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Caminhadas de universitários de origem popular UFSCar Universidade Federal de São Carlos UFSCar

Universidade Federal de São CarlosCriado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC)

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C183

Caminhadas de universitários de origem popular : UFSCAR / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.104 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-35-1

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal de São Carlos. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix anniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Rio de Janeiro - 2008

Organ i z ado resJailson de Souza e Silva

Jorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

UFSCar

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Aline Priscila Boni

Amanda Roberta Corrado

Amanda Rosinalia Rodrigues

Anderson Thadeu Nunes

Augusto Cesar Pedro

Carlos Messias Ferreira de Jesus

Carlos Ney Martins

Cleide Helena Santos Cardoso

Daiane Lanceni

Edgar Heliodoro Vendradelli Dias

Juliana Aparecida Ribeiro

Lidiane Maria Maciel

Lilian Cruz

Mariana Gonçalves Luccas

Michel Luiz de Moura

Milton Dias de Freitas Jr.

Mylena Mylândia Araújo Gomes

Nelson Ponce Júnior

Priscila Andrade Corrêa

Rafael Vieira

Roberta Alexandra Silva de Oliveira

Paulo Rogério de Oliveira

Sérgio Ricardo do Nascimento Neto

Sinvaldo Martins de Souza

Symone Mattos Cremonini

Tiago Yamazaki Andrade

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Sergio Donizetti ZorzoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFSCar

Marina Silveira PalharesCoordenação do Projeto Caminhadas

André Luiz FaistingCoordenação Administrativa

Carlos Augusto de Sousa Martins FilhoCoordenação de Araras

Oswaldo Baptista Duarte FilhoReitor

Maria Stella Coutinho de Alcântara GilVice-Reitora

Maria Luísa Guillaumon. EmmelPró-Reitora de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimen-to em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distri-buídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

ApresentaçãoMaria Luísa Guillaumon Emmel 09

IntroduçãoCaminhadasMarina Silveira PalharesAna Elisa MarinoLara de Paula 11

Os melhores momentos da minha vida...Aline Priscila Boni 14

Reflexões do início de uma caminhadaAmanda Roberta Corrado 18

História de minha vidaAmanda Rosinalia Rodrigues 20

Realizando sonhosAnderson Thadeu Nunes 25

Um pouco de lutaAugusto Cesar Pedro 29

Alçando vôos mais altosCarlos Messias Ferreira de Jesus 33

História de vidaCarlos Ney Martins 36

Uma caminhada marcada por desafios e conquistasCleide Helena Santos Cardoso 38

A história de minha vidaDaiane Lanceni 41

A vida dá voltas !Edgar Heliodoro Vendradelli Dias 44

Minha históriaJuliana Aparecida Ribeiro 49

MemorialLidiane Maria Maciel 53

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CaminhadasLilian Cruz 56

A história de uma vidaMariana Gonçalves Luccas 59

Minha trajetória de vidaMichel Luiz de Moura 62

MemorialMilton Dias de Freitas Jr. 65

Pão-de-açúcarMylena Mylândia Araújo Gomes 67

CaminhadasNelson Ponce Júnior 69

EuPriscila Andrade Corrêa 75

Caminhadas: trajetória de vida, como releitura da realidadeRafael Vieira 82

Minha históriaRoberta Alexandra Silva de Oliveira 85

Apenas mais um brasileiroPaulo Rogério de Oliveira 87

MemorialSérgio Ricardo do Nascimento Neto 89

Driblando adversidadesSinvaldo Martins de Souza 92

Uma senhora históriaSymone Mattos Cremonini 96

MemorialTiago Yamazaki Andrade 99

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Apresentação

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Em 2006 a Universidade Federal de São Carlos iniciou sua participação no ProgramaConexões de Saberes, promovido pela SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfa-betização e Diversidade do MEC. A proposta parecia muito interessante, uma vez que vinhaao encontro de um dos objetivos que a UFSCar tem buscado alcançar através de váriosprogramas e projetos de extensão: o da inclusão de alunos provenientes de classes popula-res à universidade. Como propõe a própria SECAD, “os jovens de origem popular trazempara a vida universitária esperanças e experiências que precisam ser valorizadas e incorpo-radas ao saber crítico que a Universidade promove e a própria Universidade tem muito aaprender com a crescente participação de estudantes oriundos de comunidades popularesna vida acadêmica”.

Ao final deste primeiro período de interações, o Conexões possibilitou concretizaralgumas aspirações, entre elas a criação de um curso pré-vestibular na periferia da cidade deSão Carlos, onde a população não teria possibilidade de usufruir desta formação não fosseesta iniciativa. Outra satisfação é ver a evolução alcançada pelos alunos com sua participa-ção no Programa Conexões de Saberes. Estamos certos da riqueza que foi e vem sendo estaexperiência para todos os que dela participaram: alunos, professores, colaboradores. Apoi-ados pelo Ministério, pelos professores e colaboradores que a eles se dedicaram, os alunostiveram condições de aprender mais sobre si mesmos e sobre a comunidade que os cerca,apoderando-se do saber construído coletivamente e criando capacidades de disseminá-loem suas comunidades de origem.

Este livro traz uma pequena amostra deste trajeto. As histórias de vida que aqui vemossão o resultado de um intenso trabalho que envolveu conscientização pessoal, trabalho degrupo, reflexões coletivas, auto-conhecimento, além de um duro trabalho de desenvolvi-mento de técnicas de redação. Transformar sentimentos em palavras e palavras em textoscertamente não foi tarefa fácil. Em compensação, adquirir o poder de dividir o resultado detodo este esforço é sem dúvida, louvável.

Agradecemos todo o apoio do MEC, através da SECAD e também dos coordenadores,professores, técnicos e alunos que tomaram para si a responsabilidade de acompanhar eseguir com esses jovens em busca de sua cidadania.

MARIA LUÍSA GUILLAUMON EMMELPró-reitora de Extensão

UFSCar

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Introdução

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O desenvolvimento da atividade Caminhadas: Trajetória do estudante de origempopular até a Universidade teve início em maio de 2006 e prolongou-se até dezembro domesmo ano, sendo que alguns alunos terminaram a revisão do texto no início de fevereirode 2007. Desenvolveu-se um trabalho específico com os alunos, que possibilitou a coesãodo grupo, o sentimento de pertença, a desinibição em alguns alunos, uma maior solidarie-dade e disposição para o trabalho coletivo. Para a execução deste trabalho desenvolveu-seuma metodologia que será aqui relatada.

OBJETIVOS• Levar o aluno a refletir sobre sua história de vida, reconhecendo fatores que influen-

ciaram seu desempenho até o ingresso na UFSCar, ou até o semestre em curso;• Levar o aluno a conhecer a interface entre sua história pessoal e a história do Brasil;• Levar o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre sua história e a do grupo

de alunos que cursam a disciplina com ele;• Como objetivos atitudinais, buscou-se promover o espírito de solidariedade, coope-

ração, desenvolver a capacidade de ouvir o grupo e sintetizar o pensamento coleti-vo, elaborar relatórios de discussão, desenvolver habilidade de coordenação de grupo.

METODOLOGIAFoi proposta uma disciplina “ACIEPE1 Caminhadas” para que os alunos da UFSCar

pudessem realizar estas atividades com pontuação na carga horária de seus cursos e conta-gem de créditos curriculares. A ProEX2 aprovou a disciplina, bem como concedeu recursosde R$ 900,00 reais e uma bolsa de monitoria para esta atividade. Foram planejados encon-tros com o grupo de alunos, com atividades específicas em cada encontro e com tarefas aserem realizadas em outros horários. Os encontros ocorreram aos sábados ou domingos, emhorários compatíveis para todo o grupo, tendo em vista que os alunos eram oriundos de

Caminhadas

1 ACIEPE A Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão (ACIEPE) é uma experiênciaeducativa, cultural e científica que, articulando o Ensino, a Pesquisa e a Extensão e envolvendo professores,técnicos e alunos da UFSCar, procura viabilizar e estimular o seu relacionamento com diferentes segmentosda sociedade. Maiores informações http://www.ufscar.br/aciepe.2 ProEX-A Pró-Reitoria de Extensão - ProEx - é o setor responsável pela gestão das atividades de extensão realiza-das pela UFSCar. Para saber mais: http://www.proex.ufscar.br.

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diversos cursos, turnos e dois “campi”. Matricularam-se na disciplina outros alunos quenão eram bolsistas do Conexões, que realizaram as atividades com os demais alunos, alunosestes que não tiveram seus textos finais inseridos no livro. Houve necessidade de ampliaçãodo número de encontros, por solicitação dos alunos, para o encerramento.

Relacionamos abaixo as atividades desenvolvidas. Nas atividades coletivas era solici-tado que os grupos ou sub-grupos escolhessem um relator e um coordenador das discussões,objetivando treinar as habilidades de escuta, de coordenação, representação e liderança.

1. HISTÓRIA DE VIDA; primeira abordagem: Após assistirem ao vídeo sobre o Progra-ma Conexões de Saberes3 foi solicitado aos alunos que fizessem uma redação como tema Trajetória de vida até ao ingresso na UFSCar;

2. FALANDO DE SI PARA O GRUPO: Atividade de apresentação dos alunos para ogrupo em duplas, organização da atividade: o aluno conversa com um colega e oapresenta posteriormente para o grupo;

3. TAREFA: O olhar do outro pousa sobre mim - Pesquisa com amigos e parentes - comosou visto, elaboração de um relato escrito sobre estas entrevistas;

4. PARTILHA: Apresentação do relato anterior ao grupo, em sub-grupos de 5 a 6alunos, levantamento de pontos em comum, elaboração de síntese e posterior apre-sentação ao grupo completo;

5. TAREFA: Pesquisa de fotos – fatos que marcaram o Brasil e o Mundo e influênciaram as vidas de cada aluno; recolher fotos ou figuras significativas da própria vidae fazer uma redação em linguagem jornalística;

6. LINHA DO TEMPO: Traçar marcos do tempo pessoal, do tempo- Brasil e do tempo-Mundo e do tempo- universidade, discutindo em sub-grupos estes temas e prepa-rando para a apresentação no grupo completo;

7. TAREFA: Re-escrita da redação a partir das partilhas realizadas nos grupos e dasíntese apresentada no grupo completo, complementando com pesquisas se necessário;

8. ÁLBUM DE FOTOS/FIGURAS: Produção dos painéis por sub-grupos, utilizandofotos e figuras trazidas pelos alunos e os dados das pesquisas e redações elaboradasaté o momento; apresentação no grupo completo e discussão coletiva;

9. ALMOÇO DE LEMBRANÇAS: Confecção dos alimentos- motivadores de lem-branças, busca de receitas, produção do almoço, apresentação para o grupo e dis-cussão coletiva;

10. TAREFA: jogos e brincadeiras: Pesquisa e produção de relatório sobre brinquedose brincadeiras de suas infâncias e adolescências;

11. JOGOS E BRINCADEIRAS: Apresentação de jogos e brincadeiras em sub-grupos,brincar junto, rodízio nos sub-grupos, experimentação das brincadeiras com dife-rentes regras; apresentação e partilha de relatórios no grupo completo;

12. TAREFA: Re-escrita do texto pessoal Caminhadas, história de vida;13. PARTILHA: em duplas, leitura do texto de um colega, em voz alta. O autor deve

ouvir o seu texto. Apresentação de sugestões para melhorar a compreensão ouestilo de redação;

3 Vídeo produzido pela Secretaria Nacional do Programa Conexões de Saberes em 2005.

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14. TAREFA: Re-escrita do texto de história de vida;15. PARTILHA: em pequenos grupos dos textos, leitura do texto de um colega, suges-

tões para melhorar a compreensão ou estilo de redação;16. TAREFA: Revisão;17. ALMOÇO de apresentação dos textos. O grupo se reúne para produção de um al-

moço comemorativo, com comidas típicas e significativas para cada um. Leituraindividual para o grupo do texto completo. Não é obrigatória a leitura de todos ostextos;

18. PORTUGUÊS: a língua e suas artimanhas. Leitura do texto junto a Professora Larade Paula. Discussão das dificuldades linguísticas e de estilo, revisão. Esta tarefaestava prevista para cerca de 30 minutos a uma hora, individualmente, com cadaaluno. Prolongou-se até fevereiro/2007 e alguns alunos demandaram mais de umhorário para a revisão e finalização do texto.

RESULTADOSOs bolsistas exercitaram sua capacidade de ouvir, e neste ouvir puderam sentir-se

valorizados pelo outro e terem a sensação de fortalecimento pessoal, com aumento da auto-estima. A atividade de ouvir o que o outro tinha a dizer dele fez com que se sentissem vistose valorizados por pessoas a quem estão afetivamente ligados; a possibilidade de partilhacom o grupo de alunos e de elaboração de relatório desta partilha possibilitou reforçar acapacidade de prestar atenção ao outro e de exercer uma fala representativa do coletivo. Asistemática de, a cada encontro, revezarem-se os grupos, revezarem-se os coordenadores erelatores deu oportunidade a todos de exercitarem papéis diferenciados dentro do grupo.Observou-se que o grupo tornou-se mais falante, mais propositivo do que no início dosencontros, com uma maior auto-confiança. Estas habilidades eram relatadas por algunsalunos como conquistas que se expandiam para outras atuações na Universidade, enquantooutros explicitavam que conseguiam falar ali, num ambiente em que se sentiam mais prote-gidos, mas não em suas salas de aula.

Vinte e seis textos, com as histórias de vida dos bolsistas e de um voluntário doprojeto Conexões de Saberes estão apresentados no livro. Nestes textos pode-se observar apresença de pessoas que os alunos reconhecem como importantes nesta Caminhada, sendomarcante a presença da família, notadamente da mãe, a presença de apoios intergeracionais,como avós e avôs, amigos e professores. O esforço pessoal é também um elemento dedestaque, bem como se pode observar a influência de fatores externos, como emprego/desemprego, planos econômicos, mudanças de sistemas na educação.

A avaliação dos alunos, realizada em dezembro de 2006, ressalta a importância dasatividades do Caminhadas no fortalecimento do grupo, tendo sido citado inclusive apermanência na UFSCar graças ao encontro de pessoas que puderam ouvir e valorizar a suatrajetória de vida.

Coordenação: Profa. Dra. Marina Silveira PalharesBolista Aciepe: Ana Elisa Marino

Revisão dos textos: Alunos, coordenadora e Profa. Lara de Paula.

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Aline Priscila Boni*

Os melhores momentos da minha vida...

No dia dois de agosto de 1986, na Casa de Saúde e Maternidade São Carlos-SP, maisprecisamente no quarto 204, nasce Aline, a terceira filha do casal Lourdes e Julio, irmã daPatrícia e da Marta Fernanda, ou Fer, que é como a maioria a chama. Seus pais moravam emNovo Horizonte e vieram para São Carlos logo após se casarem. Sempre lutaram, mesmo nasmaiores dificuldades, para conseguir sustentar as três filhas e oferecer o melhor possível.Eu, Aline, escrevo com muita felicidade que moro numa casa construída por meus pais comjanelas, portas e cerâmicas doadas por pessoas para as quais meu pai trabalhava de pedreiro,profissão que exerce há trinta anos, e que tem como alicerce a coragem, a humildade e ahonestidade, as quais fazem parte da minha personalidade. Minha mãe trabalhou de domés-tica uma época para ajudar na renda da família, porém atualmente cuida da própria casa e dapreparação de maravilhosas refeições.

Acredito que, comparando com as atividades das crianças de hoje, aproveitei bem aminha infância. Lembro-me de quando chegava da escola, almoçava, ajudava minha mãe,fazia as tarefas e, rapidamente, saía para brincar na rua com vários colegas. As brincadeiras deque me lembro são simples, mas tiveram muita importância para mim, para o que eu faço hoje,e para o que quero ser. Na minha infância, brinquei de pega-pega, esconde-esconde, pula-sela,gato-mia, queimada, pique-bandeira, jogos com bola e muitos outros que me ajudaram adesenvolver contato com várias pessoas. Os materiais que usávamos ou as improvisações quefazíamos para poder brincar e jogar, geralmente na rua, fizeram com que aprendêssemos aenfrentar a realidade e transformar objetos simples em grandes equipamentos de jogo, ou seja,fizeram com que valorizássemos o que tínhamos ao nosso redor. Para demarcar nossos gols,pegávamos pedaços de tijolos, garrafas plásticas ou chinelos; para montar uma rede de vôlei,usávamos linhas, cordas, barbantes e amarrávamos de um poste ou portão a outro, utilizáva-mos as lixeiras das casas como cestas de basquete, entre muitas outras façanhas.

Porém, a vida não é feita só de brincadeira, embora brincar seja fundamental. Tinhaque cumprir com meus deveres escolares para poder sair com os amigos, por isso sempre meesforcei para tirar boas notas, não só para garantir minhas horas de lazer, mas tambémporque sabia que o estudo era necessário. Hoje, estou cursando Educação Física e estoutendo a oportunidade de colocar em prática as experiências que tive na infância e ensiná-laspara outras crianças e até para adultos e idosos.

Mas para chegar até aqui, minha trajetória escolar foi muito decisiva. Fiz o pré-primá-rio, durante um ano, numa EMEI1 próxima de casa, Monsenhor Alcindo Siqueira, de onde

* Graduanda em Educação Física pela UFSCar.1 Escola Municipal de Educação Infantil.

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Universidade Federal de São Carlos 15

me recordo da tia Sueli. Em 1992, entro na 1ª série na Escola Estadual Marilene TerezinhaLonghin e conheço a professora Glamis, com quem ainda tenho contato. Nessa escola,estudei até a 4ª série, participei das Festas do Sorvete e também das Festas Juninas. Aliás,tenho como lembrança de uma dessas festas uma foto em que estou de mãos dadas com oAnderson, que hoje é meu namorado. Nosso reencontro foi em julho de 2005, numa Festa“Julina” na Igreja Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Sua mãe, Cleide, seu pai,Antonio, e seu irmão, Cleber, são pessoas das quais gosto muito, além do cachorro Valente,que também faz parte da família.

Da 5ª à 8ª série, estudei na Escola Estadual Professor José Juliano Neto, onde comeceia treinar vôlei com a professora Mazé e a participar dos Jogos Interclasses e dos Jogos daPrimavera2. Nesse período, eu e meus vizinhos saíamos todas as noites para a rua, desta veznão para brincar, mas para ficar conversando, passeando em volta dos quarteirões ou can-tando, já que havia um amigo nosso, o Vitor, que levava seu violão e ficava até tarde danoite com a gente, tocando as músicas que pedíamos. Alguns meninos e meninas iam parafestas, danceterias ou barzinhos, enquanto eu raramente os acompanhava, primeiramentepor ser uma pessoa caseira e, depois, porque tinha compromissos com a Igreja que aospoucos me distanciavam da rotina dos meus colegas, como com o grupo de coroinhas, dejovens e da Fraternidade Eucarística, que era coordenada pela Irmã Dora, uma grande com-panheira que mesmo viajando para outros estados mantém-se em contato comigo.

Nessa época, eu também ia passear no sítio São José da vovó Elidia e do vovô Armínio,na cidade em que meus pais nasceram. Os momentos em que lá passei não saem da minhamemória, como as conversas na varanda com a família após o almoço, quase sempre aosdomingos, os passeios de charrete com meu avô e seu cavalo Tarzan, quando íamos entregaro leite produzido pelas vacas do seu sítio na Cooperativa de Laticínios da cidade, as partidasde futebol com meus primos... também me lembro do balanço onde eu brincava, das vezes emque moía café a pedido da minha avó e das “bolachinhas de nata”, que eu ia sempre procurarnuma lata em cima do armário da cozinha. Hoje minha avó não mora mais nesse sítio etambém não tão freqüentemente prepara essas “bolachinhas”, mas minha mãe assume essepapel e as faz sempre que pode – elas fazem parte das minhas lembranças favoritas.

Quando eu estava na 7ª série, Rose, que era professora de vôlei, me chamou paraparticipar de seus treinos, que iam começar a acontecer aos domingos na quadra da EMEIonde estudei. Aceitei o convite e acompanhei seu trabalho durante três anos, o time recebeuo nome de “Semi-Voleibol Integração”, confeccionamos camisetas e realizamos algunsjogos. Saí desta equipe pouco depois que ela me levou para fazer um teste na equipe de SãoCarlos, cujos treinos ocorriam no Ginásio do Bairro Santa Felícia, longe da minha casa.Consegui entrar no time e representar a cidade durante quatro anos. Mesmo com as viagens,por causa dos campeonatos, continuava estudando, agora no ensino médio e na EscolaTécnica Estadual Paulino Botelho, que promovia várias atividades, viagens e passeiosculturais. Por meio dessa escola conheci a vida das pessoas que trabalham no lixão, visiteio Rio Monjolinho, a Fazenda Santa Maria e muito outros lugares.

2 Jogos da Primavera são Olimpíadas Escolares, promovidas em conjunto pelo Governo do Estado pormeio da Secretaria de Estado da Educação (SEED) e pela Prefeitura Municipal de São Carlos, envolvendotoda a rede de escolas que se inscrevem, sejam elas públicas, estaduais ou municipais, ou particulares.

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

Quando terminei o 3°ano, em 2003, não prestei vestibular, nem mesmo sabia como serealizava; o que eu realmente tinha certeza era do que eu gostaria de ser profissionalmente:professora de educação física. Como já mencionei, o esporte foi fundamental para realizarmeus sonhos, pois um dos patrocinadores do time que eu representava, o Colégio Objetivo,fornecia bolsas de estudos para algumas atletas, e eu fui uma das privilegiadas, conseguin-do uma bolsa para fazer o curso pré-vestibular, graças à ajuda do técnico Zé Sérgio e tam-bém do meu pai, que sempre me apoiou e me ajudou quando precisei. Abracei a oportunida-de alegremente, por vários motivos: não teria dinheiro suficiente para pagar um cursinhoprivado e porque queria cursar uma faculdade pública, visto que, se não conseguisse abolsa, teria que trabalhar e pagar uma faculdade privada, o que não era nem o meu sonho,nem o dos meus pais.

Não foi nada fácil conciliar estudos, agora mais centralizados num objetivo, o vesti-bular, com esporte. Meus horários livres eram restritos. Estudava de manhã, de segunda asábado, treinava na parte da tarde e da noite, para nos finais de semana participar dos jogosdo campeonato da Associação Pró Voleibol. Minha prima Rosana, e a Camila, que conhecino cursinho, ajudaram muito emprestando livros e outros materiais. Infelizmente não con-segui passar no vestibular, contudo não desisti e pedi outra bolsa. Agora, a situação finan-ceira estava mais difícil para o time, mas após semanas do início das aulas comecei afreqüentar o cursinho no período da tarde, cujas últimas aulas coincidiam com o início dostreinos. Conheci o Erlon e a Carol, amigos que na hora em que mais precisei, nas horas domeu cansaço, não me deixaram desistir. Nesse segundo ano de estudo, tive que acrescentara musculação à minha rotina para melhorar meu condicionamento físico. Então, três vezespor semana acordava cedo, ia para a academia, ia para a escola e seguia para os treinos. Eassim foi até as férias.

Depois, por decisão do técnico, a academia foi retirada e preenchi o horário com aulasextras do cursinho. Com um pouco mais de segurança, prestei três vestibulares, UFSCar3,UNESP4 e USP5, e com grande satisfação e felicidade, consegui ingressar na UniversidadeFederal de São Carlos... no tão sonhado curso de Educação Física. Fiquei na lista de espera,mas não perdi a esperança. Quando vi meu nome na lista, não acreditei! Eu havia consegui-do! Fiz a matrícula e saí do prédio, pintada de tinta até as orelhas. Ao chegar em casa, recebium abraço da minha mãe que estava na expectativa desde que meu pai tinha me levado atéa Universidade. Foi um dia de muita felicidade para todos.

Por continuar na minha cidade, estou aproveitando bastante. Estou trabalhando comovoluntária num Projeto de Extensão de condicionamento físico para servidores da Univer-sidade, o qual está sendo muito gratificante para mim, por aprender conteúdos sobre aprofissão que quero exercer e estar me relacionando com várias pessoas. E finalmente, estouno Programa Conexões de Saberes, participando de vários eventos, reuniões e atividadesdesenvolvidas com a comunidade, com grupos de estudos e, principalmente, relacionadas

3 Universidade Federal de São Carlos, pública, fundada em 1968, com campus em São Carlos, Araras eSorocaba [informações do site: http://www2.ufscar.br, em 26 dez 2006].4 Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, pública, criada em 1976, presente em 23cidades do Estado de São Paulo [informações do site: http://www.unesp.br, em 26 dez 2006].5 Universidade de São Paulo, pública, criada em 1934, presente em 6 cidades do Estado de São Paulo[informações do site: http://www2.usp.br/portugues/index.usp, em 26 dez 2006].

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com a trajetória da minha vida, através do Caminhadas, que estão contribuindo para meucrescimento pessoal. Estou tendo a oportunidade de me conhecer melhor, de relembrar ahistória da minha vida e valorizá-la. Sei que minha atuação no programa e em tudo que eleenvolve é importante para mim e, principalmente para os outros. Temos de fazer o melhorque pudermos, pois essa é a nossa sagrada responsabilidade humana.

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18 Caminhadas de universitários de origem popular

O processo educativo não se restringe ao âmbito da instituição escolar, consideraFreire, mas acredita–se que possa desenvolver-se nas mais diferentes práticas sociais. Nessaperspectiva, a base dos meus saberes enquanto educanda foi povoado pelas experiências,práticas e vivências passadas por meus avós e também por meus pais. Durante nossas reu-niões cotidianas, festas e diálogos. Alguns saberes foram tão marcantes que despertaramdiferentes predileções passando a ser de grande valia na escolha da minha profissão, poiscom eles compreendia a verdadeira essência da Agronomia. A força, coragem, justiça epoder de renovação diante das dificuldades, também foram ensinamentos essenciais paraconseguir ultrapassar as barreiras da educação no país.

A história de cada pessoa não é reservada e solitária, caminha sempre com os aconte-cimentos do mundo; com a crise da década de 80, nossas vidas sofreram grandes mudançase passamos a morar em Rincão, cidadezinha localizada no interior do estado de São Paulo.Essas transformações foram seguidas de um período de muitas dificuldades e de muitasrenúncias, contudo de repleto aprendizado de superação, renovação e de onde consegui-mos tirar o melhor diante daquilo que a vida nos oferecia.

Nesse cenário, meus pais, mesmo sendo pessoas com idéias diferentes e vindos de famíliascom pouca tradição de estudo, sempre estiveram unidos e de comum acordo na minha perma-nência e de minha irmã Elis na escola, sempre prezaram a nossa educação para que pudésse-mos construir uma história diferente e mesmo quando em alguns momentos a lógica dos fatoslevasse a pausa dos estudos e início do trabalho para complementar o orçamento familiar.

A pintura passou a fazer parte da minha vida primeiramente para trabalhar meu ladoartístico, pois minha mãe sempre procurou incentivar atividades que proporcionassem dife-rentes sensações para que pudéssemos descobrir aquilo que realmente viéssemos a gostar. Ecom toda a vontade e insistência de uma mãe, convenceu a professora a me aceitar comoaluna, embora as aulas fossem destinadas apenas para adultos e eu só tinha 8 anos. Depois

Amanda Roberta Corrado*

Reflexões do início de uma caminhada

...Bom mesmo é ir á luta com determinação,abraçar a vida e viver com paixão,perder com classe e vencer com ousadia!Porque o mundo pertence a quem se atrevee a vida é muito para ser insignificante. Charles Chaplin

* Graduanda em Agronomia pela UFSCar.

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de alguns anos, a pintura passa a ter importância como única fonte de nossa renda, sendo oartesanato feito por toda minha família sustentava nossas despesas e pequenos sonhos.

Meu ensino médio foi cursado no Colégio Técnico Agropecuário José BonifácioUNESP/Jaboticabal, e a minha vivência como estudante nas dependências do ColégioTécnico Agropecuário-CTA transformou minha concepção de mundo. A valorização daminha origem nessa nova construção do mundo foi bastante importante, pois redescobrique, quando você passa por situações de dificuldades começa a lutar por ideais diferentes,a batalhar por coisas que nem todo mundo está interessado em modificar e, principalmente,não sentir vergonha das suas diferenças, passando a fazer delas uma arma na batalha para amelhoria dessas desigualdades e mazelas.

A convivência no Colégio Técnico Agropecuário-CTA valeu também por todas as ami-zades verdadeiras construídas, demonstrando que nem só os laços de sangue unem as pessoas,deixando as recordações das conversas em frente ao prédio central após o período letivo decada ano, as noites de pizzas e a luta por mudanças do grêmio estudantil. A família de cadaamigo que me acolheu como uma filha, assim como os meus pais acolhiam meus amigos, sãojóias raras que carregarei por toda a vida e aos quais não poderia deixar esquecido.

Com o término do ensino médio iniciei meus trabalhos junto ao Departamento deProdução Vegetal da UNESP Jaboticabal, o qual me deu condições para freqüentar umcursinho pré-vestibular. Esse período foi de muita correria, estresse devido ao vestibular eà diferença de ensino, entretanto, com o incentivo de todas as pessoas nunca pensei emdesistir e caminhei passo a passo até minha entrada na universidade.

A construção da minha história até a universidade, como a de outros estudantes,não é única, pois é o reflexo da desigualdade e das mudanças que precisamos transpor paraa construção de um país justo. A caminhada diferentemente do que muitas vezes acreditei,não acaba com nosso ingresso na universidade... ledo engano. Nossa caminhada é longa,não pode ter chegada, nem ponto final enquanto existam ainda tantos outros jovens forados muros da universidade, enquanto tivermos um sistema de ensino superior baseado nameritocrácia, fazendo-se também necessário um repensar do papel da universidade e assimcomo Freire, reivindicar que esta esteja a serviço dos interesses populares e que busque acompreensão da leitura de mundo e chamar a atenção para a rica relação que pode estabele-cer-se entre o conhecimento científico e o saber popular.

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Nasci no dia 12 de maio de 1986, em uma cidade muito pequena do interior de SãoPaulo, Itajobi. Meus pais sempre moraram na zona rural deste município, em uma humildepropriedade de meus avós, onde toda a família, eles e seus filhos moravam e trabalhavam.Alguns, depois de casados, se mudaram dali, mas meus pais e mais três irmãos continuaram alijunto deles. Todos trabalham com o cultivo e a colheita de frutas, de onde retiram seu sustento.

Minha infância pode ser considerada normal, simples, pois não tinha ótimas condi-ções financeiras. Quando não estava na escola, que era muito próxima de minha casa, estavabrincando pelos quintais de minha casa, com primas e vizinhas da mesma faixa etária que aminha. Eu não era uma criança que ficava muito tempo brincando sozinha dentro de casa,até porque não tinha muitos brinquedos para isso, nem passava horas assistindo televisão,preferia sempre brincadeiras com outras crianças e ao ar livre, brincava muito de “escolinha”,esconde-esconde, mas adorava mesmo era brincar na terra.

Na escola, sempre procurei ser uma boa aluna, pois sabia que tudo o que estavaaprendendo seria muito importante para mim, no futuro, na profissão que escolhesse. Desseperíodo de minha vida guardo ótimas recordações de amigas maravilhosas que fiz, éramosprimas e nos conhecíamos desde crianças, eram elas a Thaisa e Elisangela; tinha também aJanaina, a Marilda que conheci na escola. Nós aprontávamos muito juntas, brigávamostambém, mas não nos separávamos, em quase todas as comemorações da escola, estávamosnós lá, apresentando alguma coreografia, era muito engraçado. E no Ensino Médio nosseparamos, mas encontrei outras que também me marcaram muito, como esquecer a Valquíria,a Andressa e a Angélica, companheiras de muitas aventuras e trapalhadas, curtimos muitonesses três anos, passamos por vários momentos ruins através dos quais descobrimos o valorde uma amizade verdadeira, uma ajudava a outra a superar a perda do namorado, a brigacom os pais, a má sorte e os desentendimentos que às vezes ocorriam até entre nós mesmas,mas que logo eram superados, confiávamos segredos que nunca poderiam ser contados aninguém, tenho-os comigo até hoje e sinto muita falta dessa época, principalmente pelofato de termos nos distanciado muito; é triste não as ter mais por perto ou mesmo distantenão ter mais contato com elas, sinto muita falta dessas “loucas”. Dessa época também éimpossível esquecer as festas de formaturas (8ª série e 3º colegial), foram dias inesquecíveis,marcados por muita ansiedade, nervosismo e felicidade.

Outro fato que muito me marcou foi a perda de minha avó materna em 1997; ela eramuito querida, era minha madrinha de batismo e adorava passar os finais de semana na suacasa, mas mais triste do que não a ter mais aqui é o fato de ter perdido totalmente o contato

Amanda Rosinalia Rodrigues*

História de minha vida

* Graduanda em Educação Física pela UFSCar.

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com o meu avô, seu marido, que casou novamente e se desligou por completo de suafamília; é muito triste para mim, hoje, encontrá-lo na rua e saber que ele não me conhece,não sabe que é a sua neta que tanto o adorava é aquela desconhecida que cruza na sua frente.Alguns dias atrás, fiquei sabendo que ele estava muito doente, imóvel em uma cama, mas adistância, a falta de tempo e até de vontade me impossibilitaram de fazer alguma coisa. Umpouco mais recente, acredito que em 2001, perdi meu avô paterno, uma figura tambémmuito importante em minha vida; ele já estava doente, mas não era muito grave, foi umsusto muito grande para todos; a família sofreu muito e sofre até hoje a sua falta, masimagino que tenha sido o melhor, pois não queríamos vê-lo sofrendo mais.

