145
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social A PLASTICIDADE DO MITO: entre estrutura e história. Thiago Lopes da Costa Oliveira Rio de Janeiro 2010

Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional ...livros01.livrosgratis.com.br/cp123048.pdf · Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estrutural. Temos por objetivo

  • Upload
    haque

  • View
    224

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A PLASTICIDADE DO MITO: entre estrutura e história.

Thiago Lopes da Costa Oliveira

Rio de Janeiro

2010

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

2

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A PLASTICIDADE DO MITO: entre estrutura e história.

Thiago Lopes da Costa Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Antropologia Social

Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro

Rio de Janeiro

2010

3

Oliveira, Thiago Lopes da Costa

A plasticidade do mito: entre estrutura e história/Thiago Lopes da Costa

Oliveira. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2010.

142 pp.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu

Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2010.

1. Antropologia. 2. Estruturalismo. 3. História. 4. Claude Lévi-Strauss.

5. Mito. I. Viveiros de Castro, Eduardo (Orient.). II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III. Título.

4

Thiago Lopes da Costa Oliveira

A PLASTICIDADE DO MITO: entre estrutura e história.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,

Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social

Aprovada por:

________________________

Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro (Orientador PPGAS/MN/UFRJ)

________________________

Prof. Dr. Marcio Goldman (PPGAS/MN/UFRJ)

________________________

Profa. Dra. Tânia Stolze Lima (PPGAS/UFF)

_______________________

Prof. Dr. Carlos Fausto (PPGAS/MN/UFRJ - suplente)

_______________________

Prof. Dra. Marcela Coelho de Souza (PPGAS/UNB – suplente)

Rio de Janeiro, 22 de Fevereiro de 2010

5

À minha avó Rosa,

com quem acabei de sonhar…

6

Agradecimentos

Este trabalho contou com o apoio de instituições de fomento ao ensino superior e à pós-

graduação – especificamente CAPES e FAPERJ, no que diz respeito à bolsa, e a CAPES e o

CNPq, no que diz respeito ao financiamento do programa como um todo. Sem este apoio, ele

não teria existido. Meus sinceros agradecimentos a estas instituições. Agradeço também ao

professor Eduardo Viveiros de Castro, por ter aceitado orientar este trabalho, e por ter me

concedido liberdade suficiente para realizá-lo à minha maneira. Aos membros da banca,

Marcio Goldman e Tânia Stolze Lima, por terem aceitado o convide de ler e avaliar este

trabalho, e pelas sugestões instigantes. Aos demais docentes do PPGAS, em especial àqueles

de quem já fui aluno em sala de aula: Carlos Fausto e Fernando Rabosi – aos quais sou muito

grato pela receptividade e generosidade –; a Renata Menezes e Lygia Sigaud (in memorian).

A todos os funcionários do Museu Nacional. Tânia, Izabele, Adriana e Leila (secretaria do

PPGAS), Alessandra, Carla, e Isabel (biblioteca Francisca Keller). Aos meus colegas e

amigos da turma de mestrado – Aline, Isis, Caio, Laura, Bruno, Isabel, Gustavo, Tainá, Luana

e aos agregados do doutorado – Martinho, Patrícia e Lara – com quem dividi parte das

angústias do difícil ―primeiro ano‖ no programa do PPGAS/MN. Agradeço também aos

colegas que me ouviram e discutiram parte deste trabalho no seminário interno dos alunos do

PPGAS/2009 – e àqueles que tiveram a iniciativa de realizá-lo.

Àqueles que incentivaram e apoiaram minha vinda para o Rio de Janeiro, em especial

Gustavo Fávero, que me recebeu em sua casa assim no meu primeiro mês nesta cidade. A

Guto e Andréa, e a Sonia Lino, nunca poderei agradecer o bastante. Aos amigos Paulo e

Marcelo que presenciaram minha fase de estudos para a seleção do mestrado enquanto

trabalhavam comigo em uma livraria desta cidade. Seus incentivos foram sempre valiosos e

posso dizer que eles se juntam aos meus outros amigos de hoje e de sempre. Dentre estes

agradeço em especial a Alessandro – cuja hospitalidade numa pequena volta a Juiz de Fora

nunca poderá ser devidamente agradecida – e a Zuzu, que também tornou esta volta mais

fácil. Agradeço a este último também pela tradução do resumo deste trabalho e por tudo o

mais. Ao Guto, Dani, Luiza, Marcelo, Marina, Daniela, André e João Victor.

A todos meus familiares, em especial meus pais, Magdala e Juarez, ao meu tio Ricardo, à

minha tia Helena. Vocês nem imaginam o quanto são fundamentais. A Clementina, e seu

casaco de pele de gato – ―c‟est ne pas une chat”. A Paula, por ter lido, revisto e comentado

este trabalho antes de todos e, principalmente, por tornar a vida mais leve.

7

Resumo

Este trabalho insere-se numa temática ampla das Ciências Humanas, abordando um tema tão

clássico quanto complexo – aquele das relações entre mito e história. Trata-se, contudo, de

uma abordagem destes termos dentro de uma sub-especialidade específica: a antropologia

estrutural de Claude Lévi-Strauss. Mais precisamente, analisa-se como da obra de Lévi-

Strauss sobre a mitologia ameríndia – conhecida como Mitológicas – pode-se propor uma

conceituação especificamente antropológica de história. Procede-se de modo a evidenciar as

características metodológicas do estruturalismo que vão ao encontro deste tipo de

conceituação. Neste sentido, encontra-se, aqui, uma análise sobre possibilidades distintas do

comparativismo dentro deste método; sobre inflexões conceituais que atravessam a obra de

Lévi-Strauss – especificamente a relação entre os conceitos de estrutura e transformação;

sobre as características distintivas dos mitos enquanto objetos de análise estrutural – que

permitem qualificá-los enquanto objetos históricos. O objetivo maior é definir como a leitura

estruturalista dos mitos permite traçar hipóteses históricas a respeito das relações entre os

povos ameríndios – e como a própria descrição da unidade da mitologia do Novo Mundo,

implica em considerações sobre a pré-história do continente americano. Finalmente,

desejamos evidenciar como o método desenvolvido por Lévi-Strauss constitui uma via de

acesso a uma outra história, que não a ocidental.

Palavras-Chave: Mito; História; Estruturalismo; Claude Lévi-Strauss; Mitológicas.

8

Abstract

This thesis is part of a broader theme within the realm of humanities, approaching a classical

and complex subject: the relation between myths and history. It is, however, the approaching

of these terms – myths and history – from within a specific sub-speciality: Claude Levi-

Strauss structural anthropology. Particularly, this is an analysis of how the work of Levi-

Strauss on the Ameridian mythology – known as Mythologiques – can offer a particular

concept of anthropology of history. This work highlights the methodological characteristics of

structuralism going against this kind of conceptualization. Thus, we find here a study on

distinct possibilities of comparison within this method; on conceptual inflections going

through the work of Levi-Strauss – particularly the relation between concepts of structure and

transformation; on distinct characteristics of myths as objects of structural analysis – allowing

them to be classified as historical objects. The major target of this thesis is to define how the

structural approach of myths allows the rising of historical hypothesis on how the Amerindian

related to each other – and how the description of the mythological unit from the New World

brings considerations about the pre-history of the continent. Last, but not least, this work

wishes to emphasize how the method developed by Levi-Strauss is a pathway to another kind

of history, a non-western one.

Keywords: Myths; History; Structuralism; Claude Lévi-Strauss, Mythologiques.

9

Sumário

Lista de figuras. 10

Introdução. 11

Capítulo 1. Inconsciente e História 33

Capítulo 2. Da História à Estrutura 48

Capítulo 3. Da Estrutura à História 77

Conclusão. 107

Anexo. 119

Bibliografia. 135

10

Lista de figuras

Somente os quadros (figuras 7 e 8) foram incorporados ao texto. As outras figuras

encontram-se, todas, no único apêndice do trabalho. A seguir, forneço as numerações em

negrito das páginas em que as figuras se encontram citadas e em grafia normal, a numeração

das páginas em que o leitor pode consultá-las.

1. Imagem: pintura representando um tubarão. (33; 120)

2. Imagem: pintura em fachada de casa, representando uma orca. (33; 121)

3. Imagem: Bronze chinês. (35; 122)

4. Imagem: Mulher kadiwéu. (35; 123)

5. Imagem: Motivo de pintura facial kadiwéu. (36; 124)

6. Imagem: Desenho feito por mulher kadiwéu. (36; 125)

7. Quadro das transformações dos dualismos em que se baseiam as representações

desdobradas. (43)

8. Quadro de leitura do mito de Édipo em sintagmas e paradigmas. (60)

9. Esquema: Relação entre mitos kayapó e munduruku (81; 126)

10. Esquema:Mitos de culinária (alimento cozido) e mitos de carne (alimento cru). (82; 127)

11. Mapa: ―O crescente setentrional e a área da disputa dos astros‖. (83; 128)

12. Esquema: ―Esquema teórico da distribuição dos mitos sobre as esposas dos astros segundo

a escola histórica‖. (84; 129)

13. Mapa: ―Ajustamento entre a estrutura lógica e a distribuição geográfica dos mitos sobre as

esposas dos astros.‖ (86; 130)

14. Mapa: Quatro mapas comparando a distribuição geográfica dos porcos-espinhos na

América do Norte. (87; 131)

15. Mapa: ―O mito de referencia: formas fortes e formas fracas.‖ (100; 132)

16. ―Erosão Mítica‖ (100; 133)

17. ―Estrutura dos mitos tukuna, cashinaua e munduruku‖ (103; 134)

11

Introdução

“De minha parte nada interessa mais do

que a história, e há muito, muito tempo!”

Claude Lévi-Strauss, 1988

Este trabalho aborda um tema tão clássico quanto complexo das Ciências Humanas,

aquele das relações entre mito e história. Não se trata, entretanto, de uma atribuição qualquer

a estes conceitos, mas daquelas atribuições e sentidos que estas palavras têm na obra de

Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estrutural. Temos por objetivo definir como a

leitura estruturalista dos mitos permite traçar hipóteses históricas a respeito das relações entre

os povos ameríndios – isso nos levará a cotejar as características deste método com certos

procedimentos historiográficos. Como introdução ao tema, apresento algumas ponderações a

respeito das relações mais gerais entre o estruturalismo e a história.

*****

12

O ano é 1988. Claude Lévi-Strauss está às vésperas de completar oitenta anos de vida.

Talvez por isso, ele concorde em conceder uma série de entrevistas a Didier Eribon. Elas

tomarão a forma de um longo livro – se pensarmos que se trata de entrevistas – a ser

publicado com o título De Perto e de Longe1. Ao longo de suas falas, o autor retoma o fio de

uma obra que se confunde ao de uma vida, e comenta diversos temas que atravessaram suas

pesquisas. Por volta da metade do texto transcrito, Lévi-Strauss segue com uma afirmação

intrigante (reproduzo sua fala em texto simples e a de Eribon em negrito):

―[...] Ora, dirão alguns, ao longo de toda minha obra, uma espécie de dom-

quixotismo não cessou de animar-me?

O que o senhor entende por isso?

Não a definição dos dicionários: mania de reparar as injustiças, de transformar-se em

defensor dos oprimidos, etc. Quanto ao essencial, o dom-quixotismo, parece-me, é

um desejo obsedante de encontrar o passado por trás do presente. Se por acaso um

dia um excêntrico se preocupar em compreender qual foi o meu personagem

ofereço-lhe esta chave.‖ (Lévi-Strauss & Eribon [1988] 2005: 138)

Não é exatamente uma excentricidade debruçar-se sobre o personagem intelectual que

foi Claude Lévi-Strauss, o antropólogo mais importante do século XX. Sabemos que este tipo

de consideração faz parte da ―profissão de modéstia‖ de um autor cuja revolução disciplinar

provocada por seu impulso intelectual não cessa de desdobrar-se sobre e para além das

Ciências Sociais – em especial, sobre o americanismo das baixas-terras. Mas pode

surpreender a alguns, que este antropólogo considere-se como obcecado em ―encontrar o

passado por trás do presente‖, pois, como sabemos, Lévi-Strauss é comumente conhecido

como ―o mais radical dos antropólogos em seu método sincrônico e sem sujeito‖ (Schwartz,

1999). A antropologia estrutural, o projeto intelectual de sua vida, é repetidamente entendida

como fundada em uma ―oposição radical em relação à história.‖ (Sahlins [1981] 2008).

Como conciliar, então, este auto-diagnóstico com estas opiniões que constituem isto

que o antropólogo Marcio Goldman chamou, em certa ocasião (Goldman 1999), de ―a

vulgata‖ a respeito do estruturalismo? Talvez não exista conciliação possível. Mesmo um

historiador cuja trajetória está fortemente marcada pela antropologia estrutural, o italiano

Carlo Ginzburg, acaba retomando a ―vulgata‖ em termos diferentes:

1 No original De près et de loin. No Brasil uma primeira tradução chega em 1990 pela editora Brasiliense. Este

mesmo texto é revisto tecnicamente e ganha nova edição em 2005 pela Cosac Naify.

13

―Como se sabe, Lévi-Strauss derivou no início dos anos 40 das pesquisas

fonológicas de Jakobson um método para analisar os fenômenos sociais (em

primeiro lugar, as estruturas de parentesco). É bastante significativo que naquela

época e depois, Lévi-Strauss negligenciasse de forma absoluta a exigência

formulada por Jakobson de ultrapassar a antítese entre sincronia e diacronia.‖

(Ginzburg [1989] 1995: 34, grifos nossos)

Contudo, logo após estas considerações, Ginzburg abre espaço para uma visão mais

nuançada: ―mas a interpretação corrente, segundo a qual a opção sincrônica de Lévi-Strauss

implicaria uma atitude agressivamente anti-histórica, é superficial.‖ (Ginzburg [1989] 1995:

34)2 Teremos espaço para comentar as concepções de Ginzburg mais adiante. Acerca deste

tipo de compreensão distorcida sobre a obra de Lévi-Strauss, eu pretendo seguir, aqui, as

indicações de Goldman, proferidas em uma palestra intitulada, justamente, ―Lévi-Strauss e os

sentidos da história‖. Retomando, a partir do caso de Lévy-Bruhl, este problema da ―vulgata‖,

o autor afirma:

―O que é grave em casos desse tipo não é tanto a suposta deturpação em si – sempre

questionável – ou a ―ofensa‖ a determinado autor – nunca muito importante, afinal

de contas. O grave é que equívocos desse gênero tendem a reprimir possíveis

desenvolvimentos que uma compreensão mais, digamos, ―empática‖ poderia

engendrar. Em outros termos, ao adquirir autoridade, a vulgata tende a não ser mais

contestada, o que provoca a paralisia do pensamento. O fato de Lévy-Bruhl, por

exemplo, ter permanecido durante meio século na penumbra do pensamento

antropológico não é lamentável em si mesmo, nem moralmente condenável: é

empobrecedor por ter nos privado de alguns instrumentos importantes que poderiam

ajudar o desenvolvimento de nossas próprias démarches.‖ (Goldman 1999: 1;

primeiro grifo meu, segundo do autor)

Ou seja, seria um tanto quanto ridículo ficar defendendo Lévi-Strauss. Seus textos

falam por si e estão à disposição de pesquisadores de várias nacionalidades, traduzidos em

mais de uma dezena de línguas. Se me proponho a reabrir tão controverso tema – das relações

entre estruturalismo e história – é porque acredito que suas implicações estão acima das

polêmicas que ele gerou e sobre as quais não pretendo me deter além do estritamente

necessário. Entre fazer a história deste debate e centrar-me na sua estrutura, estou com a

segunda opção. Sigamos, então, contra a ―paralisa do pensamento‖.

*****

2 E mais do que isso, como veremos mais adiante, Ginzburg desloca os termos da discussão do objeto para o

método.

14

Podemos reconhecer que Lévi-Strauss é realmente obcecado com a história. Atesta-o o

fato de, ao longo da entrevista que recobre sua trajetória intelectual como um todo, o tema ser

freqüentemente retomado em diversas situações e com respeito a assuntos diferenciados.

Darei dois exemplos desse tipo de passagem que servem como introdução à complexidade da

empresa que temos pela frente. Trata-se de dois comentários, em momentos distintos que, em

conjunto, referem-se à percepção do autor com respeito aos deslocamentos no espaço,

expressos através de digressões sobre duas viagens diferentes. Vejamos:

“Quando esteve lá [em Israel]?

Em 1984 e 1985. [...]

E o que sentiu?

Sei que sou judeu e antiguidade do sangue, como se dizia em outras épocas, agrada-

me. Lá, me senti mais desconcertado do que nunca diante da solução de

continuidade – mais ou menos dois mil anos – entre a partida da Palestina e o início

do século XVIII, quando encontro meus ancestrais estabelecidos na Alsácia. O que

se passou nesse intervalo? Faltam-me a seqüência histórica, as etapas figuradas

dessa peregrinação, e precisaria delas para perceber a realidade da ligação com um

passado tão distante, que se reduz a um conhecimento abstrato. Significa dizer-lhe

que, em Israel, em nenhum momento tive a impressão de tocar concretamente

minhas raízes. Israel interessou-me prodigiosamente, menos pelo fato de encontrar

lá um povo de primos distantes (não tenho o sentimento de família), do que como

cabeça-de-ponte do Ocidente no Oriente: a nona cruzada, digamos.‖ ([1988] 2005:

221-2, grifos nossos).

Cerca de uma centena de páginas atrás, encontramos o entrevistado e seu entrevistador

comentando as recentes visitas do primeiro ao Japão:

“O que o atrai por lá?

Uma civilização muito antiga, que tem com a nossa espantosas relações de simetria

inversa. Não esqueça que o Japão ocupa a orla oriental do continente eurasiático,

como a França ocupa sua orla ocidental. Os dois países parecem voltar-se as costas,

nos dois extremos de um imenso território povoado há milênios, e onde os homens,

as idéias não pararam de circular. Gosto de discernir aí os estados extremos de uma

série de transformações.‖ ([1988] 2005: 131, grifos nossos)

Estas considerações, só em aparência de cunho estritamente pessoal, nos conduzem

novamente às relações entre a antropologia estrutural e a história. Além disso, elas introduzem

outro tema, o das relações inter-culturais. Examinando rapidamente estes comentários,

notamos que ali figuram um juízo muito especial de história, tempo e espaço. Estas palavras

guardam algum mistério encoberto em sua aparente simplicidade. A referência a um

―conhecimento abstrato‖ – em outras palavras, a tradição judaica – não deve fazer com que

15

nos percamos em uma pista falsa, já que o próprio autor expressou, alhures, sua confessada

não-religiosidade3.

Este rápido exame pode ser conduzido por algumas perguntas: que espíritos seriam

capazes de se satisfazer mais com uma comparação entre o Japão e a França do que em

encontrar aquilo que ―tradicionalmente‖ seriam consideradas suas raízes? Que senso de

história poderia conceber que homologias entre sistemas culturais – França, Japão, Israel –,

localizados há milhares de quilômetros de distância uns dos outros, revelam algo sobre um

passado comum, ou podem ser relacionados, justamente, pela suposição deste passado – a

unidade geográfica do continente eurasiático, onde ―homens e suas idéias‖ não pararam de

circular? Ou ainda: o que a noção de ―transformação‖ quer dizer, quando se afirma que entre a

França e o Japão é possível discernir ―estágios extremos de uma série de transformações‖, que

poderíamos supor, tem Israel como etapa intermediária? Encontramos, aqui, um senso de

história, tempo e espaço muito peculiares.

Voltemos, rapidamente, às considerações de Lévi-Strauss sobre o Japão. Eribon

pergunta:

―O senhor não se interessa pelo Japão moderno? [ao que Lévi-Strauss responde]:

Interesso-me, claro, e de qualquer modo, não poderia abstraí-lo. Mas esse interesse

só desperta quando posso ligar o presente ao passado mais remoto.‖ ([1988] 2005:

131-2, grifos nossos)

―[L]igar o presente ao passado mais remoto‖: estamos, novamente, às voltas com o

auto-diagnóstico de ―dom-quixotismo‖, descrito como um ―desejo obsedante de encontrar o

passado por trás do presente‖. Este auto-diagnóstico assemelha-se a uma espécie de leitmotiv

da ópera da vida de Lévi-Strauss.

*****

3 Lévi-Strauss o comenta em Tristes Trópicos ([1955] 1996: 373-392) e nas entrevistas a Eribon ([1988] 2005:

15-17). Neste último livro encontramos um tema que remonta o final do primeiro: ―Na adolescência, eu era

muito intolerante quanto a esse assunto [religioso]; hoje, depois de ter estudado e ensinado história das religiões

– todos os tipos de religião – tornei-me mais reverente do que quando tinha dezoito ou vinte anos. E depois,

mesmo continuando surdo às respostas religiosas, cada vez mais sou invadido pelo sentimento de que o cosmos e

o lugar do homem no universo ultrapassam e ultrapassarão sempre nossa compreensão. Acontece que me

entendo melhor com os crentes do que com os racionalistas empedernidos. Pelo menos os primeiros têm o

sentido do mistério. Um mistério que, a meu ver, o pensamento parece constitucionalmente incapaz de resolver.

É preciso contentar-se com as mordidelas infatigáveis que o conhecimento científico dá em suas bordas. Mas eu

não conheço nada mais estimulante, mais enriquecedor para o espírito, do que tentar seguir esse processo – como

profano; permanecendo consciente de que cada avanço faz surgir novos problemas e de que a tarefa não tem

fim.‖

16

Em 2004, um número especial dos Carriers de L‟Herne, por ocasião de seu 95º

aniversário foi publicado contendo diversos artigos sobre Lévi-Strauss, reunindo a opinião e o

testemunho de diversos profissionais e admiradores, além de artigos inéditos de sua autoria e

outros textos que figuram como documentos preciosos de sua trajetória intelectual. Dentre

estes textos, um pequeno artigo, tão elegante quanto conciso (menos de oito páginas), escrito

pela antropóloga francesa Anne-Christine Taylor nos fornece alguns elementos fundamentais

para a hipótese deste trabalho. Ele é intitulado ―Don Quixote en Amérique: Claude Lévi-

Strauss et l‘anthropologie américaniste‖ (Taylor 2004: 92-8).

Sabemos que diversas interpretações da obra fundamental de Miguel de Cervantes são

possíveis. Esta que concebe o devir do personagem-título ―como um desejo obsedante de

encontrar o passado por trás do presente‖ ressoa harmônicos de uma estética romântica.

Taylor explora tais ressonâncias neste artigo, relacionando-as às descrições etnográficas e às

análises etnológicas de Lévi-Strauss sobre os povos que encontrou em suas expedições em

território americano. A autora se indagará, sobretudo, a respeito do papel dos ameríndios na

obra de Lévi-Strauss e sobre as relações deste universo cultural com o estruturalismo como

um todo (Taylor 2004: 93). Não seria ocioso passarmos em vista esta argumentação.

Taylor parte de um problema: como explicar a opção de Lévi-Strauss pelo

americanismo das baixas-terras. A autora busca elementos para uma resposta recorrendo

tanto a trechos da entrevista a Eribon que comentamos acima, quanto às análises que marcam

a obra de Lévi-Strauss pré-Mitológicas – se assim podemos dizer4. Esta pergunta aparece

como fundamental, já que, aparentemente, a influência de Lévi-Strauss se fez sentir na

disciplina, inicialmente, para além das fronteiras do americanismo; e já que os trabalhos do

autor, deste período, são desigualmente marcados pela presença de materiais ameríndios. A

dimensão de americanista parece, portanto, à primeira vista, como secundária em sua obra. É

sobre este ponto que se concentra, inicialmente, a investigação de Taylor.

Por um lado, Lévi-Strauss tornou-se americanista por acaso – sabe-se bem das

histórias que antecedem sua vinda ao Brasil (cf. Lévi-Strauss [1955] 1996: 45-49; [1988]

2005: 88). Relembrando o estado da arte no período da ―adesão‖ de Lévi-Strauss, Taylor

afirma que o americanismo das baixas-terras era, então, uma disciplina ―arcaica‖,

indubitavelmente o menos desenvolvido dos campos de especialização antropológicos, tanto

em relação ao conhecimento etnográfico, quanto em relação às idéias etnológicas. Ocorria que

4 Taylor lembra que as Mitológicas constituíram um esforço relativamente isolado do americanismo tal como

praticado no período, principalmente para além da França (Taylor 2004: 92).

17

as sombras das idéias evolucionistas ainda pairavam sobre o continente – sua população era

tida por demais primitiva e, portanto, supostamente indigna de muito interesse. Manuais

universitários norte-americanos classificavam todas as terras-baixas sob o epíteto de ―indians

of the manioc area‖. Os valiosos materiais recolhidos por exploradores do século XIX, como

os alemães Koch-Grünberg e von den Stein, eram mal conhecidos e de difícil acesso. Os raros

trabalhos etnológicos sobre a região, como os de R. Lowie e A. Métraux, baseavam-se

essencialmente em fontes históricas e dados colhidos por amadores, missionários,

exploradores e sertanistas. Não havia uma monografia clássica sobre a área, ao contrário do

que já ocorria para a África, Ásia e Oceania (Taylor 2004: 93).

Diante deste panorama a autora se pergunta: como explicar a opção de Lévi-Strauss

pelo americanismo? A resposta diz bastante sobre a personalidade intelectual deste autor e

sobre o tema que nos interessa. Taylor oferece três elementos. O primeiro deles é o caráter

―science du XIX siècle‖ que marcava a disciplina em sua sub-especialidade. Ninguém fixara,

nem mesmo sob os aspectos mais elementares, o período e as modalidades da implantação

humana dentro do continente; as grandes etapas da história pré-colombiana; a distribuição e

classificação das famílias lingüísticas; as formas essenciais de organização social e de notação

dos sistemas de parentesco. Enfim, tudo estava por ser feito. Além disso, o aspecto rétro do

americanismo não se encontrava somente na qualidade do saber, mas também no estilo da

prática científica, ainda próxima daquele estado do século precedente, devido ao emprego de

expedições de descobertas e à relativa indiferenciação entre exploradores, cientistas e

caçadores (Taylor 2004: 94).

O segundo motivo é correlato ao primeiro: estas lacunas no saber relativo a este

continente etnográfico resultavam em enigmas diversos relacionados, principalmente, à

convivência de traços evoluídos e extraordinariamente primitivos em diversas facetas da vida

social destas populações (Taylor 2004: 94).5 Por fim, e não muito distante do que foi citado

até agora, existe ainda outro motivo: a imensidão da natureza americana. As paisagens das

terras baixas davam ao viajante a sensação de um recuo no tempo. ―Leur immensité renvoie à

une aube du monde où la présence humaine était rare et précaire, et la temporalité étirée des

déplacements dans l‘espace accentue l‘exotisme des populations visitées‖ (Taylor 2004: 94).

Em resumo:

5 Dentre estes enigmas Taylor cita a chamada anomalia Jê e os próprios mitos (2004: 94). Tanto a revisão da

noção de dualismo, quanto a analisa estrutural dos mitos estão entre os maiores feitos de Lévi-Strauss. Feitos

que, ao final de sua obra, confluem em um só livro, o denso e intrincado História de Lince ([1991] 1993).

18

―l‘américanisme offrait à Lévi-Strauss un continent scientifique particulièrement

adapté à sa sensibilité et à sa tournure de pensée, par le style décalé, non moderne de

la recherche qu‘on y développait, par la marge importante que cet état du savoir

laissait à l‘imagination et à la spéculation, propice à l‘élaboration d‘hypothèses à

grande portée, enfin par la qualité d‘altérité que le jeu combiné de la nature, de

l‘historie et de la science conférait aux populations amérindiennes.‖ (Taylor 2004:

94)

Ou seja, pode-se constatar que um dos elementos principais da constituição de Lévi-

Strauss como americanista é uma relação particular com o tempo. Cada um dos aspectos

relacionados pelo autor para justificar sua vocação – seja o arcaísmo do fazer antropológico,

seja a imensidão natural – refere-se ao seu ―amour de l‘ancien‖, expresso com precisão em

sua definição do ―dom-quixotismo‖ como ―um desejo obsedante de encontrar o passado por

trás do presente‖. Anne-Christine Taylor acredita que este auto-diagnóstico esclarece de

maneira surpreendente as reações de Lévi-Strauss aos diferentes grupos encontrados por ele

em suas expedições, e retoma, seguindo esta intuição, as descrições destes índios que

encontramos em Tristes Trópicos.

Vistos em conjunto, os Nambikwara, os Bororo, os Kadiwéu e os Tupi-Kawahib

encontravam-se em um estado em que as marcas do tempo se mostravam visíveis. Lévi-

Strauss não só não deixou de notá-las, como fez delas a via para a compreensão daquilo que

registrava. Os ―bandos‖ Nambikwara aparecem como modelo de sociabilidade humana

elementar, mas algo em sua disposição indicava que eles eram os sobreviventes de um estado

de civilização anterior e impossível de se acessar. Os Bororo e os Kadiwéu exibiam as

lembranças de um passado glorioso, os primeiros pela riqueza e complexidade da vida ritual,

os segundos pelo esplendor de sua ornamentação corporal. Por fim, os Tupi-Kawahib, últimos

descendentes dos Tupinambás costeiros, são retomados no relato de Lévi-Strauss como os

canibais encontrados por Léry e Staden, e imortalizados por Montaigne6 (Taylor 2004: 93).

―On le voit, les sociétés qui font le plus vibrer la sensibilité de Lévi-Strauss

partagent toutes un certain nombre de caractéristiques: une béance douloureuse entre

un état passé de richesse culturarelle et une condition présente de déchéance et

d‘abandon, forgée par une historie énigmatique, livrée tout entière à la contingence;

en même temps, une fidélité obstiné à la tradition, synthétisée dans une pratique ou

un type de comportement qui résistent au changement.‖ (Taylor 2004: 95)

6 Há ainda os índios da costa Noroeste da América do Norte para os quais Lévi-Strauss se voltou em seguida,

quando de sua estada nos EUA. Eles guardam o mesmo paradoxo que os Bororo, aquele de uma existência entre

o declínio contemporâneo e a magnificência de um passado ainda recente e ao mesmo tempo enigmático. (Taylor

2004: 93-4)

19

Sabemos que tal configuração não é exatamente incomum para um grande número de

culturas ameríndias sobreviventes. O ponto do argumento de Taylor é que algumas dentre elas

a encarnavam exemplarmente aos olhos de Lévi-Strauss. Elas eram uma transposição

sociológica desta figura privilegiada da estética romântica que é a ruína:

―la ruine exhibe l‘érosion par l‘histoire, elle appelle, pour être intelligible, un regard

juxtaposant le passé et le présent, elle comble enfin l‘imagination en l‘invitant à

remplir les vides sculptés par le passage du temps.‖ (Taylor 2004: 95)

Essa explicação de Taylor é fundamental. A autora procura confirmá-la através de um

contra-exemplo: o encontro de Lévi-Strauss com os Mundé, apresentado no capítulo XXXI de

Tristes Trópicos ([1955] 1996: 312-19). Qualquer etnólogo ficaria seduzido pela oportunidade

de estudar uma tribo que, como os Mundé, não conhecera o homem branco, não sofrera com o

contato e apresentava-se, no presente, em sua ―plenitude‖ primitiva. Para o modo de

percepção estética de Lévi-Strauss, no entanto, os Mundé apresentavam uma certa opacidade;

habitavam um presente sem fissuras aparentes. A eles faltava, como Lévi-Strauss mesmo

disse, um passado que servisse de ―chave para a leitura‖ e compreensão do presente. Taylor

aponta como índice desta mudança de percepção estética as fotos sobre os Mundé publicadas

em Saudades do Brasil: sob um olhar diferente, eles são retratados de um modo mais neutro,

mais profissional, como ―clichês de índios‖. Nada que se compare à intensidade dos

instantâneos da vida Bororo e Nanbikwara. (Taylor 2004: 95) Ao relacionar a forma de

percepção estética de Lévi-Strauss à realidade etnográfica do continente, a autora consegue

dar demonstrações de que Lévi-Strauss, ao contrário do que se poderia imaginar numa visada

mais superficial, é americanista em essência e não por acidente:

―Il l‘est [américaniste] en amont de la raison théorique, au plan de l‘imaginaire

scientifique, ce réservoir d‘adhésion immédiates, d‘images, de souvenirs d‘émotions

dans lequel s‘enracinent les intuitions et les croyances intimes sur le social, le

cultural, l‘humain, avant que celles-ci ne se traduisent en argumentation explicite.‖

(Taylor 2004: 96)

Ou seja, o americanismo permitiu a Lévi-Strauss a realização desta sensibilidade

intelectual permeada por uma estética que confronta, sempre, o presente com o passado. É

este contraste entre temporalidades que parece mover o pensamento de Lévi-Strauss e

desencadear sua sensibilidade etnográfica e analítica:

20

―Dans ce contraste qui aliment la pensée de Lévi-Strauss, le rapport au temps

constitue tout à la foix l‘axe d‘opposition central entre l‘univers des Européens et

celui des Indiens, et la clé de lecture que permet de déchiffrer les sociétés indigènes:

c‘est en effet dans l‘espace entre le présent d‘une rencontre en soi muette – témoin

les Mundé – et un passé auquel on puisse le rapporter qui déclenche le travail de la

sensibilité et de la pensée, qui éveille ce flair ethnographique exceptionnel

permettant à Lévi-Strauss de saisir, en um court laps de temps, les contour essentiels

du style d‘une culture.‖ (Taylor 2004: 96, grifo nosso)

*****

Assim, seguindo as interpretações de Anne-Christine Taylor, fomos conduzidos do

enigma do ―quixotismo‖ de Lévi-Strauss, às questões relativas ao seu americanismo e, mais

precisamente, ao modo como este autor percebe este campo de trabalho – do ponto de vista do

objeto e dos métodos. A opção de Lévi-Strauss pelo americanismo está ligada à sua percepção

estética, que foi descrita por Taylor como marcada pela figura romântica da ruína – ou seja,

como uma percepção em que a passagem do tempo tem papel fundamental no exercício da

compreensão. A análise de Taylor desloca o problema da história para o campo da dimensão

temporal e da percepção estética e analítica do autor.

Poderíamos deslocar, ainda, o argumento de Taylor em outra direção, unindo a

importância do tempo à do espaço para o pensamento lévi-straussiano. Parece-me

fundamental o fato de Lévi-Strauss não ter sido um etnólogo ―convencional‖, que estudou em

―uma tribo‖ e sim, ter sido um pesquisador que percorreu enormes distâncias, tendo convivido

com diversos povos ameríndios em suas expedições pelo interior do Brasil dos anos 1930.

Seguindo esta linha, poderíamos compreender a percepção que o autor tem de seus

deslocamentos no espaço – o caminhar lento e difícil na floresta densa que separa, uns dos

outros, estes povos – em função de seu entendimento do tempo. O deslocamento pela floresta,

mais do que uma entrada em uma ―aurora do mundo‖ pode ser também compreendido como

um deslocamento entre historicidades distintas – já que cada grupo revela-se diferentemente

marcado pela passagem do tempo, pela história e pelo contato; inclusive os Mundé que

permaneciam isolados, mas estavam em via de se en/integrar.

O campo em forma de expedição e não de imersão – se assim podemos dizer – teria

sido, então, fundamental para que o antropólogo das Mitológicas tivesse a possibilidade de ter

uma ―visão do conjunto‖, in loco, destas populações. Este argumento pode parecer forçado –

já que é aparentemente anacrônico, na medida em que sobrepõe uma visão dos trabalhos de

Lévi-Strauss sobre a mitologia americana, que datam do final dos anos 1950 até os anos 1970,

21

às expedições que marcam seu debut na antropologia, realizadas nos anos 1930. Contudo, um

pequeno texto – que me isentaria deste erro fatal – poderia fazer com que compreendêssemos

melhor este ponto. Escrito em 1948, antes de Tristes Trópicos, portanto, ―A serpente de corpo

repleto de peixes‖7 é uma brevíssima análise de um motivo artístico que se detém sobre o

modo como as sociedades do presente podem ajudar na compreensão de um passado

americano que lhes é comum. Lévi-Strauss argumenta ao longo deste texto sobre o modo

como os mitos de populações sub-andinas podem ajudar a compreender motivos artísticos

presentes nas cerâmicas peruanas das terras altas – neste caso das culturas Nazca. Ele conclui

o texto do modo que se segue:

―o que parece certo é que, nessas regiões da América do Sul em que as baixas e altas

culturas mantiveram contatos regulares ou intermitentes durante um longo período, a

etnologia e a arqueologia podem colaborar para resolver problemas compartilhados.

A ‗serpente do corpo repleto de peixes‘ é apenas um tema entre as centenas cuja

ilustração a cerâmica peruana, ao norte e ao sul, multiplicou quase ao infinito.

Porque duvidar de que a chave da interpretação de tantos motivos ainda herméticos

se encontre à nossa disposição, e imediatamente acessível, nos mitos e contos ainda

vivos? Seria um equívoco descartar esses métodos em que o presente dá acesso ao

passado. Só eles podem guiar-nos num labirinto de monstros e deuses quando, na

ausência de escrita, o documento plástico não pode superar a si mesmo. Ao

restabelecerem os elos entre regiões afastadas, períodos históricos diversos e

culturas de desenvolvimento desigual, eles atestam, esclarecem – e quem sabe um

dia expliquem – o vasto estado de sincretismo a que o americanismo parece, para

sua desgraça, sempre condenado a se chocar, na busca de antecedentes históricos de

determinados fenômenos.‖ ([1958a] 2008: cap. XIV, p. 296, grifo nosso).

Parece, então, possível argumentar que, para compreender o sentido da história para o

estruturalismo, temos que nos debruçar conjuntamente sobre o entendimento que Lévi-Strauss

tem das dimensões analíticas de tempo e espaço. E, neste sentido, a investigação comparativa

aparece como uma dimensão fundamental do método estrutural. A comparação entre estes

diversos testemunhos da passagem do tempo, a análise conjunta das ―ruínas‖ – para ficar nos

termos de Taylor – permite que o analista se interrogue de modo pertinente sobre a história da

América. Juntos, tempo e espaço movem o pensamento de Lévi-Strauss e desencadeiam sua

sensibilidade etnográfica e analítica. Se isso é verdade, as relações entre mito e história no

discurso estruturalista deverão, elas mesmas, passar por uma análise destas dimensões

analíticas mais fundamentais.

*****

7 Anais do Congresso de Americanistas 1948. Publicado originalmente na coletânea Antropologia Estrutural

([1958g] 2008: cap. XIV).

22

Antes de apresentar a estrutura deste trabalho é preciso algumas palavras a respeito de

alguns dos momentos que marcaram a pesquisa que deu origem ao presente texto. Ao

apresentarmos o tema das relações entre estruturalismo e história recorrendo a uma

investigação do quixotismo de Lévi-Strauss, só demonstramos como seriam inúmeras as vias

pelas quais poderíamos explorar tal problema, ao longo de tão vasta obra. São diversos os

textos em que Lévi-Strauss faz alusão à história. Marcio Goldman, na supracitada palestra de

1999, lista-os:

―Entre os textos capitais estão, sem dúvida, "História e etnologia", de 1949, "Raça e

História" (1952), a "Aula inaugural" (1960), "As descontinuidades culturais e o

desenvolvimento econômico" (1960), as entrevistas com Georges Charbonnier

(1961), os dois últimos capítulos de O pensamento selvagem (1962), o segundo

"História e Etnologia" (publicado nos Annales em 1983), "Um outro olhar" (1983),

História de Lince (1991), "Voltas ao passado" (1998) — além, é claro, de trechos,

mais longos ou mais curtos, em praticamente todos os livros do autor.‖ (Goldman

1999: 3)

Esta lista abarca, sem dúvida, diversos ―textos capitais‖, mas é preciso dizer que eu

não cheguei até este tema por meio destas leituras. Isso ocorreu, antes, pelo contato com a

obra do historiador Carlo Ginzburg, lida ainda em minha graduação em História – e que, no

limite, está na origem de minha opção pela Antropologia.

Diversos textos de Ginzburg fazem alusão ao trabalho de Lévi-Strauss, desde a

―Introdução‖ da coletânea de artigos Mitos, Emblemas e Sinais ([1986] 1989) – na qual o

autor relata a importância de ter lido Antropologia Estrutural na preparação de seu primeiro

livro Os Andarilhos do bem ([1966] 1988) – até um claro diálogo com as análises de

mitologia ameríndia lévi-straussianas registrado no livro Histórias Noturnas ([1989] 1995).

Grosseiramente, pode-se dizer que Ginzburg utiliza-se do trabalho de Lévi-Strauss com o

intuito de construir análises históricas que pudessem recorrer a ―teorias morfológicas‖

consistentes – que me parece ser o modo como ele entende estruturalismo antropológico.

Como acabei de dizer, este problema lhe ocorreu pela primeira vez ainda muito cedo,

quando nos estudos sobre os benandantes do Friul. Nesta ocasião, Ginzburg constatou que as

―crenças documentadas no Friul entre os séculos XVI e XVII apresentavam desconcertantes

semelhanças com fenômenos muito distantes no espaço (e talvez no tempo): os ritos dos

xamãs siberianos‖ (Ginzburg [1986]1989: 9). Havia, portanto, uma semelhança formal, que

esse autor se perguntava se ―seria possível [que fosse abordada] [...] de um ponto de vista

histórico‖ (Ginzburg [1986]1989: 9).

23

Contudo se Ginzburg não entendia as análises de Lévi-Strauss como ―anti-históricas‖,

ele acreditava que seus métodos, sobretudo, privilegiavam a sincronia, em detrimento da

diacronia – o que, de fato, me parece inegável, mas não impede que exploremos mais a fundo

a relação entre as duas dimensões analíticas. Mas o que parece, na verdade, mais incomodar

Ginzburg é a ―função circunscrita e marginal que Lévi-Strauss atribui à historiografia: a de

responder, mediante a verificação de uma série de dados de fato, às questões propostas pela

antropologia‖ (Ginzburg [1989]1995: 35). É possível deixar de lado esta complexa questão

dos limites da atribuição de cada disciplina. O que acredito ser o mérito de Ginzburg é o fato

de que ele entende que o sentido da história para o estruturalismo é uma questão de método,

que envolve estudar as relações entre análise sincrônica e análise diacrônica.

