trabalho.”56

As alterações agora aprovadas ao Código de Trabalho incluem o alargamento do

elenco de situações de justa causa que permitem a resolução do contrato,

nomeadamente por inadaptação, o que pode implicar o desfazer do equilíbrio a que

alude o Professor Romano Martinez, bem como o enfoque prevalecente do princípio

55

Romano Martinez, Trabalho e Direitos Fundamentais, compatibilização entre a Segurança no Emprego e a Liberdade Empresarial, já citado, p 241

56 Romano Martinez, Trabalho e Direitos Fundamentais, compatibilização entre a Segurança no

Emprego e a Liberdade Empresarial, já citado, p 285.

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fundamental da segurança do emprego em «obstar à cessação do contrato de

trabalho».

A tutela da personalidade prende-se necessária e diretamente com a disciplina do

contrato laboral, a qual implica a alienação da liberdade do trabalhador na

subordinação jurídica.

A relação laboral gera um conjunto complexo de direitos e obrigações com uma

especial aptidão para condicionar o exercício de direitos fundamentais do trabalhador,

desde logo o direito de liberdade, valor fundamental do ordenamento constitucional,

debilitando-o.

Hoje a eficácia dos direitos e liberdades fundamentais nas relações jurídicas de direito

privado é exigida, por um lado, pela dignidade da pessoa humana tal como é

concebida no Estado Social de Direito e, por outro lado, pela dimensão objetiva

atualmente reconhecida àqueles direitos.

Os direitos que a Constituição reconhece aos indivíduos como direitos fundamentais

constituem princípios objetivos da ordem jurídica civil, ou seja, o reconhecimento a

esses direitos de uma dimensão objetiva, deixando de ser apenas direitos subjetivos de

defesa perante os direitos do Estado. Trata-se de princípios vinculantes tanto para o

Estado como para os particulares, princípios válidos para todas as relações sociais

estabelecidas.

O artigo 18º, nº 1 da CRP estabelece que “os preceitos constitucionais respeitantes aos

direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades

públicas e privadas.”

A liberdade de empresa, base dos poderes patronais, também se encontra

constitucionalmente tutelada, e, por isso, o exercício pelo trabalhador dos seus

direitos fundamentais também não pode afetar a finalidade principal da empresa nem

gerar o incumprimento do contrato de trabalho, devendo antes a sua eficácia

harmonizar-se com outros princípios e valores, tais como a liberdade negocial, a boa-

fé, o cumprimento pontual dos contratos, entre outros.

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O desafio ao qual, quer o legislador quer o aplicador do direito deve atender é o da

otimização de todos os direitos e de todos os valores constitucionais em conflito,

nomeadamente a mais ampla liberdade civil do trabalhador e (igualmente) a mais

ampla autonomia contratual, a levar a cabo através da atuação de um princípio de

proporcionalidade, adequação e proibição do excesso.

O caráter privado do contrato de trabalho não lhe retira a sujeição à ordem

constitucional e, por isso, a lógica que lhe está subjacente terá sempre por limites a

dignidade humana e os direitos fundamentais. Estes constituem barreiras

inultrapassáveis ao poder de direção do empregador e à correlativa subordinação

jurídica do trabalhador, que não podem limitar arbitrariamente esses direitos,

constitucionalmente garantidos.

O poder de direção do empregador não pode impor restrições estritamente finalizadas

e necessárias ao bom funcionamento da empresa e à correta execução do contrato, no

que respeita ao direito de liberdade do trabalhador, princípio que deve limitar a

possibilidade de conformação da prestação pelo empregador.

Como afirma José João Abrantes: “A autonomia privada e a liberdade contratual não

são valores absolutos, antes aparecem subordinados pela Constituição ao projeto de

ordem social assente na dignidade da pessoa humana, a verdadeira pedra angular da

unidade do sistema jurídico, com a sua principal concretização no respeito pelos

direitos fundamentais.” 57

57

José João Abrantes, Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, obra já citada, p 204.

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SESSÃO 3. DIREITO AO TRABALHO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

3.1 Contornos e amplitude do normativo constitucional

A CRP prescreve no seu artigo 58º, nº1 que “todos têm direito ao trabalho”.

Ainda que inserido como um direito económico, este preceito constitucional tem por

objeto acima de tudo um direito fundamental social. De acordo com a posição já

anteriormente exposta, temos em mente a noção de que o titular do direito

fundamental tem condições de pleitear judicialmente o seu interesse, que está

juridicamente tutelado perante aquele que é o destinatário do direito, ou seja, aquele

que tem a obrigação de prestá-lo. Quando o direito prestacional em questão é o

direito ao trabalho, torna-se complexa a definição de quanto eficaz poderá ser esse

direito, uma vez que a resposta passa pela positivação que lhe foi dada no texto

constitucional e, principalmente, nas especificidades do seu objeto e âmbito de

proteção.

Os direitos sociais têm por objeto a conduta positiva, um agir, ou seja, promover uma

prestação de natureza fáctica. No entanto, é difícil concretizar no que se traduz o

objeto da prestação do direito social.

Como podemos então definir o objeto do direito fundamental ao trabalho? Dele

decorre um direito apto a ser pleiteado jurisdicionalmente? Se assim não for, essa

impossibilidade retira o seu caráter fundamental ou podemos defender que um direito

subsiste ainda que não tenha capacidade jurídica na sua imposição por meio de

demanda judicial?

Se considerarmos apenas o texto literal e a classificação tradicional dos direitos

fundamentais pelo seu objeto,58 o facto de a Constituição Portuguesa definir o direito

ao trabalho como um direito social não permite uma interpretação muito além da

ideia unanimemente recusada do “direito a um posto de trabalho”.

58

Por nós já afastada na Sessão anterior

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40

Tomando-se como base o objeto do direito, pode-se dizer que o mesmo pode

prescrever tanto uma ação positiva como uma ação negativa. Utilizando-se um

exemplo clássico, “todos têm direito à vida, a ação do destinatário pode ser através de

uma omissão, ou seja, o sujeito tutelado pelo direito tem frente ao Estado o direito de

que este não o mate, ou ainda mediante uma ação positiva, o sujeito tem frente ao

Estado direito que este crie mecanismos para proteger a sua vida frente a intervenções

de terceiros.

Assim, considerando o Estado como destinatário do objeto e quando este visar uma

conduta de omissão (ou direito de ação negativa), estamos perante os chamados

direitos de defesa. Por outro lado, quando do objeto decorra uma ação positiva,

estamos perante os direitos a prestações de facto.

Os direitos dos cidadãos a ações negativas por parte Estado podem dividir-se em três

grupos, sendo o primeiro o direito a que o Estado não impeça ou crie obstáculos a

determinadas ações do titular do direito; o segundo por direitos a que o Estado não

afete determinadas propriedades ou situações do titular do direito; e o terceiro por

direitos que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do

direito59. O primeiro grupo determina que o Estado não frustre as ações do titular do

direito, pois este tem frente ao Estado um direito a que este não lhe impeça a

realização de determinada ação. O segundo grupo determina que o dever do Estado

não está apenas em não afetar determinadas propriedades ou situações do titular do

direito, pelo que o sujeito tem frente ao Estado um direito a que este não afete a sua

situação relativamente àquele direito. No que concerne ao terceiro grupo, este

contém o direito do Estado não eliminar determinadas posições jurídicas do titular do

direito. Tais posições jurídicas são determinadas pelas normas correspondentes, pelo

que o direito do cidadão frente ao Estado está centrado no facto de que este não

suprima determinadas normas, ou seja, o sujeito tem direito frente ao Estado que este

não elimine a sua posição jurídica.60 61

59

Robert Alexy, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, tradução de Virgílio Afonso da Siva, São Paulo, Malheiros Editora, Lda., 2008, pág. 189.

