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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MAÍRA SOARES ALBUQUERQUE A ESPIRITUALIDADE MONÁSTICA EM CLUNY: REAÇÃO À SECULARIZAÇÃO DO CLERO CURITIBA 2009

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ - historia.ufpr.br · Índice introduÇÃo 04 1 - o cristianismo carolÍngio 06 1.1 - sobre eginhardo 16 2 - a crise da secularizaÇÃo do clero 19

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

MAÍRA SOARES ALBUQUERQUE

A ESPIRITUALIDADE MONÁSTICA EM CLUNY: REAÇÃO À SECULARIZAÇÃO DO CLERO

CURITIBA

2009

A ESPIRITUALIDADE MONÁSTICA EM CLUNY: REAÇÃO À SECULARIZAÇÃO DO CLERO

MAÍRA SOARES ALBUQUERQUE

A ESPIRITUALIDADE MONÁSTICA EM CLUNY: REAÇÃO À SECULARIZAÇÃO DO CLERO

Monografia apresentado à disciplina Estágio

Supervisionado em Pesquisa Histórica HH067.

Orientadora: Professora Doutora Fátima

Regina Fernandes.

CURITIBA

2009

ÍNDICE

INTRODUÇÃO 04

1 - O CRISTIANISMO CAROLÍNGIO 06

1.1 - SOBRE EGINHARDO 16

2 - A CRISE DA SECULARIZAÇÃO DO CLERO 19

3 - RAUL GLABER E A PERSPECTIVA CLUNIACENSE 28

3.1 - A ESPIRITUALIDADE EM CLUNY: LUTA ENTRE O BEM E O MAL 33

CONCLUSÃO 39

BIBLIOGRAFIA 43

4

INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste em uma tentativa de compreender algumas esferas da vida

religiosa na idade monástica pela qual passou a Europa nos séculos X e XI, com ênfase

na ordem regular de Cluny. Para isto, procuramos entender alguns aspectos da

cristandade carolíngia com o objetivo de desvendar os fatores que evoluíram

ocasionando a crise espiritual para a qual Cluny foi a resposta.

Ao analisar as formas tomadas pelo cristianismo nestes dois períodos, optamos

por concentrar nossa atenção na analise do que diz respeito ao papel de centralidade na

vida e espiritualidade cristã: por quem ele foi desempenhado, de quais formas esta

centralidade pode ser verificada e quais foram as conseqüências em cada um dos casos.

Para tanto, observamos as formas políticas através das quais se buscou

consolidar a fé cristã no império carolíngio, bem como a forma como estas

influenciaram e até moldaram a vida religiosa da época. Isto torna necessária a

compreensão de aspectos referentes à natureza do poder na perspectiva do império.

O diálogo existente entre o poder temporal e o espiritual é de extrema relevância

para o presente trabalho, pois o fruto desta relação imprimiu feições únicas à

modalidade carolíngia da cristandade, legando-lhe significantes contribuições no campo

da moral. Não obstante, é ainda deste ponto de partida que se objetivou compreender a

formação das estruturas de comunicação que ligaram de maneira íntima as instituições

eclesiásticas ao poder secular, pois, a forma como coexistiram estas duas esferas na

sociedade carolíngia teve impacto na vida religiosa dos anos que se seguiram à

dissolução do império.

A fonte utilizada nesta primeira parte do estudo é a Vita Karoli Imperatoris1,

biografia de Carlos Magno escrita por Eginhardo. Também foram retirados de Oeuvres

Completes d’Eginhard2 outros textos considerados relevantes. Pelo fato de estar

diretamente ligado ao imperador, na qualidade de conselheiro, este autor oferece uma

perspectiva de extrema relevância, tendo em vista nosso objetivo de capturar as formas

aglutinadoras e influenciadoras da consolidação da fé cristã.

1 Eginhardo. Vita Karoli Imperatoris. In: TESSIER, Georges. Charlemagne. Textos, introdução e notas. 2ed. Verviers: Marabau, 1982. (Le Memorial des Siècles) Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. 2 Cartas de Eginhard, In: Teulet, A. Oeuvres Complètes d’Eginhard, Societé de l’Histoire de France, Paris, 1843, tomo II, p. 13, 27 e 29. Apud ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos

medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 183-185

5

A partir da compreensão das dinâmicas existentes dentro da sociedade

carolíngia, no âmbito espiritual, pretendemos abarcar a totalidade de fatores que

levaram a reforma monástica iniciada por Cluny, no século X. Desta forma, o

testamento do duque Guilherme de Aquitânia, encontrado na antologia Recueil des

chartrs de l’abbaye de Cluny3 é o segundo documento utilizado como fonte em nossa

pesquisa, por oferecer evidências do resultado obtido na prática do legado das formas

político-religiosas inauguradas sob a égide do governo de Carlos Magno.

Embora o duque da Aquitânia escreva em um período significantemente

posterior a desestruturação da sociedade carolíngia, é testemunha de uma realidade

cujos fundamentos são desdobramentos dessa tradição. A postura que tem perante esta

realidade, porém, é o que constitui indício da transição de uma dinâmica para a outra.

Seu testamento reflete preocupações que já são característica de outro tipo de

religiosidade; uma que teve como referencia de poder aglutinador, outra instituição que

não os órgãos do poder secular. Isto torna o testemunho de Guilherme extremamente

relevante, pois se relaciona com os dois períodos que pretendemos estudar.

Finalmente, para explorar as vias através das quais a nova espiritualidade

legitimou-se e envolveu toda a sociedade medieval, bem como os novos valores

adquiridos pela cristandade em função desta reforma, estudamos a obra do cronista do

século XI, Raul Glaber, Les Cinq Livres de ses histoires 4. Este monge cluniacense é

autor de uma obra cujo estilo literário nos interessa tanto quanto seu valor histórico. Isto

também em função do fato de seu estilo constituir, por si só, uma ferramenta de

importante relevância ao oferecer uma imagem da mentalidade da sociedade do século

XI.

Glaber escreve sob uma perspectiva escatológica da historia e nos permite

contemplar aspectos da sociedade na era da espiritualidade monástica, destacando neste

contexto a ordem de Cluny que surge tanto para ele quanto para outras testemunhas da

época, como o centro da reforma espiritual cujas inovações no campo da liturgia e no

regime da vida monástica fizeram recair sobre a sociedade feudal uma nova forma de

religiosidade, cujas características nos convém estudar.

3 Recueil des chartrs de l’abbaye de Cluny. BRUEL, A. (Ed.). Paris, 1876, nº 11. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. 4 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886.

6

1 - O CRISTIANISMO CAROLÍNGIO

Para que se possa falar de vida espiritual é necessário que exista previamente

não só uma adesão formal a uma doutrina, mas também a absorção de seu conjunto de

crenças religiosas pelos indivíduos da sociedade. A partir desta premissa, muitos autores

explicam o fato de que é possível constatar diferentes tipos de cristianismo na Idade

Média, já que durante o longo processo de consolidação desta fé a sociedade, não só

sofreu inúmeras mudanças de natureza político-econômica, mas também encontrou

diferentes maneiras de relacionar-se com o sagrado. Lê Goff faz uma separação clara

entre o seguidor cristão de antes das transformações iniciadas no ano Mil, e o cristão de

depois do século XIII – século em que tais mudanças chegaram a um ápice. Para o

autor, o primeiro momento constitui um período em que a sociedade não estava

completamente cristianizada. A religião havia já imposto de maneira superficial a sua

lei aos seres e às coisas, mas não estava profundamente enraizada. Pode-se dizer que era

então um cristianismo que tolerava até certo ponto a superficialidade da crença, sob a

condição de que houvesse respeito à Igreja. Era uma religião que não exigia muito dos

leigos e da mesma forma não nutria quanto a eles nenhum tipo de expectativa além da

de que refreassem sua natureza selvagem e buscassem certo equilíbrio5.

Por sua vez, André Vauchez, embora conceda que a conversão de certas regiões

da Germânia à fé cristã tenha sido de fato tardia, é levado por outras razões a reportar ao

inicio do século VIII o ponto de partida para um estudo mais aprofundado sobre a vida

espiritual no medievo, baseado na convicção de que o processo de cristianização

consolidou-se nesta época. Para ele, a peculiaridade da vida dos cristãos de antes do

século X se dá menos por uma incompletude de conversão do que por uma

característica intrínseca ao tipo de cristianismo que viviam.

Sob a luz destes argumentos, é pertinente ressaltar que na Idade Média, época na

qual a coesão dogmática ainda não se encontrava seguramente dominante e em que uma

grande distancia separava as massas incultas da elite letrada, havia lugar, em meio à

própria ortodoxia, para diferentes formas de interpretar e viver a mensagem cristã.

No século VIII, essencialmente apos a vitória de Carlos Martel em Poitiers,

livrando a Cristandade da ameaça muçulmana, a Igreja de Roma, selando uma aliança

com a nova casa franca, legitimou a transição dinástica por ocasião da sagração de

5 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 27, 28.

7

Pepino, o Breve, pelo papa Estevão II em 7546. Esta aliança foi confirmada e

consolidada por seu filho Carlos Magno com a conquista definitiva do reino dos

lombardos, inimigos declarados de Roma. Seguiu-se, então, o grande movimento de

expansão do reino carolíngio e com ele o ocidente testemunhou no mesmo século as

primeiras tentativas de construção efetiva de uma sociedade cristã. As feições que este

processo viria a originar estão em muito ligadas à figura do soberano carolíngio.

A responsabilidade e poder do soberano se estendem sobre a Igreja da mesma

forma como compreendem a sociedade laica, de modo que se torna responsável pela

salvação de seu povo. O poder investido a ele para o desempenho de tamanha função

emana do universo sobrenatural através do ritual da sagração. A Igreja e o soberano

possuem neste momento uma relação direta e o papel deste assemelha-se ao do pastor

das almas de seus súditos. Neste contexto é interessante observar a peculiaridade desta

aliança.

O principio gelasiano foi enunciado pelo papa Gelásio I no século V, numa carta

escrita ao imperador oriental Anastácio I, e viria a propor pela primeira vez uma

fórmula de coexistência dos dois poderes que regem o mundo. O texto é marcado pela

distinção entre a autoridade pontifícia e o poder régio7. Embora carregasse também a

expressão de um princípio de subordinação de uma autoridade em relação à outra, o

caráter que nos convém destacar é o de simples separação dos poderes, justamente para

enfatizar o quão única foi a configuração do plano politico-religioso no reino carolíngio,

já que este não reproduz a dinâmica do principio gelasiano. A modalidade carolíngia de

cristandade tendia a um sistema de supremacia coeso, insistindo na unidade através da

idéia de “redução ao uno” 8.

Com efeito, o exemplo mais emblemático desta dinâmica foi Carlos Magno, que

surgiu aos olhos de seus contemporâneos como um restaurador do Império cristão.

Embora suas ações tenham constituído um exercício na direção do restabelecimento da

religião cristã, e da continuidade de uma doutrina que havia sido estabelecida no

passado, o que se observou na modalidade do cristianismo carolíngio foi o surgimento

de uma religiosidade peculiar e em muitos quesitos distinta daquela que se tentava

recuperar.

6 ALPHEN, L. Carlos Magno e o Império Carolíngio, Lisboa: Início, 1971, p. 29. 7 KNOWLES, David, OBOLENSKY, Dimitri. Nova história da Igreja: Idade Média. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 58 e 96, 97. 8ALPHEN, Op. Cit., p. 147.

8

É natural imaginar que a Igreja destes tempos passava por uma fase bastante

delicada e a estabilidade era algo ainda a ser alcançado. Desta forma, buscou conquistar

este objetivo através da realização da Cidade de Deus na terra e, para tanto, contou com

o poder laico: os soberanos conferiram força de lei aos decretos eclesiásticos que, na

época precedente, muitas vezes se mantinham ineficientes, na ausência de um braço

secular para garantir que fossem aplicados9.

