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Universidade Federal do Rio De Janeiro ESCREVER É TRAIR: O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES Raphaella Mendes Silva de Castro Lira 2010

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Universidade Federal do Rio De Janeiro

ESCREVER É TRAIR:

O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES

Raphaella Mendes Silva de Castro Lira

2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

ESCREVER É TRAIR: O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES

Raphaella Mendes Silva de Castro Lira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Mestre em

Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Prof. Eduardo de Faria Coutinho

Rio de Janeiro

Julho de 2010

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ESCREVER É TRAIR:

O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES

Raphaella Mendes Silva de Castro Lira

Eduardo de Faria Coutinho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência

da Literatura – Teoria Literária, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria

Literária.

Aprovada por:

_______________________________________

Presidente, Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho

_______________________________________

Prof. Martha Alkimin de Araújo Vieira

_______________________________________

Prof. Ary Pimentel

Rio de Janeiro

Julho de 2010

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Lira, Raphaella Mendes Silva de Castro.

Escrever é trair: o labirinto do falso em Jorge Luis Borges /

Raphaella Mendes Silva de Castro Lira. Rio de Janeiro:

UFRJ/FL, 2010.

ix, 88f.

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho

Dissertação (mestrado) – UFRJ/FL/Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura, 2010.

Referências Bibliográficas: f. 98-103.

1. Borges, Jorge Luis, 1899-1986. 2. Crítica Literária. I.

Coutinho, Eduardo de Faria. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

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Palavras-chave: autobiografia, biografia, autor, jogo, espelho, memória.

Resumo: O gênero autobiográfico sempre esteve alojado no terreno das incertezas.

Fruto híbrido de relato pessoal e ficcional, a autobiografia é um perfil psicológico de um

determinado eu, que coloca em jogo diversos problemas, como a memória, a construção

da personalidade e mesmo a auto-análise. Outros dois gêneros relacionados à

autobiografia e também marcados por grande indefinição são a biografia, espécie de

retrato que visa iluminar, por meio da narração em terceira pessoa, a personalidade de

um indivíduo, e a autoficção, um dos gêneros que mais se destacou nos últimos anos.

Problemáticos, questionados e também motivadores de questionamentos distintos, os

três formam o poliedro teórico que servirá como base para o desenvolvimento do

presente trabalho. No espaço intermediário entre ficção, autoficção e (auto)biografia,

encontra-se a obra de Jorge Luis Borges, escritor que nunca hesitou em fundir o factual

e o imaginário em sua prosa e que, por esse mesmo motivo, deixou como legado uma

das obras mais ricas da literatura hispano-americana. Assim, nos indagamos como

abordar um texto de Borges, no qual todos os caminhos se confundem, criando um

labirinto onde a única regra é a multiplicidade. A ficção de Jorge Luis Borges suscita

diversos questionamentos acerca da relação entre autor e narrador. Como estabelecer

limites entre realidade, experiência individual, autobiografia e mera reflexão? Seriam

necessários os limites ou poderíamos considerar a obra de Jorge Luis Borges um grande

jogo com as temáticas que encontramos no cerne de toda a literatura? São essas

questões que o presente trabalho visa desenvolver.

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Abstract: The autobiography genre has always been difficult to classify. As a hybrid

product of personal and fictional narration, autobiography is also a psycological profile

of an author, which brings about several problems, like those related to memory, to the

construction of the self and to self-analysis. Other two genres related to autobiography

and difficult as well to classify are biography, a certain type of portrait that aims at

illuminating, through the device of a third person narration, the character of an

individual, and self-fiction, a genre that has received a lot of attention in the past few

years. These three genres, problematic though as they are, form the theorectical basis of

this study. In the space between fiction, self-fiction and autobiography, we find the work

of Jorge Luis Borges, a writer who never hesitated to merge concrete facts with the

imaginary in his prose, and who, for this very reason, has granted his readers with one

of the richest legacies in Spanish-American litterature. The question we raise in this

study is how to approach a text like that of Jorge Luis Borges, in which all possibilities

are made viable, thus creating a kind of labyrinth where the only rule is multiplicity.

Jorge Luis Borges‟fiction raises many differents questions about the relationship

between the author and the narrator. How, then, can we establish limits between

external reality, individual experience, autobiography and simple reflection? Would

these limits be really necessary or should we just consider the work of Jorge Luis

Borges a challenge to the set of themes we can find in the history of litterature? These

are some of the questions that the present study is intended to develop.

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Agradecimentos

O maior desafio que se colocou entre o processo de escrita desta dissertação e a pessoa

que a escreveu foi como (e por quem) começar a imensa lista de agradecimentos que

deve, obrigatoriamente, anteceder um texto que passou meses e meses sendo gerado em

meio à família, amigos, professores e, principalmente, amigos-professores.

Assim, gostaria de agradecer, primeiramente, ao meu namorado, André, meu primeiro

leitor, meu revisor atento, aquele que mais me questionou e arguiu, meses a fio,

madrugadas adentro, sem se incomodar com horários, rotinas, compromissos e que, ao

final de tudo, me ensinou o verdadeiro significado de companheirismo, amor e atenção.

Não teria conseguido se não fosse por você.

Ao meu orientador, Eduardo Coutinho, pela liberdade concedida, pelo apoio e presença

constantes, que me deram segurança para escrever cada uma das linhas que virão a

seguir.

Às minhas amigas e companheiras de todos os momentos: Ana Clara, Roberta e

Daniella. Obrigada por me encher de fôlego e entusiamo nos momentos em que eu mais

precisava e por sempre, sempre terem tido orgulho de mim. Sinceramente, não consigo

me imaginar hoje sem a amizade de vocês.

Aos meus amigos-professores, Mônica Fagundes, Luciana Salles, Katharine Alecrim,

Gabriela Ventura e Rafael Cesar, que me suportaram com amor e carinho durante meses

de ruminações teóricas e que sempre me presentearam com dicas valiosas, leituras

interessantes, pontos de vista inusitados e sem os quais talvez grande parte do conteúdo

a seguir tivesse tomado um rumo completamente diferente. Obrigada por me aturarem

no auge da dissertação, da insegurança, do desespero e também pelas inúmeras páginas

lidas durante todo esse tempo.

À minha família, sempre presente e maravilhosa, cujos inúmeros nomes não vou citar

um por um, mas que nunca deixou de ter orgulho das minhas mais tímidas conquistas.

A todos vocês, obrigada pelo apoio constante e incondicional, sem o qual também teria

esmorecido frente à tarefa que me aguardava.

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Dedicatória

Para minha mãe, Norma Mendes Silva, que tornou tudo isso possível sem ter deixado,

por um minuto sequer, de acreditar em mim.

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SUMÁRIO

1 Introdução 10

2 Aquiles, a tartaruga e o tabuleiro de xadrez: reunindo

fragmentos de Jorge Luis Borges

22

3 O labirinto, o minotauro e a biblioteca: a fantasmagoria de um

autor ausente

46

4 Através do espelho da memória: Jorge Luis Borges por Adolfo

Bioy Casares e Estela Canto

67

5 Conclusão 85

6 Referências bibliográficas 96

7 Referências cinematográficas 101

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Nós vamos submeter essa evidência a um exame: que é uma palavra?

os lábios brevíssimos, articulados mecanicamente, o fluido do discurso

escoando-lhe da boca como uma fita.

— Rede aérea de sons, a mais frágil produção do homem, ela resiste mais do que a pedra e o aço. Morrem as leis os costumes os impérios,

ela resiste. Submetida a um desgaste constante, ela resiste. De manhã à

noite um só homem normal diz milhares de palavras, são precisos muitos séculos para que seu simples sentido se altere. (FERREIRA,

1985: 194)

Introdução

De acordo com o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, para o vocábulo

língua, são cogitadas as seguintes acepções: 1. Órgão muscular, alongado, móvel,

situado na cavidade bucal, e que serve para a degustação, a deglutição e a articulação

dos sons da voz. 2. Objeto semelhante à língua (1). 3. O conjunto de palavras ou

expressões, faladas ou escritas, usadas por um povo, por uma nação. De todos os

significados propostos, interessa-nos sobretudo o terceiro. Será por meio dela que o

mundo ganhará contornos mais nítidos e que as histórias poderão ser contadas. A

língua que falamos é a pele de nossos pensamentos, é o pacto de fidelidade que

assinamos com o mundo em que vivemos. Se, entretanto, podemos compactuar com

essas assertivas em relação à língua falada, o mesmo não se dá em relação à escrita:

Sabe-se que a língua é um corpo de prescrições e hábitos, comum a

todos os escritores de uma época. Isso quer dizer que a língua é como uma Natureza que passa inteiramente através da palavra do escritor,

sem no entanto, dar-lhe nenhuma forma, sem sequer alimentá-la: é

como um círculo abstrato de verdades, fora do qual somente começa a se depositar a densidade de um verbo solitário. (BARTHES, 2004: 9)

É com essa afirmação que Roland Barthes abre O grau zero da escrita e é por

meio do pórtico fornecido por ela que pretendemos erguer os pilares para a discussão

acerca da natureza do discurso do escritor, sua relação com a complexa individualidade

do autor e, sobretudo, questionar supostos pactos (auto)biográficos estabelecidos. Como

seria possível confiar em uma suposta honestidade do discurso literário, algo que, para

usar as palavras do próprio Barthes é “uma trapaça salutar”, que “nos permite ouvir a

língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem”

(BARTHES, 1996:16) ? A língua, quando instrumento do escritor, não simboliza um

engajamento ou sequer um posicionamento frente à sociedade, e sim uma posição para a

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qual não havia alternativa. Falar uma língua, ou melhor, escrever em uma língua não é

opção, mas uma imposição geográfica.

Assim, já que não é possível escapar da “autoridade da asserção” ou do

“gregarismo da repetição” ·, tão característicos da nossa comunicação, como irá se

posicionar a literatura frente a essa relação? Por mais que para essa pergunta não seja

impossível cogitarmos uma única resposta, será por meio dela que traçaremos o

percurso a ser seguido no presente trabalho.

A figura do autor e sua relação com o texto literário irão fornecer vestígios para

que possamos ter um panorama mais apurado. Retomando mais alguns pontos nos quais

Roland Barthes se deteve em O grau zero da escrita, iremos encontrar as seguintes

afirmações:

Assim, para o escritor, a língua nada mais é do que um horizonte humano que instala ao longe certa familiaridade, toda negativa, aliás:

dizer que Camus e Queneau falam a mesma língua não é mais que

presumir, por uma operação diferencial, todas as línguas, arcaicas ou

futuristas, que eles não falam (...) A língua do escritor é bem menos um cabedal do que um limite extremo; ela é o lugar geométrico de

tudo aquilo que não poderia dizer sem perder, tal como Orfeu

voltando-se, a estável significação de sua atitude e o gesto essencial de sua sociabilidade.(BARTHES, 2004: 10)

A língua, em toda a sua horizontalidade e em seu caráter diacrônico, nada mais é

do que um limite, do que uma redução imposta pelo meio no qual se insere o escritor. É

a partir do horizonte, que Barthes denomina familiar, que a língua delimita um

determinado universo no qual o escritor poderá se movimentar. Apesar do caráter

aparentemente reducionista dessa definição, o que ela coloca em evidência é o fato de

que a literatura será o terreno em que cada escritor terá a liberdade de falar sua própria

língua. Em uma passagem de sua aula inaugural no College de France, Roland Barthes

deixa essa questão mais clara: “(...) porque o texto é o próprio aflorar da língua, e

porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela

mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é o

teatro.”(BARTHES, 1996:16). A literatura encena em seu palco, incessantemente, não

só o drama da linguagem, mas também a liberdade de mensagem da qual é a maior

portadora.

Assim, tendo como base as questões propostas por Roland Barthes, faz-se

necessário elaborar um outro questionamento que será de vital importância para o

trabalho que aqui se quer desenvolver: como lidar com a autobiografia?

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Escrever sobre si parece ser uma antiga paixão da humanidade. De Santo

Agostinho a Rousseau, passando por figuras significativas do século XX, como Anne

Frank, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, todos escreveram sobre suas vidas.

Logo, mais do que um gênero textual, podemos afirmar que a autobiografia parece ser

intrínseca à existência do homem. Falar de si próprio, mais do que simplesmente narrar

os fatos de uma existência, parece ser a maneira encontrada pelos escritores para

reivindicarem para si a autoria de suas próprias vidas.

Philippe Lejeune, em sua obra Le pacte autobiographique, um dos indiscutíveis

pontos de partida para a análise desse gênero tão instável, afirma que a autobiografia

pode ser definida como um relato em prosa, no qual uma pessoa real analisa sua própria

vida e a gênese de sua personalidade ( LEJEUNE,1975:14) Para ele, a autobiografia é

estabelecida através de um pacto de leitura que se dá entre autor e leitor. Ao abrir o

livro, assina-se um contrato, no qual o escritor ( ou autor) concorda em dizer a verdade e

o leitor concorda em acreditar. Por mais simplista que possa parecer a solução de

Lejeune para um gênero que, por definição, já se aloja no terreno das incertezas, ela foi,

durante muito tempo, a mais bem aceita. Se observarmos a coincidência entre o

narrador-personagem e o autor, é possível admitir que a proposição de Philippe Lejeune

tem aplicabilidade teórica.

Entretanto, o caminho que se deseja seguir no presente trabalho coloca alguns

obstáculos ao que foi tratado com tanta clareza por Philippe Lejeune: a obra de Jorge

Luis Borges. Em diversos textos que serão esmiuçados aqui, Borges se coloca como um

desafiador do pacto autobiográfico. Seja por meio da coincidência entre narrador e autor

ou pelos contos do escritor, que parecem utilizar fatos oriundos de sua própria vida, a

ficção borgiana se instala em uma interessante encruzilhada de conceitos, que também

visamos analisar com maior riqueza de detalhes.

Afinal, o lugar que devemos ou não conceder à autobiografia na vida de um

autor poderá também apontar a maneira como lidamos com sua obra ficcional. Ou

ainda, ao lidar com o arcabouço textual fornecido por entrevistas e depoimentos, é

necessário que consideremos a maneira como ambos poderão constituir um

desdobramento do gênero autobiográfico. Philippe Lejeune, em outra de suas obras

sobre a questão da autobiografia, afirma que através de diversas variações, poderemos

descobrir uma espécie de leitmotiv da autobiografia, ligado, sobretudo à questão do

“vivido” e da biografia, pois, a partir do momento em que concebemos a enunciação

como repleta de múltiplos instantes, temos que aceitar também que o relato de uma vida

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não é mais que uma repetição de formas de vida pré-existentes. ( LEJEUNE, 1980:9)

Isso quer dizer que ao narrar sua própria vida para um entrevistador ou mesmo para uma

platéia, qualquer escritor ou personalidade irá, na verdade, se valer de formas e

estruturas que já se tornaram comuns para o âmbito da biografia. Provavelmente, o

primeiro tópico será a infância, tentando remontar o primeiro contato com aquilo que o

tornou célebre, seja a escrita, a música ou as artes plásticas. É importante salientar como

irá se dar esse tipo de relato e a forma ideal de analisar sua estrutura, pois Jorge Luis

Borges não só narrou sua vida a diversos entrevistadores, como também concedeu

incontáveis depoimentos sobre os mais diversos assuntos. Dentre essas, analisaremos a

coletânea de Fernando Sorrentino, publicada em 1974, e também a obra de Borges que

mais se assemelha a uma autobiografia nos moldes clássicos, Autobiographical Essay,

ditado a Norman Thomas Di Giovanni, em 1970.

Peter Berger, em sua obra Perspectivas sociológicas, afirma que “...nossa vida é

constituída por uma determinada sequência de acontecimentos cuja soma representa

nossa biografia”. (BERGER,1989:65 ). Assim, por biografia, compreedemos o relato

sequencial de fatos que pertencem à vida de um determinado indivíduo. Por

conseguinte, escrever uma (auto)biografia seria “compilar esses acontecimentos em

ordem cronológica ou de importância”(BERGER, 1989:65). É nessa afirmação que

reside um dos principais problemas que se coloca face ao gênero (auto)biográfico: O

que é importante o suficiente para ser (auto)biografado? Peter Berger chegará a afirmar

que “ ...mesmo um registro puramente cronológico levanta questões referentes à

importância relativa de certos acontecimentos” (BERGER, 1989: 65). O senso comum

nos diz que qualquer ser humano, ao observar sua vida pregressa com o distanciamento

concedido pela maturidade, é capaz não só de afirmar como de discernir quais foram os

fatos mais marcantes de sua existência. “A consciência madura é aquela que possui, por

assim dizer, uma posição epistemologicamente privilegiada” (BERGER, 1989:66)

afirma Peter Berger. Já Jorge Luis Borges afirmará, no epílogo de O fazedor: “Um

homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço

com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de

pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a

imagem de seu rosto.”1 Se colocarmos as duas citações lado a lado, é quase possível

perceber o eco das palavras de Berger nas linhas de Borges. Ao tentar, de maneira

1 BORGES, Jorge Luis. Epílogo In: O fazedor. Trad. Rolando Roque da Silva. p.102

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difusa, construir uma obra, um autor estaria, inevitavelmente, preso ao fato que mesmo

sua ficção irá expressar algo a respeito de sua personalidade, sua vida ou mesmo de sua

(auto) biografia. A posição epistemologicamente privilegiada da qual nos fala Peter

Berger, que nos seria dada apenas pela maturidade, aparece transfigurada no epílogo de

Borges no breve momento que antecederia a morte. Peter Berger ainda se aprofundará

mais na ideia da maturidade como um momento privilegiado para a auto-análise: “ Não

é difícil perceber que tal noção de maturidade desempenha a função de dar ao indivíduo

uma justificativa para a redução de suas expectativas”(BERGER,1989:68). Isso

equivale a afirmar que é na idade adulta que o ser humano tem a real consciência

daquilo que é realmente relevante para sua vida. Além do óbvio sentimento de desilusão

que poderá ser fruto dessa consciência, é preciso salientar também que isso mostra

como uma mesma trajetória de vida pode ter diferentes interpretações. Com isso,

retornamos ao que é considerado aqui um dos principais pilares da biografia e da

autobiografia: a possibilidade de afirmar com certeza o que é importante o suficiente

para ser narrado, uma vez que a escala de relevância poderá oscilar de acordo com a

interpretação à qual estão sujeitas todas as trajetórias de vida.

Como Henri Bergson também tentou demonstrar, a nossa própria memória é

“um ato reiterado de interpretação” (BERGER, 1989:68). A cada momento de nossas

vidas, observamos os acontecimentos passados com a ótica conferida pelo presente, o

que faz com que, a cada fase de nossas vidas, redefinamos nosso passado. Peter Berger

irá esmiuçar ainda mais essa questão, afirmando que nossa própria memória tende a

ressignificar nosso passado, encarando-o como um elemento “maleável e flexível”.

Poderíamos, portanto, afirmar que possuímos tantas vidas quantas são as interpretações

possíveis para os fatos que já ocorreram.

De que maneira, entretanto, esse raciocínio estaria relacionado com a obra de

Jorge Luis Borges, corpus do presente trabalho aqui desenvolvido? O escritor argentino,

talvez, em relação a outros escritos, tenha sido o que mais encarou sua própria vida

como uma história para a qual mais de uma interpretação era possível. Jorge Luis

Borges nunca hesitou em mesclar elementos biográficos às suas mais conhecidas

narrativas, como por exemplo, o conto “El sur”, favorito dos biógrafos, no qual o

protagonista compartilha com seu autor a mesma moléstia e o mesmo encanto pela vida

nos pampas.

Pierre Bourdieu, em seu artigo “A ilusão biográfica”, irá afirmar que: “Falar de

uma história de vida é pelo menos pressupor (...) que a vida é uma história e que (...) é

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inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de uma existência individual concebida

como uma história e o relato dessa história.” (BOURDIEU, 1986: 183) Assim, ao tentar

relatar sua experiência de vida, qualquer ser humano estaria partindo do inevitável

pressuposto de que somos todos protagonistas de nossos próprios romances, em cuja

capa leríamos, com letras maiúsculas, nossos próprios nomes e sobrenomes. Essa

afirmação possui uma relação estreita com um dos tópicos que já foi aqui abordado

anteriormente, que diz respeito à obsessão do ser humano em falar de si. Jorge Luis

Borges compreendeu que, mais do que personagens de nossas próprias trajetórias,

somos personagens de nós mesmos e empreendeu, ao longo de toda sua existência, um

complexo jogo de construção e descontrução com sua própria imagem. Através de seus

contos, entrevistas, fragmentos e, sobretudo, por meio do relato daqueles que

conviveram com ele e o observaram, Borges se apresenta como um personagem no

caleidoscópio. Seja nas palavras que preenchem o diário pessoal de um de seus amigos

mais próximos, o também escritor Adolfo Bioy Casares, ou pelo olhar crítico e

sarcástico daquele que foi imortalizado pela crítica como seu inimigo número um, o

escritor Ernesto Sábato, Jorge Luis Borges nunca é o mesmo, apesar de podermos

identificar em todos os olhares uma certa similaridade.

Ainda no texto de Bourdieu, encontraremos a seguinte afirmação: “O sujeito e o

objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma o mesmo

interesse em aceitar o postulado da existência narrada” ( BOURDIEU, 1986:184).

Ambos, biógrafo e biografado tentariam, por meio da escrita, dar sentido e linearidade a

algo que escapa completamente à ideia de continuidade: o real. Ainda no mesmo artigo,

Pierre Bourdieu irá se valer das palavras de Allain Robbe-Grillet para demonstrar como

a ideia de uma (auto)biografia é ilusória: “ O advento do romance moderno está ligado

precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos

sem razão todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos (...)”

(BOURDIEU, 1986:185). A realidade que nos cerca é inapreensível, fora de controle e

imprevisível, o que equivale a afirmar que ter a pretensão de narrar a seqüência de

acontecimentos que constitui a vida de um determinado indivíduo significa ater-se ao

factual, ou seja, à dimensão mais rasa de nossas existências.

Há quem argumente que a dimensão factual de nossas vidas, aliada à identidade

única que o nome próprio nos lega, poderia perfazer um obstáculo às ideias de Pierre

Bourdieu. O que se deve salientar, entretanto, é que ao mesmo tempo que o nome

próprio nos diferencia e nos particulariza, também é apenas um substantivo, uma

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categoria vazia que só fará sentido ligada ao indivíduo que o possui. Sobre esse tópico,

Pierre Bourdieu afirma que:

O nome próprio é o atestado visível da identidade de seu

portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento

da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade

socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações em

registros oficiais, curriculum vitae, cursus honorum, ficha

judicial, necrologia ou biografia, que constituem a vida na

totalidade finita, pelo veredicto dado sobre um balanço

provisório ou definitivo. “Designador rígido”, o nome próprio é

a forma por excelência da imposição arbitrária que operam os

ritos de instituição: a nomeação e a classificação introduzem

divisões nítidas, absolutas, indiferentes às particularidades

circunstanciais e aos acidentes individuais, no fluxo das

realidades biológicas e sociais. Eis por que o nome próprio não

pode descrever propriedades nem veicular nenhuma informação

sobre aquilo que nomeia: como o que ele designa não é senão

uma rapsódia heterogênea e disparatada de propriedades

biológicas e sociais em constante mutação, todas as descrições

seriam válidas somente nos limites de um estágio ou de um

espaço. (BOURDIEU, 1986:187)

O nome próprio só daria conta daquilo que nos é imposto pela sociedade.

Sozinho, não passaria de algo que foi, temporariamente, a maneira usada para designar a

unidade fracionada, em mutação e múltipla que é a identidade. Acreditar, assim, que,

por exemplo, uma possível coincidência nos textos borgianos, entre o nome de um

personagem e o de seu autor significaria algo além de um jogo intencional com uma

premissa autobiográfica é mera ingenuidade. O nome próprio não passa de um

substantivo que evoca apenas aquilo que a sociedade necessita para preencher seus

formulários e certidões.

Logo, é possível afirmar que o nome próprio funciona mais como um acúmulo

de cristalizações semânticas oriundo do meio social no qual estamos inseridos do que

como uma categoria realmente individualizante ou taxonômica. Ter um nome não quer

dizer possuir uma identidade, mas apenas estar enquadrado nas categorias estipuladas

pela sociedade. Assim, quando Jorge Luis Borges escreve, por exemplo, em “Borges e

eu”, já estar cego e caminhar por Buenos Aires, será que poderíamos aceitar essas linhas

como afirmações do próprio indivíduo Jorge Luis Borges? A resposta para essa

pergunta não importa tanto como o fato de que Borges sempre foi um escritor

consciente do poder que havia em cada palavra, sobretudo nos nomes próprios. Apesar

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da tentativa de análise mais aprofundada dessa questão em um dos capítulos por vir,

faz-se necessário esmiuçar aqui uma linha de pensamento que foi explorada pelo

próprio Jorge Luis Borges em um de seus livros ditos “da juventude”, El idioma de los

argentinos:

Esta vocación de vivir que nos impone las elecciones ominosas

de la pasión, de la amistad, de la enemistad, nos impone otra de

menos responsable importancia: la de resolver este mundo.

Nadie puede carecer de esa inclinación, expláyela o no en libro.

Este prólogo es la relación de mis atenciones de ese orden,

durante el veintesiete. Su aire enciclopédico y montonero –

esperanza Argentina, borradores de afición filológica, historia

literaria, alucinaciones o lucideces finales de la metafisica,

agrados del recuerdo, retórica – es más aparente que real. Tres

direcciones cardinales lo rigen. La primera es un recelo, el

lenguaje; la segunda es un misterio y una esperanza, la

eternidad; la tercera es esta gustación, Buenos Aires. Las dos

últimas confluyen en la declaración intitulada Sentirse en

muerte. La primera quiere vigilar en todo decir.2 (BORGES,

2008:10)

Antes de analisar de forma mais detalhada as afirmações de Borges no prólogo

de El idioma de los argentinos, é importante salientar que se trata de uma obra que foi

excluída da compilação das obras completas do autor, a pedido dele próprio. Por mais

que possa parecer uma contradição usar um livro que foi considerado pelo autor como

sendo uma produção da juventude, quando a maturidade ainda parecia um horizonte

distante, parece ser necessário mapear o campo no qual irão se mover as ideias e

considerações contidas na obra. Borges afirma no prólogo de El idioma de los

argentinos que, ainda que possa ser considerada de menor importância, possuímos a

inextrincável tarefa de tentar resolver esse mundo. É uma inevitável inclinação que

todos possuímos. Mais ainda, Jorge Luis Borges afirma que o livro é regido por três

linhas de pensamento: a linguagem,que seria na realidade um receio e uma incerteza; a

segunda, a eternidade, tida como uma esperança e a terceira, a experimentação de

Buenos Aires. A primeira, entretanto, quer vigiar todo o dizer, o que equivale a dizer

2 Esta vocação de viver nos impõe difíceis escolhas de paixão, de amizade, de inimizade e nos impõe

outra de importância menos responsável: a de resolver este mundo. Ninguém pode prescindir dessa inclinação, explique-a ou não o livro. Este prólogo é a relação de minha atenções dessa ordem, durante

vinte e sete. Seu ar enciclopédico e guerrilheiro – esperança Argentina, rascunhos de filiação filológica,

história literária, alucinações ou lucidez final da metafísica, agrados da memória, retórica – é mais

aparente que real. Três direções cardinais o regem. A primeira é um receio, a linguagem; a segunda é um

mistério e uma esperança, a eternidade; a terceira é esse sabor, Buenos Aires. As duas últimas confluem

na declaração intitulada sentir-se em morte. A primeira quer vigiar todo o dizer. ( Trad. da autora).

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que a linguagem é o verdadeiro obstáculo da escrita, ou, para explorar um raciocíno de

Roland Barthes anteriormente citado, a língua é muito mais uma condição geográfica do

que um engajamento social. Talvez por isso Jorge Luis Borges afirme com tanta

melancolia que é ela que vigia o dizer, ou melhor, os dizeres. Cabe ao escritor a (quase)

impossível tarefa de conceder a essa língua um lugar onde não imperem os estereótipos

e onde cada palavra possa adquirir sua espessura e seu significado primordial.

Assim, quando Pierre Bourdieu afirma que um nome não passa de uma categoria

vazia não está só demonstrando como cada palavra possui o significado que a sociedade

atribui a ela, mas também que cada nome evoca um determinado indivíduo apenas para

fins sociais. Se observarmos as afirmações de Jorge Luis Borges no prólogo de El

idioma de los argentinos tendo como arcabouço teórico as considerações de Pierre

Bourdieu, é possível afirmar que contar o relato de uma vida é apenas uma obsessão por

fazer sentido, ou, para usar as palavras de Borges, resolver o mundo. Relatar uma vida é

compactuar com os moldes impostos pela sociedade, é, nas palavras de Lejeune, utilizar

fórmulas de vida pré-existentes, é aceitar que para construir uma (auto)biografia, a

linguagem sempre será o terreno das incertezas, do jogo com a verdade, da vigília.

Como podemos confiar no retrato supostamente fiel traçado pela biografia ou

pela autobiografia, se não só a linguagem que permeia nossas relações sociais é uma

constante fonte de desconfianças, como também a própria ideia da trajetória de vida

como algo linear pode ser demolida em apenas um instante? De acordo com Pierre

Bourdieu, a roupagem pela qual conhecemos a história da vida de um determinado

indivíduo não passa de um constructo social (BOURDIEU, 1986:189) , por meio do

qual entenderíamos a vida como uma espécie de sucessão longitudinal de posições que,

por acaso, são protagonizadas pelo mesmo sujeito, e que estão alojadas em um espaço

que nada mais é do que um devir, sujeito a todo o momento a incessantes

transformações.

A biografia seria quase como uma descrição dos espaços e deslocamentos que

um determinado sujeito teve, ao longo de sua existência, em um determinado espaço

social. É com base nesse pensamento que Pierre Bourdieu afirma que, quando tentamos

observar a vida como uma linha única e indivisível de acontecimentos sucessivos, que

acabam por não possuir outra ligação entre si a não ser o fato de que foram vividos pelo

mesmo sujeito, não conseguimos compreender como de fato a realidade é fragmentada e

descontínua.

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Na verdade, a questão que se coloca não está mais restrita ao domínio da

(auto)biografia, mas toca toda e qualquer obra literária: Afinal, como estabelecer limites

entre realidade, experiência individual, escrito (auto)biográfico e o que é apenas mera

ficção? Ainda em El idioma de los argentinos, Jorge Luis Borges esmiuçará uma

questão que será de vital importância na tentativa de elaborarmos uma resposta para a

pergunta que se colocou anteriormente. “Quedamos en que lo determinante de la

palabra es su función de unidad representativa y en lo tornadizo y contigente de esa

función” (BORGES, 2008a:21) afirma Jorge Luis Borges. Por palavra, entendemos

unidade representativa lingüística, o que absolutamente exclui o fato de que cada

vocábulo que perfaz o complexo inventário do qual somos usuários passa por um

complicado processo de cristalização semântica. Significados vão sendo lentamente

modificados, imagens pouco a pouco se tornam parte do imaginário de determinadas

palavras. É também através desse processo que são construídas as imagens de cada

indivíduo e, por que não, também dos escritores. Borges ainda se aprofundará mais na

ideia de cristalização que permeia nosso cotidiano linguístico e irá propor que não

existem categorias gramaticais e sim categorias representativas, sejam elas palavras ou

grupos de palavras, preposições, verbos, entre outros:

El escritor dice de unos ojos de uma niña: Ojos como...y juzga

necesario alegar un término especial de comparación. Olvida que la

poesía está realizada por esse como, olvida que el solo acto de comparar (es decir, de suponer difíciles virtudes que sólo por

mediación se dejan pensar) ya es lo poético. Escribe, resignado, ojos

como soles. La linguística desordena esa frase en categorías: semantemas, palabras de representación (ojos, soles) y morfemas,

meros engrenajes de la sintaxis. (...) Cualquiera sabe intuitivamente

que eso está mal.3 (BORGES, 2008a:24)

Para Borges, a simples ideia da comparação já bastaria para conferir beleza ao

ato poético. A análise, ou melhor, a gramática nos impossibilitaria de ver a verdadeira

face poética da comparação e de diversos outros atos que, para o âmbito linguístico não

seriam mais do que categorias. Assim, poderemos ou não afirmar que, uma vez que a

gramática, os usos e a linguística nos impedem o acesso ao real significado das palavras,

também nos seria cerceado o conhecimento da real mensagem da qual as palavras são

3 O escritor diz dos olhos de uma menina: Olhos como...e julga necessário alegar um término especial de

comparação. Esquece que a poesia se realiza nesse como, esquece que o simples ato de comparar (isto é,

supor virtudes difíceis que apenas por mediação se deixam pensar) já é poético. Escreve, resignado, olhos

como sóis. A linguística desordena essa frase em categorias: semantemas, palavras de representação

(olhos, sóis) e morfemas, meras engrenagens da sintaxe. Qualquer um sabe intuitivamente que isso não

funciona.(Trad. da autora)

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portadoras. Afinal, mais do que meros instrumentos através dos quais cada escritor irá

construir sua ficção, elas também são as engrenagens que articulam nossos raciocínios,

e que narrariam a descontínua história na qual somos todos protagonistas: a vida.

Como, portanto, confiar no poder que têm as palavras, ou melhor, como lidar

com algo que se aloja em um terreno cheio de incertezas como a biografia? A resposta

para esses questionamentos, mais do que um motivador do presente trabalho, é apenas

um vácuo no qual irão se alojar as infinitas possibilidades do texto borgiano.

Caleidoscópico, demiurgo de seu próprio labirinto, Jorge Luis Borges compreendeu, em

toda sua múltipla literatura, que mais valem as perguntas do que as respostas. Assim,

quando Borges afirma que somos incapazes de desvelar o que existe de poético e belo

em uma simples comparação, está, de fato, afirmando e corroborando as afirmações

teóricas que foram anteriormente esmiuçadas aqui. O sujeito, os significados e, por

conseguinte, toda e qualquer face da nossa realidade que está, inexoravelmente atada às

palavras, está também sujeita ao fato de que cada interpretação e cada leitura será

indiscutivelmente única. Todas as versões possíveis e imagináveis da vida de um

mesmo personagem, como por exemplo, o Tristram Shandy de Lawrence Sterne, são

permeadas de elementos que são praticamente intangíveis e, por vezes,

incompreensíveis. A vida de Tristram Shandy não se reduz aos fatos ou mesmo ao

contexto aos quais estão ligados estes mesmos fatos, mas à incapacidade que seu

próprio narrador tem de contar, com o que seria considerado um mínimo de

objetividade, os marcos principais daquilo que a civilização ocidental institucionalizou

como sendo os mais importantes na vida de uma pessoa.

Da mesma maneira como Lawrence Sterne anteriormente jogou com o estatuto

da autobiografia, Jorge Luis Borges também jogará, não só com o estatuto da

autobiografia, mas com o da literatura de um modo geral.

Dessa maneira, no primeiro capítulo será traçado um perfil da personalidade

literária que Jorge Luis Borges passou toda sua vida construindo. Entrevistas,

fragmentos de contos, depoimentos de pessoas que conviveram com o autor irão se

entrecruzar na tentativa de mapear como o escritor construiu sua figura pública. Afinal,

como lidar com um autor cuja obra consiste, em sua maioria, de páginas breves, contos

e narrativas curtas? Não seria a união de todas essas possibilidades o Borges que

emergeria do caleidoscópio?

Já no segundo capítulo serão abordados apenas os contos de autor, sobretudo

aqueles que fornecem mais escopo para uma análise supostamente autobiográfica. São

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eles: “El otro”, “La memoria de Shakespeare”, “La casa de Astérion”, “Funes, el

memorioso”, e “El sur”.

No terceiro e último capítulo, serão confrontados dois dos Borges mais célebres:

o de Adolfo Bioy Casares, delineado a partir de algumas anotações oriundas do diário

do escritor, publicado em 2006, e o de Estela Canto, escritora argentina com quem Jorge

Luis Borges teve um breve relacionamento, cujos meandros são expostos em Borges à

contraluz.

Assim, tendo como base os textos supracitados, o presente trabalho terá como

principal objetivo questionar os limites de uma leitura autobiográfica da obra de Jorge

Luis Borges. É importante ressaltar, também, que os questionamentos suscitados pelas

possibilidades contidas na obra de Jorge Luis Borges servirão, sobretudo, para que

sejam propostas leituras que contemplem o viés lúdico da literatura borgiana.

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Capítulo 1: Aquiles, a tartaruga e o tabuleiro de xadrez: reunindo fragmentos de

Jorge Luis Borges

La vie des écrivains s’écrit, aussi, dans

leur dos. ( Bernard-Henri Lévy)

Como diz a citação de Bernard-Henri Lévy, a vida dos escritores está escrita,

também, pelas suas costas. Ela é não somente alimentada pela ausência, mas também

pelo fato de que, para cada figura pública presente na mídia, existem, pelo menos, duas

histórias: a do próprio autor e aquela que se escreve independentemente de sua vontade,

pelos fragmentos e depoimentos daqueles que com ele conviveram ou que apenas o

observaram durante sua vida. Com Jorge Luis Borges, isso não se deu de forma

diferente.

Em um trecho de Sobre heróis e tumbas, Martín, o jovem protagonista, e seu

interlocutor Bruno encontram Jorge Luis Borges em uma rua de Buenos Aires:

Caminhavam pela rua Peru; apertando-lhe um braço, Bruno lhe

indicou um homem que caminhava diante deles, apoiado numa bengala:

─ Borges.

Quando se aproximaram, Bruno o cumprimentou. Martín se deparou

com uma mão pequena, quase sem ossos nem energia.Seu rosto parecia ter sido desenhado e logo apagado em parte por uma borracha.

Tartamudeava.

─ É amigo de Alejandra Vidal Olmos. ─ Caramba, caramba...Alejandra...pois muito bem.

Levantava os olhos, o observava com uns olhos celestes e aquosos,

com uma cordialidade abstrata e sem destinatário preciso, ausente. Bruno lhe perguntou o que estava escrevendo:

─ Bom, caramba...- tartamudeou, sorrindo com um ar entre culpado e

malicioso, com esse ar que saem (sic) tomar os camponeses

argentinos, ironicamente modesto, mescla de secreta arrogância e de aparente apoucamento, cada vez que se lhes pondera um pingo de sua

habilidade para traçar tentos. ─ Caramba...bem...tratando de escrever

alguma página que seja algo mais que um rascunho, eh, eh? E tartamudeava fazendo tiques com o rosto. (SÁBATO, 1980: 185)

Os dois personagens seguem seu caminho, deixando Borges para trás, entretanto,

o foco da conversa havia passado agora para os rumos da literatura argentina:

─ Dizem que é pouco argentino (Borges) – comentou Martín.

─ Que mais poderia ser senão argentino? É um típico produto nacional. Até seu europeísmo é nacional. Um europeu não é

europeísta: é europeu, simplesmente. (SÁBATO, 1980: 186)

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Por mais caricata que possa parecer a figura de Jorge Luis Borges pela ótica de

Ernésto Sábato, é, no entanto, importantíssimo ressaltar sua presença, talvez muito mais

do que a forma como é apresentado como personagem. O Borges de Ernesto Sábato

serve como um interessante mote para analisarmos a maneira como a figura de Jorge

Luis Borges será mostrada, não só por ele próprio, mas também por inúmeros de seu

contemporâneos, e mesmo por aqueles que sequer tiveram a oportunidade de conhecê-lo

e que, mesmo assim, parecem ter uma visão pessoal do que seria a personalidade do

talvez mais celebrado escritor argentino do século XX.

Jorge Luis Borges foi, de fato, um dos escritores latino-americanos de maior

importância no século passado. Depois dele, tornou-se impossível escrever sem lidar

com seu inextrincável legado, mesmo que, como no caso anteriormente citado de

Ernesto Sábato, seja para colocar em evidência o que havia em Borges de negativo.

A cena do romance de Sábato retomada aqui quer, todavia, funcionar como uma

porta de entrada. Apagado, cordialmente ausente, disperso, balbuciante. É dessa forma

que Ernesto Sábato nos apresenta a figura de Jorge Luis Borges. Seu preciosismo é

caricatural ao máximo, da mesma forma que sua conhecida “busca” pela perfeição

estética do texto literário. O Borges de Sábato não pertence a este século. Mesmo para

seus conterrâneos, Borges, muitas vezes, parecia o mais estrangeiro dos estrangeiros.

Sua “busca pela página perfeita” aparece sarcasticamente transfigurada na resposta vaga

e pouco elucidativa “algo mais que um rascunho”. Seu saber livresco e sua meta-

literatura soavam estranhos, deslocados, ou melhor, descolados da realidade argentina.

O personagem Bruno ainda arremata que, de alguma forma, seu estrangeirismo

pertencia àquela pátria. Era esperado, de certa maneira, que não transparecessem em

seus texto fortes marcas do que poderia ser considerado não como um característico

nacionalismo argentino, mas uma remissão a uma espécie de identidade que seria

comum não apenas a todos os latino-americanos, mas a todos os cidadãos do mundo.

Emir Rodríguez Monegal, em sua obra Borges por Borges, irá delimitar qual era

o perfil do escritor que prevalecia não só na Argentina, mas em toda a América Latina:

Durante muito tempo se acreditou que um escritor latino-americano

devia ser mais ou menos um mestiço, ter pretensões de aristocratismo intelectual, falar inglês ou francês com perfeição, e ostentar uma

cultura somente livresca. Devia escrever desde Paris ou de Madrid

sobre seu país natal, sobre os pobres e explorados indígenas (que havia conhecido só nas férias), textos impregnados de cor local: o

pampa, a selva virgem, a cordilheira, eram seus habitats literários,

mesmo que de fato na América só vivessem em Buenos Aires ou

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Caracas ou em Bogotá. Essa imagem, cunhada pelos mestres do

modernismo a partir de Darío ou de Enrique Larreta, perdurou

demasiado tempo na crítica européia e latino-americana mais rotineira.

( RODRIGUEZ MONEGAL, 1987: 13)

Jorge Luis Borges nunca se enquadrou nesse perfil. Grande parte de sua obra

recusa o regionalismo latino-americano que foi imortalizado por Astúrias em O senhor

presidente. O universo da literatura borgiana irá desfrutar dos mesmos limites

inventivos dos quais parecia desfrutar seu autor. Nas palavras de Italo Calvino:

O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças

ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar

sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos,

dos movimentos sintéticos em seus adjetivos sempre inesperados e

surpreendentes. Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado

e ao mesmo tempo uma literatura que é a extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar uma terminologia que

será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios podem ser

encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido a obra de um hipotético Herbert Quain. (CALVINO, 2009:63)

Sob o abrigo das páginas de cada conto, de cada poesia, o leitor irá se deparar

com um universo plural, no qual tudo parece, curiosamente, olhar-se no espelho. Incluse

seu próprio autor, demiurgo de uma biblioteca infinita e labiríntica. Ao longo de sua

existência, Jorge Luis Borges parece ter se dedicado à construção de um outro

personagem, Jorge Luis Borges. Emir Rodriguez Monegal chega a afirmar que o

indivíduo Borges perde seu lugar para a máscara, para a persona literária Borges.

Monegal diz ainda que o próprio Borges têm consciência do jogo, do mascaramento, e

que admite esse conhecimento em uma página de El hacedor, denominada “Borges y

yo”. Essa página, diz Monegal, marcará a obra de Borges em termos autobiográficos.

Porém, a pergunta que emerge dessa afirmação se torna muito mais contundente quanto

pensamos naquilo que já havia sido citado anteriormente pelas palavras de Italo

Calvino. A literatura borgiana baseia-se, sobretudo, nas noções de jogo, de potencial, de

desconstrução e reconstrução. Logo, como afirmar com precisão que “Borges y yo

“pode ser considerado definitivo em termo de duplicidade autobiográfica?

É notória a tendência que todo ser humano tem a unir a figura do autor e sua

obra como uma unidade indivisível. Também é notória a forma como o texto de Borges

acaba suscitando esse tipo de visão, afinal, que tipos de limites podemos estabelecer

entre a voz que narra e a pessoa do autor? Em que ponto começa a realidade, ou mesmo,

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em que ponto termina a experiência individual, ou seria mesmo possível afirmar que se

trata de uma convergência autobiográfia de diversas reminiscências pessoais?

“Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para

mirar el arco de un zaguán y la puerta cancél” (BORGES,2009,v.II:221). O tom

confessional da escrita sugere um tipo de verossimilhança ao relato, que acaba

desembocando em uma fatal aproximação autobiográfica. Passa-se a descrever o

comportamento e as atitudes de um Borges que, “ao tramar sua literatura”, justifica a

existência desse narrador. Assim, caraterizar essa voz que se enuncia em primeira

pessoa como um possível desdobramento de Jorge Luis Borges é ignorar todas as

possiblidades labirínticas contidas ao longo de sua obra.

A proposta de dissociação entre autor e narrador, entretanto, “não impede que

ele tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras,

trazendo nelas seu gênio ou sua desordem” (FOUCAULT, 2006: 28) como afirma

Michel Foucault. A leitura que se quer estabelecer aqui pretende que “Borges y yo”,

muito mais do que um momento reflexivo do próprio autor acerca da sua celebridade,

constitua um jogo verdadeiro com o pacto autobiográfico. De acordo com Philippe

Lejeune, o gênero autobiográfico é um relato retrospectivo em prosa que uma pessoa

real faz de sua própria existência, quando ela enfatiza sua vida individual, em particular

a história de sua personalidade .4

No nicho pertencente a esse gênero, encontraríamos o pacto autobiográfico, que

se define muito mais como um pacto de leitura do que por um contrato que a própria

obra traria embutido em sua constituição. O que Lejeune afirma é que, quando abrimos

um determinado livro que se apresenta como uma suposta história verídica, estamos na

verdade assumindo que tudo que nos será apresentado será oriundo do mundo dito real.

Logo, observar a obra de Borges à luz da definição de Lejeune possibilita que

sejam levantados diversos questionamentos acerca da voz narrativa de diversos de seus

contos, em especial “Borges y yo”. O que irá existir, na verdade, será uma obra que se

sustenta na negação de seu autor, sem a necessidade do apelo biográfico raso e sem

profundidade. Podemos verificar o jogo com esta abordagem tradicional no texto de

Borges a partir do momento em que o narrador afirma: “Yo he de quedar en Borges, no

4 LEJEUNE, Phillip. Le pacte autobiografique, 1975, p.14 "Récit rétrospectif em prose qu‟une

personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu‟elle met em accent sur sa vie individuelle, en particulier

sur l‟histoire de sa personnalité."

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en mí ( si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos

otros (...)” (BORGES, 2009,v.II: 221)5. Esse parágrafo também caracteriza a própria

natureza do texto, que longe de constituir uma verdade única, se constrói como um

tecido de referências como um território onde as leituras se fundem. Um texto nada

mais é que “absorção e transformação de um outro texto” (DELEUZE &

GUATTARI,1992:27) ou melhor, de diversos outros textos.

O jogo, entretanto, não termina nessa conclusão de “Borges y yo”. No epílogo da

obra no qual está contido esse conto, encontra-se a seguinte citação:

Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo.

Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de pessoas.

Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto

de linhas traça a imagem de seu rosto. (BORGES, 1985:102)

Seria esse parágrafo a derradeira aceitação de Borges ao conteúdo aparentemente

autobiográfico de sua obra? Com base nessa afirmação, é mesmo possível afirmar que

“Borges y yo”, apesar de digressivo, simularia uma confissão de cunho realmente

pessoal. Alguns indícios podem nos guiar para uma análise ainda mais detalhada deste

aspecto, como por exemplo a presença de um personagem homônimo ao autor, além da

já anteriormente citada fusão entre narrador e autor, personificada pelo “eu”que narra o

texto em primeira pessoa. Esse tipo de construção é o verdadeiro cerne do gênero

autobiográfico, pois é na autobiografia que sujeito e objeto se fundem em um único e

indissociável poliedro.

O escritor, entidade tão celebrada pela cultura ocidental, chega a ponto de

reivindicar para si não só a autoria de diversas obras, mas a própria autoria de sua

existência. O escritor chega à última instância de criar a si mesmo enquanto

personagem. Assim, pode-se dizer que Borges joga e rompe com o pacto

autobiográfico, uma vez que mescla elementos referenciais com a própria construção

labiríntica da voz autoral de seu texto. Os caminhos de Buenos Aires aparecem

fragmentados e repletos de reminiscências pessoais, e colocados lado a lado com as

questões suscitadas pela autonomia da linguagem literária.

O Borges de “Borges y yo”, híbrido de personagem e autor, recria a si mesmo e

se observa, ou, para retomar as palavras anteriormente citadas de Italo Calvino, eleva

sua literatura ao quadrado, ao mesmo tempo que extrai sua raiz quadrada, construindo

5 “Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém) porém me reconheço menos em

seus livros do que em muitos outros...”

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assim o texto como uma gama infinita de leituras potenciais. É importante ressaltar

também que a escrita breve que é conto constitui, por definição, o espaço das

bifurcações, das incompletudes, o espaço no qual “em última análise, se move nesse

plano onde a vida e expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, (...), e o

resultado dessa batalha é o próprio conto, (...) uma fugacidade numa permanência”

(CORTÁZAR, 2004)

Essa discussão também dá margem a uma segunda interpretação: seria através

da reconstrução do percurso de sua vida que um indivíduo encontraria as respostas para

as perguntas que o assolaram por toda a sua existência. No caso do texto de Borges,

vemos que o narrador, de forma análoga ao Borges real, já beira a cegueira (...y me

demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y lá puerta cancél..)

(BORGES, 2009, vII: 221)6 e também se questiona a respeito do papel assumido pelo

escritor em função de sua projeção no meio acadêmico: “...de Borges tengo noticias por

el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico”7.

O narrador chega a acusar esse outro Borges de vaidade e de converter seus atributos

em atributos de um ator. O que se vê nesse ponto é como o autor se converte em ator,

fazendo uma alusão clara ao fato de que a imagem construída por um escritor não

corresponde verdadeiramente ao indivíduo que carrega seu nome. É também importante

salientar a carga semântica que carrega a palavra ator, ou seja, aquele que interpreta,

que finge, que joga com uma natureza de personagem. Retomamos, assim, um tópico

que Monegal desenvolve com detalhes, que é a questão do mascaramento borgiano.

Para o autor, Jorge Luis Borges passou toda a sua vida trabalhando o falso, ou melhor: “

a mistificação erudita, o jogo de falsas atribuições que são verdadeiras armadilhas para

o leitor e (sobretudo) para os críticos, a produção de textos minuciosamente apócrifos” (

RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:20)

Em um prólogo para a segunda edição de Evaristo Carriego, Borges escreveu:

Eu acreditei, durante anos, ter me criado num subúrbio de Buenos

Aires, um subúrbio de ruas arriscadas e de ocasos visíveis. O certo é

que me criei num jardim, atrás duma grade com lanças, e numa

biblioteca de ilimitados livros ingleses. Palermo da faca e da guitarra andava (me garantem) pelas esquinas, mas os que povoaram minhas

manhãs e deram agrádavel horror a minhas noites foram o bucaneiro

cego de Stevenson, agonizando sob as patas dos cavalos, e o traidor

6 “ me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e a porta envidraçada” 7 “de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário

biográfico”

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que abandonou seu amigo na lua e o viajante do tempo, que trouxe do

futuro uma flor murcha, e o gênio encarcerado durante séculos no

cântaro salomônico e o profeta velado do Jorasán, que se ocultava

atrás das pedras e da seda que ocultava a lepra. ( apud. RODRIGUEZ MONEGAL, 1987: 21)

Esse fragmento, mais do que elucidar as referências que permeiam a obra de

Jorge Luis Borges, evidenciam um outro aspecto importante: como Borges se converteu

em seu próprio personagem. Talvez seja possível afirmar que, mesmo em cada conto

que permite uma aproximação autobiográfica, como por exemplo “Borges y yo”, o

verdadeiro processo de construção da persona Jorge Luis Borges tenha se dado através

de suas entrevistas. A cada depoimento dado sobre sua vida, como o que foi recuperado

acima, ou mesmo sobre sua literatura, Borges parecia cuidar para que seu personagem

ganhasse uma aura cada vez mais espessa e mítica.

O exemplo mais clássico e arquetípico desse processo são, sem sombra de

dúvida, as entrevistas concedidas a Fernando Sorrentino durante o ano de 1972. Com o

título de Siete conversaciones, a obra é marcante não só devido ao fato de compilar as

opiniões e depoimento de Borges sobre sua própria obra, sobre a cidade de Buenos

Aires e mesmo sobre sua infância, e sim porque, já no prólogo, de autoria do próprio

Borges, vemos claramente a relação que existe entre o autor, sua obra e seus leitores:

Paradójicamente, los diálogos de um escritor y de um periodista se parecen menos a um interrogatorio que a una especie de

instrospección. (...) Fernando Sorrentino conoce mi obra – llamémola

así – mucho mejor que yo; ello se debe al hecho evidente de que yo la

he escrito sola una vez y él la ha leído muchas, lo cual la hace menos mía que suya. (...) Fernando Sorrentino es, en suma, uno de mis

inventores más generosos. (SORRENTINO, 2001:7)

Dentre todas as observações que podemos fazer acerca deste fragmento, a mais

curiosa talvez seja a respeito da escolha lexical de Jorge Luis Borges para se referir a

Fernando Sorrentino. O escritor argentino usa a palavra “inventor” que, em espanhol,

possui pelo menos um significado semelhante ao do português. Inventor pode ser tanto

“inventor”, como “autor”, ou mesmo “descobridor”. Logo, somos levados a questionar

o emprego de tal palavra, pois conhecendo a obra de Jorge Luis Borges, é possível

afirmar que o escritor jamais empregaria uma palavra ao acaso. Todas as escolhas que

perfazem seus textos e suas poesias são cuidadosamente selecionadas e seus respectivos

empregos sempre parecem ligados ao universo compreendido por sua ficção.

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O que quereria Jorge Luis Borges expressar ao chamar Fernando Sorrentino de

“um de seus inventores mais generosos”? Podemos pensar que o escritor argentino

compactuando com a ideia de que cada leitor cria para si uma face do leitor que pode ou

não corresponder à realidade. É provavél também que possamos encontrar as respostas

para esses questionamentos na própria obra de Borges. Na continuidade de Siete

conversaciones, Jorge Luis Borges irá, de certa forma, adensar ainda mais a ideia que se

encontrava latente na afirmação que havia feito no prólogo, a respeito de Fernando

Sorrentino. Quando perguntado pelo entrevistador sobre quando e onde havia aprendido

a ler, Borges responde: “Yo no recuerdo ninguna época en que yo no hubiera sabido

leer, lo cual quiere decir que aprendí muy temprano”. Jorge Luis Borges parece definir

toda a sua existência com base no ato da leitura. Podemos mesmo inferir, com base no

universo de sua obra, que essa atividade se sobrepunha ao ato da escrita.

