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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Gilvan Silveira Moraes MOAB CALDAS: DISCURSOS QUE ROMPEM OS SILÊNCIOS NA TRIBUNA SUL RIO-GRANDENSE (1958-1966). Santa Maria, RS 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Gilvan Silveira Moraes

MOAB CALDAS: DISCURSOS QUE ROMPEM OS SILÊNCIOS NA TRIBUNA SUL RIO-GRANDENSE (1958-1966).

Santa Maria, RS 2017

Gilvan Silveira Moraes

MOAB CALDAS: DISCURSOS QUE ROMPEM OS SILÊNCIOS NA TRIBUNA SUL

RIO-GRANDENSE (1958-1966).

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História, Poder e Cultura, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Santa Maria, RS, Brasil 2017

Ficha catalográfica elaborada através do Programa de Geração Automática da

Biblioteca Central da UFSM, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Moraes, Gilvan Silveira

Moab Caldas: discursos que rompem os silêncios na

Tribuna Sul Rio-grandense (1958-1966). / Gilvan Silveira

Moraes.- 2017.

84 f.; 30 cm

Orientador: Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Coorientadora: Maria Medianeira Padoin Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de

Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas,

Programa de Pós-Graduação em História, RS, 2017

1. Deputado Moab Caldas 2. Umbanda 3. Discurso 4. História Política 5. História das Religiões I. Santos,

Júlio Ricardo Quevedo dos II. Padoin, Maria

Medianeira III. Título.

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas

Programa de Pós-Graduação em História

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação –

Nível Mestrado

MOAB CALDAS: DISCURSOS QUE ROMPEM OS SILÊNCIOS NA

TRIBUNA SUL RIO-GRANDENSE (1958-1966).

elaborado por Gilvan Silveira Moraes

como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em História

COMISSÃO EXAMINADORA:

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Dr.

(Presidente/Orientador)

Maria Medianeira Padoin, Drª. (UFSM) (Co-Orientadora)

Gizele Zanotto, Drª. (UPF)

Mauro Dillmann, Dr. (UFPel)

Santa Maria, 20 de Janeiro de 2017.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao Òrìsà Odé. Divindade que habita em meu ser e repousa em meu Orí.

Motivo que me faz acordar todos os dias de minha vida e ser grato a Deus pela minha

existência.

A gbà awón omokunrin Odé! Saudemos o caçador menino!

AGRADECIMENTOS

- A Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Programa de

Demanda Social (CAPES-DS), pelo financiamento desta pesquisa com bolsa de estudos;

- Ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria

(PPGH-UFSM);

- Ao meu Orientador Prof. Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos e a minha Co-

Orientadora Profª Drª Maria Medianeira Padoin, pessoas distintas e amigas sem as quais esta

pesquisa não poderia ter sido realizada;

- Aos meus colegas do curso de Mestrado da UFSM, em especial à Denise Schmitt,

Felipe Girardi, João Davi Minuzzi, Rayssa Wolf e Simone Margis, pelo apoio e afeto que nos

foi concedido durante esses dois preciosos anos em que estivemos juntos;

- Ao grupo de pesquisa Prismas de História das Religiões, coordenado pela Profª Drª

Beatriz Teixeira Weber, grupo formado por pesquisadores competentes que me ajudaram e

ajudam a compreender as veredas do que é religião;

- A minha família, em especial a meu pai Saturnino Cardoso Moraes e a minha Mãe

Eloiza Maria Silveira Moraes (In Memorian);

- A Marcos Caye por ser o porto seguro que me trás a paz durante as intempéries da

vida;

- A Jéssica Nobre Maria e a Juliana Aires Rietta (In Memorian). As melhores amigas

que uma pessoa pode ter. Pesquisadoras, professoras e mulheres das quais tenho orgulho em

fazer parte do círculo de amizade.

- Aos iniciados do Ylê Alaketu Reino Jeje-Ijesá de Odé, por entenderem minhas

ausências, respeitarem meus silêncios e me darem o amor e apoio incondicionais durante os

processos de pesquisa e escrita deste trabalho.

A todos vocês o meu muito obrigado. Adùpé O!

EPÍGRAFE

Ẹni bá ṣe oun tí ẹnìkan ò ṣe rí á rí

ohun tí ẹnìkan ò rí rí!

Quem faz o que ninguém fez, vai

experimentar aquilo que ninguém

experimentou!

(Provérbio Ioruba)

RESUMO

MOAB CALDAS: DISCURSOS QUE ROMPEM OS SILÊNCIOS NA TRIBUNA SUL RIO-GRANDESE (1958-1966).

AUTOR: Gilvan Silveira Moraes ORIENTADOR: Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

CO-ORIENTADORA: Maria Medianeira Padoin

O presente trabalho pretende compreender as estratégias de construção e

consolidação da imagem do Deputado Estadual Moab Caldas enquanto

representante da Religião Umbanda na Assembleia Legislativa do Estado do Rio

Grande do Sul. O período histórico escolhido foi de 1958 a 1966 correspondente aos

seus dois mandatos enquanto parlamentar. Para isso utilizaremos como principal

fonte de pesquisa, os discursos oficiais do Deputado, encontrados no Memorial da

Assembleia Legislativa (Porto Alegre- RS). Tivemos por metodologia de pesquisa o

estudo dos registros das falas do Deputado, a partir do Isomorfismo, onde se buscou

encontrar ao longo da análise, elementos comuns que mostrem uma continuidade

no pensamento do orador, o que demonstra o planejamento prévio de sua atuação.

A pesquisa contou com bolsa CAPES/DS.

Palavras-chave: Deputado Moab Caldas. Umbanda. Discurso. História Política.

História das Religiões.

ABSTRACT

MOAB CALDAS: SPEECHES THAT BREAK THE SILENCE IN THE TRIBUNE SOUTH RIVER-GREAT (1958-1966).

AUTHOR: GILVAN SILVEIRA MORAES ADVISER: JÚLIO RICARDO QUEVEDO DOS SANTOS

CO-ADVISER: MARIA MEDIANEIRA PADOIN The present work intends to understand the strategies of construction and

consolidation of the image of State Deputy Moab Caldas as representative of

Religion Umbanda in the Legislative Assembly of the State of Rio Grande do Sul.

The historical period chosen was from 1958 to 1966 corresponding to its two

mandates as a parliamentary . For this we will use as main research source, the

official speeches of the Deputy, found in the Memorial of the Legislative Assembly

(Porto Alegre, RS). We had as research methodology the study of the records of the

speeches, from the Isomorphism, where we sought to find, throughout the analysis,

common elements that show a continuity in the speaker's thinking, which

demonstrates the previous planning of his performance. The research included a

CAPES/DS scholarship.

Keywords: Deputy Moab Caldas. Umbanda. Speech. Political History. History of

Religions.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Moab Caldas em 1958 .............................................................................. 20

Figura 2 - Temas dos discursos Oficiais do Deputado Moab Caldas e Número de

Falas. (1958-1966) .................................................................................................... 46

Figura 3 - Percentual das Temáticas dos discursos Oficiais do Deputado Moab

Caldas. (1958-1966) .................................................................................................. 47

Figura 4 - Número de pronunciamentos com o tema Religião, nas falas oficiais do

Deputado Moab Caldas. Primeiro Mandato 1959 a 1962. ......................................... 53

Figura 5 - Número de pronunciamentos com o tema Religião, nas falas oficiais do

Deputado Moab Caldas. Primeiro Mandato 1963 a 1966. ......................................... 54

Figura 6 - Escala de votos do Deputado Moab Caldas. Primeira eleição 1958 e

Segunda eleição 1962. .............................................................................................. 57

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12

1 SOBRE POLÍTICA E UMBANDA. .................................................................................. 15

1.1 APONTAMENTOS SOBRE A UMBANDA .................................................................. 17

1.2 MOAB CALDAS, A UMBANDA E A POLÍTICA PARTIDÁRIA................................. 20

1.3 A UMBANDA NO RIO GRANDE DO SUL .................................................................. 26

2 O DEPUTADO UMBANDISTA MOAB CALDAS ......................................................... 33

2.1 CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA ................................................................................ 34

2.2 CONSTRUINDO UM MANDATO RELIGIOSO .......................................................... 50

2.3 UM DEPUTADO UMBANDISTA ................................................................................... 54

3 DA TRIBUNA AO POVO: O FINAL DA CARREIRA DE DEPUTADO E A

CRIAÇÃO DE LIGAS UMBANDISTAS PELO RS. ......................................................... 61

3.1 AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS DE MOAB CALDAS ........................................... 61

3.2. A DESPEDIDA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA .................................................... 72

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 76

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 79

12

INTRODUÇÃO

A presente dissertação de Mestrado em História tem por pretensão ser um

estudo dentro do que se conceitua como História das Religiões, com o objetivo de

buscar através da analise de conteúdo dos discursos proferidos pelo Deputado

Estadual do Rio Grande do Sul, Moab Caldas (1958-1966), traçar sua trajetória

histórica enquanto parlamentar considerado o primeiro Deputado assumidamente

umbandista no Rio Grande do Sul.

Na contemporaneidade a historiografia nos brinda com os mais variados

estudos acerca da religião de Umbanda. Intelectuais como Artur Cesar Isaia, Lisías

Nogueira Negrão ou ainda Renato Ortiz, contribuíram de maneira ímpar na

construção de estudos que norteiam e dão base as discussões da historiografia de

Umbanda em nosso País. No Rio Grande do Sul, pesquisadores como Beatriz

Teixeira Weber, Gizele Zanotto e Mauro Dillmann, nos ajudam a pensar as questões

religiosas regionais de maneira ímpar, o que nos insere no contexto religioso sul rio-

grandense.

Ainda que os estudos historiográficos a respeito da Umbanda estejam

avançados, existem lacunas na trajetória da Umbanda no Brasil que carecem ser

preenchidas, principalmente, no que tange a relação Umbanda e no que concerne a

“Nova História Política” proposta por Aline Coutrot (2010) quando analisa Religião e

Política, na obra “Por uma História Política” (2010) coordenada por René Rémond.

Isso nos motivou a compreender os processos que envolvem a relação das

comunidades umbandistas e o meio político e para isso, optamos em voltar nossos

olhos para os sujeitos, que fruto de seu tempo adentram o campo da política sem se

distanciar do campo religioso e desta maneira, aproximam esses dois tocantes de

grande relevância para a sociedade. Se faz necessário o estudo desses

entrelaçamentos entre religião e política. Nas palavras Aline Coutrot:

Um aprofundamento do pensamento religioso engendra novos modos de presença na sociedade, sem contar com as remanescências e as permanências. A religião continua a manter relações com a política, amplia mesmo seu campo de intervenção e diversifica suas formas de ação, de tal forma que o assunto é de grande atualidade (2010 p.335).

Tendo em vista tal necessidade, nos propomos a pesquisar como a trajetória

do alagoano Moab Caldas, radicado Rio Grande do Sul, umbandista e líder da

13

primeira organização de Umbanda do Estado, chega ao poder legislativo e quais

estratégias, são utilizadas por ele, para, além da manutenção de sua posição

através de uma possível reeleição, a garantiria da efetividade de seus discursos,

como principais veículos de propagação de ideias e criação de uma presença

umbandista naquele Estado.

A técnica de pesquisa nos pautamos a partir de Eni Orlandi (2015), no uso de

Isomorfismo na análise dos conteúdos contidos nos discursos oficiais de Moab

Caldas, onde identificamos temas predominantes em suas falas.

Nossa principal fonte de pesquisa são os Anais da Assembleia Legislativa,

encontrados no Fundo Arquivístico do Memorial da Assembleia Legislativa do

Estado do Rio Grande do Sul1. Também foram utilizados nesta dissertação algumas

correspondências enviadas ao Deputado Moab.

O marco temporal de nosso trabalho fica situado entre os anos de 1958 (ano

em que acontece o pleito que elege Moab Caldas à condição de Deputado Estadual)

até 1966 quando após o seu segundo mandato consecutivo ele deixa a Assembleia.

Cabe ainda reforçar que esta dissertação é fruto de pesquisa acadêmica

realizada dentro do Programa de Pós Graduação em História da Universidade

Federal de Santa Maria – Nível de Mestrado e contou com bolsa CAPES/DS a partir

da aprovação em edital de seleção de bolsista.

A dissertação intitulada “Moab Caldas: Discursos que rompem os silêncios na

tribuna sul rio-grandense (1958-1966)” recebeu orientação do Prof. Dr. Júlio Ricardo

Quevedo dos Santos e a Co-orientação da Profª Drª Maria Medianeira Padoin,

ambos vinculados a linha de Pesquisa Fronteira, Política e Sociedade.

No primeiro capítulo, buscamos embasar através de obras sobre Historia

Política e História das Religiões, os elementos que deram respaldo ao nosso estudo.

Procuramos construir através de revisão bibliográfica, o que acreditamos ser uma

síntese da história da Umbanda no Rio Grande do Sul e como a trajetória de nosso

personagem neste contexto.

O segundo capítulo trás a análise das fontes trabalhadas durante nossa

pesquisa. Inicialmente trazemos uma discussão sobre a relevância dos processos

de memória, para que através da utilização das fontes, argumentarmos a respeito da

1 Situada no endereço: Rua Duque de Caxias, número 1029, Centro Histórico, Porto Alegre – RS,

CEP: 90010-280.

14

criação de um sentido de presença, manifestado através dos discursos oficiais

pronunciados pelo Deputado durante seus dois mandatos. Ainda no segundo

capítulo, buscamos demonstrar através de análise quantitativa e qualitativa do

conteúdo de suas falas, a criação de imagem que Moab Caldas visava construir em

torno de si, como sendo “o deputado umbandista”.

No último capítulo procuramos inicialmente mostrar as articulações políticas e

religiosas feitas por Moab Caldas e qual a relevância delas para o parlamentar

durante sua legislatura. Ainda neste capítulo, discorremos sobre os últimos anos do

Deputado a frente da Assembleia e apontamos alguns vestígios sobre possíveis

rumos tomados pelo ex parlamentar após o término de sua carreira como Deputado

Estadual do Rio Grande do Sul.

15

1 SOBRE POLÍTICA E UMBANDA.

Neste capítulo buscaremos fazer uma revisão acerca dos principais cânones

da historiografia política e da história da Umbanda no Brasil, com o intuito de

subsidiar nossa pesquisa, que tem por objetivo, permear ambos os campos

supracitados.

Iniciamos o capítulo averiguando com o olhar da nova história, valorizar o

estudo de alguns grupos considerados marginalizados. Com isso, ao adentrarmos o

campo da história política, situamos nosso objeto de pesquisa, a trajetória de Moab

Caldas, como um representante da Umbanda, grupo cujo estigma social se faz

presente até os dias de hoje e onde os estudos acadêmico-científicos merecem uma

maior atenção.

A cultura, as identidades, e a própria sociedade, vão se transformando ao

longo do tempo, a política (que também é um dos frutos das ações do homem no

tempo) também se adequa ao tempo em que está imersa. A palavra “política” é

oriunda do grego “politiká”, uma derivação da palavra “polis”, que designa aquilo que

é público ou que remete ao interesse do mesmo. Sendo a política do interesse

público, também é de interesse do historiador, esse investigador que faz da sua vida

uma eterna busca de vestígios do passado.

Com o passar do tempo, o modo de pensar a política, em especial, o modo de

pensar a história política, também ganha uma nova roupagem. Ao contrário do que

os principais intelectuais que dedicaram suas vidas às pesquisas políticas vinham

produzindo, iniciou-se, a partir de Lucien Febre (1878-1956) um rompimento com a

visão histórica que se tinha até então, ou seja, um olhar historiográfico apenas sobre

os grandes nomes, a “história dos vencedores”. Os olhos dos intelectuais voltaram-

se para os “esquecidos”, ou “não favorecidos”, os cidadãos tidos como comuns e se

percebeu a importante contribuição que tais pessoas tinham/tem para a sociedade.

Esse rompimento com uma historiografia tradicional significou nas palavras de

Alexandre Avelar (2013) “Reavaliar o pensamento histórico de Febvre significa,

antes de tudo, recompor os caminhos pelos quais a história rompeu com as amarras

conceituais e metodológicas herdadas da historiografia oitocentista” (AVELAR, 2013,

p.182).

16

Junto de Lucien Febvre, Marc Bloch (1886-1944) revolucionaria a historiografia

mundial com a criação da Escola dos Annales. Febvre e Bloch

[...] abriram uma nova seara nos estudos históricos rumo a uma história mais social, global e interdisciplinar, introduzindo uma nova compreensão do tempo e da temporalidade histórica, aperfeiçoando métodos e abordagens e constituindo uma nova matriz disciplinar historiográfica, ao lado do marxismo e do historicismo (BENTIVOGLIO, 2013, p.214).

A Escola dos Annales influenciou todos os campos da historiografia. A busca por

novas abordagens, a percepção de novos sujeitos históricos e a própria escrita da

história, ganharam um novo olhar, uma nova roupagem, que buscou perceber nos

locais ainda não explorados da pesquisa historiográfica, um novo leque de

possibilidades. No que tange ao campo da política não seria diferente, em especial,

no tocante da história política nos apropriamos das palavras de René Rémond

(2010):

As novas orientações da pesquisa histórica estavam em harmonia com o ambiente intelectual e político. O Advento da democracia política e social, o impulso do movimento operário, a difusão do socialismo dirigiram o olhar para as massas. A compaixão pelos deserdados, a solidariedade com os pequenos, a simpatia pelos ‘esquecidos pela história’ inspiraram um vivo desejo de reparar a injustiça da história para com eles e retribuir-lhes o lugar em que tinham direito [...] ( p.19).

Com esse novo frescor historiográfico, novos horizontes se abriram, novos

personagens foram notados, novas fontes de pesquisa foram sendo utilizadas.

Dentro dessa perspectiva, grupos marginalizados pela sociedade hegemônica, que

até então não haviam recebido a devida atenção dos historiadores, agora ganham

sua vez nas pesquisas históricas, e coube ao pesquisador da área de história dar

conta dessa preocupação.

Para nós o historiador é fruto de seu tempo. Como uma de suas atribuições, ele

inclina-se a responder às perguntas que sua época e seus anseios o fazem, pois

seu próprio interesse é fruto empírico de seu tempo. No caso desta dissertação,

nossas inquietudes tem relação com dois campos da historiografia que, sem dúvida,

são sempre envoltos pelas vicissitudes do tempo em que se encontram: Política e

Religião, mas especificamente sobre a relação da Umbanda.

Um dos principais veículos de inserção e estudo da história política é a temática

das eleições. Num sentido geral, segundo Rosanvallon (2010), uma eleição

caracteriza-se pela escolha dentre os pares de uma comunidade, de um ou mais

sujeitos, que serão representantes desse determinado grupo frente uma

17

determinada situação ou instituição. Ainda segundo Pierre Rosanvallon (2010), “a

atividade política stricto sensu é, de fato, o que ao mesmo tempo limita e permite, na

prática, a realização do político. Ela é ao mesmo tempo uma tela e um meio.” (P.78).

Ou seja, as eleições atraem para si a atenção dos intelectuais, pois são uma fonte

de estudo e um indicativo do comportamento social e da própria constituição da

sociedade. Como disse Rémond “percebeu-se que uma eleição é também um

indicador do espírito público, um revelador da opinião pública e de seus

movimentos” (2010, p.40).

Tais reflexões nos permitem relacionar com o que informa Ari Pedro Oro (2012)2

sobre o Rio Grande do Sul que já foi o Estado do Brasil que mais teve adeptos de

religiões afro-brasileiras (que se declaravam como tal). Nesse sentido pensando o

campo eleitoral e os documentos encontrados e analisados de Moab Caldas levou-

nos a trabalhar a trajetória política deste homem enquanto Deputado Estadual que

se assumiu como representante umbandista.

1.1 APONTAMENTOS SOBRE A UMBANDA

Segundo Rodrigo Marques Leistner (2016), desde a década de 1950,

percebeu-se que a forma de expressão política dos afro-umbandistas3 no Estado é o

associativismo. Entendemos associativismo a partir de Beatriz Loner como uma

tendência ou movimento de um determinado grupo cujos fatores em comum (sejam

eles sociais, econômicos, culturais ou religiosos) os levam a se congregarem em

associações representativas (federações, órgãos, sindicatos e etc) para defesa de

seus interesses (2008, p.51).

2 “Quanto ao número de indivíduos que se declaram pertencentes às religiões afro-brasileiras,

chamou a atenção no recenseamento realizado pelo IBGE no ano 2000, o fato de o Rio Grande do Sul aparecer como o Estado brasileiro em que, em termos proporcionais, mais indivíduos disseram pertencer a essas religiões. Era, então, 1,62% da população gaúcha, contra 1,31% da população do Estado do Rio de Janeiro, que ocupava o segundo lugar. A Bahia aparecia somente com 0,08% da população que se declarou seguidora das religiões afro-brasileiras. No Brasil como um todo, 0,3% da população se manifestou como pertencente ao segmento religioso afro-brasileiro” (ORO, 2012, p. 558). 3 Utilizamos o termo “afro-umbandistas” a partir de LEISTNER (2016): “Sobre a contextualização de

um ‘afro-umbandismo’ praticado no Rio Grande do Sul, destaca-se que alguns terreiros podem cultuar simultaneamente três práticas religiosas na mesma unidade de culto, cada qual sendo desenvolvida em espaço e tempo rituais distintos: o Batuque (culto aos orixás), a Umbanda (culto aos caboclos e preto-velhos) e ainda a Quimbanda (culto aos exus e pomba-giras, compreendida como subcategoria da Umbanda)”(2016, p.121-122).

