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Universidade Federal do Rio De Janeiro
ESCREVER É TRAIR:
O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira
2010
ii
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
ESCREVER É TRAIR: O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Ciência da Literatura (Teoria Literária)
Orientador: Prof. Eduardo de Faria Coutinho
Rio de Janeiro
Julho de 2010
iii
ESCREVER É TRAIR:
O LABIRINTO DO FALSO EM JORGE LUIS BORGES
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira
Eduardo de Faria Coutinho
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura – Teoria Literária, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria
Literária.
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho
_______________________________________
Prof. Martha Alkimin de Araújo Vieira
_______________________________________
Prof. Ary Pimentel
Rio de Janeiro
Julho de 2010
iv
Lira, Raphaella Mendes Silva de Castro.
Escrever é trair: o labirinto do falso em Jorge Luis Borges /
Raphaella Mendes Silva de Castro Lira. Rio de Janeiro:
UFRJ/FL, 2010.
ix, 88f.
Orientador: Eduardo de Faria Coutinho
Dissertação (mestrado) – UFRJ/FL/Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 98-103.
1. Borges, Jorge Luis, 1899-1986. 2. Crítica Literária. I.
Coutinho, Eduardo de Faria. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
v
Palavras-chave: autobiografia, biografia, autor, jogo, espelho, memória.
Resumo: O gênero autobiográfico sempre esteve alojado no terreno das incertezas.
Fruto híbrido de relato pessoal e ficcional, a autobiografia é um perfil psicológico de um
determinado eu, que coloca em jogo diversos problemas, como a memória, a construção
da personalidade e mesmo a auto-análise. Outros dois gêneros relacionados à
autobiografia e também marcados por grande indefinição são a biografia, espécie de
retrato que visa iluminar, por meio da narração em terceira pessoa, a personalidade de
um indivíduo, e a autoficção, um dos gêneros que mais se destacou nos últimos anos.
Problemáticos, questionados e também motivadores de questionamentos distintos, os
três formam o poliedro teórico que servirá como base para o desenvolvimento do
presente trabalho. No espaço intermediário entre ficção, autoficção e (auto)biografia,
encontra-se a obra de Jorge Luis Borges, escritor que nunca hesitou em fundir o factual
e o imaginário em sua prosa e que, por esse mesmo motivo, deixou como legado uma
das obras mais ricas da literatura hispano-americana. Assim, nos indagamos como
abordar um texto de Borges, no qual todos os caminhos se confundem, criando um
labirinto onde a única regra é a multiplicidade. A ficção de Jorge Luis Borges suscita
diversos questionamentos acerca da relação entre autor e narrador. Como estabelecer
limites entre realidade, experiência individual, autobiografia e mera reflexão? Seriam
necessários os limites ou poderíamos considerar a obra de Jorge Luis Borges um grande
jogo com as temáticas que encontramos no cerne de toda a literatura? São essas
questões que o presente trabalho visa desenvolver.
vi
Abstract: The autobiography genre has always been difficult to classify. As a hybrid
product of personal and fictional narration, autobiography is also a psycological profile
of an author, which brings about several problems, like those related to memory, to the
construction of the self and to self-analysis. Other two genres related to autobiography
and difficult as well to classify are biography, a certain type of portrait that aims at
illuminating, through the device of a third person narration, the character of an
individual, and self-fiction, a genre that has received a lot of attention in the past few
years. These three genres, problematic though as they are, form the theorectical basis of
this study. In the space between fiction, self-fiction and autobiography, we find the work
of Jorge Luis Borges, a writer who never hesitated to merge concrete facts with the
imaginary in his prose, and who, for this very reason, has granted his readers with one
of the richest legacies in Spanish-American litterature. The question we raise in this
study is how to approach a text like that of Jorge Luis Borges, in which all possibilities
are made viable, thus creating a kind of labyrinth where the only rule is multiplicity.
Jorge Luis Borges‟fiction raises many differents questions about the relationship
between the author and the narrator. How, then, can we establish limits between
external reality, individual experience, autobiography and simple reflection? Would
these limits be really necessary or should we just consider the work of Jorge Luis
Borges a challenge to the set of themes we can find in the history of litterature? These
are some of the questions that the present study is intended to develop.
vii
Agradecimentos
O maior desafio que se colocou entre o processo de escrita desta dissertação e a pessoa
que a escreveu foi como (e por quem) começar a imensa lista de agradecimentos que
deve, obrigatoriamente, anteceder um texto que passou meses e meses sendo gerado em
meio à família, amigos, professores e, principalmente, amigos-professores.
Assim, gostaria de agradecer, primeiramente, ao meu namorado, André, meu primeiro
leitor, meu revisor atento, aquele que mais me questionou e arguiu, meses a fio,
madrugadas adentro, sem se incomodar com horários, rotinas, compromissos e que, ao
final de tudo, me ensinou o verdadeiro significado de companheirismo, amor e atenção.
Não teria conseguido se não fosse por você.
Ao meu orientador, Eduardo Coutinho, pela liberdade concedida, pelo apoio e presença
constantes, que me deram segurança para escrever cada uma das linhas que virão a
seguir.
Às minhas amigas e companheiras de todos os momentos: Ana Clara, Roberta e
Daniella. Obrigada por me encher de fôlego e entusiamo nos momentos em que eu mais
precisava e por sempre, sempre terem tido orgulho de mim. Sinceramente, não consigo
me imaginar hoje sem a amizade de vocês.
Aos meus amigos-professores, Mônica Fagundes, Luciana Salles, Katharine Alecrim,
Gabriela Ventura e Rafael Cesar, que me suportaram com amor e carinho durante meses
de ruminações teóricas e que sempre me presentearam com dicas valiosas, leituras
interessantes, pontos de vista inusitados e sem os quais talvez grande parte do conteúdo
a seguir tivesse tomado um rumo completamente diferente. Obrigada por me aturarem
no auge da dissertação, da insegurança, do desespero e também pelas inúmeras páginas
lidas durante todo esse tempo.
À minha família, sempre presente e maravilhosa, cujos inúmeros nomes não vou citar
um por um, mas que nunca deixou de ter orgulho das minhas mais tímidas conquistas.
A todos vocês, obrigada pelo apoio constante e incondicional, sem o qual também teria
esmorecido frente à tarefa que me aguardava.
viii
Dedicatória
Para minha mãe, Norma Mendes Silva, que tornou tudo isso possível sem ter deixado,
por um minuto sequer, de acreditar em mim.
ix
SUMÁRIO
1 Introdução 10
2 Aquiles, a tartaruga e o tabuleiro de xadrez: reunindo
fragmentos de Jorge Luis Borges
22
3 O labirinto, o minotauro e a biblioteca: a fantasmagoria de um
autor ausente
46
4 Através do espelho da memória: Jorge Luis Borges por Adolfo
Bioy Casares e Estela Canto
67
5 Conclusão 85
6 Referências bibliográficas 96
7 Referências cinematográficas 101
Nós vamos submeter essa evidência a um exame: que é uma palavra?
os lábios brevíssimos, articulados mecanicamente, o fluido do discurso
escoando-lhe da boca como uma fita.
— Rede aérea de sons, a mais frágil produção do homem, ela resiste mais do que a pedra e o aço. Morrem as leis os costumes os impérios,
ela resiste. Submetida a um desgaste constante, ela resiste. De manhã à
noite um só homem normal diz milhares de palavras, são precisos muitos séculos para que seu simples sentido se altere. (FERREIRA,
1985: 194)
Introdução
De acordo com o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, para o vocábulo
língua, são cogitadas as seguintes acepções: 1. Órgão muscular, alongado, móvel,
situado na cavidade bucal, e que serve para a degustação, a deglutição e a articulação
dos sons da voz. 2. Objeto semelhante à língua (1). 3. O conjunto de palavras ou
expressões, faladas ou escritas, usadas por um povo, por uma nação. De todos os
significados propostos, interessa-nos sobretudo o terceiro. Será por meio dela que o
mundo ganhará contornos mais nítidos e que as histórias poderão ser contadas. A
língua que falamos é a pele de nossos pensamentos, é o pacto de fidelidade que
assinamos com o mundo em que vivemos. Se, entretanto, podemos compactuar com
essas assertivas em relação à língua falada, o mesmo não se dá em relação à escrita:
Sabe-se que a língua é um corpo de prescrições e hábitos, comum a
todos os escritores de uma época. Isso quer dizer que a língua é como uma Natureza que passa inteiramente através da palavra do escritor,
sem no entanto, dar-lhe nenhuma forma, sem sequer alimentá-la: é
como um círculo abstrato de verdades, fora do qual somente começa a se depositar a densidade de um verbo solitário. (BARTHES, 2004: 9)
É com essa afirmação que Roland Barthes abre O grau zero da escrita e é por
meio do pórtico fornecido por ela que pretendemos erguer os pilares para a discussão
acerca da natureza do discurso do escritor, sua relação com a complexa individualidade
do autor e, sobretudo, questionar supostos pactos (auto)biográficos estabelecidos. Como
seria possível confiar em uma suposta honestidade do discurso literário, algo que, para
usar as palavras do próprio Barthes é “uma trapaça salutar”, que “nos permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem”
(BARTHES, 1996:16) ? A língua, quando instrumento do escritor, não simboliza um
engajamento ou sequer um posicionamento frente à sociedade, e sim uma posição para a
11
qual não havia alternativa. Falar uma língua, ou melhor, escrever em uma língua não é
opção, mas uma imposição geográfica.
Assim, já que não é possível escapar da “autoridade da asserção” ou do
“gregarismo da repetição” ·, tão característicos da nossa comunicação, como irá se
posicionar a literatura frente a essa relação? Por mais que para essa pergunta não seja
impossível cogitarmos uma única resposta, será por meio dela que traçaremos o
percurso a ser seguido no presente trabalho.
A figura do autor e sua relação com o texto literário irão fornecer vestígios para
que possamos ter um panorama mais apurado. Retomando mais alguns pontos nos quais
Roland Barthes se deteve em O grau zero da escrita, iremos encontrar as seguintes
afirmações:
Assim, para o escritor, a língua nada mais é do que um horizonte humano que instala ao longe certa familiaridade, toda negativa, aliás:
dizer que Camus e Queneau falam a mesma língua não é mais que
presumir, por uma operação diferencial, todas as línguas, arcaicas ou
futuristas, que eles não falam (...) A língua do escritor é bem menos um cabedal do que um limite extremo; ela é o lugar geométrico de
tudo aquilo que não poderia dizer sem perder, tal como Orfeu
voltando-se, a estável significação de sua atitude e o gesto essencial de sua sociabilidade.(BARTHES, 2004: 10)
A língua, em toda a sua horizontalidade e em seu caráter diacrônico, nada mais é
do que um limite, do que uma redução imposta pelo meio no qual se insere o escritor. É
a partir do horizonte, que Barthes denomina familiar, que a língua delimita um
determinado universo no qual o escritor poderá se movimentar. Apesar do caráter
aparentemente reducionista dessa definição, o que ela coloca em evidência é o fato de
que a literatura será o terreno em que cada escritor terá a liberdade de falar sua própria
língua. Em uma passagem de sua aula inaugural no College de France, Roland Barthes
deixa essa questão mais clara: “(...) porque o texto é o próprio aflorar da língua, e
porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela
mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é o
teatro.”(BARTHES, 1996:16). A literatura encena em seu palco, incessantemente, não
só o drama da linguagem, mas também a liberdade de mensagem da qual é a maior
portadora.
Assim, tendo como base as questões propostas por Roland Barthes, faz-se
necessário elaborar um outro questionamento que será de vital importância para o
trabalho que aqui se quer desenvolver: como lidar com a autobiografia?
12
Escrever sobre si parece ser uma antiga paixão da humanidade. De Santo
Agostinho a Rousseau, passando por figuras significativas do século XX, como Anne
Frank, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, todos escreveram sobre suas vidas.
Logo, mais do que um gênero textual, podemos afirmar que a autobiografia parece ser
intrínseca à existência do homem. Falar de si próprio, mais do que simplesmente narrar
os fatos de uma existência, parece ser a maneira encontrada pelos escritores para
reivindicarem para si a autoria de suas próprias vidas.
Philippe Lejeune, em sua obra Le pacte autobiographique, um dos indiscutíveis
pontos de partida para a análise desse gênero tão instável, afirma que a autobiografia
pode ser definida como um relato em prosa, no qual uma pessoa real analisa sua própria
vida e a gênese de sua personalidade ( LEJEUNE,1975:14) Para ele, a autobiografia é
estabelecida através de um pacto de leitura que se dá entre autor e leitor. Ao abrir o
livro, assina-se um contrato, no qual o escritor ( ou autor) concorda em dizer a verdade e
o leitor concorda em acreditar. Por mais simplista que possa parecer a solução de
Lejeune para um gênero que, por definição, já se aloja no terreno das incertezas, ela foi,
durante muito tempo, a mais bem aceita. Se observarmos a coincidência entre o
narrador-personagem e o autor, é possível admitir que a proposição de Philippe Lejeune
tem aplicabilidade teórica.
Entretanto, o caminho que se deseja seguir no presente trabalho coloca alguns
obstáculos ao que foi tratado com tanta clareza por Philippe Lejeune: a obra de Jorge
Luis Borges. Em diversos textos que serão esmiuçados aqui, Borges se coloca como um
desafiador do pacto autobiográfico. Seja por meio da coincidência entre narrador e autor
ou pelos contos do escritor, que parecem utilizar fatos oriundos de sua própria vida, a
ficção borgiana se instala em uma interessante encruzilhada de conceitos, que também
visamos analisar com maior riqueza de detalhes.
Afinal, o lugar que devemos ou não conceder à autobiografia na vida de um
autor poderá também apontar a maneira como lidamos com sua obra ficcional. Ou
ainda, ao lidar com o arcabouço textual fornecido por entrevistas e depoimentos, é
necessário que consideremos a maneira como ambos poderão constituir um
desdobramento do gênero autobiográfico. Philippe Lejeune, em outra de suas obras
sobre a questão da autobiografia, afirma que através de diversas variações, poderemos
descobrir uma espécie de leitmotiv da autobiografia, ligado, sobretudo à questão do
“vivido” e da biografia, pois, a partir do momento em que concebemos a enunciação
como repleta de múltiplos instantes, temos que aceitar também que o relato de uma vida
13
não é mais que uma repetição de formas de vida pré-existentes. ( LEJEUNE, 1980:9)
Isso quer dizer que ao narrar sua própria vida para um entrevistador ou mesmo para uma
platéia, qualquer escritor ou personalidade irá, na verdade, se valer de formas e
estruturas que já se tornaram comuns para o âmbito da biografia. Provavelmente, o
primeiro tópico será a infância, tentando remontar o primeiro contato com aquilo que o
tornou célebre, seja a escrita, a música ou as artes plásticas. É importante salientar como
irá se dar esse tipo de relato e a forma ideal de analisar sua estrutura, pois Jorge Luis
Borges não só narrou sua vida a diversos entrevistadores, como também concedeu
incontáveis depoimentos sobre os mais diversos assuntos. Dentre essas, analisaremos a
coletânea de Fernando Sorrentino, publicada em 1974, e também a obra de Borges que
mais se assemelha a uma autobiografia nos moldes clássicos, Autobiographical Essay,
ditado a Norman Thomas Di Giovanni, em 1970.
Peter Berger, em sua obra Perspectivas sociológicas, afirma que “...nossa vida é
constituída por uma determinada sequência de acontecimentos cuja soma representa
nossa biografia”. (BERGER,1989:65 ). Assim, por biografia, compreedemos o relato
sequencial de fatos que pertencem à vida de um determinado indivíduo. Por
conseguinte, escrever uma (auto)biografia seria “compilar esses acontecimentos em
ordem cronológica ou de importância”(BERGER, 1989:65). É nessa afirmação que
reside um dos principais problemas que se coloca face ao gênero (auto)biográfico: O
que é importante o suficiente para ser (auto)biografado? Peter Berger chegará a afirmar
que “ ...mesmo um registro puramente cronológico levanta questões referentes à
importância relativa de certos acontecimentos” (BERGER, 1989: 65). O senso comum
nos diz que qualquer ser humano, ao observar sua vida pregressa com o distanciamento
concedido pela maturidade, é capaz não só de afirmar como de discernir quais foram os
fatos mais marcantes de sua existência. “A consciência madura é aquela que possui, por
assim dizer, uma posição epistemologicamente privilegiada” (BERGER, 1989:66)
afirma Peter Berger. Já Jorge Luis Borges afirmará, no epílogo de O fazedor: “Um
homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço
com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de
pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a
imagem de seu rosto.”1 Se colocarmos as duas citações lado a lado, é quase possível
perceber o eco das palavras de Berger nas linhas de Borges. Ao tentar, de maneira
1 BORGES, Jorge Luis. Epílogo In: O fazedor. Trad. Rolando Roque da Silva. p.102
14
difusa, construir uma obra, um autor estaria, inevitavelmente, preso ao fato que mesmo
sua ficção irá expressar algo a respeito de sua personalidade, sua vida ou mesmo de sua
(auto) biografia. A posição epistemologicamente privilegiada da qual nos fala Peter
Berger, que nos seria dada apenas pela maturidade, aparece transfigurada no epílogo de
Borges no breve momento que antecederia a morte. Peter Berger ainda se aprofundará
mais na ideia da maturidade como um momento privilegiado para a auto-análise: “ Não
é difícil perceber que tal noção de maturidade desempenha a função de dar ao indivíduo
uma justificativa para a redução de suas expectativas”(BERGER,1989:68). Isso
equivale a afirmar que é na idade adulta que o ser humano tem a real consciência
daquilo que é realmente relevante para sua vida. Além do óbvio sentimento de desilusão
que poderá ser fruto dessa consciência, é preciso salientar também que isso mostra
como uma mesma trajetória de vida pode ter diferentes interpretações. Com isso,
retornamos ao que é considerado aqui um dos principais pilares da biografia e da
autobiografia: a possibilidade de afirmar com certeza o que é importante o suficiente
para ser narrado, uma vez que a escala de relevância poderá oscilar de acordo com a
interpretação à qual estão sujeitas todas as trajetórias de vida.
Como Henri Bergson também tentou demonstrar, a nossa própria memória é
“um ato reiterado de interpretação” (BERGER, 1989:68). A cada momento de nossas
vidas, observamos os acontecimentos passados com a ótica conferida pelo presente, o
que faz com que, a cada fase de nossas vidas, redefinamos nosso passado. Peter Berger
irá esmiuçar ainda mais essa questão, afirmando que nossa própria memória tende a
ressignificar nosso passado, encarando-o como um elemento “maleável e flexível”.
Poderíamos, portanto, afirmar que possuímos tantas vidas quantas são as interpretações
possíveis para os fatos que já ocorreram.
De que maneira, entretanto, esse raciocínio estaria relacionado com a obra de
Jorge Luis Borges, corpus do presente trabalho aqui desenvolvido? O escritor argentino,
talvez, em relação a outros escritos, tenha sido o que mais encarou sua própria vida
como uma história para a qual mais de uma interpretação era possível. Jorge Luis
Borges nunca hesitou em mesclar elementos biográficos às suas mais conhecidas
narrativas, como por exemplo, o conto “El sur”, favorito dos biógrafos, no qual o
protagonista compartilha com seu autor a mesma moléstia e o mesmo encanto pela vida
nos pampas.
Pierre Bourdieu, em seu artigo “A ilusão biográfica”, irá afirmar que: “Falar de
uma história de vida é pelo menos pressupor (...) que a vida é uma história e que (...) é
15
inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de uma existência individual concebida
como uma história e o relato dessa história.” (BOURDIEU, 1986: 183) Assim, ao tentar
relatar sua experiência de vida, qualquer ser humano estaria partindo do inevitável
pressuposto de que somos todos protagonistas de nossos próprios romances, em cuja
capa leríamos, com letras maiúsculas, nossos próprios nomes e sobrenomes. Essa
afirmação possui uma relação estreita com um dos tópicos que já foi aqui abordado
anteriormente, que diz respeito à obsessão do ser humano em falar de si. Jorge Luis
Borges compreendeu que, mais do que personagens de nossas próprias trajetórias,
somos personagens de nós mesmos e empreendeu, ao longo de toda sua existência, um
complexo jogo de construção e descontrução com sua própria imagem. Através de seus
contos, entrevistas, fragmentos e, sobretudo, por meio do relato daqueles que
conviveram com ele e o observaram, Borges se apresenta como um personagem no
caleidoscópio. Seja nas palavras que preenchem o diário pessoal de um de seus amigos
mais próximos, o também escritor Adolfo Bioy Casares, ou pelo olhar crítico e
sarcástico daquele que foi imortalizado pela crítica como seu inimigo número um, o
escritor Ernesto Sábato, Jorge Luis Borges nunca é o mesmo, apesar de podermos
identificar em todos os olhares uma certa similaridade.
Ainda no texto de Bourdieu, encontraremos a seguinte afirmação: “O sujeito e o
objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma o mesmo
interesse em aceitar o postulado da existência narrada” ( BOURDIEU, 1986:184).
Ambos, biógrafo e biografado tentariam, por meio da escrita, dar sentido e linearidade a
algo que escapa completamente à ideia de continuidade: o real. Ainda no mesmo artigo,
Pierre Bourdieu irá se valer das palavras de Allain Robbe-Grillet para demonstrar como
a ideia de uma (auto)biografia é ilusória: “ O advento do romance moderno está ligado
precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos
sem razão todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos (...)”
(BOURDIEU, 1986:185). A realidade que nos cerca é inapreensível, fora de controle e
imprevisível, o que equivale a afirmar que ter a pretensão de narrar a seqüência de
acontecimentos que constitui a vida de um determinado indivíduo significa ater-se ao
factual, ou seja, à dimensão mais rasa de nossas existências.
Há quem argumente que a dimensão factual de nossas vidas, aliada à identidade
única que o nome próprio nos lega, poderia perfazer um obstáculo às ideias de Pierre
Bourdieu. O que se deve salientar, entretanto, é que ao mesmo tempo que o nome
próprio nos diferencia e nos particulariza, também é apenas um substantivo, uma
16
categoria vazia que só fará sentido ligada ao indivíduo que o possui. Sobre esse tópico,
Pierre Bourdieu afirma que:
O nome próprio é o atestado visível da identidade de seu
portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento
da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade
socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações em
registros oficiais, curriculum vitae, cursus honorum, ficha
judicial, necrologia ou biografia, que constituem a vida na
totalidade finita, pelo veredicto dado sobre um balanço
provisório ou definitivo. “Designador rígido”, o nome próprio é
a forma por excelência da imposição arbitrária que operam os
ritos de instituição: a nomeação e a classificação introduzem
divisões nítidas, absolutas, indiferentes às particularidades
circunstanciais e aos acidentes individuais, no fluxo das
realidades biológicas e sociais. Eis por que o nome próprio não
pode descrever propriedades nem veicular nenhuma informação
sobre aquilo que nomeia: como o que ele designa não é senão
uma rapsódia heterogênea e disparatada de propriedades
biológicas e sociais em constante mutação, todas as descrições
seriam válidas somente nos limites de um estágio ou de um
espaço. (BOURDIEU, 1986:187)
O nome próprio só daria conta daquilo que nos é imposto pela sociedade.
Sozinho, não passaria de algo que foi, temporariamente, a maneira usada para designar a
unidade fracionada, em mutação e múltipla que é a identidade. Acreditar, assim, que,
por exemplo, uma possível coincidência nos textos borgianos, entre o nome de um
personagem e o de seu autor significaria algo além de um jogo intencional com uma
premissa autobiográfica é mera ingenuidade. O nome próprio não passa de um
substantivo que evoca apenas aquilo que a sociedade necessita para preencher seus
formulários e certidões.
Logo, é possível afirmar que o nome próprio funciona mais como um acúmulo
de cristalizações semânticas oriundo do meio social no qual estamos inseridos do que
como uma categoria realmente individualizante ou taxonômica. Ter um nome não quer
dizer possuir uma identidade, mas apenas estar enquadrado nas categorias estipuladas
pela sociedade. Assim, quando Jorge Luis Borges escreve, por exemplo, em “Borges e
eu”, já estar cego e caminhar por Buenos Aires, será que poderíamos aceitar essas linhas
como afirmações do próprio indivíduo Jorge Luis Borges? A resposta para essa
pergunta não importa tanto como o fato de que Borges sempre foi um escritor
consciente do poder que havia em cada palavra, sobretudo nos nomes próprios. Apesar
17
da tentativa de análise mais aprofundada dessa questão em um dos capítulos por vir,
faz-se necessário esmiuçar aqui uma linha de pensamento que foi explorada pelo
próprio Jorge Luis Borges em um de seus livros ditos “da juventude”, El idioma de los
argentinos:
Esta vocación de vivir que nos impone las elecciones ominosas
de la pasión, de la amistad, de la enemistad, nos impone otra de
menos responsable importancia: la de resolver este mundo.
Nadie puede carecer de esa inclinación, expláyela o no en libro.
Este prólogo es la relación de mis atenciones de ese orden,
durante el veintesiete. Su aire enciclopédico y montonero –
esperanza Argentina, borradores de afición filológica, historia
literaria, alucinaciones o lucideces finales de la metafisica,
agrados del recuerdo, retórica – es más aparente que real. Tres
direcciones cardinales lo rigen. La primera es un recelo, el
lenguaje; la segunda es un misterio y una esperanza, la
eternidad; la tercera es esta gustación, Buenos Aires. Las dos
últimas confluyen en la declaración intitulada Sentirse en
muerte. La primera quiere vigilar en todo decir.2 (BORGES,
2008:10)
Antes de analisar de forma mais detalhada as afirmações de Borges no prólogo
de El idioma de los argentinos, é importante salientar que se trata de uma obra que foi
excluída da compilação das obras completas do autor, a pedido dele próprio. Por mais
que possa parecer uma contradição usar um livro que foi considerado pelo autor como
sendo uma produção da juventude, quando a maturidade ainda parecia um horizonte
distante, parece ser necessário mapear o campo no qual irão se mover as ideias e
considerações contidas na obra. Borges afirma no prólogo de El idioma de los
argentinos que, ainda que possa ser considerada de menor importância, possuímos a
inextrincável tarefa de tentar resolver esse mundo. É uma inevitável inclinação que
todos possuímos. Mais ainda, Jorge Luis Borges afirma que o livro é regido por três
linhas de pensamento: a linguagem,que seria na realidade um receio e uma incerteza; a
segunda, a eternidade, tida como uma esperança e a terceira, a experimentação de
Buenos Aires. A primeira, entretanto, quer vigiar todo o dizer, o que equivale a dizer
2 Esta vocação de viver nos impõe difíceis escolhas de paixão, de amizade, de inimizade e nos impõe
outra de importância menos responsável: a de resolver este mundo. Ninguém pode prescindir dessa inclinação, explique-a ou não o livro. Este prólogo é a relação de minha atenções dessa ordem, durante
vinte e sete. Seu ar enciclopédico e guerrilheiro – esperança Argentina, rascunhos de filiação filológica,
história literária, alucinações ou lucidez final da metafísica, agrados da memória, retórica – é mais
aparente que real. Três direções cardinais o regem. A primeira é um receio, a linguagem; a segunda é um
mistério e uma esperança, a eternidade; a terceira é esse sabor, Buenos Aires. As duas últimas confluem
na declaração intitulada sentir-se em morte. A primeira quer vigiar todo o dizer. ( Trad. da autora).
18
que a linguagem é o verdadeiro obstáculo da escrita, ou, para explorar um raciocíno de
Roland Barthes anteriormente citado, a língua é muito mais uma condição geográfica do
que um engajamento social. Talvez por isso Jorge Luis Borges afirme com tanta
melancolia que é ela que vigia o dizer, ou melhor, os dizeres. Cabe ao escritor a (quase)
impossível tarefa de conceder a essa língua um lugar onde não imperem os estereótipos
e onde cada palavra possa adquirir sua espessura e seu significado primordial.