Sobre a atividade da leitura e o papel do leitor, faz-se necessário recorrer a um

arcabouço teórico mínimo, para que seja possível compreender a real natureza da

proposta de Borges, do “leitor como inventor”. De acordo com Antoine Compagnon,

em sua obra O demônio da teoria, o leitor como uma parcela ativa da criação literária

nem sempre foi um caminho viável para a crítica. Compagnon cita ainda Stepháne

Mallarmé, que em seu texto “Quant au livre”, afirma que: “Impersonificado, o volume,

na medida em que se se separa dele como autor, não pede a abordagem do leitor. Tal,

saiba entre os acessórios humanos, ele se realiza sozinho: fato, sendo”

(COMPAGNON,2006:140). Compagnon arremata a citação de Mallarmé explicando

um pouco mais acerca da natureza do livro e da obra literária: “O livro, a obra, cercados

por um ritual místico, existem por si mesmos, desgarrados ao mesmo tempo de seu

autor e de seu leitor, em sua pureza de objetos autônomos, necessários, essenciais.”

(COMPAGNON,2006: 140)

De que maneira poderíamos, entretanto, interpretar as afirmações de Jorge Luis

Borges à luz de uma concepção tão arraigada? A resposta parece ser fornecida pelo

próprio Antoine Compagnon, em um trecho no qual são analisadas as considerações de

Marcel Proust sobre a leitura: “o leitor é livre, maior, independente: seu objetivo é

menos compreender o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele

não pode compreender um livro se não se compreende ele próprio graças a esse livro”.

(COMPAGNON,2006:144) Logo, é possível afirmar que Borges, quando diz que suas

obras pertencem mais ao entrevistador do que a si próprio, quer dizer que a criação se

liberta das mãos do criador uma vez que é lançada no mundo. Todos os textos

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pertencem mais àqueles que os lêem e que continuam lendo do que àqueles que os

escreveram. A pergunta que parece emergir do confrontamento entre as ideias contidas

nas afirmações de Borges e as propostas lançadas por Antoine Compagnon é: a quem

pertence o Jorge Luis Borges apresentado nas páginas de Siete conversaciones? A nós,

os leitores, ao entrevistador, um de seus dedicados leitores, ou ao próprio Borges,

sempre leitor de si mesmo?

A resposta para esses questionamentos está contida nas próprias páginas da

coletânea elaborada por Fernando Sorrentino. Jorge Luis Borges parece preocupado em

afirmar que o ato da leitura tira a propriedade da obra das mãos de seu autor, mas o que

vemos condensado ao longo das sete entrevistas é um Borges que relê a si mesmo e que

se reelabora com o cuidado de quem escreve um novo livro. Ao contar sua história

pessoal e falar de sua obra, Borges parece não hesitar em transformar a si mesmo em

mais um personagem. Os feitos, sobretudo familiares, relatados a Sorrentino ganham

uma atmosfera literária, em especial porque será através dessas entrevistas que Borges

esclarecerá de que maneira sua vida e sua ficção se entrelaçam:

F.S.: Usted, en El Aleph, tiene um relato que trata de una inglesa que había vivido entre los indios.

J.L.B. : Sí, es verdad: eso me contó mi abuela. No he agregado nada

allí. Cuando empecé a escribir, creí, sin duda bajo el influjo de tantos

novelistas del siglo XIX, que yo tenía que documentarme mucho, y, en cambío, ahora me parece que cuanto menos intervenga en lo que

escribo, mejor. Es decir, si a mí me han contado un cuento, y si esse

cuento me ha impresionado, mejor es contarlo tal como lo oí, y no buscar circunstancias en libros. (SORRENTINO, 2001: 22)

Borges afirma que o conto “Historia del guerrero y de la cautiva” foi escrito

exatamente como havia lhe contado a avó inglesa. O escritor ainda defende que a

intromissão ao escrever sobre algo que muito nos impressionou deve ser a menor

possível. No entanto, ao observarmos o conto a que Jorge Luis Borges faz referência, é

possível constatarmos a interferência do autor. Inicialmente, antes de contar a narrativa

da inglesa que havia vivido entre os índios, Borges cita e constrói uma complicada

analogia entre a narrativa por vir e um livro de Benedetto Croce, historiador, escritor,

filósofo e político italiano:

En la página 278 del libro La poesía ( Bari, 1942), Croce, abreviando um texto latino del historiador Pablo el Diácono, narra la suerta y cita

el epitafio de Drocfult; estos me commovieron singularmente, luego

entendí por qué.

Fue Drocfult un guerrero lombardo que en el asedio de Ravena abandonó a los suyos defendiendo la ciudad que antes habia atacado.

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Los raveneses le dieron sepultura en el templo y compusieron un

epitafio en el que manisfestaron su gratitud (“contempsit caros, dum

nos amat ille, parentes”) y el peculiar contraste que se advertía entre

la figura atroz de aquel bárbaro y su simplicidad y bondad (...) 8(

BORGES, 2009,vI: 669)

A relação que podemos traçar entre o relato de uma vida e a ficção, em especial

quando nos deparamos com algo do porte de Siete conversaciones, deve ser

cuidadosamente pensada. As entrevistas de Fernando Sorrentino até hoje nos propiciam

algo mais do que o mero conhecimento acerca das opiniões de Jorge Luis Borges, como

o contato com o personagem ou, para empregar a expressão usada por Emir Rodríguez

Monegal, a persona que o escritor argentino passou a vida construindo em público, ou

mesmo para o público? Talvez seja por esse motivo que Monegal considere “Borges y

yo” tão conclusivo a respeito da relação entre o autor e sua pessoa pública. É importante

salientar, no entanto, como já foi explorado anteriormente, como Jorge Luis Borges

pensava e como encarava a atividade literária e seus desdobramentos. Assim, como

podemos acreditar que um conto no qual o autor irá performatizar um jogo com seu

próprio nome consiste em uma real solução no que diz respeito à complexa relação

entre aquele que assina a autoria das obras e aquele que a mídia nos apresenta como

sendo seu autor?

Jorge Luis Borges tinha consciência disso e, por esse mesmo motivo afirmava

que a obra é de quem a lê. Ele tinha plena consciência que por autor compreendemos

muito mais aquele que assume um determinado papel, ou mesmo aquele que atua, que

reivindica para si a perfomance da autoria do que por um indíviduo que queira

realmente assumir a responsabilidade pelo sentido e pela significação de um texto.

Calvino diria que é por isso que a literatura de Borges é fundada no potencial. Ela joga e

dobra-se sobre si mesma, reflete-se em um espelho e se perde no labirinto.

Apesar disso, existem algumas considerações tecidas por Philippe Lejeune que

poderão nos ajudar a mapear o complicado constructo da persona borgiana. Em seu

livro Je est un autre, Lejeune irá conceder uma atenção especial à questão das

entrevistas, sobretudo radiofônicas. As entrevistas foram, desde seu mais insípido

8“Na página 278 do livro La Poesia (Bari, 1942), Croce, resumindo um texto latino do historiador Paulo,

o Diácono, narra o destino e cita o epitáfio de Droctulf; estes me comoveram singularmente, depois

compreendi por quê.

Droctulf foi um guerreiro lombardo que, no assédio de Ravena, abandonou os seus e morreu defendendo

a cidade que antes havia atacado. Os ravenenses sepultaram-no num templo e compuseram um epitáfio

em que manifestavam sua gratidão (“contempsit caros, dum nos amat ille, parentes”) e o peculiar

constraste observado entre a aparência cruel daquele bárbaro e sua simplicidade e bondade.”

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princípio, pensadas para que o autor real pudesse esclarecer algo acerca de sua

personalidade. Com o tempo, nos explica Lejeune, esse processo se inverteu. As

entrevistas passaram a ser consumidas antes da obra do autor que, ao perder sua

preferência, passou a servir como uma espécie de compêndio que deveria ajudar a

compreender a natureza e a personalidade do entrevistado. A voz e a imagem passaram

a ser mais importantes que aquilo que cada autor apresentava como sua produção. Esse

movimento nos interessa de duas maneiras distintas: a primeira delas diz respeito ao

fato de que Jorge Luis Borges se localiza em um ponto nevrálgico de uma mudança de

concepção que teve lugar no século XX; a segunda está relacionada com o fato de que

Borges, modernamente, estava a par das mudanças que aconteciam e, apesar de

continuar com seu arsenal de referências do século XIX, tinha uma postura condizente

com o século no qual se encontrava inserido. Philippe Lejeune tece ainda mais

considerações que são indipensáveis no caminho que se pretende traçar aqui: " Et ce qui

on consomme, dans le cas de la notoriété littéraire, c‟est la forme même du portrait de

l‟auteur , quelle qu‟en soit la passagère incarnation"( LEJEUNE,1980 :103).

O que consumimos não é o conteúdo de cada entrevista, mas a forma como a mesma

nos é apresentada. Por isso, é possível afirmar que a relação de Borges com o perfil

traçado por Sorrentino é uma via de mão dupla, pois Borges não só usufruía do

conhecimento do poder da entrevista, mas, ao mesmo tempo, desenvolvia uma postura

que apenas tornava mais espessa e complexa sua figura pública. Na verdade, o que

devemos nos perguntar é qual é o lugar da entrevista em meio ao compêndio da obra de

um autor. No caso de Jorge Luis Borges, é provável que a resposta a essa pergunta

também nos leve à subsequente indagação acerca na natureza da persona borgiana.

Philippe Lejeune afirma que :

(…)L‟interview a d‟abord été utilisée pour renouveler le genre

journalistique de l’enquête sur une question d‟actualité. Au lieu de publier une réponse écrite, on transcrivait une réponse orale (…) Et ce

pouvait être pour le journaliste l‟occasion de faire un bref portrait de

l‟interviewé (pratiquement tout les interview sont narrativisée). (LEJEUNE, 1980: 107)

Logo, se as entrevistas foram utilisadas para dar novo ânimo à cena jornalística,

conceder a elas um lugar junto à obra de cada escritor é, talvez, polêmico. A questão da

oralidade pode vir a ser um problema, uma vez que quando falamos de literatura,

sobretudo em relação a Jorge Luis Borges, estamos falando de textos nos quais a escrita

clara, límpida e enxuta coloca em relevo a complexidade das narrativas. Uma outra

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questão, no entanto, que emerge daquilo que foi apontado por Philippe Lejeune é o fato

de que as entrevistas eram, frequentemente, “narrativizadas”, e que tinham como

propósito secundário a elaboração de um breve relato sobre a personalidade do

entrevistado.

Com base nessas assertivas, é necessário que retornemos ao arcabouço fornecido

por Siete Conversaciones. Se, em algum momento da história da imprensa, as

entrevistas serviram de fato para que fosse elaborado um certo retrato do entrevistado, é

necessário que observemos a forma como esse processo é levado às últimas

consequências no livro de Fernando Sorrentino. As sete conversas que dão origem ao

título, muito mais do que traçar um perfil de Jorge Luis Borges, mostram-nos a maneira

como o próprio autor lidava, não só com sua obra, mas com sua própria pessoa.

Fernando Sorrentino chega a afirmar que:

El Borges que habla en este volumen es um señor cortés y distraído,

que no verifica citas, que no vuelve atrás para corregirse, que finge tener mala memoria: no el terso Jorge Luis Borges de la letra impresa,

aquel que calcula y mide cada coma y cada paréntesis. Lá

heterogeneidad y el desorden que aquejan a las preguntas intentan que

este libro no sea um ensayo orgánico sino exactamente lo que declara su título: siete tranquilas y casuales charlas (...). (SORRENTINO,

2001: 10)

O Borges descrito por Fernando Sorrentino em sua introdução chega a se

assemelhar com o Borges, personagem de Ernesto Sábato, que foi citado no início deste

capítulo. O que chama atenção, no entanto, é a forma como um personagem pode

guardar tanta similaridade com a descrição do autor por uma pessoa que o conheceu. É

provável que nesse ponto se situe a segunda problemática da qual não podemos

prescindir na tentativa de mapear Jorge Luis Borges, escritor e também personagem de

si mesmo.

Ainda analisando as entrevistas concedidas a Sorrentino, podemos observar

como irá se desenvolver o Jorge Luis Borges que o próprio Borges julga ser: “ En

cambio – voy a buscar el más humilde de los ejemplos −, creo que es muy fácil hacer

uma parodía mía e yo me dedico a hacerla, porque ya se sabe que lo que yo escribo es

um repertorio de juegos com el tiempo, de espejos, de laberintos, de puñales, de

máscaras”. (SORRENTINO, 2001: 33)

Nas palavras do próprio Borges, sua literatura não passa de um repertório de

jogos com o tempo, com os espelhos, com os labirintos, com os punhais e, talvez o que

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mais nos interesse aqui, com as máscaras. É interessante o próprio autor admitir seu

fascínio pelo mascaramento, sobretudo se analisarmos a natureza das entrevistas.

Philippe Lejeune irá afirmar que: "L‟écrivain interrogé qui accepte de parler plusieurs

heures de son oeuvre et de sa vie, et de voir ses propos publiés en livre, engage quelque

peu sa responsabilité : même embryonnnaire et limité, c‟est une forme de contrat

autobiographique vis-à-vis du public "(LEJEUNE,1980:109) . A suposta oralidade ou

casualidade que permeiam as entrevistas não anulam o fato de que, em seu interior,

exista um embrionário pacto autobiográfico. Mesmo a aparente assepsia conferida pelas

perguntas direcionadas e sequenciais, características do ambiente jornalístico, ainda

assim permitem que escutemos, em meio ao turbilhão midiático, o eco das palavras do

autor real, aquele que de fato existiu.

Assim, a entrevista coloca para o leitor o mesmo tipo de problema que a

autobiografia coloca para a literatura: o que, na realidade, delimita verdade e mentira

nesse campo tão repleto de incertezas. Como assinar um pacto de confiança com

aqueles que, na realidade, são encarregados de construir os mundos imaginários que

povoam nossas mentes. O caso de Jorge Luis Borges talvez seja o mais desafiador

quando confrontado com esses questionamentos. Uma das possíveis justificativas para

isso se encontra nas páginas de An Autobiographical Essay, texto de cunho

autobiográfico que Borges publicou após o auxílio de Norman Thomas Di Giovanni.

Publicado em 1970 para a revista The New Yorker, será nesse ensaio autobiográfico que

conseguiremos identificar alguns dos traços que são comuns tanto a Jorges Luis Borges,

o homem, como a Jorge Luis Borges, o escritor. Já nas páginas iniciais do texto, vemos

como, mesmo ao tentar remontar a infância, Borges irá vincula-lá, de alguma maneira, à

literatura:

Había también un Palermo de compadritos, famosos por las peleas a

cuchillo, pero ese Palermo tardaría en interesarme, puesto que hacíamos todo lo posible, y con éxito, para ignorarlo. No como

nuestro vecino Evaristo Carriego, que fue el primer poeta argentino en

explorar las posibilidades literarias que tenía allí al alcance de la mano. (...) (BORGES,1999:14)

O fato de Jorge Luis Borges ter ligado o Palermo de sua infância à literatura de

Evaristo Carriego também coloca em evidência outro fato anteriormente citado: qual é a

informação que devemos privilegiar quando tentamos narrar uma história de vida. Pierre

Bourdieu afirma que só o pressuposto de que existe uma linearidade, ou seja, uma

espécie de deslocamento unidirecional que é inerente à existência de todos os seres

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humanos já equivale a acreditarmos na ideia de “começo” (ou nascimento) e

“fim”(morte). Nossas vidas não compreendem uma sucessão de eventos, mas um

acúmulo de fatos descontínuos, justapostos sem qualquer razão aparente e unidos pelo

tênue laço que é o nome próprio.

Ao longo de todo o texto autobiográfico que é Autobiographical Essay, Jorge

Luis Borges irá sempre localizar as preferências literárias da família e associá-las às

suas: “Fanny Haslam era una gran lectora. Cuando ya había pasado los ochenta la gente

le decía, para ser amable con ella, que ya no había escritores como Dickens y

Thackeray. Mi abuela contestaba: „Sin embargo yo prefiero a Arnold Bennett,

Galsworthy y Wells‟”. (BORGES, 1999:18)

O que é mais curioso em relação ao fato de Borges esmiuçar detalhes sobre o

gosto literário das pessoas que o cercaram parece ser uma espécie de determinismo em

relação ao futuro de “homem de letras”. Ao reconstruir a história de alguns de seus

familiares, como por exemplo a avó inglesa Fanny Haslam e de seu próprio pai Jorge

Guillermo Borges, o escritor argentino parece dar sempre ênfase ao fato de sua própria

vida parecer estar sempre atada à literatura. Chega mesmo a afirmar que “Si tuviera que

señalar el hecho capital de mi vida, diría la biblioteca de mi padre. En realidad, creo no

haber salído nunca de esa biblioteca” (BORGES,1999:24). Apesar de este texto ter sido

publicado apenas na década de 1970, é importante salientar como uma afirmação deste

porte pôde ajudar a configurar a persona borgiana construída com tamanho empenho

por Jorge Luis Borges.

Em 1970, Jorge Luis Borges já era um escritor com uma carreira consolidada,

com fama, público e reconhecimento. Por mais que sua própria ficção já se baseasse no

jogo, com espelhamento e no mascaramento, a publicação de um texto autobiográfico

no qual o próprio autor admite e esmiuça suas raízes, sua bibliofilia e suas obsessões foi

determinante. Quando Borges afirma que nunca saiu da biblioteca do pai, o que vemos

não são apenas as cristalizações de suas influências literárias, mas também a maneira

como o escritor forja para si uma outra identidade que não a de autor: a identidade de

leitor.

No mesmo texto datado de 1970, o escritor argentino irá afimar : “Siempre

llegué a las cosas después de encontrarlas en los libros” (BORGES,1999:32). Os livros

eram e sempre seriam, mais do que uma fonte de informações ou pesquisa, uma espécie

de via de passagem obrigatória e necessária. Sua própria vida aparece em Um ensaio

autobiográfico como algo que pode ser dividido em fases de leitura.

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Ainda no volume de entrevistas concedidas a Fernando Sorrentino, Borges irá

afirmar:

Antes de haber escrito uma línea, yo sabía, de um modo misterioso y,

por eso mismo, indudable, que mi destino era literario. Lo que yo no supe al principio es que, además del destino de lector – que no me

parece menos importante el outro – tendría también el destino de

escritor.(SORRENTINO,2001:63)

Para Jorge Luis Borges, escritor e leitor são duas facetas de um mesmo

personagem, ou, como afirma Emir Rodriguez Monegal, de uma mesma persona. Ao

reconhecer e situar suas próprias referências, Borges também está jogando e, para usar

algumas de suas próprias palavras, fazendo uma paródia de si mesmo. O que vemos

reunido, ao longo das entrevistas e mesmo do ensaio autobiográfico anteriormente

citado, é um leitor que, muito mais do que um escritor, escreve sua própria história.

Philippe Lejeune afirma que uma autobiografia é, para além do contrato de

leitura, a obra na qual um escritor irá reclamar para si a autoria de sua própria vida.

Borges não somente escreve, mas é o criador do Jorge Luis Borges como conhecemos,

em entrevistas e visto pelo olhar de seus contemporâneos.

Apesar disso, entretanto, existe um conto que pode nos fornecer um outro tipo de

perspectiva sobre a criação do personagem Jorge Luis Borges. “La biblioteca de Babel”,

incluído no livro Ficciones. Favorito entre críticos e estudiosos da obra borgiana, o

conto pode, entretanto, fornecer-nos diferentes perspectivas acerca da questão

autobiográfica em Borges: “Como todos los hombres de la Biblioteca, he viajado en mi

juventud; he peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora

que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me preparo a morir a unas pocas

leguas del hexágono en que nací.”9 (BORGES,2009,vI:558) A primeira aproximação

autobiográfica que podemos constatar nesse trecho consiste na óbvia semelhança entre

seu autor e o narrador. Ambos são bibliotecários10

, cegos e fascinados pelo infinito

contido em cada livro, ou melhor, na literatura. Antes, entretanto, de aprofundarmos

ainda mais a questão do espelhamento autobiográfico que pode existir entre autor e

narrador nesse específico conto, faz-se necessário perguntar o que é espelhamento

autobiográfico.

9 “Como todos los hombres de la Biblioteca, he viajado en mi juventud; he peregrinado en busca de un

libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me

preparo a morir a unas pocas leguas del hexágono en que nací.”. 10 Jorge Luis Borges foi diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina, nomeado em 1955.

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Os indícios que podem nos guiar no sentido de responder esse questionamento

com o máximo possível de fidelidade afirmam que a aproximação existente entre autor

e narrador já seria o suficiente para respaldar qualquer tipo de análise que se apoiasse

nessa ideia. O que é o espelho, no entanto? Como podemos afirmar que a ideia de que

um autor tenha espelhado um personagem em sua própria personalidade pode ser

suficiente para sustentar este viés?

O espelho, conforme afirma a tradição e também o Dicionário de Símbolos,

refletiria a verdade e a sinceridade de um determinado indivíduo (CHEVALIER &

GHEERBRANT,2006). Assim, por espelhamento, compreenderia-se um processo no

qual um determinado indivíduo revelaria, ou melhor, refletiria seu âmago e sua alma. O

espelho, diz a tradição, é o elemento que não mente e que revela a verdade. Logo,

quando falamos em espelhamento autobiográfico, estaríamos afirmando que, de certa

maneira, o autor espelhou em si mesmo um determinado personagem, o que não só

equivale a dizer que a aproximação autobiográfica seria plausível, como também que a

leitura autobiográfica do conto ou romance seria plenamente possível e a mais

adequada. Se, entretanto, observarmos a realidade refletida pelo espelho, podemos

afirmar que, na realidade, o que ocorre é que ele não só inverte como simula uma

realidade que não existe. O espelho copia o mundo e retira sua profundidade. Na

verdade, ele simula estar cheio quando não passa de uma superfície plana e sem mais

dimensões que a visual. O espelho é o fantasma que não desaparece, confinado para

sempre ao fatalismo da cópia, do refletido.

Por conseguinte, como aceitar que, pelo simples fato de um narrador

compartilhar com seu autor a cegueira e o gosto pela literatura, isso já consistiria em

uma espécie de confissão ou faceta autobiográfica? A resposta pode ser encontrada na

própria de obra Jorge Luis Borges, mais especificamente na “História da Eternidade”:

“Uma infinita duração precedeu meu nascimento, o que fui eu entretanto?

Metafisicamente, poderia talvez responder-me: “Eu sempre fui eu; quer dizer, os outros

que disseram que eu durante todo esse tempo todo, não era senão eu”. É nesse ponto que

podemos verificar o que havia afirmado Italo Calvino sobre a literatura de Borges, um

texto que extrairia sua própria raiz quadrada e que se elevaria ao quadrado. Jorge Luis

Borges nunca hesitou em ser o demiurgo de sua própria persona, jogando ao mesclar

vestígios de sua vida pessoal ao universo peculiar de sua literatura. Ele sabia que a

literatura é um jogo, ou melhor, uma infinita partida de xadrez na qual o rei sempre irá

escapar por um triz do xeque-mate.

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Assim, a labiríntica biblioteca descrita em “La biblioteca de Babel” não é só um

desdobramento da eterna biblioteca do pai, de onde Borges afirma nunca ter saído, mas

também a eterna biblioteca metafísica que ele próprio passou a vida construindo e

reconstruindo através de leituras e releituras. O personagem é uma construção do

escritor, na mesma medida em que o próprio escritor é fruto de uma ilusão biográfica

compreendida pelo nome próprio11

. Se a própria realidade é uma colcha de retalhos, um

amontoado de fragmentos no qual tudo que podemos apontar é o fato de que esses

momentos tão desconexos entre si foram vividos pela mesma pessoa, acreditar na

suposta linearidade da vida, ou melhor, da autobiografia é igualmente contraditório.

O que Jorge Luis Borges coloca em evidência em seu conto “La biblioteca de

Babel” é o fato de que a literatura é, antes de mais nada, um jogo de combinações que,

através de enigmas e pistas, conta parte da história daquele que a escreve: “Um homem

se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com

imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de pessoas.

Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de

seu rosto”(BORGES, 1985:102). O labirinto do qual Borges nos fala nesse trecho,

extraído do epílogo de El hacedor não é somento o fato de que uma obra reflete

indiscutivelmente parte da personalidade de seu autor, mas também alude ao fato de que

nossa própria personalidade é um labirinto que passamos a vida construindo. O que

somos ou o que pensamos faz parte do complexo constructo da personalidade que nos é

exigida pela sociedada na qual estamos inseridos. Dessa maneira, “La biblioteca de

Babel” não irá mostrar apenas como seu autor e seu narrador beiravam a cegueira e a

morte, ou mesmo como ambos amavam os livros, mas como Borges, artífice da ficção,

compreendia que, fosse a vida dita real, fosse aquilo que lhe forneciam os livros, a

realidade sonhada da literatura, tudo era material para a criação. Um indivíduo ou um

personagem são ambos construções do discurso.

Hugo Achúgar, em sua obra Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte,

cultura e literatura, irá afirmar que, atualmente, é muito mais difícil ler Borges: “A

morte do homem Borges fechou o discurso do escritor Borges. A reescrita incessante foi

detida pela morte e a morte possibilitou que suas obras completas pudessem ser

completamente completas e completadas”.(ACHÚGAR, 2006:121) A morte de Jorge

Luis Borges teria, em tese, impossibilitado a eterna releitura e reorganização da obra

11 Ver BOURDIEU. A ilusão biográfica. 1986.

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pelo próprio autor. “A morte é o encerramento de um tempo e a fundação de

outro”(ACHÚGAR,2006:122) irá ainda afirmar Achúgar. Se o tempo da escrita é findo,

nasce, portanto o tempo da leitura. Caberá a nós, leitores (póstumos) de Borges, propor

uma nova ordem de leitura que, a partir desse momento, não incluirá mais a existência

de seu demiurgo máximo, o escritor. Qual é a relação, entretanto, que essas afirmações

possuem com o raciocínio que vem sendo desenvolvido nessas páginas?

Jorge Luis Borges foi, durante toda a sua vida e mesmo após sua morte, um dos

escritores que melhor compreendeu a vida humana como uma espécie de palimpsesto,

no qual a descontinuidade do real sobrescreveria, a todo o momento, novos

acontecimentos. A morte transformaria finalmente o palimpsesto em texto, definitivo e

arquivado. A literatura tão cuidadosamente pensada para desafiar e testar limites

transformaria-se, ao fim, em um objeto estanque, facilmente analisável. Hugo Achúgar

ainda irá se aprofundar mais nessa ideia, afirmando que Borges acreditava no tempo

como algo irreversível e na vida como algo finito e perecível. Na verdade, esse parece

ser o consenso de diversos autores que se debruçaram sobre a obra de Jorge Luis

Borges. O fragmento que nos mostra como esse posicionamento pode ser válido está em

Nueva refutacíon del tiempo:

Nuestro destino (a diferencia del infierno de Swedenborg y del

infierno de la mitología tibetana) no es espantoso por irreal; es

espantoso porque es irreversible y de hierro. El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy

el río; es un tigre que me destroza; pero yo soy el tigre; es un fuego

que me consume; pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges.(BORGES, 2009:181)

A irreversibilidade do tempo e da morte, a simultaneidade de momentos que

constituem o mundo real são, de acordo com Hugo Achúgar, as critalizações da crença

de Borges no ser humano como algo finito e perene, destinado a passar. O drama da

“condição perecível do ser humano”(ACHÚGAR,2006:122) encenado por Borges no

fragmento acima não só faria parte de uma espécie de temática tradicional sobre a

existência, como também simbolizaria a inexorabilidade do tempo. Apesar disso, Hugo

Achúgar salienta que, ao final de Nueva Refutacíon del Tiempo, Borges inclui uma

citação de Angelus Silesius que diz o seguinte:

Freund, es ist auch genug. Im Fall du mehr willst lesen, So geh und werde selbst die Schrift und selbst das Wesen.