Existe, então, neste período uma união entre Igreja e poder temporal que se

traduz na figura do soberano carolíngio. Isto afeta, consequentemente, a natureza da

vida religiosa da que se tem evidência, já que nela se faz presente tanto o temor a Deus,

quanto a submissão ao poder temporal. Obedecer à doutrina cristã era, em ultima

estância, expressar obediência e fidelidade ao sistema político em cujo centro se

encontrava o soberano. Uma Epistola do ano 796, na qual Carlos Magno deixa clara sua

missão em conformidade com a missão do Papa, ilustra a relação estreita existente entre

os deveres e objetivos do poder temporal e espiritual para com o cristianismo:

“Assim como fiz um pacto com o bem aventurado predecessor (Adriano I) de vossa santa Paternidade, desejo estabelecer com Vossa Santidade um pacto inviolável de fé e caridade, a fim de que a graça divina obtida pelas preces de Vossa Santidade apostólica e a vossa benção apostólica me possam seguir por toda parte, para que, se Deus quiser a Santíssima Se da Igreja Romana seja sempre defendida pela nossa devoção. O nosso dever e, com o auxilio da divina piedade, defender por toda a parte com as armas a Santa Igreja de Cristo, tanto das incursões dos pagãos como das devastações dos infiéis, e fortifica-la no exterior e no interior pela profissão da fé católica. E vosso dever Santíssimo Padre, levantar as mãos para Deus, como Moises, para auxiliar o nosso exercito de maneira que, por vossa intercessão e pela vontade e graça de Deus, o povo cristão obtenha para sempre a vitória sobre os inimigos do Seu Santo nome e o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo seja glorificado em todo o mundo.”10

É interessante analisar a linguagem e os conceitos expressos neste documento,

pois compõem evidência fundamental de como a Alta Idade Média interagiu com a fé

cristã. É possível observar logo no início do documento que as palavras pacto inviolável

representam a união entre o poder temporal e espiritual mencionada anteriormente.

Encontra-se também a idéia de ameaça a Igreja: pagãos e infiéis são uma realidade com

a qual o cristianismo necessita lidar; e Carlos Magno deixa bastante clara a

responsabilidade que assume perante o inimigo, no papel de protetor e defensor da

9 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – séculos VIII a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 17. 10

Carlos Magno. Epistolae ad Leonem III Papam. In: TESSIER, Georges. Charlemagne. Textos, introdução e notas. 2ed. Verviers: Marabau, 1982. (Le Memorial des Siècles) Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 69, 70.

9

Igreja, não somente através do uso das armas, mas também por meio de sua devoção.

Neste contexto mais uma evidência da convergência de objetivos entre as esferas

temporal e espiritual vem à tona nas palavras nosso dever, estabelecendo que a defesa

da Santa Sé da Igreja Romana responsabilidade de ambos. Carlos Magno enfatiza

também a necessidade em se fortificar a Igreja tanto externa quanto internamente,

mostrando assim sua preocupação com a consolidação da doutrina cristã.

Na luta contra os inimigos da Igreja, o papel que deveria desempenhar o Papa,

no âmbito espiritual, é naturalmente, bastante claro e até mesmo previsível quando

analisado o documento em questão. Por outro lado, a maneira como o poder temporal se

compromete e se engaja com a causa espiritual, esta sim, compõe elemento de mudança

e enuncia uma fase na história do cristianismo em que a fé já se apresenta consolidada

no plano político através de sua adesão no alto da pirâmide social, legitimando e sendo

legitimada pelo poder laico.

Porém, embora o cristianismo já tivesse atingido o status de doutrina oficial e já

encontrasse adesão junto ao poder temporal, não estava efetivamente presente na vida

espiritual do homem comum. Foi, portanto, o próprio poder leigo o encarregado de

aproximar as massas da vida cristã; o que não significava que estas devessem

desenvolver uma percepção aguçada da mensagem cristã e nem que devessem buscar

uma relação profunda com Deus. Na época carolíngia a prática religiosa constitui menos

a expressão de uma adesão interior do que uma obrigação de ordem social11. A Igreja

destes tempos parece preocupar-se, sobretudo com a estabilização. Chegou-se a idéia de

que todos os súditos do imperador cristão deveriam adorar o mesmo Deus que ele, pelo

simples fato de estarem submetidos à sua autoridade. Esta concepção de religião não

somente justifica a conversão forçada, mas também legitima a coação exercida pelo

poder leigo para evitar cismas e heresias garantindo a integridade da fé. Com efeito, a fé

é considerada primordialmente como uma herança que o soberano tem o dever de

preservar e transmitir na sua integridade.

O ritualismo é um dos traços marcantes da vida religiosa desta época,

preenchendo o espírito da liturgia carolíngia12. A atividade litúrgica era antes um

conjunto de ritos e gestos dos quais os fiéis cristãos esperavam retirar proveito, do que a

expressão comunitária de um povo em oração. Esta concepção de natureza prática e

sensivelmente superficial talvez seja o reflexo de uma sociedade em estágio de

11 VAUCHEZ, Op. Cit., p. 18. 12 Ibidem, p. 20

10

conversão incompleto, como sugeriu Le Goff, porém o que reflete de maneira mais

clara é o papel que se esperava que as massas desempenhassem em relação à vida cristã.

Na missa dominical, a qual freqüentavam não só para obter os benefícios desejados,

mas também para, na qualidade de súditos, cumprir com seu dever, os fiéis se

encontravam presentes fisicamente e eram testemunhas de um espetáculo ora fascinante

ora monótono, cujo sentido pouco compreendiam. Sem o hábito de rezarem em privado

e raramente convidados a rezarem em comum, o papel dos leigos na missa definia-se

por dela não participarem.

O imperador considerava ser indispensável o respeito escrupuloso dos ritos para

que o culto divino produzisse todos os seus efeitos positivos, dos quais beneficiava a

sociedade. Deste modo, o canto litúrgico ocupa nos ofícios um lugar cada vez mais

relevante, tornando-se essencial na esfera ritual da época. Esta prática fortalece ainda

mais o já tão claro distanciamento existente entre os fiéis e a liturgia. O canto

gregoriano, por sua dificuldade, só pode ser executado por chantres formados nas

escolas catedrais ou nos mosteiros13, de modo que sua adoção – sob a influência de

Carlos Magno – tornou ainda mais difícil a participação dos fiéis nas celebrações

litúrgicas.

De modo geral, é possível dizer que as massas não tinham acesso a elementos

que lhes possibilitassem de fato o contato com o mundo espiritual cristão. Sua

participação na vida religiosa resumia-se a algumas práticas de natureza superficial

como a abstinência de relações conjugais nos períodos prescritos, o jejum quaresmal, a

assistência à missa dominical e o pagamento do dízimo; ou seja, atividades que, embora

fossem compreendidas sob o status de religiosas eram mecanicamente adotadas e

integradas a uma vida completamente mundana e se encontravam desprovidas de

qualquer necessidade de assimilação eucarística. Logo, é compreensível que quaisquer

que fossem os anseios dos homens comuns em relação ao divino, não se sentiam

satisfeitos diante de um programa de perspectivas tão limitadas.

A Idade Média constitui um periodo em que a sociedade relaciona-se com o

imaginario sobrenatural de maneira intensa. Logo, afirmar que no Império Carolíngio a

adesão das massas ao cristianismo ocorreu somente na esfera superficial, não significa

dizer que estas limitavam sua relação com o sagrado a este mesmo nível. Aqui

encontramos a delicada questão da religiosidade popular, da qual trata André Vauchez,

13 DUBY, Georges. A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988.

11

quando salienta que ate mesmo em regiões onde o processo de conversão ao

cristianismo já se encontrava em estágio avançado, a religião era pouco mais do que um

verniz que cobria superficialmente elementos heterogêneos qualificados pelo clero

como “superstições”. Neste contexto considera-se a evolução de uma vida religiosa que

se desenvolve a margem do culto cristão. A partir dela compreende-se melhor a

importância atribuída aos astros, amuletos e sortilégios; bem como a grande

receptividade que tiveram os fiéis para com certas figuras da doutrina cristã tais como

os anjos e os santos.

Naturalmente que a Igreja esforçou-se para cristianizar a difusa sacralidade que,

na religiosidade popular, rodeava os principais atos da vida. Assim se viu surgir em

coexistência com a liturgia eucarística, todo o tipo de paraliturgias, entre as quais as

mais importantes eram as bênçãos e os exorcismos. Essas fórmulas especiais eram

proferidas sobre a água e os alimentos, e garantiam proteção contra catástrofes naturais,

doenças e outras mazelas que pudessem acometer os homens. Através desses inúmeros

ritos a Igreja procurava impregnar de religião a existência cotidiana dos fiéis14. Todavia,

o principal meio através do qual o homem entra em contato com o sobrenatural não se

distancia da essência litúrgica das missas: formulas e, sobretudo gestos, compondo

rituais religiosos através dos quais se exprimem seus estados de espírito. Diante desta

realidade, as transformações ocorridas no campo da disciplina penitencial exprimem,

em ultima estância, a aspiração dos fiéis a encontrarem uma via de acesso à salvação

apesar do obstáculo que por si só constituía sua condição de leigos. Não obstante, seria

extremamente errôneo concluir que o cristianismo carolíngio estaria definido apenas por

sua forte cultura ritualística.

Na Alta Idade Média, como anteriormente mencionado, Carlos Magno surge

como o condutor da sociedade dos cristãos. Quando a Igreja de Roma pensou em fazer

do rei carolíngio um novo imperador, esta se encontrava carente de proteção, portanto a

coroação imperial foi o arremate final na perspectiva de que o soberano carolíngio seria

o eleito para unificar a cristandade. Todavia, o império restaurado permanecia a serviço

da Igreja e o poder imperial devia ser regido por normas morais e religiosas. Foi o

chamado “moralismo carolíngio”, que longe de insistir na distinção gelasiana, buscou

no seio do poder temporal uma maneira de conectar o universo laico a valores da esfera

religiosa.

14 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.

12

Deste modo, pode-se dizer que o moralismo carolíngio obteve efeitos salutares

no plano espiritual, na medida em que valorizou as exigências éticas da fé cristã e a

necessidade de traduzi-las nos comportamentos15. Se, por um lado, encontra-se

evidências de que, na esfera da conversão, não se esperava dos fiéis que tivessem com a

religião mais do que uma relação ritualística de deveres e uma expectativa prática – sim,

porque dela esperavam retirar os benefícios necessários a suas vidas, como a cura ou a

vitória – por outro lado, na esfera social e moral o cristianismo buscou reger suas vidas

de maneira mais intensa. O que nos convem observar neste contexto é a própria

intenção, canalizada no sentido de fazer refletir os valores cristãos nas atitudes dos

leigos, algo que, por si só, consiste uma evidencia da impregnação da sociedade

carolíngia por significante grau de moralismo. Esta conclusão não equivale porem, à

idéia de que a Igreja conseguiu de fato moralizar a vida dos fieis, pois, embora tenha,

por exemplo, conseguido levar o poder a proibir o divorcio e o incesto, a idéia de

estender aos leigos um estilo de vida regrada foi excessivamente ousada para a época.

Com efeito, este esforço para atingir as consciências dos indivíduos reintroduz

principalmente no plano político as noções de justiça e virtude através da ideologia

imperial. É sobre o soberano e seu governo que recaem todas as exigências morais do

cristianismo. Ele deve ser o maior exemplo de retidão e devoção para com a Igreja,

colocando as estruturas do poder temporal a serviço da Santa Sé de Roma.