Assim, quando Pierre Bourdieu afirma que um nome não passa de uma categoria
vazia não está só demonstrando como cada palavra possui o significado que a sociedade
atribui a ela, mas também que cada nome evoca um determinado indivíduo apenas para
fins sociais. Se observarmos as afirmações de Jorge Luis Borges no prólogo de El
idioma de los argentinos tendo como arcabouço teórico as considerações de Pierre
Bourdieu, é possível afirmar que contar o relato de uma vida é apenas uma obsessão por
fazer sentido, ou, para usar as palavras de Borges, resolver o mundo. Relatar uma vida é
compactuar com os moldes impostos pela sociedade, é, nas palavras de Lejeune, utilizar
fórmulas de vida pré-existentes, é aceitar que para construir uma (auto)biografia, a
linguagem sempre será o terreno das incertezas, do jogo com a verdade, da vigília.
Como podemos confiar no retrato supostamente fiel traçado pela biografia ou
pela autobiografia, se não só a linguagem que permeia nossas relações sociais é uma
constante fonte de desconfianças, como também a própria ideia da trajetória de vida
como algo linear pode ser demolida em apenas um instante? De acordo com Pierre
Bourdieu, a roupagem pela qual conhecemos a história da vida de um determinado
indivíduo não passa de um constructo social (BOURDIEU, 1986:189) , por meio do
qual entenderíamos a vida como uma espécie de sucessão longitudinal de posições que,
por acaso, são protagonizadas pelo mesmo sujeito, e que estão alojadas em um espaço
que nada mais é do que um devir, sujeito a todo o momento a incessantes
transformações.
A biografia seria quase como uma descrição dos espaços e deslocamentos que
um determinado sujeito teve, ao longo de sua existência, em um determinado espaço
social. É com base nesse pensamento que Pierre Bourdieu afirma que, quando tentamos
observar a vida como uma linha única e indivisível de acontecimentos sucessivos, que
acabam por não possuir outra ligação entre si a não ser o fato de que foram vividos pelo
mesmo sujeito, não conseguimos compreender como de fato a realidade é fragmentada e
descontínua.
19
Na verdade, a questão que se coloca não está mais restrita ao domínio da
(auto)biografia, mas toca toda e qualquer obra literária: Afinal, como estabelecer limites
entre realidade, experiência individual, escrito (auto)biográfico e o que é apenas mera
ficção? Ainda em El idioma de los argentinos, Jorge Luis Borges esmiuçará uma
questão que será de vital importância na tentativa de elaborarmos uma resposta para a
pergunta que se colocou anteriormente. “Quedamos en que lo determinante de la
palabra es su función de unidad representativa y en lo tornadizo y contigente de esa
función” (BORGES, 2008a:21) afirma Jorge Luis Borges. Por palavra, entendemos
unidade representativa lingüística, o que absolutamente exclui o fato de que cada
vocábulo que perfaz o complexo inventário do qual somos usuários passa por um
complicado processo de cristalização semântica. Significados vão sendo lentamente
modificados, imagens pouco a pouco se tornam parte do imaginário de determinadas
palavras. É também através desse processo que são construídas as imagens de cada
indivíduo e, por que não, também dos escritores. Borges ainda se aprofundará mais na
ideia de cristalização que permeia nosso cotidiano linguístico e irá propor que não
existem categorias gramaticais e sim categorias representativas, sejam elas palavras ou
grupos de palavras, preposições, verbos, entre outros:
El escritor dice de unos ojos de uma niña: Ojos como...y juzga
necesario alegar un término especial de comparación. Olvida que la
poesía está realizada por esse como, olvida que el solo acto de comparar (es decir, de suponer difíciles virtudes que sólo por
mediación se dejan pensar) ya es lo poético. Escribe, resignado, ojos
como soles. La linguística desordena esa frase en categorías: semantemas, palabras de representación (ojos, soles) y morfemas,
meros engrenajes de la sintaxis. (...) Cualquiera sabe intuitivamente
que eso está mal.3 (BORGES, 2008a:24)
Para Borges, a simples ideia da comparação já bastaria para conferir beleza ao
ato poético. A análise, ou melhor, a gramática nos impossibilitaria de ver a verdadeira
face poética da comparação e de diversos outros atos que, para o âmbito linguístico não
seriam mais do que categorias. Assim, poderemos ou não afirmar que, uma vez que a
gramática, os usos e a linguística nos impedem o acesso ao real significado das palavras,
também nos seria cerceado o conhecimento da real mensagem da qual as palavras são
3 O escritor diz dos olhos de uma menina: Olhos como...e julga necessário alegar um término especial de
comparação. Esquece que a poesia se realiza nesse como, esquece que o simples ato de comparar (isto é,
supor virtudes difíceis que apenas por mediação se deixam pensar) já é poético. Escreve, resignado, olhos
como sóis. A linguística desordena essa frase em categorias: semantemas, palavras de representação
(olhos, sóis) e morfemas, meras engrenagens da sintaxe. Qualquer um sabe intuitivamente que isso não
funciona.(Trad. da autora)
20
portadoras. Afinal, mais do que meros instrumentos através dos quais cada escritor irá
construir sua ficção, elas também são as engrenagens que articulam nossos raciocínios,
e que narrariam a descontínua história na qual somos todos protagonistas: a vida.
Como, portanto, confiar no poder que têm as palavras, ou melhor, como lidar
com algo que se aloja em um terreno cheio de incertezas como a biografia? A resposta
para esses questionamentos, mais do que um motivador do presente trabalho, é apenas
um vácuo no qual irão se alojar as infinitas possibilidades do texto borgiano.
Caleidoscópico, demiurgo de seu próprio labirinto, Jorge Luis Borges compreendeu, em
toda sua múltipla literatura, que mais valem as perguntas do que as respostas. Assim,
quando Borges afirma que somos incapazes de desvelar o que existe de poético e belo
em uma simples comparação, está, de fato, afirmando e corroborando as afirmações
teóricas que foram anteriormente esmiuçadas aqui. O sujeito, os significados e, por
conseguinte, toda e qualquer face da nossa realidade que está, inexoravelmente atada às
palavras, está também sujeita ao fato de que cada interpretação e cada leitura será
indiscutivelmente única. Todas as versões possíveis e imagináveis da vida de um
mesmo personagem, como por exemplo, o Tristram Shandy de Lawrence Sterne, são
permeadas de elementos que são praticamente intangíveis e, por vezes,
incompreensíveis. A vida de Tristram Shandy não se reduz aos fatos ou mesmo ao
contexto aos quais estão ligados estes mesmos fatos, mas à incapacidade que seu
próprio narrador tem de contar, com o que seria considerado um mínimo de
objetividade, os marcos principais daquilo que a civilização ocidental institucionalizou
como sendo os mais importantes na vida de uma pessoa.
Da mesma maneira como Lawrence Sterne anteriormente jogou com o estatuto
da autobiografia, Jorge Luis Borges também jogará, não só com o estatuto da
autobiografia, mas com o da literatura de um modo geral.
Dessa maneira, no primeiro capítulo será traçado um perfil da personalidade
literária que Jorge Luis Borges passou toda sua vida construindo. Entrevistas,
fragmentos de contos, depoimentos de pessoas que conviveram com o autor irão se
entrecruzar na tentativa de mapear como o escritor construiu sua figura pública. Afinal,
como lidar com um autor cuja obra consiste, em sua maioria, de páginas breves, contos
e narrativas curtas? Não seria a união de todas essas possibilidades o Borges que
emergeria do caleidoscópio?
Já no segundo capítulo serão abordados apenas os contos de autor, sobretudo
aqueles que fornecem mais escopo para uma análise supostamente autobiográfica. São
21
eles: “El otro”, “La memoria de Shakespeare”, “La casa de Astérion”, “Funes, el
memorioso”, e “El sur”.
No terceiro e último capítulo, serão confrontados dois dos Borges mais célebres:
o de Adolfo Bioy Casares, delineado a partir de algumas anotações oriundas do diário
do escritor, publicado em 2006, e o de Estela Canto, escritora argentina com quem Jorge
Luis Borges teve um breve relacionamento, cujos meandros são expostos em Borges à
contraluz.
Assim, tendo como base os textos supracitados, o presente trabalho terá como
principal objetivo questionar os limites de uma leitura autobiográfica da obra de Jorge
Luis Borges. É importante ressaltar, também, que os questionamentos suscitados pelas
possibilidades contidas na obra de Jorge Luis Borges servirão, sobretudo, para que
sejam propostas leituras que contemplem o viés lúdico da literatura borgiana.
Capítulo 1: Aquiles, a tartaruga e o tabuleiro de xadrez: reunindo fragmentos de
Jorge Luis Borges
La vie des écrivains s’écrit, aussi, dans
leur dos. ( Bernard-Henri Lévy)
Como diz a citação de Bernard-Henri Lévy, a vida dos escritores está escrita,
também, pelas suas costas. Ela é não somente alimentada pela ausência, mas também
pelo fato de que, para cada figura pública presente na mídia, existem, pelo menos, duas
histórias: a do próprio autor e aquela que se escreve independentemente de sua vontade,
pelos fragmentos e depoimentos daqueles que com ele conviveram ou que apenas o
observaram durante sua vida. Com Jorge Luis Borges, isso não se deu de forma
diferente.
Em um trecho de Sobre heróis e tumbas, Martín, o jovem protagonista, e seu
interlocutor Bruno encontram Jorge Luis Borges em uma rua de Buenos Aires:
Caminhavam pela rua Peru; apertando-lhe um braço, Bruno lhe
indicou um homem que caminhava diante deles, apoiado numa bengala:
─ Borges.
Quando se aproximaram, Bruno o cumprimentou. Martín se deparou
com uma mão pequena, quase sem ossos nem energia.Seu rosto parecia ter sido desenhado e logo apagado em parte por uma borracha.
Tartamudeava.
─ É amigo de Alejandra Vidal Olmos. ─ Caramba, caramba...Alejandra...pois muito bem.
Levantava os olhos, o observava com uns olhos celestes e aquosos,
com uma cordialidade abstrata e sem destinatário preciso, ausente. Bruno lhe perguntou o que estava escrevendo:
─ Bom, caramba...- tartamudeou, sorrindo com um ar entre culpado e
malicioso, com esse ar que saem (sic) tomar os camponeses
argentinos, ironicamente modesto, mescla de secreta arrogância e de aparente apoucamento, cada vez que se lhes pondera um pingo de sua
habilidade para traçar tentos. ─ Caramba...bem...tratando de escrever
alguma página que seja algo mais que um rascunho, eh, eh? E tartamudeava fazendo tiques com o rosto. (SÁBATO, 1980: 185)
Os dois personagens seguem seu caminho, deixando Borges para trás, entretanto,
o foco da conversa havia passado agora para os rumos da literatura argentina:
─ Dizem que é pouco argentino (Borges) – comentou Martín.
─ Que mais poderia ser senão argentino? É um típico produto nacional. Até seu europeísmo é nacional. Um europeu não é
europeísta: é europeu, simplesmente. (SÁBATO, 1980: 186)
23
Por mais caricata que possa parecer a figura de Jorge Luis Borges pela ótica de
Ernésto Sábato, é, no entanto, importantíssimo ressaltar sua presença, talvez muito mais
do que a forma como é apresentado como personagem. O Borges de Ernesto Sábato
serve como um interessante mote para analisarmos a maneira como a figura de Jorge
Luis Borges será mostrada, não só por ele próprio, mas também por inúmeros de seu
contemporâneos, e mesmo por aqueles que sequer tiveram a oportunidade de conhecê-lo
e que, mesmo assim, parecem ter uma visão pessoal do que seria a personalidade do
talvez mais celebrado escritor argentino do século XX.
Jorge Luis Borges foi, de fato, um dos escritores latino-americanos de maior
importância no século passado. Depois dele, tornou-se impossível escrever sem lidar
com seu inextrincável legado, mesmo que, como no caso anteriormente citado de
Ernesto Sábato, seja para colocar em evidência o que havia em Borges de negativo.
A cena do romance de Sábato retomada aqui quer, todavia, funcionar como uma
porta de entrada. Apagado, cordialmente ausente, disperso, balbuciante. É dessa forma
que Ernesto Sábato nos apresenta a figura de Jorge Luis Borges. Seu preciosismo é
caricatural ao máximo, da mesma forma que sua conhecida “busca” pela perfeição
estética do texto literário. O Borges de Sábato não pertence a este século. Mesmo para
seus conterrâneos, Borges, muitas vezes, parecia o mais estrangeiro dos estrangeiros.
Sua “busca pela página perfeita” aparece sarcasticamente transfigurada na resposta vaga
e pouco elucidativa “algo mais que um rascunho”. Seu saber livresco e sua meta-
literatura soavam estranhos, deslocados, ou melhor, descolados da realidade argentina.
O personagem Bruno ainda arremata que, de alguma forma, seu estrangeirismo
pertencia àquela pátria. Era esperado, de certa maneira, que não transparecessem em
seus texto fortes marcas do que poderia ser considerado não como um característico
nacionalismo argentino, mas uma remissão a uma espécie de identidade que seria
comum não apenas a todos os latino-americanos, mas a todos os cidadãos do mundo.
Emir Rodríguez Monegal, em sua obra Borges por Borges, irá delimitar qual era
o perfil do escritor que prevalecia não só na Argentina, mas em toda a América Latina:
Durante muito tempo se acreditou que um escritor latino-americano
devia ser mais ou menos um mestiço, ter pretensões de aristocratismo intelectual, falar inglês ou francês com perfeição, e ostentar uma
cultura somente livresca. Devia escrever desde Paris ou de Madrid
sobre seu país natal, sobre os pobres e explorados indígenas (que havia conhecido só nas férias), textos impregnados de cor local: o
pampa, a selva virgem, a cordilheira, eram seus habitats literários,
mesmo que de fato na América só vivessem em Buenos Aires ou
24
Caracas ou em Bogotá. Essa imagem, cunhada pelos mestres do
modernismo a partir de Darío ou de Enrique Larreta, perdurou
demasiado tempo na crítica européia e latino-americana mais rotineira.
( RODRIGUEZ MONEGAL, 1987: 13)
Jorge Luis Borges nunca se enquadrou nesse perfil. Grande parte de sua obra
recusa o regionalismo latino-americano que foi imortalizado por Astúrias em O senhor
presidente. O universo da literatura borgiana irá desfrutar dos mesmos limites
inventivos dos quais parecia desfrutar seu autor. Nas palavras de Italo Calvino:
O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças
ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar
sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos,
dos movimentos sintéticos em seus adjetivos sempre inesperados e
surpreendentes. Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado
e ao mesmo tempo uma literatura que é a extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar uma terminologia que
será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios podem ser
encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido a obra de um hipotético Herbert Quain. (CALVINO, 2009:63)
Sob o abrigo das páginas de cada conto, de cada poesia, o leitor irá se deparar
com um universo plural, no qual tudo parece, curiosamente, olhar-se no espelho. Incluse
seu próprio autor, demiurgo de uma biblioteca infinita e labiríntica. Ao longo de sua
existência, Jorge Luis Borges parece ter se dedicado à construção de um outro
personagem, Jorge Luis Borges. Emir Rodriguez Monegal chega a afirmar que o
indivíduo Borges perde seu lugar para a máscara, para a persona literária Borges.
Monegal diz ainda que o próprio Borges têm consciência do jogo, do mascaramento, e
que admite esse conhecimento em uma página de El hacedor, denominada “Borges y
yo”. Essa página, diz Monegal, marcará a obra de Borges em termos autobiográficos.
Porém, a pergunta que emerge dessa afirmação se torna muito mais contundente quanto
pensamos naquilo que já havia sido citado anteriormente pelas palavras de Italo
Calvino. A literatura borgiana baseia-se, sobretudo, nas noções de jogo, de potencial, de
desconstrução e reconstrução. Logo, como afirmar com precisão que “Borges y yo
“pode ser considerado definitivo em termo de duplicidade autobiográfica?
É notória a tendência que todo ser humano tem a unir a figura do autor e sua
obra como uma unidade indivisível. Também é notória a forma como o texto de Borges
acaba suscitando esse tipo de visão, afinal, que tipos de limites podemos estabelecer
entre a voz que narra e a pessoa do autor? Em que ponto começa a realidade, ou mesmo,
25
em que ponto termina a experiência individual, ou seria mesmo possível afirmar que se
trata de uma convergência autobiográfia de diversas reminiscências pessoais?
“Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para
mirar el arco de un zaguán y la puerta cancél” (BORGES,2009,v.II:221). O tom
confessional da escrita sugere um tipo de verossimilhança ao relato, que acaba
desembocando em uma fatal aproximação autobiográfica. Passa-se a descrever o
comportamento e as atitudes de um Borges que, “ao tramar sua literatura”, justifica a
existência desse narrador. Assim, caraterizar essa voz que se enuncia em primeira
pessoa como um possível desdobramento de Jorge Luis Borges é ignorar todas as
possiblidades labirínticas contidas ao longo de sua obra.
A proposta de dissociação entre autor e narrador, entretanto, “não impede que
ele tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras,
trazendo nelas seu gênio ou sua desordem” (FOUCAULT, 2006: 28) como afirma
Michel Foucault. A leitura que se quer estabelecer aqui pretende que “Borges y yo”,
muito mais do que um momento reflexivo do próprio autor acerca da sua celebridade,
constitua um jogo verdadeiro com o pacto autobiográfico. De acordo com Philippe
Lejeune, o gênero autobiográfico é um relato retrospectivo em prosa que uma pessoa
real faz de sua própria existência, quando ela enfatiza sua vida individual, em particular
a história de sua personalidade .4
No nicho pertencente a esse gênero, encontraríamos o pacto autobiográfico, que
se define muito mais como um pacto de leitura do que por um contrato que a própria
obra traria embutido em sua constituição. O que Lejeune afirma é que, quando abrimos
um determinado livro que se apresenta como uma suposta história verídica, estamos na
verdade assumindo que tudo que nos será apresentado será oriundo do mundo dito real.
Logo, observar a obra de Borges à luz da definição de Lejeune possibilita que
sejam levantados diversos questionamentos acerca da voz narrativa de diversos de seus
contos, em especial “Borges y yo”. O que irá existir, na verdade, será uma obra que se
sustenta na negação de seu autor, sem a necessidade do apelo biográfico raso e sem
profundidade. Podemos verificar o jogo com esta abordagem tradicional no texto de
Borges a partir do momento em que o narrador afirma: “Yo he de quedar en Borges, no
4 LEJEUNE, Phillip. Le pacte autobiografique, 1975, p.14 "Récit rétrospectif em prose qu‟une
personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu‟elle met em accent sur sa vie individuelle, en particulier
sur l‟histoire de sa personnalité."
26
en mí ( si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos
otros (...)” (BORGES, 2009,v.II: 221)5. Esse parágrafo também caracteriza a própria
natureza do texto, que longe de constituir uma verdade única, se constrói como um
tecido de referências como um território onde as leituras se fundem. Um texto nada
mais é que “absorção e transformação de um outro texto” (DELEUZE &
GUATTARI,1992:27) ou melhor, de diversos outros textos.
O jogo, entretanto, não termina nessa conclusão de “Borges y yo”. No epílogo da
obra no qual está contido esse conto, encontra-se a seguinte citação:
Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo.
Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de pessoas.
Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto
de linhas traça a imagem de seu rosto. (BORGES, 1985:102)
Seria esse parágrafo a derradeira aceitação de Borges ao conteúdo aparentemente
autobiográfico de sua obra? Com base nessa afirmação, é mesmo possível afirmar que
“Borges y yo”, apesar de digressivo, simularia uma confissão de cunho realmente
pessoal. Alguns indícios podem nos guiar para uma análise ainda mais detalhada deste
aspecto, como por exemplo a presença de um personagem homônimo ao autor, além da
já anteriormente citada fusão entre narrador e autor, personificada pelo “eu”que narra o
texto em primeira pessoa. Esse tipo de construção é o verdadeiro cerne do gênero
autobiográfico, pois é na autobiografia que sujeito e objeto se fundem em um único e
indissociável poliedro.
O escritor, entidade tão celebrada pela cultura ocidental, chega a ponto de
reivindicar para si não só a autoria de diversas obras, mas a própria autoria de sua
existência. O escritor chega à última instância de criar a si mesmo enquanto
personagem. Assim, pode-se dizer que Borges joga e rompe com o pacto
autobiográfico, uma vez que mescla elementos referenciais com a própria construção
labiríntica da voz autoral de seu texto. Os caminhos de Buenos Aires aparecem
fragmentados e repletos de reminiscências pessoais, e colocados lado a lado com as
questões suscitadas pela autonomia da linguagem literária.
O Borges de “Borges y yo”, híbrido de personagem e autor, recria a si mesmo e
se observa, ou, para retomar as palavras anteriormente citadas de Italo Calvino, eleva
sua literatura ao quadrado, ao mesmo tempo que extrai sua raiz quadrada, construindo
5 “Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém) porém me reconheço menos em
seus livros do que em muitos outros...”
27
assim o texto como uma gama infinita de leituras potenciais. É importante ressaltar
também que a escrita breve que é conto constitui, por definição, o espaço das
bifurcações, das incompletudes, o espaço no qual “em última análise, se move nesse
plano onde a vida e expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, (...), e o
resultado dessa batalha é o próprio conto, (...) uma fugacidade numa permanência”
(CORTÁZAR, 2004)
Essa discussão também dá margem a uma segunda interpretação: seria através
da reconstrução do percurso de sua vida que um indivíduo encontraria as respostas para
as perguntas que o assolaram por toda a sua existência. No caso do texto de Borges,
vemos que o narrador, de forma análoga ao Borges real, já beira a cegueira (...y me
demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y lá puerta cancél..)
(BORGES, 2009, vII: 221)6 e também se questiona a respeito do papel assumido pelo
escritor em função de sua projeção no meio acadêmico: “...de Borges tengo noticias por
el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico”7.
O narrador chega a acusar esse outro Borges de vaidade e de converter seus atributos
em atributos de um ator. O que se vê nesse ponto é como o autor se converte em ator,
fazendo uma alusão clara ao fato de que a imagem construída por um escritor não
corresponde verdadeiramente ao indivíduo que carrega seu nome. É também importante
salientar a carga semântica que carrega a palavra ator, ou seja, aquele que interpreta,
que finge, que joga com uma natureza de personagem. Retomamos, assim, um tópico
que Monegal desenvolve com detalhes, que é a questão do mascaramento borgiano.
Para o autor, Jorge Luis Borges passou toda a sua vida trabalhando o falso, ou melhor: “
a mistificação erudita, o jogo de falsas atribuições que são verdadeiras armadilhas para
o leitor e (sobretudo) para os críticos, a produção de textos minuciosamente apócrifos” (
RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:20)
Em um prólogo para a segunda edição de Evaristo Carriego, Borges escreveu:
Eu acreditei, durante anos, ter me criado num subúrbio de Buenos
Aires, um subúrbio de ruas arriscadas e de ocasos visíveis. O certo é
que me criei num jardim, atrás duma grade com lanças, e numa
biblioteca de ilimitados livros ingleses. Palermo da faca e da guitarra andava (me garantem) pelas esquinas, mas os que povoaram minhas
manhãs e deram agrádavel horror a minhas noites foram o bucaneiro
cego de Stevenson, agonizando sob as patas dos cavalos, e o traidor
6 “ me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e a porta envidraçada” 7 “de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário
biográfico”
28
que abandonou seu amigo na lua e o viajante do tempo, que trouxe do
futuro uma flor murcha, e o gênio encarcerado durante séculos no
cântaro salomônico e o profeta velado do Jorasán, que se ocultava
atrás das pedras e da seda que ocultava a lepra. ( apud. RODRIGUEZ MONEGAL, 1987: 21)
Esse fragmento, mais do que elucidar as referências que permeiam a obra de
Jorge Luis Borges, evidenciam um outro aspecto importante: como Borges se converteu
em seu próprio personagem. Talvez seja possível afirmar que, mesmo em cada conto
que permite uma aproximação autobiográfica, como por exemplo “Borges y yo”, o
verdadeiro processo de construção da persona Jorge Luis Borges tenha se dado através
de suas entrevistas. A cada depoimento dado sobre sua vida, como o que foi recuperado
acima, ou mesmo sobre sua literatura, Borges parecia cuidar para que seu personagem
ganhasse uma aura cada vez mais espessa e mítica.
O exemplo mais clássico e arquetípico desse processo são, sem sombra de
dúvida, as entrevistas concedidas a Fernando Sorrentino durante o ano de 1972. Com o
título de Siete conversaciones, a obra é marcante não só devido ao fato de compilar as
opiniões e depoimento de Borges sobre sua própria obra, sobre a cidade de Buenos
Aires e mesmo sobre sua infância, e sim porque, já no prólogo, de autoria do próprio
Borges, vemos claramente a relação que existe entre o autor, sua obra e seus leitores:
Paradójicamente, los diálogos de um escritor y de um periodista se parecen menos a um interrogatorio que a una especie de
instrospección. (...) Fernando Sorrentino conoce mi obra – llamémola
así – mucho mejor que yo; ello se debe al hecho evidente de que yo la
he escrito sola una vez y él la ha leído muchas, lo cual la hace menos mía que suya. (...) Fernando Sorrentino es, en suma, uno de mis
inventores más generosos. (SORRENTINO, 2001:7)
Dentre todas as observações que podemos fazer acerca deste fragmento, a mais
curiosa talvez seja a respeito da escolha lexical de Jorge Luis Borges para se referir a
Fernando Sorrentino. O escritor argentino usa a palavra “inventor” que, em espanhol,
possui pelo menos um significado semelhante ao do português. Inventor pode ser tanto
“inventor”, como “autor”, ou mesmo “descobridor”. Logo, somos levados a questionar
o emprego de tal palavra, pois conhecendo a obra de Jorge Luis Borges, é possível
afirmar que o escritor jamais empregaria uma palavra ao acaso. Todas as escolhas que
perfazem seus textos e suas poesias são cuidadosamente selecionadas e seus respectivos
empregos sempre parecem ligados ao universo compreendido por sua ficção.
29
O que quereria Jorge Luis Borges expressar ao chamar Fernando Sorrentino de
“um de seus inventores mais generosos”? Podemos pensar que o escritor argentino
compactuando com a ideia de que cada leitor cria para si uma face do leitor que pode ou
não corresponder à realidade. É provavél também que possamos encontrar as respostas
para esses questionamentos na própria obra de Borges. Na continuidade de Siete
conversaciones, Jorge Luis Borges irá, de certa forma, adensar ainda mais a ideia que se
encontrava latente na afirmação que havia feito no prólogo, a respeito de Fernando
Sorrentino. Quando perguntado pelo entrevistador sobre quando e onde havia aprendido
a ler, Borges responde: “Yo no recuerdo ninguna época en que yo no hubiera sabido
leer, lo cual quiere decir que aprendí muy temprano”. Jorge Luis Borges parece definir
toda a sua existência com base no ato da leitura. Podemos mesmo inferir, com base no
universo de sua obra, que essa atividade se sobrepunha ao ato da escrita.