Amigo, já é o suficiente. Em caso de querer

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Ler mais,

Vai, pois, e sê tu mesmo a Escrita e tu

Mesmo o Ser.

A impossível eternidade do ser fica resolvida com um convite, pois como “A

leitura é uma forma da escrita, da reescrita, da construção, da

identidade”.(RODRIGUEZ MONEGAL apud ACHÚGAR,2006:23) Se a escrita de um

autor cessa no momento de sua morte, sua leitura, ou melhor, suas leituras não cessam

jamais. Cada página virada constitui uma nova possibilidade, uma nova interpretação,

um novo Borges. “Borges nos transforma de leitores em escritores e, ao transformar-

nos, o próprio Borges se transforma e nos convoca a assumir outra identidade, outra

tarefa”.

O texto de Hugo Achúgar nos mostra com maior riqueza de detalhes como a

questão da autoria sempre esteve no cerne da literatura borgiana. Borges não só

propunha que a leitura era, de certa forma, uma continuação da escrita, mas também que

ambas eram atividades inseparáveis. A eterna biblioteca do pai e as ruas de Palermo

eram, simultaneamente, fragmentos de memória e de literatura, que conviviam no

labirinto da escrita.

Hugo Achúgar ainda recorrerá à figura do Aleph para se aprofundar ainda mais

nas questões colocadas pela literatura borgiana. Afinal, o Aleph é, por definição, a

totalidade do mundo em toda sua negação. Aliás, seria ele por essa mesma razão uma

espécie de síntese da criação de Jorge Luis Borges, justamente por ocupar um lugar que

não está somente entre o antigo e o moderno, mas também entre a possibilidade e a

impossibilidade:

No entanto, o debate intelectual destes nossos tempos está atravessado por esse diálogo entre modernidade e pós-modernidade. Diálogo

peculiar, pois trata-se de um diálogo do “entre”. Um “entre”que é o

cenário de uma conversação, cuja cenografia fundamental é o espaço

do que não está nem aqui nem lá, mas precisamente, na fronteira. Espaço que, mais que um território, implica a desterritorialização. E o

que é, pois, o Aleph? O que é, senão um território que nega todas as

coordenadas lógicas? O que é, senão um território sem território? O que é, senão um território feito de múltiplos e diversos territórios?

(ACHÚGAR,2006:127)

Por mais que a discussão proposta por Achúgar em relação à modernidade e à

pós-modernidade não nos seja particularmente interessante neste momento, é necessário

ressaltar que o Aleph, alegoria máxima do universo borgiano, localiza-se em um

território tão movediço quanto a autobiografia. A simultaneidade e a totalidade do qual

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o Aleph é o símbolo mostram também a dissolução da identidade e o abismo do

esquecimento. Borges irá afirmar, ao final do conto “O Aleph”, que “a mente é porosa”.

Nossas vidas não passam de um amontoado de momentos caóticos, presos para sempre

na falível representação da memória.O que está em crise na literatura de Jorge Luis

Borges não é só a própria representação, a fantasmagoria da personalidade ou o drama

da vida humana, mas a própria autoria de um texto literário.

A língua que nos serve, pele dos pensamentos e sentimentos, é tão falha e

insuficiente quanto a memória da qual nos servimos. Jorge Luis Borges sempre soube

disso. Provavelmente, por essa mesma razão, dedicou toda sua literatura à dissolução de

fronteiras, aos jogos, aos labirintos, ao espelhos e aos livros inexistentes. Pierre

Bourdieu irá afirmar que mesmo o nome próprio, ferramenta social que utilisamos para

dar conta da trajetória de vida de um determinado indivíduo, apenas serve para designar

uma “rapsódia heterogênea e disparatada de propriedades biológicas e sociais em

constante mutação”(BOURDIEU,1986:187). Um nome, Jorge Luis Borges, como todos

os outros não passa de um suporte, um jogo e, por fim, um personagem, seja de si

mesmo ou dos outros. Pouco importa a trajetória do indivíduo Borges, pois ela mesma

foi e continua sendo reescrita a todo o momento. Cada interpretação de uma vida

constitui uma nova vida.

Por essa razão, quando Emír Rodriguez Monegal afirma que “Borges y yo”

funcionaria como uma espécie de solução para a questão autobiográfica, é possível

verificar como, na realidade, uma possível leitura autobiográfica não só de “Borges y

yo”, mas de diversos indícios da obra de Jorge Luis Borges caminham na contramão

dessa visão.

O jogo da criação daquilo que Monegal denominará máscara ou persona literária

de Borges passa, obrigatoriamente, por um processo de invenção. “Toda leitura é

invenção, um erro que embaça a memória. É possível e, mais do que possível, que

tenhamos construído, inventando, não um, mas muitos Borges”(ACHÚGAR,2006:132).

Hugo Achúgar continua e afirma:

O Borges construído em, e por, suas inumeráveis declarações e

entrevistas não é alheio ao Borges anterior. Junto ao Borges que Borges construiu está também o Borges dos meios de comunicação

massiva e o Borges dos críticos e intelectuais. (...)

Não há novidade nisso. O próprio “Borges e eu” é a brilhante e patética descrição que a lucidez dos Borges perceberam do fenômeno.

“Borges e eu”não só descreve a situação do ponto de vistade quem

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escreve, mas também dos leitores ou dos espectadores.

(ACHÚGAR,2006:133)

O que podemos constatar nesse fragmento é a maneira como Jorge Luis Borges não só,

como afirma Achúgar, construiu um personagem, mas conseguiu, durante toda sua vida

e carreira literária, dar corpo e forma a multiplicidade da qual somos todos portadores.

Borges não é um , tampouco dois, mas múltiplos. Sua personalidade se reflete no

espelho da ficção apenas para colocar em evidência a impossibilidade de pensarmos em

um único Borges. A cada entrevista concedida, a cada conto, a cada palavra proferida, o

autor argentino jogava com o paradigma da literatura e, também, com o paradigma da

autobiografia. Jorge Luis Borges sempre esteve ciente de como o senso comum deseja

unir autor e obra em uma única e indivisível unidade de sentido. Walter Benjamin, em

um de seus textos mais célebres, “A tarefa do tradutor”, se vale de uma metáfora para

explicar a impossibilidade da tradução: para ele, o sentido do texto poderia ser

comparado a um vaso quebrado, cujos pedaços nunca mais irão se encaixar. Por mais

que, a tradução não seja um tópico analisado no presente trabalho, a metáfora de Walter

Benjamin pode ser produtiva, se pensarmos, de maneira análoga, no caso de Jorge Luis

Borges.

Em O nome da rosa, romance de Umberto Eco, podemos encontrar um dos

vestígios do vaso quebrado. O bibliotecário da abadia chama-se, curiosamente, Jorge de

Burgos (nome no qual podemos ouvir com clareza o eco do sobrenome do autor

argentino). Cego, ressentido e, como não poderia ser diferente, chefe de uma biblioteca,

a versão de Umberto Eco para Jorge Luis Borges também pode ser lida como um dos

milhares de fragmentos que perfazem o conjunto daquilo que conhecemos hoje como o

legado de Borges.

No primeiro encontro entre Adso, o protagonista, seu mestre, Guilherme e Jorge

de Burgos, ficará clara a maneira como Umberto Eco interpretou livremente a persona

de Jorge Luis Borges: “À mesa do Abada sentavam conosco Malaquias, o despenseiro e

dois monges mais velhos, Jorge de Burgos, o ancião cego que já conhecera no

scriptorium (...)”. A cena continua e o perfil de Jorge de Burgos torna-se, a cada linha,

um desdobramentos dos mais interessantes sobre a figura de Jorge Luis Borges:

Fui chamado de volta por um vigoroso grunhido de confirmação de Jorge , e percebi que se estava no ponto em que sempre era lido um

capítulo da Regra: Dizia de fato o leitor: “Imitemos o exemplo do

profeta que diz: decidi, vigiarei o meu caminho para não pecar com

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minha língua, coloquei uma mordaça na boca, emudeci em

humilhação, abstive-me de falar mesmo de coisas honestas. E nessa

passagem o profeta nos ensina que às vezes, por amor ao silência,

deveríamos nos abster até dos discursos lícitos, tanto mais devemos nos abster dos discursos ilícitos para evitar a pena desse pecado!” E

depois prosseguia: “Mas as vulgaridades, as asneiras, e as palhaçadas

nós as condenamos à reclusão perpétua (...) “E que isso valha para as marginalia de que se falava hoje”não se

conteve em comentar Jorge em voz baixa. “Giovanni Boccadoro disse

que Cristo nunca riu” (ECO,1986:118)

Sem tecer qualquer tipo de comentário acerca do enredo da narrativa de

Umberto Eco, a primeira coisa que chama a atenção é como a figura do bibliotecário é

ressentida e amarga. O próprio Umberto Eco afirmou em Pós-escrito a O nome da

Rosa: “Todos me perguntam porque o meu Jorge, pelo nome, evoca Borges, e por que

Borges é tão perverso. Mas eu não sei”(ECO,1985:26). Umberto Eco alega que o

personagem do bibliotecário cego não foi pensado, inicialmente, para ser o assassino da

trama, mas que, de alguma forma, isso se resolveu sozinho. “Eu queria um cego como

guardião de uma biblioteca ( o que me parecia uma boa ideia narrativa) e biblioteca

mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as dívidas se pagam”(ECO,1985:26).

Talvez seja possível afirmar, com base nas declarações de Umberto Eco, que a própria

imagem que Jorge Luis Borges passou a vida construindo tenha ecoado nas páginas de

O nome da rosa. Jorge de Burgos, não à toa, é um bibliófilo, guardião de um saber que

não possui mais lugar em um mundo que está prestes a mudar.

O que torna a figura delineada por Eco mais interessante é se a colocarmos em

contraponto com um depoimento de Alberto Manguel, escritor argentino que, durante

algum tempo de sua vida, chegou a ler livros para um Borges já cego e idoso:

Durante muitas noites, li para ele Stevenson, Kipling, verbetes da Brockhaus Encyplopaedia, várias edições anotadas de Dante,

enquanto Borges interrompia e comentava, mais para si mesmo do que

para mim, oferecendo-me, por assim dizer, uma edição particular

anotada de seus clássicos. Tentou persuadir-me a juntar-me a seu estudo de anglo-saxão, mas nunca passei das três primeiras linhas de

“A batalha de Maldon”. Às vezes, pedia-me que o acompanhasse ao

cinema; era uma experiência estranha sentar ao lado do velho cego e narrar o filme de forma casual, como se estivesse comentando a trama

e a fotografia.. Aprendi depressa que Borges não gostava de um relato

direto do que estava acontecendo na tela, e eu tinha que inventar circunlóquios, tais como: “Ele parece tão ameaçador, o jeito como ele

entra na sala” ou “Uma panorâmica sobre esta cidade é muito eficaz,

não acha?”, enquanto o chhh em volta ficava mais raivoso e alto,

como um vento ameaçador. Assistimos juntos a Amor, sublime amor, ( que ele já vira várias vezes e de que gostava muito), O colecionador

e Lorde Jim, (...)( MANGUEL,2000:56)

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O mais curioso que podemos salientar no depoimento de Alberto Manguel é o

fato de Jorge Luis Borges, já idoso e cego, ainda viver total e completamente imerso no

mundo das letras. Assim, com base no que relata Manguel, podemos verificar que o

Jorge de Burgos de Umberto Eco, por mais perverso que fosse, não estava tão distante

daquilo que realmente foi Jorge Luis Borges, ou pelo menos, como ele foi descrito pela

maioria daqueles que com ele conviveram, um verdadeiro guardião e demiurgo da

literatura até seus últimos dias. O Borges de Manguel e o personagem de Umberto Eco

não deixam de ser, também, vestígios do fragmentado vaso da personalidade borgiana.

A autoria poderia, também, ser considerada como um vaso quebrado. Sobretudo,

se pensarmos que as partes desse mesmo vaso, como os infinitos desdobramentos de

Jorge Luis Borges, todos possuem a mesma origem, todos remetem a ele e, entretanto,

não significa que, se pudéssemos uni-los todos possuíriamos uma espécie de perfil

definitivo do homem que existe por trás das letras. É justamente nesse ponto que reside

o grande jogo com as fronteiras da literatura, da autobiografia e também da criação

borgiana. É, também, curiosamente, nesse mesmo ponto que poderemos localizar a

maneira como o próprio Jorge Luis Borges parecia, a cada um de seus contemporâneos,

uma pessoa diferente. Já foram elencados, anteriormente, fragmentos de Ernesto Sábato

e do entrevistador Fernando Sorrentino, que mostram, de maneira peculiar, uma espécie

de autor caleidoscópico, cujas partes estão espalhadas e o centro não está em lugar

algum. Todos são Borges, ao mesmo tempo que nenhum deles o é.

Hugo Achúgar considera que esse tipo de descentramento que pode ser

encontrado na obra de Jorge Luis Borges seria fruto de uma concepção histórica

baseada no desencontro. Para o autor, Borges irá fundar uma “coerente

descontinuidade”, “um universo construído sobre a inconsistência lógica e a

descontinuidade, em um jogo em que a gramática e a retórica negam toda espécie de

onipotência”(ACHÚGAR,2006:134). Borges arquiteta todo um universo, que

poderíamos denominar perverso, e se senta, diante do seu leitor, propondo que ele seja a

peça fundamental do jogo. “Em um universo de ruínas, de infames e imortais, quem dá

vida é quem percebe ou quem lê”(ACHÚGAR,2006:135), afirma Achúgar. O jogo é o

xadrez, devido a precisão e à ciência das quais ele o símbolo. Quem povoa o tabuleiro

são os personagens da cosmogonia borgiana, ao mesmo tempo em que o próprio Borges

joga e é o rei. Jogamos na tentativa de reunir fragmentos, de dominar, pouco a pouco, o

tranquilo tecido emaranhado do tabuleiro.

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O único porém é que, quanto mais nos aproximamos de Borges, ele fica,

simultaneamente, mais próximo e mais inatingível. O xadrez borgiano funciona como o

paradoxo de Zenão. Aquiles é infinitamente rápido e a tartaruga infintamente lenta. Isso

não quer dizer, entretanto, que Aquiles irá alcançar a tartaruga. Nós, os leitores, somos

desdobramentos do herói grego, assim como Borges seria a tartaruga. Acreditamos que

vamos ultrapassá-los, mas a única constatação possível, ao final da disputa é que nunca

poderemos alcançá-lo. Por mais lento que seja, ou por mais óbvia que possa parecer a

distância percorrida, é a ele, Borges, que pertence o labirinto, o jogo, o espelho, o

infinito.

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Capítulo 2: O labirinto, o minotauro e a biblioteca: fantasmagoria de um autor

ausente

“Não fique mais imaginando, pensando no porquê, no que aconteceu, no que não

aconteceu, senão vai ter mil passados e nenhum futuro”, afirma o personagem Morales

para Benjamín Esposíto, na película El secreto de sus ojos, de Juan José Campanella. O

filme, construído a partir de um mosaico de memórias que visa a recompor um evento

perdido no passado, pode funcionar como um interessante mote para se refletir sobre a

ficção borgiana. No filme de Campanella, estrelado por Ricardo Darín, o protagonista

Benjamín Esposíto chega a afirmar em um diálogo: “ Não foi outra vida, foi esta”.

O passado nos parece filtrado pelo confuso espelho da memória, como um

complexo mosaico de fatos sobrepostos que não necessariamente pertencem à nossa

vida. Mesmo o frágil liame do nome próprio parece não ser o suficiente para atar a

desbaratada narrativa da qual somos protagonistas. O filme de Juan José Campanella

reflete isso e, talvez ainda mais, coloca em evidência como uma única vida é

indiscutivelmente múltipla.

Por mais que o cinema não seja o escopo do raciocínio que será desenvolvido no

presente capítulo, é, no entanto, no universo cinematográfico que encontraremos os

mais contundentes exemplos no diz respeito à memória e à biografia.

Além do filme de Juan José Campanella, premiado com o Oscar de melhor filme

estrangeiro em 2010, há também o curioso filme de Todd Haynes, I’m not there ou Não

estou lá, conforme a tradução brasileira. Com o estranho subtítulo em português de as

muitas vidas de Bob Dylan, o filme se propõe a traçar, de maneira sobreposta e

desconexa, apelando para diferentes atores, um perfil do cantor americano Bob Dylan.

Mais do que a tentativa de esboçar uma espécie de retrato, o que chama atenção na

película é o desrespeito à cronologia e a maneira como é mostrada a interação do cantor

com os fatos que permearam seu universo pessoal e social. Bob Dylan não é único, é

multifacetado, é poliédrico, é um personagem em constante mutação. Ou melhor, um ser

humano em constante transformação, como todos.

A pergunta que se quer colocar aqui, entretanto, após esse breve preâmbulo, não

diz respeito às anteriormente citadas obras cinematográficas, mas à obra de Jorge Luis

Borges. Se tanto na obra de Campanella como na de Todd Haynes os personagens

ganham dimensões mais humanas ao serem retratados como múltiplos, como lidar com

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Jorge Luis Borges retratado por si mesmo, ou melhor, com aquilo que podemos apontar

de vestígio do autor em sua própria ficção?

Antes de abordarmos a obra de Jorge Luis Borges, faz-se necessário elucidar

alguns dos pressupostos teóricos que irão nortear o tipo de análise aqui desenvolvida.

André Malraux, célebre escritor francês do século XX, afirma, em sua obra de

memórias, intitulada ousadamente Antimemórias, que:

Se ninguém acredita que o auto-retrato, até mesmo o retrato, não teve outra preocupação desde as efígies egípicias às telas cubistas, senão

imitar o modelo, continua-se a pensar assim do retrato literário. Ele

seria tanto melhor quanto mais semelhante, e tanto mais semelhante quanto menos convencional. ( MALRAUX, 1968:9)

Apesar de André Malraux abordar, no fragmento supracitado, o caso específico

do auto-retrato, isso não quer dizer que a autobiografia é completamente alheia a esse

assunto. Na verdade, é possível observar como a característica que Malraux afirma ser a

mais importante do auto-retrato, também o é no âmbito autobiográfico. Quanto mais

uma autobiografia se distancia do factual, mais ela se aproxima do que seria a

verdadeira constituição do ser humano: a descontinuidade.12

Essa característica também aproxima mais a autobiografia de sua suposta

origem, a memória. Paul Ricoeur, em sua obra A memória, a história e o esquecimento

afirma que a representação do passado se dá, na maioria das vezes, por meio da

imagem. Construímos, ou melhor, reconstruímos o passado por meio da imagem que

dele temos, independente da fidelidade do processo de rememoração. Isso faria da

memória uma complexa e intrincada associação de fatos, ou, como Ricoeur irá afirmar:

“Assim, a memória, reduzida a rememoração, opera na esteira da imaginação”

(RICOEUR,2007:25). A mente seria impelida pela criatividade a completar as lacunas

com a imaginação.

Paul Ricoeur ira explorar ainda a metáfora de Platão do bloco de cera. A

memória seria um material maleável, sujeito sempre às pressões e marcas impostas pelo

cotidiano. O esquecimento também se encontra previsto por essa imagem, não só como

o óbvio apagamento de possíveis vestígios, mas também como uma falta de ajuste entre

a imagem que nos é apresentada pelo presente e a impressão deixada pelo passado.

Em O sofista, Platão afirma, ao elaborar a definição do que seria a arte de copiar:

“ora, copia-se da maneira mais fiel quando, para realizar a imitação, tomamos

12 Conceito aprofundado por Georges Bataille em O erotismo

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emprestadas do modelo suas relações exatas de comprimento, largura, profundidade e

além disso, cobrimos cada parte com as cores que lhe convêm”. Do lado oposto ao da

cópia, teríamos o simulacro, ideia à qual Platão irá atar o termo phantasma. Simular não

é o mesmo que copiar e poderíamos ainda afirmar que o simulacro seria o fantasma de

algo real, sombra que pouco partilha dos verdadeiros contornos do objeto, mas que,

ainda assim, de alguma maneira possui alguma ligação com ele.

De que maneira, então, esse tipo de conceito encontra-se relacionado ao tipo de

análise que se pretende fazer da obra de Jorge Luis Borges? Inicialmente, seria possível

afirmar que só pelo fato de Jorge Luis Borges ter tematizado em sua literatura não só a

memória, mas o próprio jogo entre memória coletiva, memória pessoal e esquecimento.

Talvez mais do que isso, o que Borges parece ter compreendido foi que, por mais falha

e infiel que possa ser a memória de um indivíduo, ela ainda assim é uma fonte

inesgotável de narrativas e acontecimentos, eco natural da polifonia do ser humano.

Paul Ricoeur afirmará que:

Uma ambição, uma pretensão está vinculada à memória: ser fiel ao passado; (...). Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco

confiável, é precisamente porque ela é nosso único recurso para

significar o caráter passado daquilo que declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à imaginação, na

medida em que esta tem como paradigma o irreal, o fictício, o possível

e outros traços que podemos chamar de não posicionais. A ambição veritiva da memória tem títulos que merecem ser reconhecidos antes

de considerarmos as deficiências patológicas e não patológicas da

memória (...) (RICOEUR, 2007: 40)

Como a memória não poderia ter como meta a reconstrução fiel de eventos

passados, a imaginação passaria assim a ser uma ferramenta muito mais eficaz para

preencher as lacunas deixadas pela tentativa. Aparentemente, o problema que se coloca

entre os vestígios do passado e o presente não se resume ao fato de a memória ser o

elemento que se interpõe entre eles, mas de ser ela mesma, via de acesso a um pretérito

irrecuperável, uma falha ferramenta do intelecto humano. A memória ambiciona

fornecer a única e verdadeira versão para os fatos que já passaram, supondo, sobretudo,

que sua versão será a única. O presente já é por si próprio polifônico e multifacetado.

Assim, poderíamos ou não aceitar o fato de que a memória de um indivíduo possa

fornecer a melhor e mais verdadeira reconstrução de um evento que se encontra perdido

no tempo, cronológica e psicologicamente.

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Em um conto “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, que não será analisado de maneira

mais profunda no presente trabalho, Jorge Luis Borges escreve uma frase que

funcionará, de maneira analógica também, como uma espécie de mote para o capítulo:

“Todo estado mental es irreductible: el mero hecho de nombrarlo – id est, de

classificarlo – importa un falseo”.(BORGES,2009, vI:513)13

O simples ato de nomear,

ou melhor, de tentar classificar qualquer dos processos realizados pela mente já seria

por si só incorrer no falso. A mente opera por meios que são inclassificáveis, ou melhor,

incompreensíveis. Por essa afirmação, seria ainda possível deduzir que a distância

presente entre a língua falada, tradução direta dos pensamentos e a escrita,

representação gráfica desses mesmos pensamentos, é excessivamente extensa para que

possamos confiar na fidelidade da pena ou no caráter verdadeiro das palavras. A relação

entre os pensamentos e as palavras pode ser direta, o que, no entanto, não pressupõe sua

confiabilidade.

Assim, com base nessa premissa, poderíamos observar, não somente a questão

da memória, mas também a questão dos possíveis e curiosos indícios autobiográficos

presentes na obra de Jorge Luis Borges. Se nomear equivale a falsear, como poderíamos

analisar um conto como “El otro”? Nesse conto, incluído em El libro de arena, Jorge

Luis Borges narra um suposto encontro com seu duplo, o ainda jovem Jorge Luis

Borges.

Com base no que foi afirmado por Philippe Lejeune em Le pacte

autobiographique, o contrato da autobiografia pode ser resumido a um acordo que o

leitor faz com o autor no momento em que se compromete a aceitar que, aquilo que está

compreendido entre a contracapa e a página final, teve como origem ou fonte de

inspiração a vida do autor. Concordamos, ou melhor, aceitamos, que um conto, um

romance, uma novela ou mesmo uma poesia pode possuir laços autobiográficos,

sobretudo, porque acreditamos.

É nessa encruzilhada conceitual que se aloja o conto de Jorge Luis Borges.

Inicialmente, a narrativa se apresenta como uma espécie de memorial, ou melhor, como

um relato de um fato passado. Isso, entretanto, não significa que tudo aquilo relatado em

“O outro” possa ser aceito como verossímil ou verdadeiro. Pelo contrário, o encontro

descrito por Jorge Luis Borges é o mais fantástico e impossível, por mais que tenha

como ponto de partida o verossímil, a memória de um determinado dia na vida do autor.

13 Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo – id est, de classificá-lo – importa em

falseio”.

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Borges irá encontrar consigo mesmo e discutir fatos oriundos de sua vida pessoal. Em

um diálogo particularmente curioso, o Jorge Luis Borges já idoso irá revelar ao jovem

Jorges Luis Borges como será sua vida e sua carreira como escritor: “Darás clases como

tu padre y como tantos otros de nuestra sangre”14

. Esse fragmento, talvez mais do que

colocar em evidência o caráter fantástico do conto, acaba por delinear também o que

seria uma espécie de visão do autor sobre a sua própria existência. Ao colocar lado a

lado juventude e maturidade, Borges não está só analisando seu próprio caminho

percorrido, mas também esta fornecendo ao leitor o poder de ter posicionamento próprio

sobre sua vida enquanto escritor.

Muito embora a maioria dos fatos que emerjam do diálogos dos dois Borges em

“El otro” sejam verdadeiros e, mais ainda, verossímeis, o que importa na narrativa não é

a verossimilhança ou mesmo qualquer tipo de pacto de leitura que possa ser

estabelecido entre autor e leitor. Jorge Luis Borges não está só reunindo, de maneira

fragmentada, alguns dos episódios de sua vida, mas mostrando como a literatura existe

para jogar com a realidade. Uma das cenas do conto deixa isso ainda mais evidente: “

Casi no me escuchaba. De pronto dijo: ─ Si usted ha sido yo, ¿cómo explicar que haya

olvidado su encuentro con um señor de edad que en 1918 le dijó que él también era

Borges? ”15

. O conto, narrado por um Borges já idoso, joga também com a memória de

uma vida que também se mostra um tanto falha.

Com base no arcabouço teórico fornecido anteriormente pela obra de Paul

Ricoeur, A memória, a história e o esquecimento, podemos afirmar que a memória é,

antes que qualquer coisa, polissêmica. Paul Ricoeur irá afirmar que:

Em oposição à polissemia, que, à primeira vista parece apropriada

para desencorajar qualquer tentativa, mesmo modesta, de ordenação

do campo semântico designado pela memória, é possível esboçar uma fenomenologia fragmentada, mas não radicalmente dispersa, cujo

último fio condutor continua sendo a relação com o tempo. Mas esse

fio só poderá ser seguro com mão firme se conseguirmos mostrar que a relação com o tempo dos modos mnemônicos múltiplos, que a

descrição encontra, é, ela própria suscetível de uma tipologia

relativamente ordenada, que não seja esgotada, por exemplo, pelo caso

da lembrança de um acontecimento ocorrido no passado. Esta segunda aposta de nosso empreendimento põe em jogo a ocorrência mínima da

asserção que tomamos emprestada de Aristóteles desde o início do

estudo, segundo a qual a memória “é do passado”. Mas ser do passado se diz de múltiplas maneiras ( conforme o famoso dito da Metafísica

14“Darás aulas como teu pai e como outros tantos de nosso sangue”. 15 “Quase não me escutava. De repente, disse: - Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu

encontro com um senhor de idade que, em 1918, disse-lhe que ele também era Borges?”

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de Aristóteles: “o ser se diz de múltiplas maneiras”). (RICOEUR,

2007: 41)

A tentativa de Ricoeur de elaborar uma fenomenologia adequada da memória

nos interessa na medida que o autor não só expõe e descreve o principal problema

com o qual nos deparamos, mas porque parece querer traçar uma espécie de perfil da

memória que, ao mesmo tempo que seja confiável, possa ser também fiel aos

processos idiossincráticos da mente. “A memória é o passado”, conforme afirma

Aristóteles, na citação recuperada por Ricoeur, mas isso não impede que possamos

ouvir, pelo eco das lembranças, a caleidoscópica multiplicidade de um momento já

terminado.