O contato direito com as Mitológicas de Lévi-Strauss8, me fez voltar ao ponto

estabelecido por Ginzburg, e citado acima. Em diversas passagens desta série de livros, Lévi-

Strauss estabelece que certas transformações lógicas entre os mitos possuem um sentido

histórico determinável9. Ou seja, que entre mitos analisados segundo transformações lógicas,

em sistemas sincrônicos de análise, poderíamos perceber relações diacrônicas. Este

reencontro casual com a questão colocada por Ginzburg gerou a seguinte pergunta: quais as

relações entre mito e história possíveis dentro do método estrutural?

Para respondê-la, foi preciso deter-me justamente sobre esse método. Isso foi feito de

duas maneiras: além do recurso óbvio aos textos de Lévi-Strauss sobre mitologia e as

passagens específicas sobre o tema, segui ainda uma via alternativa que, embora apareça

pouco no resultado final deste trabalho, teve importância enorme para a delimitação dos

caminhos escolhidos e das perspectivas adotadas. Procurei analisar detalhadamente algumas

etnografias que partiam diretamente da imagem da América indígena delineada pelo trabalho

de Lévi-Strauss com os mitos ameríndios, cujos autores faziam largo uso da metodologia

estruturalista para compreender as sociedades em que estudavam. Os trabalhos em questão

são os livros The Palm and the Pleiades, de S. Hugh-Jones (1979), Temps du Sang, Temps de

8 Este contato iniciou-se nos cursos oferecidos por Eduardo Viveiros de Castro no PPGSA/MN, no primeiro

semestre de 2008. 9 Na página 542 de L‟Homme Nu, Lévi-Strauss dá diversas referências de analises localizadas que permitem

estabelecer a anterioridade de certas formas míticas em relação a outras. Cito as páginas dos originais, que ele

fornece: (CC, p. 229, 313-17; MC p 295-307; OMT, p 210, 216-223, 321; e no próprio L‟Homme Nu, p. 178,

191, 193, 205, 283-284, 292-294, 301-304, 414, 473). No terceiro capítulo abordo detalhadamente algumas

destas passagens.

24

Cendres, de Bruce Albert (1985) e An Amazonian Myth and its History, de Peter Gow

(2001)10

.

Os dois primeiros livros são mais profundamente marcados pelo método estrutural –

até em virtude de uma maior proximidade temporal com o período de apogeu do

estruturalismo nas ciências humanas. Ambos procuram construir um modelo para a

compreensão da cosmologia dos Barasana e Yanomami, respectivamente, e dialogam com a

teoria estruturalista da relação entre mito e rito11

.

Estes textos foram fundamentais para minha compreensão do método estrutural,

principalmente pela diferença em que a perspectiva monográfica os colocava em relação às

Mitológicas. Se Lévi-Strauss produziu uma obra de dimensões continentais, que ―sobe‖ da

América do Sul até a América do Norte seguindo o percurso indicado pelos mitos que analisa,

estes autores produziram monografias clássicas, ao estilo malinowskiano, nas quais um

antropólogo dedica alguns tempo de sua vida a viver entre índios de uma tribo/uma

cultura/uma língua, procurando, depois, descrever essa sociedade.

Vistos em conjunto estes trabalhos me fizeram compreender melhor o método

estruturalista. Ao utilizarem-no – cada um ao seu modo – em uma escala reduzida, estes

trabalhos evidenciaram justamente seus fundamentos. A partir deles passei a entender o

estruturalismo como uma semiologia que lança mão da comparação entre sistemas simbólicos

por meio do recurso a um espaço sincrônico de análise. Sobretudo, estas monografias me

ensinaram que tratar os dados em tal espaço sincrônico não significa descontextualizá-los. Os

dados etnográficos permanecem claramente marcados pelo registro etnográfico feito em

primeira mão pelos próprios autores.

A obra de Bruce Albert constrói um número diverso de sistemas sincrônicos de

significados culturais: sobre o corpo, as doenças, os poderes patogênicos em sua relação com

o espaço sócio-político, os atos rituais, etc., e articula-os em um espaço estrutural que

conforma um todo, que é a cosmologia yanomam12

. O trabalho de Hugh-Jones ―destila‖ o

ritual Yurupari dos Barasana em diversos sistemas sincrônicos de significados – os papéis

rituais, as flautas, a cabaça de cera de abelha, o simbolismo dos animais, da morte e do

nascimento, os personagens míticos Sol e Lua – e os rearticula em um nível cosmológico, no

qual os atos rituais ganham pleno sentido.

10

Este último, na verdade, uma reescrita de seu trabalho de campo sobre uma outra perspectiva. A primeira

monografia de Gow sobre os Piro, índios da Amazônia peruana, do baixo rio Urubamba, é Of Mixed Blood, de

1991. 11

Embora tratem de rituais inter-comunitários, de tipos distintos, é verdade, pois talvez não existam duas

populações indígenas mais diferentes que os Barasana e os Yanomami. 12

Que é como em Albert 1992, o autor grafa o nome do subgrupo em que estudou.

25

Se estas análises construíram cosmologias, ficou logo evidente que estas cosmologias,

menos do que objetos fora do tempo, eram objetos construídos com ações de um tempo

marcado, que tinham sua própria historicidade13

. Esta percepção se tornou mais clara quando

passei a cruzar a leitura destas monografias com outros artigos destes autores que colocam

estas cosmologias, digamos, na história. Refiro-me a ―The Gun and the Bow‖ de Hugh-Jones

(1988) e ―A Fumaça de Metal‖, de Bruce Albert (1992).

Já o livro de Peter Gow (2001) foi de fundamental importância, menos para

compreensão do método estruturalista – que, de tudo, é encarado com menos rigor por este

autor – do que para uma visão de suas potencialidades inauditas: Gow demonstrou como fazer

história a partir da leitura estrutural dos mitos.

Neste mesmo período, tive contato com autores que, ao contrário destes, partiam de

uma compreensão menos empática da obra de Lévi-Strauss, ao lidarem, justamente, com o

tema das relações entre o estruturalismo e a história. Dentre os textos lidos, eu destacaria dois

livros do antropólogo norte-americano Marshall Sahlins (1981, 1987) e uma coletânea de

artigos organizada por Jonathan Hill (1988).

Em Metáforas Históricas de Realidades Míticas, Sahlins afirma, como já foi citado

acima, que o estruturalismo funda-se numa oposição insuperável em relação à história. E

procura demonstrá-lo a partir de uma análise do modo como Ferdinand de Saussure construiu

sua teoria do valor do signo por meio de uma modelo sincrônico (1981: 2, passim). Mais

tarde, Sahlins afirmarou que esta oposição entre estrutura e história é um caso particular de

outra que, mais fundamental, domina o pensamento ocidental como um todo: a oposição entre

estabilidade e mudança (1987: cap. V). Constata-se rapidamente a estratégia argumentativa

de Sahlins. O autor não retoma as discussões de Lévi-Strauss a respeito da história –

discussões que atravessam de ponta a ponta sua obra, como indicamos acima, procurando, ao

contrário, demonstrar como a obra de Lévi-Strauss, pela sua relação genética, suposta, com a

obra de Saussure, inserir-se-ia numa oposição mais fundamental, comum ao que ele chama de

―pensamento ocidental‖.

O objetivo de Sahlins nestes dois livros visa superar esta oposição fundamental,

procurando entender como a estrutura – que para ele é sinônimo de cultura – se relaciona com

o movimento, com os eventos. Assim, esse autor não dispensa a oposição entre estrutura e

movimento. Ele procura, somente, um entendimento da dinâmica de relação entre estes

13

Ver mais à frente debate sobre ―A Estrutura e a Forma‖ e sobre a historicidade dos mitos (cap. 2 p. 59 e ss).

26

opostos. A estrutura, ou cultura, é entendida como o nível das regras, a história como o nível

do contingente. O autor, inspirado certamente nos trabalhos de Fernand Braudel, procura

reunir aquilo que é estrutura – e que tem ―longa duração‖ – àquilo que é evento. Para tanto,

ele analisa – inspirado, por outro lado, na revisão da teoria do dom de Lévi-Strauss

empreendida pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1977) – o contexto de interação entre os atores

sociais, naquilo que o autor chama de ―estrutura de conjuntura‖ – onde os eventos são

percebidos culturalmente e a cultura é confrontada com os eventos. A tese de Sahlins é que

neste contexto, dialeticamente, ambos os opostos se modificam, daí a proposta de uma

síntese.

Deste modo, o trabalho de Sahlins, assim como o de Ginzburg, demonstra como a

relação entre estrutura e história passa por outra relação, aquela entre sincronia e diacronia.

Contudo, o primeiro, ao remeter o problema para uma oposição binária fundante do

pensamento ocidental, deixando de lado qualquer referência direta aos trabalhos de Lévi-

Strauss sobre a mitologia, nos ajuda pouco em nossa tarefa. Isso não é tudo. Como leitor

atento de Lévi-Strauss, não consigo aceitar a sinonímia entre estrutura e cultura, que me

parece um coup de force do antropólogo norte-americano14

. Além disso, as relações entre

Lévi-Strauss e Saussure, longe de serem óbvias, são assuntos de um renovado debate sobre as

origens e fundamentos do estruturalismo15

.

Muito do que se escreveu sobre a visão de história do estruturalismo baseia-se em uma

distinção entre sociedades ―frias‖ e ―quentes‖ estabelecida por Lévi-Strauss em uma

entrevista concedida a Georges Charbonier (Lévi-Strauss & Charbonier [1961] 1989), e

retomada posteriormente em sua ―Aula Inaugural‖ do Colége de France (Lévi-Strauss

[1960]1993: 11-40) e no último capítulo d‘o Pensamento Selvagem ([1962] 1989). O livro

organizado por Jonathan Hill e publicado em 1989, Rethinking History and Myth é resultado

14

Lévi-Strauss procura diferenciar seu conceito de estrutura tanto em relação ao empregado por Braudel quanto

em relação ao Radcliffe-Brown. Cf. sobre Braudel, o capítulo final do Pensamento Selvagem ([1962] 1989),

―História e Dialética‖ e sobre Radcliffe-Brown ―Análise Estrutural em Lingüística e Antropologia‖ in

Antropologia Estrutural ([1958g] 2008: cap. 2). Há, ainda, considerações a respeito de algumas proposições dos

historiadores dos Annales nos dois artigos homônimos, ―História e Etnologia‖, respectivamente ([1958g] 2008:

cap. 1 e 1983) 15

Lévi-Strauss tratou do assunto em algumas ocasiões, cf. a este respeito, p. ex.: ―As Lições da Lingüística‖, e

―Religião, língua e história: a propósito de um texto inédito de Ferdinand de Saussure‖ (Lévi-Strauss [1983]

1986, respectivamente capítulo IX e X) – no segundo texto Lévi-Strauss considera Saussure um ―pré-

estruturalista‖. O autor também faz referência a Saussure no ―Posfácio aos capítulos III e IV‖ em Antropologia

Estrutural ([1958g] 2008). Recentemente o filósofo francês Patrice Maniglier vem fazendo uma leitura bastante

inovadora do estruturalismo que não separa seu aspecto metodológico de seu aspecto filosófico. Neste sentido, o

autor faz uma releitura de Saussure que merece atenção (cf. Maniglier 2005, 2006, principalmente).

27

de um seminário que tomou a distinção entre sociedades frias e quentes como ―call for

papers‖. Na introdução ao volume que edita, Jonathan Hill afirma que entre os ensaios do

volume encontraremos:

―fresh support to the global shadow of doubt that recent research has cast on the

theoretical myth that there are, or were, „cold‟ societies without history or ‗hot‘ ones

that have ‗progressed‘ beyond myth.‖ (Hill 1988: 4 grifos nossos)

Os autores de artigos desta coletânea, ao invés de tomarem esta distinção como casos

limites – referentes à ―imagem que as sociedades fazem de si próprias‖ e não a ―tipos‖ de

sociedades (cf. Lévi-Strauss & Charbonier ([1961] 1989: 29-30; [1962] 1989: 259-60) –

entendem-na como se referindo a um ―grande divisor‖ que atua separando o pensamento

antropológico de seus objetos. Assim, segundo eles, tal dicotomia implicaria em uma

caracterização das sociedades ocidentais como sociedades com história, portanto, quentes, e

as sociedades indígenas como marcadas pela ausência de história, sendo, portanto, frias.

Estes autores pretendem superar esta visão analisando, principalmente, como os discursos e

atos rituais das ditas ―sociedades frias‖, em situação de contato, revelam uma consciência

histórica em crescente desenvolvimento, que dialoga com uma consciência mítica que as

caracterizaria tradicionalmente (Hill 1988: 5 e seguintes). Colocada nestes termos, a questão

nos remete a diversos trabalhos do antropólogo Terence Turner (1988, 1992, 1993, entre

outros) – autor que faz um comentário de sobrevôo sobre todos os artigos do livro (Turner

1988: 235-281), ressaltando justamente a co-penetração entre estas duas formas de

consciência que se expressa em diversos tipos de situações pós-contato.

Ao analisar os propósitos desta coletânea, Peter Gow, argumenta que o entendimento

do trabalho de Lévi-Strauss expressos nestes textos se baseia em pelo menos duas leituras

errôneas da obra do antropólogo francês. O primeiro sustentáculo seria uma interpretação que

considera que a atitude anti-histórica de Lévi-Strauss revela-se pela ausência de referências

consistentes de sua obra à história da invasão e dominação colonial européia. O segundo seria

a afirmação de Lévi-Strauss de que os mitos são ―máquinas de obliterar o tempo‖ – localizada

no penúltimo capítulo de O Homem Nu – que foi lida como uma declaração de que os

ameríndios não são conscientes do processo histórico em que se envolveram desde o processo

colonial. Ambas interpretações afirmam, portanto, que o objeto da história dos nativos sul-

americanos é a sua relação com a expansão ocidental – e que por Lévi-Strauss ―ignorar‖ esta

história, ele ignora toda história. Assim, estes autores afirmam que a História possui um

28

objeto específico, e que este objeto específico é a expansão colonial européia e seu impacto

sobre o mundo colonizado16

(Gow 2001:16)17

.

A ausência de referências concretas e leituras mais profundas das proposições de Lévi-

Strauss me afastaram das críticas e proposições encontradas neste livro. Ainda mais, porque

meu ponto de partida era o modo como na relação dos mitos entre si, seria possível propor

relações históricas entre as comunidades ameríndias. A concentração exclusiva desta obra no

tema do contato apontava, para mim, numa dimensão diferente daquela que eu pretendia

seguir – apesar de o tema ser de extrema importância. Há, ainda, outra restrição, que hoje me

parece mais clara. Ao invés de trabalhar com a idéia de uma consciência mítica e uma

consciência histórica distintas, me parece que Lévi-Strauss foi capaz de ler a história contida

nos mitos, ou seja, de entender como os mitos são, ao seu modo, histórias. Este ponto nos

leva de volta ao objetivo desta introdução: apresentar a organização interna deste trabalho e

alguns pressupostos metodológicos com os quais estaremos operando.

*****

Antes de tudo, é preciso apresentar uma definição do método estrutural que descreva

seus conceitos e procedimentos fundamentais. Tal definição pode ser encontrada na aula

inaugural do Collège de France, proferida em 1960 para a assembléia desta instituição e

publicada como primeiro capítulo do livro Antropologia Estrutural II. A certa altura da leçon,

Lévi-Strauss dá uma definição mínima de estrutura:

―Só é estruturado o arranjo que preencha essas duas condições: ser um sistema,

regido por uma coesão interna; e esta coesão, inacessível à observação de um

sistema isolado, revelar-se no estudo das transformações, graças às quais encontram-

se propriedades similares aparentemente diferentes.‖ ([1973b] 1993: 26)

16

Unir a história dos povos indígenas à história da expansão do mundo ocidental é o objetivo de um livro de Eric

Wolf, Europe and the Peoples Without History (1982) – que influenciou decisivamente a perspectiva adotada

como na coletânea de Hill. Segundo Stephen Hugh-Jones (1988) Wolf, neste livro, procura devolver história

àqueles aos quais ela foi negada até hoje. No entanto, a história que ele nos oferece é duplamente nossa: não

somente porque é dominada pelo mundo europeu e sua expansão, mas também porque é vista pelos olhos do

Ocidente (Hugh-Jones 1988: 138). São estas duas pré-condições da escrita histórica que Gow atribui a Hill e aos

outros autores de Rethinking History... e, tanto Hugh-Jones quanto Peter Gow citam uma frase de Wolf em que

esta dupla condição se manifesta: ―the global processes set in motion by European expansion constitute their

history as well. There are thus no ‗contemporary ancestors‘, no people without history, no peoples – to use Lévi-

Strauss‘ phrase – whose histories have remained cold‖ (Wolf 1982: 385). 17

Este é o tópico da sub-seção da Introdução de An Amazonian Myth and its History intitulado ―One History

Only?‖ Nesta, por meio de uma crítica a J. P. Sartre, Peter Gow levanta uma série de objeções aos estudos de

antropologia histórica. Seus alvos são o marxismo e o funcionalismo. (Gow 2001: 14-19)

29

Poderíamos dizer que as palavras chaves desta definição são: sistema, estrutura e

transformação. Se bem que a transformação em causa é um tipo específico de comparação.

Assim, poderíamos definir a antropologia estrutural como um método comparativo que

analisa sistemas em transformação, a estrutura sendo a lei de transformação destes sistemas.

Como se sabe, pelo menos desde os artigos do livro Antropologia Estrutural ([1958g] 2008),

esta definição necessita do estabelecimento de um nível em que as

comparações/transformações podem, efetivamente, tomar lugar, sem se perder diante da

heterogeneidade dos objetos que analisa. Este nível é o nível inconsciente da realidade

simbólica humana. Os fenômenos inconscientes são entendidos, a uma só vez, para além do

real e do imaginário, como definidores da realidade simbólica em que os homens se

comunicam através de signos. Numa bela frase do filósofo francês Gilles Deleuze,

―o simbólico, elemento da estrutura, está no princípio de uma gênese: a estrutura se

encarna nas realidades e nas imagens segundo séries determináveis; mais ainda, ela

as constitui encarnando-se, mas não deriva delas, sendo mais profunda que elas,

subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da imaginação.‖ ([2002:

240] 2006: 223)

É importante notar que a definição de estruturalismo coloca em cena a centralidade do

conceito de transformação, que é ―inerente à análise estrutural‖. Como Lévi-Strauss dirá

quase trinta anos após esta aula inaugural a Didier Eribon, a incompreensão deste aspecto

central está na origem dos abusos que, frequentemente, se fez da noção de estrutura:

―Diria, até, que todos os erros, todos os abusos cometidos, sobre ou com a noção de

estrutura, provêm do fato de seus autores não compreenderem que é impossível

concebê-la separada da noção de transformação. A estrutura não se reduz ao sistema:

conjunto composto de elementos e relações que os unem. Para que se possa falar de

estrutura, é necessário que entre os elementos e as relações de vários conjuntos

surjam relações invariantes, de tal forma que se possa passar de um conjunto a outro

por meio de uma transformação.‖ (Lévi-Strauss & Eribon [1988] 2005: 162-3)

Como a definição de transformação é marca do comparativismo estruturalista, e o

comparativismo me parece a chave para entender o modo como Lévi-Strauss articula as

dimensões de tempo e espaço em suas análises, nosso primeiro objetivo é estabelecer o modo

como a situação geográfica e histórica dos objetos sobre os quais o estruturalismo se detém

determina dois tipos de comparativismo distintos: um que se refere a objetos dispersos no

espaço – cujas relações históricas não são conjecturáveis –, e outro que se refere a objetos em

continuidade espacial – cujas relações históricas são consideradas dadas. Aos primeiros

objetos o recurso à noção de estrutura será preponderante em relação à noção de

30

transformação – assim como a ênfase na unidade do espírito humano –, no segundo caso, a

situação será inversa.

O estabelecimento de descontinuidades no discurso estruturalista lévi-straussiano é um

artifício metodológico que me parece inevitável. Este artifício é, contudo, aqui, empregado

com cuidado. Eduardo Viveiros de Castro, em um texto recente sobre que discute a interface

entre o aspecto sacrificial e totêmico do pensamento selvagem e o perspectivismo ameríndio,

discute como a obra de Lévi-Strauss poderia ser lida como marcada por descontinuidades que

se situam em ―dois planos‖:

―um diacrônico, com a idéia de que a obra lévi-straussiana conhece grandes fases ou

momentos; e um sincrônico, com a idéia de que ela enuncia um discurso duplo,

descreve um duplo movimento. Um modo de articular as duas descontinuidades

seria observar que as fases da obra se distinguem pela importância atribuída a cada

um dos dois movimentos que se opõem contrapontisticamente ao longo de toda ela.‖

(Viveiros de Castro 2008: 108)

O que nos interessa no estabelecimento de uma descontinuidade no discurso

estruturalista é que a obra de Lévi-Strauss teria passado de uma ênfase inicial no conceito de

estrutura – presente, por exemplo, nos estudos do parentesco –, para uma ênfase final no

conceito de transformação – a partir do estudo dos mitos. Mas sem dúvida, como aponta

Viveiros de Castro é uma questão de ênfase, e não de predomínio absoluto.

De modo geral, nosso procedimento básico será o de uma leitura minuciosa de

algumas analises lévi-straussianas selecionadas de acordo com nossos objetivos.

Procuraremos estar o mais próximo o possível dos procedimentos analíticos de Lévi-Strauss.

Isso porque a abordagem que orienta este trabalho é menos a de traçar uma história das

relações entre estrutura e história, do que ir à estrutura do problema. É preciso dizer também

que evito deliberadamente oferecer uma definição de história tanto para Lévi-Strauss como

para outros autores. O que interessa aqui é definir o mito e, partindo dele, 1) procurar entender

como ele se relaciona com o acontecimento, e 2) como da leitura estruturalista do mito pode

surgir novas e inesperadas escritas da história18

.

18

Para o leitor que deseja mais precisão ofereço algumas definições em curso: o termo ―história‖ é polissêmico e

muitas vezes estes diversos sentidos se misturam, o que provoca alguma confusão. Neste texto utilizo uma

distinção entre história e historiografia, o primeiro termo se referindo aos ―eventos em si‖, e o segundo ao modo

de narrar estes eventos. No primeiro sentido, o termo ―história‖ aparece de forma adjetivada, como nas frases

―relações históricas‖, ―prova histórica‖ etc. No segundo vai aparecer como ―historiografia tradicional‖, ―novas

possibilidades historiográficas‖, sempre se referindo a uma forma de ciência humana em que o tempo possui

valor explicativo. Não ignoro que a ―história‖ definida como ―os eventos em si‖ depende da ―historiografia‖ e do

modo como ―se narra os eventos‖. Neste sentido é que falo que estas definições são aproximativas e que

devemos ―deixar os mitos falarem‖ e ver com eles afetam a história, a historiografia, como se relacionam com os

eventos, etc. Na conclusão retomo este tema. Sobre os sentidos da História para Lévi-Strauss cf. Goldman 1999.

31

No primeiro capítulo, partindo de uma analise de um artigo de Lévi-Strauss, de 1954,

―O desdobramento das representações nas artes da Ásia e da América‖, procuro examinar

como a relação entre os objetos a serem analisados influencia a relação entre os conceitos

fundamentais do método que analisa. Ou seja, como a impossibilidade de comprovar relações

históricas entre as culturas nas quais a arte se apresenta segundo o estilo do ―desdobramento

da representação‖, faz com que Lévi-Strauss explique a unidade da série de objetos que

analisa por meio do conceito de estrutura e da noção de transformações lógicas, deixando de

lado a possibilidade de levantar hipóteses históricas concretas.

No capítulo seguinte, faço uma leitura do artigo que inaugura a análise estrutural dos

mitos – ―A estrutura dos mitos‖ (Lévi-Strauss [1958d] 2008) – e de outros trabalhos que

determinam as bases do que virão a ser as Mitológicas (Lévi-Strauss [1962] 1989; [1973a]

1993) de modo a estabelecer um contraponto com os tópicos discutidos no capítulo 1. A idéia

é captar como a análise estruturalista dos mitos procura retirar um maior rendimento de duas

situações característica dos mitos do ponto de vista analítico e empírico: de um lado, o

estabelecimento de unidades analíticas circunscritas histórica e geograficamente. De outro,

uma caracterização dos mitos enquanto objetos históricos – já que estes relatos são

profundamente enraizados na infra-estrutura técnico-econômica e social dos povos que os

contam. É entre esta continuidade – geográfica e histórica – e a particularidade – contextual –

que a analise estrutural dos mitos se desdobra. Neste sentido, procuro descrever como as

transformações entre os mitos podem ser entendidas como, ao mesmo tempo, transformações

lógicas e históricas, através de uma análise da ―fórmula canônica‖ do mito – o que apontará

para inflexões no conceito de transformação.

No terceiro e último capítulo discuto como Lévi-Strauss, efetivamente, faz história

através dos mitos. As análises mitológicas permitiram Lévi-Strauss descrever dois tipos de

análises históricas que são quase que antípodas. De um lado, o autor faz uma série de micro-

histórias difusionistas – nas quais é possível determinar o sentido de certas transformações

lógicas, estabelecendo a precedência de uma versão sobre outra; de outro, Lévi-Strauss

relaciona a concretude de sistemas mitológicos de larga abrangência cultural e espacial a

hipóteses históricas de longo alcance, como, por exemplo, à questões que se relacionam à pré-

história do continente. Mas isso não é tudo: na medida em que articula sistemas mitológicos

cada vez mais descontínuos no espaço, ou cuja extensão não permitem aventar hipóteses

históricas mais concretas, emerge um aspecto mais estrutural do discurso de Lévi-Strauss que

podemos contrapor ao predomínio de seu aspecto ―transformacional‖ – termo que utilizamos

na falta de melhor expressão – característico das análises mais circunscritas de mitologia.

32

Ao final, faço uma conclusão que retoma os resultados alcançados ao longo deste

trabalho como ponto de partida para avaliar algumas questões mais abrangentes.

Procuraremos estabelecer alguns pontos de contato entre estes resultados e o trabalho de Peter

Gow (2001) e Carlo Ginzburg ([1986] 1989), além de discutir alguns desdobramentos

possíveis de uma maior compreensão do aspecto historiográfico do discurso estruturalista e da

qualificação dos mitos enquanto documentos históricos.

33

Capitulo 1 - Inconsciente e História

“E muito pouca história (já que tal é,

infelizmente, a sina do etnólogo) é

melhor do que história nenhuma.”

Lévi-Strauss, 1949

Este capítulo visa retomar o fundamento das teses mais difundidas a respeito da

relação entre o método estrutural e a história – qual seja, o de que a análise estrutural situa-se

em relação de complementaridade com a análise historiográfica. Para tanto, nos deteremos

sobre um artigo de Lévi-Strauss de 1958, que figura como XIII capítulo do livro Antropologia

Estrutural: ―O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América‖, publicado

originalmente na revista de Renaissance edição 1944-45. O pano de fundo desta análise é o

famoso capítulo introdutório a Antropologia Estrutural, ―História e Etnologia‖ ([1958b]

2008). Não deixo, entretanto, de fazer menção a outros textos de Lévi-Strauss que tratam das

relações que nos interessam. É preciso dizer que, se iniciamos este trabalho sobre a leitura

estruturalista da mitologia ameríndia por meio da análise de um texto que não trata de

mitologia e sim de arte primitiva, é porque ela permitirá entrever uma das formas possíveis de

comparativismo dentro do estruturalismo. Forma esta que nos interessa, justamente, para

pensar a relação do estruturalismo com a história.

34

*****

Antes de nos determos no problema do artigo de 1944, precisamos esclarecer a

questão: o que é uma representação desdobrada? Lévi-Strauss, chamando o testemunho

daqueles que analisaram o problema antes dele, evoca os aspectos formais que caracterizam

este tipo de representação. Podemos tomar a descrição que Franz Boas fez para a arte das

tribos da costa noroeste da América do Norte como um paradigma:

―O animal é imaginado cortado da cabeça à cauda [...] ou é representado como

cortado ao meio, de modo que os perfis se juntam no meio, ou uma vista frontal da

cabeça é apresentada com dois perfis do corpo adjacente.‖ (Boas 1927: 223-24 in

Lévi-Strauss [1958c] 2008: 266).

Lévi-Strauss compara esta formulação com a do sinólogo Heerlee Glessner Creel, feita

com aparente desconhecimento dos trabalhos de Boas: ―É como se se pegasse o animal e nele

se fizesse uma fenda longitudinal, começando pela ponta do rabo e prosseguindo a operação

até quase, mas não completamente, a ponta do focinho [...]‖ (Creel 1935: 64 apud LS [1958c]

2008: 268). (ver figuras 1 e 2)

O primeiro ponto a se notar – que já nos aproxima do problema do artigo – é que

estamos diante de fatos provenientes de universos geográfica e historicamente distantes. A

semelhança entre estes traços formais coloca um enigma para os etnólogos e historiadores da

arte primitiva. Segundo Lévi-Strauss, procurava-se entender esta semelhança formal sob um

ponto de vista difusionista, como se este tipo de representação tivesse surgido em um lugar

específico – um suposto centro de difusão destes princípios ―artísticos e tecnológicos‖. Trata-

se, portanto, ―de uma das causas mais discutíveis que se podem conceber‖ ([1958c] 2008:

262), ainda mais porque aos fatos – norte-americanos e chineses – apresentados, somam-se

testemunhos de diversos lugares e períodos históricos:

―A prolífica discussão em causa envolve ao mesmo tempo a costa noroeste da

América do Norte, a China, a Sibéria, a Nova Zelândia, talvez até a Índia e a Pérsia.

Além disso, os documentos invocados provêm dos mais diversos períodos: séculos

XVIII e XIX para o Alasca, do primeiro ao segundo milênio A. C. para a China, arte

pré-histórica da região do rio Amur e um período que vai do século XIV ao XVIII

para a Nova Zelândia‖ ([1958c] 2008: 261-2)

O problema que as representações desdobradas colocam é o de entender como um

estilo de arte pode ser tão recorrente, e ao mesmo tempo tão disperso no tempo e no espaço. A

35

questão pode ser formulada deste modo: como encontrar uma perspectiva que permita

comparar documentos históricos homogêneos do ponto de vista morfológico, e heterogêneos

do ponto de vista histórico e geográfico? A intuição de um ―parentesco‖ entre as

representações desdobradas, que ―salta aos olhos‖, carece de um fundamento que lha

confirme. Até então procuravam fazer deste parentesco a razão de supostas relações históricas

entre estas sociedades. Relações que restavam incomprovadas por outros meios. Lévi-Strauss

procurará outra via de explicação, justamente para se afastar deste tipo de circularidade

interpretativa característica das hipóteses difusionistas. Seu problema é, então, o de encontrar

uma perspectiva para comparar o que é, a primeira vista, incomparável. Contudo, é preciso

notar, desde já, que Lévi-Strauss não ignora a historicidade particular de cada um destes

documentos, mas procura relacioná-las de uma forma, digamos, não causal.

Ao comentar as explicações difusionistas, Lévi-Strauss pondera:

―[s]e a história, constantemente solicitada (e que é preciso solicitar antes de mais

nada), responde não, voltemo-nos então para a psicologia ou para a análise

estrutural das formas e perguntemo-nos se conexões internas, de natureza

psicológica ou lógica, não permitiriam compreender recorrências simultâneas, com

uma freqüência e uma coerência que não pode decorrer do mero jogo das

possibilidades.‖ ([1958c] 2008: 265 – grifos nossos)

É, portanto, contra uma história conjectural, feita pela inferência de conexões externas

a partir da recorrência de características internas de uma série de documentos, que este artigo

se insurge19

. Pode-se dizer ainda mais: este artigo é tanto um posicionamento diante dos

―abusos da história‖ feitos pelos difusionistas20

, quanto ―A noção de arcaísmo em etnologia‖

([1958g] 2008: cap.VI) – e mesmo ―As descontinuidades culturais e o desenvolvimento

econômico‖ ([1973e] 1993) – é uma tomada de posição em relação aos mesmos abusos, só

que feitos sob uma perspectiva evolucionista.21

Todo o problema de Lévi-Strauss é encontrar a perspectiva adequada para comparar

estes fenômenos. Como disse o autor no artigo que fecha o livro Antropologia Estrutural: ―A

19

Em um outro registro, pode-se dizer que o esforço de comparação é também uma crítica ao funcionalismo que

procurava entender as sociedades como mônadas isoladas (ver ―História e Etnologia‖ [1958b] 2008: 26 e

passim). 20

Entre as hipóteses arriscadas e mal estabelecidas, do ponto de vista da crítica história, elaboradas pelos

difusionistas, e o ceticismo dos ―fariseus intelectuais‖ – que insistem em ―negar conexões evidentes‖ – Lévi-

Strauss ficaria, sem dúvida, com os primeiros, pois ―[n]egar os fatos porque se acredita que sejam

incompreensíveis é certamente mais estéril, do ponto de vista do progresso do conhecimento, do que elaborar

hipóteses; ainda que estas sejam inaceitáveis; justamente por sua insuficiência, suscitam a crítica e a investigação

que um dia serão capazes de superá-las.‖ ([1958c] 2008:265) 21

Ver o artigo de Lévi-Strauss ―A noção de arcaísmo em etnologia‖ (in LS [1958g] 2008: cap. VI) e, ver na

análise de Coelho de Souza & Fausto 2004 sobre ―o campo perdido de Lévi-Strauss‖, a sessão sobre a crítica

lévi-straussiana à noção de arcaísmo em etnologia.

36

tarefa do estruturalista é identificar e isolar os níveis de realidade que possuem um valor

estratégico a partir da perspectiva em que se coloca [...]‖ ([1958f] 2008: 307). Uma análise

desta argumentação nos permitirá compreender como Lévi-Strauss ―identifica e isola‖ os

níveis estratégicos da realidade que podem ser abordados segundo a metodologia estrutural e

quais são os tipos de extrapolações que o método empregado permite. Devemos notar que é

na seleção do nível de análise que se joga esta primeira partida entre a estrutura e a história.

*****

Lévi-Strauss começa por estabelecer uma série. Elenca as representações desdobradas

provenientes de diversos lugares e tempos e as interpretações que as consideram análogas do

ponto de vista formal. Os trabalhos de Boas e Creel, acima citados, são os primeiros a serem

co-relacionados. As representações do noroeste da América do Norte provêem dos Haida e

dos Tsimshian e datam do século XVIII e XIX , e as da China de seu período feudal arcaico –

portanto, além de milhares de quilômetros, mais de 2000 anos as separam. No primeiro caso,

as representações descrevem pinturas em madeira com diversas funções – painéis, postes,

fachadas de casa, chapéus, etc.; no segundo, trata-se de uma arte decorativa, feita

principalmente em bronze. Os autores chegam, como já observamos, a usar termos

incrivelmente semelhantes para descrever artes que o tempo e o espaço separam. (ver figura

3)

Após estas primeiras constatações, a argumentação de Lévi-Strauss sofre uma primeira

clivagem. O autor acrescenta uma contribuição etnográfica sua – imagens das pinturas faciais

kadiwéu – aos fatos da China e da América do Norte (ver figura 4). Aparentemente, nada

uniria tais artes. Se até então o autor estava descrevendo uma arte decorativa, de aspecto

ornamental, realizada sobre superfícies inertes, representando animais (com um ―realismo‖

pronunciado, portanto), as imagens kadiwéu, mesmo tratando de pinturas igualmente

decorativas e ornamentais, eram realizadas sobre superfícies vivas e possuíam um caráter

abstrato. A introdução destes fatos sul-americanos faz surgir uma primeira dualidade, entre

pintura representativa e não-representativa, na análise dos sistemas artísticos em questão.

Poderíamos nos perguntar, junto a Lévi-Strauss, como, então, estas pinturas

constituiriam casos particulares da ―técnica mais generalizada‖ da representação desdobrada?

Esta resposta constitui um passo determinante para a revelação do que há, pare ele, de

fundamental neste tipo de representação. Vejamos a descrição que o autor faz destas pinturas:

37

―A decoração é constituída simetricamente em relação a dois eixos lineares, um

vertical, que acompanha o plano mediano do rosto, e o outro horizontal, que o corta

na altura dos olhos [...]‖ ([1958c] 2008: 270)

[...]

―Não é fácil fazer a análise da decoração, devido à sua aparente assimetria. Mas ela

disfarça uma simetria real, se bem que complexa: os dois eixos se cruzam na base do

nariz, e dividem o rosto em quatro setores triangulares, a metade esquerda da testa, a

metade direita da testa, a ala direita do nariz e a bochecha direita, a ala esquerda do

nariz a bochecha esquerda. Os triângulos opostos têm uma decoração simétrica, mas

a decoração de cada triângulo é em si mesma dupla e se repete invertida no triângulo

oposto.‖ ([1958c] 2008: 270) (ver figura 5)

Neste sentido, é uma torção no eixo do rosto que faz com que estas pinturas sejam

compreendidas como tão simétricas quanto os brasões chineses e aqueles da costa noroeste.

Mas isso não é tudo. Lévi-Strauss acrescenta um documento que apresenta particularidades

que permitem, definitivamente, que estas pinturas integrem a série que está sendo constituída.

Trata-se da fig. 24 do artigo (ver figura 6). Ao descrevê-la, Lévi-Strauss afirma que:

―na figura 24, não é apenas a ornamentação pintada que merece atenção. A artista

[...] também quis representar o rosto, e até o cabelo. E fica evidente que ela o fez por

desdobramento da representação: o rosto não é realmente visto de frente, é formado

por dois perfis colados. [...] A comparação entre as figuras 19, 20 e 24 evidencia a

identidade desse procedimento com o dos artistas da costa noroeste da América.‖

([1958c] 2008: 271, grifos nossos)

Ou seja, Lévi-Strauss necessita, primeiramente, deixar de considerar a pintura facial

em si, para considerar o seu suporte tal como ele é representado em uma cópia deste tipo de

pintura feita por uma artista nativa. Este suporte é o rosto humano, e ao desenhá-lo, a artista

submete a realidade deste à da pintura. O rosto aparece desdobrado em consequência da

completude da pintura. A união entre os perfis de uma figura bi-seccionada é o primeiro

índice analítico de Lévi-Strauss. Seguindo com a argumentação, o autor diz que existem

outras analogias entre esta arte e a da costa noroeste. A primeira apontada é o ―deslocamento

do tema em elementos, por sua vez recompostos segundo regras de convenção sem relação

com a natureza.‖ ([1958c] 2008: 272)22

. Contudo, a arte kadiwéu levaria ―o deslocamento ao

mesmo tempo mais e menos longe.‖ ([1958c] 2008: 272):

―[A] integridade do rosto real é [...] respeitada, mas ele não deixa de ser deslocado

pela assimetria sistemática graças à qual sua harmonia natural é negada, em prol da

22

Dando destaque ao tema do deslocamento, Lévi-Strauss afirma, seguindo uma descrição de Boas, que os

animais, neste tipo de representação têm os ―órgãos e membros [...] decompostos, e com eles se reconstrói um

indivíduo arbitrário.‖ ([1958c] 2008: 272)

38

harmonia artificial da pintura. Mas justamente porque esta pintura, em vez de

representar a imagem de um rosto deformado, deforma efetivamente um rosto

verdadeiro, o deslocamento vai mais longe do que o descrito acima.‖ ([1958c] 2008:

272-3)

Lévi-Strauss valoriza a simetria da pintura em detrimento da assimetria do resultado

final. A relação entre rosto e pintura aparece como necessária na concepção da artista

kadiwéu. Lévi-Strauss chama atenção para o fato de que na arte do noroeste também existiam

pinturas faciais, e estas também expressavam ―o mesmo desdém para com a simetria do rosto

humano‖ ([1958c] 2008: 273). Da análise destas pinturas o autor retira um hipótese

fundamental para o restante de sua argumentação: existe uma relação necessária entre pintura

e suporte: ―Deslocamento e desdobramento estão funcionalmente ligados‖ ([1958c] 2008:

273).

Prosseguindo o paralelo intra-americano, em segundo lugar, Lévi-Strauss coloca lado

a lado as esculturas e o desenho de cada sociedade. Com relação a esta distinção, nota-se que:

―Em ambos os casos, a escultura apresenta um caráter realista, ao passo que o

desenho é antes simbólico e decorativo. [...] Em ambos os casos, a arte masculina,

centrada na escultura, afirma sua intenção representativa, enquanto a feminina [...] é

uma arte não representativa.‖ ([1958c] 2008: 274)

Assim, a análise desdobra-se num segundo dualismo: de ―realismo/abstracionismo‖

para ―pintura/escultura‖. O autor ainda destaca que as ―duas artes praticam a decoração por

um método de padrões, criando combinações sempre novas graças à variação na disposição de

motivos elementares‖ ([1958c] 2008: 274). E que a arte destas duas regiões está fortemente

ligada à organização social: ―[A]mbas as sociedades eram hierarquizadas, e sua arte

decorativa servia para traduzir e reafirmar os graus de hierarquia‖ ([1958c] 2008: 274) 23

.

Seguindo a pista deixada pela pintura kadiwéu, com respeito à relação entre a pintura e

o rosto, Lévi-Strauss acrescenta à série comparativa a arte maori, da Nova Zelândia. Esta arte,

que já tinha sido aproximada por outros motivos a arte da costa noroeste, interessa a Lévi-

Strauss, sobretudo, pelo desenvolvimento e refinamento da ornamentação corporal e facial.