Sobre a atividade da leitura e o papel do leitor, faz-se necessário recorrer a um
arcabouço teórico mínimo, para que seja possível compreender a real natureza da
proposta de Borges, do “leitor como inventor”. De acordo com Antoine Compagnon,
em sua obra O demônio da teoria, o leitor como uma parcela ativa da criação literária
nem sempre foi um caminho viável para a crítica. Compagnon cita ainda Stepháne
Mallarmé, que em seu texto “Quant au livre”, afirma que: “Impersonificado, o volume,
na medida em que se se separa dele como autor, não pede a abordagem do leitor. Tal,
saiba entre os acessórios humanos, ele se realiza sozinho: fato, sendo”
(COMPAGNON,2006:140). Compagnon arremata a citação de Mallarmé explicando
um pouco mais acerca da natureza do livro e da obra literária: “O livro, a obra, cercados
por um ritual místico, existem por si mesmos, desgarrados ao mesmo tempo de seu
autor e de seu leitor, em sua pureza de objetos autônomos, necessários, essenciais.”
(COMPAGNON,2006: 140)
De que maneira poderíamos, entretanto, interpretar as afirmações de Jorge Luis
Borges à luz de uma concepção tão arraigada? A resposta parece ser fornecida pelo
próprio Antoine Compagnon, em um trecho no qual são analisadas as considerações de
Marcel Proust sobre a leitura: “o leitor é livre, maior, independente: seu objetivo é
menos compreender o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele
não pode compreender um livro se não se compreende ele próprio graças a esse livro”.
(COMPAGNON,2006:144) Logo, é possível afirmar que Borges, quando diz que suas
obras pertencem mais ao entrevistador do que a si próprio, quer dizer que a criação se
liberta das mãos do criador uma vez que é lançada no mundo. Todos os textos
30
pertencem mais àqueles que os lêem e que continuam lendo do que àqueles que os
escreveram. A pergunta que parece emergir do confrontamento entre as ideias contidas
nas afirmações de Borges e as propostas lançadas por Antoine Compagnon é: a quem
pertence o Jorge Luis Borges apresentado nas páginas de Siete conversaciones? A nós,
os leitores, ao entrevistador, um de seus dedicados leitores, ou ao próprio Borges,
sempre leitor de si mesmo?
A resposta para esses questionamentos está contida nas próprias páginas da
coletânea elaborada por Fernando Sorrentino. Jorge Luis Borges parece preocupado em
afirmar que o ato da leitura tira a propriedade da obra das mãos de seu autor, mas o que
vemos condensado ao longo das sete entrevistas é um Borges que relê a si mesmo e que
se reelabora com o cuidado de quem escreve um novo livro. Ao contar sua história
pessoal e falar de sua obra, Borges parece não hesitar em transformar a si mesmo em
mais um personagem. Os feitos, sobretudo familiares, relatados a Sorrentino ganham
uma atmosfera literária, em especial porque será através dessas entrevistas que Borges
esclarecerá de que maneira sua vida e sua ficção se entrelaçam:
F.S.: Usted, en El Aleph, tiene um relato que trata de una inglesa que había vivido entre los indios.
J.L.B. : Sí, es verdad: eso me contó mi abuela. No he agregado nada
allí. Cuando empecé a escribir, creí, sin duda bajo el influjo de tantos
novelistas del siglo XIX, que yo tenía que documentarme mucho, y, en cambío, ahora me parece que cuanto menos intervenga en lo que
escribo, mejor. Es decir, si a mí me han contado un cuento, y si esse
cuento me ha impresionado, mejor es contarlo tal como lo oí, y no buscar circunstancias en libros. (SORRENTINO, 2001: 22)
Borges afirma que o conto “Historia del guerrero y de la cautiva” foi escrito
exatamente como havia lhe contado a avó inglesa. O escritor ainda defende que a
intromissão ao escrever sobre algo que muito nos impressionou deve ser a menor
possível. No entanto, ao observarmos o conto a que Jorge Luis Borges faz referência, é
possível constatarmos a interferência do autor. Inicialmente, antes de contar a narrativa
da inglesa que havia vivido entre os índios, Borges cita e constrói uma complicada
analogia entre a narrativa por vir e um livro de Benedetto Croce, historiador, escritor,
filósofo e político italiano:
En la página 278 del libro La poesía ( Bari, 1942), Croce, abreviando um texto latino del historiador Pablo el Diácono, narra la suerta y cita
el epitafio de Drocfult; estos me commovieron singularmente, luego
entendí por qué.
Fue Drocfult un guerrero lombardo que en el asedio de Ravena abandonó a los suyos defendiendo la ciudad que antes habia atacado.
31
Los raveneses le dieron sepultura en el templo y compusieron un
epitafio en el que manisfestaron su gratitud (“contempsit caros, dum
nos amat ille, parentes”) y el peculiar contraste que se advertía entre
la figura atroz de aquel bárbaro y su simplicidad y bondad (...) 8(
BORGES, 2009,vI: 669)
A relação que podemos traçar entre o relato de uma vida e a ficção, em especial
quando nos deparamos com algo do porte de Siete conversaciones, deve ser
cuidadosamente pensada. As entrevistas de Fernando Sorrentino até hoje nos propiciam
algo mais do que o mero conhecimento acerca das opiniões de Jorge Luis Borges, como
o contato com o personagem ou, para empregar a expressão usada por Emir Rodríguez
Monegal, a persona que o escritor argentino passou a vida construindo em público, ou
mesmo para o público? Talvez seja por esse motivo que Monegal considere “Borges y
yo” tão conclusivo a respeito da relação entre o autor e sua pessoa pública. É importante
salientar, no entanto, como já foi explorado anteriormente, como Jorge Luis Borges
pensava e como encarava a atividade literária e seus desdobramentos. Assim, como
podemos acreditar que um conto no qual o autor irá performatizar um jogo com seu
próprio nome consiste em uma real solução no que diz respeito à complexa relação
entre aquele que assina a autoria das obras e aquele que a mídia nos apresenta como
sendo seu autor?
Jorge Luis Borges tinha consciência disso e, por esse mesmo motivo afirmava
que a obra é de quem a lê. Ele tinha plena consciência que por autor compreendemos
muito mais aquele que assume um determinado papel, ou mesmo aquele que atua, que
reivindica para si a perfomance da autoria do que por um indíviduo que queira
realmente assumir a responsabilidade pelo sentido e pela significação de um texto.
Calvino diria que é por isso que a literatura de Borges é fundada no potencial. Ela joga e
dobra-se sobre si mesma, reflete-se em um espelho e se perde no labirinto.
Apesar disso, existem algumas considerações tecidas por Philippe Lejeune que
poderão nos ajudar a mapear o complicado constructo da persona borgiana. Em seu
livro Je est un autre, Lejeune irá conceder uma atenção especial à questão das
entrevistas, sobretudo radiofônicas. As entrevistas foram, desde seu mais insípido
8“Na página 278 do livro La Poesia (Bari, 1942), Croce, resumindo um texto latino do historiador Paulo,
o Diácono, narra o destino e cita o epitáfio de Droctulf; estes me comoveram singularmente, depois
compreendi por quê.
Droctulf foi um guerreiro lombardo que, no assédio de Ravena, abandonou os seus e morreu defendendo
a cidade que antes havia atacado. Os ravenenses sepultaram-no num templo e compuseram um epitáfio
em que manifestavam sua gratidão (“contempsit caros, dum nos amat ille, parentes”) e o peculiar
constraste observado entre a aparência cruel daquele bárbaro e sua simplicidade e bondade.”
32
princípio, pensadas para que o autor real pudesse esclarecer algo acerca de sua
personalidade. Com o tempo, nos explica Lejeune, esse processo se inverteu. As
entrevistas passaram a ser consumidas antes da obra do autor que, ao perder sua
preferência, passou a servir como uma espécie de compêndio que deveria ajudar a
compreender a natureza e a personalidade do entrevistado. A voz e a imagem passaram
a ser mais importantes que aquilo que cada autor apresentava como sua produção. Esse
movimento nos interessa de duas maneiras distintas: a primeira delas diz respeito ao
fato de que Jorge Luis Borges se localiza em um ponto nevrálgico de uma mudança de
concepção que teve lugar no século XX; a segunda está relacionada com o fato de que
Borges, modernamente, estava a par das mudanças que aconteciam e, apesar de
continuar com seu arsenal de referências do século XIX, tinha uma postura condizente
com o século no qual se encontrava inserido. Philippe Lejeune tece ainda mais
considerações que são indipensáveis no caminho que se pretende traçar aqui: " Et ce qui
on consomme, dans le cas de la notoriété littéraire, c‟est la forme même du portrait de
l‟auteur , quelle qu‟en soit la passagère incarnation"( LEJEUNE,1980 :103).
O que consumimos não é o conteúdo de cada entrevista, mas a forma como a mesma
nos é apresentada. Por isso, é possível afirmar que a relação de Borges com o perfil
traçado por Sorrentino é uma via de mão dupla, pois Borges não só usufruía do
conhecimento do poder da entrevista, mas, ao mesmo tempo, desenvolvia uma postura
que apenas tornava mais espessa e complexa sua figura pública. Na verdade, o que
devemos nos perguntar é qual é o lugar da entrevista em meio ao compêndio da obra de
um autor. No caso de Jorge Luis Borges, é provável que a resposta a essa pergunta
também nos leve à subsequente indagação acerca na natureza da persona borgiana.
Philippe Lejeune afirma que :
(…)L‟interview a d‟abord été utilisée pour renouveler le genre
journalistique de l’enquête sur une question d‟actualité. Au lieu de publier une réponse écrite, on transcrivait une réponse orale (…) Et ce
pouvait être pour le journaliste l‟occasion de faire un bref portrait de
l‟interviewé (pratiquement tout les interview sont narrativisée). (LEJEUNE, 1980: 107)
Logo, se as entrevistas foram utilisadas para dar novo ânimo à cena jornalística,
conceder a elas um lugar junto à obra de cada escritor é, talvez, polêmico. A questão da
oralidade pode vir a ser um problema, uma vez que quando falamos de literatura,
sobretudo em relação a Jorge Luis Borges, estamos falando de textos nos quais a escrita
clara, límpida e enxuta coloca em relevo a complexidade das narrativas. Uma outra
33
questão, no entanto, que emerge daquilo que foi apontado por Philippe Lejeune é o fato
de que as entrevistas eram, frequentemente, “narrativizadas”, e que tinham como
propósito secundário a elaboração de um breve relato sobre a personalidade do
entrevistado.
Com base nessas assertivas, é necessário que retornemos ao arcabouço fornecido
por Siete Conversaciones. Se, em algum momento da história da imprensa, as
entrevistas serviram de fato para que fosse elaborado um certo retrato do entrevistado, é
necessário que observemos a forma como esse processo é levado às últimas
consequências no livro de Fernando Sorrentino. As sete conversas que dão origem ao
título, muito mais do que traçar um perfil de Jorge Luis Borges, mostram-nos a maneira
como o próprio autor lidava, não só com sua obra, mas com sua própria pessoa.
Fernando Sorrentino chega a afirmar que:
El Borges que habla en este volumen es um señor cortés y distraído,
que no verifica citas, que no vuelve atrás para corregirse, que finge tener mala memoria: no el terso Jorge Luis Borges de la letra impresa,
aquel que calcula y mide cada coma y cada paréntesis. Lá
heterogeneidad y el desorden que aquejan a las preguntas intentan que
este libro no sea um ensayo orgánico sino exactamente lo que declara su título: siete tranquilas y casuales charlas (...). (SORRENTINO,
2001: 10)
O Borges descrito por Fernando Sorrentino em sua introdução chega a se
assemelhar com o Borges, personagem de Ernesto Sábato, que foi citado no início deste
capítulo. O que chama atenção, no entanto, é a forma como um personagem pode
guardar tanta similaridade com a descrição do autor por uma pessoa que o conheceu. É
provável que nesse ponto se situe a segunda problemática da qual não podemos
prescindir na tentativa de mapear Jorge Luis Borges, escritor e também personagem de
si mesmo.
Ainda analisando as entrevistas concedidas a Sorrentino, podemos observar
como irá se desenvolver o Jorge Luis Borges que o próprio Borges julga ser: “ En
cambio – voy a buscar el más humilde de los ejemplos −, creo que es muy fácil hacer
uma parodía mía e yo me dedico a hacerla, porque ya se sabe que lo que yo escribo es
um repertorio de juegos com el tiempo, de espejos, de laberintos, de puñales, de
máscaras”. (SORRENTINO, 2001: 33)
Nas palavras do próprio Borges, sua literatura não passa de um repertório de
jogos com o tempo, com os espelhos, com os labirintos, com os punhais e, talvez o que
34
mais nos interesse aqui, com as máscaras. É interessante o próprio autor admitir seu
fascínio pelo mascaramento, sobretudo se analisarmos a natureza das entrevistas.
Philippe Lejeune irá afirmar que: "L‟écrivain interrogé qui accepte de parler plusieurs
heures de son oeuvre et de sa vie, et de voir ses propos publiés en livre, engage quelque
peu sa responsabilité : même embryonnnaire et limité, c‟est une forme de contrat
autobiographique vis-à-vis du public "(LEJEUNE,1980:109) . A suposta oralidade ou
casualidade que permeiam as entrevistas não anulam o fato de que, em seu interior,
exista um embrionário pacto autobiográfico. Mesmo a aparente assepsia conferida pelas
perguntas direcionadas e sequenciais, características do ambiente jornalístico, ainda
assim permitem que escutemos, em meio ao turbilhão midiático, o eco das palavras do
autor real, aquele que de fato existiu.
Assim, a entrevista coloca para o leitor o mesmo tipo de problema que a
autobiografia coloca para a literatura: o que, na realidade, delimita verdade e mentira
nesse campo tão repleto de incertezas. Como assinar um pacto de confiança com
aqueles que, na realidade, são encarregados de construir os mundos imaginários que
povoam nossas mentes. O caso de Jorge Luis Borges talvez seja o mais desafiador
quando confrontado com esses questionamentos. Uma das possíveis justificativas para
isso se encontra nas páginas de An Autobiographical Essay, texto de cunho
autobiográfico que Borges publicou após o auxílio de Norman Thomas Di Giovanni.
Publicado em 1970 para a revista The New Yorker, será nesse ensaio autobiográfico que
conseguiremos identificar alguns dos traços que são comuns tanto a Jorges Luis Borges,
o homem, como a Jorge Luis Borges, o escritor. Já nas páginas iniciais do texto, vemos
como, mesmo ao tentar remontar a infância, Borges irá vincula-lá, de alguma maneira, à
literatura:
Había también un Palermo de compadritos, famosos por las peleas a
cuchillo, pero ese Palermo tardaría en interesarme, puesto que hacíamos todo lo posible, y con éxito, para ignorarlo. No como
nuestro vecino Evaristo Carriego, que fue el primer poeta argentino en
explorar las posibilidades literarias que tenía allí al alcance de la mano. (...) (BORGES,1999:14)
O fato de Jorge Luis Borges ter ligado o Palermo de sua infância à literatura de
Evaristo Carriego também coloca em evidência outro fato anteriormente citado: qual é a
informação que devemos privilegiar quando tentamos narrar uma história de vida. Pierre
Bourdieu afirma que só o pressuposto de que existe uma linearidade, ou seja, uma
espécie de deslocamento unidirecional que é inerente à existência de todos os seres
35
humanos já equivale a acreditarmos na ideia de “começo” (ou nascimento) e
“fim”(morte). Nossas vidas não compreendem uma sucessão de eventos, mas um
acúmulo de fatos descontínuos, justapostos sem qualquer razão aparente e unidos pelo
tênue laço que é o nome próprio.
Ao longo de todo o texto autobiográfico que é Autobiographical Essay, Jorge
Luis Borges irá sempre localizar as preferências literárias da família e associá-las às
suas: “Fanny Haslam era una gran lectora. Cuando ya había pasado los ochenta la gente
le decía, para ser amable con ella, que ya no había escritores como Dickens y
Thackeray. Mi abuela contestaba: „Sin embargo yo prefiero a Arnold Bennett,
Galsworthy y Wells‟”. (BORGES, 1999:18)
O que é mais curioso em relação ao fato de Borges esmiuçar detalhes sobre o
gosto literário das pessoas que o cercaram parece ser uma espécie de determinismo em
relação ao futuro de “homem de letras”. Ao reconstruir a história de alguns de seus
familiares, como por exemplo a avó inglesa Fanny Haslam e de seu próprio pai Jorge
Guillermo Borges, o escritor argentino parece dar sempre ênfase ao fato de sua própria
vida parecer estar sempre atada à literatura. Chega mesmo a afirmar que “Si tuviera que
señalar el hecho capital de mi vida, diría la biblioteca de mi padre. En realidad, creo no
haber salído nunca de esa biblioteca” (BORGES,1999:24). Apesar de este texto ter sido
publicado apenas na década de 1970, é importante salientar como uma afirmação deste
porte pôde ajudar a configurar a persona borgiana construída com tamanho empenho
por Jorge Luis Borges.
Em 1970, Jorge Luis Borges já era um escritor com uma carreira consolidada,
com fama, público e reconhecimento. Por mais que sua própria ficção já se baseasse no
jogo, com espelhamento e no mascaramento, a publicação de um texto autobiográfico
no qual o próprio autor admite e esmiuça suas raízes, sua bibliofilia e suas obsessões foi
determinante. Quando Borges afirma que nunca saiu da biblioteca do pai, o que vemos
não são apenas as cristalizações de suas influências literárias, mas também a maneira
como o escritor forja para si uma outra identidade que não a de autor: a identidade de
leitor.
No mesmo texto datado de 1970, o escritor argentino irá afimar : “Siempre
llegué a las cosas después de encontrarlas en los libros” (BORGES,1999:32). Os livros
eram e sempre seriam, mais do que uma fonte de informações ou pesquisa, uma espécie
de via de passagem obrigatória e necessária. Sua própria vida aparece em Um ensaio
autobiográfico como algo que pode ser dividido em fases de leitura.
36
Ainda no volume de entrevistas concedidas a Fernando Sorrentino, Borges irá
afirmar:
Antes de haber escrito uma línea, yo sabía, de um modo misterioso y,
por eso mismo, indudable, que mi destino era literario. Lo que yo no supe al principio es que, además del destino de lector – que no me
parece menos importante el outro – tendría también el destino de
escritor.(SORRENTINO,2001:63)
Para Jorge Luis Borges, escritor e leitor são duas facetas de um mesmo
personagem, ou, como afirma Emir Rodriguez Monegal, de uma mesma persona. Ao
reconhecer e situar suas próprias referências, Borges também está jogando e, para usar
algumas de suas próprias palavras, fazendo uma paródia de si mesmo. O que vemos
reunido, ao longo das entrevistas e mesmo do ensaio autobiográfico anteriormente
citado, é um leitor que, muito mais do que um escritor, escreve sua própria história.
Philippe Lejeune afirma que uma autobiografia é, para além do contrato de
leitura, a obra na qual um escritor irá reclamar para si a autoria de sua própria vida.
Borges não somente escreve, mas é o criador do Jorge Luis Borges como conhecemos,
em entrevistas e visto pelo olhar de seus contemporâneos.
Apesar disso, entretanto, existe um conto que pode nos fornecer um outro tipo de
perspectiva sobre a criação do personagem Jorge Luis Borges. “La biblioteca de Babel”,
incluído no livro Ficciones. Favorito entre críticos e estudiosos da obra borgiana, o
conto pode, entretanto, fornecer-nos diferentes perspectivas acerca da questão
autobiográfica em Borges: “Como todos los hombres de la Biblioteca, he viajado en mi
juventud; he peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora
que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me preparo a morir a unas pocas
leguas del hexágono en que nací.”9 (BORGES,2009,vI:558) A primeira aproximação
autobiográfica que podemos constatar nesse trecho consiste na óbvia semelhança entre
seu autor e o narrador. Ambos são bibliotecários10
, cegos e fascinados pelo infinito
contido em cada livro, ou melhor, na literatura. Antes, entretanto, de aprofundarmos
ainda mais a questão do espelhamento autobiográfico que pode existir entre autor e
narrador nesse específico conto, faz-se necessário perguntar o que é espelhamento
autobiográfico.
9 “Como todos los hombres de la Biblioteca, he viajado en mi juventud; he peregrinado en busca de un
libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me
preparo a morir a unas pocas leguas del hexágono en que nací.”. 10 Jorge Luis Borges foi diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina, nomeado em 1955.
37
Os indícios que podem nos guiar no sentido de responder esse questionamento
com o máximo possível de fidelidade afirmam que a aproximação existente entre autor
e narrador já seria o suficiente para respaldar qualquer tipo de análise que se apoiasse
nessa ideia. O que é o espelho, no entanto? Como podemos afirmar que a ideia de que
um autor tenha espelhado um personagem em sua própria personalidade pode ser
suficiente para sustentar este viés?
O espelho, conforme afirma a tradição e também o Dicionário de Símbolos,
refletiria a verdade e a sinceridade de um determinado indivíduo (CHEVALIER &
GHEERBRANT,2006). Assim, por espelhamento, compreenderia-se um processo no
qual um determinado indivíduo revelaria, ou melhor, refletiria seu âmago e sua alma. O
espelho, diz a tradição, é o elemento que não mente e que revela a verdade. Logo,
quando falamos em espelhamento autobiográfico, estaríamos afirmando que, de certa
maneira, o autor espelhou em si mesmo um determinado personagem, o que não só
equivale a dizer que a aproximação autobiográfica seria plausível, como também que a
leitura autobiográfica do conto ou romance seria plenamente possível e a mais
adequada. Se, entretanto, observarmos a realidade refletida pelo espelho, podemos
afirmar que, na realidade, o que ocorre é que ele não só inverte como simula uma
realidade que não existe. O espelho copia o mundo e retira sua profundidade. Na
verdade, ele simula estar cheio quando não passa de uma superfície plana e sem mais
dimensões que a visual. O espelho é o fantasma que não desaparece, confinado para
sempre ao fatalismo da cópia, do refletido.
Por conseguinte, como aceitar que, pelo simples fato de um narrador
compartilhar com seu autor a cegueira e o gosto pela literatura, isso já consistiria em
uma espécie de confissão ou faceta autobiográfica? A resposta pode ser encontrada na
própria de obra Jorge Luis Borges, mais especificamente na “História da Eternidade”:
“Uma infinita duração precedeu meu nascimento, o que fui eu entretanto?
Metafisicamente, poderia talvez responder-me: “Eu sempre fui eu; quer dizer, os outros
que disseram que eu durante todo esse tempo todo, não era senão eu”. É nesse ponto que
podemos verificar o que havia afirmado Italo Calvino sobre a literatura de Borges, um
texto que extrairia sua própria raiz quadrada e que se elevaria ao quadrado. Jorge Luis
Borges nunca hesitou em ser o demiurgo de sua própria persona, jogando ao mesclar
vestígios de sua vida pessoal ao universo peculiar de sua literatura. Ele sabia que a
literatura é um jogo, ou melhor, uma infinita partida de xadrez na qual o rei sempre irá
escapar por um triz do xeque-mate.
38
Assim, a labiríntica biblioteca descrita em “La biblioteca de Babel” não é só um
desdobramento da eterna biblioteca do pai, de onde Borges afirma nunca ter saído, mas
também a eterna biblioteca metafísica que ele próprio passou a vida construindo e
reconstruindo através de leituras e releituras. O personagem é uma construção do
escritor, na mesma medida em que o próprio escritor é fruto de uma ilusão biográfica
compreendida pelo nome próprio11
. Se a própria realidade é uma colcha de retalhos, um
amontoado de fragmentos no qual tudo que podemos apontar é o fato de que esses
momentos tão desconexos entre si foram vividos pela mesma pessoa, acreditar na
suposta linearidade da vida, ou melhor, da autobiografia é igualmente contraditório.
O que Jorge Luis Borges coloca em evidência em seu conto “La biblioteca de
Babel” é o fato de que a literatura é, antes de mais nada, um jogo de combinações que,
através de enigmas e pistas, conta parte da história daquele que a escreve: “Um homem
se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com
imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...) e de pessoas.
Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de
seu rosto”(BORGES, 1985:102). O labirinto do qual Borges nos fala nesse trecho,
extraído do epílogo de El hacedor não é somento o fato de que uma obra reflete
indiscutivelmente parte da personalidade de seu autor, mas também alude ao fato de que
nossa própria personalidade é um labirinto que passamos a vida construindo. O que
somos ou o que pensamos faz parte do complexo constructo da personalidade que nos é
exigida pela sociedada na qual estamos inseridos. Dessa maneira, “La biblioteca de
Babel” não irá mostrar apenas como seu autor e seu narrador beiravam a cegueira e a
morte, ou mesmo como ambos amavam os livros, mas como Borges, artífice da ficção,
compreendia que, fosse a vida dita real, fosse aquilo que lhe forneciam os livros, a
realidade sonhada da literatura, tudo era material para a criação. Um indivíduo ou um
personagem são ambos construções do discurso.
Hugo Achúgar, em sua obra Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte,
cultura e literatura, irá afirmar que, atualmente, é muito mais difícil ler Borges: “A
morte do homem Borges fechou o discurso do escritor Borges. A reescrita incessante foi
detida pela morte e a morte possibilitou que suas obras completas pudessem ser
completamente completas e completadas”.(ACHÚGAR, 2006:121) A morte de Jorge
Luis Borges teria, em tese, impossibilitado a eterna releitura e reorganização da obra
11 Ver BOURDIEU. A ilusão biográfica. 1986.
39
pelo próprio autor. “A morte é o encerramento de um tempo e a fundação de
outro”(ACHÚGAR,2006:122) irá ainda afirmar Achúgar. Se o tempo da escrita é findo,
nasce, portanto o tempo da leitura. Caberá a nós, leitores (póstumos) de Borges, propor
uma nova ordem de leitura que, a partir desse momento, não incluirá mais a existência
de seu demiurgo máximo, o escritor. Qual é a relação, entretanto, que essas afirmações
possuem com o raciocínio que vem sendo desenvolvido nessas páginas?
Jorge Luis Borges foi, durante toda a sua vida e mesmo após sua morte, um dos
escritores que melhor compreendeu a vida humana como uma espécie de palimpsesto,
no qual a descontinuidade do real sobrescreveria, a todo o momento, novos
acontecimentos. A morte transformaria finalmente o palimpsesto em texto, definitivo e
arquivado. A literatura tão cuidadosamente pensada para desafiar e testar limites
transformaria-se, ao fim, em um objeto estanque, facilmente analisável. Hugo Achúgar
ainda irá se aprofundar mais nessa ideia, afirmando que Borges acreditava no tempo
como algo irreversível e na vida como algo finito e perecível. Na verdade, esse parece
ser o consenso de diversos autores que se debruçaram sobre a obra de Jorge Luis
Borges. O fragmento que nos mostra como esse posicionamento pode ser válido está em
Nueva refutacíon del tiempo:
Nuestro destino (a diferencia del infierno de Swedenborg y del
infierno de la mitología tibetana) no es espantoso por irreal; es
espantoso porque es irreversible y de hierro. El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy
el río; es un tigre que me destroza; pero yo soy el tigre; es un fuego
que me consume; pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges.(BORGES, 2009:181)
A irreversibilidade do tempo e da morte, a simultaneidade de momentos que
constituem o mundo real são, de acordo com Hugo Achúgar, as critalizações da crença
de Borges no ser humano como algo finito e perene, destinado a passar. O drama da
“condição perecível do ser humano”(ACHÚGAR,2006:122) encenado por Borges no
fragmento acima não só faria parte de uma espécie de temática tradicional sobre a
existência, como também simbolizaria a inexorabilidade do tempo. Apesar disso, Hugo
Achúgar salienta que, ao final de Nueva Refutacíon del Tiempo, Borges inclui uma
citação de Angelus Silesius que diz o seguinte:
Freund, es ist auch genug. Im Fall du mehr willst lesen, So geh und werde selbst die Schrift und selbst das Wesen.
Amigo, já é o suficiente. Em caso de querer
40
Ler mais,
Vai, pois, e sê tu mesmo a Escrita e tu
Mesmo o Ser.