A teoria proposta por Paul Ricoeur nos interessa para analisar o conto de Jorge

Luis Borges, “El otro”, pois nos fornece uma maneira de abordar o que foi tematizado

pelo autor. Inicialmente, poderíamos afirmar que é devido à presença, ou melhor, pela

maneira como a narrativa de Borges irá simular, através do diálogo fantástico entre

passado e presente, representado pelo idoso Jorge Luis Borges e pelo jovem Jorges

Luis Borges, a polissemia da memória:

− Yo te puedo probar inmediatamente – le dije – que no estás soñando

conmigo. Oí bien este verso, que no has leído nunca, que yo recuerde

Lentamente entoné lá famosa línea:

L’hydre-univers tordant son corps écaillé d’astres Sentí su casi temeroso estupor. Lo repetí em voz baja, saboreando

cada resplandeciente palabra

− Es verdad. – balbuceó – Yo no podré nunca escribir una línea como ésa

Hugo nos habia unido.16

Na tentativa de provar a si mesmo que o impossível encontro seria verdadeiro,

Borges repete para si mesmo um verso de Victor Hugo, algo que tinha certeza ainda não

ter lido na juventude. Mais do que qualquer indício que pudéssemos recolher nesse

fragmento a respeito da literatura fanstástica, que Borges afirma ironicamente no

começo do conto que o que escreve, é muito mais importante ressaltar a maneira como o

16 “−Eu posso te provar imediatamente – disse-lhe – que não estás sonhando comigo. Ouve bem este

verso, que nunca leste, que eu me lembre.

Lentamente entoei a famosa linha:

−L’hydre-univers tordant son corps écaillé d’astres

Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-a em voz baixa, saboreando cada resplandecente palavra. −É verdade – balbuciou. – Eu nunca poderei escrever uma linha como essa.

Hugo havia nos unido.”

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escritor irá mesclar suas lembranças pessoais, reminiscências literárias em um ambiente

completamente plausível, ou melhor, verossímil. Entretanto, o objetivo de Jorge Luis

Borges não parece ter sido, em momento algum, convencer o leitor de que se tratava de

um texto real ou de um relato de um evento verídico de um acontecimento impossível,

mas, ao lançar em um texto dois desdobramentos de sua própria personalidade, ele está,

na realidade, simulando uma autoficção que, em momento algum, possui pretensões

autobigráficas.

Antes, entretanto, de continuarmos a esmiuçar o cerne do conto borgiano, faz-se

necessária uma pequena explanação acerca da autoficção e sua ligação com o gênero

autobiográfico. Diana Klinger, em sua obra Escritas de si, escritas do outro: o retorno

do autor e a virada etnográfica, explicita que o cerne da autobiográfica está ligado à

experiência. O que possibilita a existência de material narrável é a ideia de que um

indivíduo possui uma determinada trajetória, algo que o transformou no que é. Ainda

em sua obra, Diana Klinger propõe uma interessante análise da obra de César Aira,

Como me hice monja, que servirá, curiosamente, como uma espécie de fio de Ariadne

ao penetrarmos no labiríntico universo borgiano. A autora afirma que Aira se vale de

estruturas paradoxais para narrar sua história e, sobretudo, procura confundir o leitor

usando a todo o momento pronomes masculinos e femininos para se referir ao narrador,

que se chama César Aira. Muito mais do que o espelhamento existente entre autor e

protagonista na obra de Aira, o que nos interessa salientar é a maneira como, de acordo

com Diana Klinger, “o relato retrospectivo da vida não somente desfaz sua ilusão de

referência, mas ao mesmo tempo resulta de uma cisão interna do narrador que

problematiza a noção de identidade da própria voz narrativa” (KLINGER,2007:20). Por

mais que a autora esteja, no fragmento anteriormente citado, analisando a obra de Aira,

essa ideia pode ser muito produtiva se observarmos o conto de Jorge Luis Borges. A

coincidência que existe entre o narrador, que afirma ser um Jorge Luis Borges idoso, e

seu encontro com seu jovem duplo não existe para colocar em evidência a qualquer

espécie de traço autobiográfico ou mesmo mostrar como um indivíduo, ao atingir um

determinado patamar de sua existência, sente a necessidade de analisar sua própria

trajetória. O encontro entre os dois Jorge Luis Borges serve para mostrar como a ideia

de autobiografia é falha, como o real é descontínuo e como a língua, em toda sua

barthesiana arbitrariedade, é insuficiente para dar conta das experiências que vivemos

em um único e múltiplo momento.

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Assim, é no espaço gerado por essas diversas abordagens que podemos inserir

também a ideia de autoficção. Por mais que essa ainda seja uma classificação que carece

de um conceito satisfatoriamente fechado, ela servirá perfeitamente para observarmos o

texto de Jorge Luis Borges, uma vez que, de acordo com Italo Calvino, o textos de

Borges são “abertos para o infinito”. Ainda nas palavras de Diana Klinger, a autoficção

“se inscreve no paradoxo deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de

si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma „verdade‟ na escrita”

(KLINGER,2007:26).

Desta maneira, o pacto de leitura gerado pelo conto de Jorge Luis Borges se

aloja muito mais no terreno das incertezas e das desconfianças do que sob o abrigo de

uma classificação segura e objetiva. A autoficção propõe a ideia de uma perfomance

autoral, a ideia de um autor que, sim, deixa vestígios, pistas baseadas em sua vida, mas

que, não necessariamente está presente sob o tênue véu da escrita.

Esse conceito pode também funcionar como um interessante ponto de partida

para a observação de um outro conto de Jorge Luis Borges, “Funes, el memorioso”.

Nesse conto, Borges irá narrar a história de um uruguaio que possuía uma memória

particularmente fantástica. Talvez mais do que a narrativa em si, o que irá chamar a

atenção é a maneira como o foco da narração em primeira pessoa joga com um

simulacro de recordação:

Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar esse verbo a pronunciar sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo esse derecho y

esse hombre há muerto con una oscura pasionaria en la mano,

viendolá como nadie la ha visto, aunque lá mirara desde el crepúsculo

del día hasta el de la noche, toda una vida entera.(...)Mi deplorable condición de argentino me impedirá de incurrir en el ditirambo –

género obligatorio en el Uruguay, cuando el tema es un uruguayo.17

(BORGES,2009,vI:583)

A fantástica memória de Funes aparece como uma espécie de mise en abyme, da

recordação do narrador. A nacionalidade argentina e a própria narração em primeira

pessoa sugerem um possível espelhamento atobiográfico. Esse não é, entretanto, o ponto

no qual uma análise inicial se deve deter.

17“ Recordo-o ( não tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem na Terra teve

direito e esse homem morreu) com um escuro livro da paixão nas mãos, vendo-o, ninguém o viu, embora

o avistasse do crepúsculo do dia até o da noite, toda uma vida. (...) Minha deplorável condição de

argentino me impedirá de incorrer no ditirambo – gênero obrigatório no Uruguai, quando o tema é

uruguaio”

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Retornando ao texto de Diana Klinger, o conceito de autoficção permance, até os

dias de hoje, como algo aberto. É justamente por esse motivo que, quando observamos

os textos de Jorge Luis Borges à luz do conceito de autoficção, conseguimos delinear

um perfil que, por mais que não necessariamente remetesse ao Borges real, à pessoa por

trás da ficção, remete sim a um personagem que Jorge Luis Borges passou toda sua vida

construindo, e que Emir Rodríguez Monegal denomina de persona.

O que encontramos em contos como “El otro” e “Funes, el memorioso” não são

apenas possíveis desdobramentos de uma vertente autoficcional de Jorge Luis Borges,

mas também indícios que apontam para aquilo que Diana Klinger denominará como

perfomance autoral. O narrador argentino que aparece em “Funes, el memorioso” não é

Jorge Luis Borges e sim Jorge Luis Borges, o jogador, o demiurgo do labirinto da

ficção, sempre presente e, no entanto , sempre ausente.

No livro de Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, o autor tece

mais considerações que serão muito produtivas, se as colocarmos em um ponto de

convergência com a obra de Jorge Luis Borges:

A primeira expressão do caráter fragmentado dessa fenomenologia ( da memória) deve-se ao próprio caráter objetal da memória:

lembramo-nos de alguma coisa. Neste sentido, seria preciso distinguir,

na linguagem, a memória como visada e a lembrança como coisa

visada. Dizemos a memória e as lembranças. Falando de maneira radical, estamos tratando aqui de uma fenomenologia da lembrança.

(...) É neste sentido que falo das “coisas” passadas. Uma vez que, na

memória-lembrança, o passado é distinto do presente, fica facultado à reflexão distinguir, no seio da memória, a questão do “o que?” da do

“como?” e da do “quem?”, (...).

Um primeiro traço caracteriza o regime da lembrança: a

multiplicidade e os graus variáveis de distinção das lembranças. A memória está no singular, como a capacidade e como efetuação, as

lembranças estão no plural: temos umas lembranças. (RICOEUR,

2007: 41)

Por mais que o fragmento acima, extraído do livro de Paul Ricoeur pareça se

distanciar do tipo de análise a que se propõe o presente trabalho, o que é delimitado pelo

raciocíonio do autor é a maneira como nossa memória acessa o conhecimento do

passado. O passado distingue-se do presente não só no campo sintático e semântico,

como insinua Ricoeur, mas também no campo material. São as lembranças, ou melhor,

o agrupamento delas que seria nossa memória, que faz com que possuamos uma

identidade. É o nosso confuso agrupamento de sensações e imagens que faz, ou melhor,

que torna plausível a afirmação “eu me lembro” ou “eu me recordo”.

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Assim, é no espaço justaposto que existe entre o senso comum e o esboço

fenomenológico forjado por Paul Ricoeur que entra a ficção de Jorge Luis Borges. Não

somente como possíveis performances da primeira pessoa, mas também com um jogo

com aquilo que seria uma “escrita de si”. Funes, o jovem que, supostamente, motiva o

relato simbolizado pelo conto, não precisa ter nenhum tipo de ligação com o mundo

exterior. Ele é, simplesmente, o pano de fundo para um teatro muito maior que sua

própria memória fanstástica. A memória de um narrador que, frente à perfeição e

inquietude simbolizadas por Funes, parece querer justificar sua própria memória, ou

melhor, suas própria lacunas.

O que “ Funes, el memorioso” coloca em evidência é, simultâneamente, um jogo

que parecia desfrutar de certa predileção junto à pessoa de Jorge Luis Borges. Descrito

por todos aqueles que conviveram com ele como dono de uma memória perfeita e

invejável, Borges parecia gostar de “fingir” que, como já foi citado anteriormente, era

“cortés y distraído, que no verifica citas, que no vuelve atrás para corregirse, que finge

tener mala memoria: no el terso Jorge Luis Borges de la letra impresa, aquel que calcula

y mide cada coma y cada paréntesis” (SORRENTINO,2001:10). Borges acreditava-se

uma paródia de si mesmo e, mais ainda, afirmava que ele próprio dedicava-se

Para entendermos melhor o jogo que joga Jorge Luis Borges com seu leitor,

basta observarmos a seguinte passagem, oriunda da obra de Volodia Teitelboim: “ Las

cartas de su juego son las palabras. (...) La realidad es imaginaria”.(TEITELBOIM,

2003:91). Jorge Luis Borges, de acordo com Volodia Teitelboim, considera o mundo

como o desdobramento da imaginação. Artífice de seu próprio universo, Borges

inverteria os fatores da equação que regula o universo literário: a existência do mundo

não precederia a literatura, mas o inverso. A literatura possuiria o direito de prescindir

do mundo real.

A pergunta que parece emerger, no entanto, não está relacionada somente à

origem do narrador dos textos borgianos, ou mesmo de uma tentativa de mapear

indícios autobiográficos que poderiam estar perdidos em meio ao universo do escritor,

mas também a qual é o sentido da personalidade construída. Essa perfomance da

primeira pessoa pode ser ou não interpretada como uma tentativa autoficcional,

dependendo da maneira como analisemos os vestígios deixados por Borges.

Retornamos a um outro fragmento da obra de Jorge Luis Borges, anteriormente

citado:”Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo.Ao longo dos anos povoa

um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...)

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e de pessoas.Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirintode linhas traça

a imagem de seu rosto” (BORGES,1985:102).Poderíamos, com base nessa citação,

afirmar que o próprio escritor parece aceitar, ao final de sua vida, a ideia de que a obra

produzida por um determinado sujeito possuiria laços indiscutíveis com a trajetória de

vida, ou melhor, com a biografia dele mesmo. De costume, afirma-se que a escrita em

primeira pessoa funciona como uma espécie de elemento catalisador do questionamento

acerca da identidade. Seria possível verificar esse tipo de comportamento na ficção de

Jorge Luis Borges?

Aparentemente, é possível afirmar que não, pois como já foi afirmado

anteriormente, Jorge Luis Borges joga com seu leitor, sem jamais afimar ou desacreditar

a verdade. Existe um outro conto de Borges que poderá fornecer outros pontos

importantes para o tipo de análise que se pretende traçar aqui: “La casa de Astérion”.

Nas breves linhas que compreendem a narrativa em primeira pessoa, o que vemos é uma

interpretação borgiana para o mito do Minotauro de Creta.

Inicialmente, a primeira característica que podemos apontar nesse conto é o fato

de o Minotauro viver preso no labirinto. Por mais que não possamos necessariamente

afirmar que existe uma ligação autobiográfica entre a vida do autor e a narração em

primeira pessoa desenvolvida no conto, observemos a seguinte citação:

O certo é que me criei num jardim, atrás duma grade com lanças, e

numa biblioteca de ilimitados livros ingleses. Palermo da faca e da

guitarra andava (me garantem) pelas esquinas, mas os que povoaram

minhas manhãs e deram agrádavel horror a minhas noites foram o bucaneiro cego de Stevenson, agonizando sob as patas dos cavalos, e

o traidor que abandonou seu amigo na lua e o viajante do tempo, que

trouxe do futuro uma flor murcha, e o gênio encarcerado durante séculos no cântaro salomônico e o profeta velado do Jorasán, que se

ocultava atrás das pedras e da seda que ocultava a lepra. ( BORGES,

apud RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:21)

A citação acima foi extraída do prefácio de Evaristo Carriego, no qual Jorge Luis

Borges explicaria como funcionariam as referências presentes em sua obra. Observemos

essa outra citação, extraída de “La casa de Astérion”:

Sé que me acusan de soberbia, y tal vez de misantropía, y tal vez de loucura.Tales acusaciones (yo castigaré a su debido tiempo) son

irrisorias. Es verdad que sus puertas (cuyo número es infinito) están

bien abiertas día y noche a los hombres y también a los animales.18

18 “Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que

castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade

que suas portas (cujo número é infinito) Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez

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Tanto o Minotauro, narrador do conto, como o próprio Jorge Luis Borges, afirmam

habitar um labirinto: o primeiro, um labirinto empírico, para o qual a saída seria a

morte; o segundo, o labirinto metafísico, o labirinto criado pelo infinito da literatura,

para o qual a saída seria apenas uma suposição.

Diana Klinger, ainda em sua obra Escritas de si, escritas do outro: o retorno do

autor e a virada etnográfica, explicita como todo tipo de ficções que envolveriam o

“eu” gerariam uma certa dose de polêmica, pois, de algum modo, a questão dos gêneros

acaba por envolver duas constatações extremas: “ Toda obra literária é autobiográfica (

até certo ponto) até o fato de que a autobiografia pura não existe”(KLINGER,2007:39).

A autora ainda irá se aprofundar mais nessa ideia, oriunda de Paul de Man, segundo o

qual “assim como afirmamos que todos os textos são autobiográficos, devemos dizer

que por isso mesmo nenhum deles o é ou pode ser”(KLINGER,2007:39). Decidir ou

não por uma leitura autobiográfica caberia ao leitor, o que de certa forma, não deixa de

constituir uma espécie de retorno ao pacto autobiográfico proposto por Philippe

Lejeune.

Assim, tendo todas essas assertivas em vista, qual será o caminho a ser tomado,

tendo em mãos a obra de Jorge Luis Borges? O caminho que se bifurca, responde a

própria ficção borgiana. Como já foi citado anteriormente, a ficção de Jorge Luis

Borges é a que se encontra no interior do caleidoscópio, mantendo, desta maneira, seu

potencial sempre voltado para o infinito.

“A ficção seria superior ao discurso autobiográfico pois o escritor não tem como

prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma

matéria contingente”(KLINGER,2007:39)”, afirma Diana Klinger e é realmente isso

que podemos constatar na literatura de Jorge Luis Borges. A multiplicidade de leituras

que se oculta sob o universo dos contos de Borges coloca em evidência como nunca

podemos ter a ambição de totalizar o pensamento artísitico. Nada é autobiográfico, da

mesma maneira que tudo é autobiográfico.

Em Pós-escrito a O nome da rosa, Umberto Eco afirma que um texto deve “

gerar leituras sempre diversas, sem nunca esgotar-se completamente” (ECO,1985:13).

Logo, partindo dessa afirmação, torna-se possível observarmos como “La casa de

de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de

minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito) estão abertas dia e noite aos

homens e também aos animais”.

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Astérion” pode ser lido à luz do arcabouço teórico autobiográfico. Em seu Ensaio

autobiográfico, Jorge Luis Borges afirma que:

Si tuviera que señalar el hecho capital de mi vida, diría la biblioteca de

mi padre. En realidad, creo no haber salido nunca de esa biblioteca. Es como si todavía la estuviera viendo. Ocupaba toda una habitación, con

estantes encristalados, y debe haber contenido varios miles de

volúmenes. (BORGES, 1999:24)

A biblioteca paterna, filtrada pelos olhos míopes do jovem Borges, parecia

multiplicar seus volumes infinitamente ao longo de suas prateleiras. Um dos ponto que

parece distanciar vida e ficção é o fato de que o narrador em “La casa de Astérion”

parece querer enfatizar o fato de não saber ler: “Cierta impaciencia generosa no hay

consentido que yo aprendiera a leer. A veces lo deploro, porque las noches y días son

largos”(BORGES,2009:684). Será que poderíamos, com base no raciocínio

desenvolvido por Diana Klinger, afimar que, de algum modo, a vida do autor foi

“matéria contingente” para a construção da ficção? É provável que não. O que

realmente irá importar, no jogo da aproximação autobiográfica, não será a real e

verificável similaridade entre vida e ficção, mas até que ponto podemos escutar, sob a

delicada parede da construção literária, o eco das palavras do autor real. É necessário

que se caminhe na contramão da visão tradicional, que une autor e obra em uma única e

sólida indivisibilidade, mas também sem negar a existência desse sujeito, verdadeiro

catalisador da atividade literária. A separação entre autor e obra “não impede que ele

tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras,

trazendo nelas seu gênio ou sua desordem”(FOUCAULT, 2006: 28) que existe, na

realidade, é a obra que se constrói numa espécie de espelhamento do autor, mas que se

sustenta sem a necessidade de uma ligação tão direta. A única regra que parece imperar

na escrita borgiana não é a do simples espelhamento, mas, se pudermos levar esse

conceito às últimas consequências, seria a do espelhamento deformante.

Em um simples espelho plano, com a superfície lisa e perfeitamente polida, uma

figura é refletida em suas reais proporções tendo, somente, seus lados invertidos.

Quando, porém, pensamos em uma superfície côncava ou convexa, conforme postulam

as leis da Física, sabemos que a imagem reproduzida não será fiel ao objeto refletido. A

enantiomorfia que existe no espelho plano é desestabilizada pela irregularidade da

superfície desses espelhos.

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Com base nessas breves elucidações acerca de uma teoria dos espelhos,

podemos voltar a observar os vestígios encontrados na ficção borgiana. Pelos contos

que já foram analisados até o momento, podemos afirmar que Jorge Luis Borges levou

até o último patamar a ideia de usar a própria vida como uma matéria prima para sua

escrita. Em “O outro”, “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”, podemos

identificar pequenos traços, ou melhor, pequenos cacos da autoria borgiana espalhados

por uma ficção que parece tê-los deformados e reconstruídos. Jorge Luis Borges parece

olhar-se em sua própria obra e, como em um espelho côncavo ou convexo, se

transforma em minotauro, em si mesmo ou em um jovem com uma impressionante

memória. Todos possuem algo de Borges, ao mesmo tempo em quem são personagens

sem qualquer tipo de ligação real com seu autor.

Um dos pontos mais importantes a ser ressaltado nesses três contos é,

obviamente, a atmosfera fantástica na qual se encontra inserida a questão de uma

possível leitura autoficcional. Sobre a definição do fantástico, Tzetan Todorov afirma

que “ num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,

sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas

leis deste mesmo mundo familiar”(TODOROV,2007:30).Tzevtan Todorov ainda sugere

que o acontecimento fantástico pode ser uma ilusão dos sentidos ou um fato que

realmente escaparia às regras do mundo real e que, por isso mesmo, seriam regido por

outras leis. Logo, relacionar a questão do fantástico aos vestígios autobiográficos

presentes nos contos pode funcionar, também, como uma maneira de nos aproximarmos

ainda mais de uma possível resposta aos questionamentos colocados pela aura fora do

comum que envolve os acontecimentos narrados nos contos.

A primeira resposta possível para essa pergunta seria o fato de que a atmosfera

construída por Borges em “El otro”, “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”

coloca em evidência muito mais a atmosfera irreal do que a questão autobiográfica,

sobretudo em “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”. Nunca seria possível

imaginar ouvir, sob o eco das palavras do protagonista de “La casa de Astérion”, o

Minotauro de Creta, as palavras de um possível Jorge Luis Borges, o bibliotecário

eterno da biblioteca infinita.

Uma outra possibilidade seria também a maneira como Jorge Luis Borges

mesclou sua escrita crítica ao universo ficcional de suas obras. Em Borges crítico,

Sergio Pastormerlo afirma que “Borges fue, ante todo, un crítico, y que la poesía y la

narracíon ocuparon un lugar lateral en su literatura”(PASTORMERLO,2007: 17). Essa

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ideia parece particularmente produtiva se pensarmos que Borges foi, sempre e muito

antes de se tornar um narrador, um leitor voraz e um crítico exigente. Talvez por essa

razão sua obra seja povoada de imagens recorrentes do universo literário e intertextos

que se estendem para muito além da simples mise-en-abyme.

Sergio Pastormerlo ainda afirma que :

La crítica fue el el único género presente en todas las etapas de su

producción literaria: Borges no siempre fue un narrador (década de

1920), no siempre fue un poeta (décadas de 1930 y 1940), pero siempre fue un crítico. Más allá del anecdotario infantil, el primer

texto publicado una reseña, y su muerte interrompió lá escritura de la

serie de prólogos de la “Biblioteca personal”. Otro argumento prodría

referirse, sin escrúpulos aritméticos, a las dimensiones de la crítica borgeana – integrada por algo más de mil textos. Un tercer argumento

podría sostener que, en el marco de su literatura ( que hablaba

incesantemente sobre lá literatura misma), la crítica funcionó como um género dominante que invadía el territorio de otros

géneros.(PASTORMERLO,2007:17)

Jorge Luis Borges teria sido muito mais uma referência crítica do que literária. O

que, por conseguinte, justificaria a aproximação que existe entre o autor e sua obra,

pois uma vez que a obra de Borges dobra-se sobre si mesma, toda e qualquer

semelhança que exista entre o autor e seus personagens poderia encontrar abrigo não

só no conceito de espelhamento, mas também na ideia de que apenas um crítico

poderia arquitetar um universo no qual a literatura falaria da própria literatura.

Um outro conto que pode colocar em evidência as características apontadas por

Sergio Pastormerlo é “La memoria de Shakespeare”. Nesse conto, a primeira

característica que podemos constatar é o fato de o narrador se identificar

imediatamente como um leitor de Shakespeare: “Shakespeare ha sido mi destino”,

afirma Hermann Soergel. Apesar de ser um narrador nomeado e, sobretudo, com um

nome que difere do de seu autor, Hermann Soergel guarda muitas semelhanças com

Jorge Luis Borges. Antes de iniciar a contar o episódio que será o cerne do conto,

também de natureza fantástica, o narrador irá contar como conheceu Daniel Thorpe,

figura essencial para o desenrolar da história: “Más importante que la cara de Daniel

Thorpe, que mi ceguera parcial me ayuda a olvidar, era su notoria desdicha.”19

(

BORGES,2009, vIII:474)

19 “Mais importante que o rosto de Daniel Thorpe, que minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era

sua notória infelicidade”(trad. da autora)

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No fragmento supracitado, mais do que o relato sobre a desgraça evidente de

Daniel Thorpe, é a maneira como o narrador admite sua já parcial cegueira. De

maneira análoga a Jorge Luis Borges, ele parece estar perdendo a visão ou parece

mesmo já tê-la perdido. Também poderíamos apontar como aproximação entre

Hermann Soergel e Jorge Luis Borges a óbvia admiração por William Shakespeare.

Com base no arcabouço teórico fornecido por Sergio Pastormerlo, poderíamos

afirmar que esse é um conto no qual vemos nitidamente a influência do universo

crítico sob o domínio da literatura. A narrativa continua e Daniel Thorpe confessa que

possui duas memórias: a sua própria memória pessoal e a de Shakespeare: “Hay una

zona en que se confunden. Hay una cara de mujer que no sé a qué siglo atribuir”

(BORGES,2009, vIII:475) 20

. A partir desse momento, o narrador começa a cobiçar a

memória do poeta inglês. O mais curioso é que Daniel Thorpe afirma que o fato de

possuir a memória de Shakespeare não lhe trouxe nenhum tipo de benefício ou

celebridade: “─ He escrito uma biografía novelada que mereció desdén de la crítica y

algún éxito comercial en los Estados Unidos y en las colonias.Creo que es todo”.

Após ouvir o relato de Thorpe, o narrador aceita a memória de Shakespeare, que

de acordo com o relato, deveria ser oferecida e aceita através de uma simples proposta

oral. O mais curioso não é, como poderia ser esperado, a faceta fantástica do conto, ou

mesmo a atmosfera usual que é conferida à memória do bardo inglês, mas o fato de

que o personagem ambiciona ter a memória de Shakespeare para suprimir uma

espécie de busca crítico-teórica que havia passado a vida inteira empreendendo.

Ao analisar o teor fantástico dos contos de Jorge Luis Borges, Emir Rodríguez

Monegal afirma que:

A obra de arte parece possuída de uma realidade em segundo grau

desde o momento em que dentro dela se introduz outra obra de arte.

Esta alteração retórica da realidade é que interessa Borges, já que permite indicar a possibilidade de outra alteração retórica: a da função

do leitor. (RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:64)

Poderíamos considerar que a presença do legado de Shakespeare, descrito no

conto como a real memória do autor, seria também um desdobramento da obra de arte

que, nas palavras de Monegal, irá propiciar uma alteração da realidade e, sobretudo, do

20 “ Escreveu uma biografia romanceada que mereceu o desdém da crítica e algum êxito comercial nos

Estados Unidos e nas colônias. Creio que é tudo”. (trad. da autora)

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papel do leitor. Como, porém, essa afirmação corroboraria a leitura dos contos

borgianos que se pretende desenvolver aqui?

Primeiramente, porque essa modificação que tem por fim mudar a posição do

leitor frente ao texto já pode ser tomada como um indício do espelhamento deformante

de Jorge Luis Borges. O autor nunca teve como objetivo fazer como que o leitor

aceitasse o pacto autobiográfico, ou mesmo buscou, através dos caminhos tortuosos de

sua ficção construir uma espécie de perfil. Pelo contrário, todos os caminhos levam a

diferentes Borges, que não são, em hipótese nenhuma, a soma do eco das palavras de

seus mais peculiares narradores.

Um outro argumento que devemos levar em consideração é, se observarmos em

especial a trama descrita em “La memoria de Shakespeare”, a influência do universo

crítico-teórico, como apontado por Sergio Pastormerlo: “ De Quincey afirma que el

cerebro del hombre es un palimpsesto. Cada nueva escritura cobre la escritura anterior y

es cubierta por la que siegue, pero la memoria todo poderosa pode exhumar cualquier

impresíon, por moméntanea que haya sido, si le dan estímulo

suficiente”(BORGES,2009,v.III:477). Apesar de todo universo construído no conto ser

nitidamente fantástico, poderíamos apontar a predominância das referências como um

traço pertencente ao universo pessoal borgiano. Entretanto, o que pertence a Borges não

necessariamente é Borges.

A conclusão de “La memoria de Shakespeare” é, no entanto, seu trecho mais

peculiar. Após meses atormentado com os sonhos do autor inglês, “A medida que

transcurren los años todo hombre está obligado a sobrellevar la creciente carga de su

memoria. Dos me agobiaban, confundiéndose a veces: la mía y la del outro,

incomunicable”(BORGES,209:480) , o narrador por fim decide terminar com seu

tormento. Resolve passar a memória de Shakespeare a diante, da maneira mais casual

possível ( ou da mais absurda, se pensarmos sob uma outra ótica). Durante uma ligação

telefônica, simultaneamente escolhida com cuidado e acaso, Hermann Soergel passa

para um homem desconhecido a memória que havia lha concedido Daniel Thorpe. Isso,

entretanto, não bastou para que ocorresse um real desligamento da obsessão por Willian

Shahespeare: “Ese y otros caminos fueron inutiles: todos me llevaban a

Shakespeare”(BORGES,2009,vIII: 481). É em um desfecho como esse que podemos

observar como a ficção de Jorge Luis Borges conduz a caminhos distintos, a caminhos

que se bifurcam e que, ironicamente, conduzem a diferentes facetas de seu autor.

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Em Culturas híbridas, Néstor Garcia Canclini afirma que grande parte do que

entendemos como a figura pública Jorge Luis Borges não passava de uma teatralização.

“Em seus últimos anos, Borges foi mais do que uma obra que se lê, uma biografia que

se divulga”(GARCIA CANCLINI,2000:108), afirma Canclini. Aparentemente, a cultura

(pós)moderna teria substituído o gosto da leitura pelo conhecimento de episódios da

vida do autor. Assim, poderíamos acreditar que o Borges dos últimos anos, que

antecederam sua morte, era, também mais uma criação de seu demiurgo máximo para

sobreviver em meio a uma cultura de massas. É importante salientar que, uma vez que a

postura da sociedade frente ao artista e frente à literatura mudou, o mesmo processo se

deu em relação à leitura dos contos de Jorge Luis Borges.

Esse fenômeno explica o fato de o conto a ser analisado a seguir continuar

sendo, após anos, o favorito dos biográfos de Jorge Luis Borges. Em “El sur”, veremos

claramente encenado um dos episódios que mais marcou a vida de seu autor real: um

acidente que acabou sendo determinante no desenvolvimento da doença que o cegou.

“El sur” é, diferentemente de todos os outros contos que já foram contemplados

por essa análise, narrado em terceira pessoa. Essa modificação do foco narrativo irá,

obviamente, alimentar ainda mais o fato de que o espelhamento autobiográfico é, não só

uma possibilidade deste conto, mas uma espécie de realidade da leitura. Nessa narrativa,

será contada a história de Johannes Dahlmann, pastor evangélico de origem germânica

que se sentia profundamente encantado pela vida no pampa.

O que chama atenção no desenrolar da narrativa é que, logo no início,

encontraremos o relato do acidente, que se assemelha muito ao acidente sofrido por

Jorge Luis Borges em 1938, após o falecimento de seu pai:

Dahlmann había conseguido, esa tarde, un ejemplar descabalado de Las mil y una noches de Weil; ávido de examinar esse hallazgo, no

esperó el ascensory subió con apuro las escaleras; algo en lá oscuridad

le rozó lá frente. ¿ un murciélago, un pájaro? En la cara de lá mujer

que le abrió lá puerta vio grabado el horror, y la mano que se pasó por la frente salió roja de sangre. La arista de un batiente recién pintado

que alguien se olvidó de cerrar le habría hecho esa herida.Dahlmann

logró dormir, pero a la madrugada estaba despierto y desde aquella hora el sabor de todas las cosas fue atroz.La fiebre lo gastó y las

illustraciones de Las mil y uma noches sirvieron para decorar

pesadillas. (BORGES, 2009,vI: 633)21

21“ Dahlmann tinha obtido, essa tarde, um exemplar incompleto das Mil e uma noites, de Weil; ávido de

examinar esse achado, não aguardou que descesse o elevador e subiu apressado às escadas; algo na

escuridão roçou-lhe a fronte; um morcego, um pássaro? Na fisionomia da mulher que lhe abriu a porta,

viu gravado o horror, e a mão que passou na testa saiu rubra de sangue. A aresta de um batente recém-

pintado que alguém esqueceu de fechar tinha-lhe feito essa ferida. Dahlmann conseguiu dormir, mas pela

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Jorge Luis Borges, de forma análoga a seu personagem, também bateu com a

cabeça em um batente, o que provocou-lhe um episódio de septicemia quase fatal. A

descrição desse evento poderia ser, talvez, um verdadeiro rasgo autobiográfico em meio

à obra de um autor que sempre foi conhecido por seus jogos com espelhos e com o

falseamento.

Por mais que a resposta para essa questão possa ser positiva, isso não transforma

“O sul” em um conto autobiográfico, pelo contrário. Na continuação da narrativa, o

personagem decidirá empreender uma viagem até os pampas, que nunca se realizará.

Ele acabará se envolvendo em uma briga,na qual sem dúvida morrerá: “ Sentiu que se

ele pudesse, então, houvesse podido escolher ou prever sua morte, esta é a morte que

teria escolhido ou sonhado”. Por mais que seja possível admitir a leitura autobiográfica

desse conto, é importante salientar mais alguns pontos importantes acerca da diferença

entre a autobiografia como conhecemos, e a autoficção, terminologia que foi cogitada

no princípio deste capítulo também como uma possibilidade de leitura velada existente

nos textos de Jorge Luis Borges.

Sobre essa distinção, Diana Klinger irá afirmar que “ambas as estratégias se

distinguem pelo grau de ficcionalidade: a diferença entre ambas reside nos elementos

que permitem ao leitor fazer uma validação da identificação, quer dizer, no nível da

verossimilhança”(KLINGER,2007:46). Assim, o que difere as duas categorias não é

somente um grau ficcional que poderíamos mensurar, mas também pelos elementos que

permitiriam a um leitor qualquer fazer a ponte entre a vida do escritor e a ficção por ele

escrita.

Com base nessas afirmações, é quase possível aceitar que um conto como “El

sur” seja muito mais um episódio da vida do próprio Jorge Luis Borges do que uma

mera fabulação ao acaso. Muito embora isso esteja mais evidente nesse conto em

especial, poderíamos afirmar que todos os contos que foram aqui analisados permitem

que tracemos uma linha, por mais sinuosa que esta seja, até alguma característica da

vida de seu autor.

É, entretanto, nessas linhas que podemos constatar o grande jogo da literatura

borgiana: o labirinto , minotauro e a biblioteca são espelhamentos de Borges, são o

próprio Borges, mas somente na medida em que temos consciência de que tudo é um

madrugada achava-se desperto e desde aquela hora o sabor de todas as coisas foi atroz. A febre o

desgastou e as ilustrações das Mil e uma noite serviram para decorar pesadelos.”

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jogo. As referências que remetem ao próprio autor são, simultaneamente, verdadeiras e

falsas, são fatos deformados pelo espelho côncavo de uma ficção que se encontra

alojada em um terreno movediço. Logo, aceitar que mesmo aquilo que parece ser

oriundo da vida do autor possa realmente ser tomado como um desdobramento da

referencialidade da escrita é, por fim, a ambígua questão que gostaríamos de colocar

aqui. Entrar no labirinto de Borges significa, também, desejar compartilhar do jogo.

A resposta máxima e simbólica para o jogo desenvolvido em toda a ficção

borgiana encontra-se em um texto que já foi analisado aqui anteriormente, “Borges y

yo”. Nele, o escritor brinca, não só com a questão do próprio nome, mas com a

celebridade da qual é portador e com o papel do escritor perante a sociedade. Conforme

afirmou Néstor Garcia Canclini, “ele também conheceu o incômodo de ser Borges, os

sobressaltos pelo que se tem passar para manter um projeto artístico culto em meio à

massificação cultural” (GARCIA CANCLINI,2000:109)

Na verdade, o grande jogo da narração borgiana e da desconstrução de um

suposto pacto autobiográfico nos referidos contos que são narrados em primeira pessoa,

consiste, sobretudo, no fato de toda a ideia de confissão ou de aproximação entre autor e

narrador estar apoiada no “eu”, essa “entidade complexa e

vacilante”(SIBILIA,2008:31), conforme irá afirma Paula Sibilia em O show do eu: a

intimidade como espetáculo. A autora ainda se aprofunda nesse raciocíonio e chega a

afirmar que aquilo que chamamos de “eu”, a primeira pessoa do discurso, “é uma ficção

gramatical, um eixo móvel e instável onde convergem todos os relatos de

si”(SIBILIA,2008:31). O que vemos, na verdade, é uma reiteração daquilo que Néstor

Garcia Canclini diagnosticou como sendo uma estratégia do autor para resistir à cultura

de massas, uma espécie de encenação ou perfomance da primeira pessoa do discurso,

propositalmente se aproximando do demiurgo máximo da literatura por ela engendrada,

Jorge Luis Borges.

Ainda em sua obra O show do eu: a intimidade como espetáculo, Paula Sibilia

irá esclarecer também o papel que é outorgado à linguagem no complexo meandro da

narrativa autobiográfica: “A linguagem não só ajuda a organizar o tumultuado fluir da

própria experiência e dar sentido ao mundo, mas também estabiliza o espaço e ordena o

tempo, em diálogo constante com a multidão de outras vozes que também nos modelam,

coloreiam e recheiam”(SIBILIA,2008:31). O que vemos, porém, é como o narrar

cristalino de Jorge Luis Borge desestabiliza pela maneira como transforma o fantástico

em usual, em como não hesitar em transformar a própria vida em matéria-prima da

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escrita. A escrita de Borges não é, em absoluto, uma escrita memoralista nos padrões

formais. O que não implica dizer que, ao reconstruir o acidentado e tortusoso caminho

de suas ficções, não possamos atingir uma faceta, ainda que não seja a verdadeira, do

Borges real, daquele que realmente se encontrava por trás das bibliotecas, dos labirintos

e dos minotauros.

No Teeteto, Platão, por meio das palavras de Sócrates, expõe a analogia um

tanto quanto curiosa do bloco de cera: “...que se trata de uma dávida de Mnemenosine,

mãe das musas, e que sempre que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou

mesmo pensado, calcamos a cera mole...”. A memória que temos de um fato, objeto, ou

mesmo de um indivíduo é, de acordo com Platão, uma impressão indelével que

deixamos no bloco de cera que possuímos em nossa mente. Assim, com base nessa

interessante analogia, poderíamos afirmar que, quando a leitura de um texto nos evoca

Jorge Luis Borges, isso quer dizer que já possuíamos uma ideia prévia do que

acreditávamos ser a figura do escritor.

A palavra “fantasma” possui quatro diferentes acepções previstas pelo

Dicionário Aurélio. São elas: 1.Imagem ilusória. 2. Visão apavorante. 3. Suposto

reaparecimento de defunto sob forma indefinida; assombração, espectro, aparição,

sombra, visagem, visão. 4. Pessoa magríssima, macilenta. Dentre todas essas

possibilidades, apenas a primeira nos interessa. O que podemos verificar, ao final desta

análise dos contos de Jorge Luis Borges, é que não é um mero reflexo de seu autor que

podemos encontrar neles. O fantasma de Borges habita sua ficção. Por meio de todos os

artifícios que empreendeu durante toda sua vida, Jorge Luis Borges conseguiu duplicar,

ou melhor, multiplicar sua figura no espelho do infinito, permeando assim toda sua

inumerável ficção com pequenos vestígios de uma personalidade que, sim, remetia à sua

figura real, mas que não necessariamente condizia com o Borges que empiricamente

existia. Labirintos, minotauros e bibliotecas são apenas fantasmas de um Borges que

não existiu.

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Capítulo 3: Através do espelho da memória: Jorge Luis Borges por Adolfo Bioy

Casares e Estela Canto

Em sua Arte poética, Aristóteles irá traçar um perfil daquilo que foi inicialmente

chamado por Platão de imitação, e que hoje interpretamos como uma verdadeira

proposta de classificação das expressões artísticas. No capítulo III, Aristóteles afirma

que:

Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas

situações e numa simples narrativa, seja pela introdução de um terceiro personagem, como faz Homero, seja insinuando-se a própria

pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda apresentando a

imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem as ações elas próprias (ARISTÓTELES, 2003:28)

Por mais que as considerações estejam relacionadas à questão da poesia, elas

não deixam, no entanto, de servir como um interessante mote para refletirmos sobre a

questão que será proposta no presente capítulo, a ideia de biografia. Com base no

arcabouço teórico aristotélico, podemos, então, questionar como será possível confiar

em um relato, que por mais que tenha como matéria-prima acontecimentos reais, será,

ainda assim, também uma fonte de questionamentos. Na citação destacada acima,

Aristóteles afirma que a imitação é possível, sobretudo se forem observados os

parâmetros narrativos e a introdução daquilo que o autor denomina de “terceiro

personagem”, ou seja, mais um constructo discursivo que servirá para demonstrar a

aplicabilidade daquilo que, na época em questão, era tido como o ideal de boa literatura.

A questão de um possível “terceiro personagem” nos leva a questionar o que

será apresentado nas obras que servirão como escopo temático para o presente capítulo:

Borges, um compêndio de aproximadamente 1600 páginas, todas oriundas dos diários

pessoais do escritor Adolfo Bioy Casares, e Borges à contraluz, obra de autoria da

escritora argentina Estela Canto, mulher com quem o escritor Jorges Luis Borges

manteve um complexo relacionamento amoroso.

Antes, entretanto, de iniciarmos uma análise propriamente dita das obras, faz-se

necessário que observemos também algumas considerações de Platão acerca daquilo

que foi denominado imitação. Platão, na República, irá afimar que tudo aquilo que se

distancia do que conhecemos por realidade, ou melhor, pela faceta empírica do universo

no qual estamos imersos, pode ser considerado como falso. Por esse mesmo motivo,

Platão irá expulsar o poeta de seu modelo de república ideal. A arte basearia em uma

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falsificação, em um distanciamento, o que não a qualificaria para inclusão em um

mundo considerado que possuiria como princípio a verdade e a retidão. Há que se fazer

a ressalva que Platão abre uma exceção para a poesia ou arte que, como a poesia

homérica, fosse dedicada a divulgar os melhores valores da realidade.

Poderíamos, então, reler a teoria forjada por Platão à luz do que conhecemos por

biografia. De acordo com o senso comum, seria possível afirmar que a biografia é a

descrição da vida de um determinado indivíduo. Essa definição inicial induz a

acreditarmos que, sob a ótica platônica, a descrição de uma vida poderia, talvez, ser

considerada um fenômeno artístico não baseado no falseamento e na representação.

A realidade, no entanto, é muito distante daquilo que a teoria preconiza como

real. Narrar a vida de uma outra pessoa incorre, fatalmente, no fato de que toda a

representação proposta pelo universo literário se apóia, incondicionalmente, na relação

que existe entre a escrita e a fidelidade. Como já foi explicitado no presente trabalho

anteiormente, parte da questão teórica que circunda a auotbiografia ainda repousa na

ideia do pacto autobiográfico, forjado por Philippe Lejeune na década de 1970. O

mesmo pacto aparentemente não se aplicaria à biografia, uma vez que a narração em

terceira pessoa a eximiria de toda e qualquer questão relativa ao falseamento do

narrador. A biografia, o relato em terceira pessoa, e pode ser ou não narrado pelo

indivíduo que também se encontra no centro do relato.

Ainda em sua Arte retórica, Aristóteles afirma que “A tendência para a imitação

é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos de

todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela

imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimentamos

prazer”. A tendência que possuímos, de acordo com Aristóteles, pode também ser

interpretada como uma inclinação que todos possuímos para a criação e para a

inventividade. Toda a atividade do ser humano encontra-se fundamentada em algum

processo criativo ou, para usar a terminologia do filósofo grego, na imitação.

Aprendemos e compreendemos através da repetição, da invenção, e, sobretudo, da

observação.

Essas afirmações podem relacionar-se com a ideia de biografia que se pretende

traçar nesses avanços introdutórios na medida em que, é importante ressaltar, a

biografia não deixa de ser uma atividade imitativa. Conta-se, ou melhor, narra-se a

história da vida de uma pessoa, o que não quer dizer que o ponto de vista contemplado

pela narrativa será necessariamente verdadeiro. O mundo que acreditamos real é

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constituído por fatos multifacetados, momentos que se desdobram em acontecimento

inúmeros. Assim, acreditar que o ponto de vista escolhido por um determinado

indivíduo será o melhor para narrar a vida, ou melhor, narrar os fatos que constituiriam

a vida de um outro indivíduo é assinar, ou melhor, endossar o pacto sugerido pela

biografia.

No caso das obras selecionadas para constituir o corpus do presente capítulo, é

importante ressaltar que ambas constituem casos particulares. Os diários de Adolfo Bioy

Casares contam não só fatos da vida do próprio escritor, mas colocam em evidência os

meandros de sua relação íntima com Jorge Luis Borges. Claro que a intenção de Bioy

nunca foi, provavelmente, ver esses diários publicados, mas, por essa mesma razão, o

fato de a figura de Jorge Luis Borges ser citada de forma tão recorrente faz com que

possamos considerar Borges como uma biografia do escritor argentino. Já o livro de

Estela Canto constitui um caso ainda mais curioso. Por ter se relacionado com Jorge

Luis Borges durante um período longo, inicialmente como uma espécie de namorada e

depois como amiga, Estela Canto nos oferece um perfil de Jorge Luis Borges, como

propõe o título de seu livro, à contraluz. O que encontramos nas páginas do livro de

Estela Canto é, também, de certa forma, uma espécie de biografia, pois uma vez que a

escritora pretende contar, com certa riqueza de detalhes, o desenrolar de seu

relacionamento com Jorge Luis Borges, ela acaba por delinear algo que é muito mais

uma biografia do que um mero relato de um período de sua própria vida.

Pensar em duas obras tão díspares e tão peculiares sem ter como ponto de

partida o universo biográfico acaba por se colocar como uma impossibilidade. Afinal,

não são ambas uma espécie de desdobramento do que seria um dos mais incertos

gêneros? Intencionalmente ou não, as obras de Estela Canto e Adolfo Bioy Casares nos

oferecem um perfil possível de Jorge Luis Borges. Personagem, persona ou autor, o que

vemos cristalizado nas páginas dos dois livros é, indiscutivelmente, um reflexo de Jorge

Luis Borges.

O livro de Estela Canto é aberto por uma introdução na qual a autora explicita,

sob seu ponto de vista, quais seriam as principais diretrizes que guiariam a obra de Jorge

Luis Borges: “ Borges insistiu em quase todos os seus contos, em seus poemas, até em

algumas entrevistas deturpadas – como são a maioria – que um homem é „todos os

homens‟. Ou seja, o homem encerra em si mesmo todas as possibilidades; o homem é o

microcosmo”. (CANTO, 1991:13). Mantendo à parte todas as interpretações possíveis

que poderiam ter como origem as afirmações da autora, o que inicialmente chama a

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atenção é a maneira como a autora parece, ou melhor, afirma ter pleno conhecimento

das regras que regiam a cosmogonia literária borgiana, como se, poderíamos

conjecturar, as tivesse ouvido do próprio Borges.

Na sequência da introdução, Estela Canto irá continuar a insistir sobre como

Jorge Luis Borges havia de fato herdado essa concepção de um legado judaico e como

ele, descrito por ela como “um homem galhofeiro”, cumpriu apenas até certo ponto o

mandamento que diz que as últimas verdades deveriam ser veladas. A verdade que

impera na obra de Jorge Luis Borges não é única, coerente, mas “angular e

fragmentada”, para usar as palavras de Thomas de Quincey que o próprio Borges

escolhe para epígrafe de um de seus contos. O que mais chama a atenção é a escritora

afirmar que Jorge Luis Borges era, na realidade, alguém que jogava com as referências,

mas também com o universo no qual estava imerso.

Ainda na mesma introdução, Estela Canto afirma sobre o que tratará seu livro:

A personalidade de Borges era enganadora, escorregadia; para cada

pessoa que o conhecia, ou que acreditava conhecê-lo, ela era um tipo

diferente de homem. E muitas vezes bem diverso do homem que outros haviam visto, admiradores ocasionais que o visitavam em seu

apartamento da rua Maipú. Sua peculiar galanteria, velada e que

costumava passar despercebida, levava-o a mostrar para as pessoas o Borges que elas queriam ver.

Tive a sorte de conhecê-lo nos anos talvez mais decisivos de sua vida,

os anos de maturidade como escritor; fui sua amiga íntima desde os

seus quarenta e cinco até os cinquenta e dois anos. Nessa época me dedicou um conto que muitos consideram sua obra mais importante: O

Aleph.

Borges provavelmente foi o escritor mais original da segunda metade do nosso século.(CANTO,1991:14)

Mais uma vez, o que salta aos olhos no fragmento acima é o fato de a autora

afirmar que, para cada pessoa, Jorge Luis Borges tinha a capacidade de ser uma pessoa

diferente. Jorge Luis Borges parece, visto pelos olhos de Estela Canto, muito mais um

personagem, ou melhor, um ator, do que um indivíduo real. Poderíamos mesmo afirmar,

com base no fragmento acima, que o escritor argentino parece ter levado às últimas

consequências um processo que era oriundo de sua construção literária.

Estela Canto parece ainda se orgulhar de ter ganho de Borges a dedicatória de O

Aleph. Esse fato, quando contraposto às outras afirmações contidas na mesma

introdução, fica ainda mais complexo. A autora irá afirmar:

Muitos anos depois, um jornalista me perguntou: “ Que é O Aleph?”, e respondi: “ É o relato de uma experiência mística” . Quando

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mencionei isto a Georgie, me dei conta de que ele não havia esquecido

meu artigo, escrito trinta e cinco anos antes. Disse-me: “ Você foi a

única pessoa que falou isso”, dando a entender que podia haver certa

verdade na afirmação. Ele apreciava esse julgamento, que se opunha à ideia difundida entre os escritores argentinos – que o julgavam um

autor frio e geométrico, um criador de jogos puramente

intelectuais.(CANTO,1991:15)

Primeiramente, a autora havia afirmado que Jorge Luis Borges encenava, para

cada pessoa que o conhecia, o escritor que elas esperavam conhecer. Após essa

afirmação, no mesmo preâmbulo que antecede a obra na qual a autora afirma que irá

conceder a seu leitor as chaves de leituras para o caráter de Borges, que aparentemente

estavam contidas no labirinto de sua ficção, Estela Canto parece cair em sua própria

armadilha. Se, para cada pessoa, Borges podia ser algo único e peculiar, como

poderíamos acreditar que ele próprio aceitava essa leitura de O Aleph, ou que, ainda

assim, era contrário à ideia de que sua literatura se baseava apenas em jogos labirínticos

e geométricos, uma vez que o próprio escritor havia passado sua vida construindo essa

imagem?

Todas as relações que podemos estabelecer nos terrenos (auto)biográficos serão

sempre permeadas de desconfiança. Mesmo um narração como a de Estela Canto, que

se propõe, desde o começo, expor os meandros de sua relação com Borges e, por

conseguinte, oferecer uma chave de leitura da prosa do escritor baseada nos fatos de sua

vida, está também ela alojada em um território movediço. Walter Benjamin, em “ O

narrador”, afirma que o mundo moderno nos torna, a cada dia, mais impossibilitados de

narrar, ou ainda, de transmitir experiências por meio do relato individual. Claro que, por

mais que a literatura não possa ser completamente inserida no nicho teórico proposto

por Walter Benjamin, é preciso, no entanto, observar como um livro como Borges à

contraluz acaba por gerar um vácuo entre duas diferentes possibilidades de acepção.

Claramente, trata-se de uma obra oriunda de uma experiência vivida, mas que,

no entanto, não poderia ser qualificada necessariamente como narração propriamente

dita, de acordo com os parâmetros benjaminianos. Ao tentar reconstruir, de maneira

diacrônica, seu contato com Jorge Luis Borges e os multifacetados momentos que

constituem a história pessoal do escritor, Estela Canto acaba por mesclar características

que seriam tanto da narração oral quanto da prosa narrativa.Assim, como poderíamos

analisar um obra de tal porte? Nitidamente, in media res entre biografia e autobiografia,

entre narração e ficção, Borges à contraluz acaba se colocando muito mais como uma

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interessante contribuição ao acervo literário existente sobre Jorge Luis Borges do que

como um livro definitivo sobre os enigmas que permeavam a ficção do autor.

Um outro problema importante que pode ser colocado a partir do livro de Estela

Canto é a questão da primeira pessoa narrativa. Normalmente, relatos em primeira

pessoa que possuem algum tipo de ligação estreita com a realidade já permitem uma

maior leitura autobiográfica da pessoa do narrador. Isso, no entanto, não funciona como

via de passagem obrigatória na obra da escritora. Na verdade, o paradoxo que servirá

como um dos pontos de articulação do livro será o tom confessional que tem como

objetivo principal elucidar ou lançar luz sobre a vida de uma segunda pessoa, não sobre

os fatos que permearam a vida do narrador. Assim, o pacto autobiográfico que poderia

ser gerado pela presença da primeira pessoa é totalmente quebrado, pois o sujeito que se

apresenta no discurso não tem como intuito se auto-analisar.

Após essa breve análise do conteúdo da introdução, faz-se necessário observar a

maneira como a autora irá se debruçar sobre a obra de Jorge Luis Borges. Em um

capítulo intitulado “As chaves e o anedotário”, Estela Canto traça uma análise dos

contos borgianos mais célebres:

Se Bernard Shaw tem razão, devemos buscar as chaves de Borges em suas ficções literárias. Se Borges tem razão, devemos buscar nos atos

de sua vida, mesmo nos mais pueris, a chave do homem que ele foi.

(...)

Borges era um homem contraditório. Basta comparar os poemas de sua juventude com alguns dos virulentos artigos publicados em El

Hogar , no Critica e em revistas dos anos 30.(...) Isto nos leva a

analisar seus temas, as situações que se repetem. Funes, o memorioso, Isidro Parodi e o preso de A escrita do Deus são seres imobilizados

por causas externas, que descobrem do catre de paralítico, da cela de

penitenciária, ou da masmorra mexicana os segredos do mundo,

desvendam intrincados crimes ou lêem na pele de uma fera a mensagem divina. (CANTO,1991: 121)

A maneira como a escritora aproxima os contos por uma temática que pode sim

ser lida como semelhante nos leva a crer que é possível traçar um perfil de Jorge Luis

Borges com base em suas escolhas ficcionais. A resposta para a constante pergunta que

foi o homem Jorge Luis Borges, o demiurgo dos labirintos, dos espelhos e dos infinitos

estaria, assim, oculta por trás das letras que permeiam as páginas de seus livros.

Poderíamos também afirmar que os contos citados por Estela Canto serviriam como

mote para pensarmos sobre a condição da cegueira, prisão física e inevitável

experienciada pelo escritor na vida real.