60 O artigo 53º da CRP, ao estabelecer a proibição dos despedimentos sem justa causa, confere um

verdadeiro direito à estabilidade no emprego que se reflete diretamente no regime jurídico do despedimento consagrado na lei ordinária.

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Os direitos dos cidadãos a ações positivas do Estado podem ser divididos em dois

grupos, considerando ser o objeto de uma ação fáctica ou uma ação normativa.

O direito fundamental como um todo é um objeto bastante complexo, está composto

de elementos com uma estrutura bem definida, ou seja, as distintas posições do

cidadão frente ao Estado, das quais se depreendem relações de precisão, relações de

meio/fim e relações de ponderação.

Assim, percebe-se quão árdua pode ser a tarefa de delimitar qual seria o objeto

tutelado pelo artigo 58º, nº1 da nossa Constituição no tocante ao direito fundamental

ao trabalho. Numa escala de interpretações possíveis podemos ir desde o direito

utópico a dar a cada indivíduo um trabalho, independentemente do tempo e lugar, até

ao direito compensatório de receber ajuda em caso de desemprego. Portanto como

poderemos delimitar a sua abrangência?

Não é tarefa simples responder à questão, uma vez que não estamos perante um

direito único, mas sim, de acordo com Gomes Canotilho62, um complexo de posições

jus fundamentais, isto é, de n posições jurídicas definitivas e prima facie (regras e

princípios) que, não obstante, integrarem a ideia do direito ao trabalho, podem muito

bem funcionar autonomamente.

O direito fundamental como um todo é um direito que se pode colocar em qualquer

das posições jus fundamentais acima referidas, ou seja, liberdade jurídica, direito a

ações negativas e do direito a ações positivas.

Partindo-se do princípio que o direito ao trabalho é um direito fundamental como um

todo, sendo que um dos seus aspetos é ele abranger não só relações jurídicas

concretas, mas também proteger uma relação jurídica em potencial, conclui-se que o

poder público, maxime Estado, tem o dever de proteger esse direito fundamental,

inclusive proteger o sujeito que ainda não se encontra na situação de trabalhador

(apenas o é potencialmente).

61

Reconhecendo o carácter garantístico do artigo 53º da CRP, mas discordando sobre o seu alcance, Maria do Rosário Palma Ramalho, “Insegurança ou diminuição do emprego? A rigidez do sistema jurídico português em matéria de cessação do contrato de trabalho e de trabalho atípico”, in X Jornadas Luso-Hispano-Brasileiras, Anais, Coimbra, 1999, Almedina, p 91 e ss.

62 Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, obra já citada, p. 1286.

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Assim difícil se torna a tarefa de proteção desse direito fundamental, principalmente

pelo facto de que nem sempre se consegue dissociar o trabalho prestado da dignidade

do Homem que o produz. E Kant já dizia que não se valoriza economicamente a

dignidade humana, sendo o ser humano inigualável a qualquer outro na sua essência.63

A vinculação do valor (conceitual) de trabalho com a dignidade humana será melhor

analisada posteriormente no nosso trabalho.

Concluindo, do Estado pode ser exigida a proteção e promoção do direito fundamental

ao trabalho em todas as suas esferas, através de políticas públicas, elaboração de

normas jurídicas ou repressão de ações que visem o seu incumprimento, conforme

podemos depreender das diversas normas do texto constitucional.

Desta feita, na árdua tentativa de delimitar o objeto do direito fundamental ao

trabalho, analisaremos as distintas dimensões que podem dele ser extraídas, seguindo

de perto a classificação elaborada pela doutrina constitucional, proceder-se-á à análise

do direito fundamental enquanto direito de defesa, impondo um dever de omissão por

parte do Estado, bem como enquanto direito prestacional em sentido amplo (incluindo

os direitos de proteção, organização e procedimento) e em sentido estrito (direito a

prestações materiais).

No entanto, antes de entrarmos nesta temática das distintas dimensões que se pode

extrair do Direito Fundamental ao Trabalho, cabe uma reflexão relativamente a quem

são os seus titulares e sujeitos destinatários.

3.2 Sujeitos titulares e sujeitos destinatários do DIREITO FUNDAMENTAL ao

TRABALHO

Jorge Miranda64 defende que não é suficiente que um direito fundamental seja lesado

para que a pessoa possa reclamar, fazendo-se valer dos mecanismos providenciados

pelo ordenamento jurídico. É necessário que a pessoa em questão seja titular do

63

Luc Ferry/ Alan Renaut, Philosophie Politique, Vol. 3. P 9, citado por J J Gomes Canotilho, Estudos sobre Direitos Fundamentais, p 23.

64 Jorge Miranda, Manual Direito Constitucional, tomo IV – Direitos Fundamentais, Coimbra Editora,

3ª Edição, 2000, p 114.

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direito. Neste caso impõe-se a pergunta: Quem são os titulares do direito ao trabalho

enquanto direito fundamental como um todo?

À primeira vista, somos tentados a responder a resposta óbvia “os trabalhadores”, no

entanto é defensável que o verdadeiro titular do direito fundamental ao trabalho é a

pessoa humana, o indivíduo. A nossa Constituição não delimita a titularidade dos

direitos. Desta forma, entende-se que há uma ampliação da titularidade desse direito,

abarcando todos aqueles que mesmo que ainda não possuam o estatuto de

trabalhador, o possam ser potencialmente. Assim, o titular do direito fundamental ao

trabalho (artigo 58º da CRP) é a pessoa humana, esteja ela desempregada ou

trabalhando por conta própria ou subordinadamente, já o titular do direito do trabalho

(artigo 59º da CRP) é o trabalhador subordinado.

Ainda, se considerarmos que o trabalho é um direito reconhecido como direito

humano pela Declaração dos Direitos Humanos65, impõe-se que o perímetro da

titularidade seja restrito ao homem individual e não a um grupo de pessoas.

Defende-se, pois, a ideia de que o direito fundamental ao trabalho terá como titular o

indivíduo que puder exercer livremente o direito de trabalhar, ou seja, aquele que usar

esse direito frente a possíveis restrições do Estado.

Podemos então excluir da titularidade do direito fundamental ao trabalho o menor de

16 anos, pois tal indivíduo não é titular desse direito, pois o mesmo não tem direito de

resistência frente à limitação etária66 colocada pelo Estado.

Já os direitos sociais enunciados no artigo 59º da CRP são direitos dos trabalhadores,

isto é, qualquer pessoa que presta serviço a outrem com regularidade, subordinação,

pessoalidade e mediante remuneração. Em alguns casos a Constituição amplia, 65

Artigo 23º Artigo 23° 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e

satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à

sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.