Notamos, então, que, se até aqui o índice que comandava a série era aquele do desdobramento

da representação – a figura desdobrada a partir do perfil bi-secionado –, ele passa a ser a

relação entre decoração e corpo, numa espécie de ―torção‖ do quadro de analogias de Lévi-

Strauss: introduz-se uma nova dualidade, aquela entre rosto e ornamentação. A arte kadiwéu

23

Em Tristes Trópicos Lévi-Strauss segue esta co-relação entre arte e estrutura social mais de perto, numa

análise que, segundo o autor, não contradiz a do artigo que comentamos, mas a complementa e complexifica.

(Lévi-Strauss [1955] 1996: cap. XX)

39

abriu a problematização para outro campo: ela desloca o problema das artes de ―emblemas‖

para o campo das ―pinturas corporais‖ – da relação entre estas pinturas e o corpo como

suporte.

Cumpre observar que esta é, justamente, a qualidade da noção de estrutura: reduzir os

elementos ao nível estrutural acaba por tornar visíveis aspectos muitas vezes impensáveis dos

objetos que se analisa. Assim, é possível aproximar outros sistemas artísticos que ainda não

figuravam no problema – como a arte maori. Lévi-Strauss esboça uma leitura destes sistemas

artísticos em chave tipológica: as pinturas kadiwéu seriam um intermediário, numa escala de

tipos, entre as Maori e as da costa noroeste. Neste sentido, o autor pode dizer que:

―A continuidade [tipológica] se evidencia igualmente quando se consideram as

implicações psicológicas e sociais. Entre os Maori, assim como entre os indígenas

da fronteira paraguaia, a elaboração da ornamentação facial e corporal é realizada

numa atmosfera semi-religiosa. As tatuagens não são apenas ornamentos. Não são

apenas [...] emblemas, marcas de nobreza, de grau de hierarquia social. São também

investidas de uma finalidade espiritual e lições.‖ ([1958c] 2008: 278)

Enfim, a ―tatuagem maori visa gravar um desenho na carne e todas as tradições e a

filosofia da raça, no espírito‖ ([1958c] 2008: 278). Para eles, assim como para os Kadiwéu,

quem não se pinta ―é estúpido‖. Entre a pintura e o rosto, existe, portanto, uma relação

necessária. O fato de os Maori também praticarem o desdobramento da representação24

entra

na argumentação somente depois de constatado este paralelo com a relação necessária entre

pintura e corpo, que foi reforçado na comparação entre a pintura kadiwéu e a tatuagem

maori25

.

Tendo desenvolvido seu argumento até este ponto, Lévi-Strauss retoma na chave de

enigma, o problema inicial do artigo: ―como explicar essa recorrência de um método de

representação tão pouco natural em culturas separadas pelo tempo e pelo espaço?‖ Esta é a

deixa para ele elaborar uma crítica mais veemente à abordagem difusionista. A esta pergunta

ele mesmo responde: a ―hipótese mais simples é a de um contato histórico, ou de

desenvolvimentos independentes a partir de uma origem comum‖ ([1958c] 2008: 278-9).

Uma hipótese difusionista, como se pode notar. No entanto, o problema real é menos a

impossibilidade de responder a tal enigma – com uma resposta histórica que aponte um

24

Na arte maori encontram-se ―as mesmas divisões da testa em duas partes, a mesma composição da boca a

partir das duas metades face a face, a mesma representação do corpo como se estivesse sido fendido de alto a

baixo, e as duas metades trazidas para a dianteira num único plano [...]‖ (Lévi-Strauss [1958c] 2008: 278) 25

Em The Sense of Order, Ernest Gombrich (1984) analisa este mesmo caso das representações desdobradas,

inserindo-o em um conjunto mais amplo de dados (Cf. pp. 224 passim; 259 passim; 269 e 304). O leitor que

conferir estas páginas terá acesso a uma interpretação de especialista sobre o caso. Estamos, neste momento,

mais interessados nos passos formais da análise de Lévi-Strauss, do que no conteúdo de suas afirmações.

40

centro, ou caminhos de difusão deste estilo de arte – do que o rendimento deste tipo de

questão:

―mesmo que as reconstruções mais ambiciosas da escola difusionista fossem

comprovadas, restaria uma questão essencial a ser respondida, e que não diz respeito

à história. Por que um traço cultural, emprestado ou difundido ao longo de um

período histórico extenso, se manteve intacto? Pois esta estabilidade não é menos

misteriosa que a mudança.

[...]

Conexões externas podem explicar a transmissão, mas só conexões internas podem

dar conta da persistência. Trata-se de duas ordens totalmente diferentes de questões,

e o fato de dedicar-se a uma delas em nada determina a solução que se deva dar à

outra.‖ ([1958c] 2008: 279)

Assim, a verdadeira questão a respeito dos empréstimos culturais não é sobre a

origem, mas sim, sobre a permanência destes elementos. Temos aqui uma importante

consideração sobre a perspectiva historiográfica de Lévi-Strauss. O tipo de questão que o

difusionismo apresenta é considerado, portanto, superficial. É como se Lévi-Strauss estivesse

se perguntando: o que as relações externas entre culturas podem nos fazer entender sobre a

recorrência, no seio destas mesmas culturas, de uma arte que apresenta um mesmo tipo de

morfologia interna?

Notemos que, ao diferenciar entre conexões externas e internas, Lévi-Strauss aponta

para a complementaridade entre a abordagem estrutural e histórica que defendera no artigo

introdutório do Antropologia Estrutural. Portanto, em relação ao difusionismo, e às

explicações em chave de desenvolvimento histórico, o estruturalismo coloca questões que se

situam em outra ordem de realidade, e que procuram compreender seu objeto so outros

aspectos. Trata-se, como vemos, de colocar-se em uma perspectiva exatamente a-histórica,

em primeiro lugar, ao fazer a análise estrutural das formas, para, em seguida, procurar por trás

(ou abaixo) da série de homologias entre casos díspares, os princípios que operam como

motivação interna para a elaboração isolada de cada um destes sistemas artísticos. As

motivações internas a esta série são motivações inconscientes que permitem que esta

heterogeneidade de testemunhos resulte de uma homogeneidade de princípios.

O desenho kadiwéu tem papel central nesta argumentação uma vez que ele revela a

individualidade da pintura em relação ao suporte. Mais do que isso, revela a relação pintura e

suporte como uma relação na qual a primeira define o segundo, e não o contrário:

―No pensamento indígena, como vimos, a ornamentação é o rosto, ou melhor, cria o

41

rosto. É ela que lhe confere seu ser social, sua dignidade humana, seu significado

espiritual. A dupla representação do rosto, considerada como procedimento gráfico,

expressa, portanto, um desdobramento mais profundo e mais essencial [...]. [O]

desdobramento da representação é função de uma teoria sociológica do

desdobramento da personalidade.‖ ([1958c] 2008: 281, grifos nossos)

A comparação revela mais uma dualidade, aquela entre pessoa e personagem social.

Sem querer cansar o leitor com uma re-apresentação demasiado exaustiva da argumentação de

Lévi-Strauss apresentarei seus próximos desenvolvimentos de modo mais sucinto. O ponto a

se notar é que por trás do desdobramento da arte existe uma teoria da pessoa, e isso foi

revelado menos pela comparação dos fatos que figuravam tradicionalmente no debate – a arte

da costa noroeste e a da China – do que pela inserção de novos fatos a estes já conhecidos.

Lévi-Strauss mostra-se como americanista, e faz valer sua experiência etnográfica, ao entrar

num debate que estava estabelecido sobre outras bases documentais26

. O fundamento, a

motivação deste tipo de arte, estaria naquilo que o caso guaicuru ensinou:

―Somos tentados a perceber essa base fundamental na relação muito especial que,

nas quatro artes aqui consideradas, une o elemento plástico e o elemento gráfico.

Esses dois elementos não são independentes, estão ligados por uma relação

ambivalente, que é ao mesmo tempo de oposição e funcional.‖ ([1958c] 2008: 283)

Assim, ―as exigências da ornamentação se impõem à estrutura e a alteram, o que gera

o desdobramento e o deslocamento‖, e os objetos só passam a existir com a integração dos

dois elementos – plástico e gráfico. Os objetos não são objetos que contém uma

ornamentação: não se trata de um objeto representando um animal, mas de um objeto-animal.

De uma só coisa ao mesmo tempo ([1958c] 2008: 283).

Esta hipótese é profunda o suficiente para que Lévi-Strauss reveja toda sua

argumentação a partir dela. Como vimos, o autor encarou estas representações desdobradas,

de modo progressivo e inclusivo, em sistemas artísticos que articulavam dualidades cada vez

mais complexas. De um ponto de vista estrutural, estas dualidades constituem pares

homólogos uns aos outros, que se transformam segundo uma estrutura que se tornou mais e

mais visível. Nas palavras do autor:

26

Lévi-Strauss não se furta a confrontar suas conclusões com o material que figurava inicialmente no debate.

Assim a descoberta desta ―teoria da personalidade desdobrada‖ permite que o autor reveja, sob uma nova luz, a

arte do noroeste e as argumentações de Boas a respeito desta. O antropólogo alemão entendia que ―o princípio da

split representation emanaria progressivamente dos objetos angulosos aos objetos arredondados, e destes às

superfícies planas.‖ ([1958c] 2008: 282) Assim, a ―ornamentação das superfícies planas e superfícies curvas

[seriam] como casos particulares da ornamentação das superfícies angulosas‖ ([1958c] 2008: 282). O ponto de

Lévi-Strauss é que a explicação de Boas coloca como necessária uma passagem que não o é de fato. Muitas

culturas decoraram superfícies tridimensionais sem desdobramento da representação ([1958c] 2008: 282).

42

―seguimos até sua ponta mais abstrata um dualismo que se nos foi impondo com

insistência cada vez maior. Vimos, no decorrer de nossa análise, o dualismo da arte

representativa e da arte não representativa se transformar em outros dualismos,

escultura e desenho, rosto e ornamentação, pessoa e personagem, existência

individual e função social, comunidade e hierarquia. Tudo isso desembocado na

constatação de uma dualidade que é ao mesmo tempo uma correlação, entre a

expressão plástica e a expressão gráfica, e que nos fornece o verdadeiro

„denominador comum‟ das diversas manifestações do princípio do desdobramento

da representação.‖ ([1958c] 2008: 283-4, grifo nosso)

É justamente a transformação de uma dualidade em outra que permitirá entender a ―lei

do grupo‖. E neste caso, a estrutura do problema é um denominador comum, substancial. Um

dualismo que é mais profundo que os outros27

.

Lévi-Strauss pode, então, reformular a questão inicial: ―em que condições o elemento

plástico e o elemento gráfico são necessariamente correlacionados?‖ ([1958c] 2008: 284). Os

exemplos maori e kadiwéu demonstraram que isso ―ocorria quando o elemento plástico é

constituído pelo rosto ou pelo corpo humano e o elemento gráfico, pela ornamentação facial

ou corporal [...] que se aplica sobre eles‖ ([1958c] 2008: 284). Lévi-Strauss completa sua

análise, fornecendo um conceito unificador para estas artes. Ou, mais do que isso, ele fornece

uma imagem estrutural, para tratar aquilo que, como vimos inicialmente, estava disperso no

tempo e no espaço:

―A ornamentação é concebida para o rosto, porém o próprio rosto está predestinado

à ornamentação. A dualidade é, definitivamente, a que há entre um ator e seu papel,

e é a noção de máscara que nos dá a chave da questão [...]. Todas as culturas aqui

consideradas são, efetivamente, culturas de máscaras.‖ ([1958c] 2008: 284)

Esta imagem permite que o autor complemente algumas colocações de Boas sobre o

tema da arte do noroeste, na medida em que ele propõe que o desdobramento no plano é um

caso particular daqueles em superfícies curvas, que por sua vez o é daqueles em superfície

tridimensionais: ―contudo, não é qualquer superfície tridimensional, mas somente sobre a

superfície tridimensional por excelência, em que a ornamentação e a forma não podem ser

dissociadas, nem física, nem socialmente, ou seja, o rosto humano‖ ([1958c] 2008: 285). É o

rosto, enquanto suporte, que pede, e mesmo necessita, uma ornamentação para se constituir.

Em culturas de máscaras, é exatamente disso que se trata. De certas condições do ser que só

existem desdobradas.

27

A noção de estrutura, aqui, parece derivar daquele dualismo freudiano entre latente e manifesto. A estrutura é

um dualismo latente que possibilita casos específicos de dualismos manifestos.

43

―Contudo, nossa análise teria sido insuficiente se apenas nos tivesse permitido

definir o desdobramento da representação como um traço próprio de culturas de

máscaras. [...] Mas fizemos mais do que isso. Encontramos no procedimento de

desdobramento, além da representação gráfica da máscara, a expressão funcional de

um tipo preciso de civilização.‖

[...]

―A independência entre o elemento plástico e o elemento gráfico corresponde a uma

relação mais distendida entre a ordem social e a ordem sobrenatural, assim como o

desdobramento da representação exprime a aderência estrita do ator a seu papel e do

status social aos mitos, ao culto e aos pedigrees. Essa aderência é tão rigorosa que,

para dissociar o indivíduo de seu personagem, é preciso fazê-lo em pedaços.‖

([1958c] 2008: 288-9, grifos suprimidos).

A relação necessária entre os elementos independentes, ―plástico‖ e ―gráfico‖,

permitiu chegar a este conceito de ―sociedades de máscaras‖: denominador comum de uma

série de fatos heterogêneos, ele permite que a arte destas sociedades seja entendida em suas

co-relações de ordem mais geral com outros aspectos de suas realidades sociais. A máscara é

como uma macro-estrutura, ou um conceito estrutural que destaca a relação entre a arte e a

hierarquia social. Deixaremos, momentaneamente, de lado estas extrapolações para destacar

alguns pontos importantes.

Comecemos com a pergunta: o que esta análise nos ensina sobre o método estrutural?

Voltemos à definição deste método fornecida pelo autor em sua aula inaugural do Collège de

France, de 1960:

―Só é estruturado o arranjo que preencha essas duas condições: ser um sistema,

regido por uma coesão interna; e esta coesão, inacessível à observação de um

sistema isolado, revelar-se no estudo das transformações, graças às quais

encontram-se propriedades similares em sistemas aparentemente diferentes.‖

([1973b] 1993: 26 )

A estrutura se revela, portanto, na transformação de um sistema em outro. Neste

sentido, o estruturalismo é, fundamentalmente, um comparativismo. Examinemos a noção de

transformação presente neste artigo. Se formularmos em um quadro o trecho que citamos da

página 283-4, teríamos o seguinte resultado:

44

Figura 7: Quadro: As transformações dos dualismos em que se baseiam as representações

desdobradas.

TRANSFORMAÇÕES DUALISMOS

1 ARTE REPRESENTATIVA : ARTE NÃO REPRESENTATIVA

2 ESCULTURA : DESENHO

3 ROSTO : ORNAMENTAÇÃO

4 PESSOA : PERSONAGEM

5 EXISTÊNCIA INDIVIDUAL : FUNÇÃO SOCIAL

6 COMUNIDADE : HIERARQUIA.

O primeiro par de oposições representa uma dualidade encontrada na comparação

entre os fatos da costa noroeste e chineses, de um lado, e sul-americanos, de outro. O segundo

apresenta uma dualidade entre as artes do noroeste e a dos kadiwéu. O terceiro apresenta uma

dualidade encontrada na comparação dos fatos sul-americanos com os da Oceania. A partir

daí as dualidades passam a ser representativas de todo o conjunto – mesmo o terceiro par já o

seria. Além disso, um nível pode ser entendido como englobado pelo outro: do 3º para 4º,

deste para o 5º, do 5º para o 6º. Note-se que para os três primeiros pares encontramos uma

dualidade entre termos equivalentes. Para os outros, a não equivalência entre os termos é

marcada. Assim teríamos uma passagem, como aquela que marca, no artigo ―As organizações

dualistas existem?‖, de dualismos ―diametrais‖ para dualismos ―concêntricos‖, ou de

dualismos ―estáticos‖ para dualismos ―dinâmicos‖.28

Sem a competência necessária para retirar disso extrapolações maiores no momento,

gostaria apenas de frisar que todas estas transformações são transformações lógicas. As

relações históricas entre as sociedades que se comparam em sistemas restam incomprovadas.

Não estamos diante de casos de transformações históricas. Esta estrutura, descoberta como

28

Conferir fig. 12 Lévi-Strauss ([1958g] 2008: cap. 8, p 167).

45

um ―denominador comum‖ é uma estrutura inconsciente e atemporal. A noção de

transformação é um meio para se chegar a um dualismo mais essencial que outros, e não há

como comprovar relações históricas entre as diversas sociedades aqui relacionadas através de

sua arte.

Já a noção de sociedades de máscaras coloca outras questões. Ela indica que a

existência da representação desdobrada deva ser entendida como pertencendo a ―conjuntos

orgânicos em que o estilo, as convenções estéticas, a organização social e a vida espiritual

estão estruturalmente ligadas.‖ ([1958c] 2008: 290) A análise deste caso revela que certas

correlações são necessárias para que o estilo da representação desdobrada exista. O que

levará, inclusive, Lévi-Strauss a ponderar que, se este estilo se difundiu em algum momento,

de uma cultura para outra, é necessário que todo este conjunto tenha se deslocado, e não

somente o estilo isolado ([1958d] 2008: 290-1). Ou seja, é necessário um certo ―estilo de

cultura‖ caracterizado por este estilo artístico. Uma consideração que, menos uma hipótese

difusionista, indica a necessidade de entender a representação desdobrada como pertencente a

um conjunto orgânico29

, ou ―estético‖.

Desta forma, Lévi-Strauss, que aparentemente deixara de lado a historicidade destas

representações em busca de uma estrutura atemporal que explicasse a recorrência de um estilo

no tempo e no espaço, recoloca estas representações em um contexto específico, as

―historifica‖ na medida em que elas pertencem a estes conjuntos orgânicos30

. Assim, nota-se

outra característica fundamental do estruturalismo. Se ele deixa de lado a história, em busca

de uma estrutura do espírito, não é porque esta estrutura seja algo completamente diferente

das realidades históricas de que parte. Ao contrário, esta estrutura está ligada a estas

realidades31

.

*****

29

Uma comparação entre a noção de culturas de máscaras e culturas de casa nos levaria a discutir outros

desdobramentos do comparativismo de Lévi-Strauss. Oscar Calavia Sáez diz que a noção de ―casa‖, resultado da

segunda grande incursão de Lévi-Strauss no parentesco, ―parece, à primeira vista, um ideograma, mas não se

comporta como tal. Em lugar de se encaminhar, através dos inúmeros exemplos, a uma definição cada vez mais

depurada, ela se prende a dados ecológicos, sociológicos, cosmológicos e históricos diferentes, transformando-se

num caleidoscópio virtual de casas possíveis, e todas essas variantes não são anomalias de algum modelo fixo,

mas constitutivas da noção que está sendo proposta. A casa é, mais do que um conceito, uma vaga noção. Ou,

para honrar o nosso título, a casa é um pictograma.‖ (Sáez 2008: 138). (ver nota 56, cap. 3) 30

Num outro plano, ainda, pode-se dizer que este estudo das representações desdobradas tem um pano de fundo

que progressivamente será deslocado na obra de Lévi-Strauss: a noção de organização social. Esta figura

estrutural, a cultura de máscaras, é ainda uma figura que possui alguma totalidade. Esta totalidade será diluída a

partir da análise dos mitos. 31

A estrutura não é alheia aos conteúdos que a atravessam, como veremos no capítulo seguinte (cf. cap. 2 59 e

ss).

46

Não pretendo, aqui, discutir a fundo as conclusões de Lévi-Strauss, mas sim seu

método. Estaria completamente fora das minhas competências fornecer uma contribui a este

debate a respeito das representações desdobradas (ver nota 25, p. 39). O ponto que desejo

iluminar, com minha análise refere-se ao método estruturalista: a quais tipos de conclusões o

estruturalismo pretende chegar quando se coloca nesta perspectiva ao mesmo tempo a-

histórica e complementar à história? Ou seja, quais as possibilidades de diálogo com uma

perspectiva historiográfica, quando os objetos sobre os quais se detém o método são objetos

cujas relações reais, históricas ou não, restam incomprovadas, e a noção de estrutura – e de

espírito humano – aparece como conceito fundamental para tratar da unidade morfológica da

série?

Podemos iluminar esta questão ao retomar o caso da arte da China feudal, ponto de

partida deixado progressivamente de lado pelo autor ao longo do artigo, para ser retomado ao

final. Notemos que, das sociedades em questão, a China é a única que permite uma análise de

documentos escritos. Ela serviria, então, como comprovação das descobertas de Lévi-Strauss

referente a este conceito de ―culturas de máscaras‖. Sobre este ponto, o autor escreve:

―Ainda que nada soubéssemos da sociedade chinesa arcaica, a mera consideração de

sua arte permitiria perceber a luta de prestígio, a rivalidade entre hierarquias e a

concorrência entre os privilégios sociais e econômicos, todos fundados no

testemunho das máscaras e na veneração das linhagens. Felizmente, estamos mais

bem informados. Ao analisar o fundo psicológico da arte do bronze, Perceval Yetts

escreve: ‗A intenção parece ter sido quase que invariavelmente a de auto-

glorificação, mesmo quando o que se exibe é o consolo dos ancestrais ou o

incremento do prestígio da família.‘ (1939: 75) E, em outro trabalho, observa: ‗Há a

conhecida história de certos ting serem altamente valorizados como emblemas de

soberania até o final do período feudal, no século III a. C.‘ (id. 1929, I: 43) [...] A

análise etnológica comparada vai, portanto, ao encontro das conclusões dos

sinólogos [...].‖ ([1958c] 2008: 289-90, grifos nossos)

Assim, a comparação destes objetos dispersos no tempo e no espaço leva a explicações

sociológicas, econômicas, políticas e a inferências de conformações sociais, estados históricos

de sociedades que, para as artes analisadas aqui, com exceção da China, não haveria outros

meios de se alcançar devido à ausência de fontes escritas. Além disso, este tipo de análise

morfológica comparada levanta problemas para os historiadores da arte. Ainda no caso da

China, por exemplo, Lévi-Strauss pode concluir que a ―máscara representativa precedeu sua

dissolução em elementos decorativos, [e que estes não são jamais o] [...] resultado de uma

manipulação do artista que descobre semelhanças no arranjo fortuito de temas abstratos [...]‖

([1958c] 2008: 290). Portanto, a ligação entre estes aspectos sociológicos artísticos é tal que,

47

pelo menos no caso chinês, é a dissolução da sociedade feudal que explicará a evolução

estilística que faz a passagem de uma arte representativa para a uma arte decorativa abstrata.

Este exemplo pode ser tomado como paradigma para as situações em que o método

estrutural lida com objetos descontínuos no tempo e no espaço, como os sistemas artísticos

em questão, e os sistemas de parentesco que Lévi-Strauss estudou nas Estruturas Elementares

do Parentesco ([1949] 1989). Pois existe tanta continuidade espacial e temporal entre o

sistema artístico maori e kadiwéu quanto entre os sistemas de parentesco Iroquês e

Trobriandes.

Assim, devemos reter desta análise que a explicação estrutural fornece meios de

desenvolver hipóteses mais sustentadas sobre as realidades sociais com que lida ao situar-se

em complementaridade com a história; ou seja, não ignorando a historicidade dos

documentos, mas relacionando-os segundo uma perspectiva exatamente a-histórica. O que

não exclui, como vemos, a possibilidade de integração de novos dados às conclusões que

apresenta. Pode-se perceber – se nos atermos à relação entre os conceitos que orientam o

estruturalismo (estrutura, sistema, transformação) – que o discurso de Lévi-Strauss enfatiza a

noção de estrutura em relação à de transformação, ao fazer a análise caminhar rumo a um

denominador comum, uma dualidade mais profunda. Além disso, o conceito de ―sociedades

de máscara‖ é uma macro-estrutura que envolve diversos sistemas. Por outro lado, é preciso

lembrar que a opção de Lévi-Strauss por uma análise comparativa destes fatos sociais

encontra eco nas proposições que o autor encadeia no artigo ―História e Etnologia‖:

―para os etnólogos, os estudos comparativos podem suprir, em certa medida, a

ausência de documentos históricos. O paradoxo, contudo, permanece: a crítica das

interpretações evolucionistas e difusionistas mostrou-nos que, quando os etnólogos

pensam estar fazendo história, fazem o contrário da história. E é quando crêem não

fazê-la que se comportam como o fariam bons historiadores que estivessem

limitados pela mesma falta de documentos‖ (Lévi-Strauss [1958b] 2008: 30).

48

Capitulo 2 – Da História à Estrutura

“Para ser viável, uma investigação

inteiramente voltada para as estruturas

começa por curvar-se diante do poder e

da inanidade do evento.”

Lévi-Strauss, 1967

O objetivo deste capítulo é demonstrar como uma mudança das características do

objeto de pesquisa implica em uma mudança correlata na relação entre os conceitos centrais

do método estrutural: estrutura, sistema e transformação. As dimensões espaciais e temporais

que definem o mito estão entre as causas desta alteração. Para começar a discussão, podemos

fazer uma breve comparação com a situação das ―representações desdobradas‖, que acabamos

de discutir. Como vimos, Lévi-Strauss buscou compreender de maneira unificada a

recorrência de objetos dispersos no tempo e no espaço, recorrendo a uma estrutura do espírito

a-histórica. Se compararmos esta situação à dos mitos o que teríamos? Em primeiro lugar, os

mitos, ao contrário desta forma de arte, são amplamente difundidos – não existe grupo

indígena que não conheça esta forma de expressão. A análise dos mitos é colocada, então,

diante de um objeto que se estende por um espaço contínuo – ainda mais na medida em que se

define a América como este espaço de análise. Por outro lado, os mitos são relatos

profundamente enraizados em uma dada situação histórica e cultural, alimentam-se de

49

imagens que se relacionam à infra-estrutura32

das sociedades em que são contados. Neste

sentido, sua historicidade é bem marcada pelos materiais simbólicos com que são elaborados.

O método estrutural deve adequar-se a estas características deste objeto sui generes que

pretende analisar – tanto à contigüidade espacial, quanto à especificidade das narrativas.

*****

Para nos guiar neste capítulo, seguiremos uma definição sucinta dos procedimentos de

análise estrutural dos mitos oferecida por Lévi-Strauss em um texto da Antropologia

Estrutural II ([1973f] 1993: 69-76), originalmente publicado em um compêndio de escritos

reunidos por ocasião do centenário da École pratique des hautes études intitulado ―Religiões

comparadas dos povos sem escrita‖. Neste texto, ao descrever os avanços obtidos ao longo

das gerações de estudiosos que ocuparam a cadeira – originalmente chamada Religião dos

povos não civilizados, depois Religião dos povos sem escritas, Lévi-Strauss descreve três

regras de método às quais se deve ater o analista dos mitos que pretende utilizar o método

estrutural:

―... a análise estrutural, ao invés de fechar-se no formalismo, abre perspectivas no

terreno da geografia e da história. [...]

A empreender comparações apressadas e se lançar em especulações sobre as

origens, é preferível proceder à análise metódica dos mitos, definindo cada um pelo

conjunto de suas variantes atestadas, e desviando toda e qualquer idéia

preconcebida. Somente deste modo, pode-se esperar alcançar um estágio onde o

homem e suas obras tomarão lugar no nível de objetos passíveis de um

conhecimento positivo. Para tanto, convém aplicar um método estrito, que se reduz a

três regras:

1)Um mito não deve ser jamais interpretado em um só nível. Não existe explicação

privilegiada, pois todo mito consiste em relacionar vários níveis de explicação.

2) Um mito não deve jamais ser interpretado isoladamente, mas em sua relação com

outros mitos, os quais, tomados conjuntamente, constituem um grupo de

transformação.

3) Um grupo de mitos não deve jamais ser interpretado isoladamente, mas com

referência: a) a outros grupos de mitos; b) à etnografia das sociedades donde

provêm. Pois se muitos mitos se transformam mutuamente, uma relação do mesmo

tipo une, sobre um eixo transversal ao deles, os diferentes planos entre os quais

evolui toda vida social, desde as formas de atividade técnico-econômica até os

sistemas de representação, passando pelos intercâmbios econômicos, as estruturas

políticas, as práticas rituais e as crenças religiosas.

Atingem-se, desta maneira, estruturas relativamente simples, cujas

transformações engendram mitos de diversos tipos. Por este meio indireto, a

antropologia colabora modestamente na elaboração desta lógica do concreto que

32

Uso o termo, aqui, seguindo as indicações de Lévi-Strauss em ―A Gesta de Asdiwal‖, texto, de 1958, que

comentaremos mais adiante.

50

parece ser uma das maiores preocupações do pensamento moderno, e que nos

aproxima, mais do que afasta, das formas de pensamento aparentemente estranhas à

nossa.‖ (Lévi-Strauss [1973f] 1993: cap. V p. 74).

Deixemos a primeira regra de interpretação temporariamente de lado e analisemos a de

número 2, pois assim ficamos podemos estabelecer maior continuidade entre aquilo que

discutiremos aqui e o que foi tratado no capítulo 1. Esta regra nos leva a definição de mito

fornecida por Lévi-Strauss no artigo de 1955, que inaugura a análise estrutural dos mitos, ―A

estrutura dos mitos‖, publicado na Antropologia Estrutural posteriormente, em 1958. Logo

após a análise do mito de Édipo, através da qual Lévi-Strauss dá uma amostra do

funcionamento de seu método, e antes de uma exposição condensada do significado de um

conjunto de mitos de emergência Pueblo, o autor nos oferece uma definição de mito, talvez

inédita, até então, no campo dos estudos de mitologia:

―O método [estrutural de leitura dos mitos] nos livra, assim, de uma dificuldade que,

até agora, constituiu um dos principais obstáculos ao progresso dos estudos

mitológicos, a saber, a busca de uma versão autêntica ou primitiva. Propomos, ao

contrário, definir o mito pelo conjunto de suas versões. [...] o mito continua sendo

mito enquanto for percebido como tal.‖ ([1958d] 2008: 233, grifo nosso)

Notemos, inicialmente, que esta definição é uma paráfrase de algo que ele dissera mais

acima neste mesmo texto. Comparando o mito à poesia, Lévi-Strauss afirmara que estas duas

formas de expressão situam-se em posições opostas na ―escala dos modos de expressão

lingüística‖. Ao contrário da poesia, que é ―extremamente difícil de traduzir‖, o valor do mito

―permanece, por pior que seja a tradução‖. ―O mito poderia ser definido como modo do

discurso em que o valor da fórmula traduttore, traditore tende praticamente a zero‖ ([1958d]

2008: 225 passim). No ―Finale‖, de L‟Homme Nu, Lévi-Strauss retomará este tema:

―A proprement parler, il n‘existe jamais de texte original: tout mythe est par nature

une traduction, il a son origine dans un autre mythe provenant d‟une population

voisine mais étrangère, ou dans um mythe antérieur de la même population, ou bien

contemporain mais appartenant à une autre subdivision sociale – clan, sous-clan,

lignée, famile, confrérie – qu‘un auditeur cherche à démarquer en le traduisant à sa

façon dans son language personnel ou tribal, tantôt pour se l‘approprier et tantôt

pour le démentir, donc toujours en le déformant. [O mito possui uma natureza

diacrítica, assim...] chacune de leurs transformations résulte d‘une opposition

dialectique à une autre transformation, et leur essence réside dans le fait irréductible

de la tradution par et pour l‘opposition. Envisagé d‘un point de vue empirique, tout

mythe est à la fois primitif par rapport à lui-même, dérivé par rapport à d‘autres

mythes; il se situe, non pas dans une langue et dans une culture ou sous-culture,

mais au point d‘articulation de celles-ci avec d‘autres langues et d‘autres cultures.

Le mythe n‘est donc jamais de sa langue, il est une perspective sur une langue

outre, et le mythologue qui l‘appréhende à travers une traduction ne se sent pas dans

51

une situation essentiellement différent du narrateur ou de l‘auditeur du cru.‖ (Lévi-

Strauss 1971: 576-77, grifo inicial nosso, demais grifos do autor).

Pode-se dizer, então, que a definição do mito como ―o conjunto de suas versões‖

procura captar justamente o movimento que é ―natural‖ do mito: o fato de ele ser,

invariavelmente, um ―conto contado‖ (Ginzburg [1998] 2001: 84). Um conto que, como

salienta o Lévi-Strauss, é fruto de um empréstimo, um conto feito por oposição. Assim, a

definição de mito lida, imediatamente, com a contigüidade em que se encontram estes objetos.

Pensemos, por exemplo, nas análises de mitos levadas a cabo por Lévi-Strauss antes

das Mitológicas, ainda no período em que o autor estava na École Pratique, e que estão,

digamos, no ―entorno‖ deste artigo sobre ―A estrutura dos mitos‖. Ora, tratam-se, justamente,

de análises pontuais, circunscritas geográfica e historicamente. Este é o caso da análise dos

mitos dos Pueblo (Hopi, Zuni, Acoma) que ganharão destaque em ―A Estrutura dos Mitos‖,

mas que foram analisados por Lévi-Strauss entre 1951e 1953 em seminários na École (cf.

Lévi-Strauss [1973f] 1993: 73; [1984] 1991: pp.243-8; [1988] 2005: 180); do artigo ―A gesta

de Asdiwal‖, de 1958, publicado inicialmente nos Anais da École Pratique e, em 1962, na

revista Temps Moderns. Neste artigo, Lévi-Strauss analisa um mito – em quatro versões (três

Tsimshian e uma Nisqa) – de uma região da costa noroeste da América do Norte33

. Este é

também o caso de um texto cujo título nos dispensa de considerações sobre o seu caráter

localizado: ―Quatro Mitos Winnebago‖, de 1960, publicado com adaptações no livro

Antropologia Estrutural II. E ainda há mais. Poderíamos incluir entre estes textos o artigo

―Estrutura e Dialética‖, 12º capítulo de Antropologia Estrutural, publicado originalmente em

1956, no qual Lévi-Strauss analisa as relações de simetria entre mitos dos índios Pawnee, das

Planícies da América do Norte, e o rito ―Hako‖ de uma população vizinha.

Além destes trabalhos terem em comum a característica de serem análises

circunscritas a um povo ou uma região etnográfica, eles também foram em sua maior parte,

como dissemos acima, analisados nos seminários da Ècole Pratique – nos quais Lévi-Strauss

destrinchou estes mitos com a ajuda de alunos como Lucien Sebag34

e Jean-Claude Gardan.

Comentando este período das primeiras análises mitológicas, Lévi-Strauss afirma que ―esses

cursos, ou melhor, esses seminários‖, permitiram-lhe ―tatear‖ durante anos:

―Via como proceder, mas hesitava quanto ao terreno. A mitologia dos Pueblo

inicialmente atraiu-me porque é bastante circunscrita, e em razão da riqueza, da

33

Este artigo ganhou versão definitiva com um pós-escrito, no livro Antropologia Estrutural II, de 1973. 34

Sebag escreveu um livro em que analisa os mitos de emergência Pueblo, L‟Iinvention du mond chez les indiens

pueblos (1971), publicado após sua morte prematura.

52

densidade, da relativa homogeneidade de um corpus que alguns etnólogos, todos

americanos, empenharam-se em recolher no espaço de algumas décadas. [...] No

seminário colocávamos um mito em discussão e o analisávamos juntos. Os

resultados eram convincentes...‖ (LS & Eribon, [1988] 2005: 180, grifos nossos)

O estudo comparativo dos mitos inicia-se, portanto, em um terreno em que se pode

controlar a experiência, mantendo o universo etnográfico homogêneo – e até mesmo o

universo etnológico – de modo a perceber como os mitos mudam, quando poucas coisas

mudam em torno dos mitos. Neste sentido, foi necessário, então, delimitar uma área

geográfica ―em que as relações [fossem] consideradas possíveis entre as sociedades, caso

contrário‖ ceder-se-ia ―às facilidades que desacreditaram o comparativismo tal como era

praticado no século XIX‖, como vimos no capítulo anterior. Isso implica em ―presumir uma

história comum entre os povos cujos mitos se pretende comparar‖ (Lévi-Strauss & Eribon,

[1988] 2005: 182, grifos nosso).

Os mitos são relatos localizados, são perspectivas sobre uma língua outra, sobre uma

outra cultura, feita por vizinhos que entretém relações entre si que extravasam o campo da

mitologia. Não por acaso, o procedimento característico das Mitológicas será o realizar

levantamentos ―em rosácea‖. Como diz o autor na Abertura, de O Cru e o Cozido:

―Para preparar o nosso mapa, fomos obrigados a fazer levantamentos ‗em rosácea‘:

montando inicialmente em torno de um mito o seu campo semântico, graças à

etnografia e por meio de outros mitos, e repetindo a mesma operação para cada um

deles, de modo que a zona central, escolhida aleatoriamente, possa ser recortada por

vários outros percursos, mas a freqüência das superposições diminua à medida que

nos distanciamos do centro. [...] A análise mítica se afigura, assim, semelhante a

uma tarefa de Penélope. Cada progresso traz uma nova esperança, atrelada à solução

de uma nova dificuldade. O dossiê nunca está concluído.‖ ([1964] 2004: 23)

Estas considerações finais, sobre o caráter ―inacabável‖ da análise, são outra

decorrência da definição do mito como ―o conjunto de suas versões‖ que se liga à segunda

regra de análise estrutural que vem sendo discutida. Esta definição capta justamente esta

característica indiscutível, o fato de o mito ser uma história que sempre vem de mais e mais

longe – no tempo e no espaço, notemos. Assim, não se pode pretender conhecer nem uma

versão original, e muito menos dar conta de um corpus mítico completamente – o ―conjunto

dos mitos de uma população é da ordem do discurso‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 26).

Se o mito não tem fim, e não tem começo, será sempre impossível conhecê-lo

completamente. No último capítulo do livro Antropologia Estrutural, Lévi-Strauss defende

que através de seu método pode-se comparar aquilo que não se conhece plenamente. Para

afirmá-lo, recorre ao grande naturalista D‘Arcy Wentworth Thompson:

53

―Acontece frequentemente, em morfologia, de a tarefa principal consistir em

comparar formas vizinhas, mais do que definir precisamente cada uma delas; e as

deformações de uma figura complicada podem ser um fenômeno fácil de

compreender, ainda que a figura em si deva permanecer não analisada e não

definida.‖ (Thompson 1952 apud Lévi-Strauss [1958f] 2008:350, grifo nosso, grifos

do autor suprimidos).

O mito é, precisamente, esta figura desconhecida, que permanece não analisada e não

definida em certos sentidos. E diante desta característica, podemos dizer que aquilo que Lévi-

Strauss está afirmando é que o mito é menos uma substância do que aquilo que existe na

passagem de uma versão a outra, na deformação: o mito é menos um objeto que uma

―coordenada‖ (Lévi-Strauss [1958f] 2008: 350). Lembremos que foi na obra de D‘Arcy

Thompson, que Lévi-Strauss leu, ainda durante a IIª Guerra Mundial, nos EUA, que o autor se

inspirou no que diz respeito ao conceito de transformação (Lévi-Strauss & Eribon [1988]

2005: 162).

Assim, definir o mito como ―o conjunto de suas versões‖ é afirmar que não faz sentido

interrogar-se sobre o mito enquanto ser. O mito responderia ―rinbaudianamente‖, ―je est un

autre‖. Deste modo, por uma característica própria a este objeto – a necessidade de pensá-lo

enquanto fruto de empréstimos inter e infra-culturais35

–, pode-se dizer que o que é próprio do

mito é um certo tipo de variação. Procuraremos determiná-la, na medida do possível, a partir

de agora.

*****

Sabemos que Lévi-Strauss não começou as Mitológicas pela América do Norte e sim

pela América do Sul. Ao comentar este aparente paradoxo – já que seus primeiros estudos se

concentram nas áreas mais setentrionais do grande continente –, o autor toca no tema da

unidade da história de povos vizinhos:

―Parti das observações que tinha feito havia muito tempo, envolvendo populações

que se tornaram familiares para mim durante a estada no Brasil, de que os Bororo e

seus vizinhos mais próximos, membros da família lingüística jê, têm organizações

sociais afins, cujas diferenças podem ser interpretadas como os estágios de uma

transformação: essa hipótese foi assunto de vários de meus cursos e artigos. Daí

uma nova hipótese: as semelhanças e as diferenças entre os mitos dessas

populações poderiam ser explicados de maneira geral?

35

Ver capítulo 3, p. 106, algumas considerações de Lévi-Strauss em L‟Homme Nu sobre os empréstimos entre as

populações ameríndias.

54

Comecei, então, pelo estudo da mitologia do Brasil Central, para perceber que,

conforme o caso, os mitos de povos vizinhos superpõem-se parcialmente,

respondem-se ou se contradizem. A análise de cada mito envolvia outros, e esse

contágio semântico, atrevo-me a dizer, estendia-se de vizinho a vizinho e em várias

direções ao mesmo tempo. Como se chegássemos a um ponto de vista aberto sobre

vastas perspectivas, que incitam a atingir outros pontos de vista a partir dos quais o

olhar estende-se em novas direções. (Lévi-Strauss & Eribon [1988] 2005: 181,

grifos nossos).

Vemos mais uma vez o autor afirmar que a análise estrutural dos mitos necessita do

estabelecimento de uma região circunscrita para obter sucesso. Pelo menos inicialmente, para

que o método seja testado em sua eficácia36

. Comentando a ―famosa teoria das afinidades

lingüísticas‖, de Jakobson no artigo ―Estrutura e Dialética‖, Lévi-Strauss afirma que ―é

indispensável comparar o mito e o rito não apenas na mesma sociedade, como também com

crenças e práticas de sociedades vizinhas‖ ([1958e] 2008: 257), para, logo adiante, completar

que ―os fenômenos de influências recíprocas, entre áreas lingüísticas geograficamente

vizinhas, não podem ficar de fora da análise estrutural‖ ([1958e] 2008: 257).

