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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO NATÁLIA ESTHER BENEVIDES DE ABREU PARÂMETROS PARA A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA FORTALEZA 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A desconsideração do Direito Civil..... A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA ... objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

NATÁLIA ESTHER BENEVIDES DE ABREU

PARÂMETROS PARA A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE

JURÍDICA

FORTALEZA

2013

NATÁLIA ESTHER BENEVIDES DE ABREU

PARÂMETROS PARA A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PESSOA JURÍDICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito

da Universidade Federal do Ceará, como

requisito parcial à obtenção do título de

Bacharela em Direito.

Orientador: Prof. M.Sc. William Paiva

Marques Júnior.

FORTALEZA

2013

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

A162p Abreu, Natália Esther Benevides de.

Parâmetros para a desconsideração inversa da personalidade jurídica / Natália Esther

Benevides de Abreu. – 2013.

56 f. : enc. ; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito,

Curso de Direito, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Direito Empresarial e Direito Civil.

Orientação: Prof. Me. William Paiva Marques Júnior.

1. Desconsideração da personalidade jurídica - Brasil. 2. Direito empresarial. 3.

Sociedades comerciais - Brasil. I. Marques Júnior, William Paiva (orient.). II.

Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.

CDD 347.72

NATÁLIA ESTHER BENEVIDES DE ABREU

PARÂMETROS PARA A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE

JURÍDICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito

da Universidade Federal do Ceará, como

requisito parcial à obtenção do título de

Bacharela em Direito.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof. M.Sc. William Paiva Marques Júnior (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Professor Francisco de Araújo Macedo Filho

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Mestrando Álisson José Maia Melo

Universidade Federal do Ceará (UFC)

Aos meus pais, exemplos de vida e educação.

À Isabella, luz de nossas vidas.

AGRADECIMENTO

Primeiramente, agradeço a Deus por ter me dado forças o tempo inteiro para

carregar tudo aquilo que eu já nem acreditava mais conseguir, por ter chegado aqui.

Agradeço à minha mãe, Fernanda, primeiramente, que nunca deixou de acreditar

em mim, e que, juntamente com meus pai e irmão, José e Victor, sempre que necessário,

fizeram colossais esforços para me possibilitar prosseguir neste e nos demais projetos da

minha vida.

Agradeço a Marília, irmã, pela presença, apoio, amor e amizade constantes,

mesmo à distância, e pelo maior presente que ganhei na vida: a Isabella.

À minha família Abreu pelo amor e torcida tão sinceros.

Aos amigos de uma vida, que estiveram ao meu lado em tantas fases distintas,

sempre apoiando.

Aos colegas da turma de graduação, que fizeram dos meus cinco anos de

faculdade tão felizes.

A Ana Beatriz, Caroline, Danielle, Renata e Diego, pela amizade tão especial, de

conversas, desabafos, ombros amigos e conquistas coletivas, os maiores presentes que a

Faculdade de Direito me propiciou.

Ao Professor William, pela competência, compromisso e excelente orientação,

que muito me ensinou e que fez nascer em mim o gosto pela pesquisa.

Aos membros da banca, Álisson e Professor Macedo, por terem aceitado o convite

e pela contribuição de grande valia a esta pesquisa.

RESUMO

Esta monografia discorre acerca da desconsideração da personalidade jurídica inversa.

Investiga como se aplica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica inversa no

Brasil. Para tanto, apresenta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a

qual o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica pode ser episodicamente

afastado nos casos de abuso da personalidade jurídica. Apresenta a evolução histórica da

disregard doctrine. Examina a aplicação da teoria da desconsideração no ordenamento

jurídico brasileiro e da desconsideração inversa (não prevista em lei), face ao princípio da

autonomia patrimonial. Apresenta o posicionamento doutrinário e jurisprudencial acerca da

aplicação da desconsideração inversa.

Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica. Direito Empresarial.

Desconsideração da personalidade jurídica inversa.

ABSTRACT

This monograph discusses about the reverse piercing the corporate veil. It presents the theory

of piercing the corporate veil, according to which the principle of patrimonial autonomy of

firm can be episodically kept away in cases of abuse of legal personality. This task presents

the historical evolution of disregard doctrine. It also examines the application of the disregard

doctrine according to Brazilian legal system, and the reverse piercing the corporate veil

(which isn’t prescribed by law), against the principle of patrimonial autonomy. It presents the

positioning doctrinal and jurisprudential about the application of reverse pirce doctrine.

Keywords: Piercing the corporate veil. Business law. Reverse disregard entity theory.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.....................

10

1.1 Escorço histórico............................................................................................... 11

1.2 Direito comparado............................................................................................ 14

1.3 Conceituação jurídica da disregard doctrine................................................... 16

1.3.1

1.3.2

1.3.3

1.4

2

Princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica..................................

A Teoria da desconsideração: conceito.............................................................

A teoria ultra vires societatis..............................................................................

Correntes doutrinárias: a teoria maior vs. a teoria menor..............................

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.............................................

16

20

23

25

29

2.1 A desconsideração do Direito Tributário…......…………………………….. 32

2.2

2.3

2.4

3

3.1

A desconsideração do Direito do Consumidor, no Direito Econômico e no

Direito Ambiental..............................................................................................

A desconsideração do Direito do Trabalho.....................................................

A desconsideração do Direito Civil..................................................................

A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA.............................................................

A aplicação no Direito de Família....................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................

33

37

39

43

47

51

54

INTRODUÇÃO

No plano do Direito Societário, desde muito cedo percebeu-se a possibilidade de

utilizar-se da personalidade jurídica para a prática de atos ilícitos ou fraudatórios, lesando

terceiros em benefício próprio. Todavia, a utilização ilícita ou fraudatória da personalidade

jurídica não poderia jamais merecer a acolhida do Direito, razão pela qual se desenvolveu a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica é de interesse contemporâneo não só

para os operadores do Direito, mas para a comunidade empresarial, com seus interesses

voltados para a questão da responsabilidade societária, em particular, com enfoque para as

quebras da autonomia absoluta do patrimônio da sociedade em relação ao patrimônio

particular dos sócios.

Também se pode aplicar a desconsideração de maneira invertida, apesar de não

positivada, afastando o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para

responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.

A presente monografia tem como desígnio discorrer acerca da desconsideração da

personalidade jurídica inversa e sua aplicação.

O capítulo primeiro busca traçar aspectos importantes da desconsideração da

personalidade jurídica, discorrendo, inicialmente, acerca do histórico da disregard doctrine,

chegando à elaboração do seu conceito, levando em conta a autonomia patrimonial da pessoa

jurídica, por ser elemento imprescindível para a aplicação da teoria da desconsideração,

observando a incidência da teoria maior e da teoria menor.

O capítulo segundo tem como objetivo primordial elencar os pressupostos

necessários à desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro,

considerando possibilidades de aplicação no Direito Tributário, no Direito do Consumidor, no

Direito Econômico, no Direito Ambiental e no Direito do Trabalho, chegando ao Direito

Civil.

O capítulo terceiro toma como base os conceitos dos capítulos anteriores para

abordar o cerne da presente monografia, qual seja: a desconsideração inversa, analisando-se

os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais quanto à sua aplicabilidade. Nesse tópico,

apresentam-se as hipóteses de aplicação no Direito de Família.

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DA TEORIA DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

No plano do Direito Societário, muito cedo alguns perceberam que poderiam

utilizar-se da personalidade jurídica para a prática de atos ilícitos ou fraudatórios, lesando

terceiros em benefício próprio. Tal percepção foi aguçada quando o Estado, para promover o

desenvolvimento público, estimulou o investimento em atividades lucrativas, por meio da

criação de hipóteses de limite de responsabilidade entre as obrigações da sociedade e as

obrigações dos sócios, possibilitando a preservação do patrimônio deles, que, em

determinadas circunstâncias, não mais seriam chamados a responder, subsidiária ou

solidariamente, pelas obrigações sociais.1

“A utilização ilícita ou fraudatória da personalidade jurídica não poderia jamais

merecer a acolhida do Direito, razão pela qual se desenvolveu na doutrina estrangeira a

chamada Doctrine of disregard of legal entity”. 2

Sobre o instituto, Rubens Requião3 assevera:

[...] a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente

objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica,

em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de

ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos,

prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos.

O objetivo da doutrina é adentrar na essência da sociedade, afastar a

personalidade jurídica, para alcançar a responsabilidade do sócio. Há de se esclarecer,

contudo, que não se trata de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la

ineficaz para determinados atos. 4

1 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e Empresárias.

4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas, 2010, p. 234. 2 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e Empresárias.

4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas, 2010, p. 234. 3 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais.

São Paulo. v. 410. ano 58, dez. 1969, p. 14. 4 “A aplicação da teoria da desconsideração não implica a anulação ou o desfazimento do ato constitutivo da

sociedade empresária, mas apenas a sua ineficácia episódica”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito

Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 43).

1.1 Escorço histórico

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem delineada

no âmbito da common Law 5, principalmente a partir de precedentes jurisprudenciais ingleses

e norte-americanos.6

A sistematização da teoria, formulada no âmbito do direito anglo-saxão7, trata-se

de uma elaboração recente da dogmática jurídica; ocorreu, pela primeira vez, com Rolf

Serick, em monografia com a qual conquistou o título de Privat Dozent pela Universidade de

Tübigen, no semestre letivo de 1952-1953, e as primeiras referências ao assunto podem ser

encontradas na obra Piercing the Veil of Corporate Entity, datada de 1912, de autoria do

jurista norte-americano Maurice Wormser.8

Conforme aponta Rubens Requião9, a doutrina foi profundamente estudada pelo

Professor Rolf Serick, da Faculdade de Direito da Universidade de Heidelberg, cuja tese

repercutiu intensamente na Itália e na Espanha:

Mesmo nos países em que se reconhece a personalidade jurídica apenas às

sociedades de capitais surgiu, não há muito, uma doutrina que visa, em certos casos, a desconsiderar a personalidade jurídica, isto é, não considerar os efeitos da

personificação, para atingir a responsabilidade dos sócios. Por isso também é

conhecida como Doutrina da Penetração. Esboçada nas jurisprudências inglesa e

norte-americana, é conhecida no direito comercial como a doutrina do Disregard of

Legal Entity. Na Alemanha surgiu uma tese apresentada pelo Prof. Rolf Serick, da

Faculdade de Direito da Universidade de Heidelberg, que estuda profundamente a

doutrina, tese essa que adquiriu notoriedade causando forte influência na Itália e na

Espanha. Seu título, traduzido pelo Prof. Antonio Polo, de Barcelona, é bem

significativo: “Aparencia y Realidad em las Sociedades Mercantiles – El abuso de

derecho por meio de La persona jurídica”. Pretende a doutrina penetrar no âmago da

sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e

vincular a responsabilidade do sócio. Não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas

de torná-la ineficaz para determinados atos. [grifos no original]

5 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os

grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 67. 6 “O instituto da penetração da pessoa jurídica foi concebido a partir da Common Law, sistema jurídico que tem

na jurisprudência a principal fonte do Direito, onde o juiz faz a lei (judge made law), adotado na Inglaterra e nos

Estados Unidos. Difere da nossa tradição jurídica, influenciada pelo sistema romano-germânico, mais baseado no direito positivo, em que o juiz julga basicamente com respaldo nas leis. Por essa razão nosso sistema tem

dificuldade em assimilar esta doutrina. Afinal, a lei prescreve a autonomia da pessoa jurídica e lhe limita

responsabilidades, não avançando no patrimônio particular dos sócios.” (KOCH, Deonísio. Desconsideração da

personalidade jurídica nas organizações, p. 64-65) 7 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p 447. 8 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

p. 9. 9 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p 448.

No que diz respeito a precisar, exatamente, qual a decisão mais antiga sobre a

matéria, não se pode afirmar que há unanimidade entre os doutrinadores10

. Enquanto Suzy

Koury11

defende que a decisão mais antiga tenha sido aquela relatada no caso Bank of United

States vs. Deveaux, proferida pelo juiz Marshall nos Estados Unidos da América, Rubens

Requião 12

alude ao julgado Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., referente ao direito inglês -

posicionamento também adotado por André Ramos13

, o qual afirma ser este o caso pioneiro

acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Assevera Suzy Koury14

que, em 1809, na decisão do caso Bank of United States

vs. Deveaux, as cortes levantaram o véu da personalidade jurídica e consideraram as

características individuais dos sócios. No entanto, a decisão foi repudiada por toda a doutrina

à época.

Goza de maior notoriedade o caso inglês Salomon vs. Salomon & Co. Ltd.,

julgado em Londres em 1897, cuja sentença de primeiro grau é considerada pela doutrina

comercialista a grande precursora da disregard doctrine:15

16

A disregard doctrine é fruto de construção jurisprudencial, notadamente a

jurisprudência inglesa e a norte-americana. Com efeito, a doutrina comercialista

aponta que o caso pioneiro acerca da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica ocorreu na Inglaterra, em 1897. Trata-se do caso Salomon vs Salomon & Co.

Ltd., [...]

No caso em referência, a sentença de 1º grau entendeu pela possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da Salomon & Co. Ltd., após reconhecer

que o Mr. Salomon tinha, na verdade, o total controle societário sobre a sociedade,

não se justificando a separação patrimonial entre ele e a pessoa jurídica. Essa

10 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p 42. 11 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 67. 12

REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p 448. 13 “Com efeito, a doutrina comercialista aponta que o caso pioneiro acerca da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica ocorreu na Inglaterra, em 1897. Trata-se do caso Salomon vs Salomon & Co. Ltd. [...]”.

(RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 324). 14 “Com efeito, no ano de 1809, no caso Bank of United States vs. Deveaux, o juiz Marshall, com a intenção de

preservar a jurisdição das cortes federais sobre as corporations, já que a Constituição Federal americana, no seu

artigo 3º, seção 2ª, limita-a às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados, conheceu da causa.

Como bem assinala WORMSER, não cabe aqui discutir a decisão em si, a qual foi, na verdade, repudiada por

toda a doutrina, e sim ressaltar o fato de que, já em 1809 ‘... as cortes levantaram o véu e consideraram as

características dos sócios individuais’.” (KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da

personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

p. 67-68). 15 Koury diverge acerca da qualificação, por vários autores, do caso inglês Salomon vs. Salomon & Co. Ltd.

como o verdadeiro e leading case da Disregard Doctrine: “Na realidade, o caso em questão foi julgado em 1897,

portanto, oitenta e oito anos após a primeira manifestação da jurisprudência americana, só sendo possível, assim,

considerá-lo leading case no Direito Inglês.” (KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da

personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p.

68). 16 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 324.

decisão é considerada, pois, a grande precursora da teoria da desconsideração, não

obstante tenha sido posteriormente reformada pela Casa dos Lords, a qual entendeu

pela impossibilidade de desconsideração, fazendo prevalecer a separação entre os

patrimônios do Mr. Salomon e de sua sociedade e, consequentemente, a sua

irresponsabilidade pessoal pelas dívidas sociais.17 [grifos no original]

Rubens Requião18

relata que a o Professor Piero Verrucoli, da Universidade de

Pisa, em sua monografia Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali,

oferece-nos a origem dessa doutrina, que teria surgido na jurisprudência inglesa, nos fins do

século XIX, em decorrência do caso Salomon vs. Salomon & Co, julgado em 1897.

Nesse caso, o comerciante Aaron Salomon constituiu uma company, em conjunto

com outros seis membros de sua família, e, como modo de contribuir para a formação do

capital da sociedade recém-formada, cedeu seu fundo de comércio. Em retribuição, Salomon

recebeu vinte mil ações representativas do capital social, além de obrigações garantidas no

valor de dez mil libras esterlinas, enquanto a cada um dos demais membros foi distribuída

apenas uma ação para a integração do valor da incorporação do fundo de comércio da nova

sociedade. Em momento posterior, a company começou a enfrentar dificuldades e, após um

ano de funcionamento, entrou em liquidação, período em que se verificou que os bens sociais

eram insuficientes para satisfazer as obrigações anteriormente assumidas – ativo insuficiente

para satisfazer o passivo –, nada sobrando para os credores quirografários. O liquidante, em

nome e no interesse dos credores quirografários, alegou que Salomon teria constituído a

sociedade como artifício para limitar sua responsabilidade, devendo este ser condenado ao

pagamento dos débitos da company, sendo a soma investida na liquidação de seu crédito

privilegiado destinada à satisfação dos credores da sociedade. Tanto no julgamento em

primeira instância quanto na Corte de Apelação, tais argumentos foram considerados,

concluindo-se que a sociedade fora utilizada por Salomon como uma entidade fiduciária, ou

melhor, um seu agent ou trustee, para dar continuidade aos seus negócios particulares –

quando ele, na verdade, permanecera como real proprietário do fundo de comércio. Apesar da

aplicação desse novo entendimento, que desconsiderou a personalidade jurídica de que se

revestia a Salomon & Co., a House of Lords reformou a decisão anterior, sustentando que a

company havia sido validamente constituída:19

A Casa dos Lordes reformou, unanimemente, esse entendimento, julgando que a

company havia sido validamente constituída, no momento em que a lei

17 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009, p. 324 -325. 18 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p 448. 19REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais.

São Paulo. v. 410. ano 58, dez. 1969, p. 18.

simplesmente requeria a participação de sete pessoas, que haviam criado uma pessoa

diversa de si mesmas. Não existia, enfim, responsabilidade pessoal de Aaron

Salomon para com os credores da Salomon & Co., e era válido o seu crédito

privilegiado. Mas a tese das decisões reformadas das instâncias inferiores repercutiu,

dando origem à doutrina da disregard of legal entity, sobretudo nos estados Unidos,

onde se formou larga jurisprudência, expandindo-se mais recentemente na

Alemanha e em outros países europeus.20

Do exposto, verifica-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica

originou-se por meio de construção jurisprudencial. Em decorrência disso, a análise

pormenorizada do instituto, incluindo suas hipóteses de aplicação e princípios, por exemplo,

somente veio a ocorrer a partir do estudo das próprias decisões judiciais sobre o tema.

1.2 Direito Comparado

Conforme Rubens Requião21

, entre os inúmeros doutrinadores que formularam

teorias a respeito do tema, destacam-se por estudos notórios e pioneiros: o Prof. Piero

Verucoli, da Universidade de Pisa, autor da obra Il Superamento della Personalità Giuridica

delle Società di Capitali nella Common Law e nella Civil Law (em tradução livre, A

superação da personalidade jurídica da sociedade de capitais na common law e na civil law); o

professor germânico Rolf Serick, da Universidade de Tübingen, com a tese Aparencia y

Realidad em las Sociedades Mercantiles – El abuso de derecho por meio de La persona

jurídica22

(em tradução livre, Aparência e realidade nas sociedades mercantis – o abuso do

direito por meio da personalidade jurídica); e o jurista norte-americano Maurice Wormser,

que desde 1912 versou a doutrina e procurou delinear seu conceito.

Em virtude de sua importância e crescente utilização, a teoria do superamento da

personalidade jurídica passou a figurar entre os diversos institutos dos ordenamentos de vários

países, recebendo diferentes denominações. Deste modo, fala-se em piercing the corporate

veil, lifting the corporate veil, cracking open the corporate shell, no direito americano e no

direito inglês; superamento della personalità giuridica, no direito italiano; durchgriff der

juristichen person, no direito alemão; teoria de la penetración ou desestimación de la

20REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 30. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p 449. 21REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais.

São Paulo. v. 410. ano 58, dez. 1969, p. 13-14. 22A tese do Prof. Serick foi traduzida para o castelhano pelo jurista catalão Jose Puig Brutau e apresentada pelo

catedrático Prof. Polo Diez, em Barcelona. Na Áustria, em uma conferência, o Prof. Schwind citou-a como

exemplo do que deve ser um trabalho em direito comparado. Na Argentina, a doutrina foi profundamente

estudada pelo Prof. Gervásio R. Colombres, em seu livro Curso de Derecho Societario. (REQUIÃO, Rubens.

Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 410. ano

58, dez. 1969, p. 13-14).

personalidad, no direito argentino; e mise à l’écart de la personnalité morale, no direito

francês.23

Quanto à normatização da teoria da desconsideração em outros países, Fábio

Ulhoa Coelho24

tece os comentários acerca do direito inglês e do direito norte-americano:

O direito inglês foi o primeiro a ostentar norma jurídica cujo comando corresponde

ao postulado pela teoria da desconsideração. O Companies Act, de 1929, estabelecia,

na seção 279: “se no curso da liquidação da sociedade constata-se que um seu

negócio foi concluído com o objetivo de perpetrar uma fraude contra credores, dela ou de terceiros, ou mesmo uma fraude de outra natureza, a Corte, a pedido do

liquidante, credor ou interessado, pode declarar, se considerar cabível, que toda

pessoa que participou, de forma consciente, da referida operação fraudulenta será

direta e ilimitadamente responsável pela obrigação, ou mesmo pela totalidade do

passivo da sociedade” (Bastid-David-Luchaire, 1960:77). A doutrina credita o

dispositivo inovador às repercussões do caso Salomon, cujos efeitos se podiam

entrever ainda em 1948, na revisão e consolidação daquele estatuto, e em 1986, na

edição do Insolvency Act (Verrucoli, 1964:92/93; Farrar-Hannigan, 1985:72).

No direito norte-americano, não existe nenhuma norma jurídica cujo sentido possa

ser considerado especificamente o de incorporação da teoria da desconsideração.

Mas, desde o século XVI, dispõe-se de instrumentos para a coibição de atos

fraudulentos (o Statute of 13, Elizabeth, de 1570). A partir de 1919, o UFCA (Uniform Fraudulent Conveyance Act), revisado em 1984 pelo UFTA (Uniform

Fraudulent Transactios Act), paulatinamente foi adotado pelas legislações estaduais

(cf. Epstein, 1991:64/73), e tem sido considerado suficiente à repressão das fraudes

visadas pela teoria da desconsideração. Para Clark, por exemplo, a pesquisa do

critério geral para o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas, a partir das

decisões judiciais sobre o tema, é frustrante: por outro lado, as normas sobre

negócios fraudulentos (UFCA, Bankruptcy Code e outras) adotam princípios, que

são, no seu entender, a chave para a adequada tutela dos interesses lesados. São

quatro postulados morais que, uma vez desobedecidos, autorizam a

responsabilização do sócio por ação social: veracidade (o devedor não pode enganar

o credor acerca de suas reais intenções), primazia (os credores devem ser satisfeitos antes da distribuição de dividendos ou mesmo da remuneração do acionista-

administrador), paridade (os credores devem ser tratados sem discriminação

injustificada) e desobstrução (o devedor não pode dificultar a execução da dívida

pelo credor). Em outros termos, a teoria da desconsideração, na medida em que

segue os mesmos princípios dos estatutos repressores dos negócios fraudulentos,

dispensaria estudo e tratamento em apartado a esses últimos (1986:35/39). [grifos no

original]

O autor complementa que:

A Argentina, na reforma do Código de Comércio de 1983, introduziu em seu direito

a teoria da desconsideração (Mascheroni-Muguillo, 1996:59/60), valendo-se de uma

original e interessante formulação, segundo a qual a personalidade jurídica da

sociedade é inoponível se demonstrado que a atuação dela, pessoa jurídica, encobriu

a consecução de fins extrassocietários, constituiu mero recurso para violar a lei, a ordem pública ou a boa-fé ou ainda para frustrar direitos de terceiros. Formulada em

termos de inoponibilidade da personalidade jurídica, restam devidamente elucidados

os aspectos processuais relacionados à teoria da desconsideração: o credor demanda

23PEREIRA, Valter Gondim. Desconsideração da Pessoa Jurídica. Revista de Jurisprudência do Tribunal de

Justiça do Estado do Ceará. Fortaleza, v.13, p. 16-17, 2004. 24COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010, p 42-51.

diretamente o sócio, alegando o uso indevido do instituto da autonomia patrimonial,

e este não pode, em defesa, opor a existência da sociedade, caso reste provada a

alegação. Trata-se, a meu ver, de uma contribuição preciosa do direito argentino,

que o brasileiro deveria adotar. 25

). [grifos no original]

Fábio Ulhoa, portanto, comenta acerca da teoria da desconsideração no Direito

argentino, no tocante aos aspectos processuais, e ressalta que a contribuição dos argentinos

deveria ser adotada pelo Direito brasileiro.

1.3 Conceituação jurídica da disregard doctrine

Conforme sintetiza André Pagani26

:

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica somente deve ser aplicada nas

hipóteses em que a autonomia da pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo

para a composição dos diversos interesses envolvidos no caso concreto, ou melhor,

para a realização de justiça. Caso a autonomia patrimonial da pessoa jurídica não

impeça a imputação de responsabilidade ao sócio, ao acionista ou ao administrador,

não haverá qualquer desconsideração de personalidade jurídica, pois inexistirá

obstáculo para a composição dos interesses – os responsáveis pela conduta ilícita poderão ser identificados diretamente.

Verificada a relação do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com

a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, faz-se necessário, antes de

conceituar a teoria, tecer comentários acerca deste princípio.

1.3.1 Princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica

Um dos principais efeitos da personificação da pessoa jurídica é a autonomia

patrimonial dela em relação aos seus membros.27

Dessa forma, qualquer vinculação entre o

patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos sócios, associados ou administradores é

afastada pela personalidade jurídica.

Em síntese, aduz Gilberto Bruschi28

acerca da natureza jurídica do instituto:

25COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010, p 59. 26SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 45. 27Infere-se do art. 985 do Código Civil que, com o registro do contrato social ou estatuto, a pessoa jurídica

adquire personalidade distinta da dos membros que a compõem e, consequentemente, patrimônio próprio, órgãos

deliberativos e executivos, tornando-se a pessoa jurídica, assim, sujeito de direitos e deveres. 28BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 32.

A desconsideração caracteriza-se pela não aplicação do princípio da autonomia

patrimonial da pessoa jurídica, em determinados casos concretos e, na verdade, o

que se busca ao utilizar a teoria da desconsideração é a ineficácia da pessoa jurídica

para aquele determinado caso,e não a invalidade daquela sociedade.

Susy Koury29

assevera que, entre os objetivos da personificação, como a limitação

e, até mesmo, a supressão de responsabilidades individuais, está garantir a separação do

patrimônio das pessoas jurídicas dos das pessoas físicas que as constituem.

Nesse sentido, Gladston Mamede30

explica que:

Com a constituição de uma pessoa jurídica, ou, mais precisamente para o que se está

estudando, de uma sociedade, cria-se um novo ator jurídico no cenário das relações

negociais, fruto da previsão in abstrato (norma agendi) de que não só os seres

humanos podem ser sujeitos a direitos e deveres. A sociedade, portanto, é uma

pessoa e, nessa condição, é absolutamente distinta da pessoa de seus sócios,

realidade jurídica que em nada é prejudicada pela ausência no Código Civil de 2002

de uma disposição que repetisse o artigo 20 do Código civil de 1916, segundo o qual

'as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros' [...]