Um momento também muito importante foi o meu aniversário de 15 anos, meus pais nãotinham boas condições financeiras para realizar a festa dos meus sonhos, mas não deixaramesse dia passar em branco; minha mãe organizou com o maior carinho do mundo a festa, quefoi realizada na minha casa mesmo, todos os detalhes (enfeite de mesa, lembranças, roupas,comidas), teve até valsa com meu pai. Foi tudo muito lindo, meus amigos me prestigiando; omais legal foi que no auge da festa, na hora das homenagens, minha mãe me deu de presenteuma jóia que tinha sido da minha avó, sua mãe, algo muito precioso com um valor sentimentalimensurável, que guardo comigo, e se no futuro tiver uma filha, será dela também.

Recebi uma educação, não exageradamente, mas um pouco rígida, que muitas vezesquestionei e à qual resisti, mas tenho comigo todos esses valores que meus pais me passa-ram, e agradeço muito por isso. Como toda adolescente, fui revoltada, queria sair comminhas amigas e meus pais não deixavam, comecei a namorar cedo, algumas vezes até mearrependo, mas tudo isso serviu para eu aprender muitas coisas sobre a vida.

Eu era, e vejo que ainda sou, uma pessoa sonhadora, e o meu maior sonho sempre foipoder ter uma vida melhor, mais confortável, com melhores condições de saúde, de mora-dia, de alimentação etc. Quando criança, não sabia ao certo como conseguir isto, masquando fui amadurecendo, e as responsabilidades começaram a recair sobre mim, percebique somente através do trabalho poderia conseguir realizar esse sonho. Não sabia ainda oque queria fazer, onde trabalhar; muitas alternativas me passaram, mas nenhuma me pren-deu completamente a atenção. Assim, continuei estudando, e em um momento do terceiroano do Ensino Médio, notei que era chegada a hora de decidir, pois aquele seria o meuúltimo ano na escola, e então surgiu a dúvida: o que fazer depois? Vou continuar estudan-do? Vou prestar vestibular? Para que área? Com o que quero trabalhar? Eram muitas per-guntas e poucas repostas. Será que eu vou conseguir?

Foi uma fase complicada, como tantas outras que surgiram após. Quando manifesteiessa situação para meus familiares e amigos, recebi a aprovação e o apoio de todos e issofoi de fundamental importância para minhas decisões.

Às vésperas do vestibular, a maior dúvida ainda permanecia: que curso prestar?Escolhi Educação Física por ser com o que mais me identifiquei dentre os outros, masainda não tinha muita certeza do que queria realmente. Ao concluir o Ensino Médio noano de 2003, prestei vestibular em duas universidades públicas, UNESP e UFSCar, ambaspara Educação Física. Terminadas as provas, eu já sabia que as minhas chances erampequenas porque não havia me preparado totalmente para aquilo, e ainda pesava o fato deter estudado sempre em escola pública, e não tinha me dedicado ao máximo aos estudoscomo poderia ter feito nos últimos anos. E como o esperado, não fui aprovada em nenhu-ma universidade.

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Decidi desistir, pois acreditava não ser capaz, apesar de todas as pessoas a minha voltanão concordarem; na realidade não sabia muito bem o que queria e estava com muito medode tentar e falhar novamente. Foi quando meu irmão resolveu me ajudar. Como já trabalha-va, tinha um emprego e salário estável, era responsável pelo seu próprio sustento, nãodependia mais dos nossos pais e se ofereceu para pagar um ano de cursinho para mim. Meuirmão é seis anos mais velho que eu, é uma pessoa muito importante em minha vida esempre me ajudou em tudo, devo muito a ele por isso; é um irmão diferente, especial,importante, não sei explicar, ele é diferente. É interessante ressaltar aqui que, quando éra-mos crianças, brigávamos muito, mas muito mesmo, e hoje nos damos muito bem. Amomuito esse cara, que é um herói para mim, a pessoa em que me inspiro e penso antes de tudoo que vou fazer. Hesitei em aceitar, com medo de não conseguir e seu esforço ser em vão,mas ao fim aceitei e fiz um ano de cursinho pré-vestibular. Dediquei-me ao máximo, estuda-va uma média de cinco horas por dia, fora as horas de aula que eram no período noturno.Mas também de extrema importância para o meu sucesso foi a presença do meu irmão e domeu atual namorado, pessoas que sempre estiveram ali ao meu lado me apoiando, meajudando em todos os momentos mais difíceis, devo muito a esses dois, os “homens daminha vida”, nunca vou cansar de agradecê-los.

Neste um ano de cursinho, 2004, eu amadureci muito, percebi que o meu futuro, meusucesso, e a possível realização de meus sonhos estavam em minhas mãos, e que se eulutasse e me dedicasse muito poderia conseguir. Conheci várias pessoas que estavam namesma situação que eu, outras até piores, mas que mesmo assim nem pensavam em desistir.Uma, em especial, foi muito importante neste um ano, uma amiga que eu já conhecia, masde quem me aproximei muito nessa época, a Keli. Eu morava com meus pais na zona rural,como já disse, e fazia cursinho no período noturno, em uma cidade próxima dali, Catanduva,a mais ou menos uma meia hora de distância. A prefeitura de Itajobi disponibilizava umônibus para levar-nos, pois muitas pessoas também faziam faculdades particulares nessamesma cidade. Como chegávamos tarde da noite, não tinha mais como eu ir para minhacasa, meu pai até queria ir me buscar todo dia, mas foi quando essa amiga ofereceu sua casapara eu ficar todas as noites, e assim foi, pois achei desnecessário fazer meu pai acordar nomeio da noite para ir me buscar. Ficamos muito próximas nesse período, e até hoje nosfalamos, com menos freqüência, mas acredito que a amizade continue a mesma. A suafamília me tratava como parte dela, me sentia muito bem naquela casa e sinto muitas sauda-des de todos de lá.

Foi um ano muito importante em minha vida. Hoje acredito que se ele não tivesseexistido talvez minha adaptação tivesse sido diferente, mais difícil. Ao final deste anoprestei o vestibular novamente, agora melhor preparada, escolhi três universidades; UEL1,UNESP/campus Bauru e UFSCar, novamente todas para Educação Física. Passadas as pro-vas, eu acreditava que pelo menos na UEL iria conseguir a aprovação, estava com umasensação de dever cumprido, e a certeza de que tinha feito a minha parte. Mas mesmo assim

1 Universidade Estadual de Londrina/PR, pública, criada em 1970. Em 1987, foi implantado o ensino gra-tuito na Instituição e, em 1991, transformou-se em Autarquia Estadual. A partir do vestibular de 2005, aUEL adotou o sistema de cotas para alunos negros e para oriundos de escolas públicas [informações dosite http://www.uel.br/uel/portal, em 26 dez 2006].

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estava um pouco desanimada com os resultados, pois achei as outras duas provas difíceis, equando saiu o primeiro, aqui da UFSCar, nem procurei saber, foi o meu namorado quem foiver e me deu a notícia por telefone. Tamanha foi a minha felicidade: estava na lista deespera! E depois, o segundo foi meu irmão quem viu e também me passou, por telefone, anotícia de que havia passado, e por fim, saiu o resultado do terceiro, também fui aprovada;fiquei muito feliz por conseguir a aprovação nos três vestibulares. Escolhi a UFSCar, porvários motivos: proximidade de minha casa, tinha amigos que já estavam estudando aqui,maior disponibilidade de assistência estudantil, características do curso etc.

Passada essa fase, veio outra tão complicada quanto: “sair de casa”, era muito difícildeixar meus pais e ir para um lugar estranho onde não conhecia ninguém praticamente,aprender a viver sozinha, sem depender mais de ninguém, foi muito difícil porque até entãoeu nunca havia saído de casa. Lembro do momento da despedida, meus pais na porta de casachorando e eu indo embora, depois meu irmão na rodoviária chorando, acenando, e oônibus saindo. Ainda hoje não acredito como consegui pegar aquele ônibus e vir emborasozinha, sem conhecer ninguém; hoje tenho orgulho de mim mesma. Foi muito difícil meacostumar sem minha mãe fazendo quase tudo para mim, meu pai para conversar e meuirmão para me ajudar, e meu namorado também. Para matar um pouco das saudades, eufalava com eles todos os dias, com algum deles pelo menos, e sempre que podia ia para casanos finais de semana. Foram muitos os momentos em que me vi sozinha e chorei e tivevontade de voltar, mas a vontade de vencer era maior e me convencia a ficar; eles tambémsofreram, eu sei, mas foram fortes e sempre que podiam vinham aqui me visitar. Aprendimuito, novamente, amadureci mais ainda, me tornei uma pessoa independente e segura aotomar minhas decisões. Minha vida mudou completamente, hoje convivo com pessoasmuito diferentes de mim, que eu nunca imaginava nem conhecer. Há uma coisa que a genteaprende vivendo em um alojamento estudantil, que todas as pessoas são diferentes umasdas outras e para se conviver bem é preciso aceitar e acima de tudo respeitar essas diferenças.

Durante o meu primeiro ano, contei com a assistência que a universidade oferece:moradia no alojamento, alimentação no Restaurante Universitário e ainda uma ajuda decusto por meio da chamada Bolsa Atividade, através da qual eu trabalhava na Unidade deAssistência a Criança (UAC) e recebia o valor de 110 reais por mês. Com isso, meus paispouco ou quase nada precisavam me ajudar financeiramente.

A vida universitária é muito diferente, pelo menos da vida que eu tinha lá na casados meus pais, minha liberdade aumentou substancialmente, mas aumentou também aresponsabilidade e nos primeiros tombos aprendi a controlar e a saber aproveitar essanova liberdade. Eu aprendi a conviver com pessoas completamente diferentes de mim,adquiri uma disciplina para estudar que às vezes eu não acredito, é engraçado ver comoque o dia parece ser muito pequeno para tanta coisa que temos que fazer, é normal agoraeu ficar até a madrugada estudando, pois durante o dia não dá tempo. Ainda precisoaprender a lidar com a pressão e o estresse que existem nas vésperas das provas e trabalhosmais importantes, isso me desgasta muito, mas é tudo recompensado ao final do semestrequando o reconhecimento do meu esforço vem na forma de aprovação. Há muitas coisasboas também, na universidade, não poderia de forma alguma deixar de citar as pessoasmaravilhosas que conheci aqui e com quem tenho prazer de conviver, amigas como aCindia, a Juliana e a Neila que sempre me ajudam a superar as dificuldades, e eu nuncaesquecerei principalmente muitos momentos “intrínsecos” que vivemos. Há o pessoal lá

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do alojamento em que moro, que passou a ser minha casa aqui, onde aprendi a conviver epassamos muitos bons momentos juntos.

Agora, no segundo ano, conheci e tive a oportunidade de participar do ProgramaConexões de Saberes que, além de ajuda financeira através da bolsa que recebemos, nosoferece um meio para nos aproximar daquelas pessoas mais desfavorecidas financeiramen-te, e que por esse motivo não tiveram acesso ou nem sabem da existência de universidadespúblicas. A galera do Conexões (os bolsistas) se tornou também como uma família, poispassamos por muitas coisas parecidas e estamos quase a todo momento juntos

Tudo com o que estou tendo contato aqui na UFSCar está colaborando muito para omeu crescimento profissional, e este Programa Conexões de Saberes além disso, está meproporcionando um crescimento pessoal, pois estou fazendo algo prático para aquelaspessoas que, diferentemente do que aconteceu comigo, não tiveram uma oportunidade deestudar, de escolher uma profissão, estamos tentando dar essa oportunidade a essas pessoas,e isso faz-me sentir útil e me encoraja na luta para conseguir uma vida melhor, não só paramim, mas para minha família também, que é o que eu tenho de mais importante. Foram elesque me deram a vida e tudo o que tenho e sou até hoje, por isso quero retribuir tudo isso,fazendo com que a vida deles seja confortável e sossegada, da maneira como eles merecempor terem trabalhado a vida toda.

Quero também poder ajudar todas as outras pessoas que precisam, pois pretendo meformar não só para ter um diploma, mas para compartilhar, com outros, tudo o que aprendie estudei, buscando assim melhores condições de vida e de saúde.

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A culpada de eu existir é minha mãe. Reclamem com ela, o verdadeiro amor da minhavida. Minha mãe namorava um homem que, com o passar do tempo, aprendi que não era meupai, já que pai é quem educa, quem cria, e não quem apenas fecunda. Este namoro terminouapós ele saber da minha futura existência. Pediu para que minha mãe me abortasse, mas elanão quis. Por isso digo que é minha heroína, o verdadeiro amor da minha vida.

Enquanto crescia, minha mãe trabalhava e não tive luxos, mas não posso dizer quealgo faltou. Não lembro exatamente com que idade, mas logo eu tive que ficar numa creche.Chamava-se Creche Escola Estância Feliz. Passados três anos e oito meses do meu nasci-mento, minha mãe deu à luz o meu irmão, filho de outro pai que, infelizmente ou não, sóDeus é quem sabe, faleceu quando meu irmão tinha apenas dois anos de idade. Assim,minha mãe passou a ser pai e mãe de duas crianças.

Quando eu estava em idade escolar, minha mãe procurou a melhor escola públicaque conhecia. Sempre fez assim. Como não podia pagar para que estudássemos em esco-las particulares, fazia questão que estivéssemos nas melhores públicas, mesmo que estasfossem distantes de nossa casa como sempre aconteceu. Então, da primeira à quarta série,estudei na Escola Estadual Francisco Feliciano Ferreira da Silva, vulgo Verdinho. De-pois, no ano de 1996, ocorreu uma mudança nas divisões de alunos, de acordo com asséries, e eu passei a estudar na Escola Estadual Coronel Carlos Porto a partir da quintasérie e lá permaneci até terminar o terceiro colegial. Durante todos esses anos, minha mãenão cobrava que eu trabalhasse, ela esperava que eu o faria para ajudá-la quando termi-nasse o Ensino Médio. Entretanto, surpreendi minha mãe, negativamente, pois tomaragosto pelos estudos e queria prestar vestibular.

No momento em que comecei a estudar, ou seja, nos primeiros anos escolares, umapessoa influenciou decisivamente minha vida. Seu nome é Alziete, uma antiga amiga daminha mãe. Acostumei-me a chamá-la de “Vó”, já que via sua neta, que tinha aproxima-damente a mesma idade que a minha, referia-se a ela assim, como não poderia ser diferen-te. Quando eu voltava da escola ia direto para a casa da “Vó”. Almoçava, assistia TV,estudava, tomava café. Acredito ter sido por causa dela que adquiri o gosto e o interessepelo estudo. Todos os dias durante o ano em que estudava a segunda série, ela me pergun-tava as tabuadas. Aprendi todas neste ano, do dois ao dez, e nunca mais esqueci. Na quartasérie, foi a vez de aprender conjugação verbal. Até hoje me lembro da gramática marromcom a qual eu gastava horas estudando os verbos que minha “vó” mandava.

Anderson Thadeu Nunes*

Realizando sonhos

* Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar.

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

Quando estava na sétima série, comecei a treinar voleibol no SESI1 da minha cidade,Jacareí-SP. Tudo começou quando, numa aula de educação física, o hoje meu amigo, quechamo de irmão, convidou-me para treinar no SESI, pois ele achava que eu jogava bem. Eleacabara de mudar para aquela escola. Vim a saber, quando comecei efetivamente a treinarlá, que o técnico de voleibol também dava aulas na escola “Carlos Porto”, em que euestudava. Esse professor foi outra pessoa que exerceu uma influência considerável na mi-nha vida. Seu nome é Francisco, mas todos o chamamos de Chico. Com seu jeito de ser e depensar e com suas atitudes, influenciou o meu caráter muito fortemente e agradeço muito aele por isso. Foi a figura masculina que tive por referência na minha adolescência. Suaintegridade e senso de justiça sempre me serviram de exemplo.

De início, e por muito tempo, minha mãe não gostava da idéia de eu treinar voleibol.Ela sempre foi superprotetora e tentava nos manter em casa, mas sempre fui muito indepen-dente. Infelizmente, para ela, por muito tempo isso foi ruim. Ela detesta ser contrariada. Souo filho errado para a mãe certa. Eu sempre fiz o que queria, podia ela fazer ou reclamar o quequisesse. Graças a Deus eu sou ajuizado. Modesto também...

Durante os dois primeiros anos em que treinei, eu raramente entrava nos jogos. Issolevou a um fato que me marcou muito. Eu sou uma pessoa bastante tolerante, mas acho queamigos de verdade se apóiam nas horas difíceis e riem juntos nas outras. Um garoto que erameu amigo desde a sexta série juntou-se a outro amigo nosso e começaram a dizer: “Erva,erva, erva,... reserva dos reservas...”. Isso me irritou profundamente. Ou melhor, me magoou.Resultado: deixei de considerá-los como meus amigos e me aproximei dos que hoje verda-deiramente os são. No outro ano, em 2000, passei a ser titular absoluto. Não era o melhor dotime. Nunca almejei isso, mas, enfim, era titular. E assim está sendo desde então em todos ostimes em que jogo. É claro que nem sempre estou nos meus melhores dias e às vezes fico “nobanco”. Assim é o esporte!

Até terminar o ensino médio, jogava vôlei de segunda a segunda. Era só no quepensava. Via jogos, sozinho ou com meus amigos. Ficava algumas madrugadas assistindotelevisão à espera de grandes jogos, assistia gravações antigas... enfim, vivia voleibol,respirava voleibol. Chegava em minha casa sempre exausto devido aos bate-bolas. Porém,hoje lembro desses dias com muita saudade. Ainda bem que aproveitei com intensidade.Foi o tempo em que me encontrei como ser humano. Foi quando aprendi que não só vitóriascomo também as derrotas ensinam. Foi o período mais importante da minha vida. Foi omelhor! Conheci meus extremos, meus medos, Deus e o respeito por mim.

Na metade de 2002, ano em que terminei o Ensino Médio, um professor substituto nosfalou sobre os vestibulares para ingressar nas universidades públicas, até então desconheci-das por mim. Sempre quis ser formado em um curso superior. Primeiro, queria ser biólogo,depois, arquiteto, advogado, professor de matemática, estatístico e, finalmente, engenhei-ro. Mas que tipo de engenheiro? Isso foi difícil decidir até conhecer um pouco sobre aEngenharia de Materiais.

Não sei se por acaso, mas após ter-me inscrito no vestibular da UNESP e no da USP,meu amigo me trouxe fichas de inscrições de um curso pré-vestibular popular. Este foi meu

1 Serviço Social da Indústria, instituição de direito privado fundada em 1946 pelo Conselho Nacional da Indústria,presente em 1.885 municípios no Brasil [informações do site: http://www.sesi.org.br, em 26 dez 2006].

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primeiro contato com o Curso Alberto Santos Dumont (CASD2). Fizemos nossas inscriçõese as provas. Porém, só eu passei, infelizmente. Fiquei neste cursinho dois anos. Paralela-mente, não consegui convencer minha mãe da importância que era ter um curso superior.Para ela, até eu entrar na UFSCar no curso de Engenharia de Materiais em 2006, cursosuperior era coisa de “gente rica”. Demorou muito para que ela me apoiasse, mas eu fuiteimoso. Mesmo assim, tinha que começar a trabalhar.

No início de março de 2003, surgira a oportunidade de prestar um concurso paraSoldado PM (Polícia Militar) Temporário. Eu passei em todas as provas e assinei um contra-to. Recebia dois salários mínimos sem quaisquer descontos e mais um tíquete de alimenta-ção no valor de oitenta reais, mais ou menos. Eu sempre odiei formalidades militares. Rezeipara ser dispensado do exército e acabei virando um militar. Vale explicar que minhasfunções eram exclusivamente administrativas. Não saía às ruas para prender pessoas nemmultar ninguém. Nos dois anos que fiz CASD, trabalhei na PM.

Passado esse tempo, eu já havia ficado “macaco velho” de vestibular. Não agüentavamais! Minha mãe me pressionava. As pessoas perguntavam e eu tinha que explicar a elas asdificuldades de passar no vestibular. Precisava tomar uma decisão. Tinha três opções: tentarmais uma vez conciliar estudo e trabalho; deixar o cursinho, continuar trabalhando e estu-dar em casa; ou, e foi essa a decisão tomada, deixar o trabalho e continuar a fazer cursinhoenquanto minhas economias resistissem.

O destino me ajudou. Na verdade, Deus me ajudou. Não acredito em destino. Antes dofinal do segundo ano de cursinho, os professores, que eram alunos do ITA3, passaram umalista para os alunos interessados em participar de uma turma cujo enfoque das aulas eram asmatérias que compunham o vestibular do ITA. Os escolhidos não foram os melhores alunosde exatas. Eu não era um desses! No meu caso, escolheram-me por eu ser um aluno dedica-do. Os professores perceberam, ainda bem! E assim, no início de fevereiro, eu recebi umaligação. Perguntaram-me se eu queria ser integrante da turma-ITA do curso pré-vestibularCOC4, com 100% de bolsa e ainda com um excelente material didático. Eu aceitei. Muitosdos professores nessa nova turma eu já conhecia, afinal, essa turma-ITA começou com umconvênio entre o CASD e o COC. Agora, sem trabalhar e estudando somente, eu tinha tudopara passar no vestibular.

Entretanto, eu prometera a mim mesmo que não pediria ajuda de ninguém para memanter estudando. Meu dinheiro acabou e eu tive que procurar um trabalho para continuartendo meios de pagar minhas passagens e lanchar. Mas não podia ser como nos dois anosanteriores. Então, o que fazer? Como aos finais de semana eu não tinha aulas e, geralmente,

2 O CASD Vestibulares (Curso Alberto Santos Dumont) é uma iniciativa dos alunos do Instituto Tecnológicode Aeronáutica (ITA) que, em parceria com a Prefeitura Municipal de São José dos Campos e outrosparceiros, tem o objetivo de oferecer uma oportunidade de preparação para os exames vestibulares àquelesque não tem condições financeiras de freqüentar um curso pré-vestibular convencional. Para fazer parte doCASD, o aluno precisa ser aprovado no processo de seleção, que constitui de uma prova e uma Entrevistade Renda. Foi fundado na década de 70 e, após alguns períodos de encerramento de atividades, foi reabertoem 1997. Atende, em 2006, 450 alunos [informações do site http://www.casdvest.org.br, em 26 dez 2006].3 Instituto Tecnológico de Aeronáutica, órgão de ensino superior do Comando da Aeronáutica, vinculadoao Ministério da Defesa, criado em 1950, com os cursos de Engenharia Aeronáutica, Eletrônica, Mecânica-Astronáutica, Infra-Estrutura Aeronáutica e de Computação [informações do site http://www.ita.br, em 26dez 2006].4 Curso pré-vestibular do Sistema COC de Ensino [informações do site http://www.coc.com.br, em 26 dez 2006].

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estudava pouco, procurei um trabalho que me ocupasse apenas nesses dias. Comecei atrabalhar numa pizzaria que um amigo tinha indicado. Ganhei a simpatia dos donos e doscompanheiros de trabalho. Às vezes, eu tinha que participar de simulados ou mesmo vesti-bulares nos finais de semana, mas nunca me incomodaram com reclamações. Aquele localnão era um “mar de rosas”, porém não há como negar que foi importante ali ter trabalhadopara hoje estar onde desejei.

Fiz seis vestibulares para o ano de 2006. Do IME5, do ITA, da USP, da UNESP de RioClaro, da UFSCar e da UNIFEI6. Passei nos três últimos, mas demorou um pouco para que mechamassem na UFSCar, que tinha o curso que eu realmente queria fazer e onde eu aindatinha esperança de ser aprovado. Fui chamado praticamente na quarta lista. Minha mãe, queaté há pouco tempo insistia que eu desistisse de tudo isso, estava muito orgulhosa de dizera todos que seu filho havia passado no vestibular. Como foram emocionantes e carinhosostodos os momentos que passamos juntos quando ficou evidente que eu estava de partida.Algo que eu sempre desejei e cobrei, o carinho da minha mãe, agora jorrava fácil. Não queminha mãe não fosse carinhosa, mas eram tão raros esses momentos que às vezes parecia queela tinha prazer em brigar conosco, meu irmão e eu. Mesmo quando fazíamos tudo certo, elasempre achava algo para criticar. Tudo passou!

Fui para a UNESP, pois era mais perto da UFSCar. Fiquei duas semanas na cidade deRio Claro. Antes de ir, sabia que duas amigas já estavam estudando naquela universidade.Nessas duas semanas na UNESP fiz muitos amigos, fui a muitas festas e me diverti muito.Quando vi meu nome na lista da UFSCar, chorei. Liguei para minha mãe quando esperavapelo ônibus que me levaria para a rodoviária de Rio Claro onde pegaria outro ônibus paraSão Carlos. Depois de deixar família, amigos queridos e verdadeiros, meus confortos erotina, agora eu ia de uma universidade a outra. Finalmente cheguei à UFSCar; estou fazen-do o curso que eu quero; moro num lugar bom, com pessoas honestas; minha família e meusamigos estão bem.

Hoje tenho a mãe que sempre sonhei, romantizei, idealizei. Minha mãe era perfeita.Agora ela é divina. Nem tenho palavras para dizer sobre o que ela representa para mim.Sempre corri atrás de meus sonhos e hoje vejo o quanto acertei nas minhas escolhas. Estoufeliz, claro que eventualmente me chateio, mas só tenho a agradecer a Deus por todas asbênçãos que Ele dá a mim, seja na forma de amor materno, amor fraterno ou da minha forçade vontade.

5 Instituto Militar de Engenharia, estabelecimento de ensino do Departamento de Ciência e Tecnologia(DCT) responsável, no âmbito do Exército Brasileiro, pelo ensino superior de Engenharia e pela pesquisabásica fundado em 1959. O IME ministra cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitáriapara militares e civis [informações do site http://www.ime.eb.br, em 26 dez 2006].6 Universidade Federal de Itajubá/MG, fundada em 1913 [informações do site http://www.unifei.edu.br/, em26 dez 2006].

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Contar sobre mim: tarefa ao mesmo tempo tão diferente e difícil como gostosa e excitan-te. Por ser um trabalho envolvendo vários sentimentos bons, que quase sempre me pegorelembrando, e ruins, que não consigo esquecer, ou acho que também não quero esquecer,a autobiografia envolve um labor indescritível. Talvez seja esse labor, ajudado pela minhatimidez, que faz dessa tarefa algo inexplicavelmente excitante. Então, vamos a ela.

Minha história começa no dia dez de março de 1986, às oito horas da manhã, quandocheguei ao mundo. Nessa época, meu pai era metalúrgico e minha mãe era dona de casa.Morávamos em uma casa cedida por minha avó, que ficava perto de duas escolas públicas.E foi em uma delas que, com seis anos de idade, comecei a cursar o ensino fundamental.

Estudei quase o ensino fundamental inteiro nesta escola. Entretanto havia um grandeproblema, que também está presente na grande maioria das escolas públicas: a violência.Brigas eram espetáculos constantes durante os intervalos e também dentro da própria sala deaula. E quem acabava sendo prejudicado era o pessoal que queria verdadeiramente estudar.

Dessa época tenho, porém, boas lembranças. Fiz amigos com os quais ainda mantenhocontato, como André e Lucas, com quem passei vários momentos interessantes e diferentes,principalmente o Lucas. Como quando, incitado pelos outros meninos, quis brigar com ele.Quando dei o primeiro chute nele e a resposta que tive foi um sorriso, percebi que nada queeu fizesse o faria brigar comigo. Nesse dia, senti que tinha encontrado um grande amigo. Ouquando nós três fazíamos cartas de amor para as meninas da escola e mandávamos no nomedele. Pena que a maioria das cartas não dava resultado.

Nessa escola, tive também professores que marcaram positivamente minha vida esco-lar como a que ensinava português, Marlene, e também Adriana, que foi minha professoraquando estava na quarta série e, espero, como futuro professor, ser tão sensível e carinhosocomo ela era e tem sido para os seus alunos.

Foi, porém, nessa época que a relação entre minha mãe e meu pai começou a ficar ruim.As discussões deixaram de ser raras para se tornar cotidianas. E como, de discussões dospais, é difícil se manter longe, meus irmãos e eu defendíamos sempre minha mãe. Meu pai,estranhamente, compreendia-nos. Porém, a situação estava se tornando insustentável.

Essas brigas, aliadas com outros fatores, como o meu falso amadurecimento, fizeramcom que eu me afastasse do meu pai. Comecei a me distanciar dele. Todo aquele amoresperado de se ter pelo pai, eu achava que não tinha mais pelo meu. Os nossos desentendi-mentos ganharam uma freqüência terrível e passamos a dialogar cada vez menos.

Augusto Cesar Pedro*

Um pouco de luta

* Graduando em Letras pela UFSCar.

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Porém, quando estava no segundo ano do colegial, aconteceram fatos que marcaram aminha vida profundamente e me fizeram mudar drasticamente de conduta. Quando acabei oensino fundamental, resolvi prestar uma prova para tentar entrar na Escola Técnica Esta-dual Profa. Anna de Oliveira Ferraz, conhecida como “Industrial” e considerada uma escolamelhor que as outras do ensino público. Felizmente, consegui passar e então cursei meuensino médio nessa escola. E essa escola, principalmente os amigos que fiz, trouxeramgrandes transformações para minha vida

Foi no ano de 2002, quando estava no segundo colegial, que meu pai foi internado nohospital, pois estava com a saúde debilitada devido à bebida e a o cigarro. Quando fuivisitá-lo, num domingo, o mesmo dia em que fiz crisma, e o vi numa cama de hospital, sentiuma dor tão forte e descobri que todas as palavras e sentimentos que achava que tinha comrelação ao meu pai eram mentira. Percebi então que apesar das coisas erradas que fazia e suaatitude em relação à minha mãe, eu nuca tinha perdido o amor por ele. Percebi tudo isso,porém, não consegui dizer a ele. Somente segurava a sua mão e chorava percebendo ostempos perdidos em discussões que não tinham a menor importância.

Quando meu irmão e eu saímos do quarto, eu queria falar para meu pai o quanto oamava e o quanto me arrependia pelas nossas brigas. Porém não consegui fazer isso, nãotive a coragem, naquele dia, de assumir que sempre estivera errado. Mas, ao voltar para casa,ficava sonhando com a próxima visita, no próximo domingo, na qual falaria do meu imensoamor por ele.

Contudo, essa visita nunca chegou. Dois dias depois, meu pai faleceu. Isso foi ummomento horrível. Eu estava fazendo um curso e minha mãe ligou na escola falando que eutinha que ir embora, sem dizer o que era, por medo de algum acidente, pois eu estava debicicleta. Na hora eu senti que era algo com meu pai. Quando cheguei em casa, recebi anotícia. Não acreditava... sei lá, vi minha mãe ligar chorando para uma colega da famíliaavisando do ocorrido, mas mesmo assim sabia que podia ser mentira ou que tinha comovoltar. Não conseguia pensar em nada.

Cheguei ao velório e foi nesse momento que percebi que o que estava acontecendoera real. Vi aquelas pessoas me abraçando, o meu vizinho que também tinha perdido seu paino ano anterior me consolando, dizendo que sabia o que eu estava sentindo. Chorei. Queriafalar pro meu pai do meu amor, mas não podia, nunca mais iria conversar com ele. Isso doeue ainda dói muito em mim.

Esse fato mudou totalmente minha vida. Passei a não discutir mais de bobeira, a nãoguardar mais mágoas das pessoas. E aprendi a assumir meus erros e pedir desculpas.

No ano seguinte, recebi um convite de uma amiga do colegial, a Cilene, que faziaparte de um grupo da igreja, para fazer um retiro espiritual. Aceitei o convite. Foi uma dasmelhores coisas que fiz, pois me ajudou a me conhecer de fato. Percebi que estava cercadode boas pessoas e não tinha descoberto ainda. Aprendi a viver de verdade e a valorizar avida e quem a gente gosta.

E foi nessa época também que, graças aos amigos que fiz, como Lucas, Vacão, Zé,Douglas, Danilo, Thiago, Milen, Joaquim, Bruno, que comecei a preocupar-me com quemseria no futuro. Uma das medidas para tentar responder essa questão foi começar a fazer umcurso profissionalizante na área de metal-mecânica quando estava no segundo ano. Porém,percebi que isso não era “minha praia”, mas não abandonei o curso de dois anos de duraçãodevido a vários motivos, entre os quais, as amizades, como Douglas e Raphael (com quem

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aprendi meus primeiros passos de samba) e os professores que tive no curso, entre eles, oinstrutor Ivan, ótimo conselheiro, e um dos professores mais legais que tive.

Quando comecei meu terceiro ano, época de toda a pressão do vestibular, eu não conse-gui dedicar-me suficientemente aos estudos para prestar os exames, pois estudava pela manhãna escola e à tarde no meu curso profissionalizante. Com isso, chegava do curso no final detarde, não tinha ânimo para estudar mais nada. É, eu era um pouco preguiçoso também.Resultado foi que no final do ano prestei, mais como experiência, sem estar preparado e, comoera de se esperar, não passei. Ao invés de me desestimular, o fato de não ter passado transfor-mou-se em um desafio, e incentivou-me a estudar para entrar em uma faculdade pública.

Então prestei uma prova para entrar num curso pré-vestibular popular. Passei e come-cei a estudar no período da manhã. Lá, conheci um grande amigo, o Rafael, companheiro,junto com o Paulo César, para as mais loucas e engraçadas situações. Também tive umprofessor que me ajudou muito a entender física de um jeito legal. Ele buscava simplificarao máximo os cálculos, explicando-os de uma maneira descolada e engraçada.