A impossível eternidade do ser fica resolvida com um convite, pois como “A
leitura é uma forma da escrita, da reescrita, da construção, da
identidade”.(RODRIGUEZ MONEGAL apud ACHÚGAR,2006:23) Se a escrita de um
autor cessa no momento de sua morte, sua leitura, ou melhor, suas leituras não cessam
jamais. Cada página virada constitui uma nova possibilidade, uma nova interpretação,
um novo Borges. “Borges nos transforma de leitores em escritores e, ao transformar-
nos, o próprio Borges se transforma e nos convoca a assumir outra identidade, outra
tarefa”.
O texto de Hugo Achúgar nos mostra com maior riqueza de detalhes como a
questão da autoria sempre esteve no cerne da literatura borgiana. Borges não só
propunha que a leitura era, de certa forma, uma continuação da escrita, mas também que
ambas eram atividades inseparáveis. A eterna biblioteca do pai e as ruas de Palermo
eram, simultaneamente, fragmentos de memória e de literatura, que conviviam no
labirinto da escrita.
Hugo Achúgar ainda recorrerá à figura do Aleph para se aprofundar ainda mais
nas questões colocadas pela literatura borgiana. Afinal, o Aleph é, por definição, a
totalidade do mundo em toda sua negação. Aliás, seria ele por essa mesma razão uma
espécie de síntese da criação de Jorge Luis Borges, justamente por ocupar um lugar que
não está somente entre o antigo e o moderno, mas também entre a possibilidade e a
impossibilidade:
No entanto, o debate intelectual destes nossos tempos está atravessado por esse diálogo entre modernidade e pós-modernidade. Diálogo
peculiar, pois trata-se de um diálogo do “entre”. Um “entre”que é o
cenário de uma conversação, cuja cenografia fundamental é o espaço
do que não está nem aqui nem lá, mas precisamente, na fronteira. Espaço que, mais que um território, implica a desterritorialização. E o
que é, pois, o Aleph? O que é, senão um território que nega todas as
coordenadas lógicas? O que é, senão um território sem território? O que é, senão um território feito de múltiplos e diversos territórios?
(ACHÚGAR,2006:127)
Por mais que a discussão proposta por Achúgar em relação à modernidade e à
pós-modernidade não nos seja particularmente interessante neste momento, é necessário
ressaltar que o Aleph, alegoria máxima do universo borgiano, localiza-se em um
território tão movediço quanto a autobiografia. A simultaneidade e a totalidade do qual
41
o Aleph é o símbolo mostram também a dissolução da identidade e o abismo do
esquecimento. Borges irá afirmar, ao final do conto “O Aleph”, que “a mente é porosa”.
Nossas vidas não passam de um amontoado de momentos caóticos, presos para sempre
na falível representação da memória.O que está em crise na literatura de Jorge Luis
Borges não é só a própria representação, a fantasmagoria da personalidade ou o drama
da vida humana, mas a própria autoria de um texto literário.
A língua que nos serve, pele dos pensamentos e sentimentos, é tão falha e
insuficiente quanto a memória da qual nos servimos. Jorge Luis Borges sempre soube
disso. Provavelmente, por essa mesma razão, dedicou toda sua literatura à dissolução de
fronteiras, aos jogos, aos labirintos, ao espelhos e aos livros inexistentes. Pierre
Bourdieu irá afirmar que mesmo o nome próprio, ferramenta social que utilisamos para
dar conta da trajetória de vida de um determinado indivíduo, apenas serve para designar
uma “rapsódia heterogênea e disparatada de propriedades biológicas e sociais em
constante mutação”(BOURDIEU,1986:187). Um nome, Jorge Luis Borges, como todos
os outros não passa de um suporte, um jogo e, por fim, um personagem, seja de si
mesmo ou dos outros. Pouco importa a trajetória do indivíduo Borges, pois ela mesma
foi e continua sendo reescrita a todo o momento. Cada interpretação de uma vida
constitui uma nova vida.
Por essa razão, quando Emír Rodriguez Monegal afirma que “Borges y yo”
funcionaria como uma espécie de solução para a questão autobiográfica, é possível
verificar como, na realidade, uma possível leitura autobiográfica não só de “Borges y
yo”, mas de diversos indícios da obra de Jorge Luis Borges caminham na contramão
dessa visão.
O jogo da criação daquilo que Monegal denominará máscara ou persona literária
de Borges passa, obrigatoriamente, por um processo de invenção. “Toda leitura é
invenção, um erro que embaça a memória. É possível e, mais do que possível, que
tenhamos construído, inventando, não um, mas muitos Borges”(ACHÚGAR,2006:132).
Hugo Achúgar continua e afirma:
O Borges construído em, e por, suas inumeráveis declarações e
entrevistas não é alheio ao Borges anterior. Junto ao Borges que Borges construiu está também o Borges dos meios de comunicação
massiva e o Borges dos críticos e intelectuais. (...)
Não há novidade nisso. O próprio “Borges e eu” é a brilhante e patética descrição que a lucidez dos Borges perceberam do fenômeno.
“Borges e eu”não só descreve a situação do ponto de vistade quem
42
escreve, mas também dos leitores ou dos espectadores.
(ACHÚGAR,2006:133)
O que podemos constatar nesse fragmento é a maneira como Jorge Luis Borges não só,
como afirma Achúgar, construiu um personagem, mas conseguiu, durante toda sua vida
e carreira literária, dar corpo e forma a multiplicidade da qual somos todos portadores.
Borges não é um , tampouco dois, mas múltiplos. Sua personalidade se reflete no
espelho da ficção apenas para colocar em evidência a impossibilidade de pensarmos em
um único Borges. A cada entrevista concedida, a cada conto, a cada palavra proferida, o
autor argentino jogava com o paradigma da literatura e, também, com o paradigma da
autobiografia. Jorge Luis Borges sempre esteve ciente de como o senso comum deseja
unir autor e obra em uma única e indivisível unidade de sentido. Walter Benjamin, em
um de seus textos mais célebres, “A tarefa do tradutor”, se vale de uma metáfora para
explicar a impossibilidade da tradução: para ele, o sentido do texto poderia ser
comparado a um vaso quebrado, cujos pedaços nunca mais irão se encaixar. Por mais
que, a tradução não seja um tópico analisado no presente trabalho, a metáfora de Walter
Benjamin pode ser produtiva, se pensarmos, de maneira análoga, no caso de Jorge Luis
Borges.
Em O nome da rosa, romance de Umberto Eco, podemos encontrar um dos
vestígios do vaso quebrado. O bibliotecário da abadia chama-se, curiosamente, Jorge de
Burgos (nome no qual podemos ouvir com clareza o eco do sobrenome do autor
argentino). Cego, ressentido e, como não poderia ser diferente, chefe de uma biblioteca,
a versão de Umberto Eco para Jorge Luis Borges também pode ser lida como um dos
milhares de fragmentos que perfazem o conjunto daquilo que conhecemos hoje como o
legado de Borges.
No primeiro encontro entre Adso, o protagonista, seu mestre, Guilherme e Jorge
de Burgos, ficará clara a maneira como Umberto Eco interpretou livremente a persona
de Jorge Luis Borges: “À mesa do Abada sentavam conosco Malaquias, o despenseiro e
dois monges mais velhos, Jorge de Burgos, o ancião cego que já conhecera no
scriptorium (...)”. A cena continua e o perfil de Jorge de Burgos torna-se, a cada linha,
um desdobramentos dos mais interessantes sobre a figura de Jorge Luis Borges:
Fui chamado de volta por um vigoroso grunhido de confirmação de Jorge , e percebi que se estava no ponto em que sempre era lido um
capítulo da Regra: Dizia de fato o leitor: “Imitemos o exemplo do
profeta que diz: decidi, vigiarei o meu caminho para não pecar com
43
minha língua, coloquei uma mordaça na boca, emudeci em
humilhação, abstive-me de falar mesmo de coisas honestas. E nessa
passagem o profeta nos ensina que às vezes, por amor ao silência,
deveríamos nos abster até dos discursos lícitos, tanto mais devemos nos abster dos discursos ilícitos para evitar a pena desse pecado!” E
depois prosseguia: “Mas as vulgaridades, as asneiras, e as palhaçadas
nós as condenamos à reclusão perpétua (...) “E que isso valha para as marginalia de que se falava hoje”não se
conteve em comentar Jorge em voz baixa. “Giovanni Boccadoro disse
que Cristo nunca riu” (ECO,1986:118)
Sem tecer qualquer tipo de comentário acerca do enredo da narrativa de
Umberto Eco, a primeira coisa que chama a atenção é como a figura do bibliotecário é
ressentida e amarga. O próprio Umberto Eco afirmou em Pós-escrito a O nome da
Rosa: “Todos me perguntam porque o meu Jorge, pelo nome, evoca Borges, e por que
Borges é tão perverso. Mas eu não sei”(ECO,1985:26). Umberto Eco alega que o
personagem do bibliotecário cego não foi pensado, inicialmente, para ser o assassino da
trama, mas que, de alguma forma, isso se resolveu sozinho. “Eu queria um cego como
guardião de uma biblioteca ( o que me parecia uma boa ideia narrativa) e biblioteca
mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as dívidas se pagam”(ECO,1985:26).
Talvez seja possível afirmar, com base nas declarações de Umberto Eco, que a própria
imagem que Jorge Luis Borges passou a vida construindo tenha ecoado nas páginas de
O nome da rosa. Jorge de Burgos, não à toa, é um bibliófilo, guardião de um saber que
não possui mais lugar em um mundo que está prestes a mudar.
O que torna a figura delineada por Eco mais interessante é se a colocarmos em
contraponto com um depoimento de Alberto Manguel, escritor argentino que, durante
algum tempo de sua vida, chegou a ler livros para um Borges já cego e idoso:
Durante muitas noites, li para ele Stevenson, Kipling, verbetes da Brockhaus Encyplopaedia, várias edições anotadas de Dante,
enquanto Borges interrompia e comentava, mais para si mesmo do que
para mim, oferecendo-me, por assim dizer, uma edição particular
anotada de seus clássicos. Tentou persuadir-me a juntar-me a seu estudo de anglo-saxão, mas nunca passei das três primeiras linhas de
“A batalha de Maldon”. Às vezes, pedia-me que o acompanhasse ao
cinema; era uma experiência estranha sentar ao lado do velho cego e narrar o filme de forma casual, como se estivesse comentando a trama
e a fotografia.. Aprendi depressa que Borges não gostava de um relato
direto do que estava acontecendo na tela, e eu tinha que inventar circunlóquios, tais como: “Ele parece tão ameaçador, o jeito como ele
entra na sala” ou “Uma panorâmica sobre esta cidade é muito eficaz,
não acha?”, enquanto o chhh em volta ficava mais raivoso e alto,
como um vento ameaçador. Assistimos juntos a Amor, sublime amor, ( que ele já vira várias vezes e de que gostava muito), O colecionador
e Lorde Jim, (...)( MANGUEL,2000:56)
44
O mais curioso que podemos salientar no depoimento de Alberto Manguel é o
fato de Jorge Luis Borges, já idoso e cego, ainda viver total e completamente imerso no
mundo das letras. Assim, com base no que relata Manguel, podemos verificar que o
Jorge de Burgos de Umberto Eco, por mais perverso que fosse, não estava tão distante
daquilo que realmente foi Jorge Luis Borges, ou pelo menos, como ele foi descrito pela
maioria daqueles que com ele conviveram, um verdadeiro guardião e demiurgo da
literatura até seus últimos dias. O Borges de Manguel e o personagem de Umberto Eco
não deixam de ser, também, vestígios do fragmentado vaso da personalidade borgiana.
A autoria poderia, também, ser considerada como um vaso quebrado. Sobretudo,
se pensarmos que as partes desse mesmo vaso, como os infinitos desdobramentos de
Jorge Luis Borges, todos possuem a mesma origem, todos remetem a ele e, entretanto,
não significa que, se pudéssemos uni-los todos possuíriamos uma espécie de perfil
definitivo do homem que existe por trás das letras. É justamente nesse ponto que reside
o grande jogo com as fronteiras da literatura, da autobiografia e também da criação
borgiana. É, também, curiosamente, nesse mesmo ponto que poderemos localizar a
maneira como o próprio Jorge Luis Borges parecia, a cada um de seus contemporâneos,
uma pessoa diferente. Já foram elencados, anteriormente, fragmentos de Ernesto Sábato
e do entrevistador Fernando Sorrentino, que mostram, de maneira peculiar, uma espécie
de autor caleidoscópico, cujas partes estão espalhadas e o centro não está em lugar
algum. Todos são Borges, ao mesmo tempo que nenhum deles o é.
Hugo Achúgar considera que esse tipo de descentramento que pode ser
encontrado na obra de Jorge Luis Borges seria fruto de uma concepção histórica
baseada no desencontro. Para o autor, Borges irá fundar uma “coerente
descontinuidade”, “um universo construído sobre a inconsistência lógica e a
descontinuidade, em um jogo em que a gramática e a retórica negam toda espécie de
onipotência”(ACHÚGAR,2006:134). Borges arquiteta todo um universo, que
poderíamos denominar perverso, e se senta, diante do seu leitor, propondo que ele seja a
peça fundamental do jogo. “Em um universo de ruínas, de infames e imortais, quem dá
vida é quem percebe ou quem lê”(ACHÚGAR,2006:135), afirma Achúgar. O jogo é o
xadrez, devido a precisão e à ciência das quais ele o símbolo. Quem povoa o tabuleiro
são os personagens da cosmogonia borgiana, ao mesmo tempo em que o próprio Borges
joga e é o rei. Jogamos na tentativa de reunir fragmentos, de dominar, pouco a pouco, o
tranquilo tecido emaranhado do tabuleiro.
45
O único porém é que, quanto mais nos aproximamos de Borges, ele fica,
simultaneamente, mais próximo e mais inatingível. O xadrez borgiano funciona como o
paradoxo de Zenão. Aquiles é infinitamente rápido e a tartaruga infintamente lenta. Isso
não quer dizer, entretanto, que Aquiles irá alcançar a tartaruga. Nós, os leitores, somos
desdobramentos do herói grego, assim como Borges seria a tartaruga. Acreditamos que
vamos ultrapassá-los, mas a única constatação possível, ao final da disputa é que nunca
poderemos alcançá-lo. Por mais lento que seja, ou por mais óbvia que possa parecer a
distância percorrida, é a ele, Borges, que pertence o labirinto, o jogo, o espelho, o
infinito.
Capítulo 2: O labirinto, o minotauro e a biblioteca: fantasmagoria de um autor
ausente
“Não fique mais imaginando, pensando no porquê, no que aconteceu, no que não
aconteceu, senão vai ter mil passados e nenhum futuro”, afirma o personagem Morales
para Benjamín Esposíto, na película El secreto de sus ojos, de Juan José Campanella. O
filme, construído a partir de um mosaico de memórias que visa a recompor um evento
perdido no passado, pode funcionar como um interessante mote para se refletir sobre a
ficção borgiana. No filme de Campanella, estrelado por Ricardo Darín, o protagonista
Benjamín Esposíto chega a afirmar em um diálogo: “ Não foi outra vida, foi esta”.
O passado nos parece filtrado pelo confuso espelho da memória, como um
complexo mosaico de fatos sobrepostos que não necessariamente pertencem à nossa
vida. Mesmo o frágil liame do nome próprio parece não ser o suficiente para atar a
desbaratada narrativa da qual somos protagonistas. O filme de Juan José Campanella
reflete isso e, talvez ainda mais, coloca em evidência como uma única vida é
indiscutivelmente múltipla.
Por mais que o cinema não seja o escopo do raciocínio que será desenvolvido no
presente capítulo, é, no entanto, no universo cinematográfico que encontraremos os
mais contundentes exemplos no diz respeito à memória e à biografia.
Além do filme de Juan José Campanella, premiado com o Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2010, há também o curioso filme de Todd Haynes, I’m not there ou Não
estou lá, conforme a tradução brasileira. Com o estranho subtítulo em português de as
muitas vidas de Bob Dylan, o filme se propõe a traçar, de maneira sobreposta e
desconexa, apelando para diferentes atores, um perfil do cantor americano Bob Dylan.
Mais do que a tentativa de esboçar uma espécie de retrato, o que chama atenção na
película é o desrespeito à cronologia e a maneira como é mostrada a interação do cantor
com os fatos que permearam seu universo pessoal e social. Bob Dylan não é único, é
multifacetado, é poliédrico, é um personagem em constante mutação. Ou melhor, um ser
humano em constante transformação, como todos.
A pergunta que se quer colocar aqui, entretanto, após esse breve preâmbulo, não
diz respeito às anteriormente citadas obras cinematográficas, mas à obra de Jorge Luis
Borges. Se tanto na obra de Campanella como na de Todd Haynes os personagens
ganham dimensões mais humanas ao serem retratados como múltiplos, como lidar com
47
Jorge Luis Borges retratado por si mesmo, ou melhor, com aquilo que podemos apontar
de vestígio do autor em sua própria ficção?
Antes de abordarmos a obra de Jorge Luis Borges, faz-se necessário elucidar
alguns dos pressupostos teóricos que irão nortear o tipo de análise aqui desenvolvida.
André Malraux, célebre escritor francês do século XX, afirma, em sua obra de
memórias, intitulada ousadamente Antimemórias, que:
Se ninguém acredita que o auto-retrato, até mesmo o retrato, não teve outra preocupação desde as efígies egípicias às telas cubistas, senão
imitar o modelo, continua-se a pensar assim do retrato literário. Ele
seria tanto melhor quanto mais semelhante, e tanto mais semelhante quanto menos convencional. ( MALRAUX, 1968:9)
Apesar de André Malraux abordar, no fragmento supracitado, o caso específico
do auto-retrato, isso não quer dizer que a autobiografia é completamente alheia a esse
assunto. Na verdade, é possível observar como a característica que Malraux afirma ser a
mais importante do auto-retrato, também o é no âmbito autobiográfico. Quanto mais
uma autobiografia se distancia do factual, mais ela se aproxima do que seria a
verdadeira constituição do ser humano: a descontinuidade.12
Essa característica também aproxima mais a autobiografia de sua suposta
origem, a memória. Paul Ricoeur, em sua obra A memória, a história e o esquecimento
afirma que a representação do passado se dá, na maioria das vezes, por meio da
imagem. Construímos, ou melhor, reconstruímos o passado por meio da imagem que
dele temos, independente da fidelidade do processo de rememoração. Isso faria da
memória uma complexa e intrincada associação de fatos, ou, como Ricoeur irá afirmar:
“Assim, a memória, reduzida a rememoração, opera na esteira da imaginação”
(RICOEUR,2007:25). A mente seria impelida pela criatividade a completar as lacunas
com a imaginação.
Paul Ricoeur ira explorar ainda a metáfora de Platão do bloco de cera. A
memória seria um material maleável, sujeito sempre às pressões e marcas impostas pelo
cotidiano. O esquecimento também se encontra previsto por essa imagem, não só como
o óbvio apagamento de possíveis vestígios, mas também como uma falta de ajuste entre
a imagem que nos é apresentada pelo presente e a impressão deixada pelo passado.
Em O sofista, Platão afirma, ao elaborar a definição do que seria a arte de copiar:
“ora, copia-se da maneira mais fiel quando, para realizar a imitação, tomamos
12 Conceito aprofundado por Georges Bataille em O erotismo
48
emprestadas do modelo suas relações exatas de comprimento, largura, profundidade e
além disso, cobrimos cada parte com as cores que lhe convêm”. Do lado oposto ao da
cópia, teríamos o simulacro, ideia à qual Platão irá atar o termo phantasma. Simular não
é o mesmo que copiar e poderíamos ainda afirmar que o simulacro seria o fantasma de
algo real, sombra que pouco partilha dos verdadeiros contornos do objeto, mas que,
ainda assim, de alguma maneira possui alguma ligação com ele.
De que maneira, então, esse tipo de conceito encontra-se relacionado ao tipo de
análise que se pretende fazer da obra de Jorge Luis Borges? Inicialmente, seria possível
afirmar que só pelo fato de Jorge Luis Borges ter tematizado em sua literatura não só a
memória, mas o próprio jogo entre memória coletiva, memória pessoal e esquecimento.
Talvez mais do que isso, o que Borges parece ter compreendido foi que, por mais falha
e infiel que possa ser a memória de um indivíduo, ela ainda assim é uma fonte
inesgotável de narrativas e acontecimentos, eco natural da polifonia do ser humano.
Paul Ricoeur afirmará que:
Uma ambição, uma pretensão está vinculada à memória: ser fiel ao passado; (...). Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco
confiável, é precisamente porque ela é nosso único recurso para
significar o caráter passado daquilo que declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à imaginação, na
medida em que esta tem como paradigma o irreal, o fictício, o possível
e outros traços que podemos chamar de não posicionais. A ambição veritiva da memória tem títulos que merecem ser reconhecidos antes
de considerarmos as deficiências patológicas e não patológicas da
memória (...) (RICOEUR, 2007: 40)
Como a memória não poderia ter como meta a reconstrução fiel de eventos
passados, a imaginação passaria assim a ser uma ferramenta muito mais eficaz para
preencher as lacunas deixadas pela tentativa. Aparentemente, o problema que se coloca
entre os vestígios do passado e o presente não se resume ao fato de a memória ser o
elemento que se interpõe entre eles, mas de ser ela mesma, via de acesso a um pretérito
irrecuperável, uma falha ferramenta do intelecto humano. A memória ambiciona
fornecer a única e verdadeira versão para os fatos que já passaram, supondo, sobretudo,
que sua versão será a única. O presente já é por si próprio polifônico e multifacetado.
Assim, poderíamos ou não aceitar o fato de que a memória de um indivíduo possa
fornecer a melhor e mais verdadeira reconstrução de um evento que se encontra perdido
no tempo, cronológica e psicologicamente.
49
Em um conto “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, que não será analisado de maneira
mais profunda no presente trabalho, Jorge Luis Borges escreve uma frase que
funcionará, de maneira analógica também, como uma espécie de mote para o capítulo:
“Todo estado mental es irreductible: el mero hecho de nombrarlo – id est, de
classificarlo – importa un falseo”.(BORGES,2009, vI:513)13
O simples ato de nomear,
ou melhor, de tentar classificar qualquer dos processos realizados pela mente já seria
por si só incorrer no falso. A mente opera por meios que são inclassificáveis, ou melhor,
incompreensíveis. Por essa afirmação, seria ainda possível deduzir que a distância
presente entre a língua falada, tradução direta dos pensamentos e a escrita,
representação gráfica desses mesmos pensamentos, é excessivamente extensa para que
possamos confiar na fidelidade da pena ou no caráter verdadeiro das palavras. A relação
entre os pensamentos e as palavras pode ser direta, o que, no entanto, não pressupõe sua
confiabilidade.
Assim, com base nessa premissa, poderíamos observar, não somente a questão
da memória, mas também a questão dos possíveis e curiosos indícios autobiográficos
presentes na obra de Jorge Luis Borges. Se nomear equivale a falsear, como poderíamos
analisar um conto como “El otro”? Nesse conto, incluído em El libro de arena, Jorge
Luis Borges narra um suposto encontro com seu duplo, o ainda jovem Jorge Luis
Borges.
Com base no que foi afirmado por Philippe Lejeune em Le pacte
autobiographique, o contrato da autobiografia pode ser resumido a um acordo que o
leitor faz com o autor no momento em que se compromete a aceitar que, aquilo que está
compreendido entre a contracapa e a página final, teve como origem ou fonte de
inspiração a vida do autor. Concordamos, ou melhor, aceitamos, que um conto, um
romance, uma novela ou mesmo uma poesia pode possuir laços autobiográficos,
sobretudo, porque acreditamos.
É nessa encruzilhada conceitual que se aloja o conto de Jorge Luis Borges.
Inicialmente, a narrativa se apresenta como uma espécie de memorial, ou melhor, como
um relato de um fato passado. Isso, entretanto, não significa que tudo aquilo relatado em
“O outro” possa ser aceito como verossímil ou verdadeiro. Pelo contrário, o encontro
descrito por Jorge Luis Borges é o mais fantástico e impossível, por mais que tenha
como ponto de partida o verossímil, a memória de um determinado dia na vida do autor.
13 Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo – id est, de classificá-lo – importa em
falseio”.
50
Borges irá encontrar consigo mesmo e discutir fatos oriundos de sua vida pessoal. Em
um diálogo particularmente curioso, o Jorge Luis Borges já idoso irá revelar ao jovem
Jorges Luis Borges como será sua vida e sua carreira como escritor: “Darás clases como
tu padre y como tantos otros de nuestra sangre”14
. Esse fragmento, talvez mais do que
colocar em evidência o caráter fantástico do conto, acaba por delinear também o que
seria uma espécie de visão do autor sobre a sua própria existência. Ao colocar lado a
lado juventude e maturidade, Borges não está só analisando seu próprio caminho
percorrido, mas também esta fornecendo ao leitor o poder de ter posicionamento próprio
sobre sua vida enquanto escritor.
Muito embora a maioria dos fatos que emerjam do diálogos dos dois Borges em
“El otro” sejam verdadeiros e, mais ainda, verossímeis, o que importa na narrativa não é
a verossimilhança ou mesmo qualquer tipo de pacto de leitura que possa ser
estabelecido entre autor e leitor. Jorge Luis Borges não está só reunindo, de maneira
fragmentada, alguns dos episódios de sua vida, mas mostrando como a literatura existe
para jogar com a realidade. Uma das cenas do conto deixa isso ainda mais evidente: “
Casi no me escuchaba. De pronto dijo: ─ Si usted ha sido yo, ¿cómo explicar que haya
olvidado su encuentro con um señor de edad que en 1918 le dijó que él también era
Borges? ”15
. O conto, narrado por um Borges já idoso, joga também com a memória de
uma vida que também se mostra um tanto falha.
Com base no arcabouço teórico fornecido anteriormente pela obra de Paul
Ricoeur, A memória, a história e o esquecimento, podemos afirmar que a memória é,
antes que qualquer coisa, polissêmica. Paul Ricoeur irá afirmar que:
Em oposição à polissemia, que, à primeira vista parece apropriada
para desencorajar qualquer tentativa, mesmo modesta, de ordenação
do campo semântico designado pela memória, é possível esboçar uma fenomenologia fragmentada, mas não radicalmente dispersa, cujo
último fio condutor continua sendo a relação com o tempo. Mas esse
fio só poderá ser seguro com mão firme se conseguirmos mostrar que a relação com o tempo dos modos mnemônicos múltiplos, que a
descrição encontra, é, ela própria suscetível de uma tipologia
relativamente ordenada, que não seja esgotada, por exemplo, pelo caso
da lembrança de um acontecimento ocorrido no passado. Esta segunda aposta de nosso empreendimento põe em jogo a ocorrência mínima da
asserção que tomamos emprestada de Aristóteles desde o início do
estudo, segundo a qual a memória “é do passado”. Mas ser do passado se diz de múltiplas maneiras ( conforme o famoso dito da Metafísica
14“Darás aulas como teu pai e como outros tantos de nosso sangue”. 15 “Quase não me escutava. De repente, disse: - Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu
encontro com um senhor de idade que, em 1918, disse-lhe que ele também era Borges?”
51
de Aristóteles: “o ser se diz de múltiplas maneiras”). (RICOEUR,
2007: 41)
A tentativa de Ricoeur de elaborar uma fenomenologia adequada da memória
nos interessa na medida que o autor não só expõe e descreve o principal problema
com o qual nos deparamos, mas porque parece querer traçar uma espécie de perfil da
memória que, ao mesmo tempo que seja confiável, possa ser também fiel aos
processos idiossincráticos da mente. “A memória é o passado”, conforme afirma
Aristóteles, na citação recuperada por Ricoeur, mas isso não impede que possamos
ouvir, pelo eco das lembranças, a caleidoscópica multiplicidade de um momento já
terminado.
A teoria proposta por Paul Ricoeur nos interessa para analisar o conto de Jorge
Luis Borges, “El otro”, pois nos fornece uma maneira de abordar o que foi tematizado
pelo autor. Inicialmente, poderíamos afirmar que é devido à presença, ou melhor, pela
maneira como a narrativa de Borges irá simular, através do diálogo fantástico entre
passado e presente, representado pelo idoso Jorge Luis Borges e pelo jovem Jorges
Luis Borges, a polissemia da memória:
− Yo te puedo probar inmediatamente – le dije – que no estás soñando
conmigo. Oí bien este verso, que no has leído nunca, que yo recuerde
Lentamente entoné lá famosa línea:
L’hydre-univers tordant son corps écaillé d’astres Sentí su casi temeroso estupor. Lo repetí em voz baja, saboreando
cada resplandeciente palabra
− Es verdad. – balbuceó – Yo no podré nunca escribir una línea como ésa
Hugo nos habia unido.16
Na tentativa de provar a si mesmo que o impossível encontro seria verdadeiro,
Borges repete para si mesmo um verso de Victor Hugo, algo que tinha certeza ainda não
ter lido na juventude. Mais do que qualquer indício que pudéssemos recolher nesse
fragmento a respeito da literatura fanstástica, que Borges afirma ironicamente no
começo do conto que o que escreve, é muito mais importante ressaltar a maneira como o
16 “−Eu posso te provar imediatamente – disse-lhe – que não estás sonhando comigo. Ouve bem este
verso, que nunca leste, que eu me lembre.
Lentamente entoei a famosa linha:
−L’hydre-univers tordant son corps écaillé d’astres
Senti seu quase temeroso estupor. Repetiu-a em voz baixa, saboreando cada resplandecente palavra. −É verdade – balbuciou. – Eu nunca poderei escrever uma linha como essa.
Hugo havia nos unido.”
52
escritor irá mesclar suas lembranças pessoais, reminiscências literárias em um ambiente
completamente plausível, ou melhor, verossímil. Entretanto, o objetivo de Jorge Luis
Borges não parece ter sido, em momento algum, convencer o leitor de que se tratava de
um texto real ou de um relato de um evento verídico de um acontecimento impossível,
mas, ao lançar em um texto dois desdobramentos de sua própria personalidade, ele está,
na realidade, simulando uma autoficção que, em momento algum, possui pretensões
autobigráficas.
Antes, entretanto, de continuarmos a esmiuçar o cerne do conto borgiano, faz-se
necessária uma pequena explanação acerca da autoficção e sua ligação com o gênero
autobiográfico. Diana Klinger, em sua obra Escritas de si, escritas do outro: o retorno
do autor e a virada etnográfica, explicita que o cerne da autobiográfica está ligado à
experiência. O que possibilita a existência de material narrável é a ideia de que um
indivíduo possui uma determinada trajetória, algo que o transformou no que é. Ainda
em sua obra, Diana Klinger propõe uma interessante análise da obra de César Aira,
Como me hice monja, que servirá, curiosamente, como uma espécie de fio de Ariadne
ao penetrarmos no labiríntico universo borgiano. A autora afirma que Aira se vale de
estruturas paradoxais para narrar sua história e, sobretudo, procura confundir o leitor
usando a todo o momento pronomes masculinos e femininos para se referir ao narrador,
que se chama César Aira. Muito mais do que o espelhamento existente entre autor e
protagonista na obra de Aira, o que nos interessa salientar é a maneira como, de acordo
com Diana Klinger, “o relato retrospectivo da vida não somente desfaz sua ilusão de
referência, mas ao mesmo tempo resulta de uma cisão interna do narrador que
problematiza a noção de identidade da própria voz narrativa” (KLINGER,2007:20). Por
mais que a autora esteja, no fragmento anteriormente citado, analisando a obra de Aira,
essa ideia pode ser muito produtiva se observarmos o conto de Jorge Luis Borges. A
coincidência que existe entre o narrador, que afirma ser um Jorge Luis Borges idoso, e
seu encontro com seu jovem duplo não existe para colocar em evidência a qualquer
espécie de traço autobiográfico ou mesmo mostrar como um indivíduo, ao atingir um
determinado patamar de sua existência, sente a necessidade de analisar sua própria
trajetória. O encontro entre os dois Jorge Luis Borges serve para mostrar como a ideia
de autobiografia é falha, como o real é descontínuo e como a língua, em toda sua
barthesiana arbitrariedade, é insuficiente para dar conta das experiências que vivemos
em um único e múltiplo momento.
53
Assim, é no espaço gerado por essas diversas abordagens que podemos inserir
também a ideia de autoficção. Por mais que essa ainda seja uma classificação que carece
de um conceito satisfatoriamente fechado, ela servirá perfeitamente para observarmos o
texto de Jorge Luis Borges, uma vez que, de acordo com Italo Calvino, o textos de
Borges são “abertos para o infinito”. Ainda nas palavras de Diana Klinger, a autoficção
“se inscreve no paradoxo deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de
si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma „verdade‟ na escrita”
(KLINGER,2007:26).
Desta maneira, o pacto de leitura gerado pelo conto de Jorge Luis Borges se
aloja muito mais no terreno das incertezas e das desconfianças do que sob o abrigo de
uma classificação segura e objetiva. A autoficção propõe a ideia de uma perfomance
autoral, a ideia de um autor que, sim, deixa vestígios, pistas baseadas em sua vida, mas
que, não necessariamente está presente sob o tênue véu da escrita.
Esse conceito pode também funcionar como um interessante ponto de partida
para a observação de um outro conto de Jorge Luis Borges, “Funes, el memorioso”.
Nesse conto, Borges irá narrar a história de um uruguaio que possuía uma memória
particularmente fantástica. Talvez mais do que a narrativa em si, o que irá chamar a
atenção é a maneira como o foco da narração em primeira pessoa joga com um
simulacro de recordação:
Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar esse verbo a pronunciar sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo esse derecho y
esse hombre há muerto con una oscura pasionaria en la mano,
viendolá como nadie la ha visto, aunque lá mirara desde el crepúsculo
del día hasta el de la noche, toda una vida entera.(...)Mi deplorable condición de argentino me impedirá de incurrir en el ditirambo –
género obligatorio en el Uruguay, cuando el tema es un uruguayo.17
(BORGES,2009,vI:583)
A fantástica memória de Funes aparece como uma espécie de mise en abyme, da
recordação do narrador. A nacionalidade argentina e a própria narração em primeira
pessoa sugerem um possível espelhamento atobiográfico. Esse não é, entretanto, o ponto
no qual uma análise inicial se deve deter.
17“ Recordo-o ( não tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem na Terra teve
direito e esse homem morreu) com um escuro livro da paixão nas mãos, vendo-o, ninguém o viu, embora
o avistasse do crepúsculo do dia até o da noite, toda uma vida. (...) Minha deplorável condição de
argentino me impedirá de incorrer no ditirambo – gênero obrigatório no Uruguai, quando o tema é
uruguaio”
54
Retornando ao texto de Diana Klinger, o conceito de autoficção permance, até os
dias de hoje, como algo aberto. É justamente por esse motivo que, quando observamos
os textos de Jorge Luis Borges à luz do conceito de autoficção, conseguimos delinear
um perfil que, por mais que não necessariamente remetesse ao Borges real, à pessoa por
trás da ficção, remete sim a um personagem que Jorge Luis Borges passou toda sua vida
construindo, e que Emir Rodríguez Monegal denomina de persona.
O que encontramos em contos como “El otro” e “Funes, el memorioso” não são
apenas possíveis desdobramentos de uma vertente autoficcional de Jorge Luis Borges,
mas também indícios que apontam para aquilo que Diana Klinger denominará como
perfomance autoral. O narrador argentino que aparece em “Funes, el memorioso” não é
Jorge Luis Borges e sim Jorge Luis Borges, o jogador, o demiurgo do labirinto da
ficção, sempre presente e, no entanto , sempre ausente.
No livro de Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, o autor tece
mais considerações que serão muito produtivas, se as colocarmos em um ponto de
convergência com a obra de Jorge Luis Borges:
A primeira expressão do caráter fragmentado dessa fenomenologia ( da memória) deve-se ao próprio caráter objetal da memória:
lembramo-nos de alguma coisa. Neste sentido, seria preciso distinguir,
na linguagem, a memória como visada e a lembrança como coisa
visada. Dizemos a memória e as lembranças. Falando de maneira radical, estamos tratando aqui de uma fenomenologia da lembrança.
(...) É neste sentido que falo das “coisas” passadas. Uma vez que, na
memória-lembrança, o passado é distinto do presente, fica facultado à reflexão distinguir, no seio da memória, a questão do “o que?” da do
“como?” e da do “quem?”, (...).
Um primeiro traço caracteriza o regime da lembrança: a
multiplicidade e os graus variáveis de distinção das lembranças. A memória está no singular, como a capacidade e como efetuação, as
lembranças estão no plural: temos umas lembranças. (RICOEUR,
2007: 41)
Por mais que o fragmento acima, extraído do livro de Paul Ricoeur pareça se
distanciar do tipo de análise a que se propõe o presente trabalho, o que é delimitado pelo
raciocíonio do autor é a maneira como nossa memória acessa o conhecimento do
passado. O passado distingue-se do presente não só no campo sintático e semântico,
como insinua Ricoeur, mas também no campo material. São as lembranças, ou melhor,
o agrupamento delas que seria nossa memória, que faz com que possuamos uma
identidade. É o nosso confuso agrupamento de sensações e imagens que faz, ou melhor,
que torna plausível a afirmação “eu me lembro” ou “eu me recordo”.
55
Assim, é no espaço justaposto que existe entre o senso comum e o esboço
fenomenológico forjado por Paul Ricoeur que entra a ficção de Jorge Luis Borges. Não
somente como possíveis performances da primeira pessoa, mas também com um jogo
com aquilo que seria uma “escrita de si”. Funes, o jovem que, supostamente, motiva o
relato simbolizado pelo conto, não precisa ter nenhum tipo de ligação com o mundo
exterior. Ele é, simplesmente, o pano de fundo para um teatro muito maior que sua
própria memória fanstástica. A memória de um narrador que, frente à perfeição e
inquietude simbolizadas por Funes, parece querer justificar sua própria memória, ou
melhor, suas própria lacunas.
O que “ Funes, el memorioso” coloca em evidência é, simultâneamente, um jogo
que parecia desfrutar de certa predileção junto à pessoa de Jorge Luis Borges. Descrito
por todos aqueles que conviveram com ele como dono de uma memória perfeita e
invejável, Borges parecia gostar de “fingir” que, como já foi citado anteriormente, era
“cortés y distraído, que no verifica citas, que no vuelve atrás para corregirse, que finge
tener mala memoria: no el terso Jorge Luis Borges de la letra impresa, aquel que calcula
y mide cada coma y cada paréntesis” (SORRENTINO,2001:10). Borges acreditava-se
uma paródia de si mesmo e, mais ainda, afirmava que ele próprio dedicava-se
Para entendermos melhor o jogo que joga Jorge Luis Borges com seu leitor,
basta observarmos a seguinte passagem, oriunda da obra de Volodia Teitelboim: “ Las
cartas de su juego son las palabras. (...) La realidad es imaginaria”.(TEITELBOIM,
2003:91). Jorge Luis Borges, de acordo com Volodia Teitelboim, considera o mundo
como o desdobramento da imaginação. Artífice de seu próprio universo, Borges
inverteria os fatores da equação que regula o universo literário: a existência do mundo
não precederia a literatura, mas o inverso. A literatura possuiria o direito de prescindir
do mundo real.
A pergunta que parece emerger, no entanto, não está relacionada somente à
origem do narrador dos textos borgianos, ou mesmo de uma tentativa de mapear
indícios autobiográficos que poderiam estar perdidos em meio ao universo do escritor,
mas também a qual é o sentido da personalidade construída. Essa perfomance da
primeira pessoa pode ser ou não interpretada como uma tentativa autoficcional,
dependendo da maneira como analisemos os vestígios deixados por Borges.
Retornamos a um outro fragmento da obra de Jorge Luis Borges, anteriormente
citado:”Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo.Ao longo dos anos povoa
um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves (...)
56
e de pessoas.Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirintode linhas traça
a imagem de seu rosto” (BORGES,1985:102).Poderíamos, com base nessa citação,
afirmar que o próprio escritor parece aceitar, ao final de sua vida, a ideia de que a obra
produzida por um determinado sujeito possuiria laços indiscutíveis com a trajetória de
vida, ou melhor, com a biografia dele mesmo. De costume, afirma-se que a escrita em
primeira pessoa funciona como uma espécie de elemento catalisador do questionamento
acerca da identidade. Seria possível verificar esse tipo de comportamento na ficção de
Jorge Luis Borges?
Aparentemente, é possível afirmar que não, pois como já foi afirmado
anteriormente, Jorge Luis Borges joga com seu leitor, sem jamais afimar ou desacreditar
a verdade. Existe um outro conto de Borges que poderá fornecer outros pontos
importantes para o tipo de análise que se pretende traçar aqui: “La casa de Astérion”.
Nas breves linhas que compreendem a narrativa em primeira pessoa, o que vemos é uma
interpretação borgiana para o mito do Minotauro de Creta.
Inicialmente, a primeira característica que podemos apontar nesse conto é o fato
de o Minotauro viver preso no labirinto. Por mais que não possamos necessariamente
afirmar que existe uma ligação autobiográfica entre a vida do autor e a narração em
primeira pessoa desenvolvida no conto, observemos a seguinte citação:
O certo é que me criei num jardim, atrás duma grade com lanças, e
numa biblioteca de ilimitados livros ingleses. Palermo da faca e da
guitarra andava (me garantem) pelas esquinas, mas os que povoaram
minhas manhãs e deram agrádavel horror a minhas noites foram o bucaneiro cego de Stevenson, agonizando sob as patas dos cavalos, e
o traidor que abandonou seu amigo na lua e o viajante do tempo, que
trouxe do futuro uma flor murcha, e o gênio encarcerado durante séculos no cântaro salomônico e o profeta velado do Jorasán, que se
ocultava atrás das pedras e da seda que ocultava a lepra. ( BORGES,
apud RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:21)
A citação acima foi extraída do prefácio de Evaristo Carriego, no qual Jorge Luis
Borges explicaria como funcionariam as referências presentes em sua obra. Observemos
essa outra citação, extraída de “La casa de Astérion”:
Sé que me acusan de soberbia, y tal vez de misantropía, y tal vez de loucura.Tales acusaciones (yo castigaré a su debido tiempo) son
irrisorias. Es verdad que sus puertas (cuyo número es infinito) están
bien abiertas día y noche a los hombres y también a los animales.18
18 “Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que
castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade
que suas portas (cujo número é infinito) Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez
57
Tanto o Minotauro, narrador do conto, como o próprio Jorge Luis Borges, afirmam
habitar um labirinto: o primeiro, um labirinto empírico, para o qual a saída seria a
morte; o segundo, o labirinto metafísico, o labirinto criado pelo infinito da literatura,
para o qual a saída seria apenas uma suposição.
Diana Klinger, ainda em sua obra Escritas de si, escritas do outro: o retorno do
autor e a virada etnográfica, explicita como todo tipo de ficções que envolveriam o
“eu” gerariam uma certa dose de polêmica, pois, de algum modo, a questão dos gêneros
acaba por envolver duas constatações extremas: “ Toda obra literária é autobiográfica (
até certo ponto) até o fato de que a autobiografia pura não existe”(KLINGER,2007:39).
A autora ainda irá se aprofundar mais nessa ideia, oriunda de Paul de Man, segundo o
qual “assim como afirmamos que todos os textos são autobiográficos, devemos dizer
que por isso mesmo nenhum deles o é ou pode ser”(KLINGER,2007:39). Decidir ou
não por uma leitura autobiográfica caberia ao leitor, o que de certa forma, não deixa de
constituir uma espécie de retorno ao pacto autobiográfico proposto por Philippe
Lejeune.
Assim, tendo todas essas assertivas em vista, qual será o caminho a ser tomado,
tendo em mãos a obra de Jorge Luis Borges? O caminho que se bifurca, responde a
própria ficção borgiana. Como já foi citado anteriormente, a ficção de Jorge Luis
Borges é a que se encontra no interior do caleidoscópio, mantendo, desta maneira, seu
potencial sempre voltado para o infinito.
“A ficção seria superior ao discurso autobiográfico pois o escritor não tem como
prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma
matéria contingente”(KLINGER,2007:39)”, afirma Diana Klinger e é realmente isso
que podemos constatar na literatura de Jorge Luis Borges. A multiplicidade de leituras
que se oculta sob o universo dos contos de Borges coloca em evidência como nunca
podemos ter a ambição de totalizar o pensamento artísitico. Nada é autobiográfico, da
mesma maneira que tudo é autobiográfico.
Em Pós-escrito a O nome da rosa, Umberto Eco afirma que um texto deve “
gerar leituras sempre diversas, sem nunca esgotar-se completamente” (ECO,1985:13).
Logo, partindo dessa afirmação, torna-se possível observarmos como “La casa de
de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de
minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito) estão abertas dia e noite aos
homens e também aos animais”.
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Astérion” pode ser lido à luz do arcabouço teórico autobiográfico. Em seu Ensaio
autobiográfico, Jorge Luis Borges afirma que:
Si tuviera que señalar el hecho capital de mi vida, diría la biblioteca de
mi padre. En realidad, creo no haber salido nunca de esa biblioteca. Es como si todavía la estuviera viendo. Ocupaba toda una habitación, con
estantes encristalados, y debe haber contenido varios miles de
volúmenes. (BORGES, 1999:24)
A biblioteca paterna, filtrada pelos olhos míopes do jovem Borges, parecia
multiplicar seus volumes infinitamente ao longo de suas prateleiras. Um dos ponto que
parece distanciar vida e ficção é o fato de que o narrador em “La casa de Astérion”
parece querer enfatizar o fato de não saber ler: “Cierta impaciencia generosa no hay
consentido que yo aprendiera a leer. A veces lo deploro, porque las noches y días son
largos”(BORGES,2009:684). Será que poderíamos, com base no raciocínio
desenvolvido por Diana Klinger, afimar que, de algum modo, a vida do autor foi
“matéria contingente” para a construção da ficção? É provável que não. O que
realmente irá importar, no jogo da aproximação autobiográfica, não será a real e
verificável similaridade entre vida e ficção, mas até que ponto podemos escutar, sob a
delicada parede da construção literária, o eco das palavras do autor real. É necessário
que se caminhe na contramão da visão tradicional, que une autor e obra em uma única e
sólida indivisibilidade, mas também sem negar a existência desse sujeito, verdadeiro
catalisador da atividade literária. A separação entre autor e obra “não impede que ele
tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras,
trazendo nelas seu gênio ou sua desordem”(FOUCAULT, 2006: 28) que existe, na
realidade, é a obra que se constrói numa espécie de espelhamento do autor, mas que se
sustenta sem a necessidade de uma ligação tão direta. A única regra que parece imperar
na escrita borgiana não é a do simples espelhamento, mas, se pudermos levar esse
conceito às últimas consequências, seria a do espelhamento deformante.
Em um simples espelho plano, com a superfície lisa e perfeitamente polida, uma
figura é refletida em suas reais proporções tendo, somente, seus lados invertidos.
Quando, porém, pensamos em uma superfície côncava ou convexa, conforme postulam
as leis da Física, sabemos que a imagem reproduzida não será fiel ao objeto refletido. A
enantiomorfia que existe no espelho plano é desestabilizada pela irregularidade da
superfície desses espelhos.
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Com base nessas breves elucidações acerca de uma teoria dos espelhos,
podemos voltar a observar os vestígios encontrados na ficção borgiana. Pelos contos
que já foram analisados até o momento, podemos afirmar que Jorge Luis Borges levou
até o último patamar a ideia de usar a própria vida como uma matéria prima para sua
escrita. Em “O outro”, “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”, podemos
identificar pequenos traços, ou melhor, pequenos cacos da autoria borgiana espalhados
por uma ficção que parece tê-los deformados e reconstruídos. Jorge Luis Borges parece
olhar-se em sua própria obra e, como em um espelho côncavo ou convexo, se
transforma em minotauro, em si mesmo ou em um jovem com uma impressionante
memória. Todos possuem algo de Borges, ao mesmo tempo em quem são personagens
sem qualquer tipo de ligação real com seu autor.
Um dos pontos mais importantes a ser ressaltado nesses três contos é,
obviamente, a atmosfera fantástica na qual se encontra inserida a questão de uma
possível leitura autoficcional. Sobre a definição do fantástico, Tzetan Todorov afirma
que “ num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas
leis deste mesmo mundo familiar”(TODOROV,2007:30).Tzevtan Todorov ainda sugere
que o acontecimento fantástico pode ser uma ilusão dos sentidos ou um fato que
realmente escaparia às regras do mundo real e que, por isso mesmo, seriam regido por
outras leis. Logo, relacionar a questão do fantástico aos vestígios autobiográficos
presentes nos contos pode funcionar, também, como uma maneira de nos aproximarmos
ainda mais de uma possível resposta aos questionamentos colocados pela aura fora do
comum que envolve os acontecimentos narrados nos contos.
A primeira resposta possível para essa pergunta seria o fato de que a atmosfera
construída por Borges em “El otro”, “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”
coloca em evidência muito mais a atmosfera irreal do que a questão autobiográfica,
sobretudo em “Funes, el memorioso” e “La casa de Astérion”. Nunca seria possível
imaginar ouvir, sob o eco das palavras do protagonista de “La casa de Astérion”, o
Minotauro de Creta, as palavras de um possível Jorge Luis Borges, o bibliotecário
eterno da biblioteca infinita.
Uma outra possibilidade seria também a maneira como Jorge Luis Borges
mesclou sua escrita crítica ao universo ficcional de suas obras. Em Borges crítico,
Sergio Pastormerlo afirma que “Borges fue, ante todo, un crítico, y que la poesía y la
narracíon ocuparon un lugar lateral en su literatura”(PASTORMERLO,2007: 17). Essa
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ideia parece particularmente produtiva se pensarmos que Borges foi, sempre e muito
antes de se tornar um narrador, um leitor voraz e um crítico exigente. Talvez por essa
razão sua obra seja povoada de imagens recorrentes do universo literário e intertextos
que se estendem para muito além da simples mise-en-abyme.
Sergio Pastormerlo ainda afirma que :
La crítica fue el el único género presente en todas las etapas de su
producción literaria: Borges no siempre fue un narrador (década de
1920), no siempre fue un poeta (décadas de 1930 y 1940), pero siempre fue un crítico. Más allá del anecdotario infantil, el primer
texto publicado una reseña, y su muerte interrompió lá escritura de la
serie de prólogos de la “Biblioteca personal”. Otro argumento prodría
referirse, sin escrúpulos aritméticos, a las dimensiones de la crítica borgeana – integrada por algo más de mil textos. Un tercer argumento
podría sostener que, en el marco de su literatura ( que hablaba
incesantemente sobre lá literatura misma), la crítica funcionó como um género dominante que invadía el territorio de otros
géneros.(PASTORMERLO,2007:17)
Jorge Luis Borges teria sido muito mais uma referência crítica do que literária. O
que, por conseguinte, justificaria a aproximação que existe entre o autor e sua obra,
pois uma vez que a obra de Borges dobra-se sobre si mesma, toda e qualquer
semelhança que exista entre o autor e seus personagens poderia encontrar abrigo não
só no conceito de espelhamento, mas também na ideia de que apenas um crítico
poderia arquitetar um universo no qual a literatura falaria da própria literatura.
Um outro conto que pode colocar em evidência as características apontadas por
Sergio Pastormerlo é “La memoria de Shakespeare”. Nesse conto, a primeira
característica que podemos constatar é o fato de o narrador se identificar
imediatamente como um leitor de Shakespeare: “Shakespeare ha sido mi destino”,
afirma Hermann Soergel. Apesar de ser um narrador nomeado e, sobretudo, com um
nome que difere do de seu autor, Hermann Soergel guarda muitas semelhanças com
Jorge Luis Borges. Antes de iniciar a contar o episódio que será o cerne do conto,
também de natureza fantástica, o narrador irá contar como conheceu Daniel Thorpe,
figura essencial para o desenrolar da história: “Más importante que la cara de Daniel
Thorpe, que mi ceguera parcial me ayuda a olvidar, era su notoria desdicha.”19
(
BORGES,2009, vIII:474)
19 “Mais importante que o rosto de Daniel Thorpe, que minha cegueira parcial me ajuda a esquecer, era
sua notória infelicidade”(trad. da autora)
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No fragmento supracitado, mais do que o relato sobre a desgraça evidente de
Daniel Thorpe, é a maneira como o narrador admite sua já parcial cegueira. De
maneira análoga a Jorge Luis Borges, ele parece estar perdendo a visão ou parece
mesmo já tê-la perdido. Também poderíamos apontar como aproximação entre
Hermann Soergel e Jorge Luis Borges a óbvia admiração por William Shakespeare.
Com base no arcabouço teórico fornecido por Sergio Pastormerlo, poderíamos
afirmar que esse é um conto no qual vemos nitidamente a influência do universo
crítico sob o domínio da literatura. A narrativa continua e Daniel Thorpe confessa que
possui duas memórias: a sua própria memória pessoal e a de Shakespeare: “Hay una
zona en que se confunden. Hay una cara de mujer que no sé a qué siglo atribuir”
(BORGES,2009, vIII:475) 20
. A partir desse momento, o narrador começa a cobiçar a
memória do poeta inglês. O mais curioso é que Daniel Thorpe afirma que o fato de
possuir a memória de Shakespeare não lhe trouxe nenhum tipo de benefício ou
celebridade: “─ He escrito uma biografía novelada que mereció desdén de la crítica y
algún éxito comercial en los Estados Unidos y en las colonias.Creo que es todo”.
Após ouvir o relato de Thorpe, o narrador aceita a memória de Shakespeare, que
de acordo com o relato, deveria ser oferecida e aceita através de uma simples proposta
oral. O mais curioso não é, como poderia ser esperado, a faceta fantástica do conto, ou
mesmo a atmosfera usual que é conferida à memória do bardo inglês, mas o fato de
que o personagem ambiciona ter a memória de Shakespeare para suprimir uma
espécie de busca crítico-teórica que havia passado a vida inteira empreendendo.
Ao analisar o teor fantástico dos contos de Jorge Luis Borges, Emir Rodríguez
Monegal afirma que:
A obra de arte parece possuída de uma realidade em segundo grau
desde o momento em que dentro dela se introduz outra obra de arte.
Esta alteração retórica da realidade é que interessa Borges, já que permite indicar a possibilidade de outra alteração retórica: a da função
do leitor. (RODRIGUEZ MONEGAL, 1987:64)
Poderíamos considerar que a presença do legado de Shakespeare, descrito no
conto como a real memória do autor, seria também um desdobramento da obra de arte
que, nas palavras de Monegal, irá propiciar uma alteração da realidade e, sobretudo, do
20 “ Escreveu uma biografia romanceada que mereceu o desdém da crítica e algum êxito comercial nos
Estados Unidos e nas colônias. Creio que é tudo”. (trad. da autora)
62
papel do leitor. Como, porém, essa afirmação corroboraria a leitura dos contos
borgianos que se pretende desenvolver aqui?
Primeiramente, porque essa modificação que tem por fim mudar a posição do
leitor frente ao texto já pode ser tomada como um indício do espelhamento deformante
de Jorge Luis Borges. O autor nunca teve como objetivo fazer como que o leitor
aceitasse o pacto autobiográfico, ou mesmo buscou, através dos caminhos tortuosos de
sua ficção construir uma espécie de perfil. Pelo contrário, todos os caminhos levam a
diferentes Borges, que não são, em hipótese nenhuma, a soma do eco das palavras de
seus mais peculiares narradores.
Um outro argumento que devemos levar em consideração é, se observarmos em
especial a trama descrita em “La memoria de Shakespeare”, a influência do universo
crítico-teórico, como apontado por Sergio Pastormerlo: “ De Quincey afirma que el
cerebro del hombre es un palimpsesto. Cada nueva escritura cobre la escritura anterior y
es cubierta por la que siegue, pero la memoria todo poderosa pode exhumar cualquier
impresíon, por moméntanea que haya sido, si le dan estímulo
suficiente”(BORGES,2009,v.III:477). Apesar de todo universo construído no conto ser
nitidamente fantástico, poderíamos apontar a predominância das referências como um
traço pertencente ao universo pessoal borgiano. Entretanto, o que pertence a Borges não
necessariamente é Borges.
A conclusão de “La memoria de Shakespeare” é, no entanto, seu trecho mais
peculiar. Após meses atormentado com os sonhos do autor inglês, “A medida que
transcurren los años todo hombre está obligado a sobrellevar la creciente carga de su
memoria. Dos me agobiaban, confundiéndose a veces: la mía y la del outro,
incomunicable”(BORGES,209:480) , o narrador por fim decide terminar com seu
tormento. Resolve passar a memória de Shakespeare a diante, da maneira mais casual
possível ( ou da mais absurda, se pensarmos sob uma outra ótica). Durante uma ligação
telefônica, simultaneamente escolhida com cuidado e acaso, Hermann Soergel passa
para um homem desconhecido a memória que havia lha concedido Daniel Thorpe. Isso,
entretanto, não bastou para que ocorresse um real desligamento da obsessão por Willian
Shahespeare: “Ese y otros caminos fueron inutiles: todos me llevaban a
Shakespeare”(BORGES,2009,vIII: 481). É em um desfecho como esse que podemos
observar como a ficção de Jorge Luis Borges conduz a caminhos distintos, a caminhos
que se bifurcam e que, ironicamente, conduzem a diferentes facetas de seu autor.
63
Em Culturas híbridas, Néstor Garcia Canclini afirma que grande parte do que
entendemos como a figura pública Jorge Luis Borges não passava de uma teatralização.
“Em seus últimos anos, Borges foi mais do que uma obra que se lê, uma biografia que
se divulga”(GARCIA CANCLINI,2000:108), afirma Canclini. Aparentemente, a cultura
(pós)moderna teria substituído o gosto da leitura pelo conhecimento de episódios da
vida do autor. Assim, poderíamos acreditar que o Borges dos últimos anos, que
antecederam sua morte, era, também mais uma criação de seu demiurgo máximo para
sobreviver em meio a uma cultura de massas. É importante salientar que, uma vez que a
postura da sociedade frente ao artista e frente à literatura mudou, o mesmo processo se
deu em relação à leitura dos contos de Jorge Luis Borges.
Esse fenômeno explica o fato de o conto a ser analisado a seguir continuar
sendo, após anos, o favorito dos biográfos de Jorge Luis Borges. Em “El sur”, veremos
claramente encenado um dos episódios que mais marcou a vida de seu autor real: um
acidente que acabou sendo determinante no desenvolvimento da doença que o cegou.
“El sur” é, diferentemente de todos os outros contos que já foram contemplados
por essa análise, narrado em terceira pessoa. Essa modificação do foco narrativo irá,
obviamente, alimentar ainda mais o fato de que o espelhamento autobiográfico é, não só
uma possibilidade deste conto, mas uma espécie de realidade da leitura. Nessa narrativa,
será contada a história de Johannes Dahlmann, pastor evangélico de origem germânica
que se sentia profundamente encantado pela vida no pampa.
O que chama atenção no desenrolar da narrativa é que, logo no início,
encontraremos o relato do acidente, que se assemelha muito ao acidente sofrido por
Jorge Luis Borges em 1938, após o falecimento de seu pai:
Dahlmann había conseguido, esa tarde, un ejemplar descabalado de Las mil y una noches de Weil; ávido de examinar esse hallazgo, no
esperó el ascensory subió con apuro las escaleras; algo en lá oscuridad
le rozó lá frente. ¿ un murciélago, un pájaro? En la cara de lá mujer
que le abrió lá puerta vio grabado el horror, y la mano que se pasó por la frente salió roja de sangre. La arista de un batiente recién pintado
que alguien se olvidó de cerrar le habría hecho esa herida.Dahlmann
logró dormir, pero a la madrugada estaba despierto y desde aquella hora el sabor de todas las cosas fue atroz.La fiebre lo gastó y las
illustraciones de Las mil y uma noches sirvieron para decorar
pesadillas. (BORGES, 2009,vI: 633)21
21“ Dahlmann tinha obtido, essa tarde, um exemplar incompleto das Mil e uma noites, de Weil; ávido de
examinar esse achado, não aguardou que descesse o elevador e subiu apressado às escadas; algo na
escuridão roçou-lhe a fronte; um morcego, um pássaro? Na fisionomia da mulher que lhe abriu a porta,
viu gravado o horror, e a mão que passou na testa saiu rubra de sangue. A aresta de um batente recém-
pintado que alguém esqueceu de fechar tinha-lhe feito essa ferida. Dahlmann conseguiu dormir, mas pela
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Jorge Luis Borges, de forma análoga a seu personagem, também bateu com a
cabeça em um batente, o que provocou-lhe um episódio de septicemia quase fatal. A
descrição desse evento poderia ser, talvez, um verdadeiro rasgo autobiográfico em meio
à obra de um autor que sempre foi conhecido por seus jogos com espelhos e com o
falseamento.
Por mais que a resposta para essa questão possa ser positiva, isso não transforma
“O sul” em um conto autobiográfico, pelo contrário. Na continuação da narrativa, o
personagem decidirá empreender uma viagem até os pampas, que nunca se realizará.
Ele acabará se envolvendo em uma briga,na qual sem dúvida morrerá: “ Sentiu que se
ele pudesse, então, houvesse podido escolher ou prever sua morte, esta é a morte que
teria escolhido ou sonhado”. Por mais que seja possível admitir a leitura autobiográfica
desse conto, é importante salientar mais alguns pontos importantes acerca da diferença
entre a autobiografia como conhecemos, e a autoficção, terminologia que foi cogitada
no princípio deste capítulo também como uma possibilidade de leitura velada existente
nos textos de Jorge Luis Borges.
Sobre essa distinção, Diana Klinger irá afirmar que “ambas as estratégias se
distinguem pelo grau de ficcionalidade: a diferença entre ambas reside nos elementos
que permitem ao leitor fazer uma validação da identificação, quer dizer, no nível da
verossimilhança”(KLINGER,2007:46). Assim, o que difere as duas categorias não é
somente um grau ficcional que poderíamos mensurar, mas também pelos elementos que
permitiriam a um leitor qualquer fazer a ponte entre a vida do escritor e a ficção por ele
escrita.
Com base nessas afirmações, é quase possível aceitar que um conto como “El
sur” seja muito mais um episódio da vida do próprio Jorge Luis Borges do que uma
mera fabulação ao acaso. Muito embora isso esteja mais evidente nesse conto em
especial, poderíamos afirmar que todos os contos que foram aqui analisados permitem
que tracemos uma linha, por mais sinuosa que esta seja, até alguma característica da
vida de seu autor.
É, entretanto, nessas linhas que podemos constatar o grande jogo da literatura
borgiana: o labirinto , minotauro e a biblioteca são espelhamentos de Borges, são o
próprio Borges, mas somente na medida em que temos consciência de que tudo é um
madrugada achava-se desperto e desde aquela hora o sabor de todas as coisas foi atroz. A febre o
desgastou e as ilustrações das Mil e uma noite serviram para decorar pesadelos.”
65
jogo. As referências que remetem ao próprio autor são, simultaneamente, verdadeiras e
falsas, são fatos deformados pelo espelho côncavo de uma ficção que se encontra
alojada em um terreno movediço. Logo, aceitar que mesmo aquilo que parece ser
oriundo da vida do autor possa realmente ser tomado como um desdobramento da
referencialidade da escrita é, por fim, a ambígua questão que gostaríamos de colocar
aqui. Entrar no labirinto de Borges significa, também, desejar compartilhar do jogo.
A resposta máxima e simbólica para o jogo desenvolvido em toda a ficção
borgiana encontra-se em um texto que já foi analisado aqui anteriormente, “Borges y
yo”. Nele, o escritor brinca, não só com a questão do próprio nome, mas com a
celebridade da qual é portador e com o papel do escritor perante a sociedade. Conforme
afirmou Néstor Garcia Canclini, “ele também conheceu o incômodo de ser Borges, os
sobressaltos pelo que se tem passar para manter um projeto artístico culto em meio à
massificação cultural” (GARCIA CANCLINI,2000:109)
Na verdade, o grande jogo da narração borgiana e da desconstrução de um
suposto pacto autobiográfico nos referidos contos que são narrados em primeira pessoa,
consiste, sobretudo, no fato de toda a ideia de confissão ou de aproximação entre autor e
narrador estar apoiada no “eu”, essa “entidade complexa e
vacilante”(SIBILIA,2008:31), conforme irá afirma Paula Sibilia em O show do eu: a
intimidade como espetáculo. A autora ainda se aprofunda nesse raciocíonio e chega a
afirmar que aquilo que chamamos de “eu”, a primeira pessoa do discurso, “é uma ficção
gramatical, um eixo móvel e instável onde convergem todos os relatos de
si”(SIBILIA,2008:31). O que vemos, na verdade, é uma reiteração daquilo que Néstor
Garcia Canclini diagnosticou como sendo uma estratégia do autor para resistir à cultura
de massas, uma espécie de encenação ou perfomance da primeira pessoa do discurso,
propositalmente se aproximando do demiurgo máximo da literatura por ela engendrada,
Jorge Luis Borges.
Ainda em sua obra O show do eu: a intimidade como espetáculo, Paula Sibilia
irá esclarecer também o papel que é outorgado à linguagem no complexo meandro da
narrativa autobiográfica: “A linguagem não só ajuda a organizar o tumultuado fluir da
própria experiência e dar sentido ao mundo, mas também estabiliza o espaço e ordena o
tempo, em diálogo constante com a multidão de outras vozes que também nos modelam,
coloreiam e recheiam”(SIBILIA,2008:31). O que vemos, porém, é como o narrar
cristalino de Jorge Luis Borge desestabiliza pela maneira como transforma o fantástico
em usual, em como não hesitar em transformar a própria vida em matéria-prima da
66
escrita. A escrita de Borges não é, em absoluto, uma escrita memoralista nos padrões
formais. O que não implica dizer que, ao reconstruir o acidentado e tortusoso caminho
de suas ficções, não possamos atingir uma faceta, ainda que não seja a verdadeira, do
Borges real, daquele que realmente se encontrava por trás das bibliotecas, dos labirintos
e dos minotauros.
No Teeteto, Platão, por meio das palavras de Sócrates, expõe a analogia um
tanto quanto curiosa do bloco de cera: “...que se trata de uma dávida de Mnemenosine,
mãe das musas, e que sempre que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou
mesmo pensado, calcamos a cera mole...”. A memória que temos de um fato, objeto, ou
mesmo de um indivíduo é, de acordo com Platão, uma impressão indelével que
deixamos no bloco de cera que possuímos em nossa mente. Assim, com base nessa
interessante analogia, poderíamos afirmar que, quando a leitura de um texto nos evoca
Jorge Luis Borges, isso quer dizer que já possuíamos uma ideia prévia do que
acreditávamos ser a figura do escritor.
A palavra “fantasma” possui quatro diferentes acepções previstas pelo
Dicionário Aurélio. São elas: 1.Imagem ilusória. 2. Visão apavorante. 3. Suposto
reaparecimento de defunto sob forma indefinida; assombração, espectro, aparição,
sombra, visagem, visão. 4. Pessoa magríssima, macilenta. Dentre todas essas
possibilidades, apenas a primeira nos interessa. O que podemos verificar, ao final desta
análise dos contos de Jorge Luis Borges, é que não é um mero reflexo de seu autor que
podemos encontrar neles. O fantasma de Borges habita sua ficção. Por meio de todos os
artifícios que empreendeu durante toda sua vida, Jorge Luis Borges conseguiu duplicar,
ou melhor, multiplicar sua figura no espelho do infinito, permeando assim toda sua
inumerável ficção com pequenos vestígios de uma personalidade que, sim, remetia à sua
figura real, mas que não necessariamente condizia com o Borges que empiricamente
existia. Labirintos, minotauros e bibliotecas são apenas fantasmas de um Borges que
não existiu.
Capítulo 3: Através do espelho da memória: Jorge Luis Borges por Adolfo Bioy
Casares e Estela Canto
Em sua Arte poética, Aristóteles irá traçar um perfil daquilo que foi inicialmente
chamado por Platão de imitação, e que hoje interpretamos como uma verdadeira
proposta de classificação das expressões artísticas. No capítulo III, Aristóteles afirma
que:
Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas
situações e numa simples narrativa, seja pela introdução de um terceiro personagem, como faz Homero, seja insinuando-se a própria
pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda apresentando a
imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem as ações elas próprias (ARISTÓTELES, 2003:28)
Por mais que as considerações estejam relacionadas à questão da poesia, elas
não deixam, no entanto, de servir como um interessante mote para refletirmos sobre a
questão que será proposta no presente capítulo, a ideia de biografia. Com base no
arcabouço teórico aristotélico, podemos, então, questionar como será possível confiar
em um relato, que por mais que tenha como matéria-prima acontecimentos reais, será,
ainda assim, também uma fonte de questionamentos. Na citação destacada acima,
Aristóteles afirma que a imitação é possível, sobretudo se forem observados os
parâmetros narrativos e a introdução daquilo que o autor denomina de “terceiro
personagem”, ou seja, mais um constructo discursivo que servirá para demonstrar a
aplicabilidade daquilo que, na época em questão, era tido como o ideal de boa literatura.
A questão de um possível “terceiro personagem” nos leva a questionar o que
será apresentado nas obras que servirão como escopo temático para o presente capítulo:
Borges, um compêndio de aproximadamente 1600 páginas, todas oriundas dos diários
pessoais do escritor Adolfo Bioy Casares, e Borges à contraluz, obra de autoria da
escritora argentina Estela Canto, mulher com quem o escritor Jorges Luis Borges
manteve um complexo relacionamento amoroso.
Antes, entretanto, de iniciarmos uma análise propriamente dita das obras, faz-se
necessário que observemos também algumas considerações de Platão acerca daquilo
que foi denominado imitação. Platão, na República, irá afimar que tudo aquilo que se
distancia do que conhecemos por realidade, ou melhor, pela faceta empírica do universo
no qual estamos imersos, pode ser considerado como falso. Por esse mesmo motivo,
Platão irá expulsar o poeta de seu modelo de república ideal. A arte basearia em uma
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falsificação, em um distanciamento, o que não a qualificaria para inclusão em um
mundo considerado que possuiria como princípio a verdade e a retidão. Há que se fazer
a ressalva que Platão abre uma exceção para a poesia ou arte que, como a poesia
homérica, fosse dedicada a divulgar os melhores valores da realidade.
Poderíamos, então, reler a teoria forjada por Platão à luz do que conhecemos por
biografia. De acordo com o senso comum, seria possível afirmar que a biografia é a
descrição da vida de um determinado indivíduo. Essa definição inicial induz a
acreditarmos que, sob a ótica platônica, a descrição de uma vida poderia, talvez, ser
considerada um fenômeno artístico não baseado no falseamento e na representação.
A realidade, no entanto, é muito distante daquilo que a teoria preconiza como
real. Narrar a vida de uma outra pessoa incorre, fatalmente, no fato de que toda a
representação proposta pelo universo literário se apóia, incondicionalmente, na relação
que existe entre a escrita e a fidelidade. Como já foi explicitado no presente trabalho
anteiormente, parte da questão teórica que circunda a auotbiografia ainda repousa na
ideia do pacto autobiográfico, forjado por Philippe Lejeune na década de 1970. O
mesmo pacto aparentemente não se aplicaria à biografia, uma vez que a narração em
terceira pessoa a eximiria de toda e qualquer questão relativa ao falseamento do
narrador. A biografia, o relato em terceira pessoa, e pode ser ou não narrado pelo
indivíduo que também se encontra no centro do relato.
Ainda em sua Arte retórica, Aristóteles afirma que “A tendência para a imitação
é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos de
todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela
imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimentamos
prazer”. A tendência que possuímos, de acordo com Aristóteles, pode também ser
interpretada como uma inclinação que todos possuímos para a criação e para a
inventividade. Toda a atividade do ser humano encontra-se fundamentada em algum
processo criativo ou, para usar a terminologia do filósofo grego, na imitação.
Aprendemos e compreendemos através da repetição, da invenção, e, sobretudo, da
observação.
Essas afirmações podem relacionar-se com a ideia de biografia que se pretende
traçar nesses avanços introdutórios na medida em que, é importante ressaltar, a
biografia não deixa de ser uma atividade imitativa. Conta-se, ou melhor, narra-se a
história da vida de uma pessoa, o que não quer dizer que o ponto de vista contemplado
pela narrativa será necessariamente verdadeiro. O mundo que acreditamos real é
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constituído por fatos multifacetados, momentos que se desdobram em acontecimento
inúmeros. Assim, acreditar que o ponto de vista escolhido por um determinado
indivíduo será o melhor para narrar a vida, ou melhor, narrar os fatos que constituiriam
a vida de um outro indivíduo é assinar, ou melhor, endossar o pacto sugerido pela
biografia.
No caso das obras selecionadas para constituir o corpus do presente capítulo, é
importante ressaltar que ambas constituem casos particulares. Os diários de Adolfo Bioy
Casares contam não só fatos da vida do próprio escritor, mas colocam em evidência os
meandros de sua relação íntima com Jorge Luis Borges. Claro que a intenção de Bioy
nunca foi, provavelmente, ver esses diários publicados, mas, por essa mesma razão, o
fato de a figura de Jorge Luis Borges ser citada de forma tão recorrente faz com que
possamos considerar Borges como uma biografia do escritor argentino. Já o livro de
Estela Canto constitui um caso ainda mais curioso. Por ter se relacionado com Jorge
Luis Borges durante um período longo, inicialmente como uma espécie de namorada e
depois como amiga, Estela Canto nos oferece um perfil de Jorge Luis Borges, como
propõe o título de seu livro, à contraluz. O que encontramos nas páginas do livro de
Estela Canto é, também, de certa forma, uma espécie de biografia, pois uma vez que a
escritora pretende contar, com certa riqueza de detalhes, o desenrolar de seu
relacionamento com Jorge Luis Borges, ela acaba por delinear algo que é muito mais
uma biografia do que um mero relato de um período de sua própria vida.
Pensar em duas obras tão díspares e tão peculiares sem ter como ponto de
partida o universo biográfico acaba por se colocar como uma impossibilidade. Afinal,
não são ambas uma espécie de desdobramento do que seria um dos mais incertos
gêneros? Intencionalmente ou não, as obras de Estela Canto e Adolfo Bioy Casares nos
oferecem um perfil possível de Jorge Luis Borges. Personagem, persona ou autor, o que
vemos cristalizado nas páginas dos dois livros é, indiscutivelmente, um reflexo de Jorge
Luis Borges.
O livro de Estela Canto é aberto por uma introdução na qual a autora explicita,
sob seu ponto de vista, quais seriam as principais diretrizes que guiariam a obra de Jorge
Luis Borges: “ Borges insistiu em quase todos os seus contos, em seus poemas, até em
algumas entrevistas deturpadas – como são a maioria – que um homem é „todos os
homens‟. Ou seja, o homem encerra em si mesmo todas as possibilidades; o homem é o
microcosmo”. (CANTO, 1991:13). Mantendo à parte todas as interpretações possíveis
que poderiam ter como origem as afirmações da autora, o que inicialmente chama a
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atenção é a maneira como a autora parece, ou melhor, afirma ter pleno conhecimento
das regras que regiam a cosmogonia literária borgiana, como se, poderíamos
conjecturar, as tivesse ouvido do próprio Borges.
Na sequência da introdução, Estela Canto irá continuar a insistir sobre como
Jorge Luis Borges havia de fato herdado essa concepção de um legado judaico e como
ele, descrito por ela como “um homem galhofeiro”, cumpriu apenas até certo ponto o
mandamento que diz que as últimas verdades deveriam ser veladas. A verdade que
impera na obra de Jorge Luis Borges não é única, coerente, mas “angular e
fragmentada”, para usar as palavras de Thomas de Quincey que o próprio Borges
escolhe para epígrafe de um de seus contos. O que mais chama a atenção é a escritora
afirmar que Jorge Luis Borges era, na realidade, alguém que jogava com as referências,
mas também com o universo no qual estava imerso.
Ainda na mesma introdução, Estela Canto afirma sobre o que tratará seu livro:
A personalidade de Borges era enganadora, escorregadia; para cada
pessoa que o conhecia, ou que acreditava conhecê-lo, ela era um tipo
diferente de homem. E muitas vezes bem diverso do homem que outros haviam visto, admiradores ocasionais que o visitavam em seu
apartamento da rua Maipú. Sua peculiar galanteria, velada e que
costumava passar despercebida, levava-o a mostrar para as pessoas o Borges que elas queriam ver.
Tive a sorte de conhecê-lo nos anos talvez mais decisivos de sua vida,
os anos de maturidade como escritor; fui sua amiga íntima desde os
seus quarenta e cinco até os cinquenta e dois anos. Nessa época me dedicou um conto que muitos consideram sua obra mais importante: O
Aleph.
Borges provavelmente foi o escritor mais original da segunda metade do nosso século.(CANTO,1991:14)
Mais uma vez, o que salta aos olhos no fragmento acima é o fato de a autora
afirmar que, para cada pessoa, Jorge Luis Borges tinha a capacidade de ser uma pessoa
diferente. Jorge Luis Borges parece, visto pelos olhos de Estela Canto, muito mais um
personagem, ou melhor, um ator, do que um indivíduo real. Poderíamos mesmo afirmar,
com base no fragmento acima, que o escritor argentino parece ter levado às últimas
consequências um processo que era oriundo de sua construção literária.
Estela Canto parece ainda se orgulhar de ter ganho de Borges a dedicatória de O
Aleph. Esse fato, quando contraposto às outras afirmações contidas na mesma
introdução, fica ainda mais complexo. A autora irá afirmar:
Muitos anos depois, um jornalista me perguntou: “ Que é O Aleph?”, e respondi: “ É o relato de uma experiência mística” . Quando
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mencionei isto a Georgie, me dei conta de que ele não havia esquecido
meu artigo, escrito trinta e cinco anos antes. Disse-me: “ Você foi a
única pessoa que falou isso”, dando a entender que podia haver certa
verdade na afirmação. Ele apreciava esse julgamento, que se opunha à ideia difundida entre os escritores argentinos – que o julgavam um
autor frio e geométrico, um criador de jogos puramente
intelectuais.(CANTO,1991:15)
Primeiramente, a autora havia afirmado que Jorge Luis Borges encenava, para
cada pessoa que o conhecia, o escritor que elas esperavam conhecer. Após essa
afirmação, no mesmo preâmbulo que antecede a obra na qual a autora afirma que irá
conceder a seu leitor as chaves de leituras para o caráter de Borges, que aparentemente
estavam contidas no labirinto de sua ficção, Estela Canto parece cair em sua própria
armadilha. Se, para cada pessoa, Borges podia ser algo único e peculiar, como
poderíamos acreditar que ele próprio aceitava essa leitura de O Aleph, ou que, ainda
assim, era contrário à ideia de que sua literatura se baseava apenas em jogos labirínticos
e geométricos, uma vez que o próprio escritor havia passado sua vida construindo essa
imagem?
Todas as relações que podemos estabelecer nos terrenos (auto)biográficos serão
sempre permeadas de desconfiança. Mesmo um narração como a de Estela Canto, que
se propõe, desde o começo, expor os meandros de sua relação com Borges e, por
conseguinte, oferecer uma chave de leitura da prosa do escritor baseada nos fatos de sua
vida, está também ela alojada em um território movediço. Walter Benjamin, em “ O
narrador”, afirma que o mundo moderno nos torna, a cada dia, mais impossibilitados de
narrar, ou ainda, de transmitir experiências por meio do relato individual. Claro que, por
mais que a literatura não possa ser completamente inserida no nicho teórico proposto
por Walter Benjamin, é preciso, no entanto, observar como um livro como Borges à
contraluz acaba por gerar um vácuo entre duas diferentes possibilidades de acepção.
Claramente, trata-se de uma obra oriunda de uma experiência vivida, mas que,
no entanto, não poderia ser qualificada necessariamente como narração propriamente
dita, de acordo com os parâmetros benjaminianos. Ao tentar reconstruir, de maneira
diacrônica, seu contato com Jorge Luis Borges e os multifacetados momentos que
constituem a história pessoal do escritor, Estela Canto acaba por mesclar características
que seriam tanto da narração oral quanto da prosa narrativa.Assim, como poderíamos
analisar um obra de tal porte? Nitidamente, in media res entre biografia e autobiografia,
entre narração e ficção, Borges à contraluz acaba se colocando muito mais como uma
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interessante contribuição ao acervo literário existente sobre Jorge Luis Borges do que
como um livro definitivo sobre os enigmas que permeavam a ficção do autor.
Um outro problema importante que pode ser colocado a partir do livro de Estela
Canto é a questão da primeira pessoa narrativa. Normalmente, relatos em primeira
pessoa que possuem algum tipo de ligação estreita com a realidade já permitem uma
maior leitura autobiográfica da pessoa do narrador. Isso, no entanto, não funciona como
via de passagem obrigatória na obra da escritora. Na verdade, o paradoxo que servirá
como um dos pontos de articulação do livro será o tom confessional que tem como
objetivo principal elucidar ou lançar luz sobre a vida de uma segunda pessoa, não sobre
os fatos que permearam a vida do narrador. Assim, o pacto autobiográfico que poderia
ser gerado pela presença da primeira pessoa é totalmente quebrado, pois o sujeito que se
apresenta no discurso não tem como intuito se auto-analisar.
Após essa breve análise do conteúdo da introdução, faz-se necessário observar a
maneira como a autora irá se debruçar sobre a obra de Jorge Luis Borges. Em um
capítulo intitulado “As chaves e o anedotário”, Estela Canto traça uma análise dos
contos borgianos mais célebres:
Se Bernard Shaw tem razão, devemos buscar as chaves de Borges em suas ficções literárias. Se Borges tem razão, devemos buscar nos atos
de sua vida, mesmo nos mais pueris, a chave do homem que ele foi.
(...)
Borges era um homem contraditório. Basta comparar os poemas de sua juventude com alguns dos virulentos artigos publicados em El
Hogar , no Critica e em revistas dos anos 30.(...) Isto nos leva a
analisar seus temas, as situações que se repetem. Funes, o memorioso, Isidro Parodi e o preso de A escrita do Deus são seres imobilizados
por causas externas, que descobrem do catre de paralítico, da cela de
penitenciária, ou da masmorra mexicana os segredos do mundo,
desvendam intrincados crimes ou lêem na pele de uma fera a mensagem divina. (CANTO,1991: 121)
A maneira como a escritora aproxima os contos por uma temática que pode sim
ser lida como semelhante nos leva a crer que é possível traçar um perfil de Jorge Luis
Borges com base em suas escolhas ficcionais. A resposta para a constante pergunta que
foi o homem Jorge Luis Borges, o demiurgo dos labirintos, dos espelhos e dos infinitos
estaria, assim, oculta por trás das letras que permeiam as páginas de seus livros.
Poderíamos também afirmar que os contos citados por Estela Canto serviriam como
mote para pensarmos sobre a condição da cegueira, prisão física e inevitável
experienciada pelo escritor na vida real.
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Entretanto, não é esse o jogo proposto pela ficção de Borges, muito menos é isso
que é afirmado pela obra da escritora argentina.O choque entre o conteúdo dos poemas
da juventude e mesmo das obras, entre as quais poderíamos incluir El tamaño de mi
esperanza e El idioma de los argentinos, que foram posteriormente renegadas pelo
próprio autor, não passam de atos encenados. Jorge Luis Borges sempre foi e sempre
será multifacetado, multiplicado e amplificado pelo côncavo espelho de sua ficção.
Em um outro capítulo denominado “Funes o memorioso”, a autora chega a
afirmar que esse conto representava uma confissão, ou melhor, a maneira como o
próprio Borges se via durante a década de 30:
Funes só, imobilizado e submerso em suas visões, se parece com o
Borges conferencista, falando como se consigo mesmo diante de um
público que ele sente como uma vaga nuvem receptiva. Borges, que ainda enxergava nos anos em que se iniciou como conferencista,
entrava antecipadamente no mundo dos que não enxergavam. Daí,
talvez essa inesperada caridade por Funes, essa piedade por si mesmo
à qual ele nunca se entregou.E Borges não era entendido pelo que dizia: entendiam-no pelo que ele era. O público estava fascinado por
ele e essa fascinação se repetiria depois em países estrangeiros.
(CANTO,1991:128)
Muito embora não haja espaço no presente capítulo para retornar a uma
discussão que pertence ao capítulo anterior, é necessário, e também pertinente, salientar
a delicadez da leitura que Estela Canto tem de “Funes, o memorioso”. A representação
que a própria autora tinha de Jorge Luis Borges chama a atenção por ser despida do
glamour e da fama que cercaram o escritor até o dia de sua morte. A cegueira, a
literatura que fala de si mesma, os jogos com o tempo e os labirintos teriam, por fim,
isolado Jorge Luis Borges em seu pessoal e intransponível caleidoscópio.
Diana Klinger, em sua já citada obra Escritas de si, escritas do outro – o retorno
do autor e a virada etnográfica, explicita que “ o fato de muitos romances
contemporâneos se voltarem sobre a própria experiência do autor não parece destoar da
sociedade „marcada pelo falar de si, pela espetacularização do
sujeito‟(KLINGER,2007:38)”. Por mais que o livro de Estela Canto não tenha como
real objetivo tratar da vida da autora, ainda assim podemos afimar que É um processo
que colabora para a espetacularização de Jorge Luis Borges. Na verdade, poderíamos
considerar as confissões da autora como mais um desdobramento da figura de Jorge
Luis Borges, que vem a se unir aos diversos fragmentos que já perfaziam o inventário
(caleisdoscópico) da complexa figura pública de Jorge Luis Borges. A escrita de Estela
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Canto, que não deixa de ser uma escrita em primeira pessoa, acaba performatizando o
sujeito Jorge Luis Borges.
Em um outro capítulo, Estela Canto continuará delineando aquilo que acredita
fielmente ser um retrato plausível do Jorge Luis Borges que conhecera: “Esse conto
expressa melhor que nenhum outro a forma como Borges via a si mesmo. Em A escrita
do Deus, está a maneira como ele, timidamente, pressentia o Borges triunfante; e está o
prisioneiro Borges que nunca deixará de ser um prisioneiro. (CANTO, 1991:163)”. Para
a escritora, Jorge Luis Borges sempre foi uma espécie de prisioneiro, quer fosse por
estar imerso em um meio que não exatamente o compreendia, quer fosse por estar preso
à um corpo que não lhe permitia ver o mundo em sua forma completa. Talvez por esse
mesmo motivo ele tivesse passado a vida povoando um território imaginário que
aspirava ser real.
Em sua obra, Estela Canto também irá, além de interpretar à sua maneira a vida
e a obra de Jorge Luis Borges, inserir sua própria leitura dos diversos fatos que
permearam a vida do escritor argentino. Um deles será o acidente no qual Borges bate
com a cabeça no batente de uma janela, o mesmo acidente que é descrito em “El sur”:
Nessa época Borges sofre um acidente: ao descer uma escada, golpeou
a cabeça no batente de uma janela aberta.A ferida infeccionou e durante longos meses teve de andar com a cabeça enfaixada. As
ataduras tornaram-se uma espécie de turbante e ele reassumiu sua vida
normal, percorrendo as ruas com um ornato que se parecia com o
usado por um swami.(...) Ao se referir a esses dias, ele se lembrava de que precisava caminhar com uma bengala, já que estava quase cego.
(CANTO, 1991:58)
Aparentemente, será nesse momento específico da vida do autor que nascerá a
persona borgiana imortalizada por diversos escritores. Cego, já com alguma idade e
portando sempre uma bengala, Jorge Luis Borges parece abandonar lentamente sua
personalidade para, cada vez mais, incorporar os traços daquilo que ficará para sempre
como a representação que possuímos dele:
Durante esse período de cegueira, compôs momentaneamente a figura que haveria de mostrar ao mundo anos depois, já velho, trêmulo e
glorioso: um cego patético e transparente, tateando o caminho com
uma bengala branca, um humilde velho que pedia ao transeunte
desconhecido que o ajudasse a atravessar a rua, um pouco Ulisses mendigo em Ítaca, Édipo em Colona, um rei disfarçado. Sua vida
tinha se convertido numa fábula. O mito não era uma fuga da
realidade, era seu apogeu. A literatura não era o consolo dos fracos,
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mas a vida intensificada, a vida exaltada e com sentido. (CANTO,
1991, p.59)
Jorge Luis Borges parece ter escolhido fazer o caminho contrário. Em vez de
transformar a vida em material para a literatura, preferiu transformar a literatura em
vida. Através das palavras de Estela Canto, podemos ouvir o eco das afirmações do
próprio Borges, que afirmou em sua autobiografia nunca ter saído da biblioteca paterna
e que eram, na realidade, os personagens oriundos dos livros que lia que terminavam
por povoar seus sonhos de infância. A literatura terminou por subverter e extrapolar os
limites da realidade, convertendo-se, por fim, nela própria.
É importante salientar, no entanto, que essa é uma leitura defendida pela
escritora Estela Canto. Retornando ao arcabouço teórico fornecido por Walter
Benjamin, dessa vez, no entanto, por meio de Paula Sibilia, faz-se necessário delinear o
seguinte: “Narrar seria uma forma artesanal de comunicação em vários sentidos, visto
que o contador de histórias não utiliza apenas sua voz para tecer os relatos; ele também
trabalha com as mãos”(SIBILIA,2008:50). Assim, comunicar uma experiência de vida
implicaria um relato que, obviamente, não poderia ser escrito, uma vez que a escrita
transmite apenas uma parcela dos acontecimentos, a factual ou subjetiva.
Logo, considerar que as impressões que Estela Canto se propõe a transmitir em
Borges à contraluz seriam, de fato, transcrições fidedignas daquilo que a escritora
testemunhou em seus anos de convivência com Jorge Luis Borges é ir de encontro a
mais uma pergunta. A resposta a essa pergunta não se encontra, todavia, na teoria
benjaminiana.
André Malraux, em Le musée imaginaire, irá traçar um perfil da relação que
existe entre a civilização ocidental e os museus: “Un crucifix roman n‟était pas d´abord
une sculpture, la Madone de Cimabué n‟était pas d‟abord un
tableau.”(MALRAUX,2008:11) A institucionalização das obras de artes através dos
museus é que teria transformado o que antes possuía um valor funcional em uma obra
de arte. Malraux continua e afirma: “Le XIXeme. siècle a vécu d‟eux; nous vivons
encore, et oubloins qu‟ils ont imposé au spectateur une relation toute nouvelle avec l‟
oeuvre d‟art”(MALRAUX,2008:11) Os museus colocam em questão, até os dias de
hoje, uma relação que constantemente se modifica entre a obra e o espectador. A
abragência e o fato de que, em um museu como o Louvre, por exemplo,senão a de ser
obra de arte não possui outra função que ser obra de arte requer não somente uma
76
análise mais atenta, mas também contém em si o embrião de uma relação que podemos
transpor para a literatura:
Presque tout le passé nous est arrivé sans ses couleurs. La plupart des statues de l‟Orient était peintes, et celles de l‟ Asie centrale, de L‟Inde,
de la Chine et du Japon; l‟art de Rome était souvent de toutes les
couleurs du marbre. Peintes, les statues romanes, les statues gothiques. Peintes, semble-t-il, les idoles précolombiennes; peints, les bas-reliefs
mayas.
Les vestiges de celle de la Grèce suggèrent un monde bien différent de
celui que suggère depuis longtemps la sculpture hellénique. (MALRAUX,2008:177)
As estátuas gregas que foram tomadas como parâmetros a serem reproduzidos
durante o classicismo nunca foram brancas. O passado, como afirma Malraux, chegou
a nós sem suas reais cores, e o que foi transformado em modelo foram as esculturas
descoloridas pelas intempéries dos séculos. Por mais que a pedra, o mármore e o
marfim resistam, nunca poderemos adivinhar, através de seus contornos já
arredondados pelo tempo, a verdadeira cor que recobria seus detalhes. Mais ainda, o
Museu Imaginário da civilização ocidental adquiriu e transformou essa referência de
modo que, até hoje, somos incapazes de conceber o classicismo sem a harmonia de
traços e a ausência de cores. O homem, através dos séculos, não fez nada mais do que
se tornar refém daquilo que ele mesmo afirma. É por meio das palavras que nos
conhecemos, que nos reconhecemos, que conhecemos o mundo. Ainda mais, é
também por meio delas que nomeamos, definimos. Muito embora esse fragmento faça
alusão a uma espécie de apropriação de carga simbólica muito específica, também
podemos depreender a partir dele que as relações de representação possuem os
significados que a elas são atribuídos graças ao que delas afirmamos e também graças
à maneira como aquilo que, nas palavras de André Malraux será o Museu Imaginário,
mas que também conhecemos como o inventário que povoa nosso cotidiano.
Assim, poderíamos traçar uma linha que ligasse as considerações tão
particulares de André Malraux à visão que se quer construir aqui da biografia, por
mais que ambas as possibilidades de leitura possam parecer distantes uma da outra.
Inicialmente, o primeiro elemento que irá permitir essa aproximação será a maneira
como serão delineados os personagens. Tendo em vista que o exemplo específico
supracitado diz respeito à maneira como encaramos a arte graças à um processo de
apropriação simbólica, é possível afirmar que o mesmo tipo de processo ocorreria,
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obviamente com proporções reduzidas, na biografia. A escrita biográfica permite a
apropriação de uma imagem que, não necessariamente, é real ou fiel.
No caso do livro de Estela Canto, que foi analisado anteriormente, podemos
afirmar que a maneira como a autora retrata Jorge Luis Borges contribui para algo que
poderíamos, hipoteticamente, denominar de “inventário borgiano”, e do qual fariam
parte todas as possíveis expressões e interpretações da figura de Jorge Luis Borges.
Na verdade, talvez fosse mais eficaz se comparássemos todas as reverberações da
figura de Jorge Luis Borges a diversos fractais. Um fractal é, de acordo com a
geometria, um objeto geométrico que pode ser dividido em diversas partes. O mais
curioso é que, da mesma maneira que todas as possibilidades, relatos e retratos de
Jorge Luis Borges que já foram elencados até aqui, os fractais guardam uma
semelhança para com o objeto original.
Desse modo, tudo aquilo que poderíamos incluir no que foi denominado de
“inventário borgiano” teria passado a fazer parte de um conjunto que, de certa forma,
remete a um Jorge Luis Borges que nunca foi real. É nesse ponto que reside o grande
jogo, não só da ficção borgiana, mas o jogo que seu artífice pareceu levar até às
últimas consequências. O Borges que se estilhaça em infinitos fractais espalhados por
entrevistas, romances, biografias, depoimentos e ficções não passa de uma duplicata
do Borges real.
É com base nessas premissas que passamos, finalmente, ao ponto nevrálgico do
presente capítulo: Borges, por Adolfo Bioy Casares. O livro, publicado em 2006,
chama a atenção, inicialmente, por seu tamanho, São mais de 1600 páginas, que
perfazem todos os diários que o escritor manteve durante toda sua vida. Chama a
atenção também o fato de que um diário pessoal, escrito sem qualquer pretensão à
publicação, tenha sido lançado com o título de Borges e não com o nome de seu autor.
Em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino, jornalista argentino que
também entrevistou Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares contou como começou
sua amizade:
F.S. Esta parte me interesa muchísimo. Claro, Borges no era lo que fué después. ¿Vos ya lo conocías?
A.B.C. Sí, yo sabía que existía y lo leía. A mí la verdad es que sus
poemas no me gustaban: eran los poemas de Fervor de Buenos Aires,
de Luna de enfrente. No, no me gustaban. Pero algunos de sus ensayos sí. Y ese día, hablando com él, sentí que nos interesaba la literatura del
mismo modo a los dos...
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F. S. Vos tenías deiciocho años, él tendría treinta y tres... Son
imágenes que yo no tengo: ¿ Cómo era él?, ¿ Cómo surgió la
conversación?, ¿ Se trataron de usted o de vos?
A.B.C. Nos tratamos de usted. Y creo que los dos sentíamos lo mismo: sentíamos que estábamos em cancha ajena. Que, en casa de
Victoria, ahí, en San Isidro, estábamos em um mundo literario que no
era nuestro mundo literario. Había otras simpatías, otras admiraciones...Cuando Borges y yo empezamos a hablar de literatura,
nos entendíamos mucho más que con la outra gente que estaba allí. A
pesar de que mis gustos de entonces no podían ser aprobados por Borges. (SORRENTINO,2007:31)
No fragmento supracitado podemos encontrar, provavelmente, alguns dos pontos
mais importantes sobre a relação que irá se desenvolver entre Adolfo Bioy Casares e
Jorge Luis Borges. A diferença de idade, a proximidade de gostos literários e,
sobretudo, o fato de que ambos se identificavam são apenas algumas das características
que acabaram por aproximar Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, no que acabou
por se converter em uma grande colaboração, não só íntima, como literária. Juntos, os
dois autores produziram um personagem que parodiava o gênero policial, Don Isidro
Parodi, e inúmeros outros textos que contribuiram, de diferentes formas, não só para a
carreira de ambos, mas também para o efervescente momento que era vivido pela
literatura argentina. Ainda na compilação de conversas entre Fernando Sorrentino e
Adolfo Bioy Casares, o escritor descreve como seria o Jorge Luis Borges que havia
conhecido inicialmente, antes que a fama do autor alcançasse as dimensões a que
chegou em um momento posterior:
F.S. Borges todavía no era el Borges de los cuentos, porque todavía no
habia escrito ninguno. Pero ya se lo tenía por uma persona muy
inteligente, ¿ no?
A.B.C. ¡Muy inteligente! Era un enfant terrible, como dicen los franceses: el petit Bob de la literatura... Porque se lo veía como una
persona paradojíca: en vez de ser sensato, era paradójico. Así lo veían
en casa de Victoria Ocampo, y tenían razón. Borges era poco herético; y condenado por herético.
F.S. Siempre me parecío que Borges tenía una personalidad literaria
fuertísima. A.B.C. Sí, verdaderamente. Creo, sin embargo que um poco de
influencia tuve sobre él en el sentido de que pudo hablar conmigo,
más que de las formas literarias, de los argumentos. La costumbre de
contarnos argumentos la compartí con él. Yo creaba una historia y se la contava a Borges , y Borges creaba una historia y me la contaba a
mí. Y yo creo que eso de estar contándonos argumentos y argumentos
influyó en él para llevarlo a escribir los cuentos de la Historia universal de la infamia, que fueron los primeros cuentos – un poquito
disfrazados de ensayos – de Borges. Creo que encontró en mí un
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interlocutor que completó un poco su
personalidad.(SORRENTINO,2007:32)
A maneira como o próprio Adolfo Bioy Casares explica a relação simbiótica que
existia entre ele e Jorge Luis Borges parece ser um interessante ponto de partida para
observarmos o conteúdo do diário pessoal. O que havia entre os dois escritores era uma
relação que ultrapassava os limites da simples amizade, era uma profunda identificação
e, obviamente, ambos exerciam, um sobre o outro, uma forte influência literária. Foi
Jorge Luis Borges que escreveu a introdução de um dos romances mais célebres de
Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel, e foi graças aos incentivos de Bioy que
Borges se tornou o que conhecemos, o Jorge Luis Borges da letra impressa, o artífice de
uma literatura ímpar.
Entre os anos de 1931 e 1946, as anotações dos diários de Adolfo Bioy Casares
se resumem a breves três páginas, que contam, como o fragmento anteriormente citado,
a maneira como ele e Jorge Luis Borges se conheceram e como ficaram amigos. Já nos
anos subsequentes, as anotações também serão esparsas, porém muito mais parecidas
com a estrutura padrão de um diário pessoal. Dividas por ano, dia da semana e do mês,
elas irão, lentamente, construir uma figura de Jorge Luis Borges a partir de um ponto de
vista que ainda não tinha sido explorado até aqui: descrito e retratado por alguém que o
considerou, até seus últimos dias, como um de seus melhores amigos. A pergunta que se
quer colocar, todavia, é: será que poderíamos aceitar um testemunho que não teria como
principal objetivo a publicação como verdadeiramente válido e fidedigno? Seria o Jorge
Luis Borges descrito por Adolfo Bioy Casares o homem real por trás da página
impressa, dos jogos e dos labirintos?
Domingo, 28 de deciembre (1947): En Pardo. Conversación con
Silvina. Dice que cada uno de nosotros tiene un tema, al que siempre
vuelve: Borges, la repetición infinita; ella, los diarios proféticos; yo, la evasión a unos pocos días de felicidad, que eternamente se repiten: La
invención de Morel, “ El perjurio de la nieve”, la novela (o cuento)
que ahora escribo (de los tres días y tres noches de Carnaval). ( BIOY
CASARES, 2006:31)
Em uma das primeiras anotações de seu diário, Adolfo Bioy Casares já cita
Borges e já elucida algo que acredita ser uma das obsessões literárias do amigo. A
partir desse pequeno, porém significativo fragmento, já é possível entrever a
importância que Jorge Luis Borges tinha na vida de Adolfo Bioy Casares. Mais a
frente, em uma passagem oriunda do ano de 1949, Bioy irá escrever o seguinte:
80
Martes, 5 de julio: Borges anda muy ocupado com sus clases. No lee
en público; habla. Ha dictado un curso sobre escritores
norteamericanos; dicta uno sobre escritores ingleses modernos, outro sobre místicos, otros sobre literatura inglesa. Dio en el Rosario una
conferencia sobre literatura fantástica; dará, en la ciudad de Córdoba,
otra sobre Dante; en otra una sobre Martín Fierro. Interviene en debates públicos; improvisa en banquetes.
Jueves, 25 de julio. Hoy, por primeira vez, oí una conferencia de
Borges. Habló sobre George Moore. Habló tan naturalmente que me hizo pensar en la dificuldad de hablar en público debía ser ficticia. No
habla con énfasis de orador: conversa, razonando libre e
inteligentemente. (BIOY CASARES,2006:35)
O que inicialmente parece apenas uma lista dos cursos e conferências que Jorge
Luis Borges estava dando na época acaba, no fragmento extraído do dia 15 de julho,
convertendo-se em uma interessante observação acerca do comportamento do escritor.
Adolfo Bioy Casares questiona o que considerava como sendo característico do
comportamento de Borges: a timidez e a dificuldade para falar em público. Chega
mesmo a sugerir que tal dificuldade seria fictícia. Aliás, é bastante curioso que o escritor
tenha usado a palavra fictícia para tentar dar conta de alguma peculiaridade do
comportamento borgiano. Após toda a análise que veio sendo construída até o presente
momento, é igualmente interessante atentarmos para o fato de que nenhuma adjetivação,
quando lidamos com Jorge Luis Borges, é inocente ou meramente descritiva. Afirmar
que uma faceta de seu comportamento poderia ser fictícia implica dizer que já estava
implícita a ideia de que o escritor poderia possuir padrões de comportamento que não
condissessem com sua real personalidade.
Foi ainda nesse mesmo ano de 1949 que os dois escritores começaram a
colaboração que resultou nas narrativas policiais de Bustos Domecq, autor fictício que
assina a autoria das tramas protagonizadas por Don Isidro Parodi. Sobre esse processo
de construção criativa a quatro mãos, Bioy escreveu o seguinte em seu diário:
Escribiendo los cuentos de Bustos Domecq, creímos descubrir que los
personajes se definen por la manera de hablar: si el autor imagina
cómo hablan, los conoce, no se equivoca sobre su psicología. Borges opina que una prueba de esto se encuentra en el Martín Fierro: a pesar
de que en todo libro los episodios son como adjetivos, a pesar de que
los episodios del Martín Fierro describen al héroe como un hombre pendenciero y sanguinario, si dijésemos que Martín Fierro es un
simples Juan Moreira u Hormiga Negra cualquier argentino nos
desmentiria. Hay una nobleza estoica en el tono del libro, o de lo mejor del libro, que há creado el personaje; y las circunstancias de su
biografia – o las intenciones del autor – se dejan de lado o se olvidan.(
BIOY CASARES,2006:36)
81
O fragmento acima, oriundo dos diários de Adolfo Bioy Casares, coloca em
evidência a maneira como um determinado indivíduo pensa não só o processo criativo,
mas também como ele encara o mundo e as pessoas que o cercam. Bioy mostra, a partir
do Martin Fierro, como os episódios de uma vida podem funcionar como seus
adjetivos. Mais curioso ainda é o fato de que, ao fim da citação, ele afirma que há uma
certa nobreza em torno do personagem e que as circunstâncias de sua biografia ou as
intenções de seu autor são, talvez propositalmente, deixadas de lado e esquecidas.
Podemos encontrar, nesse trecho, um mote para refletirmos sobre a questão biográfica,
fortemente presente em toda a obra de Bioy. Mais do que uma maneira de elucidar o
passo-a-passo de seu processo criativo, o que Adolfo Bioy Casares terminou por
registrar nas páginas de seu diário foi, de certa maneira, uma transposição para a vida
real daquilo que ele havia afirmado sobre o poema que é considerado a pedra angular da
literatura argentina, o Martín Fierro. Muito embora isso possa parecer simplista ou
excessivamente objetivo, faz-se necessária uma pequena recapitulação acerca da escrita
em primeira pessoa e do papel dos diários na literatura.
Escrever sobre si mesmo já foi uma maneira de manter a mente saudável. Ato
mais particular da intimidade de um indivíduo, sua prática sempre foi considerada
indispensável para a objetivação de si mesmo. Michel Foucault, em seu ensaio “A
escrita de si”, analisa a forma como anotações, pensamentos e reflexões eram um
“elemento indispensável à vida ascética”(FOUCAULT,2006:144). Foucault cita a Vita
Antonii de Atanásio, quando esse expõe seu ponto de vista sobre o ato de escrever sobre
si mesmo: “Ninguém fornicaria diante de testemunhas. Da mesma forma, escrevendo
nossos pensamentos como se devêssemos comunicá-los mutuamente, estaremos mais
protegidos dos pensamentos impuros, por vergonha de tê-los conhecidos”
(FOUCAULT,2006:145). Escrever era o que podia possibilitar não só o contato com a
faceta mais íntima e particular de um determinado indivíduo, mas também exercer a
função catártica de limpar a mente de pensamentos supostamente indequados e que, no
contexto estudado por Foucault, desviariam o asceta de seu real objetivo. Ainda nas
palavras de Michel Foucault, “a escrita constitui uma experiência e uma espécie de
pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento, ela dissipa a sombra interior
onde se tecem as tramas do inimigo”(ibidem:145).
Assim, escrever sobre si, antiga paixão da humanidade, encontra, por fim, na
obra de Adolfo Bioy Casares, seu maior desdobramento: a escrita em primeira pessoa
82
que reconstrói, não aquele que narra, e sim um outro indíviduo. Apesar de podermos
identificar os traços e os momentos nos quais a personalidade de Bioy emerge, o que
parece predominar nas páginas de seus diários pessoais é a figura de Jorge Luis Borges.
Essa constatação, no entanto, gera outras inevitáveis perguntas, como qual é o Jorge
Luis Borges que vemos nas páginas de Borges e se seria o mesmo descrito por Estela
Canto, em Borges à contraluz. Seriam seus contos então possíveis desdobramentos
autoficcionais de sua complexa personalidade? A resposta para esses questionamentos
está, talvez, além daquilo que irá nos fornecer a leitura do diário de Adolfo Bioy
Casares, o que, no entanto, não faz com que dessa mesma leitura possamos chegar a
diferentes conclusões sobre esses questionamentos.
Retornando ao livro de Adolfo Bioy Casares, iremos encontrar a seguinte
passagem:
Caminábamos con Borges por un barrio de quintas, en Mar del Plata,
y pronto sentí un olor que me conmovío. Borges me dijo que los recuerdos que más nos emocionan son de los olores y gustos, porque
suelen estar rodeados de abismos de olvido: hay que oler el mismo
olor para recordar un olor, hay que sentir el mismo gusto para recordar un gusto (no ocurre así con imágenes y sonidos). ¡Con qué emoción
volvemos a oler el mismo olor que por la última vez olimos en
tiempos lejanos, en lugares a los que nunca volveremos!( BIOY CASARES,2006:38)
Apesar de, no fragmento acima, não ficar explícito se Jorge Luis Borges já se
encontrava em um estágio avançado de sua cegueira, podemos, ainda assim, adivinhar
os problemas de visão que se insinuavam por detrás das afirmações sobre os odores e os
sabores. Na verdade, o que chama a atenção na escrita que Adolfo Bioy Casares
mantinha em seus diários é a clareza. O estilo direto e a maneira como o escritor parece
se ater somente ao que lhe parecia realmente pertinente também nos mostra que,
provavelmente, essas breves e líricas facetas de Jorge Luis Borges que ele testemunhava
e que acabava por transcrever, eram as que ele considerava realmente importantes.
Nunca será possível afirmar se o Jorge Luis Borges, lírico, palestrante, cego e
estranhamente solitário que vemos traçado pelas linhas diretas de Bioy é aquele que de
fato existiu e que habitou durante tantos anos a Calle Maipú. Isso, entretanto, não é o
mais relevante. O que podemos sim, sem sombra de dúvida, afirmar é que a fidelidade
do relato não é o mais importante. O que realmente importa é que o Jorge Luis Borges
que emerge das páginas de Borges é, de forma análoga àquele descrito por Estela Canto,
um fractal, um caco de uma imagem quebrada de um Jorge Luis Borges que,
83
provavelmente, nunca foi real. Não se pretende aqui validar ou não o discurso de Adolfo
Bioy Casares, mas atentar para o fato de que, tanto a autobiografia quanto a biografia,
contém, em seu cerne, apenas uma breve centelha daquilo que foi o indivíduo real. A
realidade nada mais é do que um palimpsesto, algo sobre o qual escrevemos e
reescrevemos constantemente nossas experiências diárias.
Podemos, entretanto, afirmar que o que existe latente nas páginas de algo do
porte de Borges é um devir-biografia. Termo inicialmente proposto por Gilles Deleuze e
Félix Guattari, o devir não funciona como “uma correspondência de relações”. Ele
também não seria uma semelhança, uma imitação ou sequer uma identificação que
poderia ser verificada entre diferentes elementos de uma mesma equação. Por devir
compreendemos algo que se encontra no patamar das alianças, das associações e,
principalmente, das falsas alternativas. Assim, quando afirmamos que o que existe
pulsando nas páginas de Borges é um devir-biografia, queremos dizer que, além de
aceitar que possa existir uma espécie de associação entre o que se considera como a
estrutura padrão de uma biografia e o que encontramos na obra de Adolfo Bioy Casares
é, também, uma falsa alternativa frente ao discurso socialmente validado que seria
representado pela biografia. Biografar quer dizer, acima de tudo, reconstituir os
complexos e difusos momentos dos quais o mesmo sujeito teria sido protagonista.