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Entretanto, não é esse o jogo proposto pela ficção de Borges, muito menos é isso

que é afirmado pela obra da escritora argentina.O choque entre o conteúdo dos poemas

da juventude e mesmo das obras, entre as quais poderíamos incluir El tamaño de mi

esperanza e El idioma de los argentinos, que foram posteriormente renegadas pelo

próprio autor, não passam de atos encenados. Jorge Luis Borges sempre foi e sempre

será multifacetado, multiplicado e amplificado pelo côncavo espelho de sua ficção.

Em um outro capítulo denominado “Funes o memorioso”, a autora chega a

afirmar que esse conto representava uma confissão, ou melhor, a maneira como o

próprio Borges se via durante a década de 30:

Funes só, imobilizado e submerso em suas visões, se parece com o

Borges conferencista, falando como se consigo mesmo diante de um

público que ele sente como uma vaga nuvem receptiva. Borges, que ainda enxergava nos anos em que se iniciou como conferencista,

entrava antecipadamente no mundo dos que não enxergavam. Daí,

talvez essa inesperada caridade por Funes, essa piedade por si mesmo

à qual ele nunca se entregou.E Borges não era entendido pelo que dizia: entendiam-no pelo que ele era. O público estava fascinado por

ele e essa fascinação se repetiria depois em países estrangeiros.

(CANTO,1991:128)

Muito embora não haja espaço no presente capítulo para retornar a uma

discussão que pertence ao capítulo anterior, é necessário, e também pertinente, salientar

a delicadez da leitura que Estela Canto tem de “Funes, o memorioso”. A representação

que a própria autora tinha de Jorge Luis Borges chama a atenção por ser despida do

glamour e da fama que cercaram o escritor até o dia de sua morte. A cegueira, a

literatura que fala de si mesma, os jogos com o tempo e os labirintos teriam, por fim,

isolado Jorge Luis Borges em seu pessoal e intransponível caleidoscópio.

Diana Klinger, em sua já citada obra Escritas de si, escritas do outro – o retorno

do autor e a virada etnográfica, explicita que “ o fato de muitos romances

contemporâneos se voltarem sobre a própria experiência do autor não parece destoar da

sociedade „marcada pelo falar de si, pela espetacularização do

sujeito‟(KLINGER,2007:38)”. Por mais que o livro de Estela Canto não tenha como

real objetivo tratar da vida da autora, ainda assim podemos afimar que É um processo

que colabora para a espetacularização de Jorge Luis Borges. Na verdade, poderíamos

considerar as confissões da autora como mais um desdobramento da figura de Jorge

Luis Borges, que vem a se unir aos diversos fragmentos que já perfaziam o inventário

(caleisdoscópico) da complexa figura pública de Jorge Luis Borges. A escrita de Estela

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Canto, que não deixa de ser uma escrita em primeira pessoa, acaba performatizando o

sujeito Jorge Luis Borges.

Em um outro capítulo, Estela Canto continuará delineando aquilo que acredita

fielmente ser um retrato plausível do Jorge Luis Borges que conhecera: “Esse conto

expressa melhor que nenhum outro a forma como Borges via a si mesmo. Em A escrita

do Deus, está a maneira como ele, timidamente, pressentia o Borges triunfante; e está o

prisioneiro Borges que nunca deixará de ser um prisioneiro. (CANTO, 1991:163)”. Para

a escritora, Jorge Luis Borges sempre foi uma espécie de prisioneiro, quer fosse por

estar imerso em um meio que não exatamente o compreendia, quer fosse por estar preso

à um corpo que não lhe permitia ver o mundo em sua forma completa. Talvez por esse

mesmo motivo ele tivesse passado a vida povoando um território imaginário que

aspirava ser real.

Em sua obra, Estela Canto também irá, além de interpretar à sua maneira a vida

e a obra de Jorge Luis Borges, inserir sua própria leitura dos diversos fatos que

permearam a vida do escritor argentino. Um deles será o acidente no qual Borges bate

com a cabeça no batente de uma janela, o mesmo acidente que é descrito em “El sur”:

Nessa época Borges sofre um acidente: ao descer uma escada, golpeou

a cabeça no batente de uma janela aberta.A ferida infeccionou e durante longos meses teve de andar com a cabeça enfaixada. As

ataduras tornaram-se uma espécie de turbante e ele reassumiu sua vida

normal, percorrendo as ruas com um ornato que se parecia com o

usado por um swami.(...) Ao se referir a esses dias, ele se lembrava de que precisava caminhar com uma bengala, já que estava quase cego.

(CANTO, 1991:58)

Aparentemente, será nesse momento específico da vida do autor que nascerá a

persona borgiana imortalizada por diversos escritores. Cego, já com alguma idade e

portando sempre uma bengala, Jorge Luis Borges parece abandonar lentamente sua

personalidade para, cada vez mais, incorporar os traços daquilo que ficará para sempre

como a representação que possuímos dele:

Durante esse período de cegueira, compôs momentaneamente a figura que haveria de mostrar ao mundo anos depois, já velho, trêmulo e

glorioso: um cego patético e transparente, tateando o caminho com

uma bengala branca, um humilde velho que pedia ao transeunte

desconhecido que o ajudasse a atravessar a rua, um pouco Ulisses mendigo em Ítaca, Édipo em Colona, um rei disfarçado. Sua vida

tinha se convertido numa fábula. O mito não era uma fuga da

realidade, era seu apogeu. A literatura não era o consolo dos fracos,

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mas a vida intensificada, a vida exaltada e com sentido. (CANTO,

1991, p.59)

Jorge Luis Borges parece ter escolhido fazer o caminho contrário. Em vez de

transformar a vida em material para a literatura, preferiu transformar a literatura em

vida. Através das palavras de Estela Canto, podemos ouvir o eco das afirmações do

próprio Borges, que afirmou em sua autobiografia nunca ter saído da biblioteca paterna

e que eram, na realidade, os personagens oriundos dos livros que lia que terminavam

por povoar seus sonhos de infância. A literatura terminou por subverter e extrapolar os

limites da realidade, convertendo-se, por fim, nela própria.

É importante salientar, no entanto, que essa é uma leitura defendida pela

escritora Estela Canto. Retornando ao arcabouço teórico fornecido por Walter

Benjamin, dessa vez, no entanto, por meio de Paula Sibilia, faz-se necessário delinear o

seguinte: “Narrar seria uma forma artesanal de comunicação em vários sentidos, visto

que o contador de histórias não utiliza apenas sua voz para tecer os relatos; ele também

trabalha com as mãos”(SIBILIA,2008:50). Assim, comunicar uma experiência de vida

implicaria um relato que, obviamente, não poderia ser escrito, uma vez que a escrita

transmite apenas uma parcela dos acontecimentos, a factual ou subjetiva.

Logo, considerar que as impressões que Estela Canto se propõe a transmitir em

Borges à contraluz seriam, de fato, transcrições fidedignas daquilo que a escritora

testemunhou em seus anos de convivência com Jorge Luis Borges é ir de encontro a

mais uma pergunta. A resposta a essa pergunta não se encontra, todavia, na teoria

benjaminiana.

André Malraux, em Le musée imaginaire, irá traçar um perfil da relação que

existe entre a civilização ocidental e os museus: “Un crucifix roman n‟était pas d´abord

une sculpture, la Madone de Cimabué n‟était pas d‟abord un

tableau.”(MALRAUX,2008:11) A institucionalização das obras de artes através dos

museus é que teria transformado o que antes possuía um valor funcional em uma obra

de arte. Malraux continua e afirma: “Le XIXeme. siècle a vécu d‟eux; nous vivons

encore, et oubloins qu‟ils ont imposé au spectateur une relation toute nouvelle avec l‟

oeuvre d‟art”(MALRAUX,2008:11) Os museus colocam em questão, até os dias de

hoje, uma relação que constantemente se modifica entre a obra e o espectador. A

abragência e o fato de que, em um museu como o Louvre, por exemplo,senão a de ser

obra de arte não possui outra função que ser obra de arte requer não somente uma

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análise mais atenta, mas também contém em si o embrião de uma relação que podemos

transpor para a literatura:

Presque tout le passé nous est arrivé sans ses couleurs. La plupart des statues de l‟Orient était peintes, et celles de l‟ Asie centrale, de L‟Inde,

de la Chine et du Japon; l‟art de Rome était souvent de toutes les

couleurs du marbre. Peintes, les statues romanes, les statues gothiques. Peintes, semble-t-il, les idoles précolombiennes; peints, les bas-reliefs

mayas.

Les vestiges de celle de la Grèce suggèrent un monde bien différent de

celui que suggère depuis longtemps la sculpture hellénique. (MALRAUX,2008:177)

As estátuas gregas que foram tomadas como parâmetros a serem reproduzidos

durante o classicismo nunca foram brancas. O passado, como afirma Malraux, chegou

a nós sem suas reais cores, e o que foi transformado em modelo foram as esculturas

descoloridas pelas intempéries dos séculos. Por mais que a pedra, o mármore e o

marfim resistam, nunca poderemos adivinhar, através de seus contornos já

arredondados pelo tempo, a verdadeira cor que recobria seus detalhes. Mais ainda, o

Museu Imaginário da civilização ocidental adquiriu e transformou essa referência de

modo que, até hoje, somos incapazes de conceber o classicismo sem a harmonia de

traços e a ausência de cores. O homem, através dos séculos, não fez nada mais do que

se tornar refém daquilo que ele mesmo afirma. É por meio das palavras que nos

conhecemos, que nos reconhecemos, que conhecemos o mundo. Ainda mais, é

também por meio delas que nomeamos, definimos. Muito embora esse fragmento faça

alusão a uma espécie de apropriação de carga simbólica muito específica, também

podemos depreender a partir dele que as relações de representação possuem os

significados que a elas são atribuídos graças ao que delas afirmamos e também graças

à maneira como aquilo que, nas palavras de André Malraux será o Museu Imaginário,

mas que também conhecemos como o inventário que povoa nosso cotidiano.

Assim, poderíamos traçar uma linha que ligasse as considerações tão

particulares de André Malraux à visão que se quer construir aqui da biografia, por

mais que ambas as possibilidades de leitura possam parecer distantes uma da outra.

Inicialmente, o primeiro elemento que irá permitir essa aproximação será a maneira

como serão delineados os personagens. Tendo em vista que o exemplo específico

supracitado diz respeito à maneira como encaramos a arte graças à um processo de

apropriação simbólica, é possível afirmar que o mesmo tipo de processo ocorreria,

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obviamente com proporções reduzidas, na biografia. A escrita biográfica permite a

apropriação de uma imagem que, não necessariamente, é real ou fiel.

No caso do livro de Estela Canto, que foi analisado anteriormente, podemos

afirmar que a maneira como a autora retrata Jorge Luis Borges contribui para algo que

poderíamos, hipoteticamente, denominar de “inventário borgiano”, e do qual fariam

parte todas as possíveis expressões e interpretações da figura de Jorge Luis Borges.

Na verdade, talvez fosse mais eficaz se comparássemos todas as reverberações da

figura de Jorge Luis Borges a diversos fractais. Um fractal é, de acordo com a

geometria, um objeto geométrico que pode ser dividido em diversas partes. O mais

curioso é que, da mesma maneira que todas as possibilidades, relatos e retratos de

Jorge Luis Borges que já foram elencados até aqui, os fractais guardam uma

semelhança para com o objeto original.

Desse modo, tudo aquilo que poderíamos incluir no que foi denominado de

“inventário borgiano” teria passado a fazer parte de um conjunto que, de certa forma,

remete a um Jorge Luis Borges que nunca foi real. É nesse ponto que reside o grande

jogo, não só da ficção borgiana, mas o jogo que seu artífice pareceu levar até às

últimas consequências. O Borges que se estilhaça em infinitos fractais espalhados por

entrevistas, romances, biografias, depoimentos e ficções não passa de uma duplicata

do Borges real.

É com base nessas premissas que passamos, finalmente, ao ponto nevrálgico do

presente capítulo: Borges, por Adolfo Bioy Casares. O livro, publicado em 2006,

chama a atenção, inicialmente, por seu tamanho, São mais de 1600 páginas, que

perfazem todos os diários que o escritor manteve durante toda sua vida. Chama a

atenção também o fato de que um diário pessoal, escrito sem qualquer pretensão à

publicação, tenha sido lançado com o título de Borges e não com o nome de seu autor.

Em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino, jornalista argentino que

também entrevistou Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares contou como começou

sua amizade:

F.S. Esta parte me interesa muchísimo. Claro, Borges no era lo que fué después. ¿Vos ya lo conocías?

A.B.C. Sí, yo sabía que existía y lo leía. A mí la verdad es que sus

poemas no me gustaban: eran los poemas de Fervor de Buenos Aires,

de Luna de enfrente. No, no me gustaban. Pero algunos de sus ensayos sí. Y ese día, hablando com él, sentí que nos interesaba la literatura del

mismo modo a los dos...

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F. S. Vos tenías deiciocho años, él tendría treinta y tres... Son

imágenes que yo no tengo: ¿ Cómo era él?, ¿ Cómo surgió la

conversación?, ¿ Se trataron de usted o de vos?

A.B.C. Nos tratamos de usted. Y creo que los dos sentíamos lo mismo: sentíamos que estábamos em cancha ajena. Que, en casa de

Victoria, ahí, en San Isidro, estábamos em um mundo literario que no

era nuestro mundo literario. Había otras simpatías, otras admiraciones...Cuando Borges y yo empezamos a hablar de literatura,

nos entendíamos mucho más que con la outra gente que estaba allí. A

pesar de que mis gustos de entonces no podían ser aprobados por Borges. (SORRENTINO,2007:31)

No fragmento supracitado podemos encontrar, provavelmente, alguns dos pontos

mais importantes sobre a relação que irá se desenvolver entre Adolfo Bioy Casares e

Jorge Luis Borges. A diferença de idade, a proximidade de gostos literários e,

sobretudo, o fato de que ambos se identificavam são apenas algumas das características

que acabaram por aproximar Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, no que acabou

por se converter em uma grande colaboração, não só íntima, como literária. Juntos, os

dois autores produziram um personagem que parodiava o gênero policial, Don Isidro

Parodi, e inúmeros outros textos que contribuiram, de diferentes formas, não só para a

carreira de ambos, mas também para o efervescente momento que era vivido pela

literatura argentina. Ainda na compilação de conversas entre Fernando Sorrentino e

Adolfo Bioy Casares, o escritor descreve como seria o Jorge Luis Borges que havia

conhecido inicialmente, antes que a fama do autor alcançasse as dimensões a que

chegou em um momento posterior:

F.S. Borges todavía no era el Borges de los cuentos, porque todavía no

habia escrito ninguno. Pero ya se lo tenía por uma persona muy

inteligente, ¿ no?

A.B.C. ¡Muy inteligente! Era un enfant terrible, como dicen los franceses: el petit Bob de la literatura... Porque se lo veía como una

persona paradojíca: en vez de ser sensato, era paradójico. Así lo veían

en casa de Victoria Ocampo, y tenían razón. Borges era poco herético; y condenado por herético.

F.S. Siempre me parecío que Borges tenía una personalidad literaria

fuertísima. A.B.C. Sí, verdaderamente. Creo, sin embargo que um poco de

influencia tuve sobre él en el sentido de que pudo hablar conmigo,

más que de las formas literarias, de los argumentos. La costumbre de

contarnos argumentos la compartí con él. Yo creaba una historia y se la contava a Borges , y Borges creaba una historia y me la contaba a

mí. Y yo creo que eso de estar contándonos argumentos y argumentos

influyó en él para llevarlo a escribir los cuentos de la Historia universal de la infamia, que fueron los primeros cuentos – un poquito

disfrazados de ensayos – de Borges. Creo que encontró en mí un

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interlocutor que completó un poco su

personalidad.(SORRENTINO,2007:32)

A maneira como o próprio Adolfo Bioy Casares explica a relação simbiótica que

existia entre ele e Jorge Luis Borges parece ser um interessante ponto de partida para

observarmos o conteúdo do diário pessoal. O que havia entre os dois escritores era uma

relação que ultrapassava os limites da simples amizade, era uma profunda identificação

e, obviamente, ambos exerciam, um sobre o outro, uma forte influência literária. Foi

Jorge Luis Borges que escreveu a introdução de um dos romances mais célebres de

Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel, e foi graças aos incentivos de Bioy que

Borges se tornou o que conhecemos, o Jorge Luis Borges da letra impressa, o artífice de

uma literatura ímpar.

Entre os anos de 1931 e 1946, as anotações dos diários de Adolfo Bioy Casares

se resumem a breves três páginas, que contam, como o fragmento anteriormente citado,

a maneira como ele e Jorge Luis Borges se conheceram e como ficaram amigos. Já nos

anos subsequentes, as anotações também serão esparsas, porém muito mais parecidas

com a estrutura padrão de um diário pessoal. Dividas por ano, dia da semana e do mês,

elas irão, lentamente, construir uma figura de Jorge Luis Borges a partir de um ponto de

vista que ainda não tinha sido explorado até aqui: descrito e retratado por alguém que o

considerou, até seus últimos dias, como um de seus melhores amigos. A pergunta que se

quer colocar, todavia, é: será que poderíamos aceitar um testemunho que não teria como

principal objetivo a publicação como verdadeiramente válido e fidedigno? Seria o Jorge

Luis Borges descrito por Adolfo Bioy Casares o homem real por trás da página

impressa, dos jogos e dos labirintos?

Domingo, 28 de deciembre (1947): En Pardo. Conversación con

Silvina. Dice que cada uno de nosotros tiene un tema, al que siempre

vuelve: Borges, la repetición infinita; ella, los diarios proféticos; yo, la evasión a unos pocos días de felicidad, que eternamente se repiten: La

invención de Morel, “ El perjurio de la nieve”, la novela (o cuento)

que ahora escribo (de los tres días y tres noches de Carnaval). ( BIOY

CASARES, 2006:31)

Em uma das primeiras anotações de seu diário, Adolfo Bioy Casares já cita

Borges e já elucida algo que acredita ser uma das obsessões literárias do amigo. A

partir desse pequeno, porém significativo fragmento, já é possível entrever a

importância que Jorge Luis Borges tinha na vida de Adolfo Bioy Casares. Mais a

frente, em uma passagem oriunda do ano de 1949, Bioy irá escrever o seguinte:

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Martes, 5 de julio: Borges anda muy ocupado com sus clases. No lee

en público; habla. Ha dictado un curso sobre escritores

norteamericanos; dicta uno sobre escritores ingleses modernos, outro sobre místicos, otros sobre literatura inglesa. Dio en el Rosario una

conferencia sobre literatura fantástica; dará, en la ciudad de Córdoba,

otra sobre Dante; en otra una sobre Martín Fierro. Interviene en debates públicos; improvisa en banquetes.

Jueves, 25 de julio. Hoy, por primeira vez, oí una conferencia de

Borges. Habló sobre George Moore. Habló tan naturalmente que me hizo pensar en la dificuldad de hablar en público debía ser ficticia. No

habla con énfasis de orador: conversa, razonando libre e

inteligentemente. (BIOY CASARES,2006:35)

O que inicialmente parece apenas uma lista dos cursos e conferências que Jorge

Luis Borges estava dando na época acaba, no fragmento extraído do dia 15 de julho,

convertendo-se em uma interessante observação acerca do comportamento do escritor.

Adolfo Bioy Casares questiona o que considerava como sendo característico do

comportamento de Borges: a timidez e a dificuldade para falar em público. Chega

mesmo a sugerir que tal dificuldade seria fictícia. Aliás, é bastante curioso que o escritor

tenha usado a palavra fictícia para tentar dar conta de alguma peculiaridade do

comportamento borgiano. Após toda a análise que veio sendo construída até o presente

momento, é igualmente interessante atentarmos para o fato de que nenhuma adjetivação,

quando lidamos com Jorge Luis Borges, é inocente ou meramente descritiva. Afirmar

que uma faceta de seu comportamento poderia ser fictícia implica dizer que já estava

implícita a ideia de que o escritor poderia possuir padrões de comportamento que não

condissessem com sua real personalidade.

Foi ainda nesse mesmo ano de 1949 que os dois escritores começaram a

colaboração que resultou nas narrativas policiais de Bustos Domecq, autor fictício que

assina a autoria das tramas protagonizadas por Don Isidro Parodi. Sobre esse processo

de construção criativa a quatro mãos, Bioy escreveu o seguinte em seu diário:

Escribiendo los cuentos de Bustos Domecq, creímos descubrir que los

personajes se definen por la manera de hablar: si el autor imagina

cómo hablan, los conoce, no se equivoca sobre su psicología. Borges opina que una prueba de esto se encuentra en el Martín Fierro: a pesar

de que en todo libro los episodios son como adjetivos, a pesar de que

los episodios del Martín Fierro describen al héroe como un hombre pendenciero y sanguinario, si dijésemos que Martín Fierro es un

simples Juan Moreira u Hormiga Negra cualquier argentino nos

desmentiria. Hay una nobleza estoica en el tono del libro, o de lo mejor del libro, que há creado el personaje; y las circunstancias de su

biografia – o las intenciones del autor – se dejan de lado o se olvidan.(

BIOY CASARES,2006:36)

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O fragmento acima, oriundo dos diários de Adolfo Bioy Casares, coloca em

evidência a maneira como um determinado indivíduo pensa não só o processo criativo,

mas também como ele encara o mundo e as pessoas que o cercam. Bioy mostra, a partir

do Martin Fierro, como os episódios de uma vida podem funcionar como seus

adjetivos. Mais curioso ainda é o fato de que, ao fim da citação, ele afirma que há uma

certa nobreza em torno do personagem e que as circunstâncias de sua biografia ou as

intenções de seu autor são, talvez propositalmente, deixadas de lado e esquecidas.

Podemos encontrar, nesse trecho, um mote para refletirmos sobre a questão biográfica,

fortemente presente em toda a obra de Bioy. Mais do que uma maneira de elucidar o

passo-a-passo de seu processo criativo, o que Adolfo Bioy Casares terminou por

registrar nas páginas de seu diário foi, de certa maneira, uma transposição para a vida

real daquilo que ele havia afirmado sobre o poema que é considerado a pedra angular da

literatura argentina, o Martín Fierro. Muito embora isso possa parecer simplista ou

excessivamente objetivo, faz-se necessária uma pequena recapitulação acerca da escrita

em primeira pessoa e do papel dos diários na literatura.

Escrever sobre si mesmo já foi uma maneira de manter a mente saudável. Ato

mais particular da intimidade de um indivíduo, sua prática sempre foi considerada

indispensável para a objetivação de si mesmo. Michel Foucault, em seu ensaio “A

escrita de si”, analisa a forma como anotações, pensamentos e reflexões eram um

“elemento indispensável à vida ascética”(FOUCAULT,2006:144). Foucault cita a Vita

Antonii de Atanásio, quando esse expõe seu ponto de vista sobre o ato de escrever sobre

si mesmo: “Ninguém fornicaria diante de testemunhas. Da mesma forma, escrevendo

nossos pensamentos como se devêssemos comunicá-los mutuamente, estaremos mais

protegidos dos pensamentos impuros, por vergonha de tê-los conhecidos”

(FOUCAULT,2006:145). Escrever era o que podia possibilitar não só o contato com a

faceta mais íntima e particular de um determinado indivíduo, mas também exercer a

função catártica de limpar a mente de pensamentos supostamente indequados e que, no

contexto estudado por Foucault, desviariam o asceta de seu real objetivo. Ainda nas

palavras de Michel Foucault, “a escrita constitui uma experiência e uma espécie de

pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento, ela dissipa a sombra interior

onde se tecem as tramas do inimigo”(ibidem:145).

Assim, escrever sobre si, antiga paixão da humanidade, encontra, por fim, na

obra de Adolfo Bioy Casares, seu maior desdobramento: a escrita em primeira pessoa

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que reconstrói, não aquele que narra, e sim um outro indíviduo. Apesar de podermos

identificar os traços e os momentos nos quais a personalidade de Bioy emerge, o que

parece predominar nas páginas de seus diários pessoais é a figura de Jorge Luis Borges.

Essa constatação, no entanto, gera outras inevitáveis perguntas, como qual é o Jorge

Luis Borges que vemos nas páginas de Borges e se seria o mesmo descrito por Estela

Canto, em Borges à contraluz. Seriam seus contos então possíveis desdobramentos

autoficcionais de sua complexa personalidade? A resposta para esses questionamentos

está, talvez, além daquilo que irá nos fornecer a leitura do diário de Adolfo Bioy

Casares, o que, no entanto, não faz com que dessa mesma leitura possamos chegar a

diferentes conclusões sobre esses questionamentos.

Retornando ao livro de Adolfo Bioy Casares, iremos encontrar a seguinte

passagem:

Caminábamos con Borges por un barrio de quintas, en Mar del Plata,

y pronto sentí un olor que me conmovío. Borges me dijo que los recuerdos que más nos emocionan son de los olores y gustos, porque

suelen estar rodeados de abismos de olvido: hay que oler el mismo

olor para recordar un olor, hay que sentir el mismo gusto para recordar un gusto (no ocurre así con imágenes y sonidos). ¡Con qué emoción

volvemos a oler el mismo olor que por la última vez olimos en

tiempos lejanos, en lugares a los que nunca volveremos!( BIOY CASARES,2006:38)

Apesar de, no fragmento acima, não ficar explícito se Jorge Luis Borges já se

encontrava em um estágio avançado de sua cegueira, podemos, ainda assim, adivinhar

os problemas de visão que se insinuavam por detrás das afirmações sobre os odores e os

sabores. Na verdade, o que chama a atenção na escrita que Adolfo Bioy Casares

mantinha em seus diários é a clareza. O estilo direto e a maneira como o escritor parece

se ater somente ao que lhe parecia realmente pertinente também nos mostra que,

provavelmente, essas breves e líricas facetas de Jorge Luis Borges que ele testemunhava

e que acabava por transcrever, eram as que ele considerava realmente importantes.

Nunca será possível afirmar se o Jorge Luis Borges, lírico, palestrante, cego e

estranhamente solitário que vemos traçado pelas linhas diretas de Bioy é aquele que de

fato existiu e que habitou durante tantos anos a Calle Maipú. Isso, entretanto, não é o

mais relevante. O que podemos sim, sem sombra de dúvida, afirmar é que a fidelidade

do relato não é o mais importante. O que realmente importa é que o Jorge Luis Borges

que emerge das páginas de Borges é, de forma análoga àquele descrito por Estela Canto,

um fractal, um caco de uma imagem quebrada de um Jorge Luis Borges que,

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provavelmente, nunca foi real. Não se pretende aqui validar ou não o discurso de Adolfo

Bioy Casares, mas atentar para o fato de que, tanto a autobiografia quanto a biografia,

contém, em seu cerne, apenas uma breve centelha daquilo que foi o indivíduo real. A

realidade nada mais é do que um palimpsesto, algo sobre o qual escrevemos e

reescrevemos constantemente nossas experiências diárias.

Podemos, entretanto, afirmar que o que existe latente nas páginas de algo do

porte de Borges é um devir-biografia. Termo inicialmente proposto por Gilles Deleuze e

Félix Guattari, o devir não funciona como “uma correspondência de relações”. Ele

também não seria uma semelhança, uma imitação ou sequer uma identificação que

poderia ser verificada entre diferentes elementos de uma mesma equação. Por devir

compreendemos algo que se encontra no patamar das alianças, das associações e,

principalmente, das falsas alternativas. Assim, quando afirmamos que o que existe

pulsando nas páginas de Borges é um devir-biografia, queremos dizer que, além de

aceitar que possa existir uma espécie de associação entre o que se considera como a

estrutura padrão de uma biografia e o que encontramos na obra de Adolfo Bioy Casares

é, também, uma falsa alternativa frente ao discurso socialmente validado que seria

representado pela biografia. Biografar quer dizer, acima de tudo, reconstituir os

complexos e difusos momentos dos quais o mesmo sujeito teria sido protagonista.

Não é isso, todavia, que nos apresenta Adolfo Bioy Casares. Sob a estrutura

fragmentada de um diário pessoal, organizado por dias e semanas, o que vemos são

pequenos e múltiplos fragmentos de Jorge Luis Borges, que podem ser ligados, da

mesma forma que a lúdica brincadeira de ligar os pontos para formar um desenho,

mostrando assim o perfil de Jorge Luis Borges por Adolfo Bioy Casares.

A biografia nada mais é do que o exercício metonímico de um determinado

sujeito, acerca dos fatos que permearam a vida de um outro sujeito. Descrita nesses

termos, claro, ela pode parecer despida de subjetividade, mas, na realidade, o que a

premissa de um texto (auto)biográfico pressupõe é que poderia existir uma espécie de

verdade, ou melhor, de versão definitiva dos fatos da vida de alguém. Por esse mesmo

motivo, se afirmou aqui que Jorge Luis Borges, durante toda sua vida, pareceu ter se

empenhado em jogar e quebrar as regras que regiam esses estatutos. Talvez por isso a

escritora Estela Canto tenha afirmado que ele se apresentava e dizia exatamente aquilo

que seus interlocutores desejavam ouvir. Porque talvez soubesse que, de fato, uma

pessoa são infinitos desdobramentos da mesma pessoa, infinitos fractais que se inserem

dolorosamente na multiplicidade dos momentos cotidianos.

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Assim, a única conclusão à qual podemos chegar após essa longa e labiríntica

jornada em busca de um Jorge Luis Borges que fosse, ao mesmo tempo, um

espelhamento fiel de seu criador, é que, no universo da literatura, a palavra impressa

não implica um pacto de fidelidade. Escrever não quer dizer contar a verdade, narrar os

fatos de maneira fidedigna. Escrever é criar, fabular, abrir as portas para toda uma

subjetividade que se encontra latente em todos os indivíduos. Pouco importa a

verossimilhança do relato, as possíveis relações que existiram entre biógrafo e

biografado. O que fica, para a posteridade, é o fato de que a literatura é um complicado

mosaico de experimentações que busca, sobretudo, oferecer uma alternativa ao mundo

que aceitamos como real.

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Pensemos agora na espantosa estrutura de toda uma língua para medirmos bem o milgare de sua resistência

enquanto a turma inteira, debruçada sobre os cadernos e a

tarde luminosa no espaço da sala — Mas neste extraordinário prodígio, meditado ao longo dos

séculos, só o nosso tempo verdadeiramente se interrogou sobre

o significado exacto de uma simples palavra. Porque eu digo

―isto é uma mesa‖ e não sei que relação se estabelece com esse real que eu chamo de mesa.(...)

— Concluímos daqui que a língua constitui uma rede fechada

sobre si, um tecido de malha que as leis da língua tecem, um quadriculado de palavras sobrepostas ao que chamamos de

―mundo real‖. Não há portanto um mundo real traduzido em

palavras, mas um mundo de palavras sobreposto a esse real.

Porque cada língua tem as suas leis, o seu modo de ver a realidade, o seu modo de a pensar. Assim mudar de língua é

mudar de mundo e não podemos portanto pensar que essa

língua traduz esse mundo porque teríamos tantos mundos quantas línguas e seria um insulto admitir que essas línguas o

traduzem na real realidade que é a dele. (FERREIRA, 1985:

145)

Conclusão

O fato de se repetir, na presente conclusão, a continuação de um fragmento

extraído de uma obra de Vergílio Ferreira, quer, sobretudo, atar as duas pontas do que

foi desenvolvido até aqui. Após tantas elucidações e questionamentos, qual delas

poderíamos considerar a mais conclusiva? Provavelmente, nenhuma. A escrita borgiana

é, antes de tudo, um labirinto de espelhos, no qual vemos multiplicadas e distorcidas

todas as referências oriundas do mundo real. Assim, muito mais do que propor aqui

mais um questionamento acerca da validade do que foi até agora apresentado, se

pretende muito mais unir os cacos de leitura que foram propostos em um único e

indissolúvel fio de Ariadne.

Inicialmente, foram expostos aqui fragmentos de Jorge Luis Borges que, quando

observados em conjunto, sugeriam, ou melhor, remetiam a uma espécie de duplicação

da figura real do autor. A partir desse ponto, questiona-se a aplicabilidade da teoria

proposta por Philippe Lejeune em uma de suas obras mais importantes, Le pacte

autobiographique.

Poderíamos, ao abrir um livro de Jorge Luis Borges ou ao ler uma das inúmeras

entrevistas do autor, simplesmente aceitar que toda e qualquer aproximação que exista

entre vida e obra, ou mesmo entre o narrado e o vivido, seria aceitável?

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Um dos principais motivos para a desconfiança seria, primeiramente, a maneira

como Jorge Luis Borges construiu para si uma imagem que, conforme já foi afirmado

aqui, nunca poderemos saber se era, ou mesmo até que ponto seria, real. O grande teatro

do qual a literatura é palco é a duplicação liberada do asfixiante compromisso da

representação fiel. Representar passa a ser muito mais encenar do que dizer a verdade.

Peter Berger e Thomas Luckmann, em A construção social da realidade,

afirmam que:

O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma

realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta

subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens

comuns, sendo afirmado como real por eles. (BERGER &

LUCKMANN, 1987:36)

De que maneira essa afirmação poderia servir como mote para refletirmos sobre

a questão que aqui se pretende concluir? Primeiramente, na afirmação de Berger e

Luckmann, são estabelecidos interessantes parâmetros que nos servirão para detalhar o

ponto no qual estão inseridas as considerações anteriormente tecidas sobre a obra de

Jorge Luis Borges. A realidade na qual todos nos encontramos imersos é vista como

absoluta pelos membros da sociedade. Assim, o cotidiano e todos os seus reflexos

seriam tomados como verdadeiros. É nesse ponto que podemos encontrar o primeiro

contraponto com o universo borgiano. Na realidade, o que podemos verificar é que o

grande jogo da literatura de Jorge Luis Borges será partir do pressuposto inverso, que

diz que o que é real não são os elementos que povoam o mundo, e sim o mundo das

palavras que é construído a partir das descrições que supostamente povoariam o mundo.

O universo de Borges é a biblioteca, são as palavras que povoam o mundo e não o

mundo que é povoado por elas.

É importante salientar também que no arcabouço teórico fornecido por Peter

Berger e Thomas Luckmann a ideia que se encontra subjacente é a que diz que, na

realidade, o mundo que encaramos cotidianamente é admitido como real não porque de

fato é verdadeiro, mas porque sua suposta veracidade se sobrepõe às diversas outras

realidades que poderíamos também encarar como plausíveis. Desse modo, passa-se a

um segundo ponto, também de extrema relevância, o real é uma construção subjetiva

coletiva:

Sei que é real. Embora seja capaz de empenhar-me em dúvida a

respeito dela, sou obrigado a suspender esta dúvida ao existir

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rotineiramente na vida cotidiana. Esta suspensão da dúvida é tão firme

que para abandoná-la, como poderia desejar fazer, por exemplo na

contemplação teórica ou religiosa, tenho de realizar uma extrema

transição. O mundo da vida cotidiana proclama-se a si mesmo e quando eu quero contestar essa proclamação tenho de fazer um

deliberado esforço, nada fácil. (BERGER & LUCKMANN, 1987:41)

Com base nesse fragmento, ainda oriundo do texto de Peter Bergman e Thomas

Luckmann, é possível ainda delinear a maneira como o mundo representado pelo nosso

cotidiano não passa de uma realidade aceita de maneira tácita por todos os membros da

sociedade. A pergunta, todavia, que se quer extrair dessa passagem é a de que maneira,

então, poderíamos relacionar tudo aquilo que se propõe representação fiel da realidade

ao conceito proposto no fragmento anteriormente citado.

Talvez mais ainda, desse questionamento também podemos ver como irá

emergir um outro, se estaria Jorge Luis Borges realmente propondo um diferente

conceito de realidade em suas obras. É provável que sim. Um conto que pode nos

fornecer uma curiosa resposta a essa pergunta é, infelizmente, um dos que não foi

analisado anteriormente: “La biblioteca de Babel”. As primeiras linhas do conto já

apontam para algo que poderia ser uma diferente alternativa face ao real que aceitamos

como válido todos os dias “El universo (que otros llaman la Biblioteca) se componte de

un número indefinido, y tal vez infinito, de galerías hexagonales, con vastos pozos de

ventilación en el medio, cercados por barandas bajísima” (BORGES,2009,vI:558)22

.

Nos livros, não encontramos a duplicação do universo que já existe, mas o inverso: são

os elementos do universo que duplicam a realidade dos livros. As línguas, em suas

infinitas possibilidades de combinações de letras e sons, não reproduzem o que permeia

o mundo, mas permitem ao mundo uma maneira de descrever aquilo que nele pode ser

encontrado.

Desse modo, poderíamos afirmar que a teoria fornecida por Peter Berger e

Thomas Luckmann funciona como um interessante suporte para pensarmos também a

questão da fidelidade do relato. Partindo dos pressupostos aqui explicitados, torna-se

praticamente impossível aceitar que para que um relato possa ser aceito como

verdadeiro ou definitivo basta que o leitor acredite, ou mesmo, assine um contrato de

leitura invisível para que tudo aquilo compreendido pelas páginas de um determinado

livro seja verdade.

22 “O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito,

de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”

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Nas palavras de Margherite Duras, “Existe sempre o suicídio na solidão de um

escritor”(DURAS,1994:29), ou seja, todo ofício da escrita é perpassado pelo fato de

que, em prol da obra, parte da pessoa do escritor tenha que cair no esquecimento.

“Borges e eu”, por exemplo mostra nada mais do que isso, ao construir um suposto

narrador que dialoga com a personalidade, ou melhor, com a celebridade do escritor, já

devidamente cristalizada pela fama. Assim, o que encontramos nas páginas de uma obra

não são necessariamente detalhes autobiográficos. São cacos de uma pessoa que

escolheu construir uma obra na qual sua presença não é particularmente importante ou,

digamos, indispensável. Mais um vez, é também na possibilidade Apresentada por essa

afirmação que encontramos mais um dos inúmeros jogos de Jorge Luis Borges. Ao

inserir detalhes que parecem remeter à sua personalidade, aos seus gostos e suas

predileções e, sobretudo, à sua vida pessoal, o escritor passa a falsa impressão de que

gostaria de ser associado à imagem que temos de sua obra.

Essa regra, no entanto, é a primeira a ser demolida a partir de uma segunda

leitura de seu universo literário. O caleidoscópio de possibilidades do qual a obra de

Jorge Luis Borges é portadora possui também, em seu cerne, as infinitas e díspares

construções que o próprio autor fez de si ao longo de toda sua vida. Em todas as

entrevistas, contos e fragmentos, o que constatamos aqui foi a maneira como Borges

encenou o personagem que mais lhe convinha no momento, fosse ele o cego, o

bibliotecário eterno, o crítico literário ou apenas o escritor.

Por esse motivo afirma-se aqui que o que Jorge Luis Borges propunha, na

realidade, ao jogar com esse tipo de pacto de leitura, não deixava de ser um jogo

também com o mundo real. Ao contrariar o que poderíamos descrever como aspectos

extremamente verossímeis, ele constrói um universo onde a única regra que parece

imperar é a inversão. Poderíamos até denominar o universo de Jorge Luis Borges como

perverso. O termo, que possui origem no latim, “per vertio”, significa originalmente

“por de lado” ou mesmo “por à parte”.

A aplicação de tal termo para descrever o processo que se dá na literatura de

Jorge Luis Borges também não é, por mais que possa parecer, sugestivo. O que se tenta

definir com o emprego de tal palavra é, sobretudo, a maneira como o autor sempre

mostrou, na maioria de suas obras, como o meio que acreditamos ser real pode, muito

facilmente, ser convertido em algo avesso e, por vezes, fantástico. Aquilo que

acreditamos serem pequenos indícios de um possível pacto autobiográfico ou mesmo

aparentes pistas que sugeririam um espelhamento autoficcional em muitos de seus

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contos não passam de diferentes subversões do real, múltiplas possibilidades que se

encontram contidas, ou melhor, adormecidas em cada palavra que o uso cotidiano

desgastou.

Há, ainda, um outro ponto que faz com que a escrita de Jorge Luis Borges se

coloque como um desafio frente à própria literatura: sua meta-estrutura. Em um dos

estudos que já foi citado no presente trabalho, Sergio Pastormerlo dedica-se à ideia de

que Borges foi muito mais um crítico do que um ficcionista. Claro que, partindo apenas

da estrutura meta-ficcional da grande maioria de suas obras, essa afirmação já

procederia. Existem, no entanto, outras características que servirão para corroborar essa

leitura:

En las ficciones borgianas, el grado de saturación que alcanza la figura del “sacerdote” puede verse en el deslizamiento de esa figura hacia los

territorios del humor y el fantástico. Como Henry James y tantos otros

escritores modernos, Borges hizo de su relación con la literatura un tema literario. Muchas de sus ficciones construyen personajes o

variaciones de la figura del “sacerdote”, y esos personajes reenvían al

lector a la imagen de Borges. Cuando, en “El jardín de senderos que se bifurcan”(1941), Yu Tsun sube al tren que lo llevará a Ashgrove y

ve, entre los pasageros, “a unos labradores, una enlutada y un jóven

que leía con fervor los Anales, de Tácito, un soldado herido y feliz”, el

lector es llamado a reconocer, a pesar de la brevedad de la referencia a un personaje compuesto por diez palabras, la identidad de ese

jóven.(PASTORMERLO, 2007:46)

O que Sergio Pastormerlo está realmente sugerindo no fragmento acima é como

cada um dos personagens que Jorge Luis Brorges apresenta a seu leitor está,

intrínsecamente, ligado a sua própria pessoa. Não, porém, de uma maneira

autobiográfica, mas pelo fato de sua obra estar repleta de personagens que, de forma

análoga a seu autor, são também escritores ou homens de letras. O conto que o autor irá

utilizar para demonstrar como isso se dá, no entanto, não foi contemplado pela análise

desenvolvida no presente trabalho. O que não nos impossibilita de recuperar uma leitura

de um dos contos que, até os dias de hoje, continua sendo um dos favoritos dos

biógrafos borgianos, “El sur”. Nesse conto, como foi anteriormente explicitado,

podemos constatar uma forte aproximação entre o acidente sofrido pelo protagonista e

aquele que foi, na realidade, sofrido por seu autor. Isso, entretanto, não qualifica o conto

como sendo um fiel espelhamento autobiográfico, pelo contrário, podemos mesmo

afirmar que se trata, mais uma vez, do espelhamento deformante que foi tão

amplamente explorado pelo autor em sua obra.

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Sergio Pastormerlo tecerá ainda algumas considerações que serão de extrema

importância para o fechamento que aqui se pretende dar: “Como T‟sui Pên, los

personajes-escritores de Borges suelen vivir un tipo de relación con la literatura que se

ubica en los extremos de la renuncia ascética”(PASTORMERLO, 2007:46). Muito mais

do que uma expressão individual ou mesmo intencional, a imagem que Sergio

Pastormerlo afirma que Jorge Luis Borges expõe em sua literatura beira o ascetismo

completo. A literatura sempre parece requerer de seus personagens não só uma espécie

de dedicação integral, mas mesmo uma entrega total e absoluta. Mais uma vez, para

corroborar ainda melhor essa leitura, podemos recorrer à “La biblioteca de Babel”, que

é, provavelmente, dentre todos os contos do autor, o que mais se dedica a mostrar como

o universo é que seria uma réplica da literatura:

Como todos los hombres de la biblioteca, he viajado em mi juventud; he peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de catálogos;

ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me

preparo a morir a unas pocas leguas del hexágono en que nací.Muerto,

no faltarán manos piedosas que me tiren por la baranda; mi sepultura será el aire insondable; mi cuerpo se hundirá largamente y se

corromperá y disolverá en el viento engendrado por la caiía que es

infinita. Yo afirmo que lá biblioteca es interminable.

23(BORGES,2009,vI:558)

O bibliotecário, que supostamente é a voz narrativa do conto, não está somente

idoso e cego, mas dedicou toda a sua vida a uma busca infrutífera. Após passar muitos

anos procurando o que seria uma espécie de pedra filosofal do universo borgiano, o

catálogo dos catálogos, que mais tarde veremos convertido na imagem do livro de areia,

o narrador se prepara para morrer sem ter conseguido alcançar seu desejo. Muito mais

do que a imagem de uma empresa falhada, o que podemos constatar também no

fragmento é a maneira como buscar um determinado ideal literário é muito mais do que

apenas dedicar-se à escrita ou ao mundo dos livros. A literatura, no universo borgiano,

é, além de uma temática recorrente, uma busca constante, como se toda uma vida não

bastasse para atingir a página perfeita.

23 “Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro,

talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono onde nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me

joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se

corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é

interminável”.

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Observando a teoria proposta por Peter Berger e Thomas Luckmann ao lado das

propostas de Sergio Pastormerlo, fica ainda mais claro como é possível afirmarmos que

o universo de Jorge Luis Borges é muito mais perverso, ou mesmo distorcido, do que

aquilo que poderíamos denominar de mundo real. Logo, o jogo de intermináveis e

infinitas referências que é encenado no teatro da literatura borgiana não possui outro

objetivo que não seja a tentativa de elaborar uma alternativa para o mundo que vivemos.

Do mesmo modo, podemos considerar as comparações anteriores como um

ponto de partida para podermos, por fim, atar as duas pontas do raciocínio que veio

sendo desenvolvido até o presente momento. Qual seria, na realidade, a causa, ou

melhor, a motivação por trás do jogo com a literatura? Antes, no entanto, de

respondermos a essa pergunta, faz-se necessário deixar claro que, em momento algum,

procurar as possíveis motivações do autor seria o mesmo que, ao final, deixar a vertente

autobiográfica dominar e reger a leitura que aqui se pretendeu desenvolver: saber quais

eram as causas que teriam impulsionado Jorge Luis Borges a elaborar, ao longo de toda

sua vida, uma literatura que parecia se dobrar sobre si mesma e multiplicar, através de

seus repetidos símbolos e imagens, um mundo que, apesar de verossímil, não era em

absoluto uma tentativa de réplica do mundo supostamente real.

Para compreender, todavia, a raíz do jogo, o enigma do labirinto e o reverso do

espelho, necessitamos recorrer a um texto que se encontra no coração de toda a teoria

explorada no presente trabalho: Aula, de Roland Barthes. Algumas probabilidades de

compreensão do aspecto lúdico da literatura borgiana surgirão quando observarmos as

ideias sugeridas pelo autor em sua aula inaugural do College de France:

A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o

poder que reside na língua porque esquecemos que toda língua é uma

classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao

mesmo tempo, repartição e contaminação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo

que ele obriga a dizer. (...)

Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como

se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma

reição generalizada. (BARTHES, 1996:12)

O que Roland Barthes afirma, no fragmento supracitado, é que, além de todas as

considerações que poderíamos tecer a respeito das possibilidades comunicativas das

quais uma língua qualquer é portadora, temos com a língua que falamos uma relação

irrefletida de servidão e alienação. Somos, na maior parte do tempo, obrigados pelo

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contexto no qual estamos inseridos a comunicar todas as nossas necessidades mais

básicas e também tudo aquilo que a sociedade nos obriga a dizer. Assim, falar não é

uma simples atividade comunicativa, mas um verdadeiro reflexo das relações de nosso

meio social.

Contudo, em que ponto situaríamos a escrita, atividade da qual a literatura é o

maior símbolo? Aliás, como definiríamos a escrita tendo em vista tudo que já foi

exposto até aqui? A escrita e seu implícito exercício, que é escrever, são normalmente

conceituados como o ato de traçar letras ou o mesmo de grafar palavras. Isso é, no

entanto, uma definição muito rasa se tivermos em vista algo que possa ser interpretado à

luz dos conceitos aqui utilizados. Escrever não é simplesmente juntar palavras, contar

histórias ou tentar dar vazão à obsessão do ser humano por fazer sentido. Escrever é

trair, falsear, possibilitar que a língua seja portadora de algo que não o fatalismo do

cotidiano. Escrever é, acima de tudo, colocar em xeque a maneira como vemos o

mundo, principalmente através da ótica fornecida pela literatura:

Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado.

Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade

mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo

interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da

linguagem; ou então pelo amen nietzschiano, que é como uma

sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama “capa reativa”. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé

nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua,

trapacear a língua. Essa tapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de

uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim:

literatura. (BARTHES, 1996:16)

Presos ao que seria a cadeia fatal do cotidiano comunicativo, a literatura acaba

por se colocar como a única possibilidade real de alcançar uma linguagem que não

esteja de fato viciada pelo gregarismo do querer dizer. Na literatura, podemos ouvir o

ressoar das palavras não voltados à transmissão de uma mensagem, mas à teia de

infinitas possibilidades da qual ela pode ser portadora. Dessa maneira, escrever passa a

ser não somente exercitar a língua em um lugar fora do poder, mas também encenar, no

palco infinito, a eterna peça na qual cada palavra poderá, por fim, assumir diferentes e

inusitados papéis a cada momento. No âmbito da escrita é que finalmente poderemos

enxergar uma diferente alternativa face ao mundo em que vivemos.

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Após essa breve elucidação, podemos retornar ao que havia sido afirmado

anteriormente sobre a obra de Jorge Luis Borges e, talvez, acrescentar uma imagem que

pode ajudar nossos leitores a compreender o que o escritor argentino passou sua vida

inteira construindo. Mais do que caleisdoscópios, labirintos e mitologias do arrabalde

porteño, o que podemos encontrar na obra de Jorge Luis Borges é um complexo e

delicado quebra-cabeça.

Georges Perec, em uma de suas obras de maior destaque La vie mode d’emploi,

explica, no preâmbulo do livro, o que seria uma “arte do quebra-cabeça”:

Au départ, l‟art du puzzle semble un art bref, um art mince, tout entier

contenu dans um maigre enseignement de la Gestal-theorie: l‟objet visé – qu‟il s‟agisse d‟un acte perceptif, d‟un apprentissage, d‟un

système physiologique ou, dans le cas qui nous occupe, d‟un puzzle

de bois – n‟est pas une somme d‟éléments qu‟il faudrait d‟abord isoler et analyser, mais un ensemble, c‟est-à-dire une forme, une structure:

l‟élément ne préexiste pas à l‟ensemble, il n‟est ni plus immédiat ni

plus ancien, ce ne sont pas les éléments qui déterminent l‟ensemble, mais l‟ensemble qui détermine les éléments: la connaissance du tout et

de ses lois, de l‟ensemble et de sa structure, ne saurait être déduite de

la connaissance séparée des parties qui le composent: cela veut dire

qu‟on peut regarder une pièce d‟un puzzle pendant trois jours et croire tout savoir de sa configuration et de sa couleur sans savoir le moins du

monde avancé: seule compte la possibilité de relier cette pièce à

d‟autres pièces (...)( PEREC,1978:17)24

Montar um quebra-cabeça não quer dizer que basta conhecermos com perfeição

os detalhes e as possibilidades que nos ofecerecem cada peça. Significa olhar para o

conjunto, pensar em uma forma, em uma estrutura que só ficará completa com a união

de todas as peças. Dessa maneira, podemos traçar uma analogia entre a teoria dos

fractais, que foi empregada anteriormente para dar conta de algo que se verificava na

estrutura da obra de Jorge Luis Borges e o que Georges Perec denomina de “arte do

quebra-cabeça”. As diversas possibilidades que foram aqui cogitadas para a figura do

escritor não passam de pequenas peças de um quebra-cabeça. Isso equivale a dizer que,

24 “No incío, a arte do quebra-cabeça parecia uma arte breve, delgada, contida por inteiro em um magro

ensinamento da teoria Gestalt: objeto visado – que se tratasse de um ato perceptivo, de uma

aprendizagem, de um sistema fisiológico ou, no caso do qual nos ocupamos, de um quebra-cabeça de

madeira – não é uma soma de elementos que necessitaria inicialmente isolar e analisar, mais um conjunto,

quer dizer, uma forma, uma estrutura: o elemento não préexiste ao conjunto, e também nem mais imediato nem mais antigo, não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que

determina os elementos: o conhecimento do todo e de suas leis, do conjunto e de sua estrutura, não

saberia ser deduzido do conhecimento individual das partes que o compõem: isso quer dizer que podemos

olhar uma peça de quebra-cabeça durante três dias e acreditar saber sua configuração e sua cor, sem saber

o mínimo sobre o mundo inteiro: somente conta a possibilidade de religar essa peça a outras peças

(...)”(trad. da autora)

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por mais que possamos traçar um perfil de cada uma delas, ou mesmo mapeá-las com

perfeição, nunca poderemos deixar de pensá-las como uma pequena parte de um todo

que devemos observar junto. Assim, quando unimos essas pequenas peças, que no

fundo são todas Jorge Luis Borges, temos uma imagem que remete à de seu artícife

maior, o próprio escritor.

Mais uma vez, o texto de Sergio Pastormerlo irá nos fornecer um outro

importante contraponto para o que já foi exposto até o presente momento. Quando

tentamos compreender, ou mesmo crer que, de uma certa maneira, todos os rasgos de

ascetismo e intelectualidade presentes na obra de Jorge Luis Borges podem ser

considerados como reflexos indiscutíveis de seu escritor, podemos ainda assim constatar

que o pacto de leitura gerado por sua obra não necessariamente conduz à personalidade

de seu autor. Claro que, durante anos, o comportamento de Jorge Luis Borges e o

conteúdo essencialmente meta-ficcional de sua obra sempre pareceram uma ligação

óbvia para os biógrafos. “ La verosimilitud de la imagen borgeana del „sacerdote‟ que se

apoya también em la relativa coherencia de los elementos, sin embargo heterogéneos

que la componen”, afirma Sergio Pastormerlo. Parecia aceitável que a imagem que

Borges havia construído para si fosse, de certa maneira, um desdobramento de sua

literatura, ou vice-versa.

Na realidade, porém, o que constatamos ao longo do percurso foi a maneira

como o autor jogava também o jogo da repetição, da obsessão e do infinito. A temática

de Jorge Luis Borges sempre foi, de acordo com o próprio escritor, um repertório de

jogos com o tempo, com os labirintos, com os punhais e as máscaras. Em relação a

todas essas temáticas, podemos identificar claramente como se desenvolveram os jogos,

as duplicações, as distorções. É, contudo, quando falamos em mascaramento que se

torna impossível aceitar que qualquer conto ou poesia que remeta a um fato da vida

pessoal do escritor possa ser tomado como um vestígio irremediávelmente

autobiográfico. Jorge Luis Borges era um jogador declarado, demiurgo máximo de uma

cosmogonia que tinha na questão das máscaras seu maior deus.

O labirinto infinito construído por Jorge Luis Borges se assemelha muito a

figura mitólogica da serpente ou dragão que engole a própria cauda, ouroboros. Tudo

em sua ficção é eterno retorno, são cenas que se repetem, jogos intermináveis, símbolos

e metonímias que sempre irão, de certa forma, remeter a uma imagem irreal de seu

autor. A eternidade perversa da qual a ficção é portadora não possui outra saída senão

dobrar-se incessantemente sobre si mesma. Logo, escrever é trair o real, é entrever o

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infinito, é jogar sem cessar um xadrez no qual o rei está ausente. Representar, retratar e

recordar são apenas fantoches nas mãos do titereiro máximo, o escritor.

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