Justamente por haver uma personalidade jurídica própria, distinta, haverá

igualmente um patrimônio correspondente à pessoa jurídica (a sociedade), em nada

se confundindo com o patrimônio correspondente aos sócios. Ora, como o

patrimônio em direito é a universitas iuris, vale dizer, o conjunto de relações jurídicas, (positivas e negativas), fica claro que os direitos da pessoa jurídica não se

confundem com os direitos de uns, de alguns ou todos os sócios, regra que se aplica

igualmente aos deveres.

Não é intuito da desconsideração da personalidade jurídica acabar com a

autonomia da pessoa jurídica, que era prevista expressamente no caput do art. 20 do Código

Civil de 1916: “Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.

Apesar de tal dispositivo não ter sido reproduzido expressamente no atual Código Civil, não

há dúvida de que o princípio da autonomia patrimonial continua em vigor e de que a pessoa

jurídica mantém uma existência distinta da dos membros que a compõe, conforme se pode

extrair dos seus arts. 45 e 985 31

em interpretação combinada. 32

Na verdade, o intuito da

desconsideração consiste em tornar mais eficaz essa autonomia patrimonial em relação aos

29KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os

grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 39. 30MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e Empresárias. 4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas S.A., 2010, p. 43. 31Código Civil de 2002: “Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a

inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação

do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. [...]

Art. 985: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo

no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo,

averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 32SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 40-41.

membros que constituem a pessoa jurídica.33

“Essa teoria não se volta contra a pessoa

jurídica. Pelo contrário, a teoria da desconsideração é um aprimoramento do instituto da

pessoa jurídica.”34

No tocante ao princípio da autonomia patrimonial, Fábio Ulhoa Coelho35

destaca

que “é um dos elementos fundamentais do direito societário” e comenta sua relevância ao

direito empresarial:

Da personalização das sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia

patrimonial, que é um dos elementos fundamentais do direito societário. Em razão

desse princípio, os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade.

Esse é o princípio da autonomia patrimonial, alicerce do direito societário. Sua

importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção e

circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a

possibilidade de perdas nos investimentos mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da

sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em

atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da

separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar

a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de

uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam

estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. No final, o potencial

econômico do País não estaria eficientemente otimizado [...]. O princípio da

autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma

adequada a exploração da atividade econômica.

Depreende-se que a autonomia patrimonial é um dos elementos fundamentais do

direito societário, tendo em vista que determina a separação patrimonial entre a pessoa

jurídica e os membros que a compõem, em regra uma vez que ainda existem sociedades com

responsabilidade ilimitada:

Responsabilidade Limitada: Sociedade Limitada, Sociedade Anônima, Sócios

comanditários na Sociedade em Comandita Simples e Sócios acionistas sem cargo

de direção nas Sociedades em Comandita por Ações.

Responsabilidade Ilimitada: Sociedade Simples Comum, Sociedade em Nome

Coletivo, Sócios comanditados na Sociedade em Comandita Simples e Sócios

acionistas com cargo de direção nas Sociedades em Comandita por Ações. 36

Em decorrência do princípio da autonomia patrimonial, reconhece-se que o

patrimônio pessoal dos sócios, associados ou administradores não responde por dívidas da

33BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 28. 34COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989, p. 10 35COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010, p. 16. 36MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e Empresárias.

4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas S.A., 2010, p. 85.

pessoa jurídica, já que esta é sujeito de direitos e deveres distinto de seus membros. Portanto,

quem atua legitimamente no mercado é a pessoa jurídica e não os membros que a compõem.

Tal princípio, contudo, não é absoluto; poderá ser afastado, episodicamente, pela

teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando caracterizada a fraude e uso

indevido da personalidade jurídica. Suzy Koury37

ressalva que:

A separação patrimonial e a limitação de responsabilidade não podem ser elevadas a

dogmas, pois a personificação só se legitima enquanto servir aos propósitos para aos

quais foi concebida, surgindo, assim, a necessidade de desconsiderar a personalidade

sempre que for utilizada com intuitos diversos [...].

Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho38

explica:

Nas relações empresariais, o princípio da autonomia patrimonial deve ser

estritamente observado porque esta técnica de segregação de riscos está ao alcance

das duas partes da relação obrigacional. Se uma sociedade empresária, quando

devedora de certa obrigação, está sob o abrigo do princípio da autonomia

patrimonial, ela não pode, na posição de credora, pretender obstar à outra sociedade

empresária, que lhe deve, o acesso a igual benefício.

Observe-se que, em se tratando de outros ramos do direito, como Direito do

Trabalho e Direito do Consumidor, por exemplo, a autonomia patrimonial tem sido mais

facilmente relativizada.

Ressalte-se que só depois de executados os bens da pessoa jurídica, e respeitadas

as limitações legais, é que os credores poderão suscitar a responsabilização dos membros da

pessoa jurídica. Em conformidade, explica Gladston Mamede39

que:

[...] o patrimônio da sociedade é distinto do patrimônio dos sócios. [...]

Nesse contexto, importa questionar o que se passará quando a pessoa jurídica não

possui condições de fazer frente a suas perdas, seus débitos, suas obrigações. A

regra geral para tal hipótese é a afirmação de uma responsabilidade subsidiária de

seus membros, vale dizer, sócios e associados. [...]

Para algumas situações jurídicas específicas, contudo, o legislador criou uma regra

diferenciada: um limite entre as responsabilidades da pessoa jurídica e o patrimônio

dos sócios, protegendo o patrimônio destes. Fê-lo para estimular as pessoas a investirem no mercado, a constituírem sociedades e explorarem atividades

produtivas, a bem do desenvolvimento econômico e social do país.

Em síntese, discorre Fábio Ulhoa Coelho40

:

37KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os

grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 26. 38COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 81. 39MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e Empresárias.

4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas S.A., 2010. p. 84.

A separação entre os patrimônios da pessoa jurídica e as pessoas que a compõe gera

importantes consequências no tocante à responsabilidade patrimonial, posto que pelas obrigações dos membros da pessoa jurídica não responde o patrimônio da

pessoa jurídica, nem pelas obrigações desta será possível alcançar o patrimônio

individual de um seu membro, senão em hipóteses excepcionais e raras, e, mesmo

assim, de forma subsidiária.

Do exposto, infere-se que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica tem

importância essencial ao desenvolvimento da economia do País e, consequentemente, ao

direito empresarial, todavia, não constitui um dogma absoluto, um direito absoluto,

“sobretudo porque, muitas vezes, pode ser utilizado de forma abusiva ou fraudulenta, servindo

de instrumento para a blindagem do patrimônio de empresários inescrupulosos e nocivos ao

meio empresarial.”41

Com a finalidade de coibir o uso abusivo da personalidade jurídica, desenvolveu-

se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

1.3.2 A teoria da desconsideração: conceito

Reconhece a ordem legal a importância da pessoa jurídica para o desenvolvimento

econômico e tecnológico do país.

Em decorrência de sua autonomia patrimonial, todavia, a pessoa jurídica passou a

ser desvirtuada em favor dos interesses individuais dos membros que a compõem. “Afirma

Tullio Ascarelli que ‘a existência de uma sociedade não pode servir para alcançar um escopo

ilícito’.”42

Visando coibir o uso indevido da pessoa jurídica, a doutrina desenvolveu a teoria

da desconsideração da personalidade jurídica.43

Da consideração da personalidade jurídica decorre a atribuição de autonomia

patrimonial à pessoa jurídica em relação aos membros que a compõem.

Todavia, se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais que a

compõem e se o patrimônio da sociedade não se identifica com o dos sócios, a manipulação

da autonomia da pessoa jurídica torna-se um mecanismo propício para lesar credores,

40COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989, p. 13. 41RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 322-323. 42COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989, p. 15. 43“Essa teoria não se volta contra a pessoa jurídica, como pode parecer à primeira vista e como, de fato, pareceu

a Pontes de Miranda, ao que tudo indica. Pelo contrário, a teoria da desconsideração é um aprimoramento do

instituto da pessoa jurídica”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1989, p. 10)

mediante abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade.44

Indivíduos inescrupulosos

forjam a constituição de pessoas jurídicas, celebram contratos ou realizam operações, com

intuito de fraudar interesses e direitos de credores.45

Há casos em que só é possível trazer à tona o ilícito perpetrado pelos membros da

pessoa jurídica aplicando-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica: “cabe

invocar a teoria quando a consideração da sociedade empresária implica a licitude dos atos

praticados, exsurgindo a ilicitude apenas em seguida à desconsideração da personalidade

jurídica dela.”46

Suzy Elizabeth Koury47

traz o seguinte conceito da teoria:

[...] a Disregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação

jurídica, em casos concretos, mas, ao mesmo tempo, penetrar na sua estrutura

formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, delas se utilizando,

simulações e fraudes alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias a

sua função e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.

Flávio Tartuce48

explica que:

Tal instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da

sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios, com o intuito de

impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem

prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa. Dessa forma, os

bens particulares dos sócios podem responder pelos danos causados a terceiros.

O uso desvirtuado da personalidade jurídica, caracterizado pelo abuso da

personalidade jurídica, é refutado pelo sistema jurídico. Assim, no caso concreto, pode o juiz

afastar a autonomia patrimonial e imputar a responsabilidade aos sócios, associados ou

administradores que se utilizaram da pessoa jurídica para a prática de fraudes.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma medida extraordinária,

portanto somente deve ser aplicada nos casos em que há uso inapropriado da personalidade

44DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 86. 45Quando se analisa a pessoa jurídica sob o enfoque da possibilidade de servir de instrumento para a prática de

atos fraudulentos ou abuso de direito pelas pessoas físicas que a compõem (e não pelo viés de que contribuíram

para a construção de uma sociedade economicamente viável, criando riquezas e desenvolvimento, proporcionando o bem-estar social), é cabível a declaração, datada de 1824, do ensaísta William Hazlitt: “Os

organismos empresariais são mais corruptos e devassos que os indivíduos, porque têm mais poder para fazer o

mal e são menos receptivos à desgraça e à punição. Não sentem vergonha, remorso, gratidão, nem

benevolência”. (KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica nas organizações, p. 63). 46COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 44. 47KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os

grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 85. 48TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método.

2011, p. 135.

jurídica com o fim de causar danos a credores ou a terceiros. Para afastar o princípio da

autonomia patrimonial, é necessário constatar o abuso da personalidade jurídica pelo desvio

de finalidade ou confusão patrimonial. Ressalta-se que a inadimplência por si só não é

suficiente para tanto.

Nessa esteira, Fábio Ulhoa Coelho49

, assevera que:

[...] a solução para evitar manipulações como estas não é abolir a autonomia da

pessoa jurídica, como regra. O problema não está no perfil básico do instituto, mas

no seu mau uso. O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

(disregard doctrine ou piercing the corporate veil) é exatamente possibilitar a coibição de fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é,

sem questionar a regra da sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus

membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e

sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da

atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraudes.

Relacionando a pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial, o autor

desenvolve que:

A idéia de que o ato constitutivo da pessoa jurídica pode, em dadas ocasiões, ter sua

eficácia suspensa, deixando, assim, de gerar consequências jurídicas o princípio da

autonomia patrimonial, deve ser tomada como característica natural da pessoa

jurídica. [...]

Nesse sentido, completando-se o conceito de pessoa jurídica, poder-se-ia consignar

que esta é 'o sujeito de direito personalizado, incorpóreo e cujo ato constitutivo pode ser episodicamente ineficaz se servir de instrumento para a realização de fraude ou

abuso de direito'.50 [grifos no original]

A desconsideração da personalidade jurídica, portanto, é um instituto de

Direito Privado que “introduziu sensíveis alterações na maneira como, tradicionalmente, se

via a pessoa jurídica”51

e que visa, na hipótese de fraude, caracterizada por abuso de poder ou

desvio de finalidade, afastar a regra da autonomia patrimonial em favor de credores

prejudicados.

Ressalta-se que a personalidade jurídica se mantém regular para os fins legítimos,

tendo em vista que a teoria da desconsideração não objetiva desconstituir a pessoa jurídica,

mas visa tão somente o afastamento da personalidade jurídica no caso concreto em que se

provar o desvio de finalidade ou abuso de direito, prevalecendo, dessa forma, a autonomia

patrimonial para as práticas empresariais que não impliquem em desvio de finalidade,

49COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 37-38. 50COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989, p. 89. 51COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989, p. 88.

relativamente aos direitos decorrentes da atividade desenvolvida licitamente.52

Nesse sentido

é o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho53

:

[...] a grande característica que cerca a disregard, diferenciando-a das demais

soluções jurídicas que visam à coibição da fraude e do abuso de direito perpetrados

com o uso expediente da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, é a dimensão e o

sentido da sanção imputada ao agente da fraude ou do abuso de direito. Como na

economia moderna, grandes companhias, com suas atividades, envolvem direta ou

indiretamente, uma gama imensa de pessoas, e, portanto, de interesses, a coibição

das fraudes e abusos de direitos viabilizados com uso de sua personalização deve ser feita de tal maneira que não acabe por prejudicar pessoas inocentes em relação ao

ilícito. A disregard possibilita a imputação exclusiva do responsável pelo mau

uso da personalidade jurídica, preservando-a, em sua validade, e quanto aos

atos não-fraudulentos em que se envolveu.

A conseqüência específica da teoria da desconsideração – a ineficácia episódica

do ato constitutivo da pessoa jurídica – é, a meu ver, o aspecto relevante, na

conjugação teórica que a sua formulação objetiva tencionou realizar. [grifos nossos]

Em se tratando de medida excepcional, a aplicação da teoria da desconsideração

requer prova cabal de fraude ou abuso de direito. Não é suficiente provar a insatisfação do

direito credor, apresentar indícios de fraude ou arguir presunção de abuso de direito.