O soberano carolíngio pelo papel que desempenha na Igreja e na sociedade

surge, então, como um verdadeiro pastor, encarregado não somente de sua própria

salvação, mas também da dos demais de seu reino. Esta nova concepção da função real

introduzida pela fé cristã é conseqüência direta da sagração, que confere ao rei um

prestígio de ordem sobrenatural. A realeza “sagrada” não pode, a partir deste momento,

faltar com seu dever para com a Igreja – sob a pena de ter o apoio desta retirado se

aquela for considerada indigna – e sua conduta passa a ser a todo o momento julgada,

pois deverá constituir modelo para seus súditos. Este é exatamente o espírito que leva

membros do clero a redigir no século IX os Espelhos de Príncipes (Specula principis)16,

textos que atribuem grande importância às exigências morais e que tem como objetivo

relevar a importância do cumprimento do dever dos soberanos em relação ao ideal

cristão.

15 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – séculos VIII a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 20. 16 Ibidem, p. 24.

13

Tais valores são facilmente identificados na descrição que se faz de Carlos

Magno no texto referente à catedral de Aachem, parte retirada da biografia escrita por

Eginhardo, que enfatiza neste recorte o empenho do rei carolíngio em consolidar a fé

cristã em seu reino através da construção de uma basílica. Aqui é possível perceber a

atribuição de valores morais a Carlos Magno, que aparece no texto como devoto

exemplar do cristianismo e modelo de conversão completa à fé cristã. O texto também

atribui a ele uma posição extremamente ativa no que diz respeito à construção da

basílica de Aachem, papel este, que reflete sua importante atuação enquanto condutor da

cristandade. Neste documento é possível vislumbrar de que forma o pacto entre as

esferas espiritual e régia, enunciado pelo próprio Carlos Magno na Epistola de 796 d.C.,

se verifica na prática. O empenho na construção da Catedral de Aachem representa o

comprometimento do soberano na consolidação do ideal cristão.

“(Carlos Magno) Praticava em toda sua pureza e com o maior fervor a religião cristã, cujos princípios lhe tinham sido inculcados desde a infância. Foi por esta razão que mandou construir uma magnífica basílica que ornamentou de ouro e de prata, de candelabros, de grades e de portas de bronze maciço, e para qual mandou vir de Roma e de Ravena mármores e colunas que não se podiam encontrar noutra parte. (Carlos Magno) Presenteou-a (Igreja) com um grande numero de vasos de ouro e de prata e com uma tal quantidades de vestes sacerdotais que, para a celebração do serviço divino, os próprios hostiários, que são os últimos na ordem eclesiástica, não tinham necessidade de se vestir com seus trajos particulares, a fim de exercerem o seu ministério.”17

Nota-se que não são medidos esforços na edificação da Igreja, pois, através da

construção arquitetônica e da ornamentação busca-se traduzir a excelência do universo

sagrado, fazendo da Igreja um reflexo da Jerusalém Celeste. As pedras, o ouro, o cristal

e o bronze não são materiais inertes. Jean Claude Schimitt, em seu estudo sobre as

relíquias, observa que são atribuídos a estes materiais, não somente um significado

escatológico – dado ao fato de que, segundo o Apocalipse, os próprios muros dos Céus

estão delas impregnados – mas também aparência de vida em função de seu reflexo, seu

efeito de cor, sua transparência18.

Somente essas matérias são consideradas dignas de ornamentar a Santa Igreja,

bem como de envolver o precioso conteúdo dos relicários, pois, por seu brilho,

manifestam o poder ativo das relíquias que do interior de seu invólucro se comunica a

17 Eginhardo. Vita Karoli Imperatoris. In: TESSIER, Georges. Charlemagne. Textos, introdução e notas. 2ed. Verviers: Marabau, 1982. (Le Memorial des Siècles) Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 73, 74. 18 SCHMITT, Jean Claude, O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, Bauru, SP: Edusp, 2007.

14

elas. Deste modo, assim como o relicário – sempre reluzente e portador de pedras

preciosas – a Igreja dos carolíngios pretende ser uma antecipação desde aqui embaixo

da glória divina.

Materiais como o ouro, a prata e as pedras preciosas são essenciais para o

ornamento das Igrejas não somente por sua beleza, mas também pela nobreza e

magnitude que inspiram. Desta forma estão presentes tanto nos vasos sagrados quanto

nas capas coloridas usadas pelo clero; e carregam consigo um papel fundamental dentro

da liturgia carolíngia, já que esta tinha como característica fundamental a ritualística, em

meio a qual se observa o destaque do uso de objetos emblemáticos. No documento em

questão, se enfatiza a diversidade de materiais usados para incrementar a cerimônia

litúrgica, evidenciando o caráter ritual das missas.

O extrato abaixo é a continuação do texto referido anteriormente como parte da

biografia de Carlos Magno. Aqui são reforçadas as evidências do papel central do

soberano na esfera religiosa. Exemplo de boa conduta cristã a ser seguida e relevância

de sua posição enquanto protetor da Igreja, empenhado na missão de conservar a

integridade do caráter sagrado do local.

“[Carlos Magno] Freqüentava assiduamente esta igreja, à tarde, de manha e mesmo durante a noite, para assistir aos ofícios e ao santo sacrifício, enquanto a sua saúde lho permitia. Vigiava com solicitude para que nada se fizesse senão com a maior decência, recomendando constantemente aos guardas que não consentissem que para lá se levasse ou que lá se deixasse nada de sórdido ou indigno da santidade do local. [...] [Carlos magno] Introduziu grandes melhoramentos nas leituras e na salmodia, porque ele próprio nela era muito hábil, se bem que nunca lesse em publico e cantasse apenas em voz baixa e com o resto dos assistentes.” 19 Após este relato podemos perceber melhor o tom da obra de Eginhardo. O

enaltecimento à figura de Carlos Magno é característica marcante no texto, que busca

atribuir valores positivos ao rei carolíngio através de sua ligação com a Igreja. Sua

devoção, comprometimento com a proteção e conservação, bem como sua habilidade na

salmodia são todos fatores a constituir exemplo de conduta cristã e, portanto, nos

remetem ao moralismo carolíngio. Característica, esta, que se verifica presente na

própria obra de Eginhardo.

A par do moralismo carolíngio, o documento constitui evidência de outro traço

peculiar da vida cristã daquela sociedade. A passagem do documento referente aos

19 Eginhardo. Vita Karoli Imperatoris. In: TESSIER, Georges. Charlemagne. Textos, introdução e notas. 2ed. Verviers: Marabau, 1982. (Le Memorial des Siècles) Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. p 73, 74.

15

melhoramentos introduzidos por Carlos Magno nas leituras e na salmodia nos aponta

em direção à idéia de que, em adição aos esforços que emprega no sentido de construir e

ornamentar sua Igreja, bem como de garantir que sua santidade fosse a todo tempo

respeitada livrando-a de quaisquer que fossem as coisas indignas que dela pudessem se

aproximar, Carlos Magno ainda se envolve no planejamento da cerimônia litúrgica. Não

há evidência maior da centralidade do papel do soberano na vida religiosa. Com isso

nota-se, não somente seu papel essencial no contexto do desenvolvimento de sua

catedral em Aachem, mas também seu envolvimento para com o ideal cristão,

reafirmando o pacto que estabelece com o Papa.

De modo geral, isto reafirma a união existente entre a esfera temporal e

espiritual. Carlos Magno é, sem dúvida, figura fundamental no processo de

consolidação da Igreja cristã. O ritual de sagração fez com que recaíssem sobre o

soberano as exigências éticas da fé, de modo a submetê-lo ao cumprimento de seu dever

para com Igreja. Porém, é necessário levar em conta que a Igreja destes tempos, pela

própria idéia que habitualmente se tinha de Deus – soberano juiz detentor de poder

transcendente20 – favorecia mais o temor reverencial do que o desenvolvimento de uma

espiritualidade evangélica; e parece menos projetada para o universo escatológico do

que interessada em contribuir, dentro do seu campo de ação, para a realização do grande

desígnio dos soberanos carolíngios: fazer prevalecer em todo o território a máxima

ordem.

20 VAUCHEZ, André. Op. Cit., p. 29.

16

1.1 - SOBRE EGINHARDO

Uma das figuras mais importantes da cultura carolíngia, Eginhardo foi um

mestre dos mais completos: político, teólogo, hagiógrafo, abade leigo e, sobretudo,

biografo de Carlos Magno. Foi educado na escola de Fulda, ingressando na corte real

em torno de 793 e alcançando uma importante posição na escola do palácio de Aix-la-

Chapelle, sob influencia de Alcuíno que, por sua vez, também figurava nos círculos de

convivência mais próximos do imperador tendo sido conselheiro intelectual de Carlos

Magno e condutor da reforma da escola palatina; sua preocupação com a recuperação da

herança clássica latina o converteu no maior preceptor da “renascença do século IX”.

Assim como Alcuíno, Eginhardo tornou-se amigo e conselheiro de Carlos

Magno e acompanhou como secretário particular seu sucessor Luís, o Piedoso. Sua obra

Vida de Carlos Magno, panegírico do imperador e contrapeso da crítica velada de seu

sucessor, é uma das obras mais importantes do período não só pelo seu conteúdo

histórico mas também pelo seu valor literário. Através de sua obra podemos contemplar

vários aspectos da vida na sociedade carolíngia. Na passagem a seguir é possível vê-lo

como mediador, papel que desempenhou ao longo de sua vida nos círculos políticos.

Suas habilidades como apaziguador de interesses contrários foi muita cara ao império

durante a crise desencadeada por ocasião do nascimento de Carlos, posteriormente

conhecido como o Calvo.

Quando no documento abaixo intercede pelos servos através de cartas ao seu

senhorio nos fornece dados valiosos não só a respeito da condição do servo, mas

também da inserção da Igreja na vida social e nos assuntos seculares:

“Ao magnífico, honrado e ilustre homem, o gracioso Conde Poppon, Eginhardo sauda-o no

Senhor.

Dois pobres homens refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados Marcelino e Pedro, mártires de Cristo, confessando que eram culpados e que tinham sido convictos de roubo em vossa presença, como tendo furtado caça grossa numa floresta senhorial. Já pagaram uma parte da composição e deveriam pagar o resto, mas declaram que não tem com que o fazer, por causa da sua pobreza. Venho, pois, implorar a vossa benevolência, na esperança de que [...] vos digneis tratá-los com toda a indulgência possível [...]”21

“Ao nosso querido amigo o glorioso vicedominus Marchrad, Eginhardo, saudação eterna no

Senhor.

21 Cartas de Eginhard, In: Teulet, A. Oeuvres Complètes d’Eginhard, Societé de l’Histoire de France, Paris, 1843, tomo II, p. 13, 27 e 29. Citado em ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos

medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 183-185.

17

Dois servos de S. Martinho, do domínio de Hedabach, de nome Williram e Otbert, refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados Marcelino e Pedro, mártires de Cristo, por causa do assassinato cometido pelo seu irmão num companheiro. Pedem que lhes seja permitido pagar a composição” pelo irmão, a fim de que lhes façam graça dos seus membros. Dirijo-me, pois, à vossa amizade, para que vos digneis, se isso for possível, poupar estes desgraçados pelo amor de Deus e dos santos Mártires junto dos quais vieram procurar um refúgio. Desejo que tenhais sempre boa saúde, com a graça do Senhor.”22

Os escritos de Eginhardo são de muita importância para o presente trabalho por

reproduzirem a perspectiva de um cronista que de fato conviveu com Carlos Magno e

cuja obra reflete o importante papel deste soberano na vida do império e da sociedade

carolíngia em muitas esferas. O fato de que ele foi um biografo do imperador nos é

extremamente útil em nossa tentativa de compreender o cristianismo carolíngio, pois,

Carlos Magno foi braço sob o qual foram reunidos os cristãos da alta Idade Media. A

forma de vida religiosa esteve, nesta época, muito ligada ao poder secular, pois, ainda

muito frágil, as instituições eclesiásticas estavam preocupadas com a consolidação.

Porém, ao passo que o poder temporal protegia a Igreja e em seu próprio campo

de atuação buscava consolidar a fé cristã, estava também de certo modo submetido às

exigências éticas trazidas pela moral cristã. A Igreja, por sua vez, reproduzia no campo

espiritual as condições para que o poder laico pudesse ver seus objetivos também

alcançados, tornando-se uma esfera onde os cristãos exerciam sua qualidade tanto de

fieis quanto de súditos.