4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

66

Artigo 55º, nº2 do Código do Trabalho – A idade mínima de admissão para prestar trabalho é de 16 anos.

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restringe ou modifica a titularidade dos direitos sociais, por exemplo, quando trata

especificamente no artigo 59º de direitos dos trabalhadores que tenham dependentes,

dos desempregados, dos aposentados, dos trabalhadores-pais, dos emigrantes e os

estudantes.

Assim sendo, pelo exposto, podemos afirmar que o titular do direito fundamental ao

trabalho é o indivíduo, a pessoa humana, maior de 16 anos que preencher os

requisitos técnicos para o exercício do ofício livremente escolhido, desde que essa

atividade seja lícita.

Já no que diz respeito ao destinatário do direito fundamental ao trabalho enquanto

direito de defesa, cabe repetir o questionamento de Canaris67 relativamente de se

saber se é apenas o Estado ou também os particulares.

Sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, sinalizamos quatro

grandes correntes.68

A chamada doutrina da state action, adotada no sistema jurídico norte-americano,

segundo a qual os direitos fundamentais somente impõem restrições aos poderes

públicos, não se aplicando às aplicações entre particulares. Esta teoria é amenizada

pela chamada public funtion theory, que admite a incidência dos direitos fundamentais

nas relações que envolvem particulares que agem no exercício das atividades próprias

do Estado.

A teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relações

privadas, que diz que a Constituição possui valores próprios, que influenciam os

princípios e regras de direito privado, o que configura a incidência daqueles somente

de forma reflexa. Nessa perspetiva, os princípios constitucionais auxiliam na

interpretação das cláusulas e dos conceitos indeterminados, uma vez observados os

princípios próprios do direito privado.

67

Claus – Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direitos Privados, tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Coimbra, Almedina, 2006, reimpressão da edição de Julho de 2003, p 73.

68

Bruno Furtado Silveira, “ A eficácia dos direitos fundamentais”, artigo publicado no Caderno Virtual, nº 21, V. 1, Jan-Jun 2010, Brasil.

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45

Outra corrente doutrinária defende que a obrigação de serem respeitados os direitos

fundamentais nas relações entre os indivíduos emana diretamente da Constituição.

Assim, as normas de direitos fundamentais presentes na Constituição impõem

condutas tanto em relação aos poderes públicos, quanto aos particulares, sem a

necessidade da intermediação do legislador ordinário.

A corrente doutrinária dos deveres de proteção, que vimos acompanhando, sustenta

que, apesar dos direitos fundamentais se aplicarem diretamente somente em relação

ao Estado, este, ao fazer emanar normas e na realização da prestação jurisdicional

deve adotar, não apenas uma postura negativa, no sentido de não violar esses direitos,

como também de protegê-los de ameaças decorrentes dos particulares.

No âmbito da doutrina portuguesa, o debate desta problemática levou à formação de

três correntes principais.

Uma que entende que a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito dos vínculos

particulares deve ser idêntica à que têm perante os entes públicos, uma vez que o art.

18º da Constituição estabelece a imediata vinculação quer de entes públicos quer de

entes privados a esta categoria de direitos, como é o caso de Gomes Canotilho.

Outra que admite a eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais apenas

naqueles vínculos privados em que uma das partes detenha uma posição de poder ou

de autoridade e com base num argumento de identidade de razão com os vínculos

públicos (Jorge Miranda69, Vieira de Andrade70, José João Abrantes71).

Por último, uma terceira corrente, com uma posição mais restritiva, considerando que

a eficácia dos direitos fundamentais não é direta mas carece necessariamente da

mediação de princípios gerais, como os princípios da boa-fé e do abuso do direito, não

só pela natureza privada dos entes jurídicos em questão e interesses em jogo, mas

69

Jorge Miranda, Manual Direito Constitucional, Vol IV, já citado, pp 286 e ss. 70

Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição, Coimbra, 2001, pp 237 e ss.

71 José João Abrantes, Contrato de trabalho e direitos fundamentais, Memórias II Congresso Direito

Trabalho, Coimbra, 1999, pp. 105-114; Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, p 227: “No domínio das relações entre pessoas desiguais, como são, por exemplo, as relações laborais, há um consenso generalizado de que, face ao referido nº 1 do art. 18º, os direitos fundamentais têm aí aplicação direta”.

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também pelos riscos de utilização disfuncional que uma posição aberta pode envolver

(Menezes Cordeiro72).

No que concerne à dimensão do direito ao trabalho enquanto direito de defesa, que

consiste em direitos de liberdade do indivíduo e que especificamente no caso do

direito fundamental são traduzidos na liberdade de escolha da atividade profissional,

tem-se como destinatário por excelência o Estado, no sentido em que este não pode

limitar o exercício da referida liberdade, havendo o que se define como limitação

material da liberdade de conformação do Estado.

Dificuldade maior se vislumbra na aceitação dos particulares como destinatários do

direito fundamental ao trabalho. Aos particulares, pessoas físicas ou jurídicas, é

admissível estipular regras que impliquem restrições à liberdade do exercício

profissional de outrem?

Canaris explica a possibilidade de extensão do alcance de destinatário dos direitos

fundamentais aos particulares através da teoria da eficácia externa imediata e a

eficácia externa mediata. Eficácia imediata traduz-se que os próprios sujeitos do

Direito Privado e não somente o Estado são destinatários dos direitos fundamentais,

tanto dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos, como dos direitos

fundamentais, na condição de normas objetivas.

Com base neste entendimento, podemos chegar à conclusão que todos os direitos

conduzem a proibições de intervenções no âmbito das relações jus privativas e a

direitos de defesa em face de outros sujeitos de direitos jus privativos, sendo supérflua

qualquer implementação do próprio sistema jurídico privado. Ao contrário, nesta

perspetiva, para cada direito fundamental estatui-se uma proibição que, em princípio,

veda a sua restrição por meio de um contrato e um direito subjetivo cuja lesão obriga,

em princípio, a indemnização pelos danos causados.

Para o autor referido em supra, tal tese não pode ser defensável, pois, se assim o

fosse, poderia tornar inócuo tanto o direito contratual como a responsabilidade

extracontratual. No entanto, o mesmo autor aduz que a Constituição alemã

72

Menezes Cordeiro, Tratado Direito Civil I (Parte Geral), tomo I, 3ª Edição, Coimbra, 2005, p 209

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47

estabeleceu a aplicação imediata de um direito fundamental nas relações entre

particulares73.

Conclui o jurista alemão afirmando que somente o Estado é destinatário dos direitos

fundamentais, ainda que esses produzam efeitos nas relações jus privativas, embora

apenas mediatamente, ou seja, os direitos fundamentais devem ser considerados na

concretização das cláusulas gerais jus civilistas. Ressalvando que os direitos

fundamentais servem, tanto para a defesa de intervenções por parte do Estado nos

bens jurídicos dos seus cidadãos, quanto para obrigar o Estado à proteção dos seus

cidadãos, caracterizando-se, pois, como “mandamentos de tutela ou deveres de

proteção”.

Esta teoria obriga o Estado a atuar positivamente, ainda que seja para proteger um

cidadão contra o outro também nas relações entre si, pois, se assim não proceder,

correrá o risco de ser co-responsabilizado, na medida em que não tenha cumprido este

dever específico de tutela.

Steinmetz74 explica esta teoria da eficácia mediata ou indireta como aquela que

sustenta que as normas de direitos fundamentais produzem eficácia nas relações entre

particulares por meio de outras normas e parâmetros dogmáticos existentes e

derivados do próprio direito privado, condicionando, em primeiro plano, a mediação

concretizadora do legislador de direito privado, através do desenvolvimento dos

direitos fundamentais por meio da criação de regulações normativas que especifiquem

o seu conteúdo, condições de exercício e alcance, e dos Tribunais em segundo plano,

mediante a interpretação e aplicação dessas regulações normativas. Jorge Miranda

complementa que a conciliação entre direitos fundamentais e direito privado, por

meio de produção indireta de efeitos do primeiro no segundo, pressupõe a ligação de

uma conceção de direitos fundamentais como um sistema de valores com a existência

de portas de entrada desses valores no próprio direito privado, que seriam cláusulas

gerais.

73

Artigo 9, parte III, alínea 2 da LF, em que é expressamente afirmada a nulidade de acordos para a restrição da liberdade de aliança entre empregados e empregadores, assim como a ilegalidade de medidas que visam tais acordos.

74 Steinmetz, citado pelo professor da Universidade de S. Paulo Virgílio Afonso da Silva, na obra A

Constituição dos Direitos, os direitos fundamentais nas relações entre particulares, 1ª Edição, 2ª tiragem, S. Paulo, Editora M, 2011, p 39.

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Este modelo de efeitos indiretos na vinculação entre os particulares é o modelo

consensualmente mais aceite entre os diversos ordenamentos jurídicos, em que o

problema da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações entre particulares é

estudado. No entanto, Steinmetz75 faz a crítica no sentido de que nem sempre as

cláusulas gerais poderão oferecer proteção suficiente aos direitos fundamentais na

vinculação entre os particulares.

No que diz respeito à teoria imediata ou de efeitos diretos, a mesma propõe a

aplicação direta de normas de direitos fundamentais nas relações entre particulares. A

eficácia não está condicionada à mediação concretizadora dos poderes públicos. Não

dependem de regulamentações legislativas específicas nem de interpretação e

aplicação judiciais. Na teoria imediata não é necessário nenhuma ação intermediária

para que os direitos fundamentais sejam também aplicáveis nas relações privadas.

As normas de direitos fundamentais conferem ao particular uma posição jurídica

oponível, não só ao Estado, mas também as demais particulares. No entanto, para

Steinmetz a eficácia imediata possui diferentes graduações. Num plano mais forte, a

eficácia é geral, plena e indiferenciada nas relações entre particulares. Num plano mais

fraco, os direitos fundamentais vinculam os particulares, mas com consideração pelas

diferenças económicas e sociais entre eles. Num plano intermédio, a eficácia entre

particulares não será ilimitada, incondicionada e indiferenciada, carecendo da

aplicação do princípio da proporcionalidade para a sua determinação.

Hoje é aceite pela doutrina dominante que as normas de direito fundamental

influenciam as relações entre particulares, tendo, neste sentido, efeito horizontal. Mas

como se dá esta influência e em que grau existe a vinculação?

Alexy76 propõe a teoria integradora, defendendo que as teorias supra descritas,

juntamente com a teoria da imputação defendida por Steinmetz77, não se excluem,

mas sim se complementam. Na teoria proposta há um modelo de três níveis, o dos

75

Obra já citada, p 54. 76

Obra, 2008, pág. 515 77

Steinmetz defende que todas as lesões a um direito fundamental entre particulares devem ser imputadas ao Estado, uma vez que a lesão é o resultado de uma permissão estatal ou da sua não proibição. Assim, o problema da vinculação dos particulares a direitos fundamentais desloca-se para o plano das relações entre o indivíduo e o Estado, plano em que opera a eficácia imediata, direitos de defesa perante o Estado.

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deveres do Estado, o dos direitos perante o Estado e o das relações jurídicas entre os

particulares. Cada um deles deve ser visto perante o caso concreto, tendo como

referência a questão da funcionalidade, sendo que nenhum deles terá prevalência

frente aos demais, e os três conduzem a um mesmo resultado, ou seja, a eficácia

imediata de direitos fundamentais nas relações entre particulares.

Resta sabermos então, se os direitos fundamentais sociais vinculam os particulares.

Tendo em conta que os direitos fundamentais sociais são direitos a algo (prestações

materiais de bens ou serviços), do destinatário exige-se uma ação. Por isso, para

grande parte da doutrina, não podemos defender a vinculação dos particulares neste

caso.

Os particulares não estão obrigados frente ao direito fundamental social ao trabalho a

criar efetivamente postos de trabalho, não é um dever jurídico-constitucional dos

mesmos propor, planear ou executar políticas sociais e económicas promotoras dos

direitos fundamentais a prestações, embora delas possam participar.

Na nossa opinião, a forma como os direitos sociais foram concebidos no nosso

ordenamento jurídico, não nos é possível negar de forma generalizada a eficácia

jurídica a esses direitos nas relações entre particulares. Os particulares aqui são

destinatários imediatos dessas normas, sendo que estas atuam com eficácia imediata.

Ora, pondo o exemplo de uma decisão proferida pelo Tribunal de Trabalho Alemão,

em 5 de Maio de 1957, que considerou nula uma cláusula contratual que previa a

extinção da relação laboral das enfermeiras que trabalhavam num determinado

hospital privado, caso eles contraíssem matrimónio. Esta cláusula foi considerada nula

por violação os artigos 1.1., 2.1. e 6.1. da Lei Fundamental Alemã.

Neste caso, os direitos fundamentais não atuam apenas como princípios de conduta

para a atividade legislativa ou como regras hermenêuticas dirigidas ao Tribunal. Mais

do que isso, são verdadeiras normas de comportamento aptas a incidirem no núcleo

das relações entre particulares.

Independentemente de existir ou não lei proibitiva ou permissiva da restrição e de o

ajuste de vontades ter sido realizado com base na autonomia privada, o caráter

normativo da CRP exige a consideração imediata dos direitos fundamentais por ela

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consagrados. Neste caso, a vinculação conduziria à materialização de uma posição

jurídica subjetiva de um particular frente a outro, quando ocorresse a violação por um

dos particulares de um comando jus fundamental estabelecido pela Lei Fundamental.

Assim, partindo-se da premissa que estamos perante um direito fundamental como

um todo, somos levados a considerar que a identificação do seu destinatário estará

vinculada à existência (ou não) de uma relação jurídica base, que sirva de ponto de

apoio para a concretização de uma das suas inúmeras formas de expressão.

Esta relação jurídica trata-se de uma relação em que os destinatários poderão ser

tanto o Estado como o particular ou, onde ambos (destinatários) poderão ser

demandados judicialmente pelo titular do direito ao trabalho, sempre que

incumprirem o objeto (ou parte dele) que for imediatamente dirigido. São essas as

hipóteses tuteladas nos artigos 58º e 59º da Constituição, em que claramente os

particulares e o Estado figuram como destinatários dessas normas.

No entanto, se estivermos perante uma relação em potência, em que a pessoa

humana não adquiriu ainda o status de “trabalhador”, aí sim, estamos perante uma

relação dual, no sentido em que ao titular do direito ao trabalho não lhe será atribuído

um direito subjetivo e, consequentemente, um direito de demandar judicialmente; o

destinatário jurídico (do objeto implícito ao direito ao trabalho) será exclusivamente o

Estado, que terá o dever de proteger o cidadão, contra qualquer medida do próprio

Estado ou de particulares que venham a obstaculizar a fruição desse direito.

Neste último caso, estamos perante a dimensão objetiva do direito ao trabalho (vista

pelo ângulo dos deveres não relacionais), o que nos conduz à seguinte conclusão:

apesar de não haver um vínculo concreto entre o titular do direito ao trabalho (neste

caso, o trabalhador em potência) e um inexistente beneficiário (jurídico e/ou fáctico)

da sua atividade, ao poder público não será permitido despir-se do papel de zelador

máximo deste direito fundamental.78

78

“(…) A garantia da segurança no emprego não se esgota na proibição de despedimentos injustificados, intervindo, não apenas quando está em causa a cessação do contrato de trabalho ou do vínculo à função pública, mas também quando se coloca o problema da subsistência ou insubsistência da relação laboral efetiva (Acórdãos nºs 285/92 e 39/97 TC) – em conjugação com a consagração do direito dos trabalhadores à ‘organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal (…)’ – art.º 59º/1/b – pois, para que o trabalhador se possa realizar, é preciso que ele possa trabalhar ou, o mesmo é dizer,

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51

Podemos deduzir que, o direito fundamental ao trabalho tem como destinatário

principal o Estado, porém não podemos ficar só por ele, porque se assim fosse, tal

elemento retiraria o conteúdo jurídico fundamental dos direitos dos trabalhadores

quando os destinatários fossem pessoas físicas ou jurídicas na condição de

empregadores.

Sendo assim, concluímos que no tocante a prestações positivas o destinatário é apenas

o Estado, porque não podemos incumbir ao particular o dever de promover o direito

ao trabalho, através da elaboração de políticas de emprego e criação de postos de

trabalho. Já no que diz respeito ao dever de abstenção, de respeito às liberdades do

titular, os particulares têm o dever de não intromissão e respeito, dever esse que os

vincula, como regra geral mediatamente e, excecionalmente, de forma imediata (como

nas hipóteses do artigo 59º CRP) também como destinatários. O Estado, ao impedir

essa violação por parte dos particulares, está a cumprir o ser dever de não permitir a

intervenção nas liberdades fundamentais.

É nosso entendimento ainda, que podem ser diretamente invocados no vínculo

laboral, todos os direitos fundamentais dos trabalhadores que relevam do princípio

geral de proteção, quer incidam na regulamentação coletiva das relações de trabalho,

quer incidam nas relações individuais do contrato de trabalho.

Podem ainda ser diretamente invocados na execução do contrato, todos os direitos

fundamentais que lhe assistem enquanto pessoa ou cidadão, tanto mais quanto está

envolvido uma situação de subordinação e de envolvimento tão acentuado da

pessoalidade do trabalhador, como é reconhecido por autores como José João

Abrantes e Maria do Rosário Palma Ramalho.79 80

que possa exercer a prestação pessoal e profissional para que foi contratado (Acórdão nº 951/96 TC).” Jorge Miranda – Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2006, p 591, anotação ao artigo 58º).

79 Ver nota 24.

80 Em sentido diferente, António Garcia Pererira, “A vioragem do século. Ocaso ou renascimento do

Direito do Trabalho”, tese de doutoramento, biblioteca UNL, pp 635-636: “O que em momentos mais recentes se acentuou foi acima de tudo a compreensão da necessidade de – face à incapacidade de um sistema normativo centralizador e assente, dentro da lógica positivo-formalista, no primado absoluto da Lei, e à crescente multiplicação de diferenciados “centros normativos” originando o fenómeno que passou a ser designado de “pluralismo jurídico” – se caminhar para o reconhecimento da diversidade e descentralização dos mecanismos e processos de regulação social, mais próximos da “horizontalidade”, ou seja, das realidades

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3.3 O Direito ao Trabalho como direito de Defesa

Os direitos de defesa definem-se como direitos que permitem aos sujeitos jurídicos

resistir a uma possível atuação do Estado. O Estado deve respeitar a esfera individual,

sendo possível ao cidadão afastar uma eventual ação invasiva do poder público,

resistindo através dos meios que o ordenamento jurídico lhe oferece. Trata-se da

proteção da liberdade do sujeito, perante a atuação do Estado, que se encontra

limitada.

Os direitos fundamentais de defesa dirigem-se a uma obrigação de abstenção por

parte do poder público, implicando para o Estado um dever de respeito para com

determinados interesses individuais, por meio de omissão de ingerências ou pela

intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob

certas condições.81

No caso do direito fundamental ao trabalho, esta liberdade protegida é a liberdade de

trabalhar.

Conforme referido em supra, a noção de trabalho está vinculada primariamente à

noção de pessoa humana, sendo o trabalho humano uma atividade incindível daquele

que o executa. Assim, analisaremos a liberdade natural de trabalhar do sujeito, no

sentido em que, seja ele subordinado ou não, existirá total liberdade para o exercício

do seu labor, desde que a sua atividade não esteja proibida e/ou condicionada por

determinadas imposições normativas.

A nossa Constituição protege a liberdade de trabalhar no artigo 47º, ao declarar que

“Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho,

crescentemente distintas e complexas, a par da crescente importância do papel de “argamassa” unificadora de um autêntico “Direito Fundamental”, do Trabalho (e não só), assente essencialmente no Direito Comunitário, no Direito Constitucional Material, na jurisprudência constitucional e no Direito Coletivo do Trabalho”.

81

“O direito à proteção jurídica é uma pretensão que qualquer titular de um direito fundamental pode exigir do Estado que o «proteja» perante agressões de outros cidadãos; um direito fundamental de defesa é um direito cujo conteúdo se traduz fundamentalmente em exigir que o próprio Estado (poderes públicos) se abstenha de intervenções coativas na esfera jurídica do particular.» J. J. Gomes Canotilho, Estudos sobre Direitos Fundamentais, p. 76.

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salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria

capacidade.”

Entende-se que o objeto de proteção na dimensão de defesa do direito fundamental

ao trabalho é a liberdade de escolha de qualquer trabalho ou profissão, sendo esta

decorrente do direito fundamental geral de liberdade. Podemos dizer que o objeto

deste direito, em sentido positivo, é o de dizer que alguém tem prima facie o direito a

escolher e exercer entre inúmeras atividades possíveis, disponíveis e legais, aquela que

entender. Em sentido negativo significa que é proibido prima facie impedir que alguém

escolha e exerça livremente uma qualquer atividade de trabalho.

A Constituição abstém-se de avançar uma definição de trabalho. Portanto, o objeto de

proteção não se cinge apenas às relações de trabalho formais, ou seja, aquelas

decorrentes do vínculo laboral, ou seja, a Constituição não reduz o conceito de

trabalho a emprego, o que amplia sensivelmente o seu objeto.

O dever prima facie que o Estado tem de não impedir o exercício de escolha de

trabalho, não se reveste, contudo, na possibilidade de o mesmo impor certas

exigências, reservas legais, que limitam a livre atuação do trabalhador. O dispositivo

constitucional supracitado aduz que a lei pode estabelecer determinadas exigências

para o exercício de uma profissão.

Assim sendo, pode o Estado impor certas exigências à liberdade de trabalho do

cidadão, desde que tais exigências se coadunem com a finalidade do Estado enquanto

guardião do bem-estar coletivo.

No entanto, o Estado tem de agir com o máximo comedimento, não podendo jamais

esquecer que o seu norte de conduta é pautado pelo dever de proteção dos direitos

fundamentais, e que, principalmente no caso do direito do trabalho, uma limitação

pode resultar num irreparável prejuízo na sobrevivência do indivíduo.

Podemos depreender que o direito fundamental ao trabalho possui não só uma

dimensão de defesa, em que o seu titular tem a garantia de exigir que o Estado se

abstenha e proteja a plena fruição do direito tutelado, mas também uma dimensão de

atuação positiva, no sentido em que o Estado deve proteger o gozo da liberdade de

trabalho contra atuações de terceiros.

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54

Jorge Miranda82 afirma que assim como, em contrapartida, o direito ao trabalho não se

pode concretizar contra a liberdade de trabalho e de profissão, o Estado não pode

impor determinada ação ou impedir determinada atividade a pretexto da realização do

direito ao trabalho.

Assim, a proteção que o Estado exerce não se resume apenas ao interesse geral” ou na

“dimensão comunitária”. O poder público é direcionado pelo interesse da pessoa

humana, do indivíduo concreto e situado, alvo de atenção especial para alcançar o

pleno desenvolvimento da sua personalidade.

3.4 O Direito ao Trabalho como direito de proteção

Assumir o direito ao trabalho como manifestação do direito de proteção significa

reconhecer neste uma posição jurídica fundamental que confere ao indivíduo o direito

de exigir do Estado que este o proteja contra a ingerência de terceiros ou contra

intervenções lesivas do próprio Estado.

Importando para o Direito do Trabalho teses do âmbito do Direito Constitucional, a

subjetivação deste dever de proteção deve ser fundamentado no âmbito dos

princípios dos direitos fundamentais, confrontados a cada momento e em cada

situação em face do contexto fáctico e jurídico.

O bem protegido não é somente o direito a um trabalho. Se a relação laboral já está

constituída, é esta que na sua esfera privada precisa ser protegida.

O objeto do direito fundamental ao trabalho, enquanto manifestação do direito de

proteção, é a relação laboral como um todo, desde o momento da pré-contratação, à

vigência do contrato de trabalho e no momento da sua cessação.

Isto significa que o poder discricionário do Estado neste campo não é total, existindo

princípios e normas ordenantes que vinculam o legislador. Esta questão coloca-se

mesmo ao nível das opções dos meios, mais ou menos eficazes, atendendo que o

82

Jorge Miranda, Manual Direito Constitucional, tomo IV – Direitos Fundamentais, p. 498

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princípio manda que se procure a melhor proteção possível em face da realidade

existente a cada momento.

O plano de intervenção do Estado no âmbito da proteção da relação laboral passa por

várias formas, desde a proibição do despedimento arbitrário ou sem justa causa, à

determinação da reintegração do trabalhador ilicitamente despedido, promovendo a

sua efetividade e proibindo a sua funcionalização.

Um outro plano ou manifestação do direito ao trabalho consiste na obrigação de

indemnizar em montante justo sempre que na sua base está um despedimento ilícito,

sob pena de, com compensações baixas se obter o seu contrário, ou seja, de consagrar

uma restrição do direito ao trabalho do (já) trabalhador, enquanto direito subjetivo.

Em cada situação concreta em que estejam em confronto dois princípios

constitucionais: o da livre iniciativa do empregador e o do direito ao trabalho, em que

um vai conformando o outro, sendo que este último princípio deve prevalecer sempre

que estiver em causa na situação concreta uma manifestação do princípio da proteção

do trabalhador escorado na dignidade da pessoa humana, como valor fundamental

ordenador do todo o edifício jurídico do Estado Social e Democrático.83 84 85

O direito ao trabalho como direito fundamental com dimensão suficiente para

assegurar a dignidade da pessoa humana exige ao Estado que atue positivamente na

83

Um dos múltiplos aspetos que imana do direito ao trabalho como direito fundamental protegido é o direito a um salário digno. Sendo o salário o meio pelo qual o trabalhador consegue os meios financeiros para a sua manutenção, o mesmo não se confina a uma dimensão patrimonial, tendo também uma dimensão alimentar. É aqui que entra, por exemplo, em face do poder de tributação do Estado ou nas execuções por dívidas, a um mínimo para viver, normalmente associado ao rendimento mínimo garantido.

Esta característica alimentar do salário não deixa de revelar uma faceta útil importante sempre que o empregador entra dolosamente em incumprimento, nomeadamente pela possibilidade dessa conduta poder vir a subsumir uma natureza criminosa.

84 No sentido do direito ao trabalho se fundar na dignidade da pessoa humana, Acórdão nº 635/99

do TC. 85 Com entendimento diferente, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho,

Verbo, 2011, pp 236-237: ““a consagração muito ampla dos direitos dos trabalhadores na lei

fundamental e a falta de válvulas de escape constitucionais para situações de emergência económica dificultam qualquer reação rápida do Estado às crises e submete a legislação de exceção a este propósito a um controle de proporcionalidade, em que o TC se tem igualmente manifestado muito estrito, o que ocasiona os problemas inerentes à falta de vocação de um tribunal para apreciações deste tipo”.

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56

promoção de políticas públicas de emprego, no auxílio ao desemprego e na formação

profissional.86

A chamada reserva do financeiramente possível não é elemento integrante dos

direitos fundamentais, não é parte do seu núcleo essencial, nem se enquadra e integra

nos limites imanentes dos direitos fundamentais. A reserva do financeiramente

possível deve apenas atuar como limite fáctico e jurídico dos direitos fundamentais.

Para que o direito ao trabalho tenha realização enquanto manifestação de dignidade

da pessoa humana a Constituição confere, nos artigos 53º e 59º da CRP, um conjunto

de direitos aos trabalhadores, sendo de uma grande relevância na sua efetivação a

segurança na relação laboral estabelecida, nomeadamente ao restringir as situações

em que se admite a resolução do contrato de trabalho.

3.4.1 A dignidade da pessoa humana como núcleo duro do direito fundamental ao

trabalho

A dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais

e da comunidade em geral. Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa

reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade

existente, como prosseguindo a promoção dessa mesma dignidade, criando condições

que possibilitem o seu exercício e fruição. Por limite, entende-se a intangibilidade das

condições materiais mínimas que permitam a autodeterminação do indivíduo.

A prevalência da dignidade da pessoa humana como princípio supremo da ordem

constitucional, é também e necessariamente o fim último da ordem económica e

social, impondo-se a toda a relação jurídica estabelecida na atividade económica. O

conceito da dignidade da pessoa humana é um conceito em permanente e eterna

construção, um adquirido cultural, civilizacional.

86

Nos termos do nº 2 do artigo 58º da CRP, impõe-se ao Estado as seguintes incumbências expressas: a) A execução de políticas de pleno emprego; b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores.

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57

A dignidade humana plasma-se nos direitos fundamentais, enquanto instrumentos

aptos a possibilitar que o indivíduo possa usufruir de condições dignas de vida, a

possibilitar a sua concretização.87

O papel do direito fundamental ao trabalho é vital na promoção da dignidade humana,

enquanto meio adequado a produzir a autonomia, a autodeterminação do indivíduo e

a torná-lo sujeito de direitos.88

Enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana, no âmbito do Direito do

Trabalho podemos constatar três eixos fundamentais da sua manifestação.

O primeiro eixo diz respeito aos direitos dos trabalhadores constantes das normas de

tratados e convenções internacionais ratificados por Portugal, como a convenção

internacional da OIT. Estes instrumentos internacionais assumem um patamar de

civilização universal de direitos mínimos para o ser humano trabalhador ter acesso a

uma vida digna. Asseguram, especialmente, o direito à remuneração que promova a

existência digna do próprio trabalhador e da sua família; o direito à saúde e higiene no

trabalho; a proteção ao trabalho e ao emprego; o direito a períodos de descanso e ao

lazer; o direito à limitação razoável das horas de trabalho, tanto diárias como

semanais; o direito à remuneração do trabalho prestado em dias feriados; o direito de

greve; o direito dos trabalhadores organizar sindicatos e filiarem-se ou não neles.

O segundo eixo está na Constituição portuguesa, particularmente nos artigos 1º e 53º

a 59º, que verte o estádio declarado como assumido enquanto direitos fundamentais

na sociedade portuguesa.89 87

“Nas Constituições contemporâneas, como é sabido, essa proteção costuma ser inseparável de suas garantias. No entanto, se é certo que tais garantias são, conceitualmente, orientações programáticas e limitações normativas importas à discricionariedade do poder público, em todas suas instâncias e escalões, é igualmente correto que elas somente têm condições de se tornarem efetivas por intermédio desse poder. Em termos operacionais e processuais, portanto, as declarações em favor dos direitos humanos e sociais pelo texto constitucional dependem de uma prévia regulamentação dos próprios organismos estatais que elas visam controlar e condicionar no exercício das suas funções executivas em matérias de políticas públicas. As condições de aplicabilidade e efetividade dos direitos humanos e sociais encerram, dessa maneira, o risco sério da sua própria perversão.” José Eduardo Faria, Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, Malheiros Editores, S. Paulo, 1994,p 98, citado por Gomes Canotilho, Estudos Sobre Direitos Fundamentais, obra já citada, pp 118-119.

88 No sentido do princípio “protetivo” deslocar o centro de gravidade da pessoa do trabalhador e do

espaço circunscrito da empresa para as questões da cidadania, e colocada esta ao nível do conjunto da sociedade, António Garcia Pereira, “A grande e urgente tarefa dogmática jus laboral: A constitucionalização das Relações Laborais”, V Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Memórias, 2003, Almedina, p. 275 e ss.

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58

O terceiro eixo de direitos indisponíveis está nas leis infraconstitucionais consolidadas.

A declaração e efetivação do direito ao trabalho como direito fundamental têm de ser

compreendidos como dever ético caracterizador de um Estado de Direito democrático

que tem o ser humano como centro de gravidade.

Ainda que a dignidade humana preexista ao direito, o seu reconhecimento e a sua

proteção pela ordem jurídica, nomeadamente pelo artigo 1º da Constituição

portuguesa, leva-a para o patamar de valor fundamental, como o centro para o qual

devem convergir os direitos fundamentais.

O trabalho, enquanto direito fundamental, funda-se, pois, no referencial axiológico da

dignidade da pessoa humana.90 No fundo, o direito ao trabalho como direito

fundamental de proteção ao trabalhador previsto no artigo 58º da CRP, é

simultaneamente um pressuposto e um corolário do princípio da dignidade da pessoa

humana instituído como valor fundamental no artigo 1º da Constituição da República

portuguesa.

89

“ A Constituição – neste nosso domínio do jurídico caracterizado pela dispersão por tantas e tão desvairadas leis, inclusive no plano temporal, em que releva legislação bem antiga como a lei do contrato de trabalho (a então LCT) – tem uma importância decisiva na refundação do Direito do trabalho e na sua sistematização. Nela se contém aqueles princípios federadores’ do Direito do trabalho (…)” Bernardo Xavier, “A matriz constitucional do Direito do Trabalho”, III Congresso Nacional do Direito do Trabalho, 2001, Almedina, pp 99-100.

90 A partir do Código do Trabalho de 2003, o legislador laboral parece ter feito prevalecer um certo

pendor civilista, utilizando a expressão direitos da personalidade em vez de direitos fundamentais da pessoa humana, como bem observa José João Abrantes, em Adenda à obra citada, p 256.

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59

CONCLUSÕES

Na Constituição Portuguesa, os direitos sociais estão reconhecidos expressamente

como direitos fundamentais, importando sempre apurar qual o alcance dogmático

desse reconhecimento.

Os direitos fundamentais garantem juridicamente o acesso individual a bens que, pela

sua importância para a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da

personalidade, a autonomia, a liberdade e o bem-estar das pessoas, a Constituição

entendeu merecedores de proteção máxima, forte e estável.

A partir do momento que a Constituição consagra determinado direito, pretensão,

dever ou obrigação como fundamental, ele impõe-se aos poderes constituídos. A

vinculatividade da respetiva observância não depende do tipo em que for classificado

e integrado, mas apenas da força jurídica diferenciada que a Constituição lhe atribuir,

da natureza material e estrutural do dever.

Quando a Constituição tem um conteúdo e uma força normativa, os seus comandos

impõem-se à observância de todos os poderes constituídos, incluindo os órgãos

diretamente assentes na legitimidade democrática. Se entre esses comandos se conta

a necessária observância de deveres estatais de realização de direitos sociais, daí

resulta, necessariamente, não só o caráter juridicamente devido da prestação desses

deveres, como a dedução dos correspondentes direitos ou pretensões à respetiva

realização.

Uma vez que, em Estado constitucional, com justiça constitucional, cabe ao poder

judicial, em princípio, assegurar o cumprimento desses deveres e observância desses

direitos, então os direitos sociais constitucionalmente consagrados, onde se inclui o

direito ao trabalho, passam a ser direitos individualmente titulados, oponíveis ao

Estado e judicialmente impostos à observância da maioria democrática.

A partir dos anos sessenta e setenta, os direitos fundamentais passam a ser encarados

como componentes estruturais básicos do contrato de trabalho, tendo em conta as

características especiais de uma relação em que a pessoa do trabalhador está inserida

numa organização alheia e submetida a uma autoridade dotada de poder social.

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60

Surge então uma nova categoria dos direitos positivos ou direitos a prestações do

Estado, direitos dos cidadãos às prestações necessárias à sua existência individual, que

têm por sujeito passivo o Estado e se cumprem pela execução de políticas de trabalho,

entre outras que possibilitem usufruir os bens constitucionalmente protegidos.

Ainda no mero domínio do direito privado, a autonomia privada e a liberdade

contratual para serem efetivas, pressupõem a igualdade dos contraentes, quer

jurídica, quer real, sob pena de a autodeterminação do sujeito de direito estar

antecipadamente excluída.

O recurso aos mecanismos próprios do direito civil, como o abuso de direito ou a boa-

fé, com repercussões no direito laboral através da teoria do despedimento abusivo ou

da imposição de deveres gerais de informação e lealdade, desde cedo se manifestaram

como manifestamente insuficientes. Pensados para resolver situações em que a

igualdade das partes está presente, não tocam no cerne dos problemas gerados nas

situações de desigualdade real entre as partes de um contrato.

Ocupando o trabalho um papel central da vida dos humanos, quer enquanto fonte de

rendimentos, quer pelo seu relevo psicossocial, leva a situações de facto em que a

parte que não detém os meios de produção e a estrutura organizativa que lhe está

subjacente, não esteja, na generalidade das situações, em condições de poder influir

no conteúdo das cláusulas contratuais que está a negociar, desequilíbrio que se

acentua, obviamente, em conjunturas de desemprego.

Na relação contratual laboral, o poder atribuído ao empregador, nomeadamente o

poder conformador da prestação e o poder disciplinar, condiciona, necessariamente, a

personalidade do trabalhador. Este sofre restrições à liberdade e ao exercício dos seus

direitos fundamentais, o que leva à necessidade que esses direitos fundamentais se

imponham e superentendam toda a relação laboral.

No plano das relações entre trabalhador e empregador, a Constituição, tendo em vista

conseguir um maior equilíbrio na relação contratual, tanto individual como coletiva,

estabeleceu princípios mínimos de proteção em face da subordinação, jurídica e

pessoal do trabalhador que a mesma acarreta.

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61

O princípio da proteção que esta realidade impõe e que a função da demarcação das

esferas jurídicas das partes do contrato, ganhou feição analítica na Doutrina do Direito

do Trabalho, tradicionalmente concretizada à volta de três postulados: a) In dubio, pro

trabalhador; b) regra da aplicação da norma mais favorável; c) regra da condição mais

benéfica.

Este princípio da proteção é aquele que resulta em primeira linha do Direito

Constitucional do Trabalho, entendendo-se como tal o conteúdo do conjunto de

normas com o seu objeto vertidas na Constituição, e que desdobram nos artigos 53º a

57º inseridas no Capítulo III do Título II, sob a epígrafe Direitos, Liberdades e Garantias,

e nos artigos 58º e 59º, inseridas no Capítulo I do Título III, sob a epígrafe Direitos e

Deveres Económicos.

Com este conjunto de regras, foi constitucionalizado um programa mínimo de

proteção do trabalhador, preservando a sua dignidade e visando a melhoria da sua

condição social, não podendo deixar de se ter em conta, também o disposto no artigo

18º, nº 3 onde o legislador constituinte dispôs que “As leis restritas de direitos,

liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito

retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos

constitucionais.”

A Constituição portuguesa ao incluir expressamente a livre iniciativa entre os seus

princípios (artigo 61º da CRP), simultaneamente conformou-a ao constranger a relação

poder-sujeição decorrente do exercício dessa liberdade, o que criou a necessidade

histórica e a necessidade lógica da concomitante afirmação da proteção do trabalho

positivada no artigo 58º da CRP, através da consagração do direito ao trabalho, a par

de outros direitos que constituem o conteúdo mínimo da proteção do trabalhador na

relação laboral, expressos nomeadamente nos artigos 53º a 59º da CRP.

O direito fundamental ao trabalho tem como destinatário principal o Estado. Porém,

no que diz respeito ao dever de abstenção, de respeito às liberdades do titular, os

particulares têm o dever de não intromissão e respeito, dever esse que os vincula,

como regra geral mediatamente e, excecionalmente, de forma imediata (como nas

hipóteses do artigo 59º CRP) também como destinatários. O Estado, ao impedir essa

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violação por parte dos particulares, está a cumprir o ser dever de não permitir a

intervenção nas liberdades fundamentais.

O direito fundamental ao trabalho possui não só uma dimensão de defesa, em que o

seu titular tem a garantia de exigir que o Estado se abstenha e proteja a plena fruição

do direito tutelado, mas também uma dimensão de atuação positiva, no sentido em

que o Estado deve proteger o gozo da liberdade de trabalho contra atuações de

terceiros.

A subjetivação deste dever de proteção deve ser assegurado no âmbito dos princípios

dos direitos fundamentais, confrontados a cada momento e em cada situação em face

do contexto fáctico e jurídico.

Em cada situação concreta em que estão em confronto os dois princípios

constitucionais, o da livre iniciativa do empregador, por um lado, e o do direito ao

trabalho, por outro, este princípio deve prevalecer sempre que estiver em causa uma

manifestação da dignidade da pessoa humana, o valor fundamental ordenador de todo

o sistema jurídico.

O direito ao trabalho como direito fundamental com dimensão suficiente para

assegurar a dignidade da pessoa humana exige ao Estado que atue positivamente na

promoção de políticas públicas de emprego, no auxílio ao desemprego e na formação

profissional.

A chamada reserva do financeiramente possível não é elemento integrante dos

direitos fundamentais, não é parte do seu núcleo essencial, nem se enquadra e integra

nos limites imanentes dos direitos fundamentais. A reserva do financeiramente

possível deve apenas atuar como limite fático e jurídico dos direitos fundamentais.

O papel do direito fundamental ao trabalho é vital na promoção da dignidade humana,

enquanto meio adequado a produzir a autonomia, a autodeterminação do indivíduo e

a torná-lo sujeito de direitos.

Podemos constatar três eixos fundamentais como referência para delimitar o âmbito

de proteção do Direito ao Trabalho.

O primeiro eixo diz respeito aos direitos dos trabalhadores constantes das normas de

tratados e convenções internacionais ratificados por Portugal, como a convenção

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internacional da OIT. Estes instrumentos internacionais assumem um patamar de

civilização universal de direitos mínimos para o ser humano trabalhador ter acesso a

uma vida digna.

O segundo eixo está na Constituição portuguesa, particularmente nos artigos 1º, 53º e

59º, que verte o estádio declarado como assumido enquanto direito fundamental na

sociedade portuguesa no que respeita à delimitação do Direito ao Trabalho.

O terceiro eixo de direitos indisponíveis está nas leis infraconstitucionais consolidadas.

A declaração e efetivação do direito ao trabalho como direito fundamental têm de ser

compreendidos como dever ético caracterizador de um Estado de Direito democrático

que tem o ser humano como centro de gravidade.

Ainda que a dignidade humana preexista ao direito, o seu reconhecimento e a sua

proteção pela ordem jurídica, nomeadamente pelo artigo 1º da Constituição

portuguesa, eleva-a para o patamar de valor fundamental, como o centro para o qual

devem convergir os direitos fundamentais.

A prevalência da dignidade da pessoa humana como princípio supremo da ordem

constitucional, é também e necessariamente o fim último da ordem económica e

social, impondo-se a toda a relação jurídica estabelecida na atividade económica.

O conceito da dignidade da pessoa humana é um conceito em permanente e em

eterna construção, um adquirido cultural, civilizacional.

O direito ao trabalho, previsto no artigo 58º da CRP, é, pois, uma manifestação do

princípio da proteção ao trabalhador e, simultaneamente, um pressuposto e um

corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.

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