Contudo, como acontece com grande parte das pessoas de classe economicamentemenos favorecida, tive que começar a trabalhar. O meu primeiro emprego foi de garçom. Ecomo saía do trabalho já de madrugada, cansado, aliando isto à já citada preguiça, não tivepique para continuar os estudos e abandonei o cursinho, entretanto não “desencanei” deentrar na universidade. No final do ano, prestei o vestibular já sabendo que não passaria,pois novamente não tinha me dedicado o bastante.

E como diz o ditado “há males que vêm para o bem”: ainda nessa mesma época, alémde não ter passado no vestibular, ainda fui mandado embora do serviço. Como tenho costu-me de sempre tirar uma lição das coisas que acontecem comigo, com a demissão e a frustra-ção do vestibular eu percebi que o que desejava realmente era entrar numa universidade eresolvi me dedicar realmente para conseguir e, assim, não ter mais desculpas para nãopassar no vestibular.

E foi o que fiz. Estudei em outro cursinho popular, esse feito pelos alunos da Unesp,de Araraquara. Logo no primeiro dia, o professor contou sua trajetória até a universidadee falou:– Se dedicando já é difícil a concorrência por uma vaga, imagina sem dedicação!Isso, para variar, me incentivou ainda mais. Comecei a estudar fora do horário de aula, tirardúvidas com os professores, ir mais vezes à biblioteca. Estava com o firme propósito depassar no vestibular.

Então, no final do ano, devido às isenções conseguidas, com a ajuda dos coordenado-res do cursinho, e com o auxílio dos meus avós, prestei o vestibular em quatro universida-des diferentes: para o curso de História, em três universidades, e Letras, na UFSCar. Fiqueina lista de espera em três universidades, entre elas a UFSCar, mas sem muita esperançanesta, pois fiquei muito longe dos primeiros colocados.

Quando veio o resultado, me surpreendi. Tinha passado nas três universidades. Entãoveio o melhor momento, momento sonhado todos os dias: decidir em qual universidadeestudar. Eu e minha família decidimos que seria melhor matricular-me na UFSCar pelo fatode ser uma boa universidade, ser perto da minha cidade e pela dificuldade que minhafamília teria para me auxiliar nas despesas caso resolvesse cursar as minhas outras opções.

E essa escolha está sendo, felizmente, muito boa. Estou realmente gostando do curso,a universidade oferece uma razoável sustentação ao aluno oriundo de camada popular,como é o meu caso, e também, graças a ela, estou no Programa Conexões de Saberes, que

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está me ajudando a observar com uma outra visão as dificuldades que os alunos de origempopular têm para chegar à universidade e como essas dificuldades estão sendo tratadas.

E o melhor jeito de acabar minha história é fazer igual aos filmes quando acabam:descrever as pessoas responsáveis pela minha história de vida e um pouco de suas atuações naminha vida. E foi essa forma que encontrei para agradecê-los pela suas atuações brilhantes.

A personagem principal é, e não poderia deixar de ser, a minha mãe, Cecília de Olivei-ra Pedro, a batalhadora Cecília. Batalhadora, pois consegue muito mais do que sustentartrês filhos, sendo pai e mãe. Ela consegue fazer a gente ter esperança e alegria, não deixandoo desânimo chegar até seus filhos e todos que estão ao seu redor. Ela faz com que eu nãotenha medo de nada. Minha mãe é minha coragem. Amiga, é a pessoa com quem falo dosmeus sonhos e pesadelos, das minhas vitórias e as minhas derrotas. Sempre com a palavraideal a me falar, seja puxando a orelha, seja me confortando. É por sua causa que tenhomotivos pra sonhar e trabalhar em busca de uma vida melhor.

Aos meus irmãos, agradeço pelo grande apoio, demonstrado em vários momentos,como por exemplo quando meu irmão me levava pro cursinho e me chamava a atençãotodas as vezes em que eu desanimava, e quando deixa muitas vezes de realizar seus desejosem favor de ajudar minha mãe nas despesas de casa. Agradeço por tudo que fez e faz pormim. Agradeço a ele por estar presente sempre que precisava, como quando arrumava con-fusões e brigas na escola. Agradeço à minha irmã pela amizade, por seu amadurecimentoverdadeiro. Pela sua sinceridade, por ter a paciência para ouvir meus problemas. Meusirmãos chamam-se Natalia e Saymon.

Agradeço ao meu tio Ademilson, por ser um amigo, daqueles que é pra tudo o que vier.Com meus avós, José e Dalva, aprendi a viver. Aprendi a não abaixar a cabeça, aprendi a sero que sou e ter orgulho disso. Agradeço aos meus avós que me ensinaram a sonhar, a ter acerteza de ter visto o Papai Noel saindo pela janela do quarto onde meu irmão e eu estáva-mos dormindo, depois de ter deixado o presente, pela força que sempre deram a mim e meusirmãos, seja auxiliando meus pais, seja nos educando. Meus avós foram meus pais, ajudan-do-nos sempre. Agradeço pelos vários momentos que ficaram na minha memória, como osdomingos, os natais e tudo mais.

Agradeço aos meus amigos. Por conseguir me agüentar, pela força que me deramsempre que precisei. Pelas coisas boas que fiz com eles, pelos conselhos que já recebi eainda recebo que fazem a diferença no meu jeito de ser.

Agradeço ao meu pai. Agradeço a ele por todos os momentos. Pelos momentos tristesque fizeram com que aprendesse que a vida é feita de detalhes e que é preciso fazer dessesmomentos os melhores, pois nunca se sabe quando esses momentos acabarão.

Agradeço a Deus. Agradeço pela minha família, pelos meus amigos, pela minha espe-rança, pela minha fé. Agradeço pelas boas pessoas que Ele tem colocado na minha vida,pessoas essas que, apesar do pouco tempo de convivência, já sinto que serão muito impor-tantes na minha vida. Agradeço a Deus pela minha vida.

E essa foi um pouco da minha história.

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Tive o privilégio de nascer no mês de novembro, primavera, às 6:20 da manhã. En-quanto o mundo abria os olhos para um novo dia, eu abria os olhos para um novo mundo,numa estação do ano que é extremamente majestosa, porque nela a natureza se desperta,enche-se de flores, animais e pássaros, anunciando o verão.

MombucanoMinha família morava, na época, num pequeno sítio que pertencia aos meus tios e ao

meu pai, que teve de trocá-lo, na ocasião da partilha dos bens da família, por uma casasimples em Mombuca-SP, período do qual, na verdade, não tenho muitas recordações. Esseacanhado município dista 30 km ao sul de Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, eatualmente possui cerca de 4000 habitantes vivendo, quase em sua totalidade, em torno dacultura da cana-de-açúcar, na qual é fortemente fundamentada sua economia.

PeralticesAo lado de meus irmãos, minha infância foi tão simples quanto divertida. Era muito

agradável brincarmos juntos e todos nos deliciávamos em observar os caminhões, tratorese máquinas agrícolas que constantemente interrompiam a vida pacata da cidade, atribuin-do-lhe certo ar de dinamismo e grandeza. Onde havia obras, lá estávamos nós, “xereteando”!Num aspecto “terrorista” de nossa infância, acontecia que de vez em quando jogávamosbombinha nos cachorros indefesos que se espalhavam pela cidade, os quais gostávamos dever assustados com os pequenos estrondos. Além disso, divertia-me com o futebol, aindaque não jogasse muito bem, e me realizava ao brincar de caminhãozinho no quintal de terrabatida, no qual sempre inventava alguma coisa diferente, inspirado no que via no dia-a-dia:usinas e toneladas de cana sendo levadas de um lado a outro.

Na escolaQuando minha mãe matriculou-me no pré-primário, não queria ir de jeito nenhum à

escola e tinha sérios intentos de incendiá-la e destruí-la, planos que, após os primeiros dias

Carlos Messias Ferreira de Jesus*

Alçando vôos mais altos

Uma coisa é saber o caminho, outra épercorrer o caminho.Personagem Morpheus no filme Matrix

* Graduando em Física pela UFSCar.

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de aula, para benefício de todos, foram cessando e dando lugar a um grande desejo deaprender. No início, havia apenas um “tio” ou “tia”, sendo a quinta série a divisora deáguas: diversos professores se apresentam, deixando mais clara a separação entre as disci-plinas. Passado o susto decorrente disso, típico entre crianças de apenas 11 anos, desenvol-vi um intenso interesse em relação a Ciências, matéria que considero empolgante por ajudaros alunos a perceberem melhor a realidade que os cerca. Uma segunda ocasião bem interes-sante na minha vida foi na oitava série, quando me integrei à Comissão de Formatura epassei a ter várias preocupações novas, tais como realizar rifas, festas e outras atividadespara arrecadar dinheiro para a cerimônia de formatura. Esta época também marcou o inícioda minha apreensão com o futuro - O que fazer? Onde trabalhar? Que profissão seguir?

Quase adultoNo Ensino Médio, era um aluno dedicado, preocupava-me em estudar e manter boas

notas, pois tinha consciência de que para passar no vestibular era necessário ter um bomdesempenho na prova. No início, não sabia bem qual curso escolheria, mas fui pesquisandoe amadurecendo minhas idéias. Simultaneamente ao Ensino Médio, meu primeiro empregofoi como auxiliar de costura, depois do que trabalhei em uma oficina mecânica e numaempresa onde eu era responsável por empacotar balas e chicletes. Alguns meses desempre-gado e novamente auxiliar de costura, até que o último emprego antes de ingressar nauniversidade foi como Agente de Saúde da Prefeitura, quando trabalhava durante o dia efazia curso pré-vestibular à noite. Apesar de não ter tido muito tempo disponível para osestudos, pude prestar vestibular e receber, depois de algumas semanas, a feliz notícia de quehavia sido aprovado.

ReligiãoMinha casa fica próxima da que, na época, era a única Igreja Católica da cidade. Após

fazer a Primeira Comunhão, fui Coroinha e, ao auxiliar nas missas, desenvolvi bastantesenso de organização e responsabilidade. Talvez tenha sido ali, também, que abandonei devez minha vocação “terrorista” citada anteriormente.

GostosEu sou literalmente o que se pode chamar de onívoro, pois como de tudo, gosto de

legumes, frutas, pão de queijo, leite e carne. Trajo roupas que ofereçam discrição e simpli-cidade, com o objetivo de apenas mostrar-me de maneira apresentável e sóbria. Gosto aindade realizar caminhadas, de observar a natureza – a mata, os animais, as aves, o céu, asestrelas, a Lua, o Sol – e de fazer leituras edificantes que me levem a refletir sobre a vida.Todo este contato com estas belas paisagens tem me dado uma ótima percepção do mundoe de Seu Criador, conduzindo-me, no ambiente em que vivo, a um equilíbrio pessoal,intelectual e espiritual.

HojeFaço graduação em Física e aprecio o fato de a cada dia realizar novas descobertas e

adquirir mais conhecimentos nesse ramo da ciência. Sinto-me feliz por ser estudante e saberque no futuro poderei tornar-me um profissional qualificado a contribuir para o desenvol-vimento social. Nesse sentido, o Programa Conexões de Saberes tem sido muito importante

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nos âmbitos pessoal e profissional, ao fornecer-me uma melhor capacidade de compreenderos principais problemas sociais do país relacionados à universidade pública.

A Universidade é um ambiente bem interessante, em que é possível fazer muitasamizades e conhecer os pontos positivos e negativos das pessoas. Há, ainda, a oportunidadede aprofundar e intensificar o convívio: no namoro. Foi aqui na UFSCar que conheci umamenina muito especial, a Priscila, que tem sido minha companheira e ajudou-me, por exem-plo, na elaboração deste texto, pelo que tenho muito que lhe agradecer.

Quando se olha para um caminho, pode-se até ter o mapa em mente, considerar difícilou fácil a trajetória a ser realizada – isto depende de percepções pessoais. Porém, existe algomuito mais importante do que apenas conhecer o caminho, independente de seu grau dedificuldade: trilhá-lo, dar o primeiro passo, o pontapé inicial. Para alçar vôos mais altos econquistar as estrelas, é preciso encontrar e compreender os meios corretos de atingir osobjetivos, construir melhores percepções das possibilidades e oportunidades, sem permitirque circunstâncias ruins atrapalhem os planos e, deste modo, caminhar com coragem edeterminação.

É desta forma que caminho: buscando a Deus, vivendo um dia de cada vez, fazendo omelhor que posso, enfrentando, com a ajuda d’Ele, as dificuldades. Nasci numa famíliapobre (meus pais tinham uma Kombi 73 herdada do meu tio), passei a infância numa peque-na localidade entre canaviais do interior paulista, tive que estudar e trabalhar para chegaraté a universidade, o que não foi fácil, mas, como se nota, não foi impossível.

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36 Caminhadas de universitários de origem popular

Eu sou Ney, nasci no ano de 1973, em uma pequena cidade da região sudoeste deMinas Gerais e do Parque Nacional da Serra da Canastra, onde é a nascente do Rio SãoFrancisco.

Assim que comecei a descobrir o mundo a minha volta, percebi que morávamos emuma pequena casa pouco acima de um rio (Rio São João) cercada por uma mata fechada, quetinha árvores enormes (Jequitibás, Jatobás...). Ao redor da casa, tinha também vários pés demamão, laranjeiras, bananeiras, abacateiros e mangueiras.

De manhã, eu acordava e corria para um pequeno curral, onde meu pai tirava umleitinho de umas quatro vacas, eu levava comigo uma caneca com farinha de milho e açúcare um pedaço de bolo de fubá. Quando acabava de tomar café, eu sumia no mato com oChumbinho (meu cachorrinho vira-lata); meu pai e minha mãe ficavam muito bravos quan-do eu demorava a aparecer, eles diziam para eu ficar longe do rio porque havia uma cobragigante lá, que devorava as crianças, além de uma onça e lagartos gigantes. Bom, eu sosse-gava alguns dias e depois sumia de novo. Era muito bom espantar os macacos, os pássaros,os quais eram de vários tamanhos e cores, os tucanos eram os que mais me prendiam aatenção. Não cheguei a ver nenhuma onça, muito menos lagartos gigantes, mas um diaestávamos andando pela palhada (roça depois da colheita de milho), eu e o Chumbinho...de repente ele ficou bravo e não parava de latir, foi quando eu vi uma cobra enorme, era umaSucuri: não pensei duas vezes e corri sem olhar pra trás.

Mudamos para a cidade e fui estudar no jardim de infância da Dona Nenê, que ficavaem sua própria casa, uma casa antiga e enorme. Eu estava um pouco atrasado em relação aosmeus coleguinhas. Nos primeiros dias, chorei, fiz “birra”, não quis ficar de jeito nenhum,achava estranho eu lá no meio de tantas pessoas. Mas isso foi só nos primeiros dias, depois,fazia “birra” pra não ir embora. Cheguei a dormir uma semana lá. Eu sempre assaltava oforninho do fogão de lenha, sempre tinha pão, bolo e pão de queijo. A Dona Nenê sempreme punha de castigo...

Depois, eu fui para a Escola Estadual Melo Viana onde cursei da 1ª à 4ª série. O quemais me apavorava na escola era o barulho do motorzinho do dentista, que atendia osalunos. Até que um dia, não teve como escapar, então fui levado pra sala do dentista pelosprofessores, mas vi que tratar dos dentes não era tão cruel assim.

Na 5ª série, fui estudar na Escola Estadual São Gabriel onde concluí o ensino funda-mental e o médio. Foi no colégio que conheci muitas pessoas, fiz muitos amigos e amigas

Carlos Ney Martins*

História de vida

* Graduando em Química pela UFSCar.

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que me que deram dicas sobre cursos pré-vestibulares e universidades, mas isso ainda eraum mundo muito distante pra mim, não me via em uma universidade, e, se eu estivesse lá,iria estudar o quê? Bom... mesmo assim, continuei firme nos estudos e trabalhando naagricultura até terminar o ensino médio.

Em 1994, já pensava em ir para outra cidade em busca de oportunidade de emprego,uma vez que a agricultura familiar (de subsistência) não ia lá muito bem. Comecei a ir atrásdos amigos e parentes que moravam em outras cidades. Fui para Franca, não consegui nada.Fui para Ribeirão Preto-SP, nada. Tentei Passos-MG, Varginha-MG, Uberlândia-MG e nada!Pensei em desanimar e ficar por lá mesmo. Mas só pensei! Fui para Campinas-SP, morar commeus tios e primos e, após algumas semanas, consegui emprego em uma usina química emPaulínia, que fica a 30 km de Campinas. Passados alguns meses, me mudei para lá. Traba-lhei por alguns anos naquela usina e, depois, fui para outra indústria. Conquistei umaestabilidade financeira e voltei a estudar: fiz concurso de bolsas no curso Objetivo deCampinas e consegui um bom desconto na mensalidade por um ano. Prestei o vestibular daUNICAMP1, mas não passei. Fiz a prova de seleção para o Curso Técnico em Química daETECAP2 e fui aprovado. Lá, estudei até 2004. Concluí o curso e logo após prestei vestibu-lar na UNESP e UFSCar, e fui aprovado em ambas.

Hoje, estudo licenciatura em química, no período noturno, na UFSCar e participo doPrograma Conexões de Saberes, que tem possibilitado a minha permanência na universida-de e a integração com a comunidade de origem popular, trazendo mais experiência de vida.Além disso, a abertura de novos cursos noturnos favorece muitas pessoas que precisamtrabalhar durante o dia, possibilitando a eles o acesso à universidade pública.

1 Universidade Estadual de Campinas-SP. É uma autarquia, autônoma em política educacional, mas subordina-da ao governo estadual no que se refere a subsídios para a sua operação. Assim, os recursos financeiros sãoobtidos principalmente do Governo do Estado de São Paulo e de instituições nacionais e internacionais defomento. O local físico onde se situa a Universidade Estadual de Campinas foi ocupado, em outras épocas porcafezais e canaviais. O seu campus tem o nome do seu fundador, Zeferino Vaz, que foi quem a sonhou e a viunascer, em 5 de outubro de 1966, data de sua instalação oficial. A Unicamp compõe-se de 20 unidades deensino e pesquisa que são divididos em 10 Institutos e 10 Faculdades. Nelas são ministrados cursos de nívelsuperior de graduação e pós-graduação. As instalações da Unicamp se estendem ainda às localidades dePiracicaba, onde fica a Faculdade de Odontologia (FOP), Limeira, onde está o Centro Superior de educaçãoTecnológica (Ceset), responsável por cursos tecnológicos de construção civil, tecnologia sanitária e tecnologiaem informática e Paulínia, onde fica o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas(Cpqba). A Unicamp também possui o Colégio Técnico de Limeira (Cotil) e Colégio Técnico de Campinas(Cotuca). A pós-graduação da Unicamp oferece 63 cursos em diferentes á reas de concentração. [informaçõesdo site http://www.unicamp.br, em 06 jan 2007]2 Escola Técnica Estadual Conselheiro Antônio Prado, inaugurada em 1964, em Campinas-SP. Passou aintegrar o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza em 1981 [informações do sitehttp://www.etecap.somee.com/www/default.asp, em 02 jan 2007]

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Nasci em 1978, na cidade de Belém-PA, na região norte dos país, na qual as condiçõesde vida são influenciadas intensamente por uma desigualdade social, marcada geografica-mente. Sou filha de uma família de seis irmãos, em cuja trajetória de conquista estiveramsempre presentes o incentivo, a dedicação e a persistência de nossos pais.

Apesar desta característica social, éramos muito felizes. Hoje lembro com saudade decada uma das brincadeiras que os seis filhos fazíamos. Nossas brincadeiras eram as maissimples, porem não menos fortes para nos unir. Brincávamos bastante na rua em frente decasa. Nesta rua brincávamos junto com as outras crianças de cemitério (queimado), cair nopoço (pega-pega), adorávamos subir nas árvores para pegar frutas. Principalmente no colé-gio de freiras que, insistência nossa, tinham sempre as melhores frutinhas, como goiaba,ameixa, fruta do conde (graviola) e o açaí.

Neste contexto familiar não é difícil de imaginar como dávamos trabalhos para amamãe. Parecia incrível que sempre um dos seis filhos estava de curativos. Por exemplo, atéos doze anos eu já tinha quebrado o queixo, braço, torcido o pé, além de sempre furar o péem algum prego que cruzava meu caminho.

Além disso, minha caminhada na vida sempre foi marcada pela convivência einterdependência com minha família. E ao longo de minha trajetória várias personagensfamiliares são de absoluta importância. Duas personagens- heróis mostraram-se essenciais -e por que não dizer, vitais.

A primeira foi minha mãe: casada aos 15 anos, vinda de uma família sem históriconenhum de conquistas acadêmicas, isto é, abriu mão de seus sonhos pessoais, para ser adona de casa que sempre apoiou o acompanhamento escolar de cada filho. Apesar denão ter tido tal escolaridade – seja por falta de oportunidade ou por falta de empenhopessoal- soube desde cedo mostrar a importância dos estudos com mão incentivadora.Para provar isto, depois do sexto filho ainda teve garra e determinação para terminar oensino fundamental.

A segunda personagem: meu papai mostrou não menos empenho e força. Este seestabeleceu no mundo sempre vencendo as adversidades impostas pela vida. Nasceu nacidade de Breves, à margem do rio Amazonas, no interior rústico do estado do Pará, viu-se sem pai ao nascer - pois o mesmo não assumiu sua paternidade. E, aos cincos anos, suamãe veio a falecer. Em seguida foi criado até os quatorze anos por uma tia em Belém.

Cleide Helena Santos Cardoso*

Uma caminhada marcada pordesafios e conquistas

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar.

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A história de conquista pessoal de meu pai coincide com os primeiros passos dadospor seus filhos. Nos meus cincos anos, era comum vê-lo, vindo do trabalho árduo de pedrei-ro, deslocar-se a uma escola pública de curso noturno (supletivo) em busca de seus sonhos.

No entanto, por razões econômicas, abriu mãos de um sonho de criança: cursar Enge-nharia Civil em uma universidade pública.

Mais uma vez, é importante ressaltar o contexto social, familiar e econômico - osquais envolveram minha caminhada. Pois até hoje, sempre que o desânimo persiste emmanter-se – aqueles dois heróis acima citados são trazidos à minha memória.

Assim, sob este contexto geral, teve início, em 1983, a minha trajetória de vida acadê-mica. Os primeiros passos do Ensino Fundamental em Belém foram em uma escola deensino privado, cuja mensalidade cobrada aos alunos era baixa. Este ensino era fortementemarcado por um sistema religioso católico, no qual a maioria das professoras eram freiras.

Nesta escola foram longos 10 anos – e nela estudamos todos os seis filhos. Nestaescola, o ensino mostrou-se bom para os padrões gerais em Belém. No entanto, talvezpelo caráter acentuadamente religioso, não tenha criado uma base firme e consistentepara o ingresso no ensino médio. Para exemplificar tal contexto, ainda era comum aexistência da chamada “palmatória”, a fim de ensinar a “cruel” tabuada.

Já em 1993, ingressei no ensino médio em uma escola estadual, marcada pelo abando-no e descaso físico. Não possuía, por exemplo, uma área conservada para a prática deesporte. Outro fator viria influenciar negativamente a aprendizagem - eram as freqüentesgreves realizadas pelos professores da rede pública- em busca de suas reinvidicacões profis-sionais. E, ainda comum, era também a falta de professores em disciplinas essenciais.

Em 1997, passando estes três anos de Ensino Médio, ocorreu o primeiro dos muitosmomentos de decisão relacionados ao ensino. Este primeiro consistia nas persistentes efreqüentes perguntas- o que faria agora? Como iria fazer para entrar em uma universidadepública? Trabalhar ou estudar? A partir daí, logo percebi que minha caminhada estudantilseria mais árdua e naquele momento, mais do que nunca, apareceria o peso do ensinofundamental e médio deficiente.

Para contextualizar, relato o rumo estudantil tomado pelos outros irmãos. Neste tem-po, os outros quatro filhos já tinham terminado o ensino médio e começado a trabalhar. Unsadiando o sonho de cursar uma universidade, ou seja, “engavetando” o sonho de carreirasidealizadas na infância.

Neste período, foram novamente essenciais para mim os conselhos de meus pais –aqui chamados carinhosamente de personagens-heróis desta caminhada. Sob o incentivodestes, ocorreu a possibilidade de trabalhar em Belém como vendedora e fazer um cursinhocomunitário noturno. Em um período de um ano (1998) intensamente corrido, conseguientrar na Universidade Federal do Pará.

Inicialmente, ao ingressar em uma universidade pública, parecia que tudo seria um“mar de rosas”, pois o bicho “vestibular” tinha sido domado. Pois não tardaram a apareceros primeiros entraves. E, novas perguntas surgiam: Como eu iria me manter na universida-de, como iria ser minha permanência com qualidade mínima?

Passados dois anos na Universidade, novos entraves marcantes surgiriam: a falta in-tensa de renda, a minha mãe começou um longo período de enfermidade. E, os chamados“bicos” (trabalhos ocasionais de meu pai) diminuíram intensamente. Sob esta situação, nãofui forte o bastante para manter-me na universidade.

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No ano de 2000, abandonei a universidade e viajei com uns amigos para trabalharcomo vendedora em uma loja de informática – em um shopping no Rio de Janeiro. Comesforço e disciplina, consegui juntar recursos. E, juntamente com os meus outros irmãos,organizamos a vida e saúde de nossos pais.

Neste período, a casa em que moravam meus pais fora reformada. No inicio de 2004,retornei a Belém para começar a planejar meus estudos .E, mais uma vez, a força e o incen-tivo de minha família foram fundamentais para mim.

Neste ano de 2004, cada um dos seis filhos estava tocando sua vida. Uns casados, comsuas famílias, outros solteiros. No entanto, a maioria tinha “largado” os estudos. Neste caso,com duas exceções: o primogênito terminou aos 33 anos a faculdade de História e o tercei-ro, que viera para São Paulo, concluía a graduação em Engenharia Civil - realizando assimo antigo sonho de meu pai.

Em março de 2004, viajei para São Paulo – morei com uns tios com o firme propósitode trabalhar e estudar. Trabalhava o dia todo e estudava em cursinho pago a noite. Assim,consegui entrar na Universidade Federal de São Carlos, fazendo atualmente o curso quesempre quis – Engenharia Agronômica.

Atualmente, esta conquista está sendo possível graças aos auxílios financeiros forne-cidos pela universidade como: alojamento, alimentação e auxílio financeiro. Assim, tenhoconseguido manter-me com dignidade e ainda ajudar meus queridos pais em Belém.

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Tudo teve início com a chegada de meus bisavós paternos e maternos da Itália, dandoassim um novo rumo à história dos Lanzenis, que mais tarde se tornaram Lanceni, por umerro, não corrigido, no registro de meu avô.

Meus pais, por obra do acaso, se tornaram vizinhos, o que os aproximou. E o queparecia um namoro de criança, pois eles tinham 16 e 18 anos, acabou sendo confirmadoperante a Igreja e o Estado, embora sem nenhum motivo que os forçasse. Mesmo sem casa,se baseando somente na cultura antiga e com o empurrão de meus avós que também secasaram cedo e sem planejamento.

Com economia, meu pai construiu, sozinho, sua casa, pois ele não deixou que suamulher trabalhasse. Mesmo com as dificuldades, depois de cinco anos o casal estava espe-rando o primeiro filho o qual recebeu o nome de Cristiano, desejo de meu pai.

Passados sete anos, minha mãe estava grávida novamente, mas, para surpresa de todos,viriam ao mundo duas crianças, o Patrick e eu. Nascemos no dia 30 de setembro de 1985, às17 horas, em São Carlos. Minha mãe conta que quando pequenos demos muito trabalho,pois como éramos dois, quando um estava dormindo o outro acordava chorando, acordandoconseqüentemente o que dormia. Por conta do trabalho que demos, minha mãe chegava a seatrapalhar, uma vez, ela até guardou minha sandália na geladeira. Quando pequenos, tam-bém aconteceu um fato triste que fez com que minha mãe, mesmo com muitos afazeres,prestasse mais atenção em nós: ela descobriu que tinha um câncer no nariz, o que a deixoucom muito medo de não poder acompanhar nosso crescimento. Mas, com a graça de Deus ecom ajuda de ervas medicinais, em pouco tempo o câncer foi combatido.

Tive uma infância feliz. Embora não pudesse ter tudo o que queria, eu entendia, poissempre que pedíamos algo a meus pais e eles não podiam dar, minha mãe, mesmo tendo poucoestudo e pouca informação, sempre nos dizia: “Filhos: não posso comprar o que vocês dese-jam, porque eu não estudei”. E assim, desde que éramos crianças, ela ia nos incentivando aestudar para entrar na faculdade. Mas quando eu estava na primeira série, não gostava deestudar, principalmente de fazer as terríveis lições de casa, me mostrava sempre arredia e quasesempre chorava para efetuar meu dever. Minha mãe conta que ficava triste, pois não queriaque eu fosse uma pessoa sem estudo como ela era e sem uma boa condição financeira. Entãoela disse: “Filha, se você não quer estudar, eu vou ensinar a sua profissão...” e me levou aobanheiro e pediu que eu o lavasse o vaso sanitário, então, em prantos, exclamei que queriaestudar e a partir daí nunca mais chorei para fazer minhas tarefas escolares.

Daiane Lanceni*

A história de minha vida

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar.

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O meu irmão mais velho foi o primeiro a dar esta satisfação para minha mãe. Comsacrifício, ele fez curso pré-vestibular, entrou na Universidade Federal de São Carlos e hojeé formado em Engenharia Química.

Cresci brincando com meus irmãos, por isso joguei até bola, brinquei também commeus primos na chácara de minha avó. Brincávamos de “casa na árvore”, de “fazendinha”,sendo que os animais eram feitos de batata, chuchu e laranja. Lá, brincávamos também depega-pega e esconde-esconde. Com isso, só brincava na rua quando minha mãe estavavendo, pois ela alegava que era perigoso.

Adorava quando era dia de festa! Todos os meus tios, tias e primos junto com minhafamília reuniam-se na chácara da minha avó. As festas eram sempre animadas e com váriospratos, e o principal, vários doces, pois cada tia minha trazia um doce diferente, mas o meupredileto era o brigadeirão. Outra comida que eu adoro é o pinhão; toda vez que é épocaminha mãe compra, pois ela sabe que vai me agradar.

Tive uma infância normal, com a realidade da grande maioria da população, morei emum bairro popular, onde os habitantes eram relativamente unidos. Meu pai teve váriosempregos e na maioria destes teve que passar períodos constantes fora de casa; com isso, anossa educação é de mérito de minha mãe, que com amor e carinho sempre nos ensinounossos direitos e deveres da melhor forma possível.

Como meu irmão mais velho; eu e o Patrick estudamos e fizemos cursinho, que foipago pelo meu pai e a ajuda do Cristiano, que fez questão de retribuir a meus pais o estudoque lhe foi oferecido. Tive que fazer três desgastantes anos de cursinho, pois havia muitacoisa que não era vista na escola pública onde estudei. Algumas vezes, pensei em desistir,mas o apoio e a força de minha mãe, meus irmãos e outras pessoas importantes fizeram comque não desistisse.

Obtive o resultado do meu esforço só no ano de 2006, mas tudo valeu a pena, foi comgrande satisfação que vi o meu nome na lista de aprovados e, naquele dia, percebi o quãominha família esperava por isto. Entrei na Universidade Federal de São Carlos no campus deAraras no curso de Engenharia Agronômica. O meu irmão Patrick prestou ENEM1 no ano de2005, e hoje está no segundo ano de faculdade particular com bolsa integral, pelo ProUni2.

1 Exame Nacional do Ensino Médio, instituído por Portaria Ministerial em 1998. A prova do ENEM visaavaliar as competências e as habilidades desenvolvidas pelos examinandos ao longo do ensino fundamen-tal e médio, consideradas imprescindíveis à vida acadêmica, ao mundo do trabalho e ao exercício dacidadania. É realizada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP. Aparticipação no ENEM é voluntária, circunscrita aos egressos do ensino médio, independentemente dequando o concluíram, e aos concluintes da última série do ensino médio, podendo o interessado participardos exames quantas vezes considerar de sua conveniência. Os interessados em participar dos examespagam uma taxa de inscrição, cujo valor é fixado anualmente pelo INEP, destinada ao custeio dos serviçospertinentes à elaboração e aplicação das provas, bem como ao processamento dos seus resultados [infor-mações do site http://www.inep.gov.br/basica/enem/legislacao/legislacao.htm, em 02 jan 2007].2 Programa Universidade para Todos, do Governo Federal. Institucionalizado por lei em 2005, tem comofinalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda, em cursos degraduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecen-do, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao Programa. Em 2007, sãooferecidas 108.642 bolsas, divididas pelos estados do país, houve 517.748 inscritos. Segundo informa-ções do site oficial, o ProUni, nos próximos quatro anos, deverá oferecer 400 mil novas bolsas de estudos,e faz parte das metas do Plano Nacional de Educação, que prevê a presença, até 2010, de pelo menos 30%da população na faixa etária de 18 a 24 anos na educação superior, hoje restrita a 10,4% [informações dosite http://prouni-inscricao.mec.gov.br/prouni, em 02 jan 2007].