Esta peculiar dinâmica de interseção entre as duas esferas foi fruto da política

aglutinadora de Carlos Magno. Esta é o cenário onde se desenvolvem as narrativas de

Eginhardo, porem, mais que isso: é o cenário onde ele próprio está inserido. Desta

forma, sua admiração e seu discurso de enaltecimento a imagem de Carlos Magno não

se mostram obstáculos ao estudo de sua obra, mas sim ferramentas úteis para a

compreensão dos valores morais existentes no século VIII e da influencia de Carlos

Magno nos muitos domínios tanto visíveis quanto invisíveis em que atuou.

Eginhardo escreve sobre seu próprio período. Ele escreve sobre a vida da

personagem cujo papel foi central dentro do campo que buscamos explorar. Em seus

escritos, se mostra uma testemunha atenta aos fenômenos de transição ocorridos em seu

tempo, assim como se revela, em muitos aspectos, influenciado por eles. A par de todos

estes aspectos, seus textos são ainda relevantes para o estudo da vida religiosa nos anos

imediatamente seguintes a dissolução do império carolíngio, como vamos ver, pois

22 Ibidem, p. 183, 185.

18

consistem evidencia da estrutura com a qual os religiosos do século X procuram

romper.

19

2 - A CRISE DA SECULARIZAÇÃO DO CLERO

A modalidade carolíngia de cristandade tendia a um sistema de supremacia

coeso, insistindo na unidade através da interação das esferas espiritual e temporal.

Dentro deste sistema Carlos Magno desempenhou um papel fundamental, surgindo aos

olhos de seus contemporâneos como o unificador da cristandade. Através da conversão

forçada, e da adoção de uma moral cristã empregou a religião de modo a reunir em um

só artifício o dever do súdito e do fiel. Desta forma pôde realizar também através da

religião o papel de soberano.

Porém, é fato que a evolução das formas políticas no Império Carolíngio, bem

como a configuração que estas tiveram no âmbito religioso estava intrinsecamente

ligada ao poder e prestígio inigualável de Carlos Magno – como quisemos demonstrar

no primeiro capítulo do presente trabalho. Em função disto, nos anos que imediatamente

sucederam o grande imperador carolíngio – como durante o reinado de seu filho Luís, o

Piedoso – levantes e disputas dinásticas já ameaçavam destruir a unidade.

Sendo assim, pode-se dizer que, nos fatos, tanto o império carolíngio quanto o

período de harmonia entre a Igreja romana e o Império – herança do pacto estabelecido

na época de Carlos Magno – foram bastante breves. Em 962, por ocasião da coroação de

Oton I , quando este marcha para Roma atendendo a um pedido do Papa, deu-se a

transição do poder carolíngio para o poder germânico23.

No entanto, não seria correto afirmar que a dissolução do Império carolíngio

acarretou imediatamente a mudança nas relações entre o poder temporal e a Igreja.

Embora a transição do poder no século X tenha constituído em muitos sentidos uma

ruptura, os imperadores germânicos da casa da Saxônia procuraram sempre, reportando-

se à tradição de Carlos Magno e à de Roma, enfatizar a idéia imperial como

aglutinadora político-religiosa da Cristandade. Consideravam-se, apesar dos diversos

localismos da sociedade medieval, os ordenadores únicos da sociedade dos cristãos.

Com base nisto nota-se que o mito carolíngio, assim como o mito romano, sobreviveu

ao desaparecimento das estruturas políticas de seu antigo Império e formou os

elementos fundamentais do imaginário otónida.

23 DUBY, Georges. A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 30.

20

Foi nas ultimas décadas do século, que os otónidas demonstraram o desejo de

renovar a tradição de Carlos Magno na conduta temporal e espiritual do Império24.

Neste sentido foram, em muito, favorecidos pela decadência na qual caiu a Igreja

Romana no século X. Os fatores que causaram a fragilidade das instituições

eclesiásticas neste século, permitindo uma guinada nas relações entre as esferas do

poder, são o objeto que nos convém agora estudar.

A decadência das instituições religiosas ocorreu, primordialmente, em função da

secularização do clero, cujo processo, já iniciado no fim do século IX, acelerou-se com

o incremento do feudalismo. Os bispos, originários dos meios aristocráticos e elevados

aos seus cargos por razões predominantemente políticas e econômicas, viviam como

grandes senhores e, por muitas vezes, assemelhavam-se mais aos homens de posse do

que a homens da Igreja. Por mais imbuídas de dignidade que pudessem ser as vidas

destes homens, ainda assim encontravam-se absorvidos por tarefas e preocupações

concernentes a proteção de seus bens temporais e por suas responsabilidades de

natureza política.

A Igreja dos tempos carolíngios era antes de tudo uma Igreja secular, dirigida

pelo soberano e pelos bispos que, no interior de suas respectivas dioceses, exerciam sua

autoridade sobre os monges. Através desta realidade é possível compreender porque

toda a base estrutural cristã foi afetada quando posteriormente às perturbações ocorridas

no Ocidente entre os fins do século IX e meados do século X o mundo medieval

testemunhou uma crise no seio da ordem sacerdotal.

O pacto existente entre o Império e a Igreja romana na sociedade carolíngia

submeteu de certa forma o poder temporal ao espiritual através do moralismo cristão;

pois, este, fez recair sobre o soberano exigências éticas respectivas a sua conduta,

principalmente no desempenho de seu dever para com a Igreja25. Porém, ao passo que

buscou moralizar a vida dos leigos, acabou, também, por aproximar dos homens da

Igreja certos aspectos da vida e das necessidades mundanas.

Nicolaísmo, simonia, despreparo do baixo clero, subordinação dos clérigos aos

leigos em alguns níveis e feudalização das instituições eclesiásticas. Estas foram

algumas das conseqüências da proximidade das esferas temporal e espiritual que vieram

de longa data a culminar no quadro geral do século X26.

24 Ibidem, p. 32. 25 JOHNSON, Paul. História do cristianismo, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 28. 26 DUBY, Georges. O ano mil. Lisboa: Edições 70, 1986.

21

A crise da ordem sacerdotal deixou o patrimônio eclesiástico a mercê de

prelados indignos que o dilapidaram e de leigos que dele se apropriaram fazendo com

que o estilo de vida dos clérigos se aproximasse cada vez mais ao estilo de vida dos

fiéis. Isto pode ser compreendido como algo estranho ao próprio espírito da

trifuncionalidade medieval que já se observava presente e que acabará por se impor

definitivamente no século XI. A tripartição estabeleceu a distinção das funções

desempenhadas por cada um dos grupos que compunha o conjunto da sociedade de

maneira que estas não se confundissem. Todas eram de extrema importância para a

sobrevivência do grupo. A par disso, ainda havia uma aura de excelência envolvendo a

categoria dos oratore essencial para a legitimidade da posição que ocupavam. A

importância da união equilibrada entre as três esferas sociais foi enfatizada pelo bispo

Adalberón de Laon, no século XI, que dá à oração um caráter de utilidade social:

“[...] A casa de Deus, que acreditam uma, está dividida em três: uns oram, outros combatem, outros, enfim, trabalham. Estas três partes que coexistem não suportam ser separadas; os serviços prestados por uma são a condição das obras das outras duas; cada um por sua vez encarrega-se de aliviar o conjunto. Por conseguinte, este triplo conjunto não deixa de ser um; e é assim que a lei pode triunfar, e o mundo gozar da paz.” 27

Em outras palavras, isto significa que tão fundamental quanto era o trabalho dos

camponeses e a proteção armada dos nobres, era também o ofício dos homens da Igreja

que, através de suas atividades, faziam recair sobre todos as graças do mundo

sobrenatural. Para tanto, porém, estes não poderiam ter com o sagrado a mesma relação

que tinham os homens comuns, entregando-se a atividades profanas. Todavia, a crise da

secularização do clero não consiste em uma ameaça à estrutura trifuncional do medievo.

Sua principal conseqüência é, na verdade, o movimento de reação a ela.

É correto afirmar que os mosteiros foram igualmente atingidos por essas

mudanças. Muitos deles, confiados a abades leigos – como o era o próprio Eginhardo,

biógrafo de Carlos Magno – ou explorados por letrados inescrupulosos, não escaparam

à decadência que chegou a por em risco a própria existência da Igreja, ameaçada de

dissolução. Todavia, foi ainda o monaquismo que melhor resistiu a essa grave crise. O

estado degradante das coisas foi precisamente o que motivou uma reforma multissecular

que teve início nos séculos X e XI28.

27 Adalberon de Laon. Apud VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – séculos

VIII a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 33. 28 JOHNSON, Paul, História do cristianismo, Rio de Janeiro: Imago, 2001.

22

Neste momento a cristandade testemunha o nascimento de Cluny, vila que surge

como reduto da reação cristã. Fundada em 910 pelo abade Bernon, com o apoio de

Guilherme da Aquitânia, Cluny foi nesta época a expressão mais autêntica das

aspirações espirituais da sociedade feudal. Passou a ser a referência da cristandade, em

um momento em que o papado estava envolto em crises sem fim. Nesta época o

mosteiro é o centro aglutinador de valores espirituais. Escola do serviço divino, é lá

também o lugar de onde se obtém, através das orações, graças sobrenaturais que recaem

sobre toda a sociedade. A criação da ordem de Cluny está no centro de uma transição de

natureza prática e emblemática na vida religiosa da época medieval. Esta ramificação da

regra de São Benedito enuncia o duradouro período de hegemonia do monaquismo na

cultura cristã, pois tanto o imaginário, quanto as preocupações e os anseios dos homens

medievais passam a pautar-se no ideal cristão que representa a vida monástica.

A vida angélica proposta dentro dos mosteiros tem como principais princípios a

renuncia aos prazeres dos sentidos e a luta contra as tentações29; e assim como na época

anterior a Igreja, em suas premissas, pretendia ser a representação da Jerusalém Celeste

enquanto construção suntuosa e edificada com os mais nobres materiais, agora o status

de ante-sala do paraíso passa a ser o do mosteiro, não somente por reunir na arquitetura

o esplendor divino, mas por concentrar nos monges a mais pura observância dos ideais

cristãos e a mais estreita relação dos homens com Deus.

O fascínio exercido pelas tendências ascéticas da espiritualidade monástica,

longe de se restringir às camadas superiores da sociedade, estendeu-se aos leigos, que

passam do conformismo religioso predominante na época anterior a um despertar de

uma consciência religiosa30. Embora a tripartição social no medievo seja categórica ao

distinguir funções e limites para cada um de seus membros, deixando assim a religião

completamente fora do campo de atuação dos laboratore e dos belatore, expandiu-se a

idéia de que, para garantir sua salvação, os leigos deveriam estar de alguma maneira

associados aos religiosos. Não seria possível que aqueles encontrassem por si só as vias

de entrada no paraíso, sem que contassem com as orações destes últimos – confirmando

a necessidade do cumprimento das funções de cada categoria componente da sociedade,

conforme prevê a tripartição.

29 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano Ocidente Medieval, Lisboa: Edições 70, 1985, p.46. 30 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – séculos VIII a XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

23

Com efeito, a difusão da espiritualidade monástica teve por conseqüência a

depreciação do estado laico. Atingido por uma inferioridade tanto religiosa quanto

cultural, o laicado se encontra numa posição extremamente negativa em função de sua

exclusão do universo sagrado e das vias de erudição. Na perspectiva da salvação, pode-

se dizer que os homens da Igreja se encontravam muito melhor colocados do que a

população leiga por estarem alinhados a uma vida de fato cristã, ou seja, uma vida

consagrada. Esta visão pessimista da condição dos leigos não era algo existente somente

entre os grupos do alto da pirâmide social, ou expressa por um número restrito de

autores extremistas; mas sim uma concepção da qual os próprios fiéis. Estes últimos

buscavam, assim, a união tão estreita quanto possível com o mundo dos religiosos

através de diversos meios: os cavaleiros ofereciam seus filhos aos mosteiros, ao passo

que os que permaneciam no mundo temporal associavam-se às mais prestigiadas

abadias. Através de generosas doações à Igreja, os homens de posse vislumbravam a

possibilidade de ficar inscritos no livro onde estão contidos os nomes daqueles por

quem os monges rezam todos os dias. Sendo assim, a despeito da crença de que somente

através do pagamento do dízimo os fiéis poderiam participar de sua salvação, existiu

espaço para que, principalmente os homens de posse que tinham algo a oferecer

desfrutassem de um conceito introduzido com vigor na mentalidade da época: a remição

dos vícios pela prática do bem fazer31.