O ponto a se enfatizar é que Lévi-Strauss entende o mito dentro de uma série de

fenômenos que se difundem entre populações vizinhas. Se é preciso ouvir um mito para

contá-lo, a análise dos mitos tem de lidar imediatamente com a questão dos empréstimos

culturais – e para que isso seja feito, é necessário proceder através de estudos circunscritos

que se tornam progressivamente mais e mais inclusivos37

. Mas os mitos não se transformam

somente quando compelidos pela presença de outros mitos: eles se relacionam e, podemos

dizer, retiram sua força de outros campos estruturados da vida social38

. Este é um ponto que

36

Lévi-Strauss enfatiza este ponto diversas vezes ao longo das Mitológicas. Mesmo no último de seus livros

encontramos uma afirmação do tipo. Em História de Lince ([1991] 1993), em um dado momento autor disserta

sobre os procedimentos do método estrutural para determinar o significado de um episódio num mito, assim ele

escreve:―Para responder a esse tipo de pergunta, a análise estrutural sempre segue o mesmo procedimento.

Averigua se existe, na mesma área geográfica, um mito que contenha um motivo no qual se possa perceber a

imagem invertida daquele que colocava um problema quando encontrado isolado. Pelo fato de se oporem, os

dois motivos permitem delimitar um campo semântico. Tomado em separado, cada um deles parece não dizer

nada: o sentido se depreende das relações que se percebem entre ambos‖ (Lévi-Strauss [1991] 1993: 128-9, grifo

nosso). 37

Deixo de lado a questão da ―realidade/empiria‖ dos grupos de transformação de mitos (ver Conclusão, pp.

110-12). Se existem famílias de mitos que são empiricamente verificáveis, existem objetos de natureza teórica,

que são as estruturas e os grupos de transformação dos mitos. Contudo, o que estamos querendo dizer é que estes

objetos que são os grupos de transformação são formados a partir de situações concretas que se concebe entre os

povos cujos mitos se relacionam. 38

Em ―Religião dos povos sem escrita‖, encontramos uma consideração a este respeito: ―Estudos paralelos,

conduzidos em níveis diferentes, deixam entrever esboços de uma teoria geral da sociedade: vasto sistema de

comunicação entre os indivíduos e os grupos, no interior do qual, discernem-se vários planos: o do parentesco,

que se perpetua pelo intercâmbio das mulheres entre grupos de aliados; o das atividades econômicas, onde os

bens e os serviços são trocados entre produtores e consumidores; o da linguagem, que permite a troca de

mensagens entre sujeitos falantes. Por mais que os fatos religiosos tenham seu lugar em tal sistema, vê-se que

um aspecto de nossa tentativa consiste em despojá-lo de sua especificidade.‖ (Lévi-Strauss [1973] 1993: 75)

55

Lévi-Strauss deixou claro em O Pensamento Selvagem, e que se encontra bem expresso no

terceiro capítulo, ―Os sistemas de transformações‖. Comentando o ―funcionamento‖ do

pensamento selvagem – que opera através do estabelecimento de ―cortes diferenciais‖ para a

produção de sentido, Lévi-Strauss afirma:

―O princípio lógico é o de sempre poder opor termos que um empobrecimento

prévio da totalidade empírica permite conceber como distintos. [...] [O]s sistemas de

denominação e classificação comumente chamados totêmicos retiram seu valor

operatório de seu caráter formal, são códigos aptos a veicular mensagens

transponíveis nos termos de outros códigos e a exprimir em seu próprio sistema as

mensagens recebidas pelo canal de códigos diferentes. O erro dos etnólogos

clássicos foi querer reificar essa forma, ligando-a a um conteúdo determinado,

enquanto ela se apresenta ao observador como um método para assimilar toda

espécie de conteúdo. Longe de ser uma instituição autônoma, definível por

caracteres intrínsecos, o totemismo ou o que como tal se apresenta corresponde a

certas modalidades arbitrariamente isoladas de um sistema formal, cuja função é

garantir a convertibilidade ideal dos diferentes níveis da realidade social. Assim

como Durkheim parece ter entrevisto, às vezes é numa sócio-lógica que reside o

fundamento da sociologia‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989: 92-3).

Esta forma de descrição do pensamento selvagem nos levaria à primeira das regras a

respeito da análise dos mitos. Mas, antes de comentá-la, convém reforçar o ponto que estamos

discutindo até aqui: o fato de os sistemas de transformações possuírem uma forte relação com

o estabelecimento de uma história comum entre os povos cujas representações são

relacionadas por meio deste conceito. Este mesmo capítulo do pensamento selvagem é palco

de uma análise das representações sociais melanésias e depois australianas em forma de

sistemas de transformação. A respeito desta última região, Lévi-Strauss afirma:

―...não é proibido sonhar que um dia seja possível transferir para cartões perfurados

toda a documentação disponível a respeito das sociedades australianas, e

demonstrar, com o auxílio de um ordenador, que o conjunto de suas estruturas

técnico-econômicas, sociais, e religiosas se assemelha a um vasto grupo de

transformações.

A idéia é tanto mais sedutora quanto possamos imaginar por que a Austrália,

melhor que qualquer outro continente, ofereceria um terreno privilegiado para tal

experiência. Apesar dos contatos e das trocas com o mundo exterior que também lá

ocorreram, as sociedades australianas provavelmente evoluíram em um mundo

fechado, a um grau mais alto do que deve ter ocorrido em outros lugares‖ ([1962]

1989: 105).

A contigüidade espacial é, portanto, uma ocasião privilegiada para a descrição de

transformações que envolvem culturas que apresentam uma história comum. Somada esta

contigüidade à constância de um tipo de fato social – o mito – têm-se algo como as

Mitológicas. Contudo, poder-se-ia objetar que existem sistemas de transformações que não

56

envolvem exatamente uma contigüidade espacial, como os mitos pan-americanos dos gêmeos

reunidos no livro A História de Lince ([1991] 1993), e os mitos sobre a cerâmica, os mundos

inferiores e superiores reunidos no livro A Oleira Ciumenta ([1985] 1986). Ou ainda que o

sistema formado pelos mitos do desaninhador de pássaros encontra um par quase perfeito a

milhares de quilômetros de distância dos territórios do Brasil Central, no extremo noroeste da

América do Norte (Lévi-Strauss 1971: sétima parte, cap. II). Mas, como veremos no próximo

capítulo, a existência destes sistemas descontínuos está fortemente relacionada ou a hipóteses

históricas de larga escala, ou a uma volta do aspecto estrutural do discurso de Lévi-Strauss, ou

ainda, a considerações sobre aquele hóspede imprevisto, o ―espírito humano‖.

Sobre estas hipóteses históricas de larga escala, Lévi-Strauss argumenta com Eribon,

na entrevista supracitada, que o seu trabalho tomava a unidade histórica e geográfica do

continente como um ponto de partida:

―Para mim [...] a unidade histórica e geográfica existia logo de saída: a América

povoada por ondas sucessivas de imigrantes que, em geral, tinham todos a mesma

origem e cuja entrada no Novo Mundo situa-se, segundo os autores, entre o

septuagésimo e o décimo quinto milênio antes de Cristo. Eu procurava [...] primeiro,

perceber diferenças entre mitologias cuja unidade me era fornecida pela história; a

seguir, compreender os mecanismos do pensamento mítico, a partir de um caso

particular.‖ (Lévi-Strauss & Eribon: [1988] 2005: 186)

Ao menos quando analisa retrospectivamente sua caminhada, Lévi-Strauss percebe a

especificidade da situação em que se colocou ao estudar os mitos ameríndios: se os mitos se

transformam entre si, é diante de um pano de fundo bastante circunscrito que eles o fazem. É

tendo esta unidade histórico-geográfica como referência que o analista poderá verificar como

as diferenças e semelhanças que os mitos apresentam entre si são co-relacionaveis.

*****

Mas voltemos ao pensamento selvagem e à convertibilidade de códigos que

caracteriza as operações lógicas desta ―ciência do concreto‖. Este modo de colocar as coisas

relaciona-se à ―primeira regra‖ de análise estrutural dos mitos: ―um mito não deve ser jamais

interpretado em um só nível. Não existe explicação privilegiada, pois todo mito consiste em

relacionar vários níveis de explicação‖ (ver acima p. 49-50; Lévi-Strauss [1973f] 1993: cap.

V, p. 74). Esta afirmação equivale a dizer que o mito é tão traduzível por dentro quanto por

fora. Dito de outra forma, se o mito é tradução de uma versão em outra, externamente, ele é

tradução de um código em outro, internamente. Assim, se as versões se transformam umas nas

57

outras, esta transformação pode se dar – e frequentemente este é o caso – através de códigos

particulares, de natureza mutuamente conversível, que os mitos empregam para veicular suas

mensagens. São estas relações externas e internas que configuram um grupo de

transformação. Nas palavras de Lévi-Strauss, ainda na ―Abertura‖:

―A partir de um mito escolhido [...] configuramos o grupo de transformações de

cada sequência, seja no interior do próprio mito, seja elucidando as relações de

isomorfismo entre sequências extraídas de vários mitos provenientes da mesma

população. Assim, já nos elevamos da consideração de mitos particulares à de certos

esquemas condutores que se ordenam sobre um mesmo eixo. Em cada ponto desse

eixo assinalado por um esquema, traçamos na vertical, digamos assim, outros eixos

resultantes da mesma operação, mas agora não mais efetuada por meio dos mitos de

uma única população, aparentemente diferentes, e sim de mitos que, embora

pertencentes a populações vizinhas, apresentam certas analogias com os primeiros.

Desse modo, os esquemas condutores se simplificam, se enriquecem ou se

transformam. Cada um deles se torna a origem de novos eixos, perpendiculares aos

precedentes em outros planos, aos quais logo irão agarrar-se, por um duplo

movimento prospectivo e retrospectivo, sequências extraídas de mitos provenientes

de populações mais remotas ou de mitos inicialmente descartados [...]. À medida

que a nebulosa se expande, seu núcleo se condensa e se organiza. Filamentos

esparsos se soldam, lacunas se preenchem [...]. Nasce um corpo multidimensional,

cuja organização é revelada nas partes centrais, enquanto em sua periferia reinam a

incerteza e a confusão.‖ ([1964] 2004: 20-1)

A antropóloga Tânia Stolze Lima, em uma palestra a respeito da obra mitológica de

Lévi-Strauss, que nos chegou sob a forma de um texto com o nome de ―O Pássaro de Fogo‖39

,

faz um comentário interessante sobre esta característica dos mitos descoberta por Lévi-

Strauss:

―Eu sugeriria um paralelo entre Lévi-Strauss e Darwin. Este descobriu que as

diferenças entre os membros de uma espécie são da mesma natureza que as

diferenças entre as espécies, gêneros ou famílias; Lévi-Strauss descobriu que em um

mito os episódios se articulam da mesma maneira como se articulam as versões: são

transformações lógicas uns dos outros. Se isso for verdade, por que parar por aí?

Porque não compreender do mesmo modo as diferenças entre mitos de sociedades

distintas?‖ (Lima 1999: 3)

Eu completaria que, de acordo com o que viemos estabelecendo ao longo deste

capítulo, se os episódios do mito se articulam como transformações lógicas uns dos outros, e

se os mitos são entendidos como frutos de empréstimos entre grupos diversos, podemos

articular estas transformações lógicas com relações históricas entre os grupos que contam

estes mitos. Traduzível por dentro e por fora, por assim dizer, o mito é pura variação: um

39

Lima 1999. Conferência proferida em um seminário que homenageava Lévi-Strauss, realizado na USP, neste

mesmo ano.

58

objeto que pode ser definível pela noção estrutural de transformação.

Precisamos, contudo, entender com mais clareza como articular o aspecto lógico e

histórico das transformações entre os mitos. Para começar, devemos nos perguntar: se o mito

é ―o conjunto de suas versões‖, qual a relação entre as versões? Como se passa de uma versão

para outra? No artigo sobre ―A estrutura dos mitos‖, Lévi-Strauss introduz algumas

―operações lógicas do mito‖ – deduzidas a partir das já citadas análises da mitologia Pueblo.

Uma destas operações nos interessa sobremaneira: a enigmática ―fórmula canônica do mito‖.

Lévi-Strauss a introduz neste artigo como a lei das transformações internas a um conjunto de

versões ([1958d] 2008: 246). Acabamos de descrever como este conjunto de versões reúne

mitos de sociedades que têm uma realidade histórica compartilhada. Uma análise desta

fórmula permitirá, então, articular as duas dimensões da transformação mítica.

Como se sabe, este é um tópico um tanto quanto obscuro do trabalho de Lévi-Strauss.

Felizmente em um artigo recente o antropólogo Mauro Willian Barbosa de Almeida fez uma

série de considerações que o esclarecem. O artigo chama-se, justamente, ―A fórmula canônica

do mito‖ (Almeida 2008). Nele, Mauro Almeida faz algo interessante: formula a análise do

mito de Édipo, utilizada por Lévi-Strauss para demonstrar seu método – como um camelô

demonstraria rapidamente o funcionamento de uma maquineta que deseja vender aos

transeuntes – por meio do esquematismo da fórmula canônica40

. No que se segue, procurarei

não me deter demasiadamente sobre o aspecto algébrico da fórmula. Meu objetivo é

evidenciar a imagem que ela descreve, partindo das considerações que Almeida faz sobre o

mito de Édipo41

. A tese deste autor é que a fórmula canônica:

―nunca é uma simples armação para descrever a lógica do mito (como seria um

esquema analógico, ou de ‗mediação de contradições‘), mas é principalmente um

40

Além disso, ele ainda analisa duas outras aplicações da fórmula de Lévi-Strauss: aquela que figura em ―A

Estrutura dos Mitos‖ (Almeida 2008: 158-61), sobre as narrativas Pueblo, e a primeira das cinco aplicações que

marcam a ―volta‖ da fórmula canônica, no livro A Oleira Ciumenta (Almeida 2008: 161-69). 41

Na introdução de Minhas Palavras, Lévi-Strauss faz algumas considerações interessantes sobre a fórmula

canônica: ―[A] despeito de seu aspecto vagamente algébrico, minha fórmula não constituía um algoritmo capaz

de permitir a execução de cálculos. Eu a propus como imagem ou um desenho: representação gráfica que, em

meu pensamento, podia facilitar a apreensão intuitiva de uma cadeia de relações. Obtido esse efeito, não era

necessário reproduzir a cada passo a mesma figura, do mesmo modo como, em um livro, não se reproduz a

ilustração de uma cena ou de um objeto todas as vezes que o autor fala deles. Tanto mais que a relação

desequilibrada, que eu pretendia por em evidencia como uma propriedade inerente às transformações míticas, era

abundantemente ilustrada por minhas análises sobre centenas de mitos particulares.‖ (Lévi-Strauss [1984] 1986:

13) Apesar desta ponderação de Lévi-Strauss, o aspecto ―vagamente algébrico‖ da fórmula, perdão da expressão,

―deu o que falar‖. É na formulação de matemáticos como Jean Petitot e Lucien Scubla que a fórmula teve grande

parte de sua aplicação futura. Devemos notar que esta noção de uma ―imagem [...] [que] podia facilitar a

apreensão intuitiva de uma cadeia de relações‖ não é algo tão distante de seu aspecto algébrico e formal. E é

justamente por meio deste aspecto algébrico que Almeida procurará captar o sentido desta ―relação

desequilibrada‖, sugerida por esta fórmula em sua ―torção supranumerária‖, ou dupla torção.

59

guia para estabelecer conexões entre grupos de mitos distintos, ou mesmo entre

planos semânticos diferentes, transpondo com isso, necessariamente, uma fronteira

dada. [...] A fórmula não se reduz a um silogismo, como [...] se o mito, ou cada

conjunto de mitos pudesse ser considerado como uma dedução lógica. Em vez disso,

cada fórmula construída a partir de um conjunto delimitado de mitos exige do leitor

que busque uma ponte entre eles e outros conjuntos, ou ainda entre o código em

consideração e outros códigos. Esse recurso para fazer um balanço de um conjunto

mítico aponta para transformações que podem ter sido impostas pela história, ou por

outro tipo de movimento irredutível à razão analítica.‖ (Almeida 2008: 150, grifo

nosso).

Para Almeida, a fórmula, em resumo, não é descritiva, e sim analítica. Este ponto o

autor sustenta contra as interpretações de autores como os folcloristas Jean Petitot e Lucien

Scubla e o matemático Pierre Maranda. É necessário nos determos um pouco neste ponto,

pois ele diz respeito à ―vulgata‖ (ver Introdução, p. 12) sobre a relação entre o estruturalismo

e a história. Embora estes autores tenham trazido nova respeitabilidade à fórmula apresentada

por Lévi-Strauss apresentou em ―A estrutura dos mitos‖, entre o uso deles e o de Lévi-Strauss

existem diferenças significativas. Estes autores atribuem à Lévi-Strauss, ―uma visão irênica e

estática da vida social e das formas simbólicas‖, na qual ―todas as oposições seriam, em

última instância, de tipo lógico ou fonológico‖ (Scubla, 1998: 288 apud Almeida 2008: 148).

Com esta idéia em mente, eles propõem um modo de superar esta deficiência, ou limitação,

do método de Lévi-Strauss através da adoção de uma perspectiva ―diacrônica‖. Como resume

Mauro Almeida:

―A estratégia sugerida por Scubla para corrigir essa suposta ‗visão irênica e estática‘

coincide com a que foi preconizada por Terence Turner em interessante artigo de

1990, em que afirma que um uso rigoroso da noção de transformação exigiria que

Lévi-Strauss centrasse o foco da análise em sintagmas de mitos individualizados, e,

não, em fragmentos de paradigmas. Em suma, esses autores acreditam reintroduzir a

diacronia na análise mitológica ao valorizarem a parole e não a langue.‖ (Almeida

2008: 148)42

O que estes autores propõem é uma utilização da fórmula canônica como uma

estenografia de narrativas míticas. Ou seja, como uma ferramenta para descrever o que

acontece no mito, ou, ainda, como uma gramática gerativa de narrativas. Em ambos os casos,

recorre-se à fórmula para descrever ―o percurso de heróis que transformam uma situação

inicial em uma situação final inconciliável com a primeira‖ (Almeida 2008: 149). Segundo

Mauro Almeida, ―[e]ssa via de análise remonta essencialmente à Morfologia do Conto, obra

do folclorista russo Vladimir Propp, publicada em 1928 mas somente divulgada no ocidente

42

Posição que é também, como sabemos, a de Marshall Sahlins (cf. Introdução e Sahlins 1981, 1988) . Sahlins,

como estes autores visa reinserir história no estruturalismo.

60

por volta de 1960‖ (Almeida 2008: 149).

Como sabemos, as diferenças entre o método de Propp e o de Lévi-Strauss foram

abordadas, da perspectiva deste último, no artigo ―A estrutura e a forma‖, de 1960, publicado

mais tarde na Antropologia Estrutural II. Nele, Lévi-Strauss faz um apanhado das diferenças

entre o método estrutural que ele utiliza e o método formalista de Propp. O ponto central desta

discussão é retirar do estruturalismo o estigma de ―formalismo‖ que volta e meia recai sobre

ele – e que conflui na tal ―visão irênica e estática da vida social‖ que Scubla atribui a este

método como um todo. Lévi-Strauss defende que o ―estruturalismo se separa [do formalismo]

em virtude das atitudes muito diferentes que as duas escolas adotam em relação ao concreto‖

(Lévi-Strauss [1973c] 1993: 121). Este ponto é expresso com veemência quando Lévi-Strauss

descreve o dilema de Propp entre a análise formalista e a histórica:

―Propp se mostra dividido entre sua visão de formalista e a obsessão das explicações

históricas. [...] Na verdade, mal se tinha fixado nos contos populares, a antinomia se

tornava insuperável: é claro que há história nos contos, mas uma história

praticamente inacessível, pois conhecemos pouca coisa sobre as civilizações ante-

históricas onde eles nasceram. Mas é verdadeiramente a história que falta? A

dimensão histórica aparece antes como uma modalidade negativa, resultando da

defasagem entre o conto presente e um contexto etnográfico ausente. A oposição se

resolve quando se considera uma tradição oral ainda ‗em situação‘, semelhante às

que são objeto da etnografia. Aí, o problema da história não se apresenta ou se

apresenta apenas excepcionalmente, uma vez que as referências externas,

indispensáveis à interpretação da tradição oral, são tão atuais quanto esta.

Propp é, pois, vítima de uma ilusão subjetiva. Ele não está dividido [...] entre as

exigências da sincronia e as da diacronia: não é o passado que lhe falta, é o

contexto. A dicotomia formalista, que opõe forma e conteúdo, e que os define por

caracteres antitéticos, não lhe foi imposta pela natureza das coisas, mas pela escolha

individual que fez de um domínio onde somente a forma sobrevive, enquanto que o

conteúdo é abolido. Constrangido, ele se resigna a dissociá-los. E nos momentos

mais decisivos de sua análise, raciocina como se o que lhe escapa de fato lhe

escapasse também de direito.‖ ([1973c] 1993: 137).

Diante destas observações, Lévi-Strauss afirma que o estruturalismo, ao contrário do

formalismo de Propp, não opõe forma e conteúdo. Para o método estrutural ―forma e

conteúdo são de mesma natureza, merecedores da mesma análise. O conteúdo tira sua

realidade de sua estrutura, e aquilo que chamamos de forma é a estruturação de estruturas

locais nas quais consiste o conteúdo.‖ (Lévi-Strauss [1973c] 1993: 137)43

.

Para Mauro Almeida este ponto é de grande importância – e para nós também –, pois

ele pretende estabelecer que a fórmula canônica é a representação gráfica de transformações

paradigmáticas dos mitos (entendido como ―o conjunto de suas versões‖). Ou seja, que a

43

Ver mais adiante a descrição da análise lévi-straussiana dos mitos do porco-espinho, cap. 3, pp 84-88.

61

fórmula canônica analisa transformações que se dão em um nível estrutural, que não coincide

com o nível em que os objetos se dão à observação.

Portanto, não é através da análise da diacronia do relato mítico que se pretende

estabelecer a relação entre a mitologia e a história. Na verdade, é através das relações entre a

tradição oral e o contexto em que ela ocorre que se pode falar de história nos mitos. O

contexto é que define a historicidade destas representações. Tendo isso em mente Almeida

procurará estabelecer como a fórmula canônica, que descreve mudanças de contextos,

descreve também mudanças históricas. Isso acontece na medida em que, de um membro a

outro da fórmula, passamos de versões equilibradas do mito para uma versão limite. Assim, a

fórmula canônica demonstra como um mito, de tanto ser contado, começa a ser outro,

constrangido, simultaneamente, por imperativos lógicos e históricos. Para entender melhor

estas afirmações, que podem parecer muito abstratas, vamos nos deter um pouco sobre re-

analise do mito de Édipo que Mauro Almeida empreende em ―A fórmula canônica do mito‖.

Figura 8: Quadro de leitura do mito de Édipo em sintagmas e paradigmas.

Cadmo procura sua

irmã Europa, raptada

por Zeus

Cadmo mata o dragão

Os Espartoi se

exterminam uns aos

outros

Lábdacp (pai de

Laio) = manco (?)

Édipo mata seu pai,

Laio

Laio (pai de Édipo) =

―desajeitado‖ (?)

Édipo Imola a

Esfinge

Édipo = ―pé inchado‖

(?)

Édipo se casa com

Jocasta, sua mãe

Etéocles mata seu

irmão, Poliníce

Antigona enterra

Polínice, seu irmão,

desrespeitando a

proibição

Fonte: ―A Estrutura do Mito‖ (Lévi-Strauss [1958d] 2008: 230)

62

Inicialmente, o autor retoma a noção de ―mitema‖ como um feixe de relações –

exposta no artigo ―A estrutura dos mitos‖, para lembrar, em seguida, o modo como Lévi-

Strauss dispôs a narrativa do mito de Édipo em um quadro que se lê tanto sintagmática quanto

paradigmaticamente, ou seja, a história se lê, da esquerda para a direita, linha por linha, mas

as colunas do quadro (Lévi-Strauss [1958d] 2008: 230; Almeida 2008: 151) agrupam relações

do mesmo tipo que devem ser lidas em co-relação44

(figura 8). A segunda coluna agrupa

sentenças que tem um sentido oposto, ―relações de parentesco subestimadas ou

desvalorizadas‖, e a terceira, Almeida lê de um modo um pouco diferente daquele de Lévi-

Strauss (ver nota 46), afirmando que nesta coluna encontram-se agrupadas sentenças que

expressam ―desvalorização da relação entre humanos e monstros ctônicos‖ (Almeida 2008:

152). Passando estes feixes de relações para uma notação matemática teríamos, até o

momento, a seguinte fórmula:

Fx(a) : Fy (a) :: Fy(b) : ??

Na qual a função Fx representa relações superestimadas, e Fy representa relações

subestimadas, e a e b representam, respectivamente humanos consanguíneos e monstros

ctônicos. Qual seria a natureza do quarto termo? Como ele deveria ser notado

matematicamente? Almeida responde que ―[s]e a lógica do mito fosse a da analogia ou de um

silogismo, esperaríamos uma quarta proposição com a forma Fx(b), completando o [...]

esquema‖ (Almeida 2008: 152) e ele seria representado da seguinte maneira:

Fx(a) : Fy (a) :: Fy(b) : Fx(b)45

E leríamos o quarto termo desta forma: ―superestimação da proximidade entre

humanos e monstros, que esperaríamos, por simetria com o primeiro par, que tomasse a forma

de proximidade íntima entre humanos e monstros, um grupo humano e entes ctônicos.‖ E

Almeida ainda completa: ―Ora, não seria preciso esforço para encontrar episódios

precisamente deste tipo nas narrativas do ciclo de Édipo. Eles grassam em quase todas as

gerações de descendentes de Cadmo e a linhagem dos Spartoi ‗autoctones‘.‖ (Almeida 2008:

44

Por exemplo: os ―mitemas‖ ―Cadmo procura sua irmã Europa, raptada por Zeus‖, ―Édipo casa-se com sua mãe

Jocasta‖ e ―Antígona enterra Polinice, seu irmão, violando a interdição.‖ São todos agrupados na mesma coluna

por indicarem ―relações de parentesco [consangüíneo] superestimadas‖ – a coluna que é, de fato, o mitema, por

ser um feixe de relações. 45

Ou ainda de modo mais simplificado: A/B = C/D

63

152-3). Lidos assim, ―esses ‗feixes‘ [...] [tratariam], de um lado, do antagonismo – mas

também da alternância política – entre autóctones e estrangeiros e, de outro, da aliança [...]

entre autóctones e estrangeiros.‖ E esta formalização permitiria um tipo de interpretação do

mito de Édipo:

―Vemos assim que a oposição entre não-autoctonia e autoctonia poderia ser vista sob

uma chave política e não cósmica. Qualquer que seja a chave, o mito de Édipo, por

um lado, encaixa-se no esquema lógico da analogia, formalizado com o grupo de

Klein; por outro permitiria uma leitura no registro sociológico do incesto, da guerra

e da aliança.‖ (Almeida 2008: 153)

Mauro Almeida lembra, então, que são diversas as análises do mito que o lêem nesse

registro sociológico, entendendo a formalização da narrativa como um grupo de Klein, em

permutação algébrica de proporção. Mas isso não é tudo: este raciocínio não seria, nem

mesmo, estranho a Lévi-Strauss: o ―teórico da aliança‖. O que faz com que o fato de ele não

ter formulado assim a lógica do mito seja ainda mais relevante (Almeida 2008: 154). Em

lugar de definir a quarta coluna por episódios/sentenças/mitemas que poderiam ser

formulados como um grupo de Klein, Lévi-Strauss introduziu um outro mitema, não expresso

em relações, mas pela recorrência, deduzida filologicamente, de um traço de deformidade de

diversos personagens da linhagem dos Labdacidas que indicaria sua origem ctônica. A

fórmula canônica do grupo do mito de Édipo poderia, então, ser assim escrita:

Fx(a) : Fy (a) :: Fy(b) : Fb-1

(x)

E lida como se segue:

―a superestimação de relações (de parentesco) Fx(a) está para a subestimação de

relações de parentesco assim como a negação de relações com monstros autóctones

Fy(b) está para o caráter-autóctone-invertido (caráter-anti-autóctone) da função

exagero Fb-1(x).‖ (Almeida 2008: 154).

Embora Almeida minimize esta formalização canônica que aplica à análise do mito de

Édipo feita por Lévi-Strauss – por ela ―deixar muitos detalhes em aberto‖ (Almeida 2008:

155) – ele retira duas importantes consequências de sua análise. Em primeiro lugar, ele

destaca o ―contraste [...] entre uma análise interna, que formaliza os eventos no interior da

narrativa, e uma análise externa e paradigmática, que leva para o exterior da narrativa‖, ou

seja, entre o modo como os matemáticos e folcloristas empregam a fórmula e o modo como

64

Lévi-Strauss o faz. E em segundo lugar, ―o contraste entre uma dedução por analogia, a partir

de termos da narrativa, e entre uma ‗dedução transcendental‘, que aponta para a possibilidade

de outros corpos míticos‖ (Almeida 2008: 155-6), pois ―a ‗fórmula canônica do mito‘

constitui uma receita para introduzir uma conexão entre mitos de regiões geográficas ou

entre domínios históricos distintos‖ (Almeida 2008: 154, grifo nosso). Neste último sentido,

poderíamos acrescentar ainda que para a fórmula canônica, que é uma equação com duas

incógnitas – com mais de uma solução, portanto (Almeida 2008: 170) –, é de extrema

importância o que é colocado lado a lado, termo a termo. Isso é perceptível quando se leva em

conta que a interpretação do mito de Édipo na chave do ctonismo foi sugerida a Lévi-Strauss

pelo contato com o material ameríndio, precisamente os mitos do grupo Zuñi, índios Pueblo

da América do Norte. Ou seja, o salto de domínio, ou a dupla torção é um movimento em

direção a um ―atrator‖ – neste caso a mitologia dos índios das planícies – e devemos

relacionar este atrator ao argumento que estamos desdobrando ao longo deste capítulo: a

fórmula permite passar dos mitos de um povo a outro, e assim transpor uma barreira de

compreensão do esquema mítico. A fórmula é, como deve estar suficientemente claro, um

guia, ou uma sonda, para percorrer uma imensa massa mítica, deixando que os mitos falem

entre si46

.

Mas isso não é tudo. Embora a leitura do mito de Édipo na chave do ctonismo tenha

sido sugerida por Lévi-Strauss a partir do material ameríndio, ela apresentou para os

helenistas algo que Mauro Almeida chama de ―uma resposta sem pergunta‖, um enigma ao

inverso, que levou diversos especialistas na cultura grega clássica a procurar o que este traço

comum às três gerações dos Labdácidas queria dizer. Jean-Pierre Vernant, um dos maiores

especialistas neste período da história grega, mesmo considerando que a análise de Lévi-

46

Mas e a leitura de Lévi-Strauss das relações entre as colunas no mito de Édipo? Vamos recordá-la.

Diferentemente de Almeida, o autor destaca que cada par de colunas apresenta uma contradição, e que esta

contradição interna aos pares, se anula na medida em que as duas colunas são colocadas lado a lado. Na

formulação quase ―imparafraseável‖ de Lévi-Strauss: ―duas relações contraditórias entre si são idênticas na

medida em que cada uma delas é, tanto quanto a outra, contraditória consigo mesma.‖ (Lévi-Strauss [1958d]

2008: 232) O que nos dá uma formulação aproximada do modo como esta autor entende o funcionamento do

pensamento mítico (Cf. Lévi-Strauss & Eribon [1988] 2005: 195-6). Assim, a demonstração de camelô de Lévi-

Strauss – prolongada por Almeida para transeuntes mais pacientes – subsume a torção ao tratar a terceira e a

quarta coluna como análogas. O modo como Lévi-Strauss lê a fórmula até parece um grupo de Klein, do tipo

A/B = C/D, superestima está para subestimação do parentesco assim como negação está para persistência da

autoctonia. Disso poderíamos concluir que Lévi-Strauss não enxerga aqui, como Mauro Almeida, uma

formulação ―canônica‖ do pensamento mítico, já que ele procura traduzir as relações de 3 e 4 como homólogas

às relações entre 1 e 2? Acredito que não é o caso. O que é simplificado nesta ―demonstração de camelô‖ – e que

a formulação de Almeida ajuda a perceber –, é justamente o que concerne à dupla torção: ao invés de apresentar

os três primeiros termos como membros de um grupo algébrico, Lévi-Strauss já formula o terceiro, ―negação da

autoctonia-humana‖, aplicando uma torção de sentido, o que permitirá que, em seguida, esta coluna venha a ser

contraditória à quarta, segundo mais uma torção. Ou seja, a fórmula canônica está ali, mesmo que não tenha sido

explicitada, como quer Almeida.

65

Strauss era, no mínimo, contestável, acreditava que esta descoberta da recorrência da

deambulação inovou profundamente o campo dos estudos dos mitos antigos. Em alguns

trabalhos, ele seguiu esta pista e, inspirado no método estrutural, chamou atenção para um

grupo de mitos que transformava mitema por mitema, a narrativa de Édipo: os mitos ―de

Labda, a rainha coxa de Corinto‖ (Almeida 2008: 157; ver Vernant 1988). Ou seja, para o

helenismo que é um campo de estudos tão ou mais lacunar quanto o americanismo (ver

Introdução), a fórmula canônica serviu de inspiração para unir grupos de narrativas entre si,

permitindo novas interpretações. O seu movimento essencial, se Almeida está correto, ―é

exigir um salto histórico e semântico‖ (Almeida 2008: 156). A fórmula analisa a passagem de

um contexto a outro: indica como de tanto ser contado, um mito passa a ser outro, se

transformando. Ela é uma imagem condensada da variação mítica.

Assim, ao indicar esta dupla permutação, de termo e função, Lévi-Strauss criou uma

fórmula que passa de uma certa estabilidade (os três primeiros termos) para um movimento

irreversível (o quarto termo), que representa um salto para um outro domínio. Numa outra

linguagem, podemos dizer que os três primeiros termos definem o mito segundo as regras de

uma convenção lógica, é como se o mito ―girasse em torno de si mesmo‖. Em seguida, a

dupla torção demonstra como dos interstícios da própria convenção pode nascer uma

inovação: a última transformação de uma série aponta para uma mudança de domínio, um

salto que é, ao mesmo tempo, lógico e histórico. Neste sentido, a fórmula apresenta uma

dialética sem síntese.

Nas palavras de Lévi-Strauss: ―se se consegue ordenar uma série completa de

variantes, na forma de um grupo de permutações, pode-se esperar descobrir a lei do grupo‖

(Lévi-Strauss [1958d] 2008: 246). Portanto, a fórmula é anunciada como sendo a lei de

transformação de uma versão em outra, do mesmo mito. Esta transformação envolve a

passagem de uma população, grupo, tribo, sub-clã, a outra. E se o mito é definido pelo

conjunto de suas versões, e a fórmula aponta a existência de uma transformação limite, que

faz com que o mito comece a deixar de ser ele mesmo, embora mantenha uma identidade

estrutural com a versão original. Assim, podemos dizer que a definição do mito como

―conjunto de suas versões‖ envolve uma questão epistemológica mais radical, com

implicações comparativas inesperadas: através desta definição, Lévi-Strauss explode o

conceito de sociedade, e seus correlatos como grupos, clãs, sub-clãs, pelo conceito de mito47

.

47

Viveiros de Castro enfatiza este ponto: As Mitológicas representam um outro momento do pensamento de

Lévi-Strauss, que supera as oposições entre individuo e sociedade, natureza e cultura que orientavam as

Estruturas Elementares do Parentesco. ―Nas Mitológicas, tudo muda. A noção de sociedade se apaga, em favor

66

Na terra da mitologia, estas unidades serão, apenas, um ponto de vista sobre as outras – como,

aliás, Lévi-Strauss demonstrou em suas análises sobre as organizações dualistas (Lévi-Strauss

[1958g] 2008: cap. VIII, pp. 147-178, em especial p. 167). A significação está na relação

entre os elementos numa estrutura que vai além das versões. O entendimento do mito como ―o

conjunto de suas versões‖ é a definição de um objeto não-essencial cuja análise tentará fixar

relações de oposições que permitam fazer com que os mitos digam algo entre si.

É esta a lógica do mito que afeta profundamente a análise estrutural. Ao mesmo tempo

em que é resultado de um empréstimo, o mito é marcado por uma relação particular com o

contexto social e técnico-econômico da sociedade em que é pronunciado. Pois se os mitos

dizem algo entre si, é com o mundo no meio que eles o fazem. Esta análise da fórmula

canônica nos ensinou justamente que a transformação mítica envolve uma mudança de

contexto. Ao final de ―A Gesta de Asdiwal‖, quando Lévi-Strauss analisa a diferença entre as

três versões do mito colhidas no rio Skeena e a única versão colhida no rio Nass, na região da

Columbia Britânica, ele formula com precisão este caráter marcante da transformação mítica:

―Alcançamos assim uma propriedade fundamental do pensamento mítico, da qual

poderíamos, aliás, ir buscar exemplos em outras áreas. Quando um esquema mítico

passa de um povo para outro e que diferenças como de língua, de organização social

ou de modo de vida existem, tornando-se dificilmente comunicável, o mito começa a

empobrecer-se e a tornar-se pouco claro. [...].

As coisas se passam como em ótica. Uma imagem é percebida exatamente

através de uma abertura adequada. Mas se esta se estreita, a imagem torna-se

confusa e de difícil percepção. Quando a abertura se reduz a um ponto, entretanto,

isto é, quando a comunicação tende a desaparecer, a imagem se inverte e retoma sua

nitidez. A experiência serve nas escolas para demonstrar a propagação da luz em

linha reta, ou seja, que os raios luminosos não se transmitem de qualquer modo, mas

conforme os limites de um campo estruturado.

A seu modo, este trabalho constitui uma experiência, pois que se limita a um

caso e os elementos isolados para efeito de análise nele aparecem em várias séries de

variações concomitantes. Se esta experiência puder contribuir à demonstração de

que o campo do pensamento mítico é também fortemente estruturado, ela terá

alcançado seu objetivo.‖ ([1973a] 1993: 195-6).

Para entender melhor este tipo de estruturação do pensamento mítico devemos analisar

com mais cuidado a relação das narrativas míticas com a infra-estrutura das sociedades em

que são contados. Isso nos permitirá entender, também, o modo como os mitos podem ser

lidos como documentos históricos. Entraremos assim, no âmbito da terceira regra de método

fornecida por Lévi-Strauss e que na definição da análise estrutural dos mitos que nos serve de

de um foco nas transformações narrativas inter-societárias; a oposição Natureza/Cultura deixa de ser uma

condição antropológica universal para se transformar definitivamente em um tema mítico, interno ao pensamento

indígena; e os objetos algébrico-combinatórios chamados ‗estruturas‘ desaparecem praticamente de todo, em

favor de uma noção topológica de transformação.‖ (Viveiros de Castro 2008: 110, grifo nosso)

67

guia neste capítulo (ver pág. 49-50).

*****

A relação entre um relato mítico e aquilo que Lévi-Strauss chama de a infra-estrutura

técnico-econômica e social dos grupos que os narram é um assunto que remonta aos objetivos

primordiais das Mitológicas – expressos alguns anos antes em O Pensamento Selvagem, e em

alguns textos que o antecedem, nos quais podemos encontrar alusões a esta forma de

pensamento em que as ―qualidades sensíveis‖ e a ―imaginação estética‖ ([1962] 1989: 177)

estão a serviço do conhecimento do mundo. No primeiro parágrafo das Mitológicas, na

―Abertura‖ de O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss deixa claro este objetivo:

―O objetivo deste livro é mostrar de que modo categorias empíricas como as de cru e

cozido, de fresco e podre, de molhado e queimado etc., definíveis com precisão pela

mera observação etnográfica, e sempre a partir do ponto de vista de uma cultura

particular, podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e

encadeá-las em proposições.

A hipótese inicial requer, pois, que nos situemos de imediato no nível mais concreto,

isto é, no seio de uma população, ou de um grupo de populações suficientemente

próximas pelo habitat, pela história e pela cultura.‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 19,

grifos nossos)48

As Mitológicas são, em um certo sentido, a culminância do projeto d‘O Pensamento

Selvagem. As páginas iniciais do primeiro capítulo desse último livro, ―A ciência do

concreto‖, têm o objetivo de demonstrar como a mente primitiva é capaz de um pensamento

sistemático e elaborado sobre as qualidades sensíveis. São memoráveis os trechos em que

Lévi-Strauss fornece exemplos, de diversas regiões do mundo, que procuram demonstrar a

tese de que os primitivos não pensam ―inspirados unicamente pelos reclamos de seu

estômago‖, como imaginava Malinowski ([1962] 1989: 11-17), mas que, ao contrário,

possuem um domínio imenso do meio natural que os circunda, motivados menos por

exigências práticas e fisiológicas do que por imperativos intelectuais. Assim, segundo Lévi-

Strauss, ―as espécies animais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis

ou interessantes porque são primeiro conhecidas‖ ([1962] 1989: 24).

48

Não devemos nos esquecer, mesmo que estejamos chamando atenção para a questão das particularidades com

que lida a análise dos mitos, a continuidade desta frase: ―Contudo, essa é uma precaução metodológica,

certamente imperativa, mas que de modo algum dissimula ou restringe o nosso projeto. Utilizando alguns poucos

mitos tomados de sociedades indígenas que irão servir-nos de laboratório, faremos uma experiência que, se bem-

sucedida, terá um alcance geral, já que esperamos que demonstre a existência de uma lógica das qualidades

sensíveis, que elucide seus procedimentos e que manifeste suas leis.‖ ([1964] 2004: 19). É sempre entre o

particular e o geral que giram as análises lévi-straussianas.