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O ingresso na faculdade trouxe várias mudanças na minha vida sendo que a maior delasfoi a experiência de morar fora de casa, pois tive que aprender a conviver com pessoas diferen-tes na faculdade e principalmente dentro do apartamento onde moro, junto com mais duasamigas, a Flavia e a Vanessa. Mas, apesar das diferenças, tive sorte de encontrar amigas comoestas e outras como a Larissa e a Thais, no meu curso, que me ajudaram na adaptação .

Por fim, só tenho que agradecer pelas oportunidades que tive e as pessoas que meincentivaram, e sei também que não é sempre que alguém de origem popular conseguealcançar um desejo como este, mas uma coisa é certa, quando se tem vontade e alguém paraincentivar, o sucesso é inevitável.

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Minha vida é como a de milhares de pessoas, é lógico que com alguns detalhes bemparticulares, mas é uma vida simples regada de algo que muitos procuram e que eu acreditoque encontrei: felicidade.

Nasci em São Paulo, no dia 8 de abril de 1982. Desde aquela época, as coisas não eramfáceis. Não é fácil ser primogênito, meus pais não possuíam condições de se manter bem, eeu não fui o filho mais planejado do mundo, nem tudo sai do jeito que a gente quer. Mesmoassim, meus pais se esforçaram demais, procurando fazer com que a vida tivesse sua boacontinuidade. Trabalhavam muito e as contas, essas sempre estavam nos sufocando, poismorávamos numa cidade de alto custo de vida, mas era ali que o emprego estava, não haviaoutro jeito. Meus pais sempre foram muito honrados e apesar da dificuldade, nunca apela-ram pra outras formas de se manterem, isso me deixa muito orgulhoso.

Quando completei três anos de vida, eles tomaram uma decisão: mudar-se para acidade de Tatuí, interior de São Paulo. Era a primeira vez que eles iam morar fora da capitalpaulista. Fomos morar no sítio dos padrinhos de minha mãe, mas essa ligação não significa-va nada, pois éramos tratados como empregados e não foram poucas as vezes que passamospor humilhações. Mas superamos. Mesmo eu sendo pequeno naquela época, essa é uma faseque não sai de minha cabeça – traumas são assim mesmo. Moramos lá uns dois anos, foiquando meu pai melhorou de serviço e assim fomos morar na zona urbana, não era nem deperto o lugar ideal, mas, enfim éramos uma família e tínhamos um teto só nosso.

Quando eu tinha quatro anos, meus pais colocaram a máquina pra funcionar de novo,era minha irmã que nascia! A vida, naquele momento, pelo menos financeiramente, melho-rava, meu pai entrava em uma empresa que seria uma parte muito importante em sua vida.

Os anos iam passando e eu crescendo, começava a fase de ir à escola, uma das melhoresfases de minha vida. Comecei a estudar, era um ótimo aluno: gostava demais de estudar eera considerado o melhor aluno de minha classe, um orgulho para meus pais, que desde essaépoca já “apostavam suas fichas” em mim. Mais uma vez a máquina do amor estava emfuncionamento, nasce meu irmão, a família se completava, estava fechado o quinteto.

Passam-se os anos e assim vai embora a infância e a vida já estava bem melhor, meupai havia se firmado em sua empresa e estava começando a ser bem realizado.

Em 1994, ano em que o Brasil se tornava tetra-campeão do mundo, meu pai é transfe-rido de cidade e a família resolve o acompanhar. Fomos morar na Praia Grande, litoral de

Edgar Heliodoro Vendradelli Dias*

A vida dá voltas !

* Graduando em Matemática pela UFSCar.

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São Paulo; começava uma nova fase em minha vida, pois eram vários anos na mesma cidadee muitos amigos feitos que ficavam pra trás. Realmente essa fase não foi nada fácil, poisminha adaptação foi complicada demais, a cidade era muito diferente do que eu já haviaconhecido e as pessoas também. Não vou negar que essa fase é uma das que eu mais guardorancor, pois sofri demais, com todo o preconceito que rolava por eu ser do interior, mas sabiaque tinha que agüentar: meu pai dependia desse emprego e não seria eu quem iria prejudicá-lo. Com tanta força de vontade de minha parte, as coisas começaram a melhorar, as amizadescomeçaram a acontecer e tudo foi melhorando... fiz vários amigos, meus irmãos tambémcomeçaram a se animar com o lugar, tudo melhorava, até meu rendimento escolar, que nãoestava tão bom, voltou a ficar ótimo, voltei a ser o melhor aluno de minha turma.

Essa fase se torna a primeira vez na qual mostro meu poder de lutar nos momentosmais complicados, supero os problemas e consigo ganhar meu espaço, essa sim uma faseboa pra se guardar.

Em 1997, meu pai novamente é transferido, voltamos a Tatuí. Ali conhecia muitagente, me sentia em casa, era a grande volta. Mas não foi bem assim. Três anos longe dessacidade fizeram com que muitos de meus amigos se desligassem de mim, e a volta torna-secomplicada, foi estranho, os contatos não eram mais os mesmos e todos em casa percebemosisso, mas quem mais se complicou com isso fui eu, pois sentia muita dificuldade em meadaptar. Entrei num início de depressão, agravada por uma síndrome, a síndrome do Pânico,sentia medo de morrer a todo instante e isso me deixou num estado muito ruim, meus paistiveram que me ajudar muito e foi graças a essa força que superei essa síndrome, mais umavez superava um grave problema, começava a me sentir um vencedor, foi muito bom, poisvia que as dificuldades existiam, mas me sentia forte pra superar todas elas.

Nessa fase, comecei a relaxar um pouco nos estudos, estava no alto da adolescência enão conseguia conter minhas vontades, queria sair e curtir a vida e não consegui conciliarisso tudo com os estudos, foi uma das fases que mais aprontei na escola, era muito arteiro,vivia sendo suspenso e tomando advertências. Lógico que minha mãe não descobria nada,se bem que lendo esse capítulo, com certeza ela vai tomar conhecimento...

Chega 1999 e com ele o fim meu Ensino Médio, fase que vou guardar pra sempre namemória, pois foi a mais linda de minha vida, curti todos os momentos e não posso mequeixar de nada, pelo menos do lado pessoal. Mas no familiar, as coisas já não iam bem. Metornei o tipo de adolescente com idéia própria e muitas vezes as mesmas não batiam com asdo meu pai, me tornando uma espécie de rebelde em casa, me sentia um pouco deslocado,pois não curtia fazer o que minha família gostava de fazer, incomodando a ambos os lados.Essa divergência ficou bem clara, quando, no final de 1999, veio a noticia, como em outrasvezes, fui obrigado a me mudar pra Bebedouro-SP, uma cidade de que não gostava desde aprimeira vez que a vi e onde não queria morar de forma alguma, mas minha família nãopensou assim e não foi aceita minha vontade, tive que mudar e mais uma vez abandonartodos os meus amigos e ainda por cima, não havia sido aprovado na UNESP de Bauru eadiava um sonho de entrar numa universidade pública.

Começa o ano 2000, e eu, mais uma vez, tinha que começar do zero, entrava na faseadulta e aí veio a pressão de cursar uma faculdade. Como a Unesp havia dado errado, tiveque entrar numa universidade particular, não quis tentar cursinho. Entrei no curso de mate-mática, senti que estava no curso certo, mas não na universidade certa, não via bons prog-nósticos para aquele curso e vi que estaria apenas jogando dinheiro fora, não estava valen-

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do a pena. Também começava a trabalhar, o que me complicava ainda mais, pois meushorários não ajudavam. Decisão tomada, tranquei o curso e também causei mais um atritocom minha família, meu pai detestou saber disso e brigou demais comigo, não entendia queestava apenas procurando algo melhor, queria entrar em um curso pré-vestibular e realizaro sonho da universidade pública. Mas ele achava que eu deveria me formar em qualquerlugar, não entendia a diferença.

No final deste mesmo ano, ocorre algo que vai mudar e muito nossa vida, meu pai édemitido da empresa, após muitos anos de dedicação, isso o deixa muito mal, mas por outrolado, volta a nos unir. Tentei fazer jus à minha idade e segurei a barra, ajudei meu pai, dei forçaa ele, isso o fez erguer a cabeça e correr atrás de uma vida diferente. Fica decidido então queminha família irá abrir um comércio; sendo assim, escolhemos o ramo, abrimos uma mercea-ria, muito modesta, mas que prometia se tornar grande, tínhamos muita vontade.

Iniciamos a nossa empreitada, no início tudo é muito complicado, faltava um bomcapital de giro, mas tentávamos levar assim mesmo, eu continuava a trabalhar no mesmolocal, fazia jornada dupla, era puxado, mas estava com uma idade na qual a gente tem muitavontade, parece que nada cansa, e fui levando, mas as dificuldades nos levaram novamentea brigar, a relação com meu pai não estava boa, e ele não entendia que apenas estava ali praajudar a manter a casa, mas o orgulho dele não deixava que ele visse dessa forma, issodificultou muito, não consegui voltar a estudar e adiava ainda mais meu sonho. Pelo menosnessa fase, mudei um pouco na vida pessoal, comecei a namorar, era a primeira namoradaséria mesmo, e foi bem legal, pelo menos até começarem as crises, durou seis meses, masminha falta de tempo, em virtude do trabalho e o ciúmes da parte dela, fizeram tudo afundar.

O tempo foi passando e as coisas melhoravam devagar, nosso comércio estava cres-cendo e já era estudada uma ampliação, e assim foi, começamos a pensar em transformaraquele espaço em uma panificadora, mas para isso era necessário maquinário e alguémespecializado. Quanto às máquinas, fiz um empréstimo e conseguimos comprar, mas nin-guém em casa sabia trabalhar com panificação, foi assim que me tornei padeiro e confeiteiroe através de um curso oferecido pela prefeitura de minha cidade, comecei a exercer essecargo, vários foram os quilos de farinha que perdi na tentativa de acertar, mas não desisti, eassim uma hora a gente alcança, consegui êxito, começava uma nova fase e super inusitada.

Por uma obra do destino, meus pais adoeceram nesta mesma época, deixando o traba-lho por um tempo e eu ficava numa situação complicada, pois tinha que levar o comérciosozinho. E assim foi, mesmo tendo que pagar uma parcela muito grande do maquinário,consegui controlar as contas, mas fiquei várias noites trabalhando e dormindo no chão, poisnão conseguia ir pra casa, não dava tempo. Isso me fez valorizar demais a liberdade, pois apadaria tornava-se uma prisão de porta aberta, ali ficava o dia inteiro, não tinha mais vidasocial, mas era o sustento de minha família que estava em jogo. Aos poucos, meus paisforam se recuperando e eu voltava a descansar um pouco; mesmo assim, havia muito traba-lho, cuidava de toda produção, não tinha nenhum dia de folga, mas me sentia realizado,pois era reconhecido na minha cidade por meu trabalho.

No começo de 2003, recebi uma proposta de ir morar nos EUA, ia morar com umaamiga e tentar a vida trabalhando na construção civil por lá, era a oportunidade que poderiamudar a vida de minha família, mas isso nunca foi meu sonho, gostava demais de meu paíse queria fazer minha vida aqui, mesmo assim topei, comecei a correr atrás de toda a docu-mentação, e acertei a viagem, tinha apenas mais um mês de Brasil.

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Como uma obra do destino, conheci Adriana, uma garota da minha cidade, por quemme apaixonei, foi muito novo esse sentimento, algo que nunca havia sentido, isso memotivou a continuar a vida aqui no Brasil e assim desisti de tudo, algo que causaria umimenso transtorno em casa, pois meus pais viam essa chance como sendo a chance de minhavida. Mas eu não via dessa forma, preferia ser reconhecido aqui no meu país do que ser maisum ninguém na multidão e sofrer todo aquele preconceito.

Os meses seguintes foram estranhos, pois com minha família eu estava em pé deguerra, mas com minha namorada, eu estava no paraíso, nos dávamos muito bem e o namorofluía muito bem, ela começou a trabalhar comigo na padaria, pois a antiga funcionáriahavia saído e como meus irmãos não ajudavam, resolvi colocar lá uma pessoa de minhaconfiança, mesmo contra a vontade de meu pai.

A minha situação não era boa, meu pai fazia de tudo pra atrapalhar meu namoro, elenão gostava de Adriana, sem mesmo conhece-la. Ficou insuportável a situação, até quetomamos uma decisão, íamos nos casar, pra que pudéssemos ter nossa vida em paz, e assimfoi, ficamos noivos e começamos a guardar dinheiro e a fazer nossa vida a dois, fui morarsozinho e no final de 2003 já não suportando mais a relação com meu pai na padaria, resolvicomprar a parte dele no comércio e fui tocar minha vida sozinho. Não foi fácil, pois pagavamensalmente a meu pai, ele por sua vez, estava trabalhando em outro lugar, mesmo assimnão abria mão de suas parcelas e assim foi, com muita batalha, vencemos, conseguimospagar as contas e nos firmamos de vez.

Estava tudo muito bom, mas sempre surge imprevistos, nessa caminhada, perdi umgrande amigo, vítima de um aneurisma cerebral, uma pessoa que admirava demais, foimuito duro, perdia uma pessoa e sentia uma dor que nunca havia sentido.

Logo depois, meu pai resolveu voltar à padaria, nós tínhamos um acordo que eledescumpria... era um acordo verbal, ele não entendeu assim e voltou, retirando o comandode minhas mãos e me fazendo voltar ao zero novamente. Para piorar, brigas com a Adriana,fizeram com que terminássemos nosso noivado e assim me manter em Bebedouro ficavasem sentido pra mim. Chegava a hora de mudar de verdade e desta vez para meu benefício,fui morar na Praia Grande-SP com um grande amigo de infância, era Helon, considerado umirmão, ele e seu pai me ajudaram, me deram uma força com moradia e um emprego noescritório de advocacia deles, começava tudo de novo.

Desta vez, tudo era diferente, tinha mudado. Sem minha família, eu estava em busca deum velho sonho, queria muito passar na universidade pública, e assim foi. Passei a serautodidata, trabalhava durante o dia e estudava em casa à noite e assim foram passando osmeses e eu tendo dificuldades, pois estava havia quatro anos sem estudar, o que não dimi-nuía meu ânimo, tinha um sonho e fui batalhar para realizar.

Estava tudo indo bem, até descobrir que minha mãe estava com problemas em Bebe-douro, não tive escolha, era a saúde dela em jogo, abandonei tudo e voltei, e sabia que tinhaque voltar a trabalhar, mas isso não ia ocorrer com meu pai, não havia clima, por isso, pegueiumas aulas em um colégio, dava aulas de xadrez e isso me ajudava a pagar um curso pré-vestibular do tipo semi-extensivo.

Não foi fácil, pois meus pais estavam em processo de separação e como meu relaciona-mento com meu pai não estava bom, ele fazia de tudo pra descontar isso na pessoa maisimportante de minha vida: minha mãe. Isso acabou me fazendo sofrer muito e não vou negarque pensei novamente em abandonar o sonho de universidade pública, mas minha mãe foi

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firme mais uma vez, me ajudou muito, me deu toda a força e foi testemunha de todo o meusofrimento e batalha: eram horas de estudo e trabalho, e ela sempre me motivava a estudarmais. Graças a ela foi possível alcançar tudo o que alcancei, não tenho palavras pra descre-ver tamanha força, até mesmo pelas lágrimas já tomarem conta de mim, e só tenho a agrade-cer a essa mulher batalhadora e incentivadora. Obrigado mesmo mãe, te amo.

Após seis meses de estudo, passei no vestibular da UNESP de Bauru e na UFSCar, eraum sonho que se realizava, e devia tudo isso à minha mãe, que me ensinou, e continua a meensinar, a batalhar pelo que quero e tenho certeza que é por isso que em apenas dois anos nauniversidade eu já tenha conquistado tantas coisas boas.

Acho que agora vocês podem entender porque sou um cara tão feliz, como citei noinício.

O que gostaria de deixar claro nesse capítulo é que não considero minha históriatriste, mas sim, deixar bem claro que qualquer que seja o sonho, batalhe que você podeconseguir e nunca desista na primeira derrota, você nunca irá se arrepender de batalhar, mascom certeza vai se arrepender de ter desistido.

Quero dedicar esse capítulo a todos os meus amigos, mas são todos os muito amigosmesmo. Especialmente à professora Marina, pelos conselhos e cuidados médicos, à minhamãe a quem tanto amo e que tanto me ajudou e em especial pra Dani (Lindinha) com quemestou construindo uma história muito legal, que eu espero que dure muito!!!!!!!

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O dia 5 de novembro de 1985, foi marcado por muita festa, ao menos para José GonçalvesRibeiro e Genilda Batista Ribeiro; eu nascia em São Carlos, cidade do interior de São Paulo.Pouco tempo depois, eu já estaria enfrentando minha primeira aventura: é que em menos deum ano, meu pai decidiu que o melhor para a família seria voltar para Pernambuco, de ondetinham vindo havia cerca de cinco anos.

O governo Sarney se deparou com um Brasil pós-ditadura, que ascendia economica-mente, mas sofria com inflações. Foi implantada uma nova moeda, que fez com que o dinheironos bancos rendesse com juros consideráveis. Meu pai, então, decidiu ir embora paraPernambuco, pois lá o custo de vida era menor. Por motivos climáticos, eu não me adaptei ànova região e fomos obrigados a voltar para São Carlos, de onde não saí desde então.

Ao voltarmos, a economia do Brasil estava em crise, e nós não tínhamos muito dinhei-ro para recomeçar, e dentro de nossa família fizemos cortes de gastos. Minha mãe até falaque para que a construção da casa do meu avô, lugar que prevalece na minha memória comolugar da minha infância, foi preciso comer muita batata, pois meu pai comprava um grandesaco de batata e nós passávamos o mês comendo esse mesmo alimento como mistura.

Quanto ao meu avô, seu Manoel Gonçalves, me contava suas travessuras de menino,o orgulho que sentia de seu falecido pai, que fez papel de pai e mãe porque esta os haviaabandonado. Tudo bem que, com o passar do tempo, essas histórias foram mudando, e hoje,aos seus 92 anos, ele nos dá muita alegria com seus comentários e às vezes nos deixapreocupados e um pouco tristes com a fragilidade da sua memória. Sempre foi um homemmuito trabalhador; lembro que chegava todos os dias no caminhão dos bóias-frias com suamarmitinha e ia ver como minha avó que, desde que eu me recordo, não tinha muita saúde,havia passado o dia. Meu avô teve que se aposentar para ajudar minha mãe a cuidar daminha avó, Dona Djanira, pessoa que eu respeitava, mas com cujas atitudes eu não concor-dava, por exemplo como fazia minha mãe sofrer, desfazendo das comidas, do serviço dacasa; mas minha mãe disse que quando minha avó “tinha saúde” ela era uma pessoa muitoboa e que possivelmente tenha ficado daquele jeito por se ver sobre uma cadeira de rodasapós seis derrames. Ela se via sem possibilidade de cuidar da casa e trabalhar como sempregostou. Em novembro de 1995, onze anos depois de seu primeiro derrame, três destes nacadeira de rodas e na cama, faleceu. Lembro-me perfeitamente que na semana de meuaniversário ela já estava na UTI1 .

Juliana Aparecida Ribeiro*

Minha história

* Graduanda em Pedagogia pela UFSCar.1 UTI - Unidade de Tratamento Intensivo

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Minha infância foi um período marcado por muitas brincadeiras criativas, brigas comoutras crianças, principalmente a Cida e o Jesus, pais que, embora não me dessem ovos dechocolate na páscoa, ou fizessem promessas de presentes de Natal por um bom comporta-mento durante o ano, se esforçaram para viver em um lugar diferente para o bem dos seusfilhos e me ensinaram a dar muito valor a tudo que eles conseguiam conquistar por mim emeus irmãos. Eles nos diziam para estudar e superá-los. Meus irmãos – Gilson, José eGildete – apesar de me acharem a “chatinha” por ser a caçula, sempre cuidaram e aindacuidam muito de mim.

Ingressei na vida escolar aos 5 anos e não parei de estudar desde então, sempre emescolas públicas que, apesar do grande discurso sobre a crise do ensino brasileiro,possuíam excelentes professores. No Ensino Fundamental, estudei na Escola Munici-pal de Ensino Básico Carmine Botta, inaugurada um ano antes do meu ingresso, e quetalvez por este e outros motivos políticos teve grande investimento e me permitiu oitoanos de educação de qualidade. Lá, fiz amizades que permanecem até hoje; entre elas,não há como não destacar a Aline Patrícia, que era a CDF da sala, sempre me ajudava nahora de estudar, passava cola pra sala inteira só pra não ver ninguém de recuperação emesmo assim, quando isso ocorria, dava um jeito de ajudar qualquer um da sala arecuperar a nota. Hoje, é minha “irmãzinha” e me mostra sempre o lado bom de tudo,batalha e estuda muito e, apesar de morarmos no mesmo bairro, o tempo tem sido nossoinimigo e há algum tempo já não nos falamos. Mas ela é a prova de que os amigosverdadeiros são como o sol, mesmo não aparecendo todos os dias, nós nunca esquece-mos que eles existem.

Fiz o primeiro ano do Ensino Médio na Escola Estadual Profa. Maria Ramos, que nãoé muito bem vista na cidade, porque as pessoas, sem conhecer a realidade dessa escola,responsabilizam seus alunos por todos os problemas que aquele setor da cidade possaapresentar. No entanto, posso dizer que vi naquela escola jovens que estão cansados de ser“pisados” e decidiram começar a lutar por seus direitos e vontades. Mesmo tendo aprendidomuito naquela escola, no segundo ano do Ensino Médio, decidi ingressar no Magistério noCEFAM2 Deputado Miguel Petrilli, onde estudei e conclui o curso em três anos. No últimoano de magistério, em 2004, minha vida era bem agitada, estudava pela manhã, fazia está-gio à tarde e freqüentava o curso pré-vestibular à noite.

Dentro desse tempo, conheci uma pessoa muito especial, um grande amigo que memostrou que o lado bom de estar vivo é dividir a vida com alguém. Mesmo que hoje ele nãoesteja tão presente em minha vida e nossos contatos estejam pouco “antenados”, minhasatitudes têm muito do que minha vivência com ele me ensinou e muito do que ele signifi-cou pra mim. Ele é o Flávio Roberto Redondo Junior.

Acabei percebendo que, se havia “caído” no Magistério por conta de uma bolsa querecebíamos, no valor de um salário mínimo, não foi por acaso que continuei. Vi muitaspessoas desistirem, e poderia ter feito o mesmo, mas os estágios e projetos que realizamosem bairros populares fizeram com que eu visse o verdadeiro valor de ser educador, ou depoder trabalhar em prol de crianças, e me davam a satisfação que a bolsa sozinha não medaria, foi isso que me levou a prestar vestibular para área da educação.

1 Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério.

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Além da experiência que adquiri no Magistério, ganhei também três amigos que setornaram parte da minha vida de um modo muito intenso, gostoso e saudável: Erlon (Ócrinho),Osvaldo (ou Juninho) e Kathelyn (mais conhecida por Ketão). Esses três me fizeram rir emtrês anos o que eu não ri durante dezessete anos. Nossa amizade é verdadeira, semprefalamos o que pensamos um do outro, criticamos e elogiamos sempre pensando em ajudar,temos nossa intimidade, mas sabemos nos respeitar. Marcamos um encontro com a turmaque se formou em 2004 para o dia 1º de maio de 2010, acho que só nós três lembraremos.Infelizmente não é possível falar em um espaço tão curto sobre todas as histórias quepassamos juntos.

Em 2004, prestei vestibular, mas, por fazer cursinho popular e por ter tido poucasmatérias exatas e biológicas no Magistério, que visava uma outra formação, acreditava quenão passaria naquele ano, mas que valeria a pena prestar os vestibulares para os quais euconseguisse isenção, o que ocorreu na UFSCar, por ser aluna do cursinho desta universida-de, onde prestei Letras; na Unicamp, onde também prestei Letras e na Unesp, onde presteiPedagogia.

O terceiro dia do vestibular da Unesp foi o mesmo da minha formatura do Magistério.Peguei carona no ônibus de um cursinho de São Carlos e, naquele dia, quase não consegui-mos sair de Araraquara: chovia bastante e, por ser o dia da escrita da redação, a maioria daspessoas ficaram até o último momento na sala de prova. Havia engarrafamento por causa dachuva e até o ônibus passar nas escolas para pegar os alunos, saímos de Araraquara-SP commais de 40 minutos de atraso.

Ao chegar em São Carlos, já eram 19:30, e eu precisava estar no teatro onde se realizoua colação também às 19:30, pois às 20 h estava marcado para começar a cerimônia. Chegueiem casa às 20 h, tomei banho e me arrumei chorando, arranquei literalmente meus cabelosde tanto nervoso, minha mãe, ao ver a cena, só conseguia ficar triste com a minha atitude,xinguei alguns meninos que estavam na rua e caçoaram ao me verem entrando no carro debeca. Sem maquiagem e chorando muito, cheguei na formatura atrasada, mas deu tudo certoe percebi que “quando não há remédio, remediado está” realmente, então, não adianta sepreocupar, no meu caso, algo que eu fazia muito, me torturar tanto com algo que de certaforma não é minha culpa.

Quando saíram os resultados da UFSCar e da UNICAMP, nas quais não passei, jáestava prestando provas para obtenção de desconto em cursinhos que eu julgava mais fortespara o próximo ano. No mesmo dia em que ia fechar matrícula em um cursinho, vi meu nomena lista de espera da UNESP – Araraquara. Como não tinha computador, vi a divulgação naBiblioteca Municipal, e me lembro de ter saído dando risada como uma louca, descendo aAvenida São Carlos para dar a notícia pra minha irmã, que então trabalhava numa loja nocentro da cidade.

Na UNESP, estudei durante o ano de 2005 e, por motivos de gastos com transporte, noinício de 2006 eu me transferi para a UFSCar, que sempre foi meu “sonho de consumo”, atéeu conhecer a UNESP, onde deixei muitos amigos. Cheguei a me arrepender num primeiromomento da minha transferência.

Aqui, eu posso dizer que só me encontrei de verdade quando passei a fazer parte doPrograma Conexões de Saberes, e em oportunidades que tive, já disse isso a alguns dosmembros desse grupo. Tive nesse programa e sobretudo na atividade Caminhadas, a opor-tunidade de rever minha história, e a tentativa de tentar aceitar a visão do outro sobre essa

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minha história. E percebi que sobretudo meus familiares dão a mim características e força devontade que eu mesma não percebia possuir. Ao mesmo tempo, eles sabem que essa minhafraqueza de só ver o meu lado fraco me torna algumas vezes uma pessoa pouco otimista queacaba agindo de modo pouco racional. Percebi que coisas que muitas vezes parecem bobas,como brincadeiras e tipos de comida, guardam muito do que nós somos, da forma como nossocializamos e valoramos as coisas.

Tenho na minha família, sobretudo em meus pais, a coragem de que preciso paraenfrentar problemas, mesmo que sejam complicados, para continuar e tentar mostrar queeles estão errados quando dizem que eu devo estudar para superá-los, pois, se o estudo meder algo tão bom quanto almejam, talvez, no máximo, eu fique parecida com eles.

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Na chuvosa madrugada de 28 de fevereiro de 1985 que anunciava as águas de marçoque fechariam o verão daquele ano, nasce, no Sítio de São Pedro, na cidade de São João doIvaí/PR, um bebê um tanto quanto calmo e sereno, o que não significa também que não seriabriguento quando adquirisse alguns anos de idade. E que, ano após ano, brigaria não sócom o irmão; pois aquela recém formada família já tivera sido abençoada com um outrobebê havia exatamente um ano e meio antes; mas brigaria com várias circunstâncias davida. E esse bebê que teve uma infância atribulada; pois o pai, como vários outros pais, eraadepto a uma “branquinha”; cresceu, e hoje, com 21 anos, pode relembrar e considerar quetem uma verdadeira história de vida. Esta pessoa que aqui escreve sou eu, que atendo pelonome de Lidiane Maria Maciel. Sim, Maria, como tantas outras, nome o qual para minhaquerida mãe denota perseverança e fé.

Vim ao mundo. E o que isso implica? Penso que talvez meramente mais uma no meio damultidão, mas marcada pela insatisfação do que observava ao redor, a qual fez com que nãome conformasse com o lugar que socialmente talvez me fosse determinado. E que Lugar éeste? Para as classes menos abastadas de onde venho, é reservado o lugar das escassas oportu-nidades, principalmente aquelas relacionadas com o mercado de trabalho. Observo que, hoje,a maioria das pessoas se identifica pela função que exerce neste tortuoso mercado.

O exercício de uma profissão acaba formando boa parte da identidade do indivíduo e,para as classes menos abastadas, restam as profissões de menor status social que, “volta emeia”, são desrespeitas pelos que se encontram em posições ditas melhores caracterizando,assim, a permanência e não ruptura da situação histórica da desigualdade em nossa socieda-de. Geralmente, as profissões são marcadas pelo estigma da educação formal, por isso, vê-sea importância das instituições de ensino na sociedade em que vivemos.

Quase sempre passar por estas instituições exige um mínimo de poder aquisitivo,passar pelas melhores exige um poder ainda maior e, ao considerar que vivemos em umasociedade desigual, somente alguns conseguem ter êxito no que se refere ao ensino formal.Talvez eu, por ser um erro no percurso, possa considerar que tive algum êxito. Sucesso oqual fora cercado por contradições. Minha primeira escola foi o recentemente privatizadoCemitério Jardim da Paz de uma região periférica de São Carlos-SP. Em uma daquelas salasde velório adaptadas, aprendi a gostar do português, da ciência, da educação artística.

Mas, aprendi também a odiar a matemática, afinal, naquele lugar existia uma profes-sora que não se contentava meramente com a violência simbólica que exercia sobre nós e àsvezes partia para a violência física. Recordo-me de ter levado vários tapas na cabeça pornão saber somar os feijões que minha mãe carinhosamente colocava no meu estojo; aquela“amável” professora só sabia nos subtrair ou, como nós, crianças, dizíamos, “diminuir”.

Lidiane Maria Maciel*Memorial

* Graduanda em Ciências Sociais pela UFSCar.

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Quando dizem que a escola é uma instituição falida, insisto em não concordar, pois, mesmocom todas as desilusões que tive no ensino formal, ainda acredito na sua importância.

Minha família, logo que nasci, mudou-se para a “Terra das oportunidades”, ou para aquerida “Paulicéia desvairada” de Mário de Andrade, ou simplesmente “São Paulo - terra dagaroa” que, dadas as mudanças climáticas contemporâneas, talvez não fosse mais chamadaassim. A vida no campo era muito difícil. No tocante ao ensino, minha mãe sempre diz que nãoqueria jamais que os filhos dela andassem 8 km para chegar à escola como ela um dia fez; paraminha família, então, São Paulo, no ano de 1986, era realmente a terra das oportunidades.

O Sítio São Pedro, no Paraná, ficou reservado somente para as férias. E que férias eramaquelas! O doce de banana de minha querida avó paterna! As magnólias da varanda da casa,o orvalho da manhã, e, sobretudo, o barulho do rio, combinado com a máquina de costurarda minha avó materna, formavam uma verdadeira sinfonia matinal. Realmente, em algunsaspectos, aquilo era o paraíso no meu olhar de criança.

Logo no primeiro semestre em São Paulo, meu pai conseguiu um emprego em umatransnacional como auxiliar de produção. Sim! Isso era possível em 1986, coisa que passa-dos vinte anos é inconcebível, já que meu pai tinha apenas a 4ª série do Ensino Fundamen-tal e fora boa parte de sua vida trabalhador rural e não recebeu nenhuma “ajudinha”. Então,logo já estávamos alocados em uma casa alugada e a vida ia passando dia após dia, mêsapós mês, e ano após ano e assim as crianças foram crescendo e a família não quis crescermais, seríamos uma verdadeira família nuclear.1.

Mas, como dito no parágrafo anterior, a casa era alugada e não era muito engraçada;ao contrário da cantiga de infância, esta daí tinha teto. E, sendo a casa alugada, esse teto nãoera nosso, o que impulsionou meu pai a fazer um acordo na firma na qual trabalhava e virpara São Carlos. Afinal, a notícia que circulava por lá era que aqui estavam doando terrenosou, por conta do loteamento ser novo, o terreno era bem barato e caberia no bolso atédaquele pai de família que não queria passar a vida inteira pagando aluguel. E foi assim queviemos parar aqui, na “Cidade do Clima”. Compramos o terreno e construímos a casa.Foram anos difíceis, mas, mesmo com todos os problemas, conseguimos!

Minha mãe, dona de uma grande visão de mundo, conseguido se realizar o sonho dacasa própria, se empenhou incansavelmente na educação dos filhos. Fez de todo custo paraque pegássemos gosto pelas “letras”. Foi ela, por exemplo, que ensinou a mim e a meuirmão a escrever. Nunca tivemos muitos livros em casa, pois é muito caro tê-los nesse país.Mas sempre dávamos um “jeitinho”, talvez seja para isso que existem bibliotecas...

No entanto, jovens na faixa dos 16-20 anos procuram emprego. E foi assim comigotambém, mas não adiantou o curso de informática que meus pais pagaram com tanto sacrifíciopara mim, afinal, o mercado exige a tal da experiência. Mas mais uma vez eu briguei, e dessavez foi contra o comodismo e a desilusão, que fazem muitas pessoas meramente entregaremcurrículos e assistirem à novela da tarde, ou simplesmente desistirem de tudo. Percebi que meinscrever no processo seletivo do cursinho UFSCar seria algo interessante. Fiz a prova e oquestionário socioeconômico e fui aprovada. Continuei mandando currículos e estudando.