Não é isso, todavia, que nos apresenta Adolfo Bioy Casares. Sob a estrutura
fragmentada de um diário pessoal, organizado por dias e semanas, o que vemos são
pequenos e múltiplos fragmentos de Jorge Luis Borges, que podem ser ligados, da
mesma forma que a lúdica brincadeira de ligar os pontos para formar um desenho,
mostrando assim o perfil de Jorge Luis Borges por Adolfo Bioy Casares.
A biografia nada mais é do que o exercício metonímico de um determinado
sujeito, acerca dos fatos que permearam a vida de um outro sujeito. Descrita nesses
termos, claro, ela pode parecer despida de subjetividade, mas, na realidade, o que a
premissa de um texto (auto)biográfico pressupõe é que poderia existir uma espécie de
verdade, ou melhor, de versão definitiva dos fatos da vida de alguém. Por esse mesmo
motivo, se afirmou aqui que Jorge Luis Borges, durante toda sua vida, pareceu ter se
empenhado em jogar e quebrar as regras que regiam esses estatutos. Talvez por isso a
escritora Estela Canto tenha afirmado que ele se apresentava e dizia exatamente aquilo
que seus interlocutores desejavam ouvir. Porque talvez soubesse que, de fato, uma
pessoa são infinitos desdobramentos da mesma pessoa, infinitos fractais que se inserem
dolorosamente na multiplicidade dos momentos cotidianos.
84
Assim, a única conclusão à qual podemos chegar após essa longa e labiríntica
jornada em busca de um Jorge Luis Borges que fosse, ao mesmo tempo, um
espelhamento fiel de seu criador, é que, no universo da literatura, a palavra impressa
não implica um pacto de fidelidade. Escrever não quer dizer contar a verdade, narrar os
fatos de maneira fidedigna. Escrever é criar, fabular, abrir as portas para toda uma
subjetividade que se encontra latente em todos os indivíduos. Pouco importa a
verossimilhança do relato, as possíveis relações que existiram entre biógrafo e
biografado. O que fica, para a posteridade, é o fato de que a literatura é um complicado
mosaico de experimentações que busca, sobretudo, oferecer uma alternativa ao mundo
que aceitamos como real.
Pensemos agora na espantosa estrutura de toda uma língua para medirmos bem o milgare de sua resistência
enquanto a turma inteira, debruçada sobre os cadernos e a
tarde luminosa no espaço da sala — Mas neste extraordinário prodígio, meditado ao longo dos
séculos, só o nosso tempo verdadeiramente se interrogou sobre
o significado exacto de uma simples palavra. Porque eu digo
―isto é uma mesa‖ e não sei que relação se estabelece com esse real que eu chamo de mesa.(...)
— Concluímos daqui que a língua constitui uma rede fechada
sobre si, um tecido de malha que as leis da língua tecem, um quadriculado de palavras sobrepostas ao que chamamos de
―mundo real‖. Não há portanto um mundo real traduzido em
palavras, mas um mundo de palavras sobreposto a esse real.
Porque cada língua tem as suas leis, o seu modo de ver a realidade, o seu modo de a pensar. Assim mudar de língua é
mudar de mundo e não podemos portanto pensar que essa
língua traduz esse mundo porque teríamos tantos mundos quantas línguas e seria um insulto admitir que essas línguas o
traduzem na real realidade que é a dele. (FERREIRA, 1985:
145)
Conclusão
O fato de se repetir, na presente conclusão, a continuação de um fragmento
extraído de uma obra de Vergílio Ferreira, quer, sobretudo, atar as duas pontas do que
foi desenvolvido até aqui. Após tantas elucidações e questionamentos, qual delas
poderíamos considerar a mais conclusiva? Provavelmente, nenhuma. A escrita borgiana
é, antes de tudo, um labirinto de espelhos, no qual vemos multiplicadas e distorcidas
todas as referências oriundas do mundo real. Assim, muito mais do que propor aqui
mais um questionamento acerca da validade do que foi até agora apresentado, se
pretende muito mais unir os cacos de leitura que foram propostos em um único e
indissolúvel fio de Ariadne.
Inicialmente, foram expostos aqui fragmentos de Jorge Luis Borges que, quando
observados em conjunto, sugeriam, ou melhor, remetiam a uma espécie de duplicação
da figura real do autor. A partir desse ponto, questiona-se a aplicabilidade da teoria
proposta por Philippe Lejeune em uma de suas obras mais importantes, Le pacte
autobiographique.
Poderíamos, ao abrir um livro de Jorge Luis Borges ou ao ler uma das inúmeras
entrevistas do autor, simplesmente aceitar que toda e qualquer aproximação que exista
entre vida e obra, ou mesmo entre o narrado e o vivido, seria aceitável?
86
Um dos principais motivos para a desconfiança seria, primeiramente, a maneira
como Jorge Luis Borges construiu para si uma imagem que, conforme já foi afirmado
aqui, nunca poderemos saber se era, ou mesmo até que ponto seria, real. O grande teatro
do qual a literatura é palco é a duplicação liberada do asfixiante compromisso da
representação fiel. Representar passa a ser muito mais encenar do que dizer a verdade.
Peter Berger e Thomas Luckmann, em A construção social da realidade,
afirmam que:
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma
realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta
subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens
comuns, sendo afirmado como real por eles. (BERGER &
LUCKMANN, 1987:36)
De que maneira essa afirmação poderia servir como mote para refletirmos sobre
a questão que aqui se pretende concluir? Primeiramente, na afirmação de Berger e
Luckmann, são estabelecidos interessantes parâmetros que nos servirão para detalhar o
ponto no qual estão inseridas as considerações anteriormente tecidas sobre a obra de
Jorge Luis Borges. A realidade na qual todos nos encontramos imersos é vista como
absoluta pelos membros da sociedade. Assim, o cotidiano e todos os seus reflexos
seriam tomados como verdadeiros. É nesse ponto que podemos encontrar o primeiro
contraponto com o universo borgiano. Na realidade, o que podemos verificar é que o
grande jogo da literatura de Jorge Luis Borges será partir do pressuposto inverso, que
diz que o que é real não são os elementos que povoam o mundo, e sim o mundo das
palavras que é construído a partir das descrições que supostamente povoariam o mundo.
O universo de Borges é a biblioteca, são as palavras que povoam o mundo e não o
mundo que é povoado por elas.
É importante salientar também que no arcabouço teórico fornecido por Peter
Berger e Thomas Luckmann a ideia que se encontra subjacente é a que diz que, na
realidade, o mundo que encaramos cotidianamente é admitido como real não porque de
fato é verdadeiro, mas porque sua suposta veracidade se sobrepõe às diversas outras
realidades que poderíamos também encarar como plausíveis. Desse modo, passa-se a
um segundo ponto, também de extrema relevância, o real é uma construção subjetiva
coletiva:
Sei que é real. Embora seja capaz de empenhar-me em dúvida a
respeito dela, sou obrigado a suspender esta dúvida ao existir
87
rotineiramente na vida cotidiana. Esta suspensão da dúvida é tão firme
que para abandoná-la, como poderia desejar fazer, por exemplo na
contemplação teórica ou religiosa, tenho de realizar uma extrema
transição. O mundo da vida cotidiana proclama-se a si mesmo e quando eu quero contestar essa proclamação tenho de fazer um
deliberado esforço, nada fácil. (BERGER & LUCKMANN, 1987:41)
Com base nesse fragmento, ainda oriundo do texto de Peter Bergman e Thomas
Luckmann, é possível ainda delinear a maneira como o mundo representado pelo nosso
cotidiano não passa de uma realidade aceita de maneira tácita por todos os membros da
sociedade. A pergunta, todavia, que se quer extrair dessa passagem é a de que maneira,
então, poderíamos relacionar tudo aquilo que se propõe representação fiel da realidade
ao conceito proposto no fragmento anteriormente citado.
Talvez mais ainda, desse questionamento também podemos ver como irá
emergir um outro, se estaria Jorge Luis Borges realmente propondo um diferente
conceito de realidade em suas obras. É provável que sim. Um conto que pode nos
fornecer uma curiosa resposta a essa pergunta é, infelizmente, um dos que não foi
analisado anteriormente: “La biblioteca de Babel”. As primeiras linhas do conto já
apontam para algo que poderia ser uma diferente alternativa face ao real que aceitamos
como válido todos os dias “El universo (que otros llaman la Biblioteca) se componte de
un número indefinido, y tal vez infinito, de galerías hexagonales, con vastos pozos de
ventilación en el medio, cercados por barandas bajísima” (BORGES,2009,vI:558)22
.
Nos livros, não encontramos a duplicação do universo que já existe, mas o inverso: são
os elementos do universo que duplicam a realidade dos livros. As línguas, em suas
infinitas possibilidades de combinações de letras e sons, não reproduzem o que permeia
o mundo, mas permitem ao mundo uma maneira de descrever aquilo que nele pode ser
encontrado.
Desse modo, poderíamos afirmar que a teoria fornecida por Peter Berger e
Thomas Luckmann funciona como um interessante suporte para pensarmos também a
questão da fidelidade do relato. Partindo dos pressupostos aqui explicitados, torna-se
praticamente impossível aceitar que para que um relato possa ser aceito como
verdadeiro ou definitivo basta que o leitor acredite, ou mesmo, assine um contrato de
leitura invisível para que tudo aquilo compreendido pelas páginas de um determinado
livro seja verdade.
22 “O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito,
de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”
88
Nas palavras de Margherite Duras, “Existe sempre o suicídio na solidão de um
escritor”(DURAS,1994:29), ou seja, todo ofício da escrita é perpassado pelo fato de
que, em prol da obra, parte da pessoa do escritor tenha que cair no esquecimento.
“Borges e eu”, por exemplo mostra nada mais do que isso, ao construir um suposto
narrador que dialoga com a personalidade, ou melhor, com a celebridade do escritor, já
devidamente cristalizada pela fama. Assim, o que encontramos nas páginas de uma obra
não são necessariamente detalhes autobiográficos. São cacos de uma pessoa que
escolheu construir uma obra na qual sua presença não é particularmente importante ou,
digamos, indispensável. Mais um vez, é também na possibilidade Apresentada por essa
afirmação que encontramos mais um dos inúmeros jogos de Jorge Luis Borges. Ao
inserir detalhes que parecem remeter à sua personalidade, aos seus gostos e suas
predileções e, sobretudo, à sua vida pessoal, o escritor passa a falsa impressão de que
gostaria de ser associado à imagem que temos de sua obra.
Essa regra, no entanto, é a primeira a ser demolida a partir de uma segunda
leitura de seu universo literário. O caleidoscópio de possibilidades do qual a obra de
Jorge Luis Borges é portadora possui também, em seu cerne, as infinitas e díspares
construções que o próprio autor fez de si ao longo de toda sua vida. Em todas as
entrevistas, contos e fragmentos, o que constatamos aqui foi a maneira como Borges
encenou o personagem que mais lhe convinha no momento, fosse ele o cego, o
bibliotecário eterno, o crítico literário ou apenas o escritor.
Por esse motivo afirma-se aqui que o que Jorge Luis Borges propunha, na
realidade, ao jogar com esse tipo de pacto de leitura, não deixava de ser um jogo
também com o mundo real. Ao contrariar o que poderíamos descrever como aspectos
extremamente verossímeis, ele constrói um universo onde a única regra que parece
imperar é a inversão. Poderíamos até denominar o universo de Jorge Luis Borges como
perverso. O termo, que possui origem no latim, “per vertio”, significa originalmente
“por de lado” ou mesmo “por à parte”.
A aplicação de tal termo para descrever o processo que se dá na literatura de
Jorge Luis Borges também não é, por mais que possa parecer, sugestivo. O que se tenta
definir com o emprego de tal palavra é, sobretudo, a maneira como o autor sempre
mostrou, na maioria de suas obras, como o meio que acreditamos ser real pode, muito
facilmente, ser convertido em algo avesso e, por vezes, fantástico. Aquilo que
acreditamos serem pequenos indícios de um possível pacto autobiográfico ou mesmo
aparentes pistas que sugeririam um espelhamento autoficcional em muitos de seus
89
contos não passam de diferentes subversões do real, múltiplas possibilidades que se
encontram contidas, ou melhor, adormecidas em cada palavra que o uso cotidiano
desgastou.
Há, ainda, um outro ponto que faz com que a escrita de Jorge Luis Borges se
coloque como um desafio frente à própria literatura: sua meta-estrutura. Em um dos
estudos que já foi citado no presente trabalho, Sergio Pastormerlo dedica-se à ideia de
que Borges foi muito mais um crítico do que um ficcionista. Claro que, partindo apenas
da estrutura meta-ficcional da grande maioria de suas obras, essa afirmação já
procederia. Existem, no entanto, outras características que servirão para corroborar essa
leitura:
En las ficciones borgianas, el grado de saturación que alcanza la figura del “sacerdote” puede verse en el deslizamiento de esa figura hacia los
territorios del humor y el fantástico. Como Henry James y tantos otros
escritores modernos, Borges hizo de su relación con la literatura un tema literario. Muchas de sus ficciones construyen personajes o
variaciones de la figura del “sacerdote”, y esos personajes reenvían al
lector a la imagen de Borges. Cuando, en “El jardín de senderos que se bifurcan”(1941), Yu Tsun sube al tren que lo llevará a Ashgrove y
ve, entre los pasageros, “a unos labradores, una enlutada y un jóven
que leía con fervor los Anales, de Tácito, un soldado herido y feliz”, el
lector es llamado a reconocer, a pesar de la brevedad de la referencia a un personaje compuesto por diez palabras, la identidad de ese
jóven.(PASTORMERLO, 2007:46)
O que Sergio Pastormerlo está realmente sugerindo no fragmento acima é como
cada um dos personagens que Jorge Luis Brorges apresenta a seu leitor está,
intrínsecamente, ligado a sua própria pessoa. Não, porém, de uma maneira
autobiográfica, mas pelo fato de sua obra estar repleta de personagens que, de forma
análoga a seu autor, são também escritores ou homens de letras. O conto que o autor irá
utilizar para demonstrar como isso se dá, no entanto, não foi contemplado pela análise
desenvolvida no presente trabalho. O que não nos impossibilita de recuperar uma leitura
de um dos contos que, até os dias de hoje, continua sendo um dos favoritos dos
biógrafos borgianos, “El sur”. Nesse conto, como foi anteriormente explicitado,
podemos constatar uma forte aproximação entre o acidente sofrido pelo protagonista e
aquele que foi, na realidade, sofrido por seu autor. Isso, entretanto, não qualifica o conto
como sendo um fiel espelhamento autobiográfico, pelo contrário, podemos mesmo
afirmar que se trata, mais uma vez, do espelhamento deformante que foi tão
amplamente explorado pelo autor em sua obra.
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Sergio Pastormerlo tecerá ainda algumas considerações que serão de extrema
importância para o fechamento que aqui se pretende dar: “Como T‟sui Pên, los
personajes-escritores de Borges suelen vivir un tipo de relación con la literatura que se
ubica en los extremos de la renuncia ascética”(PASTORMERLO, 2007:46). Muito mais
do que uma expressão individual ou mesmo intencional, a imagem que Sergio
Pastormerlo afirma que Jorge Luis Borges expõe em sua literatura beira o ascetismo
completo. A literatura sempre parece requerer de seus personagens não só uma espécie
de dedicação integral, mas mesmo uma entrega total e absoluta. Mais uma vez, para
corroborar ainda melhor essa leitura, podemos recorrer à “La biblioteca de Babel”, que
é, provavelmente, dentre todos os contos do autor, o que mais se dedica a mostrar como
o universo é que seria uma réplica da literatura:
Como todos los hombres de la biblioteca, he viajado em mi juventud; he peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de catálogos;
ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me
preparo a morir a unas pocas leguas del hexágono en que nací.Muerto,
no faltarán manos piedosas que me tiren por la baranda; mi sepultura será el aire insondable; mi cuerpo se hundirá largamente y se
corromperá y disolverá en el viento engendrado por la caiía que es
infinita. Yo afirmo que lá biblioteca es interminable.
23(BORGES,2009,vI:558)
O bibliotecário, que supostamente é a voz narrativa do conto, não está somente
idoso e cego, mas dedicou toda a sua vida a uma busca infrutífera. Após passar muitos
anos procurando o que seria uma espécie de pedra filosofal do universo borgiano, o
catálogo dos catálogos, que mais tarde veremos convertido na imagem do livro de areia,
o narrador se prepara para morrer sem ter conseguido alcançar seu desejo. Muito mais
do que a imagem de uma empresa falhada, o que podemos constatar também no
fragmento é a maneira como buscar um determinado ideal literário é muito mais do que
apenas dedicar-se à escrita ou ao mundo dos livros. A literatura, no universo borgiano,
é, além de uma temática recorrente, uma busca constante, como se toda uma vida não
bastasse para atingir a página perfeita.
23 “Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro,
talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono onde nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me
joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se
corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é
interminável”.
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Observando a teoria proposta por Peter Berger e Thomas Luckmann ao lado das
propostas de Sergio Pastormerlo, fica ainda mais claro como é possível afirmarmos que
o universo de Jorge Luis Borges é muito mais perverso, ou mesmo distorcido, do que
aquilo que poderíamos denominar de mundo real. Logo, o jogo de intermináveis e
infinitas referências que é encenado no teatro da literatura borgiana não possui outro
objetivo que não seja a tentativa de elaborar uma alternativa para o mundo que vivemos.
Do mesmo modo, podemos considerar as comparações anteriores como um
ponto de partida para podermos, por fim, atar as duas pontas do raciocínio que veio
sendo desenvolvido até o presente momento. Qual seria, na realidade, a causa, ou
melhor, a motivação por trás do jogo com a literatura? Antes, no entanto, de
respondermos a essa pergunta, faz-se necessário deixar claro que, em momento algum,
procurar as possíveis motivações do autor seria o mesmo que, ao final, deixar a vertente
autobiográfica dominar e reger a leitura que aqui se pretendeu desenvolver: saber quais
eram as causas que teriam impulsionado Jorge Luis Borges a elaborar, ao longo de toda
sua vida, uma literatura que parecia se dobrar sobre si mesma e multiplicar, através de
seus repetidos símbolos e imagens, um mundo que, apesar de verossímil, não era em
absoluto uma tentativa de réplica do mundo supostamente real.
Para compreender, todavia, a raíz do jogo, o enigma do labirinto e o reverso do
espelho, necessitamos recorrer a um texto que se encontra no coração de toda a teoria
explorada no presente trabalho: Aula, de Roland Barthes. Algumas probabilidades de
compreensão do aspecto lúdico da literatura borgiana surgirão quando observarmos as
ideias sugeridas pelo autor em sua aula inaugural do College de France:
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o
poder que reside na língua porque esquecemos que toda língua é uma
classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao
mesmo tempo, repartição e contaminação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo
que ele obriga a dizer. (...)
Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como
se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma
reição generalizada. (BARTHES, 1996:12)
O que Roland Barthes afirma, no fragmento supracitado, é que, além de todas as
considerações que poderíamos tecer a respeito das possibilidades comunicativas das
quais uma língua qualquer é portadora, temos com a língua que falamos uma relação
irrefletida de servidão e alienação. Somos, na maior parte do tempo, obrigados pelo
92
contexto no qual estamos inseridos a comunicar todas as nossas necessidades mais
básicas e também tudo aquilo que a sociedade nos obriga a dizer. Assim, falar não é
uma simples atividade comunicativa, mas um verdadeiro reflexo das relações de nosso
meio social.
Contudo, em que ponto situaríamos a escrita, atividade da qual a literatura é o
maior símbolo? Aliás, como definiríamos a escrita tendo em vista tudo que já foi
exposto até aqui? A escrita e seu implícito exercício, que é escrever, são normalmente
conceituados como o ato de traçar letras ou o mesmo de grafar palavras. Isso é, no
entanto, uma definição muito rasa se tivermos em vista algo que possa ser interpretado à
luz dos conceitos aqui utilizados. Escrever não é simplesmente juntar palavras, contar
histórias ou tentar dar vazão à obsessão do ser humano por fazer sentido. Escrever é
trair, falsear, possibilitar que a língua seja portadora de algo que não o fatalismo do
cotidiano. Escrever é, acima de tudo, colocar em xeque a maneira como vemos o
mundo, principalmente através da ótica fornecida pela literatura:
Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado.
Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade
mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo
interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da
linguagem; ou então pelo amen nietzschiano, que é como uma
sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama “capa reativa”. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé
nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua,
trapacear a língua. Essa tapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de
uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim:
literatura. (BARTHES, 1996:16)
Presos ao que seria a cadeia fatal do cotidiano comunicativo, a literatura acaba
por se colocar como a única possibilidade real de alcançar uma linguagem que não
esteja de fato viciada pelo gregarismo do querer dizer. Na literatura, podemos ouvir o
ressoar das palavras não voltados à transmissão de uma mensagem, mas à teia de
infinitas possibilidades da qual ela pode ser portadora. Dessa maneira, escrever passa a
ser não somente exercitar a língua em um lugar fora do poder, mas também encenar, no
palco infinito, a eterna peça na qual cada palavra poderá, por fim, assumir diferentes e
inusitados papéis a cada momento. No âmbito da escrita é que finalmente poderemos
enxergar uma diferente alternativa face ao mundo em que vivemos.
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Após essa breve elucidação, podemos retornar ao que havia sido afirmado
anteriormente sobre a obra de Jorge Luis Borges e, talvez, acrescentar uma imagem que
pode ajudar nossos leitores a compreender o que o escritor argentino passou sua vida
inteira construindo. Mais do que caleisdoscópios, labirintos e mitologias do arrabalde
porteño, o que podemos encontrar na obra de Jorge Luis Borges é um complexo e
delicado quebra-cabeça.
Georges Perec, em uma de suas obras de maior destaque La vie mode d’emploi,
explica, no preâmbulo do livro, o que seria uma “arte do quebra-cabeça”:
Au départ, l‟art du puzzle semble un art bref, um art mince, tout entier
contenu dans um maigre enseignement de la Gestal-theorie: l‟objet visé – qu‟il s‟agisse d‟un acte perceptif, d‟un apprentissage, d‟un
système physiologique ou, dans le cas qui nous occupe, d‟un puzzle
de bois – n‟est pas une somme d‟éléments qu‟il faudrait d‟abord isoler et analyser, mais un ensemble, c‟est-à-dire une forme, une structure:
l‟élément ne préexiste pas à l‟ensemble, il n‟est ni plus immédiat ni
plus ancien, ce ne sont pas les éléments qui déterminent l‟ensemble, mais l‟ensemble qui détermine les éléments: la connaissance du tout et
de ses lois, de l‟ensemble et de sa structure, ne saurait être déduite de
la connaissance séparée des parties qui le composent: cela veut dire
qu‟on peut regarder une pièce d‟un puzzle pendant trois jours et croire tout savoir de sa configuration et de sa couleur sans savoir le moins du
monde avancé: seule compte la possibilité de relier cette pièce à
d‟autres pièces (...)( PEREC,1978:17)24
Montar um quebra-cabeça não quer dizer que basta conhecermos com perfeição
os detalhes e as possibilidades que nos ofecerecem cada peça. Significa olhar para o
conjunto, pensar em uma forma, em uma estrutura que só ficará completa com a união
de todas as peças. Dessa maneira, podemos traçar uma analogia entre a teoria dos
fractais, que foi empregada anteriormente para dar conta de algo que se verificava na
estrutura da obra de Jorge Luis Borges e o que Georges Perec denomina de “arte do
quebra-cabeça”. As diversas possibilidades que foram aqui cogitadas para a figura do
escritor não passam de pequenas peças de um quebra-cabeça. Isso equivale a dizer que,
24 “No incío, a arte do quebra-cabeça parecia uma arte breve, delgada, contida por inteiro em um magro
ensinamento da teoria Gestalt: objeto visado – que se tratasse de um ato perceptivo, de uma
aprendizagem, de um sistema fisiológico ou, no caso do qual nos ocupamos, de um quebra-cabeça de
madeira – não é uma soma de elementos que necessitaria inicialmente isolar e analisar, mais um conjunto,
quer dizer, uma forma, uma estrutura: o elemento não préexiste ao conjunto, e também nem mais imediato nem mais antigo, não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que
determina os elementos: o conhecimento do todo e de suas leis, do conjunto e de sua estrutura, não
saberia ser deduzido do conhecimento individual das partes que o compõem: isso quer dizer que podemos
olhar uma peça de quebra-cabeça durante três dias e acreditar saber sua configuração e sua cor, sem saber
o mínimo sobre o mundo inteiro: somente conta a possibilidade de religar essa peça a outras peças
(...)”(trad. da autora)
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por mais que possamos traçar um perfil de cada uma delas, ou mesmo mapeá-las com
perfeição, nunca poderemos deixar de pensá-las como uma pequena parte de um todo
que devemos observar junto. Assim, quando unimos essas pequenas peças, que no
fundo são todas Jorge Luis Borges, temos uma imagem que remete à de seu artícife
maior, o próprio escritor.
Mais uma vez, o texto de Sergio Pastormerlo irá nos fornecer um outro
importante contraponto para o que já foi exposto até o presente momento. Quando
tentamos compreender, ou mesmo crer que, de uma certa maneira, todos os rasgos de
ascetismo e intelectualidade presentes na obra de Jorge Luis Borges podem ser
considerados como reflexos indiscutíveis de seu escritor, podemos ainda assim constatar
que o pacto de leitura gerado por sua obra não necessariamente conduz à personalidade
de seu autor. Claro que, durante anos, o comportamento de Jorge Luis Borges e o
conteúdo essencialmente meta-ficcional de sua obra sempre pareceram uma ligação
óbvia para os biógrafos. “ La verosimilitud de la imagen borgeana del „sacerdote‟ que se
apoya también em la relativa coherencia de los elementos, sin embargo heterogéneos
que la componen”, afirma Sergio Pastormerlo. Parecia aceitável que a imagem que
Borges havia construído para si fosse, de certa maneira, um desdobramento de sua
literatura, ou vice-versa.
Na realidade, porém, o que constatamos ao longo do percurso foi a maneira
como o autor jogava também o jogo da repetição, da obsessão e do infinito. A temática
de Jorge Luis Borges sempre foi, de acordo com o próprio escritor, um repertório de
jogos com o tempo, com os labirintos, com os punhais e as máscaras. Em relação a
todas essas temáticas, podemos identificar claramente como se desenvolveram os jogos,
as duplicações, as distorções. É, contudo, quando falamos em mascaramento que se
torna impossível aceitar que qualquer conto ou poesia que remeta a um fato da vida
pessoal do escritor possa ser tomado como um vestígio irremediávelmente
autobiográfico. Jorge Luis Borges era um jogador declarado, demiurgo máximo de uma
cosmogonia que tinha na questão das máscaras seu maior deus.
O labirinto infinito construído por Jorge Luis Borges se assemelha muito a
figura mitólogica da serpente ou dragão que engole a própria cauda, ouroboros. Tudo
em sua ficção é eterno retorno, são cenas que se repetem, jogos intermináveis, símbolos
e metonímias que sempre irão, de certa forma, remeter a uma imagem irreal de seu
autor. A eternidade perversa da qual a ficção é portadora não possui outra saída senão
dobrar-se incessantemente sobre si mesma. Logo, escrever é trair o real, é entrever o
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infinito, é jogar sem cessar um xadrez no qual o rei está ausente. Representar, retratar e
recordar são apenas fantoches nas mãos do titereiro máximo, o escritor.
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