68

É neste mesmo capítulo que Lévi-Strauss dirá que este modo de pensar – que ele

compara à ciência moderna – ganha expressão nos mitos:

―Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma ‗função fabuladora‘

que volta as costas à realidade, os mitos e ritos oferecem como valor principal a ser

preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que

foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo

determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração

especulativa do mundo sensível em termos de sensível.‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989:

31)

Esta exploração e organização especulativa ―do mundo sensível em termos de

sensível‖ é um tipo de apreensão que o homem primitivo tem do mundo através de signos que

se ―situam a meio-caminho entre imagens e conceitos‖, entre ―significante e significado‖

(Lévi-Strauss [1962] 1989: 33). Estas imagens têm uma capacidade referencial limitada pela

cultura a que pertencem, pela história particular de cada uma, que se liga, ainda, a um idioma

particular – portanto, a uma maneira única de recortar o real em unidades significantes (Lévi-

Strauss [1962] 1989: 34). Estes signos ―exigem [...] que uma certa densidade de humanidade

seja incorporada ao real‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989: 35). Assim, os relatos míticos trabalham

com estas ―imagens usadas‖ que são, pode-se dizer, como as peças de um despertador

quebrado que o bricoleur de Lévi-Strauss reserva para um emprego futuro49

. Feita por meio

deste material ―usado – o ―lixo da história‖ particular de cada grupo – a reflexão mítica

apresenta particularidades:

―assim como ao bricolage no plano prático, [é] a elaboração de conjuntos

estruturados não diretamente com outros conjuntos estruturados, mas utilizando

resíduos e fragmentos de fatos [...], testemunhos fósseis da história de um indivíduo

ou de uma sociedade. [...] [O] pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas

organizando os fatos ou os resíduos de fatos...‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989: 37)

Essas considerações nos levam a concluir que, por empregarem materiais, digamos, de

segunda mão, que dizem respeito às relações históricas de um indivíduo ou grupo social com

o meio natural e social que o cerca50

, os mitos são relatos localizados51

. Não faz sentido

49

Estas imagens, contudo, não fazem sentido sozinhas, mas possibilitam que exista sentido na medida em que

formam sistemas com outras imagens. Ou seja, os signos têm a qualidade de serem ―permutáveis, isto é,

suscetíveis de manter relações sucessivas com outros seres...‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989: 36). 50

Viveiros de Castro ressalta, no capítulo sexto de A Inconstância da Alma Selvagem como as Mitológicas têm

uma relação enviesada com os estudos de ecologia social que dominavam a antropologia americanista até as

décadas de 1950-60: ―a antropologia européia começou a desafiar a hegemonia desse paradigma já nos anos 50,

com Lévi-Strauss (1952a, b, 1955a, 1956, 1967a); mas foi a partir da publicação das três primeiras Mitológicas

(id. 1964, 1966, 1967b), que o estruturalismo consolidou sua presença na etnologia regional, propondo um estilo

69

contar um mito em que o personagem principal seja uma Orca em uma tribo do cerrado

brasileiro, assim como não faz sentido que figure em um mito do Noroeste do Canadá, uma

arara ou um bicho preguiça. Muitos mitos podem empregar um mesmo simbolismo, como por

exemplo, aquele de uma viagem de canoa: mas o fato de os tripulantes que se equilibram na

canoa serem Sol e Lua, ou Jaguar e Tamanduá, implica em uma mudança de significado.

Mesmo que esta viagem de canoa possa encadear a proposição abstrata de ―boa distância‖ (cf.

Lévi-Strauss [1968] 2006), no primeiro caso, esta proposição se referiria a ritmos e

temporalidades, e no segundo, a modos de relação com o exterior (Calavia 2008: 140). O

importante é que estas imagens são determinantes de um ponto de vista específico.

Em Lima (1999) encontramos um relato que pode ajudar a esclarecer este ponto. Ao

articular alguns pontos da teoria lévi-straussiana de leitura dos mitos com sua experiência

etnográfica entre os Juruna, um povo indígena do Alto-Xingu, a autora fornece um

testemunho etnográfico do que estamos querendo dizer:

―Uma vez tentei lhes contar o mito bororo que abre o O cru e o cozido, e as pessoas

simplesmente me impediam de prosseguir, até que alguém exclamou que eu estava

mentindo, pois beija-flor não mergulha. Eu dizia que o beija-flor, para ajudar o

jovem incestuoso, mergulhara para buscar um chocalho no ninho das almas. Pensei

comigo: quem são vocês para me lembrar que beija-flor não mergulha! Não pude

entender o que acontecera, minhas narrações sempre tinham sido bem recebidas, e,

depois daquele dia, as pessoas não me interromperam nunca mais. O problema,

então, só podia derivar do mito. Imaginei que, como nenhum mito juruna que

conheço explora o incesto entre mãe e filho, provavelmente as pessoas acharam a

história bororo feia por isso. Meses depois pude descobrir, estupefata, que os Juruna

tinham razão, pois embora as almas bororo vivam de fato no fundo do rio, era em

uma árvore que o mito situava seu ‗ninho‘. A supressão da distância entre a

realidade etnográfica e o mito, que a deficiência de minha memória me levava a

operar, feria o senso de verossimilhança dos Juruna, que me mandaram calar a

boca.Os mitos, como mostrou Lévi-Strauss, não obedecem a constrangimentos

lógicos bastante definidos que estão na base de uma lógica do sensível? Esse

episódio mostrou-me que a razão da minha surpresa era a noção, absolutamente

falsa, de que qualquer coisa é possível nos mitos. Isso indica também que o campo

de possibilidade definido por nosso senso de verossimilhança não tem a extensão

nem a mesma compreensão que o campo de possibilidade dos Juruna, que percebem

exatamente que os mitos de outras sociedades são falas dotadas de coerência, de

interesse e de verdade.‖ (Lima 1999: 6-7, grifo nosso)

Com sua sensibilidade etnográfica peculiar, Lima descreve algo que é um dos

analítico e, sobretudo uma agenda temática de enorme influência. Enfatizando o valor cognitivo e simbólico

daquelas dimensões materiais estudadas pelos ecologistas culturais de um ponto de vista adaptativo – relação

com os animais, origem das plantas cultivadas, dieta, tecnologia –, Lévi-Strauss deslocou para o interior das

cosmologias ameríndias a macro-oposição conceitual entre natureza e cultura que subjazia às teorias

deterministas dos herdeiros de [Julian] Steward [editor do Handbook of South American Indians].‖ (Viveiros de

Castro 2002: 320) 51

Ver a nota 5 do texto ―A Ciência do Concreto‖: ―O pensamento mítico edifica conjuntos estruturados através

de um conjunto estruturado que é a linguagem; mas não é no nível da estrutura que ele se apodera dela, pois

constrói seus palácios ideológicos com os restos de um discurso social antigo.‖ (Lévi-Strauss [1962] 1989: 37)

70

fundamentos do entendimento estrutural dos mitos. Eles são relatos localizados, como as

narrativas históricas. Os mitos são perspectivas sobre uma realidade compartilhada, dotados

de uma intencionalidade particular e de uma leitura profundamente ligada ao contexto em que

se inserem. Como se vê, não oponho aqui, o mito à história, nem em relação ao pensamento

ocidental, e muito menos em relação ao pensamento indígena. Interessa-me pensar como

Lévi-Strauss entende a particularidade de cada representação mítica, aplicando a estas

representações uma regra fundamental de qualquer investigação histórica que mereça

confiança: Lévi-Strauss procura perceber e articular a historicidade destes relatos. Podemos

entender porque ―começar do concreto‖ é começar no seio de ―uma população ou grupo de

populações‖, em uma realidade etnográfica bem definida, como Lévi-Strauss fala no primeiro

parágrafo das Mitológicas, que citamos acima (pág. 67; Lévi-Strauss [1964] 2004: 19). É esta

especificidade que Lévi-Strauss colocará em um espaço de análise sincrônico que co-

relaciona os mitos.

*****

O caráter localizado do mito liga-se ao fato de que estas imagens – específicas a uma

dada configuração sócio-ambiental – estarem a serviço de uma mensagem que o mito traz.

Ainda mais neste sentido, o mito é um tipo de história, já que é um ponto de vista sobre as

contradições que afligem os espíritos de homens de um determinado espaço-tempo. Esta

afirmação ficará mais clara se retomarmos, sucintamente, os desenvolvimentos fundamentais

de um artigo de Lévi-Strauss já citado, sobre o mito chamado ―A Gesta de Asdiwal‖.

O primeiro passo de Lévi-Strauss nesse texto é analisar as versões Tsimshian deste

mito, que localizam a história narrada sobre o rio Skeena, deixando de lado temporariamente

uma variante que conta a ―mesma‖ história, mas que a localiza sobre o rio Nass. Lévi-Strauss

recorta a versão de referência segundo quatro eixos distintos, ―geográfico, econômico,

sociológico, cosmológico‖. A idéia é perceber como ―cada um destes níveis, assim como o

simbolismo que lhe é próprio, aparece como transformação de uma estrutura lógica

subjacente, mas comum a todos eles‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993:152)52

. Ao proceder no

52

O que Lévi-Strauss chama de ―estrutura subjacente‖ neste artigo, me parece que será chamado ―armação‖

(―armature‖) nas Mitológicas propriamente ditas. Digo isso porque a armação é aquilo que coordena a

mensagem que o mito expressa por meio de vários códigos. Parece-me que isso poderia ser corroborado por um

texto mais antigo de Viveiros de Castro, em ―As categorias de sintagma e paradigma nas análises mitológicas de

Lévi-Strauss‖, este autor faz a seguinte afirmação: ―Como já foi dito, a paradigmatização do enunciado atribui

valores semânticos novos aos segmentos da narrativa; e esses valores se distribuem em dimensões, ou, nos

termos de Lévi-Strauss, em eixos semânticos determinados. Tais eixos semânticos se agrupam em códigos, e, em

71

isolamento destes níveis, Lévi-Strauss faz uma espécie de ajuste entre a história narrada e os

dados etnográficos a respeito destes povos (Lévi-Strauss [1973a] 1993:159-64):

―Analisamos o mito distinguindo quatro níveis: geográfico, técnico-econômico,

sociológico e cosmológico. Os dois primeiros traduzem fielmente a realidade,

enquanto o quarto lhe foge inteiramente e o terceiro entrelaça instituições reais e

imaginárias. Apesar dessas diferenças, o pensamento indígena não separa os quatro

aspectos. Tudo acontece como se eles fornecessem outros tantos códigos diferentes,

utilizados de acordo com as necessidades do momento e segundo sua capacidade

individual, para transmitirem a mesma mensagem [...].‖ (Lévi-Strauss [1973a]

1993:164-5).

Após esta diferenciação dos códigos, Lévi-Strauss analisa a estrutura da mensagem, ou

seja, faz uma leitura paradigmática do enunciado do mito, a fim de decifrar-lhe o sentido

(Lévi-Strauss [1973a] 1993:165-73). Aborda uma primeira versão e logo em seguida uma

outra, que contém episódios suplementares aos da versão anterior, episódios esses que

reduplicam a história contada na versão de referência. Esta reduplicação é tomada por Lévi-

Strauss como uma forma de ênfase utilizada pelos narradores de mitos a fim de reforçar a

mensagem que se deseja passar com o mito. Confrontando as duas versões, Lévi-Strauss

chega a uma estrutura comum:

―Todas as antinomias concebidas pelo pensamento indígena sobre os mais diversos

fatos (geográficos, econômicos, sociológicos e até mesmo cosmológicos) são, afinal,

semelhantes à antinomia, menos evidente, mas extremamente real, que o casamento

com uma prima matrilateral procura resolver, sem conseguí-lo, como confessam os

nossos mitos, cuja função é precisamente esta.‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993:178-9)

O autor passa, então, a reler todas as sequências do mito a partir desta estrutura (Lévi-

Strauss [1973a] 1993:179-85). Isto permite que ele estabeleça um sentido real e um

imaginário das sequências de ações contidas no mito (Lévi-Strauss [1973a] 1993:183). As

sequências que correspondem ao casamento matrilocal, que não é encontrado entre os grupos

da região, são as sequências ―falsas‖, que possuem ―verdades negativas‖; já as que permitem

ao herói a restituição da forma de residência mais difundida na região, o casamento virilocal,

são consideradas reais. Esta direção é a direção oeste-leste, na narrativa, e corresponde à

direção da migração dos peixes (Salmão e peixe-Azeite) que sobem os rios (respectivamente o

Skeena e o Nass) para desovar, no fim do inverno, servindo de alimento para estes índios que

cada um desses códigos, os valores semânticos estão ligados por um arranjo comum: a armadura do mito‖

(Viveiros de Castro 1973: 127-8). Nas traduções brasileiras, realizadas por Beatriz Perrone-Moisés, utiliza-se o

termo ―armação‖ e não ―armadura‖, como no texto de Viveiros de Castro. Em um pequeno texto que versa sobre

o desafio de traduzir as Mitológicas, inserido antes da ―Abertura‖ de O Cru e o Cozido, a autora explica porque

preferiu o termo ―armação‖ à ―armadura‖ (Perrone-Moisés 2004: 12).

72

estão no auge de uma privação alimentar que os atinge todos os anos devido ao rigor desta

estação – o próprio herói do mito, Asdiwal, faz um percurso nesta direção, dentro do

estômago de uma foca, ou seja, como alimento (Lévi-Strauss [1973a] 1993:183). Mas o mais

fundamental da análise vem a seguir:

―Se esta é a direção que os Tsimshian devem tomar, para que alcancem uma imagem

não deformada de sua vida social concreta, não será exato que eles concebam, a si

mesmos, sub specie piscis: que se colocam no lugar dos peixes, ou melhor, que

colocam os peixes em seu lugar?‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993:183)

A determinação dos sentidos de leitura do mito correspondente ao sentido real das

instituições e hábitos dos Tsimshian é um passo fundamental nesta argumentação. Como

vimos, ela depende profundamente do conhecimento da etnografia do povo em questão. Além

disso, a mensagem final do mito é também interpretada diante da realidade etnográfica, da

infra-estrutura da vida social dos Tsimshian. Ora, estes índios sofriam com a fome a cada

inverno, na medida em que a estação tornava-se mais e mais rigorosa. As caças tornavam-se

raras, assim como os frutos silvestres coletados por estes grupos que não praticavam a

agricultura. A única esperança de alimentação encontrava-se nos peixes que sobem os rios ao

final da estação. Os índios migravam das regiões mais a montante para as regiões mais a

jusante, buscando antecipar o encontro com os peixes que lhes serviriam de alimento. O mito

de Asdiwal conta uma história que versa justamente sobre estas condições fundamentais da

vida destes índios. Como disse o autor, ao fim da nota 41 deste artigo: ―A análise dos mitos de

uma sociedade, ainda que formal, atesta o primado das infra-estruturas.‖ (Lévi-Strauss

[1973a] 1993: 180) – numa frase que pode ser lida em confronto com o trecho que citamos a

respeito da visão de Lévi-Strauss do formalismo de Propp (ver. pág.50-60).

Findada esta parte da análise, Lévi-Strauss introduz a versão que ficara de fora até o

momento, aquela que transcorre sobre o leito do rio Nass. A idéia é

―identificar as variações que as distinguem, ou ao menos distinguem algumas delas,

pois que, provindas todas da mesma população (mas recolhidas em diferentes pontos

do território), tais divergências não podem ser explicadas em função de crenças,

língua, ou instituições diferentes.‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993:152)

Uma rápida análise desta versão permite ao autor compreender que seus episódios

contam uma história em que todas as oposições características da versão de referência são

marcadas por um enfraquecimento da relação entre os termos. Assim, uma oposição entre

duas mulheres que eram mãe e filha, passa a ser expressa pela oposição entre duas mulheres,

73

mas desta vez, irmãs; e assim por diante. Associadas a estes enfraquecimentos, existem

inversões de certas passagens, como, para ficar no mesmo exemplo, a origem relativa das

mulheres que irão se encontrar no início da narrativa. Mas, as inversões são consideradas

derivações do enfraquecimento das oposições (Lévi-Strauss [1973a] 1993: 187-94). Ora,

como explicar estas mudanças? Lévi-Strauss recorre à etnografia e demonstra como as

oposições que fazem sentido para os Tsimshian, não o fazem com a mesma intensidade para

os Nisqa, população de onde provêem esta última versão. Os primeiros tinham a vida mais

fortemente marcada por migrações sazonais que os segundos. Eles as viviam no leito do rio

Skeena, seu território tradicional, onde pescavam salmão, e ainda recorriam ao leito do Nass,

em busca do peixe-Azeite. Os indígenas de ambas as regiões poderiam conceber igualmente

as oposições, mas teriam de dar valor filosófico inverso a cada uma por a viverem

desigualmente. ―Uma oposição concebida por todos não quer dizer, porém, uma oposição com

o mesmo valor significativo para cada grupo. Os Tsimshian a viviam todos os anos, enquanto

os Nisqa se limitavam a conhecê-la‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993: 195). Assim,

―Os Tsimshian a utilizam para construir um sistema global e coerente, mas não

integralmente comunicável a povos cuja existência concreta não é marcada pela

mesma dualidade. Talvez porque o curso do Nass é menos decididamente leste-oeste

que o do Skeena, o que contribui para obscurecer o esquema topográfico‖ (Lévi-

Strauss [1973a] 1993: 195).

Percebe-se desta rápida exposição de uma análise mitológica de Lévi-Strauss que os

mitos são relatos localizados, contextualizados e que a transformação de uma versão de um

mito de uma população, na versão de outra, envolve, ao mesmo tempo, uma mudança lógica e

histórica, já que as imagens, e principalmente as motivações fundamentais das narrativas,

alteram-se ao transporem uma barreira cultural e infra-estrutural. Assim, não é que as

transformações lógicas sejam também históricas. Podemos afirmar até o contrário, são as

diferenças históricas que influenciam nas transformações lógicas, enfraquecendo e

distorcendo um relato.

Os mitos são entendidos por Lévi-Strauss como estruturas de linguagem que são

comunicadas de um povo a outro. As unidades destas estruturas são, elas mesmas,

―testemunhos fósseis‖ de um dado contexto cultural. É esta especificidade que pode dificultar

a difusão de um esquema mítico. Não parece ser por acaso que, no post-scriptum a este texto

– redigido após o fim de L‟Homme Nu, para a inclusão deste texto na coletânea Antropologia

Estrutural II ([1973f] 1993) – Lévi-Strauss interprete toda uma versão do mito que tinha

ficado de lado no texto original, dando ênfase às patologias de comunicação que ali se

74

apresentam, o que ele faz chamando atenção para o fato de que o esquecimento é uma

verdadeira categoria do pensamento mítico (Lévi-Strauss [1973a] 1993: 202).

Mas é preciso estar atento a um erro freqüente nas análises de mitologia. O fato de os

mitos estarem profundamente enraizados na infra-estrutura das sociedades que os geram não

implica que eles sejam um espelho desta realidade: a história contada pode contradizer as

instituições reais, e esta contradição ser fundamental para se estabelecer o significado do mito.

Se os mitos espelham alguma coisa, é esta forma de pensamento que se debruça sobre o

concreto, mas nunca coincide com ele, ―pois evolui em um outro plano‖ (Lévi-Strauss [1964]

2004: 24).

Mauro Almeida, no artigo supracitado, comenta esta forma enviesada através da qual

os mitos são elaborados quando analisa, no artigo supracitado (Almeida 2008), a primeira

figuração da fórmula canônica do livro A Oleira Ciumenta (Lévi-Strauss [1985] 1986). O

problema que os mitos Jivaro, comentados ao longo do livro, colocam para a interpretação de

Lévi-Strauss é o de entender qual a relação entre um pássaro solitário como Engolevento e a

atividade técnica que é a cerâmica, já que, a despeito de não terem nenhuma ligação aparente

com tal atividade, estes pássaros figuram recorrentemente nos mitos que versam sobre sua

origem:

―É como se o raciocínio mítico expresso do esquema lévi-straussiano [...] exigisse

um recuo face aos dados da experiência direta, de modo a poder situar essa

experiência em termos mais amplos (aqui o de conflitos cósmicos entre astros). O

construtor de mitos não é um coletor de impressões da experiência, mas é um

teórico. Em vez de introduzir no mito de origem da cerâmica um pássaro ceramista e

doméstico [...], ele introduz um espelho de João-de-Barros, cuja conexão com a

cerâmica, em cuja origem está presente, se dá pelo traço moral que tem em comum

com oleiras, o ciúme, e que é também um nexo entre o uso doméstico da arte da

cerâmica e as grandes questões metafísicas que se travam na abóbada celeste no

começo do mundo.‖ (Almeida, 2008: 168)

Esta passagem é importante para demonstrar exatamente que o pensamento selvagem

mesmo que encadeie relações abstratas através de imagens concretas, não procede,

necessariamente, de modo direto. O ciúme pode ser o veículo da relação entre um pássaro e a

cerâmica, mesmo quando existe à disposição da observação empírica, um pássaro construtor

de ninhos com barro. O importante é que estas inversões e contradições são fundamentais para

que se estenda a dimensão de abrangência de um conjunto de mitos, e para que se desvende

seus significados. E estas inversões e contradições estão presentes tanto nos mitemas quanto

na própria história contada pelo mito, como vimos acima.

Desta forma, chamando atenção para o caráter específico das narrativas – tanto no que

75

diz respeito aos materiais simbólicos elencados para sua composição, quanto ao que se refere

ao sentido das oposições colocadas em jogo por estes relatos – espero ter demonstrado a

importância da etnografia, e de uma atenção especial aos contextos localizados, para análise

estrutural dos mitos. Pois, como vimos ao retomar alguns pontos do debate entre Lévi-Strauss

e Propp, é por meio da referência à etnografia que o primeiro afirma escapar do fantasma do

formalismo e do problema de se realizar uma análise descontextualizada historicamente.

Como afirmou Viveiros de Castro, a estrutura do mito ―não se define fora da história‖:

―A história [...] [aparentemente] abandonando ao acaso, é reassimilada pela

necessidade, isto é, pela estrutura: ou antes, é a própria estrutura que não poderá

mais ser definida fora da história; ela passa a ser o produto de uma tensão – histórica

– entre um esquema simbólico e suas condições de realização – o contexto. [...]

[Assim] o pensamento mítico pressupõe uma determinada interação entre a

função simbólica e a realidade [...]. Só se poderá recortar uma cadeia sintagmática

em segmentos superponíveis se se dispuser de alguma informação suplementar, que

pode ser fornecida pelo contexto etnográfico enquanto cadeia sintagmática auxiliar;

caso contrário, o risco de se efetuar uma leitura arbitrária aumenta muito, posto que

tudo que está disponível [no mito] é enunciado sintagmático em sua evidência cega

de significado.‖ (Viveiros de Castro 1973: 125-7)

*****

Ao longo deste capítulo procurei demonstrar como a leitura estruturalista da mitologia

envolve dois aspectos que caracterizam este objeto: pode-se dizer que os mitos situam-se

entre o contínuo e o discreto também no que diz respeito às relações culturais e às motivações

que lhes engendram. O fato de todo mito ser um empréstimo e ao mesmo tempo um relato

único caracteriza fortemente o modo como o método estrutural o apreende.

Um filósofo contemporâneo, Patrice Maniglier (2005), leitor audacioso do método

estrutural, chega a falar em uma ―redefinição do estruturalismo‖, que passa de uma ênfase

inicial no conceito de estrutura, para uma ênfase, a partir dos estudos dos mitos, no conceito

de transformação (ver Viveiros de Castro 2008: 106). Se isso é verdadeiro, e esperamos ter

demonstrado que sim, isso se dá porque o mito é um objeto que a noção de transformação

permite apreender em sua especificidade: ―conter n‘est jamais que conte redire, que s‘écrit

aussi contredire...‖ (Lévi-Strauss 1971: 576). De tanto ser contado, o mito se transforma.

Se nos perguntamos qual a implicação desta ênfase na transformação para as relações

entre estruturalismo e história, deveríamos responder que se através da noção de

transformação podemos entender o mito enquanto história, como pontos de vistas sobre uma

situação concreta. Passamos, assim, de um diálogo com a história (perspectiva complementar,

76

apontada no capítulo anterior) para ter diálogos entre histórias (diálogos entre mitos,

entendidos como um tipo de relato histórico). A noção de transformação reúne a estrutura à

história, ou melhor, atesta sua indissociação.

Talvez a grande diferença entre os dois tipos de comparativismo possíveis através do

método estrutural esteja na premissa da análise mitológica: a unidade da história da América.

Uma unidade que não poderia ser suposta nem nos estudos do parentesco, e nem no estudo da

arte comparada como ele se apresenta no artigo sobre o ―desdobramento da representação‖. O

problema, portanto, passa a ser menos aquele de se encontrar uma ―estrutura elementar‖ –

mesmo que ela exista como uma oposição que é o impulso de determinados sistemas míticos53

– do que aquele de se demonstrar como os mitos falam uma mesma linguagem por trás das

diferenças superficiais entre eles. O que está oculto sob os mitos é um pensar que se atualiza a

cada performance (Maniglier 2005). E esta forma particular de pensamento a análise deixa vir

à tona em seu próprio devir.

Assim, não poderíamos concordar com autores que procuram introduzir a história no

estruturalismo, como Petitot, Scubla, Maranda, Sahlins e tantos outros. Esperamos ter

demonstrado ao longo destes dois capítulos que ao contrário de fundar-se numa ―oposição

binária [...] radical à história‖ (Sahlins 1981: 3) o método estrutural, no primeiro caso

analisado deixa de lado a perspectiva histórica, sem deixar de lado, contudo, a

contextualização dos dados que utiliza. O que permitirá a retomada de hipóteses de cunho

histórico, geográfico, político e econômico sobre bases mais sustentadas (ver Lévi-Strauss

[1958c] 2008: 289-290). Por outro lado, no caso da mitologia, podemos dizer que Lévi-

Strauss simplesmente descobriu o modo de se ler a história contida nos mitos, e de relacioná-

la entre si, de fazer os mitos ―falarem entre si‖.

Oposições binárias não são nada simples para o estruturalismo (Viveiros de Castro

2008), e entre os termos opostos, estrutura e história, surge um terceiro que os reúne e

engloba: transformação.

53

Por exemplo, em ―A gesta de Asdiwal‖ (Lévi-Strauss [1973a] 1993) esse impulso intelectual do mito é um

problema sociológico. Já n‘A Oleira Ciumenta (Lévi-Strauss [1985] 1986), esse mesmo impulso é tecnológico.

77

Capitulo 3 – Da Estrutura à História

“Nas dez páginas seguintes, instala-se, num ritmo

ofegante, uma oscilação cada vez mais rápida entre

temas míticos e temas fisiológicos, como se se tratasse

de abolir a distinção que os separa no espírito da

paciente e de impossibilitar a diferenciação de seus

respectivos atributos. Depois de imagens da mulher

deitada em sua rede ou na posição obstétrica indígena

– joelhos afastados e voltados para o leste, gemendo,

sangrando e com a vulva dilatada e pulsante [...] – vêm

chamados nominais aos espíritos, os das bebidas

alcoólicas, os dos ventos, das águas, da mata e até

mesmo o do “barco prateado do homem branco”,

testemunho precioso da plasticidade do mito.”

Lévi-Strauss, 1949.

Até aqui, procuramos definir a especificidade dos mitos em quanto objetos passíveis

de uma análise estruturalista. Este movimento nos levou a definir que a historicidade dos

mitos é uma característica indelével da leitura estruturalista destas representações religiosas.

Deixando de lado a análise de instituições e representações de povos cujas relações históricas

não poderiam ser provadas e, passando a um terreno no qual as relações históricas entre os

povos são tomadas como um dado de partida, o método estruturalista passou a articular-se em

torno do conceito de transformação – articulação que, como dissemos na introdução, é mais

uma questão de ênfase do que de predomínio absoluto. O principal ponto desta argumentação

foi iluminar os componentes ao mesmo tempo lógicos e históricos do conceito de

transformação mítica.

Neste capítulo trataremos de verificar estas idéias de um modo mais profundo,

focando em algumas análises mais pontuais de Lévi-Strauss, nas quais o autor ou

efetivamente faz história – e veremos de qual tipo – ou relaciona suas hipóteses acerca das

78

transformações entre mitos ameríndios a hipóteses e fatos históricos. Antes disso, contudo,

precisamos estabelecer que tipo de história é capaz de propor uma obra como as Mitológicas.

Poder-se-ia objetar que, se Lévi-Strauss descobriu como ler a história contida nos mitos – ou

melhor, se Lévi-Strauss conseguiu entender os mitos enquanto documentos históricos – ele

fez ―pouca história‖ com esta descoberta, na medida em que suas análises têm como foco

virtual o ―espírito humano‖; ou ainda, na medida em que as mitológicas apontam, ao final, a

existência de uma ―filosofia ameríndia‖ (Lévi-Strauss [1991] 1993: 14). Essa objeção deve ser

matizada pela análise que se segue. Pois pretendo argumentar que as Mitológicas abrem

caminho para uma nova historiografia, indicando formas alternativas de se pensar a história

dos povos ameríndios.

*****

Segundo o antropólogo Oscar Calávia Sáez em um texto recente, sobre ―as metáforas

lévi-straussianas‖ a respeito da história – chamado ―A história pictográfica‖ (Calavia Sáez

2008) – devemos notar, inicialmente, que as Mitológicas não são o que estamos acostumados

a chamar de um trabalho historiográfico. Só poderíamos fazer este tipo de afirmação apelando

para as ―definições radicais‖: ―do mesmo modo que uma anêmona é um animal e um

ornitorrinco é um mamífero‖ (Calavia Sáez 2008: 140). A tese de Calavia Sáez neste artigo é

que Mitológicas ―é uma história pictográfica dos povos ameríndios – talvez a única história

possível, na falta de escritas, mas por isso [...] capaz de sugerir alternativas às historiografias

que contaram desde cedo com as armas e as correntes da escrita‖ (Calavia Sáez 2008: 140).

Mas o que seria uma história pictográfica? Isso é algo que o autor define a partir de um

contra-exemplo bastante elucidativo:

―Se tentássemos fazer o mesmo com a história do Ocidente, o resultado seria um

relato em que os fatos não seriam coisas como o Império Romano, o feudalismo, as

guerras de religião ou as revoluções, mas a descrição que disso tudo fizeram

Gibbon, Voltaire, Marx ou Toynbee. No entanto, a maior parte dos historiadores

pretende historiar fatos se desvencilhando dos relatos em que eles foram guardados;

Mitológicas é uma história de histórias, cujos objetos já são relatos.‖ (Calavia Sáez

2008: 141)

Como vimos no capítulo anterior, os relatos míticos são historicamente marcados por

sua relação com a infra-estrutura técnico-econômica e social do contexto onde são contados.

Calavia Sáez chama os signos, contidos nestes relatos, de pictogramas, numa simplificação da

tese de O Pensamento Selvagem (Lévi-Strauss [1962] 1989):

79

―o pensamento [selvagem] é capaz de operar com categorias em termos do sensível

(por exemplo, cru e cozido), ou relações significativas de segundo nível, por

exemplo, entre pares de objetos próximos e pares de objetos distanciados, ou entre

ciclos longos e curtos etc. O essencial é que nessa complexificação – capaz de dizer

muito sobre a sociedade e o mundo – o pensamento não deva por força recorrer a

uma formulação abstrata, e possa sempre se expressar por meio de uma imagem – de

um pictograma.‖ (Calavia Sáez 2008:139)54

.

A proposta de Sáez parte de uma equação entre o pictograma e os fatos históricos:

ambos são vistos sob a lente da equivocidade. Procura-se iluminar com esta analogia, a

especificidade do pictograma: ele possui ―máximo poder evocativo, mínimo controle do

significado‖ (Calavia Sáez 2008: 139). O autor considera que os ―fatos históricos também têm

essa mesma equivocidade: cada um tem múltiplas interpretações, cada um se organiza em

volta de inúmeros eixos‖ (Calavia Sáez 2008: 139). Ao invés de depurar os fatos desta

equivocidade, como tradicionalmente se espera de uma obra historiográfica, as análises

mitológicas lidam exatamente com as diferenças entre os relatos, elas relacionam ―os fatos

antes de abstraí-los‖ (Calavia Sáez 2008: 139).

Como sabemos, a proposta de Lévi-Strauss é que os mitos se pensem ―entre si‖ (Lévi-

Strauss [1964] 2004: 31). Quem seria, então, o autor desta história? Ora, ela também

questiona a centralidade – moderna, sem dúvida – da figura do autor para a veracidade do

relato. Esta história não tem autoria, Lévi-Strauss articula os mitos somente na medida em que

dispõe do conjunto desorganizado que procura ordenar, ou melhor, fazer dizer, deixar o

significado fluir. Neste sentido, é a própria análise que solicita tal ou qual mito na sequência

de outro; ou mais precisamente, são os próprios mitos que se solicitam mutuamente (ver ex

nota 36, pág. 54). É esta articulação que constitui este tipo de história pictográfica, uma

―história não segregada de sua historiografia [...], capaz de descrever irredutibilidades

históricas e de articulá-las umas com as outras‖. Pois, cada ―conjunto de mitos condensa o

modo em que um povo ou uma região concebe determinados temas [...]‖. E estes temas

indicam ―os eixos, os conflitos, os pontos críticos de cada sociedade num dado lugar e

tempo‖. Assim, não se cria um contexto exterior aos fatos para entendê-los (Calavia Sáez

2008: 141). Na medida em que a análise avança, os mitos geram seu próprio contexto.

Ao articular um conjunto de relatos indígenas historicamente localizados, Lévi-Strauss

encara o desafio de diluir a fronteira entre história e historiografia. Esta distinção é

54

Me parece necessário observar que aquilo que Calavia Sáez chama aqui de ―formulação abstrata‖, em O

Pensamento Selvagem Lévi-Strauss chama de ―conceito‖. O pensamento selvagem encadeia, sim, ―proposições

abstratas‖ por meio de imagens concretas, mas estas imagens ficam ―aquém‖ do conceito (cf. Lévi-Strauss

[1962] 1989: 33-8; [1964] 2004: 19).

80

fundamental aqui. Calavia Sáez a compreende como a diferença entre o que acontece –

história – e como se narra/percebe o que acontece – historiografia. Ou seja, a diferença entre

o acontecimento e a consciência do acontecimento55

. Nas Mitológicas, a ―história é contada

não através/apesar desses filtros, mas com eles; não reduzindo os seus dados a uma

temporalidade única, mas contrastando temporalidades‖ (Calavia Sáez 2008: 140)56

. Assim, o

valor desta história pictográfica ―está na concretude do relato e no seu alto grau de relação

com o contexto‖ (Calavia Sáez 2008: 143). No capítulo anterior vimos detalhadamente os

fundamentos da noção de historicidade dos mitos, ao articular esta historicidade, Lévi-Strauss

apresenta ―um catálogo riquíssimo de ensaios da diversidade humana‖ (Calavia Sáez 2008:

142-3).

*****

Vejamos, então, isso mais de perto. Em diversos momentos, ao longo das análises

mitológicas, Lévi-Strauss estabelece a anterioridade de um mito em relação a outros,

deduzindo de uma transformação lógica, um sentido temporal inequívoco. Nestes casos,

pode-se dizer que a sincronia funda a diacronia. O que faz com que, mesmo que lide com os

mitos de sociedades ágrafas, a análise consiga, e mesmo necessite, em alguns casos, trabalhar

com algum tipo de cronologia: uma cronologia relacional, sem dúvida, que permite deduzir

movimentos de empréstimos entre mitologias localizadas, mas cuja importância organizativa

do relato não deve ser subestimada. Isto que podemos chamar de um difusionismo

55

No começo do artigo, quando trata efetivamente das metáforas lévi-straussianas sobre a história, Calavia Sáez

expõe esta distinção ao analisar os binômios ―quente/frio‖ e ―relógios/máquinas a vapor‖, que Lévi-Strauss

utiliza para problematizar, respectivamente a consciência e a ação histórica. (Calavia Sáez 2008: 126-30) 56

Além disso, devemos levar em conta que o adjetivo pictográfico é usado por Sáez em oposição ao ideográfico

e se baseia na distinção do filósofo alemão Wilheml Windelband entre ciências nomotéticas e ideográficas.

Segundo Calavia Sáez: ―a história é o epônimo daquilo que Windelband chamou de ciências ideográficas, por

oposição às ciências nomotéticas. As ciências nomotéticas, sabemos, são aquelas capazes de descobrir

regularidades exatas. As ciências ideográficas só conhecem a exatidão retrospectivamente: elas descrevem, mas

deixam muito a desejar quando predizem. [...] [C]apaz [...] de se legitimar sem qualquer apelo ao nomotético [,

a] [...] história está dotada de um efeito de verdade independente das regularidades e das previsões. No limite,

pode abandonar as leis e se aventurar no caos: o historiador está em seu direito quanto dissolve padrões

supostamente comuns, diferencia contextos, mostra exceções, desconstrói identidades e, em suma, mostra como

cada instante histórico é um caso único se observado com suficiente detalhe. É claro que este trabalho

desagregador de nada serviria se no final não fosse recapitulado em algum tipo de ordem, e a ordem prototípica

da história se baseia no ideograma‖ (Calavia Sáez, 2008: 135-6). É por meio destes ideogramas que se interpreta

a história. Os ideogramas são conceitos nativos – como ―modernidade‖, ―antigo regime‖, ―feudalismo‖,

―despotismo esclarecido‖ – e estão na contramão do projeto de ciência de Lévi-Strauss que sempre pretendeu dar

um estatuto nomotético à antropologia. O recurso à fonologia estrutural como modelo de ciência para a análise

dos fatos sociais deve ser entendido neste sentido. Apelando aos desenvolvimentos da lingüística Lévi-Strauss

desejava levar a antropologia social a lidar com as ―ilhas de ordem‖ presentes no oceano confuso da experiência

humana (Calavia Sáez 2008: 137).

81

estruturalista, presente na análise dos mitos, pode tomar basicamente duas formas: o primeiro

tipo deduz a prioridade de uma versão em relação à outra tomando estritamente os relatos

como referência. Ou seja, de uma transformação lógica estabelece-se uma prioridade

histórica. O segundo tipo procura entender como entre alguns mitos, analisados enquanto

pertencentes a um mesmo grupo de transformação sincrônico – de dimensão variada – podem

ser estabelecidas, através do auxílio a dados externos à análise mitológica, relações de

prioridade histórica de uma versão em relação a outra. No que se segue, discutiremos

detalhadamente dois exemplos, um de cada tipo57

.

*****

Detenhamo-nos, primeiramente, em um ―movimento‖ da segunda parte de O Cru e o

Cozido, o ―Rondó do Caititu‖ ([1964] 2004: 110-36). Esta análise tem origem no

esclarecimento de um detalhe de M8, o mito Kayapó-Kubenkraken de ―Origem do fogo‖ em

que o Jaguar – que auxilia o Desaninhador de Pássaros a descer da árvore em que se

encontrava preso quando fora cumprir seu desígnio a pedido de seu cunhado – trazia às costas

um caititu que acabara de caçar. O mito afirma que o herói só aceita a ajuda do temido Jaguar

por intermédio do caititu, sobre cujo corpo monta, para ir até a casa do primeiro animal,

suspeitosamente prestativo. O reaparecimento do segundo animal58

em M14, um mito Ofaié –

população vizinha dos índios Bororo, que habitam um território mais meridional que os

Kayapó, no Brasil Central – sobre ―A esposa do Jaguar‖, faz com que Lévi-Strauss se detenha

nesta recorrência59

. Para tanto, o autor lança mão de três mitos de ―origem dos porcos do

mato‖, M15 e M16, respectivamente, Tenetehara e Munduruku; e M18, novamente um mito

Kayapó-Kubenkraken. Notadamente, estes três mitos narram uma história bastante

semelhante: um ―herói cultural‖ necessita da ajuda de seus cunhados e por isso envia seu filho

(afilhado em M15) até esses, como intermediário no arranjo. Em todos os mitos, o menino é

maltratado pelos aliados. Diante das queixas da criança, o herói cultural se vinga: ordena que

57

Como já foi citado acima (nota 9, p. 23, Introdução), Lévi-Strauss, no ―Finale‖, fornece uma referência de

diversas destas passagens. Comentaremos algumas mais significativas, em seguida. 58

Mais precisamente de um Queixada, que é um porco do mato maior que o caititu, e um animal gregário, ao

qual os índios atribuem uma origem humana (Lévi-Strauss [1964] 2004: 110-14). 59

A bem da verdade, este é um princípio básico da análise estrutural dos mitos. Em ―Le Mythe Unique‖, Lévi-

Strauss o diz claramente: ―quand un mythe prend un soin extrême por monter en épingle un détail en apparence

gratuit, c‘est qu‘il cherche ainsi le moyen de s‘opposer à un autre mythe, repérable ailleurs et d‘habitude pas très

loin...‖ (1971: 517). A análise estrutural dos mitos é um procedimento, para usar um termo de Ginzburg,

―indiciário‖. Poderíamos imaginar, ainda, que este recurso a investigar a ―recorrência de detalhes aparentemente

gratuitos‖ assimile-se, de certo modo, a uma interrogação psicanalítica do discurso mítico de um grupo de

populações.

82

o menino junte penas e as amontoe sobre a aldeia dos aliados. Em seguida, atea fogo nas (ou

lança um encanto sobre as) penas e assim, por meio do fogo e da fumaça, transforma seus

aliados em porcos do mato. Daí a origem deste animal.

Ora, a versão Kayapó deste mito apresenta algumas distorções em relação às versões

Tenetehara e Munduruku. Lévi-Strauss enumera duas destas distorções. Uma delas

corresponde a uma diferença atribuída ao papel dos heróis culturais, e a outra às relações de

parentesco. No que diz respeito à primeira, Lévi-Strauss estabelece que existe uma homologia

entre os heróis culturais evocados em M16 (Karusakaibe e Daiïru) e em M18 (Takake e

O‘oimbre). Em geral, nos mitos destas populações, aos primeiros atribui-se o papel de criador

e, aos segundos, o de ―destituidor‖. Pode-se dizer, neste sentido, que algo de estranho se passa

na versão Kayapó. Ela atribui a O‘oimbre tanto o advento dos porcos do mato quanto a sua

perda – já que ele liberta os animais do cercado onde a transformação acontecera. Na versão

Tenetehara, o advento dos porcos do mato é responsabilidade do primeiro, enquanto a perda

fica a cargo do segundo herói cultural.