1 Família nuclear: quando no domicílio reside somente um casal ligado por afinidades o qual detém umcasal de filhos solteiros.

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Fiz dois anos de cursinho, e no meio do segundo ano, consegui o tão sonhado emprego, mascomecei a perceber que não dava para conciliar direito as duas coisas, aí tive que fazer umadifícil escolha, continuar o cursinho ou trabalhar? Eis a questão.

Escolhi o cursinho e as responsabilidades aumentaram, afinal, eu tinha deixadomeu tão sonhado primeiro emprego para tentar entrar no curso de Ciências Sociais naUFSCar, e assim foi. No início do ano de 2005, tive bons resultados: passei no vestibular!Mas não era na universidade na qual eu fazia planos de estudar. No entanto, ainda haviauma luz no fim do túnel e essa luz era a lista de espera do vestibular da UFSCar. Mas nãoquis esperar a tal lista de espera e como minha mãe me ensinou, não troquei o certo peloduvidoso e acabei indo para a Universidade Estadual de Londrina. Foi um mês difícilnaquela desconhecida cidade .

Um belo dia, 20 de março, descobri via internet que a lista rodou, rodou, e parou nomeu nome. Aquele foi um dos dias mais felizes da minha vida, mas como nem tudo éperfeito, o destino quis que eu sofresse um pouquinho. Pois ao lado do meu nome estava oaviso: Matrícula dia 20/03 até ás 17:00. Detalhe, eu estava a 500 km de distância daUFSCar e uma nuvem pairou sobre o meu dia ensolarado. Contudo, graças à tecnologia decomunicações e a amigos e familiares, reverti a situação e consegui fazer a tão sonhadamatrícula. E voltei para casa. É engraçado mas, na minha vida, quando sou posta em situa-ções difíceis, ao mesmo tempo em que me desespero por não acreditar que aquilo estejaacontecendo, paro e me pergunto: – O que ainda posso fazer para reverter tal situação?Penso que seríamos mais felizes se conseguíssemos, às vezes, acreditar que o impossível épossível, quando se trata desse mundo maluco “de meu Deus”.

Hoje, sinto-me muito realizada por estar em um curso que me faz feliz, mas aindapreocupada quanto ao meu futuro, afinal, uma das coisas que aprendi ao longo desses anosfoi que vivemos incansavelmente atrás de algo; acho que nunca desistimos de correr atrásdo pote de ouro que dizem que existe no final do arco-íris. Passar no vestibular não meisentou de problemas, como às vezes achava; criaram-se novos que estão aí esperando queeu, com minha audácia, resolva.

Acabo com um fragmento muito significativo para mim. Ele às vezes toma-me e faz-me pensar o significado da vida e o que move o indivíduo a realizar ações nesse mundohostil. Acredito que tudo começa com uma idéia fixa como a que provocou a morte dafigura singular de Brás Cubas em Machado de Assis.

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro.Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as maisarrojadas cabriolas de volatim que é possível crer. Eu deixei-meestar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu osbraços e pernas, até tomar a forma de um X:decifra-me ou devoro-te.2

E é assim, ou pelo menos até agora, esta sendo.

2 ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas (1992, p. 37). Editora: Edições de Ouro. Rio deJaneiro.

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Nasci na cidade de São Salvador-BA, no dia 18 de setembro de 1982. Meus pais chamam-se Rute de Jesus Cruz e Reginaldo Tavares dos Santos. Tenho 6 irmãos, dois são do casamentodo meu pai com minha mãe e os outros quatro são dos casamentos posteriores do meu pai.

Vivi em Salvador durante 20 anos de minha vida.Fui criada em dois bairros da periferia de Salvador, Uruguai (que fica na cidade Baixa)

e São Caetano (que fica na cidade Alta).Aos 6 anos de minha existência, meus pais se separaram. E eu fui morar com meu pai

e minha avó, que foi quem me criou, no bairro Uruguai. Meu pai se casou de novo e minhamãe terminou o segundo grau e começou a trabalhar em hospitais como auxiliar de limpeza.

Nesse período, dos sete aos doze anos eu fiquei doente, e por conta da doença e por tertomado muitos remédios sendo ainda muito criança, tive mancha melânica em todo o corpo.Os médicos dizem que não tem cura porque afetou a minha derme. Foi um período muito tristee difícil, porque, além da doença, fui separada da minha mãe, e também do meu pai, já que elecasou de novo e foi viver a vida dele com outra família. Mas apesar de todas as dificuldadesemocionais e físicas, eu pude estudar, porque fazia parte do sonho da minha mãe e do meu paique seus filhos se formassem e tivessem uma vida melhor do que a que eles tiveram.

Aos doze anos, eu voltei a morar com a minha mãe no bairro São Caetano, na casa dosmeus avós maternos. Lá morávamos os meus tios, meus primos, meus irmãos e minha mãe.Chegamos à superlotação de 17 pessoas numa única casa.

Nesse período, eu fiz o ginásio e o segundo grau. O ginásio, eu fiz num colégioparticular chamado Império do Saber, minha mãe trabalhava num hospital que garantiabolsa de estudos integral para todos os filhos. Finalizado o meu ginásio, eu ingressei numcolégio público chamado Anísio Teixeira, que fica no Barbalho, distante de casa. Foi aprimeira vez que tive que pegar condução para ir à escola. Bom, eu odiei o colégio, entreie saí sem aprender nada.

Simultâneo ao meu primeiro ano de segundo grau, eu fiz um curso técnico de Panifi-cação Industrial no SENAI, e um curso preparatório para prestar os exames do CEFET-Ba,escola pública federal, na qual ingressei em 1999. Por conta disso, tive que repetir o primei-ro ano do segundo grau. No mesmo ano, eu comecei a trabalhar numa delicatèssen comoaprendiz de padeiro, via SENAI. Em 2000, minha mãe me fez largar o trabalho, porqueestava atrapalhando os meus estudos no CEFET-BA, que era muito puxado. Foi um dilema,meu pai e minha vó paterna queriam que eu continuasse no trabalho para que eu pudesse

CaminhadasLilian Cruz*

* Graduanda em Química pela UFSCar.

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ajudar nas despesas de casa (já que ele auxiliava financeiramente a mim e às famílias doscasamentos posteriores) e minha mãe queria que estudasse para ingressar numa universida-de depois. O veredicto final de minha mãe foi que eu sairia do trabalho e que se meu pai eminha vó paterna necessitavam de ajuda em casa que me tomassem de volta, porque comela eu iria estudar e entrar numa universidade.

Com muitas dificuldades financeiras, eu terminei o segundo grau sem repetir nenhumano no CEFET-Ba. Mas não passei no vestibular no mesmo ano de conclusão do meuEnsino Médio. No ano de 2002, eu propus à minha mãe que permitisse que eu ficasse maisum ano sem trabalhar para que eu pudesse me preparar para o vestibular da UNICAMP, quegarantiria que eu tivesse um excelente curso superior, arcaria com minhas despesas atravésde bolsa trabalho e me isentaria dos transtornos que a UFBa me causaria por possuir cursosintegrais e campi espalhados por toda a cidade, não me dando tempo para trabalhar. Fiqueimais um ano estudando. Prestei provas para um curso pré vestibular comunitário, passei,mas só estudei nele dois meses, porque o cursinho havia mudado de localização e por contadisso eu teria que pagar 4 conduções: duas pra ir e duas para voltar, e meus pais não tinhamcomo arcar com estas despesas. Em frente disso, eu praticamente me internei na BibliotecaCentral de Salvador, estudava todos os dias, 16h por dia, para garantir que eu não reprovariano vestibular da UNICAMP.

No final de 2002, prestei vestibular para UFBa, UNEB e UNICAMP, sendo aprovadaem todas. Em 2003, me mudei para Campinas, “com a cara, a coragem” e um desejo enormede alcançar todos os meus objetivos.

Ingressei no Curso de Matemática Aplicada, mas para o meu descontentamento, eunão me identifiquei com o curso, com o Instituto de Matemática, Estatística e ComputaçãoCientífica - IMECC, com os professores, passei a ter ojeriza à Matemática, uma grande pena,porque sempre foi o orgulho do meu pai o meu desempenho em Matemática.

Diante disso, eu teria um grande desafio pela frente: me adaptar a viver longe de casa,a não voltar nas férias para casa, a sentir dolorosas saudades, a descobrir em qual curso eugostaria de me formar e a me habituar a viver com estranhos.

Para minha sorte, a UNICAMP tinha uma estrutura que permitia que os estudantespudessem fazer disciplinas em outros cursos. Foi o que eu fiz, peguei disciplina em todas asáreas com as quais eu me identificava, até que eu me descobri na Química, pois ela reunia oprazer e a minha estabilidade financeira, já que possui um mercado de trabalho amplo, aocontrário de outras áreas de meu interesse, como Ciências Sociais e Artes Cênicas.

Nesse meio tempo, eu trabalhei em dois projetos sociais na UNICAMP, um chama-va-se Projeto Beija-Flor, tendo por objetivo discussões sócio-ambientais e como públi-co-alvo adolescentes de comunidades populares. Neste projeto, eu aprendi muito sobre asociedade, o ambiente, adolescentes e a interação sociedade-ambiente. O outro projetochamava-se Projeto Educacional Cio da Terra, tendo por objetivo a formação educacio-nal e cidadã de assentados rurais e como público-alvo assentados do Assentamento emSumaré (cidade da região de Campinas). Neste projeto, eu dava aulas de Química e apren-di o quanto é difícil e valoroso o trabalho em grupo, ainda mais quando o projeto propõea auto-gestão e uma nova forma de educação, valorizando o saber rural e o saber formal,colocando-os em pé de igualdade.

Concomitante a todas as atividades de que fazia parte, eu comecei a estudar paraprestar vestibular, tentei remanejamento interno, mas não fui feliz porque eu tinha reprova-

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ções. Prestei UNICAMP no ano de 2005 e, em 2006, UNESP, USP, UNICAMP e UFSCar,sendo aprovada apenas em 2006 na UFSCar, no curso de Química-Bacharelado.

Felizmente, está tudo dando certo, embora eu esteja muito atarefada e sem muitotempo para descansar. Estou curtindo muito o meu novo curso, os professores, a casa ondeestou morando, minhas atividades, enfim, estou muito feliz.

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No dia 18 de maio de 1987, na cidade paulista Vargem Grande do Sul, eu nasci. Dolado dessa cidade fica localizada a cidade de São João da Boa Vista, cidade natal de meuspais. As duas cidades vivem basicamente da agricultura, sendo São João da Boa Vista amais desenvolvida entre as duas. Vargem Grande do Sul é uma grande produtora de batataassim como sua região.

Meus pais, Sebastiana e Rubens, são primos por parte paterna e se mudaram paraVargem Grande do Sul quando se casaram. Tiveram dois filhos: eu e meu irmão, que é maisvelho que eu e se chama Rubens, como o meu pai.

Em Vargem Grande do Sul, meu pai trabalhou em vários lugares e chegou a ser sóciode uma pequena sorveteria que precisou ser fechada. Com essa instabilidade e sem opção deserviços na cidade, meus pais resolveram se mudar para São Carlos (também no estado deSão Paulo), onde a irmã da minha mãe morava. Quando meus pais moravam em VargemGrande do Sul, e mesmo depois que mudaram para aqui, eles passaram por necessidades.

Minha mãe várias vezes já me contou sobre a época em que ela amamentava meuirmão e comia apenas arroz com molho de tomate. E de quando ainda os meus pais nãotinham filhos e ela repartia um ovo com a Ula, uma cachorra que os dois tinham. Depois dealguns anos que meu irmão nasceu, minha mãe teve que dar a Ula. Um dos motivos é que elanão gostava do meu irmão; minha mãe e meu pai ficaram muito tristes por terem que seafastar dela.

Eles mudaram de cidade para meu pai tentar arrumar um emprego. Essa minha tia quemorava em São Carlos nos alugou uma pequena casa e meu pai conseguiu um emprego naMarmoraria da minha tia e do marido dela. Trabalhou lá até conseguir um emprego em umafábrica de compressores onde trabalha até hoje. Meu pai também sempre fez “bicos” conser-tando geladeiras em uma pequena oficina que meu tio também nos alugou, pois este é umtrabalho que realizava desde pequeno.

Depois de alguns anos que nos mudamos para São Carlos, minha mãe começou a fazerbolos e salgados por encomenda. Ela aprendeu a fazê-los quando, aos nove anos de idade,foi trabalhar com uma boleira em São João da Boa Vista. Depois, trabalhou em várias casasde família. Ela sempre menciona o nome das pessoas para quem ela trabalhou e como essasgostavam dela. E não é para menos, tenho uma mãe muito gentil, inteligente, bonita e comtantas outras qualidades que eu teria que fazer um livro só para ela.

A história de uma vida

Mariana Gonçalves Luccas*

* Graduanda em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela UFSCar.

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Essa casa que minha tia nos alugou ficava no mesmo terreno que a dela. Então eu, meuirmão e meus primos Andréa, Cristina e Luciano fomos criados juntos. Também morava aliminha avó materna, muito especial para mim. Hoje minha Avó está muito doente, ela temMal de Parkinson e para tudo ela necessita ajuda. E isso a incomoda bastante, pois traba-lhou muito desde criança na colheita com seus pais. É uma pessoa que não merecia sofrer oque ela tem sofrido e espero que Deus a abençoe, de onde Ele estiver.

Na minha infância, brinquei muito com meu irmão e com meu primo. Brincávamos deGato-mia, jogávamos futebol, video-game e ficávamos horas no balanço brincando ouconversando. Era um bom tempo aquele, quando não tínhamos que nos preocupar comnada. Lembro-me bem dos meus aniversários em que eu pedia para minha mãe fazer umatorta doce chamada torta paulista. Minha tia Georgina sempre falava que a torta paulistaque ela fazia era melhor que a da minha mãe. Porém eu sempre gostei da torta da minha mãe,porque ela faz com coco, e a tia Georgina, com amendoim. Meu primo faz aniversário umdia antes do meu. Então sempre era feito um bolo e acho que é por isso que eu pedia a tortapaulista e não bolo.

Morar perto da família da minha tia foi fundamental para decidir que um dia gostariade entrar em uma universidade. Isso porque a família do meu tio era uma família que sempremotivou e valorizou a educação. Ao longo do tempo, fui vendo minhas primas e logodepois meu primo entrando em uma universidade pública, trazendo mais vontade e deter-minação para eu também ingressar no ensino superior. A única diferença é que eu não tinharecursos para estudar em uma escola particular e estar mais bem preparada para o vestibularcomo eles tiveram. Acabei estudando sempre em escolas públicas e nunca fui preparadapara o vestibular nelas, já que, como sabemos, o ensino fundamental e médio públicos noBrasil é muito defasado.

Minha trajetória escolar começa aos quatro anos de idade, quando entrei em um“parquinho” de uma escola pública de São Carlos, que ficava perto da minha casa, a EMEI1

Julien Fauvel. Minha mãe levava meu irmão e eu todos os dias a pé para a escola. Aos seteanos, entrei na escola do SESI2, onde consegui estudar graças ao emprego do meu pai nafábrica onde trabalha. Cursei aí o ensino fundamental inteiro com esforço sem repetir ne-nhuma série. Considero que tive um primeiro grau tranqüilo já que não precisei trabalhar eestudar ao mesmo tempo. Meus pais conseguiram isso com muito empenho, meu pai fazen-do várias horas-extras e minha mãe fazendo bolos e salgados ajudando na renda familiar.No final de 2001, quando eu estava na oitava série, meu pai conseguiu financiar, com seuFGTS e com economias do meu irmão e da minha mãe, uma casa própria. Felizmente,achamos uma casa barata cujos donos aceitavam financiamento. Nesse mesmo ano, nosmudamos e, ao longo do tempo, estamos fazendo pequenas reformas na casa.

Fiz todos os anos do ensino médio em uma instituição pública, consegui vaga em umaescola pública tradicional localizada no centro de São Carlos, a escola EE Dr. Álvaro Guião.Durante os três anos do colegial, não tive grandes dificuldades, porém não tive professores dealgumas disciplinas em alguns períodos do ano letivo, por causa da desorganização do siste-ma educacional, como acontece em vários lugares do Brasil, não sendo diferente no interiordo estado de São Paulo, embora este seja considerado um estado tão desenvolvido. No meu

1 EMEI - Escola Municipal de Educação Infantil2 SESI - Serviço Social da Indústria

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segundo ano, tive uma alegria grande com meu irmão quando ele passou em um concurso doDepartamento de Água e Esgoto de São Carlos, onde trabalhou por um tempo. Logo depois,ele foi aprovado em outro concurso da prefeitura municipal de São Carlos, onde trabalha atéhoje. Minha família e eu ficamos super contentes e ele também.

No meu colegial, de alguns professores recebíamos apoio para estudarmos para ovestibular. Outros não mencionavam e pareciam até ter medo de falar sobre o assunto. Achoisso muito triste. Acredito que várias pessoas são desmotivadas por esses professores. Quan-do estava no terceiro ano, alguns professores ofereceram monitorias fora do período dasaulas para realizarmos exercícios de vestibular e tirarmos dúvidas. Eu participava de todasas atividades desse caráter, para aproveitar o máximo possível para prestar o vestibular nofim do ano. Nesse último ano, também fiz o curso pré-vestibular comunitário no Revolução,que me ajudou bastante. Nesse cursinho, tive ótimos professores, todos estudantes da USPe da UFSCar.

No final do ano, pensei várias vezes para escolher o meu curso de graduação. Pesquiseisobre todos os oferecidos nas duas universidades públicas de São Carlos e escolhiBiblioteconomia e Ciência da Informação na UFSCar. Apesar de conseguir a isenção para ovestibular, infelizmente, nesse ano não consegui passar. No ano seguinte, fiz novamenteum cursinho pré-vestibular, consegui uma bolsa em um curso pago de São Carlos e meu paie meu irmão pagaram o resto da mensalidade. Nesse ano, não consegui isenção do vestibu-lar da UFSCar, meus pais não tinham condições de pagar a taxa de inscrição e quase nãoprestei vestibular. Consegui fazer minha inscrição graças ao meu irmão que a pagou comuma economia que ele tinha. E então resolvi novamente prestar Biblioteconomia e Ciênciada Informação, conseguindo passar no vestibular.

Meu irmão prestou vestibular três vezes, porém não conseguiu realizar o sonho deentrar em uma universidade. Acho que depois que entrei, ele se motivou mais ainda. Agoraele não tem só o modelo dos meus primos mas o meu também, vendo assim que mesmoestudando em escolas públicas como ele, consegui o acesso à universidade pública, mos-trando que tudo é possível, só temos que nos esforçar. Tenho certeza de que ele irá passar etorço para que isso ocorra.

Estar estudando na UFSCar me abriu novos olhares para o nosso cotidiano e, partici-pando do Programa Conexões de Saberes, esse olhar tem modificado a cada dia que passa.Através do Conexões, vejo que outros tiveram a mesma realidade e enfrentaram as mesmasdificuldades que eu. O Projeto de Extensão3 do qual participamos também me faz ver quemuitos outros têm o mesmo sonho e que não devem desistir do sonho de ingressar em umauniversidade pública jamais, pois isso é possível.

1 Na Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos, a atividade vinculada à comunidade doPrograma Conexões de Saberes se dá através da participação dos bolsistas no Curso Pré-Vestibular daUFSCar/Núcleo de Extensão UFSCar-Escola, em bairro periférico e de baixo poder econômico da cidade,região conhecida como Cidade Aracy.

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Meu nome é Michel Luiz de Moura, sou filho de Isolda Alves da Silva e de Marcos deMoura, tenho dois irmãos: Rodnei Moura, de 17 anos, e Marcos F. de Moura, de 15 anos.Nasci em São Carlos, interior de São Paulo, no dia 3 de março de 1985, filho de pais jovens;quando nasci, minha mãe tinha apenas 16 anos e meu pai, 20 anos, com isso, muitos proble-mas foram surgindo, como falta de casa própria e falta de estrutura familiar.

Vivi parte da minha primeira infância com meus pais na cidade e parte na zona rural deSão Carlos, onde meus pais cuidavam de granjas (criação de aves), cursei a pré-escola nosubdistrito de Água Vermelha.

No final de 1990, minha família se mudou para cidade, onde passamos a morar na casada minha querida avó paterna dona Joana (Vó Branca). No ano seguinte, comecei a estudarna primeira série do ensino fundamental; neste mesmo período, a convivência entre meuspais passou a ficar cada vez mais difícil; aliás, desde muito pequeno recordo que nunca foipacífica. Neste mesmo ano, minha mãe se separou do meu pai e fui morar na casa da minhaavó materna, dona Maria (Vó Preta), juntamente com minha mãe e meus irmãos.

Nos anos seguintes, estudei de manhã e ajudava minha avó a olhar meus irmãos menoresque já iniciavam a pré-escola, nos finais de semana ficávamos com o meu pai. Com treze anos,arrumei meu primeiro emprego como empacotador num supermercado próximo de casa; mi-nha primeira experiência profissional foi frustrante, ainda me lembro de que estudava até as12h e às 13h iniciava o expediente, que ultrapassava as 21h de segunda a segunda.

Com um ordenado muito baixo, minha mãe e eu resolvemos que não compensava oesforço e a falta de tempo para os estudos e depois de quatro meses abandonei o emprego.Logo após, iniciei o que aqui em São Carlos é chamado de “patrulheiro”, um curso decapacitação profissional que visa formar adolescentes para o primeiro emprego, mas nuncatrabalhei como patrulheiro, pois, concluindo o ensino fundamental, prestei o vestibulinhodo SENAI1 para mecânica de usinagem. Já no primeiro ano do ensino médio, cursava otécnico de manhã e ensino médio no noturno, neste mesmo ano minha avó materna faleceudevido a um câncer. Em 2001, mudamos para nossa casa, uma casa financiada pela CaixaEconômica Federal. Neste mesmo ano, como me destaquei nas atividades no SENAI, fuiconvidado a estagiar numa importante empresa da cidade. Com isso preenchi o dia todo,comecei a sair de manhã e voltar por volta das 23:20; era uma rotina quase desumana, quedurou dois anos.

Michel Luiz de Moura*

Minha trajetória de vida

* Graduando em Ciência da Computação pela UFSCar.1 Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.

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Ao concluir o SENAI, em 2002, fui efetivado na empresa onde estagiei e já participavaefetivamente na vida econômica da família. Sempre pensei em prestar vestibular e fazer umcurso superior, talvez por morar em uma cidade que possui dois campi universitários, e nofinal do ensino médio prestei meu primeiro vestibular na Unesp e na UFSCar. Foi umatragédia; já convencido de que com meu preparo eu não chegaria a lugar nenhum, comeceia procurar um cursinho.

Como não podia pagar muito, ou melhor, quase nada, procurei alternativas. Foi quan-do encontrei o cursinho da UFSCar e também o cursinho Comunitário Casa Aberta, ondeacabei ficando devido à facilidade de acesso.

Em 2003, continuei com a mesma rotina, trabalhando o dia todo e fazendo cursinho;as dificuldades eram imensas e o cansaço também. Mas, infelizmente no fim do ano, veio otemido vestibular, e mais uma vez, nada, mas desta vez “bateu na trave”. Resolvi cursarmais um ano, mas já estava muito desanimado, faltava às aulas, dormia nelas muitas vezese como conseqüência não passei novamente. Na verdade, fui aprovado no curso de Estatís-tica da Unesp em Presidente Prudente, mas, ao ir matricular-me, percebi que, pela distânciada cidade, eu teria muitos gastos e, afinal, esse não era o curso que eu realmente queria fazer.Ainda em 2004 foi inaugurado o ProUni2; sem muito entusiasmo me inscrevi, fui bem nasprovas do ENEM3, fui selecionado na minha primeira opção, Ciência da Computação, queera um curso reconhecido pelo MEC.

Em 2005, iniciei minha graduação numa instituição privada, mas no fundo não mesentia bem em ter me esforçado tanto, de ter feito cursinho, e estar agora numa instituiçãoprivada enquanto tinha sonhado com uma pública. Neste ano, me arrependi de não terabandonado o emprego e ter me dedicado exclusivamente ao cursinho como alguns amigosfizeram e obtiveram sucesso, mas no fundo eu sabia que minha família também precisavaque eu trabalhasse.

Mas, enfim durante este ano, dei tudo de mim, tirava as melhores notas, estudavamuito, fui criticado muitas vezes no trabalho pelos atrasos ocasionais, virava as noitesestudando. E, no final do ano, resolvi tentar mais uma vez. Li ocasionalmente no site daUFSCar que o processo de transferência estava aberto, pesquisei e vi que como meu cursoera similar e reconhecido pelo MEC, eu poderia concorrer. Mesmo que em desvantagem,por ser oriundo de uma instituição privada, resolvi arriscar, mas tudo era apenas uma “brin-cadeira”, uma cartada que eu dei, pensando: “Não tenho nada a perder, só vou avaliar comoestou em relação aos outros candidatos”.

Para minha surpresa, fui selecionado. Sinceramente, não sabia se isto era bom ou ruim,neste momento fui tomado pelo medo e pela insegurança, primeiro, como eu iria abandonarmeu emprego e me dedicar exclusivamente aos estudos? E em segundo lugar, eu seria capazde dar continuidade ao curso? Comecei a me questionar e me inferiorizar por ter ingressadopor transferência.

Nesta decisão, minha mãe foi fundamental, me apoiou e me incentivou a ir à busca domeu sonho, dizendo que não faria sentido eu desperdiçar esta oportunidade e que mesmoenfrentando algumas dificuldades a mais, nossa família estaria unida e se ajudando finan-

2 ProUni - Programa Universidade para todos3 ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio

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ceiramente. Com isso, fiz minha matrícula e agora minha responsabilidade tinha aumenta-do; minha mãe confiou em mim e eu não poderia decepcioná-la.

Em 2006, iniciei minha graduação em Ciência da Computação na UFSCar, e tomei umchoque; tenho muitas dificuldades nas matérias, dificuldades de base em português, ma-temática etc. Muitas vezes pensei em desistir, pensei que esta realidade não era para mim,pensei muitas vezes se não deveria ter ficado onde eu estava mesmo, trabalhando e estudando.

Paralelamente, entrei no Programa Conexões de Saberes. Quando fiz inscrição, imagi-nei que fosse apenas um projeto qualquer para o qual eu deveria dispor algumas horas dededicação, mas não; além da segurança financeira, o Programa e suas atividades, especial-mente o Caminhadas, vêm me ensinando a enxergar minha trajetória de vida de outraforma, me ensinou a valorizar cada passo que eu dei até agora mesmo que muitas vezestivesse achado que este passo tinha sido em vão ou que não merecia nenhum mérito porisso. Juntamente com as oficinas, com a professora Marina, tenho resgatado minha história,minhas lutas, minhas vitórias e também reconhecido minhas derrotas e, com isso, estouagregando valores e conhecimentos que vão além da graduação e que não servirão apenaspara escrever um livro, mas sim para resgatar uma história, para alimentar o ego, aumentar aautoconfiança, e com isso estarão me ajudando não apenas a resgatar minha história massim, ajudando a construí-la.

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Olá! Muito prazer, meu nome é Milton Dias de Freitas Junior, mais conhecido comoDjaú – apelido que remete à minha cidade de origem: Jaú, localizada no interior de SãoPaulo. Sou aluno do curso de Engenharia de Computação na Universidade Federal de SãoCarlos, tenho vinte anos e algumas histórias para contar. O meu cotidiano atual se resumeà Universidade, pois nela: moro, estudo e trabalho. O Programa Conexões de Saberes,além de ser um instrumento de permanência qualificada na Universidade, é um meio queproporciona uma janela de troca de conhecimentos existenciais e culturais e ainda umaexpansão no círculo de amizades. A Universidade oferece outros serviços mínimos paraminha manutenção acadêmica: alojamento estudantil e alimentação, mas, para completara renda, trabalho de garçom nos finais de semana.

A hegemonia da classe média e média alta dentro da Universidade pública é fato.Contudo, a existência de pessoas como eu favorece uma paridade na educação brasileira.Apesar dessa heterogeneidade desproporcional em relação à situação sócio-econômicados estudantes, particularmente tenho uma relação social muito boa com todos dentrodesse ambiente.

Agora, analisando o período que antecedeu o meu ingresso no ensino superior, nãopoderia deixar de relatar sobre uma pessoa que foi essencial na motivação para minhacontinuidade nos estudos: Alberto Pereira – alguém muito especial que me incentivouincessantemente a leitura e a curiosidade pela vida. Tive também o apoio de um cursopré-vestibular comunitário, organizado pelo projeto OPTE1, da ONG Práxis, em Jaú, quefoi necessário para reparar anos de ensino médio e fundamental precários na escola públi-ca. Na primeira vez que prestei vestibular tinha acabado de sair do colegial e ao obter osresultados fiquei arrasado. Só então percebi o quão fraca havia sido a minha formação atéentão. Com o apoio familiar, persisti e comecei a ultrapassar barreiras estudando porconta própria e no cursinho.

Milton Dias de Freitas Jr*

* Graduando em Engenharia da Computação pela UFSCar.1 Oportunidade para Todos Estudarem. O projeto OPTE, implantado em parceria com o Instituto CamargoCorreia, consiste em oferecer aos alunos oriundos da rede pública de ensino oportunidade para freqüentaremcursinho pré-vestibular gratuito a fim de que possam aprimorar seus estudos visando o ingresso em cursouniversitário. Oferece anualmente 60 vagas aos candidatos que lograremêxito em prova de seleção promovidapela própria ONG, e que possuam renda per capita de até dois salários mínimos. Os organizadores afirmamesperar contribuir para a diminuição das desigualdades sociais que dificultam o ingresso dos alunos menosfavorecidos nas universidades. [informações do site http://www.praxis.org.br/opte.html, em 06 jan 2007]

Memorial

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No ano seguinte (2004), consegui a tão sonhada aprovação. Havia prestado vestibularpara UNICAMP e FATEC2 e optei pela UNICAMP onde fiquei por um ano. Porém, estavadesgostoso com o curso que tinha escolhido e decidi prestar o processo de transferênciainterinstitucional e novamente o vestibular. Para uma feliz surpresa, fui aprovado no vesti-bular da USP e UNICAMP e também no processo de transferência interinstitucional daUFSCar, onde escolhi vir estudar.

Durante a época do meu ensino médio, tinha uma relação muito fraca como osestudos, não era incentivado pelo sistema educacional público a aprender, mas apenasassistir às aulas e conseguir um diploma de concluinte para fazer volume nas estatísticasde políticas-educacionais. Nesse tempo, meu horário era muito denso, pois tinha iniciadominha vida assalariada aos 13 anos, trabalhava em um mercado e era estagiário numaescola de informática – onde conheci algumas pessoas muito queridas até hoje: o Sr.Francisco Rosa e José Rosa.

Era muito presente o contato com ideais Cristãos e isso ajudou a fortalecer meusprincípios e crenças. A minha relação familiar sempre foi muito sólida e nessa fase comeceia entender e reconhecer a vencedora que minha mãe (Dona Sonia) havia se tornado, conse-guindo criar e educar minha irmã (Paula) e eu com louvor, apesar de todas as dificuldades.

Até os dias de hoje, sou considerado o “rapaz engraçadinho”, mas foi na minha infân-cia que vivi o auge da minha carreira circense: era o gordinho bobo da turma e o terror dasprofessoras. Lembro-me também de acordar cedinho aos domingos para ir à Igreja. Desdeque eu era muito pequeno, minha mãe me conduzia por esse caminho, no qual aprendiensinamentos muito preciosos e valiosos de amor e adquiri uma filosofia de vida. Decorren-te disso, o meu grupo de amigos concentrava-se entre a Igreja e a escola dos quais tenhoinúmeras boas lembranças... tinha até um grupo de amigos da igreja chamado M.D.R. (Ma-nos da Rocha)... os amigos em geral são tantos que, por receio de me esquecer de alguém,não descreverei nenhum deles.

Dentre todas essas lembranças, em absoluto, a que mais marcou a minha vida até hoje foiassistir a morte de meu pai. Eu tinha oito anos de idade e, como era de se esperar, ele era umapessoa que tinha um papel extremamente relevante na minha vida, despertando em mim umamor, respeito e admiração inexplicáveis: o meu exemplo de vida. Esse fato foi um marco quetrouxe uma responsabilidade familiar muito grande e precoce na minha vida, que explicaporque eu me preocupo e amo tanto minha família: Dona Sonia, Paula, meus primos JoséCarlos e Luciana, meus tios Carlos e Terzinha (in memoriam) e meu avô José (in memoriam).

E, por fim esse sou eu, nascido numa linda manhã, 13 de novembro de 1985, com 3quilos e 800 gramas e muitas fraldas por trocar...

2 Faculdade de Tecnologia de São Paulo, fundada em 1973, tem cursos nas áreas de Construção Civil,Mecânica, Humanas, Informática e Tecnologia de Precisão [informações do site http://www.fatecsp.br, em02 jan 2007].

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Nasci em São Luís no Maranhão em uma manhã ensolarada; minha mãe era estudantede 16 anos e cursava a sexta série do ensino fundamental; já meu pai era um encanador daindústria petroquímica, tinha 23 anos e estudou até a quarta série.

Nós fomos morar nos fundos da casa da minha tia Heloísa, pois minha mãe não sabiacomo cuidar de um bebê e minha tia ajudava, e também porque não tínhamos muito dinhei-ro e lá não precisávamos pagar nada. Moramos lá até o meu aniversário de dois anos; depoisdisso, meu pai quis voltar para sua cidade, Fronteiras, no Piauí.

Então, fomos para o Piauí morar na casa da minha avó paterna e, nesse tempo, minhamãe já estava grávida de novo. Apesar da minha mãe ter tido certos problemas com a famíliado meu pai, quando meu irmão Mychel nasceu (fala-se Michel, e não “Maiquel”! Ele nãogosta...), fomos morar em uma casa que a minha avó tinha.

Por causa de seu trabalho, meu pai viajava para vários estados, e minha mãe cuidavade nós e da casa.

Ainda nessa casa, minha mãe perdeu seu terceiro filho; ele nasceu com hidrocefalia emorreu. Minha mãe ficou doente também e quase morreu, mas ela sobreviveu e por algumascomplicações não pôde mais ter filhos. Talvez, pelo costume daquela região, se não fosseeste incidente, nossa família seria bem maior.

Depois de alguns anos, compramos nossa casa própria e a vida ia correndo de um jeitolento e sem novidades naquela cidade pequena; meu pai aparecia de vez em quando e àsvezes não conseguíamos reconhecê-lo. Entretanto, este fato era comum naquela cidade e,além disso, as relações familiares não eram tão íntimas, de modo que não sofríamos tantocom as despedidas.

Tinha meu tempo absorvido pelos estudos e pelo auxílio que dava à minha mãe nocuidado da casa e do meu irmão. Gostava muito de brincar e assistir TV, sempre brincava na

Pão-de-açúcarMylena Mylândia Araújo Gomes*

Rosas dos ventos me levemAos jardins à beira-marRosas do tempo me cubramSe eu nunca mais regressar. Paulo Bonfim1

* Graduanda em Enfermagem pela UFSCar.1 BOMFIM, Paulo. Poema sem título. In: Poemas Escolhidos, p. 42, Círculo do livro S.A, São Paulo-SP, 1973.

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rua de pega-pega, esconde-esconde, pular corda, “amarelinha” e muitas outras também. Gos-tava muito de subir em árvores e brincar de casinha, mas gostava mais era de brincar sozinha.

Minha mãe me colocou na creche de minha tia quando eu tinha dois anos e meio, e láfui me desenvolvendo mais rapidamente que as outras crianças, o que talvez as tenhalevado a acreditar que eu poderia ter sucesso nos estudos, o que não era tão comum por lánaquela época. No ensino fundamental, a escola era para mim um lugar chato ao qual eu só iapor obrigação. Eu não tinha muitos amigos lá, mas minha mãe exigia que eu tivesse um bomdesempenho, apesar de não poder me ajudar, já que ela mesma não havia estudado muito.

Lembro-me das férias no sítio da minha vó, levantar antes do sol nascer e dormir às 7hda noite, nadar no rio, levar as vacas com meu pai na roça, ver meu vô tirar o leite (era essemeu vô que me chamava carinhosamente de Pão-de-açúcar, porque eu comia muito doce...),bagunça com todos os primos, pois era nas férias escolares que todos ficávamos juntos.

Um dia, ao subir no muro da vizinha, quebrei o braço e precisei fazer uma cirurgia quefoi mal sucedida. Tive que fazer tratamento durante anos e por isso escolhi minha profissão,queria trabalhar na área da saúde, vestir branco, ser útil para os outros e isso influenciou emtoda minha vida.

Nas minhas férias escolares da 8ª série, meu pai estava trabalhando em Paulínia, SãoPaulo, e em Cosmópolis, que ficava ao lado. Acabamos vindo passar as férias com ele. Poralguns motivos, acabamos ficando e morando com ele em Cosmópolis. Eu e meu irmãocomeçamos a estudar em uma escola pública da cidade e meu pai se esforçava para nossustentar, já que o custo de vida aqui era mais caro do que no Piauí.

Meu pai sempre teve o sonho de ter os filhos formados para eles não terem que passarpelo que ele passou. Quando eu estava terminando o colegial, aos 16 anos, meu pai fez umenorme esforço e começou a pagar um curso pré-vestibular noturno para mim; fazia a escolade dia e o cursinho à noite. No final do ano, infelizmente não consegui passar no vestibular.Meu pai não desistiu e novamente pagou mais um ano de cursinho para mim, já que emCosmópolis não existem cursinhos populares, somente os pagos.

As matérias eram difíceis e o meu conhecimento era reduzido, tive muitas dificulda-des em acompanhar os professores, mas, mesmo assim, continuei lutando. Infelizmente,naquele ano também não deu certo.

Fiquei muito frustrada e cansada, meu pai também dava sinais de cansaço e minhamãe, vendo os apertos que passávamos para pagar o cursinho, ficava irritada e acabava mepondo mais para baixo ainda. Diante de todos esses problemas, sempre ia chorar na casa daminha amiga, Ellen, que sabe mais do que eu o quanto sofri nessa época com incompreensãodos familiares.

No ano seguinte, resolvi dar um tempo e comecei a trabalhar em uma loja de flores.Trabalhei meio ano e guardei o dinheiro para pagar um cursinho de meio ano, mas meu pai,sempre insistente, apesar de tudo e principalmente da falta de confiança entre todos, pagouesse curso para mim, e finalmente, nesse ano, consegui passar em enfermagem na Universi-dade Federal de São Carlos.

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Falar de tudo que vivi nesses 22 anos não é uma tarefa fácil. Existem momentos quenão gosto de lembrar e outros que tenho orgulho em lembrar.

Relato minha história na esperança de que algum dia as experiências que passeipossam de certa forma ajudar outros jovens a não desistirem de seus sonhos!

Meu nome é Nelson Ponce Júnior, nasci no dia 6 de abril de 1984 na cidade deAmericana, interior de São Paulo. Assim que nasci, eu e meus pais fomos morar na casa queeles haviam acabado de construir no Jardim Santa Rosa, um bairro recém inaugurado nacidade de Santa Bárbara D’Oeste. Meu pai trabalhava como mestre de produção em umaempresa têxtil, ele tinha um bom salário, afinal, construiu nossa atual casa em pouco tempoe se livrou do aluguel. Era uma casa pequena, mas grande o bastante para abrigar nósquatro: eu, minha mãe Odete, meu pai Nelson e minha irmã Michele.

Quando eu já havia completado um ano de idade, minha família recebeu a notícia deque receberia em breve um novo morador na casa, ou melhor, uma moradora, minha irmã,Daniela, que nasceria dentro de alguns meses. Com o passar dos anos, o quarto em que eu eminhas irmãs dormíamos já estava bem apertado e a casa teve que ser ampliada.

As fotografias que tenho do meu início de infância me ajudam a lembrar de comoforam bons aqueles tempos. Eram freqüentes as festinhas de aniversário, os presentes deNatal, os passeios com a família...

Quando eu tinha cinco anos de idade, minha mãe me matriculou em uma escolainfantil. Lembro o quanto eu e meus primos, Fábio e Thiago, que também estudavam lá,brincávamos. As Festas Juninas que a escola fazia eram sempre muito divertidas.

As viagens que fazia, naquela época, até o sítio dos meus padrinhos, que ficava nacidade de Marcondésia, também eram muito divertidas. Gostava de andar de trator com meupai e também de pescar. Tenho muitas lembranças do balanço que ficava no pé de manga,das minhas idas até o curral para ver meu padrinho tirar leite das vacas. Hoje, eles nãopossuem mais o sítio, venderam e se mudaram para a cidade de Olímpia. Até hoje, sempreque posso, vou visitá-los.

Em 1989, meu pai pediu demissão da empresa em que trabalhava havia dezenoveanos. Ele dizia que não agüentava mais o trabalho na madrugada e o barulho daquelafábrica, dizia que aquilo estava acabando com a sua saúde; e realmente estava. Tentoutrabalhar como autônomo na venda de veículos em um estacionamento de carros emAmericana, mas com o passar do tempo, isto não deu muito certo. Perdeu muito dinheiro

Nelson Ponce Júnior*

Caminhadas

* Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar.

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e a alternativa foi mudar de atividade. Resolveu continuar como vendedor autônomo,mas agora iria vender brinquedos por todo interior de São Paulo. Foram várias as viagensque fiz com meu pai para a cidade de São Paulo, pois era lá que ele comprava os brinque-dos. Era muito bom entrar naquelas lojas “recheadas” de brinquedos; sempre acabavaganhando algum.

Passados dois anos, eu iniciei o ensino fundamental em uma escola estadual que ficapróxima de casa e, após algum tempo, meu pai adoeceu. Em poucos dias, estava em umamesa de cirurgia na rede pública de saúde. Todas as noites, minha mãe e minha irmã maisnova rezavam para que meu pai melhorasse, mas sua situação não era nada boa. A primeiracirurgia de nada adiantou e logo teve que fazer outra para desviar seu intestino, pois haviauma grande infecção em parte do mesmo. Eu sempre ia ao hospital, mas nunca entrava, achoque no fundo eu não estava preparado para vê-lo naquela situação. As poucas vezes que ovi foi pela janela do quarto. Após um longo tempo, meu pai voltou para casa, mas aindateria que fazer uma nova cirurgia para religar o intestino. Mas isso não o impediu de voltara trabalhar com as vendas. Depois de alguns meses, fez a cirurgia de religamento. Suarecuperação foi bastante longa, mas estava curado. Sempre quando ele lembra dessa época,fala que trabalhou de fiscal de obras, pois viu o prédio que ficava na frente do hospital serconstruído quase que inteiro. Depois de todo este tempo, voltou a trabalhar e as coisasvoltaram ao normal.

A vida no ensino fundamental foi muito boa, ir para a escola nunca foi um problemapara mim, gostava de aprender e também de me divertir com os amigos. Chegava da escola,comia alguma coisa e corria para a rua, na maioria das vezes, nem o uniforme da escolatirava. Minha mãe não gostava muito disso!

Minha inocência de criança não me deixava perceber quanto a situação financeira daminha família havia se deteriorado. Com o passar dos anos, o dinheiro do meu pai foi setornando cada vez mais escasso para o sustendo da família, mas a esperança de que as coisasiriam melhorar sempre se manteve viva. Minha irmã, Michele, havia terminado o colegial earrumado um emprego em uma loja de máquinas e ferramentas em Americana; minha mãecontinuava com os afazeres do lar e meu pai com a venda de brinquedos.

Aos 15 anos de idade, consegui passar no processo de seleção da escola SENAI1 deAmericana no curso profissionalizante em mecânica de usinagem, e logo de início, arrumeium trabalho como aprendiz. Considerava meu primeiro salário bom e ele ajudava muitominha família. O curso era integral por isso tive que iniciar meu ensino médio no períodonoturno na mesma escola em que havia feito o ensino fundamental. O ensino médio à noiteera péssimo, e meus pais não tinham a mínima condição de pagar um ensino particular. Paradizer a verdade, o dinheiro que meu pai ganhava não era mais suficiente nem para pagar ascontas da família, e isto obrigou minha mãe a procurar um emprego. Minha irmã mais velhaconseguiu uma vaga de faxineira para minha mãe na empresa em que trabalhava. O dinheiroque minha mãe ganhava era fundamental para o sustento da família.

Foi também nessa época que meu avô, Regustiano Ponce, faleceu. Era uma boa pes-soa, sempre perguntava sobre o meu trabalho como aprendiz e sobre o meu curso no SENAI.

1 SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

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Sempre que eu ia à sua casa, estava fazendo alguma coisa na sua horta, que hoje, infelizmen-te está abandonada. Tenho muitas saudades do meu avô!

Apesar de tudo, os problemas financeiros familiares da época não afetaram o meuaprendizado na escola SENAI. Acho que de certa forma acabaram me incentivando a nãodesperdiçar as oportunidades que apareciam. Minha dedicação resultou, ao final do curso,em um prêmio como melhor aluno do curso de mecânica de usinagem.

Tinha esperanças em continuar na empresa em que trabalhava após o término docontrato, mas mesmo com a premiação, não consegui. A empresa já havia me comunicadoque eu não seria efetivado por falta de vagas, e antes que terminasse o contrato, conseguium novo trabalho. Não era em uma grande empresa como a primeira, mas seria o meuprimeiro emprego exercendo realmente a função que aprendi.

Naquela época, meu pai havia novamente mudado de atividade. Iria tentar venderconfecções em geral, mas seus ganhos já não sustentavam a família havia algum tempo, econseguir um emprego seria quase impossível, pois já fazia algum tempo que não trabalha-va com registro em carteira e sua escolaridade, ensino fundamental completo, nunca oajudou na busca de um trabalho formal.

Com quatro meses no meu novo emprego, tive uma ótima notícia: a escola SENAI,na qual havia estudado, estava me convidando para participar de uma competição deformação profissional, as Olimpíadas do Conhecimento, na modalidade Fresagem CNC2.Após algumas negociações da escola com a empresa, fui liberado para treinar durantedois meses às sextas-feiras e aos sábados. O tempo era curto, mas sabia que não poderiadeixar escapar aquela oportunidade. Graças a Deus, consegui alcançar meu objetivo e fuicampeão estadual na competição.

Surgiu então a oportunidade de representar o estado de São Paulo na competiçãonacional. A empresa na qual eu trabalhava não pôde mais me liberar para os treinos, poispossuía poucos funcionários no meu setor e a preparação para a competição nacional exigi-ria tempo integral de dedicação. Consultando minha mãe, tomei a decisão de sair da empre-sa e continuar me dedicando aos torneios, mesmo que depois da competição corresse o riscode ficar desempregado. Após cinco meses de treinamentos e muitas viagens para São Paulo,em reuniões de preparação psicológica com toda a equipe, estava pronto para representar oestado em 8 de agosto de 2002, na competição nacional na cidade de Porto Alegre, RioGrande do Sul. A viagem de ida foi um pouco tensa; nunca havia entrado em avião antes, equando me soltei, já estava em Porto Alegre.

Mais uma vez sabia que aquela oportunidade seria única e, após três dias de competi-ções, tive a notícia de que havia ganhado o primeiro lugar. Esta vitória me abriu uma portaainda maior: a oportunidade de representar o Brasil na competição mundial de profissõesque seria realizada na Suíça no ano seguinte. Mesmo com a vitória na competição nacional,tive que passar por vários simulados e atingir as pontuações exigidas para representar o paísno mundial. Não foi fácil, mas havia me dedicado muito nos treinamentos. Era comum ficarmais de treze horas na escola treinando.

2 Fresagem CNC (Comando Numérico Computadorizado) é um tipo de atividade cujo profissional éresponsável por preparar, regular e operar máquinas CNC para fresar (cortar) peças de materiais metáli-cos, plásticos e compósitos, com uso de ferramentas rotativas.

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No dia 14 de junho de 2003, às 22h, embarquei no vôo para a Suíça que faria umaescala em Frankfurt – Alemanha, antes de chegar à cidade de Zurique. Após descermos noaeroporto, pegamos um ônibus para a cidade de Saint Gallen, onde seria realizada acompetição. A cidade era muito bonita, e é quase impossível descrever tudo aquilo que viem palavras. Parecia não haver desigualdade social; muito diferente da realidade donosso país.

Os dias de competição foram muito tensos. Não consegui ter o desempenho dasoutras competições, pois não conhecia muito bem o equipamento suíço. Mesmo sabendoque não conseguiria estar entre os primeiros colocados, fiz o melhor que pude para obterpontos durante a competição e, ao final, havia obtido a 13ª colocação e ficado à frente depaíses como a Inglaterra, França e Bélgica. Tudo isso para mim foi uma grande vitória,pois sei que dei o melhor de mim e não desisti de lutar mesmo sabendo que não ficaria entreos primeiros colocados.

Depois de um mês da minha volta ao Brasil, consegui um emprego. Ainda não era umaempresa grande como havia imaginado, mas sabia que as oportunidades com o tempoapareceriam, e, apesar de meu pai continuar com dificuldades em sustentar a família, asituação tinha se estabilizado. Minha irmã mais nova também havia arrumado um emprego.

Mas a situação de aparente estabilidade logo se quebrou. Meu pai havia feito muitasdívidas. Talvez a vergonha por ter que abandonar mais uma vez o trabalho fez com que elecontinuasse trabalhando, mesmo que seus ganhos não ultrapassassem seus gastos, e a dívidasó foi percebida pela família quando já estava enorme e ele não conseguiu mais escondê-la.

Em meio a todos estes problemas, a oportunidade que tanto esperava realmente haviaaparecido. Eu havia passado na seleção de uma empresa multinacional na cidade dePiracicaba, e, como estava trabalhando havia apenas quatro meses em uma empresa peque-na, não pensei duas vezes em deixá-la. O novo trabalho era ótimo, tinha um bom salário e oônibus fretado pela empresa passava a duas ruas de casa. Com o tempo, sabia que poderiacrescer dentro da empresa.

Em 12 de junho de 2004, Dia dos Namorados, conheci minha atual namorada, a Aline,em uma festa na cidade de São Pedro. Mesmo ela morando longe da minha cidade, cerca de70 km, decidimos namorar. Muitos diziam que devido à distância, este namoro não iriadurar muito, mas estamos juntos até hoje e muito felizes.

As dívidas de meu pai era cada vez mais problemática, constantemente recebíamoscobranças. Minha mãe havia decidido vender a nossa casa, na qual havíamos morado mi-nha vida toda, e com parte do dinheiro pagaria as dívidas. Com o tempo, tirou esta idéia dacabeça e como na época eu tinha um bom salário, resolvi pagar as dívidas parceladamente.Foi mais de um ano pagando parcelas, mas, ao final, estava tudo pago.

O meu salário do primeiro ano de trabalho foi usado praticamente neste pagamento,e, assim que acabaram as dívidas, decidi estudar. Pensava em fazer uma faculdade particu-lar, pois meu salário me dava esta condição. Antes, porém, decidi prestar o vestibular daFATEC-SP3, no campus de Americana. Não era tão concorrido, mas era muito mais do queas escolas particulares da região. Para minha alegria, fiquei na lista de espera e logo fuichamado. Aquilo me fez sonhar mais alto, acreditava que, se realmente me preparasse,

3 Faculdade de Tecnologia de São Paulo.

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poderia passar em uma universidade ainda melhor. Decidi não fazer o curso de tecnólogoem informática

No final daquele ano, escolhi me matricular no cursinho do Colégio Objetivo deAmericana, pois acreditava ser um dos melhores da cidade. Matriculei-me no extensivo noperíodo da manhã, pois nos períodos da tarde e da noite trabalhava.

Em fevereiro de 2005, minha irmã mais nova e dois amigos, sendo um deles o Marce-lo, um dos meus melhores amigos, voltavam de uma festa em São Pedro quando perderam adireção do veículo, caíram em um pequeno barranco e colidiram de frente com uma árvore.O Marcelo, que para mim era como se fosse um irmão, faleceu na hora e minha irmã ficougravemente ferida. Por sorte o meu outro amigo que estava dirigindo não sofreu pratica-mente nada e pôde pedir ajuda. Recebi a notícia na manhã seguinte, quando estava na casada minha namorada. Ouvir que o Marcelo havia morrido e que minha irmã estava em comafoi sem dúvida a pior coisa que aconteceu na minha vida. Mesmo com tudo isso, tentavanão me mostrar muito abatido na frente da minha mãe, sabia o quanto ela iria precisar daminha ajuda, pois, além da situação ruim da minha irmã, perder o Marcelo foi como perderum filho para ela.

Mas se por um lado perdi um irmão, Deus havia me dado uma nova irmã; foi muitobonito ver sua recuperação. Em poucos meses, mesmo com a fratura na bacia, já estavaandando, e nunca perdia seu senso de humor.

Depois de todos estes acontecimentos, achava que não teria mais forças para conse-guir estudar aquele ano, mas mesmo assim resolvi tentar. Acho que ter falado com a mãe demeu amigo Marcelo me ajudou a prosseguir nos estudos. Ela sempre falava que ele iriainiciar a faculdade aquele ano. Por que eu, estando vivo, deveria desistir ?!!!

Os primeiros seis meses foram muito difíceis, não sabia quase nada e tinha dificulda-des em acompanhar algumas matérias. Muitas vezes, chegava a dormir apenas quatro horaspor noite. Dormir em aula se tornou uma coisa absolutamente normal, mas graças a umamudança nos horários da empresa, consegui trabalhar em um horário um pouco melhor; issoajudou muito no meu desempenho em aula.

Foi um ano de grande aprendizado e boas amizades, tanto no cursinho, quanto naempresa. No final do ano, fiz os vestibulares das melhores universidades do estado emdiferentes cursos, Engenharia Mecânica na UNICAMP e Unesp, Engenharia de Materiais naUFSCar e Química na USP, estava muito indeciso e não sabia bem o que queria fazer. Aofinal desta estressante jornada, estava na lista de espera da USP e da UFSCar. Depois dealguns meses, fui até o campus de São Carlos da UFSCar para manifestar interesse pela vaga,e no mesmo dia, para a minha surpresa e alegria, já estava matriculado no curso de Engenha-ria de Materiais. Mas ainda havia um problema: estava trabalhando e teria que deixar aempresa para a qual tanto lutei para entrar.

Não foi uma decisão fácil, mesmo sabendo que para o meu futuro certamente o cursode graduação seria a melhor escolha. Vejo aquelas pessoas com quem trabalhei como sendouma segunda família, nunca esquecerei do apoio que tive nas decisões que tomei. Tenhomuitas saudades de todos.

O processo de desligamento da empresa foi um pouco complicado, não queria pedirdemissão, pois não receberia o dinheiro do Fundo de Garantia, dinheiro este que seriafundamental para a minha permanência na universidade. Expliquei minha situação finan-ceira a meu supervisor, e o mesmo enviou um e-mail para a gerência da empresa explicando

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os fatos. O gerente respondeu que a política da empresa não permite que funcionários como desempenho bom sejam demitidos, exceto no caso de haver cortes por queda nas vendas,o que não era o caso. Como nunca fui de desistir tão fácil dos meus objetivos, resolvi subiraté a sala do mesmo e explicar os fatos pessoalmente. Eu disse a ele que mesmo se a empresanão me demitisse eu “pediria a conta”, pois estava decidido a estudar. Ele compreendeu edisse que, se tivesse um filho na mesma situação que eu, o apoiaria a fazer o que eu estavafazendo, e assim, fui demitido. Ele ainda me disse que as portas da empresa estariam abertaspara quando quisesse voltar.

A alegria de estar realizando mais um sonho faz com que a tristeza de estar longe daspessoas de quem gosto quase que desapareça. E, até que eu tenha forças, continuarei lutan-do por um futuro melhor para mim e para as pessoas que amo!

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Dizem que a felicidade é um momentoEeia ei....aSe encontra em um sorriso em um desejoEeia ei......aÉ estar em uma festaÉ viver o que nos restaÉ dizer pro mundo inteiro que acer...taÉ o amorDizem que a felicidade é uma rosaEeia ei......aQue é linda porque é tímida e dengosaEeia ei......aÉ sambar com um boleroÉ viver tudo que eu queroÉ dizer pro mundo inteiro que te a...mo... tequero! Art Popular

Pensar sobre mim e sobre a minha história nem sempre é algo legal. Lembrar de fatosque causam riso, dor, alegria, saudades e perguntas. Perguntas que deixei de fazer por nãoachar respostas tais como: Por que minha mãe ficou casada por 15 anos? Por que eu vi tudoo que vivemos de uma forma tão diferente dos outros? A minha braveza é genética ou umaauto-defesa?

Eu nasci dia 28 de dezembro de 1979, sou a quarta filha dos meus pais. Lembro quemorava na casa dos meus avós paternos e um dia, de madrugada, eu mudei para a casa daesquina e que, muito ou pouco tempo depois, meu segundo irmão nasceu. Eu não lembro daminha mãe grávida então acho que o que marcou foi ela ter sumido por um tempo e depoisvoltado com ele em uma manta azul clara.

Aos seis anos eu fui para a pré-escola. Eu já reconhecia os números de 1 a 5, o nome daminha irmã mais velha e da minha mãe, estava tão ansiosa pelo primeiro dia de aula queassim que minha mãe entrou, de manhã, na sala onde dormíamos para chamar meus irmãospara a aula, eu acordei. Lembro da escola grande de muro branco e portão cinza e da tiaZênite que me ensinou as letras e os números no pré, e da tia Lúcia, que me ensinou a ler e

Priscila Andrade Corrêa*

Eu

* Graduanda em Pedagogia pela UFSCar.

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a escrever, na primeira série. Eu estudava à tarde e ia para a Escola Estadual Prof. PauloMendes Silva, toda feliz, pois em Jundiaí, onde nasci e morava, estudar o pré em uma escolade estado era como um privilégio: considerava-se que as escolas da prefeitura eram para osfilhos das pessoas pobres que moravam na periferia e trabalhavam fora. A questão que eunão sabia é que eu era tão pobre quanto todas as crianças da periferia de Jundiaí, só queminha mãe ficava em casa.

O meu pai trabalhava como off-set; não sei bem explicar como era essa função ou sedurante o trabalho ele fazia alguma outra coisa. Sei que ele era responsável por finalizar aimpressão do Jornal de Jundiaí e depois do Jornal da Cidade, ele arrumava as máquinasquando apresentavam problemas e era responsável por fazer tudo caber em uma determina-da página. Ele começou a trabalhar em um jornal em Caieiras e era responsável pelasmesmas coisas que já fazia em Jundiaí, além de produzir a página da coluna social.

Em Jundiaí, brincávamos só eu e meus irmãos no quintal de casa. Nos feriados e nasférias, os meus primos iam para lá. Meu primo César, de Rincão-SP, por ser o mais velho, erasempre o líder de nossas travessuras. Um dia nós fomos passear, ele pôs muita pimenta nopastel e minha tia não deixou ninguém dar refrigerante para ele. Em outra ocasião, ele foiassustar minha irmã imitando o clip de terror do Michael Jackson e ela quebrou o dente, nuncaele apanhou tanto! Mas depois, pra variar, a gente riu. Dos primos de Rincão, eu me lembrodesde que me entendo por gente, mas dos de São Carlos, não. Uma tarde, eu estava dormindona casa da minha avó paterna, na cama da minha tia, que era também minha madrinha (umbom lugar no mundo). Quando acordei, conheci os meus parentes de São Carlos: avó materna,tia e primos. Tinha cerca de cinco anos e não lembro de tê-los visto antes.

Então, em 1988, nós mudamos para Caieiras e tudo na minha vida mudou também.

Deixa desaguar tempestade, inundar a cidade porque arde um soldentro de nós.Queixas, sabe bem que não temos,e seremos serenos[...]Deixa a chuva cairque bom tempo há de virQuando o amor decidirMudar o visual trazendo a paz no solQue importa se o tempo lá fora vai malQue importaSe há tantas lamas nas ruas (...). Almir Guineto / Zeca Pagodinho

Eu estava na metade da 2ª série e a matéria que as professoras davam estava em pontosdiferentes, então eu iniciei uma dificuldade com a matemática que vem até hoje. Parei deconversar em sala de aula por me sentir deslocada de um grupo que se conhecia desde ojardim da infância e talvez porque inconscientemente não queria partilhar da minha situaçãocom ninguém. Ao chegar a Caieiras-SP, eu percebi que minha família não era tão normalcomo eu sempre pensei: vi que não era certo o meu pai beber tanto, trair e bater na minhamãe. Eu me fechei de tal forma que até hoje tenho dificuldade de fazer amigos.

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Em Caieiras, as coisas eram bem diferentes de Jundiaí: eu ia para a escola com asminhas irmãs, pois a minha mãe começou a trabalhar. Nossa casa ficava no pé de um morroe a vizinha de cima convenceu meu pai a deixar a gente brincar na rua à noite. Meu pai nãogostava muito que nós brincássemos com os meninos da rua, então eles tinham que ir emcasa pedir permissão a ele, que às vezes não deixava.

Nós brincávamos de queima, esconde-esconde, imitar cantores com mímica, pegá-vamos argila na bica que passava no pé do morro e fazíamos nossos brinquedos. Eradivertido, em especial porque incluía mais gente além dos meus irmãos e nossas brinca-deiras para poucas pessoas. O que deixamos de fazer e eu senti falta foi brincar de teatro:eu e minhas irmãs encenávamos os clássicos da Disney para minha mãe, tia e avó assisti-rem. O meu irmão mais velho sempre cortava o “palco” trocando as letras das músicas daXuxa e nós brigávamos.

Lá, eu desenvolvi alguns amores: a música. Meu pai puxava uma escola de samba emJundiaí e em casa tinha uma caixa, um bumbo, um reco-reco e um violão. Ele tocava violãoe a gente cantava. Quando ele não estava “bão” todos os vizinhos sabiam: ele ligava o rádiobem alto às 22 horas e tocava “Joga pedra na Geni” e Zeca Pagodinho com “se eu quiserfumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”.

Outro amor foi a leitura. Por meu pai trabalhar em um jornal, nós o recebíamos de graça elíamos e, na terceira série, a escola abriu uma biblioteca que eu freqüentava sempre. Meuprimeiro livro foi O cachorrinho Samba na fazenda. Falando em jornal, quando ocorreu oimpeachment do Collor, eu estava passando uma temporada em São Carlos e não li e nem vinada, pois a minha avó não deixava ver TV. O Muro de Berlim caiu e eu não vi e nem li também.

Outra coisa boa era pescar. A minha mãe não gostava porque meu pai dizia que iajogar a gente no rio e nós fazíamos muita sujeira, mas quando ele não estava muito bêbado,pescar era algo bem legal, a gente conversava, cantava, contava histórias. Depois da pescanós limpávamos o peixe e a minha mãe fritava.

No nosso quintal, tinha uma horta com couve, chuchu, almeirão e alface. Nós criávamosgalinha, pomba, codorna e marreco. Quando o dinheiro acabou, nós soltamos as aves menores,os marrecos morreram e comemos as galinhas e seus ovos. Hoje, meu quintal não tem terra, tenhoorquídeas que ganhei e falo com elas...o povo diz que eu sou louca, mas eu sou é feliz!

BrasilMostra tua caraQuero ver quem pagaPra gente ficar assimBrasilQual é o teu negócio?O nome do teu sócio?Confia em mim.Cazuza / Nilo Romero / George Israel.

O dinheiro acabou porque, além da inflação da época do Sarney e do Plano Collor, omeu pai deixou o emprego: como era o chefe da seção, ele demitiu um homem que haviacometido um erro. Um dia, ao sair do jornal, ele estava no bar ao lado e o cidadão apareceucom uma arma querendo atirar nele, pois “Onde já se viu um preto mandar um branco

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embora?!” O sujeito conseguiu voltar ao jornal, mesmo estando duplamente errado, e meupai pediu demissão.

Em fevereiro de 1990, minha mãe falou que nós NÃO íamos estudar naquele ano.Como assim?!! Nós tínhamos que mudar de casa, mas não tínhamos para onde ir, poisninguém queria ser fiador do meu pai. Todas as vezes que mudamos de casa foi pelo mesmomotivo: despejo. Ele falava que pagar aluguel, luz, água e comprar material e uniformeescolar era bobeira... voltamos a morar na casa dos pais dele, em Jundiaí, que na épocatinham três filhos solteiros. Porém, na Páscoa, a irmã casada dele, de Rincão, iria paraJundiaí visitar minha avó. Como meu pai não queria que ela soubesse que tínhamos volta-do para lá, fomos para a casa de um amigo dele chamado Henrique em Franco da Rocha.Meu pai já tinha um emprego em uma ótima empresa em Jaguaré-SP e passava a semana nacasa desse amigo e ia de sexta feira para casa da minha avó. Ficamos na casa do Henriquecerca de um mês, até ele começar a namorar e voltamos de novo para a casa da minha avó.

Em uma bela noite, já era tarde e meu pai tinha recebido o salário. “Alto”, teve abrilhante idéia de ficar na cozinha com minha irmã mais velha e minha mãe, se exibindocom o dinheiro. Meu tio passou e apagou a luz. Eu gelei. Meu pai era agressivo e se ofendiafacilmente. Imaginei os dois se pegando e meu avô passando mal. Agradeci a Deus por meupai já ter vendido as duas armas que teve. Graças a Deus, eles não brigaram assim e nóslevantamos “pra ir embora daquela casa de traidores”. Fomos a pé para a estação de trem(cerca de uma hora de caminhada) e dormimos lá.

Basta pensar em sentir / para sentir em pensarMeu coração faz sorrir / meu coração faz chorarDepois parar de andar / depois de ficar e irHei de ser quem vai chegar / para ser quem quer partirViver é não conseguir. Fernando Pessoa

No dia seguinte, voltamos para a casa da minha avó, pegamos nossas coisas e docu-mentos e viemos passar um tempo em São Carlos. Minha mãe nos deixou na casa da minhaavó materna, que eu tinha visto cerca de quatro vezes em toda vida.

Minha mãe trabalhava durante o dia em Jundiaí, e meu pai, em Jaguaré. Ao fim do dia,eles se encontravam na Estação da Luz, em São Paulo, e eles alugavam o quarto mais baratoe seguro que podiam encontrar para dormir. Nós não tínhamos como falar com ela, quevinha às vezes em um fim de tarde, lavava a roupa deles e voltava no dia seguinte. Minha tiae minha avó ficavam bravas se eu chorava, mas é que eu queria minha mãe. Sei que é por issoque hoje eu só choro se realmente perco o controle sobre mim.

Acho que ficamos lá cerca de seis meses. Naquele ano, teve uma greve de professoresentão a companhia dos meus primos fez o tempo passar mais rápido. Meu pai conseguiualugar uma casa em Botazar Fidelis, um subdistrito de Franco da Rocha, e perto do Natal,nós voltamos a morar juntos. Era um lugar muito pobre e nossa casa era uma das poucas detijolos por ali. Tinha no quintal um pé de figo e vários de banana.

Em 1991, eu voltei para a escola, fazendo a quarta série, e passei a odiar as férias, soumuito mais um feriado prolongado. Um de nós sempre faltava à aula para ajudar minha mãe

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a vender panos de prato de porta em porta em Jundiaí. Em alguma época do ano, o meu paiparou de trabalhar por já estar completamente alcoólatra e essa era nossa única fonte derenda e mudamos para um barraco rosa do lado da casa em que estávamos. Ele falava que, seminha mãe tivesse vontade de trabalhar, nós ficaríamos ricos. Um absurdo.

Mesmo com toda a situação, ou dentro dela, em dezembro de 1991 minha mãe estavagrávida de 4 meses. Na primeira semana de dezembro, meu pai teve uma briga horrível comminhas irmãs mais velhas e as mandou embora de casa. Foi com certeza o pior dia da minhavida. Minha mãe percebeu que ou nós vínhamos embora ou meu pai iria matar todos nós,então, em 17 de dezembro de 1991, nós fugimos de casa literalmente com a roupa do corpo,pois já tínhamos encontrado as minhas irmãs.

Minha mãe foi à Delegacia da Mulher explicar o ocorrido, pois disseram que meu paipodia alegar que ela nos roubou e conseguir a nossa guarda, mas ninguém fez nada por nós.Nós vendemos nossos panos de prato, pedimos dinheiro aos conhecidos da minha mãe e,depois de rodar a cidade de Jundiaí toda com medo de parar em um só lugar, fomos para aestação esperar o trem que nos traria para São Carlos e saía exatamente às 00:01! Nenhumminuto a mais ou a menos. Quando chegamos aqui, faltavam 10 dias pra eu completar 12anos e saímos de casa no dia do aniversário do meu irmão mais velho. Presente.

Às vezes sinto o vento passarE só de ouvir o vento passarVale a pena ter nascido. Fernando Pessoa

No sétimo parto normal da minha mãe, apesar da correria da gravidez e dos 41 anos deidade dela, o Jander nasceu saudável em uma tarde morna de abril. Quando ele tinha trêsmeses, eu deixei o meu primeiro emprego de babá para cuidar dele, pois a minha mãecomeçou a trabalhar. Eu não sabia, mas isso me prendeu para sempre aos meus irmãos, eunão podia ir à aula de educação física e nem fazer trabalhos e pesquisas fora da sala de aula.

Aos 13 anos, pelo convite de uma importante amiga, a Mirna, comecei a freqüentar aPrimeira Igreja Batista em São Carlos. Aos 14 anos, comecei a trabalhar o dia todo de babáe a estudar à noite; os primeiros meses foram os piores por eu estar cansada demais e semritmo pra tal correria. Aos 15 anos, eu me formei na oitava série e me batizei na mesma Igreja,que freqüento até hoje. Foi sem dúvida uma das melhores coisas que eu já fiz na vida. Nelaencontrei pessoas de todos os níveis sociais, de analfabeto a doutor, de faxineiro a fazendei-ro e isto ajudou muito na formação de meu caráter.

Ao acabar o ensino fundamental, fui fazer o médio em uma escola um pouco longe decasa por não gostar da que tinha perto de casa; ao terminar, já tinha ouvido falar da FUVEST6,mas não sabia direito o que era, então, comentaram que a Igreja Evangélica Projeto Raízesperto de casa estava oferecendo um curso pré-vestibular comunitário e eu me matriculei.Não levei o ano a sério mais decidi estudar e entrar na universidade pública.

O meu Deus é um Deus de milagre,Não há limites para o seu poder agirRealiza o impossível, para Ele nada é tão difícil

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O maior milagre já operou em mim,E o maior milagre quer operar em ti. Ana Paula Valadão

Nos dois anos seguintes, fiz cursinho particular. Eu trabalhava fazendo faxinas e comesse dinheiro pagava as mensalidades com desconto. Não passei, então fui estudar adminis-tração em uma escola técnica estadual em um curso que durou um ano e meio, e, ao terminar,decidi tentar de novo o vestibular, pela última vez, fazendo o cursinho popular da UFSCar.Eu ia com uma amiga até o centro pegar ônibus para casa e na época em que nós vimos ocartaz de inscrição para o cursinho no ônibus eu não tinha como pagar. Ela se dispôs a usaro próprio horário de almoço para, emprestando-me o dinheiro, fazer a inscrição. Quando eupassei no vestibular, liguei para contar e ela chorou feliz por mim. A Lu também é negra epaga uma universidade particular, ela e o marido sabem o quanto é difícil e o quanto valeuma universidade pública.

Durante o ano passado eu mais orei do que estudei, tínhamos aulas também nos fins desemana, conheci o Podrão, um cachorro bonito e fedido que mora na universidade e “assis-te” às aulas. Estudei história mais que as outras matérias para passar em Ciências Sociais naUnesp de Araraquara, que era minha primeira opção, e mesmo assim fiquei mal colocada earrasada. Também prestei Pedagogia na UFSCar mas quando me perguntavam do vestibulardaqui, eu dizia que só passaria por milagre. No dia que o resultado da Federal saiu, eu tinhamais medo que esperança e fui direto ver:

Classificação Geral: 80Situação: Consta na lista de esperaEu comecei a chorar e a moça do meu lado na Biblioteca Municipal pensou que eu

passava mal, eu só chorava e dizia: EU PASSEI NA FEDERAL! Fui de lá pra casa da minhairmã mais velha chorando e agradecendo a Deus. Mesmo que eu não conseguisse entrarservia pra recuperar a auto-estima depois da reprovação na Unesp.

Minha irmã mais velha casou, a segunda tem um filho de 10 anos, a mais nova é umamissionária. O meu irmão mais velho fez SENAI e trabalha com iluminação pública naPrefeitura; o segundo acabou de perder o emprego, parece ser o que mais sofreu com tudo oque houve e também ser o mais frustrado com as injustiças sofridas por um jovem negro noBrasil; o mais novo está iludido com a idéia de ser jogador de futebol (ou não, ele realmenteé bom), mas não é fácil ele entender que mesmo tentando isso ele precisa ter uma outraopção, pois nem todo garoto “bom de bola” vai pra Liga dos Campeões.

E a minha mãe fica no meio de tudo isso, tentando ou conseguindo ser feliz, trabalhademais pro meu gosto e pra idade que tem. Do meu pai, eu só tenho notícias quando elepassa na casa da minha avó em Jundiaí, e por medo dele ela não deixa a gente ir lá. É tristeporque meu avô morreu há nove anos e eu ainda não vi o túmulo, minha tia casou, teve umafilha e eu ainda não conheço nenhum dos dois.

Eu não sei como vão ser esses quatro anos aqui, mas o que eu sei é que não possoesquecer de onde eu vim e o que Deus fez por mim, sei que não seria quem sou se não fossea graça d’Ele na minha vida, apesar de tudo o que já vi e vivi.

6 Fundação Universitária para o Vestibular, que na época era responsável pela elaboração da prova daUniversidade de São Paulo – USP e Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

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Que eu possa sempre Te louvar, que eu possa sempre Te agradarÓ Senhor, não deixe que eu volte atrás,Que eu possa Te amarQue eu não tenha outro Deus além de Ti, que eu possa semprecantar o Teu louvorSempre e pra sempre me mantendo em Seus caminhosQue eu nunca perca a direção,Vem, Senhor, e guia meu caminhos a cada dia,Que eu possa cantar o Teu louvor. Cristina Mel

Não posso deixar de agradecer a Deus por algumas pessoas especiais que Ele colocouna minha vida e que são, de alguma forma, responsáveis pelo que sou: Tia Lucy e PastorJarbas, Tia Mi e Carlão, Myriam e Mirna, Débora e Lucélio, Irmão Edson, exemplo dehomem e de servo de Deus

Durante a realização do nosso Seminário Local, percebi que precisava explicar porque a minha vida não é contada de maneira superficial. É porque há tanta lama na rua, e eume importo. Escrevi tanto pensando em incentivar a seguir em frente quem, como eu, ouveo tempo todo que não vai ser nada na vida e que terá irmãos tão beberrões e imprestáveisquanto o pai. Trabalhei dos doze aos vinte e seis anos como doméstica em uma cidadeextremamente preconceituosa, e faço parte de um pequeno grupo de pessoas que o Cone-xões quer fazer maior: um grupo de pessoas que confiam, lutam e vencem. Que Deus me enos ajude nisso.

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Meu nome é Rafael Vieira, tenho 20 anos, nasci no dia 27 de junho de 1986 em Matão,cidade do interior do Estado de São Paulo. Sou filho de Marlene Coimbra de Oliveira e LuísVieira. Tenho mais dois irmãos: Rodrigo, de 24 anos, e Bruno, de 7 anos. Felizmente,costumo dizer que tenho uma outra família, uma família de coração, meus outros pais:Maria de Lurdes e Benito e meus outros irmãos: Paulo, Carla, Carlos e Mara.

Digo que tenho duas famílias porque na época éramos vizinhos, e quando eu erapequeno, Carla, a filha caçula de Lurdes e Benito, cuidava de mim praticamente o dia todo,e dessa forma, cresci e acabei virando membro da família deles, sou sempre bem vindo emsuas casas e tenho todo respeito e admiração por cada um de lá. Agradeço enormemente aeles por terem contribuído para minha formação, educação, cultura e me servirem quasesempre como exemplo.

Na minha infância, pude compartilhar grandes momentos com os outros meninos darua, tínhamos quase todos a mesma idade, e isso contribuiu para que toda a noite fossefundamental brincar; a imaginação fluía e brincadeiras eram feitas sem grandes complica-ções. Nossas mães geralmente ficavam sentadas nas calçadas nos observando, típica vidanoturna do interior.

Estudei sempre em escolas públicas, e mesmo sabendo que o ensino básico em redeestadual está comprometido e deficiente, consegui, para minha felicidade, encontrar professoresexcelentes e com motivação, eu fazia o possível para ser sempre o melhor aluno da turma.

Logo no segundo colegial, comecei a trabalhar em uma metalúrgica, trabalho árduo epesado; sabia que ali não era o melhor trabalho do mundo, precisava ter algum dinheiropara poder ajudar com os gastos de casa, e ali seria para mim a melhor maneira de fazer isso,e assim conclui meu ensino médio no período noturno. Mesmo não tendo uma idéia bastan-te concreta sobre o vestibular, resolvi que me empenharia na preparação para prestá-lo. Nofinal do terceiro colegial, eu prestei pela primeira vez um vestibular, o da Unesp, acabei mecandidatando ao curso de Ciências Econômicas só por achar o nome bonito, obviamente eunão passei. Hoje, eu acredito que se por um acaso eu tivesse entrado nesse curso, eu teriadesistido logo no primeiro semestre. Achei o vestibular a coisa mais difícil do mundo,praticamente tudo aquilo que caiu na prova eu jamais tinha visto na minha vida, principal-mente os conteúdos de química, física e matemática.

Como eu acabei praticamente zerando na prova de química, decidi participar da sele-ção para um curso técnico em Química em uma escola municipal em Matão, e assim, depois

Caminhadas: trajetória de vida,como releitura da realidade

Rafael Vieira*

* Graduando em Química pela UFSCar.

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de um tempo só estudando química, eu voltaria e prestaria vestibular novamente. Mas avida nos prega uma peça! Acabei me apaixonando pela matéria que eu mais odiava! Fiz umano inteiro de curso técnico, consegui estágio em um laboratório de análises especiais emuma empresa de sucos e ali descobri o que eu realmente queria ser: químico. Não termineio curso técnico até hoje. Isso aconteceu porque uma amiga de colegial praticamente meobrigou a prestar uma prova seletiva de um curso pré-vestibular popular em Araraquara-SP,no CUCA1. Para minha surpresa, eu acabei passando nessa prova, fui classificado e tranqueiminha matrícula no curso técnico para poder iniciar o cursinho preparatório para os longose difíceis vestibulares que eu prestaria.

O ano de 2005 foi o ano em que cresci muito como pessoa. Levantava todo dia às 5:30da manhã, pois trabalhava ainda na mesma metalúrgica, e voltava às 17:30. Quando chega-va, apenas tinha tempo de tomar banho e pegar o ônibus para Araraquara, pois viajava tododia pro cursinho, já que Matão fica a 30 quilômetros de Araraquara.

Ali conheci pessoas grandiosas, cuja amizade guardo e mantenho até hoje, muitoseram meus próprios professores, estudantes da própria UNESP dos mais variados cursos degraduação, e também meus outros amigos e amigas que faziam o cursinho foram os grandesresponsáveis por eu ter continuado a estudar; havia dias que eu chegava do trabalho e nãotinha condições de ir assistir as aulas, precisava dormir para poder estar bem e sem sono nosoutros dias da semana, no tempo livre que tinha – horário de almoço e em especial os finaisde semana – me empenhava em estudar e resolver exercícios o dia todo, deixando de ladoalgumas coisas de que eu realmente gostava, como sair para conversar com amigos, cinema,vôlei, descontrair e sair daquela rotina tão desgastante da semana e que eu na realidadeodiava, trabalhava em um local que não me dava satisfação alguma, ia por necessidade enão por vontade.

No cursinho, fui, na realidade, obrigado a fazer novamente o ensino médio em um ano.Para mim não foi um cursinho para rever matérias e sim para aprendê-las. Como eu trabalha-va, pude reservar certa quantidade de dinheiro para os vestibulares e tive oportunidade deme candidatar a vários deles nas universidades mais concorridas do país, como USP,UNICAMP, UNESP, UFLA2 e UFSCar.

1 Curso Unificado do Campus de Araraquara. O projeto CUCA é um curso preparatório pré-vestibular, semfins lucrativos, oferecido no Campus da Unesp de Araraquara com vagas para alunos egressos do ensinomédio de carência sócio-econômica comprovada. Concebido em 1993 com a projeção social de melhorara qualidade de vida do cidadão oferecendo-lhe as condições de formação superior para competir com omercado de trabalho qualificado. Os objetivos do projeto CUCA são: complementar os conhecimentosgerais e específicos, em nível do ensino médio, visando-se preparar os alunos para ingresso no ensinosuperior, preferencialmente em Universidades Públicas; proporcionar aos alunos da Unesp, a oportunidadede promover e desenvolver a Extensão Universitária através da prática de ensino no exercício de cidadania;favorecer o aprimoramento profissional em docência dos alunos da Unesp; conscientizar os graduandossobre a Mentalidade Solidária e Voluntária para a cidadania, despertar o espírito de cooperatividade eassociativismo social e compartilhar experiências; estimular a educação superior para o desenvolvimentosocial nas camadas menos favorecidas e contribuir para o desenvolvimento econômico com recursosqualificados de educação superior. [informações do site http://www.iq.unesp.br/cuca/quemsomos.php em05 jan 2007].2 Universidade Federal de Lavras/MG. Fundada em 1908, sob o lema do Instituto Gammon: “Dedicado aglória de Deus e ao Progresso Humano”, a Escola Agrícola de Lavras, depois Escola Superior de Agriculturade Lavras (ESAL) e, hoje, Universidade Federal de Lavras (UFLA). Oferece 10 cursos de graduação, 49cursos de especialização a distância e 12 de mestrado e doutorado. [informações do site http://www.ufla.br/em 05 jan 2007].

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Felizmente, fui bem na maioria deles, mesmo não alcançando as notas de corte, eu mesenti feliz por ter um desempenho razoável, somente na UFLA e UFSCar é que conseguirealmente passar, na realidade indo para a lista de espera, pela qual fui chamado logo naseqüência.

Eu me lembro do dia em que assinei a minha matrícula na UFSCar; foi um dia deenorme felicidade. Pena que eu só pude comemorar essa tal euforia e felicidade com meusamigos do cursinho, porque em casa, meus pais não esboçaram reação alguma, ou melhor, aúnica reação que tiveram foi de susto ao me ver todo sujo de tinta e com a cabeça raspada etambém quando eu disse que eu estava indo morar em São Carlos. Mas enfim, não fiqueitriste por não receber os parabéns de meus pais, eles tinham uma visão muito simplista doque era uma universidade, e muito menos sabiam o que era Química. Hoje em dia, a visãodeles mudou, acredito que eles estejam orgulhosos de mim; meu irmão mais velho pareceter visto em mim alguma motivação e ele diz que está pensando em começar uma faculdade,mesmo que particular.

E assim, em 2006, matriculado no curso de Química da UFSCar e morando em SãoCarlos, vivo uma outra vida, uma vida universitária, participo de um projeto de extensão, oPrograma Conexões de Saberes, que é o motivo principal por eu estar escrevendo o Cami-nhadas. Sei que tenho muito que aprender, estou ainda no meu primeiro ano de graduação,tenho mais quatro anos pela frente, e, com certeza, no futuro terei mais histórias pra contar...

Sei que a partir do momento que o empenho, a garra e a força de vontade são lideradaspor uma palavra mágica chamada perseverança, conseguimos transpor barreiras e criar umaforça (inexplicável) capaz de romper aquilo que tememos tanto e ver o produto dessa nossalonga jornada. Olhar para trás e ver o resultado da difícil caminhada até a universidadedepois de tanta luta é realmente algo que fica praticamente impossível descrever usandoapenas palavras. Consegui concretizar um grande sonho, ou pelo menos boa parte dele; osnossos sonhos tornam-se reais se nos empenharmos a buscá-los, não importa o quão longeaparentam estar, é possível obtê-los se subirmos degrau por degrau.

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Meu “corpo” nasceu em 1981, digo isso pois acho que eu senti que nasci em 1996,quando tinha 16 anos, já que foi com essa idade que descobri a felicidade, porque até entãofazia tudo que os “outros” queriam.

Tive uma infância, se é que tive, muito perturbada; fui criada em um colégio interno,convivia com muitas crianças que estavam nas mesmas condições que eu, só com umadiferença: nem nos fins de semana eu via a minha mãe ou sequer algum parente ia me visitar.A minha mãe só ía me buscar nos feriados, pelo que me lembro.

Se eu ficar contando muitos detalhes, talvez o leitor fique cansado da mesma formacomo eu fico quando estou lendo um livro que fica enrolado para terminar, então, voucontar como foi minha fase na escola e alguns fatos que marcaram a minha vida.

Lembro-me de um fato muito importante: eu tinha mais ou menos 7 anos quandominha mãe me tirou do colégio. Já tinha me acostumado e com o tempo senti muita falta,pois lá estudava e tinha muitos amigos. Bem, naquele momento fiquei muito feliz, porémnão era para ela cuidar de mim, mas para eu cuidar do meu irmão que havia nascido. Foinesse momento que descobri que tinha um irmão.

Como tive que cuidar do meu irmão, só comecei a estudar aos 8 anos, graças aosvizinhos que falavam para a minha mãe que eu precisava. Então, entrei na Escola EstadualAprígio de Oliveira.

Dos 8 anos aos 16, tive tempos difíceis. Vivíamos mudando de casa, pois, em 1990,ocorreu a “crise econômica no governo Collor” e o pouco que tínhamos, a poupança queminha mãe tinha guardado para comprar um lote, foi confiscada.

Comecei a trabalhar cedo; isso foi uma das coisas boas que me aconteceu, pois come-cei a conhecer pessoas que davam bons conselhos.

Em 1997, recebi a notícia que considero umas das mais importantes: tinha passado novestibulinho para a Escola Técnica Estadual Presidente Vargas, do Centro Paula Souza.Para mim, esse resultado foi uma expectativa de mudança de vida: “Até que enfim vou teruma profissão que me ajudará a crescer”. Por isso digo que nasci em 1996: (aproximada-mente em dezembro): foi quando prestei o vestibulinho.

Em 2000, passados quatro anos, me formei técnica em edificações, porém sem serviçofixo. “Doce ilusão! Pensei que ia conseguir progredir financeiramente e no entanto continu-ava na mesma”. Trabalhava de desenhista de dia e a noite de babá.

Roberta Alexandra Silva de Oliveira*

Minha história

* Graduando em Matemática pela UFSCar.

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Grandes pessoas que conheci me influenciaram a fazer um cursinho e prestar vestibularem universidade pública, pois jamais havia pensado em fazer faculdade, já que nunca teriacondições de pagar uma faculdade privada e me achava incapaz de passar em uma pública.

Fiz três anos de curso pré-vestibular no Cursinho da Poli1, sendo que no primeiro anopagava as mensalidades com meu salário e, no segundo e terceiro, consegui uma bolsaintegral, pois trabalhava lá. Passei em matemática na Unesp, campus de Presidente Pruden-te. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida.

Porém, estudei somente dois anos. Neste período, morei em uma república de estudan-tes e meu irmão enviava dinheiro para me ajudar. Tínhamos combinado que eu me formariaprimeiro, com sua ajuda, e, depois de formada, eu o ajudaria a estudar também. No entanto,ele decidiu entrar na universidade em 2005. Como a Unesp não oferecia auxílio suficientepara alunos, eu não teria mais como me manter lá. Houve um período de greve dos professo-res e alunos; no retorno, reprovei em três disciplinas. Graças a Deus, sempre tive pessoas queiluminavam meus caminhos, pois, sempre que estava chegando no “fundo do poço”, meajudavam. Muitas vezes pensei até em me matar, pois eram tantas as dificuldades e cobran-ças que pensava que seria melhor morrer.

Não posso esquecer de dizer que as amizades que fiz em Prudente são até hoje muitoespeciais para mim, pois são amizades para toda vida.

Até que, quando ia largar tudo, uma amiga me falou que a UFSCar ia abrir vagasremanescentes para transferência e daria para eu tentar. Interessei-me, pois a UFSCar é maispróxima da minha casa e oferece auxílio para os estudantes de origem popular.

Em 2006, começo a estudar na UFSCar... daqui pra frente, não sei como as coisas irão ser,a única coisa que sei é que Deus me deu e está me dando a oportunidade de lutar e correr atrásdos meus objetivos, por isso, espero terminar o curso e prosseguir meus estudos e ajudar aspessoas que estão passando pelas mesmas dificuldades que passei e mostrar que é possívelalcançar seu objetivos quando se luta e se faz o possível e o impossível para conseguir.

1 Escola Politécnica da USP. O Cursinho da Poli-USP, do Grêmio Politécnico, é um curso pré-universitáriopopular com sede na Cidade Universitária – Capital. O Cursinho da Poli nasceu em 1987 por iniciativa doentão diretor da Escola Politécnica, Prof. Décio Leal de Zagótis, e do Grêmio Politécnico com o intuito deser um cursinho diferenciado, gratuito, voltado para a inclusão social, formação crítica dos estudantes edemocratização do acesso à universidade pública. Desde 2005, o Grêmio Politécnico e o Movimento peloResgate do Cursinho da Poli vêm travando uma batalha jurídica para retomarem o Cursinho da Poli, que,segundo informado no site, fora expropriado do Grêmio Politécnico por um grupo de ex-diretores daentidade. Estes, ao invés de darem continuidade ao caráter social do Cursinho da Poli, teriam o transformadonum projeto lucrativo, mais preocupado com as demandas do mercado do que com a inclusão social. Em2007, o cursinho da Poli abriu inscrições para o preenchimento de 100 vagas. Não há cobrança mensalidadedos alunos. [informações do site http://gremio.poli.usp.br, em 05 jan 2007].

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Vou contar a história de Severino. Talvez porque a história de Severino seja boni-ta. Talvez porque a história seja semelhante e ao mesmo tempo diferente da de muitosde nós.

Severino nasceu em 1980 e, como a maioria dos brasileiros, nasceu em berço pobre.Era filho de pai aposentado por ter perdido as pernas após ser atropelado por um trem. O painão desanimou e virou alfaiate para sustentar a família. A mãe era doméstica e batalhadora,assim como o pai. Severino era o penúltimo de nove filhos. A cama era dividida com outroirmão. Aliás, cada cama era dividida por dois irmãos.

Na escola, morria de vergonha de dizer que não tinha dinheiro para material escolar,de dizer que não tomava leite, que não comia carne. Contudo, sonhar era característicamarcante da família.

O pai tinha feito até a quarta série do fundamental, porém a vida lhe ensinou muitascoisas. Entre elas que deveria fazer de tudo para que seus filhos estudassem.

Com esta visão do pai, o irmão mais velho se destacou na escola e a mudança dedestino parecia próxima. Após se dedicar aos estudos, entrou na UNICAMP, universidadepública de renome.

Severino não tinha nem idéia do que era universidade. Só sabia que era bom, mas, paraque servia, não.

Como toda criança, Severino fazia da vida uma brincadeira. Brincava de futebol,bolinhas-de-gude, pega-pega.

O irmão de Severino se formou na universidade e junto com outro irmão, que tinha idopara a “cidade grande” havia pouco tempo, levou a família para a cidade de Campinaspropiciando uma nova vida para todos.

Este irmão, pelo qual Severino tem grande admiração, apoiou a todos que queriamestudar, trabalhar, enfim, fazer mudar sua realidade.

Com a ajuda desse irmão, nosso personagem estudou. Terminou o colegial e ao mes-mo tempo fez curso técnico. Passou a trabalhar, a crescer...

Problemas na estrutura familiar, drogas na família, amigos que seguiram caminhosconsiderados errados. Tudo isso contribuiu para a formação do homem Severino.

Como uma novela, a história de Severino sempre tem uma emoção nova. Aos 18 anos,ele leva o pai para ao hospital. O pai tinha febre. Mal sabiam Severino e seu pai que aquiloera o resultado de um princípio de pneumonia, que, contando com a fragilidade que a idade

Apenas mais um brasileiroPaulo Rogério de Oliveira*

* Graduando em Terapia Ocupacional pela UFSCar.

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conferia ao pai, foi implacável. Aos dezoito anos, pela primeira vez sentiu a perda dealguém de quem gostava. Alguém próximo e querido.

A vida continua. Trabalhando como técnico em telecomunicações, descobriu quequeria fazer o curso de Terapia Ocupacional. Era o ano de 2000. Novamente o destinoparece jogar contra. Desistiu da idéia de fazer curso pré-vestibular e prestar o vestibular porum tempo, pois agora era a mãe que estava doente.

Alterações de comportamento, feridas no corpo, inchaço. Passou-se um ano e não sedescobria o que causava este transtorno. A irmã do meio, que era a acompanhante fiel damãe, precisou brigar com os médicos para que estes parassem simplesmente de dar remédiospara dor e sim, buscassem o motivo da mãe estar com dor. Finalmente, após quase um ano deidas e vindas e de brigar no hospital, saiu o diagnóstico: Hepatite C. O estágio da doença eraavançado e o fígado da mãe de Severino estava em mau estado. Começou agora um lutacontra um mal que não dependia só da família de nosso personagem. Era necessário umtransplante de fígado e a tentativa, agora, era de manter a saúde da mãe de Severino estávelaté que aparecesse um doador.

A família de Severino decidiu aproveitar a companhia da mãe. Após fazer valer a penatodos os momentos que passaram juntos. Após quase um ano de guerra contra a doença e deespera por doador de fígado. Após várias noites vendo sua mãe chorar. Após quase um anode medos e incertezas a mãe também se foi. Era setembro de 2002, mesmo mês em que o paimorreu, três anos antes.

A família perde seu segundo pilar fundamental e agora todos esperam quem vai ser oprimeiro a sair de casa. Não tinha mais os dois pilares que reúnem a família e a mantêmunida sob o mesmo teto.

Tentando se adaptar à nova realidade, todos procuram agora uma nova motivaçãopara continuar tocando suas vidas.

Um dos irmãos de Severino passa a incentivá-lo a fazer curso pré-vestibular e, enfim,tentar o curso de Terapia Ocupacional. Com o apoio dos irmãos, mesmo dormindo em meio àsaulas no cursinho, Severino vai em frente e presta o vestibular para entrar na universidade.

O que você, que está lendo esta história agora, imagina que aconteceu? Severinoestudou em escola pública, tem uma história de vida nada fácil, trabalhava e estudava...

Quais chances ele teria? Ele teria alguma chance?Provavelmente você pense que deu tudo errado, que ele não teria chances. Como

disse, a desesperança não fazia parte da vida da família de Severino.Hoje, Severino, no terceiro ano de Terapia Ocupacional, em uma universidade públi-

ca e gratuita, de renome, escreve esta história. O objetivo não é fazer o leitor sentir dó e simmostrar que as coisas são possíveis se quisermos.

Podemos ficar lamentando nossa vida ou usar nossa história em nosso favor. Dependeda gente. Por mais difícil que pareça é possível. O Severino que aqui escreve é prova disso...

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Aquela pernambucana veio ainda recém-nascida, já que com a morte da mãe duranteo parto e a falta de recursos do pai para criá-la, fora entregue a uma amiga da família queviria para São Paulo. Sua infância foi extremamente sofrida, trabalhando desde os cincoanos de idade, foi privada da oportunidade de estudar e por muitas vezes vitimada pelopreconceito e violência física daquela que a adotou.

Aquele pernambucano veio de uma família tipicamente nordestina na década de 1960,com índice de natalidade elevado e pobreza. Como um dos irmãos mais velhos, teve quetrabalhar desde pequeno para ajudar no sustento dos demais. Como outras milhares defamílias flageladas pela pobreza, a sua veio buscar uma vida mais digna no Sudeste, quandoele tinha dezoito anos.

O encontro deles não demorou a acontecer; e daquela amizade brotou um relaciona-mento. A vinda daquelas famílias para São Paulo, mesmo objetivando uma vida com condi-ções mais dignas, não teve os resultados esperados.

O casamento já começou com sérios problemas financeiros e uma casa muito humilde,reflexo da crise social da época e do baixo índice de escolaridade. Algum tempo depois, em1983, nascia o ser que vos fala.

Com mais uma pessoa em casa, de certo a situação econômica não melhorou a curtoprazo. Quando, ele pedreiro e ela doméstica, já não conseguiam mais arcar com o aluguel ecom as contas do mês, surgiu a “Vó Teresa”. Ela ofereceu sua casa de praia para que fôsse-mos caseiros em longínquos 1988. Essa senhora fora a avó que me havia faltado até então.Carinho, segurança, afeto e comidinhas gostosas foram coisas que não imaginava que umaavó seria capaz de nos dar. Foi ela também quem conscientizou minha mãe sobre a impor-tância da educação para o futuro do seu mais novo neto.

Essa pessoa maravilhosa não demorou muito a nos deixar, falecendo em 1991. Certa-mente, um dos momentos mais tristes da minha vida. Porém, sua lição foi seguida religiosa-mente, e por mais difíceis que fossem as situações financeira e social da família, minha mãenunca me privou do direito de estudar, além de não permitir que eu trabalhasse.

Com o passar do tempo, os problemas de alcoolismo do meu pai foram se agravando.Não foi nada fácil ver aquele habilidoso mestre de obras caindo em desgraça por causa doálcool, e sua saída de casa acabou encerrando um ciclo na minha vida, quando forçadamenteteria que amadurecer.

Sérgio Ricardo do Nascimento Neto*

Memorial

* Graduando em Engenharia Civil pela UFSCar.

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A superação desse trauma levou um bom tempo, e aos 15 anos de idade eu já me viacom obrigações de um chefe de família; gerir rendimentos e contas, manutenção de casa,planejar um futuro melhor e sustentar psicologicamente aquela mãe maravilhosa eram meusdeveres. Para um garoto nessa idade, não é nada fácil ver os amigos se divertindo e muitasvezes não acompanhá-los. Até então não havia nada mais importante que o futebol no“campinho”, as brincadeiras de “esconder”, que por infinitas vezes invadiram as madruga-das, os campeonatos de videogame e o “bets” (você sabe o que é isso?). Aos poucos, asresponsabilidades foram chegando e fui virando um mero expectador da melhor época denossas vidas. Dói saber que aquele campinho já deu lugar a um prédio, que já não é maisseguro brincar à noite e que a maioria dos nossos “sucessores no paraíso” já não sabe o queé “bets”...

O sonho de fazer faculdade, que estava adormecido pelas dificuldades, foi reavivadopelo professor Ênio, que lecionava História, um grande amigo do Ensino Médio. Estegrande sujeito mudou a mentalidade dos alunos daquela escola, mostrando-nos que a máqualidade do ensino público não era desculpa para que não lutássemos por uma vaga numauniversidade de qualidade. E assim foi, vários dos seus alunos formandos de 2001 conse-guiram ingressar em boas faculdades. Mais do que essa conscientização relativa ao vestibu-lar, o Ênio trouxe cultura à escola... visitas a museus, exposições e feiras culturais erameventos que não constavam no calendário acadêmico, e com os quais começávamos adescobrir um novo mundo... mais do que um mestre, foi, e é, um grande amigo que certa-mente estará na minha formatura!

Escolhido o destino (a paixão pela engenharia), faltava agora o caminho a percorrer.E para um aluno da escola pública paulista esse não seria nada curto e tranqüilo. A EscolaEstadual Benedito Calixto foi minha segunda casa do Ensino Fundamental ao Médio.Fomos a última turma que cumpriu todos os ciclos lá, e acabamos sendo vítimas e testemu-nhas oculares da decadência daquela que fora a melhor escola da cidade por quarenta anos.

O fim do Ensino Médio e o início da odisséia rumo à universidade coincidiram com onascimento da pequena Vitória, em 2002. Com isso, o dinheiro que estava reservado para ocurso pré-vestibular fora gasto com a saúde da minha irmã. Naquele ano, estudei por contaprópria, com livros retirados da escola, na ilusão de que aquilo seria suficiente para passarno vestibular. Triste engano... reprovação no vestibular da UFSCar, único cuja inscriçãotive recursos para pagar, e o que mais desejava.

Reconhecendo o meu esforço, em 2003 os filhos de “Vovó Teresa” financiaram umcursinho particular. Não os decepcionei e fui aprovado na UNIFEI e UFRGS1, em Engenha-ria Elétrica. Mas o grande sonho era a UFSCar, e mais uma vez não conseguira. Conforma-

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS. A história da UFRGS começa com a fundação da Escola deFarmácia e Química, em 1895 e, em seguida, da Escola de Engenharia. Assim iniciava, também, a educaçãosuperior no Rio Grande do Sul. Ainda no século XIX, foram fundadas a Faculdade de Medicina de PortoAlegre e a Faculdade de Direito em 1900. Mas somente em 28 de novembro de 1934, foi criada a Universidadede Porto Alegre. O terceiro grande momento de transformação dessa Universidade foi em 1947, quandopassou a ser denominada Universidade do Rio Grande do Sul, a URGS, incorporando as Faculdades de Direitoe de Odontologia de Pelotas e a Faculdade de Farmácia de Santa Maria. Posteriormente, essas unidades foramdesincorporadas da URGS, com a criação, da Universidade de Pelotas e da Universidade Federal de SantaMaria. Em dezembro de 1950, a Universidade foi federalizada, passando à esfera administrativa da União.[informações do site http://www.ufrgs.br, em 06 jan 2007]

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do, fui para Itajubá. Por bem ou por mal, não me contentei com um sonho pela metade e adecepção pelo fracasso em São Carlos me causou depressão, e, no fim do primeiro semestrede 2004, voltei para casa sem uma decisão sobre o que faria da vida a partir de então.

Minha mãe, como sempre, não me deixou desistir... e mais uma vez de volta ao cursi-nho, só que agora com recursos próprios e mensalidade subsidiada pelo proprietário emtroca de aulas de reforço aos demais alunos. Não havia tempo a perder, afinal já era junho de2004, portanto, chegava a estudar 18 horas por dia. Eu e mais três amigos da época docolégio formávamos um grupo de estudos diariamente. A ajuda e o companheirismo destesforam tão importantes quanto as aulas do cursinho. E a nossa vitória só seria completa setodos alcançassem seus objetivos, e de fato foi o que aconteceu. Enfim, consegui passar novestibular da UFSCar e nas outras três públicas do Estado... junto com a alegria veio umsentimento de dever cumprido, afinal foram inúmeras as dificuldades e coisas de que tiveque abrir mão para poder alcançar esse sonho... certamente poucas são as pessoas quecruzam aquela portaria todos os dias e sentem o que sinto...

Os três anos que separam o fim do Ensino Médio do ingresso na UFSCar não represen-tam um hiato na minha vida. Pelo contrário, com uma família estabilizada, pude pela pri-meira vez pensar em mim, na minha evolução pessoal, concretizei certos valores e ganheiuma irmã. Esta é a pessoa mais importante da minha vida, que vi nascer e por quem ocoração fica apertado quando diz: “– Di, estou com saudades...” ...nossos encontros sempresão regados com salada de morango, uma outra paixão desses dois irmãos.

Ah, a “Tia Lúcia”... um outro anjo na minha vida... há pessoas que vêm ao mundo paracuidar de outras... e com certeza essa pessoa tão especial veio proteger minha família.Tenho orgulho em dizer que ela representa para minha irmã o que “Vovó Teresa” fora paramim. Ela é uma das pessoas “culpadas” por hoje eu estar aqui, não só financeiramente, mastambém afetivamente, pois esteve ao nosso lado nos momentos mais difíceis.

O caminho foi árduo até aqui, e certamente será mais ainda a cada dia... cansaço,saudade, escassez de recursos são tão pequenos frente ao que aquela Maria passou na vida,que se não fosse por desejo, eu teria que continuar por gratidão a ela nessa peleja.

E por que Engenharia Civil? Por culpa do Sérgio pai... sim, desde garoto o acompa-nhava em seus trabalhos e via extasiado o que aquele homem, sem nenhum diploma, eracapaz de fazer.

Uma das melhores sensações deste período da vida são as “visitas” àquela casa de“Vovó Teresa”, onde minha família ainda mora... imagino que ela esteja feliz, afinal a sementeque plantou já está dando frutos. Voltar para casa também traz tristezas ao ver que aquelesvelhos amigos pararam no tempo e alguns, infelizmente, foram parados pelo mesmo...

Este sonho não acaba aqui e, de fato, talvez nunca acabe... no mínimo, ainda precisopendurar meu Diploma na sala da casa que eu vou construir para a Dona Maria e fazer poralguém o que “Vovó Teresa” fez por mim...

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Três meses se passaram desde o início das atividades no Conexões de Saberes. Tãopouco tempo nessa caminhada e bastantes frutos já colhidos, outros ainda por colher. Res-ponsabilidade, respeito, liderança e reconhecimento são alguns desses frutos.

Dentro deste programa de dimensões nacionais, no nosso Conexões existem duasvertentes que guiam os trabalhos, uma mais formal: reuniões para decisões administrativas,por exemplo, aquelas em que debatemos o que foi feito; como, quando e onde serão ospróximos trabalhos, etc.. A outra, menos formal, mas de igual importância e valor para obom desenvolvimento do programa como um todo, se intitula: Caminhadas, A história davida como releitura da realidade, ou simplesmente “Caminhadas”.

Dia de “Caminhadas” é dia de alegrias, de risos, de histórias e reflexões; não que osoutros não sejam, mas no “Caminhadas” é diferente, o clima, a energia que circula é outra.Já entrevistamos, pesquisamos, confeccionamos cartazes e brincamos, isso! Brincadeira decriança mesmo! Pular corda, “amarelinha”, “queimada”, pique-bandeira e outras mais.

Agora a tarefa é: Contar um pouco da nossa trajetória de vida, utilizando para tantofotografias como recurso principal.

É 1985, este é o ano, momento importante da história brasileira. Neste ano começama surgir os primeiros resultados do Movimento Diretas Já. O povo está eufórico, o Brasil estáprestes a sair de um dos episódios mais escuros da sua história. Enquanto isso, no interiormineiro, na região do Vale do Jequitinhonha, numa cidadezinha inexistente nos mapas daépoca nasciam os dois últimos integrantes da prole de um casal de lavradores, Cecílio eValdina, que agora passaria a somar nove pessoas no total.

Nasci numa cidade, mas durante sete anos o meu lar foi na zona rural. Foram temposdifíceis, porém muito felizes. Fazenda Santa Rosa, esse era o nome do lugar onde eu morava.Distante de tudo e de todos, um lugar encantador com seus córregos de água cristalina eboqueirões de densa mata, um lugar de muitas estórias e mistérios, habitada por gentesimples e encantadora. Hoje, infelizmente a fazenda está desmembrada e cercada de aramespor todos os lados, mas aquela é a Santa Rosa que guardo no fundo de minha memória, osparentes todos reunidos e felizes por fazerem parte daquele lugar, as brincadeiras, enfim,momentos de plena felicidade e contentamento.

Por época de minha estréia neste mundo, minha mãe apresentava cerca de quarenta edois anos e o meu pai já havia presenciado aproximadamente cinco décadas de intensosverões. Não sei se foi por causa da idade avançada de meus genitores ou algo do gênero, eue o Silvano, meu irmão gêmeo, tínhamos uma saúde um tanto debilitada. Devido à falta de

Driblando adversidades

Sinvaldo Martins de Souza*

* Graduando em Matemática pela UFSCar.

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médicos e um sistema de saúde ineficaz, inúmeras vezes meus pais tiveram de sair conoscoàs pressas para a cidade em busca de tratamento e medicamentos. Como diz a minha mãe,graças a Deus, muitas promessas, e mingau de puba (uma espécie de polvilho, de mandioca,mais grosso e com mais fibras), escapamos.

Como havia de ser, a vida continuou. Meus pais e irmãos trabalhavam na roça; eu, meuirmão e alguns amigos aproveitávamos a fase de infância; brincar de fazer bichinhos debarro e tomar banho no córrego era a melhor parte. Enquanto os outros trabalhavam, alguémficava em casa para cuidar da comida, geralmente minha avó Maurícia ou “Mãezinha”,como carinhosamente a chamávamos, e minhas irmãs mais novas. Naquele tempo, misturae arroz eram coisas pouco presentes em casa, no entanto isso não deixava a comida menosgostosa, pois na roça sempre se dá um jeitinho; outra coisa é que, quando se está comvontade de comer mesmo, uma simples farofa de feijão e um cortado de mamão verde é omelhor prato do mundo. Neuza e Idalice, apesar de muito novas, já eram responsáveis porpreparar o almoço para aqueles que viriam comer e levar a comida para o restante que estavatrabalhando. O momento do almoço era sempre bom, na hora de machucar o feijão (depoisde cozido, bate-se com um pilão pequeno, no caldeirão, quebrando os grãos), eu e Silvanoficávamos por perto, espiando, esperando o bolinho (de feijão machucado) que elas semprenos davam.

Como em toda família, na minha havia uma pessoa responsável por zelar por todos.Minha avó era a matriarca, já de idade avançada era a responsável por nos cuidar, na verda-de era uma coisa mútua, ela dava carinho, atenção e alguns sermões também; ela cuidava dagente e nós dela. Grande chefe foi essa vó, por longos anos ela substituiu meu avô, que,segundo ela contava, quando minha mãe ainda era criança saiu de casa e não se sabe oporquê, nunca mais voltou. Mesmo assim ela permaneceu forte, criou sozinha minha mãe ecom a pequena aposentadoria que recebia ajudou a criar e educar nove netos.

Com o passar do tempo, meus irmãos cresceram, e mesmo com pouca ou nenhumainstrução saíram para o mundo, em busca de trabalho; a casa ia ficando cada vez mais vazia,a última a sair tinha apenas quinze anos. Como era bom ver a casa cheia, como eram boas asbrincadeiras, as brigas e as histórias de meter medo que eles contavam para ficarmos quietosou irmos dormir.

Irmos à cidade era coisa rara, incontáveis vezes chorei por causa disso. Sexta-feira erao dia em que se começavam os preparos para ir à feira: procurar os animais de carga eprendê-los durante o dia e de noite arrumar a carga de goma, milho, feijão ou farinha demandioca feita durante a semana, para, no sábado de madrugada, antes do sol aparecer,partir rumo à cidade para vender as coisas e trazer óleo, açúcar, arroz, sal e, caso sobrassealgum dinheiro, chinelo ou camisa.

Sábado à tarde era sempre um momento de grande expectativa, será que teria algumbrinquedo ou presente? Quais as novidades da cidade? Se algum de nós (crianças) fosse, eraobrigação contar para os outros os mínimos detalhes da viagem. Se após o retorno notásse-mos algum embrulho diferente, a curiosidade e a expectativa aumentavam mais ainda.Quando havia alguma coisa, era uma alegria tremenda, caso contrário, ficávamos emburra-dos, fazíamos pirraça e íamos dormir mais cedo. No outro dia, já havíamos esquecido tudoe retornávamos à arte de brincar.

O tempo estava passando, a cada dia as preocupações aumentavam, não as minhas,mesmo porque isso ainda não era da minha alçada; mas era dos meus pais, especialmente daminha mãe.

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Em 1992, completaríamos em junho sete anos. Era chegada a hora de ir para a escola,contudo esse não era o único problema que atormentava os adultos. Naquela época, nãoexistia nenhuma instituição de ensino onde morávamos. Talvez por sermos os últimos,minha mãe se preocupava mais e tinha consciência de que, diferentemente dos outros,teríamos de estudar. Uma grande ruptura estava por acontecer, precisaríamos ir para a cida-de, enquanto as questões iam e voltavam: Onde morar? Como conseguir o sustento, odinheiro do material escolar?

Então, inevitavelmente, mais uma vez a família foi dividida, eu, meu irmão, e nossamãe fomos para a zona urbana, enquanto meu pai e minha avó ficaram no campo. A princí-pio íamos e voltávamos todos os dias. Conforme nos acostumávamos, essa jornada se torna-va menos freqüente. Mãe começou a trabalhar, na meia (divisão da colheita, metade para oproprietário da terra, metade para o trabalhador), numa fazenda em torno da cidade. Nessemeio tempo, meus irmãos se juntaram e compraram uma casinha para ela e meu pai, o qualia sempre aos finais de semana levar algumas coisas para vender na feira.

Meu primeiro dia de aula foi um misto de vergonha, ansiedade e medo, sempre davaaquele friozinho na barriga, coisas típicas que precedem qualquer experiência nova. Uma fro-nha de travesseiro amarelo-mostarda funcionou como nossa primeira bolsa para levar o material,eu segurava numa ponta, meu irmão na outra e lá íamos para a escola. Morríamos de vergonha.

Tudo era diferente, havia muito barulho, a professora falava alto, não via a hora de irpra casa. Nessa fase, conheci aqueles que viriam a ser os meus melhores amigos, amigos deinfância. Com eles, aprendi a jogar futebol, andar de bicicleta, bastão e tantas outras coisas.Mas também tive minhas primeiras brigas fora de casa.

Cada série que se iniciava era um friozinho na barriga, o maior deles ocorreu quandome disseram que na quinta série teríamos no mínimo cinco professores diferentes.

Muita coisa se transformou nesses cinco anos que se passaram, minha avó veiomorar conosco e um outro irmão voltara de São Paulo para morar conosco também. Mãe-zinha teve um derrame cerebral e ficou paralítica, e meu irmão que voltara de São Pauloestava tendo problemas relacionados ao álcool. Para piorar, meus pais que bebiam umpouco começaram a exagerar nas doses. Em alguns dias, a situação ficava insuportável,minha vontade era a de ficar mais na rua e com os amigos que em casa. A falta de paciênciade minha mãe para com a minha avó e a de meu pai para com o meu irmão e a poucacomida em casa tornavam o clima pesado, tudo isso me incomodava muito. Apesar detudo, em nenhum instante eles deixaram de cumprir as obrigações como pais de família.Aos poucos, as coisas voltaram ao normal, reconheciam que essa situação não era nadasaudável para uma boa convivência familiar, minha mãe conseguiu reconhecer a suaresponsabilidade e novo desafio de cuidar da minha avó. Pai ainda não chegou a essenível, mas está tentando.

Passadas essas turbulências, as coisas corriam bem até que, em junho de 1998, numamanhã após festas juninas, acordo com minha mãe chorando muito e várias pessoas emcasa, logo fiquei sabendo que Mãezinha amanhecera muito mal. Entre uma conversa eoutra, ouço meu pai dizendo que desta, provavelmente, ela não passaria. Na manhã do diaseguinte, veio a notícia: ela havia falecido. Considero esta como uma das situações maistristes já vivenciadas em toda a minha história, um vazio inefável tomou conta de meu sere, mais tarde, da casa por inteiro. Um ano depois a dor continuava, hoje ainda existe umalacuna causada por esta imensa perda que o tempo tornou suportável.

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Entre altos e baixos a vida continuou. Em 2001, iniciei o ensino médio, em questão detrês anos terminaria os estudos. Nesse intervalo de tempo, a preocupação de minha mãe já eravisível, ela previa e temia este momento, pois sabia que um lugar com poucas oportunidadescomo era Fronteira dos Vales não nos seguraria por muito tempo. Eu também me preocupavabastante, no último ano levava horas para dormir, pensando em que fazer após o término dosestudos, ir ou não embora, deixar meus pais sozinhos. A parte emocional falava alto, masobedeci à razão, ela me dizia que, apesar de todas as variáveis, o melhor seria partir.

Acabados os estudos, surgiu uma oportunidade. Meu pai precisaria fazer algunstratamentos em São Paulo, eu logo me ofereci pra ser o seu acompanhante. Foi fácilconvencê-los, pois ele não sabe ler nem escrever. Ficou combinado assim; aliás, eu com-binei comigo mesmo, se surgisse alguma coisa, ou seja, um emprego, eu ficaria, casocontrário, não. Acabei quebrando este contrato.

Em 2004, chegamos a São Paulo. Um mês depois, pai estava voltando sem a minhapresença.

Instalei-me na casa de uma irmã e imediatamente comecei a procurar por emprego.Saía pelo menos duas vezes por semana nessa busca, com uma pasta debaixo do braço e aesperança de conseguir ao menos uma entrevista, o que dificilmente ocorria. Caminhavao dia todo. No final da tarde, voltava para casa exaurido, o pouco dinheiro que eu conse-guia no trabalho informal guardava para necessidades urgentes, por este motivo nãogastava com transporte.

Eu me sentia super desconfortável por depender de outros ainda que fosse de parentes.Então tomei uma sábia decisão; voltar a estudar. Sem condições de pagar um curso pré-vestibular, comecei a estudar por conta própria com o pouco material que eu trouxe e outrosemprestados. Minha rotina era procurar trabalho durante o dia e à noite estudar. Meses sepassaram até eu conseguir me inscrever para participar de um curso pré-vestibular popular,do MSU, Movimento dos Sem Universidade. No cursinho, as aulas funcionavam sábado odia todo e domingo de manhã.

Final de 2005 foi um período de atividade intensa, finalmente consegui emprego emuma lanchonete. Estava feliz da vida, a remuneração era pouca, mas, com as latinhas derefrigerante que eu levava e vendia, dava pra tirar um dinheirinho. Ia para o serviço, chega-va meia-noite, estudava até as 3h da manhã, acordava às 8h, estudava até as 3h da tarde,depois ia trabalhar novamente. Uma rotina inalterada de segunda a segunda.

Os vestibulares chegaram, como havia prometido pra mim mesmo, prestei somentepara as universidades onde consegui isenção da taxa, ainda que sem muita confiança. Dosquatro vestibulares, consegui passar em um, justamente naquele que mais desejava, o ves-tibular da Universidade Federal de São Carlos.

Vi o resultado na Internet, num telecentro de São Paulo. Mesmo sendo uma sexta-feirachuvosa, não hesitei, subi um escadão correndo e cantando. Cheguei em casa ofegante etodo molhado. Dei a boa notícia, mas não acreditaram muito. Imediatamente, comecei aarrumar as malas e a montar os planos, só assim a “ficha caiu”, a minha e deles, assim, todosse convenceram do que eu disse. No dia da matrícula, vim “de mala e cuia”, dessa maneiracheguei à Universidade e no Conexões.

Ano de 2006, há dois anos e meio estou longe de casa, mal posso esperar para voltar erever todo mundo. Mãe, Pai e os amigos, sentir como é bom estar novamente em minhapequena, maravilhosa e aconchegante Fronteira dos Vales-MG.

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Bom, vou contar a história de Symone, uma garota que desde pequena, sempre teveque ser muito independente pela ausência dos pais. Eles nem eram casados e ela nasceu emSão Paulo, Capital, onde moravam na época. Depois de três anos, pela primeira vez, foimadrinha de honra, mas foi de seus pais, que haviam resolvido se casar.

Seus pais sempre trabalhavam muito, e como não tinha quem tomasse conta dela,ficava todas as tardes sozinha no apartamento com apenas 5 anos. Quando ela tinha 6anos, sua mãe engravidou de seu irmão e logo houve a morte de seu avô. Seu pai,inconformado, resolveu se mudar com a família para a cidade de Santa Cruz do Rio Pardo-SP, para a revolta de Symone, que nunca concordou, pois achava que ele deveria sepreocupar com o futuro de seus filhos, mas ele queria ficar mais perto da avó, que agoraestava sozinha.

Nada mudou para Symone, pois sua mãe teve que correr atrás do tempo perdido,estudar, trabalhar, e seu pai, exercendo a função de militar e açougueiro, e ambos ficandofora o dia todo. Como ainda tinha irmãozinho (Ricardo), era ela própria que cuidava dacasa, com apenas 7 anos. Mas sempre Symone e o irmão ficavam na casa de sua avó, que osdeixava livres para brincar o dia todo na rua, de pega-pega, esconde-esconde, vôlei etc.; ecomo toda avó adora fazer todos os gostos dos netos, ela fazia muito bolo de chocolate,brigadeiro, lasanha, nhoque para que eles não sentissem tanto a falta dos pais.

E assim foram crescendo, vendo cada dia mais seus pais se endividarem, cada vez maiscontas para pagar, menos comida dentro de casa e muito menos lazer. No dia primeiro dejaneiro de 1997, o pai de Symone enfartou, mesmo problema pelo qual havia perdido o avô.Foi um ano inteiro de muita luta, correria pela sobrevivência de seu pai. Depois de quatropontes de safena e pai curado, devagar suas vidas foram retornando ao que era antes, mascom cuidados especiais para com ele.

Symone sempre teve excelentes amigos que marcaram sua vida em Santa Cruz comoPaulinha, Viviane, Rosilene e Eder, que estão presentes até hoje em sua vida. Symoneestudou toda sua vida em escola pública, terminando o Ensino Médio e tendo a certeza deque teria que trabalhar para pagar um curso pré-vestibular para si, pois seus pais deviampara Bancos e para quase toda a cidade. Pois bem, ela trabalhou muito, foi exploradaganhando um salário baixo, mas fazendo de tudo para pagar o cursinho, e sua mãe sempreque podia a ajudava, enquanto seu pai nunca se importava e falava que Symone estava eraperdendo tempo e que nunca conseguiria. Com a negatividade do pai, ela se sentiu muito

Uma senhora históriaSymone Mattos Cremonini*

* Graduanda em Matemática pela UFSCar.

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forte para mostrar que podia conseguir tudo o que ela queria, sem depender de ninguém anão ser dela mesma. Passou na FAFIJA1 em 2002 em Jacarezinho-PR, e lá foi começar a seenvolver na matemática, ainda trabalhando para pagar as despesas de sua casa e ônibus quea levava todos os dias para a faculdade.

Passados dois anos, seu pai começou a brigar demais dentro de casa, e era irritante suapresença. Por ele ter se aposentado por invalidez, devido ao infarto, ele estorvava a todoscom sua intromissão, sempre querendo colocar todos para baixo e dizendo que seus filhosjamais seriam melhores que ele. Até que um dia, Symone saiu com seu namorado e amigos,e ela viu seu pai com outra mulher, com outra família, enquanto isso, sua mãe trabalhandopara ajudá-lo a pagar as infinitas dívidas feitas. Foi aí que entenderam o porquê nada dentroda casa ia para frente, nunca conseguiram trocar o carro, nunca havia dinheiro, nunca haviamuita fartura de comida. Foi uma imensa revolta e desencanto que sentiam todos da famíliade Symone pelo seu pai, enquanto que sua mãe quase entrou em depressão de tanto quechorava se sentindo culpada por tudo que havia ocorrido.

Symone não agüentava mais, a faculdade fraca, o curso sendo oferecido somentecomo licenciatura e ela querendo se formar no bacharelado também; era explorada demaisno trabalho, não sendo registrada em quatro anos de serviço; dentro de sua casa, tudoacontecendo e ela aconselhando sua mãe, e a própria nunca a escutando, achando que eraculpada por todas as safadezas de seu marido. Symone não agüentava mais a falta de opor-tunidade e resolveu correr atrás de um futuro melhor, onde pudesse ser mais independentee cuidar de verdade de sua vida.

Resolveu então correr atrás da transferência para a Universidade Federal de São Carlosno mesmo curso que já fazia e pelo qual havia se apaixonado, que é Matemática, e aquelaera a única universidade dentro do Estado de São Paulo que oferecia a opção de bacharela-do. Foi para São Carlos escondida de todos, pois em Santa Cruz todos eram contra, achandoque Symone estaria perdendo tempo. Ela, muito confiante, foi do mesmo jeito levar docu-mentos para participar do processo de seleção que ocorreria somente em dois dias. O únicoque apoiou foi seu amigo de infância, Eder, que sempre ajudou muito. Ele havia se mudadopara lá e já estava fazendo o curso de Engenharia da Computação. Ela, tentando fazer tudoescondido, perdeu diversos ônibus, teve que ficar na rodoviária de Bauru a noite toda epegar ônibus para Santa Cruz só no outro dia. Houve algumas brigas, quase um fim denamoro, mas logo os mal-entendidos foram esclarecidos, e tudo voltou ao normal, e agoraera esperar três meses para o grande sonho se realizar.

Até que um dia, na Internet, saiu o primeiro resultado e Symone não havia conseguidoentrar, havendo somente uma pessoa à sua frente na lista, mas ainda haveria segunda cha-mada. Mas ela, sem esperança nenhuma, começou a chorar e ficar muito deprimida, poistodos seus sonhos, toda sua vida mudaria a partir do momento que mudasse de cidade e asituação dentro de sua casa cada vez mais insustentável, seu pai jogando em sua cara tudoo que ele havia dado, querendo que ela saísse de casa, querendo se livrar dela de qualquerforma, sendo que era seu pai o que menos contribuía dentro da casa deles, e Symone cadavez mais se endividando, pois se sentia na obrigação de ajudar sua mãe, que era quem maissofria com tudo.

1 Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho-PR.

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Logo chegou o dia da segunda chamada e a “sem-esperança” olha na Internet e vê seunome classificado na lista, ela havia passado, agora iria mudar para São Carlos; tudo seriacomo ela havia sonhado, programado; seriam novos problemas, mas que dependeriam delae de mais ninguém. E agora, não haveria mais ninguém jogando nada em sua cara, agora, elanão iria mais morar em Santa Cruz, seria simplesmente uma visita.

Hoje, Symone mora no alojamento da UFSCar, é bolsista no restaurante universitárioe participa de um excelente programa chamado Conexões de Saberes, e, além de aprendermuito dando aulas em cursinho, fazendo projetos de extensão e ganhando uma bolsa porseu trabalho, tornou-se totalmente independente, morando fora, tendo sua vida como sem-pre quis, cuidando de seus próprios problemas e da sua vida. E, tomando esse rumo, arru-mou diversos amigos que sempre a ajudam muito: Edgar, Deizieli, Daniel (Véio) sempreforam excelentes amigos, motivadores e lutadores, e ela pode sempre contar com eles paratudo que precisa.

O pai de Symone fica muito orgulhoso de ver seus filhos bem, pois Ricardo (irmão deSymone), hoje com 18 anos, faz o Curso de Farmácia em Curitiba no qual ele conseguiuingressar pelo ProUni e está sendo independente como ela. Não que o pai tivesse contribu-ído estimulando-os, dando força e apoio, mas com a revolta que ele colocou em seus filhospara que fossem melhores que ele e dessem a vida que sua mãe sempre mereceu, melhor doque a que ele dava a ela. A mãe de Symone ficou feliz com o rumo que seus filhos tomaram,mas ao mesmo tempo se sente muito sozinha. Mesmo assim, ela continua sendo uma dasmais incentivadoras e sonhadoras, sempre querendo o melhor para seus filhos e sempreajudando muito.

Essa história mostra que tudo é possível quando se quer alguma coisa e que tudodepende da gente; se não estamos felizes com algo, somente nós podemos mudar.

Eu, Symone, sou muito feliz por tudo o que ocorreu, dou muito valor à minha vida ea tudo que conquistei e não vou desistir de lutar mesmo sabendo que haverá diversasdificuldades ainda por vir. E essa, para mim, é uma senhora história...

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Nasci em Jaboticabal, no dia 22 de março de 1984. Cresci junto aos meus pais, e avósque, muitas vezes, fizeram o papel de pai e mãe, cuidando de mim e de meus três irmãosenquanto meus pais trabalhavam.

Aos dois anos de idade comecei ir à escola, acompanhando meus irmãos mais velhos,não queria ficar sozinho em casa. Naquela época não tinha maternal, então fiz o jardim e opré precocemente. Quando terminamos o “prézinho” meus irmãos tiveram que mudar deescola, mas eu não pude, pois só tinha três anos. Depois não quis ir sozinho à escola, só comcinco anos eu voltei a estudar, fazendo novamente o jardim e a pré-escola.

Durante minha infância tive vários amigos, brincava a tarde toda na rua com eles.Várias brincadeiras que dificilmente se vê as crianças de hoje em dia brincando.

Não tive muitas regalias, mas meus pais sempre trabalharam para nos criar da melhorforma possível, abdicando muitas vezes dos seus sonhos em prol dos nossos. Eu os admiroeternamente.

O ensino fundamental fiz inteiramente no SESI2, conheci outros amigos, mas hoje sómantenho contato com um, Breno, que já conhecia praticamente desde que nasci, poisnossos pais são amigos de longos tempos.

Aos catorze anos comecei a trabalhar de cobrador de Tele-mensagens. Ia à escola demanhã e trabalhava a tarde toda.

Em 1999 tive que mudar de escola para fazer o ensino médio. Foi o pior ano da minhavida. Não conhecia ninguém da sala e eles não fizeram questão de me conhecer também.Sentei na primeira carteira e quase não falava com ninguém, me julgaram como o CDF daturma, até os mais “nerds” não me curtiam. A maioria já estudava junto desde a primeirasérie, eu era um intruso na turma.

No segundo colegial as coisas mudaram, sentei no meio da sala e comecei a trocaridéias com o pessoal, e eles viram que eu era uma pessoa simples, legal e amiga; foi nessa

Tiago Yamazaki Andrade*

É muito melhor arriscar coisas grandiosas,alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-sea derrota, do que formar fila com os pobres deespírito que nem gozam muito nem sofremmuito, porque vivem nessa penumbra cinzentaque não conhece vitória nem derrota. Theodore Roosevelt1

* Graduando em Ciências Biológicas pela UFSCar.1 http://www.fraseseternas.com.br/frases.asp?Theodore-Roosevelt2 SESI - Serviço Social da Indústria

Memorial

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época que fiz minhas grandes amizades que tenho até hoje. Fizemos a melhor viajem daminha vida. Juntamos dinheiro durante o ano, vendemos rifa, e em outubro fomos praPiúma - ES, ficamos uma semana na praia, curtindo o máximo.

Hoje todos esses amigos estão estudando em cidades distantes. Em 2001 perdemosum grande amigo, Vinicius, que morreu num acidente de carro, com apenas dezoito anos deidade: foi chocante e marcou a vida de todos nós.

Quando estava no terceiro colegial comecei a fazer o cursinho comunitário da UNESP,conheci meus grandes amigos, Vitor, Luiz, ambos atualmente em Londrina fazendo faculda-de, também conheci grandes amigas como a Lú e Silvar, que me apoiaram em vários mo-mentos da minha vida. Embora tenha pouco contato com meus amigos atualmente, tenhoum carinho imenso por eles.

Em 2002, consegui uma bolsa de estudo e fiz cursinho no Anglo, foi nessa época queconheci minha atual namorada, Fernanda, que já estudava veterinária numa universidadepública, o que fez aumentar ainda mais a vontade de entrar numa universidade.

No meio do ano de 2003 passei em Ciências Biológicas nas Universidades Federais deLavras e de Ouro Preto-MG.

Fui para Ouro Preto, onde fique por um ano e meio. Foram os melhores anos da minhavida, aprendi muito na república estudantil. Morávamos em 17 na Republica Federal UnidosPor Acaso (UPA). Aprendi obedecer regras, hierarquia, consertar-me e mais um monte decoisas. Os trotes foram pesados, mas tinha toda uma tradição por traz disso. Tomei váriosventos (roupas jogadas por toda a parte) na minha batalha por uma vaga na UPA, muitaspingas, e além disso encontrei muitas vezes minha cama em cima da árvore ou sobre o pontode ônibus. Eram mais três que batalhavam vagas comigo, Maguila, K-tinga, Beiçola e eu(Seborréia – esse era meu nome lá). Éramos uma família, cada um ajudava o outro. Emboramorássemos com muitos, dificilmente acontecia algum rolo. Também tinha nossa mãe deOuro Preto, a velha Dona Tereza, que trabalha na república há 20 anos, uma mãezonha mesmo.

Em 2005 transferi-me para a Universidade Federal de São Carlos. De inicio fui morarnuma república, foi uma droga, não me adaptei. Depois fui para o alojamento estudantil daFederal, daí as coisas mudaram. Encontrei o Bloco 36, depois de um período conturbado, ascoisas foram ficando melhores e agente foi se dando super bem. Hoje somos como irmãos.Principalmente meus irmãos do “quarto C”, Corvo e Mineiro, que considero demais. Nosdamos super bem.

Meu prato preferido é panqueca. Não sei o por quê, mas é uma paixão incondicional!Lembro que desde criança ficava insistindo para minha mãe fazer essa maravilha quasetodos os dias, porém, ela só fazia de vez em quando pois nem todo mundo em casa era fã depanqueca. Outra coisa que comia todos os dias era pastel. Meu café da manhã era “supersaudável” pastel com leite e café todos os dias, não era à toa que fui uma criança obesa. Atéque chegou uma época que minha mãe impediu o dono do bar, que era meu tio, de vender-me pastel. Foi uma tristeza, mas foi bom para minha saúde. Com catorze anos eu mudeimeus hábitos alimentares e comecei a emagrecer, até chegar nesse “corpinho” que tenhohoje. Aprendi muito sobre culinária com minha mãe, hoje faço vários pratos e gosto decozinhar, gosto tanto que se não tivesse fazendo biologia, que é minha paixão, fariagastronomia.

Estou aprendendo muito com o Programa Conexões de Saberes, mudei várias concep-ções e pré-julgamentos que tinha por alguns assuntos. Espero que consigamos realizar os

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objetivos do programa que são aprimorar a formação dos estudantes como pesquisadores,democratizar o acesso ao ensino superior e garantir a permanência dos universitários deorigem popular e implementar projetos junto a grupos socialmente vulneráveis.

Palavras sozinhas não mudam nada, atitudes podem mover montanhas.

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