Reitera-se que a personalidade da pessoa jurídica e seu patrimônio não se

confundem com a personalidade e o patrimônio pessoal de seus membros que a compõem,

pois a pessoa jurídica e seus membros têm existência distinta. No entanto, diante da utilização

ilegítima da pessoa jurídica, o Direito acolhe a teoria da desconsideração da personalidade

jurídica para alcançar o patrimônio pessoal dos sócios, associados ou administradores e

garantir os interesses e direitos de credores ou terceiros prejudicados.

1.3.3 A teoria ultra vires societatis

Conforme William Paiva Marques Júnior54

, a teoria ultra vires societatis expressa

que a pessoa jurídica exime-se de responsabilidade perante terceiros, por ato praticado por seu

administrador com excesso de poder, mesmo que ausente a fraude (a fraude é pressuposto

para o uso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica).

52Mônica Gusmão assinala que “[...] não se pode confundir a despersonificação com a desconsideração. Na

primeira, a sociedade perde por completo a sua personalidade jurídica, enquanto, na desconsideração, a

personalidade jurídica é afastada, temporariamente, para atingir o patrimônio dos sócios que se tenham utilizado

da sociedade de forma fraudulenta.” (GUSMÃO, Mônica. Lições de direito empresarial. 10. ed. Rio de Janeiro:

Lúmen Juris, 2011. p. 157). 53COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1989. p. 89. 54MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado. Local:

s. n., ano.

Portanto, se os administradores agirem com violação à lei ou ao contrato social,

ficarão sujeitos a indenizar terceiros ou a sociedade regressivamente, neste caso se a

sociedade assumir responsabilidade contra terceiros.

A positivação no direito brasileiro da teoria ultra vires societatis se deu com o

disposto no parágrafo único do art. 1.015 do Código Civil, in verbis:

Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos

pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a

terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I - se a limitação de

poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II - provando-

se que era conhecida do terceiro; III - tratando-se de operação evidentemente

estranha aos negócios da sociedade.

Sobre o dispositivo, decidiu o STJ55

que o que limita o campo de ação da

sociedade é a chamada especialização estatutária. Se a pessoa jurídica é constituída em razão

de uma finalidade específica (objeto social), em princípio, os atos consentâneos a essa

finalidade, praticados em nome e por conta da sociedade, por seus representantes legais,

devem ser a ela imputados. Vale dizer, o ponto central para aferir a validade em relação a

terceiros, concernentes a atos praticados por diretores em nome da sociedade, mas com

excesso de poder, é sempre saber se o negócio é de interesse da sociedade ou estranho ao seu

objeto.56

Ainda acerca da teoria ultra vires societatis consagrada no art. 1.015, parágrafo

único, do Código Civil, ressaltou o STJ57

que não se pode invocar a restrição do contrato

social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de

gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais

sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a

ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente. Decidiu ainda o STJ que o excesso de

mandato praticado pelo administrador da pessoa jurídica poderá ser oposto ao terceiro

beneficiário apenas se ficar afastada a boa-fé deste, o que ocorre quando: (I) a limitação de

poderes dos administradores estiver inscrita no registro próprio, (II) o terceiro conhecia do

excesso de mandato, e (III) a operação realizada for evidentemente estranha ao objeto social

da pessoa jurídica. Verificada a boa-fé do terceiro, restará à pessoa jurídica exigir a reparação

55STJ- REsp 906193 / CE, Relator: Min. Luís Felipe Salomão, julgamento: 08/11/2011. 56MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado. 57STJ- REsp 704546 / DF, Relator: Min. Luís Felipe Salomão, julgamento: 01/06/2010.

pelos danos sofridos em ação regressiva a ser proposta contra o administrador que agiu em

excesso de mandato.58

59

Convém ressaltar a diferenciação existente entre a teoria da desconsideração da

pessoa jurídica e a da ultra vires societatis: diferentemente do que ocorre na teoria da

desconsideração, os casos de responsabilidade pessoal do administrador não representam uma

quebra do princípio da separação entre a pessoa jurídica e os seus membros. Para se aplicar o

instituto da responsabilidade, portanto, não é necessário ignorar a personalidade do ente

abstrato. A princípio, a sociedade é responsável perante terceiros pelos atos praticados por

meio de seus administradores, enquanto investidos na qualidade de titulares dos órgãos. Na

condução dessas funções é que se estabelecem as responsabilidades de seus titulares perante a

própria pessoa jurídica, seja no contrato social ou estatuto. Este é o fundamento da

responsabilidade dos administradores perante a empresa, na qualidade de titulares dos seus

órgãos de administração. Como se vê, o instituto da responsabilidade não implica a quebra da

regra da separação patrimonial. Ao contrário, reafirma-a na medida em que seu fundamento

repousa na exata distinção entre a sociedade e os seus sócios-gerentes. Para responsabilizar os

dirigentes da sociedade, basta a prova de que eles não agiram em conformidade com seus

deveres e encargos, causando prejuízos a terceiros ou, até mesmo, à sociedade. Essa

responsabilidade não prescinde da sociedade, permanecendo ilesa a sua personalidade

jurídica, diversamente do que ocorre com a teoria da desconsideração.60

Conclui-se, portanto, que a teoria ultra vires societatis significa “além do

conteúdo da sociedade”, ou seja, se o administrador, ao praticar atos de gestão, violar o objeto

social delimitado no ato constitutivo, este ato não poderá ser imputado à sociedade. Assim, a

sociedade fica isenta de responsabilidade perante terceiros, salvo se houver percebido

benefícios com a prática do ato, quando então, passará a ter responsabilidade na proporção do

benefício auferido.61

58 STJ- REsp 448471 / MG, Relatora: Min. Nancy Andrighi, julgamento: 20/03/2003. 59 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado. 60 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado. 61 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado.

1.4 Correntes doutrinárias: a teoria maior vs. a teoria menor

Conforme Carlos Roberto Gonçalves62

, no Direito brasileiro, a doutrina e a

jurisprudência reconhecem que a teoria da desconsideração comporta duas concepções: a

teoria maior e a teoria menor.63

Em consonância com o exposto, tem-se a jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça:

Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center

de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério

Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor.

Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Art. 28, § 5º.

- Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e

incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão

Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos

de consumidores, decorrentes de origem comum.

- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro,

não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica

insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da

prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva

da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva

da desconsideração).

- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico

excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a

mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas

obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de

confusão patrimonial.

- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não

pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos

sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta

administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de

identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores

da pessoa jurídica.

- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está

calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência

desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no

caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da

pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos

consumidores.

- Recursos especiais não conhecidos. 64 [grifos no original]

62GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 7. ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

217-218. 63Fábio Ulhoa adota posicionamento divergente: “Em 1999, quando era significativa a quantidade de decisões

judiciais desvirtuando a teoria da desconsideração, cheguei a chamar sua aplicação incorreta de ‘teoria menor’,

reservando à correta a expressão ’teoria maior’. Mas a evolução do tema na jurisprudência brasileira não

permite mais falar-se em duas teorias distintas, razão pela qual esses conceitos de ‘maior’ e ‘menor’

mostram-se, agora, felizmente, ultrapassados”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14.

ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 49). [grifos nossos]. 64STJ- REsp 279273 / DF, Relator: Min. Ari Pargendler, julgamento: 29/03/2004. [grifo nosso]

Para a teoria maior, comprovar o mero inadimplemento não enseja a

desconsideração da personalidade jurídica; é necessário comprovar a fraude ou o abuso de

direito para o afastamento da autonomia patrimonial. A teoria maior pode ser subdividida em

teoria maior subjetiva e teoria maior objetiva.

Fábio Ulhoa65

assinala: “Pela formulação subjetiva, os elementos autorizadores da

desconsideração são a fraude e o abuso de direito; pela objetiva, a confusão patrimonial. A

importância dessa diferença está ligada à facilitação da prova em juízo”.

Para a teoria subjetiva, portanto, é imprescindível a comprovação de fraude ou

abuso de direito perpetrados através da pessoa jurídica para fundamentar a desconsideração.

Neste caso, em exercício de seu livre convencimento, está o juiz autorizado a desprezar a

autonomia patrimonial da pessoa jurídica quando constatar fraude ou abuso de direito.66

“A teoria da desconsideração elegeu como pressuposto para o afastamento da

autonomia patrimonial da sociedade empresária o uso fraudulento ou abusivo do instituto”67

,

prevalecendo, dessa forma, a teoria maior subjetiva regra do direito pátrio, de modo a

prestigiar o instituto da personalidade jurídica, cabendo a aplicação da desconsideração

episodicamente nos casos de fraude e abuso da personalidade jurídica tratando-se da teoria

maior subjetiva.

Porém, a teoria maior objetiva estabelece que “o pressuposto da desconsideração

se encontra, fundamentalmente, na confusão patrimonial”68

, sendo suficiente a ausência de

separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio de seus membros para se

afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

Fábio Ulhoa69

observa que a formulação da teoria maior subjetiva apresenta

dificuldades no campo das provas, em razão de se tratar em intenções subjetivas do

demandado. A doutrina ou a ordem jurídica preocupam-se em estabelecer presunções de

inversão do ônus probatórios, a fim de facilitar a tutela de alguns direito. No campo da teoria

da desconsideração, é a formulação objetiva, proposta por Fábio Konder Comparato, que visa

realmente auxiliar na facilitação da prova pelo demandante, ao eleger a confusão patrimonial

como pressuposto da desconsideração.

Por fim, concilia a teoria maior subjetiva e a teoria maior objetiva:

65COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 46. 66RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 326. 67COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 45. 68COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 46. 69COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 14. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 46.

[...] a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como

critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela

é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez,

deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante.70

No que tange à teoria menor, é possível a desconsideração sempre que o credor

demonstrar a insolvência da pessoa jurídica; o simples prejuízo do credor é motivo suficiente

para a desconsideração. Assim, se a pessoa jurídica não dispuser de patrimônio para a

satisfação do crédito, seus membros serão responsabilizados independentemente de fraude ou

abuso de direito.71

Conforme Carlos Roberto Gonçalves72

, a doutrina, em geral, considera que teoria

menor foi acolhida no ordenamento jurídico brasileiro no Direito do Consumidor (art. 28, §

5º, da Lei nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor), no Direito Ambiental (art. 4º da

Lei nº 9.605/98 – Lei do Meio Ambiente) e no Direito Econômico (art. 18 da Lei nº 8.884/94

– Lei Antitruste), contentando-se com a simples demonstração do prejuízo do credor para o

deferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

André Pagani73

anota que a teoria menor, ao prestigiar tão somente a insolvência

para a aplicação da desconsideração, estaria abolindo o instituto da personalidade jurídica da

pessoa jurídica.

A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica fundamentada na teoria

menor ensejaria a responsabilidade ilimitada dos sócios ou administradores para com as

dívidas das pessoas jurídicas de responsabilidade limitada.

70COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010, p. 46. 71RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 328. 72GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 216.

v.1. 73“No que diz respeito à denominada ‘teoria menor’, cumpre esclarecer que tal formulação não guarda com as

construções doutrinárias da teoria da desconsideração da personalidade jurídica feitas por Rolf Serick, Piero

Verrucoli, Rubens Requião, Fábio Konder Comparato e Fábio Ulhoa Coelho [...]. A chamada ‘teoria menor’ é

uma decretação afobada da desconsideração da personalidade jurídica, pelo simples fato de o credor não lograr

êxito em receber o que lhe é devido, sem haver qualquer indagação sobre a ocorrência de fraude, abuso de direito

ou confusão patrimonial. Por isso mesmo, tal formulação recebe o adjetivo, certamente pejorativo, de 'menor':

pela ausência de fundamentos teóricos e doutrinários minimamente elaborados para a sua aplicação no caso

concreto”. (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 39).

2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

Considera-se como marco inicial da teoria do superamento da personalidade

jurídica no direito brasileiro a conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade

Federal do Paraná, por Rubens Requião74

, cujo teor foi publicado no artigo Abuso de direito e

fraude através da personalidade jurídica, em 1969.

Não temos lembrança, em nossas constantes peregrinações pelas páginas do direito

comercial pátrio, de haver encontrado doutrina nacional ou estudos sobre o uso

fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica, o que nos daria, se correta a nossa

impressão, o júbilo de apresentá-la pela primeira vez, em sua formulação

sistemática, aos colegas e aos juristas nacionais [...].

A despeito de ausência de previsão legislativa, o autor já defendia a sua aplicação

no País.75

Conforme asseverou o jurista:

Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz

brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a

fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade, para, penetrando

em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins

ilícitos ou abusivos.76

Requião afirma que a disregard doctrine pode adequar-se a qualquer sistema

jurídico, inclusive ao nosso, devendo-se, contudo, determinar os princípios dogmáticos com

os quais os tribunais pretendem chegar “a superar a forma externa da pessoa jurídica, para,

penetrando através dela, alcançar as pessoas e bens que debaixo de seu véu se cobrem.”77

Sobre o assunto, Fábio Ulhoa Coelho78

ressalta que “[...] é pacífico na doutrina e

na jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer

alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão

a atos fraudulentos.” O autor afirma que a aplicação prescinde de qualquer previsão legal por

funcionar como verdadeiro instrumento de repressão a atos fraudulentos: “Quer dizer, deixar

74REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais.

São Paulo. v. 410. ano 58, dez. 1969, p. 13. 75RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 329. 76REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais.

São Paulo. v. 410. ano 58, dez. 1969, p. 13. 77OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de direito empresarial brasileiro: teoria geral do direito societário.

v. 1. Campinas: LNZ, 2004, p. 102. 78COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 39.

de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que

amparar a fraude.”

Deveras, constatando-se o fato de que a personalidade jurídica das sociedades

servia a pessoas inescrupulosas que praticassem em benefício próprio abuso de direito ou atos

fraudulentos por intermédio das pessoas jurídicas que revestiam as sociedades, os tribunais

começaram então a desconsiderar a pessoa jurídica para responsabilizar os praticantes de tais

atos, vinculando os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade. Esse

procedimento chegou ao Brasil, tendo a jurisprudência diversas decisões que consagram a

aludida teoria.

Amador Paes de Almeida79

cita um caso célebre, julgado pelo Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo, em que foi aplicada a teoria da desconsideração muito antes de ela

conter disciplina normativa, no qual o relator, o Desembargador Edgar de Moura Bittencourt,

decidiu que: “a assertiva de que a sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios é um

princípio jurídico, mas não pode ser um tabu a entravar a própria ação do Estado, na

realização da perfeita e boa justiça [...]”.

José Lamartine Corrêa80

também aponta que a teoria da desconsideração já era

aplicada no Brasil há bastante tempo pela jurisprudência nos casos em que se caracterizava o

desvio de finalidade das sociedades. Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça,

ainda em 2001, in verbis:

PROCESSUAL CIVIL E DIREITO COMERCIAL – FALÊNCIA – EXTENSÃO

DOS EFEITOS – COMPROVAÇÃO DE FRAUDE – APLICAÇÃO DA TEORIA

DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – RECURSO ESPECIAL –

DECISÃO QUE DECRETA A QUEBRA – NATUREZA JURÍDICA –

NECESSIDADE DE IMEDIATO PROCESSAMENTO DO ESPECIAL –

EXCEÇÃO À REGRA DO ART. 542, § 3° DO CPC – DISSÍDIO PRETORIANO

NMÃO DEMONSTRADO. I – Não comporta retenção na origem o recurso especial

que desafia a decisão que decreta a falência. Exceção à regra do § 3°, art. 542 do

Código de Processo Civil. II – O dissídio pretoriano deve ser demonstrado mediante o cotejo analítico entre o acórdão recorrido e os arestos paragmáticos. Inobservância

ao art. 255 do RISTJ. III – Provada a existência de fraude, é inteiramente

aplicável a Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica a fim de resguardar

os interesses dos credores prejudicados. IV – Recurso especial não conhecido.81

[grifo nosso]

79 ALMEIDA, Amador Paes de apud RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus

Podivm, 2009. p. 329. 80CORRÊA, José Lamartine apud RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus

Podivm, 2009. p. 329. 81STJ – REsp 211619 / SP, Relator: Min Eduardo Ribeiro, julgamento: 16/02/2001. (Grifo nosso).

William Paiva Marques Júnior82

leciona que a atribuição de personalidade jurídica

às sociedades objetiva fomentar o exercício de uma atividade econômica, organizada ou não,

além de ter por escopo a proteção dos integrantes dos riscos inerentes a essa atividade, tais

como os sócios ou acionistas, e o estímulo à aplicação de capitais em atividades promotoras

do desenvolvimento da nação, expediente perfeitamente consentâneo com os fins da ordem

econômica, insculpidos no art. 170 da Constituição Federal de 198883

. Além do interesse

privado relacionado à autonomia da pessoa jurídica, há um interesse público permanente de

estímulo à livre iniciativa dos particulares, tendo em vista que a estes cabe a primazia do

exercício da atividade econômica, e ao trabalho, como forma de dignificar a pessoa humana –

art. 1º, III, da CF/88 – e fomentar a valorização social do trabalho e da livre iniciativa – art.

1º, IV, da CF/88. A desconsideração da personalidade jurídica é uma teoria fundada no

postulado da isonomia – art. 5º, caput, da CF/88 –, em virtude da qual o juiz pode prescindir

da forma externa da pessoa jurídica para, adentrando nela, alcançar as pessoas amparadas sob

seu véu.

A teoria a desconsideração no Brasil, em razão de divergência doutrinária,

esboçou-se em duas correntes: uma subjetiva e outra objetiva. Requião foi um dos defensores

da teoria subjetiva. Para ele a demonstração de fraude ou abuso de direito são requisitos para a

desconsideração. Em contraponto, Fábio Konder Comparato sustenta a teoria objetiva, tendo

por critério fundamental a confusão patrimonial, não se cogitando a intencionalidade. Na

doutrina e jurisprudência brasileiras prevalece a teoria subjetiva, em razão de oferecer maior

segurança jurídica.

É importante salientar que no ordenamento jurídico brasileiro existem diversos

dispositivos legais que autorizam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade

jurídica – em maior ou menor grau. A primeira norma que a positivou foi o Código de Defesa

do Consumidor, Lei nº 8.078/1990, em seu art. 28 84

. Em seguida, a Lei nº 8.884/1994, que

82MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Apontamentos sobre direito empresarial. Texto mimeografado. 83“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I-

soberania nacional; II- propriedade privada; III- função social da propriedade; IV- livre concorrência; V-defesa

do consumidor; VI- defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII- redução das desigualdades

regionais e sociais; VIII- busca do pleno emprego; IX- tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte

constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.” 84 André Luiz Santa Cruz Ramos cita autores que discordam dessa afirmação, apontando que a CLT pode ser

considerado o diploma legislativo pioneiro sobre o tema: “conquanto renomados autores fixem-se no art. 28 do

Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), como marco legislativo da aplicação, entre nós, da teoria da

desconsideração, na verdade, pioneiramente, já estabelecia a legislação trabalhista os princípios da doutrina

mencionada, no art. 2°, § 2°, da Consolidação das Leis do Trabalho que, como se sabe, foi promulgada em 1° de

maio de 1943 pelo Decreto-Lei n° 5.452.” (ALMEIDA, Amador Paes de apud RAMOS, André Luiz Santa Cruz.

regula a livre concorrência no Brasil, apresentou a teoria em seu art. 18. Posteriormente, a Lei

nº 9.605/998, que regula os crimes ambientais, positivou a desconsideração em seu art. 4º. Por

fim, em 2002, com o advento do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002),

a desconsideração foi disciplinada no art. 50, tendo por pressuposto o desvio de finalidade ou

a confusão patrimonial.85

Cabe ressaltar que o Código Civil em vigor é o que traduz com maior fidelidade

os ideais originais da disregard doctrine, tendo em vista que os demais dispositivos existentes

na legislação brasileira acabam por causar uma ligeira confusão no que diz respeito ao tema.

2.1 A desconsideração no Direito Tributário

Ao se analisar o disposto no art. 150, I, da Constituição Federal, bem como o art.

5º, II, do Código Tributário Nacional, verifica-se que seu princípio norteador é o da legalidade

tributária.86

É preciso mencionar, ainda, o artigo 135 do CTN:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a

obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou

infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

No Brasil, antes de haver lei que expressamente autorizasse a aplicação da teoria

da desconsideração, os tribunais valiam-se, para aplicá-la analogicamente, da regra do artigo

135 do Código Tributário Nacional.

Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 329). Em sentido contrário: “A questão da

desconsideração da pessoa jurídica já vinha sendo considerada no sistema jurídico trabalhista por posição, pode-

se dizer, unânime, que o artigo 2° da Consolidação das Leis do Trabalho teria assegurado a possibilidade de se

desconsiderar a personalidade jurídica. (…) Não obstante os diversos entendimentos no mesmo sentido,

esposados por especialistas do mais alto gabarito, ousamos deles discordar. Entendemos que a Consolidação das

Leis do Trabalho não tratou do tema, e, em nenhum momento, previu o legislador trabalhista a hipótese de

desconsideração da personalidade jurídica, a qual sempre foi aplicada na esfera trabalhista fundamentada, em

entendimento equivocado sobre a norma invocada.” (NAHAS, Thereza Cristina apud RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 329). 85MÁXIMO, Lorena Batista. Desconsideração da personalidade jurídica inversa: questões controvertidas. Anais

do XX Encontro Nacional do CONPEDI, Belo Horizonte, 2011. p. 7. 86Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão

em virtude de lei;

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao

Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

Atualmente, quanto à aplicação do dispositivo, Eduardo Sabbag87

aduz:

O art. 135, III, do CTN permite atingir a pessoa do diretor, gerente ou representante

da empresa, à luz da “teoria da desconsideração da pessoa jurídica”. No entanto, a

regra é a personificação da pessoa jurídica da sociedade, por isso, esta é quem deve

responder pelas obrigações sociais. Assim, a indignada teoria, prevista no art. 50 do

Código Civil, deve ser suscitada em caráter excepcional, ou seja, apenas no caso de o administrador (sócio-gerente) se valer do véu da personalidade jurídica para,

agindo com má-fé, prejudicar credores da sociedade.

O autor prossegue, explicando que a responsabilização exige que as pessoas do

art. 135, III, do CTN tenham praticado diretamente ou tolerado a prática do ato abusivo e

ilegal, quando em posição para influir na sua inocorrência, e que a mera condição de “sócio” é

insuficiente, tendo em vista que o dispositivo nem mesmo menciona tal termo.88

2.2 A desconsideração no Direito do Consumidor, no Direito Econômico e no Direito

Ambiental

O primeiro dispositivo a se referir expressamente à teoria da desconsideração da

personalidade jurídica foi o do art. 28, caput e § 5º, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de

1990 (Código de Defesa do Consumidor).89

Veja-se:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,

em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração

da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A

desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de

insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má

administração.

[...]

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua

personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos

causados aos consumidores.

A primeira hipótese do caput do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor que

pode ensejar a desconsideração da personalidade jurídica em favor do consumidor é a de

87SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 741. 88SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 741. 89“No direito brasileiro, o primeiro dispositivo legal a se referir à desconsideração da personalidade jurídica é o

Código de Defesa do Consumidor, no art. 28. Contudo, tais são os desacertos do dispositivo em questão que

pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria. [...]”. (COELHO, Fábio

Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 52).

abuso de direito. Fábio Ulhoa Coelho90

corrobora com entendimento de que esse pressuposto

está em consonância com a elaboração doutrinária da disregard doctrine, que prevê o abuso

de direito e a fraude como pressupostos para a aplicação da teoria.

As hipóteses seguintes que dão ensejo à desconsideração da personalidade jurídica

são a prática de “excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos

ou contrato social” em detrimento do consumidor. Analisa-se, nesse ponto, que o requisito

legal do art. 28, caput, do CDC se afasta da construção doutrinária da teoria. Basta observar

que todos os atos acima descritos dão ensejo à responsabilização direta do sócio ou do

administrador. Esses atos são imputados diretamente aos sócios, administradores ou

acionistas, e a personalidade jurídica não impede tal imputação.91

Logo, não há de falar em

aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nessas hipóteses, porque os

destinatários das normas são os autores dos atos que podem dar ensejo a uma indenização ao

consumidor, sem necessidade de violar a autonomia da pessoa jurídica.

No que se refere às hipóteses de falência, estado de insolvência, encerramento ou

inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração, é forçoso reconhecer que

também constituem condutas imputadas ao administrador e que a personalidade jurídica da

sociedade não se apresenta como um obstáculo para que os danos causados sejam ressarcidos.

Assim, desnecessária é a menção à teoria da desconsideração da personalidade jurídica. É o

que diz a doutrina de Fábio Ulhoa Coelho92

:

A teoria da desconsideração [...] tem pertinência apenas quando a responsabilidade

não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou

representante legal da pessoa jurídica. Se a imputação pode ser direta, se a existência

da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não

há por que cogitar do superamento de sua autonomia. E quando alguém, na

qualidade de sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica provoca

danos a terceiros, inclusive consumidores em virtude de comportamento ilícito,

responde pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará

respondendo por obrigação pessoal, decorrente do ilícito em que incorreu. Não há nenhuma dificuldade em estabelecer essa responsabilização, e a existência da pessoa

jurídica não a obsta de maneira alguma. [...] Não há, portanto, desconsideração da

pessoa jurídica na definição da responsabilidade de quem age com excesso de poder,

infração da lei, violação dos estatutos ou do contrato social ou por qualquer outra

modalidade de ilícito.

90“No tocante ao mencionado na letra a (abuso de direito), é evidente a correspondência entre o dispositivo legal

e a teoria da desconsideração. [...]”. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de

empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 52). 91COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 52. 92COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 52.

Quanto ao art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece

que poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma

forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, a doutrina

diverge ante ao seu descompasso com a teoria da desconsideração.

André Santa Cruz Ramos93

conclui que o mencionado dispositivo, assim como

seu caput, também está em descompasso com a doutrina de desconsideração, pelo menos no

que diz respeito à teoria maior: “Trata-se de dispositivo, pois, alinhado com os ideais da teoria

menor, a qual, como visto, reflete a crise do princípio da autonomia patrimonial das pessoas

jurídicas.” Deveria, para tanto, haver abuso de direito ou fraude, ou pelo menos a prova da

existência de uma confusão patrimonial para se proceder à desconsideração, requisitos

decorrentes da construção doutrinária da disregard doctrine.

Lado outro, faz ressalvas Fábio Ulhoa Coelho94

:

No tocante ao § 5º do art. 28 do CDC, note-se que uma primeira e rápida leitura pode sugerir que a simples existência de prejuízo patrimonial suportado pelo

consumidor seria suficiente para autorizar a desconsideração da pessoa jurídica.

Essa interpretação meramente literal, no entanto, não pode prevalecer por três

razões. Em primeiro lugar, porque contraria os fundamentos teóricos da

desconsideração. Como instituto da pessoa jurídica e não sua negação. Assim, ela só

pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para coibição de fraudes ou abuso

de direito. A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a

desconsideração, conforme assenta a doutrina na formulação maior da teoria. Em

segundo lugar, porque tal exegese literal tornaria letra morta o caput do mesmo art.

28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses autorizadoras do superamento da

personalidade jurídica. Em terceiro lugar porque essa interpretação equivaleria à eliminação do instituto da pessoa jurídica no campo do direito do consumidor, e, se

tivesse sido esta a intenção da lei, a norma para operacionalizá-la poderia ser direta,

sem apelo à teoria da desconsideração.

Dessa maneira, deve-se entender o dispositivo em questão (CDC, art. 28, § 5º) como

pertinente apenas às sanções impostas ao empresário, por descumprimento de norma

protetiva dos consumidores, de caráter não pecuniário. Por exemplo, a proibição de

fabricação de produto e a suspensão temporária de atividade ou fornecimento (CDC,

art. 56, V, VI, e VII). Se determinado empresário é apenado com essas sanções, e,

para furtar-se do cumprimento, constitui sociedade empresária para agir por meio

dela, a autonomia da pessoa jurídica pode ser desconsiderada justamente como

forma de evitar a burla aos preceitos da legislação consumerista se realize. Note-se

que a referência, no texto legal, a 'ressarcimento de prejuízos' importa que o dano sofrido pelos consumidores tenha cunho econômico, mas não assim a sanção

administrativa infligida ao fornecedor em razão desse dano.

Infere-se, portanto, que a referência feita pelo Código de Defesa do Consumidor à

teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode dar ensejo a equívocos. Essa teoria

só tem pertinência quando a responsabilidade não puder ser imputada ao sócio. Se a lei

93RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 331. 94COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 53-54.

imputa diretamente ao sócio a responsabilidade, não há desconsideração, pois a autonomia da

pessoa jurídica e da pessoa do sócio está sendo considerada, apesar de a lei utilizar

expressamente a palavra “desconsideração”.

O segundo dispositivo do direito brasileiro a se referir de forma sistematizada ao

tema foi o art. 18 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 (Lei Antitruste)95

, in verbis:

Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica

poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de

poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má

administração.

Tendo em vista que o legislador praticamente reproduziu, neste dispositivo, a

redação do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, cabem aqui as mesmas críticas.

Salvo a hipótese de abuso de direito como requisito ensejador da aplicação da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, os demais casos descritos na lei configuram

situações nas quais cabe a responsabilização direta do sócio, administrador ou acionista pelas

leis societárias, não havendo necessidade de desconsiderar a pessoa jurídica para aplicar a lei

e reparar o dano causado por essas pessoas. “Desse modo, a segunda referência legal à

desconsideração no direito brasileiro também não aproveitou as contribuições da formulação

doutrinária, perdendo consistência técnica.” �

O terceiro dispositivo legal a fazer referência direta à teoria da desconsideração

foi o art. 4º da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei do Meio Ambiente), leia-se:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade

for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Esse artigo merece as mesmas críticas feitas ao art. 28, § 5º, do Código de Defesa

do Consumidor, do qual parece ter sido reproduzido96

. A simples frustração do credor não é

motivo suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica.

95COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 54. 96“[...] a previsão normativa constante do CDC inspirou claramente os dois textos legais posteriores que também

cuidaram da aplicação da teoria da desconsideração. Enquanto a Lei nº 8.884, em seu art. 18, repetiu a redação

do art. 28, caput, do CDC, a Lei nº 9.605/98 repetiu, em seu art. 4º, a redação do art. 28, § 5º, do diploma

consumerista.” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p.

331)

Devido à utilização da teoria menor97

, na qual não se exige o abuso da

personalidade, basta a “simples impossibilidade de a pessoa jurídica arcar com a reparação

ambiental, podendo atingir os sócios e os gestores do ente de existência moral.”98

2.3 A desconsideração no Direito do Trabalho

No âmbito do direito trabalhista não há menção expressa à desconsideração da

personalidade jurídica.

A Consolidação das Leis do Trabalho dispõe no seu art. 2º, § 2º, acerca da

solidariedade na responsabilidade das obrigações do grupo de empresas correntes do contrato

de trabalho.99

Por conseguinte, depara-se com a hipótese de estar diante de um grupo

econômico, que apesar de possuírem pessoas jurídicas distintas estarão solidariamente

responsáveis junto com a sociedade empresária principal, no que concerne à relação

empregatícia.

Sergio Pinto Martins aduz que, no Direito do Trabalho, “[...] é possível utilizar a

teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entitty) ou levantar o

véu que encobre a corporação (to lift the corporate veil).”100

Deilton Ribeiro Brasil101

explana que fundamento ao uso da teoria da disregard of

legal entity no âmbito trabalhista não se encontra no art. 2º, § 2º, da CLT. Sustenta que a

97O STJ aplica a teoria menor: “AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE

EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA - SÚMULA 283/STJ - REQUISITOS PARA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - ENTENDIMENTO

OBTIDO DA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO - IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME -

APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 7/STJ – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - APLICAÇÃO DA

TEORIA MENOR - PRECEDENTE - RECURSO IMPROVIDO. [...] É possível a desconsideração da

personalidade jurídica com base no artigo 28, §5º, do CDC, na hipótese em que comprovada a insolvência da

empresa, pois tal providência dispensa a presença dos requisitos contidos no caput do artigo 28, isto é, abuso de

poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, encerramento ou

inatividade da pessoa jurídica, sendo aplicável a teoria menor da desconsideração, subordinada apenas à prova de

que a mera existência da pessoa jurídica pode causar, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos

causados aos consumidores.” (STJ - AgRg no Ag 1342443/PR, Relator: Min. Massami Uyeda, julgamento:

15/05/2012). 98AMADO, Frederico Augusto Di Trindade. Direito Ambiental Esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método,

2012. p. 454. 99Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade

econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. [...] § 2º - Sempre que uma ou mais

empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou

administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica,

serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das

subordinadas. 100MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 204.

aplicação da teoria somente é possível através do art. 8º da CLT102

, que estabelece a

possibilidade de se decidir pela jurisprudência, por analogia, equidade, princípios, normas

gerais do Direito, usos e costumes, direito comparado, mas sempre de maneira a que nenhum

interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público, funcionando o Direito

comum como fonte subsidiária do Direito do Trabalho, naquilo que não for incompatível com

os princípios fundamentais deste. Em suma, explica:

[...] duas premissas podem ser alinhavadas: 1) Quando a Consolidação das Leis do

Trabalho diz que as sociedades empresárias pertencentes a um mesmo grupo

econômico serão, para efeito da relação de emprego, solidariamente responsáveis

pelas obrigações trabalhistas assumidas por uma delas, não está estabelecendo uma

situação de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Ao contrário, está

criando uma situação de responsabilidade solidária; 2) Somente é cabível falar na

aplicação da teoria da desconsideração de personalidade da pessoa jurídica quando a responsabilidade pelo ato não puder ser imputada diretamente ao sócio,

administrador ou qualquer outra pessoa jurídica. Ou seja, somente terá pertinência

em se falar de desconsiderar a pessoa jurídica quando a personalidade que a lei lhe

atribui é obstáculo à consecução dos fins a que se destina, ou essa personalização

desviar-se dos fins sociais para o qual foi suportada e aceita pelo direito. Caso

contrário, não há razão para se aplicar o instituto da disregard doctrine, pelo simples

fato de que a própria lei permite a responsabilização direta do sócio ou

administrador, sem qualquer necessidade de se comprovar desvio de finalidade,

fraude à lei ou abuso.103

Importante lembrar o caráter protecionista que se verifica na legislação trabalhista

– princípio da proteção ao hipossuficiente –, buscando cercar o trabalhador de garantias em

relação ao empregador.

“Inobstante essa aparente desigualdade ter como escopo igualar as partes no

âmbito do Direito do Trabalho, isso não pode ocorrer de forma absoluta, sob pena de, em

certos casos, ao invés de igualar os desiguais, acarretaria uma desigualdade ainda maior.”104

Na esfera trabalhista é necessário tão-somente evidenciar a possibilidade de prejuízo à

satisfação plena dos direitos laborais do empregado para justificar a concessão da

desconsideração da personalidade jurídica. Pode-se concluir, portanto, que:

101BRASIL, Deilton Ribeiro. A aplicação da disregard of legal doctrine em xeque no direito do trabalho. Anais

do XX Congresso Nacional do CONPEDI/UFES, Vitória, 2011. p. 6-7. 102Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e a outros princípios e normas gerais

do direito, principalmente do Direito do Trabalho, e ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito

comparado, mas sempre de maneira a que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse

público. Parágrafo único. O Direito comum será fonte subsidiária do Direito do Trabalho, naquilo que não for

incompatível com os princípios fundamentais deste. 103BRASIL, Deilton Ribeiro. A aplicação da disregard of legal doctrine em xeque no direito do trabalho.

Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI/UFES, Vitória, 2011. p. 15 104BRASIL, Deilton Ribeiro. A aplicação da disregard of legal doctrine em xeque no direito do trabalho.

Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI/UFES, Vitória, 2011. p. 22.

Não há sentido em aplicar a disregard doctrine em dispositivos legais que

estabelecem, em determinadas circunstâncias, a responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade empresária, destacando que não envolve qualquer quebra ao

princípio da separação entre o ser da pessoa jurídica e o ser da pessoa-membro,

significando, apenas, que em determinadas circunstâncias os sócios são responsáveis

por dívida alheia, ou melhor, dívida da sociedade empresária.105

Com o advento do Código Civil de 2002 e a inserção do art. 50, as discussões

acerca da utilização da desconsideração da personalidade jurídica se acirraram.

Gilberto Gomes

Bruschi106

considera que havia uma utilização abusiva e

indiscriminada da disregard doctrine, e que a disciplina do novo Código Civil possibilitou

melhoras quanto ao tratamento dado, de forma a impedir a banalização do instituto ora

analisado.

2.4 A desconsideração no Direito Civil

Fábio Ulhoa Coelho107

assevera que o Código Civil não traz dispositivo específico

a legitimar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas ressalva que o artigo 50

deste diploma legal “é uma norma destinada a atender às mesmas preocupações que

nortearam a elaboração da disregard doctrine.”

Em sentido diverso, prevê o Enunciado nº 51 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito

Civil, que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica

positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas

legais e na construção jurídica sobre o tema”.

105BRASIL, Deilton Ribeiro. A aplicação da disregard of legal doctrine em xeque no direito do trabalho. Anais

do XX Congresso Nacional do CONPEDI/UFES, Vitória, 2011. p. 22. 106BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 75. 107“A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal. Em qualquer

hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos das leis que se reportam ao tema (Código Civil, Lei

do Meio Ambiente, Lei Antitruste ou Código de Defesa do Consumidor), está o juiz autorizado a ignorar a

autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo do credor. Por outro lado, nas situações abrangidas pelo art. 50 do CC e pelos dispositivos que fazem

referência à desconsideração, não pode o juiz afastar-se da formulação doutrinária da teoria, isto é, não pode

desprezar o instituto da pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores sociais. A

melhor interpretação dos artigos de lei sobre a desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei

Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o

instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e

apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à

coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial:

direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 56-57).

Da análise do texto do art. 50 do Código Civil, tem-se que os pressupostos para a

aplicação da teoria da desconsideração são: o abuso por desvio de finalidade ou por confusão

patrimonial.108

No tocante ao desvio de finalidade, observa-se que o abuso de personalidade

decorre do uso da pessoa jurídica para fins diversos do objeto social, com o intuito de

prejudicar terceiros ou praticar atos em benefício exclusivo de seus membros. Nas palavras de

Deilton Ribeiro Brasil109

: “O desvio de finalidade é caracterizado pelo ato intencional dos

sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica.”

Conforme leciona Gladston Mamede110

:

Ser finalístico que é, a sociedade tem sua existência jurídica compreendida no plano

geral dos atos lícitos, implicando respeito à lei e, num plano mais específico,

respeito às regras ajustadas para a sua existência e funcionamento, devidamente

atermadas no instrumento de constituição (contrato ou estatuto), levado ao registro respectivo. Sua atuação, via de consequência, somente é regular quando se comporta

no âmbito das finalidades dispostas em seu ato de constituição, às quais se acrescem,

por imperativo lógico, os atos indispensáveis à sua administração, existência e

funcionamento. [grifos no original]

A pessoa jurídica deve se pautar no objeto social, tendo em vista que os atos

contrários às normas e aos princípios jurídicos ensejam a aplicação da teoria da

desconsideração.

Todavia, “[...] há que se demonstrar, no caso concreto, o nexo de causalidade

existente entre o abuso da pessoa jurídica por desvio de finalidade e os danos causados aos

credores”111

, para a aplicação da teoria da desconsideração.

O outro pressuposto para a aplicação da referida teoria é a confusão patrimonial.

Nessa hipótese, os sócios ou administradores utilizam recursos da pessoa jurídica em proveito

próprio.

108“O rol elencado pelo artigo 50 do Código Civil é exemplificativo. Todavia, para se abranger a aplicabilidade

do instituto, a análise do caso concreto deve ser criteriosa, sempre levando em consideração a idéia de fraude e

do abuso de direito na utilização formal da pessoa jurídica.” (BERALDO, Leonardo de Faria et al. Direito

societário na atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 168)

“O fato de conter referência aos casos de aplicação, quais sejam, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial,

não traz maiores prejuízos, não só porque entendo que não se trata de enumeração numerus clausus, como

também porque, como destacado, é o desvio de finalidade que justifica todas as hipóteses de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.” (KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da

personalidade jurídica:(disregard doctrine) e os grupos de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p.

133). 109BRASIL, Deilton Ribeiro. A aplicação da disregard of legal doctrine em xeque no direito do trabalho. Anais

do XX Congresso Nacional do CONPEDI/UFES, Vitória, 2011. p. 15. 110MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. Direito Societário: Sociedades Simples e

Empresárias. 4. ed. v. 2. São Paulo: Atlas S.A., 2010. p. 238-239. 111BERALDO, Leonardo de Faria et al. Direito societário na atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte:

Del Rey, 2007. p. 169.

Para Gilberto Gomes Bruschi112

, o Código Civil não acolhe a concepção objetiva

da teoria, não se tratando a confusão patrimonial, portanto, de requisito satisfatório para, por

si só, configurar a desconsideração, tratando-se somente de um meio de provar o abuso da

personalidade jurídica.

No mesmo sentido, sustenta Fábio Ulhoa Coelho113

:

Ao eleger a confusão patrimonial como o pressuposto da desconsideração, a

formulação objetiva visa realmente facilitar a tutela dos interesses dos credores ou

terceiros lesados pelo uso fraudulento do princípio da autonomia. Mas, ressalte-se,

ela não exaure as hipóteses em que cabe a desconsideração, na medida em que nem

todas as fraudes se traduzem em confusão patrimonial. [...]

Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser

adotada como critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-

la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva,

por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer,

deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa

jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica

da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer

tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude.

A confusão patrimonial não é compatível com a autonomia patrimonial, que é

peculiar à pessoa jurídica. Os bens, os haveres, os créditos da sociedade com ela devem

permanecer, não podendo formar o acervo do patrimônio dos sócios. Na medida em que o

patrimônio da pessoa jurídica é transferido para a esfera do domínio dos sócios, a confusão

patrimonial pode se constituir em fator de prejuízo para terceiros, tendo em vista que enseja a

redução da margem de garantia dos credores.114

Da análise do artigo 50 do Código Civil, em síntese, conclui-se:

Portanto, para haver indicação da aplicação do artigo 50 do Código Civil, há que se

detectar a prática de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de

finalidade, ou pela confusão patrimonial, sendo que desta conduta resulte prejuízo

ao terceiro que contratara de boa-fé com a sociedade. O que fica bem evidenciado é

que a pessoa jurídica deve servir de instrumento para que o desvio de finalidade ou a

confusão patrimonial ocorram. É o uso indevido da pessoa jurídica, conforme as

diretrizes que orientaram a construção da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica. Registre-se também que o Código Civil não adotou a

concepção objetiva da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pois

requer, além da confusão patrimonial, a comprovação do abuso da personalidade

jurídica, com a consequente prática de fraude contra terceiros.115

112BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 77. 113COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 46. 114KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica nas organizações. p. 230. 115KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica nas organizações. p. 230.

Em suma: é possível a aplicação da teoria da desconsideração quando houver

abuso da pessoa jurídica pela confusão patrimonial, com a finalidade de lesar credores.

3 A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

A desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida pela doutrina e pela

jurisprudência com o claro intuito de responsabilizar os sócios das empresas devedoras, com a

penhora de bens particulares, em decorrência de fraudes perpetradas mediante o abuso da

autonomia da pessoa jurídica.

Todavia, também se pode aplicar a desconsideração de maneira invertida116

,

afastando “o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a

sociedade por obrigação do sócio.”117

Denomina-se desconsideração inversa118 o instrumento jurídico que permite

prescindir da personalidade e da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para

responsabilizá-la por obrigação pessoal do sócio, em outras palavras, em vez do

sócio se utilizar da sociedade como escudo protetivo, passa a agir ostensivamente, escondendo seus bens na sociedade, ou seja, o sócio não mais se esconde, mas sim a

sociedade é por ele ocultada.119

Fábio Ulhoa Coelho assinala que a fraude a ser reprimida pela desconsideração

inversa é o desvio de bens pessoais para a pessoa jurídica com a finalidade de fraudar

credores e terceiros, furtando-se o sócio de suas obrigações pessoais. O sócio, dessa forma,

“protege” seus bens particulares da execução de obrigações pessoais, tornando-se

insolvente.120

116TAPR, Ap. 0060869-7, 2ª Câm. Cível, rel. Juiz Irlan Arco-verde, j. 17.11.1993, DJ 5.8.1994: “Embargos de terceiro. Penhora. Efetivação em bens da pessoa jurídica. Execução de título extrajudicial contra seus dois únicos

sócios. Admissibilidade nas circunstâncias emergentes no caso concreto. Aplicação da teoria da desconsideração

da personalidade jurídica. Improcedência da ação. Recurso improvido, por maioria. A doutrina e jurisprudência

têm admitido que em determinadas circunstâncias, quando de vislumbre que a pessoa jurídica está servindo de

capa para ocultar o interesse escuso de seus sócios em detrimento do direito de terceiro, possa ser desconsiderada

a sua personificação, por se confundir com as pessoas naturais que a integrem. Inegável, no caso concreto, a

responsabilidade patrimonial secundária da sociedade, já que os únicos sócios (marido e mulher), executados,

pelo que se constatou, não possuem bens suficientes que possam garantir a execução. A dívida, ademais, é

oriunda da compra das cotas sociais.” 117COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 47. 118“A terminologia desconsideração inversa surge com a possibilidade vislumbrada de se desconsiderar a

personalidade jurídica da sociedade para o alcance de bens da própria sociedade, contudo, em decorrência de

atos praticados por terceiros – os sócios.” (BRASIL, Deilton Ribeiro. Reconstruções jurisprudenciais da

disregard doctrine: uma nova leitura das premissas básicas. Anais do XVIII Encontro Nacional do

CONPEDI, Maringá, 2009. p. 14) 119BRASIL, Deilton Ribeiro. Reconstruções jurisprudenciais da disregard doctrine: uma nova leitura das

premissas básicas. Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI, Maringá, 2009. p. 14. 120COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 47.

Na jurisprudência121

, há relatos da aplicação inversa da teoria da desconsideração.

Reconhecendo essa possibilidade, na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça

Federal foi aprovado o Enunciado 283, in verbis:

Enunciado nº 283 do Conselho de Justiça Federal: Art. 50: É cabível a

desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens

de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com

prejuízo a terceiros.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de cabimento da

desconsideração inversa quando demonstrados os requisitos do abuso da personalidade

jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Nesse sentido é a

decisão do Recurso especial de lavra da Ministra Nancy Andrighi122

:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE

TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA

PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE. [...]

III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo

afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do

que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o

ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa

jurídica por obrigações do sócio controlador. IV – Considerando-se que a

finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente

societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio

controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica,

conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a

desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da

sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto

preenchidos os requisitos previstos na norma. V – A desconsideração da

personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção

somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos

relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do

CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o

juiz, no próprio processo de execução, “levantar o véu” da personalidade

jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. [...]

[grifos nossos]

121Sobre o tema, a jurisprudência: “TJSC. Desconsideração da personalidade jurídica denominada "inversa". Art. 50 do CC/2002 e Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil do CJF. O interlocutório que desconsidera

inversamente a personalidade jurídica de sociedade comercial, fazendo com que a empresa responda com seu

patrimônio pela dívida pessoal do sócio, está circunscrito aos pressupostos do art. 50 do atual Código Civil,

cabendo ao juiz, fundamentadamente, apontar as razões do seu convencimento, seja pelo acolhimento ou rejeição

do pedido, sob pena de vulneração aos arts. 93, IX, da CRFB, e 165, do CPC, dispositivos que transmitem a

necessidade de motivação nas decisões judiciais, ainda que concisa, sob pena de nulidade. [...] (TJSC – AI

2005.031945-4, de Canoinhas. Relator: Des. Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, julgamento: 27/07/2007). 122 STJ – 3ª Turma - REsp 948117 / MS – Relatora Ministra Nangy Andrighi –Julgamento: 22/06/2010 –

Publicação: 03/08/2010.

Depreende-se do entendimento esposado pela Ministra relatora que a

desconsideração inversa será possível quando verificados os requisitos do art. 50 do Código

Civil.

No julgamento do Agravo de Instrumento 0554988-91.2011.8.13.0000, do Tribunal

de Justiça de Minas Gerais, por unanimidade a 11ª Câmara Cível decidiu pela não aplicação da

teoria da desconsideração. Apesar de os desembargadores concordarem com o entendimento da

possibilidade de aplicação da desconsideração inversa, no caso concreto, os pressupostos para a

aplicação da teoria não foram atendidos.

Em sua fundamentação, a Relatora Desembargadora Selma Marques ressaltou que:

[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada com

cautela, uma vez que constitui exceção ao princípio da separação entre a pessoa da

sociedade e a pessoa dos sócios. Além disso, sua aplicação não importa em

desconstituição da personalidade jurídica, mas tão-somente na declaração de sua ineficácia. [...] Aludida teoria permite que a sociedade empresarial não devedora,

responda pelas obrigações particulares de seus sócios. Contudo, no caso em espécie

não há falar na aplicação da teoria inovadora haja vista a existência de outros

meios capazes de atingir o patrimônio do executado, sem prejudicar a função

social da sociedade. Isso porque os bens e os ativos de sociedade empresarial

não respondem por eventuais dívidas pessoais dos sócios que a compõe, haja

vista o princípio da autonomia patrimonial existente entre a pessoa JURÍDICA

e a pessoa dos sócios.123 [grifos nossos]

O entendimento acima esposado demonstra que a desconsideração inversa pode

ser aplicada se estiver em harmonia com os requisitos do artigo 50 do Código Civil, bem

como o art. 620 do Código de Processo Civil124

.

A decisão proferida segue o entendimento de que a insolvência do devedor não é

pressuposto para a aplicação da teoria da desconsideração, portanto, da mesma forma, não

deverá ser aplicada na sua modalidade invertida. Observa-se que a Desembargadora relatora

preocupou-se com possível prejuízo à função social da sociedade.

Da análise do julgado do TJMG, inferem-se alguns requisitos que deverão ser

atendidos para a desconsideração inversa, quais sejam: I) o caráter excepcional, que,

conforme a relatora “no caso em espécie não há falar na aplicação da teoria inovadora haja

vista a existência de outros meios capazes de atingir o patrimônio do executado.”; II) o

princípio da autonomia patrimonial, segundo o qual os bens do sócio não se confundem com

os bens da pessoa jurídica.

123TJMG – 11ª Câmara Cível – AI 0554988-91.2011.8.13.0000 – Relator Desembargadora Selma Marques –

Julgamento: 15/02/2012 - Publicação: 29/02/2012. 124Código de Processo Civil. Art. 620. “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz

mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.”

Dos julgados analisados, observa-se que as decisões elucidam que as provas

foram minuciosamente analisadas, sendo aplicada a desconsideração inversa somente nos

casos em que há provas inequívocas de abuso de personalidade jurídica.

Gilberto Gomes Bruschi125

assevera que há possibilidade de aplicação da

desconsideração inversa quando existir dívida (executável) por parte de um dos sócios e

houver transferência patrimonial indevida à sociedade, consistindo em ato lesivo aos credores

particulares desse sócio, em decorrência de confusão patrimonial. Quanto à adequação ou não

da aplicação inversa da desconsideração nesse caso, explica o autor:

Pode-se suscitar uma dúvida à respeito da aplicação da desconsideração inversa nesse tipo de execução civil, pois existe a plausibilidade de se concluir que ocorre

certa preferência do crédito particular em detrimento dos credores sociais.

A resposta para essa dúvida é simples e usaremos as sábias palavras de CALIXTO

SALOMÃO FILHO para dirimir a questão: 'a transferência indevida de recursos à

sociedade, simples devolução da contrapartida dessa transferência ao credor

(devolução essa evidentemente limitada ao valor da transferência) não representaria

qualquer diminuição da garantia. Nem mesmo qualquer agressão, direta ou indireta,

ao capital da sociedade [...] Não há, assim, qualquer lesão aos credores sociais'.126

Quanto a esta dúvida, depreende-se, do exposto, que da aplicação inversa da

desconsideração não decorre lesão aos credores da sociedade, haja vista que, se o sócio

transferiu indevidamente patrimônio para a sociedade, a desconsideração dessa transferência

não muda a situação dos demais credores da sociedade, os quais não podem contar com o

patrimônio indevidamente transferido para a sociedade. Observe-se que a teoria da

desconsideração inversa só será aplicada para tornar sem efeito a transferência indevida do

patrimônio do sócio para a sociedade.

Ainda tratando das dúvidas sobre a aplicação inversa da desconsideração,

prossegue Gilberto Gomes Bruschi127

:

Outro trecho da mesma passagem da obra de CALIXTO SALOMÃO FILHO é

relevante para explicar a importância da desconsideração inversa, na execução

ajuizada contra um dos membros do quadro societário: 'Os efeitos da teoria da

desconsideração são benéficos não apenas para o credor. Podem sê-lo também para

o devedor. A desconsideração não apenas torna a execução mais efetiva para o

credor. Em certos casos, pode fazer com que a execução seja menos gravosa para o

devedor. A desconsideração, ao evitar a alienação compulsória das quotas, impede a interferência judicial na sociedade, evitando em certos casos a apuração de haveres

125BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 131. 126SALOMÃO FILHO, Calixto apud BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica:

aspectos processuais. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 131. 127SALOMÃO FILHO, Calixto apud BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica:

aspectos processuais. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 132.

relativamente às quotas penhoradas e a consequente sangria patrimonial da

sociedade ou impedindo que os demais sócios se vejam obrigados a adquirir quotas

para impedir a entrada de terceiros adquirentes (caso o estatuto da sociedade preveja

qualquer uma das hipóteses)'.

Portanto, resta sanada a indagação de que o caso da fraude ou do abuso praticados

pelo sócio poderia ser resolvido por meio da penhora de quotas do sócio que praticou o ilícito,

porque, ainda que se admita a penhora de quotas sociais, o interesse do credor do sócio é o

recebimento de seu crédito e não a participação ou venda de quotas de uma sociedade que

desconhece.

Dessa forma, “deve ser aceita também a aplicação invertida da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, o afastamento do princípio da autonomia

patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.” 128

3.1 Aplicação no Direito de Família

Fábio Ulhoa Coelho129

menciona que: “A desconsideração invertida ampara, de

forma especial, os direitos de família.” Carlos Roberto Gonçalves130

aduz que o instituto resta

caracterizado quando o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é afastado para

responsabilizar a pessoa jurídica por obrigação do sócio, e exemplifica sua ocorrência nas

hipóteses: de fraude na partilha de bens na desconstituição do vínculo conjugal do casamento,

ou de união estável; de esquiva do genitor ao pagamento de pensão alimentícia devida ao

filho; e de reconhecimento de direito integral à herança. Flávio Tartuce131

assevera que:

O exemplo típico é a situação em que o sócio, tendo conhecimento do divórcio,

compra bens com capital próprio em nome da empresa (confusão patrimonial). Pela

desconsideração, tais bens poderão ser alcançados pela ação de divórcio, fazendo

com que o instituto seja aplicado no Direito de Família.

No caso de fraude quanto à partilha de bens, entende-se que, na verdade, essa

fraude não ocorre no exato momento da dissolução do vínculo conjugal, mas num momento

anterior em que um dos cônjuges ou companheiros adquire bens de grande monta, porém os

128SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 64-65. 129COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 10. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 47. 130GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 219-

220. v.1. 131TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:

Método.2011. p. 139.

registra em nome da empresa em que figura como sócio controlador. Consequentemente,

esses bens adquiridos em nome da sociedade, com recursos que integram o patrimônio

comum do casal serão marginalizados e não farão parte do montante a ser partilhado em

eventual dissolução da sociedade conjugal pelo divórcio.132

Conforme assevera André Pagani de Souza133

, normalmente, a desconsideração

inversa da personalidade jurídica é invocada em casos de desvio de bens, em que o devedor

transfere seus bens para uma pessoa jurídica sobre a qual detém o controle. Dessa forma, ele

continua a usufruir de tais bens, apesar de não serem formalmente de sua propriedade, mas da

pessoa jurídica controlada. O autor ilustra:

[...] o marido, percebendo que seu casamento vai chegar ao fim, convence a esposa a

transferir os imóveis que o casal adquiriu ao longo da sua união para uma sociedade

limitada na qual cada um teria metade das quotas representativas do capital social. O

marido alega que a transferência é uma boa medida para facilitar a administração dos imóveis e inclusive a venda deles, se necessário, pois esta poderia ser feita por

meio de um contrato de cessão de quotas, menos custoso do que as escrituras

públicas que normalmente são utilizadas para instrumentalizar a compra e venda de

imóveis. Em seguida, o marido sugere que ambos cedam suas quotas da sociedade

limitada para uma offshore company, sociedade localizada no Panamá, país onde a

lei permite que a integralidade do capital social seja representada por ações ao

portador. Alega, para tanto, que naquele país os impostos são mais reduzidos que no

Brasil, e, se alguém quiser comprar os imóveis do casal, bastará entregar as ações ao

portador, representativas da totalidade do capital social da sociedade panamenha

para o comprador, que este se tornará controlador da sociedade panamenha, e da

brasileira e, logo, proprietário dos imóveis. Em seguida, após ser feita a cessão das quotas para a sociedade panamenha, o marido fica com as ações ao portador da

offshore company e ajuíza ação de separação em face da esposa, alegando que não

existem bens imóveis em nome do casal para partilhar. Formalmente, a proprietária

dos imóveis será a sociedade brasileira controlada pela panamenha, mas na prática o

marido continuará a usufruir os imóveis e a dispor deles quando entender

conveniente, pois é o controlador de ambas as sociedades.

Da análise do exemplo citado, depreende-se que, caso seja respeitada a autonomia

patrimonial da pessoa jurídica, o ilícito praticado pelo marido às vésperas da separação e os

seus atos não serão desconstituídos, pois estão resguardados pela aparente licitude da conduta

das pessoas jurídicas envolvidas na separação do patrimônio; não há, em princípio, ilicitude

na alienação de imóveis para uma sociedade empresária, nem na cessão de quotas dos sócios

dessa sociedade para uma pessoa jurídica de outro país. Para reprimir certos tipos de ilícitos,

portanto, a personalidade jurídica deve ser desconsiderada no caso concreto. No caso em tela,

para que seja aplicada a desconsideração inversa da personalidade jurídica, os bens da

132BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 132. 133SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 61-62.

sociedade por quotas de responsabilidade limitada constituída no Brasil devem ser

considerados como bens do casal que está se separando, para fins de partilha.

“No exemplo, o marido objetivou burlar as regras pertinentes ao regime de bens

de seu casamento, e não a garantia geral dos credores, hipótese em que poderia ser utilizada

a ação pauliana.”134 Percebe-se, assim, a importância da desconsideração da personalidade

jurídica em sentido inverso para o combate eficaz à fraude contra o regime de bens entre os

cônjuges. André Pagani de Souza135

fundamenta:

Nos termos do art. 158, do Código Civil, que cuida da fraude contra credores, 'os

negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o

devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore,

poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos'.

No exemplo analisado, a fraude contra o regime de bens realizada pelo marido não o

tornaria insolvente em um primeiro momento, pois os bens do casal apenas

deixariam de ser constituídos por imóveis e passariam a ser quotas da sociedade. Ou

seja, ao transferir os bens do casal para uma sociedade da qual marido e

mulher são sócios, não se estará praticando ato que torne insolvente um dos

dois cônjuges, já que eles continuarão a ser proprietários das quotas

representativas do capital social da pessoa juridical. Daí decorre a dificuldade

de se intentar a ação a que se referem os arts. 158 e seguintes do Código Civil

(ação pauliana) e a utilidade de invocar a teoria da desconsideração da

personalidade juridical em sentido inverso para combater a fraude contra o

regime de bens. 136 [Grifos nossos]

Em se tratando de outras hipóteses em que é cabível a desconsideração inversa no

Direito de Família, Gilberto Gomes Bruschi137

assevera que o entendimento doutrinário e

jurisprudencial acerca da partilha de bens na dissolução da sociedade conjugal é inteiramente

aplicável no âmbito dos alimentos, tanto no que se refere a sua justa fixação pelo juízo quanto

a sua execução.

Carlos Roberto Gonçalves138 assevera que: “[...] não raras vezes, também, o pai

esconde seu patrimônio pessoal, na estrutura societária da pessoa juridical, com o reprovável

propósito de esquivar-se do pagamento de pensão alimentícia devida ao filho”.

Em conformidade, a jurisprudência:

134SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 63. 135SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 63. 136No mesmo sentido: TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, AI 347.536-4/1/Americana-SP, Relator Des.

Waldemar Nogueira Filho, julgamento: 10/08/2004. 137BRUSCHI, Gilberto Gomes. Desconsideração da Pessoa Jurídica: aspectos processuais. 2 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 134. 138GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 219.

v.1.

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIRO. BLOQUEIO DE VALORES

EXISTENTES EM CONTA CORRENTE DE EMPRESA DA QUAL O

EXECUTADO POR DÍVIDA ALIMENTAR É SÓCIO MAJORITÁRIO.

CONFUSÃO PATRIMONIAL COMPROVADA. MANUTENÇÃO. APELO

DESPROVIDO.

Caso em que a prova carreada aos autos revelou a efetiva ocorrência de confusão

entre o patrimônio do executado e o da pessoa jurídica, da qual é sócio majoritário, o

que autoriza a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica inversa e,

assim, a manutenção do bloqueio de valores existentes em nome da empresa para

viabilizar o pagamento do crédito alimentar (inadimplemento desde junho de

2010). 139 [grifos nossos]

Portanto, quando se configurar o abuso praticado pelo marido, companheiro ou

genitor em detrimento dos legítimos interesses de seu cônjuge, companheiro ou filho,

aplicação da desconsideração inversa constituirá um freio às fraudes e abusos promovidos sob

o véu protetivo da pessoa juridical.140

Carlos Roberto Gonçalves141

leciona que: “A aplicação da teoria da

desconsideração inversa poderá também ser invocada pelo prejudicado, para obter o

reconhecimento de seu direito integral à herança.”

139Apelação Cível Nº 70053463477, 8ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins

Pastl, Julgado em 16/05/2013). 140TJMG, AG. 1.0000.00.354133-1/00, 2ª CÂMARA Cível 141GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 219.

v.1

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto, pode-se concluir o seguinte:

a) a disregard doctrine existe e tem sido aplicada há vários anos, conforme se

depreende dos casos relatados de “Bank of United States vs. Deveaux” e “Salomon vs.

Salomon & CO”. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica originou-se por meio

de construção jurisprudencial;

b) a autonomia patrimonial é um dos elementos fundamentais do direito

societário, tendo em vista que determina a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os

membros que a compõem. Em decorrência do princípio da autonomia patrimonial, reconhece-

se que o patrimônio pessoal dos sócios, associados ou administradores não responde por

dívidas da pessoa jurídica (a depender do tipo societário), já que esta é sujeito de direitos e

deveres distinto de seus membros. Portanto, quem atua legitimamente no mercado é a pessoa

jurídica e não os membros que a compõem. Tal princípio, contudo, não é absoluto; poderá ser

afastado, episodicamente, pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando

caracterizada a fraude e uso indevido da personalidade jurídica;

c) outro ponto salutar é o entendimento de que a teoria não surgiu com o intuito de

extinguir a ficção da pessoa jurídica. É justamente para preservar o instituto e para garantir

que ele seja utilizado da forma mais proba. O que se busca é a desconsideração para aquela

situação específica e de forma pontual. Não haverá a desconstituição da pessoa jurídica;

d) não é plausível de confusão a teoria da desconsideração com a chamada ultra

vires societatis. Nesta, positivada no art. 1.015 do CC, não existe uma impossibilidade de

responsabilizar o sócio, porque há previsão legal que legitima a imputação de

responsabilidade. Já a desconsideração será utilizada quando se tratar da única solução viável

para haver responsabilização do sócio (art. 50, CC/02);

e) despersonificação e desconsideração não se confundem. Na primeira, a

sociedade perde por completo a sua personalidade jurídica, enquanto, na segunda, a

personalidade jurídica é afastada, temporariamente, para atingir o patrimônio dos sócios que

se tenham utilizado da sociedade de forma fraudulenta;

f) a teoria maior da desconsideração é regra geral no sistema jurídico brasileiro.

Para sua aplicação, exige-se a demonstração de desvio de finalidade (teoria maior subjetiva da

desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria maior objetiva da

desconsideração). Lado outro, a teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso

ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor, no Direito Ambiental e

no Direito Econômico, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o

pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de

confusão patrimonial;

g) a regra geral adotada no ordenamento jurídico brasileiro, prevista no art. 50 do

CC/02, consagra a teoria maior da desconsideração, tanto na sua vertente subjetiva quanto na

objetiva. Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a

desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (teoria

maior subjetiva da desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar

terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão

patrimonial (teoria maior objetiva da desconsideração), demonstrada pela inexistência, no

campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. Os

efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios

participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio

majoritário ou controlador;

h) a desconsideração inversa é admitida na jurisprudência brasileira. O

entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de cabimento da desconsideração

inversa quando demonstrados os requisitos do abuso da personalidade jurídica, caracterizado

por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, ou seja, quando verificados os requisitos do

artigo 50 do Código Civil;

i) deverão ser atendidos alguns requisitos para a desconsideração inversa: I) o

caráter excepcional, não havendo, no caso concreto, outros meios capazes de atingir o

patrimônio do executado; II) o princípio da autonomia patrimonial, segundo o qual os bens do

sócio não se confundem com os bens da pessoa jurídica;

j) da análise jurisprudencial, depreende-se que a desconsideração inversa somente

é aplicada nos casos em que há provas inequívocas de abuso de personalidade jurídica;

k) comprovou-se através da doutrina e da jurisprudência a relevância da

desconsideração invertida no âmbito do Direito de Família. O instituto resta caracterizado

quando o princípio da autonomia patrimonial é afastado para responsabilizar a pessoa jurídica

por obrigação do sócio. É corriqueira a hipótese em que o sócio da sociedade empresária age

com má-fé, com intuito de fraudar a partilha de bens na desconstituição do vínculo conjugal

do casamento (ou de união estável), ou se esquivar do débito alimentício ou, mesmo, não

reconhecer direito integral à herança, e transfere seus bens particulares à sociedade

empresária, sob o argumento de que o princípio da autonomia patrimonial o protegerá;

l) a teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa vem com

o argumento de que, através de embasamentos legais já existentes, o magistrado,

demonstrando o ideal de justiça, aplica a referida lei de forma inversa, ou seja, efetiva o

direito atacado, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade empresária a fim de

quitar débitos particulares do próprio sócio, em virtude de o sócio ter agido de forma

fraudulenta, simulada e/ou abusiva de direito.

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