A segunda diferença entre as versões diz respeito às relações de parentesco tal como

aparecem nos mitos. Através delas, Lévi-Strauss compara a organização social dos grupos

tupi periféricos (Tenetehara e Munduruku) às dos Kayapó, um grupo Jê. Em M15 e M16, a

linha de ruptura separa os irmãos – ―todo os dias ele enviava o filho ao acampamento de suas

irmãs‖, que ofendem a criança, como consta em M16 ([1964] 2004: 111) –, ao passo que em

M18, ela separa os cunhados – O‘oimbre manda o filho pedir mantimentos ―a seus parentes

maternos e em seguida briga com seu cunhado Takake, marido de sua irmã‖ ([1964] 2004:

114). Assim, mesmo que se trate, sempre, de um conflito entre aliados, uma diferença

aparentemente negligenciavel faz com que a linha de ruptura se modifique de um mito ao

outro de acordo com a estrutura social de cada sociedade. Lévi-Strauss entende que a

primeira distorção – a contradição entre o papel atribuído aos heróis culturais – motiva a

segunda:

―No mito kayapó, o herói-tatu O‘oimbre toma o lugar do demiurgo takake como

responsável pela origem dos porcos, por sua vez representados pelo outro grupo de

aliados. Na sequência, entretanto, as funções [respectivas dos heróis culturais] se

mantêm inalteradas, tanto que, de modo aparentemente pouco lógico, o mito kayapó

atribui a O‘oimbre primeiramente a origem dos porcos e depois a sua perda. Para

isso é preciso construir um relato esquisito em que O‘oimbre transforma os aldeões

em porcos e se comporta logo em seguida como se tivesse esquecido o

acontecimento, ao passo que Takake – que nele não teve participação alguma – age

como se fosse o único a estar informado dele. Essa contradição interna da versão

kayapó mostra que ela só pode ser uma elaboração secundária da versão

munduruku. Em relação a esta – versão ―reta‖ –, a dos kayapó apresenta uma dupla

torção, sendo que a segunda tem como efeito anular a primeira e restabelecer o

83

paralelismo com a sequência do relato munduruku [...]‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004:

116; grifos nossos / ver figura 9).

O alinhamento entre as versões permite que Lévi-Strauss considere que somente a

relação de aliança evocada pela versão munduruku seja fundamental aos mitos de origem dos

porcos do mato. Essa demonstração de que uma versão é derivada de outra – que estabelece

uma cronologia relativa entre os relatos – é determinante para a análise que se desenvolverá

na sequência d‘O Cru e o Cozido. Recapitulemos: Lévi-Strauss estava interessado em analisar

o ―papel da cavalgadura intermediária atribuído ao caititu em M8‖ ([1964] 2004: 110) – que

pertence às versões do grupo de mitos do ―desaninhador de pássaros‖, que versam sobre a

origem do fogo (e, assim da cozinha e da culinária). O caititu, que era conteúdo de um mito

deste sistema, passa a ser analisado ele mesmo enquanto um sistema. Ou seja, passa-se a

analisar um grupo de ―mitos de origem dos porcos do mato‖ 60

. Estabelece-se que estes mitos,

assim como os mitos do primeiro grupo, colocam em primeiro plano as relações de alianças e,

neste sentido, são suplementares. Somada a esta homologia, existe uma diferença que os torna

complementares: se nos mitos do desaninhador, os homens adquirem o fogo de cozinha por

meio de um bom cunhado, o Jaguar; nos mitos do segundo grupo, a origem dos porcos do

mato – aquilo que se caça para assar no fogo – advém das disputas com mal cunhados ([1964]

2004: 124). Assim, cada grupo de mitos aborda uma faceta da aliança ([1964] 2004: 126).

Não se deve subestimar a importância do estabelecimento do vocabulário da aliança

nos mitos de origem dos porcos do mato. Feito por meio desta redução ao mesmo tempo

lógica e histórica, ele permite que se entreveja que a série jê ―do desaninhador de pássaros‖

apresenta uma coerência interna que se mostra cada vez mais forte, já que todos os mitos

desse grupo colocam em cena não um, mas dois pares de cunhados (Lévi-Strauss [1964]

2004: 118). O estabelecimento desta coerência interna – que é o objetivo das duas primeiras

partes de O Cru e o Cozido – é fundamental para todas as Mitológicas. Atestada a coerência

da série, passa-se às transformações deste grupo de mitos em outros grupos de mito, e assim,

Lévi-Strauss seguirá seu périplo pan-americano para além dos mitos de ―origem dos porcos

do mato‖; passando aos mitos de ―origem das plantas cultivadas‖, que se transformarão nos

mitos norte-americanos das ―esposas dos astros‖ que, por sua vez, reencontrarão os mitos ―do

60

Mais à frente Lévi-Strauss irá comentar, atestando uma qualidade do método estrutural que já sinalizamos no

capítulo anterior: ―O detalhe de onde partimos diz respeito ao conteúdo e, na sequência de nosso procedimento,

esse conteúdo de algum modo se revirou: tornou-se forma. Compreende-se assim que, na análise estrutural,

conteúdo e forma não são entidades distintas, mas pontos de vista complementares que é indispensável adotar

para aprofundar um mesmo objeto. Além disso, o conteúdo não se transformou apenas em forma; mero detalhe

no início, desenvolveu-se em sistema, do mesmo tipo e da mesma ordem de grandeza do sistema inicial que o

continha como um de seus elementos‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 125 / ver Figura 10).

84

desaninhador de pássaros‖ em sua versão mais forte na América do Norte. Onde encontrar

transformações equivalentes, Lévi-Strauss poderá procurar outras subseqüentes e assim por

diante.

Passemos, agora, ao nosso segundo exemplo, sobre o modo como, por meio de

considerações externas ao conjunto de mitos analisados, Lévi-Strauss deduz uma cronologia

igualmente relativa entre sistemas de mitos previamente estabelecidos em um grupo de

transformação. O ―episódio‖ em questão é o segundo capítulo da quarta parte do livro A

Origem dos Modos à Mesa – ―As meninas modelo‖ –, denominado ―As instruções do porco-

espinho‖. Como se sabe, esta análise de Lévi-Strauss se estabelece em diálogo e

contraposição com as análises de Reichard e Stith Thompson, tendo como referência The Star

Husband Tale, uma obra de 1953, do último autor. Segundo Lévi-Strauss, Thompson (1953)

toma como modelo de suas análises os trabalhos da ―escola finlandesa e pretende demonstrar

sua validade‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 204). Lévi-Strauss procura se posicionar contra o

método de análise desta escola, que ele chama de ―histórica‖:

―Sabe-se que essa escola, de espírito positivista e empiricista se dedica a registrar

todas as versões conhecidas de um relato transmitido pela tradição oral. Em seguida,

divide o relato em motivos episódicos, os mais curtos que for possível reconhecer e

isolar [...]. Calcula-se a freqüência desses motivos e, a partir disso, dosam-se os

símbolos convencionais que servem para montar a tabela de distribuição.

Comparando-se os valores numéricos e sua distribuição no espaço, tenta-se

determinar tipos que se distinguem uns dos outros por sua relativa antiguidade e seu

centro de difusão. Trata-se, portanto, de reconstituir uma história natural do conto,

mostrando onde ele surgiu em qual época e sob qual forma e, posteriormente,

classificando variantes por seu lugar e ordem de surgimento.‖ (Lévi-Strauss [1968]

2006: 204).

Os mitos que a escola finlandesa, com seus representantes americanos, chama de

―marido-estrela‖ (Star Husband), Lévi-Strauss denomina de ―A disputa dos astros‖. Esta

história – nas diversas versões que se interconectam – possui uma vasta distribuição espacial

numa área que o autor chama de ―crescente setentrional‖, que abriga tribos de diversas

famílias lingüísticas (ver figura 11). Partindo de um estudo comparativo das versões

conhecidas do ciclo do marido-estrela, ―Thompson (1953: 135) infere a existência de um

arquétipo ou forma fundamental que reúne todos os motivos que apresentam a maior

freqüência estatística‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 205). Das 86 versões consideradas, apenas

15 reproduzem esta forma tida como fundamental (Lévi-Strauss [1968] 2006: 205).

Thompson considera que esta forma arquetípica existiu em praticamente toda extensão de sua

85

área de distribuição atual, antes de se desenvolver em outros tipos derivados (Lévi-Strauss

[1968] 2006: 206).

O autor parte para a elaboração de uma segunda versão, entendida como histórica e

logicamente derivada da versão prototípica, ―a redação porco-espinho‖. Considera-se que

existem vinte versões deste mito. Este segundo tipo apresenta uma distribuição ―mais densa,

mas também muito mais restrita que a do tipo I‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 206), no interior

da área deste. E no interior da área do tipo II, existe uma área ainda menor, em que são

registrados os mitos que apresentam o motivo da disputa entre Sol e a Lua, reunindo oito das

vinte versões anteriores. Ainda menor em extensão e em número de versões, existiria um

quarto tipo, derivado do terceiro (duas versões), distinguindo-se pelo chamado ―episódio da

cotovia‖ que figura no final da história (Lévi-Strauss [1968] 2006: 206-7). Assim,

consideradas ―de um ponto de vista histórico e geográfico, a relação entre as quatro fórmulas

evoca círculos concêntricos‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 207). Da forma fundamental a mais

derivada, os círculos diminuem de tamanho, permanecendo cada vez mais inclusivos: ―[c]ada

uma das formas, mais ou menos antiga, ocuparia, portanto, uma área cuja extensão está

relacionada à data de seu surgimento‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 207) / ver figura 12).

Após apresentar estes movimentos analíticos característicos da escola finlandesa,

Lévi-Strauss comenta que as conclusões possíveis dentro deste método resultam em

considerações vazias que não vão além da repertoriação, localização e datação das versões. As

conclusões se restringem, portanto, a caracterizar como certos episódios desenvolvem, em tal

ou qual medida, outros episódios anteriores, e a análise nunca extravasa do comentário do

mito em direção a explicações mais amplas, que envolvam aspectos da vida social dos

indígenas contadores destes mitos (Lévi-Strauss [1968] 2006: 208). Ao final destas

considerações, Thompson propõe uma datação para as versões restituídas estatisticamente e

para o período de transformação de uma versão em outra: ―a forma fundamental, que é

também a mais antiga, dataria pelo menos do século XVIII. A redação porco-espinho não

poderia ser posterior a 1792 e o nascimento do tipo III estaria situado no período 1820-30.‖

(Lévi-Strauss [1968] 2006: 210). Diante destas conclusões, Lévi-Strauss logo emenda:

―Essas avaliações são surpreendentes em se tratando de mitos norte-americanos que,

como demonstramos [nas partes I, II e III deste mesmo livro], transformam da

maneira mais regular possível mitos provenientes da América do Sul. Isso implica

que tanto uns quanto os outros se inspiram em esquemas comuns aos dois

hemisférios, cuja idade não pode ser calculada em décadas, mas em milênios.‖

(Lévi-Strauss [1968] 2006: 210).

86

Deixemos de lado momentaneamente – pois a abordaremos em mais de uma ocasião à

frente – as questões relativas ao modo como mitos dos hemisférios austral e boreal se

relacionam, e nos detenhamos na resposta de Lévi-Strauss às conclusões de Thompson. Como

se notou, o trabalho desse último autor se apóia em aportes estatísticos: baseia-se na

freqüência média de motivos míticos para determinar sua correlação e evolução histórica,

detendo-se sobre a superfície do relato. Fiel ao princípio de que não é a quantidade, mas a

qualidade da análise que define uma experiência bem feita – embora isso não o dispense da

exaustividade – Lévi-Strauss deixa de lado qualquer recurso estatístico e parte para a análise

de um detalhe considerado efêmero pelo seu ―opositor‖ (o ―episódio da cotovia no tipo II e o

do chapim e dos esquilos no tipo III‖) para empreender sua análise61

. Não teríamos espaço,

aqui, para discutir todos os pormenores desta longa argumentação de Lévi-Strauss.

Contentemo-nos em apreender seus movimentos de um modo mais geral. Segundo o autor, as

versões do mito do ―marido-estrela‖:

―não se diferenciam como objetos inertes de que bastaria reconhecer a extensão

desigual no espaço e no tempo [como quer Thompson]. Antes, elas possuem inter-

relações dinâmicas, que as colocam em correlação e oposição umas às outras. Essas

inter-relações determinam ao mesmo tempo as características distintivas de cada

variante e permitem explicar melhor sua distribuição do que as freqüências

estatísticas.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 210)62

.

Ao final de sua análise, Lévi-Strauss conclui que todos os tipos do mito das esposas

dos astros se organizam em um sistema formado por pares opostos. Deste modo, seria inútil

interpretar cada um dos tipos isoladamente, já que eles adquirem significação exatamente na

sua co-relação: ―seu significado é diferencial, só se revela na presença de seu contrário‖

(Lévi-Strauss [1968] 2006: 237). As formas extremas e inversas de que partiu – mitos que

continham o episódio da cotovia e mitos que continham o episódio do chapim e dos esquilos –

mostraram-se como pertencentes a sistemas maiores que, como um todo, se opõem. Essas

mesmas versões iniciais, incluídas nestes sistemas maiores, se opõem entre si, e apresentam

uma forma condensada dos mitos que as englobam. Assim, Lévi-Strauss não só procurou

entender na sincronia, aquilo que a escola mítico-histórica procurava entender na diacronia,

como deu ênfase às relações e não ao inventário dos termos.

61

Tomados de populações que se encontram no extremo oposto da área considerada – ―o primeiro encontra-se

entre os Crow e os Hidatsa, que são siouanos, e o segundo, entre os Passamaquoddy e os Micmac, que são

Algonquinos orientais‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 210) –, estes mitos são considerados inversos uns aos outros,

―estão em relação de simetria invertida‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 214). Dito isso, Lévi-Strauss passa às formas

intermediárias que se distribuem ao longo da área situada entre as formas extremas. 62

Em Lévi-Strauss (1971: 183 e seguintes) encontramos outra análise em que o autor procura opor seu método a

uma escola ―histórica‖, que tem Demetracopolou como autor representante.

87

Embora sua análise seja sincrônica, ela permite que se interrogue acerca das questões

genéticas, e assim, históricas, entre as versões dos mitos analisados. Chegamos assim, ao

ponto que mais nos interessa nesta análise. Mas, antes de passar a ele, seria impossível não

comentar uma certa ironia de Lévi-Strauss que se segue a estes últimos comentários. Tendo

dito, quando descrevia os autores da ―escola histórica finlandesa‖, que estes se propunham a

fazer uma ―história natural do conto‖, como sublinhamos acima, Lévi-Strauss faz a seguinte

colocação:

―é certamente verdade que se deve saber em que consistem as coisas antes de se

poder interrogar razoavelmente quanto ao modo como elas vieram a ser o que são. E

não é possível conceber a investigação de Darwin sem aquelas que a precederam, de

Linné e de Cuvier. Mas, assim como os seres vivos, os mitos não pertenceram desde

a origem a um sistema acabado; este possui uma gênese acerca da qual se pode, e se

deve, interrogar. Até agora, submetemos a um estudo de anatomia comparada várias

espécies míticas que pertencem todas ao mesmo gênero. Como, e em qual ordem,

cada uma delas adquiriu sua peculiaridade?‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 237).

Se bem entendo, Lévi-Strauss está dizendo que as análises da escola histórica

finlandesa estão para a análise estrutural dos mitos assim como a história natural de Lineu está

para a teoria da evolução de Darwin63. Se isto for verdade, as considerações que se seguem

ganharão uma dimensão suplementar para nossa reflexão. Vejamos como o autor procede no

estabelecimento desta história genética, verdadeira análise de evolução de algumas espécies

míticas de mesmo gênero em um território delimitado. Em primeiro lugar, ele projeta em um

mapa de uma região circunscrita do ―crescente setentrional‖, a Sudoeste e a Nordeste dos

Grandes Lagos, a estrutura lógica dos mitos que acabou de analisar. Esta estrutura ―coincide

aproximadamente com a distribuição geográfica das tribos em que se encontram os quatro

tipos‖ (ver figura 13). Em seguida, o autor se pergunta:

―A questão que se coloca, assim, é de saber se, de um lado e de outro do plano de

interseção, existe alguma diferença significativa entre os modos de vida, as

estruturas sociais, as formas de organização política ou as práticas religiosas, capaz

de explicar as inversões regulares que a comparação entre os sistemas míticos

revela.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 238).

E completa:

―...os contrastes míticos que gostaríamos de explicar são ao mesmo tempo coerentes,

sistemáticos, e bem delimitados: relações condensadas versus relações expandidas,

inverno versus verão, no início ou no fim, posições diferentes do episódio do

63

Ver comentário de Lima (1999: 3) na página 57.

88

casamento no decorrer do mito, disputa dos homens versus disputas das mulheres

etc.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 239).

Ou seja, dado um espaço circunscrito, Lévi-Strauss está procurando para sua

―anatomia comparada‖ explicações, digamos, ―ecológicas‖, para a evolução das formas

míticas, para o entendimento de sua co-relação. Como neste caso o simples interrogatório das

versões não foi suficiente para determinar a idade relativa dos mitos, o autor lança mão de

dados externos para complementar sua investigação. É nesse sentido que ele recorre às

diferenças de meio-ambiente, em primeiro lugar, para verificar se elas explicam esta oposição

tão sistemática. Verifica, então, se a oposição entre ―as planícies, de um lado, os bosques e

pradarias, do outro‖ – que implicam em diferenças de ―modo de vida‖ – poderia explicar, de

modo global, a variação dos mitos ao longo desta área. Conclui pela negativa: esta oposição

―não se apresenta nitidamente por toda parte‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 239). Dirige, em

seguida, sua atenção para características da organização social dos grupos em questão. Não

observa nada que se compare à sistematicidade da relação entre as transformações míticas e

sua distribuição espacial – ―[n]ão se vê claramente a quais variações da estrutura social

poderiam corresponder as diferenças observáveis nos mitos.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006:

240). Após estas interrogações, e este pequeno suspense, Lévi-Strauss finalmente apresenta o

seu argumento:

―Na verdade, existe uma única fronteira cujo traçado respeita a oposição entre os

dois grandes sistemas míticos, que certamente pode ajudar a explicá-la: a do habitat

do porco-espinho, que ocupa uma área setentrional que vai do Alasca, a oeste, até o

Labrador, a leste, com duas extensões meridionais, uma que vai da região dos

Grandes Lagos até a Pensilvânia e a outra ao longo das Rochosas e das Cascades,

que se estende até o México.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 240)

Lévi-Strauss apresenta, em seguida, quatro mapas (ver figura 14) que delimitam

precisamente a área de ocorrência dos porcos-espinhos na América do Norte. Seu interesse

nesta análise – e o nosso –aumenta na medida em que ele descobre que a área em que o porco-

espinho tem um papel importante nos mitos, as Planícies – a mesma região em que a arte do

bordado em espinhos foi levada a seu mais alto grau de refinamento –, corresponde à área em

que o animal não se encontra presente na natureza, ou é extremamente raro. Esta é,

precisamente, a região em que vivem os índios Algonquinos das Planícies. Os próprios

zoólogos que elaboraram estes mapas concluíram que a área em que os espinhos deste animal

são usados para fins decorativos corresponde quase que estritamente à sua área de difusão,

sendo as Planícies a única exceção a esta correspondência. Mas isso não é tudo:

89

―Se, como parece ser o caso, os Algonquinos das Planícies e seus vizinhos siouanos

provêm do nordeste, região onde vivia o porco-espinho, eles teriam podido inverter,

ao perderem o animal real, um sistema mitológico originariamente muito próximo

daquele que os Ojibwa conservaram.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 243).

E é neste sentido que o autor conclui esta parte da análise:

―Assim, não é inconcebível que a redação porco-espinho tenha surgido como uma

reação ideológica à infra-estrutura. Aos olhos de populações cujas obras de bordado

[...] exprimiam também mensagens filosóficas [sobre a educação das moças], o

porco espinho podia assumir o aspecto de um animal sublimado por seu próprio

exotismo, e tornar-se uma criatura metafísica realmente pertencente a um ―outro

mundo‖. Para os Ojibwa e os Algonquinos orientais, o porco-espinho era, ao

contrário, um bicho bem real [...] podiam tratá-lo em seus mitos como um ser

natural, cuja ambiguidade reflete o caráter duplo: de um lado, dono do frio [...] e de

outro, fornecedor de riquezas [...].‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 243).

Assim, notamos que a determinação da prioridade histórica de um conjunto de mitos

em relação a outro, neste caso, implica não só em um avanço na análise mais ampla que se

está desenvolvendo – determinando que o mito Ojibwa M447 possua um esquema mais antigo

que os mitos dos Algonquinos mais meridionais64

– como permite que Lévi-Strauss confirme,

por outros meios – através dos mitos! –, uma hipótese de deslocamento populacional de um

grupo indígena em tempos pré-históricos.

Façamos uma pequena conclusão procurando reunir o que aprendemos com estes dois

exemplos. Em primeiro lugar, devemos ressaltar o caráter delimitado destas análises.

Restringindo-se a áreas nas quais as relações entre as populações podem ser supostas para

além das transformações entre os mitos – ou seja, tendo um contexto histórico comum bem

estabelecido –, Lévi-Strauss consegue retirar relações de precedência histórica entre mitos de

povos vizinhos; num caso, da pura relação entre os mitos, no outro, da sobreposição desta

relação a dados externos à análise. Devido aos limites da análise, poderíamos dizer que

estaríamos lidando com uma micro-história difusionista. Porém, de modo complementar esta

micro-história se liga a hipóteses históricas mais abrangentes. Estes movimentos analíticos

são fundamentais para os desenvolvimentos ulteriores da análise, e permitem um diálogo da

análise mitológica com hipóteses históricas de longo alcance – como o deslocamento

populacional de um grupo indígena em tempos pré-históricos, por exemplo.

64

Podendo ser aproximado com mais razão ainda de mitos da América do Sul, cuja relação havia sido sugerida

mais atrás (Lévi-Strauss [1968] 2006: 230, 243)

90

No primeiro caso, a simples anulação das diferenças entre os povos Tupi e Jê (Macro-

Jê) por meio da mitologia – anulação no sentido de um juízo não valorativo das diferenças

entre estes povos – pode ser relacionada a este tipo de hipótese histórica. Já faz algum tempo

que os lingüistas histórico-comparativos discutem a possibilidade de, em tempos pré-

históricos, estas populações terem se dividido a partir de uma origem comum (Urban 1992).

De certo modo, podemos dizer que a análise mitológica de Lévi-Strauss valida, por outro

meio, este tipo de hipótese. E vemos que, por meio da perspectiva estruturalista, trabalha-se

sobre um substrato cultural de uma profundidade histórica que alcança alguns milênios. Como

Calávia Sáez notou:

―os mitos definem, assim, proximidades e distâncias e são capazes de delinear

conjuntos regionais, que podem se superpor aos construídos em base a outros dados

(arqueológicos, ergológicos, lingüísticos), mas também propor configurações

alternativas: eles testemunham correntes e conexões que nenhum outro dado poderia

evidenciar.‖ (Calavia Sáez 2008: 142)

Neste sentido, a análise lévi-straussiana dialoga com outros modos nomotéticos de se fazer

história. E nós não poderíamos censurar a micro-história de Lévi-Strauss do mesmo modo que

ele o fez com relação à de Franz Boas em ―História e Etnologia‖:

―Boas traz as exigências do físico de fazer a história das sociedades sobre as quais

só possuímos documentos que desencorajam o historiador. Quando ele consegue,

suas reconstruções atingem realmente a história, mas uma história do instante

fugidio, único que pode ser captado, uma micro-história, que não consegue se ligar

ao passado mais do que a macro-história do evolucionismo e do difusionismo.‖

(Lévi-Strauss [1958b] 2008.p. 21-2).

Mantendo as ―exigências do físico‖, Lévi-Strauss consegue conectar hipóteses sobre a

sua micro-história com uma macro-história de longo alcance. Por outro lado, poderíamos

dizer que – menos pelo caráter difusionista que pela sua devoção à análise e à relação de

contextos diversos, e por sua atenção aos detalhes mais ínfimos e reveladores – a micro-

história lévi-straussiana pode seguramente ser situada entre os precursores da escola italiana

que em meados do século passado despontou entre as correntes historiográficas européias65

.

Além disso, vimos que, mesmo não governando o relato de ponta a ponta, o

estabelecimento de uma cronologia relativa tem implicações profundas para este tipo de

―história pictográfica‖. E é impressionante que Lévi-Strauss consiga, na análise de mitos que

65

Cf. Ginzburg ([2006] 2007): cap. 13 para um panorama a respeito da origem da micro-história.

91

surgem antes, ou à margem, da escrita (Calavia Sáez 2008: 142), estabelecer uma cronologia

que auxilia no desenvolvimento do relato.

Existem ainda outros casos, nas Mitológicas, em que se recorre a este recurso

analítico. Ainda em O Cru e o Cozido na nota 12 (Lévi-Strauss [1964] 2004: 258-9), Lévi-

Strauss afirma que M129b (Tukuna: origem Orion 2) só pode ser entendido se considerado

derivado em relação a M65 (Guarani-Mbyá de ―origem do fogo‖). Isso porque o relato

apresenta-se contraditório consigo mesmo66

. Assim, ele escreve:

―Quando se consideram os dois mitos nessa perspectiva, deve-se reconhecer que sua

transformação só é concebível num sentido. É admissível que M65 gere M129b por

inversão de todos os elementos. A hipótese contrária levaria a dificuldades

insolúveis. Eis, portanto, um exemplo típico dos ensinamentos da análise estrutural,

mesmo mantida ao nível mais formal, pode dar acerca das relações históricas e

concretas entre os povos.‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 259)

Passando ao livro Do Mel às Cinzas67

, temos um exemplo interessante. Ao determinar

que os mitos tacana transformam sistematicamente mitos Bororo (Macro-Jê), Lévi-Strauss

confirma uma hipótese sobre a origem mais oriental desta população que, na época histórica,

foi encontrada e considerada sob influência de populações andinas. Assim, o autor demonstra,

precisamente, que esta ultima influência afetou mais superficialmente o discurso tacana, pois

em seus fundamentos, ele conserva a memória da influência e dos contatos culturais com

populações Macro-Jê (Lévi-Strauss [1967] 2004: 313-24). Neste sentido, pode-se ver que o

trabalho de Lévi-Strauss assemelha-se a uma arqueologia do discurso mítico, capaz de

relacionar e analisar camadas de diferentes temporalidades presentes neste ―sub-solo‖

ideológico.68

Poderíamos multiplicar os exemplos (ver nota 9, p. 23). Eles se mostram freqüentes

também nas três obras que se seguem às quatro Mitológicas, chamadas por seu autor de

―pequenas Mitológicas‖. Já no primeiro capítulo dos acréscimos ao livro A Via das Máscaras

66

―Nesse mito, consequentemente, tudo aparece ao contrário: o ogro é o dono do alimento vegetal cozido, a

refeição ingerida fala, o perneta é mais rápido do que se tivesse duas pernas, a cozinheira é sepultada sob a carne

que deveria colocar na panela...‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 259) 67

Lembrando que existem ainda outros exemplos n‘Cru e o Cozido. Lévi-Strauss triangula entre três mitos M145

(Arekuna: ―origem do veneno de pesca‖), M162 (Karib: ―origem das doenças e do veneno de pesca‖.) e M175

(Toba-Mataco: a cor dos pássaros) e estabelece a antiguidade relativa entre eles numa análise memorável (Lévi-

Strauss [1964] 2004: 350-4). 68

Em Ginzburg ([1986] 1989) encontramos um desenvolvimento deste tipo de análise no capítulo 2, parte III.

Este autor procura diferenciar algumas camadas de temporalidade diferente no mito de Édipo e em outros mitos

que analisa como um grupo de transformação. Faremos um breve comentário sobre o trabalho de Ginzburg na

conclusão.

92

feitos na segunda edição69

encontramos um exemplo que soma os dois tipos. Neste caso, não

só as contradições do relato, mas dados arrolados externamente contribuem para a

determinação do caráter derivado de uma versão do mito de origem das máscaras rituais

utilizadas no noroeste da América do Norte, em relação a outro mito que procura estabelecer a

mesma etiologia (Lévi-Strauss [1979]: 133-142).

Além disso, em um artigo de 1971, encontramos outros desenvolvimentos ―micro-

históricos‖ que seria interessante comentar. Trata-se de ―Como morrem os mitos‖, texto

escrito em homenagem a Raymond Aron (Lévi-Strauss [1973d] 1993: 261-74). Nele, o autor

procura demonstrar como a ―integridade da fórmula mítica se altera‖ no processo de

transformação que sofre ao passar de uma população a outra degenerando – ou progredindo,

conforme quisermos – em outras “formas” de relato70

. O artigo concentra suas forças numa

região restrita da América do Norte, a Columbia Britânica e na área interiorana avizinhada,

onde encontramos tribos de diferentes grupos lingüísticos e hábitos culturais (mapa à pág. 265

in Lévi-Strauss [1973d] 1993). Partindo de um mito Thompson, população da família

lingüística sahlish – cujo caráter ―reto‖ e conforme do relato à cultura desta população é

atestado logo no começo – Lévi-Strauss faz uma sucessão de movimentos analíticos: o

primeiro deles demonstra como ao passar para os vizinhos setentrionais imediatos (os

Shuswap, ainda de língua sahlish), o relato se atenua e comprime (Lévi-Strauss [1973d] 1993:

264). Em seguida, passando a uma área mais setentrional ainda (para os Chilcotin), e

transpondo um limite linguístico e cultural, o relato se inverte71

(Lévi-Strauss [1973d] 1993:

264-6). Diante disso, o autor faz a seguinte ponderação:

―A priori, nada impede que o mito possa ultrapassar outros limites, para além dos

Chilcotin [...]. Entretanto, não é menos concebível que, vencendo sucessivas

barreiras, o impulso fabulador se esgote e que o campo semântico das

transformações [...] ofereça um rendimento decrescente. Tornando-se cada vez

menos plausíveis à medida em que se engendram uns aos outros, os últimos estágios

do sistema imporiam tais distorções à armadura mítica, submeteriam sua resistência

69

Que definiram o formato final deste livro e aos quais Lévi-Strauss chama de ―três excursões‖ (Lévi-Strauss

1979). 70

Como diz o autor, numa formulação que resume bem alguns dos argumentos deste trabalho: ―Tratar-se-á aqui

da morte dos mitos não no tempo, mas no espaço. Sabemos, com efeito, que os mitos se transformam. Estas

transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um mito a um outro mito, de uma

sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos mitos ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura,

ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma

espécie de princípio de conservação da matéria mítica, em função da qual de qualquer mito sempre poderá sair

um outro mito. Entretanto, acontece às vezes que a integridade da fórmula primitiva se altere no decorrer desse

processo. Então esta fórmula degenera, ou se preferirmos, progride, para aquém ou para além do estágio em que

os caracteres distintivos do mito permanecem ainda reconhecíveis...‖ (Lévi-Strauss [1973] 1993: 261). 71

Ver capítulo 2, pág. 66 e seguintes para comentários sobre o artigo ―A Gesta de Asdiwal‖.

93

a tão rude prova, que ela acabaria por ruir. Então o mito cessaria de existir como

tal.‖ (Lévi-Strauss [1973d] 1993:269).

Assim, o autor passa a inventariar as transformações dos mitos em outros gêneros

narrativos. Seguindo o périplo ao norte, entre os Carrier, observa-se uma passagem do mito ao

romance. A história perde sua inspiração coletiva e o relato sofre uma ―queda na intriga‖ (cf.

Lévi-Strauss [1968] 2006: 103-18), que o particulariza, fazendo com que ele procure

desenvolver a si próprio. Em seguida, transpondo uma fronteira lingüística e cultural, em

direção ao Noroeste da área considerada como centro de difusão regional, ocorre uma

passagem do mito à lenda. Já que Lévi-Strauss demonstra que a história passa a relatar ―fatos

supostamente históricos, com o fim preciso e limitado de explicar a origem de certos

privilégios de clã [...] fundando certas modalidades de um sistema ancestral‖ (Lévi-Strauss

[1973d] 1993: 272-3). Finalmente, completando a ―visão panorâmica‖, em direção a leste,

entre os índios Cree, ocorre uma adaptação do mesmo mito a uma ―história recente, na

intenção manifesta de justificar um devir em processo e de validar uma de suas possíveis

orientações, entre tantas outras que lhes era dado escolher – a colaboração com os Brancos‖

(Lévi-Strauss [1973d] 1993: 274).

Portanto, nesse artigo, em primeiro lugar, a relação de prioridade de um mito em

relação a outro é marcada por aquilo que chamamos de, de acordo com Lévi-Strauss, de

―versão reta‖. Mas, logo em seguida, quando se trata da relação entre mitos e outras formas de

relato, a própria condição de mito fornece o critério de anterioridade entre os gêneros

narrativos. A prioridade do mito advém do fato de ele se tratar mais de uma forma que orienta

um conteúdo – num sentido coletivo e compartilhado –, do que de um conteúdo que, por meio

de outra forma, serve a propósitos particulares.

*****

Mas voltemos às Mitológicas. Falávamos há pouco em deslocamentos populacionais.

Vejamos agora um exemplo de uma análise em que as transformações entre os mitos

implicam no confronto de um problema histórico. Para dar melhor expressão a este problema,

deixaremos de lado as ―grandes Mitológicas‖ e nos concentraremos no livro A Oleira

Ciumenta, a segunda das ―pequenas Mitológicas‖, publicado em 1985.

Antes de qualquer coisa, pode-se dizer que este foi um livro entrevisto diversas vezes

por Lévi-Strauss. O autor, em um curso do período letivo de 1964 e 1965 do Collège de

94

France intitulado ―Esboço para um bestiário americano‖, já delimitava o tema72

e, em uma

longa passagem n‘ A Origem dos Modos à Mesa ([1968] 2004), tocava em diversos aspectos

do problema que seria tratado em sua completude na obra de 198573

. Pode-se dizer, ainda, que

os anos que marcam as primeiras reflexões sobre o que viria a ser esta obra determinam

fortemente sua feição final. O livro reconstrói a ponte invisível que, n‘ A Origem dos Modos à

Mesa, ligou o universo mítico sul-americano ao norte-americano, que constituiu um passo

decisivo para o argumento de que a mitologia da América é uma só. As dimensões da obra

são mais modestas se a compararmos com as quatro ―Grandes Mitológicas‖. No entanto,

engana-se o leitor que imaginar que a complexidade da obra reduz-se tal qual as suas

dimensões. Pelo contrário, o livro, caso fosse escrito segundo o método proposto para os

quatro primeiro livros – ―que a exposição sintética reproduzisse tanto quanto possível o

procedimento analítico‖ (Lévi-Strauss [1964] 2004: 20) – teria facilmente as mesmas

dimensões destes. Os mitos extremamente resumidos e não indexados, a ausência de quadros,

gráficos, diagramas de transformações, índice remissivo, mapas e todos aqueles instrumentos

de análise com os quais nos acostumamos nas ―Grandes Mitológicas‖ torna a leitura muitas

vezes mais árdua que facilitada74

.

Entre os objetivos d‘A Oleira Ciumenta está o de tratar de problemas etnográficos a

respeito da persistência de uma armação lógica em lugares distantes (Lévi-Strauss [1985]

1986: 21). No capítulo ―Demiurgos Californianos‖ ([1985] 1986: 179-196), Lévi-Strauss se

depara com um problema cuja solução vamos acompanhar. Ao analisar mitos provindos de

populações californianas nos quais figuram demiurgos ceramistas, o autor aponta para uma

estranha homologia entre estes mitos e mitos provenientes dos índios tacana, da América do

Sul, que se referem aos hábitos do bicho-Preguiça:

72

Lá encontramos a frase: ―o pensamento mítico [...] maneja com perfeita familiaridade noções que, em nossa

sociedade, a psicanálise acabou de descobrir‖ (Lévi-Strauss [1984] 1991: 109). 73

―Um livro inteiro seria necessário para estabelecer uma tipologia desses personagens tapados ou furados, em

cima ou em baixo, na frente ou atrás, limitados a ingerir apenas líquidos ou fumaça [...], sem boca ou sem ânus e,

portanto, privados de funções digestivas‖ ([1968] 2006: 428). 74

No entanto, o procedimento continua a ser o mesmo: comenta-se um mito do início ao fim do livro – um mito

Jivaro sobre a origem da cerâmica. As conclusões são extrapoladas da análise de mitos locais para o pensamento

mítico. E, no fim, uma comparação dos temas da mitologia analisada com os temas da psicanálise cumpre o

roteiro seguido nos outros livros, o de sempre discutir aspectos da cultura ocidental diante do que foi aprendido

com os indígenas da América. Mas, no que diz respeito à mitologia, há uma diferença importante: se nas

―Grandes Mitológicas‖ tratava-se de mitos que tematizavam a passagem do fogo celeste aos humanos, na forma

de fogo de cozinha, a mitologia contida n‘A Oleira Ciumenta pressupõe este fogo como adquirido – a cerâmica,

afinal necessita do fogo para ser produzida –; tal mudança gera uma alteração em todo o campo mítico. Ao invés

de resultado de uma disputa entre a humanidade e os povos celestes – como no caso da aquisição do fogo – a

cerâmica é um benefício adquirido sem participação dos humanos no combate; embora envolva riscos. Os

protagonistas deste combate serão os seres celestes e seres subterrâneos (Lévi-Strauss [1985] 1986: 19-20).

95

―Em perfeita simetria com o Preguiça tacana, que deve descer da árvore em que vive

para defecar no solo de modo a evitar que seus excrementos se transformem em

cometas, Mukat e Wyot, para defecar, costumam subir para o alto de um poste e

seus excrementos, caindo no mar, fazem um barulho de trovão‖ (Lévi-Strauss

[1985] 1986: 191).

Esta semelhança levanta um problema, que é um dos pontos altos do livro: como

explicar que numa região onde não esteja presente, o lugar do Preguiça esteja ―marcado como

uma falta?‖ (Lévi-Strauss [1985] 1986: 192). Lembremos que o pensamento mítico apreende

a ―função excremento‖, por assim dizer, do Preguiça, de modo empírico – até este momento a

análise de Lévi-Strauss privilegiara mitos nos quais o pensamento mítico encadeava

proposições que ―encontrava‖ diretamente na realidade observável. Assim, ele tratou

inicialmente dos mitos Jivaro sobre a origem da cerâmica que levantaram um problema – o da

correlação entre ―ciúme‖, a ―cerâmica‖ e o pássaro ―Engole-vento‖ (Lévi-Strauss [1985]

1986: 33). A solução deste problema revelou a importância deste pássaro para a mitologia da

cerâmica e da olaria, e passou-se a investigar uma característica deste animal, a avidez oral,

enquanto categoria do pensamento indígena mobilizada pelos mitos para expor seus

problemas. Estabeleceu-se que o pássaro encontrava-se do ponto de vista lógico, empírico e

mítico em correlação de oposição com outro animal, o bicho Preguiça. Verificou-se que o

símio Bugio opõe-se ao Preguiça da mesma forma que este se opõe ao Engole-vento. E assim,

os três animais, por meio de características observáveis em seus hábitos, passaram a ser

entendidos como conformando um campo semântico triangular, dominado pelo Engole-vento

– avidez oral –, que se opõe aos dois mamíferos, Bugio e Preguiça – que conotam

incontinência anal e oral respectivamente, e se opõem, por este motivo, entre si (Lévi-Strauss

[1985] 1986: 160).

Não se pode dizer o mesmo sobre o modo como o demiurgo é apreendido pelo

pensamento mítico, pois os hábitos deste ser que pertence exclusivamente ao mundo do mito

não se dão a observação. Neste sentido, poder-se-ia advogar pelo primado lógico e histórico

dos mitos sul-americanos em relação aos norte-americanos – a versão sul-americana seria a

versão ―reta‖, em comparação à versão norte-americana. Mas isso coloca um problema: ao

contrário das situações descritas nos dois exemplos tratados acima, estamos em áreas que

distam milhares de quilômetros umas das outras. Neste caso, não seria possível recorrer ao

termo ―empréstimo‖, para descrever as relações entre os grupos cujos mitos se analisa, senão

por extrema liberdade de vocabulário. Qual é, então, a solução que Lévi-Strauss dá a este

problema?

96

Ora, não é a primeira vez que uma questão deste tipo surge nas análises lévi-

straussianas de mitologia. Ela já havia sido formulada n‘A Origem dos Modos à Mesa,

referindo-se à interpretação de um conjunto de mitos guianenses que se encontravam em

relação de homologia ou inversão sistemática com mitos pertencentes a diversas populações

da América do Norte. Nessa ocasião, Lévi-Strauss formula o problema como se segue:

―Como um mito tão diretamente ligado ao mel na América Tropical pode se

encontrar, idêntico até nos mínimos detalhes, numa região setentrional da América

do Norte, ligado, nesse caso, às bagas selvagens cuja posição semântica, como

vimos, se assemelha à do mel, mas que, do ponto de vista empírico são uma coisa

totalmente diferente? A mera recorrência do mesmo motivo entre os Warrau do delta

do Orinoco e os Ojibwa da região dos Grandes Lagos coloca um enigma. O enigma

se complica ainda mais pelo fato de a versão meridional se apresentar objetivamente

mais coerente do que a versão setentrional.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2004: 60).