Foi tomado por este espírito e preocupado com sua salvação que Guilherme,

conde da Aquitânia fez a doação que permitiu o desenvolvimento da ordem monástica

de Cluny. Embora, em termos de poder, tenha atingido grande êxito chegando, até

mesmo, a destacar-se em relação aos seus contemporâneos reis da França Hugo Capeto

e Roberto, o Piedoso; Guilherme de Aquitânia permaneceu seu vassalo e soube manter a

paz e honrar seus feudatários no ducado de Auvergne32. Quando doa no século X parte

de suas posses para o estabelecimento de um mosteiro regular, não deixa de oferecer

este feito também à honra de seu rei. É interessante notar como, através desta caridade

para com a Igreja, Guilherme busca alcançar a graça não somente para si mesmo, mas

para toda sua família. Porém, os efeitos benéficos de tal doação não recairiam sobre ele

de forma direta: seu nome estaria incluído nas preces diárias dos monges, que, estes

31 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida, São Paulo: Brasiliense, 1989. 32 PEDRERO-SANCHÉS, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas, São Paulo: UNESP, 2000, p. 294.

24

sim, por sua vez, através de seu canal estreito com o universo sobrenatural poderiam

interceder pela alma de seu benfeitor.

A partir da luz deste aspecto é possível avançar na compreensão da religiosidade

medieval. Uma vez que contemplamos o fato de que a salvação dos leigos não estava

prevista por vias diretas – independente da magnitude de seus esforços em viver de

acordo com a norma cristã – atribuímos um novo valor para as relações entre o laicado e

as instituições monásticas. Esta relação é produto da extrema valorização da vida asceta

monástica, característica presente no testamento em que Guilherme de Aquitânia passa

suas posses para o domínio dos monges. Aqui é possível notar que o duque, a fim de

assegurar sua salvação e a dos seus, julga como ato de maior magnitude, portanto de

maior eficácia, o estabelecimento de uma comunidade de monges. Nota-se também a

partir do texto que a transferência de posses para os monges representaria uma doação

para os próprios apóstolos Pedro e Paulo.

“Deus proporcionou aos homens ricos um caminho para a recompensa eterna, se empregarem retamente os seus bens terrenos. Por isso, eu, Guilherme, pela graça de Deus duque e conde, considerando seriamente como posso promover a minha salvação, enquanto ainda é tempo, julguei conveniente e necessário dedicar parte dos meus bens temporais à salvação da minha alma. Nenhum caminho parece melhor para este fim que o indicado nas palavras de Senhor: eu

farei dos pobres os meus amigos (Lc. 16, 9). É por isso que manterei em perpétuo uma comunidade de monges. Seja conhecido, portanto, de todos os que vivem na comunidade da fé do Cristo, que pelo amor de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, passo do meu senhorio ao dos santos apóstolos Pedro e Paulo a cidade de Cluny juntamente com o feudo, a capela em honra de Santa Maria, a bem-aventurada mãe de Deus e São Pedro, príncipe dos apóstolos, juntamente com tudo o que lhes pertence: vilas, capelas, servos e servas, vinhas, campos, prados, bosques, águas e escoamentos, moinhos, rendas e ingressos, terras cultivadas e por cultivar na sua integridade. Eu Guilherme e a minha esposa Ingelberta doamos todas estas coisas aos mencionados apóstolos, pelo amor de Deus e pela alma de meu senhor o rei Odon, do meu pai e da minha mãe, por mim e pela minha esposa, pelos nossos corpos e pelas nossas almas.”33

No trecho acima podemos identificar logo na primeira linha a noção de

recompensa através de benfeitorias. Para o duque da Aquitânia está perfeitamente claro

que a salvação encontra-se na retidão com a qual se emprega os bens materiais. A

doação não envolve somente terras, mas também servos, moinhos, rendas e ingressos,

entre outras coisas. Isto já compõe um quadro de intensa inserção da comunidade

monástica de Cluny na vida da sociedade, o que veio mais tarde a ter grande influência

em sua cultura material, já que o abastecimento dessa vila estimulou a produção

33 Recueil des chartrs de l’abbaye de Cluny. BRUEL, A. (Ed.). Paris, 1876, nº 11. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p.81, 82.

25

agrícola local assim como moveu contingentes destinados ao trabalho no canteiro de

obras da construção da igreja abacial de Cluny34.

Na continuação do testamento podemos encontrar referencias de ordem prática à

instalação de um mosteiro, como o pagamento de tributos à Igreja romana. Encontra-se

também no extrato a seguir a idéia da via indireta de salvação, através da qual, como já

havíamos anteriormente discutido, Guilherme pede aos monges que, por meio de

orações e petições a Deus redimam-lhe a alma.

Porém, o que se verifica de mais conveniente para o nosso estudo nesta

passagem é a congruência de fatores que apontam para a crise da secularização do clero

em meio à qual estavam envoltas as instituições religiosas da época. Através de seu

testamento, o duque da Aquitânia pretende livrar os monges de toda e qualquer

subserviência que não a Deus. A preocupação em estipular por escrito uma limitação

aos poderes do clero secular em relação à instituição monástica fornece evidência da

fragilidade desta ultima em relação às disputas de poder existentes no seio da sociedade

medieval. Logo, sob a prerrogativa de uma legítima eleição canônica, o autor do

testamento busca livrar o mosteiro da arbitrariedade dos bispos e do poder secular.

A preocupação em relação ao poder temporal é igualmente expressa no

documento que, através da lista de possíveis malefícios aos quais estariam submetidos

os monastérios se fossem abandonados à própria sorte, viabiliza a constatação dos

principais impactos sentidos em realidade pela Igreja em função de uma crise cujos

efeitos ainda se encontravam presentes. Em outras palavras, é possível ter uma idéia do

que significou em termos reais o problema da secularização do clero e de quais formas o

patrimônio das Igrejas sofreu dilapidação e decadência em virtude de sua submissão ao

poder temporal. De fato, dividir o patrimônio eclesiástico e entregá-lo como benefício a

membros da nobreza se verificou prática comum durante este período, como somos

levados a concluir através das preocupações de Guilherme de Aquitânia em seu

testamento.

“Em Cluny construir-se-á um mosteiro regular, no qual os monges sigam a regra de São Bento. Lá se dedicarão ardentemente às práticas espirituais e oferecerão orações e petições a Deus, tanto por mim quanto pelos demais. Os monges e as suas posses ficarão sob o abade Berno e os que após ele sejam eleitos de acordo com a graça de Deus e a regra de São Bento, nem pelo nosso poder nem por nenhum outro serão dissuadidos de realizar uma eleição canônica. A cada cinco anos deverão pagar à Igreja dos apóstolos de Roma cinco sólidos para a sua iluminação. Desejamos que se exercitem diariamente em obras de misericórdia com os pobres, indigentes, estrangeiros e peregrinos. Os monges não estarão sujeitos a nós, nossos pais, o poder real ou

34 DUBY. Georges. O tempo das Catedrais. Lisboa: Estampa, 1979.

26

qualquer outra autoridade terrestre. Por Deus e diante de Deus e de todos os santos e o terrível dia do juízo, proíbo a qualquer príncipe secular, conde e ao próprio pontífice de Roma, invadir as posses dos servos de Deus, aliená-las, diminuí-las, trocá-las, entregá-las como benefício, ou colocar algum bispo sobre elas sem o seu consentimento. Se alguma pessoa fizer isto, fique o seu nome riscado do livro da vida. Terá contra ele o chefe portador da chave da monarquia celeste juntamente com São Paulo, e de acordo com a lei pagará uma multa de cem libras de ouro.”35

Em sua totalidade, este testamento expressa de maneira bastante clara a visão

que passou a ocupar de maneira geral a atmosfera religiosa da época: a de que os

monges seriam os melhores preparados e os mais purificados intermediários dos

homens na perspectiva da salvação. A distinção entre monges, clérigos e leigos era algo

extremamente enraizado na Igreja. Gregório, o Grande, já havia em seu tempo dividido

os cristãos em três categorias: os esposos, ou seja, pessoas que pudessem contrair

matrimônio; os religiosos e o clero secular36. Porém, no final século X, esta divisão

adquiriu novas proporções quando o abade Abbon de Fleury atribui valores distintos a

cada grupo:

“Entre os cristãos de ambos os sexos, sabemos bem que existem três ordens e, por assim dizer, três graus. O primeiro é o dos leigos, o segundo o dos clérigos, o terceiro o dos monges. Ainda que nenhum dos três seja isento de pecado, o primeiro é bom, o segundo é melhor, o terceiro excelente.”37

A classificação entre os tipos de cristão visa não somente delinear três maneiras

diferentes de vida religiosa, mas constitui também um esquema hierárquico baseado em

uma recompensa variável segundo os estados de vida. Embora ao longo de toda a Idade

Média tenha existido polêmica entre clérigos e monges em relação ao primeiro lugar,

grande parte da literatura da época afirma a superioridade da vida monástica sob o

estado clerical. Desse modo é possível diagnosticar a influencia deste pensamento no

testamento de Guilherme de Aquitânia, quando este proíbe até mesmo o pontífice de

Roma a interferir na vida pacífica que deveriam ter os monges em Cluny.

Sendo assim, podemos observar que Cluny, desde sua própria criação e da

instalação de suas premissas, já foi concebida como centro de purificação cristã, meio

através do qual todo o corpo da cristandade e inclusive, como veremos a seguir, todo

mosteiro que desejasse inclusão sob a regra dos cluniacenses estaria mais próximo da

35 Recueil des chartrs de l’abbaye de Cluny. BRUEL, A. (Ed.). Paris, 1876, nº 11. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 82. 36 VAUCHEZ,Op. Cit., 53. 37 Abbon de Feury, Apologeticus ad Hugonum et Rodbertum reges Francorum, P. L., 139, 463. Apud VAUCHEZ, Op. Cit., 55.

27

retidão espiritual38 e mais distante da lassidão que imperou nas instituições eclesiásticas

como um todo em virtude da crise. Independentemente de como estes preceitos se

verificaram na prática, neste momento o importante é constatar a maneira como essa

instituição já nasce projetada para a mudança. Busca-se, exatamente como em um

movimento de reação, romper os laços com as práticas anteriormente vigentes,

protegendo desde o início este reduto da corrupção. O testamento de Guilherme é

evidência de um passado nada longínquo em que a instituição eclesiástica sofreu com a

crise da secularização de seus domínios. A preocupação do conde em livrar desses

males a comunidade de monges a quem estava legando suas posses constitui prova dos

abusos sofridos por eles durante a crise, porém, mais importante que isso, os cuidados

expressos em seu testamento somados à expectativa que Guilherme nutre em relação à

Cluny remetem a uma noção de ruptura seguida por uma revitalização cristã.

38JOHNSON, Paul. História do cristianismo, Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 39.