18

Esse associativismo não seria um fenômeno exclusivo do Rio Grande do Sul,

mas parte de uma lógica de legitimação da Umbanda que se instaurou no cenário

nacional brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. Segundo Leistner, no Rio Grande

do Sul, as primeiras estratégias de legitimação do campo afro-religioso obedecem a

mesma lógica verificada em outros estados com o surgimento das primeiras ligas e

associações de natureza afro-religiosa do estado durante a década de 1950. Mais

precisamente em 07 de Junho do ano de 1953 foi criada a União de Umbanda do

Rio Grande do Sul na cidade de Porto Alegre – RS (LEISTNER, 2016).

Notamos que um dos principais meios de articulação política dos adeptos da

Umbanda e das religiões de matrizes africanas, desde a década de 1950 no Brasil,

mas em especial no caso deste trabalho, no Rio Grande do Sul, é a sua filiação a

federações.

Dentre os principais serviços prestados aos associados encontra-se o apoio jurídico, a expedição de autorizações para celebrações religiosas com o uso de instrumentos de percussão, além da intermediação de registros de documentos em cartório. Em geral os registros visam atestar, burocrática e documentalmente, a legalidade da condição do sacerdócio [...] (LEISTNER, 2016, p.126)

A articulação entre os templos afro-religiosos como uma constante no Brasil

deve-se a forte repressão do Estado Brasileiro. Desde o período colonial (1500-

1822), foram os colonizadores que subjugaram os povos indígenas e trouxeram

seres humanos das terras africanas na condição de escravos. Os referenciais de

cultura que não fossem de origem europeia eram menosprezados, negligenciados

ou apenas ignorados pelos portugueses. Tal herança se manteve através do tempo,

arraigando-se no aparelho estatal. Prova disso foi a politica de modernização

acentuada na Primeira República Brasileira. Essa política de modernização estava

intimamente ligada ao sentido de “europeizar” o estado nacional. Nesse sentido,

entendemos que além das tradições culturais europeias, também o “branqueamento”

era um dos principais anseios na intenção de modernidade idealizada.

Renato Ortiz (1991) discorre sobre o embranquecimento que se buscará no

período. A sociedade brasileira não desejava apenas “europeizar” sua população,

mas também seus hábitos, e uma das formas de conseguir esse objetivo era

extinguir quaisquer traços culturais que não fossem reflexo dos hábitos europeus,

então se voltam para expurgar as religiões afro-brasileiras e de matrizes africanas.

Um dos artifícios usados pelo aparelho estatal para reprimir os cultos afro religiosos

foi criminalizar as suas práticas rituais através do uso do Código Penal de 1890, que,

19

em seu Artigo 157, estabelece pena para os que praticassem “espiritismo, a magia e

seus sortilégios”. Ainda na Primeira República foi criada a Comissão para Repressão

do Baixo Espiritismo no Distrito Federal em 1927, ligada a Delegacia de Costumes,

órgão onde criminosos e trabalhadores ilícitos eram fichados.

Mesmo após a Primeira República permaneceu a constante retaliação frente

às religiosidades afro-brasileiras. No ano de 1934 foi criada a Delegacia para

Repressão ao Baixo Espiritismo no Distrito Federal e, mais tarde, em 1937, as

atividades relacionadas à Umbanda e aos cultos afro eram encaminhadas para a

Sessão de Tóxicos e Mistificações das delegacias não apenas do Distrito Federal,

mas do Estado Nacional como um todo (GIUMBELLI, 2003, p. 256).

Ainda sobre as formas estatais de repressão, salientamos o Código Penal

brasileiro de 1940 que em seu artigo 284, do Decreto de Lei número 2.848 de 07 de

Dezembro de 1940 que tipifica como curandeirismo quem exercer os atos de

curandeirismo: “I prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer

substância; II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III – fazendo

diagnósticos”, ou seja, o próprio estado nacional, coíbe as práticas afro-religiosas,

impedindo suas manifestações e criminalizando suas práticas sob pena de detenção

de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de reclusão.

Não era apenas o Estado que se mantinha como aparelho opressor das

religiões afro-brasileiras. A Igreja Católica, ao longo da história do Brasil, também foi

um fator relevante nos movimentos de coibição dos cultos:

Como se sabe, as religiões afro-brasileiras viveram a maior parte de sua história à sombra do Catolicismo. A tendência sociopolítica dominante, pelo menos até meados do século XX, foi a de recusar a elas o estatuto de “religião”. Autoridades policiais e sanitárias ocuparam-se da repressão e práticas tidas como enganatórias ou curandeirísticas (ORO, 2012, p.185).

Diante de todas essas situações de repressão, os adeptos das religiões afro-

brasileiras não ficariam passivos. Uma das maneiras encontradas como forma de

resistência foi a criação de Ligas e Uniões, onde, através de seu associativismo,

buscavam meandros legais de resistir. Ainda que a principal inserção política dos

afro-umbandistas nas décadas de 1950 e 1960 tenha sido através de sua

participação em Uniões e Ligas, ela não esteve restrita a esse único viés.

Mais precisamente, no caso deste estudo, evidenciamos em 1958 um dos

representantes da União de Umbanda do Rio Grande do Sul como candidato nas

20

eleições para Câmara Estadual, onde, mais tarde, sagrou-se eleito no pleito para

Deputado Estadual como o primeiro umbandista do Estado a chegar ao poder

legislativo: Moab Caldas.

Diretor Espiritual e um dos fundadores da União de Umbanda do Rio Grande

do Sul, Moab Caldas foi radialista e jornalista que teve sua trajetória política envolta

com a questão religiosa. Eleito em 1958 pelo Partido Social Democrático (PSD) em

seu primeiro mandato, mais tarde, Moab teria sua filiação ao partido cancelada,

tendo então, se filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) pelo qual foi eleito

para seu segundo mandato. Após dois mandatos consecutivos, Moab Caldas teve

seus direitos políticos caçados pelo Ato Institucional número 5 (AI 5) por dez anos.

1.2 MOAB CALDAS, A UMBANDA E A POLÍTICA PARTIDÁRIA

Figura 1 - Moab Caldas em 1958 Fonte: Imagem obtida no fundo Arquivístico do Memorial da Assembleia Legislativa do Rio

Grande do Sul, 2015.

21

Moab Caldas (Figura 1) nascido em Maceió, Alagoas, em 06 de Julho de

1922 e falecido em 20 de Agosto de 1996 na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do

Sul, foi filho de Zanelli de Araújo Caldas e Maria das Dores Dantas Caldas.

Radicado em Porto Alegre (RS) desde o ano de 1939, cursou os primeiros anos da

Faculdade de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

porém não concluiu o curso. Assim como seu pai, que tinha carreira militar, seu

primeiro emprego foi como integrante da Brigada Militar do RS ao completar 19

anos, onde alcançou o título de Sargento. Em meados dos anos de 1940 iniciou o

trabalho de Escrivão de Justiça do Estado do RS, onde permaneceu até sua

aposentadoria. Moab Caldas foi radialista na extinta Rádio AM Princesa, de grande

alcance e propagação em Porto Alegre, onde apresentou um programa cujo nome

era “A voz da Umbanda”.

Um fator que destacamos é a importância do rádio para a sociedade brasileira

na década de 1950. Nas décadas anteriores (anos de 1930 e 1940) o rádio já obteve

um papel muito importante, no período que a historiografia consagrou como a Era

Vargas. Antes do governo Vargas, o rádio era um meio de comunicação das elites,

pois como os meios de produção eram bastante altos, o consumo do produto era

restrito pelo seu preço. Porém, na década de 1930, durante o governo do presidente

Getúlio Vargas, com o objetivo de atingir toda a população, transformou em meio de

comunicação de massa, tendo como um de seus objetivos, ser um palanque de

propagação de seu ideário político, atrelado à diversão e entretenimento do povo

brasileiro. Além disso, o barateamento do custeio de produção dos aparelhos foi um

fator fundamental, pois possibilitou a chegada dele às massas.

Esse barateamento teve apoio governamental, já que, o próprio Presidente

Getúlio Vargas utilizava o rádio como instrumento político-pedagógico para a difusão

do seu ideário do Estado novo:

A audiência do rádio começou a crescer na medida em que os aparelhos receptores tornaram-se mais baratos. A autorização da publicidade também ajudou a alterar este cenário, pois até então a organização das emissoras em sociedades e clubes, que patrocinavam os programas, fazia com que as programações atendessem à elite. Definido como um serviço de interesse nacional e de finalidade educativa, o rádio teve seu funcionamento regulamentado pelo governo que procurava proporcionar-lhe bases econômicas mais sólidas (MENEGUEL, 2011, p.14).

Moab Caldas era um umbandista militante, sendo inclusive um dos membros

fundadores da primeira União de Umbanda do Rio Grande do Sul em 1953. Sua

22

militância também se dava pelo rádio, onde, através de seu programa, assuntos

correlatos a Umbanda o principal tema eram em sua maioria. Sua inserção no meio

radiofônico foi fundamental para sua projeção enquanto candidato. Com a

popularização do aparelho, o alcance do programa comandado pelo radialista da

Umbanda tornou-se um importante fator que contribuiu não apenas para a sua

autopromoção enquanto candidato, mas também para que, dentro desse veículo, a

circularização de seus projetos e ideias fossem difundidos, vide a importância desse

meio de comunicação na época.

Além de radialista, um de seus atributos era o jornalismo impresso. Moab

mantinha uma coluna de opiniões que era veiculada quinzenalmente em três jornais

de circulação estadual: “Correio do Povo”, “Última Hora” e “Zero Hora”.

Além do trabalho radiofônico e jornalístico voltado para a Umbanda, Moab

Caldas ainda era líder de um grupo de sacerdotes umbandistas que visavam pensar

em estratégias de resistência frente às adversidades que o culto enfrentava. Esse

grupo ficou conhecido como “Corrente de Aço”. Tal grupo tinha essa denominação,

em primeiro lugar, em alusão a uma corrente feita de aço, que é utilizada apenas por

umbandistas, designando e simbolizando o seu grau na hierarquia religiosa, mas

também porque uma das entidades para a qual Moab Caldas era consagrado na

Umbanda tinha por nome “Caboclo Ubirajara Peito de Aço”. Esse grupo tinha como

meios de atuação, palestras, pronunciamentos em praça pública e falas dentro dos

templos religiosos, visando proporcionar aos adeptos umbandistas, um

esclarecimento acerca de seus cultos. As ações desse grupo foram de suma

importância para a eleição de Moab Caldas como Deputado, já que, no período

eleitoral, uma das estratégias do grupo foi promover a candidatura do religioso.

Ele foi parlamentar da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do

Sul eleito por dois mandatos consecutivos: 40ª Legislatura (de 31/01/1959 a

31/01/1963) e 41ª Legislatura (de 31/01/1963 a 31/01/1967). O Deputado era filiado

ao Partido Social Democrático (PSD) legenda pela qual foi eleito, e mais tarde filiou-

se ao PTB.

Alguns dos fatores que acreditamos ter motivado Moab Caldas a migrar do

PSD para o PTB foram o contexto nacional que envolvia o PSD e a própria posição

política do parlamentar. O Partido Social Democrático foi fundado em 17 de Julho de

1945 e tinha um posicionamento mais conservador, ainda que, em tese, fosse

23

considerado como centrista. No Rio Grande do Sul, em específico, as lideranças do

partido não aceitaram o apoio nacional do PTB à candidatura de Juscelino

Kubitschek como presidente da República.

O Partido Social Democrático (PSD) representou no Rio Grande do Sul a tradição governista que fora no passado representada pelo PRR e PRL. Nele entraram ex-dissidentes liberais como Protásio Alves e Cylon Rosa, ex-libertadores como Walter Jobim e Oscar Carneiro da Fontoura e o interventor Ernesto Dornelles. Conservador, representava o esforço de permanência no poder do grupo de apoio a Vargas no novo período democrático que se inauguraria sem Vargas (PESAVENTO, 1992, p. 73).

Além disso, o posicionamento do Deputado Moab Caldas dentro da Câmara

dos Deputados, enquanto defensor da laicidade do Estado4 e sua posição firme e

demarcada a respeito da defesa e legitimação da Umbanda, entram em conflito com

os ideários do partido. Segundo Sandra Pesavento ainda que centrista, o PSD

estava intrinsicamente ligado a moral cristã e a valores civilizatórios católicos

(PESAVENTO, 1992). Tais valores muitas vezes iam de encontro aos pensamentos

e propostas que o parlamentar defendia, como seu posicionamento favorável ao

desquite, a proposta de cremação de corpos ou ainda com relação a laicidade do

ensino nas esferas públicas.

Outro fator importante é o posicionamento anti-trabalhista defendido pelas

lideranças do PSD no Rio Grande do Sul. Segundo Sandra Pesavento o PSD

gaúcho, não aceitando a "dobradinha" feita e radicalizando a sua posição

antitrabalhista, negou apoio, não acompanhando a diretriz nacional do partido

(PESAVENTO, 1992, p.82). Ainda em 1958, o deputado umbandista firmou uma

aliança política de apoio a Leonel de Moura Brizola (que fora Deputado Estadual do

RS na 38ª e 39ª Legislaturas) eleito governador do Estado em 1958 (governando de

1959-1963) pelo PTB. Sendo um aliado de Moab Caldas, foi um dos únicos políticos

dos PSD a apoiar o governador na Câmara dos Deputados, vide sua postura

trabalhista, seria este outro fator a colaborar para a saída do referido parlamentar do

Partido que, em 1958, o elegeu para a Assembleia. Ao final de sua primeira

legislatura, Moab migra do PSD para o PTB.

Durante sua segunda legislatura (1963-1966), já filiado ao PTB, houve uma

manutenção e um aumento da pauta com relação às temáticas que envolvessem a

Umbanda nos seus discursos. Em um período de efervescência politica referente ao

4 Aprofundaremos as discussões e posicionamentos de Moab Caldas sobre Laicidade do Estado no

segundo capítulo desta dissertação.

24

início de um período que se convencionou pela historiografia como Ditadura civil-

militar brasileira5, os deputados do Rio Grande do Sul, não se mantiveram inertes:

Violentos discursos dos deputados do PTB inauguraram a vida parlamentar pós-64. Particularmente, denunciava-se a invasão e o saque da casa de Leonel Brizola e a prisão, pelo DOPS, do deputado Wilson Vargas, do prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, e do secretário de Educação, Hamilton Chaves. Enquanto Rubens Ardenghi denunciava as arbitrariedades cometidas pelo DOPS, Pedro Simon solidarizava-se com todos aqueles — estudantes, líderes sindicais, deputados, homens do povo — que haviam sido pegos por aqueles que se diziam “agentes da democracia e da liberdade”! A oposição entendia que o poder legislativo fora violentado (deputado Antonio Visintainer) e, escandalizada, relatava que, por ocasião do saque à casa de Brizola, subalternos da Polícia haviam dito que "o legislativo nada representava e que nesta hora quem mandava era o Exército e a Polícia" (deputado Cândido Norberto) (PESAVENTO, 1992, p. 92).

Moab Caldas em seus discursos se posicionou contrario à intervenção militar.

Um desses exemplos, como podemos notar, está em sua fala durante sessão

ordinária da Assembleia dos Deputados, no dia 05 de Maio de 1964:

Senhor Presidente e senhores Deputados. A história é irreversível. Por isso mesmo estamos apreciando os fatos apreciados a efeito de surpresa, com uma quartelada, com o coração cheio de magoa e tristeza. E queremos registrar apenas, que nos sentimos alegres, porque graças a Deus não houve necessidade de derramamento de sangue. Os revoltosos realmente se estruturaram muito bem, colhendo a todos de surpresa, o que revela uma habilidade extraordinária e queira o Alto, que essa habilidade saiba contornar todas as dificuldades, sem necessidade de torturas, segregamentos dolorosos ou mortandades (CALDAS, 1964, p.86).

Como percebemos no discurso acima, o Deputado se mostrou contrário ao

processo de golpe que a “quartelada” deu início, referência direta ao golpe exercido

pelos militares. Além disso, ele ainda demonstra com o sentimento de surpresa à

tomada de poder, e através de uma menção em agradecimento a “Deus”, ele retrata

o alívio, em, até o momento, não terem ocorrido confrontos violentos durante a

tomada de poder. Ainda ressaltamos a importância de seu pedido ao “alto”, alusão

direta a uma crença em algo superior (no caso, crença em Deus, vide o monoteísmo

do qual a Umbanda faz parte), para um entendimento do momento no qual a

sociedade da época está imersa e para que não houvesse “torturas, segregamentos

dolorosos ou mortandades” fruto da possível e iminente resistência aos governos

5 Nesta dissertação de Mestrado, utilizaremos o conceito de Ditadura Civil Militar a partir da obra de

René Armand Dreifuss (1981), como regime instaurado em 1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985, de caráter autoritário e nacionalista, onde sucessivos governos militares comandaram o Estado Nacional Brasileiro. Teve como seu marco inicial o golpe contra o governo do Presidente João Goulat e seu término com a ascensão a presidência de José Sarney, dando início ao período considerado pela historiografia como Nova República.

25

militares. Ainda durante seu segundo mandato, Moab Caldas se posicionaria em

outras oportunidades como contrário a ditadura.

Além de Moab, os demais parlamentares vinculados ao PTB fizeram oposição

ao governo militar que se instaurara no cenário nacional em 1964. O Ato Institucional

I (AI I) autorizava ao Poder Executivo a cassação de mandatos e a supressão por 10

anos dos direitos políticos dos cassados, sob a acusação de subversão e corrupção.

Já em 1965, no dia 27 de outubro, foi decretado AI I-2, que extinguia os partidos

políticos no país. Com tal medida houve uma bipolarização partidária, em que os

partidos tiveram de se adequar a nova configuração política que se instaurou. No

Rio Grande do Sul

Com a extinção dos partidos políticos, as forças de oposição ao governo agregaram-se no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), constituído em 26 de novembro de 1965. O apoio ao situacionismo formou a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). No legislativo gaúcho, a filiação partidária obedeceu à já tradicional bipolarização política do estado: enquanto o PSD passava a integrar a ARENA, os petebistas engrossavam as fileiras do MDB (PESAVENTO, 1992, p. 96).

Com a unificação dos partidos e o fim do pluripartidarismo6, os Deputados

filiados ao PTB migram para o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). O mesmo

ocorre com Moab Caldas que, ao final do ano de 1965, tem seu nome ligado a essa

denominação partidária, onde permaneceu até o fim de sua legislatura. Como

bandeira de movimento de oposição, os deputados ligados ao MDB defendiam

posições democráticas e tinham como principal pauta de reivindicação eleições

diretas.

Mesmo sob nova ordem política, os pronunciamentos do deputado

continuaram a enfocar a temática umbandista. Ainda que em minoria dentro do

parlamento e em uma situação de oposição ao governo ditatorial vigente, Moab

conseguia mesmo que em várias ocasiões, não ser este o principal assunto de sua

pauta, ligar a temática que estava sendo discutida com a Umbanda. Mas de que

Umbanda Moab Caldas falava? O parlamentar buscava evidenciar a História da

Umbanda no Rio Grande do Sul.

6 Entendemos pluripartidarismo como a coexistência de vários partidos políticos dentro de um mesmo

sistema político.

26

1.3 A UMBANDA NO RIO GRANDE DO SUL

Na revisão bibliográfica realizada sobre Umbanda, há a informação que o

templo de Umbanda mais antigo do estado do Rio Grande do Sul, é o Centro

Espírita Reino de São Jorge (CERSJ), localizado na Rua General Abreu número

497, Bairro Cidade Nova na cidade de Rio Grande, tendo por ano de fundação 1926

(DIAS, 2011) e registro em cartório o ano de 1932. Segundo Renato Dias o Centro

Espírita Reino de São Jorge (CERSJ) foi o primeiro do Estado do Rio Grande do Sul

a abrir suas portas e realizar trabalhos com a denominação de culto de Umbanda

(DIAS, 2011). Não são descartadas outras expressões religiosas similares, que

podem ter uma procedência anterior a própria CERSJ, porém, estas expressões não

tinham a denominação que é o foco deste estudo.

Nos primeiros meses de funcionamento o CERSJ não possuía uma sede

própria, tendo seu funcionamento de maneira itinerante, com a realização das

reuniões e sessões mediúnicas nas diferentes casas de moradia dos participantes e

adeptos. Ainda no ano de 1926, como iniciativa dos membros da CERSJ é adquirido

o imóvel sede do templo, que seria até os dias de hoje local de funcionamento do

templo.

Segundo Renato Dias (2010), as pesquisas apontam como fundador da

CERSJ o marinheiro Otacílio Charão, natural da cidade de Santa Maria, interior do

Rio Grande do Sul. Otacílio teria sido integrante da Marinha Mercante por mais de

uma década, tendo seu início no serviço naval no ano de 1916. Ele embarca para a

costa da África levando mercadorias no mesmo ano em que ingressa na marinha

para cumprir seu trabalho no cargo de embarcadiço. Otacílio teria vivido em terras

africanas durante aproximadamente dez anos e, logo após seu retorno ao Rio de

Janeiro, conheceu a Umbanda e lá teve sua formação sacerdotal segundo palavras

do próprio Moab Caldas (1975)7. Iniciado no culto para a entidade denominada

Caboclo Gira Mundo, Otacílio utilizava em seus trabalhos espirituais punhais para o

atendimento (CALDAS, 1975).

7 Prefácio de Moab Caldas para o livro de: ESCOBAR, Alfeu. Divagações sobre um culto: aspectos da

Umbanda. Editora União Espírita de Umbanda do Brasil, 1975. Informação disponível em: < https://www.associacaodosumbandistasdecanoas.blogspot.com.br/p/historia-da-raiz-dos-terreiros.html/m=1> Acesso em: 30 Set. 2016.

27

Já na cidade de Rio Grande, após dar início aos trabalhos do Centro Espírita

Reino de São Jorge Otacílio, como estratégia para evitar represálias, sempre que

havia uma sessão mediúnica ou reunião do Centro, eram nomeados dois vigilantes

que ficavam como guardas do Templo para avisar de algum sinal de cuidado através

de sinais previamente convencionados (CALDAS, 1975). Além disso, o recurso de

utilizar sessões itinerantes era recorrente, pois tal medida, além de evitar chamar a

atenção de possíveis autoridades contrárias a execução das cerimônias, evitava o

desconforto dos Batuqueiros8 que viviam nas cercanias e não viam com bons olhos

o novo culto que se iniciava na cidade.

Havia um desconforto dos batuqueiros em relação aos umbandistas que

começavam a organizar suas atividades na cidade. Um dos motivos que podemos

apontar é a disputa de clientes pagantes. No Batuque, em sua maioria, os

atendimentos aos não adeptos (e alguns trabalhos realizados também para os

próprios adeptos já iniciados) é realizado mediante um pagamento financeiro, com o

qual o sacerdote responsável pelo templo faz a manutenção do próprio templo e em

muitos casos tira o seu sustento desses atendimentos. Esses atendimentos são, em

sua grande maioria, feitos através de ofertas rituais e alimentos votivos,

denominados como oferendas, que visam, através da manipulação energética,

alcançar um determinado fim que o cliente buscava solucionar. A caridade é um dos

pilares da Umbanda, herança de sua influência do Kardecismo, tornando o seu

atendimento sem custo. Reginaldo Prandi (1991), através do exemplo do

Candomblé, nos trás um bom exemplo do que essa relação de sustentabilidade e fé

representam também para o Batuque:

Os clientes têm sido sempre importantes para o candomblé como religião, isto é, enquanto grupo de culto organizado. Mas essa clientela procura o candomblé como serviço mágico, magia que lida o tempo todo com a manipulação do mundo através do sacrifício. O sacrifício, ainda que o rito

8 Nesta dissertação de Mestrado, utilizaremos o conceito de Batuqueiro, a partir de Gilvan Silveira

Moraes (2016), como sendo o adepto iniciado na Religião do Batuque do Rio Grande do Sul, que tem nas nações de Jeje, Ijexá, Oyó, Nagô e Cabinda as principais vertentes do culto. O Batuque é uma religião de matriz africana, cujos pressupostos civilizatórios e a cosmovisão, são baseados na devoção as divindades denominadas Orixás. Os vestígios dos templos mais antigos dessa religião, se encontram nas cidades de Pelotas e Rio Grande, locais onde, em virtude das Charqueadas do XVIII, foram trazidos centenas de africanos na condição de escravos. Também utilizaremos o conceito de Batuqueiro, segundo Norton F. Corrêa (2006), como o conjunto formado pelos praticantes mais efetivos do culto, isto é, aqueles que, ou cumpriram pelo menos iniciações rituais menores, ou frequentam regularmente os templos, sendo portadores do etos batuqueiro: em outras palavras, que tem em comum um conjunto articulado de crenças e símbolos que lhe são próprios. A comunidade se estabelece como uma grande rede de relações sociais, composta, por sua vez, pelas redes similares menores que cada templo estendem torno de si e nas quais os indivíduos se movem (2006, p.65)

28

simbólico, é uma oferenda concreta de coisas materiais, inclusive com preços determinados. Símbolos materiais, cuja quantidade, volume, riqueza, variedade e especificidade podem propiciar uma medida capaz de aferir, de um lado, o prestígio do sacerdote-feiticeiro por seu conhecimento dessas fórmulas de manipulação mágica e sua capacidade de atrair adeptos e clientes, e de outro, o despojamento e a capacidade financeira do devoto ou cliente no gesto da oferenda. (PRANDI, 1991, p.26)

Umbanda e Batuque, ainda que religiões com pontos de intersecção e

algumas semelhanças rituais em comum, são religiões diferentes. Algumas de suas

distinções se observam sobre o significante litúrgico, de cosmovisão e de

pressupostos civilizatórios, porém, ambas trazem para as grandes massas o

atendimento através de relações mediúnicas entre o consulente e o iniciado na

religião. No Batuque, o atendimento ocorre através da consulta aos búzios e na

Umbanda através das sessões diretas com as entidades cultuadas. Para a

“população batuqueira” uma nova inserção religiosa, que presta serviços aos

mesmos moldes que a sua própria crença, pode significar uma ameaça ao próprio

funcionamento do tempo do batuque. Portanto, um novo culto chegado a cidade,

onde são prestados serviços semelhantes, pode não ser visto com bons olhos, ainda

mais um culto que até, então, não se tinha conhecimento na cidade.

Não existe um consenso entre os intelectuais que estudam a Umbanda sobre

qual o templo exato onde Otacílio Charão conheceu essa religião e obteve o seu

grau de sacerdócio, porém, existem indícios que podem nortear algumas

pressuposições.

Morando no Rio de Janeiro em virtude do trabalho na marinha, acredita-se

que ele tenha tido contato com uma (ou com ambas) das vertentes mais antigas da

Umbanda: a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, fundada por Zélio

Fernandino de Moraes em 15 de novembro 1908 ou a Tenda Espírita Mirim, fundada

pelo médium Benjamim Gonçalves Figueiredo em 13 de Março de 19209.

Segundo Moab Caldas (1975), Otacílio, durante os rituais no Centro Espírita

São Jorge, trabalhava trajando um macacão branco, vestimenta tal qual era utilizada

na Tenda Espírita Mirim. Corroborando o que foi dito por Caldas, Renato Dias (2010)

afirma que é a mais provável ligação de Moab Caldas, seja com a Tenda Espírita

Mirim, já que, até mesmo no modo de proceder os rituais e nos padrões de

vestimenta, ambos os templos tinham semelhanças visíveis, vide:

9 Informação disponível em: < https://www.tendaespiritamirim.com.br/historia>. Acesso em: 30 Set. 2016.

29

Apesar disso, pelas características do Centro Espírita Reino de São Jorge, é provável que tinha tido contato com a Tenda Espírita Mirim, mas isso é, até o momento, pura especulação minha. Vejamos então como eram as características da CERSJ. De sua origem até meados da década de 1970, o CERSJ seguia uma doutrina de Umbanda de Mesa Branca, com as seguintes características: -Era proibida a utilização de quaisquer instrumentos de percussão; -Os cantos só podiam ser acompanhados com o bater de palmas e/ou pé no chão; -Era autorizada a incorporação de apenas dois Exús, no caso as entidades Exu Tiriri e Exu de Manegum; -Era proibido o uso de guias ou colares ritualísticos; -Todos os trabalhos tinham início as 20:00 horas e encerravam-se à meia noite; -Pessoas separadas ou divorciadas eram proibidas de fazerem parte do quadro de sócios ou de participarem na corrente de trabalhos mediúnicos. O uniforme adotado pelo CERSJ desde a fundação até meados da década de 1970 era: -Para os homens: uma camisa branca contendo um distintivo formado por um ponto riscado e o nome do CERSJ logo acima; calça branca; cinto branco; meias brancas e sapatos de pano e flanela feitos por alguns membros do CERSJ; -Para as mulheres: vestido branco contendo um distintivo formado por um ponto riscado e o nome do CERSJ logo acima, com decote fechado e comprimento até cinco dedos abaixo do joelho; bombachinha (espécie de calça curta gaúcha) de tergal branco até o joelho. Meias brancas; sapatos de pano e flanela feitos por alguns membros do CERSJ; -Para os meninos: que só eram permitidos na corrente por motivos de saúde: camisa azul, calça branca, um cordão amarrado na cintura e sapatos iguais aos dos homens; -Para as meninas: que só eram permitidas na corrente por motivos de saúde: blusa rosa, vestido branco abaixo do joelho, um cordão amarrado na cintura e sapatos iguais ao da corrente, apenas no caso das meninas

(DIAS, 2011, p.76-77).

Embasados nos indícios acima citados, acreditamos que o Centro Espírita Reino

de São Jorge da cidade de Rio Grande, possa sim, ter sua origem vinculada com a

Tenda Espírita Mirim do Rio de Janeiro, fundada por Benjamim Figueiredo. O

CERSJ, ainda que tendo sua fundação no ano de 1926, foi registrado no Cartório de

Registros da cidade de Rio Grande apenas em 1932.

Ainda segundo Dias (2010), na década de 1960, conjuntamente com o

funcionamento do Templo, ocorreu a utilização do espaço como escola para as

crianças moradoras do bairro. Com o financiamento custeado pelo senhor Jesus

Penna Rey ocorreu o aumento do espaço do Templo, que tornou possível o

funcionamento de uma escola itinerante para o primeiro Ginasial por determinado

período em parceria com a prefeitura da cidade de Rio Grande.

Não apenas na cidade de Rio Grande houve a instalação de templos

umbandistas nas primeiras décadas do século XX. Em 04 de outubro de 1932, foi

30

fundado na cidade de Porto Alegre o Abrigo Espírita Francisco de Assis10, pelo

tenente da Marinha de Guerra Laudelino Manuel de Souza Gomes. É reconhecido

que o Abrigo Espírita Francisco de Assis é o templo de Umbanda mais antigo da

cidade de Porto Alegre ainda em funcionamento. Sua primeira sede se encontrava

na Rua Lima e Silva, nas imediações da Praça Garibaldi. Funciona em nova sede

até hoje na Avenida Ipiranga número 445, Bairro Menino Deus. O Abrigo Francisco

de Assis, diferentemente do CERSJ, não tem origem na Tenda Espírita Mirim.

Segundo Moab Caldas no prefácio de Alfeu Escobar (1975), o Abrigo teria uma

vinculação direta com uma nova das vertentes umbandistas, a Semiromba:

[..] a congregação dos Franciscanos de Umbanda. Linha branca. Ritual de Semiromba. O fardamento era branco, alguns com capas coloridas (Fardamento a moda franciscana). Alguns irmãos usando cocares e todos marcando o compasso das rezas com maracás, bascões e dois pequenos tambores tocados por baquetas como em Angola. (ESCOBAR, 1975, p.08)

Segundo alguns pesquisadores da temática umbandista, a Semiromba também é

conhecido como Umbanda Trançada ou Mista:

São nomes usados para identificar uma Umbanda praticada com influência maior dos Cultos de Nação ou Candomblé brasileiro, em que se combinam os fundamentos e os preceitos oriundos das culturas africanas com as entidades de Umbanda. (CUMINO, 2011, p.86)

Sobre essa afirmação de Moab Caldas, além da designação de qual o tipo de

ritual fora realizado no Abrigo, uma outra colocação nos chama a atenção, o uso da

terminologia “Linha Branca”. A utilização dessa linguagem pode ser definida partir de

Artur Isaia (2012):

Já em uma das obras pioneiras da palavra escrita na Umbanda, publicada em 1933, Leal de Souza usa um argumento que aparece como recorrente nos livros dos intelectuais que tentavam exegeses para a magia na nova religião: a relação entre magia e a teoria do fluido animal, desenvolvida no século XVIII por Mesmer (1734-1815). Segundo Mesmer havia uma substância sutil no universo, à qual se relacionavam os astros, os homens e todo o reino animal, vegetal e mineral. Dessa forma, pelo fluido existente e emanado em toda a forma de vida, os homens estabeleciam relações entre si e com tudo o que existe no universo. Era através do fluido universal, por exemplo, que os astros poderiam influir sobre a existência humana e um homem poderia influir sobre outro. Baseado nessa teoria, Leal de Souza explicava que a magia na Umbanda operava com as forças da natureza para desfazer os trabalhos feitos para o mal. Leal de Souza opunha uma magia aética e muitas vezes empírica, que denominava de magia negra, à magia branca, operada pelos umbandistas, esta ética e regrada, praticada para conseguir o bem ou desfazer o mal praticado por aquela. (ISAIA, 2012, p. 75-76)

10

Data de fundação disponível em: <https://registrosdeumbanda.wordpress.com/lista-de-terreiros/> . Acesso em: 29 set. 2016.

31

Quando reitera sobre a pureza da Umbanda praticada no Abrigo Francisco de

Assis, Moab trás a tona seu posicionamento a respeito da Umbanda que ele

defendeu frente ao parlamento sul rio-grandense. Uma religião que ainda sob os

auspícios da influência africana e indígena presente nos cocares e tambores, estava

caminhando rumo a um novo caminho, presente na aproximação com o kardecismo.

Ainda no final da década de 1940, em visita ao estado do Rio Grande do Sul,

segundo Escobar (1975) o Babalorixá11 Tancredo da Silva reuniu alguns sacerdotes

umbandistas e sob suas orientações fundam a Federação Espírita de Umbanda do

Rio Grande do Sul. A escolha da diretoria teria desagradado aos integrantes da

federação, que acabam por dissolvê-la. No ano de 1953 foi fundada a União de

Umbanda do Rio Grande do Sul. Tal órgão mobilizou os sacerdotes da região

metropolitana de tal maneira que iniciou-se uma comitiva que, segundo Escobar

(1975), percorreu o estado para “difusão da Boa Nova”.

Os nomes dos integrantes fundadores da diretoria da União de Umbanda do

Rio Grande do Sul foram: Pompílio Possera de Eufrásio, Capitão Hélio de Castro,

Tenente Jardelino de Oliveira, Dr. Ábio Hêrve, Genito Ferzola, Dr. Homero Reis,

Coronel Otacílio de Moura Escobar, Adroaldo Guerra, Vereador Manoel Malmann e

Silvio Pereira Maciel, além do próprio Moab Caldas12. Na direção desse órgão, o

Deputado ocupou o cargo de Direção do Conselho de Orientação Espiritual.

É notável que a Umbanda no Rio Grande do Sul teve seus processos de

instauração e difusão em um curto período após a sua sistematização no sudeste do

Brasil. A Umbanda chegou em terras rio-grandenses de maneira distinta, através de

um marinheiro, a partir de sua instauração, foi galgando espaço dentro da

sociedade. Ainda que sob a coibição do estado ou até mesmo a pressão recebida

pelos batuqueiros, a Umbanda conseguiu resistir e solidificar seu território. Foi

buscando legitimar essa história e essa prática religiosa, que Moab Caldas, através

de seus discursos na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, enfatizou em

todas as oportunidades que teve a importância da Umbanda para a sociedade. Foi

através da luta pela conservação e legitimação da memória e dos direitos

11

Título máximo que designa o cargo maior grau na hierarquia sacerdotal dentro do Candomblé e do Batuque concedido a um homem, para as mulheres o título é Iyalorixá. 12

Informações obtidas em: Prefácio de Moab Caldas para o livro de: ESCOBAR, Alfeu. Divagações sobre um culto: aspectos da Umbanda. Editora União Espírita de Umbanda do Brasil, 1975. Informação disponível em: < https://www.associacaodosumbandistasdecanoas.blogspot.com.br/p/ historia-da-raiz-dos-terreiros.html/m=1> Acesso em: 30 Set. 2016.

32

umbandistas para as futuras gerações que ele discursou. Mas, quais foram seus

discursos? Qual sua importância? Qual a relevância da presença de um Deputado

umbandista na Câmara dos Deputados? Sua importância se evidência quando Moab

Caldas se tornou o primeiro Deputado Estadual Brasileiro a declarar publicamente

ser pertencente à Religião de Umbanda, por ter sido eleito por dois mandatos

consecutivos e por ter feito da plenária da Assembleia Legislativa palco de discursos

que visavam legitimar a Umbanda enquanto Religião, em um período onde a mesma

ainda era tida como um “culto” ou uma “seita”. Nesse sentido, iremos trabalhar no

segundo capítulo com o Deputado umbandista Moab Caldas.

33

2 O DEPUTADO UMBANDISTA MOAB CALDAS

Todos sabem que fomos eleitos pela Umbanda. Caso único no Brasil. (CALDAS, 1961, p.350)

Neste capítulo trazemos uma reflexão acerca dos discursos proferidos

oficialmente na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul pelo

Deputado Estadual Moab Caldas no período situado entre os anos de 1958 a 1966,

correspondente ao período em ele estava na condição de Deputado Estadual do Rio

Grande do Sul. Temos por objetivo perceber quais foram às estratégias utilizadas

pelo parlamentar para a construção de seu mandato mas, acima de tudo, para a

criação de um referencial identitário, com a criação e legitimação da própria imagem

enquanto o “Deputado da Umbanda do Rio Grande do Sul”.

Iniciamos o capítulo com algumas considerações sobre o que é memória e

como o uso dela pode ser um importante suporte na construção da identidade. Tais

reflexões se fazem necessárias, pois nos auxiliam a compreender o porquê do uso

de um passado comum nos discursos analisados. Ainda sobre questões acerca do

passado, discorremos sobre como o uso do mesmo é importante para a criação de

uma presença simbólica, na qual a identidade que o Deputado quer assumir se

tornaria a marca de sua legislatura.

Apropriados dos conceitos de uso do passado, percebemos, a partir dos

discursos proferidos em Assembleia (nossa principal fonte de pesquisa), o uso dos

mesmos para a criação de um sentido de presença umbandista dentro daquele

espaço. O constante enfoque em temáticas relacionadas à Umbanda nas falas do

parlamentar se torna uma estratégia de reconhecimento de si e de afirmação da

própria presença enquanto religioso, no espaço onde ele estava inserido, criando, a

partir daí, uma identidade de Deputado representante da Umbanda e uma presença

umbandista, dentro do espaço do Legislativo.

Utilizando a maioria das oportunidades de fala, seja enquanto orador

principal, ou enquanto colaborador em alguma fala dos demais Deputados, Moab

Caldas tem como um de seus objetivos dentro da Assembleia, construir um mandato

voltado para as questões religiosas, em especial, um mandato que busca a

legitimação da Umbanda enquanto Religião, em um período (antes do

reconhecimento oficial do Estado Nacional em 1966) onde a mesma era tida como

34

seita e não tinha seu “status” religioso reconhecido pelo Estado Nacional. Uma das

estratégias de seu mandato busca construir e consolidar alianças com outras

matrizes religiosas. Firmar tais alianças através de apoio às questões alusivas a

grupos budistas, batuqueiros e, principalmente espíritas, religiosidades que no

período (décadas de 1950-1960) em questão, assim como a Umbanda, vinham

sofrendo opressões por diversos veículos. Dentre tais grupos, destacamos as

incisivas perseguições da Igreja Católica visam criar um sentimento de resistência e

representatividade, em um espaço que majoritariamente era composto por Cristãos

e em sua maioria Católicos.

Como finalização do capítulo, conseguimos delinear alguns resultados que

nos auxiliam na tentativa de compreender a proficuidade das estratégias para a

consolidação do mandato de Moab Caldas. A partir de dados extraídos dos Anais do

Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, utilizados

como principais fontes de nossa pesquisa, percebemos que ouve um significativo

aumento no número de votos no Deputado de uma eleição à outra. Também

percebemos que o percentual de citações à respeito da Umbanda cresce de maneira

significativa em suas explanações. Além disso, o reconhecimento de Moab Caldas

enquanto representante da religião Umbanda na Assembleia Legislativa do RS fica

mais evidente, quando, através de correspondências os remetentes nomeiam Moab

Caldas como: “Exmo. Dep. Umbandista”.

2.1 CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA

Pensar a história tem sido o desafio da vida de muitos pesquisadores que

dedicam seu tempo a percorrer o mundo dos livros, analisar documentos, buscar

vestígios, enfim, tornam seu viver uma árdua luta para salvaguardar o passado.

Mas afinal, do que é preciso salvar o passado?

[...] lutar contra o esquecimento, mantendo a lembrança cintilante da glória (kleos) dos heróis, isto é, fundamentalmente, lutar contra a morte e a ausência pela palavra viva e rememorativa. [...] Túmulo e palavra se revezam nesse trabalho de memória que, justamente por se fundar na luta contra o esquecimento, é também o reconhecimento implícito da força deste último: o reconhecimento do poder da morte (GAGNEBIN, 2006, p. 45).

Lutar contra o esquecimento é reconhecer a finitude do ser humano. Finitude

essa que se reconhece através da morte. Um dos aspectos do reconhecimento

35

humano sobre a finitude é o sofrimento. O sofrimento que, carregado de emoções,

gera uma série de reações adversas:

O sofrimento não é um resíduo de formas imutáveis; suas falas e seus gestos animam uma sociedade e a irradiam por todos os lados. Está também na aurora dos desejos fraternais e dos movimentos de solidariedade: quebra tanto quanto solda, mas é, evidente, a recepção que se lhe organiza que o torna sórdido ou motivador (FARGE, 2011, p. 20).

Na criação de mecanismos de defesa contra o esquecimento, a memória, e

mais especificamente a rememoração, ocupam um lugar de destaque. Memória, a

partir dos conceitos de Jay Winter (2006), é como uma metáfora para pensar e

enquadrar o passado a partir de lembranças do mesmo e para Pierre Nora (1993),

como constituição de um estoque material de tudo o que é possível de lembrar.

Assim como a memória, que é parte fundamental da vida do ser humano, a

rememoração exerce papel de grande destaque nas sociedades. Rememoração,

segundo Jeanne Marie Gagnebin (2006), é o agir no presente embasado no

passado. São as ressurgências do passado no tempo presente que, de alguma

maneira, visam transformar o próprio presente. Rememorar está além de apenas

não esquecer o passado, mas sim, agir no presente sem se desvencilhar do

passado.

A rememoração e a memória são fatores importantes para a construção das

sociedades. Quando pensamos nessas construções, nos deparamos com os mais

diversificados e complexos sistemas culturais, políticos, econômicos, sociais, que,

mesmo em sua diversidade, têm na presença da construção/criação da memória um

fator comum. Essa memória tem como uma de suas funções trazer ao grupo um

sentimento de coesão e pertencimento à determinada sociedade. É essa forte

ligação com um passado comum que fará com que a população daquela sociedade

se identifique com ela.

A utilização dessas memórias e rememorações na construção das sociedades

é fundamental para a sua manutenção. Para isso são necessários mecanismos de

manutenção e perpetuação dessas memórias. Esses mecanismos, além de

impedirem o esquecimento das memórias, são necessários para que se perpetuem

as lembranças já adquiridas e assim se conserve/propague a memória de uma

determinada sociedade.

No século XX, com o avanço do acesso à escolaridade, às tecnologias e o

contato com o maior número de informações possíveis para boa parte das

36

sociedades, fazem-se necessários os mais diversos meios de conservação da

memória. Com a dinamização do conhecimento, não mais se mostram tão profícuos

alguns mecanismos de coesão baseados apenas na memória, como a oralidade,

pois agora essas memórias estão expostas a possíveis desconstruções. Pensar em

mecanismos de conservação e manutenção da memória é essencial às sociedades

modernas:

É justamente porque não estamos mais inseridos em uma tradição de memória viva, oral, comunitária e coletiva, como dizia Maurice Halbawachs, e temos o sentimento tão forte da caducidade das existências e das obras humanas, que precisamos inventar estratégias de conservação e mecanismos de lembrança (GAGNEBIN, 2006, p.97).

Com todas essas transformações que o fazer memória vem se alterando,

cabe ao historiador, como homem do seu tempo e pesquisador cujo trabalho é

debruçar-se sobre a análise do passado, problematizar tais processos a partir do

tempo presente. A memória não é mais apenas uma ferramenta utilizada para

construir o fazer histórico, mas sim, é o próprio objeto de pesquisa em História.

Desconstruir o que se consagrava enquanto acontecimento dado e perceber a

influência da memória sobre tais fatos é reconhecer a importância da ação da

memória sobre os fatos em si. Segundo Pierre Nora:

Interrogar uma tradição, por mais venerável que ela seja, é não mais se reconhecer como seu único portador. Ora, não são unicamente os objetos mais sagrados de nossa tradição nacional que se propõe uma história da história; interrogando-se sobre seus meios materiais e conceituais, sobre os procedimentos de sua própria produção e as etapas sociais de sua difusão, sobre sua própria constituição em tradição, toda a história entrou em sua idade historiográfica, consumindo sua desidentificação com a memória. Uma memória que se tornou ela mesma, um objeto de história possível (1993, p.11).

Quando se reconhece a influência da memória sobre a sociedade, percebe-se

a importância da rememoração para ela. A rememoração baseia-se na lembrança de

um acontecimento passado para, a partir dele, nortear as ações presentes. O

conhecimento acerca da potência da rememoração deve ser um dos principais

pontos de análise do historiador, já que ele pode mostrar um caminho para a

compreensão dos próprios acontecimentos.

Manipular o uso da rememoração pode ser uma importante ferramenta na

construção das sociedades. Alguns agentes históricos, munidos dos acontecimentos

passados para exemplificar e nortear as ações futuras, utilizam-no como ferramenta.

37

A apropriação e uso do passado é um meandro a ser considerado para pensarmos

as bases da sociedade.

Esse uso do passado como suporte para a criação de um sentimento de

coesão social também trás à tona outra questão a ser problematizada: o apego das

sociedades ao passado e, consequentemente, o seu uso. As sociedades têm uma

necessidade pela busca de suas origens. Munidos do conhecimento acerca do forte

apego em relação ao passado, alguns agentes históricos usam da rememoração

como uma eficiente ferramenta de manipulação. A utilização de um embasamento

no passado para justificar suas ações no presente é um fator recorrente na

construção social e deve ser analisado. É através do uso dessa construção do

passado que muitos agentes históricos se apropriam de uma necessidade das

sociedades em criar vínculos comuns para se utilizarem dela. A construção do

passado, segundo Pierre Nora (1993), é a ideia de incutir nas brechas dos

acontecimentos passados, sentimentos que tornem tais acontecimentos, únicos,

especiais e assim, possibilitar a quem estará sujeito a esse passado construído, a

criação de vínculo com esse objeto (o passado construído). Essa necessidade de

criação de vínculos se dá seja por motivos de afirmação do próprio grupo enquanto

unidade social coesa ou como fator de diferenciação e oposição a outros grupos:

A exaltação do grupo nacional fornece ao sujeito um objetivo para suas necessidades de vínculo, embasamento para autoestima e orgulho pessoal, ao mesmo tempo que equilibra este vínculo pela difamação das nações rivais. Este fenômeno não é próprio apenas do nacionalismo. Podemos observa-lo nas comunidades religiosas, nas seitas e em toda coletividade que se encontra rivalidade com outras (ANSART, 2001, p.25).

Perceber como esse anseio em construir vínculos comuns no grupo e essa

necessidade por uma origem comum são apropriados por alguns agentes históricos

são questões fundamentais para analisarmos a trajetória histórica de nossa figura

em questão: o Deputado Estadual da Assembleia Legislativa do Estado do Rio

Grande do Sul, Moab Caldas. Eleito por dois mandatos consecutivos, ele se

afirmava como o “primeiro Deputado Umbandista do Brasil” em um período onde,

hegemonicamente, a maioria da população era cristã, em especial católica. Segundo

dados do IBGE, nas décadas de 1950 e 1960, cerca de 93,3% dos brasileiros se

declaravam oficialmente católicos (BRASIL, 2000). Assim o Deputado rompera a

barreira do silênciamento afro-religioso existente na Assembleia, pois, até então, não

havia dentro daquele espaço de poder a discussão a respeito da legitimidade da

38

Umbanda, enquanto Religião. Ao propor se tornar um representante de sua

comunidade e para além disso, segundo suas próprias palavras “o Deputado da

Umbanda”, Moab Caldas rompe o silêncio existente na Assembleia, ao trazer a luta

pelo reconhecimento religioso umbandista, através de seus discursos que tinham

como principal foco as temáticas religiosas, em especial, questões acerca da

Umbanda.

Na atuação política do Deputado Moab Caldas, estiveram mais evidência a

defesa dos direitos da Brigada Militar13, luta em favor de melhorias na educação

pública do Estado, cobrança de reformas no sistema público de saúde do RS foram

algumas das mais recorrentes preocupações do parlamentar14 observadas em seus

discursos. Porém, dentre tantas pautas defendidas durante seus dois mandatos, um

assunto ganha evidência frente aos demais: a constante defesa das religiões afro

brasileiras, em especial, a defesa da Umbanda frente às opressões exercidas pelos

mais diversos veículos sociais.

Mas de qual Umbanda Moab Caldas fala? Assim como o próprio Parlamentar

faz referência em diversos momentos de suas falas, a Umbanda é uma religião afro-

brasileira que teve sua normatização feita pelo médium Fernandino de Moraes no

dia 15 de novembro de 1908 na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro (DIAS,

2011). Segundo Artur César Isaia:

A data tida como “oficial” do nascimento da Umbanda foi 15 de novembro de 1908, quando, em uma sessão espírita kardecista, “manifestou-se”, pela primeira vez, no Estado do Rio de Janeiro, o caboclo das Sete Encruzilhadas. Essa “entidade” traria a mensagem fundadora da Umbanda através da mediunidade de um homem comum, Zélio Fernandino de Moraes, residente da cidade de Neves no Rio de Janeiro. Zélio, egresso do kardecismo, teria sofrido uma grave enfermidade que o tornara paraplégico. O relato de sua cura, da “manifestação” do coboclo Sete Encruzilhadas, revelando a missão de Zélio de fundar uma nova religião, forma o que Brown denomina de “mito de origem” da Umbanda (1999, p. 103).

É de conhecimento comum que antes de Fernandino de Moraes já existiam

manifestações religiosas similares ao que se tornou conhecido como Umbanda

13

A Brigada Militar do Rio Grande do Sul é uma força de segurança pública, cuja principal função é a

de policiamento ostensivo no que tange a ordem pública no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.

No âmbito jurídico, a Brigada Militar enquadra-se como Polícia Militar, segundo os termos do artigo 42

da Constituição Federal de 1988. Seus integrantes são denominados “brigadianos” e são

considerados militares no Rio Grande do Sul. 14

O conteúdo dos discursos do referido deputado que dão base para este levantamento podem ser encontrados no Fundo Arquivístico do Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

39

(manifestação de espíritos indígenas, crianças, pretos-velhos, entre outros), porém,

só após 1908 que tais manifestações ganham uma nomenclatura e passam por um

processo de regulamentação (DIAS, 2011).

Não há consenso sobre a origem da palavra Umbanda. Vários estudos

apontam versões distintas sobre como Zélio Fernandino de Moraes chegou a

construção dessa palavra. Dos estudos recentes, Renato Dias (2011) trás uma das

contribuições mais significativas, apontando que inicialmente o culto se chamava

“Alabanda” em alusão à influência árabe-africana sobre o culto, já que Al-lah tem a

significação de “O Deus” na língua árabe. Porém, em 1909, o próprio médium Zélio

de Moraes substituiria tal prefixo (al-lah), por Um, palavra que os filósofos gregos

utilizam para se referir a “O Deus”. O sufixo Banda, que desde a oficialização do

culto foi uma constante, faz referência a “direção”, portanto, o que os linguistas e

historiadores deliberam como sendo a melhor interpretação para o nome da religião

seria: na direção de Deus.

Como o significado do próprio nome diz, a Umbanda é uma religião

monoteísta, tendo como figura principal de seu culto Deus criador do Universo. A

concepção de deidade para a Umbanda se assemelha à da cristandade em um

sentido comum, onde Deus é onipotente, onipresente e onisciente. O diferencial que

se apresenta é a introdução ao culto de espíritos iluminados que teriam a missão de

auxiliar o ser humano em sua vida (CUMINO, 2011). Tais espíritos são denominados

“guias” e apresentam arquétipos de figuras indígenas, africanos, crianças e orientais.

A Umbanda se caracteriza como uma religião mediúnica afro-brasileira, por

estar intrinsicamente ligada ao transe mediúnico (momento dentro dos rituais no qual

os guias de manifestam) e por suas influências oriundas das religiões de matrizes

africanas15. Há o uso de oferendas rituais16 e de tambores para a condução das

cerimônias através das músicas e danças, além da ressignificação de divindades

dos cultos de matriz africana, ou seja, a influência direta dessas religiões dão

subsídios para que aloquemos a Umbanda no hall das religiões afro-brasileiras.

Até onde se pode apurar, Moab Caldas foi o primeiro Deputado Estadual do

Rio Grande do Sul a não apenas assumir sua crença religiosa umbandista, mas

15

Religiões de Matrizes Africanas, a partir de Erisvaldo P. dos Santos (2010), são cultos tradicionais formados por grandes conjuntos de tradições cultural-religiosas ligadas a uma cosmovisão e a um modus vivendi baseado em uma estrutura hierárquica de povos africanos, vindos ao Brasil nos processos de escravização. 16

Alimentos votivos oferecidos aos guias espirituais.

40

também o primeiro a defender publicamente a necessidade da manutenção e

salvaguarda da religiosidade onde estava inserido. Adepto da Umbanda17, em

momentos de transe mediúnico, seu guia se denominava “Pai Domingos” 18. As

afirmações de identidade e pertencimento do deputado, com relação a sua crença,

eram tão presentes que questões relacionadas a Umbanda em seu mandato

ocorriam com grande recorrência:

E todos sabem que somos umbandistas, médium de terreiro, trabalhando sob a assistência das poderosas entidades do astral, do orixás lumiares, crentes de que estamos na realidade, prática da caridade indistinta. Não nos escondemos como muitos fazem. Trabalhamos em qualquer lugar e não temos críticas. Também não usamos máscaras. Obreamos com modestos operários, com analfabetos e titulados porque em nossos Centros confraternizam Marechais com homens simples da rua. Conosco ninguém se engana porque não mistificamos – somos da Umbanda mesmo! Temos fé absoluta na nossa Lei (CALDAS, 1959, p. 21-22).

Podemos perceber que nesse discurso existem várias referências simbólicas

que demonstram o posicionamento político de nossa objeto de estudo. Ao iniciar sua

fala, o uso do termo “terreiro” explicita seu seguimento religioso como pertencente a

uma religião afro-brasileira. Os templos das religiões afro-brasileiras e de matrizes

africanas ficaram conhecidos como “terreiros”19, pronunciado de forma popular

“terreira”, por terem em seus primórdios alocações em espaços periféricos ainda

sem calçamento e os espaços internos dos templos não conterem pisos

concretados, apenas terra batida.

Também há a menção sobre os “Orixás”. Orixás são ancestrais divinizados

encontrados nas emanações energéticas das forças da natureza (CORREA, 2006).

O culto aos Orixás chega ao Brasil no período do tráfico de escravos (1550-1850) e

se ressignifica, formando o que se conhece como religiões de matrizes africanas. O

culto exclusivo a essas divindades se dá em religiões como os candomblés do Rio

de Janeiro e São Paulo e no Batuque do Rio Grande do Sul. A Umbanda bebe

17

Segundo Rubens Saraceni (apud CUMINO, 2011, p.70): “A Umbanda tem na sua base de formação os cultos afros, os cultos nativos, a doutrina espírita Kardecista, a religião católica e um pouco da religião oriental (Budismo e Hinduísmo) e também da magia, pois é uma religião magística por excelência, o que a distingue e a honra [...]” 18

Espírito que assume o arquétipo e características de um escravo desencarnado, também conhecido como “Preto-Velho”. 19

Pensamos “terreiro” a partir de Hendrix Silveira (2014): “Terreiro é um termo genérico para os templos de tradição de matriz africana no Rio Grande do Sul, mas devido à influência da literatura sobre o candomblé, o termo ‘terreiro’ também tem sido empregado. Para Juana Elbein dos Santos, o terreiro é um espaço de propagação de valores civilizatórios africanos, são verdadeiras ‘mini Áfricas’”. (SILVEIRA, 2014, p.65)

41

dessa fonte e se empodera sob a luz das religiões de matrizes africanas utilizando o

princípio do culto aos Orixás em seus rituais de maneira indireta.

Ainda sobre o discurso mostrado acima, Moab fala que não usam “máscaras”.

Percebemos, através dessa metáfora, a presença da crítica em relação aos

umbandistas que por pressão social, não assumiam sua crença. O que queremos

mostrar é que, através do uso de um arcabouço de metáforas e palavras próprias do

universo simbólico umbandista em uma sessão ordinária da Câmara, ficam explícitas

as posições políticas de afirmação identitária do deputado.

Entendemos que as afirmações, questionamentos, linguagens específicas e

códigos culturais presentes nas falas proferidas na Assembleia Legislativa do Estado

do Rio Grande do Sul, referentes ao período de 1958 até 1966, mostram-se como

tentativas de construção de um sentimento de grupo. Mas, para além disso, uma

busca pelo reconhecimento da Umbanda no Rio Grande do Sul enquanto religião

legítima, haja visto que esta religiosidade não possuía esse “status” até 1966, sendo

classificada como seita ou culto. Percebemos que há um enfático esforço em fazer-

se presente, em trazer para a Assembleia a discussão sobre a legitimidade da

Umbanda. O que está em jogo é o poder simbólico do reconhecimento da Umbanda

enquanto religião. Em seus discursos, o uso de uma origem comum (origem humilde

e trabalhadora) e a busca se um sentimento de unidade (uso dos termos “nós

espiritualistas” e “nós umbandistas”) de grupo é recorrente. Essa tentativa de criar

uma identidade de grupo baseada nos acontecimentos passados nos leva a

problematizar as intenções acerca de algumas das ações do referido parlamentar, o

que nos levou a nossa técnica de pesquisa, a análise de discurso. Para fazer uma

análise dos discursos do referido deputado pensamos a partir das concepções de

Eni Orlandi como sendo “processos de identificação do sujeito, de argumentação, de

subjetivação, de construção da realidade” (2015, p.19).

A partir de Pierre Bourdieu (1989) podemos entender como “poder simbólico”,

um poder invisível que só pode ser exercido a partir da cumplicidade de quem está

sujeito a esse poder ou de quem o exerce. Moab Caldas tenta criar essa força

invisível na figura de si mesmo no momento em que usa a sua presença na

Assembleia como um veículo para dar visibilidade e reconhecimento de suas pautas

em defesa da Umbanda e, assim, fazer-se perceber como sendo o Deputado que

representa a Religião Umbanda. Uma das estratégias para criar tal reconhecimento

42

enquanto representante umbandista foi usar da necessidade de apropriação de uma

sensação de pertencimento e identidade de grupo para construir um sentimento de

unidade e, assim, ganhar o respaldo de sua comunidade para legitimar seu

mandato. Acreditamos que, em um ato de busca por legitimação de sua identidade e

litígio por seu espaço dentro do campo político da Assembleia, o Deputado Moab

Caldas busca construir, através do uso do passado, uma identidade em torno de sua

própria figura como “o Deputado Umbandista”, pois, até o momento, no estado do

Rio Grande do Sul, não haviam sido eleitos deputados que abertamente se

declarassem pertencentes a essa religião.

A busca pela legitimação e afirmação da própria identidade como sendo o

“primeiro Deputado da Umbanda do Brasil”, o “pioneiro da Umbanda” ou ainda “O

Deputado Umbandista”, aponta que o referido parlamentar visava criar uma imagem

em torno de sua própria figura. Acreditamos que a figura idealizada que Moab

buscava construir tinha por intuito ser uma forma simbólica de poder e de

manutenção no poder. O poder simbólico que um líder religioso tem ao adentrar um

espaço de poder como a Assembleia Legislativa é um fator importante, pois este

espaço confere um elevado grau no status quo de seus integrantes, que se veem

representando ali aqueles que os elegeram ou seja, Moab Caldas se vê e se

posiciona como sendo a figura que representa os Umbandistas do Rio Grande do

Sul:

Todos sabem que fomos eleitos pela Umbanda. Caso único no Brasil. Esta ponta de lança do espiritismo, como afirma o saudoso Leopoldo Machado, dando-se conta do processo administrativo, houve por bem de verificar que, se mobilizasse seus recursos, poderia ter um representante embora modesto. E congraçou-se, conjugaram-se as forças e eis-nos aqui! (CALDAS, 1961, p.350)

Deste discurso podemos destacar um ponto fulcral a ser analisado a ideia de

pioneirismo de Moab Caldas em sua percepção de totalidade no próprio número de

umbandistas no RS. Como vemos em suas próprias palavras acima: “Todos sabem

que fomos eleitos pela Umbanda. Caso único no Brasil”. Porém, ele não havia sido o

primeiro umbandista a adentrar no campo político. Em 1958, ou seja, no mesmo

ano de sua própria eleição, Átila Nunes, no Rio de Janeiro, por exemplo, também se

elegeu enquanto vereador e mais tarde tornou-se Deputado Estadual pelo mesmo

Estado. Antes dele, o próprio Zélio Fernandino de Moraes, em 1924, também se

elegera enquanto vereador no RJ. Ainda sobre a fala de Moab, devemos perceber

43

que ele vê a Umbanda como um todo, uma unidade que o elegera, porém, essa

afirmativa é passível de erros, pois a Umbanda não é uma unidade centralizada,

pois não possuí um único órgão fiscalizador ou regulador ou tão pouco um sistema

organizacional instituído. É correto afirmarmos que um determinado percentual de

umbandistas deve ter votado no deputado, porém afirmar que foi a unidade da

Umbanda quem o elegera seria equivocado, além de não evidenciar os demais

espaços por onde ele transitara.

O uso de metáforas afirmativas como “fomos eleitos pela Umbanda” é uma

das ferramentas que os usos do passado podem proporcionar. Usar dessas

afirmações de maneira pública para a criação de memórias coletivas faz com que

aqueles que recebem tais informações diretamente (os demais deputados) sintam a

presença de um líder religioso através do orador em questão e os próprios

umbandistas encontram na figura do deputado a sua própria presença na

Assembleia. As falas e a presença de um Deputado pertencente a um determinado

grupo criam memórias para o próprio grupo em questão. Essas memórias de grupo

passadas através das gerações, ou ainda, memórias compartilhadas nesse

determinado grupo são meandros na busca pela legitimação de espaços e

narrativas:

Agentes de governo tanto quanto aqueles dedicados à constituição de um Estado têm um interesse evidente em legitimar narrativas; frequentemente é o que eles querem dizer com “memória coletiva”- histórias que ajudam a polir as crenças culturais de sua reivindicação do poder (WINTER, 2006, p.70).

Apoiado nessas narrativas da memória, Moab Caldas buscou consolidar seu

espaço dentro da política através do uso de uma linguagem político-simbólica que

visa marcar naquele espaço a sua presença enquanto líder de um grupo religioso.

Usar desse passado comum e dessas memórias coletivas para construir uma

imagem de si é uma maneira de utilizar o passado como suporte na criação de uma

identidade20. A construção de uma imagem alusiva a um representante de

determinado grupo em meio a um espaço fora do seu próprio meio necessita

também de um aporte simbólico que sustente essa figura enquanto símbolo da

identidade do grupo que o elegeu, ou seja, o intuito do deputado em questão foi a

20

Pensamos essa relação entre passado e criação de identidade, a partir de Pierre Achard: “De outro modo, o passado, mesmo que realmente memorizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que permitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos encontramos.” (ACHARD, 2015, p. 14).

44

busca para efetivar-se enquanto o próprio símbolo da comunidade da Umbanda do

Rio Grande do Sul.

Buscando respaldo e demarcando seu espaço na Assembleia dos Deputados,

uma das estratégias utilizadas pelo parlamentar é a constante defesa da sua

religiosidade e a afirmação da mesma frente aos demais parlamentares. No pleito

eleitoral de 1958 foram eleitos para a Câmara Estadual dos Deputados um total de

55 Deputados21. Desses, o único a declarar abertamente a sua condição de adepto

da Umbanda foi Moab Caldas. O mesmo ocorre nas eleições de 196222, onde,

novamente, dos 55 Deputados Estaduais eleitos apenas o deputado em questão se

identifica como Umbandista. Tendo como critério de afirmação a autodeclararão,

todos os demais deputados abertamente declaram-se na tribuna como pertencentes

a religiões de matrizes cristãs, sendo a grande maioria católica, protestante e

evangélica.

Criar uma imagem de si enquanto afro-religioso em um ambiente onde

predominam representantes de outras religiões, em especial católicos, não é uma

tarefa simples. Nesse sentido, entendemos que as ações do referido parlamentar

dentro do espaço da Assembleia se construíram a partir da criação de um imaginário

político, buscando demarcar a sua posição na correlação de forças religiosas ali

presentes. Como uma de suas estratégias de demarcação e apropriação de espaço

a utilização de seus próprios discursos na tribuna para romper com os silêncios

históricos acerca do tema das religiões afro-brasileiras, com enfoque na Umbanda.

Os seus posicionamentos, percebidos através da análise dos discursos proferidos

na tribuna, podem ser compreendidos como símbolos da sua construção enquanto

representante parlamentar umbandista do Rio Grande do Sul:

A enunciação, então, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como, operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a circulação do discurso. Entre outras consequências desta concepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua estruturação é um questão social, e que ela se diferencia seguindo uma diferenciação das memórias e uma diferenciação das produções de sentido a partir das restrições de uma forma única. (ACHARD, 2015, p.17)

21

Informação obtida nos Arquivos do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, disponível em: < http://www.tre-rs.jus.br/index.php?nodo=13606>. Acesso em: 25 mai. 2016. 22

Informação obtida nos Arquivos do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, disponível em: < http://www.tre-rs.jus.br/index.php?nodo=13606>. Acesso em: 25 mai. 2016.

45

O uso desses artifícios, de construção de uma identidade a partir da

identificação que define a figura com um grupo, pode gerar para a figura interessada

uma representação simbólica de sentido, ou seja, tal figura constrói sobre si mesma

uma imagem de o que quer ser e essa imagem tem poder simbólico. Essa

representação tem a força de impor, no espaço onde ela se encontra, a presença do

sentido da identidade que a figura em questão buscou construir. Usando a própria

identidade de um dos grupos que o elegeu, no caso desta dissertação nos atemos

aos umbandistas, Moab Caldas busca enfatizar a sua presença no espaço político

enquanto representante da religião Umbanda. Ele utilizou do espaço da tribuna para

levantar questionamentos acerca de temas como intolerância religiosa, negligência

com relação aos umbandistas e busca de melhorias para situações de dificuldades

socioeconômicas enfrentadas no cotidiano dos afro religiosos como uma constante

no dia a dia do parlamentar. Através desses questionamentos e inquietações, ele

visa a superação dos estigmas, estereótipos, preconceitos e reconhece na própria

presença a força de um poder simbólico, capaz de se auto afirmar e disputar o

espaço de poder onde ele se encontrava.

Ao analisar os discursos oficiais do referido deputado proferidos nas sessões

ordinárias da Assembleia, chegamos a alguns apontamentos com base no conteúdo

dos discursos analisados e o resultado destes apontamentos serviu para criarmos, a

partir da quantificação do percentual de temas abordados pelo Deputado, alguns

gráficos temáticos. A Figura 1, o número total de vezes onde religião é o tema

central da fala do deputado em seus discursos oficiais na Câmara dos Deputados é

o maior do que todos os demais temas. Religião aparece em 46 falas, de um total

dos 304 Anais da Assembleia Legislativa analisados. Essa expressividade numérica

de fala com relação à religião ocupa um total de 15% da totalidade das falas do

parlamentar durante os oito anos referentes aos seus dois mandatos (1958-1966).

No gráfico 2, analisamos o que significa, percentualmente, esse expressivo número

de falas.

Como podemos perceber, há ênfase no tocante ao tema Religião. Moab

Caldas discursa insistentemente ressaltando aspectos sociais, culturais e

econômicos da Umbanda. Porém, essa temática não aparece apenas quando o

assunto é especificamente religioso.

46

Figura 2 - Temas dos discursos Oficiais do Deputado Moab Caldas e Número de Falas. (1958-1966)

Religião; 46

Brigada Militar; 23

Educação; 35

Disquite; 7 Justiça; 17

Menor Abandonado; 9 Raça; 6

Política; 42

Policiamento; 6

Prostituição; 6

Penitenciárias; 6

Ferroviários; 8

Cremação; 5

Pena de Morte; 3

Desemprego; 13

Saúde; 9

Saneamento Básico; 21

Reforma Agrária/Marítma; 8

Diversos; 30

Temas dos Discursos Oficiais do Deputado Moab Caldas 1958-1966

47

Figura 3 - Percentual das Temáticas dos discursos Oficiais do Deputado Moab Caldas. (1958-1966)

Usando do espaço da tribuna, a questão religiosa ainda é abordada dentro de

outras pautas defendidas pelo deputado, como, por exemplo, a sua posição acerca

da Educação:

Então, devemos educar nossos filhos sob nossos princípios religiosos, que devem ser facultados ao máximo pelo estado, que se constitui e garante pelo voto – força de expressão! Mas, srs. Deputados, o ensino religioso deve ser dado no lar. No lar e depois no templo. Só excepcionalmente na escola. E digo excepcionalmente, porque na escola reúnem-se alunos de diversas condições, de diversas famílias e até sem famílias de diversas confissões – não devendo, por isso mesmo, sentirem o grande abismo que tem separado os homens, por incrível que pareça, porque as religiões, sobretudo as chamadas religiões cristãs, cavaram fossos profundos em suas fronteiras, como nos velhos castelos medievais e assentaram peças de artilharia em suas muralhas. Não é de bom alvitre as crianças conheçam

Religião 15%

Brigada Militar 8%

Educação 12%

Disquite 2%

Justiça 6%

Menor Abandonado

3%

Raça 2%

Política 14% Policiamento

2%

Prostituição 2%

Penitenciárias 2%

Ferroviários 3%

Cremação 2%

Pena de Morte

1%

Desemprego 4%

Saúde 3%

Saneamento Básico

7%

Reforma Agrária/Marítma

3% Diversos

10%

Temas dos Discursos Oficiais do Deputado Moab Caldas 1958-1966

48

nossas misérias. Mas se existem escolas que ensinam religião, que tenham os seus diretores, ao menos por dignidade, por humanismo, por compreensão desse grave problema e não sectarizem seus membros, respeitando naturalmente as convicções. Tal, contudo, não se dá! Não se dá, a não como exceção! E é sobre isso que queremos protestar, esperando que os Mestres venham a público afirmar ou reafirmar o que declaramos aqui. Não compreendemos que escolas teimem em ensinar religião a alunos que não querem receber, sobretudo e isso é essencial, sobretudo em escolas que teimam em ser particulares, vivem com as mãos estendidas para o Estado, exigindo auxílio e subvenções, quando o Estado é absolutamente leigo. E o pior é que muitos diretores de escolas públicas, estão procedendo assim, quando há crise de ensino, quando o problema do ensino é dos mais graves do Brasil. Todos os meses recebo reclamações de pais não católicos que veem seus filhos constrangidos, perseguidos por causa do chamado ensino religioso, que diga-se de passagem é ensino católico, pois as outras confissões não se interessam por ele nos colégios. Chamo a atenção das autoridades responsáveis pelo ensino. Chamo a atenção em especial do Sr. Governador e do Sr. Presidente da República, para coibir o crime que está se perpetrando com os péssimos resultados (CALDAS, 1961, p.309).

Nesse discurso, percebemos a preocupação do deputado com relação à

educação dos adeptos da Umbanda que frequentam o ensino público e gratuito,

como dever do Estado. Ele denuncia a fuga da laicidade do Estado em relação a

haver proselitismo nas práticas do ensino religioso. Na década de 1960, o Ensino

Religioso era obrigatório, porém, em suas diretrizes, não havia orientações à

formação proselitista, ou ainda, favorecimento de uma religião em específico

(BRASIL, 2001) em detrimento das demais. O que Moab percebe é que levando em

conta que um percentual significativo dos umbandistas se encontra em camadas

desfavorecidas da sociedade brasileira (ORTIZ, 1991), estes se encontravam

desassistidos por políticas educacionais que não ferissem seus princípios religiosos.

Ele vocifera na plenária à necessidade de uma educação inclusiva e necessária às

classes populares. Ainda sobre esse discurso, nos apoiamos na afirmação de

Renato Ortiz (1991) que aponta como sendo a Umbanda uma religiosidade de

classes populares e onde, mesmo sob o prisma de um “embranquecimento”, fruto da

miscigenação étnica brasileira pós-início da industrialização do século XX, ainda é

uma religião com um percentual considerável de adeptos de origem negra. Com

isso, chama-nos a atenção a questão racial em um de seus discursos:

A religião do negro, ridicularizada e perseguida, assumiu aspectos de mimetismo, foi colocando-se às formas vivas da concepção nova do espírito e, com o descrédito em que caíram pretensas religiões verdadeiras, que tentaram prender a consciência dentro de muralhas, assumiu novos contornos, acaboclou-se, tornou-se verde e amarela e, por isso mesmo, a Umbanda surpreende e incomoda, porque seus adeptos já são recrutados dentro das universidades e academias. Eu sou médium da Umbanda e não

49

simples frequentador de terreiro. E tenho subida honra em proclamar esta minha condição de fé, dizendo que o negro está presente em minha família, na história, na ciência e na filosofia e, talvez seja por isso que um João de Deus, no lirismo da tristeza, ou um Zumbi, na valentia de Palmares, tenham hoje um parentesco maior e mais militante. Quando se fala, nesta Casa, em “13 de Maio”, fala-se a coleção de aspectos da Sociologia ou da História do Brasil, e é por isso mesmo, que eu quis declarar o aspecto religioso, embora não tenha tempo para aprofundar-me como queria, rememorando aqui os nagôs, os ijexas, os congos e minas, que influenciaram inclusive na nossa música e os nossos postuladores da política. Ainda a poucos dias, capoeiristas de angola, aqui se apresentavam, e mesmo não antevendo, aqueles espectadores, a presença viva do negro que se misturava no próprio sangue da raça (CALDAS, 1963, p. 179-180).

Quando usa a afirmação “a religião do negro”, Moab está buscando suporte

em sua fala para além da questão religiosa. Ele visa apoiar-se também na

legitimação de sua condição parlamentar, através do uso da questão racial. Ele

explicita neste trecho importantes aspectos da cultura afro-brasileira como ritmos

musicais, capoeira ou ainda na figura de Zumbi dos Palmares, buscando uma

aproximação entre a legitimidade que tais ícones possuem, visando comparar a

importância deles com a importância da Umbanda no Brasil. Essa tentativa de

comparação demonstra o interesse do deputado em construir e legitimar a Umbanda

enquanto religião, pois até 1966, a Umbanda não era considerada pelo IBGE como

uma religião, mas como um conjunto de crenças supersticiosas (ORTIZ, 1991, p.55).

A partir desse trecho, percebeu-se que também uma das tentativas de busca pela

legitimação do culto se deu através do uso de formas simbólicas.

O uso das formas simbólicas e de citações a respeito de sua crença visa

construir uma imagem que demonstre sua posição em relação ao meio onde ele

estava inserido e de afirmação em relação a sua identidade. Esse processo de

construção de símbolo (construir a imagem/símbolo de um Deputado Umbandista)

tem por objetivo estabelecer uma relação de sentido do símbolo dentro do

parlamento, ou seja, ele insistir nesse tema em específico cria a presença simbólica

do tema abordado (no caso, a Umbanda), pois, em grande parte das ocasiões onde

ele vai fazer uso da palavra, suas falas contemplam o tema.

O sentido simbólico da presença de um Deputado Umbandista dentro da

Câmara Estadual é a busca por visibilidade e a abertura de novos espaços sociais

visando legitimar, não apenas a Umbanda, mas também todos os valores

socioculturais, códigos culturais, crenças, tradições e representações dos

umbandistas sul-rio-grandenses.

50

Um parlamentar que defende abertamente suas crenças religiosas, em meio a

um espaço de grande influência para a sociedade, gera uma série de repercussões

e formas simbólicas capazes de transformar a percepção do meio social onde o

próprio grupo vive. A presença de Moab Caldas na Assembleia Legislativa abre,

nesse espaço de discussão, mais um local de acesso que até então não havia sido

contemplado pela comunidade Umbandista. Ocupar um espaço nesse ambiente de

grande prestígio social pode apontar a força representativa que o grupo, no qual o

agente histórico está inserido, possui. Ao afirmar sua identidade dentro desse

espaço, também nos faz refletir sobre como a existência dessa identidade auxilia no

respaldo do próprio grupo que, a partir da presença de um de seus representantes

também, se faz presente naquele espaço de poder. Apropriamo-nos do conceito de

espaço a partir de Hans Gumbrecht (2010):

Julgo que está correto associar a dimensão vertical no momento do Ser ao simples fato de que estar ali (mais exatamente, à sua emergência em estar ali e ocupar um espaço, ao passo que a dimensão horizontal aponta para o Ser como estando a ser percebido, o que também quer dizer o Ser oferecendo-se à vista de alguém (como uma aparência e como um ‘ob-jeto’, uma coisa que se move ‘em direção a’ ou ‘contra’ um observador) (2010, p.95)

Com base nesse sentido de afirmação identitária construído a partir da

presença do Deputado na Assembleia Legislativa, percebemos a conquista de um

importante lugar no espaço político, e o rompimento de fronteiras culturais23 que, até

então, pareciam ser intransponíveis para esse grupo social tão estigmatizado.

2.2 CONSTRUINDO UM MANDATO RELIGIOSO

Moab Caldas foi deputado umbandista e a principal pauta de sua legislatura

foi a temática religiosa, ocupando um lugar de destaque em seus discursos, sendo

23

Utilizamos o conceito de Fronteiras Culturais a partir de Sandra Jatahy Pesavento (2002): “Sabemos todos que as fronteiras, antes de serem marcos físicos ou naturais, são sobretudo simbólicas. São marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que guiam a percepção da realidade. Nesse sentido, são produtos desta capacidade mágica de representar o mundo por um mundo paralelo de sinais por meio do qual os homens percebem e qualificam a si próprios, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. Referimo-nos ao imaginário, este sistema de representações coletivas que atribui significado real e que pauta os valores e a conduta. Desta forma, as fronteiras são, sobretudo, culturais, ou seja, são construções de sentido, fazendo parte do jogo social das representações que estabelece classificações, hierarquias e limites, guiando o olhar e a apreciação sobre o mundo” (PESAVENTO, 2002, p.36).

51

ela o carro-chefe de seu mandato. Porém, dentro dessa temática, a Umbanda não é

a única religião a qual ele se atém em suas falas de defesa.

Quando a pauta de seu discurso é o tema Religião, ao analisar os Anais da

Assembleia Legislativa percebemos que, das 46 (15% do total de discursos

proferidos oficialmente na Assembleia dos Deputados em suas duas legislaturas)

vezes em que o Deputado evoca como tema principal de pauta a religião, em 19

ocasiões ele se refere a outras culturas religiosas e não só a Umbanda, ou seja, da

totalidade de suas falas sobre religião, 40% delas contemplam religiões que não a

sua.

Com o intuito de construir um mandato que tivesse como viés central a defesa

e a visibilidade da Umbanda, mas que pudesse, para, além disso, formar uma

aliança com outras expressões religiosas também presentes no Rio Grande do Sul,

ficam perceptíveis nos seus discursos algumas tentativas de aproximação com

outros cultos, em especial, uma busca de uma proximidade com o espiritismo.

Segundo Gizele Zanotto (2011), o campo religioso brasileiro é muito diverso,

portanto, em meio a essa pluralidade religiosa, o fato de Moab Caldas ter buscado

construir alianças que fortalecessem o seu mandato, através da aproximação de

outros cultos mediúnicos, se mostrou como uma estratégia para a legitimação do

próprio mandato. Em 10 oportunidades nas falas do deputado são ressaltados

aspectos positivos, importância do culto e representatividade da comunidade

espírita, São colocados em pauta pedidos de providência a instituições espíritas

como o Albergue Espírita Dias da Cruz e ao Sanatório Espírita da cidade de Pelotas,

que passavam por dificuldades financeiras. Também há demonstração de

entusiasmo e euforia como na visita do médium Divaldo Pereira Franco ao Estado

do Rio Grande do Sul e em relação ao médium Chico Xavier, que fora palestrar nos

Estados Unidos da América, ou ainda a menção sobre a importância do centenário

do Evangelho Segundo o Espiritismo publicado pela primeira vez na França em

1864.

Essa proximidade que Moab Caldas buscava com o Espiritismo não era

restrita a sua atuação na Assembleia. Segundo Renato Ortiz (1991), a aproximação

da Umbanda com o Espiritismo era um fenômeno nacional. Segundo o autor, com o

crescimento da urbanização no século XX no Brasil e a vinda de imigrantes

europeus durante das primeiras décadas do século, fizeram com que os elementos

52

de culturas consideradas atrasadas24 fossem rechaçadas. Houve uma valorização

dos elementos culturais/simbólicos europeus e com isso percebeu-se na Umbanda

um afastamento das influências das religiões matrizes africana e uma aproximação

com o Espiritismo vindo da Europa. Artur Isaia, ainda nos mostra um esforço dos

intelectuais da Umbanda, em aproximar-se do Espiritismo e afastar-se das Religiões

de matrizes africanas, através do letramento:

A presença da magia no livro e o trabalho dos intelectuais são vistos a partir da sua busca pelo escriturístico, fugindo do que consideram o caráter ágrafo do candomblé. Defendo que essa busca é indicativa de um esforço de determinado setor da umbanda em situar-se contemporaneamente à modernidade, em oposição às expectativas nutridas por vários discursos (como o médico, o jurídico e o católico), que viam a nova religião, tanto como sintoma de atraso, quanto não a diferenciando do candomblé, catimbó, macumba etc. Reitera-se sempre a intenção desse setor em nomear a realidade e ter a palavra avalizada sobre tudo o que concerne à umbanda, opondo-a ao que dificultasse sua identificação com o progresso, com a modernidade (2011, p. 735).

Por diversas vezes, o próprio deputado afirma ser “médium de terreiro ou

mesa”, ou ainda “espiritualista de Umbanda”, buscando construir uma relação entre

o culto umbandista e o espiritismo.

Ninguém se iludiu conosco porque sempre afirmamos de público, nossa condição de espirita, de médium de terreiro ou mesa, recebendo orixás, caboclos, pretos-velhos ou outras entidades, mas trabalhando de peito descoberto, porque estamos na hora das definições (CALDAS, 1961, p. 350).

Além do Espiritismo, que é tema recorrente de suas falas, aparecendo em um

total de 10 menções durante seus pronunciamentos, Moab Caldas ainda busca

construir um diálogo com o Budismo quando faz um pronunciamento a respeito do

auto sacrifício de cinco monges budistas no Saigão (atual cidade de Ho Chi Minh, no

Vietnã) em virtude da perseguição sofrida por eles, fruto da intolerância religiosa

exercida pela Igreja Católica do país, como pudemos perceber na fala do Deputado

citada acima. Também estende suas preocupações em casos como no processo

contra o “curandeiro” denominado como Zé Arigó e até mesmo na defesa contra os

processos emitidos contra uma escola de Hipnotismo que se instalara na cidade de

Porto Alegre no início do ano de 1960.

24

Nas palavras de Renato Ortiz: “Empregamos o termo embranquecimento, no mesmo sentido de Roger Bastide para subir individualmente na estrutura social, o negro não tem alternativa, ele precisa aceitar os valores impostos pelo mundo branco; ele vai pois recusar tudo aquilo que tem uma forte conotação negra, isto é, afro-brasileira”. (1991, p.33)

53

Tomando como base os percentuais obtidos através da análise dos anais da

Assembleia Legislativa, percebemos que, mesmo existindo um declínio no número

de menções no tocante dos temas acerca de Religião no primeiro mandato de Moab

Caldas, existe um aumento gradual na quantidade de falas sobre a temática

religiosa nos pronunciamentos de um mandato para o outro. Como podemos

observar na figura número 3, referente ao primeiro mandato do deputado (de 1959 a

1962), houve 13 pronunciamentos oficiais acerca do tema Religião. Mesmo que haja

um declínio no número de vezes em que esse tema aparece nos autos ainda assim,

na maior parte do mandato ele se mantém constante.

Na figura número 4 podemos perceber que, do ano de 1963, quando assume

o segundo mandato, ao ano de 1965, há um aumento de 120% no total de

pronunciamentos com temática acerca de religião. Visto isso, o que causa esse

aumento no número de posicionamentos em relação à religiosidade? Acreditamos

que Moab Caldas buscava consolidar seu mandato enquanto deputado que pautava

a temática religiosa, mas que, acima de tudo, queria solidificar o seu posicionamento

enquanto deputado umbandista.

Figura 4 - Número de pronunciamentos com o tema Religião, nas falas oficiais do Deputado Moab

Caldas. Primeiro Mandato 1959 a 1962.

0

1

2

3

4

5

6

1959 1960 1961 1962

Primeiro Mandato

54

Figura 5 - Número de pronunciamentos com o tema Religião, nas falas oficiais do Deputado Moab

Caldas. Primeiro Mandato 1963 a 1966.

2.3 UM DEPUTADO UMBANDISTA

Quando um determinado grupo conquista um espaço de poder dentro da

sociedade, esse grupo ganha visibilidade. Tal visibilidade oportuniza que esse grupo

ganhe um mínimo de evidência, que anteriormente não havia. A presença de um

representante político desse grupo em um espaço de poder constrói uma noção de

representatividade25 para os seus integrantes (no caso desta pesquisa, dos

umbandistas). Essa representatividade cria um sentimento positivo no grupo em

questão, construindo nessas pessoas uma elevação da própria autoestima e

possibilitando, assim, um sentido de percepção, consciência e valorização de seus

integrantes enquanto grupo.

Essa visibilidade, somada à afirmação identitária que a presença de um

representante traz para o próprio grupo estando em um espaço de poder que, até

então, não havia tido representação, cria uma série de referenciais positivos de

25

Entendemos a representatividade do agente político a partir de René Rémond: “O político é uma das expressões mais altas da identidade coletiva: um povo se exprime tanto pela sua maneira de conceber, de praticar, de viver a política tanto quanto por sua literatura, seu cinema e sua cozinha. Sua relação com a política revela-o, da mesma forma que seus outros comportamentos coletivos.” (RÉMOND, 2003, p. 449-450)

4

5

6

7

8

9

10

11

12

1963 1964 1965 1966

2º Mandato

55

consciência para esses integrantes em questão. Esses referenciais positivos são

importantes ferramentas para a construção do ser, pois eles ajudam a descontruir

estereótipos e combatem as negligências, no sentido de que positivam aspectos

negativos do grupo como, por exemplo, a falta de representatividade.

O reconhecimento do “eu” através da ação afirmativa presente no símbolo de um

representante de grupo inserido em um espaço social de prestígio cria um

precedente. A partir desse precedente, cria-se espaço para que outros agentes

históricos desse mesmo grupo possam repensar sua própria condição do ser dentro

de territórios que, até então, não faziam parte do imaginário do grupo, mas que

agora passam a estar presentes inclusive no repertório mental do grupo.

Para além disso, a legitimação de um agente símbolo do grupo dentro de um

espaço de poder eleva a autoestima do grupo no tocante da identificação. Esse

grupo, que agora se vê representado, passa a apropriar-se da própria identidade de

maneira a reconhecer-se como parte do grupo e usar como identificação a própria

identidade. Há uma quebra da invisibilidade e rompimento do estigma. Há a

identificação do ser com grupo e a afirmação positiva desse fator. Exemplificamos

essa questão através de uma carta enviada para o Deputado Moab Caldas no dia 15

de dezembro de 1963, lida no dia 02 de outubro de 1964, durante sessão ordinária

na Assembleia onde, na ocasião, se discutia a criação de um “Banco de Olhos” para

futuros transplantes de córneas em pessoas com deficiência visual:

Exmo. Sr. Deputado Umbandista. O meu Saravá! Salve. Venho por meio destas mal traçadas linhas an’e V. Exa. Ofertar meus olhos, que muito enxergaram nessa vida de muita miséria e pouca glória. Quero ofertar meus olhos ao BANCO DE OLHOS. Quero que meus olhos venham a servir aos meus irmãos cegos, afim de que eles tenham ciência, das coisas bonitas que a vida também possui. Que quando eu morrer, saiba que alguém vai beneficiar-se com isso, já que ajudei pouco durante essa existência de viagens e trabalheiras. Eu sou um aparelho de Xangô-Caô. Já estou imprestável e com 64 anos, sinto que a morte se aproxima. Trabalho de carroceiro e não tenho inimigos nem família. Pra mim a humanidade é uma só e não distingo as pessoas pelos diplomas ou riquezas, muito embora os de colarinho duro vejam em mim apenas um velho puxador de carroça que nem lhes merece um bom dia... Todos os dias as 18 horas, estou em casa, faça chuva ou faça sol, para ouvir o irmão Maior. Deixo até de comer ou trabalhar para escuta-lo pois sua palavra me serve de luz e estímulo. E escutando o irmão falar das misérias da vida e sobre os cegos, lembrei-me que também eu, que sou pobre, tinha algo a dar a humanidade. Por isso ofereço meus olhos, que são as únicas partes do meu corpo que estão sadias. Deixo a seu critério. Eu moro no CRISTAL. No PRADO. CACHOEIRA nº28. Sou conhecido pelo apelido de “PAISANO”. Aqui aguardo suas ordens e que os Caboclos e Pretos Velhos permitam que eu, ao morrer, possa ajudar aqueles que nunca viram o sol ou a lua. Saravá a

56

Umbanda! O irmão de Lei, OSMAR ARES ESCOBAR (CALDAS, 1964, p. 215).

A correspondência acima demonstra que há de fato, o reconhecimento do

Deputado Moab Caldas pela comunidade umbandista enquanto seu representante.

Podemos perceber que ele criou/tornou-se para o grupo ao qual representa uma

figura de referência para consolidação de sua própria identidade de grupo.

Percebemos na fala que há códigos culturais próprios dos adeptos, quando ocorrem

menções à “sarava”, “Xangô-caô”, “Caboclos” e “Pretos Velhos”. A presença desses

códigos é um indicativo de identificação, pois não havendo explicação de seu

significado in loco, subentende-se que o receptor da correspondência está

apropriado dos termos para não necessitar de uma explicação quanto a seus

respectivos significados. Portanto, ao escrever “Exmo. Sr. Deputado Umbandista” o

remetente afirma que o parlamentar para o qual está escrevendo, de fato, pertence

ao grupo que ele referencia. O reconhecimento do deputado como “Deputado

Umbandista”, expresso na correspondência lida no plenário, mostra que a intenção

de busca por uma consolidação identitária do mesmo foi profícua, uma vez que o

próprio grupo o reconhece como tal e o afirma como representante simbólico do

grupo:

Partindo do princípio que a autoridade é uma abstração, então investir ou desinvestir alguém de autoridade significa utilizar rituais públicos, pois, para o autor, o ritual constitui poder e não apenas reflete um poder que já existe. Mediante um ritual, um indivíduo passa a ser identificado com um papel de liderança, de alto mandatário, porque, ao se entronizado ritualmente no novo cargo, ele assume uma nova personalidade, um novo self (CAMURÇA, 2009, p.244).

Em diversas ocasiões é citado pelo deputado o crescente número de

umbandistas no Rio Grande do Sul. Ele exemplifica mostrando o quanto a Umbanda

vem ganhando adeptos e ainda reforça os próprios argumentos através dos relatos

das próprias viagens e dos dados da Federação a qual representa, como por

exemplo:

Aqui no RGS existem 12.500 tendas de Umbanda, além do jornal “A voz Umbandista”, com tiragem, de 10.000 exemplares por mês, 8 programas radiofônicos, etc. Além de grupos familiares que são inúmeros. Mas de quem é a culpa? Em Caxias do Sul, existem mais de 100 terreiros em funcionamento. Quais os motivos psicológicos dessa proliferação? É o caso de se perguntar qual a razão do vazio das Igrejas? Aqui no RS 1.250.000 pessoas estão todas as noites nos terreiros de Umbanda. Por que? Este é um assunto sério, que diz respeito ao estado de desespero que se encontra a sociedade (CALDAS, 1959, p.150).

57

Ou ainda:

Os 10.000.000 de umbandistas brasileiros comemoram hoje, a data da “Abolição da Escravatura”, realizando cerimônias especiais. Os 13.000 terreiros de Umbanda no Rio Grande do Sul, estão em festa e os 1.500.000 de adeptos desta terra farroupilha, estão também com o coração transbordante de alegria por essa data de tanta significação (CALDAS, 1963, p. 180).

Assim, como em ambos os discursos mostrados acima se pode perceber um

gradual e significativo aumento dos Templos de Umbanda no Rio Grande do Sul no

período. Nota-se que da eleição de Moab Caldas no primeiro mandato, onde ele se

elegera com 7.107 votos, para a eleição que o mantém como deputado, onde ele

obtém 8.581 votos, temos um crescimento de 21%. Ressaltamos que não temos

como apurar a quantidade de votos oriundos dos umbandistas, porém, queremos

demonstrar o percentual total de aumento dos votos obtidos por Moab Caldas em

ambos os pleitos em que disputou como candidato à Assembleia Legislativa. Na

figura número 5, podemos acompanhar a escala crescente de votos obtidos pelo

Deputado, da primeira eleição para a segunda:

Figura 6 - Escala de votos do Deputado Moab Caldas. Primeira eleição 1958 e Segunda eleição

1962.

Acreditamos que os fatores como aumento do número de eleitores, reeleição

e expressivo crescimento de falas com temática religiosa dentro do parlamento não

1958 Primeira Eleição 1962 Segunda Eleição

MER

O D

E V

OTO

S

7.107

8.581

58

sejam coincidência. Constam nos anais da Assembleia Legislativa cinco viagens de

longa duração feitas pelo deputado em visitas a cidades do Rio Grande do Sul.

Somadas tais viagens, onde Moab Caldas ia palestrar sobre a Umbanda, ou ainda,

chamado para auxiliar na criação de Federações e Ligas e, também, como figura de

respaldo a apadrinhar novos templos recém inaugurados, sejam alguns dos fatores

que comprovam sua legitimidade enquanto representante dos umbandistas na

Assembleia Legislativa.

O governo de Getúlio Vargas26 foi marcado pela perseguição aos cultos afro-

brasileiros e de matriz africana. Segundo Artur Cesar Isaia, é bastante conhecida do

grande público a repressão a que a Umbanda e as religiões africanas estiveram

sujeitas à época de Vargas. Essa repressão efetivamente existiu, e as fontes

comprovam-na (2009, p.124). Um dos motivos que levaram a essa perseguição foi

fruto do sentimento de nacionalismo que o governo incentivava e impunha, portanto,

tudo que não exaltasse a cultura nacional, ou que estivesse ligado às tradições que

remetessem a uma ancestralidade não brasileira, era coibido. Com o fim da Era

Vargas iniciam-se processos de gradual mudança no cenário afro-religioso

brasileiro, como, por exemplo, a promulgação da Lei de Liberdade Religiosa27 que é

um importante marco na legislação a favor a liberdade de crenças.

Todos esses eventos citados vieram a contribuir como itens facilitadores para

a eleição e mais tarde para a efetivação do mandato de Moab Caldas. A lei de

Liberdade Religiosa abre no cenário nacional um princípio de laicidade oferecendo a

possibilidade de candidatura e eleição de candidatos não cristãos. Entendemos

Laicidade do Estado, a partir de Marília Domingos como ao mesmo tempo o

afastamento da religião do domínio político e administrativo do Estado, e do respeito

26

Segundo Maria Helena Capelato, o governo de Getúlio Vargas também conhecido como “Era Vargas” corresponde ao período dos anos de 1930 a 1945, e fora marcado por uma forte onda nacionalista, o que incluía um certo negligenciamento à culturas e tradições que possuíssem um viés mais voltado às raízes africanas, em especial, destaque a perseguição os cultos afro-brasileiros e de matriz africana. (2003, p.118) 27

Conhecida como Lei Jorge Amado, a Lei de Liberdade Religiosa no Brasil, foi proposta em 1946 pelo Deputado Federal do PCB Jorge Amado. Essa Lei anexada ao Artigo nº5 da Constituição, garante livre culto a qualquer expressão religiosa no Estado Nacional, desde que o culto respeite a Laicidade do Estado. Tal Lei seria reformulada e ganharia nova roupagem apenas na Constituição de 1988, tornando-se então, definitiva. “Artigo 5º:(...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;” (BRASIL, 1988.)

59

ao direito de cada cidadão de ter ou não ter uma convicção religiosa e de professá-

la. Tem como ideal a igualdade na diversidade, o respeito às particularidades e a

exclusão dos antagonismos. Por igualdade na diversidade, entende-se o igual

respeito a todas as religiões e àqueles que não professam nenhuma religião. O

mesmo princípio se refere ao respeito às particularidades. A exclusão dos

antagonismos reflete não apenas o respeito, mas principalmente a tolerância ao

outro, suas crenças e práticas (2009, p. 50).

O Rio Grande do Sul não estava deslocado do cenário nacional em relação a

tais acontecimentos. Segundo Renato Ortiz o movimento umbandista é no Rio

Grande do Sul quase que simultâneo ao do Rio; as razões são naturalmente de

ordem histórica, visto que estes dois Estados são pioneiros no que diz respeito a

Umbanda (1991, p.57). Assim como nas demais partes do País, no Rio Grande do

Sul nas décadas seguintes ao fim da Era Vargas ocorreu um crescimento no

percentual de adeptos da Umbanda (ORTIZ, 1991). Essa movimentação nacional

umbandista era percebida pelo crescente número de novos adeptos e esses

acontecimentos do período foram denominados por intelectuais da Umbanda como

“Terceira Onda Umbandista”:

Essa terceira onda marca o que vou chamar de expansão vertiginosa da Umbanda, que tem início em 1945, com o fim dos 15 anos de Ditadura Vargas, término da Segunda Guerra Mundial, retorno à política eleitoral e promulgação da Lei de Liberdade Religiosa. Esta foi a conquista fundamental para as religiões afro-brasileiras em geral e à Umbanda em específico. É o período de maior expansão umbandista de todos os tempos, conquistando expressão na mídia, representação política e reconhecimento público. (CUMINO, 2011, p. 158)

Dentro do que se denominou Terceira Onda Umbandista, ou seja, período pós

Era Vargas e promulgação da Lei de Liberdade Religiosa, no qual houve um

significativo aumento no percentual de adeptos da Umbanda, percebeu-se no

Estado do Rio Grande do Sul, em especial, a ascensão ao campo da política de

representantes da Religião Umbanda, dentre esses nomes está o de nossa figura

histórica em questão, Moab Caldas: “No Rio Grande do Sul, é eleito Moab Caldas,

que também mantinha um programa de rádio. Esse mesmo estado elegeria três

prefeitos umbandistas e cerca de 20 vereadores.” (CUMINO, 2011, p.164).

A força da presença de um representante umbandista dentro de um espaço

de poder de tamanho prestígio destaca-se como um importante recurso para a

consolidação da identidade desse grupo. Perceber que esse reconhecimento ajuda

60

a dar visibilidade e projeção a esse grupo é uma importante estratégia para a

compreensão da própria história da Umbanda no Brasil, e, em especial, no Rio

Grande do Sul e a garantia do “status” de poder do Deputado.

61

3 DA TRIBUNA AO POVO: O FINAL DA CARREIRA DE DEPUTADO

E A CRIAÇÃO DE LIGAS UMBANDISTAS PELO RS.

Começamos nosso último capítulo buscando compreender quem eram os

principais nomes com os quais Moab Caldas criou alianças durante seu mandato e

qual a importância que esses nomes tinham dentro do espaço onde atuavam.

Perceber a influência que esses sujeitos tinham dentro de seus meios é fundamental

para que ampliemos nossa visão acerca das intenções políticas dessas relações

entre o parlamentar e os sujeitos aos quais serão supracitados.

Dos personagens que escolhemos, por acreditarmos terem um determinado

grau de relevância nas legislaturas de Moab Caldas, destacamos Carlos da Silva

Santa, político contemporâneo e correligionário de Moab, que por diversas vezes o

apoia dentro da Assembleia Legislativa. Dom Vicente Alfredo Scherer, Arcebispo da

cidade de Porto Alegre, com o qual o parlamentar esforçou-se numa tentativa de

aproximação, como provamos através de correspondência pessoal anexada nesta

dissertação. Egydio Hervê líder da Federação Espírita e político que, ao se converter

a Umbanda, teria tido um importante papel na consolidação da União de Umbanda

do Rio Grande do Sul e Leopoldo Battiol, amigo pessoal e escritor da temática

umbandista, que, além da participação na coordenação do II Congresso Brasileiro

de Umbanda (1961), teria sido a ponte entre Moab Caldas e o cenário umbandista

nacional.

Nos aproximando do final do capítulo, retratamos alguns aspectos dos últimos

anos de Moab Caldas na condição de parlamentar da Câmara dos Deputados e

analisamos o impacto da cassação de seus direitos políticos pela AI-5. Findamos

nossas considerações com o que consideramos “vestígios” que apontam os rumos

que Moab Caldas tomou após sua passagem pela Assembleia e apontamos

possibilidades de novas pesquisas acerca dessa temática.

3.1 AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS DE MOAB CALDAS

Moab Caldas encerrou seu segundo mandato como Deputado Estadual no dia

31 de janeiro de 1967. Mesmo que tenha concorrido pela terceira vez ao pleito

estadual, Moab não alcança uma cadeira efetiva na Câmara, tendo ficado como

62

suplente. Este fato explicita nosso marco temporal, já que nossa proposta visa

perceber a atuação de Moab Caldas enquanto parlamentar de fato. Ainda que não

tenha sido eleito, é notório que durante sua estadia na Câmara, enquanto Deputado,

sua participação naquele espaço foi distinta, não apenas pelos seus inflamados

discursos a respeito da Umbanda, mas também pelas alianças políticas feitas.

Dentro e fora da Câmara as articulações de Caldas foram diversas e o que nos

chama a atenção, em especial, é que as alianças feitas por ele foram construídas

com personagens pertencentes não apenas ao meio político de fato, mas que

tinham grande relevância em seus nichos.

Iniciamos nossas reflexões acerca de suas articulações políticas através da

aproximação com o também Deputado Estadual, eleito pelo PTB, Carlos Santos28.

Em diversas oportunidades foram citados nos Anais da Assembleia Legislativa29,

menções em que Carlos Santos e Moab Caldas trocam apoio mútuo. Inclusive,

segundo Arilson dos Santos Gomes (2015), como estratégia política, o Deputado

Carlos Santos chega a frequentar algumas casas de religião de matriz africana:

No parlamento, quando chefe do legislativo, uma comitiva formada por membros da cultura negra baiana, representando o candomblé, também foi prestigiada pelo político em uma visita, realizada pela comitiva com o fim de levar aos deputados, incluindo a Moab Caldas, os conhecimentos de sua religião ao Legislativo. Na ocasião, foram apresentados Joãozinho da Goméia, do Rio de Janeiro, em conjunto com seus sacerdotes. Contudo, essas visitas também ocorriam inversamente. Não que Carlos Santos fosse a Bahia participar dos ritos do Candomblé (o que pode ter acontecido) mas o político, em companhia de sua esposa, em certas ocasiões, para relacionar-se com eleitores ou como membros da tradição africana, frequentava as comunidades de terreiros de batuque em Porto Alegre, casas de religiões de matriz africanas, para reforçar seus laços e fortalecer seus espíritos associativos. As casas de batuque em que eles eram vistos, localizavam-se no bairro Cidade Baixa, reduto reconhecidamente negro da capital. Caracterizando que, mesmo o político sendo católico fervoroso, as religiões de matriz africana estavam muito próximas aos referenciais culturais, desse homem, mas identificado de corpo e de alma com aspectos culturais de seu grupo social, a comunidade negra (GOMES, 2015, p.76).

Por ter sido membro de religiões afro-brasileiras e por ter estado envolvido em

questões associativas correlatas a essas práticas religiosas, Moab Caldas se torna

28

Segundo Arilson dos Santos Gomes (2015) Carlos da Silva Santos nasceu em 9 de dezembro de 1904 na cidade de Rio Grande – RS e faleceu em 8 de maio de 1989, foi um importante expoente político do século XX no Rio Grande do Sul, tendo sido o primeiro negro a ocupar o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados do Estado do Rio Grande do Sul. Foi eleito pelo PTB e mais tarde reeleito pelo MDB. 29

Este levantamento a cerca das menções mútuas de Carlos Santos e Moab Caldas foi feito a partir dos Anais da Assembleia Legislativa encontrados no Fundo Arquivístico do Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Endereço: Rua Duque de Caxias, número 1029, Centro Histórico, Porto Alegre – RS, CEP: 90010-280.

63

uma referência dentro do parlamento no tocante dessa temática. Nossa afirmação

se torna evidente e ganha mais peso, quando, mesmo que na tentativa de construir

uma imagem de “O Deputado Umbandista” para a população em geral através de

seus discursos na plenária percebemos que também dentro do espaço legislativo

Moab acabou por se tornar um referencial no que tange as religiões afro-brasileiras

e como vimos, inclusive servindo como mediador entre Carlos Santos e os afro

religiosos visitantes da Bahia.

Arilson dos Santos Gomes ainda nos dá subsídios que demonstram uma

relação ainda maior de Moab Caldas com seu colega de Assembleia Carlos Santos.

Além da temática religiosa, outro fator que o aproxima de Moab Caldas é a

discussão étnico-racial. Como vimos no capítulo anterior, no gráfico número 2, que

contém os percentuais acerca dos discursos de Moab Caldas, ainda que sejam

apenas 2% as menções do parlamentar sobre as questões raciais, seus discursos

ganharam eco nas falas de Carlos Santos. Em especial, destacamos os

pronunciamentos de Moab sobre o dia 13 de Maio, quando, junto de Antônio

Bresilim do PTB e de Carlos Santos do PTB, ganham notoriedade as falas a respeito

da temática do Dia da abolição da escravatura:

Sobre o preconceito racial, Carlos Santos explanou pouco sobre essa assertiva no ano de 1960. Entretanto, algumas situações foram problematizadas pelos nossos exames, já que em um primeiro momento, sentiu- se que os dispositivos discursivos emitidos por Carlos Santos, embora reduzidos: ou foram silenciados pelos taquígrafos responsáveis pelas transcrições, ou os registros foram alterados dos Anais da Assembleia após anotações dos responsáveis. O que denota os limites dessa fonte documental oficial. Antes de aprofundar essa discussão, são compostas as análises dos temas relacionados à identidade negra por meio de dois discursos pronunciados pelos colegas de Carlos Santos, na tribuna no dia 13 de maio de 1960, deputados Antônio Bresilin (PTB) e Moab Caldas (PSD), que discursaram sobre “os negros na abolição”. Na ocasião, estava se completando o septuagésimo segundo aniversário da data símbolo da libertação dos escravizados. Nesse sentido, nesta etapa da tese, serão dinamizados os debates da pesca e da negritude, concomitantemente (GOMES, 2015, p. 238).

Sobre os discursos de Moab Caldas, Arilson dos Santos Gomes (2015) faz

uma criteriosa análise do conteúdo do discurso do dia 13 de Maio de 1960, que

merece nossa atenção:

No dia 13 de maio de 1960, estava-se comemorando os 72 anos da Abolição da Escravatura do Brasil. Na época, essa data ainda era muito festejada por grande maioria da sociedade. Curiosamente nesse dia, poderia ter sido Carlos Santos o primeiro a homenagear a data festiva, mas

64

foram outros deputados que iniciaram a falar da tribuna: Moab Caldas (PSD) e Antonio Bresolin (PTB). Moab Caldas da tribuna falou: Sr. Presidente! Srs. Deputados! A data de hoje assinala mais uma passagem aniversária da chamada Abolição da Escravatura! Salve o treze de maio! Gajulô em todas as linhas! - Senhores deputados nosso povo e a fusão de três raças tristes, sob o processo da assimilação que ainda que ainda se funde e estabiliza pouco a pouco sua hegemonia, cristalizando princípios sãos e condicionando- os a uma superestrutura que há de caldearum tipo novo na bio-psicologia(...) Entretanto, Moab Caldas sentencia:

O sofrimento do negro há de perdurar pelos séculos afora, para mostrar que, por detrás dos florões mais edênicos de nossos sonhos e realizações, cicatrizes existem, ainda incuradas, como uma lenda trágica, até que apaguemos as últimas fimbrias pela recomposição moral ou como dizia bardo, com as espumas do mar (...) o negro ainda sofre o ferrete das correntes e, consequência dos évos, sua trilha ainda é cheia de dificuldades, que vão sendo conquistadas pelo exemplo e pela tenacidade (...) Moab Caldas (PSD) citou a guerra dos Palmares e Zumbi (1655-1695) e a revolta dos Malês (1835) em seu longo discurso, lembrou de Marcílio Dias (1838-1865), Luiz Gama (1830-1882) e Patrocínio (1853-1905), falou em João Cândido (1880-1969), Martiniano Bomfim (1859-1943), famoso Babalorixá baiano, e Mãe Aninha (1869-1938), Ialarixá baiana, e elogiou Carlos Santos em sua “defesa de uma pensão a João Cândido”. Enfatizou que: “O sofrimento do negro há de perdurar pelos séculos afora, para mostrar que, por detrás dos florões mais edênicos de nossos sonhos e realizações, cicatrizes existem, ainda incuradas”. Interessante notar a ambivalência no discurso de Moab Caldas, tal a complexidade do tema, ainda hoje, ao citar a importância da assimilação e a fusão das raças como algo positivo, mas ainda utópico já que cotidianamente o negro ainda “sofre o ferrete das correntes” (GOMES, 2015, p.246-247).

Segundo Antônio Sérgio Guimarães (2001), dos anos de 1930 até 1964 foi

vigente no Brasil um ideário de democracia racial, pois a partir de um plano

desenvolvimentista dos governantes nacionais, buscou-se “integrar” a população

negra através da assimilação de uma cultura dita nacional. Não que a inclusão fosse

profícua de fato, porém, pode-se notar que, a partir de implementos de governos

populistas como Getúio Vargas, onde a exaltação da cultura nacional era vigente,

buscou-se utopicamente dissipar os traços da singularidade populacional brasileira.

Nas décadas de 1950 e 1960, a população em geral tinha sim a crença na

proficuidade da miscigenação entre as três raças, ficando restrita a discussão sobre

uma efetiva miscigenação ao âmbito acadêmico universitário, no qual a maioria da

população brasileira da época não tinha acesso. Reforçamos nosso argumento, a

partir de Guimarães (2001):

65

O que continua em jogo, portanto, é a distância entre discursos e práticas das relações raciais no Brasil, tal como Florestan e Bastide argumentavam nos idos anos 1950. Ainda que para as ciências sociais o mito não possa ser pensado da maneira maniqueísta como Freyre e Florestan o pensaram, transpondo-o diretamente para a política, permanecem os fatos das desigualdades entre brancos e negros no Brasil, apesar do modo como se classifiquem as pessoas. Mais que isso: as diferenças raciais se impõem à consciência individual e social, contra o conhecimento científico que nega as raças (são como bruxas que teimam em atemorizar ou como o sol que, sem saber de Copérnico, continua a nascer e a se pôr?). Os estudos sobre as desigualdades raciais no Brasil, elaborados inicialmente no âmbito da sociologia e da demografia, ganham outras disciplinas sociais, como a economia , enquanto saem das universidades e se aninham nos órgãos de planejamento estatal [...] (GUIMARÃES, 2001, p. 161).

Após analisarmos os Anais referentes aos dois mandatos do Deputado,

percebemos que era recorrente que, em todos os anos (ainda que em algumas

vezes o discurso não coincidisse com o dia, de fato) Moab Caldas discursava sobre

a importância da data do dia 13 de maio para a comunidade negra do País. Porém,

seu discurso estava para além da questão étnica, já que, como vimos, o dia 13 de

maio é um dia fundamental dentro da religião de Umbanda, já que é a data onde se

comemora o “Dia dos Pretos-Velhos” e sabendo que a entidade principal com a qual

Moab Caldas trabalhava tinha por nome “Pai Domingos” e possuía o arquétipo de

Preto-Velho, fica notória a importância dessa data, não apenas no sentido racial,

mas também no sentido religioso. Portanto, acreditamos que a ambivalência com a

qual ele se apresenta no discurso acima citado não reside no fato de ele não ter uma

compreensão maior sobre a situação em que se encontrava a população negra da

época, mas sim, em como um religioso que tem no dia 13 de Maio uma data de

tamanha importância histórica e relevância espiritual é influenciado pelo sentimento

que a sua vivência religiosa o trás.

Além do Deputado Carlos Santos, outra aliança de Moab Caldas que nos

chama atenção é a sua amizade com o Arcebispo da cidade de Porto Alegre – RS,

Dom Alfredo Vicente Scherer30. Nascido em 05 de fevereiro de 1903, na cidade de

Bom Princípio, interior do Rio Grande do sul, Dom Vicente Scherer foi Arcebispo de

Porto Alegre de 1961 até 1981. Durante nossas pesquisas para a construção desta

dissertação, foram inúmeras as vezes em que Moab Caldas apresentou uma postura

crítica em relação a Igreja Católica, sobretudo, com relação a laicidade do estado no

que tange a educação.

30

As informações sobre Dom Vicente Alfredo Scherer utilizadas neste trabalho, foram apropriadas a partir da dissertação de mestrado de Rafael Kasper (2012), defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) no ano de 2012.

66

Um dos nomes mais frequentes (que aparece em 3 oportunidades, durantes

os discursos de Moab Caldas) no qual o parlamentar cita em tom de severa crítica é

o do Frei Carlos José Boaventura Kloppenburg.

Segundo Michele de Castro Ribeiro, Carlos José Boaventura Kloppenburg

nasceu na Alemanha no dia 11 de fevereiro de 1919 e faleceu em 08 de maio de

2009 no município de Vale dos Sinos no Rio Grande do Sul. Mais conhecido como

Frei Boaventura, foi um dos grandes expoentes do catolicismo do século XX,

combateu o Espiritismo e todos os tipos de religiões mediúnicas. Frei Boa Ventura

publicou inclusive, um livro intitulado Material para instruções sobre a heresia

Espírita no ano de 1953, onde narrou alguns pontos abordados nos livros de Allan

Kardec e fez uma análise dos mesmos tendo chego a conclusão de que é

impossível ser católico e frequentar centros espíritas (2009, p. 1).

Moab ressalta em alguns pronunciamentos o fato de que o Frei Boa Ventura

por diversas vezes, vai a praça pública discursar contra a Umbanda e as religiões de

matrizes africanas, promovendo atos de intolerância religiosa. Não restrito ao

espaço público, ele ainda se inseria dentro de espaços escolares e cria momentos

de constrangimento para estudantes adeptos da Umbanda e de outras religiões

espíritas e espiritualistas, além disso, segundo Moab, o Frei chegava ao ápice de

quebrar imagens sacras para os umbandistas em praça pública:

Vale dizer que é público e notório que os filhos de espíritas e umbandistas sofrem constrangimento não só no Rio Grande mas em todo o Brasil. Quanto ao fato do Frei Boaventura ter dado uma aula, no Instituto de Educação, pelo que protestei junto a Diretoria, devo dizer que o meu protesto não foi pelo fato de ele ter dado aula, em si, mas precisamente pelo fato como ele falou das outras religiões. Dentre as alunas que assistiram à aula, havia muitas espíritas e umbandistas [...] Assim regresse o Frei Agitador para o interior de sua igreja e vá orar. Ali também ou encontrará uma grande força espiritual, cheia de beleza e majestade. Mas abra o coração, para que, na sua simplicidade primitiva da igreja de Jerusalém, novamente possa ser um dos homens do caminho, pregando as maravilhas do Evangelho do Reino. E verá, então que, para ser-se um condutor de homens, no setor da religiosidade, torna-se necessário muita humildade e resignação. Os caboclos, legítimos donos desta terra; e os pretos-velhos que regaram com o sangue as nossas cidades, que a todos nos acolha, agora e sempre, porque de qualquer forma, com a proteção dos Orixás Maiores, a Umbanda seguirá para a frente! (Palmas) (CALDAS, 1959, p. 23-24).

Moab ainda reitera a crítica ao Frei:

- Há, contudo, um princípio ético – e de respeito – que principalmente um cristão não deve derruir. Foi sobre isso que protestamos. O Frei Agitador tinha o direito, como indivíduo, de dizer o que disse; mas como cristão não podia falar como falou, pois chocou, feriu, maculou aquilo que o povo tem de mais puro – a Fé. [..] - Falei naquela ocasião e falo agora, não apenas

67

defendo o meu culto – a Umbanda, mas todos os cultos que foram criticados acerbamente, durante 8 dias em praça pública, provocando-se o riso da população e mistificando com hipnotismo e prestidigitação. [...]- Chegou ao cúmulo de quebrar uma imagem, embora rústica, do demônio bíblico que o Africanismo das Avenidas, não o dos legítimos terreiros de nação, denomina de Exú. [...] (CALDAS, 1959, p.149).

Como podemos perceber nos dois discursos que apresentamos acima,

inicialmente o Parlamentar apresentou seu protesto junto a direção da escola pública

que permitiu ao Frei Boa Ventura ministrar aulas de catecismo, ensinando de modo

proselitista em favor do catolicismo e contra as demais denominações religiosas,

causando constrangimento aos estudantes não católicos. Além disso, em sua fala do

dia 05 de outubro de 1959, ele faz votos de que o Frei retorne ao interior de suas

bases eclesiais e lá aprenda o que Moab considerava princípios de tolerância.

No segundo discurso apresentado, o Deputado reiterou a crítica feita ao Frei,

expondo, em primeiro lugar, a falta de sensibilidade do Frei Boa Ventura em agredir

outras religiões, em especial a Umbanda e os demais cultos que foram citados por

ele. Além disso, a continuidade dessas falas que totalizam oito dias, na visão de

Moab causaram a aqueles que se dispuseram a ouvir os pronunciamentos do Frei, o

que foi chamado de “Hipnotismo31 e Prestidigitação32”. O que nós consideramos ser

o ápice dos atos da intolerância religiosa promovida pelo Frei Boa Ventura, foi a

quebra de uma imagem de Exú33, divindade das ruas e encruzilhadas, protetor dos

trabalhadores noturnos e guardião dos caminhos do ser humano. Tal ato tem um

valor simbólico único, pois, se durante um discurso inflamado que promovia a

intolerância religiosa, o Frei quebra uma imagem sacra dos cultos afro tal atitude

simboliza o desmonte, a quebra, a ruptura da sociedade para com tais religiões. Tais

atos levaram Moab Caldas a protestar veementemente. Ele, como alguém que se

propõe a ser um verdadeiro representante da Umbanda e um defensor dessa

religiosidade, não poderia ficar inerte a tais acontecimentos.

Acreditamos ser interessante notar que, mesmo tendo divergências com

representantes do clero católico, Moab Caldas, mantinha uma forte relação de

amizade, com o sacerdote de maior grau hierárquico da cidade onde morava, Porto

31

Entendemos por Hipnotismo o sentido mais literal da palavra, como o ato de hipnotizar ou deixar-se hipnotizar. Estágio de transe onde não há consciência plena dos sentidos. 32

Entendemos por Prestidigitação o sentido mais literal da palavra, como o ato de iludir um espectador com a agilidade e habilidade das mãos. Sinônimo de ilusionismo. 33

Segundo Gilvan Moraes (2016) Exú seria uma das nomenclaturas utilizadas dentro das casas de Batuque, também conhecidas como casas de Nação, para a divindade Èsù ou Bará, associado sincréticamente com o demônio bíblico.

68

Alegre, Dom Vicente Scherer. Ao analisarmos os relatórios de viajem34 que o

parlamentar apresentava nas sessões ordinárias da Câmara dos Deputados,

encontramos menção a uma viajem ao Chile no ano de 1962. Em algumas

oportunidades esporádicas, Moab cita alguns religiosos que em sua opinião, ele

acreditava fazerem o que ele denominava “bom trabalho”. Dentre eles, destacamos

duas figuras que consideramos ter um valor mais acentuado a nossa pesquisa: Dr.

Egydio Hêrve da Federação Espírita, a quem nos deteremos a seguir e a Dom

Vicente Scherer.

Encontramos nos Arquivos da Cúria Metropolitana da cidade de Porto

Alegre35 um vestígio que demonstra o esforço que Moab Caldas fez na tentativa de

aproximar-se de Dom Vicente. Uma carta do dia 7 de fevereiro de 1963 de Dom

Vicente Scherer, endereçada ao Deputado Moab Caldas, na qual, o Arcebispo,

agradece um presente enviado por Moab Caldas, mais precisamente um exemplar

de uma obra rara da história eclesiástica católica latino-americana, as “Constituições

do Arcebispado do Chile”, proveniente de sua mais recente viajem ao Chile:

Porto Alegre, 7 de fevereiro de 1963. Ilmo. Sr. Deputado Moab Caldas. Acuso em mãos a atenciosa carta de V. Sria., de 25 de Janeiro findo, e um exemplar da obra “Constituições do Arcebispado do Chile” com que V. Sria., teve a gentileza de obsequiar-me. Sou muito grato por este amável oferecimento. Trata-se realmente de uma obra importante, pois, se as constituições do Arcebispado, aprovadas pelo Sínodo Diocesano da Bahia, celebrando em Salvador aos 12 de Junho de 1707, formaram o primeiro código de leis eclesiásticas adaptadas as condições as condições peculiares do Brasil. Repositório precioso de leis, ensinamentos e diretrizes sobre o dogma, a moral e o direito canônico, mereceram as constituições do Arcebispado da Bahia ser reconhecidas na Diocese do Rio de Janeiro e, posteriormente foram adotadas em outros bispados brasileiros. Tiveram força de lei durante os séculos 18 e 19 e só foram definitivamente postas a margem com a publicação dos decretos do Concílio Plenário da América Latina, em 1889. Serve-me o feliz ensejo para, na caridade de Cristo, apresentar a V. Sria. A segurança de minha estima, com atenciosas saudações. Dom Alfredo Vicente Scherer (SCHERER, 1963).

Percebeu-se nas palavras de Dom Vicente Scherer o sentimento de gratidão,

ao receber do parlamentar uma obra de tamanha raridade. Dom Vicente, ainda

explica a importância da obra e sua influência para a construção do próprio

34

Os relatórios de viajem de Moab Caldas apresentados nas plenárias durante as sessões ordinárias podem ser encontrados no Fundo Arquivístico do Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. 35

Os Arquivos da Cúria Metropolitana da cidade de Porto Alegre podem ser encontrados no Fundo Arquivístico da Arquidiocese de Porto Alegre. Endereço: Rua Espírito Santo, número 95, Centro Histórico, Porto Alegre – RS, CEP: 90010-370.

69

Arcebispado brasileiro, ao referir como sendo “formaram o primeiro código de leis

eclesiásticas adaptadas as condições as condições peculiares do Brasil”. Na frase

“Serve-me o feliz ensejo para, na caridade de Cristo, apresentar a V. Sria. A

segurança de minha estima, com atenciosas saudações” entendemos que Dom

Vicente, reconhece o esforço que há na tentativa de aproximação de Moab Caldas e

demonstra gratidão pelo presente que recebeu.

Acreditamos que Moab Caldas buscou manter um bom relacionamento com

sacerdotes da alta cúpula da igreja católica, como estratégia de proteção e

manutenção de “status”. A aproximação com influentes líderes de da uma religião

que na época possuía uma forte influência sobre a sociedade, pode criar uma rede

de relações pessoais, que em momentos oportunos, podria vir a ser utilizada, como

recurso de proteção, negociação ou até mesmo de manutenção do poder.

Outro importante sacerdote com o qual Moab Caldas articulou foi o Dr. Egydio

Hervê. Segundo Lorena Madruga Monteiro (2008), o Dr. Egydio foi um destacado

engenheiro, escritor e professor da Faculdade de Engenharia da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Federação Espírita do Rio Grande do

Sul. Foi o autor da tese “Filosofia espírita como base da instrução e educação”

apresentada no 1º Congresso Espírita do Rio Grande do Sul no ano de 1945

(SCHERER, 2015, p.75). Segundo palavras do Alfeu Escobar, Egydio Hervê após

algum tempo no comando da Federação Espírita, teria se convertido a Umbanda e

ajudado, inclusive, na configuração da União de Umbanda do Rio Grande do Sul

(1975, p.09):

O Dr. Egydio Hervê ex-presidente da Federação Espírita (kardecista), tornando-se umbandista, prestou relevantes serviços, pela rádio e nos Centros. Era engenheiro civil e fora inclusive Reitor da Universidade Fe-deral. Figura das mais respeitáveis no campo da Ciência (CALDAS, 1975).

Segundo Lorena Monteiro (2008), Egydio Hervê teria tido uma rápida

participação no campo da política, quando no ano de 1928 foi nomeado pelos pares

de seu partido, como candidato a prefeitura da cidade de Montenegro no interior do

Rio Grande do Sul. Também segundo Beatriz Weber e Renan Mattos (2013) no

campo político teria sido parte do movimento Pró-liberdade religiosa da cidade de

Santa Maria – RS.

Egydio Hervê segundo Alfeu Escobar, teria prestado importantes serviços no

que tange aos processos de organização da União de Umbanda(1975, p.10). Por

sua experiência dentro da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, as

70

contribuições para a sistematização de uma organização religiosa nova que estava

surgindo foram de fundamental importância.

O segundo mandato de Moab Caldas foi sem dúvida o que ele mais atuou em

relação a questão religiosa. Como pudemos demonstrar no capítulo anterior, a partir

das figuras 3 e 4, foi em sua segunda legislatura que o parlamentar não apenas

aumentou seu percentual de falas em sessões ordinárias da Câmara, como também,

foi o período onde o discurso onde a temática de abordagem religiosa foi mais

acentuado.

A década de 1960 foi um período de efervescência para os adeptos da

Umbanda e para os intelectuais que a estudaram. Um dos acontecimentos mais

marcantes desse período foi a realização do II Congresso Brasileiro de Umbanda

que ocorreu em Julho do ano de 1961. Com um objetivo diferente do primeiro

congresso36 ocorrido no ano de 1941, onde, segundo Alexandre Cumino foi a

primeira iniciativa coletiva da religião, no sentido de entender, estudar e estabelecer

parâmetros ou normas que ajudaram a definir o que é e o que não é Umbanda

(2011, p.199), onde se buscou “pensar” as bases históricas, filosóficas e espirituais

da Umbanda, num sentido de busca por padronização do culto, na década de 1960

haviam outras demandas a serem pensadas pelos umbandistas.

O segundo Congresso, buscou pensar estratégias de como lidar com as

adversidades contemporâneas, que traziam desconfortos cotidianos aos

umbandistas, como a repressão exercida pelo aparelho estatal, a busca pela

legitimação da Umbanda enquanto culto (pois ela só foi reconhecida como religião

no ano de 1966) e a própria necessidade organizacional no sentido de pensar em

meios legais de afirmação.

Além destas questões no segundo congresso ainda se buscou pesar na

perspectiva nacional da Umbanda no sentido de padronização e higienização (ainda

que outras questões tivessem sido mais vigentes nas pautas do II Congresso), e a

retomada das discussões sobre a necessidade de criação de uma normatização

ainda rondava os debates que ali se fizeram. Tais considerações a cerca da

normatização da Umbanda foram tão evidentes que inclusive, desmistificaram e

dissolveram, algumas resoluções do primeiro congresso:

36

O Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, foi realizado na cidade do Rio de Janeiro – RJ de 19 a 26 de outubro do ano de 1941 e reuniu umbandistas oriundos de todos as partes do país.

71

O Segundo Congresso Brasileiro de Umbanda retificou a primeira e a segunda conclusões a que haviam chegado no primeiro congresso. A primeira dizia que: “O espiritismo de Umbanda é uma das maiores correntes do pensamento humano existentes na terra há mais de cem séculos, cuja raiz provém das antigas religiões e filosofias da Índia”; A segunda dizia que: “Umbanda é a palavra sânscrita, cuja significação em nosso idioma pode ser dada por qualquer ds seguintes conceitos: ‘princípio divino’; ‘Luz radiante’, ‘Fonte permanente de vida’, ‘Evolução constante’”. No segundo congresso se concluiu que a Umbanda é uma religião brasileira e a palavra Umbanda vem da língua quimbundo, assim como as palavras zambi e cambone (CUMINO, 2011, p.213-214).

No fragmento citado percebeu-se o esforço dos intelectuais e líderes

umbandistas em buscar um distanciamento do mítico, mágico, pré-determinado e

houve um esforço para aproximar a Umbanda da ciência. Com Moab Caldas não

seria diferente. Ainda que não tenha participado do II Congresso Brasileiro de

Umbanda (ao menos, todas as fontes que possuímos indicam sua presença no

Estado do Rio Grande do Sul na mesma época) o parlamentar estava a par das

discussões que lá ocorreram. Moab Caldas tinha proximidade com um dos

organizadores e idealizadores do evento, o escritor e intelectual da Umbanda do Rio

Grande do Sul Leopoldo Bettiol37. Acreditamos que a relação do Deputado com

Leopoldo Bettiol era de grande proximidade:

O Dr. Leopoldo Bettiol, muito citado nesta obra que prefaciamos, foi um homem verdadeiramente fora de série. Possuia dezenas de títulos. Escrevera milhares de páginas, inclusive alguns livros sobre Umbanda e Batuque. Todas as teses que apresentou (oito por sinal) no segundo Congresso Nacional de Umbanda, na Guanabara, em 1962, foram aprovadas com distinção. Aos setenta e cinco anos, muitas vezes transportado nos braços ou em cadeiras, era levado aos Centros, em lugares inóspitos, onde pontificava magistralmente, Ele, um dos sete hierólogos da América. Ao falecer, minutos antes, pediu que seu corpo fosse depositado nú, na cova e, se possível, de pé. No derradeiro instante fomos visita-lo, acompanhado duma comissão maçónica que formou ao der-redor de sua cama uma «cadeia de união». quando ele despertou do estado de sonolência profunda em que se encontrava e, ainda sem a visão física que já perdera, sorrindo pediu que o deixassem partir, pois já havia cumprido sua missão. «Eu estava bem longe, falando com velhos amigos espirituais que me vieram buscar». Segundo suas próprias palavras, um pouco antes, sua primeira destinação, tão logo desencarnasse, seria o Egito, terra de sua predileção. Dizia que seu anjo protetor era Santo Agosti-nho. (ESCOBAR, 1975, p.11)

37

Segundo Ronaldo Linhares (2011), Leopoldo Bettiol escreveu diversas obras sobre a Umbanda no Rio Grande do Sul. O Batuque na Umbanda, de 1963, publicada pela Editora Aurora, é a mais conhecida de todas. Nesta obra o autor faz uma abordagem sobre a etnia negra e a sistematização dos mitos e crenças e evolução do culto no Rio Grande do Sul, abordando as influências bantu e yorubá na Umbanda Gaúcha. Outras obras importantes do autor são: A Umbanda Perante a Crítica e ABC de Umbanda. Leopoldo Bettiol teve papel de destaque na organização do Segundo Congresso Nacional da Umbanda, realizado em 1961 no Rio de Janeiro, juntamente com Oswaldo Santos Lima e Dr. Armando Cavalcanti Bandeira.

72

No trecho citado é notório que Leopoldo Bettiol influenciou Moab Caldas. O

Deputado demonstra o seu grau de proximidade com o escritor, quando relatou que

esteve presente em seus últimos momentos de vida e que ainda.

Moab Caldas criou uma rede de contatos nos mais diversos meios (políticos,

sacerdotes católicos, lideres espíritas e escritores). Parece-nos plausível que o

parlamentar, em primeiro lugar buscou apoio para a consolidação da União que

havia a pouco tempo sido criada sob o estigma de uma Federação Umbandista que

havia caído no esquecimento e acabou por ser desativada.

A busca pelo bom relacionamento com representantes de diversos setores,

também pode indicar uma estratégia para a manutenção do poder de Caldas. A

utilização de uma “política de boa vizinhança” ou seja, a sua aproximação com

outros sujeitos cujo “status” social tinha determinada relevância, pôde criar uma boa

representação para o Parlamentar que concorreu (sem sucesso) em uma terceira

tentativa de pleito a câmara estadual. Além disso, notamos que a recorrência da

inserção da temática religiosa em seus pronunciamentos, pode ser um fator de

estratégia feita por Moab Caldas para a manutenção de seu “status” no poder já que,

a comunicação com os eleitores, necessitava ser contínua, para que se criassem

laços entre representante e representado.

3.2. A DESPEDIDA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

O último ano de Moab Caldas como Deputado começa com uma das mais

debatidas pautas e reivindicações de Moab Caldas e de todo o movimento nacional

de Umbanda, tendo encontrado uma resposta: no censo de 31 de maio de 196638, o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas reconheceu a Umbanda com o status

de religião. Nesse mesmo ano Moab Caldas fez 9 menções que envolvessem

religião em seus discursos. Nas eleições do ano de 1966 novamente Moab Caldas

foi candidato porém, o parlamentar não obteve sucesso.

No âmbito dos direitos políticos, o ano de 1969, trouxe para Moab Caldas a

cassação de seus direitos políticos. Fruto do Ato Institucional número 5 de 13 de

dezembro de 1968, sob acusação de “comportamento subversivo”, o ex-parlamentar

teve seus direitos políticos cassados por 10 anos, sendo impedido de concorrer a

38

Uma maior obtenção dos dados a cerca do censo demográfico de 1966 pode ser obtida no endereço: <http://www.ibge.gov.br/home/pesquisa/pesquisa_censo_1966 >.

73

qualquer cargo eletivo nos âmbitos municipal, estadual ou federal. O Ato Institucional

número 5 (AI-5), foi uma medida governamental, cuja finalidade principal, era

cercear os direitos políticos dos cidadãos e restringir a participação dos mesmos no

âmbito legislativo:

[...] o governo baixou o Ato Institucional nº5, a 13 de dezembro de 1968, assim como o Ato Complementar nº 28, que decretou o recesso do Congresso Nacional e ampliou os poderes do governo sobre a nação. O AI-5 conferia ao governo poderes de decretar o recesso parlamentar sempre que se fizesse necessário e de legislar neste caso, sobre todas as matérias. O Executivo passava também a poder intervir nos estados, suspender os direitos políticos dos cidadãos, decretar estado de sítio, suspender garantias e direitos individuais em geral, impedir o exercício de funções, demitir, aposentar e remover funcionários, confiscar os bens dos que haviam enriquecido de forma ilícita, suspender o direito de habeas-corpus, etc. (PESAVENTO, 1992, p.100).

Mesmo não tendo chego a ocupar uma cadeira efetiva na 42ª legislatura da

Assembleia Legislativa e tendo seus direitos políticos cassados pela AI-5, Moab

Caldas continuou seu trabalho de militância em favor da legitimação da religião de

Umbanda, como membro atuante da União de Umbanda do Rio Grande do Sul.

Seus discursos na Assembleia Legislativa colocaram em pauta a discussão sobre a

legitimação da Umbanda enquanto Religião e também abordaram temas como a

laicidade do Estado Nacional. Moab Caldas desestabilizou e levantou

questionamentos até então silenciados pelos anos de coibição estatal e repressão

dos quais as religiões afro-brasileiras vinham buscando resistir. Os discursos de

Moab Caldas enfocaram questões como os direitos dos umbandistas, soaram como

afrontas diretas ao sistema de poder vigente no período.

Durante nossa pesquisa nos deparamos com fatos que chamaram nossa

atenção. Na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, aconteceu no ano de 1959 a

fundação da União Santa-mariense de Umbanda USUCAB39 Cavaleiros de Cristo.

Em relatório de viajem oficial do deputado, ainda em seu primeiro mandato, no ano

de 1959, consta uma viajem a cidade de Santa Maria.

Acreditamos que após 1967, quando Moab Caldas não exercia mais um cargo

político na Assembleia Legislativa a partir de 1969, quando por decorrência da

cassação de seus direitos pelo AI 5, o novo projeto que o ex parlamentar adentrou

foi uma empreitada pelo interior do Rio Grande do Sul, onde buscou criar redes de

apoio, manutenção e órgãos que legitimassem a Umbanda, que nesse momento, já

39

Para maiores informações a cerca da USUCAB acessar: <http://uniaocavaleirosdecristo.blog spot.com.br/>

74

havia alcançado o “status” de Religião. Moab Caldas ao discursar sobre a

legitimação da Umbanda enquanto religião causou uma afronta direta ao sistema

político vigente na época, já que a ditadura Civil-Militar Brasileira teve apoio de

alguns setores da Igreja Católica, o que ia de encontro ao que o Parlamentar

discursou.

Essas viagens ficaram comprovadas na correspondência de 18 de outubro de

1978 de Moab Caldas para Maria Pereira Pinto, sacerdotisa Templo Retiro de Santa

Bárbara e Santo Antônio de Lisboa. Maria era membro do Conselho Doutrinário da

Federação Espírita e Umbandista de Rondônia, esposa de Francisco Pereira Pinto,

Vice-Presidente da federação. A correspondência pode ser encontrada no artigo de

Marta Valéria de Lima:

Amiga e irmã Maria Pereira Pinto: (...) estou viajando por todo Estado, em campanha, pois em 82 tornarei à minha cadeira de deputado. Fui o primeiro, do Brasil, de nossa religião. Aí em P. Velho, lancei o Carlos Alberto Melhoral, e espero que todos o ajudem, para que vença, pois é preciso. Melhoral é um grande irmão. Um notavel irmão e precisa que todos o ajudem, pois como deputado fará muito pela nossa Religião e por vocês todos em particular. É uma pessoa Autêntica. (...). MOAB CALDAS. Presidente do Conselho Superior de Religião Da União de Umbanda do R. G. do Sul. 18.10.78. (2012, p.187)

Nesta correspondência inicialmente Moab Caldas citou sua viajem

percorrendo todo o território do Rio Grande do Sul e evidenciou o seu projeto de

concorrer novamente para o cargo de Deputado Estadual. Tendo sido caçado pela

AI 5 que retirou seus direitos políticos por 10 anos em 1969, no ano de 1979, ele

estaria novamente apto a exercer uma função pública eletiva. Ele ainda ressaltou a

importância da presença de políticos afro religiosos e pediu que se conjecturassem

apoios à eleição do candidato Carlos Alberto Melhoral, pessoa na qual, Moab

depositava credibilidade, afirmando que ele “fará muito pela nossa Religião”. A partir

dessa correspondência percebemos que Moab Caldas evidenciou sua intenção em

novamente concorrer para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Porém,

não obteve sucesso.

Pensar a relevância, da trajetória política de um Parlamentar assumidamente

umbandista teve em um período onde quaisquer manifestações que fugissem do

padrão hegemônico vigente é fundamental. Nas palavras de Aline Coutrot

justificamos a relevância nosso argumento:

Um aprofundamento do pensamento religioso engendra novos modos de presença na sociedade, sem contar com as remanescências e as

75

permanências. A religião continua a manter relações com a política, amplia mesmo seu campo de intervenção e diversifica suas formas de ação, de tal forma que o assunto é de grande atualidade ( 2010, p.335).

Moab Caldas foi um político umbandista, mas mais que isso, foi um sujeito

histórico que influenciou sua geração e através de seus discursos, buscou legitimar

a crença na qual estava inserido. Através de suas alianças, alicerçou os processos

de consolidação da organização umbandista da qual estava a frente e de fato,

entrou para a história da Umbanda, como sendo o primeiro umbandista do Rio

Grande do Sul que verdadeiramente assumiu a sua crença umbandista, a ocupar um

cargo no legislativo.

76

CONCLUSÃO

Ao realizarmos esta pesquisa muitos foram os aprendizados que obtivemos.

Inicialmente tivemos a oportunidade de desbravar um campo até então novo em

nossas pesquisas: a nova história política e sua relação com a história das religiões.

Ao estudar as décadas de 1950 e 1960, percebemos que este período foi

muito conturbado para os adeptos das religiões não hegemônicas do Estado

Brasileiro, em especial, a Umbanda e as religiões de matrizes africanas, tiveram de

utilizar das mais diversas estratégias de resistência, como meandros de manutenção

e perpetuação de suas tradições religiosas e ancestralidades.

Nesse contexto, acreditamos que a trajetória do Deputado Estadual Moab

Caldas, utilizando da plenária da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande

do Sul, como veículo promotor e pilar de resistência, obteve a proficuidade em seu

propósito, já que, além de sua reeleição no ano de 1963, ainda que fruto de lutas

históricas pelo reconhecimento, no final de seu segundo mandato no ano de 1966 a

Umbanda é reconhecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística com o

status de Religião. Para além disso acreditamos que como um dos principais

objetivos enquanto parlamentar, que era a busca pela criação de um referencial

positivo dentro de um espaço hegemonicamente desfavorável a sua crença, Moab

Caldas consegue criar para si, a imagem de “O Deputado Umbandista”, como fica

explícito em correspondência aloca nesta dissertação.

Também destacamos houve um esforço de Moab Caldas em aproximar-se de

lideranças religiosas como Dom Vicente Scherer e a articulação política com o

também Deputado Estadual Carlos Santos, foram aspectos importantes do mandato

de Moab Caldas. Através da problematização dessas relações pudemos repensar a

maneira como o próprio parlamentar, pensou as suas relações sócio-políticas para a

manutenção de seu “status”. Ainda sobre as questões das relações pessoais de

Moab Caldas, perceber influência de Leopoldo Bettiol, nos foi importante para

situarmos o parlamentar no contexto dos movimentos alusivos aos acontecimentos

nacionais da Umbanda da época, bem como, compreender as articulações com

Egydio Hervê, nos trouxeram um novo olhar sobre a estruturação da então recém

criada União de Umbanda do Rio Grande do Sul.

77

Entendemos que ainda que não tenha obtido sucesso em sua campanha

eleitoral que o colocaria pela terceira vez consecutiva como Deputado Estadual, os

últimos anos foram cruciais na legislatura de Moab Caldas. Após analisarmos os

Anais da Assembleia, percebemos que o ano de 1965 foi o período de maior

atuação do parlamentar frente ao púlpito, onde das 85 oportunidades que teve de

falar a seus colegas de cargo, em 11 delas as menções religiosas foram feitas..

Ter contato com a historiografia que retratou os anos de ditadura civil militar

no Brasil foi fundamental para que pudéssemos compreender, quais motivações

estatais, levaram a cassação dos direitos políticos de Moab Caldas por 10 anos pela

AI-5. Em especial destacamos o trabalho realizado por Sandra Pesavento (1992)

sobre o parlamento gaúcho, o qual muito influenciou nossa escrita.

Já nos encaminhando para o final de nossa dissertação trouxemos algumas

inquietações encontradas ao longo da construção de nossa dissertação, que podem

(ou não) trazer novas pesquisas futuras. Encontramos evidências que ligam Moab

Caldas a criação de ligas e uniões umbandistas pelo interior do Estado do Rio

Grande do Sul.

Inicialmente nos propomos a fazer desta dissertação uma análise dos

discursos oficiais do Deputado Umbandista do Rio Grande do Sul. Após longa

pesquisa, leitura de todas as atas e transcrição das mesmas, acredito que fomos um

pouco mais longe. Conseguimos reunir uma documentação inédita e a pensar a

trajetória política de um líder religioso e político.

Sobre a participação de Moab Caldas na Assembleia, acreditamos ter sido

efetiva de fato. Ele tendo articulado com influentes personagens de sua época,

manteve-se no legislativo por mais de uma legislatura e consolidou a organização de

Umbanda da qual ele era membro direto. Pensamos que de fato Moab Caldas entra

para a história do Rio Grande do Sul, como o primeiro deputado assumidamente

umbandista a ocupar um cargo no Legislativo estadual sul rio-grandense e mais do

que isso, o primeiro a estar em duas legislaturas consecutivas.

Temos a esperança de que nossas contribuições aqui postas possam trazer

para a História das Religiões, alguns elementos de debate e que esta pesquisa

possa ser de alguma valia para a compreensão da história da Umbanda no Brasil e

em especial do Rio Grande do Sul. Ainda que o sentimento seja o de nunca

terminarmos uma pesquisa, acreditamos que este trabalho tenha dado conta do que

78

se propôs e com isso, contribuído para as futuras pesquisas que irão além dele. É

necessário estudar a história Umbanda, para que junto dela, também

compreendamos a história do brasil, já que a Umbanda é a primeira religião

tipicamente brasileira, seus processos históricos, estão intrinsicamente ligados aos

acontecimentos que marcaram nossa história. É preciso lembrar para não cair no

esquecimento!

79

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