Diante desta questão, Lévi-Strauss faz algumas especulações: pergunta-se sobre a

possibilidade de um mito ter ―viajado‖ no sentido inverso ao povoamento da América;

interroga a fontes históricas a fim de verificar a antiguidade da difusão das abelhas e do mel

na América do Norte – onde elas não são consideradas nativas, ao contrário da América do

Sul – e, voltando à possibilidade de um esquema mítico ter viajado no sentido contrário

daquele aceito como majoritário no povoamento do continente, complementa que, apesar do

progressivo recuo das datas de povoamento da América, não existe um único registro de uma

movimentação neste sentido (Lévi-Strauss [1968] 2004: 60-3). Assim, impossibilitado de dar

uma resposta para a relação entre mitos que distam milhares de quilômetros entre si, Lévi-

Strauss deixa a questão de lado: ―[d]eixemos por aí as especulações históricas e retornemos ao

terreno mais seguro da análise estrutural‖ (Lévi-Strauss [1968] 2004: 63).

Pois bem, n‘A Oleira Ciumenta a solução para um problema semelhante é diferente. O

próprio modo como a situação é descrita se modifica: ―façamos um breve recreio. Supondo-se

que o problema fosse real, quais seriam as soluções?‖ (Lévi-Strauss [1985] 1986: 193). E, em

seguida a este comentário, o autor aponta duas alternativas, ficando, ao final, com uma

terceira. A primeira é análoga a uma daquelas evocadas acima: o esquema mítico teria viajado

do Sul ao Norte da América e fez um movimento contrário ao da marcha migratória que

povoou o continente. Do mesmo modo como citamos acima, Lévi-Strauss afirma que este tipo

de migração não foi provado pela arqueologia até o presente, descartando tal hipótese ([1985]

1986: 194). A segunda hipótese afirma que um esquema suficientemente abstrato poderia ter

se desenvolvido na América do Norte e ter se transportado até o Sul, onde teria se deparado

com um animal que o encarnaria – algo como uma hipóstase mítica ([1985] 1986: 194). Em

97

seguida o autor admite que as duas hipóteses não se sustentam, e que são igualmente

―gratuitas‖ . Deixando de lado o recreio, coloca, então, sua verdadeira visão sobre o problema.

Para Lévi-Strauss, tanto na América do Sul, quanto na América do Norte, os:

―mitos podem dar uma expressão concreta a um esquema que reflete necessidades

mentais, suficientemente abstrato, para ter sido concebido em qualquer lugar sem

nada dever à experiência ou à observação. Mesmo que esse esquema já formado não

tivesse encontrado o preguiça nas florestas da América tropical e não tivesse

aproveitado essa chance de passar do abstrato para o figurativo, teria recorrido a

outras imagens ou então teria passado sem.‖ ([1985] 1986: 197).

Assim, o autor procura deslocar o problema para um nível mais profundo que se

relaciona de modo indireto com a experiência e a observação. Esta solução é particularmente

engenhosa e caminha para um nível mais elementar – mais estrutural, poderíamos dizer –,

pois considera que este esquema inter-americano ―suficientemente abstrato‖ tem duas

características comuns: de um lado, colocam a primazia da Lua sobre o Sol, do ponto de vista

lógico e histórico (ela teria sido criada antes dele); e de outro, são mitos em garrafa de Klein

(Lévi-Strauss [1985] 1986: 197-8), conclusão que é a ponte para que ele encaminhe o fim da

análise: estes mitos, a todo o tempo, por mais que as divergências de conteúdo apontassem

para coisas extremamente diferentes, estavam como que meditando sobre uma ocupação

social e as características psicológicas que lhe são atribuídas – a oleira ciumenta – e o

resultado de seu trabalho – a cerâmica enquanto recipiente. Nesta meditação, o pensamento

mítico considera o ceramista um modelo reduzido do demiurgo, e a cerâmica o mesmo para a

cultura. Objeto ambíguo, o pote de cerâmica contém a oposição natureza/cultura – num

momento é natureza, argila e em outro cultura: vasos e potes. Passa a conter em si a

transformação de que sofrera, processando o alimento/natureza (carne crua) em

alimento/cultura (cozido) (Lévi-Strauss [1985] 1986: 222). Como uma mitologia paralela à

estudada nas ―Grandes Mitológicas‖, a Oleira Ciumenta enquanto livro, é, ela mesma, um

modelo reduzido daquilo que foi demonstrado nos quatro grandes livros. A cerâmica chama o

pensamento a refletir sobre a relação conteúdo/continente. A transformação que sofreu para se

tornar objeto cultural, unida à transformação que opera dentro de si, é a própria imagem da

garrafa de Klein que é considerada a armação que une esta mitologia (Lévi-Strauss [1985]

1986: 218; cf. [1964] 2004, 6ª parte). Todas estas considerações são importantes e nos

interessam de perto, pois elas demonstram como a virada argumentativa de Lévi-Strauss é

significativa. Ao lidar com um espaço de analise distendido e descontínuo, o discurso do autor

evoca uma explicação em uma chave mais ―estrutural‖ que ―transformacional‖ – e isso vale,

98

em geral, para as conclusões de cada um dos volumes das Mitológicas, na medida em que este

é, sempre, o momento de ver o périplo desenvolvido de fora, ou melhor, de longe.

Discutimos nos capítulos anteriores a existência de uma clivagem no discurso

estruturalista a partir das análises dos mitos que se liga, exatamente, ao estudo de objetos que

se situam em um espaço contínuo – e definimos que era fundamental para a análise dos mitos

lidar com a transformação dos relatos entre povos vizinhos. Eis-nos aqui, às voltas com um

comentário de uma análise mitológica que ―resolve‖ um problema da co-relação de mitos

recorrendo ao conceito de estrutura. Neste caso, isso fica ainda mais claro quando Lévi-

Strauss afirma que os motivos evocados pelos mitos em questão – a sarabatana, o cachimbo,

os animais como o Engole-vento, o Preguiça, o Bugio, os demiurgos ceramistas que defecam

do alto de um poste – todos estes motivos são considerados:

―apenas realizações empíricas de uma estrutura formal subjacente da qual a avidez

oral, a retenção e incontinência anal [...] tornam perceptíveis [somente] alguns

aspectos. Pois, como notei a princípio, o campo semântico construído por meio dos

tubos naturais e de seus orifícios comporta um número maior de casas [...]. Os mitos

aqui considerados ilustram apenas alguns estados dessa combinatória.‖ ([1985]

1986: 204).

O próprio linguajar matemático desta conclusão gira em torno de uma noção algébrica

– a combinatória – característica das análises do início da carreira do autor. Assim, quanto

mais se amplia o espaço, distanciando-se das relações entre povos vizinhos, a análise

estrutural faz ―subir à superfície‖ uma outra faceta deste discurso contrapontístico que a

marca desde sempre (cf. Viveiros de Castro 2008: 108, ver pág. 30). Isso tem ainda outras

implicações para o nosso estudo. Neste tipo de análise Lévi-Strauss se detém sobre hipóteses

históricas de maior alcance. Esse movimento analítico se mostra diferente daquela micro-

história difusionista que descrevemos acima pelo fato afastar o problema da cronologia

recorrendo ao conceito de estrutura. Passaremos a abordar este aspecto das analises

mitológicas mais de perto a partir de agora.

*****

Em 1971, Lévi-Strauss concluiu a primeira fase – hoje o sabemos – de seu projeto de

análise da mitologia ameríndia com a publicação de L‟Homme Nu. Trata-se de um volume de

dimensões consideráveis, muito condensado e que, como o autor mesmo disse, ―contém a

matéria de dois ou três livros‖ (Lévi-Strauss & Eribon [1988] 2005: 186-7). Seja como for,

99

nesta obra, Lévi-Strauss procura fechar a análise que vinha se desdobrando ao longo dos

outros três volumes. Assim, ele procura demonstrar, entre outras coisas, que estas centenas de

mitos analisados formam um sistema fechado e que existe uma interpretação possível para os

contornos gerais deste sistema.

Grosseiramente, podemos dizer que Lévi-Strauss persegue estes objetivos em duas

partes de dimensões desiguais. Em primeiro lugar, delimitando uma área no Noroeste da

América do Norte – entre as bacias do rio Klamath e do rio Fraser – ele reencontra o mito do

desaninhador de pássaro Jê em uma versão (klamath, M529-30; Lévi-Strauss 1971 25-7 e

seguintes) que traz semelhanças literais com as versões do Brasil central (M1 e M7-12).

Procura, então, demonstrar que esta semelhança tem fundamentos estruturais e, assim, passa a

remontar os desenvolvimentos fundamentais das análises dos livros precedentes – em especial

O Cru e o Cozido e a passagem da mitologia da América do Sul à no Norte realizada em A

Origem dos Modos à Mesa – com outros materiais míticos. Essa demonstração toma as seis

primeiras partes do livro e consegue atestar, de um lado, que existe uma homologia entre

sistemas míticos muito distantes – no Brasil Central e no noroeste da América do Norte – e,

de outro, que a mitologia da América possui uma forte unidade e solidez estrutural.

É de se notar que este livro tem um caráter nomotético mais pronunciado – para usar

um termo que mencionamos acima. Lévi-Strauss faz, deliberadamente, experiências com os

mitos e com os sistemas míticos, de modo a confirmar a validade de suas análises anteriores.

Pois, como nos diz o autor,

―si l‘analyse structurale des mythes prépare l‘avènement d‘une anthropologie

scientifique, il faut que comme tout science, celle-ci permette de monter des

expériences pour contrôler sés hypothèses et déduire, à partir des principes qui la

guident, des propriétés encore inconnues du réel; autrement dit, de prévoir ce qui,

dans des conditions expérimentales donnés, doit nécessairement se passer.‖ (Lévi-

Strauss 1971: 133-4)75

Impressiona o modo como o autor restitui, por meio de materiais diversos, uma série de

demonstrações que ocuparam os volumes anteriores – fazendo a passagem dos mitos do

desaninhador de pássaros aos mitos de origem da carne e dos adereços; registrando as

transformações destes mitos em mitos de origem do fogo e da água; refazendo as conexões

75

Lévi-Strauss fará outras afirmações neste sentido, por exemplo: ―Car la deuxième loi de la thermodynamique

ne s‘applique pas au champ des opérations mythiques: les procès y sont réversibles et l‘information qu‘ils

véhiculent ne se dégrade pas; elle passe simplement à l‘état latent. Mais elle demeure toujours récupérable...‖

(Lévi-Strauss 1971: 190)

100

entre os mitos do desaninhador e os mitos de origem da vida breve, do veneno, da cor dos

pássaros e assim por diante, num jogo de espelho transcontinental.

Seguindo esta série de demonstrações a sétima parte, ―L‘Aube des Mythes‖ inicia-se

com um movimento um diferente. No primeiro capítulo ―Les opérateurs binaires‖, trata-se de

analisar a predileção dos ameríndios por certos zoemas (imagens de animais que o

pensamento mítico utiliza) para certas operações lógicas. Atravessando rapidamente o espaço

americano, Lévi-Strauss demonstra a solidez deste macro-sistema mítico por outros meios: os

―operadores binários‖, animais como a raia, a mariposa, a formiga, a galinha do mato, e o

esquilo são indispensáveis para certas operações do pensamento mítico e o recurso ao seu

simbolismo ultrapassa as diferenças culturais, lingüísticas, de meio ambiente etc., que marcam

todo o território do Novo Mundo76

.

A demonstração – da unidade da mitologia ameríndia – tem lugar especial no

apoteótico capítulo ―Le Mythe Unique‖. Primeiramente, Lévi-Strauss resume alguns dos laços

analíticos fundamentais que definiram esta longa ―empreitada‖, caracterizada pelos

levantamentos ―em rosácea‖. Levantamentos que, de curtos e pontuais, em O Cru e o Cozido,

tiveram suas dimensões ampliadas em Do Mel às Cinzas, até o momento crucial, em A

Origem dos Modos à Mesa, em que se ampliou definitivamente a escala de analise, passando

dos mitos da América do Sul aos da América do Norte. Ao passo que em L‟Homme Nu:

―Des va-et-vient accélérés, joint à la multiplication des perspectives et à celle des

angles d‘attaque, ont permis de consolider ce qui, au début, pouvait apparaître

comme l‘union lâche et précaire de lambeux dissemblables par la forme, la texture et

la couleur. Les coutures et les reprises, méthodiquement suppléés aux endroits

faibles, ont finalement produit un ouvrage homogène où les contours s‘ajustent, les

nuances se fondent et se complètent; des pièces qui semblaient d‘abord disparates,

une fois trouvés la place revenant à chacune et le rapport qui l‘unit à ses voisines,

présentent l‘aspect d‘un tableau cohérent. Pour gratuits, bizarres, absurdes même

qu‘ils aient pu paraître au début, les moindres détails y reçoivent une signification et

une fonction.‖ (Lévi-Strauss 1971: 503)

Confrontando esta solidez Lévi-Strauss se uma pergunta fundamental: qual a origem e

a razão de ser, qual a história do quadro geral delineado até então? Para responder a esta

questão, o autor inicia uma demonstração interessantíssima. Ele constata que, no coração da

região para onde a análise espontaneamente se dirigiu, os grandes temas reconhecíveis em

76

―D‘un bout à l‘autre du Nouveu Monde, on dirait que des peuples parlant des langues, menant des genres de

vie, praitquant des usages et des coutumes qui n‘offrent pourtant rien de commun, cherchèrent tenacement à

repérer sous les climats les plus divers, certaines formes de vie animale (et sans doute est-ce vrai des outres

règnes), à les suivre pour ainsi dire à la trace, assimilant chaque fois qu‘ils le pouvaient des espèces, des genres

ou des familles, afin de maintenir à tel ou tel d‘entre eux le rôle d‘algorithme au service de la pensée mythique

pour effectuer les mêmes opérations.‖ (Lévi-Strauss 1971: 481).

101

toda América se apresentam de modo, pode-se dizer, natural, empírico. E segue, então, todo o

desenvolvimento final da primeira fase das Mitológicas – já que o ―Finale‖ propriamente dito

é mais um acerto de contas do autor com seus críticos e seus inspiradores. Centrando-se em

um microcosmo mítico, em uma região ainda mais reduzida que aquela trabalhada no restante

do livro, Lévi-Strauss encontrará as versões mais fortes – aquelas em que as oposições são

mais marcadas – do mito do desaninhador de pássaros entre os índios Coos e seus vizinhos

Alsea, Tilamook, Takelma e Quinault (mais a noroeste, em área Sahlish).

―Depuis le début des ces Mythologiques, nous avons connecté beaucoup de thèmes.

D‘abord celui du dénicher avec l‘origine du feu; puis l‘origine du feu avec celle de

la viande et du tabac; ces origins ensemble avec celles des plantes cultivées et de la

vie brève; enfin, pour conclure le premier volume, la création d‘un ordre culturel

manifesté par la cuisine et les autres arts de la civilization, corrélative avec la

création d‘un ordre naturel manifesté par les différences spécifiques entre les

animaux, et sortout par la couleur des oiseaux.

Or, nous venons de retrouver côte à cotê, concentrés dans une région restreinte,

des mythes qui réalisent directement ces connexions par paires et qui, de plus, sont

tous connectés entre eux. Certains associent l‘histoire du dénicheur à l‘origine des

produits alimentaires et de la cuisine, d‘autres associent la guerre des terriens contre

les célestes (qui permit d‘obtenir le feu de cuisine) à l‘origine de la vie brève pour

les humains, et à celle des différences spécifiques entre les animaux. D‘autres encore

démontrent, de façon concrète, les rapports de symétrie que nous avions inférés

entre l‘histoire du dénicheur et celle des épouses des astres. Enfin, les derniers

mythes qui viennent d‘être présentés rassemblent en un récit unique l‘histoire des

épouses des astres, et celle de la guerre des terriens contre les célestes d‘où provint

la conquête du feu.‖ (Lévi-Strauss 1971: 524)

Assim, estes mitos atestam empiricamente aquilo que fora demonstrado de maneira

hipotético-dedutiva nos outros volumes. E eles fecham o sistema. Lévi-Strauss então

considera que os mitos do Brasil Central e aqueles da chamada região oregoniana apresentam

as formas extremas do conjunto, se opondo, e tendo como formas intermediárias, os mitos das

Planícies norte-americanas (Lévi-Strauss 1971: 526-9, ver figura 15). Apresenta então, um

gráfico em que as oposições evocadas pelos mitos dos dois sub-continentes são sobrepostas à

maneira de um corte geológico – os mitos sul-americanos apresentariam a forma erodida deste

aclive mítico, enquanto as formas norte-americanas teriam permanecido não erodidas – de

modo a condensar visualmente as análises dos quatro livros (ver figura 16).

―Ainsi se clôt un vaste système, dont les éléments invariants peuvent toujours être

représentés sous la forme d‘un combat entre la terre et le ciel pour la conquête du

feu. Ce combant oppose parfois des peuples entiers, habitants respectifs des deux

mondes; ou il prend la forme plus modeste de l‘exil temporaire d‘un héros au

sommet d‘un arbre ou d‘une paroi rocheuse – soit tout de même vers le ciel – d‘où il

redescendra pour devenir le maître du feu (M1, M7-12). Mais, même dans ces cas

extrêmes, des constantes se maintiennent: l‘une, d‘ordre sociologique, repose sur

une analogie entre les peuples ennemis et des alliés par mariage. [...].

102

L‘autre constante est d‘ordre cosmologique, car toutes les versions du mythe,

même les plus faibles, la préservent: les protagonistes klamath-modoc ont des

affinités célestes, l‘un avec le soleil, l‘autre avec la lune; et ces affinités persistent

jusque dans les mythes gé où les moitiés sociologiques, dont relève chaque

protagoniste, comptent soit le soleil, soit la lune parmi leurs emblèmes [...].‖(Lévi-

Strauss 1971: 535)

Isso faz com que Lévi-Strauss conclua que o quadro delineado pela análise de

centenas de mitos expõe o funcionamento do pensamento. Mitos que atravessam

continuamente quase todo o território do Novo Mundo – mas sempre analisados em sistemas

distintos, que invariavelmente se reduzem uns aos outros, como acabamos de ver – podem ser,

eles mesmos, reduzidos ao enunciado de uma oposição, ou melhor, ―à l‘énoncé de

l‘opposotion comme étant la première de tout les donnés‖ (Lévi-Strauss 1971: 539). No caso

deste sistema mítico a oposição inicial é aquela entre o céu e a terra, pólos entre os quais não

pode se conceber paridade. Se o fogo, coisa celeste, está na terra, instaura-se um mistério:

forçosamente, foi necessário que ele fosse trazido de cima a baixo (Lévi-Strauss 1971: 538-9).

E assim, ―[i]nhérente au réel, cette disparité met la spéculation mythique en branle; mais

parce qu‘elle conditionne, en deçà même de la pensée, l‘existence de tout objet de pensée‖

(Lévi-Strauss 1971: 539)77

.

Como acabamos de ver, a explicação de Lévi-Strauss sobre o resultado de sua obra – o

quadro final completado por esta análise microcósmica – deslocou suas conclusões,

progressivamente, para um nível cada vez mais estrutural78

. Ao fim, a mitologia é tomada

como um todo. As oposições elencadas por sistemas míticos distantes são reduzidas ao

essencial. Não interessa uma perspectiva historiográfica: é da gênese do mito, do ponto de

vista do pensamento, que se fala.

Entretanto, estas colocações não explicam como a análise dos mitos – que se conduz a

si mesma – partindo do Brasil Central, e dos mitos Bororo e Jê, tenha atingido um ponto da

América do Norte tão peculiar – a região ―oregoniana‖ – caracterizado pela presença, em um

espaço reduzido, de uma diversidade de pequenos grupos humanos diferentes em todos os

aspectos, lingüísticos, tradicionais, e culturais. Isso porque ali encontram-se representantes de

quase todos os grupos culturais aborígenes da América do Norte.

77

E isso ajuda, inclusive, a precisar a relação entre o pensamento mítico e a infra-estrutura, um dos assuntos

abordados em nosso capítulo 2: ―Un appareillage d‘oppositions, en quelque sorte monté d‘avance dans

l‘entendement, fonctionne quand des expériences récurrentes, qui peuvent être d‘origine biologique,

technologique, économique, sociologique, etc. [...] Pareillement sollicitée par de telles conjonctures empiriques,

la machinerie conceptuelle se mete en marche; de chaque situation concrète, si complexe soit-elle, elle extrait

inlassablement du sens, et fait d‘elle un objet de pensée en la pliant aux impératifs d‘une organisation formelle.‖

(Lévi-Strauss 1971: 539) 78

Para o campo de uma filosofia-cognitiva, poderíamos dizer, ―Le problème de la genèse du myth se confond

donc avec celui de la pensée elle-même...‖ (Lévi-Strauss 1971: 539).

103

Felizmente, Lévi-Strauss não se furta a responder tal questão. Para tanto, ele oferece

duas hipóteses por desenvolvimento: ou esta região seria o berço da mitologia americana,

guardando as formas míticas mais conservadas de todo solo arqueológico escavado pela

análise estruturalista – ―Recueillant et mettant bout à bout ces morceux, nous aurions

patiemment reconstitué ce système tout au long de notre entreprise, remontant pas à pas

jusqu‘à sa source où, sous un état enconre relativement intact, nous l‘aurions enfin retrouvé.‖

(Lévi-Strauss 1971: 541) –; ou, ao contrário, para esta região teriam convergido temas

dispersos em outros sistemas mitológicos que ali se materializaram de modo conciso –

―Virtuels partout ailleurs, des mythes réduits à des états du système, seulement à une époque

et dans un lieu seraient parvenus à s‘articuler et à s‘organizer pour engendrer ici un mythe

vivant‖ (Lévi-Strauss 1971: 541). Em um caso, percorrer-se-ia o sistema do centro à periferia;

no outro, no sentido oposto. Dado que o sistema é ―fechado‖ e possui uma ―curvatura

intrínseca‖, em ambas as situações ele seria percorrido em sua completude: assim, ―[d]ans une

situation de ce genre, on ne saurait préciser se l‘on descend ou remonte le cours du temps‖

(Lévi-Strauss 1971: 541-2). E, assim, o autor, que havia apresentado duas hipóteses, como de

hábito, fica com uma terceira:

―quand on s‘élève à un niveau suffisamment général pour contempler le système du

dehors et non plus du dedans, la pertinence des considérations historiques s‘annule,

en même temps que s‘abolissent les critères permettant de distinguer des états du

système qu‘on pourrait dire premiers ou derniers.‖ (Lévi-Strauss 1971: 542)

A afirmação é enigmática, ainda mais na medida em que se complementa, logo em

seguida, que a análise estrutural dos mitos recupera o tempo perdido evocado pelos mitos:

uma ordem temporal com que sonham os próprios relatos, que fala de ―um tempo mais do que

recuperado, suprimido‖ (Lévi-Strauss 1971: 542) 79

. Acredito que esta colocação possa ser

melhor compreendida, embora perca um pouco de seu sabor poético, se voltarmos a um

―episódio‖ das Mitológicas analisado acima, cujo desfecho deixamos em suspenso

propositadamente: ―As lições do porco-espinho‖. Citando Saussure, Lévi-Strauss afirma que:

―a ligação que se estabelece entre as coisas preexiste, nesse campo, às próprias coisas, e serve

para determiná-las‖ (Lévi-Strauss: [1968] 2006: 237). Ou seja, se se remonta as ligações

79

São belas as palavras: ―Ainsi se pourrait-il que la plus ingrate des quêtes reçût sa récompense: celle d‘avoir,

sans le chercher ni l‘atteindre, déterminé le lieu de cette terre anciennement promise où s‘apaiserait la triple

impatience d‘un plus tard qu‘il faut attendre, d‘un maintenant qui fuit, d‘un vorace autrefois qui attire à lui,

désagrège, effondre le futur dans les ruines d‘un présent au passé déjà confundu. En ce cas, notre recherche

n‘aurait pas été seulement celle du temps perdu. Car cet ordre du temps que l‘étude des mythes dévoile n‘est

autre, en fin de compte, que l‘ordre rêvé depuis toujours par les mythes eux-mêmes: temps mieux que retrouvé,

supprimé...‖ (Lévi-Strauss 1971: 542)

104

primordiais às coisas, que lhas antecipam, restitui-se uma ordem de tempo absoluta, que

contém as coisas futuras em potencial. Neste caso preciso, os mitos da ―redação porco-

espinho‖ podem se dizer derivados daquele das ―esposas dos astros‖, mas o fato de o sistema

mítico das ―esposas dos astros‖ já conter a possibilidade de existência da ―redação porco-

espinho‖ anula a real pertinência de uma consideração temporal. Num certo sentido, os mitos

existem desde que existam as relações que os antecipam.

Restaurado o macro-sistema virtual que precede à existência de centenas de mitos,

pode-se dizer que estes mitos, e mesmo aqueles que não vieram a se atualizar, existem em

potência, desde a origem do sistema80

. O que lhes dá a mesma idade relativa, considerando-se

a virtualidade comum de todas as possibilidades. O tempo da estrutura será ―sempre um

tempo de atualização‖81

.

Mas então uma observação se faz necessária. Não falávamos, há pouco, de um tempo

relativo a ser extraído da relação entre os recitais míticos? Como conjugar este tempo relativo

das e às transformações ao tempo absoluto da estrutura? Talvez poderíamos dizer que não se

trata de fazer uma síntese, mas de constatar os dois movimentos, inerentes à análise estrutural,

segundo a distância em que ela relacione os objetos. O tempo estaria sempre subordinado a

um espaço, seja o analítico e absoluto, das estruturas, seja o real e relativo das formas atuais.

De qual quer forma, do ponto de vista em que se coloca neste capítulo, Lévi-Strauss está

interessado em afirmar a solidez de uma mitologia em relação à contingência:

―Poussée jusqu‘à son terme, l‘analyse des mythes atteint un niveu où l‘histoire

s‘annule elle-même. […] tous les peuples des deux Amériques semblent n‘avoir

conçu leurs mythes que pour composer avec l‘histoire et rétablir, sur le plan du

système, un état d‘équilibre au sein duquel viennent s‘amortir les secousses plus

réelles provoquées par les événements. Sinon, comment comprendre que ces

éléments du système désignés par nous sous le nom d‘opérateurs binaries – oiseaux

80

Para uma análise semelhante cf. Lévi-Strauss ([1968] 2006: 90-2). Comentando a figura 7, neste livro, o autor

afirma: ―Poderíamos multiplicar os exemplos de mitos provenientes da mesma região ou vizinhas, que

transformam os motivos da mulher-grampo (que já é transformação de uma rã) no da origem das manchas da lua

e também do próprio astro. Consequentemente, a curva mitológica se fecha e permite encontrar, a partir de

qualquer versão, todas as outras arranjadas na ordem ‗natural das transformações que as engendram, Contudo, é

preciso notar que esta curva complexa – cujos dois contornos, traçados no plano dos eixos perpendiculares,

acompanham a superfície ideal de uma esfera – delimita um campo semântico difuso no qual seria possível

situar, em qualquer ponto no interior da esfera, mitos já estudados, simplesmente conhecidos ou mesmo

possíveis‖ (ver figura 17). 81

Cf. Deleuze [2002] 2008: ―Portanto, a posição do estruturalismo relativa ao tempo é bastante clara: o tempo é

sempre um tempo de atualização, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos, os elementos da coexistência

virtual.‖ Mas em seguida o autor completa: ―O tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas

atualizações, e não de uma forma atual a outra forma. Ou, pelo menos, o tempo concebido como relação de

sucessão de duas formas atuais contenta-se em exprimir abstratamente os tempos internos da estrutura ou

estruturas que se efetuam em profundidade nessas duas formas, e as relações diferenciais entre esses tempos.‖

(Deleuze [2002: 251-2] 2008: 232) Mas não vimos que existe um tempo relativo às formas atuais? Seria então

possível dizer que nas Mitológicas não se reconhece mais o estruturalismo?

105

gallinacés, poissons plats, papillons et autres insects, sciuridés, etc. – conservent leur

fonction sémantique d‘un bout à l‘autre des deux Amériques, sans qu‘il faille jamais

tenir compte, pour expliquer cette résistance, des innombrables bouleversements

démographiques et culturels qui sont intervenus au cours des siècles? (Lévi-Strauss

1971: 542-3)

É a partir desta unidade e solidez do sistema mítico que Lévi-Strauss passará a fazer

considerações que contrastam este quadro geral da mitologia com hipóteses históricas de larga

escala, que partem, justamente, dos fatos de difusão inventariados nas análises dos mitos. Pois

esta solidez e esta unidade necessitam que se repense as hipóteses acerca do povoamento do

continente já que os mitos colocam em evidência as relações de contato, e os fatos de

empréstimo, entre os diversos povos da América em um tempo pré-histórico. É neste sentido

que o autor pode afirmar que houve um rápido povoamento do continente; que não é de se

descartar que possam ter ocorrido movimentos populacionais no sentido inverso à marcha

demográfica principal – majoritariamente norte-sul –; que o continente era caracterizado por

alta mobilidade de homens, e consequentemente, de idéias, já que, e este é o ultimo ponto, as

populações ameríndias parecem ter ocupado o continente no passado, como um gás que se

dilata até ocupar todo o volume de um recipiente. Apesar das enormes distâncias, as relações

culturais seriam a marca daquilo que no instante em que se chamou de Novo Mundo,

interrompeu-se o seu próprio devir (Lévi-Strauss 1971: 542-3)82

. Diante destas observações,

Lévi-Strauss pode afirmar que seria possível que toda criação original repercutisse por contato

direto nos outros lugares.

Assim, o autor compara a composição deste agregado de populações à composição de

uma barra de metal que resiste a certas contingências, sem que a estrutura de suas moléculas

82

Devemos lembrar que no início do livro, ao narrar o mito klamath do desaninhador de pássaros, Lévi-Strauss

tratava com algum desdém as questões demográficas às quais retorna neste capítulo. Na ocasião ele dizia: ―On

nous dira: soit, un groupe de mythes provenant de l‘Amérique tropicale se retrouve intact dans une région

septentrionale de l‘Amérique du Nord. Mais, qu‘est ce que cela prouve, sinon que l‘Amérique a été peuplé par

des vagues successives d‘émigrants venus d‘Asie, qui transportaient avec eux des mythes dont certains

demeurent reconnaissables à plusieurs exemplaires ici et là?‖ (Lévi-Strauss 1971: 32) É ainda mais notável que,

retirando o nós de modéstia francês, no ―Finale‖, Lévi-Strauss comece se indagando, precisamente, sobre o fato

de ter tomado a América a ―contrapelo‖, no sentido contrário dos movimentos migratórios pré-históricos: ―En

considérant rétrospectivement mon travail, une première chose me frappe d‘autant plus qu‘elle ne répond pas à

une intention délibérée de ma part. En commençant l‘enquête par des myhtes de l‘hémisphère sud, et en la

déplaçant progressivement vers des régions septentrionales et occidenntales de l‘hémisphère nord, j‘ai pris, en

quelque sorte, l‘Amérique à contre-poil, son peuplement s‘étant, de tout évidence, fait en majeure partie dans le

sens inverse‖ (Lévi-Strauss 1971: 563-4). Nessa última ocasião, o autor acrescenta que um motivo que lhe ocorre

para ter feito este percurso inverso é o de que a mitologia sul-americana, apesar e mesmo devido ao estado de

pobreza do material etnológico, mostrava com mais facilidade os contornos essenciais do conjunto que ele viria a

explorar, enquanto a mitologia norte-americana poderia fazer com que ele se perdesse em detalhes que o

levariam a outras considerações. Será que podemos depreender disso que Lévi-Strauss, em um certo sentido, leu

a mitologia norte-americana pelas lentes da sul-americana? Provavelmente sim, mas teríamos que ser

especialistas na mitologia da parte norte do continente para avaliar as consequências desta estratégica analítica.

106

se veja alterada83

. É neste sentido que Lévi-Strauss vai falar da ―ilusão funcionalista‖84

que

consiste em acreditar que os limites práticos da pesquisa etnográfica correspondem aos limites

de compreensão de seu objeto. Pois o que o estudo das relações entre os mitos demonstra é o

fato de que as relações entre os homens vão muito além dos limites de suas aldeias. Lévi-

Strauss expõe, em seguida, duas modalidades de interação entre as culturas: de um lado, um

campo ―forte‖ de interações, caracterizado por eventos como epidemias, guerras e revoluções

– campo ao qual mais se dá mais atenção na literatura – cujos efeitos se fazem sentir de modo

esporádico, intermitente; e de outro, um campo de interações ―fracas‖, cuja freqüência é, ao

contrário, muito mais alta. Este tipo de interação é constituído por eventos como visitas,

encontros, casamentos – nos quais se também se ―troca‖, por assim dizer, mitos. E é este

segundo tipo de movimento que mantém o campo das interações humanas em agitação

permanente.

São estas características da interação entre os grupos ameríndios que faz com que

Lévi-Strauss afirme que a mitologia, como um todo, procura ―amortecer‖ os efeitos da

passagem do tempo. É a plasticidade do mito que garante sua eficácia ―contra‖ a história:

―Il n‘est donc pas contradictoire de reconnaître que chaque population américaine a

vécu pour son propre compte une histoire très compliquée, et qu‘elle a cherché

constamment à neutraliser ces avatars, en remaniant ses mythes dans une mesure

compatible avec les constraintes des moules traditionnels auxquels ils devaient

toujurs s‘adapter. Une histoire déjà amortie par ce travail interne réagit au dehors sur

des productions similaires, des ajustements s‘opèrent ou des oppositions nouvelles

s‘engendrent, transférant sur d‘autres plans le bilan perpétuel des similarités et des

contrastes. A l‘occasion des rencontres intertribales, des mariages, des transactions

commerciales ou des captures guerrières, toutes ces ractifications se déclenchent en

chaîne et se propagent à contre-courant, beaucoup plus rapidement que les grands

accidents que scellent le destin des peuples. A peine ébranlé en un point, le système

cherche son équilibre en réagissant dans sa totalité, et il le retrouve par le moyen

d‘une mythologie qui peut être causalement liée à l‘histoire en chacune des ses

parties mais qui, prise dans son ensemble, résiste à son cours, et réajuste

constamment sa propre grille pour qu‘elle offre la moindre résistance au torrent des

événements qui, l‘expérience le prouve, est rarement assez fort pour le défoncer et

l‘emporter dans son flux. (Lévi-Strauss 1971: 545-6)

E não será demais lembrar que, se a mitologia anula a história, ela igualmente anula o

sujeito, como Lévi-Strauss afirma no começo do ―Finale‖, de L‟Homme Nu (1971: 559-63).

Assim, ela dissolve, simultaneamente, estes dois avatares do pensamento ocidental.

83

―La physique des métaux aide à comprendre comment un jeu très faible entre les molécules d‘un corps rigide

suffit pour que se modifie l‘arrangement général sans que l‘aspect et les ppropriétés externes du corps lui-même

changent, quand une tension dépassant un certain seuil s‘exerce en un point déterminé.‖ (Lévi-Strauss 1971:

544-5). 84

―l‘illusion créée de toutes pièces par les fonctionnalistes.‖ (Lévi-Strauss 1971: 545).

107

Conclusão

“Colocarei em seu cofre documentos

relativos às remanescentes sociedades

primitivas em vias de desaparecimento,

exemplares de espécies vegetais e animais

próximas de serem aniquiladas pelo

homem, amostras de ar e água ainda não

poluídos pelos dejetos industriais, notas e

ilustrações sobre lugares que brevemente

serão destruídos por instalações civis ou

militares.

Lévi-Strauss, 1965

Neste trabalho procuramos descrever e analisar, pontualmente, o modo como a análise

estrutural dos mitos de Lévi-Strauss, nas Mitológicas e em alguns textos que estão no seu

―entorno‖, é capaz de propor hipóteses históricas a respeito das relações entre as populações

indígenas da América. Mais do que isso, procuramos descrever as possibilidades de uma nova

historiografia: uma historiografia que é resultado direto das próprias características dos mitos

enquanto documentos históricos. Desenvolvemos, assim, uma leitura alternativa da obra de

Lévi-Strauss de forma a iluminar a relação entre binômios aparentemente antipodais – como

estrutura e história, estrutura e evento – procurando problematizar uma dimensão altamente

negligenciada de seu trabalho. Dimensão esta que, só recentemente – como veremos mais

abaixo –, começou a ser explorada com a devida atenção. Assim, esperamos que uma

discussão sobre a face historiográfica do estruturalismo tenha permitido compreender

aspectos secundários, mas não menos importantes deste método antropológico, que podem

contribuir para redimensioná-lo (neste sentido cf. Goldman 1999: 3).

108

Como vimos, a história que se pode fazer através dos mitos, por meio do método

estrutural é uma história ―espacializada‖. Ela articula a historicidade particular de relatos

profundamente enraizados na intra-estrutura técnico-econômica e social das sociedades em

que foram recolhidos. As possibilidades desta história são diretamente proporcionais à

dimensão dos grupos de transformação que Lévi-Strauss constituiu. Assim, quando estes

grupos articulam mitos de um espaço geográfico circunscrito, como nos exemplos que

discutimos a partir da descrição das análises intituladas o ―Rondó do Caititu‖ e ―As instruções

do porco-espinho‖ (cap. 3, 80-88), Lévi-Strauss sugere hipóteses a respeito do sentido de

difusão destas narrativas que estabelece uma cronologia relativa entre os recitais míticos.

Vimos, além disso, que este tipo de hipótese pode ser feita ora partindo de elementos

exclusivos aos mitos, ora articulando às relações de transformação entre as narrativas a

informações externas ao âmbito do mito.

Quando, ao contrário, os grupos de transformação articulam mitos de espaços

distantes, vimos surgir um problema histórico – ―como explicar relações que se supõe de

empréstimo entre narrativas situadas tão distantes no espaço?‖ – ou seja, a própria concretude

de um sistema mitológico, que pode atingir dimensões continentais, faz com que Lévi-Strauss

contraponha esta mesma concretude a problemas históricos de longo alcance. A relação entre

mitos distantes permite, assim, que se caracterize a pré-história da América indígena como

marcada por empréstimos culturais entre povos que não se ousava aproximar até então –

como aqueles das terras baixas e altas, por exemplo. Permite, inclusive, que se avente a

hipótese de um povoamento rápido do continente, através da dispersão populacional dos

grupos de caçadores e coletores que um dia adentraram em terras americanas pelo estreito de

Bering (cap. 3: 104; Lévi-Strauss 1971: 542-3). Este dois aspectos das analises mitológicas

demonstram como ―a analise estrutural [pode abrir] [...] perspectivas no terreno da geografia e

da história‖ (Lévi-Strauss [1973f] 1993: cap. V, p. 74; cf. capítulo 2, p. 49 e seguintes).

Por outro lado, notamos também como Lévi-Strauss procurou explicar a unidade da

mitologia americana a partir de considerações mais estruturais, que ressaltam as dimensões

mais elementares, pode-se dizer, destes grupos de transformação. O caso descrito dos

―Demiurgos Californianos‖ é um exemplo deste tipo que discutimos acima (cap. 3: 93 e

seguintes). Ele leva o autor a ressaltar o esquematismo fundamental, que os mitos da Oleira

Ciumenta desenvolvem – ―são mitos em garrafa de Klein‖ (cap. 3: 96; Lévi-Strauss [1985]

109

1986: 218). Como vimos, isso ocorre também ao final de L‟Homme Nu (cap. 3: 104 e

seguintes; Lévi-Strauss 1971: 535).

Este jogo entre a transformação e a estrutura no vocabulário analítico de Lévi-Strauss

nos foi sugerido pelo artigo sobre ―O desdobramento da representação nas artes da Ásia e de

América‖ que discutimos no capítulo 1. Este capítulo, aparentemente deslocado do conjunto,

serviu-nos de ponto de partida para discutir os diversos tipos de comparativismo possíveis por

meio do método estrutural, e dos diferentes resultados enfatizados em cada tipo. Portanto,

com esta análise, menos do que estabelecer uma descontinuidade radical no discurso lévi-

straussiano, pretendíamos justamente relacionar a ênfase na presença de um ou outro tipo de

explicação – a estrutural ou a ―transformacional‖, por assim dizer – com a distribuição

geográfica e a possibilidade de se supor uma história comum aos povos cujos analisados. Em

ambos os casos, pretende-se extrair, da comparação, uma significação que se mostrou

fortemente determinada pela relação concebível entre os objetos de analise.

Como se nota, ao longo deste trabalho, e mesmo agora em sua conclusão, passamos

diversas vezes de um discurso sobre o mito para um discurso sobre a estrutura – e vice-versa.

Menos do que uma imprecisão ou descuido de nossa parte, esta espécie de decalagem

discursiva se explica na media em que – como foi descrito no capítulo 2 – para o

estruturalismo, os mitos se definem a partir de uma certa noção de estrutura. Considerados

como ―o conjunto de suas versões‖, eles existem, assim, mais na passagem de uma versão a

outra, ou mais precisamente, mais na transformação entre as versões, do que como entidades

substanciais. Assim, o mito se mostra como ―bom para pensar‖ a relação entre estrutura e

história, entre estrutura e evento – qualidade que, como se vê, está ligada diretamente ao

aspecto transformacional da noção de estrutura. Desse modo, esta interpretação do

estruturalismo não se baseia no estabelecimento de mais um dualismo antipodal e absoluto.

Ao contrário, ela procura enfatizar, justamente, a inter-relação, necessária entre estes dois

conceitos definidores de seu método de analise: estrutura e transformação.