28

3 - RAUL GLABER E A PERSPECTIVA CLUNIACENSE

Em seu testamento Guilherme demonstra intensa preocupação em salvar sua

alma e, por esta razão, decide colocar seus bens terrenos a serviço do universo

espiritual. A melhor forma que encontra para assim fazê-lo é através da doação de terras

para o estabelecimento de um mosteiro. A preocupação expressa pelo conde em

proteger a vila de monges, que ali se instalaria, de quaisquer ameaças vindas de fora

fornece evidencias da fragilidade das instituições monásticas perante o momento de

decadência pelo qual passava a Igreja. A par disso, nos possibilita o pressentimento de

uma mudança profunda, não somente no seio da instituição eclesiástica, mas no próprio

espírito cristão da época.

Todavia, não foi somente através das expectativas e das boas intenções de

Guilherme de Aquitânia que se verificou a vocação de Cluny para moldar a atmosfera

religiosa da época. Embora beneditinos, os cluniacenses possuíam um ritmo e uma

organização própria, que lhes rendeu a reputação de restauradores da regra de São

Bento. E foi justamente através da peculiaridade de seu regime que os cluniacenses

deram início a um grande movimento reformador. Em sua apologia a Cluny, Raul

Glaber, cronista e também cluniacense, nos fala da decadência das instituições

monásticas e da esperança que a ordem desses monges restauradores beneditinos

representou.

“[...] Conta-se que a instituição (monástica) e a prática deste costume tiveram seu princípio nos mosteiros da regra do Santo Padre Bento e que foi trazida para o nosso território, ou seja, para a Gália pelo bem-aventurado Mauro, seu discípulo [...] Por último esta instituição, que tinha já quase por completo decaído encontrou, com ajuda de Deus, um refúgio de sabedoria onde deveria retomar forças e frutificar graças a numerosos germes no mosteiro conhecido por Cluny”39

As mudanças ocorridas na atmosfera cristã foram irradiadas para outras regiões e

tiveram respaldo e adesão imediata, visto que esse movimento respondia aos anseios

existentes no seio das sociedades medievais. Contudo, Cluny permanece como o mais

importante centro da reforma monástica. Quando no ano de 931 o papa João XI

concede-lhes o direito de incorporar à casa central qualquer mosteiro que solicitasse ao

abade cluniacense uma reforma, bem como qualquer monge que desejasse ser acolhido,

39 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 286.

29

o corpo monástico desta ordem se expande de forma a render-lhes comentários como o

do cronista Raul Glaber, que compara os cluniacenses a um exército do Senhor. Neste

outro trecho do mesmo documento acima descrito, o autor menciona Guilherme de

Aquitânia a quem louva por sua caridade; faz também menção ao abade Bernon, cuja

iniciativa foi fundamental para o estabelecimento da ordem monástica em Cluny e

procura ilustrar o quão rápida foi a expansão cluniacense.

“Este [Cluny] conseguiu, na verdade, mercê de várias dádivas, um notável incremento, desde a época de sua fundação. O prior dos monges do Mosteiro Balmense [...] de nome Berno, iniciou sua construção por ordem de Guilherme piedosíssimo duque da Aquitânia, no distrito de Mâcon, sobre a ribeira Grosne. Diz-se que a princípio este mosteiro não teve por dote mais do que quinze mansus de terra; conta-se mesmo que os irmãos que aí se reuniram não eram em numero superior a doze. Depois, graças a esta ótima semente, a estirpe do senhor dos exércitos multiplicou-se e tornou-se sem número, pois é sabido que ocupou uma grande parte do globo.” 40

Porém, para além dos fatos ilustrados na narrativa de Raul Glaber, o que nos

convém observar aqui é também a natureza de seu discurso. Dotado de um estilo

narrativo vivo e rico em detalhes, este monge borgonhês, andarilho e curioso passou a

vida viajando pelos mosteiros cluniacenses da Borgonha, nos quais seu talento literário

foi sempre valorizado. Freqüentou Saint-Léger-de-Champange, Saint-Germain-de

Auxerre, Moutiers-Saint-Jean, Saint-Benigne-de-Dijon, de onde partiu para a Itália em

1031 e voltou passando por Cluny e Auxerre, onde terminou sua vida. Foi também em

Auxerre que concluiu seus Cinco Livros de História, obra dedicada ao abade Odilon de

Cluny.

Na tradição da historiografia cristã a obra apresenta-se na forma de uma crônica

universal das origens do mundo até os tempos contemporâneos. Não lhe falta o

conhecimento de historiadores anteriores, mas Raul escreve sob uma perspectiva

teológica providencialista, tratando de explicar os acontecimentos na perpétua

homologia fundadora da ordem do mundo. Durante muito tempo Raul não gozou de boa

reputação. Os historiadores positivistas reduziram sua obra a uma coletânea de anedotas

exageradas ou ingênuas e não viram no autor mais do que um monge tagarela, mal

informado e crédulo. Em verdade, podemos encontrar algumas características na obra

de Raul que possam ter contribuído para este julgamento, como o fato do autor

apresentar uma versão parcial, excessivamente borgonhesa da história e sua falta de

40 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 286.

30

atenção – ou de interesse – à cronologia. Nos dois trechos abaixo ele narra diferentes

fenômenos, porém busca enfatizar em ambos o local onde tiveram início: regiões no

território da França. Os trechos citados fazem menção respectivamente à Paz de Deus, e

à Trégua de Deus, nomes dados a séries de acontecimentos ocorridos em torno do ano

Mil.

“Foi então que primeiro nas regiões da Aquitânia, os abades e os outros homens dedicados à santa religião começaram a reunir todo o povo em assembléias [...] [...] A partir daí irradiaram [relíquias], pela província de Arles, depois pela de Lyon, e assim por toda a Borgonha, e até nas regiões mais recuadas da França.”41

“Aconteceu nesse tempo [em 1041 diz Glaber, mas de fato um pouco mais cedo] que, sob inspiração da graça divina, e em primeiro lugar na região da Aquitânia, depois pouco a pouco em todo território da Gália, se concluiu um pacto ao mesmo tempo por medo e por amor a Deus.”42

Contudo, sua reputação mudou desde sua classificação depreciativa pelos

positivistas, de modo que, hoje seu trabalho representa uma valiosa perspectiva cristã

dos acontecimentos por ele narrados e constitui o que Maria Guadalupe Pedrero-

Sánchez chamou de “afresco da cultura medieval do ano mil” 43. Mostrou-se

especialmente atento ao analisar os comportamentos, descrevendo as mentalidades de

seu tempo e abrindo uma porta à cultura popular.

Seu trabalho inscreve-se na tradição das Crônicas Monásticas e, embora se

destaque dos outros autores em virtude de seu estilo literário, Raul Glaber apresenta um

traço claramente comum a esta historiografia: seu interesse vai além da simples

desenrolar dos fatos na história. Assim como os cenobitas, seu objetivo é menos salvar

o passado do esquecimento do que discernir como a obra da salvação, inaugurada pela

Encarnação de Deus, se inscrevia na trama do tempo. É por este motivo que sua escrita

esta impregnada de um tom apocalíptico; o cronista interpreta vários eventos como

sinais da ira ou da benevolência divina e o diabo é um ator onipresente na história. Os

trechos a seguir, respectivamente referentes à chegada do ano Mil e à fome de 1033,

ilustram de modo bastante claro esta característica do autor.

“Na época seguinte a fome começou a alastrar-se por toda a superfície da terra, e chegou-se a temer o quase total do gênero humano. As condições atmosféricas, com efeito, a tal ponto iam contra o curso normal das estações que o tempo nunca se mostrava propício às semeaduras e,

41 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 78. 42 Ibidem, p. 80. 43 PEDRERO-SANCHÉZ, Op. Cit., 317.

31

sobretudo por causa das inundações, jamais se apresentava favorável à colheita. Parecia que os elementos estavam lutando entre si, mas não havia dúvidas de que se punia assim o orgulho da humanidade.”44 “No ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após a dita fome desastrosa, as chuvas das nuvens acalmaram-se obedecendo à bondade e à misericórdia divina. O céu começou a rir, a clarear e animou-se de ventos favoráveis. Pela sua serenidade e paz mostrava a magnanimidade do Criador. [...] O entusiasmo era tão ardente que os assistentes elevavam as mãos a Deus exclamando em uníssono: “Paz. Paz, Paz!”. Viam o sinal do pacto definitivo da promessa estabelecida entre eles e Deus.”45

A atenção dedicada à análise dos comportamentos e da personalidade dos atores

de sua narrativa é – como já mencionamos – outro ponto extremamente presente na obra

de Glaber. O extrato de texto abaixo constitui parte de sua apologia a Cluny e aqui o

monge cita o abade Odon – ou Odilon – a quem dedicou sua obra; e deixa bastante clara

sua admiração por ele. O texto também nos remete ao processo de expansão cluniacense

que, nota-se, intensificou-se com o abade Odon, sucessor, a partir de 927, de Berno na

direção de Cluny.

“Depois do dito Berno, tomou o cuidado da direção [do mosteiro de Cluny] o muito sapiente abade Odon, homem piedosíssimo em todas as circunstâncias; que havia sido prior da igreja de S. Martinho de Tours e que se distinguia pelos seus bons costumes e pela prática da santidade. Conseguiu tão bem propagar a instituição que da província de Benevento na Itália até ao Oceano na Gália, todos os mosteiros mais importantes consideravam uma honra submeter-se à sua obediência [...]”46

Uma vez contempladas as características literárias de Raul Glaber, é possível

utilizar sua obra como instrumento de reconstrução da época que pretendemos

compreender. Ao identificá-lo como monge cluniacense e ao considerar a tradição

historiográfica em que está inserido é possível relacioná-lo ao contexto no qual escreve

compreendendo-o como homem de sua época. Glaber escreve sob eventos nos quais ele

próprio está inserido sem ter em mãos a ferramenta do distanciamento histórico que

tantas vezes foi considerada uma via segura para a objetividade.

Sabe-se, porém, que a identificação da objetividade do conhecimento com a

imparcialidade total e com a inexistência de juízos de valor é equivocada. Segundo

Isaiah Berlin os juízos podem ser justos ou injustos e, independente disso, bem como a

44 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud DUBY, 1986, p. 188. 45 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 77. 46 Ibidem, p. 77.

32

despeito de quão científico um trabalho se auto-intitula, o homem sempre estará

utilizando- se de juízos de valor47.

Além disso, muitas vezes o que normalmente chamamos de ‘fato’ é na verdade o

produto de uma abstração especulativa. Isto não significa, porém, que o conhecimento

perde a legitimidade, pois o progresso do saber reside justamente na acumulação de

verdades parciais48. Todavia, é preciso tomar consciência desse fator ‘deformante’ que é

a subjetividade. No nosso caso, isso significa levar em conta o contexto de Raul Glaber,

o papel que ocupava na sociedade que descreve, bem como suas preferências de estilo

narrativo. Somente a partir dessa conscientização das implicações metodológicas na

relação do todo e da parte é que poderemos encontrar em sua obra algo que nos ajude a

compreender, a par de suas características, suas personagens e os eventos que descreve.

Deste modo, podemos, também, concluir que é perfeitamente possível conceber

a história cluniacense através da obra de Raul Glaber, não somente por que aprendemos

a identificar na obra do autor os elementos que desviam o foco da objetividade, mas

porque encontramos no próprio Raul uma personagem, cuja ansiedade em ver nos

acontecimentos as manifestações da providencia divina, não constitui característica

isolada, mas sim reflexo dos anseios e da mentalidade de sua época.

47 BERLIN, Isaiah, “Determinismo, relativismo e juízos históricos”, p. 309 – 401. 48 SCHAFF, Adam, “A objetividade da verdade histórica”, In: História e Verdade, São Paulo: Martins Fontes, 1978.

33

3.1 - A ESPIRITUALIDADE EM CLUNY: LUTA ENTRE O BEM E O MAL

A época que Marc Bloch chamou de “primeira idade feudal” ocorreu

imediatamente após a relativamente rápida dissolução do sistema político carolíngio e

pode ser caracterizada pela influencia crescente exercida pela espiritualidade monástica

sobre o povo cristão no seu conjunto. Este novo eixo da vida religiosa surgiu após uma

crise nas instituições eclesiásticas em função da crescente secularização do clero,

característica, esta, ligada à modalidade de cristandade vivida pelos carolíngios.

Não foi de maneira despercebida que essa transição aconteceu. Do seio de uma

cristandade em crise, nasceu um movimento de reforma que, sabemos, teve início da

abadia de Cluny. A ordem de monges beneditinos apareceu como reação ao caos que

havia se instalado nos domínios onde deveria imperar o poder espiritual e seu

estabelecimento foi concebido como uma “volta às origens”, tendo rendido-lhes

também o título de restauradores da regra de São Bento. Ao passo que estudamos o

documento de transferência de posses para a ordem de Cluny, escrito por Guilherme de

Aquitânia, onde o duque procura salvaguardar o mosteiro dos abusos cometidos pelo

poder temporal, agora nos convém estudar de que forma a obra do cronista Raul Glaber

nos fornece as informações necessárias para compreender o que de especial havia em

Cluny.

No capítulo anterior foram citados alguns trechos da crônica de Raul Glaber que

nos permitem contemplar a rápida expansão da ordem cluniacense. Tal crescimento não

poderia ser explicado senão através do fato de que Cluny constituiu a tradução genuína

dos anseios da sociedade feudal. A ordem foi fundada sob a pauta do regresso a um

antigo fervor e seu estabelecimento não foi fruto de um programa administrativo de

reorganização, mas sim das aspirações da sociedade monástica a uma renovação

espiritual. O fato de que, em muitos casos, a fundação de monastérios se deu por

iniciativa de bispos ou de leigos notáveis – como Guilherme – é muito significativo,

pois todos os cristãos da época se encontravam absolutamente convencidos da

dignidade do monaquismo. Desta forma, o século XI depositou nos mosteiros toda sua

esperança de salvação e viu os monges, nas palavras de Georges Duby, como

verdadeiros heróis49, únicos cristãos capazes de virar as costas para o mundo profano,

onde se concentram todos os males.

49 DUBY, Georges. A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 37.

34

“Como estes homens não deixam de se entregar às obras de Deus, ou seja, às obras de justiça e de piedade, mereceram receber todos os bens. Além do mais, deixaram um exemplo digno de ser imitado por todos os que hão de vir.” 50

É a respeito dos cluniacenses que fala Raul Glaber no texto acima. Para ele,

assim como para os outros cristãos da época a providencia divina está intrinsecamente

ligada a valores de justiça. Os monges, por seu bom exemplo, merecem receber todas as

dádivas e é por meio deles que a sociedade as recebe também. Essa valorização da vida

monástica adquiriu uma perspectiva peculiar à medida que a atmosfera religiosa foi

contaminada por uma noção de extrema importância para a época: o combate espiritual.

A luta do Bem contra o Mal passa a ter papel de primeira importância para os

cristãos do século XI. Conseqüência direta disso foi a apropriação do vocabulário de

guerra pela religião, de modo que a noção de combate estivesse constantemente

presente. Sendo assim, não é por um acaso que a descrição de Duby traz os monges do

século XI como “heróis”51 perante seus contemporâneos. Da mesma maneira, Raul

Glaber não se refere apenas à qualidade numérica dos monges cluniacenses quando os

trata por “exército”. Apresentando a vida religiosa, antes de tudo, como um combate ao

“inimigo antigo” a espiritualidade monástica encontrou profunda adesão no seio de uma

sociedade guerreira, cuja ética profana privilegiava os valores de luta.

É fato que o combate entre o Bem e o Mal não é novidade para os homens do

século XI. Este tema já havia sido tratado por outros autores em épocas anteriores.

Ainda no Império Carolíngio, Alcuíno concedeu grande importância ao tema da

oposição dos vícios e das virtudes52, ou seja, à psicomaquia em seus escritos. Porém, ao

passo que sua visão buscou contrapor a modalidade interior do Bem e do Mal,

demonstrando como o homem pode ser o portador de ambas, a religiosidade monástica

imprime um caráter externo à face do Mal: o mundo. Este é o lugar onde se perpetuam

os vícios e as desgraças. Com efeito, as formas artísticas foram um meio poderoso

através do qual se contemplou essa dicotomia. As representações nas quais é comum

encontrar rostos de homens e mulheres – alguns inclusive demonstrando alguma

semelhança com nossos próprios rostos – são predominantemente representações do

50 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 77. 51 DUBY, Georges. O ano mil, Lisboa: Edições 70, 1986, p. 34. 52 VAUCHEZ, André. Op. Cit., p. 21.

35

inferno53. Isto ocorre em função do fato de que a mão que guiava a dos artistas pertencia

aos homens da Igreja, intelectuais de sua época que, por sua vez, julgavam que o inferno

fosse o mundo visível, ou seja, o nosso. Nesta dinâmica está inserida a função social

que desempenhava a arte nesta época. Em verdade, o ideal cristão de vida não alterou,

no começo, as formas exteriores de arte, porém, dotou-lhes de um novo significado e

delegou-lhe uma função. Para o mundo antigo uma obra de arte tinha um significado

primordialmente estético, mas para o cristianismo seu significado era muito diferente.

Na mentalidade medieval, a religião não poderia tolerar uma arte com existência

independente e sem consideração de credo54, assim como não o fazia com a ciência. Foi

então que se concebeu a arte como instrumento de educação eclesiástica. Isso é bastante

significativo quando levamos em conta que as representações artísticas imprimiram ao

inferno uma atmosfera de extrema semelhança à realidade; pois buscavam atribuir ao

mundo carnal o status de domínio do pecado.

Sendo assim, coube à primeira idade feudal privilegiar o aspecto de combate

espiritual na religião e fazer dele o eixo da vida espiritual de toda a sociedade. Sob o

espírito desta guerra o mosteiro adquire o valor de fortaleza sagrada. Verdadeiras

cidadelas erigidas contra os assaltos do mal, as instituições monásticas foram também

os redutos de purificação e ascensão da alma. Como o castelo, o mosteiro atrai para si as

riquezas das regiões vizinhas; contudo, é com satisfação que cavaleiros e camponeses

entregam seus bens, pois os monges os protegem contra os mais terríveis perigos55. É

interessante notar como a função do monge, que conforme a tripartição medieval

pertence à categoria dos oratore, confunde-se com a do cavaleiro, o belatore, por

desempenhar o papel de proteção e de combate.

Em primeira análise, os monges são funcionários. Cabe-lhes o opus Dei, o

trabalho para Deus. Sua tarefa consiste em pronunciar, em nome de todos da sociedade,

as palavras de prece, ininterruptamente. Dia a dia, hora a hora, desde o amanhecer até o

anoitecer, os monges se dedicavam à salvação de todas as almas através de sua oração.

Orar significava cantar. A religião crê em um Deus sensível à prece em comum,

proferida a uma só voz56. O canto litúrgico deveria, além disso, seguir a melodia e o

ritmo da música, pois deveria estar harmonizado com os hinos angelicais. Oito horas

53 DUBY, Georges. 1988. Op. Cit., p. 26. 54 HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura, São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.128 - 131 55 DUBY, Georges. A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988. 56 SCHMITT, Jean Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, Bauru, SP: Edusp, 2007, p. 208.

36

por dia, portanto, os monges cantam. A plenos pulmões pretendem fazer chegar aos

Céus suas orações. Eis sua arma contra o “inimigo ancestral”: as palavras de prece.

Deste modo, o canto gregoriano torna-se um canto de guerra realizado pelos monges

que, por sua vez, eram combatentes tratando de impor a derrota aos exércitos satânicos.

Se a oração litúrgica é a mais poderosa das armas que se pode usar contra o Mal,

torna-se bastante clara a centralidade de Cluny, na luta sobrenatural, pois esta, através

da reforma monástica que possibilitou ao mundo medieval, inaugurou inúmeras práticas

na liturgia, transformando-a em algo poderoso e solene. O essencial do tempo em um

mosteiro cluniacense era dedicado à oração litúrgica. Nesta época a liturgia viu-se

enriquecida com gestos e atos que visavam acentuar-lhe o caráter dramático;

multiplicaram-se os versículos, as coletas, os sufrágios; e a cerimônia litúrgica passa a

ser também peregrina, originando o que mais tarde seria o ritual de procissão. A

distribuição do tempo dentro do mosteiro revela as prioridades dentro do ideal

cluniacense. Oito horas diárias eras divididas entre a leitura dos textos sagrados e a

liturgia; e seis horas eram destinadas ao trabalho que, no caso de Cluny resumia-se a

algo meramente simbólico.

Em ultima análise, o significado da liturgia austera e ao mesmo tempo

exuberante dos cluniacenses só poderia ser compreendido ao se considerar a oração

monástica como uma arma que o monge aponta prioritariamente para si mesmo, a fim

de combater a lassidão espiritual e as inúmeras tentações do mundo. Através do estreito

caminho da observância da regra ele pode vencer as armadilhas que lhe são colocadas

pelo inimigo. Desta forma, engaja-se na luta cotidiana para salvar da perdição o maior

número possível de almas57. Neste contexto, Raul Glaber considera Cluny a mais sólida

fortaleza na luta contra o Mal, e oferece em sua crônica uma perspectiva deste

combate58. No extrato abaixo se torna claro o papel da liturgia na batalha espiritual. Seu

alcance é tamanho que chega ate a libertar as almas das quais o demônio já tem posse.

“Sabe que esse mosteiro não tem outro que se lhe iguale no mundo romano, sobretudo para liberar as almas que caíram no poder do demônio. Imola-se nesse lugar tão frequentemente o sacrifício vivificante que quase não passa um dia sem que, por tal mediação, não sejam arrancadas almas ao poder dos malignos demônios. Com efeito, neste mosteiro, nos próprios fomos testemunhas disso, um uso tornado possível pelo grande numero de seus monges, determinava que se celebrasse sem interrupção missas desde a primeira hora do dia, até a hora do

57 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 89. 58 DUBY, Georges. O ano mil, Lisboa: Edições 70, 1986.

37

repouso; e punha-se nisso tanta dignidade, tanta piedade, tanta veneração, que se acreditava ver mais anjos do que homens.”59

Neste trecho vemos a oração triunfar sobre o inimigo. A missa se torna uma

arma e o corpo monástico é comparado a um exercito, cuja eficácia esta ligada ao

numero de combatentes. Não é preciso dizer que a vantagem numérica privilegia Cluny;

este é um fato tão obvio quanto fundamental na crônica, pois através desta vantagem os

monges podem dedicar-se a oração de maneira intensa e sem interrupções, o que

significa que o Bem pode assegurar-se de sua vitória sobre o Mal.

Uma noção interessante pode ser encontrada a partir da obra de Raul Glaber: o

diabo não é somente a entidade abstrata que se esconde por trás dos vícios dos homens,

é também uma personagem ativa na historia do mundo. Esta não é uma idéia isolada

presente apenas na crônica do monge cluniacense; sua abrangência atinge toda a

sociedade medieval, impregnando o imaginário da época. O próprio Raul Glaber narra

circunstancias nas quais pôde de fato sentir a presença do demônio, chegando, em uma

ocasião, ate mesmo a vê-lo.

“Eu o vi ao pé do meu leito como um pequeno monstro de forma humana. Tinha, tanto quanto pude reconhecê-lo, o pescoço esguio, a face magra, os olhos muito pretos, a fronte estreita e enrugada, o nariz chato, a boca enorme, os lábios grossos, o rosto curto e fino, uma barba de bode, as orelhas retas e pontudas, os cabelos duros, os dentes de cão, o occiput saliente, o peito e as costas protuberantes, as vestes sórdidas; agitava-se, debatia-se furiosamente.”60

Descrições do demônio, tais como esta, fortificam a idéia de guerra espiritual

por mostrarem quão urgentemente a cristandade necessita reagir à ação do inimigo que,

se faz literalmente presente em nosso mundo. A idéia que se fazia do guerreiro

espiritual, o monge, atribuía à luta contra o Mal um caráter dignificante, pois só poderia

ser executada pelos homens que mais se aproximassem da pureza na terra. Da mesma

forma, deparar-se com a figura do demônio, poderia significar indicio de santidade61,

pois, da mesma forma como tentou Jesus, o anticristo empenha-se pelas almas dos

homens bons. Na coletânea de textos escritos pelo oitavo abade de Cluny, Pierre, o

Venerável, no século XII, podemos encontrar relatos de visões celestiais e diabólicas.

59 Raul Glaber. Les Cinq Livres de ses histoires (900- 1044). Prou. Maurice (Ed.). Paris, 1886. Apud DUBY, 1986, p. 188. 60 Ibidem, p. 197. 61 LE GOFF, Jacques, TRUONG, Nicholas. Uma História do corpo na Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 2005.

38

Em sua obra, De miracullus, ele demonstra que o diabo tentava a abadia de Cluny, o que

comprova a santidade do local62.

Já mais adiante, no século XIII, na obra de Ramon Llull, a mesma idéia pode ser

encontrada na alegoria contada pelo eremita ao protagonista Felix, quando este o

pergunta por que os homens se inclinam mais ao mal que ao bem. Para respondê-lo o

eremita recorre à alegoria, contando a história de um santo homem que vivia em um

eremitério:

“Esse solitário, paradoxalmente, quanto mais meditava e melhor se tornava, percebia que maiores eram as tentações que tinha. Isso lhe causou uma grande maravilha, pois ele pensava que quanto mais se esforçava para ser bom, menos deveria ser tentado pelo mal. [...] Nesse momento, Deus enviou ao santo homem uma visão: a bondade e a santidade do homem estavam em luta para se oporem e vencerem a maldade, e esta vitória e luta não podem existir sem as tentações, pois quanto maiores são as tentações, maior é o homem bom quando as vence.” 63

Porém estes são desdobramentos da luta espiritual por demais avançados para

nosso estudo. O que de fato podemos observar conforme nossas fontes nos permitem é

que no século XI a idéia de oração enquanto instrumento de combate, assim como a

iminência da presença do “inimigo antigo” aponta para uma espiritualidade triunfalista

na qual a luta contra o Mal adquire uma perspectiva cruzadística64. Desta forma a

religião responde também as pulsões agressivas de uma sociedade em que a violência

fazia parte da cultura da camada superior65. Com efeito, os cluniacenses, em sua

qualidade de guerreiros de luz, prestaram-se ao serviço de materializar em terras

borgonhesas a Jerusalém celeste, através da luta contra as tentações.

62 SCHMITT, Jean Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 63 RAMON LLULL, O Livro das Maravilhas, Livro VIII, p. 61, In: Obres Selectes de Ramon Llull (ed. introd. i notes de Antonio Bonner), Mallorca, Editorial Moll, 1989, vol. 2. 64 VAUCHÉZ, André. Op. Cit., p. 49. 65 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 127.

39

CONCLUSÃO

A consolidação da fé cristã na Idade Media foi fruto de um longo processo cujas

características sofreram muitas transformações ao longo do tempo. A esfera espiritual

não se desenvolveu independente das estruturas de poder, das dinâmicas político-

econômicas e da vida em sociedade e, do mesmo modo, não deixou de exercer

influência sobre as mesmas66.

Ao longo deste trabalho buscou-se explorar algumas dinâmicas que no espaço de

tempo entre o século VIII e XI marcaram a vida espiritual da sociedade. Dois

complexos se destacam sob a luz desta análise: a modalidade carolíngia da cristandade,

ou seja, as feições adquiridas pelo cristianismo em sua retomada pelo império carolíngio

e os meios pelos quais foi legitimado e utilizado nesta sociedade; e a “idade dos

monges”, mais especificamente a reforma cluniacense.

Mais do que uma análise cronológica da história religiosa dos séculos em

questão, este trabalho pretendeu abarcar aspectos de transição e de continuidade que, em

um primeiro momento, colaboraram para a consolidação do cristianismo e que,

posteriormente, tornaram a reforma espiritual tão necessária.

Ao estudarmos o império carolíngio facilmente observamos como estava

projetado pra uma retomada da herança latina deixada por Roma. Porém, enquanto

movimentavam-se no sentido de uma perpetuação da Igreja romana, os carolíngios

acabaram por imprimir características distintas na vida religiosa67. Esta sociedade esteve

reunida sob uma só bandeira espiritual, assim como se encontrava aglutinada sob o

poder de um soberano. Neste sentido, Carlos Magno foi a figura principal na

consolidação do cristianismo em seu império, ao passo que reuniu a cristandade através

do poder temporal. Tal papel de centralidade é enunciado na obra de Eginhardo que,

tanto através do testemunho que dá a respeito do engajamento do imperador em todos

os domínios por onde se estendia a esfera espiritual, quanto pelo uso de valores morais

em seu discurso de enaltecimento a figura do imperador, nos comunica que havia na

cristandade carolíngia uma coesão das formas de poder em cujo centro estava Carlos

Magno.

66 BLOCH, Marc. A sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. 67 VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média ocidental, editorial Estampa: Lisboa, 1995.

40

As vias através das quais o soberano exerceu seu poder passam pelo campo da

religião e foram também as vias pelas quais o poder espiritual pôde exercer grande

influência no sistema de valores morais do império. Isto se verifica através do ritual de

sagração de Carlos Magno, que confirma o pacto entre Império e Igreja no qual o poder

temporal torna-se dotado de um manto sobrenatural enquanto o poder espiritual aponta

para o império e, sobretudo para o soberano, as exigências éticas da fé cristã. Tais

exigências, por sua vez, concentram-se na ênfase do dever temporal para com a Igreja.

Esta proximidade entre a esfera espiritual e o mundo secular refletiu um sistema

de supremacia coeso e gerou interessantes formas de interação na sociedade, à medida

que fez das práticas religiosas um dever que os homens do século IX cumpriram dentro

de sua condição tanto de fiéis quanto de súditos. Logo, é possível conceber a igreja de

Carlos Magno como uma igreja secular68.

O fato de que o equilíbrio estava intrinsecamente ligado ao poder e prestígio

inigualável de Carlos Magno, torna esta configuração bastante frágil, de modo que,

eventualmente, o pacto da unidade se torna extinto. Porém, não sem deixar impresso na

organização das instituições religiosas o legado da secularização. Com efeito, foi esta a

característica que evoluiu para tornar-se a principal causa de uma grave crise no seio das

instituições eclesiásticas.

Os bispos, originários dos meios aristocráticos e elevados aos seus cargos por

razões predominantemente políticas, viviam como grandes senhores e, assemelhavam-se

mais aos homens de posse do que aos da Igreja69. Esta equiparação do modo de vida dos

leigos e dos religiosos bem como a impotência da igreja face aos abusos cometidos pelo

poder temporal causou a decadência das instituições religiosas. A crise acelerou-se com

o incremento do feudalismo.

É possível vislumbrar os problemas e as dificuldades enfrentadas pela Igreja

nesta época através da carta de testamento de Guilherme de Aquitânia quando este

transfere de sua para dos monges a posse da vila de Cluny. A preocupação em defender

e liberar de influência externa a comunidade de monges que ali se instalaria ilustra a

fragilidade das instituições monásticas em face da crise, porém, ao mesmo tempo reflete

uma mentalidade de tentativa de ruptura com este antigo modelo, cujas características

não mais supriam as aspirações espirituais dos cristãos da Idade Média.

68 ALPHEN, L. Op. Cit., p.41. 69 VAUCHEZ, André. Op. Cit., p.26.

41

É importante observar que, através da doação de seus bens, o intuito de

Guilherme é salvar sua alma. Neste sentido, é de extrema relevância que, de acordo com

seu julgamento, a melhor forma de empregar suas posses e garantir a salvação é por

meio do estabelecimento de um mosteiro, pois esta mentalidade anuncia de onde

emanam os conceitos da vida espiritual da época.

Cluny nasce então como a expressão mais autêntica das aspirações espirituais da

sociedade feudal70. Centro da reforma monástica, esta ordem de monges beneditinos

altera de maneira significativa a cultura religiosa de sua época, inaugurando o período

em que a centralidade da vida espiritual se encontrava nos mosteiros, e não mais no

século.

Já era consenso entre os cristãos, que os religiosos encontravam-se privilegiados

na perspectiva da salvação. Para a mentalidade do século XI os monges eram os mais

louváveis homens, pois abandonaram os vícios do mundo carnal e percorreram o

caminho da purificação71. Em função disto, mantinham uma ligação muito mais intima

com Deus e eram os escolhidos da sociedade para trabalhar pela salvação de todos.

Essa valorização da vida monástica adquiriu uma perspectiva peculiar à medida

que a atmosfera religiosa foi contaminada pela noção de combate espiritual. A partir

deste momento os monges não mais trabalhariam para salvar as almas da danação: eles

lutariam. Obviamente que a atividade a qual se dedicavam em nome do bem comum

não mudou; continuava a ser a oração litúrgica. Porém, o status atribuído a esta

atividade passava a ser o de arma de combate contra o “inimigo antigo”.

Para explorar as vias através das quais a nova espiritualidade legitimou-se e

envolveu toda a sociedade medieval, bem como os novos valores adquiridos pela

cristandade em função desta reforma, estudamos a obra de Raul Glaber, monge

cluniacense, cujos relatos de tom apocalíptico nos permitem ter uma visão da

mentalidade medieval em relação ao sagrado. Em sua perspectiva escatológica da

história o autor dá destaque à luta entre o Bem e o Mal e, desta forma, atribui à Cluny o

status de exército de Deus. Raul Glaber nos fala da decadência das instituições

monásticas e da esperança que a ordem dos monges cluniacenses restauradores

representou.

70 DUBY, Georges. O ano mil, Lisboa: Edições 70, 1986. 71

KNOWLES, David, OBOLENSKY, Dimitri. Nova história da Igreja: Idade Média, Petrópolis: Vozes, 1974.

42

Sendo assim, é possível concluir que a obra de Raul Glaber, através de sua

apologia à Cluny, nos aponta na direção dos mosteiros quando trata dos valores morais

e espirituais de sua época. Ao passo que na obra de Eginhardo vemos os valores da ética

cristã serem depositados sobre a figura imperial de Carlos Magno, em Raul Glaber

voltamos nossos olhares para os monges, esses sim, detentores da mais purificada forma

de vida. Esta transição na vida espiritual reflete uma mudança no sistema de valores de

uma sociedade e traz consigo o gérmen de uma nova forma de evangelização. É muito

relevante o fato de que esta transição não ocorreu sob a iniciativa de um programa

administrativo de reforma monástica e sim a partir dos anseios espirituais existentes na

sociedade feudal. Os religiosos abraçaram rapidamente a idéia de retorno ao “antigo

fervor”72 e a magnitude e rapidez da expansão cluniacense constitui, por si só, uma

evidência da necessidade de mudança sentida nos monastérios. É, porém, através da

sociedade laica que vemos o mais profundo impacto desta mudança. A supervalorização

do estado de vida monástico – acompanhado pela depreciação do laicado – e o empenho

dos leigos em associar-se à esfera religiosa representam as aspirações de uma sociedade

que, diferente daquela cujo conformismo e a submissão ao poder temporal eram o que

caracterizava a vida religiosa, estava de fato preocupada e absorvida no valor cristão de

busca pela salvação.

Neste contexto, é na carta de testamento de Guilherme de Aquitânia que

podemos contemplar as características tanto das conseqüências de uma velha tradição

na esfera religiosa quanto da espiritualidade monástica e da preocupação com o acesso

às vias de salvação que tinha o homem do século X. Século este, que em função de sua

forte característica de transição, Le Goff vem a considerar o divisor de águas da

cristandade73.

72 VAUCHEZ, A. Op. Cit., p. 67. 73 LE GOFF, 1989. Op. Cit., p. 27, 28.

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BIBLIOGRAFIA

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