Voltemos ao difusionismo estruturalista. Vimos no capítulo 2 que a própria fórmula

canônica descreve não só a transposição de um limiar de compreensão de um esquema mítico,

mas, por isso mesmo, se refere a um fato histórico – ―a um evento que ocorreu no tempo‖

(Lévi-Strauss [1994] 2001: 314) – embora não seja possível precisar quando. Como ressaltou

Manuela Carneiro da Cunha em um ensaio recente, nestes casos, ―a difusão dos mitos parece

[...] ser simplesmente uma constatação que Lévi-Strauss atribui aos acidentes da história e à

110

qual não atribui valor explicativo‖. Contudo, em seguida a esta afirmação, a própria autora

ressalta que ―essa difusão se tornou, com o conjunto das Mitológicas, indispensável ao seu

método‖ ([2008] 2009: 115). Vimos que, pelo menos em um dos casos analisados neste

trabalho, pôde-se observar uma virtude explicativa inerente ao estabelecimento de uma

cronologia relativa entre as versões: ela foi fundamental para fixar um aspecto da posição

irregular que M1 ocupa no seio do conjunto dos mitos de origem do fogo das populações do

Brasil Central, já que esta análise permite compreender que M1 faz alusão aos dois aspectos

da aliança, contendo dois pares de cunhados (cap. 3: 83; Lévi-Strauss [1964] 2004: 126). Por

outro lado, embora não tenha sempre um valor explicativo interno à análise mitológica, o

estabelecimento deste tipo de cronologia permite, por exemplo, o diálogo entre o estudo dos

mitos e ciências técnicas como a arqueologia – já que é possível aventar hipóteses a respeito

de deslocamentos populacionais ou relações de influência cultural. Hipóteses estas que podem

alcançar, assim, uma profundidade cronológica de alguns milênios (cap. 3: 80-93). A análise

estrutural dos mitos revela-se, e isso não deve ser subestimado, como uma fonte potencial de

acesso a tão desconhecida pré-história do Novo Mundo.

O fato de as transformações mitológicas possuírem um sentido, ao mesmo tempo,

histórico e lógico, permite que abordemos um outro problema. Através desta constatação,

podemos oferecer um argumento em favor da existência real e empírica destes grupos míticos

de transformação, na medida em que eles lidam com um espaço concreto e real de interações

culturais – suposto pela história comum dos povos que dele compartilham – embora o espaço

destas interações varie, como vimos, de unidades como ―Brasil Central‖ e o ―crescente

setentrional‖, ao ―Novo Mundo‖. Este argumento que pode ser contraposto àquele de Terence

Turner que advoga em favor da abstração total dos dados dos contextos pragmáticos de onde

são extraídos (Turner 1990: 565) em pelo menos dois sentidos. Um deles foi notado por Lima:

―Minha intenção não sendo reduzir a obra [as Mitológicas] a um trabalho estético,

que motivos temos nós para reconhecermos nos grupos de transformação de Lévi-

Strauss um valor estritamente etnológico? Pode-se argumentar que o verdadeiro

ponto é que não existe nenhuma razão para negar-lhes esse valor. Mais ainda: se tais

grupos não forem verdadeiros, nada do que fazemos em nossas etnografias poderia

ser verdadeiro, pelo simples fato de que são construídos da mesma forma, a

diferença sendo unicamente de escala.‖ (Lima 1999: 3)

111

Ou seja, não se pode dizer que estes grupos sejam inexistentes somente porque eles

são abstratos e menos ainda porque eles extravasam os limites etnográficos de observação85

.

Contra o argumento de Turner é possível afirmar que as transformações míticas ocorrem na

―história e no espaço geográfico‖, sendo ―infletidas pela realidade‖ (Almeida 2008: 171).

Neste trabalho, caracterizamos (cap. 2: 67 e seguintes) os mitos como objetos históricos pela

sua ligação indelével com os contextos etnográficos de onde partiram, ligação sempre levada

em conta pela análise lévi-straussiana. A etnografia aparece como a porta de entrada da

análise estrutural para a história, é ela que permite caracterizar os mitos enquanto como

documentos históricos, como pontos-de-vista sobre uma realidade partilhada (cap. 2: 73). É a

referência aos contextos particulares de enunciação dos mitos que permite ao estruturalismo

escapar do epíteto de ―formalismo‖ que frequentemente lhe é outorgado. Neste sentido a

introdução da diacronia na análise dos mitos passa menos pelo estabelecimento de uma

temporalidade interna ao relato, em nível sintagmático – como querem os folcloristas que

procuraram desenvolver um uso particular da fórmula canônica do mito (cap. 2: 58-60) e o

próprio Turner (1990) –, que pela articulação paradigmática de contextos históricos

diferentes. Já recordávamos acima que fórmula canônica do mito refere-se justamente a esta

ultrapassagem de fronteiras culturais e lingüísticas (cap. 2: 60 e seguintes). Longe de ter sido

abandonada, o uso freqüente desta fórmula ao longo das Mitológicas, e para além dela86

,

permite que ressaltemos este aspecto marcante da análise estrutural dos mitos.

Mas isso não é tudo: num outro sentido, Calavia Sáez (2002) notou que a análise

mitológica, ao articular diversos contextos históricos, aponta para uma reflexão coletiva que

não implica em uma simples anulação do agente, do narrador do mito, mas, ao contrário,

numa requalificação deste narrador em um especulador, um pensador87

. Esta reflexão coletiva

e individual, que evidencia a análise estrutural dos mitos, e o próprio fato de os mitos serem

objetos históricos, permite entender melhor a afirmação, feita por Lévi-Strauss no capítulo

―Le Mythe Unique‖, de que os mitos ―obliteram a passagem do tempo‖ (cap. 3: 103; Lévi-

85

Ponto que Lévi-Strauss estabelece em três ocasiões, pelo menos, contra os antropólogos funcionalistas

([1958d] 2008; 1971; 1979). 86

No capítulo 5 de História de Lince Lévi-Strauss faz um comentário sobre a fórmula canônica: ―como ocorre

freqüentemente quando atravessa uma fronteira cultural e lingüística, o mito vira [do avesso]: o fim torna-se

começo, o começo vira fim e o teor da mensagem se inverte. Multipliquei ao longo das Mitológicas e em várias

outras ocasiões exemplos desses fenômeno, durante muito tempo ignorado pelos comparativistas.‖ E dá

referência a estas ocasiões: Lévi-Strauss ([1962] 1989; [1964] 2004; [1967] 2004; [1968] 2006; 1971; [1973]

1993; [1983] 1986; 1984] 1991. 87

―Embora tenha sido criticada por desterrar do mito o agente (o narrador, o intérprete), a análise estrutural

inaugura uma concepção em que ele passa, de um transmissor mais ou menos idiossincrático da tradição local, a

ser o ponto de articulação de uma tradição global e multidimensional, e nesse sentido um pensador.

A combinatória dos mitos, quando levada a efeito, não seria em si mesma uma ―reflexão‖? (Calávia Sáez 2002 :

8)

112

Strauss 1971: 543). A agência dos narradores deve ser percebida através da capacidade

plástica do mito. É esta capacidade que permite a este ou àquele narrador dar conta das

mudanças históricas através dos esquemas formais do pensamento mítico. Neste sentido,

dissemos mais atrás, pode-se dizer que o mito é história, à sua própria maneira – já que está

sempre ―acertando contas‖ com o devir histórico por meio de suas operações lógicas,

caracterizadas pelo deslocamento constante das ―oposições insolúveis‖ que se apresentam à

reflexão (Lévi-Strauss 1971: 538). Lévi-Strauss forneceu os instrumentos analíticos

suficientes para se começar a levar os mitos a sério, para entendê-los em sua particularidade.

Articulando nossos objetivos com uma outra proposta de Calavia Saéz (2008),

dizíamos no capítulo 3 que Lévi-Strauss faz uma história que articula historicidades distintas,

aquilo que Sáez chamou de uma ―história pictográfica‖. Podemos extrair daí uma lição

complementar àquela que Goldman (1999) ofereceu em sua análise sobre ―os sentidos da

história‖ para Lévi-Strauss. Goldman propõe – recorrendo a textos em que Lévi-Strauss

assumem um diálogo explicito com a história – que existem três sentidos desse termo

utilizados por esse autor na medida em que ele faz referência a contextos discursivos

diferentes: a história como método, a ―historiografia‖, a ―filosofia da história‖ e

―historicidade‖ particular de cada cultura. Não obstante este uso distinto, estes três sentidos,

segundo Goldman, situam-se em um campo semântico comum, hierarquizado, na medida em

que:

―As distintas historicidades peculiares a cada sociedade ou cultura constituem a

forma particular através da qual elas reagem ao fato inelutável de que estão no

tempo ou no devir. Nesse sentido, tanto a "história dos historiadores" quanto a

"filosofia da história" fazem parte constitutiva de nossa forma particular de

historicidade, ou, ao menos, daquela dominante no Ocidente há muitos séculos. O

que significa simplesmente dizer que a nossa forma de reagir à temporalidade faz

parte de um certo tipo de reflexão sobre ela. Talvez aqui resida um dos sentidos da

aproximação entre mito e história, ou da hipótese de que a história funciona, entre

nós, como nosso mito.‖ (1999: 07)

E, poderíamos completar, o mito, entre ―eles‖, como história – mesmo que nem a ―nossa‖

história seja precisamente um mito e nem que o mito ―deles‖ seja exatamente nossa história.

Para afirmá-lo é preciso apelar, como lembra Calavia Sáez, ―para as definições radicais‖

(Calavia Sáez 2008: 140; cf. cap. 3: 78). Ou seja, tomar a historicidade dos mitos, o fato de

que são relatos de um tempo marcado, como indício de uma aproximação. Como se vê,

proponho neste trabalho a inversão da fórmula lévi-straussiana que subverte sua necessária

113

―não-reversibilidade‖ (Lima 2002: 4) para que seja mantida a crítica ao etnocentrismo que

caracteriza potencialmente qualquer leitura do mito a partir da história. Contudo, esta

reversibilidade é proposta a partir da demonstração de que os mitos possuem uma função

referencial que faz com que sua historicidade seja marcada pela sua composição por meio de

objetos simbólicos localizados em contextos culturais específicos. Desta forma, não pretendi,

em nenhum momento, ―julgar‖ o mito pela história, mas, exatamente, fazer o contrário: parti

de suas próprias características enquanto uma forma de pensamento para afirmar a sua

caracterização enquanto um tipo de documento histórico, passível de uma escrita

historiográfica alternativa, não-canônica.

Poderíamos retomar, neste sentido, a analogia de A. C. Taylor apresentada na

Introdução a este trabalho (cf. p. 19), e dizer que os mitos, enquanto documentos, são como

ruínas: a passagem do tempo se imprime em todas as dimensões de sua arquitetura. Uma

historiografia que lide com ruínas deveria aproximar-se, por um lado de uma restauração, por

outro de uma arqueologia. Talvez – e isto é dito aqui somente como hipótese para trabalhos

futuros – estas disciplinas ajudem a pensar melhor as dimensões historiográficas do

estruturalismo e o macro-problema epistemológico da relação entre a estrutura e o evento.

A ênfase nas distintas historicidades particulares a cada cultura propicia o caminho

para uma conceituação especificamente antropológica de história, para a elaboração de uma

história que possa ser feita de um ponto de vista do observado. O próprio fato de não termos

lidado, a partir do mito, com a história do contato, conflui com o objetivo de ressaltar a as

possibilidades de se escrever esta história em seus próprios termos. A expressão

―conceituação especificamente antropológica de história‖ – ―anthropological

conceptualization of history‖ – encontra-se na introdução de um livro escrito em 2001 por

Peter Gow, que tem o objetivo, justamente, de escrever a história de um povo amazônico em

seus próprios termos partindo do estudo das transformações de um de seus mitos ao longo do

tempo: An Amazonian Myth and it‟s History, uma obra marcada por uma clareza e

sensibilidade analítica que, seguramente, fazem dela um clássico contemporâneo da etnologia

amazônica. Nela, Gow parte da caracterização dos mitos enquanto objetos históricos e da sua

capacidade de denegar a passagem do tempo, para verificar, por meio da análise das

transformações internas a uma série de narrativas ao longo de quase um século de história dos

Piro88

, quais eventos elas procuram denegar (2001: 1-35).

88

População ameríndia do baixo rio Urubamba, na Amazônia peruana.

114

Esta obra tem, para nós, um interesse suplementar pelo seu caráter restrito ao espaço

de uma cultura. Por esta característica, pode-se dizer que Gow realiza no tempo aquilo que

Lévi-Strauss fez no espaço. Como vimos no capítulo 3, Lévi-Strauss articula a historicidade

dos mitos em uma micro-história difusionista – que dialoga com outros modos nomotéticos de

se fazer história, como a arqueologia e a lingüística histórico-comparativa – fornecendo

hipóteses a respeito das relações inter-culturais de povos vizinhos. Gow articula esta mesma

historicidade a uma série de documentos de arquivo coloniais produzidos sobre os Piro,

acrescentando uma dimensão suplementar que ―aumenta‖ o rendimento historiográfico da

proposta lévi-straussiana. Circunscrito num espaço cultural, ou num ―mundo vivido‖, como

prefere o autor, sua análise é capaz de descrever, por exemplo, ―como morrem os mitos‖, não

ao atravessar fronteiras sociais e técnico-econômicas (cap. 3: 92-3; Lévi-Strauss [1973d]

1993: 261-74), mas ao contraporem-se a eventos capazes, eles mesmos, de obscurecer os

esquemas primitivos que impulsionavam sua existência. Assim, o autor descreve a

―substituição de um sistema xamânico fundado em relações com divindades celestes por um

xamanismo ayahuasquero direcionado para relações com os grandes predadores do rio e da

floresta‖ (Lima 2002: 199) como resultado da pressão estabelecida pela presença dos

missionários e da catequização que ―colonizou‖, podemos dizer, o espaço celeste da

cosmologia piro. Gow articula, então, as transformações entre as versões de mitos piro às

próprias transformações sociais por que passaram este povo.

Como anotou Lima, em sua resenha sobre a obra que estamos comentando:

―a análise de Gow afasta-se deliberadamente das explanações correntes das

mudanças históricas como respostas adaptativas às imposições da chamada situação

colonial, e opõe à visão histórica oferecida por um ponto de vista situado no exterior

do mundo vivido piro, uma visão histórica a partir do seu interior, onde as relações

humanas e as idéias que se entremesclam nas coisas provenientes da sociedade

colonial restituem aos Piro uma história que é a sua própria e que é também muito

antiga.‖ (2002: 200)

A própria divisão desta obra entre ―mitos do mito‖ e ―mitos da história‖, poderia

sugerir, talvez, uma leitura dos mitos piro por meio da ―imagem‖ delineada pela fórmula

canônica do mito de Lévi-Strauss: certos domínios da vida piro, constrangidos pela história e

pelo inconsciente, ―giraram sobre si mesmos‖, produzindo inovações que são apenas

convenções, metáforas em que mudam os significados, mas mantém-se os significantes;

outros domínios, de tanto ―girar‖, diante dos mesmos constrangimentos, acabaram por

produzir ―inovações audaciosas‖, em um deslize metonímico que é um salto para um outro

115

domínio de significação (ver cap. 2, p. 58-9). É verdade que Gow deseja ressaltar que os

chamados ―mitos da história‖ são expressão de uma abertura à história que se acha inscrita no

mundo vivido piro (Lima: 201). O autor vê esta abertura como convergente ao que Lévi-

Strauss chamou, em História de Lince, de ―abertura ao outro‖ (Lévi-Strauss [1991] 1993: 14),

um avatar da filosofia ameríndia expresso no ―desequilíbrio perpétuo‖ característico da

reflexão mitológica (Lévi-Strauss [1991] 1993: cap. 4 e 5). Esta apreensão do movimento

mais abrangente dos mitos piro a partir da fórmula canônica iria, então, ao encontro de uma

afirmação de Viveiros de Castro de que as imagens descritas por esta fórmula e o dualismo

em desequilíbrio perpétuo, fazem parte de uma ―única macroestrutura estrutura virtual‖,

expressão do ―dualismo antistático‖ (Viveiros de Castro 2008: 111-12 passim) capaz de

romper dualismos como aquele entre mito e história.

O trabalho de Peter Gow permite entender que novas possibilidades de análise podem

advir de um instrumental analítico que, muitas vezes, já se disse fadado ao esquecimento. A

escrita das histórias das sociedades sem escrita, do ponto de vista destas sociedades, está

longe de ser uma tarefa acabada na antropologia – ainda mais se pensarmos em sociedades

que, como os Piro, foram fruto de extensão exploração colonial. Estamos somente no começo.

Se a análise estrutural dos mitos só recentemente vem sendo aproveitada na

antropologia para se ―fazer história‖, pode-se dizer que existe pelo menos um historiador que,

já há algum tempo, procura estabelecer um diálogo com a obra de Lévi-Strauss. Trata-se, de

do italiano Carlo Ginzburg, também referido na Introdução a este trabalho. Como dizíamos, a

aproximação de Ginzburg com o estruturalismo data dos anos 1960. Desde aquela época, o

autor afirma que buscava no estruturalismo alguns instrumentais que possibilitassem fazer

uma análise ―não etnocêntrica‖ dos documentos inquisitórios que estudava (Ginzburg [2006]

2007: 263). Isso porque ele se deparara com uma documentação excepcional:

―Entre 1961 e 1962, percorri a Itália seguindo os rastros dos arquivos da Inquisição

[...] Fui bater em Veneza, onde está conservado no Arquivo de Estado um dos

fundos inquisitoriais mais ricos [...] Como eu não sabia, literalmente, o que estava

procurando, fazia pedidos ao acaso [...] e punha-me a folhear as páginas dos

processos. [...]. Realço esses detalhes triviais porque eles me possibilitam realçar a

absoluta casualidade da descoberta: o interrogatório, realizado em 1591, de um

jovem pastor de gado de Latisana, um pequeno centro não distante de Veneza. O

pastor, que se chamava Menichino della Nota, contou que, quatro vezes por ano,

saía à noite em espírito com outros, nascidos como ele sob uma boa estrela,

chamados benandanti [...], para combater os feiticeiros num grande prado todo

florido de rosas: o prado de Josafá. Se os benandanti venciam, a colheita seria

abundante, se os feiticeiros venciam, haveria escassez.‖ ([2006] 2007: 302)

116

A análise deste documento revelava algo incomum nas pesquisas dos processos de

feitiçaria: a existência de uma dimensão mítico-ritual da crença dos acusados pela Inquisição.

A busca de uma compreensão ―não etnocêntrica‖ desta dimensão implicava levar este tipo de

testemunho a sério, de analisá-lo em seus próprios termos, por meio de seus elementos

simbólicos constitutivos – ao invés interpretá-los como um ―documento da pitoresca

ignorância dos que se furtavam obstinadamente à instrução dada pelas autoridades

eclesiásticas‖ (Ginzburg [2006] 2007: 304). Ginzburg se mostra sensível desde cedo à

capacidade da antropologia estrutural de lidar com a lógica interna dos objetos que analisa. Na

pesquisa que resultou no livro Os Andarilhos do Bem ([1966] 1988)89

, sua primeira

abordagem sobre esta dimensão imprevista que emergia de alguns documentos inquisitoriais,

o autor explorou a ―falta de comunicação‖ entre os inquisidores e o réu.

―Os andarilhos do bem falavam muitas vezes sem nem sequer ser solicitados, das

batalhas pela fertilidade que eles travavam de noite, em espírito, armados de ramos

de erva-doce, contra feiticeiros e feiticeiras armados com caules de sorgo. Tudo isso

era, para os inquisidores, incompreensível. O próprio termo ‗benandanti‘ [...] lhes

era desconhecido e, várias vezes ao longo de cinquenta anos, perguntaram o que

significava. É essa falta de comunicação que faz aflorar um estrato de crenças

profundas e ocultas: um culto extático, centrado na fertilidade, que ainda era

vivíssimo entre o século XVI e o seguinte entre os camponeses e camponesas de

uma região como o Friul, situada nos confins norte-orientais da Itália.‖ ([2006]

2007: 306)

Desde esta época Ginzburg percebeu que poderia relacionar algumas destas

afirmações fornecidas pelos benandanti às autoridades eclesiásticas, por meio de seu

simbolismo, com, primeiramente, um substrato folclórico eslavo (Ginzburg [1989] 1995: 26).

Mas na redação deste livro, ele não encarou o desafio de propor explicações através destas

conexões. Ao longo dos mais de vinte anos, o autor recolheu, então, diversos outros

documentos que apresentavam analogias formais com os ritos e mitos descritos pelos

benandanti e se referiam a testemunhos dispersos no tempo e no espaço. Somente em 1989,

foi publicado História Noturna: uma decifração do sabat90

, obra em que ele procura analisar

estas semelhanças morfológicas que reunira a partir da documentação excepcional encontrada

por acaso em Veneza, conectando aos benandanti figuras do folclore europeu, como os

―lobisomens eslavos e bálticos, táltos húngaros, kersnick dálmatas, mazzeri corsos e assim por

diante‖ ([1986] 1989: 209), até chegar aos xamãs siberianos e outros personagens presentes

89

Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII, pela Cia das Letras em 1988. 90

Utilizo tradução para o português feita em Portugal pela editora Relógio D‘Água, existe disponível uma edição

brasileira pela Cia. das Letras.

117

no folclore asiático. É esta obra que tem Lévi-Strauss como o ―principal interlocutor‖

(Ginzburg [2006] 2007: 301)91

.

O desenvolvimento de todas as implicações do recurso de Ginzburg à análise

estrutural mereceria um estudo a parte. Limitar-nos-emos a um pequeno comentário, de modo

a ressaltar a relação entre algumas de suas características e nossos resultados. A obra como

um todo é composta por três partes que lidam com problemas historiográficos e

metodológicos desiguais. Na primeira delas ([1989] 1995: 43-92), o autor procura reconstituir

os supracitados ―mecanismos ideológicos‖ que estão na origem da caça às bruxas na Europa,

por meio de um corpo de fontes que não oferece problemas ao recurso à narrativa linear e

uniforme que encontramos tipicamente em trabalhos historiográficos ([1989] 1995: 26). Este

recurso já não se mostra possível na segunda e terceira parte. Nestas, o autor procura,

respectivamente, ―reconstituir o profundíssimo estrato mítico ritual do qual nasciam as

crenças populares depois forçadas a confluir no sabat‖ e ―as possíveis explicações dessa

dispersão de mitos e ritos‖ ([1989] 1995: 22), através de uma ―perspectiva comparada‖, que

―recorre a uma estratégia analítica e expositiva pouco freqüente em livros de história‖ ([1989]

1995: 25). São estas duas últimas partes, em especial a terceira, que se conectam mais

intimamente ao trabalho de Lévi-Strauss sobre a mitologia ameríndia.

Nestas partes do livro por meio da comparação com bases em analogias formais, o

autor insere os traços anômalos ao estereótipo do sabat que se apresentam na documentação

de alguns processos inquisitoriais, como aquele citado acima, em uma série mais abrangente,

que extravasa o âmbito destes processos, e consequentemente da área de atuação da igreja

tridentina, em direção ao leste europeu e ao continente asiático – assim estes dados ganham

não só extensão espacial, como uma profundidade temporal que alcança alguns milênios. O

autor poderá então, compor séries analíticas que permitem articular as crenças dos acusados

de feitiçaria a formas primitivas de religiosidade presentes no continente eurasiático. Esta

extensão permite compor um ―contexto simbólico no interior do qual os elementos folclóricos

incrustados no estereótipo do sabat [...] [se tornam] menos indecifráveis‖ ([1989] 1995: 27).

Isto é feito frequentemente através de um procedimento explicitamente estruturalista: isolam-

se traços específicos a mitos e ritos que se encontram dispersos no tempo e no espaço,

pertencentes a âmbitos culturais bastantes distintos, e procura-se estabelecer um continuo

91

Na verdade, este livro tem dois objetivos: ele procura explicar tanto ―os mecanismos ideológicos que

permitiram a perseguição da feitiçaria na Europa‖; quanto recuperar elementos que fundamentavam ―a crença

das mulheres e dos homens acusados de bruxaria.‖ Se este segundo objetivo já estava presente no livro sobre os

―andarilhos do bem‖, no trabalho em questão ele é retomado e aprofundado em dimensões espaciais e temporais

inéditas em estudos até sobre o sabat. É aqui que o diálogo com o comparativismo estruturalista presente nas

Mitológicas ganha importância.

118

morfológico que reúna esta dispersão de testemunhos, baseando-se não somente na

recorrência destes traços, mas, fundamentalmente, na existência de correlações regulares entre

estes motivos. Assim, o autor consegue ampliar o campo semântico no qual podem ser

compreendidos temas presentes nestes documentos excepcionais, como ―o vôo noturno‖, as

―batalhas contra os mortos‖, as ―metamorfoses em animais‖, o ―combate em êxtase‖, ―a

procissão dos mortos‖ e a utilização de ossos de animais para que sejam ressuscitados.

O trabalho de Ginzburg consegue, ao final, solucionar um problema histórico

particular por meio do intensivo uso da análise estrutural, iluminando uma dimensão

largamente negligenciada dos documentos inquisitoriais através de sua inserção em uma

história tão profunda como esta que se pode fazer através dos mitos. No caso de Ginzburg

existe, ainda, uma maior possibilidade de entrecruzamento entre as ―séries morfológicas‖ –

que é como ele chama os ―grupos de transformação‖ – e documentos históricos, devido a sua

maior presença.

Em conjunto, e por motivos diferenciados, os trabalhos de Peter Gow e Carlo

Ginzburg demonstram como é possível partir da análise estrutural dos mitos para atingir uma

dimensão não etnocêntrica da história. Mas isso não é tudo: tanto as populações indígenas

amazônicas como as populações camponesas européias se viram, por volta da mesma época –

na entrada do século XVI –, confrontadas com o poder avassalador de uma expansão cultural

e econômica sem precedentes, que desestabilizou profundamente o seu modo de vida. A

inquisição européia e a expansão das potências coloniais são, como sabemos, duas faces de

um mesmo processo cultural homogeneizante que caracteriza a moderna história do Ocidente

– que fez, sem dúvida, tantos estragos no Velho quanto no Novo Mundo. O recurso destes

autores ao método estrutural converge na medida em que eles o solicitam para adentrar na

lógica interna das formas de pensamento destas populações subjugadas ao longo dos últimos

500 anos.

Nossa incapacidade de entender a história do ponto de vista do outro, seja no caso dos

ameríndios ou no dos camponeses, faz com que, inclinemo-nos a associá-la à nossa própria

história, taxando-os de primitivos, pitorescos, rudimentares... enfim, como representantes de

um estágio anterior da própria evolução histórica ocidental. Daí a se dizer, por exemplo, que o

único destino para as populações indígenas seja sua assimilação pelo Estado Nacional é,

perdão da expressão, ―um pulo‖. É a capacidade de dialogar com outras formas de

conhecimento que constitui a riqueza da antropologia estruturalista. Um estudo do aspecto

histórico da análise estrutural dos mitos revelou o sentido antropológico profundo do

pensamento de Claude Lévi-Strauss.

119

Anexo

120

Figura 1: pintura representando um tubarão no estilo do desdobramento da representação.

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958] 2008: 287.

121

Figura 2: pintura em fachada de casa, representando uma orca.

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958c] 2008: 273.

122

Figura 3: Bronze chinês.

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958c] 2008: 268.

123

Figura 4: Mulher kadiwéu.

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958c] 2008: 275.

124

Figura 5: Motivo de pintura facial kadiwéu

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958c] 2008: 275.

125

Figura 6: Desenho feito por mulher kadiwéu.

Fonte: ―O desdobramento da representação nas Artes da

Ásia e da América‖ in Lévi-Strauss [1958c] 2008: 271.

126

Figura 9. Esquema: Relação entre mitos kayapó e munduruku

Fonte: O Cru e o Cozido (Lévi-Strauss [1964] 2004: 117)

127

Figura 10. Esquema: Mitos de culinária (alimento cozido) e mitos de carne (alimento cru).

Fonte: O Cru e o Cozido (Lévi-Strauss [1964] 2004: 125)

128

Figura 11. Mapa: ―O crescente setentrional e a área da disputa dos astros‖.

Fonte: A Origem dos Modos à Mesa (Lévi-Strauss [1968]

2006: 209)

129

Figura 12. Esquema: ―Esquema teórico da distribuição dos mitos sobre as esposas dos astros

segundo a escola histórica‖.

Fonte: A Origem dos Modos à Mesa (Lévi-Strauss [1968]

2006: 207)

130

Figura 13: Mapa: ―Ajustamento entre a estrutura lógica e a distribuição geográfica dos mitos

sobre as esposas dos astros.‖

Fonte: A Origem dos Modos à Mesa (Lévi-Strauss [1968]

2006: 238)

Lévi-Strauss descreve a figura da seguinte maneira:

―A redação porco-espinho e a redação P. auritos ocupam dois triângulos, opostos

pelo vértice. São cortados por uma reta (em tracejado) que define dois triângulos,

subordinados, inscritos na superfície dos dois primeiros, que correspondem

respectivamente às áreas da cotovia de um lado, do chapim e dos esquilos do outro.

O ponto de interseção das três retas que geram essa estrutura única se situa a oeste

do lago Superior, onde passa o limite entre os Ojibwa da Pradaria e as tribos

siouanas e algoquinas das Planícies.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 237)

131

Figura 14: Mapa: Quatro mapas comparando a distribuição geográfica dos porcos-espinho na

América do Norte. (87)

Fonte: A Origem dos Modos à Mesa (Lévi-Strauss [1968]

2006: 241)

Ao comentar a figura, o autor pondera que os mapas indicam a presença de um único indivíduo. Para o etnólogo,

deve-se levar em conta que a raridade de uma espécie pode significar, do ponto de vista dos nativos, a sua

―ausência em termos práticos‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 242).

132

Figura 15: Mapa: ―O mito de referencia: formas fortes e formas fracas.‖

Fonte: L‟Homme Nu (Lévi-Strauss 1971: 530)

133

Figura 16: ―Erosão Mítica‖

Fonte: L‟Homme Nu (Lévi-Strauss 1971: 531)

134

Figura 17: ―Estrutura dos mitos tukuna, cashinaua e munduruku‖

Fonte: A Origem dos Modos à Mesa (Lévi-Strauss [1968]

2006: 90)

Ao comentar a figura, Lévi-Strauss faz a seguinte ponderação:

―Poderíamos multiplicar os exemplos de mitos provenientes da mesma região ou

vizinhas, que transformam os motivos da mulher-grampo (que já é transformação de

uma rã) no da origem das manchas da lua e também do próprio astro.

Consequentemente, a curva mitológica se fecha e permite encontrar, a partir de

qualquer versão, todas as outras arranjadas na ordem ‗natural das transformações que

as engendram, Contudo, é preciso notar que esta curva complexa – cujos dois

contornos, traçados no plano dos eixos perpendiculares, acompanham a superfície

ideal de uma esfera – delimita um campo semântico difuso no qual seria possível

situar, em qualquer ponto no interior da esfera, mitos já estudados, simplesmente

conhecidos ou mesmo possíveis.‖ (Lévi-Strauss [1968] 2006: 90-2)

135

Bibliografia

ALBERT, Bruce.

1985. Temps du Sang, Temps des Cendres. Représentation de la maladie,

système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est

(Amazonie brésilienne). Universidade de Paris X (Nanterre), França.

1992. ―A fumaça do metal: história e representações do contato entre os

Yanomami‖. Anuário Antropológico 89: 151-189.

2000. ―O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da economia

política da natureza‖. In: ALBERT, Bruce & RAMOS, Alcida (Orgs.).

Pacificando o branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico.

São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado.

ALMEIDA, Mauro B. W.

1990. ―Simmetry and entropy: Mathematical Metaphors in the Work of

Lévi-Strauss‖. Current Anthropology, v. 33. n. 4. P. 367-385,

Aug./Oct. 1991.

1999. ―Simetria e entropia: sobre a noção de estrutura em Lévi-Strauss‖.

Revista de Antropologia, v. 42, n. 1-2, p. 163-198, 1999.

2008. ―A Fórmula Canônica do mito‖ in Lévi-Strauss, leituras brasileiras.

Ruben Caixeta de Queiroz & Renarde Freire Nobre (org.) Col.

Humanitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

BOURDIEU, Pierre.

1977. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University

Press.

CALAVIA SÁEZ, Oscar.

2002. ―A variação mítica como reflexão‖: in Revista de Antropologia, São

Paulo, USP, 2002, v. 45 nº 1.

2008. ―A História Pictográfica‖ in Lévi-Strauss, leituras brasileiras. Ruben

Caixeta de Queiroz & Renarde Freire Nobre (org.) Col. Humanitas.

Belo Horizonte: Editora da UFMG.

136

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.

1992. História dos Índios no Brasil, São Paulo. Cia das letras.

[2008] 2009. ―Um difusionista estruturalista existe?‖. In: Cultura com Aspas e

outros ensaios. São Paulo, Cosac Naify

COELHO DE SOUZA, Marcela & FAUSTO, Carlos

2004. Reconquistando o campo perdido:o que Lévi-Strauss deve aos

ameríndios in: Revista de antropologia, São Paulo, 2004, v. 47 n. 1.

CREEL, Herrlee Glessner.

1935. ―On the Origin of Manufacture and Decoration of Bronze in the Shang

Period‖ in: Monumenta Serica, v. 1, fasc. 1.

DELEUZE, Gilles

[2002] 2006. ―Em que se pode reconhecer o estruturalismo‖. In: A Ilha deserta: e

outros textos. São Paulo: Iluminuras. pp. 221-48

GINZBURG, Carlo.

[1966] 1988. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e

XVII. Cia. das Letras.

[1981] 1989. Indagações sobre Pierro. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

[1986] 1989. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das

Letras.

[1989] 1995. História Nocturna: uma decifração do Sabat. Lisboa: Relógio D‘Àgua

editores.

[1998] 2001. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo, Cia.

das Letras.

[2000] 2002. Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo, Cia. das

Letras.

[2006] 2007. O fio e os Rastros: verdadeiro falso fictício. São Paulo, Cia. das

Letras.

137

GOLDMAN, Márcio.

1999. ―Lévi-Strauss e os sentidos da história‖ In: Revista de Antropologia v.

42 n. 1-2. São Paulo.

GOW, Peter

1991. Of Mixed Blood. Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford :

Claredon Press.

2001. An Amazonian Myth and its History. Oxford: Oxford University Press.

2006. Da Etnografia à História: ―Introdução‖ e ―Conclusão de Of Mixed

Blood: Kinship and History in Peruvian Amazônia. Revista Cadernos

de Campo, São Paulo, nº 14/15, pp. 197-226. Gombrich, Ernest.

GOMBRICH, Ernst.

1984. The sense of order. New York, Phaidon.

HILL, Jonathan (Org.).

1988. Rethinking history and myth. Indigenous South American perspectives

on the past. Urbana/Chicago: University of Illinois Press.

HUGH-JONES, Stephen.

1979. The Palm and The Pleiades: initiation and cosmology in Northwest

Amazonia. Cambridge, Cambridge University Press.

1988. ―The Gun and the Bow: Myths of White Men and Indians‖, in:

L'Homme, Volume 28, 106- 107. pp. 138 - 155

LÉVI-STRAUSS, Claude

[1948] 1982. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes.

[1952] 2008. ―A noção de arcaísmo em etnologia.‖ In: Antropologia Estrutural. São

Paulo, Cosac & Naify.

[1955] 1996. Tristes Trópicos.

[1958a] 2008. ―A Serpente do Corpo Repleto de Peixes‖. In: Antropologia

138

Estrutural. São Paulo, Cosac & Naify. [1949]

[1958b] 2008 ―História e Etnologia‖. In: Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac

& Naify. [1956]

[1958c] 2008. ―O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América.‖

In: Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac & Naify. [1954]

[1958d] 2008. ―A estrutura dos mitos.‖: in Antropologia Estrutural. São Paulo,

Cosac & Naify. [1955]

[1958e] 2008. ―Estrutura e Dialética.‖ In: Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac

& Naify. [1956]

[1958f] 2008 ―Posfácio ao capítulo XV‖ in: Antropologia Estrutural. São Paulo,

Cosac & Naify.

[1958g] 2008. Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac & Naify.

[1962] 1975. O Totemismo Hoje. Petrópolis, Vozes.

[1962] 1989. O Pensamento Selvagem. Campinas, Papirus.

[1964] 2004. O Cru e o Cozido. São Paulo, Cosac Naify.

[1967] 2004 Do Mel às Cinzas. São Paulo, Cosac Naify.

[1968] 2006. A Origem dos Modos à Mesa, São Paulo, Cosac & Naify.

1971. L‟Homme Nu. Paris, Plon.

[1973a] 1993. ―A gesta de Asdiwal‖ in: Antropologia Estrutural dois. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro. [1958]

[1973b] 1993. ―O campo da Antropologia.‖ in: Antropologia Estrutural dois. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro. [1960]

[1973c] 1993. ―A estrutura e a forma‖ in: Antropologia Estrutural dois. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro. [1960]

[1973d] 1993. ―Quatro mitos Winnebago.‖ in: Antropologia Estrutural dois. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro. [1960]

[1973e] 1993. ―As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico.‖ in:

Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

[1961]

[1973f] 1993. Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

1979. A Via das Máscaras. Lisboa. Editorial Presença. [1975 1º ed.]

[1983] 1986. O Olhar distanciado. Lisboa. Edições 70.

139

[1984] 1991. Minhas Palavras. São Paulo, Ed. Brasiliense.

[1985] 1986. A Oleira Ciumenta. São Paulo, Brasiliense.

[1991] 1993. A História de Lince. São Paulo, Brasiliense.

[1994] 2001. ―Lettre à Monsieur le Professeur Solomon Marcus. In: MARANDA,

P. (org.). The Double Twist. From Ethnography to Morphodynamics.

Toronto Press, 2001. p. 314.

LÉVI-STRAUSS, Claude & CHARBONIER, Georges

[1961] 1989. Entrevistas com Claude Lévi-Strauss (a Georges Charbonier),

Campinas, Papirus.

LIMA, Tânia Stolze

1999. ―O Pássaro de Fogo‖. In: Revista de Antropologia v. 42 n. 1-2. São

Paulo. (versão digital, sem numeração)

2002. Resenha An amazonian myth and its history. Mana, Out 2002, vol.8,

no.2, p.198-202.

MANIGLIER, Patrice

2005. Des us et des signes. Lévi-Strauss: philosophie pratique.

www.formessymboliques.org/article.php3?id_article=159, 609, 216-

241.

2006. La vie enegmatique des signes. Saussure et la naissance du

structuralisme, Leo Scheer.

MARANDA, P. (org.).

2001. The Double Twist. From Ethnography to Morphodynamics. Toronto

Press

PERRONE-MOISÉS, Beatriz

2004. ―Traduzir as Mitológicas‖ in: Lévi-Strauss 2004. O Cru e o Cozido.

São Paulo, Cosac Naify. 5-14

140

SAHLINS, Marshall

[1985] 2003. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

1981. Historical metaphors and mythical realities: structure in the history

of the Sandwich Islands Kingdom. Ann Arbor: University of Michigan

Press. (Association for the Study of Anthropology in Oceania, Special

Publications, 1). (Versão em português: Metáforas Históricas e

Realidades Míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008).

SCHWARTZ, Lilia K. Moritz

1999. ―História e Etnologia. Lévi-Strauss e os embates em região de

fronteira‖ in: Revista de Antropologia. v.42 n.1-2 São Paulo.

SCUBLA, Lucien

1998. Lire Lévi-Strauss: le deployment d‘une intuition. Paris: Odile Jacob.

SEBAG, Lucien.

1971. L‟invention du monde chez les indiens pueblos. Paris: François

Maspero

TAYLOR, Anne-Christine

2004. ―Don Quixote en Amérique. Claude Lévi-Strauss et l‘anthropologie

américaniste‖ in: L‟Herne: Lévi-Strauss. (dir. Michel Izard) Éditions

de l‘Herne. Pp. 92-8

THOMPSON, D‘Arcy Wentworth

1952. On Growth and Form. 2 v. Cambridge

THOMPSON, Stit.

1953. ―The Star-Husband Tale‖ (Liber saecularia in honorem J. Qvigstadii)

Studia Septentrionalia, 4. Oslo

141

TURNER, Terence

1988. ―History, Myth and Social Consciousness among the Kayapó of

Central Brazil. In: Hill (org.) Rethinking history and myth. Indigenous

South American perspectives on the past. Urbana/Chicago: University

of Illinois Press.

1990. ―On structure and entropy: Theoretical Pastiche and the contradictions

of ‗Structuralism‘. Current Anthropology, v. 31, n. 5, p. 563-568. Dec.

1990.

1992. ―Os Mebengokre Kayapó‖: História e Mudança Social de

Comunidades Autônomas para a Coexistência Interétnica.‖ In: M.

Carneiro da Cunha (ed.) História dos Índios no Brasil, São Paulo. Cia

das letras.

1993. ―De Cosmologia à História‖: Resistência, Adaptação e Consiência

Social entre os Kayapó. In. E. Viveiros de Castro e M. Carneiro da

Cunha (eds.), Amazônia: Etnologia e História Indígena, São Paulo:

FAPESP

URBAN, Greg

1992. ―A História da Cultura Brasileira segundo as Línguas Nativas‖. In: M.

Carneiro da Cunha (ed.) História dos Índios no Brasil, São Paulo. Cia

das letras.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.

1973. ―As categorias de sintagma e paradigma nas análises míticas de Lévi-

Strauss.‖ In: A linguística hoje, perspectivas e controvérsias na

palavra qualificada de brasileiros e estrangeiros. Col. Tempo

Brasileiro, 32. Rio de Janeiro.

2002. A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia.

São Paulo, Cosac Naify.

2008. ―Xamanismo Transversal‖. In: Lévi-Strauss, leituras brasileiras.

Ruben Caixeta de Queiroz & Renarde Freire Nobre (org.) Col.

Humanitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

VERNANT, Jean-Pierre

1988. ―Le Tyran boiteux: d‘Oedipe à Periandre. In: Vernant, J-P; Vidal-

Naquet, P. Oedipe et sés Mythes. Paris: Editios Complexe.

142

WOLF, Eric.

1982. Europe and the Peoples Without History. Berkley: University of

California Press.

YETTS, W. Perceval

1929. The George Eumorphopoulos Collection Catalogue. 3 v.

1939. The Cull Chinese Bronzes. Londres.

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo