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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ: Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados FABIANA OLIVEIRA DE SOUZA Rio de Janeiro 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR

DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:

Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados

FABIANA OLIVEIRA DE SOUZA

Rio de Janeiro

2018

PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR

DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:

Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados

Fabiana Oliveira de Souza

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro como quesito para obtenção do

título de Mestre em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos - Literaturas

Hispânicas).

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

PERIFERIA E CONSTRUÇÃO DE UM LUGAR

DE AUTOR NA OBRA DE CÉSAR GONZÁLEZ:

Villas, empoderamento e representação de grupos alterizados

Fabiana Oliveira de Souza

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos –

Literaturas Hispânicas)

Examinada por:

____________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ (orientador)

____________________________________________

Prof. Doutor Jailson de Souza e Silva – UFF

____________________________________________

Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ

____________________________________________

Prof. Doutor Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente

____________________________________________

Prof. Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Rio de Janeiro

Agosto de 2018

Souza, Fabiana Oliveira de.

Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César González: Villas,

empoderamento e representação de grupos alterizados / Fabiana Oliveira de

Souza. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2018.

129 f.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ – Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, 2018.

Referências Bibliográficas: ff. 110-116

1. Territórios periféricos. 2. Villa miseria. 3. Alteridade. 4. Representação. 5.

César González. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas. III.

Título.

RESUMO

SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César

González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.

Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Os indivíduos invisibilizados na sociedade ocupam um espaço secundário quando

representados na literatura, pois a cidade letrada, povoada por sujeitos que falam a partir de

um lugar de raça, gênero e classe social, não tem olhos para a diferença. Contudo, abordagens

mais recentes, tanto da produção ficcional quanto da crítica literária, têm focalizado a

experiência dos que estão às margens da cidade e do campo literário, mas que, ainda assim,

conseguiram se expressar pela letra impressa ou pela imagem em movimento. Com

expedientes simbólicos que poderíamos definir como “astúcias do fraco” (Michel de Certeau),

os sujeitos da periferia se contrapõem aos discursos dominantes nos meios de comunicação e

na literatura contemporânea. Tomando a poesia de César González como objeto de estudo,

esta dissertação traz uma investigação sobre a representação de territórios periféricos – mais

concretamente as villas de Buenos Aires e as favelas do Rio de Janeiro – e de grupos sociais

alterizados que habitam os espaços informais dessas cidades. Propõe-se ainda uma visão

contrastiva entre a produção do escritor argentino e a de alguns nomes da emergente

Literatura Marginal Periférica brasileira. Esse rico conjunto de obras expõe as disputas

internas do campo literário diante do processo de assunção da voz de indivíduos

marginalizados que invadem a cidade letrada e reinventam as estratégias de pertencimento e

consagração de modo a viabilizar a construção de um lugar de autor para si e para seus iguais.

Recorrendo à discussão de outras áreas do conhecimento, abordamos o território como um

conceito que carrega em si a ideia de poder, seja pelo sentido material (de dominação) ou

simbólico (de apropriação). Além disso, convocamos a noção de potência da periferia, que

transfere o foco da representação dos territórios e sujeitos dessas regiões da cidade para seus

aspectos positivos, bem como para a capacidade inventiva e de organização de seus

moradores. Dialogamos, ainda, com a concepção de alteridade enquanto forma de distinguir

um eu de um outro que não é visto como um semelhante, refletindo sobre as possibilidades de

fala de sujeitos alterizados que problematizam, assim, a própria condição de subalternos.

Palavras-chave: Territórios periféricos. Villa miseria. Alteridade. Representação. César

González.

RESUMEN

SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César

González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.

Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Los individuos invisibilizados en la sociedad ocupan un espacio secundario cuando se

los representan en la literatura, pues la ciudad letrada, poblada por sujetos que hablan desde

un lugar de raza, género y clase social, no tiene ojos para la diferencia. Sin embargo,

abordajes más recientes, tanto de la producción ficcional como de la crítica literaria, viene

enfocando la experiencia de los que están a los márgenes de la ciudad y del campo literario,

pero que, aun así, lograron expresarse por la letra impresa o la imagen en movimiento. Con

expedientes simbólicos que podríamos definir como “astucias del débil” (Michel de Certeau,

1998), los sujetos de la periferia se contraponen a los discursos dominantes en los medios de

comunicación y en la literatura contemporánea. Tomando la poesía de César González como

objeto de estudio, esta tesis trae una investigación sobre la representación de territorios

periféricos – más concretamente las villas de Buenos Aires y las favelas de Rio de Janeiro – y

de grupos sociales alterizados que habitan los espacios informales de esas ciudades. Se

propone aun una visión contrastiva entre la producción del escritor argentino y la de algunos

nombres de la emergente Literatura Marginal Periférica brasileña. Ese rico conjunto de obras

expone las disputas internas del campo literario ante el proceso de asunción de la voz de

individuos marginalizados que invaden la ciudad letrada y reinventan las estrategias de

pertenencia y consagración de modo que viabilicen la construcción de un lugar de autor a sí

mismo y a sus iguales. Recurriendo a la discusión de otras áreas del conocimiento, abordamos

el territorio como un concepto que lleva adentro la idea de poder, sea por su sentido material

(de dominación) o simbólico (de apropiación). Además, convocamos la noción de potencia de

la periferia, que desplaza el enfoque de la representación de los territorios y sujetos de tales

regiones a sus aspectos positivos, bien como a la capacidad inventiva y de organización de sus

residentes. Dialogamos, aun, con la concepción de alteridad como forma de distinguir un yo

de otro que no se ve como un semejante, reflexionando sobre las posibilidades de habla de

sujetos alterizados que problematizan, de ese modo, la propia condición de subalternos.

Palabras-clave: Territorios periféricos. Villa miseria. Alteridad. Representación. César

González.

ABSTRACT

SOUZA, Fabiana Oliveira de. Periferia e construção de um lugar de autor na obra de César

González: villas, empoderamento e representação de grupos alterizados. Rio de Janeiro, 2018.

Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) -

Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Invisibilized individuals in society occupy a secondary space when they are

represented in the literature, because the literate city, populated by subjects who speak from a

place of race, gender and social class, does not have eyes for the difference. However, most

recent approaches, both fictional production and literary criticism, have been focused on

experience of those who are on the margins of the city and the literary field but, despite this,

they could express themselves by the printed letter or by a moving image. With symbolic

strategies that we may define as “tactics of the weak” (Michel de Certeau, 1998), the subjects

of the periphery confront the dominant discourses in the medium and in the contemporary

literature. Approaching the César González’s poetry as object of study, this dissertation

presents a research about representation of peripheral territories – more specifically the villas

in Buenos Aires and the slums in Rio de Janeiro – and of the altered social groups who live in

informal spaces of these cities. It is also proposed a contrastive view between the production

of the Argentine writer and that of some names of an emerging Brazilian Literatura Marginal

Periférica. This rich set of works exposes the internal disputes of the literary field before the

process of assumption of the voice of marginalized individuals who invade the literate city

and reinvent the strategies of belonging and consecration in order to make possible the

construction of a place of author for themselves and their peers. Using the discussion of other

areas of knowledge, we approach the territory as a concept that carries within itself the idea of

power, either by the material sense (of domination) or symbolic (of appropriation). Besides

that, we summon the notion of periphery’s power, which shifts the focus of the representation

of territories and subjects of these regions of the city to their positive aspects, as well as to the

inventive and organizational capacity of its residents. We also dialogued with the conception

of alterity as a way of distinguishing I from other that is not seen as an equal, reflecting on the

possibilities of speech of altered subjects who thus problematize the own condition of

subalterns.

Keywords: Peripheral territories. Villa miseria. Alterity. Representation. César González.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à minha mãe, Marilene, a quem eu devo desde a própria

vida até cada um dos êxitos alcançados nela. Uma mulher guerreira e sonhadora, em quem me

inspirei para ser a mulher que hoje sou, a principal responsável por eu ter dado os passos que

dei nos meus estudos; alguém que, mesmo com todas as dificuldades, se sacrificou para nunca

abrir mão de oferecer a mim e aos meus irmãos até mesmo o que ela não pode ter.

À minha avó Maria (in memoriam), minha segunda mãe. Mulher simples, forte,

sonhadora e corajosa que veio para o Rio de Janeiro e me deixou de herança seu sangue

cearense, sua garra e seu exemplo. Apesar de não ter estado aqui fisicamente para

acompanhar esta etapa da minha vida, sei que sempre me protegerá e torcerá por mim, de

onde estiver. Sou muito agradecida por todo carinho, cuidado, amor e respeito com que

sempre fui tratada, pois foi o que tornou minha infância e adolescência mais prazerosa.

À minha irmã, Débora, companheira para todas as horas (todas), agradeço por ser a

melhor amiga que eu poderia ter e que eu jamais seria tão exigente para pedir ao universo.

Sempre penso no quanto sou sortuda em ter sido a escolhida para receber esse presente, diante

desse mar de gente que poderia te ter. Agradeço por ser a única a quem eu sempre pude

revelar qualquer segredo, quem sempre enxugou minhas lágrimas (e não foram poucas!),

quem me fez e faz viver um amor incondicional. Somente nós sabemos o quanto significamos

uma para a outra.

Agradeço ao meu marido, Andreson, por ser, acima de tudo, meu amigo. Um ser

humano incrível, um homem dedicado, guerreiro, vencedor; uma pessoa que não sei se

admiro mais pela história de vida ou pela bondade que conseguiu conservar intacta a despeito

de tudo pelo que já passou. Agradeço, ainda, por sempre ter acreditado em mim, muitas vezes

quando nem eu tinha mais fé, por ter me incentivado a seguir com todos os meus projetos e

por ter me ajudado sempre que precisei. Você vai ser sempre aquele certo alguém que cruzou

o meu caminho e me mudou a direção.

Ao meu irmão, Matheus, meu pai, Fábio, e aos familiares e amigos que sempre

estiveram por perto e me deram a mão quando puderam, acompanhando minhas lutas e

torcendo por mim em cada etapa. Agradeço pelo afeto e pelas boas risadas que me

proporcionaram, me ajudando a recuperar o fôlego para seguir para mais uma batalha.

Ao Professor Doutor Ary Pimentel, o mesmo Ary em quem me inspirei para a escolha

do curso de Letras Português-Espanhol depois das aulas ministradas e rodas de leitura

organizadas ainda no curso pré-vestibular do CEASM; o mesmo Ary a quem tive a honra de

entregar, cinco anos depois, a placa de Professor Homenageado de Espanhol; o mesmo de

sempre, professor e parceiro, competente, dedicado e apaixonado pelo ofício. Obrigada por

ainda ter sido aquela mesma pessoa que conheci em 2005 quando fui procurá-lo, dez anos

depois, para ser meu orientador: um ser humano incrível, tão exigente e incentivador de

leituras que me fez precisar de uma nova estante. Agradeço, do mesmo modo, por ter sempre

confiado em mim e por ter me auxiliado, em todas as etapas desta dissertação, bem como com

minha entrevista com o poeta e diretor de cinema César González.

Agradeço aos professores que aceitaram fazer parte desta banca, os Professores

Doutores Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, Jailson de Souza e Silva, Antonio Ferreira da

Silva Júnior e Víctor Manuel Ramos Lemus. É uma honra tê-los como interlocutores, pois são

professores que eu respeito e admiro como profissionais e como seres humanos.

Ao poeta César González pela entrevista que nos concedeu e que foi de suma

importância para esta pesquisa, uma vez que ajudou a rever determinadas análises que vinham

sendo feitas e a corroborar algumas outras.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para que este sonho se realizasse. Quando

falo disso, não consigo deixar de pensar, imediatamente, na oportunidade que tive ao estudar

em um pré-vestibular popular, o CEASM. Sem ter passado por esse lugar, certamente não

teria chegado à Graduação em uma universidade pública. Estando muito claro para mim que o

discurso meritocrático é uma falácia, sei perfeitamente que não basta querer para conquistar

algo, que eu não criei essa oportunidade, que eu não conseguiria nada sozinha, sem o apoio

das pessoas e instituições junto as quais construí minha caminhada.

DEDICATÓRIA

À Débora, irmã de sangue e de alma.

Ao Andreson, amigo, amor e maior incentivador deste projeto.

Ao Matheus, irmão e amigo, à sua maneira.

Aos meus pais e familiares, que cresceram à margem, como eu.

À Marielle Franco, potência que tentaram anular e que só se multiplicou:

mais uma voz feminina que emerge do território da favela

para falar à cidade; uma das sementes plantadas pelo CPV.

Porque Marielle não era uma só.

Somos multidão.

en el pasado salí a robar

y el humo de la pólvora

señalaba mi destino

hoy la poesía

es el piso que camino

César González

Fui crime, sou poesia.

Grafite em um muro do bairro de Botafogo.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

1. EMPODERAMENTO E ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO .................. 20

1.1. Representação de territórios periféricos ................................................................ 20

1.2. Representação de grupos alterizados .................................................................... 33

1.3. Subalternos, periféricos e marginais ...................................................................... 38

1.4. Periferias de Buenos Aires e villas miseria ........................................................... 44

2. A PRODUÇÃO LITERÁRIA VILLERA E FAVELADA: UMA ABORDAGEM

COMPARATISTA .................................................................................................... 53

2.1. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins e Eliana Sousa Silva .................................. 57

2.2. Juan Diego Incardona, Walter Hidalgo, Wk e Leonardo Oyola .............................. 71

3. O OLHAR POÉTICO E CRÍTICO DE CAMILO BLAJAQUIS / CÉSAR

GONZÁLEZ ............................................................................................................... 83

3.1. O contexto de produção de suas obras .................................................................. 85

3.2. A escrita como redenção, resistência e emancipação ........................................... 91

4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CÉSAR GONZÁLEZ ............................... 99

4.1. O lugar de autor reivindicado .............................................................................. 103

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 108

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 110

APÊNDICE ........................................................................................................................... 117

13

INTRODUÇÃO

“Es más peligroso un pibe que piensa que un pibe que roba”. Com essa frase César

González abre seu primeiro livro, La venganza del cordero atado, publicado em 2010.

Embora possa soar como um clichê ou parecer óbvio demais, não é fácil convencer as pessoas

da ideia presente nesse enunciado, pois, para isso é necessário admitir que o segundo “pibe”

(aquele que carrega um revólver ou uma pistola) está tão armado quanto o primeiro (o que

armou seu pensamento com os livros). A resistência a reconhecer essa equivalência entre os

livros e as armas de fogo implica o não reconhecimento da formação de leitores críticos como

uma das ferramentas que possibilitam a transformação dos indivíduos e da sociedade de um

modo geral. No contraponto dessa posição, o que a frase de César González traz é a defesa

intransigente da potência da leitura. Dependendo de onde nasceram – por “onde” entenda-se

tanto a cidade quanto o bairro e o núcleo familiar –, as pessoas terão mais ou menos incentivo

à prática leitora, o que também determinará se enxergarão na educação, desde cedo, um

caminho para a liberdade.

Descobrir César González e ler suas obras, sentindo um desconforto a cada página, foi

uma forma de reabastecer a consciência de que precisamos lutar por nossos espaços e

desconstruir o que um suposto destino nos reservou. Esta pesquisa é o resultado, antes de

tudo, de uma série de desconstruções, de um rompimento de barreiras que se deveu à ação de

muitas mãos. Obstáculos como a pobreza, bem como a consequente falta de referências

intelectuais na própria família, muitas vezes nos fazem olhar o mundo de maneira limitada,

levando-nos a ignorar a imensidão de oportunidades e a potência que nos cerca. Em função

disso, as imagens do território onde crescemos e a história de nossos familiares e vizinhos têm

uma forte influência sobre o modo como nos veremos e sobre os sujeitos que pretenderemos

ser. Mas esses fatores de influência não determinam o que podemos chegar a ser, porque

existem infinitas brechas que nos permitem moldar o futuro diferente daquele que se prefigura

nos fatores dominantes do cenário.

Há alguma coisa errada na estrutura de uma sociedade na qual milhares de jovens

crescem em um bairro vizinho ao campus de uma universidade pública, separados por um

estreito canal de águas turvas, e nunca frequentaram essa ilha do conhecimento universal, nem

sequer chegarão a saber de sua existência. Não, não fomos nós que descobrimos a pólvora.

Alguém já havia notado essa incoerência há pelo menos vinte anos. Foram sujeitos que,

habitando um dos territórios do conjunto de favelas da Maré, tiveram a capacidade de se

14

indignar com essa realidade e resolveram unir esforços para agir em favor daqueles que, como

eles próprios, até bem pouco tempo atrás, eram excluídos do espaço da academia, visto não

como um direito de todos, mas como um privilégio de poucos. A consequência concreta dessa

indignação foi a criação de um curso pré-vestibular que tinha como público alvo os moradores

da região. Um grupo de jovens ocupou o salão de uma igreja católica e começou a dar aulas

no longínquo ano de 1998. O resto é história. Aí surgia o Centro de Estudos e Ações

Solidárias da Maré (CEASM), que agora reverbera nas páginas desta pesquisa, na qual uma

mestranda vê, na caminhada de tantos outros, uma parte da sua própria caminhada: o longo

percurso que leva da favela à universidade, passando antes pelo CPV (Curso Pré-vestibular)

do CEASM (depois REDES da Maré), etapa fundamental para tantos que ingressaram num

curso superior graças àquela utopia. O CEASM surge, assim, como um movimento

transformador que inicia de forma tímida para logo ampliar sua esfera de ação, gerando

resultados impressionantes, como a criação de espaços de valorização da memória e resgate

da história das favelas que integram a Maré, bem como, e não menos importante, a formação

de pensadores que defenderam TCCs, dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sem

jamais esquecer de suas raízes. Ao contrário, investiram no reconhecimento e na valorização

do pertencimento em lugar de negar o território periférico e a vida na favela.

Escrever sobre a favela é uma forma de retornar constantemente a ela e de permanecer

neste lugar, não fisicamente, mas de modo simbólico. O sentimento de pertencimento a um

território é uma etapa fundamental para a formação da identidade e para o surgimento de uma

outra subjetividade. O sujeito periférico, ao construir saberes no espaço reservado a

intelectuais, desloca-se pelo corpo da cidade e desloca com ele novos lugares da cultura,

outras memórias, outras histórias e uma agência inusitada. Esse é um aporte ao mundo

universitário que não pode ser menosprezado. A consequência mais provável de tudo isso é

um tipo de produção textual que se faz a contrapelo, que vai na contramão do cânone e

provoca ruídos, mas estimulará outros pesquisadores que se identificarão com seus ecos.

Embora essas reflexões não tivessem sido abandonadas, estavam bastante

adormecidas, e a obra de González foi responsável por despertá-las e trazer novo ânimo para a

caminhada. Sua poesia interferiu não só neste estudo acadêmico, mas na própria trajetória de

uma debutante pesquisadora, cujas experiências como favelada, nascida e criada na Maré, se

veem refletidas em muitas das páginas de um poeta villero, fator não menos importante para

despertar seu interesse pelo tema sobre o qual se debruçaria. Cabe, portanto, nesse primeiro

momento, registrar os caminhos percorridos por nossa investigação.

15

Com o objetivo de contribuir com as pesquisas sobre as vozes de sujeitos

subalternizados latino-americanos, além de estimular o olhar para esse tipo de corpus na

academia, nos propusemos a analisar o ethos dos moradores de uma villa de Buenos Aires

pelo ponto de vista de César González. Desde o início, sabíamos que nos dedicaríamos a

pensar os modos de representação de territórios marginalizados, mas houve uma alteração no

corpus – o que, contudo, não alterou a essência do projeto. Antes, a ideia era apreciar dois

casos da periferia de Buenos Aires e lê-los juntamente com dois outros sujeitos produtores de

discurso oriundos da favela de Nova Holanda, uma das dezesseis que integram o conjunto de

favelas da Maré. Para isso, selecionamos algumas poesias de César González (parte

representativa da obra), alguns contos de Juan Diego Incardona, o livro Testemunhos da

Maré, de Eliana Sousa Silva, e um conjunto de registros do fotógrafo Bira Carvalho. Devido à

exiguidade do tempo de uma pesquisa de Mestrado, pareceu-nos mais prudente centralizar

nossos estudos em um dos casos e explorá-lo mais em profundidade, referindo-nos a outros na

medida em que a leitura da obra escolhida como corpus convocasse o diálogo.

César González – o caso em que decidimos concentrar nossas reflexões – é um jovem

escritor e diretor argentino que já em seu primeiro livro constrói para si uma identidade

estruturada em torno do pseudônimo Camilo Blajaquis. Esse nome comporta uma dupla

referência: traz a homenagem ao revolucionário cubano Camilo Cienfuegos e ao militante

sindical argentino Domingo Blajaquis, assassinado em 1966 numa pizzaria em Avellaneda e

resgatado do esquecimento pelo escritor e jornalista Rodolfo Walsh.

Nascido na villa1 Carlos Gardel, em Morón, Região Metropolitana de Buenos Aires, e

tendo concluído a educação primária sem interrupções, passou a ter mais afinidade com a

literatura enquanto estava detido em uma instituição para menores infratores por haver

cometido uma série de delitos, razão pela qual é chamado de “ex pibe chorro” (ex-garoto

ladrão) por quase todos os jornalistas que contam, mesmo que de forma resumida, a sua

história. A partir da experiência carcerária, César González repensa sua trajetória e

problematiza a lógica de uma sociedade que produz incessantemente “refugos humanos”

(BAUMAN, 2005). Escreve, nesse momento, seu primeiro livro de poesias, La venganza del

cordero atado, mencionado anteriormente, com textos elaborados em diferentes momentos e

em diversos centros de detenção pelos quais passou (ao longo de cinco anos). Partindo da

análise de sua obra e observando a trajetória deste sujeito e o processo de formação de seu

1 Ou villas miseria, villas de emergencia, como são chamadas as favelas de Buenos Aires, tradução nossa.

16

pensamento crítico e de sua figura de autor no campo literário, dissertaremos sobre as

figurações da villa e dos villeros em sua poesia.

Uma vez que se trata de um corpus ainda pouco explorado na Argentina e totalmente

inexplorado no Brasil, pretendemos com essa pesquisa contribuir para a área dos Estudos

Literários e para o campo das Pesquisas Sociais em Periferias, mais particularmente para os

estudos sobre representações dos territórios periféricos, suscitando novos trabalhos que se

dediquem a apresentar e estudar os discursos produzidos em villas e favelas. O possível

interesse a ser despertado pela originalidade do nosso recorte pressupõe a transformação do

próprio espaço universitário, algo que já se observa, mesmo que lentamente. E esta é uma

realidade inevitável, pois a geração contemporânea de pesquisadores, composta por

estudantes favelados que resolvem investir na potência de escritores de territórios periféricos

– e nas novas representações que propõem – ilumina uma cena cultural periférica que já vem

mudando a própria cara da pesquisa acadêmica, tanto pelo recorte identitário desses novos

pesquisadores e dessas novas pesquisadoras quanto pelos objetos de pesquisa que vêm se

revelando, âmbitos que não estão desvinculados. Com isso, podemos afirmar que as periferias

e o ambiente acadêmico estão cada vez mais interligados, não só pela chegada de figuras,

outrora excluídas do mundo acadêmico, a esses terrenos improváveis, mas também pela

aproximação acarretada pelo fato de tomarem seu lugar de origem como ponto de partida para

as investigações que farão, trazendo com isso um aporte instigante e revitalizador. A nossa

escolha por um escritor villero, diante de uma considerável lista de autores canônicos, revela

o reconhecimento e a valorização das áreas marginalizadas da cidade (a exemplo das villas e

favelas) como outros “lugares de cultura” – expressão de Homi Bhabha (1998) –, base que

nos impulsionou a um continuado investimento ao longo de dois anos e meio, culminando

com um deslocamento até o território de César González em Buenos Aires, a fim de realizar

uma entrevista com o poeta da villa Carlos Gardel.

Da mesma forma, há uma série de pesquisadores que se dedicaram e se dedicam à

temática das periferias, de sua representação na literatura brasileira e de autores e autoras

oriundos desses territórios que também propõem um discurso representativo através do texto

literário. As pesquisas mais recentes foram as que influenciaram este trabalho, sem que se

tenha desconsiderado as que se realizaram anteriormente. Tratou-se apenas de um recorte que

se justifica pelo fato de corresponderem (as mais atuais) a observações mais detalhadas a

respeito de autores que citaremos nesta dissertação, e aos tipos de representação que são

fundamentais para o debate que tencionamos suscitar.

17

Recuperamos as contribuições de Érica Peçanha, Paulo Roberto Tonani do Patrocínio,

Lucía Tennina e Regina Dalcastagnè. Os três primeiros, para fazer uma análise mais focada

em dois dos casos brasileiros que fizeram parte de nossa investigação, Ferréz e Sérgio Vaz e

suas respectivas obras; a última, pelas diferentes perspectivas apresentadas sobre

representações da margem e de sujeitos alterizados na narrativa brasileira contemporânea.

Antes de contemplar nosso tema central, propusemo-nos a (re)leitura de obras sobre

assuntos mais gerais que atravessam os textos literários apreciados. Abordadas ao longo do

texto, questões como alteridade, marginalização e representação são essenciais para o

entendimento das dificuldades enfrentadas por escritores oriundos de zonas periféricas para se

inserirem e serem aceitos pelo campo literário.

Aqueles que, por serem letrados e acumularem um grande capital intelectual, sempre

tiveram autoridade para narrar os fatos ocorridos nas áreas mais pobres e esquecidas da

cidade, não eram os mesmos que os testemunhavam diariamente. Pretendendo criar um

contradiscurso alternativo, que desfaça essa injustiça no campo da representatividade, muitos

sujeitos de periferias vêm reclamando seu direito à fala e à escrita, produzindo textos (orais,

escritos e audiovisuais) que abordam temas pertinentes às experiências vividas nesses

territórios mantidos à margem daquilo que se consolidou como a “cidade letrada” (RAMA,

1998). Construindo para si um lugar de autoria, mostram um olhar sobre e desde a periferia,

em um acúmulo de papéis que subverte o modelo até então dominante: agora são,

concomitantemente, observadores e objetos da observação.

A fim de destacar o valor (especialmente simbólico) dessas produções, recorremos à

definição de Ileana Rodríguez (2000), para quem a simples presença dos subalternos (noção

que discutiremos mais profundamente no Capítulo 1) em espaços que historicamente lhes

foram e são negados muda seu significado cultural e, no momento em que essa figura

alterizada transgride o limite estabelecido para sua circulação e atuação, começa a exercer um

poder que reside na construção de uma autoridade epistemológica e na reconceitualização do

que viria a ser arte e literatura. Lucía Tennina defende essa mesma ideia ao afirmar que “ser

parte de un libro o publicar un libro autoral en el universo de la literatura marginal acarrea una

carga simbólica enorme vinculada a la conquista de un espacio históricamente negado a ese

grupo” (TENNINA, 2015, p. 137).

Apostamos na legitimidade literária das produções dos autores aqui contemplados e

destacamos que é inadiável o debate sobre a ampliação não só do espaço, mas também – e

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essencialmente – da valorização da voz dos subalternizados, tanto dentro da academia quanto

no universo editorial, desde que não seja apenas por interesses de mercado.

Além dos assuntos mais gerais relativos aos processos de assunção de voz dos sujeitos

subalternizados, discorreremos sobre temas mais específicos como a representação da villa e

da favela, bem como sobre aspectos relativos ao território periférico e ao conurbano

bonaerense, igualmente imprescindíveis para uma pesquisa em que se discutem as formas de

representação desses espaços e das vidas que os constituem, seja pelos discursos

hegemônicos, seja pelas vozes de escritores que se projetam no campo literário a partir da

experiência da periferia.

Pontuamos de antemão que, embora tenhamos abordado questões como territórios

periféricos de Buenos Aires, a exemplo da áreas de conurbação e das villas de CABA (Ciudad

Autónoma de Buenos Aires), em função de sua estreita ligação com o tema e com o corpus

desta pesquisa, nosso interesse maior é a “villa vista” pelo autor, isto é, o modo como o poeta

vê e representa os assentamentos periféricos e, em particular, a villa Carlos Gardel, de onde

vem César González. Dito de outro modo, mais que pensar de modo geral os problemas do

“vivir en la villa”, a problematização da cidade e das villas que ecoa neste trabalho,

procuramos concentrar nossa atenção na forma como uma subjetividade bastante particular

viu e viveu a sua villa. Buscamos uma estratégia similar à de Carlo Ginzburg, em O queijo e

os vermes, obra na qual o historiador italiano realiza um exercício de micro-história,

sugerindo a microanálise de um caso bem específico: o de Menocchio, um moleiro friuliano

que não é uma representação de todos os camponeses daquela região ou do modo como

viviam no século XVI, tampouco traz informações sobre a vida dos outros moleiros desse

período histórico. É um caso único, visto em profundidade, a partir dos dados que a

documentação dos arquivos da Inquisição permite recuperar.

Outros dois textos compõem o marco teórico e se mostraram importantes para

desenvolver as problematizações que derivaram dessa abordagem. Ao nos perguntarmos sobre

a forma mais apropriada para nos referirmos a César González, consideramos as formas já

tradicionais que definem a subalternização dos sujeitos da periferia que são mantidos à

margem da cidade e do campo cultural letrado. Nesse momento, as discussões de Leopoldo

Zea, em Discurso desde a marginalização e a barbárie, e de Gayatri Spivak, em “¿Puede

hablar el subalterno?”, foram primordiais para a compreensão dos sentidos que estão por trás

de cada escolha. Falar de “periférico” pressupõe a existência de um centro que serve como

referência ao debate; enquanto que “marginal”, além de também estar em relação a um

19

referencial central, implica a discussão de um processo de marginalização que sofreram os

povos ou grupos dominados por outros, e não de uma marginalidade natural e irremediável; já

a ideia de “subalterno”, segundo Spivak (2003), pode ser aplicada aos indivíduos incapazes de

falar sem depender de um intermediário. Há outras abordagens para este tópico, mas que

serão desenvolvidas mais adiante.

Quanto à estrutura da dissertação, procuramos reservar os dois primeiros capítulos aos

debates teóricos e literários que giram em torno do objeto principal da pesquisa, dedicando os

dois seguintes à análise mais aprofundada desse corpus.

Optamos por iniciar com um capítulo sobre territórios periféricos, grupos alterizados e

as formas de representação desses lugares e sujeitos para que pudéssemos estabelecer uma

base para as discussões futuras, as quais passarão por esses temas inevitavelmente. O objetivo

foi dar destaque aos estudos que oferecem importantes subsídios para compreendermos o que

se entende por território, periferia e alteridade.

No segundo capítulo, faremos uma análise comparatista das obras de autores

brasileiros e argentinos, destacando (especialmente) as similaridades entre tais produções.

Além do diálogo entre os textos (seus temas e objetivos), buscamos contrastar o sistema

educacional de cada país diante da possibilidade de projeção de novos autores oriundos dos

territórios periféricos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.

Em seguida, passaremos ao estudo da “villa vista” de César González e do contexto

em que se constrói seu olhar poético e crítico, resultando na escrita de seu primeiro livro, a

partir do qual o autor usa a palavra como arma. Trataremos, ainda, da emancipação alcançada

através da literatura, baseando-nos na leitura crítica de sua obra literária em diálogo com sua

caminhada biográfica, visitando, brevemente, sua produção cinematográfica, a fim de

ressaltar a coerência de seu ativismo nos diferentes campos em que atua.

Finalmente, no quarto capítulo, trataremos do resultado a que chega o escritor

argentino pela construção de uma figura de autor através da reivindicação de uma identidade

villera e do enraizamento ao território da periferia, instituindo um novo lugar de autor na

literatura de seu país.

20

1. EMPODERAMENTO E ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO

Tout parle, cela veut dire aussi que les hiérarchies

de l'ordre représentatif son tabolies.2

Jacques Rancière

"Chi costruì Tebe dalle sette porte?" – chiedeva

già il “lettore operaio” di Brecht. Le fonti non ci

dicono niente di quegli anonimi muratori, ma la

domanda conserva tutto il suo peso.3

Carlo Ginzburg

A discussão sobre o empoderamento de grupos alterizados e as representações de

territórios periféricos está inserida em um contexto mais amplo que não só favorece como

exige o debate social, político e cultural acerca de produções textuais que se apresentam

enquanto discursos alternativos aos que circulam pelos canais hegemônicos. Essa produção

que disputa o relato da cidade caminha na contramão da construção de uma imagem

estigmatizadora dos territórios periféricos da metrópole e daqueles que aí vivem. Ao mesmo

tempo, esse contradiscurso ressignifica o lugar dos subalternizados e cria as condições para a

produção de um novo lugar de autoria e agência. Essa nova posição no cenário representativo

permite a ruptura da imagem depreciativa que se impôs de villeros e favelados a partir da

ideia de “ausência”, revelando, em vez disso, sua “potência” para atuar e transformar a

realidade, trazendo à tona a complexidade de seu modo de viver e de exercer a cidadania,

conforme defende Jailson de Souza e Silva (2012).

1.1. Representação de territórios periféricos

A representação dos territórios chamados periféricos que prevalece no imaginário

criado pelos ditos discursos dominantes caracteriza-se, no geral, por uma descrição pejorativa,

que despreza uma série de fatores relevantes para uma apreensão global do fenômeno de

villas e favelas.

2 “Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. “(Jacques

Rancière) 3 “«Quem construiu Tebas das sete portas?» - perguntava o «leitor operário» de Brecht. As fontes não nos

contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso.” (Carlo Ginzburg)

21

É no intuito de transformar o olhar lançado sobre esses territórios que surgem novas

formas de narrá-los. Podem ser encontradas, principalmente (mas não exclusivamente) na voz

de autores de procedência villera/favelada e que guardam um sentimento de pertencimento a

esses lugares. Assumindo essa identidade periférica, propõem outro discurso, a fim de

contrapor-se às falas que têm predominado, manifestando uma hierarquia entre os diferentes

lugares da cidade e, uma posição claramente política que criminaliza a diferença.

Um debate que deve anteceder ao da estigmatização das periferias é o que trata de

questões territoriais mais gerais, daí a complexidade do tema. Diferentes pesquisadores, a

partir de enfoques de área e segundo seus próprios interesses investigativos, explicam-nos o

que entendem por território, quais as implicações de cada conceituação, por que e como

ocorrem as disputas territoriais, com que outras temáticas esta dialoga, entre outras

abordagens.

O geógrafo Rogério Haesbaert (2008) propõe uma discussão profunda sobre a noção

de multiterritorialidade, utilizando-a como superação da ideia de desterritorialização.

Conforme sustenta o autor, esta última pode ser associada a uma espécie de mito, já que o

processo de transformação dos territórios e deslocamento dos sujeitos deve ser encarado como

reterritorializações, e não somente como desterritorialização, o que supõe um

desaparecimento dos territórios originais. Segundo Haesbaert, os indivíduos e grupos sociais

estão em constates e complexos processos de (re)territorialização, os quais ele intitula de

“multiterritorialização”.

Ademais, o autor comenta que o conceito de território pode assumir conotações

materiais e simbólicas, que vão condicionar o modo como os indivíduos se relacionam com o

espaço. Aqueles que circulam por um determinado lugar podem se conectar a ele através de

uma identificação (neste caso, positiva) que esse território inspira ou pelo sentimento de

apropriação, provocado pela experiência de vida naquele espaço. Seja pelo sentido material de

dominação (associado à propriedade) ou pelo simbólico de apropriação (um sentido ligado ao

que de fato se experenciou ali), território carrega em si a ideia de poder. E estes sentimentos

de território pela apropriação e pela dominação, devido à sua diversidade e complexidade,

constituem aquilo que nos permite considerá-lo múltiplo.

Mais que a diversos territórios, a multiterritorialidade diz respeito aos espaços

geográficos caracterizados pelas mais variadas representações sobre eles, deixando em

evidência as complexas relações sociais que eles comportam. O conceito de

multiterritorialidade também dá conta da impossibilidade de, ao discorrer sobre território,

22

tratar-se de forma dicotômica e excludente seus sentidos “funcional” – de dominação política,

cultural, econômica – e “cultural-simbólico” – de apropriação subjetiva – (HAESBAERT,

2008, p. 20). Recordando Lefebvre, o autor defende que

dominação e apropriação deveriam caminhar juntas, ou melhor, esta última deveria

prevalecer sobre a primeira, mas a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a

primeira sobrepujasse quase completamente a segunda, sufocando as possibilidades

de uma efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-

empresarial e/ou completamente transformados em mercadoria. (HAESBAERT,

2008, p. 20)

Dependendo do tipo de dominação sobre o qual estejamos debatendo, é de suma

importância pensar nessas categorias que o pesquisador associa ao território, pois exercer

poder sobre uma área (com suas complexidades e multiplicidades) é uma forma de controlar

pessoas e modos de relacionar-se, controlando e decidindo quem/o que pode fazer parte dela

ou por ela circular (física ou simbolicamente). Cabe destacar que tal controle pode assumir

diversos tipos e níveis de intensidade.

Refletindo sobre essas relações de poder que acompanham o território, o pesquisador

colombiano Carlos Zambrano (apud HAESBAERT, 2008, p. 28) afirma que “o território se

conquista”, sendo assim produto de “luta social convertida em espaço”. E é em cada um dos

múltiplos territórios “conquistados” que se manifesta a multiterritorialidade.

Essa territorialidade plural em sentido mais estrito, ou, “pós-moderna”, segundo

Haesbaert, resulta de um espaço marcado pela descontinuidade, fragmentação e

simultaneidade “de territórios que não sabemos mais onde começam e onde terminam” (2008,

p. 32), pois são diferentes territórios combinados. Por essa razão, devemos pensar no desafio

que carrega a seguinte indagação do autor: “como organizar movimentos políticos de

resistência através de um espaço tão fragmentado e, em tese, multi-escalar e... desarticulado?”

(HAESBAERT, 2008, p. 31). Isso seria possível porque um mesmo indivíduo ou grupo social

é capaz de pertencer e participar de múltiplos territórios ao mesmo tempo.

Quanto às implicações políticas do conceito de multiterritorialidade, Haesbaert discute

a importância de observá-la enquanto estratégia de poder. Acionar essa multiterritorialidade

depende dos recursos disponíveis para fazê-lo, os quais se encontram acessíveis apenas à elite

globalizada. Isso significa que os grupos sociais não pertencentes à elite estão mais próximos

de uma “multiterritorialidade potencial” (aquela que é possível de ser construída), enquanto

que esse pequeno grupo privilegiado alcança uma “multiterritorialidade efetiva”, que se

realiza de fato.

23

Como argumenta o geógrafo, “falar não simplesmente em desterritorialização mas em

multiterritorialidade e territórios-rede, moldados no e pelo movimento, implica reconhecer a

importância estratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade”

(2008, p. 36). É pensar o território para além da ideia tradicional de um lugar estável, estático

e homogêneo, com limites e identidades bem marcadas. Para uma forma eficaz de reconhecer

e respeitar as diferenças humanas que formam cada espaço geográfico, é imprescindível que

se lance um olhar para o tema a partir da perspectiva da multiterritorialidade, por ser mais

abrangente e capaz de dar conta da multiplicidade das manifestações que ocorrem em cada

território, material ou simbólico.

Na ocasião do seminário “O que é a favela, afinal?” – que resultou na publicação do

livro homônimo –, a problemática territorial também foi suscitada. Organizado em 2009 pelo

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (localizado na favela de Nova Holanda, Maré), o

evento reuniu pesquisadores e representantes de diversas instituições interessados no debate

sobre o tema favela. O objetivo do encontro foi refletir sobre o conceito de favela e as

representações hegemônicas que se fazem sobre esse território, apresentando, por meio da

multiplicidade de olhares dos participantes, outras possibilidades de significado e de

representação do fenômeno como proposta alternativa ou, por que não dizer, contraproposta a

um discurso que estigmatiza a favela.

O seminário teve, ainda, um significado simbólico, por cessar a tradição de restringir o

debate a ambientes acadêmicos e levá-lo para dentro do espaço que serviu de inspiração para

o encontro: a própria favela. Além disso, ao (re)pensar a favela na perspectiva da urbanização

brasileira, discutiu-se sobre a diversidade e complexidade desse espaço e sobre a urgência de

legitimar-se a presença das favelas (e seus habitantes) na cidade, como forma de avançar na

criação de políticas públicas que respeitem, reconheçam e garantam seus direitos sociais.

Para os pesquisadores, além de as representações das favelas revelarem um estereótipo

desse território a partir da ideia de ausências “urbanas, sociais, legais e morais” (SILVA,

2009, p. 17), definindo-as a partir daquilo que ali não há ou daquilo que a favela não é,

também indicam uma homogeneização. Para contrastar esse discurso hegemônico, destacam

aspectos das favelas e dos favelados que caracterizam sua diversidade. De igual maneira,

descrevem as diferentes intervenções que já ocorreram (e ocorrem) nas favelas, garantindo

construção de escolas e postos de saúde e o fornecimento de serviços como água, iluminação

e coleta de lixo, frutos de reivindicações dos próprios moradores ou de projetos estatais cujo

objetivo era reordenar o espaço urbano.

24

Um dos pontos mais preocupantes dessa incoerência entre o imaginário que se

instituiu e o objeto representado é que essa “crise de representação” afeta os mais variados

setores da cidade, que acabam se orientando pelas conotações predominantes a respeito do

espaço periférico que é a favela. Daí é que surge a necessidade de construir uma

representação capaz de apreender o fenômeno em sua totalidade, identificando e respeitando

suas particularidades e seu caráter heterogêneo. A finalidade é criar uma conceituação que

propicie a elaboração de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano, segundo

as reais necessidades do território.

As favelas não apenas são diversificadas em seu próprio interior e em comparação a

outras – seja de uma mesma cidade ou de cidades diferentes e mais distantes –, como também

se distanciam muito do que eram em seu momento embrionário, há mais de um século, e há

algumas poucas décadas. Como ressalta Gerônimo Leitão (2009), já nos anos 1940 havia

estudos que afirmavam a existência de particularidades destes assentamentos informais,

alertando sobre as disparidades “inter e intra favelas” da cidade do Rio de Janeiro, conforme

já mencionado. Portanto, é necessário desconstruir a visão que impera tanto no senso comum

quanto dentro de setores da administração pública e entre pesquisadores da cidade, que ainda

insiste em classificá-las como semelhantes (em sentido amplo e estrito).

O caminho para a resposta à indagação “O que é a favela?” é um verdadeiro labirinto,

posto que há várias maneiras de alcançá-la e nenhuma delas será simplista e de suficiente

abrangência, pelas razões já comentadas. Seja qual for o resultado a que se chegue, cabe

destacar que a mudança do significado atribuído ao significante “favela” é, acima de tudo,

produto da luta de seus moradores pela revisão do significado dessa categoria, passando a

constituir-se como meio de afirmação de sua identidade. Tal postura redefine as

representações sociais historicamente verificadas desse espaço de habitações populares, que

eram “construída[s] por intérpretes autorizados – entre os quais cronistas, jornalistas,

engenheiros e médicos –, como antítese de um certo ideal de cidade”, segundo Marcelo

Baumann Burgos (2009), quem nos lembra ainda que foi por volta de 1960 que começaram a

surgir cientistas sociais que lutaram pelo “direito à interpretação legítima da favela”,

identificando-a “como lugar, por excelência, da cultura popular”. Essa nova identificação

possibilita definir a favela pelo que é e pelo que não é, humanizando o conceito, além de ser

um grande passo para a elaboração de uma agenda de políticas públicas que provoquem

mudanças significativas na cidade.

25

Em consonância com essas intervenções acadêmicas, há também os movimentos

literários com o surgimento de escritores villeros e favelados. Ao construírem representações

de si mesmos, partem de um exercício criativo, político e cultural de imaginação (social e

coletiva) do que são as villas e as favelas (e seus respectivos habitantes). A partir do momento

em que esses escritores, fotógrafos e cineastas da periferia imaginam a si mesmos, tanto

villeros como territórios periféricos surgem como potência e não mais como o lugar da falta.

Referimo-nos à imaginação de que trata Benedict Anderson quando, ao dissertar sobre

as origens do nacionalismo, propõe a definição de nação como “uma comunidade política

imaginada”, limitada e soberana. O autor explica: “Ela é imaginada porque mesmo os

membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão

falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da

comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p. 32). Igualmente, esclarece que se trata de uma

comunidade porque seus membros pressupõem um companheirismo, apesar das

desigualdades que possam marcá-la; é limitada porque possui fronteiras bem definidas – não

se imagina uma nação da qual toda a humanidade faça parte; e é soberana porque todas as

nações se projetam (se imaginam) como livres, sendo o Estado soberano o símbolo desta

liberdade.

Com os efeitos da mundialização, o conceito de nação se projeta para além da ideia de

país. Conforme afirma Arjun Appadurai (2001), a globalização provocou transformações na

modernidade, que experimentou grandes fluxos, principalmente os migratórios e os de

informações (este último, com o auxílio dos meios eletrônicos de comunicação). Tais fluxos,

quando justapostos, resultam no “trabalho da imaginação”, peça fundamental da subjetividade

moderna, na qual também interfere a memória (sobre a qual voltaremos outras vezes mais

adiante). Os indivíduos ou grupos que emigraram para diversas partes do mundo elaboram

seus próprios “mundos imaginados”, fruto de uma imaginação coletiva.

Esse “trabalho de imaginação”, seja por meio da memória, do apego ou do desejo, é

um campo de constantes disputas e negociações simbólicas, pois é o reflexo das

subjetividades desterritorializadas, que compõem um grupo de diferentes origens, etnias,

línguas, crenças, valores e ânsias; diferenças, em alguns casos, abissais.

Voltando as atenções para a convergência entre território, identidade e memória, Ary

Pimentel (2017) reflete sobre memória coletiva ou memória social “como resultado de uma

guerra de relatos ou representações que buscam assumir uma posição dominante ao longo de

um processo de muitas disputas”, lembrando que “é da experiência no cotidiano do território

26

que emerge a própria memória como construção social”, um movimento que envolve “a

identidade do «nós» e dos «outros»” (PIMENTEL, 2017, p. 327-328). Segundo o autor

(baseando-se em estudiosos como Maurice Halbwachs), o foco recai sobre um sentimento

coletivo porque as memórias pessoais implicam igualmente memórias sociais.

É imprescindível a existência de um território para que as lembranças construídas se

manifestem e os sujeitos que as produziram exponham sua existência, estabeleçam seu

passado e garantam seu futuro. Território, independente da maneira de conectar-se a ele, é

uma forma de poder, reforçando aqui o que afirmou Rogério Haesbaert, como já comentamos.

Dessa forma, o território pode ser analisado a partir de diversas concepções, sendo

umas associadas a questões materiais (“relações econômicas e de produção”) e outras,

ideológicas (relações simbólicas). Estas últimas são as concepções reivindicadas pelo diálogo,

proposto no artigo de Pimentel, entre memória e território. Como sublinha o autor, é no

território simbólico que se constroem as identidades, elas próprias responsáveis por atribuir

sentidos outros para esse espaço ocupado. Por isso, pode-se afirmar que um território é

formado, particularmente, “pelas relações que a população que o ocupa trava com o espaço

físico” (PIMENTEL, 2017, p. 329), ficando em destaque suas memórias e valores, entre

outros aspectos.

Diante da nova realidade em que estão inseridos, os territórios villeros e favelados

passam a figurar como um espaço privilegiado para o aparecimento das recentes identidades,

plasmadas literariamente por escritores representativos das intervenções que inscrevem sua

memória na rede de representações dominante, alterando a identidade das próprias periferias e

das cidades como um todo. Outras expressões artísticas, como a música e a fotografia,

figuram como instrumentos para a elaboração e o estabelecimento da memória local, já que

também são responsáveis por compor o registro e a documentação que preservarão e

imortalizarão as memórias de indivíduos e grupos.

Sejam quais forem as ferramentas utilizadas, e criando estratégias para burlar a

privação a muitas delas, cada agente da construção da memória de territórios periféricos acaba

instituindo um discurso que pretende representar indivíduos e uma coletividade – ainda que

não possamos garantir o êxito absoluto desta tarefa, tendo em vista que nem todos se sentirão

contemplados por determinadas falas e que múltiplas identidades estão em jogo em cada

processo. Ao reconstruírem seu passado, os sujeitos alterizados, postos à margem dos espaços

de fala, projetam-se para o futuro, pois, por meio desses discursos,

27

muitos indivíduos que integram essa cultura tão particular encontram uma forma de

representar o espaço onde vivem e de escapar à não-existência que é morrer sem

deixar memória de seus atos, de sua passagem pela vida. Talvez a principal

característica dos Outros seja, desde os bárbaros e escravos da antiguidade até os

grupos das nossas periferias urbanas no século XXI, a impossibilidade de acesso aos

instrumentos de voz e, na falta destes, a ausência de registros da sua experiência

para as gerações seguintes. (PIMENTEL, 2017, p. 331)

Para exemplificar uma dessas produções a que nos referimos, vale a pena mencionar

que Pimentel vê no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, o fator que poderia ter

impulsionado a valorização da memória de territórios periféricos e o aparecimento de “novos

sujeitos do discurso” – ideia também defendida por Paulo Roberto Tonani do Patrocínio

(2013a). Esses novos autores, por sua vez, trouxeram outras formas de leitura da realidade das

favelas, e agora afirmam a condição de moradores desses territórios por perceberem que se

trata de um diferencial na construção de sua própria identidade e memória, bem como de seu

lugar no campo cultural.

Os discursos produzidos por indivíduos e grupos de regiões periféricas e

estigmatizadas, através das mais variadas formas de expressão e marcados essencialmente

pela violência simbólica, apresentam uma visão que se contrapõe à versão homogeneizadora

dos espaços geográficos e do ethos de seus habitantes, propondo uma cristalização de imagens

que se consolidaram no senso comum e constituem o que Teresa Pires do Rio Caldeira (2000)

chamou de “fala do crime”. São os mencionados discursos de atores da periferia que

viabilizam a apreensão da dinâmica desses territórios por parte daqueles que não os conhecem

por ainda não terem experenciado qualquer vivência nesses espaços geográficos. É também

através dessas expressões que percebemos um sentimento de pertencimento a um território

específico (ou microterritório) ou a vários deles, de modo mais intenso que este outro

sentimento de pertença tradicionalmente associado à nação.

Voltando a revisar o termo, é importante assinalar que, na cena contemporânea, o

conceito de nação assume novas facetas e se distancia da ideia de soberania territorial, o que

Arjun Appadurai considera uma “crise do Estado-nação”, a qual é provocada por fenômenos

como a diáspora e os diferentes deslocamentos e fluxos. Em consequência de tais fenômenos,

surgem grupos “não-nacionais” e “pós-nacionais” que, por sua vez, produzem

“translocalidades”,4 desafiando “a ordem e a ordenação do Estado-nação” (APPADURAI,

1997, p. 34). Dito de outro modo, a ideia de soberania sem territorialidade se refere ao fato de

que não há uma integridade territorial no Estado-nação contemporâneo. Estamos tratando

4 Como exemplos de translocalidades, Appadurai cita as zonas de livre-comércio, os campos de refugiados, os

albergues de imigrantes e os bairros de exilados e trabalhadores imigrantes (1997, p. 36).

28

agora de fragmentos semiautônomos de um território maior, que constitui microlocalidades,

nas quais constrói a memória e se afirmam as identidades.

Já não apenas as guerras ou os problemas derivados do controle de fronteiras

representam ameaças à soberania e à integridade territorial e nacional – que são a base política

e jurídica fundacional do Estado-nação –, mas também os outros modos de se “conquistar”

um espaço, como aquele que se dá por intermédio das mercadorias, remetendo-nos à

complexa questão do consumo e às práticas nele embutidas, assunto tratado por Néstor García

Canclini, em Consumidores e cidadãos, e que abordaremos mais adiante. Ao assumir-se uma

estética translocal – postura que Appadurai intitula “promiscuidade cultural” –, dilui-se a

lealdade ao território nacional e ao imaginado e pretendido isomorfismo do Estado-nação.

Aludindo a Benedict Anderson, Appadurai defende que a nação surge da imaginação,

o que também poderá nos levar para além da nação tradicional. Imaginar a “nação” é pensar

um lugar que se considera a sua própria terra, onde não há um determinado controle territorial

associado às forças ou aos grupos de força responsáveis pelo(s) ato(s) de imaginar. Uma vez

que estamos diante da emergência de identidades multiculturais, a imaginação configura-se

como um desafio. Imaginar um espaço nacional pode levar à criação de uma etnia em um

território já existente ou à expansão de uma etnia majoritária (de um determinado território) a

outros Estados-nações já existentes. Do mesmo modo, existem dificuldades semelhantes na

produção de localidades

porque a memória e as ligações que os sujeitos locais mantêm [...] estão sempre em

conflito com as necessidades do Estado-nação de regular a vida pública. Mais ainda,

é da natureza da vida local desenvolver [...] seus próprios contextos de alteridade

(espacial, social e técnica), os quais podem não se adequar às necessidades de

padronização social e espacial, pré-requisito para o cidadão-sujeito moderno.

(APPADURAI, 1997, p. 34)

Nessa disputa pela caracterização do espaço nacional – que passa igualmente pela

busca do direito à memória nas microlocalidades –, nota-se que o valor que o Estado lhe

atribui difere daquele concebido por parte dos cidadãos. Enquanto o Estado se preocupa com

o macroterritório, no qual se deve manter a integridade e a vigilância, os homens comuns se

conectam mais a uma noção de terra como o lugar de origem e de pertencimento, numa escala

bem mais restrita.

O direito à memória foi discutido por Mario Grynszpan e Dulce Chaves Pandolfi

(2007), no âmbito das memórias de favelas e abordando mais especificamente as favelas do

Rio de Janeiro. Os autores lançam luz sobre o papel protagonista que a memória tem

29

assumido tanto em investigações de diversas áreas do conhecimento quanto em movimentos

dos distintos setores da sociedade, lembrando que o interesse por tal tema não é algo novo.

Focalizando a discussão na cidade do Rio de Janeiro, os pesquisadores descrevem as

intervenções realizadas em algumas favelas e que buscam estabelecer meios de registrar suas

memórias, um movimento iniciado na década de 1990 que é, ao mesmo tempo, resultado e

força motivadora de lutas pelo direito à preservação e divulgação de uma memória criada

pelos próprios moradores. Esse movimento atua como uma ferramenta a mais no trabalho de

desconstrução dos estigmas associados a esses territórios desde sua criação no final do século

XIX.

Definir o que terá um lugar na memória, porém, não é uma tarefa simples, e não

apenas quando se trata de determinar a memória de favelas. Ao longo da história, a escolha do

que deve ser lembrado ou esquecido, isto é, a seleção de sujeitos, relatos e fatos que comporão

uma memória implica muita disputa e negociação, surgindo esta memória como resultado “de

relações de força existentes nas sociedades, instituições e grupos sociais, e que determinam

quem está autorizado, legitimado a lembrar, como lembrará e o que lembrará”

(GRYNSZPAN e PANDOLFI, 2007, p. 67). Com o avanço dos debates que giram em torno

das favelas, colocando-se em destaque a necessidade de valorizar sua história e sua realidade

multifacetada, em detrimento dos estereótipos que as caracterizam no senso comum, torna-se

premente a abertura de espaço para que sejam narradas as memórias de grupos até então

silenciados e menosprezados.

Esses grupos oferecem uma representação de si mesmos, alternativa à da história

oficial, e se antes eram apenas o objeto de representação, agora são atores centrais do

processo de construção de sua própria imagem e memória. Além de romper os estigmas

contra as favelas e os favelados, assim como ocorre com villas e villeros, o que pretendem é

que o reconhecimento e a legitimação de memórias de favelas e villas culminem no acesso

aos seus direitos como cidadãos. Da mesma forma, lutam para que a rememoração do passado

garanta seu futuro, ou seja, sua continuidade e permanência, eliminando as ameaças de

remoção que fizeram parte de sua história.

Apesar de serem os principais agentes mobilizadores do exercício de recuperação das

memórias, os grupos “de dentro” das favelas não operam individualmente, pois contam com o

apoio de indivíduos, grupos e instituições “de fora” – públicas e privadas, nacionais e

estrangeiras – para concretizar seus projetos. Este é o caso, por exemplo, do Museu da Maré,

situado no complexo de favelas da Maré e resultado do projeto “Rede de Memória”,

30

desenvolvido pela ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). O museu,

que existe desde 2006, recebeu apoio do Ministério da Cultura e tem uma ampla rede de

colaboradores. Em muitos casos, precisa-se de apoio técnico e/ou financeiro para a finalização

desse tipo de projeto, e aí entram as redes de colaboração com organismos externos às favelas,

uma evidência de que não se trata de um trabalho que interessa apenas aos moradores desses

espaços. A própria ideia do que é ser “de dentro” ou “de fora” não parece algo pacífico ou

definitivo, nem se pode ver qualquer exclusividade nos termos da dicotomia.

Em suma, os envolvidos nessas iniciativas de memória local atuam na busca da

redefinição e ressemantização do que vem a ser villas e favelas, através de discursos que dão

destaque a aspectos positivos considerados marcantes para a história dos moradores. Com

isso, espera-se que as caracterizações pejorativas desses territórios deem lugar a um novo

olhar, mais atento à sua potência e ao seu papel na formação da história da cidade como um

todo. A mudança dessa visão deve ocorrer especialmente junto a quem desconhece a realidade

das villas e favelas, mas também para seus próprios habitantes, que não raro associam esses

lugares a ideias negativas. A partir do momento em que moradores de favelas mudam as

percepções de si e do espaço em que habitam, mudam também os objetos de reivindicação.

Mais ainda, surgem reivindicações daquilo que não era enxergado como direito seu, por serem

favelados, e a isso se segue uma profunda transformação da realidade. Alteram, assim, sua

relação com a cidade em sua totalidade, pois provocam uma interação com práticas de

representação que circulam entre os diferentes grupos e territórios dessa cidade.

A ideia de circularidade, da qual também trata Carlo Ginzburg em O queijo e os

vermes, dialoga com a temática desenvolvida por Néstor García Canclini (2015), quando

analisa as transformações no modo de consumir e busca entender suas consequências nas

formas de exercício da cidadania. A partir das considerações de Canclini, pode-se afirmar que

uma circularidade entre cultura popular e cultura erudita se torna possível através do

consumo, pois a lógica que comanda suas práticas ultrapassa a fronteira do capital financeiro.

Muitas respostas para as indagações dos sujeitos, especialmente os jovens, sofrem mais

influência do consumo de bens e produtos dos meios de comunicação que do exercício da

cidadania. A globalização, enquanto “processo de fracionamento articulado do mundo e de

recomposição de suas partes” com “tendências hegemônicas da urbanização e da

industrialização da cultura” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 11), produziu um novo cenário

para as relações culturais, o que foi ligeiramente captado pelas indústrias de comunicação. O

modo de se fazer política também foi influenciado por essa globalização, acompanhando a

31

emergência de comunidades de consumidores em um processo heterogêneo de

“reordenamento das diferenças e desigualdades” (ibidem, p. 11).

No contexto da globalização, como explica Canclini, a América Latina se manteve

numa condição de subordinação, desta vez aos Estados Unidos, e não mais à Europa. Se, por

um lado, “por meio da relação com a Europa, nós, latino-americanos, aprendemos a ser

cidadãos”, por outro, nossos “vínculos preferenciais com os Estados Unidos nos reduziram a

consumidores” (ibidem, p. 13), e esta é a principal diferença nas formas de dependência

experimentadas por essa região. Por isso, refletir sobre o território latino-americano a partir do

papel do consumo é deixar de enxergá-lo simplesmente como sinônimo de gastos supérfluos

para tratá-lo como algo que serve para pensar, como um espaço “no qual se organiza grande

parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades” (ibidem, p. 13-

14).

Apesar do esforço (com base em fundamentalismos nacionalistas e etnicistas) de

resistir ao multiculturalismo e de negar a coexistência de identidades heterogêneas e

complexas na América Latina – com o intuito de afirmar uma falsa homogeneidade –, o que

se observa é um fenômeno que contraria tais expectativas: “a constituição híbrida das

identidades étnicas e nacionais” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 21) se projeta como uma

consequência do incontrolável aumento demográfico nas grandes cidades e da supressão das

“monoidentidades”, sobretudo na segunda metade do século XX.

Em uma época em que se dissolve a oposição entre o próprio (o nosso ou o nacional) e

o alheio (o estrangeiro), tais identidades se constroem a partir do consumo e, como se

costumou definir no senso comum, ser equivale a ter, isto é, o ser depende daquilo que se tem

ou do que se pode vir a ter. A hibridação no processo de produção dos bens é o fator

predominante na diluição da relação dicotômica entre próprio e alheio, pois já não é possível

definir uma única origem para os produtos, que podem ser fabricados em um país, mas com

matéria-prima e/ou mão-de-obra de tantos outros. Conforme escreve Canclini, “a cultura é um

processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de

traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar”, e por

essa razão “os objetos perdem a relação de fidelidade com os territórios originários” (ibidem,

p. 32). O sentimento de pertencimento a um território também passa a constituir-se de modo

heterogêneo, pois as identidades pós-modernas deixam de ser territoriais para serem

transterritoriais, o que não significa que elas se perdem, mas que se tornam mais complexas,

transnacionais.

32

O autor ainda afirma que a faixa etária pode ser mais importante que o lugar de origem

para determinar a escolha do que se vai consumir, pois as lógicas de consumo que ajudam a

definir as identidades podem responder a diferentes motivações, gerando uma quebra de

expectativa e desconstruindo antigos dualismos (pobre x rico, erudito x popular, centro x

margem, púbico x privado, asfalto x favela, cheto5 x villero), que já não exercem tanta

influência nas construções identitárias dos jovens, especialmente. Dito de outro modo, o que

determina o consumo pode ser menos o território e mais o aspecto geracional das identidades.

A “montagem multinacional” dos bens a serem consumidos, característica da

globalização, responde a uma exigência dessa “tendência irreversível”: agilidade na produção

para uma rápida circulação pelo mundo. Como num círculo vicioso, tal agilidade provoca a

efemeridade do ter – e, em consequência, do que se considera o ser precário e provisório dos

consumidores –, já que aquilo que se possui torna-se obsoleto na mesma velocidade, causando

também um descontentamento dos consumidores, que, desejando renovar-se, partirão em

busca de um produto mais recente.

Uma análise menos atenta desse movimento cíclico faz com que caiamos na armadilha

de defini-lo como um mero consumismo, uma prática inconsciente, pura e simplesmente. No

entanto, o antropólogo argentino nos alerta que o consumo também serve para pensar, como

mencionado anteriormente. Ele defende que “quando selecionamos os bens e nos apropriamos

deles, definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos de nos

integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o pragmático e o aprazível”

(GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 35).6

Assumindo esta ideia, torna-se possível associar consumo ao exercício da cidadania

como estratégia política. Na dificuldade de acesso aos circuitos culturais mais eruditos de

alcance restrito (mesmo na esfera pública, como cinemas, teatros, museus), foram surgindo

paralelamente – já desde o século XIX – culturas populares que se consideravam, como no

caso de Günther Lottes (apud GARCÍA CANCLINI, 2015), uma alternativa à esfera pública

excludente, capaz de revelar uma potência outrora (e ainda nos dias atuais) rechaçada ou sem

espaços para manifestar-se. Atualmente, não somos os mesmos cidadãos, é verdade, visto que

estamos vivenciando a aproximação e retroalimentação entre países centrais e periféricos, mas

as novas formas como consumimos podem ter-nos levado (ou nos levarão futuramente) a

inusitadas formas de cidadania.

5 O termo cheto é utilizado para referir-se às pessoas da classe alta. 6 Na mesma sintonia, Arjun Appadurai (2001) argumenta que a imaginação (de uma nação) permite que o

consumo dos meios de comunicação de massa atue também como forma de resistência, reações e agência.

33

Se tomarmos o consumo como uma série de relações socioculturais que se

estabelecem para que se concretizem a apropriação e os usos dos produtos, podemos admitir

que de igual maneira o definirão os meios de comunicação de massa. Estes elaboram

estratégias de ação a partir da percepção daquilo que sua audiência deseja (ver, ouvir,

consumir), lançando mão de uma linguagem que possa adequar-se ao seu público-alvo, o que

explicaria o alcance e a eficácia dos discursos que sustenta. Em muitas ocasiões, as periferias

e os indivíduos marginalizados e alterizados são vítimas desses discursos, que ajudam a

reproduzir o imaginário que estigmatiza territórios e reifica pessoas.

1.2. Representação de grupos alterizados

A alteridade é o resultado da definição que uma pessoa ou um conjunto faz daqueles

que lhes são diferentes, estranhos, ou seja, que não se reconhece como seus iguais. Tzvetan

Todorov (1983) comentou que a descoberta e conquista da América trouxe consigo a

descoberta de um Outro, mas que só é visto assim por um “eu” que não consegue se

identificar neste que definiu como diferente; não se dando conta das múltiplas figurações

desse eu, que “é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu.

Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente

separá-los e distingui-los de mim” (TODOROV, 1983, p. 3). A grande questão trazida pelo

filósofo búlgaro radicado em Paris remete ao modo como devemos nos portar diante daqueles

que não pertencem à mesma comunidade que nós. Para os pensadores da América Latina, a

questão é outra porque mais importante é indagar como devemos nos portar diante dos que

pertencem à nossa comunidade, mas que vivem à margem, em condições de subalternidade,

alteridade ou marginação. Isso é o que pontuou Amaryll Chanady, ao pensar os lugares

“políticos” dos grupos humanos em contextos de “outridade” na nossa periferia do

capitalismo (1994).

Cabe destacar ainda as considerações de Todorov sobre as dimensões da alteridade. O

autor a situa em três diferentes eixos, segundo os tipos de relação entre “eu” e “outro”: 1) um

juízo de valor, segundo o qual se define se o Outro é bom ou mau, igual ou inferior a mim; 2)

a aproximação ou o distanciamento em relação ao Outro, para definir se me identifico com

seus valores, ou se assimilo esse outro; 3) o conhecimento ou desconhecimento da identidade

do Outro, em maior ou menor grau. A definição destes eixos é importante para que se tenha

34

em conta que a alteridade não tem uma única forma de se manifestar e que, quando um “eu”

define um “Outro”, há um variado leque de possibilidades de olhar entre eles, em especial

porque todos podem ser (e são) Eu ou Outro, segundo o ponto de vista que se considere.

Leopoldo Zea (2005) é outro autor que oferece importantes considerações ao debate,

ao analisar a história de marginalização de populações (da Rússia, da Ibéria e da Britânia) a

partir do que se considerava o centro de poder no planeta: a Europa ocidental. Baseado nesses

estudos, comenta que se impôs um modo de pensar que levava em consideração apenas o

todo, e não cada uma das partes. Nesse processo, muitas árvores foram sacrificadas para

garantir um suposto benefício da floresta, conforme metaforiza o autor. Um desses sacrifícios

foi o silenciamento daqueles que não compactuavam com essa visão das relações humanas e

que, por não concordarem com um discurso predominante, por adotarem outra forma de

expressar-se verbalmente, eram nomeados “bárbaros”. Bárbaro, segundo os gregos e partindo

de tradução latina do termo balbus, é quem não possuía o logos nem, portanto, a palavra e a

verdade. O bárbaro apenas balbucia a verdade, uma vez que não detém a palavra que a

expressa fielmente. Ora, um ser humano que se propõe a verbalizar uma verdade sem possuir

a palavra, isto é, os instrumentos e a legitimidade para fazê-lo, está subvertendo a ordem, mal

dizendo-a. Logo, precisa ser calado, segundo o ponto de vista dos que se sentem confortáveis

com essa ordem.

É partindo dessa premissa, que, é sempre bom lembrar, foi elaborada e difundida por

quem detém o poder e com ele a “verdade-palavra” – ela própria uma expressão de poder –,

que se constrói a marginalização ou a alterização de sujeitos e de grupos inteiros, os quais

devem submeter-se à ordem estabelecida. Como eram vistos como seres à margem do logos,

eram também menos humanos, incapazes de se encaixar na ordem da cidade, estavam fora da

lei e do direito, “destinados a ser dominados por serem bárbaros” (ZEA, 2005, p. 51).

De um lado, barbárie, subordinação, periferia; do outro, civilização, dominação e

centro. No primeiro grupo, os selvagens destinados a ser explorados e expostos à violência

constante. No segundo, aqueles que, associados ao poder, dominam os outros cuja

humanidade é refutável, colocando-os à margem. Essa visão dicotômica resultou na

alterização dos povos que não se adequam ao “nós” desde o qual os dominadores falam. Ao

colocá-los na condição de Outros, os donos da palavra se situam como ponto de referência, e

todo e qualquer discurso que não reproduza a sua dicção será interpretado como simples

balbucio, impossibilidade de voz da barbárie.

35

Historicamente, povos dominados se rebelam e reivindicam sua liberdade, e não

poucas vezes surge um Caliban7 disposto a elaborar um discurso próprio – em dois sentidos,

enquanto propriedade e apropriado –, mesmo a partir da margem e da barbárie. Embora tenha

aprendido a falar quase que como o próprio Próspero, funda uma nova forma de se expressar,

que é uma dicção própria, e não dependente ou subordinada à de Próspero. Ao fazê-lo,

apresenta estratégias de autoafirmação que anulam aquela suposta marginalização e barbárie,

visto que, se fosse bárbaro, não saberia se expressar. Seria como um subalterno, segundo

Gayatri Spivak (2003), que precisa sair desta condição para poder falar, caso contrário,

necessitaria de um intermediário.

Se a civilização possui a palavra e à barbárie cabe o mutismo, Caliban, por ser

classificado como bárbaro, irá balbuciar a partir deste capital acumulado em sua ilha, num

movimento de criação a partir das sobras, do que lhe restou. Esse Caliban se apresenta, antes

que tudo, como um ser humano dotado de peculiaridades, como qualquer outro, o que gera

uma diversidade que deve ser respeitada. Não respeitá-la, como defende Leopoldo Zea,

tentando reificar aqueles que não aceitam molduras, é a autêntica expressão da barbárie, ou

seja, a ação bárbara é a do dominador, colonizador, e não a do colonizado, marginalizado.

César González é mais um Caliban, que usa as ferramentas à sua disposição para

estruturar seu discurso, agora não mais pedindo permissão ou carecendo de um mediador.

Quando se dá conta de que possui uma voz, uma história, uma verdade, coloca-se na condição

de agência transformadora de sua própria trajetória, proibindo que lhe digam o que fazer,

empoderando-se. González percebe que a palavra e os livros são instrumentos de poder, de

poder-ser e de poder-agir, e intervém na disputa pela construção de um lugar no campo

literário. Em seus livros, propõe uma releitura das representações predominantes sobre os

territórios periféricos, especialmente as villas de Buenos Aires, bem como da população que

vive neles, os grupos alterizados pela ideologia que insiste em polarizar margem e centro.

Como ele teoricamente não faz parte deste centro, como se fosse possível morar numa villa ou

favela sem estar na cidade, os espaços deque dispõe para divulgar seu trabalho são restritos,8e

o uso de formas alternativas de divulgação é uma das estratégias de expressão de seu discurso.

7 Caliban é um personagem de A tempestade, drama de William Shakespeare. Representa um homem

colonizado, escravo de Próspero (o colonizador), quem o qualifica como “selvagem”, capaz apenas de

“balbuciar” as palavras impostas pelo seu opressor. Entretanto, Caliban apropria-se de sua palavra para usá-la

como estratégia para sua libertação. 8 Consideram-se esses espaços como restritos ainda que, interessados na disputa por audiência, alguns programas

de rádio e televisão o tenham convidado, no período em que seu caso se tornou público. Não necessariamente foi

o caso de todos os programas, mas muitos deles (disponíveis no Youtube) não sabiam nada a respeito da obra

36

O que se há de considerar “centro” nos dias atuais? Como afirmou Octavio Paz, o que

se conhecia como centro do mundo se dissolveu, por isso estaríamos todos à margem.

Todavia, se não há mais centro, tampouco existe periferia, e todos fazemos parte de um

grande aglomerado disperso e descentrado; ou, ainda, cada sociedade se encarregou de criar

seus centros e as respectivas periferias, porque é inegável que ainda existem indivíduos e

conjuntos de indivíduos que detêm o poder (econômico, político, social e cultural). O que

mudou – na verdade, vem mudando – é que há também grupos que disputam um lugar no

palco, pois não aceitam mais estar apenas na plateia, assistindo e consumindo passivamente

discursos e representações. Falam e querem ser ouvidos. Escrevem e querem ser lidos. Têm o

direito à palavra, que não pertence a ninguém e, por isso mesmo, pertence a todos. São

cidadãos tanto quanto os da dita “cidade formal”, pois integram essa cidade, ainda que

habitem zonas menosprezadas, desvalorizadas e estigmatizadas. Mais uma vez citando Zea,

“não existem povos civilizados e bárbaros, ou selvagens, mas povos formados por homens

concretos, entrelaçados nos seus esforços em satisfazer suas necessidades peculiares” (2005,

p.54). Entrelaçados porque um desejo individual os conecta, inevitavelmente, a um desejo

coletivo, o desejo do urbano.

Se para os gregos, os bárbaros eram seres menos humanos, limitados de raciocínio e

vontade (exceto a vontade de obedecer), hoje a relação não é diferente entre as elites e as

populações mais pobres. Conforme defende César González,9 há uma elite intelectual que

pretende garantir a manutenção de seus privilégios e, consequentemente, da desigualdade

entre as classes e, para tal, utiliza a ciência e o capital cultural para afirmar e justificar uma

suposta diferença de capacidade cognitiva entre ricos e pobres. Trata-se da nova

discriminação mencionada por Zea, a qual deverá ser combatida pelos sujeitos marginalizados

através da constituição e afirmação de sua identidade, a fim de afirmar sua humanidade e sua

potência, negadas por aqueles que os reduziram às margens da cidade e da cultura. O uso da

palavra deverá dar-se de modo criativo, subvertendo a ordem imposta, tornando diálogo um

logos monológico que é razão e palavra de verdade inegociável, incapaz de dialogar, em sua

dimensão primeira. Os novos sujeitos que emergem na cena periférica vão barbarizar a

palavra, em um ato político e consciente, uma vez que afirmarão, ao mesmo tempo, que não

são bárbaros, pois já não são submissos nem precisam reproduzir a linguagem do dominador,

e sua palavra “maldita” tem uma enorme importância. O fato não é que se expressam mal, literária ou cinematográfica de González (nem o contexto de sua produção), tampouco possuem pautas que

justificariam a participação do autor e diretor. 9 Em entrevista que o escritor nos concedeu no dia 19 de abril de 2018, em Ramos Mejía, cidade de La Matanza,

localizada na Zona Metropolitana de Buenos Aires - Argentina.

37

apenas o fazem de um modo diferente. Como expressa González, maldita é a palavra que

invisibiliza e reifica o ser humano: “¡maldita sea la representación! / ¡maldita sea la palabra! /

¡maldito el lenguaje / si enseña a olvidarnos del cuerpo!” (GONZÁLEZ, 2015, p. 33).

Com a globalização, a alteridade ganha uma nova face, mas segue sendo o resultado

da marginalização e da representação contrastiva de alguns grupos por outros, que quando o

fazem também se definem numa posição hierárquica. Amaryll Chanady (1994), ao escrever

sobre a alterização nas sociedades periféricas, recorda que na América Latina se reproduziu o

processo de divisão entre um “nós” e os “outros”, estes últimos vistos como diferentes. Trata-

se de sociedades consideradas periféricas em relação ao Velho Mundo, mas que possuem em

seu interior relações entre grupos dominantes e seus próprios “outros”, o que implica novos

processos de alterização. No final, aqueles são o mesmo “Outro” visto como periferia a partir

da Europa e assumem relacionalmente dentro de suas próprias fronteiras a condição de eu e de

Outro como máscaras que vão sendo usadas e deixadas de lado ao longo das interações.

Sendo assim, é preciso ressaltar que este é um coletivo heterogêneo (o que quase soa como

um pleonasmo) e que, apesar de ser concebido como o Outro frente à Europa, reclama a

revisão da representação pejorativa que recebeu dos intelectuais deste continente, aqueles que

escreveram a história até então e assume a condição de Eu diante dos seus próprios Outros.

São estes últimos que começam a projetar seus discursos para toda a cidade e que constituem

o núcleo de interesse dessa pesquisa.

Problematizando sua condição de colonizados, os latino-americanos se esforçam para

afirmar uma outra identidade. Octavio Paz, também lembrado por Chanady, reivindica o fim

da marginalização dos latino-americanos e a valorização de sua voz, uma forma de torná-los

independentes e reservar-lhes o direito de tomar decisões como qualquer outro povo.

É a partir de sua experiência na marginalização e barbárie (que foram impostas) que os

sujeitos da cena contemporânea problematizam sua condição de alterizados e mostram que

não são essencialmente os Outros, mas sim outra face de um nós heterogêneo e que fala uma

linguagem que o autonomeado civilizado não consegue entender, pois sempre se negou a

enxergá-la como outra possibilidade do logos por excelência. Aqueles que foram

marginalizados estão constituindo sua identidade e buscam compreender seu lugar nesse

mundo que agora reivindicam também como seu. Seguindo este raciocínio, exigem sua

participação na construção de sua memória, garantindo seu futuro através das marcas desse

passado.

38

Esse processo, porém, não é simples, pois há uma enorme resistência por parte

daqueles que se consideram o centro do mundo em aceitar que o resto da humanidade não está

subordinada a eles ou que não é uma versão inferior deles mesmos. Os conflitos nascem da

resposta dos supostos bárbaros aos padrões estabelecidos nos diferentes campos (político,

econômico, cultural etc.) e que foram responsáveis pelo “enquadro acadêmico” (VAZ, 2016),

encarregado de definir o que era arte, cultura, civilização e a própria condição desumana.

Logo, a violência que muitos desses conflitos propaga é provocada pela ação dos artífices da

marginalização e das representações, não dos que as sofreram.

Cada um de nós, os integrantes de todos os grupos sociais, sem exceção, somos

agentes da história universal e podemos reivindicar o direito de protagonizar o processo de

seu registro a partir de um lugar. A tomada de consciência da escrita da história já foi levada a

cabo por uma série de pensadores – oriundos ou não das camadas subalternizadas – que se

dedicaram/se dedicam a estudar e narrar os territórios periféricos e os sujeitos alterizados. Um

dos desafios a partir de então é o de expandir essa tomada de consciência a tal ponto em que

não haja mais necessidade de explicar o óbvio, a própria ideia que introduz este parágrafo; e

que não se tenha que lembrar que todos os sujeitos têm direito a participar da construção das

imagens que comporão suas representações, sua memória e principalmente a sua história. Não

se pode seguir replicando o mesmo sistema em que o Eu fala pelos Outros, já que esses

Outros sabem e podem falar por si mesmos.

1.3. Subalternos, periféricos e marginais

Ao tentar classificar a produção literária de César González de modo satisfatório e

segundo suas temáticas e o seu lugar de produção do discurso, além de questionar sua

condição frente a textos literários canônicos, utilizamos alternadamente, e atribuindo-lhes

sentidos mais ou menos semelhantes, as noções de “subalterno”, “periférico” e “marginal”. A

fim de esclarecer a conexão que se faz aqui entre essas categorias e o autor (além de outros

escritores, cujas obras serão comentadas em capítulos futuros) e demarcar a especificidade de

cada discurso, cabe salientar as considerações feitas por Paulo Roberto Tonani do Patrocínio

(2013b). Sintetizando, o pesquisador define tais categorias da seguinte maneira: o termo

periférico, tomado como o sujeito da periferia, refere-se a uma construção social das práticas

e discursos desse sujeito, que atua em movimentos sociais. É uma categoria que constitui a

formação identitária dos indivíduos desse território. Já a noção de subalterno, que é a que

39

mais se aproxima da que se pretende encontrar nesse trabalho como categoria definidora dos

novos sujeitos das margens da cultura e da cidade, é a utilizada pelo Grupo de Estudos

Subalternos da Índia, cujo principal nome é Ranajit Guha. A subalternidade é vista por ele

como uma condição de subordinação, seja enquanto classe, casta, gênero, etnia, ofício ou

qualquer outra forma que represente aqueles que são silenciados pelo poder hegemônico, os

marginalizados. Trata-se da apropriação de uma noção de Antonio Gramsci, que enxerga a

subalternidade como o resultado da relação do sujeito com sua circunstância histórica, inscrita

nos meios de produção. Pode-se dizer que os sujeitos estão subordinados porque sua

“marginalização e desvalia é tragicamente tão profunda que o impede de articular uma

posição de agenciamento” (PATROCÍNIO, 2013b, p.642). E, finalmente, a noção de

marginal surge, em essência, em contraponto com o canônico e com os domínios da ordem,

quase sempre estabelecendo alguma relação com o fato de estar à margem da “lei”. Existe a

margem porque há também o centro, isto é, uma literatura que, segundo critérios

hierarquizantes, constará no cânone. A literatura marginal é a popular, de minorias nacionais,

sociais ou raciais, e que se apresenta como modos de representação de escritores que buscam

e criam outros espaços de autoria, uma vez que eles não se enquadram na concepção

tradicional de literatura.

Ainda de acordo com o autor, o texto marginal – o qual ele define com um texto

político fundado num relato de experiência – busca “uma nova forma de representação do

povo, não mais uma fala autorizada e concedida, mas sim baseada em uma proposta

minoritária e oriunda da própria margem, provocando um interstício na fala pedagógica e

unificadora do discurso nacional” (2013b, p. 639).

João Camillo Penna (2015), ao falar sobre a variedade de nomes utilizados para

adjetivar a literatura que é produzida por pensadores negros, periféricos, marginais, defende

que

há uma coisa que une todos esses adjetivos (marginal, negro, periférico etc.), uma

experiência comum de exclusão, um dano, uma queixa (no sentido jurídico da

palavra), uma ofensa, uma injúria. Injuriados somos. Talvez seja essa a condição

atual da reivindicação de identidade(s): o status litigante, a queixa constitutiva, a

ofensa que nos faz. (PENNA, 2015, p. 13)

Portanto, se há diferenças sutis entre os termos, é verdade que também há semelhanças

que os aproximam no momento em que os próprios autores se definem como marginais,

negros, periféricos ou subalternos. Construir e definir sua identidade a partir desses conceitos

40

assinala, ainda segundo Penna, um movimento de politização dos rótulos e dos lugares de

autoria. O objetivo é superar o estigma ao qual sempre estiveram submetidos e atribuir novos

significados ao lugar da estigmatização. Algo parecido ao que propõe Roberto Fernández

Retamar no ensaio publicado em 1971, quando sugere que os latino-americanos se assumam

como “Calibán”, na medida em que se possa ressignificar positivamente esse conceito

geográfico-cultural e ao mesmo tempo sociológico.

Mesmo que o caminho seja longo até que se elimine definitivamente a carga negativa

que carregam tais termos, é imperativo que se mantenha firme o “otimismo da vontade”,

como defendia Antonio Gramsci. A pobreza e a desigualdade circulam por esses nomes e os

agrupam numa mesma família, reconhecendo-se e respeitando-se as divergências que existem

entre eles e as experiências particulares associadas a cada um. Para o senso comum, que os

associa instantaneamente a ideias pejorativas e criminaliza essa pobreza, apresenta-se como

enorme desafio o exercício de mudar seu olhar, passando a enxergar o escritor oriundo das

camadas populares da sociedade – e seu discurso – como merecedor de consideração e

reconhecimento. Por conta disso, não é incomum encontrar uma forte insistência na definição

do villero/favelado como problemático, perigoso, vazio de sentido ou incapaz de produzir um

discurso. Investir no sentido oposto é o caminho trilhado pelos autores que se constroem a

partir dos territórios das periferias urbanas.

Se pretendemos que a literatura (brasileira, argentina ou de qualquer outra parte do

mundo) assuma uma nova cara mais próxima daquela que se manifesta na própria sociedade

que lhe dá lugar, é imprescindível dar-se conta da complexidade de temáticas e da

multiplicidade de lugares de fala dos novos autores e novas autoras. Se aquilo que se entende

como literatura não é capaz de abranger as obras cujos autores vêm de áreas como as villas

miseria (Argentina), favelas (Brasil), comunas (Colômbia), campamentos ou callampas

(Chile), llegaypon (Cuba), bidonvilles (Haití), barrios bruja (Panamá), pueblos jóvenes

(Perú), cantegriles (Uruguay), ranchos (Venezuela) ou como quer que se prefira chamar as

periferias e territórios à margem nas metrópoles latino-americanas, mantendo-os “sob a forma

de resto não-absorvível, mas aparentemente ameaçador à unidade do conjunto”, retomando a

fala de João Camillo Penna (2015, p. 15), precisamos urgentemente de uma redefinição do

próprio campo literário.

Os pensadores da periferia enfrentam não só a discriminação por parte do senso

comum, como também a barreira editorial, e este é um fato determinante para a (falta de)

disseminação de seu discurso. Em função desta dificuldade e, concomitantemente, graças à

41

necessidade de publicar seus textos – que ficam comprometidos por essa colossal segregação

editorial –, é que muitos dos escritores periféricos criam seus próprios meios de circulação,

sejam editoras independentes, revistas (eletrônicas e/ou impressas), blogs ou páginas de

Internet que lhes permitem escoar uma vasta produção silenciada. Para citar apenas alguns

exemplos, poderíamos mencionar os casos de Juan Diego Incardona, Washington Cucurto,

César González, Ferréz e Allan Santos da Rosa, todos eles autores que, nascidos em

assentamentos informais ou na Região Metropolitana de suas cidades, sentiram a necessidade

de criar canais de circulação de textos que funcionassem como caixas de ressonância para a

sua produção e a de seus pares.

Um dos aspectos mais interessantes dessas produções é que elas inauguram novas

dicções, apresentando outras formas possíveis de narrar suas experiências e, simultaneamente,

constroem públicos leitores dentro das periferias, contrariando a ordem natural de uma

sociedade em estado de partilha, onde a escrita e a leitura são pensadas para atender às classes

mais privilegiadas, financeira e culturalmente falando. A cidade em que vivem os autores

“marginais” contemporâneos é uma cidade que nega suas margens, como se ambas fizessem

parte de estruturas totalmente distintas e incomunicadas. Trata-se de uma estratégia de

isolamento e de manutenção das diferenças que os definem, num esforço de determinar, de

um lado, quem pertence à cidade e, do outro, quem são os nossos “Outros”. Tal isolamento se

materializa em condomínios fechados, carros blindados, câmeras de circuito de segurança,

contratação de segurança privada e conjuntos residenciais que contêm equipamentos urbanos

próprios, que os tornam bairros semelhantes a cidades. Conforme lembra João Camillo Penna,

essa parcela da cidade não privatiza apenas os serviços, mas também a cultura e a literatura.

Por isso, a literatura “marginal”, “periférica” ou “subalterna” se destaca da literatura no

sentido mais abrangente por ser genuinamente pública, e não de um grupo privilegiado,

trazendo muitas vezes uma autoria associada a certo sentido de coletividade.

A partir da noção de subalterno, é importante ressaltar ainda que há diferentes

dimensões dessa subalternidade na literatura, ou seja, há uma hierarquia dentro de um mesmo

grupo de indivíduos subalternizados (de acordo com a definição que comentamos ao início

desta seção). Um exemplo disso é a figura de Carolina Maria de Jesus, que podemos comparar

a González por ser de origem pobre e periférica, mas que possui uma característica que a

coloca numa posição de “margem da margem” dentro da literatura: o fato de ser mulher

negra. Se buscarmos no cânone produções de mulheres negras, encontraremos poucas

ocorrências. Como descreve Mariana Santos de Assis,

42

estamos vivendo um momento único em nossa história literária, momento em que

grupos até então excluídos do contato com a literatura, da leitura e, principalmente,

da produção literária, estão se apropriando desse espaço majoritariamente branco e

altamente elitizado. Podemos dizer que esse processo tem um marco fundador, um

momento altamente simbólico em que vemos a literatura negra sendo forjada no

fogo e nos moldes da pobreza e abandono. Longe da academia e do cânone, é no

lamaçal da favela, em um barraco de tábuas, cercada pela fome, que vemos surgir o

primeiro grande sucesso dessa literatura.

Carolina Maria de Jesus nunca quis ser uma liderança política ou ativista negra, era

apenas poetisa e usava a escrita para escapar de sua dura realidade, mas acabou se

tornando um símbolo da luta das mulheres negras e pobres por sobrevivência,

respeito e humanidade. Além disso, sua obra pode ser vista hoje como um ponto de

encontro entre a literatura negra – já bastante rica nos anos 60 – e a literatura

marginal/periférica que viria a surgir no final dos anos 90. Ela traduziu o debate

racial que vinha sendo desenvolvido entre intelectuais, artistas e ativistas negros em

todo o país para a linguagem dura de quem vive a realidade que aqueles grupos

tentavam mudar. (ASSIS, 2014, p. 52)

Apesar do reconhecimento, no âmbito da Literatura Marginal, da importância e do

legado de Carolina Maria de Jesus, a autora ainda não possui um lugar de destaque na

literatura do país, o que ainda será objeto de uma disputa muito longa se lembrarmos que

estamos “em meio a uma literatura tão marcadamente de classe média, branca e masculina

como a brasileira”, como afirma Regina Dalcastagnè (2015, p. 41).

Se Carolina Maria de Jesus, que sabia ler e escrever, se encontra em uma condição de

subalternidade por ser mulher e negra, outras dimensões se mostram por meio da

representação de Filomena da Cabula, personagem que protagoniza a obra teatral Da Cabula,

de Allan Santos da Rosa (2006). Mulher, negra, empregada doméstica e analfabeta, Filomena

não esconde o desejo de aprender a ler e escrever e está disposta a enfrentar as humilhações

de Calvino Farias, seu patrão, o preconceito e o medo para realizar seu sonho. Os requintes de

crueldade que Calvino traz à memória para desdenhar da vontade de Filó, aludindo à

escravidão, é uma pequena amostra do quão difícil é chegar a ler, escrever e publicar sendo

pobre, negra e mulher.

Pensando nesse panorama, Allan da Rosa fundou a Edições Toró para atender à

necessidade de dar visibilidade aos textos de escritores da periferia e como forma de escapar

do “apartheid editorial”, como define o escritor, referindo-se ao quase inexistente interesse

das editoras mais tradicionais em editar livros desses escritores.

Outra forma de subalternidade pouco abordada (ou de importância desviada) na

literatura brasileira é a do trabalhador, particularmente a do operário. Encontrar no cânone

obras que deem voz a esses personagens e/ou retratem suas histórias, seu cotidiano, suas

ânsias, seus sonhos e suas andanças e o mundo do trabalho é outra tarefa difícil. A figura do

trabalhador está por toda parte, mas não como na obra de Roniwalter Jatobá, um mineiro que,

43

antes de se tornar jornalista, foi operário metalúrgico e gráfico em São Paulo, cidade rumo à

qual partiu em busca de melhores condições de vida, como os personagens de seus romances

e contos, os quais têm como tema o universo do trabalho. Neles, Jatobá retrata o ambiente de

precariedade e violência vivido pelos trabalhadores, cujas histórias não têm importância; é

como se nunca tivessem existido, já que não têm um espaço no mundo, como descreve Luiz

Ruffato (2004) em resenha crítica de Paragens, livro de Jatobá. Ruffato defende que a

literatura, como toda arte, busca uma transcendência e é isso o que alcançam autores como

Roniwalter Jatobá, Allan Santos da Rosa e Carolina Maria de Jesus ao assumirem uma voz

marginal, renovando a literatura contemporânea.

Em seu conto “A mão esquerda”, Jatobá reproduz a jornada de um trabalhador que

podemos considerar como precariado, devido às condições precárias que caracterizam seu

trabalho.10 No conto, lemos a história de Natanael Martins, jovem imigrante que vai para São

Paulo sonhando com dias melhores e que tem seus dedos esmagados pela máquina prensa da

fábrica onde possui um emprego formal, conforme descreve o próprio protagonista:

“Empregado, fichado, carimbo estampado em azul nas páginas da profissional” (JATOBÁ,

2009, p. 119). A prensa representa também o silenciamento dos trabalhadores, pois o ruído

que produz apaga suas vozes, simbolizando o apagamento de sua própria história, sua

importância enquanto sujeitos.

Segundo comentamos há pouco, a imagem do trabalhador figura em poucas obras

literárias e de modo lateral, sem que saibamos o que ele sente, sem que possamos conhecer

sua fala ou os pensamentos que povoam sua mente. Com Natanael é diferente, pois sabemos a

que horas ele chega à fábrica; que fica ansioso para que os portões abram; que fica quieto

observando e tentando aprender a manusear a máquina funesta; que troca cartas com seus

pais, os quais permaneceram em sua terra natal, e fica imaginando como eles reagirão ao

ouvi-las (já que não sabem ler). Enfim, pode-se dizer que a figuração de um operário com

essa abordagem é um pioneirismo de Jatobá na literatura brasileira.

Embora não possamos enquadrar na categoria de integrante do precariado, nos termos

de Ruy Braga (2012), porque não se trata aqui da mão de obra operária, também é possível

encontrar figurações do mundo mais precário do trabalho manual em produções de César

González. Isso se dá de modo mais explícito em seus filmes Diagnóstico Esperanza e ¿Qué

puede un cuerpo?, mas também pode-se observar o foco em tais existências dedicadas a lidar

com os refugos, com a sujeira e com o impuro em poemas como “A mi abuela Genoveva”:

10 As definições de precariado são mais complexas e as abordaremos no capítulo seguinte, a partir das

considerações de Ruy Braga (2012) para esta categoria.

44

ella no proviene

de las rubias cúpulas

aristocráticas de la cultura

ella no tuvo más herencia que nacer

y no conoce el goce de la comodidad

ella nunca abrazó el confort tres meses seguidos

toda su vida trabajó de limpieza

refregando la mugre

y los vidrios de otros

escondiendo en algún lado

todo el maltrato

ella cada mañana desde hace siglos

toma unos mates

después un colectivo

y luego el ferrocarril

San Martin de las 7.20 AM

que va de El Palomar hasta Pilar

donde queda el lugar

que limpia desde hace 23 años

ella vino de Salta en el 68

y nunca más pudo volver

anduvo de pieza en pieza

de changa en changa por la ciudad

hasta que la subieron sin preguntar

a un camión militar de la guerra

y llegó apretada entre las muchas familias

fundadoras de la villa

y luego los soldaditos verdes de la dictadura

los bañaban con una manguera profesional

para sacarles una supuesta suciedad

ella es bajita, morocha y de piel marrón

viene del norte andino

en su sangre corre ascendencia inca

pero eso no le garantizó nada

sino todo lo contrario.

(GONZÁLEZ, 2014, p. 25-26)

Esta e outras facetas da subalternidade estão ilustradas em suas obras e o acompanham

em sua trajetória, uma vez que carrega em si muitas formas de ser subalterno, discussão que

aprofundaremos em capítulos posteriores.

1.4. Periferias de Buenos Aires e villas miseria

Cristina Cravino (2013b) explica que as habitações informais da região metropolitana

de Buenos Aires assumem duas formas: as villas, localizadas na Ciudad Autónoma de Buenos

Aires (CABA), e os assentamentos ou “tomas de tierra”, em áreas de menor concentração

populacional. Essas formas de viver são o resultado da pobreza que algumas classes sempre

45

enfrentaram e do agravamento desta situação a partir de meados da década de 1980 e início

dos anos 1990, resultando na formação de “novos pobres”.

Segundo María Gabriela Muniz (2008), as villas – ou villas de emergencia, barrios de

emergencia, villas miseria, asentamientos precarios – são um fenômeno que já faz parte da

dinâmica espacial de CABA. Criadas a partir da década de 1930, as villas foram se formando

com imigrantes estrangeiros e de áreas rurais do interior da Argentina que ocupavam de forma

aleatória terrenos públicos desabitados e ali construíram suas casas, em zonas de ruas

irregulares e passagens estreitas. A escolha da cidade de Buenos Aires se justifica pelo fato de

este ser o principal centro econômico do país, onde depositavam a expectativa de maiores

ofertas de trabalho, uma possibilidade de escapar à pauperização e miséria que a crise

produziu e/ou acentuou.

Com o tempo, as villas foram diminuindo de tamanho ou desaparecendo à medida que

corria um processo violento de erradicação dessas ocupações entre 1968 e 1973, período da

Ditadura Militar liderada pelo general Juan Carlos Onganía. Mas a resistência e persistência

dessa população lhe garantiram sua continuidade em muitas áreas e hoje pode-se dizer que se

apresentam como proposta alternativa para o modo de habitar a cidade, sugerindo outra lógica

de habitação, de relações interpessoais e de circulação (populacional e de produtos). Após o

fim da ditadura e com crise econômica nos anos de 1990, o fenômeno ganhou outras

dimensões e aumentaram tanto a quantidade de villas quanto a densidade populacional em

cada uma delas.

Cravino chama a atenção para o fato de que, apesar de serem a saída que muitos

encontram para ingressar na cidade, a realidade do mercado imobiliário nas villas deixa seus

habitantes em permanente condição de vulnerabilidade, sem opções de saída. Conforme

aponta a antropóloga (2013b), o morador de uma villa miseria não se torna proprietário de um

imóvel neste território e suas possibilidades de mobilidade social são escassas. Em geral, os

villeros (majoritariamente bolivianos, peruanos e paraguaios) alugam um quarto com banheiro

compartilhado, amontoando-se em um espaço de menos de 10m2. Além disso, “los

‘propietarios’ de cuartos no permiten que un inquilino permanezca en el lugar por varios años,

por miedo a que se sientan ‘dueños’. Y cuando un locatario no puede pagar, debe dejar la

pieza, sin contemplación” (CRAVINO, 2013b).11 Esse quadro poderia ser revertido com a

11 “Os ‘proprietários’ de quartos não permitem que um inquilino permaneça no local por vários anos, por medo

de que se sintam ‘donos’. E quando um locatário não pode pagar, deve deixar o lugar, sem contemplação”.

Tradução nossa.

46

regulamentação do mercado imobiliário e de terrenos, bem como com o financiamento de

programas habitacionais, ainda segundo Cravino (2013a).

Atualmente, há 1.612 villas na província de Buenos Aires, de acordo com o

mapeamento realizado entre agosto de 2016 e maio de 2017 pelo governo nacional em

parceria com diferentes ONGs e associações de diversos bairros.12 Ao todo, o país tem mais

de quatro mil villas, que concentram cerca de um milhão e trezentas mil pessoas, estando

250.000 delas em Buenos Aires, segundo informe de outubro de 2017 do Observatorio de la

Deuda Social de la Universidad Católica Argentina (ODSA) e a Defensoría del Pueblo.

Por todos os aspectos que acabamos de destacar, nota-se que as villas têm suas

particularidades, principalmente se a comparamos com as favelas do Rio de Janeiro, sobre as

quais falaremos em determinados momentos. Ainda que haja semelhanças quanto à

informalidade desses meios populares de moradia, quanto às suas características físicas e ao

modo depreciativo como estão representadas no imaginário da cidade, também possuem

algumas diferenças, especialmente quanto às normas de funcionamento interno de cada uma.

A forma como a periferia e o mundo popular de Buenos Aires figuram na literatura foi

um tema abordado também por Nicolás Viotti e Carina Balladares (2010). Em seu artigo, eles

descrevem como alguns autores argentinos observaram o mundo popular urbano sob as

perspectivas da política, da cultura e da religiosidade, levando em consideração o ponto de

vista da periferia, a partir de investigações etnográficas, que lhes permitiram mergulhar nesse

universo e compreendê-lo melhor. Esse movimento dos pesquisadores colaborou para a

instauração de um novo objeto de pesquisa, pois a periferia e os indivíduos que nela vivem, os

quais sempre foram o “outro” no imaginário nacional, passam a receber atenção e despontar

como um fator imprescindível para a realização de estudos que façam quaisquer tipos de

afirmações a respeito desse território e desses sujeitos. Essa mudança no âmbito

epistemológico também contribuiu para diluir, aos poucos, a configuração conservadora dos

campos de pesquisa do país, em especial nas ciências sociais, que mantinham suas bases nas

“aspiraciones de una elite liberal” e “en una cultura ‘moderna’ de inmigrantes europeos”

(VIOTTI e BALLADARES, 2010, p. 227).13

Fazendo uma retrospectiva para explicar a chegada a esse novo panorama, Viotti e

Balladares comentam que, com o fim da ditadura na Argentina, iniciou-se o período de

transição democrática e ganhou força a ideia modernizante – surgida nos anos 1970 – de que

12 Ver mais informações em: https://www.infobae.com/politica/2017/05/23/mapa-de-las-villas-en-argentina-

juntas-son-mas-grandes-que-la-ciudad-de-buenos-aires/, http://uca.edu.ar/es e http://www.defensoria.org.ar/. 13 “Aspirações de uma elite liberal” e “em uma cultura ‘moderna’ de imigrantes europeus”. Tradução nossa.

47

o conhecimento dos setores populares era a chave para uma mudança significativa da

sociedade, “la fuente de una verdadera democratización” (ibidem, p. 227).14 Antes disso, a

população letrada perpetuava a estrutura de poder, que estabelecia uma separação entre o que

seria a cidade e o que não se consideraria como parte dela: essa periferia que se imaginava

apenas como espaço do “outro”, que era e deveria permanecer sendo negada e silenciada.

Com as transformações sociais que ocorreram ao longo da década de 1980, foram surgindo

vários estudos que adotavam metodologias diferentes das tradicionais, tomando uma

determinada vida social (antes ignorada) como objeto de análise. O que se observou foi que

de forma paradojal [la periferia] había sido objeto de manipulación por parte de

líderes populistas, población ‘marginal’ y sujeto de transformación radical. Durante

la década de 1980 la problematización de lo popular tomó la forma de la distancia o

cercanía con la democracia y dos conceptos renovaron el panorama: “cultura

política” y “ciudadanía”. Estas se transformaron en categorías habituales para pensar

la sociedad post-dictadura y, particularmente, para redefinir la agenda de

investigación sobre un mundo popular que se pensaba en continuidad con los valores

ciudadanos. (VIOTTI e BALLADARES, 2010, p. 228)

Com a chegada de Carlos Menem à presidência, no início dos anos 1990, a estrutura

social argentina passa por outras transformações que provocaram o aparecimento de novos

pobres, renovando também o debate sobre as questões sociais. Através da redefinição espacial

que delimitava os bairros mais pobres e os assentamentos precários e, ao mesmo tempo, com

a construção de mais condomínios fechados, a política liberal-conservadora do governo de

Menem acentuou a desigualdade e as distâncias simbólicas (sociais e espaciais) entre o urbano

formal e os espaços periféricos de exclusão. Os modos de segregação produzidos tornaram as

relações ainda mais desiguais que as vivenciadas no passado.

É nesse cenário turbulento de mudanças políticas capazes de radicalizar as diferenças

sociais que o conurbano bonaerense15 se define como um tema associado à nova cultura

popular. Os pesquisadores que faziam essa ponte aproveitaram-se e apropriaram-se de uma

brecha do sistema para fundar novas formas de representação, capazes de dar conta do novo

“outro” que acabara de surgir e que não costumava fazer parte do campo de interesse dos

pesquisadores nem dos narradores ou cineastas, daí a razão principal para que se

considerassem como sub-representações (tema que tornaremos a comentar mais adiante). Nas

14 “A fonte de uma verdadeira democratização”. Tradução nossa. 15 O conurbano bonaerense, “epicentro clásico de la población asalariada” (VIOTTI e BALLADARES, 2010, p.

240), se refere ao território que circunda a Capital Federal da Argentina, criando uma espécie de cordão urbano

que envolve geograficamente a Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA) num conglomerado de municípios

que conforma a Região Metropolitana. Os limites que separam essas duas áreas são a Avenida General Paz e o

Riachuelo.

48

oportunidades em que esse território do conurbano e seus habitantes apareciam na literatura

social e nas artes (como a narrativa de ficção e o cinema, por exemplo), era retratado de forma

depreciativa, estando quase sempre atrelado à ideia de um território em ruínas, marcado por

uma forte violência e pela criminalidade crescente, e contribuindo para comprometer a

imagem de uma Argentina homogênea e europeizada.

Com a renovação epistemológica proposta por uma geração de pesquisadores de

formação recente, aparece um novo corpus e transforma-se o olhar para os sujeitos alterizados

e invisibilizados, que agora passam a ser vistos como cidadãos e, portanto, como sujeitos

dotados de direitos, entre os quais se destaca o direito à cidade. Esse olhar “desde abajo”, isto

é, o deslocamento do olhar do centro para a periferia – sem esquecer as considerações que já

fizemos sobre esta dicotomia –, propiciou o desenvolvimento de ricos estudos etnográficos, os

quais conferiam legitimidade aos resultados das pesquisas na medida em que possibilitava um

diálogo entre investigadores e investigados e revelava a preocupação pelos pontos de vista e

pelas práticas de moradores de bairros populares. Propunha-se, então, uma nova construção de

sentidos a respeito destes espaços periféricos, com o intuito de expor a complexidade do

mundo popular, na contracorrente da vertente dominante, a qual afirma um discurso

profundamente estigmatizador. Esse tipo de estudo ajuda a combater tais estigmas, pois

sugere que voltemos nossas atenções à heterogeneidade, à criatividade e às potências

existentes nas áreas consideradas as mais pobres e violentas da cidade a partir de uma outra

perspectiva, deslocando o foco antes concentrado apenas em suas carências materiais, na

desordem e nas a práticas ilegais, reais ou imaginárias.

As classes mais empobrecidas, por sua vez, passavam a assumir papéis importantes na

dinâmica da cidade, organizando-se e reivindicando seus direitos; passavam, assim, da

posição passiva de objetos à de sujeitos da própria história. Não se trata, entretanto, de um

movimento tão recente, pois “La periferia de Buenos Aires poseía antecedentes de

organización colectiva tanto en las experiencias de toma de tierras y asentamientos o reclamos

de servicios básicos que se desarrollan desde fines de la dictadura militar” (VIOTTI e

BALLADARES, 2010, p. 239), numa espécie de “reacción organizada” (ibidem, p. 240)16

para protestar contra a profunda desintegração social e econômica que sofreram. Esse tipo de

movimento político torna-se mais visível com a elaboração de materiais que são frutos de

pesquisas que valorizam os ativismos e as estratégias discursivas de agentes de periferias.

16 “A periferia de Buenos Aires possuía antecedentes de organização coletiva nas experiências de apropriação de

terras e assentamentos ou nas reivindicações de serviços básicos que aconteceram desde o final da ditadura

militar” e “reação organizada”, respetivamente. Tradução nossa.

49

Um fenômeno que igualmente nos remete ao mundo popular urbano é o da Nova

Narrativa Argentina (NNA). Segundo Hernán Vanoli e Diego Vecino (2010), a NNA é

composta por uma geração de escritores nascidos ao longo da década de 1970 e que começam

a escrever nos anos finais do século. Embora suas obras sejam individuais e apropriem-se de

bases narrativas e literárias bastante heterogêneas, eles compartilham estruturas emotivas,

escolha temática, valores, crenças e modos de expressão. Ou seja, mesmo com suas

peculiaridades, muitas vezes esses autores convergem em um estado de imaginação para um

lugar geográfico (conurbano bonaerense e seus habitantes).

Em seu artigo, os pesquisadores analisam como se dá a representação do conurbano

bonaerense na narrativa de três autores que conquistaram certo prestígio e visibilidade na

literatura do país e se inserem no mercado editorial alcançando uma considerável difusão de

suas obras. Resguardando as individualidades quanto à escrita e ao ponto de partida de cada

autor, essa NNA se caracteriza por produções discursivas que partem de um imaginário

urbano e utilizam predominantemente a cidade de Buenos Aires como pano de fundo e

território simbólico, isto inclui também o conurbano como o locus do discurso desses novos

escritores e como o lugar a partir do qual alguns deles falam.

Uma vez que muitas dessas narrativas propõem a representação de um cenário – o

conurbano bonaerense – até então invisibilizado na literatura argentina, considera-se que se

trata de uma forma de fazer frente à sub-representação tradicional e que a NNA passa a

ocupar a posição de subcampo no interior dessa literatura, apresentando estratégias para dar

mais notoriedade ao espaço geográfico e aos temas que se referem ao conurbano. Vanoli e

Vecino afirmam que todo este processo

es heredero de las transformaciones en el campo literario argentino durante la

década del 90 (Benzecry, 2002), pero establece muchas más rupturas que

continuidades con respecto al mismo, configurando un particular universo simbólico

que funciona como codificador de nuevas prácticas literarias y que asigna valores de

legitimidad y prestigio [...]. (VANOLI e VECINO, 2010, p. 264)

A edição de 2005 da antologia de contos La Joven Guardia, organizada pelo jornalista

Maximiliano Tomas e que reuniu textos diversificados quanto à forma e conteúdo,

representou um importante passo para a afirmação da NNA e para seu lançamento no

mercado editorial hispano-americano de maior relevância. As novas perspectivas do ponto de

vista da autoria foram acompanhadas pelo surgimento de um público leitor que se interessava

pelos tipos de produção que então se apresentavam. Vanoli e Vecino assinalam que a NNA

tem como um dos objetivos principais a renovação do sistema literário argentino, contando

50

com o apoio de intermediários de áreas como o jornalismo, a crítica literária e as pequenas

editoras associadas aos próprios escritores e antólogos.

Ainda que a antologia tenha sido elaborada com a pretensão de fazer circular as obras

de novos autores e conferir-lhes reconhecimento, o resultado foi a construção de um novo

cânone, visto que os efeitos do que se intitulou como NNA não foram temporários e

reverberam até os dias atuais.

É relevante destacar aqui o perfil dos escritores que compõem a NNA, principalmente

para introduzirmos o debate sobre as diferenças entre os de Buenos Aires e os do Rio de

Janeiro quanto às disparidades entre os sistemas educativos a que tiveram acesso e seu reflexo

na formação de cada um. Os investigadores explicam que

el fenómeno de la renovación generacional de la narrativa argentina se constituyó

rápidamente como un proceso de clases medias urbanas escolarizadas y con relativa

inserción en los circuitos más o menos consolidados de producción cultural, como la

universidad, el periodismo o las nuevas disciplinas en emergencia vinculadas al

design. (VANOLI e VECINO, 2010, p. 263)

São escritores que apostam na cultura como meio de ascensão social e que reivindicam

a escrita como ofício, ou seja, buscam uma posição de autoria, o mesmo movimento que faz

César González e que abordaremos em capítulo mais oportuno.

Em seus textos, os autores analisados por Vanoli e Vecino procuram descrever como

enxergam o conurbano, distanciando-se da ideia de “plebeização” atribuída pela cultura

literária (VANOLI e VECINO, 2010, p. 265). Revela-se um esforço de representar essa região

de modo mais complexo e heterogêneo, e de desconstruir o modo simplista e estigmatizante

como se dá a representação de territórios e grupos alterizados em muitos dos textos que

circulam pelo país. Em suas obras, salvo raras exceções como Zelarrayán e Fogwill, a

narrativa produzida até então apresenta o conurbano bonaerense, quando a ele dedica seu

olhar, como um lugar repleto de sujeira, sangre e degradação social. Isso é o que se observa

desde a publicação de “El matadero”, de Esteban Echeverría, quando da representação das

margens da cidade se trata. Com os novos autores o conurbano surge também como um

território marcado pela resistência e espaço social que serviu de cenário para a militância; aí

se identifica a existência de uma comunidade mítica, imaginada, recuperada pela memória dos

próprios moradores ou, às vezes, como a realidade de um outro planeta, como o conurbano-

Marte de Las chanchas, de Félix Bruzzone, no qual podemos perceber uma ácida crítica às

representações dominantes e aos circuitos nos quais se elaboram essas representações. São

narrativas aparentemente díspares, mas que fogem do senso comum na forma de apresentar

51

uma possibilidade de imaginar o conurbano, este espaço onde convivem múltiplas histórias,

memórias e experiências. Daí emergem novos modos de enunciação da cidade.

Integrantes dessa geração ou da mais recente, alguns escritores villeros chegam a

publicar suas obras, mas continuam ocupando um lugar subalterno no campo literário na

medida em que ainda dependem de outros sujeitos como mediadores para essas publicações,

pois não atingiram o domínio pleno de um capital que lhes permita participar em igualdade de

condições nas disputas internas do campo. Em alguns casos, um escritor villero ou do

conurbano, como é caso de Washington Cucurto, supera esses aspectos da condição

subalterna ao criar sua própria editora, expandindo os espaços para a circulação de seus textos

– e os de outros autores oriundos das villas e das margens do campo –, inaugurando um

espaço no campo editorial que valoriza esse tipo de obras.

Conforme assinala Hernán Vanoli (2009), a partir dos anos 2000, começam a surgir

pequenas editoras independentes que, com suas diferentes estratégias comerciais e,

especialmente, políticas, atuam como nichos de formação de intelectuais que questionam e

alteram as práticas de escrita tradicionais, interferindo no campo de publicações e de

produção da literatura nacional. Com os novos modelos de intervenção artística e intelectual,

surge um ativismo cultural que fará com que, dentro dessas pequenas e novas editoras, o fator

comercial fique subordinado às manifestações no campo literário.

Vanoli ressalta que embora alguns escritores de periferia encontrem certa expressão no

mercado literário, é necessário que haja uma “hipersegmentação dos mercados” como a saída

viável para o atual contexto de transformações na cultura literária e no regime de circulação

da palavra escrita, onde se nota uma incontornável ampliação do público produtor, oriundo

agora de distintas camadas sociais. A criação de novas editoras é a estratégia de muitos

autores que já atingiram certo prestígio encontram para dar mais visibilidade às suas obras e

às daqueles que enfrentam as mesmas dificuldades pelas quais passaram para a divulgação de

seus trabalhos.

Escritores como Juan Diego Incardona e César González (focando em casos

argentinos) são alguns dos exemplos de autores villeros que idealizaram e produziram as

revistas eletrônicas El Interpretador e ¿Todo piola?, respectivamente, meios para fazer

circular essas novas textualidades das quais estamos tratando. Outro caso, mais famoso, é o da

editora Eloísa Cartonera, cooperativa criada em 2003 e que fabrica livros com capas de

papelão reciclado, contado e pintado à mão, que se transforma suporte para edições

52

distribuídas a preços populares em diferentes circuitos.17 Atualmente com mais de 200 títulos

publicados, de autores argentinos e de outros países da América Latina, a editora surgiu num

contexto de crise do país, que deixou muitos homens e mulheres desempregados. Para superar

essa fase, um grupo de amigos apaixonados pela leitura e interessados em desenvolver um

novo trabalho viram uma possibilidade de mudança através dos papelões que outros

trabalhadores desempregados catavam nas ruas de Buenos Aires. Um tempo depois, na

primavera de 2003, nasceu a cooperativa, que foi um sucesso na imprensa nacional e

internacional e que chamava a atenção, entre outros motivos, por suas capas de cores vivas e

alegres.

Iniciativas como essa, que está diretamente associada a Washington Curcurto, um

escritor de Quilmes, município do Conurbano argentino, e repositor do Carrefour até a

publicação de seu terceiro livro, bem como a de tantos escritores novos, ou borders, como os

define Cucurto, permitem a diversificação do olhar para as periferias de Buenos Aires e seus

habitantes. Os modos de narrá-los e representá-los devem ter como fundamento principal o

respeito à dignidade das múltiplas formas de vida que estão envolvidas; impõe-se que sejam

narrativas que venham a corrigir a “miopia da nossa cultura letrada” (VIOTTI e

BALLADARES, 2010, p. 238).

17 Estas e outras informações estão disponíveis em: http://www.eloisacartonera.com.ar/historia.html. Último

acesso em 02 de junho de 2018.

53

2. A PRODUÇÃO LITERÁRIA VILLERA E FAVELADA

Pensar a produção literária de autores oriundos de territórios villeros e favelados nos

remete a um exercício de reflexão sobre questões educacionais do Brasil e da Argentina, pois

é preciso entender o quanto a trajetória desses sujeitos que escrevem sofreu interferência dos

espaços de formação escolar básica, pensando em sua lógica de funcionamento e como se

formam os estudantes que passam por eles nesses países. Fazer parte de uma família pobre

influenciou em maior ou menor medida suas histórias e, consequentemente, seus estudos,

como ainda o faz com tantos escritores (até o momento) anônimos que provavelmente

estamos prestes a conhecer e outros que nunca conheceremos ou que deixarão de escrever, por

inúmeras adversidades.

A dificuldade em reduzir e erradicar a pobreza está diretamente conectada ao atraso

em relação à educação de um país e esse é um esquema cíclico: se a pobreza é um fator que

priva um indivíduo da educação (ou só lhe possibilitando o acesso a alguns poucos anos de

uma formação bastante precária), na mesma proporção o limitação do acesso aos estudos

formais de qualidade faz com que uma população mais pobre se mantenha nesta circunstância

por gerações. Wilhelm Hofmeister comenta que “quase cem milhões de pessoas na América

Latina vivem em condições de pobreza, o que representa 20% da população da região

sobrevivendo de forma precária, mal tendo condições para comer, muito menos para ir à

escola” (HOFMEISTER, 2006, p. 7).Este dado nos ajuda a entender a problemática da

motivação para que os jovens se tornem escritores ou mesmo cheguem a ingressar (e se

manter) em uma universidade pública, pois se não há meios para frequentar uma escola, isso

provocará o desinteresse pelos estudos e pela leitura (admitindo-se as diferenças entre os

países supracitados). Tornar-se um leitor, posteriormente um leitor crítico e, finalmente, um

autor é um caminho árduo e pouco provável para alguém cuja realidade não é a de valorização

do processo de aprendizagem, não contando tampouco com perspectivas de mudanças desse

quadro.

Na América Latina, existem em porcentagens significativas tanto os casos de crianças

que não chegam a frequentar uma escola quanto de outras que a abandonam, e não apenas por

carecerem de apoio financeiro para sua permanência, mas também por precisarem trabalhar

para complementar a renda familiar e garantir-lhe o sustento. Isso aumenta o abismo entre as

classes sociais, a qual já aponta uma profunda situação de desigualdade, pois enquanto um

grupo, forçado pela necessidade, compromete seus estudos em prol da priorização do

trabalho, outro faz parte de uma pequena elite que sempre recebeu uma educação plena,

54

estudando em instituições que oferecem um ensino de melhor qualidade para seus estudantes,

o que lhes garantirá maiores oportunidades futuramente, fazendo-se perpetuar o hiato social

entre este grupo e o primeiro. As crianças e os jovens pobres “acabam fazendo escolhas de

vida e de trabalho baseadas, prioritariamente, na necessidade imediata, na pressão de parentes

e amigos ou diante das limitadas oportunidades que existem em suas redes” (FIGUEIREDO,

2018, p. 24).

Para que ocorra de modo abrangente uma mudança no atual quadro educacional latino-

americano, é necessário que se invista financeiramente nesta área. Diante da ausência (ou

ineficácia) do Estado, passam a agir organizações que elaboram estratégias para contornar o

problema a curto e médio prazo. Surgem também programas sociais (ou a reforma dos já

existentes) como resultado de reivindicações da opinião pública, como aponta Simon

Schwartzman (2006). Este autor, ao analisar dados de 2004 sobre a educação no Brasil desde

o pré-escolar até o Ensino Superior, afirma que um país extremamente desigual não

conseguirá tornar-se desenvolvido, uma vez que, para que isso seja possível, precisaria ter

bem resolvidos problemas como a pobreza e a escassez – ou mesmo a absoluta ausência – de

serviços básicos de qualidade nas áreas educação e saúde.

As camadas sociais de mais baixa renda são as mais afetadas por esses problemas.

Segundo Schwartzman, “as análises estatísticas feitas a partir dos resultados do SAEB e do

PISA não deixam dúvida de que o principal correlato do mau desempenho das crianças na

escola é o nível socioeconômico de sua família, e, no caso do Brasil, também sua origem

étnica” (SCHWARTZMAN, 2006, p. 15). É dessas camadas mais empobrecidas e, portanto,

menos educadas, que procedem os autores brasileiros sobre os quais dissertaremos neste

capítulo. Autores que, não tendo recebido a educação adequada para sua completa formação –

como tantos outros moradores de periferias –, paradoxalmente se emanciparam através da

escrita, mas carregam consigo um histórico no mundo do trabalho que difere bastante da

atividade intelectual que exercem atualmente. Além de sua situação financeira, a própria

escola o direciona neste sentido porque oferece uma formação voltada para o mercado de

trabalho manual, em especial no Ensino Médio, e muitos estudantes o frequentam (quando o

fazem) em busca de uma titulação que lhes garanta uma vaga de emprego.

Na mesma linha de raciocínio, analisando o caso argentino, Alberto Sileoni (2006)

assinala que distintas gerações de uma mesma família ficam sem recursos e oportunidades,

visto que a exclusão de populações mais pobres a serviços como a educação contribui para a

perpetuação desse processo de pauperização. O autor defende também a ideia de que não se

55

deve desvencilhar educação de pobreza, tendo em vista que, conforme definem alguns

estudos, “cada ano de escolaridade reduz em até 6% a possibilidade de ser pobre” (SILEONI,

2006, p. 55), ainda que outros fatores também tenham uma função determinante nessa relação.

A fim de reparar as disparidades de origem dos alunos e compensar a pobreza

educativa, a Argentina criou uma série de políticas de equidade, implementadas pelo

Ministério de Educação, Ciência e Tecnologia, tais como o Programa Nacional de Inclusão

Educativa “Todos a estudiar”, o Programa Nacional de Bolsas Estudantis, centros de

atividades juvenis, entre outros, segundo comenta e discute Sileoni. As ações desenvolvidas

visavam assegurar a inserção, reinserção e/ou permanência dos discentes na escola, bem como

o uso desse espaço para atividades extracurriculares. Além disso, e partindo de uma lógica

distinta da brasileira, na Argentina há políticas de acesso amplo aos cursos superiores em

universidades públicas, com menos abertura ao setor privado neste nível educacional,

tornando o ingresso mais equânime.

As diferenças nos sistemas educacionais do Brasil e da Argentina nos levam a concluir

que há distinções também nas trajetórias dos autores de cada país, já que, como consequência

da realidade em que viveram, podemos considerar que é mais improvável que indivíduos

brasileiros favelados e negros tornem-se escritores que os argentinos villeros. A

aprendizagem, como acrescenta Sileoni, “é um veículo para que as crianças descubram que

são sujeitos de direito, já que o conhecimento gera autonomia e a ignorância, dependência”,

possibilitando que elas se transformem em sujeitos conscientes e críticos.

Distinguindo-se dos casos brasileiros, os escritores argentinos que investigamos

concluíram os estudos na educação básica e média, ingressando posteriormente em uma

universidade pública (com exceção de Walter Hidalgo). Entretanto, a emancipação através da

leitura e da escrita (e não necessariamente via educação formal) é algo comum a todos,

levando-se em conta que se emancipar é “atrever-se a tomar a palavra, atrever-se a perguntar,

a assumir decisões próprias e a selecionar valores” (SILEONI, 2006, p. 51-52), como já

defendemos anteriormente, ao mencionar o caso do personagem literário de Caliban.

Tomar a palavra e escolher seus próprios valores envolve a opção por expressões que

marcarão sua personalidade. Um mesmo termo, segundo seu contexto e a pessoa que o

pronuncia, pode assumir um aspecto estigmatizante ou constituir uma afirmação de

identidade, nomear um coletivo, politizando o termo. Esta pesquisa, como outras já realizadas

ou em desenvolvimento, pretende ampliar o vocabulário da universidade a respeito das

produções literárias marginais, periféricas, subalternas, negras, faveladas, villeras,

56

problematizando a polissemia destes termos e reivindicando a relação que existe entre esses

vocábulos.

Assumir-se como villero ou favelado ao expressar-se (através da escrita e/ou da

oralidade) é posicionar-se neste lugar de fala e lutar pelo reconhecimento do valor dos

discursos e das vozes que ecoam dali; é (re)afirmar um sentimento de pertencimento coletivo

lançando mão de um predicado imaterial (villero, marginal, favelado, periférico etc.),

autorizado pela experiência, como descreve João Camillo Penna; é lutar pelo fim do

silenciamento dos sujeitos que aprenderam a balbuciar, aprimoraram sua linguagem e hoje

falam desde um lugar de autores; é construir ou ratificar a identidade e a memória daqueles

que transcenderam os limites do possível, impostos àqueles que historicamente foram

excluídos do grupo que decide quem pode se pronunciar, o que deve ser dito, o que vai ser

ouvido e por quais meios; é alicerçar sua tese de que é inadiável a mudança do referencial

discursivo no tocante às villas e favelas, fazendo com que estes espaços (e sua população)

sejam enaltecidos, ao serem vistos também por seus pontos positivos.

Camilo Blajaquis/César González, Juan Diego Incardona e Ferréz – como tantos

outros escritores que se identificam com as margens da cidade – escrevem sobre a periferia

explicitamente a partir de suas experiências em territórios periféricos, reivindicando, em sua

militância, a substituição da vergonha pelo orgulho de sua trajetória e destacando o papel

crucial do sentimento de ser villero/favelado (que respira e interpreta sua realidade) para a

formação dos sujeitos críticos nos quais se transformaram.

Os discursos de escritores como esses são representativos das “polifonias marginais”, como

argumentam os autores do livro que recebeu como título este mesmo conceito e que foi

organizado por Lucía Tennina, Mário Medeiros, Érica Peçanha e Ingrid Hapke, em 2015.

Segundo a epígrafe da obra, Mikhail Bakhtin afirma que a polifonia é uma combinação de

vozes que, apesar de formarem essa unidade, permanecem independentes e representam

vontades individuais. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins, Diego Incardona, Walter Hidalgo,

Wk e Leonardo Oyola (e, por que não, César González) são comparados nesta pesquisa a

partir da semelhança entre essas vontades individuais que possuem, e foram selecionados

porque sua literatura denota, para eles, a defesa de interesses coletivos das camadas mais

pobres. E, “embora tenha como destinatário privilegiado os moradores da periferia, esta

literatura não constitui um movimento localizado e limitado: difunde-se para toda a cidade e

influi de modo profundo na forma de imaginar o microterritório” (PIMENTEL, 2017, p. 334).

57

2.1. Ferréz, Sérgio Vaz, Geovani Martins e Eliana Sousa Silva

Com o aparecimento de autores marginalizados no cenário literário brasileiro, os

sujeitos periféricos aos quais havia sido reservado o lugar do silêncio e que antes serviam

apenas como objeto de investigação e apreciação passaram a pôr em prática estratégias de

autorrepresentação através das quais se projetam como porta-vozes informais e não

autorizados de uma coletividade. Esta nova presença no nosso espaço literário “não pode ser

lida como um dado isolado, mas sim como a conformação de um grupo específico que deseja

se fixar no seio de uma estrutura hegemônica” (PATROCÍNIO, 2013a, p. 12), valendo-se de

várias estratégias na busca de reconhecimento para suas produções simbólicas e na luta por

pertencimento e consagração no campo cultural, como a fundação de editoras e a construção

de discursos e representações imagéticas marcas voltadas para a periferia. É importante

pontuar que vários desses autores reivindicam a categoria de marginal como indispensável

para a construção de sua identidade, baseando-se nos princípios socioeconômico e geográfico.

Por estarem na condição daqueles que escrevem sobre um cotidiano que também

vivenciam – o dos territórios periféricos –, sua escrita possui um teor testemunhal, como

afirma Paulo Roberto Tonani do Patrocínio (2013a). Ao considerar-se que a voz dos autores

marginais sem pretender ser mais autêntica é mais autorizada a representar a favela e os

favelados, coloca-se em debate o papel do intelectual – que, tradicionalmente, foi quem falou

por eles – “frente às vozes periféricas que romperam a posição de objeto e agora figuram

enquanto sujeitos discursivos” (2013a, p. 18). Mais, estes sujeitos oferecem uma

representação contra-hegemônica do que é a periferia, procurando enfraquecer e eliminar as

falas que se encarregaram de estigmatizá-la.

Além daqueles que experimentam o dia a dia desse território, atualmente há muitos

autores “de fora” que também se voltam para o tema. Com isso, a periferia urbana passou a

ocupar um lugar de destaque na produção literária do Brasil e vem aumentando o interesse do

mercado editorial argentino pelas obras de escritores oriundos de periferias ou que abordam

em suas obras temas e problemas relacionados a esses territórios.

João Camillo Penna aponta com maestria alguns aspectos dessa nova realidade. Em

nota ao livro recém citado de Patrocínio, o pesquisador nos recorda que a crítica literária

brasileira tradicional afirma que as obras dos autores da margem deixam a desejar no quesito

estético, considerando-as fracas, literariamente falando. Esse campo tradicional e conservador

da literatura nega-se a aceitar a renovação da realidade literária, em nome da manutenção e

58

“proteção do monopólio de seu patrimônio exclusivo”, atuando de modo a perpetuar a

marginalização de obras escritas por autores não canônicos; livros que essa crítica limitada

não quer aceitar como propriamente representativos da literatura nacional. Nesta seção,

avaliaremos alguns desses livros (e respectivos autores) que se enquadram no que acabamos

de observar.

Ferréz

O primeiro caso é o de Ferréz, pseudônimo de Reginaldo Ferreira da Silva, que segue

uma linha ideológica semelhante à de César González quando assumiu a identidade de Camilo

Blajaquis no período de produção de seu primeiro livro. Ary Pimentel destaca:

Ferréz – com nome criado pelo próprio artista como homenagem a dois grandes

heróis populares brasileiros: Virgulino Ferreira, o Lampião (FERRE) e Zumbi dos

Palmares (Z) – fala como negro, fala também como nordestino e pobre, mas

especialmente fala como morador da periferia, levando a literatura a ocupar um novo

lugar numa região de fronteira urbana [...]. (PIMENTEL, 2017, p. 334)

Ferréz “fala e escreve em ‘favelês’” e sua “expressão linguística tem a função de

marcador de pertencimento, demarcando o nós do território” (ibidem, p. 334). Sendo um dos

principais nomes da “Literatura Marginal Periférica” e uma figura de destaque entre os

escritores contemporâneos, foi o responsável por ressemantizar o termo Literatura Marginal,

antes associado à poesia da Geração Mimeógrafo dos anos 1970. Isso ocorreu de modo quase

natural e depois de conhecer (por reportagens) as trajetórias de João Antônio e Plínio Marcos.

Conforme explicou o próprio Ferréz em uma entrevista citada por Érica Peçanha (2006), ele

passou a utilizar tal categoria para definir o movimento literário do qual fazia parte por

considerar que era o nome mais adequado para caracterizar e dar sentido ao que ele e outros

escritores oriundos de regiões populares representavam: objetos postos à margem de uma

sociedade que se quer homogênea.

Ferréz lançou-se na cena literária com o livro de poesias Fortaleza da desilusão

(1997), mas seu reconhecimento veio com Capão pecado (2000), romance hoje considerado

um clássico da Literatura Marginal Periférica e que já atingiu a marca de mais de cem mil

exemplares vendidos. Ferréz também escreveu Manual prático do ódio (2003) e Deus foi

almoçar (2011), entre vários outros títulos. Idealizou uma série de estratégias para a

divulgação das obras de autores das periferias e da cultura destes territórios, organizando a

59

três números especiais da revista Caros Amigos com o subtítulo Literatura Marginal: a

cultura da periferia. O primeiro foi publicado em 2001, e os demais em 2002 e 2004. Ferréz

criou também o Selo Povo, uma editora que visa a distribuir títulos de autores da periferia a

preços acessíveis aos leitores da periferia, e a marca 1daSul, que comercializa roupas,

acessórios, adesivos e livros voltados para moradores de zonas periféricas e desenvolvidos por

talentos destas mesmas zonas.18

Em suas obras, dialoga com a cultura pop, com o hip-hop e o rap. A interação com

este último se expressa, por exemplo, em Capão Pecado, por meio das citações e

participações de figuras ligadas ao movimento, que aparecem nas aberturas de todos os

capítulos do livro.

Ferréz comenta, nas primeiras páginas dessa obra, que esta se trata “talvez [do] reflexo

de uma periferia que cerca toda a cidade” (FERRÉZ, 2016, p.10), acrescentando que “a

história de Rael e Paula está nestas páginas, mas antes estava na própria vida” (ibidem, p. 11).

Isso nos leva a considerar Capão pecado como um romance de autoficção e de caráter

testemunhal. Tal como na obra literária de Camilo Blajaquis/César González, em que a voz do

eu lírico se confunde com a voz do próprio autor, o protagonista desse romance de Ferréz

passa por experiências deveras semelhantes às suas. Segundo Mc Gaspar (2016), “Ferréz é

+1DASUL, e sua missão é retratar a periferia através da sua poesia realista” (GASPAR, 2016,

p. 133).

Publicado pela primeira vez em 2000, Capão pecado é uma obra na qual o autor

enfatiza a desigualdade entre ricos e pobres, comparando a vida nas “quebradas” à vida nas

áreas mais nobres de São Paulo (diversas vezes, referindo-se aos moradores destas últimas

como “playboys”). O narrador e os personagens do livro descrevem a favela de modo

semelhante ao que se nota nas poesias de González e de tantos outros escritores de periferia:

sem idealizá-la e sem, tampouco, determiná-la a partir da violência ou da falta (embora

reconheça tais atributos). A favela é retratada tal como ela é vista de dentro por esses sujeitos,

segundo o ponto de vista de quem vive no território, de quem vive o território. E tal descrição

do ethos favelado é feita de forma indireta, isto é, está embutida na narrativa de modo que não

se encontram trechos gratuitamente descritivos.

Com uma linguagem que se divide (e, às vezes, se mescla) entre crueza e a abordagem

poética (apesar de ser, visualmente, um texto em prosa), o leitor se depara com um recorte do

que vivenciam diariamente os habitantes de Capão Redondo, favela da cidade de São Paulo.

18 Disponível em: http://www.loja1dasul.com.br/. Último acesso em 26 de maio de 2018.

60

As cenas que compõem o romance variam entre aquelas que são comuns a qualquer ponto da

cidade e as que são próprias ao território, muitas vezes chocantes pelo caráter dos males que

provocam aos seres humanos afetados.

Por abordar essa temática e ter esse cenário como pano de fundo, a narrativa de Ferréz

se assemelha às poesias de González. Cada uma a seu modo e sua forma, as obras

representam o grito desses escritores. É o grito daqueles que quiseram falar e foram

ignorados, por isso precisaram exigir em tom mais alto aquilo que sempre fora direito seu,

mas que lhe fora arrancado: a fala com sua versão sobre a própria história. Tais autores são

apenas uma porcentagem mínima de uma população que foi emudecida, conferindo-lhes uma

possibilidade de figuração e representatividade. O que os calou foi a desigualdade social, a

qual Jean-Jacques Rousseau considera uma “desigualdade moral ou política”, fruto de uma

convenção tácita entre os homens,

e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.

Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo de outros,

como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo

fazerem-se obedecer por eles. (ROUSSEAU, 2001, p. 39)

Por isso é tão fundamental que esses escritos da periferia e, consequentemente, a

própria periferia ganhem visibilidade. Não significa afirmar que nunca se leu qualquer

menção a villas/favelas em obras literárias reconhecidas em larga escala e de autores

canônicos antes dos pensadores villeros e favelados começarem a escrever.19 Significa que

para estes últimos o território e seus atributos deixam de ser um mero detalhe e se tornam o

elemento central e protagônico. Escreve-se sobre a periferia, para a periferia e a partir da

periferia.

Ambos os autores encontraram na literatura a linguagem para uma militância e

resistência que garantissem a ressignificação do território ao qual se vinculam suas histórias

de vida, descortinando-o para o mundo e desconstruindo as estórias que julgam equivocadas.

Realizam constantemente um trabalho árduo e profícuo de contranarrativa para provar que

outra representação sobre seu território é possível.

Uma pergunta central e que deu título a um encontro na Cazona de Flores (Buenos

Aires), o qual contou com a participação do escritor Ferréz, a convite do Coletivo ¿Todo

Piola?, do qual participa César González, é: do que estamos falando quando falamos em

marginal? Segundo os participantes que debateram nesse encontro, um modo de narrar sobre

19 Dialogamos aqui com a ideia que dá nome ao grupo criado por Wk, os “Pensadores Villeros

Contemporáneos”.

61

o ser marginal sem que se reforcem os estereótipos é falar das questões marginais, no plural,

sem diminuir ou desconsiderar as diferenças, como sintetiza Lucía Tennina (2013).

Segundo González, em uma entrevista a um programa de televisão argentino, o autor

lança mão do imaginário que se cria em torno de sua escrita – devido, particularmente, à sua

trajetória pessoal – para ganhar visibilidade nos meios de comunicação e dar força à sua

produção literária, participando de encontros em diferentes espaços. Isso permite ao escritor

que os espectadores tenham acesso direto à sua voz, e não a uma releitura e possível

apagamento da figura do autor e do discurso crítico que ele tenciona apresentar com sua obra.

Esse é o mesmo movimento que faz Ferréz em sua passagem por Buenos Aires,

aproveitando a projeção de suas obras, em especial pela divulgação da tradução do livro

Manual prático do ódio, para interagir mais ativamente com os meios de comunicação do país

em que se encontrava.

Eventos como os Saraus da Cooperifa (em São Paulo) e os encontros promovidos por

coletivos como o ¿Todo Piola? ajudam a destacar a relevância da produção literária de

sujeitos marginais, bem como valorizam as favelas (onde esses eventos ocorrem) como lugar

de criação, lugar com real potência de onde podem se projetar pensadores e artistas. Além

disso, pelo surgimento e constante atuação de um número cada vez maior de escritores e

artistas oriundos desse território, marcado durante décadas pela indiferença da sociedade e

pela ausência do Estado, nota-se que a circulação de produções como as de González e Ferréz

não são mais exceções, apesar de ainda representarem uma pequena parte das publicações que

recebem maior destaque em seus respectivos países, por não interessarem a uma considerável

parcela do mercado editorial.

O livro Manual prático do ódio, de Ferréz, ao passar a fazer parte da coleção Vereda

Brasil da editora argentina Corregidor, que apresenta obras de escritores já consagrados na

literatura brasileira, nos revela que a literatura atual transcende os limites e os padrões do

campo literário, uma vez que o autor recebe seu devido reconhecimento apesar de sua

trajetória periférica e mesmo sem ter em sua bagagem um histórico acadêmico ou qualquer

título formal que o equipare ao capital cultural do grandes nomes do cânone literário do país.

Retornando à discussão sobre as temáticas que predominam nos textos de autores

oriundos de favelas, Ferréz aborda, ainda em Capão Pecado, a condição do precariado,

espaço de trabalho a que parecem destinados os subalternos, os moradores pobres das

periferias, que não serviriam para nada além de trabalhos braçais, de acordo com um discurso

elitista, que Ferréz parafraseia quando problematiza:

62

O cara que não serviu para ser faxineiro de um grande hotel de São Paulo, que

durante anos vendeu vassouras nas ruas da Sul, que insistiu em passar no teste para

ser garçom, mas não tinha “boa aparência”, que foi recusado em dezenas de

empresas, sempre porque morava “naquele lugar”, aquele que era ajudante de

pedreiro ou que depois foi ajudando geral na rede Bob’s, aquele gordinho ali da rua

de cima, barbudo que falava pra caralho de revolução, de não aceitar coisas que o

sistema faz. Ia ser escritor? Para de tiração. (FERRÉZ, 2016, p. 9-10)

Os personagens de Capão pecado são um exemplo dessa realidade. Rael, o

protagonista, trabalhava em uma padaria, fazendo entregas, arrumando e limpando o local.

Mais tarde, vai trabalhar em uma siderúrgica, chegando a viver nos fundos da empresa para

vigiá-la à noite. Sua mãe também vivia na mesma condição subalterna e precária.

Estudiosos da temática do precariado lhe atribuem diferentes sentidos. O que nos

interessa aqui é a proposição de Ruy Braga em seu livro A política do precariado: do

populismo à hegemonia lulista. Antes de defini-lo, o autor contextualiza o debate:

O recente aumento dos acidentes e das mortes no trabalho, a resiliência do número

absoluto de trabalhadores submetidos à informalidade, a concentração da massa dos

empregos na base da pirâmide salarial ou a elevação da taxa global de rotatividade e

de terceirização da força de trabalho dão ideia da desagregação social que a

ortodoxia rentista afiançada pela “Carta ao Povo Brasileiro” assegurou ao país na

década de 2007. Por seu lado, a teoria da formação da “nova classe” somada à tese

da hegemonia às avessas ajudaram a esboçar uma resposta sociológica ao enigma da

conversão do petismo ao rentismo globalizado: para pilotar o modelo de

desenvolvimento pós-fordista no país sem romper com o ciclo da valorização

financeira só mesmo pacificando as fontes do trabalho barato, daí uma modesta

desconcentração de renda na base da pirâmide salarial a fim de garantir uma severa

concentração de capital financeiro no cume do regime de acumulação. Tudo somado

ao “transformismo” da direção histórica dos movimentos sociais no país. (BRAGA,

2012, p. 225)

Diante disso, pode-se afirmar que o processo de precarização é um aspecto

constitutivo desse estágio da expansão do capital. De acordo com o sociólogo, o precariado é

uma classe nova, que surge no contexto fordista e do Estado de Bem Estar Social. A noção de

precariado nos remete à ideia da própria relação salarial (como também das condições

precárias de vida), uma dimensão inerente, essencial ao capitalismo. Nesse sistema

econômico, o proletariado é fundamentalmente precarizado.

É importante comentar que Braga leva em consideração o conceito de superpopulação

relativa de Marx, que opõe três tipos de segmentos: 1) o flutuante – trabalhador que entra e sai

muito rapidamente das empresas, por serem atraídos e repelidos pelos ciclos de investimento

do capital; 2) o latente – o setor que está no campo e deseja migrar para a cidade (os muito

jovens e os que querem entrar para o mercado de trabalho, estes últimos sendo os que estão na

63

informalidade, em ocupações muito informais, sem direitos ou garantias, e que querem entrar

no mercado formal); 3) e o estagnado– trabalhadores que se encontram em condições

absolutamente degradantes de trabalho, e que adoecem e se acidentam, o que provoca que sua

saída do trabalho. O valor da força de trabalho acaba não sendo paga, visto o baixo salário.

Como afirma Ruy Braga, o fato de o trabalhador estar no mercado formal não exclui a

possibilidade de ser um integrante do precariado, pois formalidade não deve ser confundida

com estabilidade.

Então, o que está fora desse conceito de precariado? De um lado, a fração da classe

trabalhadora qualificada, isto é, setores mais bem pagos (e estáveis) e que exigem mais

formação. E de outro, a população pauperizada, os que não desempenham nenhum tipo de

atividade econômica essencial (o chamado “peso morto” da classe trabalhadora) e vivem da

informalidade. Estão fora do capitalismo, apenas consomem quando têm alguma condição

mínima para fazê-lo. O precariado em Ruy Braga daria conta da classe trabalhadora ativa que

estaria espremida entre, de um lado, o aumento da exploração econômica e, de outro, a

exclusão social, o que nos direciona ao protagonista do filme ¿Qué puede un cuerpo?

(dirigido por César González), um jovem villero que sobrevive recolhendo e vendendo

materiais recicláveis e que ingressa no mercado formal por um tempo, em um cargo ocupado

por trabalhadores de baixa escolaridade.

É este precariado (essa fração da classe trabalhadora não qualificada ou semi-

qualificada) que caracteriza o capitalismo na periferia, e não os setores qualificados. Não se

consideram os que estão fora do mercado de trabalho porque estes não fazem parte da

reprodução das relações de produção do trabalho. O pauperismo, isolado, não caracteriza o

capitalismo, ainda segundo Braga.

A integração dos trabalhadores via consumo tende a mascarar a degradação das

condições do trabalho, pois ao mesmo tempo em que aumentam o assalariamento e a

formalização (como também a desconcentração da riqueza), aumentam também a rotatividade

do trabalho, os acidentes, a flexibilização e a terceirização. Então, são indissociáveis o

aumento da formalização do trabalho e o aumento da degradação das condições de consumo

da força de trabalho.

O precariado, especificamente no contexto europeu (mas não apenas), constitui uma

nova classe social que emerge como resultado da globalização econômica, a partir

especialmente dos anos 80, e que se apoia sobre novas relações sociais de produção. E é este

conceito que o pesquisador pretende superar com seus estudos.

64

Pensando nos três segmentos em que os trabalhadores precarizados são divididos

(segundo a teoria marxista), podemos classificar os personagens do filme de González e do

livro de Ferréz no terceiro, o estagnado, o que se encontra em condições subumanas de

trabalho.

González toma esse personagem, que não tem nome, como exemplo para ilustrar a

situação de muitos jovens (e adultos) villeros e as consequências de sua condição de

subalternidade. Nesta produção, tal como em sua poesia, o autor pretende ressaltar o que, para

ele, é a real definição do modo de viver daqueles que se encontram às margens da cidade, seja

no aspecto territorial ou no ideológico.

Os sujeitos subalternizados, quando exercem alguma função remunerada, geralmente

assumem cargos que exigem baixa escolaridade e ocupam a base da pirâmide salarial,

recebendo apenas o suficiente para sobreviver. Além disso, não é incomum descobrir

empresas que mantém seus funcionários trabalhando em condições precárias, insalubres,

desumanas. Quando não se trata do aspecto físico (quanto à infraestrutura) do local de

trabalho, entra em jogo o aspecto psicológico, em que o trabalhador é tratado com descaso

pelos que ocupam cargos superiores, como se fizesse parte do respeito à hierarquia aceitar ser

ignorado pelos outros, ser tratado como nada apenas pelo fato de fazerem parte de um grupo

social que não consta no senso comum como digno de respeito.

Alguém que trabalha em uma função que carece de prestígio se encontra também em

uma dimensão da subalternidade, que são muitas, conforme comentamos em outra ocasião.

Esse não é mais o caso de Ferréz, pois apesar de escrever a partir de um horizonte de

subalternidade, não se pode considerá-lo subalterno se levarmos em consideração que ele

experimentou o cruzamento da fronteira que tenta homogeneizar centro e margem, e o

resultado de seu empoderamento foi o lugar de autor que ele assumiu. Tampouco se deve

acreditar que o escritor se encontra em uma posição prestigiada. O mais apropriado seria

afirmar que ao menos uma das dimensões da subalternidade foi superada, pois ele é capaz de

se representar, não precisa mais ser representado, parafraseando Spivak, quem afirma que o

subalterno, propriamente dito, não pode falar por si só, pois necessita da mediação de outros.

Este, definitivamente, não é o caso de Ferréz.

65

Sérgio Vaz

Sérgio Vaz é um poeta da periferia de São Paulo, criador da Cooperativa Cultural da

Periferia (Cooperifa) e um dos fundadores do Sarau da Cooperifa, evento cultural criado em

2001 e que está voltado para a poesia. O encontro acontece em um bar da periferia e conta

com participantes que o transformam “em um espaço de resistência cultural”, utilizando “a

oralidade enquanto suporte de expressão” (PATROCÍNIO, 2013a, p. 15). Autointitulado

“Poeta da Periferia”, Vaz é autor de uma série de livros, lançados pela Global Editora e pela

Aeroplano, além de possuir outros veículos de divulgação de suas poesias, marcadas por uma

escrita política e de resistência, lançando mão de uma linguagem capaz de seduzir por meio

da ternura.

Sérgio Vaz também é autor da autobiografia Cooperifa: antropofagia periférica e de

Literatura, pão e poesia (livro de crônicas e poesias), além de desenvolver projetos de

incentivo à leitura e à escrita em escolas públicas. Em 2007, organizou a Semana de Arte da

Periferia, em referência à Semana de Arte Moderna, de 1922. O objetivo do evento foi propor

“um espaço para a veiculação das produções culturais de artistas da periferia dentro da própria

periferia”, construindo sentidos para tais produções e “compreendendo estes espaços

marginalizados como polos de uma rica produção cultural que recebe pouca visibilidade”

(PATROCÍNIO, 2013a, p. 207-208).

Dialogando com a proposta da Semana de 22, Vaz escreveu ainda o Manifesto da

Antropofagia Periférica. Neste texto,

é possível identificar o desejo de compreensão da cultura popular, ou melhor, a

periférica, por parte destes autores da margem. Predomina neste aspecto uma

percepção essencialista da cultura, observando os artistas de periferia enquanto

produtores de uma arte própria, não contaminada pelas estruturas hegemônicas.

Além disso, a escrita, o próprio fazer literário, assume uma feição política de

intervenção direta na realidade social e cultural. “A Arte que liberta não pode vir da

mão que escraviza” – a sentença, presente duas vezes no Manifesto, reafirma o claro

intento de elaborar uma arte engajada e, principalmente, fora dos espaços

hegemônicos de poder, local por excelência do predomínio das forças políticas que

atiraram estes poetas periféricos à margem. (PATROCÍNIO, 2013a, p. 210)

Por essas razões, e por tantas outras, pode-se considerar Sérgio Vaz como um ator

social que proporciona, através da poesia e do ativismo, a valorização de grupos antes

inferiorizados, a ressignificação dos espaços da “senzala moderna” (como ele define a

periferia) e a criação de uma identidade fundada nas vivências transcorridas nesses mesmos

terrenos. É o próprio “artista-cidadão” que procura em seu Manifesto projetar-se como um

66

sujeito da periferia que lança mão da literatura como uma arma transformadora, atuando na

desconstrução dos estigmas, ele próprio um produto da periferia, que, conforme escreve,

nunca esteve tão violenta: pelas manhãs, é comum ver, nos ônibus, homens e

mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos,

adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. [...] A

criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão tão viciadas, e, apesar

de tudo e de todos, querem ir para as universidades. Viu, quem mandou esconder ela

da gente, agora a gente quer tudo de uma vez! (VAZ, 2011, p. 47).

Graças a esse desejo que agora desperta, os favelados “estão esvaziando as cadeias e

desempregando os Datenas” (VAZ, 2016, p. 102), muitos deles, através da poesia. Através de

argumentos como estes, Sérgio Vaz nos convence da necessidade de disputar o sentido da

poesia e, portanto, as regras das artes que orientam o pertencimento ou não ao campo, porque,

no final, “todo mundo gosta de poesia. / Só não sabe que gosta” (ibidem, p. 129), ou melhor,

só não sabe que aquilo de que gosta (seja rap, repente, funk, tecnobrega, slam, batalhas de

rima na periferia ou os gritos do graffiti nos muros da cidade) também é poesia, cultura e

resistência.

Geovani Martins

O jovem narrador Geovani Martins, nascido em Bangu, bairro da Zona Oeste da

cidade do Rio de Janeiro, escreve a partir de sua experiência como morador da favela do

Vidigal e do impacto que ele sofreu com a mudança de um bairro ao outro.20 Apesar de sua

participação em eventos literários ter iniciado há pouco tempo – em 2013, esteve entre os

convidados da Festa Literária das Periferias (FLUP)–, sua inclinação à leitura não é tão

recente assim, pois ele afirma que sempre leu muito e se interessava por histórias em

quadrinhos desde os quatro anos de idade. Uma evidência de que esses seus hábitos lhe

renderiam bons frutos foi o episódio em que o escritor se destacou entre outros participantes

de uma oficina literária ministrada pelo poeta Carlito Azevedo, em 2014. Revelando sua

habilidade para a escrita de narrativas carregadas de criatividade, Geovani Martins escreveu

um conto sob um ponto de vista imprevisível, a partir do tema escolhido por Azevedo: a

morte de um cinegrafista, atingido por um rojão em um confronto entre policiais e

20 De acordo com entrevista de Geovani Martins à revista Época, disponível em:

https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2018/03/geovani-martins-como-favela-me-fez-

escritor.html.Últimoacesso em 13 de maio de 2018.

67

manifestantes. Enquanto alguns se centraram na polícia, nos manifestantes ou na vítima fatal,

“Martins imaginou o rojão, que se sentia feliz por, ingênuo, acreditar ser levado para alegrar

uma festa”, ou seja, optou pelo “único elemento da cena que não vinha com filosofia

pronta”.21

Nota-se o mesmo olhar criativo em O sol na cabeça, no qual diferentes narradores nos

brindam com as mais variadas histórias, cada um deles focado em uma das múltiplas situações

que podem ser experimentadas em uma periferia carioca, produto da reelaboração de

vivências que o próprio autor leva na bagagem.

Assim como aconteceu com Ferréz e Sérgio Vaz, Martins, antes de publicar seu

primeiro livro, trabalhou em diferentes funções braçais e bastante alheias ao mundo letrado,

tendo estudado apenas até a oitava série. Conforme afirmamos ao início deste capítulo, esses

dados sobre tais autores brasileiros nos revelam que a necessidade de inserção no mercado de

trabalho, seja o formal ou o informal, interfere diretamente na conclusão dos estudos formais

na educação básica e o subsequente ingresso na superior. Diante disso, via de regra, torna-se

improvável que estudantes pobres de instituições públicas de ensino (principalmente as

municipais e estaduais) se vejam motivados a tornar-se escritores, ou mesmo cheguem a esse

caminho.

Em O sol na cabeça, já no primeiro conto, intitulado “Rolézim”, podemos fazer uma

constatação: é difícil imaginar uma narrativa cuja dicção seja mais carioca que a de Geovani

Martins. Quem nasceu no município do Rio de Janeiro ou vive/viveu ali se sente “em casa” ao

ler a narrativa, tamanha a familiaridade com expressões típicas da oralidade que fazem parte

do cotidiano da cidade, como “sem neurose”, “caxanga”, “dois conto”, “bagulho”, “merma”,

“papo reto”, “boladão” e com o próprio título do conto. Somam-se a isso as diversas formas

de descrever o calor característico da cidade, talvez o principal motivo das queixas dos

cariocas a qualquer época ou estação do ano: “maçarico”, “aquela lua” e “sol da porra”,

insiste o narrador.

A obra é marcada por vários cenários da cidade do Rio de Janeiro, que se apresentam

ao leitor em cada conto. Bairros, praias, favelas e uma cidade vizinha formam o pano de

fundo das estórias dos diferentes protagonistas, distribuídos nos treze contos que compõem o

livro. Alternando entre uma linguagem mais formal e o radical coloquialismo, Martins dá

conta da complexidade de viver em uma metrópole integrada por territórios tão diversos e

21 Relato de Maurício Meireles, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/morador-de-

favela-no-rio-geovani-martins-desponta-como-escritor.shtml. Último acesso em 13 de maio de 2018.

68

através de cada narrador nos leva a distintos pontos desse grande centro urbano sob diferentes

perspectivas, segundo os objetivos, medos, sonhos e revoltas de seus protagonistas.

Assim como podemos ler em Capão pecado, de Ferréz, há uma definição do ethos,

neste caso, carioca e não apenas da periferia, mas tal definição surge junto com o enredo, pois

ao conhecermos o dia a dia dos personagens conhecemos também um pouco da lógica de

funcionamento da cidade. A partir das histórias que se passam especificamente dentro de uma

favela, apresenta-se uma visão mais ampla desse território, e seus respectivos narradores

aproveitam para apresentar sua crítica social, uns de modo mais explícito que outros. Apesar

de o espaço da narrativa não se resumir às regiões periféricas e marginalizadas da cidade,

estas são predominantes na obra e são sempre contadas pelo olhar de sujeitos periféricos, o

que situa o autor na mesma posição discursiva de Ferréz e de outros escritores de periferia,

uma vez que apresentam uma nova possibilidade de representação da favela e de seus

moradores, vistos (território e sujeitos) por alguém que possui uma experiência de vida na

periferia.

A diversidade na caracterização dos personagens-protagonistas ajuda a ampliar o olhar

para as problemáticas que envolvem os sujeitos vítimas dos estereótipos já consagrados no

senso comum pelo discurso hegemônico. Há contos protagonizados por jovens que expressam

sua revolta com a ação truculenta da polícia, que os humilha e os reduz não-cidadãos (como é

o caso de “Rolézim”, “A história do Periquito e do Macaco” e “Sextou”), e com a forma como

a mídia forja as informações sobre o que ocorre na favela, configurando-se numa espécie de

denúncia por parte desses jovens. Contudo, há outros personagens que nos lembram o peso de

ter sua identidade estereotipada, pois a discriminação extrapola os limites do território

habitado. Um deles é um jovem que, ao circular pelas ruas da Gávea (bairro da Zona Sul, área

mais nobre da cidade), é visto como uma figura perigosa e assustadora, por sua aparência e

cor de pele, no conto “Espiral”. Outro, do conto “O rabisco”, é um pichador, sujeito que,

como alerta o narrador, tem “quase sempre o mesmo valor e o mesmo destino” que um ladrão

“pra quem veste a capa da justiça” (MARTINS, 2018, p. 53). Ele é perseguido por policiais

no terraço de um prédio, onde tentou se esconder depois de um grito apavorado de “pega

ladrão”.

Seguindo a mesma linha de variedade de personagens, o espaço da favela é descrito,

fugindo das armadilhas da estigmatização e ressaltando a alegria, o medo e as incertezas das

crianças ainda em um estágio de ingenuidade; as diferentes crenças religiosas que convivem

(nem sempre harmonicamente) naquele espaço heterogêneo; as aflições e expectativas de uma

69

criança que manuseia a arma de seu pai e de outra que está ansiosa para o primeiro dia de aula

no novo colégio; a oscilação entre frustrações e superação de um senhor cego que tenta se

sustentar com o que ganha narrando sua trajetória em transportes coletivos; a alegria e a

“viagem” de amigos que se unem para curtir a vida em sua plenitude. Tudo isso está presente

nas linhas de O sol na cabeça, para além da violência que – é inegável – comparece na

realidade das favelas.

A heterogeneidade de personagens e perspectivas não compromete a unidade da obra,

que se configura como mais uma forma de contestar os abismos existentes entre cidade e

favela, uma dicotomia que se desfaz se partirmos do pressuposto que uma faz parte da outra

de maneira indissociável. Trata-se de mais uma obra da Literatura Brasileira que se destaca,

por suas peculiaridades, no campo de produção literária periférica e marginal. A própria

favela assume um novo lugar com esses relatos. Como defende Martins, em reportagem à

revista Época,

A favela hoje é centro, gira em torno de si, produz cultura e movimenta a economia.

O favelado cria e consome como qualquer outra pessoa do planeta. E quando digo

consome, não me refiro apenas a Nike, Adidas, Kenner, Honda, Black Label, Red

Bull, Samsung, Sony, Microsoft. Falo também da cultura pop que faz a cabeça dos

jovens do mundo todo, os filmes e as séries de sucesso mundial que bombam nas

telas das smart tvs de meus amigos. Shakespeare, Frida Kahlo e Machado de Assis

também encontram seus públicos por becos e vielas. (MARTINS, 2018b, s. p.)

Eliana Sousa Silva

Embora não escreva textos literários e tenha uma trajetória distinta, outro caso

brasileiro que igualmente vale a pena comentar é o da pesquisadora e recente titular da

Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, Eliana Sousa Silva. Ex-presidente da

associação de moradores de Nova Holanda, parte integrante do conjunto de favelas da Maré,

onde viveu por 25 anos, a pesquisadora foi fundadora da ONG Redes de Desenvolvimento da

Maré e uma das pessoas que estavam na formação do CEASM, em 1997, num grupo que teve

como primeira iniciativa a criação de um curso pré-vestibular comunitário voltado aos

moradores da região, ação que foi motivada pelo fato de que apenas uma minúscula parcela

daquela população havia chegado ao Ensino Superior. Seja no número 7 da Praça dos Caetés,

no Morro do Timbau ou no prédio da Redes, na rua Sargento Silva Nunes, 1012, em Nova

Holanda, a ideia é a mesma: acreditar no potencial transformador da educação. Vinte anos

depois, mais de mil e seiscentos estudantes que passaram pelo curso conseguiram ingressar na

70

universidade (pública, em sua maioria).22 Projetos como o CPV tiveram a capacidade de

mudar significativamente o cenário social na Maré. Os cursos pré-vestibular do CEASM e da

Redes da Maré ajudaram a formar intelectuais que viriam a romper com os estigmas e

estereótipos. As sementes foram plantadas pelo CPV e, desse projeto de educação libertadora,

começaram a sair as Marielles. Muitos frequentamos as mesmas salas de aula do pré-

vestibular comunitário pelas quais passou Marielle Franco e várias gerações de intelectuais da

quebrada. Desse mesmo lugar saíram universitários, futuros mestres e doutores.

A trajetória de Eliana Sousa Silva atravessa esses projetos e instituições que ajudam a

transformar a Maré e contribuem para que centenas de jovens possam se tornar a primeira

geração de uma família a ingressar na universidade. Da militância no associativismo e do

trabalho nas instituições que ajudou a criar, surge um enraizamento cada vez maior no

território que passa a interpelá-la como intelectual e a leva a pensar a realidade de quase cento

e cinquenta mil pessoas, marcada pela violência dos diferentes grupos armados que atuam no

conjunto de favelas (polícia, exército, facções do tráfico de varejo e grupos de milicianos).

Em 2012, Eliana Sousa Silva lançou o livro Testemunhos da Maré. Na obra, fruto de

uma pesquisa impulsionada pelo impacto provocado pela morte de uma criança de três anos

em uma ação policial na favela onde morou, a autora fala sobre violência e políticas de

segurança, e pensa, a partir de sua própria história, a relação entre a polícia e os moradores

desse território. Silva desconstrói a imagem da favela como o lugar da carência por

excelência, porém sem idealizá-la, e desmistifica o modo como ela é representada nos meios

de comunicação de massa.

Como descreve Heloisa Buarque de Hollanda, em nota ao livro mencionado, Eliana

toma “a própria experiência de seu cotidiano de moradora e ativista da comunidade como

categoria de análise”, uma vez que não abre “mão do testemunho pessoal de ter vivido e ter

sido atingida pelo fenômeno da violência”. A obra é, portanto, mais um instrumento na luta

pelo direito da periferia de escrever e contar sua versão da história, bem como de figurar no

âmbito das disputas discursivas como uma espécie de testemunho de uma cria da favela.

A tragédia do menino Renan da Costa Ribeiro, morto por uma bala perdida enquanto

caminhava pela rua com sua avó, foi o que transformou seu modo de enxergar a realidade ao

seu redor com relação à forma de atuação das instituições do Estado nas favelas. Essa história,

como tantas outras, seria apresentada pela mídia segundo a versão da polícia – representante

do arquivo oficial, nestes casos –, uma vez que esta reproduz o discurso da “fala do crime”

22De acordo com informações da página oficial da ONG: http://redesdamare.org.br/eixoseprojetos/educacao/.

Último acesso em 21 de maio de 2018.

71

(CALDEIRA, 2000) fundado na “atitude textual” (SAID, 2007), omitindo toda a dor e

indignação de quem experienciou de algum modo o drama vivido.

Eliana Sousa Silva defende que “o bairro Maré é uma expressão concreta dos limites

das representações tradicionais sobre as favelas e da necessidade de se construir novas

interpretações sobre esses complexos territórios” (SILVA, 2012, p. 61). Isto é o que têm se

esforçado para conquistar tanto a pesquisadora quanto escritores de periferia como os que

destacamos. Embora ainda falte muito caminho a ser percorrido, os primeiros passos já foram

dados.

2.2. Juan Diego Incardona, Walter Hidalgo, Wk e Leonardo Oyola

Do mesmo modo como acontece no Brasil – contexto discutido na seção anterior –, a

Literatura Argentina tem apresentado uma crescente presença e fortalecimento do

pertencimento de escritores oriundos de territórios marginalizados e que se interessam

particularmente pela forma como esses lugares foram narrados, descritos e fixados no

imaginário nacional através do discurso hegemônico. Provenientes de diferentes municípios

da Grande Buenos Aires ou de villas da capital, tais autores produzem poesias, contos e

romances a partir de suas experiências numa ponte que lhes permite, ao mesmo tempo, estar

dentro e fora desses bairros – uma vez que circulam por espaços do campo cultural como

jornais, editoras, e, de modo mais destacado, a universidade –, trazendo à tona novas

perspectivas sobre esses espaços geográficos por meio de peculiares formas de retratá-los,

conectados por uma orientação temática e política diversa, mas apresentando uma certa

sintonia que de alguma forma os conecta, se não de modo concreto no que se refere às suas

trajetórias individuais pelo menos é o que acontece no momento da recepção, quando os

leitores acabam por agrupá-los como os escritores que produzem a nova literatura do

conurbano.

Seja por razões estéticas, geracionais ou puramente mercadológicas, várias editoras

argentinas têm lançado cada vez mais livros desses novos autores, ampliando o alcance de

suas obras. Iremos nos debruçar sobre algumas delas a seguir.

72

Juan Diego Incardona

Juan Diego Incardona é um sujeito que une suas experiências no universo de uma villa

de Buenos Aires à de estudante da Faculdade de Letras da UBA para narrar o território onde

nasceu e foi criado. O escritor, por meio da construção de distintos personagens habitantes

desse “otro mundo más allá de la General Paz”, traz as memórias pessoais, a história do lugar,

seus laços de pertencimento, os pequenos dramas de um mundo com o qual o leitor teve

pouco contato desde “El matadero”, de Esteban Echeverría.

Em seu primeiro livro, intitulado Villa Celina (2007), que o próprio autor denomina

“série autobiográfica”, Incardona reúne sete contos cujas temáticas remetem o leitor às

experiências supracitadas, recuperando sempre as memórias que o levam ao seu local de

origem: “ninguno se escapa a la fascinación que da ese antiguo sentimiento que es el sentido

de pertenencia” (INCARDONA, 2007, p. 5). Seus contos são fruto do interesse do autor pela

literatura, que ele desenvolveu bem antes de iniciar o curso de Letras na Universidad de

Buenos Aires, em 1995, e do aprendizado que o período de estudos (até abandonar a

faculdade) lhe proporcionou, ainda que os textos não tenham sido escritos apenas durante esse

recorte temporal. Com diversos contos em mãos, Incardona sentiu a necessidade de publicá-

los e, ao ver-se sem opções diante do panorama editorial em seu momento, percebeu que

precisava superar certos obstáculos e criou sua própria revista eletrônica, chamada El

Interpretador.

Em tom crítico, chamando a atenção para o sensacionalismo midiático em torno dos

fatos que ocorrem no universo das villas, Incardona problematiza o imaginário urbano em

torno desses territórios e lança a ideia de “alucinação coletiva” no conto “El hombre gato”.

Ao comentar um episódio do Homem Gato, uma lenda do conurbano bonaerense que, diziam,

vivia pelos telhados e pelas copas das árvores à noite, o autor utiliza essa expressão para

descrever e explicar a atitude de várias pessoas que se convencem de que estão vendo algo

que talvez nem mesmo exista, chegando a irritar-se com o tal homem gato, agindo de modo

irracional, já que não buscaram qualquer esclarecimento sobre o relato. Do mesmo modo

podemos descrever o imaginário em torno à villeritud,23 uma vez que os meios de

comunicação se apresentam de todo insuficientes, tendenciosos e estigmatizadores no ato de

construir e difundir representações sobre as villas e os villeros. Por esta razão não é difícil

encontrar um discurso fundado no preconceito de lugar, o qual define aprioristicamente esses

territórios e os próprios moradores.

23 O conceito de villeritud será comentado de forma mais aprofundada no Capítulo 4.

73

Além do olhar pejorativo, as villas sofrem também com o descaso, conforme destaca o

narrador no conto “El ataque a Villa Celina”, do mesmo livro de Incardona. O lugar foi

destruído quase em sua totalidade em 1992 devido a uma série de explosões causadas pelo

aumento da pressão do gás. A catástrofe foi interpretada como sabotagem por diversos

motivos: em menos de dois meses o Gas del Estado seria privatizado; os próprios moradores

tiverem que conter o incêndio, pois os bombeiros só apareceram muito tempo depois do

chamado; o fato não foi notificado na imprensa e o único jornal que o fez foi censurado; o

galpão reservado para atender aos moradores que receberiam novos eletrodomésticos também

pegou fogo, misteriosamente; e, apesar das constantes manifestações dos habitantes de Villa

Celina – que também não tiveram repercussão midiática –, nada foi feito pelas autoridades

responsáveis. Conforme se lê no conto, vale a pena lembrar que no ano do atentado quem

governava o país era Carlos Menem, que, apontado como defensor da manutenção dos

privilégios das classes mais altas do país, não se importaria – como não se importou – com

um fato que só afetava aqueles “refugos humanos”.

O cotidiano da Villa Celina só era assunto de algum jornal ou programa de televisão

quando as estratégias de espetacularização de alguma tragédia podiam ser ativadas. Eram

abordagens que deslocavam a gravidade dos problemas locais para o âmbito da violência ou

do exótico, distorcendo a realidade e descrevendo esse território como se ele não fizesse parte

da cidade. Em Villa Celina, há dois episódios que exemplificam o oportunismo dos meios de

comunicação. Um deles é o caso do “hombre gato”, que figura como um caso interessante do

que Incardona chama de alucinação coletiva, conforme assinalamos acima. Em uma das

aparições do enigmático ser – um pesadelo para muitos, mas um verdadeiro herói para o

narrador –, um programa emitia imagens ao vivo de toda a multidão que estava em torno de

uma árvore onde, afirmavam, o tal homem permanecia escondido já há algumas horas.

Tanto esforço para representar os bairros periféricos como locais inseguros, marcados

apenas pela violência ou pela falta de recursos, caracteriza a imagem que se tem desses

espaços. Ao reproduzir o discurso pejorativo já cristalizado no senso comum, os meios de

comunicação corroboram a ideia dos assentamentos populares como um problema e de que é

necessário agir imediatamente para solucioná-lo e eliminar os responsáveis por tanta

insegurança. Apoiando-se nesse mesmo discurso, as forças policiais agem de forma truculenta

em suas incursões, desrespeitando os direitos dos moradores e propagando a violência,

paradoxalmente apoiados na justificativa de seu combate. É assim que a polícia intervém no

caso do homem gato quando suspeitam que ele invadira um terreno: começam uma

74

perseguição com muitos tiros e usando bombas de gás lacrimogênio, atitude que poderia

causar mortes e ferimentos em qualquer um que estivesse por perto. Assim como ocorre com

González e Ferréz, no caso de Diego Incardona, toda vez que fala da villa onde vive/viveu,

notamos uma vida marcada por experiências ricas e plurais ao lado de outras traumatizantes,

através das quais, muitas vezes esses sujeitos são apresentados prematuramente à violência.

Ao narrar e descrever a forma de viver nesses territórios informais que também

integram a cidade, cada um o faz de modo a contemplar as diferentes atividades que ali

podem ser observadas diariamente. Portanto, não leremos em suas obras apenas episódios

violentos, visto que a isso não se resume a história daquelas pessoas. Em vez disso, nos

deparamos com cenas graciosas de crianças brincando ao ar livre (de bola, pipa ou

figurinhas), como em qualquer outro lugar da periferia; jovens que se encontram nas esquinas

ou na porta de casa para conversar sobre qualquer assunto, mesclando-se os que estão

envolvidos com o mundo do crime com aqueles que se dedicam aos estudos, esportes ou

atividades laborais; a crença no amor como saída possível aos mais distintos problemas, a

despeito da realidade de injustiça que os cerca; crianças e adolescentes que demonstram, cada

um ao seu modo, seu amor pelo futebol; indivíduos brigando por motivos banais; pessoas que

se deixam escravizar pelo consumo para garantirem uma roupa ou objeto da moda; pessoas

trabalhando e fazendo manifestações por condições mais humanas. Enfim, a vida na periferia

se mostra incrivelmente complexa para ser definida de uma forma tão simplista e

monocórdica como a narrativa dominante que generalizada o discurso do medo e da falta.

No conto “Los rabiosos”, o narrador defende que o lugar onde os nossos laços de

pertença são mais fortes é nosso ponto de referência. Representar a villa sendo (ou tendo sido)

alguém daquele lugar, que se identifica com esse espaço e não tem vergonha de reconhecer

essa origem, é diferente de fazê-lo apenas baseado no que se ouve a respeito ou em visitas

pontuais e esporádicas. O escritor villero que representa a villa partirá quase sempre de uma

experiência que é ao mesmo tempo individual e coletiva, isto é, seu referencial passa a ser a

experiência partilhada no cotidiano da villa. Uma vez que autores como Incardona tentam dar

conta da multiplicidade que é a vida na periferia, à contrapelo da estereotipia mas também

sem a intenção de idealizá-la, a violência não será o elemento dominante de suas histórias,

embora ganhe destaque em alguns momentos. Um personagem que perde um amigo de

maneira trágica, os jovens que matam e são mortos antes de descobrirem o que a vida lhes

reserva, brincadeiras de rua que são interrompidas por tiros, pessoas que veem sua vida

destruída pelas drogas e por passagens – muitas vezes sem volta – pelo sistema carcerário.

75

Esses e outros pontos do romance de Ferréz, dos contos de Incardona e das poesias de

González são uma marca da presença da violência, mas, insistimos, não poderia figurar como

única possibilidade de representar aquela realidade.

Os veículos de informação de maior alcance são manipulados e isso não é novidade.

Os interesses particulares dos donos desses meios não podem ser ameaçados, e é por esse

motivo que os problemas enfrentados pelas regiões mais pobres e precarizadas, quando

noticiados, continuam a ser divulgados como resultado daquilo que os próprios moradores

provocaram (por seu modo de viver), e não como consequência de um Estado que se ausenta e

os aniquila todos os dias. Voltando aos episódios que desmascaram o sensacionalismo da

mídia, o outro caso em Villa Celina ocorre em “Los rabiosos”, mencionado acima. Um ataque

de cães raivosos, que interrompe um conflito de diferentes bandos no entorno da villa,

provoca a morte de um número desconhecido de moradores da região, por falta de

atendimento nos hospitais e de vacinas que poderiam salvá-los se fossem aplicadas dentro das

quarenta e oito horas imediatamente posteriores ao ocorrido. Nos noticiários, as manchetes

davam conta de um anúncio que em nada implica a responsabilidade das autoridades,

informando-se apenas que havia um surto de raiva em La Matanza (onde se localiza Villa

Celina). Os villeros sabiam que há muito se avisava a respeito, mas os dados mais detalhados

só poderiam vir à tona através dos grandes meios de comunicação, que não usariam o espaço

que possuem para denunciar a falta de interesse do governo em remediar desastres.

Não se pretende defender com esta pesquisa que o discurso que assumem os escritores

oriundos de villas e favelas é o único autorizado a representar esses territórios. A questão é

que essas vozes que agora conquistam mais espaço trazem um diferencial no olhar sobre o

tema pelo fato de que falam de dentro desses espaços. Apresentam uma forma alternativa de

representar um território e sujeitos historicamente subrepresentados e silenciados. Apesar do

sentimento de indignação e do caráter reivindicatório – seja de mais dignidade aos

villeros/favelados, seja de mais abertura para esses sujeitos na literatura –, os textos de autores

da periferia não assumem um tom revoltado ou pessimista exclusivamente. Há poesias

(González, Sérgio Vaz) cujo tema é o amor; ou contos (Incardona) que narram a paixão por

futebol; ou trechos de um romance (Ferréz) em que um jovem se vê em um dilema que

envolve amizade e paixão. No fim, o conteúdo que trazem coincide em grandes termos, e

convocam um enorme leque de possibilidades para expressá-lo.

76

Walter Hidalgo

Walter Hidalgo é um jovem de 26 anos que se revelou na terceira edição da premiação

“Nuevo Sudaca Border”, organizada por Eloísa Cartonera em 2013, tendo publicado seu livro,

Soy villero, por esta editora posteriormente. Aos 21 anos, na mesma época em que já escrevia

poesias, Hidalgo atuava em uma biblioteca, prestando apoio escolar, e trabalhava como

limpador de piscinas. O poeta também publicou textos na revista eletrônica ¿Todo Piola?,

fundada por César González. Aliás, sua poesia é bastante semelhante à deste último, tanto em

relação ao tom testemunhal quanto na forma como aborda o tema das villas e dos villeros, em

especial os ditos “pibes chorros”, partindo da ideia de que “en realidad son el reflejo de un

capitalismo apuñalador por experiencia” (HIDALGO, 2014, p. 9).

As referências dos poemas de Hidalgo são explícitas, o que se nota desde os títulos –

como “Mensaje al rocho”,24 “Mentores de mis decires”, “Guachines con hijos”,25 “Cansancios

de un albañil” e “Yo, el civil” – e na abordagem direta dos temas marginais. Como argumenta

Ana Camarda (2016), quando se dirige aos “rochos”, Hidalgo, na mesma linha que César

González, chama a atenção para o fato de que o sistema precisa que eles continuem existindo

nessa condição de chorros, pois são mais úteis e menos perigosos assim, sem pensar, sem

refletir sobre o sistema desigual que os colocou nessa situação. O poeta elabora essas e outras

leituras do presente de sua sociedade utilizando uma linguagem muito próxima da oralidade e

incorporando gírias típicas das villas, aproximando-se, assim, de seu público alvo.

Em uma apresentação ao ar livre (em frente à porta da editora Eloísa Cartonera, no

bairro popular da Boca), na qual lê alguns de seus poemas, o jovem escritor afirma que as

villas são um gueto, assim como Buenos Aires e o resto da América Latina; constituem uma

forma de estar encarcerados, uma forma de marginação e exclusão. É um espaço onde há

muita frustração e escuridão, e é nessa escuridão onde as pessoas nascem, em meio a várias

formas de violência: aquelas que sofrem as mulheres pobres da periferia, a violência da

pobreza, a de ser discriminados, a de ser um villero, mas não pelo fato de se recusar a ser um

deles, e sim porque ser villero é nascer destinado a morrer, destinado a receber as sobras que

24 Rocho é uma inversão das sílabas da palavra “chorro” (ladrão), fenômeno linguístico comum nas villas e entre

jovens. 25 Guachín é uma expressão local do conurbano bonaerense. É o diminutivo de guacho, que originalmente queria

dizer órfão. Hoje se usa para referir-se informalmente a homem jovem, podendo ter significado positivo ou

negativo. O uso desse termo amigável conota um perfil socioeconômico e educativo bastante definido. Um

guachín é um homem jovem de classe social baixa; com ocupação informal, às vezes desempregado ou

vinculado a pequenos roubos. De modo geral habita em bairros periféricos e goza de certo reconhecimento

territorial e afetivo entre os pares.

77

são deixadas para essa população. O poeta afirma que é dessa forma estigmatizada como

muitos os veem, uma visão fundada no discurso dos meios de comunicação.26

Nos quinze poemas que compõem Soy villero, Walter Hidalgo busca desconstruir essa

imagem, numa espécie de relato múltiplo sobre os problemas enfrentados diariamente pelos

sujeitos marginalizados que habitam as villas, mas o faz dando ênfase às causas que levaram

ao modo de vida a que essas pessoas estão destinadas, como se pode observar no poema

“Mentores de mis decires”:

Los mentores de mi expresión, líricos del paco

son resultado de esta desdicha,

de las corruptelas

de la violencia banal del mundo [...].

Tu lente ocular no puede captar

más que monstruos aprovechados

que en realidad son el reflejo

de un capitalismo apuñalador por experiencia

(HIDALGO, 2014, p. 8-9)

Em outros momentos, incentiva os pibes chorros a se afastarem do mundo das drogas

e do crime e a não se deixarem alienar. Essa dicção se constata em toda a sua potência nos

poemas “Mensaje al rocho”, “Hay que educar piola” e “Cierren el orto q tablando el poin”:

Los que necesitan un abajo para sentirse superiores / Los que se benefician con la

desunión y la / desconfianza entre nosotros... [...] / Todos ellos necesitan de vos... /

¿Vas a dejar que te usen? (HIDALGO, 2014, p. 3)

No te enjaules en el miedo, / sabé que hay sombras inmensas en el poder / que besan

tus nostalgias / y se benefician con tu consumo dependiente. [...] No hay que matar,

no hay que enjaularse, / hay que educar piola (HIDALGO, 2014, p. 4-5)

[...] la marginación, la exclusión a los / que no quieren mas inundación / chorrea

sangre de esa televisión. / Su brillo dopa los sentidos. No te / distraigas con tal

encandilación cegadora / porque a través de este medio son capaces de facturar hasta

tu alma (HIDALGO, 2014, p. 29).

Em suma, aquilo do que nos fala Hidalgo, com seu discurso poético-político, é que os

villeros têm capacidade e competência para falar por si mesmos e que podem se emancipar

pela literatura ou através de diversas outras estratégias, como a educação libertadora. Por isso,

é necessário que, antes, tenham clareza de sua condição e de que não são os responsáveis pela

própria desgraça, como tentam (e, muitas vezes, conseguem) convencer os meios de

26 Conforme vídeo disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=3jcf8OaCUl4. Último acesso em

27 de maio 2018.

78

comunicação. Os villeros precisam falar e ser ouvidos principalmente para demonstrar que há

outras formas de narrar as periferias. Walter Hidalgo é uma dessas vozes dissonantes.

Wk

Cruzando referências populares e eruditas através das epígrafes de cada poesia, Wk

(2015), pseudônimo de Gastón Brossio,27 escreve 79 poesias sobre diversos temas, partindo

de suas trajetórias villera e carcerária. Aliás, o livro foi escrito neste contexto de

encarceramento, onde, paradoxalmente, conheceu a literatura, como relata o próprio escritor

ao início de seu livro. Trata-se de uma biografia e dos reflexos episódicos de uma caminhada

que vai da villa ao cárcere e deste à literatura, expondo-se através dos produtos gerados por

ela, o que o aproxima do caso de César González, que também escreve seu primeiro livro no

período em que estava detido e se construiu como escritor a partir dessa experiência. Podemos

dizer que, entre todos os outros casos que estudamos, Wk é o escritor com história mais

semelhante à de González, por ter passado parte de sua vida (15 anos) privado da liberdade

em unidades do sistema carcerário e por ter concluído seus estudos na educação básica ainda

nesse tempo. Terminada esta etapa, Wk ingressou em um curso superior, mesmo antes de

voltar à liberdade, no Centro Universitario de Devoto, uma experiência promovida pela

Univerdidad de Buenos Aires no interior da prisão de Devoto.

Suas poesias nos apresentam uma forma de narrar a vida, seja no cárcere, seja em um

território periférico, ambos compondo faces diferentes de modos semelhantes de tentar

sobreviver, pois, segundo ele, estar numa cela ou no minúsculo barraco de uma villa leva os

indivíduos à mesma sensação (e condição) de marginalidade, miséria e opressão, o que

conduz à desesperança e a uma vida mergulhada na violência em suas mais variadas formas e

manifestações. Para Wk, é isso que faz com que alguns vejam na própria violência a única

expectativa de saída para essas vidas tratadas como dejetos. Quanto a isso, podemos

estabelecer um diálogo entre sua obra e a de Walter Hidalgo e, mais uma vez, com a de César

González, pois estes três compartilham a opinião de que é possível que um villero se torne

poeta, mesmo que a realidade que o cerca o convença de que ser ladrão é tudo o que lhe resta.

Segundo Ana Camarda (2016), Wk opta por tom autobiográfico fundado nos arquivos

discursivos com os quais mais teve contato, uma espécie de “prontuário” – como intitula seu

27 Além de Wk, o autor também assina seus textos como PVC, sigla de Pensadores Villeros Contemporáneos,

como se lê na capa do livro aqui mencionado.

79

texto– relatando um pouco de sua trajetória de vida e de leitura e como elas influenciaram a

escrita das poesias que virão a povoar as páginas dos quatro livros que estava escrevendo na

ocasião. Com um discurso que rompe com o senso comum e com os estigmas que insistem

em afirmar que os villeros estão em uma situação que eles mesmos criaram, Wk escreve: “La

gente no entiende de mi realidad” e “nuestros niños son parte de esta sociedad insaciable...”

(WK, 2015, p. 39).

Em “Prontuario”, Wk informa que nasceu em 1981, na villa Fuerte Apache, e que

“con una infancia muy caótica y traumática, fue sorteando los caminos que el destino tiene

preparados para determinada clase social” (WK, 2015, p. 7). Abandonou os estudos depois

que um companheiro de roubos foi preso dentro da escola onde estudava. Após isso, “a los 17

años le pegaron dos tiros que casi lo matan, el más grave en su cara (por causa de eso casi no

cuenta el cuento). Prometió que iba a dejar de robar, pero a los dos meses lo seguía haciendo,

hasta que finalmente cayó preso a los 20 [...]” (WK, 2015, p. 7). No Centro Universitario de

Devoto, quando ainda estava preso, cursou Direito (sem concluir), Administração e Letras

(esta última por indicação de um amigo). O poeta explicita a partir de que lugar nos fala,

identificando-se como um escritor “não consagrado” que é apenas mais um na multidão e

apresentando-se como “el ladrón que escribe poesías”.

Possivelmente, um dos traços mais marcantes de sua obra seja o próprio fato de seus

textos terem se transformado nessa fatura que é o livro, pois uma série de dificuldades

precisaram ser vencidas para chegar a isso; uma vez superadas, desencadeiam-se mudanças

tanto pessoais quanto coletivas. É nesse sentido que Juan Pablo Parchuc, no posfácio de 79, el

ladrón que escribe poesías, argumenta que

para llegar a ser libro, este tipo de materiales tiene que superar muchas barreras

físicas y simbólicas; trabas, prohibiciones, dificultades, prejuicios, censuras,

restricciones. Las huellas del acto en el producto señalan así tanto al sujeto que

escribe, su tema y su historia de vida, como a las instituciones que lo mantienen

encerrado. El simple hecho de su publicación permite ampliar los límites de la

literatura, desde los márgeneso bordes de las instituciones, en un sentido de justicia

que, en este marco, no podría llamarse simplemente “poética”. (PARCHUC, 2016,

p. 125)

Leonardo Oyola

Leonardo Oyola também é um escritor da grande Buenos Aires, nascido em Isidro

Casanova, no município de La Matanza, local que serviu de cenário para o romance

80

Kryptonita (2015). Nesta obra, Oyola resgate questões intrínsecas da periferia e do conurbano

bonaerense, através de uma narrativa ancorada na cultura popular e massiva, especificamente

nas histórias de super-heróis, o que se nota já no próprio título do livro, na composição dos

personagens e nas cenas de ação.

Em geral, Oyola escreve textos do gênero policial e transita pelo fantástico, como se

pode ler no romance mencionado. O autor também publicou uma série de outros romances,

como Siete & el Tigre harapiento (seu primeiro romance), Santería, Sacrificio, Hacé que la

noche venga, Bolonqui, Gólgota e Chamamé (vencedor do prêmio Dashiell Hammett na

categoria melhor romance policial da 21ª Semana Negra de Gijón, na Espanha). Participa

também com textos curtos da edição argentina da revista Rolling Stone.28

Formado em Ciências da Informação, o escritor e crítico de cinema decidiu investir na

literatura a partir de 2003. Mesmo depois de já ter publicado seus primeiros livros, passou por

um período tão devastador que o levou a considerar que nasceu duas vezes, como declarou em

entrevista à Revista Ñ, do jornal Clarín. Depois de passar por esse momento crítico de sua

vida – em que perdeu o trabalho e ficou sem teto, entre outras perdas, contando com a ajuda

de uma terapeuta, dos amigos e escritores Selva Almada e Pablo Ramos e de um tatuador – e

que foi crucial para que apostasse, mais uma vez, na escrita literária, Oyola tornou-se um

autor reconhecido no país e ganhou espaço em grandes editoras argentinas, principalmente

após o sucesso de Kryptonita, obra também premiada (como Libro del Año 2011, pela Eterna

Cadencia) que recebeu uma versão para o cinema em 2015 e se transformou, um ano depois,

na série televisiva Nafta Súper (nome do protagonista da obra), da qual Oyola é também co-

roteirista.

O referido romance traz a história narrada por um médico plantonista do hospital

Paroissien de Isidro Casanova, para quem restam apenas quatro horas para terminar o trabalho

em um final de semana prolongado, quando chega um paciente “incomum” e aquele momento

deixa de ser mais uma noite de intermináveis plantões tirados por outros médicos no hospital

público, pois a vítima a ser socorrida é o chefe de um grupo criminoso de La Matanza que é

trazido, ferido com gravidade, pelos seus amigos, os quais passarão as últimas horas da

madrugada narrando as incomuns aventuras do moribundo. Pouco a pouco o leitor dá sentido

aos indícios que figuram no paratexto da capa e reconhece o líder do bando criminoso como o

Super Homem e seus companheiros como os demais integrantes da Liga da Justiça, da DC

Comics.

28 Estas e outras informações estão na reportagem disponível em: https://www.clarin.com/viva/escritor-nacio-

veces_0_SySJkjM2b.html. Último acesso em 05 de junho de 2018.

81

Apesar de o autor adotar uma estratégia discursiva bastante diferente daquelas

escolhidas por Incardona, Hidalgo e Wk, nesta “biografia apócrifa” do super-herói os diálogos

entre os companheiros de Nafta Súper, carregados de “jergas villeras”, revelam, ao longo de

toda a obra, o universo da periferia bem como as histórias de vida subalterna que estão por

trás de cada um desses personagens, inevitavelmente passando pela condição de pibes chorros

e das distâncias – culturais, sociais, econômicas – entre privilegiados e marginalizados. Em

um momento de reflexão, um dos personagens defende a mesma a ideia que motivou os

autores aqui trabalhados a começar a escrever:

Ése es el verdadero poder. El poder absoluto: saber pensar. Porque el que sabe

pensar aprovecha y se aprovecha de esa cualidad. La pobreza y la exclusión social

alejan a los chicos de los estudios. Y cualquier bando sabe que es negocio seguro

reclutar pibes menores de edad. Son los más fáciles de captar; más si tienen a la

familia desmembrada... (OYOLA, 2015, p. 128)

Trechos como esse trazem à tona problemas centrais relativos aos territórios

periféricos e à população dessa zona da metrópole. Implicam também uma forma de

humanizar essas vidas, todas elas, independentemente da história de cada sujeito, oferecendo

um ponto de vista alternativo, centrando-se em outras questões que não as já transitadas pelos

meios de comunicação. A biografia de Nafta Súper, por exemplo, é contada por seus

companheiros sem que se idealize a vida de um criminoso, apenas possibilitando-nos admitir

que há muito mais que momentos de violência em sua trajetória. É o mesmo discurso de

César González, quem afirma que pretende mostrar aquilo que ele entende como a realidade

complexa de uma villa. Nafta Súper tem duas famílias, uma parental e outra formada pelos

companheiros de crime. A conformação desses dois grupos pode ser vista como forma de

resistência, e não apenas como lugar sede da violência.

Há vários momentos da narrativa nos quais se pode perceber a afetividade na teia de

relações que constroem a rede do Nafta Súper; relações afetivas e uma inocência que vem dos

tempos de infância mas que ainda não foi perdida. Sua relação com o filho e com os anseios

de quando ainda era um menino se manifestam no caso do desejo nunca realizado de receber a

visita do boneco Carozo – personagem de TV que tomava café na casa do telespectador que

enviasse a carta mais emotiva ao programa para o concurso “El sueño del pibe”. Parte do

relato de Lady Di, uma das componentes de seu grupo, humaniza mais ainda o temível chefe

do bando ao descrever o amor que sentia por seu filho e ao narrar o episódio em que a criança

o chama de pai pela primeira vez, após realizar uma cirurgia para corrigir um problema de

audição que este sofria:

82

– Pa-pá... Papi... Soy Mo-chi. Ésa fue la primera vez que su hijo le dijo papá. Y

antes de hacer lo que teníamos que hacer, tuvimos que esperarlo a Pini [apelido de

Nafta Súper]. Dos veces. Primero bancándolo mientras hablaba con el hijo. Después,

mirando para otro lado cuando hizo algo que nunca lo habíamos visto hacer. Cuando

se fue hasta la esquina y detrás de un árbol se puso a llorar [...]. Pinino va a cumplir

cuarenta en unos días. Toda su vida se la pasó por acá. Nunca se fue. Pero desde que

nació Monchi, él dejó de vivir en Los Eucaliptus. “Casa” pasó a ser para él otra

cosa. Tendrá dos metros y casi cien kilos, doctor; pero cuando se abrazan con el

hijo, el que se pierde en los brazos del chico es él. Porque esos bracitos son su

verdadera “casa”. (OYOLA, 2015, p. 83)

A genialidade de Leonardo Oyola está na ideia de trazer o Super Homem para o

território do conurbano e recriar famosos personagens da cultura de massa numa versão

villera na qual se ressalta a capacidade de enfatizar o lado mais humano de um protagonista

que sequer fala em toda a obra, tendo sua história contada pelos companheiros que aguardam

a sua recuperação. Assim como o Super-Homem do Kansas ou o de Isidro Casanova, Oyola

voou; alcançou um importante espaço na literatura argentina, mas conservou suas raízes vivas

na memória, manteve os pés no chão de terra, o mesmo chão que fazia a mãe de Nafta Súper

repetir ao filho: “Las calles de acá son de tierra, hijo. Por eso no puede venir a tomar la leche

Carozo con nosotros” (OYOLA, 2015, p. 110).

83

3. O OLHAR POÉTICO E CRÍTICO DE CAMILO BLAJAQUIS/CÉSAR GONZÁLEZ

A transformação de César González em Camilo Blajaquis se deu de forma gradativa e

em uma circunstância bastante improvável. A experiência de ter passado por instituições

carcerárias, com condições semelhantes e quase sempre ainda mais cruéis que aquelas que

conheceu na Carlos Gardel – villa de Morón, na Grande Buenos Aires – foi, paradoxalmente,

o combustível para a transição a outra visão de mundo, pois foi naqueles espaços que

González pode ter um novo contato com a literatura. Desta vez, tomou-a como uma

ferramenta de sobrevivência, ao perceber que, apesar de ser vista como algo inofensivo pelo

sistema que o aprisionava, ela tem uma força que cabe ao leitor encontrar, como defendeu na

conversa que tivemos.29

Escrever poesia foi uma forma de permanecer vivo num espaço que é conhecido como

“la tumba”. Por meio de seu discurso poético, o “pibe de la villa” pode refletir sobre o modelo

econômico que gera a villa e os villeros através de um sistema fundado na falta de equidade

entre as classes sociais. A literatura e (pouco tempo depois) o cinema permitiram que ele se

libertasse da vida de delitos que levava30 e pudesse combater os princípios da alienação, pois

é através desses meios que estrutura seu olhar crítico como uma arma desestruturadora

apontada para os temas que havia frequentado antes, embora sua vida fosse o próprio tema.

Desde esse momento de libertação até os dias atuais, González já escreveu três livros e

produziu quatro longas e alguns curtas-metragens documentais.

Além dessa mudança de rota, González ingressou em um território que outrora lhe

parecia bastante alheio, a academia, chegando a cursar Filosofia na Universidad de Buenos

Aires (após voltar à vida em sociedade). O escritor nos revelou que o que lhe restou desse

período e dessa experiência universitária foi a frustração por não haver conseguido concluir o

curso, sendo, mais uma vez, a falta de instrumentos potencializadores da permanência de

jovens de origem popular na universidade (a falta de programas de bolsa auxílio, por

exemplo) um fator decisivo para o impedimento de continuidade na sua trajetória acadêmica.

Cada vez mais consciente de uma realidade que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva,

César González afirma: “Me dolió comprobar mis teorías, ¿no? Que todo que yo digo de que

tu clase te determina, y no son [teorías] mías, son de muchos autores, pero confirmar eso que

29Transcrita no Apêndice. 30 Aos 14 anos, César González iniciou sua trajetória de delitos, que duraria algum tempo, intercalada por

detenções e internações hospitalares (como consequência de confrontos com a polícia), e interrompida em 2010,

quando retorna à liberdade, aos 21 anos.

84

yo escribo no es ninguna fantasía, no es ningún delirio” (GONZÁLEZ, 2018, entrevista

pessoal). Portanto, esse foi um momento ao mesmo tempo decepcionante e enriquecedor.

Nota-se que o autor recupera, em toda sua obra, essas experiências para produzir seu

discurso. Ou seja, não é difícil perceber que sua escrita dialoga – muitas vezes, explicitamente

– com sua biografia, o mesmo acontecendo com sua produção cinematográfica. Apesar disso,

González não considera que sejam textos (e filmes) autobiográficos, conforme explicou na

entrevista que nos concedeu:

Yo hablo desde una igualdad que no se puede explicar desde lo personal, de lo

individual. Lo que yo viví viven miles y millones de personas, y por las mismas

razones, por consecuencia de manejos políticos, de sistemas de gobiernos. Entonces,

a mí no me gusta llamarla de poesía del tipo autobiográfico porque no, yo hablo

desde un lugar político que admite su prisma ideológico, que no finge desde donde

mira el mundo mi poesía, no finge neutralidad, una supuesta subjetividad, un

supuesto idealismo, no interesa ninguna de esas cosas para mí. (GONZÁLEZ, 2018,

entrevista pessoal)

Assumindo que se trata de uma realidade mais abrangente, isto é, que atinge muitas

outras pessoas, é nas letras e nas artes que ele encontra instrumentos para intervir na trajetória

de jovens villeros que parecem estar fadados a ver a violência como um caminho para ser e

estar em uma sociedade que os exclui cultural e economicamente. Em entrevista ao jornal

argentino La Nación, González afirma: “Hoy estoy en otra frecuencia y lucho a través de mis

escritos por que eso crezca y cada vez más pibes puedan cambiar ese ritmo de vida cruel y

violento que no lleva a otro lugar que a la cárcel o al cementerio a una edad muy temprana”.31

Em seu caso, o cárcere foi o destino implacável, o qual se tornou provisório devido à leitura

crítica do mundo e dos livros que lhe chegaram pelas mãos de um mágico reconhecido

internacionalmente e que, além de ensinar truques de mágica, filosofava durante as oficinas

que coordenava em 2006 no Instituto Belgrano.

Mesmo sem pretender tornar os textos dependentes da biografia de seu autor,

tentaremos pensar aqui certos fragmentos da obra como elementos que permitem um resgate

da vida do poeta argentino. Tal tarefa se justifica pelo fato de que a análise de sua trajetória se

mostrou imprescindível para compreender o papel social e político (além do artístico) de suas

obras, visto que os territórios pelos quais transitou e as experiências que acumulou foram

fatores determinantes para que González se tornasse escritor e recuperasse, a cada página

escrita, sua experiência como habitante da villa Carlos Gardel e como ex pibe chorro que

31 Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/1419829-la-historia-del-ex-pibe-chorro-que-se-rescato-a-si-

mismo. Último acesso em 22 de maio de 2018.

85

superou inúmeras barreiras tanto para seguir escrevendo enquanto estava privado de liberdade

quanto para reconquistá-la. Aliás, o autor busca se distanciar do rótulo de pibe chorro

recuperado, construindo para si uma imagem mais complexa, mais coerente com as suas

múltiplas facetas: escritor, ex pibe chorro, ex-estudante de Filosofia da UBA, diretor de

cinema, villero, colunista da revista Sudestada e fundador da revista ¿Todo piola?, voltada

para cultura marginal.

Considerando-se essa identidade heterogênea, analisaremos as estratégias para

emancipação e resistência através de seu olhar poético e crítico, bem como as diferentes

condições em que González escreveu seus três livros, tomando como base essas

circunstâncias.

3.1. O contexto de produção de suas obras

O poeta Camilo Blajaquis nasce em um ambiente no qual não se espera que floresça

coisa alguma. Ao contrário, é onde morrem a dignidade do ser humano, a esperança, as

utopias, as oportunidades, o corpo; um depósito de refugos humanos onde são deixadas as

pessoas que precisam parar de incomodar apenas por existir: o cárcere. Foi ali, entre os 17 e

18 anos, que ele sentiu, pela primeira vez, que poderia tomar a literatura como uma

ferramenta transformadora da vida e que escrevia “con consciencia, con libertad, con una

búsqueda propia”, como relembraria anos depois (entrevista pessoal). Somente quando se deu

conta de que a pobreza, a desigualdade social e os pibes chorros eram úteis ao sistema que os

gerou, e que a perpetuação desses fatores fazia parte de um projeto dos grupos que estão no

poder para garantir a manutenção de seus privilégios, César González passou por um processo

de subjetivação e construção de uma nova identidade, em que se conjugaram suas vivências

(villera e carcerária) e através do qual emerge um poeta.

Em seu primeiro livro de poesias, o autor utiliza o pseudônimo Camilo Blajaquis, em

homenagem a Camilo Cienfuegos, revolucionário cubano, e a Domingo Blajaquis, militante

sindical argentino que ele conhece através do livro de Rodolfo Walsh, ¿Quién mató a

Rosendo? (1969). Além disso, foi uma maneira que ele encontrou de se proteger por trás de

uma identidade inventada e de poder publicar seus textos sem ser descoberto pelas

autoridades.

86

A partir da leitura crítica que fazia dos textos que lhe chegavam às mãos, aos poucos

se construía sua mirada poética e, neste contexto de confinamento, surge sua primeira obra,

um livro com quase noventa poesias, distribuídas em três partes e escritas em diversos

períodos e centros de detenção nos quais esteve. Os livros que despertaram o interesse de

González não eram os que estavam à sua disposição na biblioteca de algumas das instituições.

Ele comentou que se tratava de obras consideradas inofensivas, que serviam apenas para

esfriar a cabeça, como entretenimento, um enfeite para dar um ar mais humano àquele lugar.

Embora não desprezasse totalmente o valor desses livros, por achar que sempre é possível

aproveitar algo deles, os que lhe chamaram a atenção foram os “apresentados” a ele pelo

professor Patricio Montesano, mágico mais conhecido como Merok e a primeira pessoa a

tratar o futuro escritor de modo mais humanizado naquele ambiente. Durante as oficinas de

mágica, Patricio conversava com os jovens sobre diversos assuntos e foi quem incentivou

González a ler livros de autores como Karl Marx e Michel Foucault. Em meio às leituras de

filosofia e literatura, relatou González, Merok começou a aproximá-lo de “libros que tenían

potencia, libros que tenían un fuego para quemar” (entrevista pessoal).

Essas obras o conduziram a uma consciência de classes e do seu lugar na cidade e na

sociedade, o que desencadeou uma série de indagações que ele nunca havia feito sobre, por

exemplo, o lugar dos “sobrantes” no mundo. Passou a entender quais eram as implicações de

ter nascido em uma villa e não em regiões privilegiadas da cidade e no quanto isso tende a

influenciar ou a determinar a vida de alguém. González argumenta que talvez essa pessoa

nunca consiga sair da villa, que sua visão de mundo seja tão limitada a ponto de acreditar que

sua vida se resume àquele território e que suas únicas habilidades sejam físicas, jamais

intelectuais. O resultado dessa violência simbólica é que os próprios “sobrantes” podem

reproduzir a lógica basilar da produção de “refugos humanos”, sendo convencidos de que, por

serem villeros, suas “capacidades cognitivas y la creatividad no existen porque su cerebro es

más chico, porque la ciencia misma lo argumenta y lo justifica” (entrevista pessoal).

Por isso há tantas semelhanças entre a vida que transcorre numa villa e a que consome

seus dias no cárcere, são lugares construídos como destino último dos refugos, “quarto de

despejo” da sociedade, conforme definiu Carolina Maria de Jesus. Ana Camarda argumenta

que “ambos son espacios que presentan límites que no cualquiera se atreve a atravesar y son

esos límites los que los constituyen como terrenos marginales” e que “ambos ámbitos están

poblados mayoritariamente por personas marginales y/o excluidas” (CAMARDA, 2016, p. 8).

87

Nessa mesma linha de pensamento, González (2014) escreveu que a tortura é sofrida de modo

semelhante tanto em uma cela quanto no cotidiano da villa.

Enfrentando a realidade que se impunha a alguém que carregava diferentes estigmas,

González começou a escrever entre 2007 e 2008. O poeta sugeriu a Patricio (a essa altura, já

seu amigo) a criação de uma revista onde pudesse publicar os textos que vinha escrevendo e o

projeto teve êxito com a ajuda de diferentes amigos do mágico. O título escolhido foi ¿Todo

Piola? (já mencionado em capítulos anteriores), uma referência à realidade marginal a partir

da recuperação de uma gíria utilizada entre os jovens villeros de Buenos Aires.

A culminância de todo esse processo foi a publicação de La venganza del cordero

atado, em 2010 (cinco meses depois de o autor retornar à liberdade), uma obra, como afirma o

poeta, “fabricada contra el tiempo, y pensada para contradecir el destino”, um resultado do

“perfeccionamiento de una ansiedad nueva, decisión total a construir una nueva consciencia

interior y exterior”, o despertar de sua sensibilidade (GONZÁLEZ, 2011, p. 119 e 121). O

livro é um convite ao leitor para que reflita sobre a sociedade, um estímulo ao debate latente

em toda sua obra, seja como escritor, seja como cineasta.

Apesar de manter viva a memória das figuras que lhe serviram de inspiração, o

escritor decide abandonar o pseudônimo com que assinara e passa a utilizar seu nome de

batismo, César González, nas duas obras seguintes (mantendo-o também na produção de seus

filmes). O autor explica que tal mudança ocorreu devido à reflexão do significado que carrega

seu nome:

Porque me di cuenta que mi nombre real, César González, era justo con mi linaje,

con mi genealogía. Es un apellido muy común, que habla de una pertenencia a una

clase muy común, donde no abundan los apellidos raros, donde no vas a encontrar

muchos apellidos europeos, si bien González es español, pero viene de la

colonización, de los ya colonizados que nacían acá [...]. (Entrevista pessoal)

Seu segundo livro foi escrito quando estava em liberdade condicional, razão pela qual

o intitulou Crónica de una libertad condicional (2011). Trata-se de uma obra cujos textos

exploram, majoritariamente, uma nova experiência ao retornar à liberdade e à cidade que ele

passou cinco anos vendo a partir da moldura do cárcere, e a tentativa de inserir-se nessa

sociedade, sem deixar de retomar as angústias vividas na prisão. Brinda-nos com poemas

carregados com uma visão problematizadora sobre como foi voltar à villa; viver e enxergar

Buenos Aires de outra maneira; enfrentar a discriminação por ter sido um presidiário; lidar

com a pressão social de que tinha que buscar trabalho para garantir seu sustento. Por essas

razões, segundo González, foi um livro produzido com muito menos tempo, com mais

88

urgência, “es una poesía muy literal, muy directa, con muy poca metáfora, porque así estaba

viviendo afuera”. É uma crônica do regresso às ruas, mas não com uma liberdade total. Dessa

forma, o título escolhido atua simultaneamente no sentido denotativo (jurídico) e conotativo,

pois o autor questiona se a vida que se leva na cidade pode ser considerada uma forma da

liberdade. Uma síntese deste e dos outros temas mencionados é o que se encontra no poema

“Teorema sobre salir”

el empleador no hace falta que lo sepa

si somos pura intuición

él ya adivina que estuviste preso

es como un mago mentalista

y te niegan hasta el trabajo más horrible

que es lo único posible

para anhelar un futuro

que tenga más de dos días

salís de la cárcel

y entrás e a una ciudad relámpago

superpoblada igual que la cárcel

territorio del síntoma específico general

comerciante que tiembla

cuando entro a comprar algo

puertas que se cierran

al paso de mis pasos

ventanas que me vigilan a escondidas

me persiguen superman, batman y la mujer maravilla

la supuesta dignidad me da la espalda

tengo que presentara una honestidad de papel

pero no me queda otra que masajear la espalda

o aprender a vivir

más solo que el chavo dentro del barril

acostumbrándome al hambre

y a la ignorancia.

(GONZÁLEZ, 2014, p. 31)

Portanto, mesmo tendo cumprido parcialmente a sua pena e não estando mais

encarcerado, ele ainda se encontrava numa situação desconfortável, convivendo com o

preconceito, sentindo-se oprimido de algum modo, percebendo que nada mudara com relação

àqueles que nascem em uma villa. Essa realidade foi o pano de fundo de seu segundo

trabalho.

Poucos anos depois, o poeta produz seu terceiro livro, Retórica al suspiro de queja

(2014), no qual recorda sua experiência villera anterior ao despertar de sua consciência e ao

surgimento da nova identidade, e torna a abordar o tema da liberdade conquistada, reforçando

que esta é uma farsa, já que a cidade oferece outros tipos de prisão e escravidão. Além de tais

reflexões, o autor expõe sua análise sobre as relações humanas desgastadas (ou inexistentes)

na grande cidade, a “opressão remunerada” à qual se submetem muitos trabalhadores

89

(GONZÁLEZ, 2015, p. 50) e as queixas sem um motivo urgente. Através de sua poesia,

instiga o leitor a queixar-se quando houver um sentido, buscando formas de solucionar os

problemas apontados.

A ideia presente no título do livro é argumentar a respeito das queixas do ser humano

contemporâneo que, apesar de ter mais comodidade que aqueles que viveram em séculos

anteriores, parece se queixar mais, manifestando um cansaço e uma profunda insatisfação

diante de certas dificuldades ordinárias, deixando em segundo plano causas mais

emergenciais. Isso não significa que as pessoas não devam reclamar, mas a indignação deve

levar a algum lugar, pensa ele. Se os sujeitos se incomodam com um sistema que os oprime e

divide em classes sociais desiguais, é preciso lutar contra isso, dando dignidade ao seu

lamento. É fazer com “que la queja tenga un sentido un poco más inmediato, en el sentido de

no quejarse por cualquier cosa [...]. La queja es un privilegio de clase, de la comodidad.

Aquellos que están en una situación de adversidad no se pueden dar el lujo de quejarse porque

si no su problema se perpetúa”, defendeu González, que apresentou uma proposta de ação no

seguinte poema, homônimo ao livro:

el dolor debe ser una musa inspiradora

y no una musa destructora

un motivo para crear mundos

y no para destruirlos

el dolor puede abrir puertas

donde solo existen celdas

[...]

el dolor parece la muerte

pero es el mejor momento

para renacer y vivir

es un momento para contradecir el destino

y caminar sobre el arco iris

no el argumento más popular

para quejarse por todo.

(GONZÁLEZ, 2015, p. 46)

Tais sugestões dialogam explicitamente com a biografia do autor, com sua redenção,

com sua potência que se revelou no momento mais crítico da vida, provocando uma

reviravolta inesperada num caminho aparentemente pré-determinado. Os infortúnios que o

perseguiram ao longo de sua curta vida atuaram, paradoxalmente, como motivadores para sua

queixa, rebeldia e renascimento, pois González tomou conhecimento de suas capacidades e do

quanto o imaginário em torno do “ser villero” rejeita a ideia de que sujeitos marginalizados

possam ser criativos, exercer funções intelectuais, agir de modo autônomo, emancipar-se.

90

Essa ideia só se difundiu após a prisão e ainda prevalece por conta da consciência política e

social adquirida, o que agora já está muito claro para o escritor.

A superação do lugar previsto socialmente representou uma quebra de expectativas.

Não só para ele, mas para quem ainda acredita na limitação das habilidades de um villero. A

esse respeito, González lembrou que, quando começou a problematizar o que se divulgava

como verdade nos meios de comunicação massivos, deu-se conta de que não se espera que um

indivíduo marginalizado se torne artista. E argumenta

A los villeros no es que se les nieguen el acceso al arte, a la herramienta artística,

siempre y cuando utilicen herramientas artísticas dentro de un repertorio limitado.

Digamos, “puede hacer arte, pero no pintura, ópera, danza, sino cumbia, rap y hasta

ahí no más. Ya poesía, no te metas ahí porque ‘no te da la cabeza’”. [...] Quiero

hacer esto que nadie se espera, que nadie cree que puede pasar. Digamos, la

principal motivación y la principal inspiración fue política. (Entrevista pessoal)

Tal atitude se justifica pela consciência de que a arte é uma ferramenta que pertence à

humanidade. Ainda que um grupo específico, detentor dos meios de representação, tenha se

apropriado dela e venha decidindo quem pode ou não lançar mão desse instrumento, ela

continua sendo propriedade de todos. González afirmou que, considerando-se essa injustiça,

seguiu sendo um delinquente, desta vez, disposto a expropriar do grupo dominante um bem

mais simbólico que material. Algo que o poeta argentino consegue realizar de uma maneira

potente, em diferentes linguagens, conciliando literatura e cinema, pois entre um livro e outro

o escritor dirigiu os filmes Diagnóstico esperanza (2013), ¿Qué puede un cuerpo? (2015),

Exomologesis (2016) e Atenas (2018), cujas temáticas coincidem com o que já perpassava sua

produção escrita.

César González é uma prova de que a capacidade cognitiva de jovens pobres não é

inferior à daqueles oriundos das classes dominantes, mas sim que é a dificuldade de obter os

instrumentos necessários para desenvolvê-la o que se impõe como base de um cerceamento

estrutural. Convocando o ambiente escolar para o debate, Aldo Raponi (2011) se pergunta

como professores podem interferir na realidade desses sujeitos, refletindo sobre seu papel

como educador, bem como sobre o valor social da escola; sobre o olhar que os docentes vão

construindo no processo formador desses indivíduos que estão diante deles, contribuindo para

definir sua forma de atuar. Raponi se indaga “sobre los por qué, para qué, qué y cómo enseñar

y quiénes son esos jóvenes a los que les pedimos que se quiten la gorrita dentro del aula, que

bajen los pies de la mesa y que para la próxima clase vayan a pedir a biblioteca el libro de

Cortázar” (RAPONI, 2011, p. 2). O autor lembra que “Camilo Blajaquis era César González”,

91

e quantos outros não estão por aí neste momento em uma sala de aula sem que sua presença

seja notada? A complexidade que caracteriza esses meninos e meninas mais pobres nem

sempre (ou quase nunca) é reconhecida ou sequer cogitada, são seres invisibilizados nos

diferentes ambientes pelos quais circulam. Por isso, urge que se faça cada vez mais

movimentos em prol de uma educação transformadora dos lugares pré-definidos, de modo a

repensar e desconstruir a imagem depreciativa com que a sociedade representa e enxerga essa

população. Alberto Sileoni destaca que “o Ministério da Educação da Argentina sustenta que

onde há expectativas materiais pobres, devem-se sustentar expectativas pedagógicas altas,

porque cada aluno é um enigma e não há certeza científica de onde se encontra seu limite e de

quanto pode render” (SILEONI, 2006, p. 51). O poeta argentino é um exemplo que corrobora

essa ideia.

3.2. A escrita como redenção, resistência e emancipação

Em seus três livros, mais que superação, González nos fala de uma redenção pela

cultura, e o faz explicitamente em diversos momentos – atribuindo grande responsabilidade à

literatura – já que a leitura e a escrita são o que o salvou da “tumba”. Tal redenção ressurge

inevitavelmente quando nos recorda de seu proceso emancipatório, como no poema “El

instinto suicida”, onde diz: “pero justo ahí / cuando me negaban ser / y me querían matar / ahí

fue donde decidí vivir / quisieron apagarme / pero pude reiniciarme / y aún no se perdonan /

haberme dejado vivo” (GONZÁLEZ, 2015, p. 17). A mesma ideia sobressai em “Sobre

despertar”: “¿y qué fue lo que salvó mi destino / de una muerte policial? / fue un encuentro /

encontrarme con la poesía” (GONZÁLEZ, 2014, p. 90). Resistir, em seu caso, teve um

significado diferente, pois não se tratou apenas de contrariar um discurso ou um pensamento

hegemônico, mas de garantir a própria existência.

Retomando a ideia há pouco comentada, é sempre importante chamar atenção para o

fato de que, como argumenta Sileoni (2006), “uma das funções da educação é seu caráter

emancipatório. A aprendizagem é um veículo para que as crianças descubram que são sujeitos

de direito, já que o conhecimento gera autonomia e a ignorância, dependência” (SILEONI,

2006, p. 51). Esse papel da educação, quando posto em prática, é ainda mais significativo

quando se trata de jovens que se encontram em contextos de pobreza, pois esta é uma

condição que costuma diminuir suas expectativas enquanto estudantes. Portanto, adquirir

92

autonomia, isto é, emancipar-se, passa por um processo de resistência, pela busca por outra

forma de existir.

O empoderamento de César González, como resultado dessa insistente ânsia de vida,

possibilitou sua emancipação e a tomada de consciência de classe, impulsionando-o à

superação da dominação ideológica e política à qual sempre esteve subordinado, e a encontrar

a independência na escrita de sua poesia, como se observa no poema “Contrato social”:

[...] confío en mi potencia

y soy mi propio noticiero

no necesito que alguien me explique

porque el sol ilumina

no dependo para decir

de ninguna sustancia literaria

no necesito para escribir

un lápiz lleno de favores a devolver

(GONZÁLEZ, 2014, p. 60)

Ao distanciar-se da imagem de pibe chorro para aproximar-se do ofício de poeta,

desafiando as leis não escritas impostas por um sistema econômico que provoca e aprofunda

desigualdades, o escritor age com “audácia”, a mesma de que falou Marielle Franco ao

afirmar que por ser audaciosa conseguiu mudar o destino reservado a mulheres negras e

faveladas como ela, uma “audácia de poder ser mais do que queriam”32 para ela, tal como

querem para os pobres e favelados/villeros como um todo. González age conscientemente,

com o intuito de fazer e de ser tudo aquilo que lhe diziam que não era capaz, por ser um

sujeito subalternizado, oriundo de uma zona periférica da cidade.

Tal definição do autor como subalternizado só se aplica no sentido de alguém que foi

inferiorizado e submetido à exploração, ao apagamento e à opressão, e a discussão nos remete

de volta a Gramsci (e à releitura que o Grupo de Estudos Subalternos da Índia faz do termo),

que o descreve como um indivíduo que se encontra (em alguma proporção) em nível inferior,

subordinado a outrem seja por classe, gênero, função, faixa etária, nível de escolaridade ou

lugar onde habita.33 González se afasta dessa condição de subalternidade em certa medida

quando começa a disputar um lugar nos espaços de representatividade e busca a igualdade de

oportunidades. É um processo semelhante ao que ocorre com grupos subalternizados,

comentado por Marcos del Roio: “a cultura das classes subalternas se rompe e se transforma

32 Segundo informação de Bruno Astuto no texto de apresentação da revista Ela – O Globo, de 18 de março de

2018, p.4. 33 Não se deve perder de vista que o intelectual italiano elabora sua reflexão partindo da especificidade da classe

operária.

93

em cultura e vontade coletiva antagônica à das classes dominantes, rompendo-se assim a

subalternidade.” (DEL ROIO, 2007, p. 7).

Embora a educação formal não tenha sido a principal responsável por conduzir

González à sua emancipação, é fundamental pensar nas funções social, cultural e política a ela

atribuídas, pois foi pela arte que ele se salvou e construiu seu olhar crítico: “¿quién sabe lo

que puede un cuerpo? / mi cuerpo que ayer robaba y tiraba tiros / hoy empuña el arte / [...] el

arte renovó mis fragancias / y despertó mi olfato” (GONZÁLEZ, 2015, p. 86).

Segundo Pierre Bourdieu (2007), o capital econômico, ou o poder aquisitivo, não atua

isoladamente na reprodução da desigualdade entre as classes, na dominação de um grupo

sobre outro. Conceitos como os de “capital social” e “capital cultural” também são de suma

importância para compreender e explicar o que aconteceu com César González. Conforme

relatamos ao início deste capítulo, o poeta conseguiu publicar seu primeiro livro com o auxílio

do “capital social” de Patricio Montesano, isto é, do “capital de relações mundanas (fonte de

«apoios» úteis)” (BOURDIEU, 2007, p. 324), ainda que limitado, já que não se equipara

àqueles aos quais se referiu o sociólogo francês em sua análise. Já o “capital cultural” se

refere ao acesso a variados meios de informação e formação do olhar, como os encontrados na

literatura, teatro, cinema, museus, música e galerias de arte, compondo a cultura de um

indivíduo. Relaciona-se, ainda, com a valorização e a capacidade financeira de investir na

educação, pois o sistema de ensino de uma instituição educacional é um fator determinante do

êxito do capital cultural. Trata-se de um mecanismo cíclico, difícil de romper: quanto maior o

capital econômico, maior a possibilidade de garantir altos capitais cultural e social. Estes, por

sua vez, garantem a estabilidade das hierarquias e a manutenção de um elevado capital

financeiro.

Essas relações nos revelam o peso, em especial, do capital cultural na formação de

pensadores críticos. Inevitavelmente, quanto menos acesso à informação, à leitura, às artes em

geral, maior o risco de alienação, aceitação da realidade e não reivindicação de seus direitos,

principalmente por desconhecê-los; maior o risco de subordinação e menor a possibilidade de

ascensão à uma carreira artística e intelectual. Com um nível precário desse capital cultural,

César González não havia alcançado a consciência de classe e cometia delitos por não refletir

sobre a razão de sua condição social e econômica; queria ter a sensação de pertencimento à

sociedade – a mesma de um jovem que pode exibir um tênis caro – e, segundo relatou,

começou a roubar pelo cansaço de não ter nada: “La primera vez que robé me compré

zapatillas y la segunda llevé a comer afuera a mis hermanos con plata manchada con sangre

94

pero el sistema me la aceptaba igual. Eso es el capitalismo: no importa de dónde salga el

dinero, lo que importa es que gastes”, concluiu, agora já com uma compreensão muito mais

clara do processo de reprodução social.34

Em Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a universidade

(2003), Jailson de Souza e Silva buscou mapear e analisar quais condições, experiências e

trajetórias escolares podem ter proporcionado a chegada de pessoas de grupos sociais

populares a cursos universitários, refletindo igualmente sobre a discrepância entre os

caminhos percorridos por estes e por aqueles que, apesar de terem uma história teoricamente

semelhante à deles, tiveram um destino distinto. Eis que surge, mais uma vez, a questão do

pouco investimento que os pais de baixa renda fazem na educação de seus filhos, o que se

justifica não apenas por sua condição econômica, mas, essencialmente, porque eles

se relacionam com a escola de acordo com as condições objetivas em que vivem,

com os outros campos sociais nos quais se inserem e as disposições que

desenvolveram. Ora, nesse quadro, os pais – ou um dos pais – pode não

compreender o investimento escolar como o mais adequado. Nos casos em que o

diploma escolar é considerado o instrumento, por excelência, da ascensão social, a

estratégia escolar se encaminha para uma permanência de médio ou de longo prazo.

(SILVA, 2003, p. 143-144)

Desse modo, percebemos que há fatores que agem para além do capital econômico e

que as diferenças nos percursos de grupos de origem popular e periférica também passam por

eles, constituindo-se, porém, em abismos menos explícitos que os existentes entre as classes

sociais.

Em um texto mais específico sobre os Cursos Pré-Vestibulares Comunitários

(CPVCs), o geógrafo relatou a experiência do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

(CEASM), dando ênfase à dimensão política das atividades realizadas na ONG (SILVA,

2005). Além da produção de conhecimento e da preparação para o vestibular, o CPV-Maré

assume um compromisso com a formação cidadã, buscando desenvolver (desde o seu

surgimento) um projeto político-pedagógico centrado nos conceitos de Paulo Freire para a

educação e instigando um sentimento de identidade e pertencimento dos estudantes ao seu

lugar de origem, a favela da Maré. Por sua forma de atuar e pela contribuição para que muitos

moradores da favela ingressassem em uma carreira universitária, ao longo de seus vinte anos

de existência, o CPVC do CEASM figura como um elemento capaz de transformar esse

território periférico e o cotidiano de seus moradores, que nasceram em uma família com baixa

34 Em entrevista ao periódico Colectivo al Margen disponível em: https://almargen.org.ar/2016/01/13/nacido-

para-ser-poeta-camilo-blajaquis-i-cesar-gonzales/. Último acesso em 22 de agosto de 2017.

95

escolaridade, reduzido poder aquisitivo e que desempenham funções desprestigiadas no

mundo do trabalho, com pouca ou nenhuma expectativa de ascensão social pela educação ou

pela cultura. É uma iniciativa que, por aumentar as referências sociotemporais e

socioespaciais dos residentes de favelas, amplifica seu olhar sobre o espaço que ocupam na

cidade, fazendo com que o lugar onde nasceram/vivem deixe de ser o “ponto de partida, e

também de chegada, da própria existência” (SILVA, 2005, p. 176). Trata-se de uma luta

contra uma das formas do preconceito estrutural da sociedade, o preconceito de lugar ou de

origem, fator que atua fortemente tanto no Rio de Janeiro como na Grande Buenos Aires.

Depois de viver essa dimensão do preconceito e entendê-la em seus fundamentos, González

escreveu: “ser villero / determinará tu existir / limitará tu vida social / enrejará tu ser /

expulsará tu individuo de lo colectivo” (GONZÁLEZ, 2015, p. 53).

A educação transformadora – que, no caso de González, deu-se via literatura –

propicia outro processo de subjetivação dos indivíduos e a formação de seu pensamento

crítico a respeito de sua condição de habitante de um território periférico e marginal, além de

favorecer o desenvolvimento da criatividade para buscar soluções práticas para os obstáculos

que se impõem. Diante da impossibilidade de ampliar seu alcance aos diversos meios

culturais pela via econômica, o poeta bonaerense lançou mão de aparatos tecnológicos para

garantir a circulação de seu discurso e expandir seu alcance a distintos públicos. Esse foi um

dos fatores que lhe deram base para escrever e usar seus poemas como arma para sua

emancipação e sobrevivência.

A esperança que, da mesma forma, só surgiu graças ao seu entendimento do

funcionamento das relações de poder, foi outro componente que protagonizou esse processo

de redenção. Em “Diagnóstico de esperanza”, aparece um eu lírico esperançoso, a despeito da

violência física e psicológica que sofria:

Seguramente deben quedar todavía

muchos golpes, eso no importa

tengo guardadas más de mil cicatrices.

Vivo con un cáncer de angustia

pero todavía sueño un futuro

que ni sé si será mejor.

En mi corta vida tuve más

engomes que orgasmos

todavía no sé qué espero

pero espero algo que viene, lento pero viene.

(GONZÁLEZ, 2011, p. 79-80)

96

A partir de determinado ponto da rota que vinha traçando para si, o escritor sabia que

tudo aquilo valeria a pena, que não seria em vão sua luta no sentido de expor aquilo em que

acreditava e que só recentemente percebera. Esse era o preço da emancipação e do

empoderamento.

Sua trajetória é de algum modo análoga à de Menocchio, cuja história foi resgatada

dos arquivos por Carlo Ginzburg. Em O queijo e os vermes (1987), o historiador italiano refaz

a trajetória de Domenico Scandella (conhecido como Menocchio), um moleiro que viveu em

Friuli, Itália, no século XVI, e foi perseguido pela Inquisição após uma denúncia anônima

segundo a qual o camponês propagava ideias heréticas pela vizinhança. Através da leitura

minuciosa do julgamento contra o camponês (disponível em um acervo de documentos

inquisitoriais), Ginzburg tenta recuperar informações sobre os (poucos) livros aos quais ele

teve acesso, procurando compreender a influência da cultura oral na construção do

pensamento crítico do moleiro, que tinha uma forma peculiar de ler e fazer recortes do que lia,

produzindo um discurso próprio, aparentemente impossível de ser associado a um único texto.

Menocchio, tal como César González, não se confunde com os outros subalternizados

de seu tempo e lugar, pois se encontra em situação de fronteira e traz uma experiência única.

O primeiro é um sujeito que circula entre ambientes letrados e o mundo rural, onde impera a

oralidade, enquanto González se move entre espaços letrados/acadêmicos e villeros. Ambos

podem ser agrupados em uma categoria de subalternizados que se distinguem dos demais que

povoam o mesmo território em que vivem ou (no caso de Menocchio) e que desempenham

a(s) mesma(s) atividade(s) laboral(is). A aproximação a certos textos é a principal causa para

tal distanciamento entre esses sujeitos e seus paisanos. Tanto o moleiro friuliano quanto o

escritor argentino são capazes de produzir algo novo – no discurso oral, escrito ou imagético –

a partir das “sobras” e dos fragmentos que lhes chegam de outros espaços ou campos da

sociedade. Eles mesmos se caracterizam como essas sobras, esses “refugos”, como aponta

Zygmunt Bauman (2005). Com tais fragmentos, e através do que leem e do seu modo de fazê-

lo, eles preenchem muitas das lacunas existentes, cada um à sua maneira, criando algo

próprio.

Considerando-se as distinções entre as experiências do poeta e dos demais villeros,

apesar de sua obra responder ao intento de representar um território específico (a villa Carlos

Gardel e, de modo mais difuso, as villas de Buenos Aires) e seus habitantes, o autor é um

caso, um exemplo de escritor oriundo de um território periférico, mas sua figura não

representa nem caracteriza um conjunto. Pouquíssimos villeros se posicionam sobre as villas

97

com um olhar coincidente com o seu e muito poucos escrevem; dos que escrevem, raros

abordam o tema das villas com um ponto de vista similar. González é um sujeito de trajetória

particular que lê, e a forma como o faz implica uma habilidade em aproveitar as lacunas do

sistema e fazer do (quase) nada um todo. Segundo Arjun Appadurai, nesse processo criativo

há uma esperança que se baseia na ideia de “brecha”, que – segundo a “ética da possibilidade”

– é o que torna possível reverter um quadro desastroso e aparentemente sem saída

(APPADURAI, 2013, p. 295). González aborda esse tema no poema “¿Cómo abrir

caminos?”, ao refletir sobre sua liberdade condicional e convencer-se de que, embora aquilo

que tivesse fosse tão pouco, ao menos era algo, era possível aproveitar: “y la recompensa es /

un vaso con saliva / pero que calma la sed / no habrá focos de iluminación / hay que

conformarse / con un pequeño fósforo mojado” (GONZÁLEZ, 2014, p. 12).

Com Menocchio, o processo é semelhante, seja no uso que conseguiu fazer das

brechas que lhe surgiram, seja na própria identidade. Ginzburg ressalta que o protagonista de

sua obra não deve ser considerado como um indivíduo representativo de todo um conjunto, ou

seja, o moleiro não é – e o autor não pretende que seja – a representação dos camponeses do

século XVI de Friuli, Itália. Ele é um caso único, que carrega as marcas de uma subjetividade

e uma experiência particulares (as quais Ginzburg reconstitui através dos documentos que

emergem de sua pesquisa), constituindo-se um sujeito complexo, no qual se imbricam

múltiplas experiências (moleiro, viajante, leitor crítico, carpinteiro, marceneiro,

administrador). Por este mesmo motivo, voltamos a comentar, ele não pode/deve ser

percebido a partir da mesma chave de leitura da subalternidade.

Menocchio não foi um camponês comum ou apenas mais um entre tantos. E não

somente pelo que lia, mas também porque não abandonou sua ideologia e sua interpretação

particular sobre cada texto, expondo suas convicções mesmo com a constante ameaça de

perseguição. A valentia de revelar suas próprias crenças e tornar público um discurso próprio

– quase isento de mediações, não fossem os livros que leu – lhe custaram a vida. E Carlo

Ginzburg, nessa inquietante obra histórica, se encarregou de impedir que fosse em vão o

esforço daquele homem em fazer um subalterno ser ouvido.

Por essas razões, há tantas correspondências entre Domenico Scandella e César

González. Entretanto, uma história não teve o mesmo desfecho da outra, pois este último

conseguiu escapar do destino reservado a ele desde que nasceu: “mientras uno lucha contra el

racismo / mejores armas salen al mercado / pero conmigo el sistema falló / las enciclopedias

no tenían en cuenta / que un pobre mal alimentado / pueda saber algo / y descubrir que el

98

delito es hijo de la ley” (GONZÁLEZ, 2015, p. 89). Essa possibilidade, ainda que mínima e

inesperada – já que não está prevista no sistema –, é um exemplo daquela “brecha” que

comentamos há pouco. É uma falha que se deve ao olhar reducionista que se lança às pessoas

e aos grupos de classes mais empobrecidas, subestimando suas potencialidades.

No caso de González, tratou-se de uma superação ainda mais surpreendente porque ele

vinha sofrendo uma brutal violência física, além da simbólica, que gerou um trauma que ainda

persiste. Ao comentar seu filme ¿Qué puede un cuerpo? em uma conversa na Faculdade de

Psicologia da Universidad Nacional de Rosario, o poeta reflete sobre como um corpo, mesmo

maltratado, mutilado, consegue realizar algo improvável; como é possível reagir e resistir.

“Me di cuenta que un cuerpo piensa por sí mismo; el cuerpo tiene vida propia. Mi cuerpo

tiene memoria”,35 ressalta González, lembrando as marcas que seu corpo carrega devido à

violência física e mental sofrida e revelando que quando entra em um presídio hoje – nas

ocasiões em que é convidado para fazer alguma palestra –, se imagina sendo algemado, pois

isso é o que lhe traz sua memória ativa.

Apesar disso, o escritor e cineasta não deixa de participar de tais encontros porque

sabe, por experiência própria, das transformações que aquelas conversas podem estimular.

Isso tem um significado especial para ele, pois é uma forma de prestar auxílio àquelas

pessoas, que ele nunca deixa de reconhecer que foi essencial à sua redenção e emancipação.

Se a escrita foi sua forma de sobreviver e recuperar sua dignidade como ser humano diante de

olhos que insistem em negá-la, foi porque alguém o ajudou a conquistar essa autonomia,

alguém que interpretou a condição daqueles jovens como o produto da desigualdade e da

crueldade de uma vida silenciada, considerada indigna de ser vivida.

Diante disso, González defende que é imprescindível que um villero, ao empoderar-se

e tornar-se escritor, trate de não reproduzir uma representação da villa que a ridicularize. Ao

contrário, deve lutar para que seja descrita tal qual ela se configura em sua experiência, ainda

que sua atitude incomode. O discurso que se expressa pela arte deve criar um atrito, provocar

desconforto, ou esta arte será apenas uma estéril forma de consolo para determinados sujeitos

bem estabelecidos no sistema social.

35Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KGPJFqsSGp0&t=13s&list=LL2PhnkckfIETlGIr8VAQ

pUA&index=17. Último acesso: 03 de julho de 2018.

99

4. A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CÉSAR GONZÁLEZ

Jean Paul Sartre, ao definir o que é literatura, afirma que a necessidade de se sentir

essencial em relação ao mundo é um dos principais motivos da criação artística (SARTRE,

2004, p. 34). Essa afirmação nos conduz inevitavelmente a César González e sua escrita

poética, pois é através desta que o autor explicita a experiência villera, pessoal e coletiva,

valorizando-a. Ao mesmo tempo, nos revela uma tomada de posição que o tira da condição de

subalternidade propriamente dita, uma vez que emerge como sujeito da representação e não

mais como objeto da figuração processada nos diferentes âmbitos da cidade letrada.

Em seus poemas, González constrói uma fala que contraria as expectativas – uma vez

que seu destino é um imenso paradoxo –, revelando-nos um pouco das vivências que foram

moldando seu discurso, como podemos notar em “Poemas candados” e em “Renacimiento”,

respectivamente:

Yo vi belleza en cada paliza.

Y en cada requisa planeé mi futuro.

De los tiroteos quedó esta mirada.

De años con celda tengo tantas ganas.

De la calle un doctor, maestro y artista.

De las horas en visita, mis lecciones de dolor.

(GONZÁLEZ, 2011, p. 81)

A veces siento que mi pasado me condena

pero soy poeta a pesar del miedo a la inseguridad

si escribo es porque estoy vivo

[...]

mis días cambiaron cuando descubrí

que la igualdad no es más

que una linda idea

[...]

hoy derroto a la tristeza con arte

[...]

muero y resucito cada día

y es que no hay muerte

sin renacer.

(GONZÁLEZ, 2014, p. 53-54)

Tendo tais experiências como ponto de partida, González resolveu escrever sobre e

para as villas,36 imaginando um olhar de dentro delas. Sua poesia pretende subverter a ordem

simbólica, atuando como contradiscurso frente às representações hegemônicas do imaginário

urbano que insiste em estigmatizar os territórios e sujeitos villeros. Um traço interessante de

36 Como se evidencia no poema “Villas: la vida en un mundo aparte o así se vive apartado del mundo. (dedicada

a la gente de la Carlos Gardel, mi barrio)”, de seu primeiro livro.

100

sua obra, e que nem sempre ocorre com autores cuja trajetória se assemelha à dele, é que não

há mediação de um sujeito letrado com posição já consolidada no campo. Ele não apenas dá

voz a um silenciado, é essa própria voz. Apesar de carregar consigo o que poderíamos

considerar dimensões de sua subalternidade – latino-americano, pobre, ex pibe chorro, villero

–, o escritor não precisa “balbuciar” para que um intermediário fale por ele, pois já adquiriu

autonomia para falar, escrever e ressignificar as representações sobre os grupos alterizados.

No processo de subjetivação desse indivíduo subalternizado, ocorre a construção (e

defesa) de uma identidade coletiva, ou seja, ele assume o lugar de sujeito marginal e

periférico e se define com base em uma personalidade que não é só sua, mas dos villeros de

um modo mais amplo. Se pensarmos nas concepções descritas por Stuart Hall (2006),

González se aproximaria da identidade do sujeito pós-moderno, definida por Hall como

aquela que caracteriza o sujeito fragmentado (composto por várias identidades), que não é

fixa e que se transforma constantemente segundo os distintos sistemas culturais.

Junto à forma de identificar-se, e de maneira indissociável, surge seu modo de

enunciação, formata-se seu discurso. Os livros que leu com a ajuda de Montesano, como os de

Rodolfo Walsh, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Oliverio Girondo, entre outros, além

de responderem à sua necessidade de compreender as razões sociais e históricas para que um

jovem como ele tenha chegado até ali, serviram-lhe para enriquecer seu vocabulário e tornar

mais complexa sua capacidade de análise. Com isso, González deixava para trás a imagem do

menino alienado, semiletrado e ignorante que havia iniciado precocemente um caminho

delitivo e ingressado igualmente cedo em centros de detenção.

Apesar de abordar outros temas correlatos, a partir do momento em que passa a

escrever, o principal objetivo do autor tem sido construir uma villeritud, ou seja, criar uma

noção do que é “ser villero”, combatendo os estereótipos, mas também fugindo da armadilha

da idealização. Há, nos textos desse novo sujeito, uma valorização do território e do lugar da

experiência, o que justifica a escolha do termo para definir seu intuito.

O conceito de negritude defendia que era necessário desconstruir o sentimento de

vergonha por ser negro para dar lugar ao sentimento de orgulho, e González considera que é

coerente fazer uma correspondência com a villeritud, já que um villero na Argentina também

sofre com estigmas vários e precisa enfrentar diariamente as dificuldades que lhe são

impostas, além dos pré-conceitos a partir dos quais são definidos. Em sua argumentação, o

escritor também lembra que havia muitos negros na Argentina, mas que foram exterminados

entre os séculos XIX e XX. A partir desse resgate histórico, pode-se compreender o

101

surgimento de um sujeito que comporte a mesma carga simbólica e o que ocorreu foi que “a

falta de negros en la conciencia colectiva del país se necesitaba una figura que ocupe ese lugar

de símbolo bárbaro. Los llamados «cabecitas negras», luego rebautizados con el tiempo con el

nombre de villeros, empezaron a cumplir esa función de ser «lo negro de la sociedad»”.37

Por isso, o objetivo de González ao retomar o termo “villeritud” é ressemantizá-lo,

contestar a função delegada aos habitantes de uma villa, a de serem a personificação do

perigo, da violência, permanente risco de perturbação à ordem social, um mal a ser combatido

e, se possível, aniquilado, conforme problematiza o poeta em “¿Quién soy?”:

soy el negro de mierda

que merece ser linchado

el anormal que no se deja ayudar

el salvaje que no quiere ser asistido

el bruto, ignorante y hueco

similar simio violento

entrégueselo a los jueces

que condenan según el domicilio

[...]

soy el que vive gracias a los planes sociales

el que debe agachar la mirada

y hacerte sentir el maestro más alto

[...]

el villero

el villero

soy mis amigos que murieron

sin saber cómo fue vivir

[...]

pertenezco a la clase sin clase

los únicos dueños de las escobas

¿quiénes custodian la metrópolis?

¿quiénes limpian lo que vos no querés limpiar?

(GONZÁLEZ, 2015, p. 7-8)

A villeritud ressurge, então, tanto como um instrumento de combate ao racismo contra

essa população quanto como um meio de dar ênfase ao que compõe o cotidiano das villas,

histórica, social e culturalmente falando. Isso significa que, conforme citado acima, o autor

não pretende descrever esse território e seus habitantes a partir das ideias de “bom” ou “mau”,

mas ressaltar quais são os elementos positivos e negativos que estão imbricados no “ser

villero”, desmistificando o discurso reducionista e precipitado que se ancora, além do que já

comentamos, no “paradigma da ausência”. Segundo Fernando Fernandes, Jailson de Souza e

Silva e Jorge Barbosa (2018), trata-se de um discurso que classifica os espaços da periferia

37De acordo com entrevista ao periódico Cosecha Roja, disponível em: http://cosecharoja.org/cine-migrante-la-

construccion-de-la-villeritud/. Último acesso em 27 de junho de 2018.

102

“como territórios «desprovidos», «desfavorecidos», «desprivilegiados», «pauperizados» ou

«carentes»” (FERNANDES, SILVA e BARBOSA, 2018, s. p.). Os autores destacam a

importância de reconhecer que há desigualdades que caracterizam as formas de vida em

territórios periféricos, mas que é bastante prejudicial a esses espaços a predominância de um

olhar voltado exclusivamente ao que não possuem ou ao que não são, desconsiderando suas

virtudes e potências.

Da mesma forma, a reivindicação da villeritud é um movimento bastante significativo

não só para o presente, como também para o futuro, pois promove a criação de uma memória

villera. Segundo Ary Pimentel,

Compreendendo a memória como objeto de permanente disputa entre os múltiplos

grupos que integram a sociedade, e destacando a importância destas disputas para a

escrita da História e para a projeção de discursos que ganham evidência nos campos

da produção simbólica, as tensões entre a memória social e as identidades

microlocalizadas podem ser discutidas a partir de exemplos tomados de textos e

autores considerados menores por muitos, mas que se autodefinem orgulhosamente

como periféricos ou marginais, os quais recriam e ressignificam a imagem da favela,

visando a resgatar e dignificar a memória local. (PIMENTEL, 2017, p. 333)

Tal como é o caso de César González.

Na “Carta da Maré” (2018), há uma análise que se mostra fundamental para entender a

urgência dessa ressignificação e os riscos da visão reducionista típica do imaginário

dominante, que atua como um componente central na constituição do real. Uma vez que a

caracterização das periferias e favelas se pauta em pressupostos que estão subordinados aos

padrões de grupos sociais hegemônicos, esses territórios nunca serão considerados em

conformidade com o resto da cidade. Tal discurso, ao defini-los como um elemento de

desordem e anormalidade, corrobora e fortalece a ideia de que é preciso eliminá-los; reforça a

criminalização da pobreza e justifica a truculência com que as forças policiais agem nesses

territórios.

Por esse motivo, é imprescindível que escritores como González e tantos outros que

mencionamos neste estudo continuem combatendo esse tipo de visão. Os villeros e favelados

precisam ser vistos, como defendemos em outros momentos, a partir de sua potência. Eles

próprios precisam se ver dessa maneira, para que consigam romper com o que o poeta

argentino chamou de “clichês de direita e de esquerda” sobre o que se espera de um villero.

Como argumenta González, até lançar mão da palavra e produzir a suas próprias

representações, o morador de uma villa será visto como um selvagem, um atraso para a

sociedade, ou como alguém que precisa trabalhar exaustivamente e em ofícios que exijam

103

apenas habilidades manuais ou a força física. Para ele, o villero precisa contradizer ambas

ideias para conquistar seu direito a ir muito além disso, a ser artista, se quiser, e conquistar o

mesmo respeito que qualquer outro.

Néstor García Canclini enfatiza nessa mesma linha de pensamento:

o sarcasmo em relação aos subalternos não é um simples efeito do desprezo dos

setores privilegiados: os meios de comunicação de massa difundem-no com êxito

enquanto o público desses mesmos meios o festeja. A repercussão de muitos

comediantes, de Cantinflas a Héctor Suárez, que ridicularizam estereótipos

populares se sustenta tanto em políticas de comunicação de massa discriminatórias

quanto em tendências autodepreciativas dos ofendidos. Esta cumplicidade dos

subalternos na reprodução da desigualdade faz que se repensem as possibilidades de

democratização das políticas culturais e as idealizações da sociedade civil.

(CANCLINI, 2015, p.104)

Essa cumplicidade de que falou Canclini também dificulta as conquistas de grupos

sociais que, em contrapartida, já atingiram a consciência de classe e lutam por políticas

públicas que garantam uma condição de vida mais digna em territórios villeros/favelados.

Devido a essas divergências, é arriscado fazer generalizações ao analisar-se a obra de César

González, como se esta representasse a voz dos subalternizados ou a opinião de todos os

villeros. Este ou qualquer outro escritor villero, quando conquista certo espaço, traz uma

figura individual única, mas que é indissociável de uma série de questões que passam pelo

coletivo.

4.1. O lugar de autor reivindicado

Heloisa Buarque de Hollanda (1994) considera que os movimentos de grupos de

identidade que ocorreram a partir da segunda metade dos anos 1970 – que a autora intitula

“novos sujeitos políticos” (1994, p.10) – nos revelam a desconstrução de tradicionais

hierarquias,

mas sobretudo de suas identidades correlatas, dando lugar a um processo político,

que poderia se caracterizar agora como uma “guerra de posição”. Isto é, uma

estratégia, na qual a identidade vai se constituir e se redefinir numa permanente

negociação de sua legitimidade política, nos mais diversos terrenos institucionais e

culturais. De uma política de direitos, passa-se a uma política de interpretação de

necessidades e ocupação de espaços diversificados. Das lutas e atividades em

espaços locais ou em instituições alternativas, passa-se ao questionamento mais

amplo dos critérios de valor da produção, circulação, transmissão e recepção da

cultura e do conhecimento. E, especialmente, passa a identificar os modelos nos

quais estes processos, mediados nas e através das relações de poder, determinam a

104

legitimidade das atuais formas do saber. Portanto, a própria noção de “identidade”

deixa de ser um atributo e começa a ser experimentada e entendida como um

processo constituído no interior de políticas sociais e culturais. É ainda através deste

processo que se pode perceber com mais clareza a posicionalidade das categorias

raciais e de gênero, a efetiva multiplicidade de sujeitos históricos e de suas

estratégias de resistência e intervenção. (HOLLANDA, 1994, p. 10)

Podemos tomar essas mesmas considerações para descrever o que ocorre com César

González no processo de construção ou percepção da identidade que assumiria depois de

começar a escrever, ou mesmo a partir do momento em que percebeu quem era, o porquê de

sua trajetória e os espaços que poderia ocupar além daqueles que lhe foram designados. Mais

que um “escritor villero” ou “escritor marginal”, González parte em busca, acima de tudo, de

um lugar de autor. Exatamente assim, sem adjetivos. O escritor argumenta que discorda da

adjetivação da literatura produzida por escritores oriundos de zonas mais pobres da cidade

“porque de los burgueses nadie está diciendo «literatura burguesa», nadie dice «literatura de

blancos», es literatura. Pero, en cambio, el de la villa que escribe es «literatura periférica»,

«literatura marginal» [...]. No, es literatura, punto y aparte. Si no que aclaremos todo, ¿no?”

(entrevista pessoal).

O que o poeta busca para si é o rompimento de uma imagem simplista, como a de um

ex pibe chorro recuperado que agora narra seus infortúnios, ou a de um villero que decidiu

relatar o que se passa nas villas e fala apenas disso. O poema “Sobre el devenir” retrata um

pouco dessa discussão: “mi metamorfosis no ha terminado / no volveré a morirme nunca más

/ no podrán hacerme correr en la ruedita / ¡la cárcel te sirvió! me dicen algunos / Está

recuperado, fue el diagnóstico de muchos / ¡yo soy poeta! / me recuerdo al despertar.”

(GONZÁLEZ, 2014, p. 32). Ele reivindica um lugar de autor38 e reflete sobre os terrenos que

os escritores de origem popular precisam ocupar.

Lucía Tennina (2015) ressalta o valor simbólico que acarreta para esses autores a

publicação de um livro, pois essa fatura os aproxima da “legitimación del lugar de

enunciación de la literatura realizada en esos espacios” (TENNINA, 2015, p. 137). A

conquista desse lugar em um campo que historicamente menosprezou a cultura produzida nos

territórios populares é vital para que se consiga democratizar o universo das produções

literárias e artísticas. O problema é que tal conquista também depende de uma série de

disputas, e não apenas da vontade e dos projetos dos escritores. De acordo com Tennina, “la

valoración y la legitimación de estos autores está determinada por instancias de

reconocimiento ligadas al campo literario, tales como editoriales, eventos literarios y

38Lugar enquanto posição/espaço ideológico, e não necessariamente ou exclusivamente geográfico.

105

recepción crítica” (TENNINA, 2015, p. 264). Assim sendo, além de todas as adversidades que

tiveram que vencer para chegarem a se tornar escritores, ainda há disputas que eles devem

travar para garantir seu espaço no campo editorial e ser reconhecidos pelo seu papel de

autores, e não por um adjetivo que enfatize e os reduza ao seu espaço de origem.

Constituir sua imagem a partir da ideia de autoria propicia o deslocamento de um

villero da posição de objeto de representação à de sujeito da enunciação, gerando uma quebra

de expectativa, pois quando o próprio sujeito alterizado resolve se representar na literatura (ou

no cinema, na música, nas artes cênicas etc.), desestabiliza a ordem canônica, põe em tensão

as regras do campo. A este respeito, Ana Camarda (2016) defende que

mientras un texto retrata a un marginal de la manera en que se espera que sea

retratado genera confort y empatía. Sin embargo, es cuando subvierte las

expectativas que adquiere otra potencialidad democrática, porque está exigiendo

otro lugar para este sujeto en la sociedad. [...] Considero que son los textos que,

excluidos de los carriles habituales de circulación –al igual que sus autores de la

sociedad–, tienen ese verdadero potencial porque no hay en ellos un realismo

pedagógico que, al retratar estas crudas realidades, las disculpe o las presente de

modo tal que la consciencia burguesa no se vea incomodada. (CAMARDA, 2016, p.

8-9)

Trata-se, pois, de uma voz que se impõe e exige um lugar próprio (CAMARDA, 2016, p.

9) e esta não é a única exigência que gera desconforto. Para González,39 a simples proposta de

que os villeros possam frequentar espaços públicos de cultura e lazer, como teatros, museus e

cinemas, desperta mais revolta e intolerância do que se estivessem mendigando comida ou

trabalho.

Quando alcançam a condição de autores, ainda persistem os clichês, bem como as

exigências que não são feitas a outros. Há uma busca alucinada por alguma falha, um erro que

passou despercebido; subestima-se sua produção porque se subestima sua capacidade

intelectual. Entra em cena uma supervalorização da estética que a obra deve perseguir e, ao

menor sinal de descumprimento dessa meta, a legitimidade do valor literário da obra se

desfaz.

Acontece que, uma vez que se trata de indivíduos com percursos de vida díspares, e

que estes vão influenciar o modo como enxergarão os mesmos temas que os autores

consagrados no sistema literário de seu país já abordaram, inevitavelmente manifestarão

dicções diferenciadas. Outras estratégias discursivas e propostas de interpretação dos fatos do

39De acordo com entrevista disponível em: https://latinta.com.ar/2017/02/cesar-gonzalez-si-un-villero-exige-un-

lugar-dentro-del-arte-despierta-sentimientos-muy-oscuros-y-miserables/. Último acesso em 10 de setembro de

2017.

106

mundo serão ativadas. Além disso, cada autor possui seu modo peculiar de se expressar e, se

não se exige de um homem branco com formação superior que escreva igualmente a outro do

mesmo grupo, essa imposição ao que veio da periferia também é descabida.

Em um mundo caótico, desigual, cruel e de barbárie civilizada como este em que

vivemos, as letras e as artes podem atuar como um germe que representa fonte de esperança,

sobrevivência, rebeldia e persistência, uma forma de não sucumbir ao suicídio, de não morrer,

nos sentidos figurado e literal. González não acredita na arte pela arte, sem um propósito, por

isso a toma como uma arma para a militância. Para ele, os artistas possuem uma admirável

coragem para dizer, de variadas formas, aquilo que ninguém disse, porque não se atreveu a

expor. E foi esta ousadia que o inspirou e inspira a contar à sociedade tudo o que esteve

escondido sobre as villas; “des-vendar” e “des-cobrir” sua beleza e diversidade, das quais não

se espera que ninguém fale.

Pensando na realidade multifacetária da arte, Jacques Rancière (2009) instiga-nos a

refletir sobre a necessidade de se revolucionar a estética de modo a abranger os novos artistas,

e não apenas os canônicos. Na arte, nada deve ser desprezado, pois

tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram

abolidas. [...] Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios

narrativos importantes e episódios descritivos acessórios. Não existe episódio,

descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa

alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de

igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo (RANCIÈRE,

2009, p. 36-37).

Cabe salientar que o que nos interessa discutir aqui, como descreve Homi Bhabha, são

“as estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que [...] os

tornam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias” (1998, p.

199). São estratégias que estão mais preocupadas em resolver o problema urgente da

depreciação e humilhação de seres humanos baseadas apenas no lugar onde nasceram. É por

isso que existe essa luta incessante pela abertura de um espaço que lhes garanta o lugar de

fala, que lhes permita ser os donos da própria história.

“¿Quién nos representa?” é uma das poesias mais expressivas do incômodo de

González com as representações das villas, em que apresenta sua visão sobre a violência

nestes espaços, afirmando que os jovens villeros não são os que geram a violência, mas os que

devolvem à sociedade a violência com que foram tratados:

¡maldita sea la representación!

107

¡maldita sea la palabra!

¡maldito el lenguaje

si enseña a olvidarnos del cuerpo!

multitudes de muertos descansan en los cementerios

pibes muertos por la policía

policías muertos por los pibes

pibes muertos por los pibes

aunque los pibes detonan pistolas

ellos no las inventaron

(GONZÁLEZ, 2015, p. 33)

Esforçamo-nos, enfim, para raciocinar sobre o processo de ressignificação das villas

na literatura argentina, sem esquecer das significações dominantes, visto que a proposta

discursiva de González – e de outros escritores que seguem a mesma linha de pensamento –

instaura, atribui a esse território um significado pouco explorado e que não costuma ter lugar

ou visibilidade nos discursos dominantes.

Assim como o poeta e diretor argentino, esperamos que cada vez mais “gente de

abajo” se torne escritor, diretor de cinema, professor, pintor, músico, pesquisador ou o que

quiserem, usando todos os instrumentos à sua disposição para desconstruir os discursos

hegemônicos responsáveis pela perpetuação dos estigmas, das desigualdades, da opressão de

uma classe sobre as outras.

108

CONCLUSÃO

As classes mais altas da sociedade, donas do discurso dominante, uma vez que detêm

o monopólio dos meios de produção e comunicação, foram responsáveis pelo silenciamento

da parcela da população (a maioria) vistas como “a outridade”. Tratou, ainda, de representar

as periferias da cidade e seus habitantes como não pertencentes a esta cidade, causadores das

piores mazelas associadas a seus territórios, dos quais deveriam ser removidos como meros

refugos dos projetos de modernização da sociedade. O mais alarmante desta incoerente sub-

representação de uma fração significativa da população é que ela é sistemática, isto é, trata-se

de um processo de invisibilização das classes menos favorecidas.

A fim de denunciar esse silenciamento e superar o obstáculo da desvalorização do

saber oriundo de favelas e villas, propusemos aqui uma leitura crítica da produção literária

dos novos agentes do discurso. Sublinhamos, nessa leitura, o modo como eles lançam mão da

própria experiência em seus escritos, e refletimos sobre o modo como a literatura (e o cinema,

no caso de González) pode interferir na formação dos sujeitos ou mesmo no posicionamento

que eles assumem a respeito do espaço que habitam/habitaram, seja o cárcere, a favela, a villa

ou assentamentos populares do conurbano bonaerense.

Assim, a voz de escritores da periferia ganhou destaque nesta pesquisa, pensando-se a

apropriação de instrumentos necessários à expressão de seu ponto de vista. Tratou-se, pois, de

uma abordagem crítica das negociações de grupos alterizados no âmbito da cidade letrada

para conquistar o direito de intervir nos modos de fazer dos campos artísticos.

As representações e autorrepresentações da margem, sejam as difundidas pelos meios

de comunicação de massa ou as resultantes da produção literária, musical e audiovisual, foram

marcantes na passagem do século XX para o XXI, dando destaque e notoriedade a territórios

e sujeitos da periferia. Dependendo do enfoque e da importância atribuída ao lócus da

enunciação, as representações podem gerar uma associação automática entre os sujeitos que

ali habitam e certas imagens ou valores. Geralmente, o modo como as favelas/villas e seus

moradores figuram no discurso que prevalece os limita à condição de objetos vistos ou

falados, jamais a de sujeito que vê ou fala. Isso mostra que há um perigo na descrição de um

ethos de indivíduos subalternizados baseada apenas no olhar de fora, sem considerar o que

estes têm a dizer sobre si mesmos e sobre a vida na cidade. Já as definições protagonizadas

pelos autores periféricos trazem à cena ideias e imagens contrastantes, colocando em

circulação outro ponto de vista e outra possibilidade de narrar a vida em regiões

invisibilizadas, enaltecendo seus traços positivos, sem romantizar essas experiências.

109

Tendo essa problemática em vista, nos propusemos a refletir sobre o processo de

formação do pensamento crítico de César González e suas estratégias discursivas para

solidificar seus projetos, comparando-o a outros autores que igualmente falam a partir de uma

zona de contato: a ponte onde os territórios populares e a experiência marginal se encontram

com os saberes e textos da cidade “formal”. Apesar de estabelecermos esse recorte para a

pesquisa, concordamos que é fundamental, como defende Eliana Sousa Silva (2012), que haja

uma pluralidade de representações da favela/villa, já que não são apenas esses autores os que

podem falar e escrever sobre suas práticas e vivências. Por isso, é necessário que se abra cada

vez mais espaço na academia para este tipo de discussão, possibilitando que se apresentem

discursos alternativos e contrastantes aos divulgados pelos meios de comunicação de grande

alcance ou pelos canais de circulação formais, e que se reparem as distorções causadas por

uma tendência elitista do trabalho acadêmico, como descreve Ranajit Guha (1997b).

Os principais objetivos desta investigação foram: 1) acrescentar um novo corpus às

pesquisas sobre escritores oriundos de territórios periféricos e as representações da

favela/villa que se pautam em uma “atitude textual” (SAID, 2007); 2) motivar e fomentar a

investigação de obras literárias de villeros e favelados, a fim de atribuir-lhes mais

notoriedade; 3) contribuir com os estudos sobre indivíduos subalternizados, periféricos e

marginalizados; e 4) refletir sobre o processo de constituição da memória e das identidades de

villeros e favelados em textos produzidos por eles no século XXI.

Mais que dar voz aos sujeitos alterizados, pretendemos salientar que é preciso ouvi-los

e respeitar seu espaço e lugar de fala, pois eles sempre possuíram essa voz, apenas foram

silenciados; já não precisam que lhe deem permissão para falar, porque já conquistaram a

consciência desse direito que lhes foi negado. O que devemos fazer é lutar para que esse

conhecimento atinja um número cada vez maior de indivíduos que, preocupados em obedecer

a “ordem natural das coisas” e convencidos de que sua condição social é uma circunstância

impossível de mudar, ainda permanecem em silêncio, conformados com a posição subalterna

em que foram colocados – em muitos casos, estando alheios a tudo isso. A tomada de

consciência de sua real importância social é o que provocará a “ressonorização” dessas vozes

que possuem uma potência incomensurável e ainda ignorada. Provavelmente, este é o

principal intuito de escritores e pesquisadores que se dedicam a explorar esta temática. É um

objetivo ambicioso, um desafio e tanto, mas não podemos afirmar que não fomos tomados por

ele nesta pesquisa.

110

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117

APÊNDICE

118

ENTREVISTA COM CÉSAR GONZÁLEZ

(realizada no dia 19/04/2018, em Buenos Aires/Argentina)

¿Podrías hablar de tu trayectoria y de cómo nace el poeta Camilo Blajaquis?

CÉSAR GONZÁLEZ: Bueno, mi historia ya es de público conocimiento, pero la repito una

vez más. Mi trayectoria como escritor empieza adentro de la cárcel, es ahí donde siento que

escribo algo, por primera vez, con consciencia, con libertad, con una búsqueda propia. Y es

algo diferente a lo que había experimentado ya en la escuela. Todos empezamos escribiendo

algo en la escuela, pero la primera vez que yo tomo la literatura como una herramienta de vida

es en la cárcel. Yo tendría 17, 18 años cuando comencé a intentar escribir poesías.

El día 21/03/18, se inauguró la biblioteca César González, en un centro de detención de

menores (Instituto de Recuperación del Adolescente de Rosario). El nombre fue elección

de los pibes. ¿Había biblioteca en los institutos por los cuales pasaste? ¿A los pibes

también les interesaba la lectura?

CG: El sistema carcelario argentino es muy diverso, digamos... podés encontrar algunas

cárceles donde hay talleres de todo tipo, de diferentes artes (teatro, literatura, música y otros

géneros también), pero también hay muchos penales donde no hay nada, donde no existe

ningún espacio para hacer otra cosa que no sea algo manual, estrictamente físico; no existe en

algunos penales. Sí lo que repiten en la mayoría de las cárceles argentinas, e igual de

Latinoamérica, son condiciones de completa inhumanidad, hacinamiento, te ves obligado y

empujado a una vida de constante violencia, porque escasean la comida, escasean la

vestimenta, escasean el espacio de por sí porque hay sobrepoblación, ¿no? En la mayoría de

los establecimientos donde estuve había bibliotecas, había escuela, pero tanto en la biblioteca

como en la escuela tomaban la literatura como algo inofensivo, como un adorno; la biblioteca

era como un adorno, como para dar una imagen un poco más humana a la cárcel, pero si uno

se ponía a ver el catálogo de los libros que había en la biblioteca, en su mayoría eran libros

que, para un pibe que nació en la clase más baja y terminó en la cárcel, no le servían mucho

para poder hacer algo en la vida, para entender algo de la vida, entender, sobre todo, la

sociedad y sus mecanismos, el sistema económico que tuvo mucha responsabilidad para que

termine ahí adentro. Pero al fin eran libros que servían para despejarte la cabeza y pensar un

poco en otras cosas. Digamos, todo libro, por más que sea completamente innecesario para el

pibe y su contexto de vida, no deja de ser libro. Y todo libro tiene alguna potencia, algo que

119

uno puede sacarle. Pero mi formación vino por otro lado, no sacaba los libros de la biblioteca

del penal, sino de, sobre todo, un profesor, que fue Patricio, que fue quien me empezó a

acercar libros de Marx, de Foucault, de filosofía, de literatura (de otra literatura). Me empezó

a acercar libros que tenían potencia, libros que tenían un fuego para quemar.

¿Tuviste acceso a los libros antes de conocer a Merok (Patricio Montesano) en el

Instituto Belgrano, en 2006?

CG: Sí. Lo que pasa es que ahí se confunden las cosas, yo terminé la primaria estando afuera

y nadie termina la primaria sin haber leído varios libros, pues son nueve años. Y lo que pasa

es que la sociedad cuesta imaginarse que una persona de una villa/de una favela lea. Es una

imagen que no existe, no es parte de nuestro imaginario colectivo; no es parte de los mandatos

culturales; no es parte de un programa universitario. Esa imagen de la persona de una villa

leyendo no existe. Yo leía desde antes, pero lo que pasa es que, como decía recién, leía libros

que eran inofensivos, no me afectaban, eran mundos ideales, mundos desconocidos para mí

eso de lo que hablaban en esos libros; mundos que no tenían ninguno de los problemas que yo

sí tenía en la vida real. Entonces, me podían despejar un rato, pero quedaba ahí. En cambio,

los otros libros – los nuevos libros, digamos – también me despejaban, también servían para

despejarme de ese mundo inmediato tan opresor, tan asfixiante, tan violento, pero a la vez

también me servían para incorporar la consciencia de clase, sobre todo. La conciencia de clase

llamo entender el lugar que uno ocupa en el mundo, entender por qué nací acá y no allá, y qué

implica nacer acá y no nacer allá; cuánto implica en la vida de alguien, cuánto define y

determina la vida de alguien, que no es algo menor. Implica que, quizás, nunca salgas de la

villa, que tu mundo sea muy pequeño, que nunca creas que hay vida más allá de la villa, que

vos no sos capaz de escribir, que tu capacidad es solamente física, con las manos, con la

espalda, y que por nacer acá y no allá tus capacidades cognitivas y la creatividad no existen

porque tu cerebro es más chico, porque la ciencia misma lo argumenta y lo justifica, la ciencia

trae un racismo científico, decía [Frantz] Fanon. Y hoy aún persiste, hay personas en la

universidad que intentan justificar que los negros, los villeros, que los que viven en las favelas

son inferiores intelectualmente. Inventan unos motivos, intentan explicarlo diciendo que es

por la mala alimentación, que no sé qué... Y eso es en toda Latino América, solo cambian los

nombres, los términos.

120

¿Hubo una inspiración específica para los títulos de tus libros? Ya se sabe qué pasó con

el primer libro, con la revista ¿Todo piola?, pero ¿con los otros pasó igual?

CG: Crónica de una libertad condicional justamente habla de una nueva experiencia afuera,

es un libro (es el segundo) escrito con mucho menos tiempo que el primero, paradójicamente.

Al estar afuera yo tenía menos tiempo para escribir que estando adentro, porque allí quedaba

tantas horas en la celda, solo... entonces era un contacto metafísico con el libro. En cambio,

afuera todo el mundo [decía] que tenía que buscar un trabajo, que tenía que ver dónde vivir,

que tenía que ver el dinero que ganar para comer... Entonces es un libro escrito con mucho

más urgencia, escrito inmediatamente. Es una poesía muy literal, muy directa, con muy poca

metáfora, porque así estaba viviendo afuera. Entonces, como lo dice el título, es la crónica de

volver a la calle. Y lo de la libertad condicional, por un lado, es una alegoría y, por el otro, es

tal cual, pues yo salí con libertad condicional, que es una categoría jurídica, que no es la

libertad absoluta, vos salís y tenés que, después de algún tiempo, volver algunas veces a los

tribunales a rendir cuenta de qué estás haciendo, es condicional.

En Retórica al suspiro de queja también estoy hablando ya de mi vida urbana, y la queja es

una cosa que tenemos naturalizada los seres humanos de la urbe, los seres humanos

modernos, cómodos, que abren la canilla y sale agua, que ya nacieron con apretar un botón y

que se prenda la luz, o sea, no tienen que hacer casi ningún esfuerzo. Hasta el siglo XIX, la

humanidad tenía que sí o sí emplear/ejercer ciertas virtudes físicas porque, si no, no accedía a

ciertos servicios, no accedía a ciertos beneficios de la naturaleza. Hoy los seres humanos

tienen más comodidad, pero se quejan más, todo es para quejarse. No sé, es un cansancio que

todos lo manifiestan, hay un agobio, una incomodidad de este mundo. Nadie se siente cómodo

por este sistema, pero igual vamos, igual lo mantenemos, lo aprobamos, lo difundimos, igual

será lo que oprima nuestros hijos. Yo noto en las calles que nadie está tan contento de la vida

que tiene. Entonces la queja es como una reacción física que tiene el ser humano para

manifestar este cansancio. Entonces es una retórica, no es una crítica ni un tratado sobre la

queja, es una retórica. Puedo decir que la queja también está en mí un poco, y cómo luchar

contra la queja, cómo darle dignidad a la queja; que la queja tenga un sentido un poco más

inmediato, en el sentido de no quejarse por cualquier cosa, cuando hay seres humanos,

millones en este planeta, que la están pasando muy mal y no se pueden dar el lujo de quejarse.

La queja es un privilegio de clase, de la comodidad. Aquellos que están en una situación de

adversidad no se pueden dar el lujo de quejarse porque si no su problema se perpetúa.

121

Sueles afirmar, en entrevistas y eventos en los que participas, que el arte salva y que fue

la responsable porque no estés muerto. ¿Cuándo te has dado cuenta de que el libro es un

arma?

CG: Cuando empecé a pensar en todo lo que había escuchado a lo largo de mi vida, en la

escuela, en la televisión, en las películas, de qué era lo que se esperaba de una persona de una

villa y creo que yo empecé desde la negatividad, al ver que nadie se esperaba que un pibe de

la villa sea artista, y no cualquier artista. A los villeros no es que se les nieguen el acceso al

arte, a la herramienta artística, siempre y cuando utilicen herramientas artísticas dentro de un

repertorio limitado. Digamos, “puede hacer arte, pero no pintura, ópera, danza, sino cumbia,

rap y hasta ahí. Ya poesía, no te metas ahí porque ‘no te da la cabeza’”, como se dice acá, no

sé si se entiende. Entonces, “quedate con algo más simple como el rap, que es más fácil”. Yo,

si nadie lo espera, lo voy a hacer, quiero hacer esto que nadie se espera, que nadie cree que

puede pasar. Digamos, la principal motivación y la principal inspiración fue política. Política

en el sentido de pensar la polis, qué pasa en esa polis, en ese pensamiento de la polis frente a

sus esclavos modernos, que son las clases más bajas. [Pensar] que es una herramienta humana

el arte, no es de una clase. Se la apropió una clase, que la tiene bajo custodia, pero el arte es

de la humanidad, es una propiedad de la humanidad, del ser humano. Entonces yo quiero

ejercer esta herramienta que es de la humanidad, no es de una clase. Y voy a tomar esa

herramienta por asalto, nadie me la ha vino a dar, me la voy a robar. Puedo decir, seguí siendo

un delincuente, pero no un delincuente de algo material, sino que salí, como Prometeo, a robar

ese fuego que teníamos prohibido los villeros, el fuego del arte. Y no todo el arte, porque en el

arte el ser humano deposita una confianza. ¿Y por qué van al teatro? ¿Por qué van al cine?

Porque depositamos (los seres humanos) en el arte, en los artistas, la aposta de que iluminan

el camino, no en sentido de gente iluminada, sino que son humanos, igual como nosotros,

pero que tienen un coraje distinto de decir lo que nadie quiere decir y así va a decirlo, y

decirlo de distintas formas, de formas rectas, de formas sublimes, de formas misteriosas,

enigmáticas. Y eso fue lo que decidí hacer, tomar las herramientas del arte para salir a la

sociedad y contar todo el mundo de las villas, todo lo que estaba tapado, escondido, y lo que

nadie quiere decir de mi gente; mostrar la belleza que hay en una villa, la complejidad que

hay, la heterogeneidad de la villa. Reivindicar que hay diversidad en la villa, que no es que

son todos iguales, porque hay esa imagen, que son todos así, tienen los mismos gustos... y no.

Sí que hay una norma, como la hay en toda humanidad, hay características generales, pero

hay una diversidad que está escondida, que no se quiere hablar. Tengo conocidos en las villas,

122

en las favelas, personas que escuchan el heavy metal, personas no que solamente escuchan el

reggaetón. ¿Y por qué no se imagina que haya personas que tengan instrumentos de música

clásica? ¿Les cuesta, no les sienta? Solo las de clase media pueden estudiar, ¿no? Bueno,

desde ahí es que tomo esa la herramienta literaria (de los libros), sumarla mi experiencia de

vida a una consciencia, una consciencia viva.

Además de tu experiencia, ¿hubo sucesos del país o del mundo que influenciaron el

contenido de lo que escribías?

CG: No, lo que pasa es la experiencia de estar preso era el infierno mismo, es una experiencia

de un ser humano que vive una cantidad muy pequeña de toda la humanidad, creo que, como

riqueza de situaciones, la cárcel tiene mucho más para escribir que cualquier otro [lugar].

Estás viviendo el mismo infierno, si a Dante la imagen del infierno le inspiró a escribir ese

libro tan enigmático, tan raro, imaginate vivirlo de verdad. Es cuando te das cuenta del poder

de la herramienta literaria. Sí que pasaban [cosas] en el mundo, en mi país, por lo menos. En

Latinoamérica, cuando caí [preso], en 2005, es la juventud, la infancia de una política más

progresista, los Kirchners, los Lulas, los Chaves, en ese momento he caído yo, que es

interesante como paradoja, que yo caigo en ese momento del progreso del continente, pero

caigo igual, que es una deuda pendiente que han tenido los gobiernos más progresistas, no han

podido solucionar esa criminalidad, que somete a la juventud de las favelas, no lo han podido

erradicar, les ha costado mucho a los gobiernos. Han hecho un montón, pero tuvieron muchas

fallas también. Había un sentimiento antiimperialista, anti-Estados Unidos, pero yo estaba

dentro de una cárcel, que era una isla, confinada y apartada de la realidad.

Poco tiempo después de recuperar la libertad, ingresaste en la carrera de Filosofía en la

UBA. ¿Qué te quedó de tu experiencia en este curso?

CG: A mí me quedó la frustración de que por no tener plata no pude haber seguido la carrera,

me quedó el dolor de no haber conseguido ni siquiera una beca. Muchos años después me

cuesta mucho encontrar apoyos institucionales, y todo ese apoyo de la gente a quien salgo a

dar charlas son apoyos anónimos e individuales. Me dolió comprobar mis teorías, ¿no? Que

todo que yo digo de que tu clase te determina, y no son [teorías] mías, son de muchos autores,

pero confirmar eso que yo escribo no es ninguna fantasía, no es ningún delirio. Porque si un

pibe que ya salió en los medios, es conocido y no pudo conseguir una beca para hacer su

carrera, ¿qué les queda a los que no son conocidos? ¿Qué les queda a los que no son César

123

González, que no pudieron trascender la barrera del conocimiento público? Quizás en algún

momento, si puedo estar más tranquilo económicamente, retome y finalice la carrera, aunque

yo he hecho mi carrera de forma autodidacta. Yo estoy todo el tiempo tratando de reemplazar

la estructura universitaria con una propia estructura, pero no es lo mismo. Creo que

justamente la filosofía es la que menos requiere el título para ejercerse. La verdad es que no

determina, no garantiza nada el título. Hay universitarios de derecha, que votan gobiernos de

derecha, que tiene títulos, postgrados, hablan varios idiomas, se leyeron miles de libros y, sin

embargo, eso no los transforma en personas solidarias, en personas sensibles. Es decir, que el

poder de los libros se lo da el lector, no lo tiene un libro de por sí, porque esas personas han

leído los mismos autores que yo y, sin embargo, no piensan lo mismo; han podido leer a Marx

desde otro punto de vista.

¿Por qué hiciste la elección por el lenguaje poético, o sea, por la poesía y no otros

géneros literarios?

CG: Porque para escribir novela, crónica, uno necesita una tranquilidad, un espacio, por lo

menos mínimo, de concentración, y no tenía eso garantizado en la cárcel, donde a veces no

tenía ni un pedazo de colchón para dormir. Era también lo que tenía más a mano, era el

formato más coherente con mi condición, con mi contexto, y la sigue siendo hasta el día de

hoy. No tengo un espacio adecuado para tener la concentración necesaria para escribir otros

géneros, no es por una cuestión de gusto. Yo he leído más novelas y más cuentos que poesía.

Sin embargo, es lo que escribo porque es lo más correlativo a mi situación socioeconómica.

¿Te parece que haces una poesía autobiográfica (o pretendes que sea)?

CG: Yo dudo, no creo que sea autobiográfica, porque yo hablo desde una igualdad que no se

puede explicar desde lo personal, de lo individual. Lo que yo viví viven miles y millones de

personas, y por las mismas razones, por consecuencia de manejos políticos, de sistemas de

gobiernos. Entonces, a mí no me gusta llamarla de poesía del tipo autobiográfico porque no,

yo hablo desde un lugar político que admite su prisma ideológico, que no finge desde donde

mira el mundo mi poesía, no finge neutralidad, una supuesta subjetividad, un supuesto

idealismo, no interesa ninguna de esas cosas para mí.

124

¿Por qué decidió dejar de usar el seudónimo Camilo Blajaquis en las obras siguientes?

CG: Porque me di cuenta que mi nombre real, César González, era justo con mi linaje, con mi

genealogía. Es un apellido muy común, que habla de una pertenencia a una clase muy común,

donde no abundan los apellidos raros, donde no vas a encontrar muchos apellidos europeos, si

bien González es español, pero viene de la colonización, de los ya colonizados que nacían

acá, de los pueblos originarios que agarraban de a miles y decían: “Ustedes ahora son

González, ustedes ahora son Fernández, ustedes ahora son Gutiérrez”. Y quizás uno era

quechua, otro era aimara, guaraní, “no importa, ahora son González y chao”. Blajaquis es un

apellido griego, de un inmigrante griego, de un militante que mataron acá y que yo leo en un

libro. Fue una forma también de no despertar sospechas en la cárcel: usar un seudónimo,

protegerme. Entonces lo más realista era mi nombre, César González, un nombre común,

porque pertenezco a un segmento social muy común.

Ahora estás muy involucrado en lo del cine, ¿y qué le motiva a seguir escribiendo al

mismo tiempo?

CG: De escribir no he dejado nunca, no veo ningún conflicto porque mi vida se divide de una

forma muy harmoniosa entre literatura y cine. Y dentro de la literatura hay los libros de

filosofía, hay los ensayos sobre cine, hay los ensayos de todos tipos que leo. Convivo

tranquilamente intercambiando ratos de cine con ratos de literatura.

¿Cuál te parece que debe ser el rol del escritor o de la literatura cuando está hecha por

un villero?

CG: Creo que hay que tratar, sobre todas las cosas, de no repetir ni reproducir los estereotipos

instalados que hay sobre cómo son las personas de las villas, tanto a nivel conservador como a

nivel progresista. Hay clichés de derecha y clichés de izquierda. El de derecha es ese que mira

al villero como responsables de todos los males, como a un salvaje, como a un simio

extraviado de la evolución.

A veces, el propio villero asume esa idea, ¿verdad?

CG: ¡Asume! Yo, hasta que tuve mi despertar, lo creía, estaba convencido que era así, de que

yo era inferior, estaba convencidísimo. Y después está el cliché de izquierda, del villero que

se tiene que romper el lomo trabajando, del villero sólo obrero, albañil, obediente, respetuoso.

Yo quiero villeros que rompan ambos órdenes, que puedan tener el derecho a la ironía, al

125

sarcasmo, a la comedia, al surrealismo, a la insomniación. Yo quisiera ver villeros que no

nieguen nunca su condición de clase, que no se avergüencen, que no pidan permiso, que no

digan “por favor”; que se agradezca, pero en el mismo nivel de gratitud... y que se los miren

con el mismo respeto que se mira a un escritor burgués. [Un villero] Que no se avergüence y

que tampoco se termine transformando en un traidor de su propia clase. Sueño el villero que

siempre apunte a las condiciones materiales, que después haga obras de fantasía, de terror, de

lo que fuere, pero que no niegue que, si la villa existe, si la favela existe, no es por culpa

individual ni de los villeros, sino por razones que son macroeconómicas, macro culturales,

macro simbólicas, porque un villero no sólo tiene una ubicación en la pirámide económica, la

de ser la mano de obra más barata, sino también dentro de lo simbólico tiene que ocupar un

espacio: simbolizan el mal, simbolizan la barbarie. Digamos, ocupan diferentes espacios muy

importantes para el funcionamiento de la sociedad en la que vivimos.

¿Cuál crees que es el espacio que ocupan tus obras en el sistema literario argentino?

CG: Ni idea... eso lo tienen que responder los otros, no yo mismo. Yo estoy muy contento con

todo lo que pasa, pero el lugar que tienen mis obras en la literatura argentina me tiene sin

cuidado, no me preocupan esas cosas, indirectamente trato de no pensar. Más allá de lo propio

y de lo personal, espero sí (y aspiro), como cualquiera, a que, en el futuro, haya un poco más

de democratización de las herramientas, de todo lugar, de la literatura al cine; que haya cada

vez más diversidad; que haya diversidad sexual, pero también de clase; que haya cada vez

más gente de abajo que sean directores, escritores, autores.

¿Consideras que tu literatura sea periférica? ¿Cómo la intitula?

CG: No estoy de acuerdo con los adjetivos porque de los burgueses nadie está diciendo

“literatura burguesa”, nadie dice “literatura de blancos”, es literatura. Pero, en cambio, el de la

villa que escribe es “literatura periférica”, “literatura marginal”, literatura siempre con un

adjetivo al lado. No, es literatura, punto y aparte. Si no que aclaremos todo, ¿no? A cada

escritor y escritora que le aclaren al lado: “escritor blanco”, “escritor clase media”, “escritor

burgués”. Pero las aclaraciones son siempre para el mismo segmento social.

Al escribir, ¿tomas como base algún texto filosófico o literario?

CG: Sin duda, ¡obvio! Uno siempre se inspira, siempre se mejora, se enriquece, se da cuenta

de los errores, de que en tal línea podía haber sido mejor, gracias a los libros que inscriben

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nuestros y nuestras semejantes. Sin duda, no hay que perder nunca de vista eso. Y siempre lo

que escribió otro está mejor que lo que escribió uno, siempre lo dice mejor otro que uno

mismo.

¿Participas en talleres de lectura con los pibes de tu barrio? ¿Cuáles son las actividades

en las que está involucrado?

CG: Sí, yo siempre trato de apoyar a los adolescentes y los jóvenes de la villa porque son los

más perseguidos por el sistema, son los que directamente pierden la vida, son las ofrendas al

Baal moderno. Cómo no me va a preocupar si son ellos mismos quien era yo en el pasado,

¿no? Y si a mí, en el camino, no se aparecía alguien, yo no estaría acá. Yo solo no hubiese

conseguido nada. Entonces trato de replicar lo que pasó conmigo. No es fácil, pero por suerte

me responden. Son encuentros, yo no soy profesor, no me recibí de nada. Entonces son

encuentros donde yo transmito lo que siento y se celebra un debate, se celebra un intercambio.

Me interesa encontrarme con esos jóvenes con los que nadie quiere encontrarse, con los que

las personas se cruzan de vereda, con los que las personas festejan cuando se les asesinan. Son

a esos los que más tengo ganas de poder encontrarlos.

¿Acompañas la producción literaria de escritores villeros argentinos de su generación?

CG: ¡Siempre! Como dije anteriormente, celebro, festejo, difundo... y es un hermano. Hay

que equilibrar la balanza de la justicia poética. Hay que tratar de equilibrarla, aunque sean

gramos.

Además de Ferréz, quien conociste en un evento en 2012, invitado por el colectivo ¿Todo

piola?, ¿conoces a otros escritores de Brasil?

CG: Estás bien informada (risos). Sí, sé de algunos movimientos poéticos de São Paulo, he

tenido algún contacto. [Sé] de otros jóvenes que armaron una biblioteca en una favela de Rio

de Janeiro, que es muy conocido su caso, no me acuerdo el nombre. Me ha servido saberlo, lo

que pasa es que Brasil es un continente en sí mismo, pero sé que el arte ya tenía muchas

manifestaciones muy potentes en sus favelas. Y me han servido, en primer lugar, de

inspiración, de saber que uno no está solo, que hay en todo lugar del mundo personas

resistiendo, que no es total el dominio del capitalismo, nunca va a ser total.

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¿Podrías comentar sobre la idea de “la construcción de la villeritud”, nombre de la

sección del evento Cine Migrante (09/2017) del cual hiciste parte?

CG: La villeritud, en realidad, es una forma de retomar un concepto que crearon otros, que es

el de negritud, creado por [Aimé] Cesaire y por [Léopold] Senghor. Cesaire que André Breton

ha dicho que era el poeta más importante de habla francesa sin ser francés, mejor que todos

los franceses juntos. Ellos inventan el concepto de negritud para darle todo ese marco

occidental, racional, como queramos llamarlo, positivista mezclado con todo lo propio de la

cultura afro, [para] reivindicar la belleza de lo afro, pero filosofando y dándole un marco

pesado y académico. Bueno, yo lo traigo acá porque creo que, en Argentina, el villero es lo

que es el negro en las sociedades como Estados Unidos. Yo lo traigo desde ahí y le cambio

algo, más que nada, semántico. En realidad [el concepto] es de otros, simplemente lo traduzco

a la contemporaneidad de la sociedad argentina. Para todos los demás, la villeritud es

sinónimo de mal, de feo; para mí es sinónimo ni de bueno ni de malo, sino de ser un elemento

más [en la sociedad].

En una de las entrevistas sobre tu película “Exomologesis”, comenta que se trata de una

relectura, una adaptación del término utilizado por [Michel] Foucault. ¿Se refiere a una

lectura reciente o ya aparecía problematizado en tu poesía?

CG: Sí, yo empecé leyendo a Foucault en la cárcel y la primera aplicación de su filosofía fue

darme cuenta de la presencia y el objetivo que tienen la Psicología, los psicólogos y la

Psiquiatría en la cárcel, la ciencia de la mente humana, que busca explicar el delito que

comete un pobre a partir de una supuesta patología mental. Y no hay ninguna patología, dice

Foucault y después dice también [Loïc] Wacquant, uno de los discípulos de [Pierre] Bourdier.

Siempre vi que la jerarquía característica de la iglesia se repetía en otros ámbitos de la

sociedad, que las entidades celestiales las creemos hallar en muchas cosas que creemos ateas

o agnósticas. Entonces, desde ahí yo traté de crear en Exomologesis un cine foucaultiano, no

sólo desde el contenido, sino también desde la forma: la forma de filmar la película, dónde se

pone la cámara, cómo actúan, se comportan y se relacionan los personajes; las relaciones de

poder invisibles, que no se explican solamente desde la política, la empresa o el dinero, sino

que subyacen en todas las clases sociales y que son ya inherentes a la condición humana,

[que] sea la identidad agregada a lo que venga después de nacionalidad, de clase.

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¿Qué papel juega en su formación y en su discurso la recepción de lo masivo, es decir, de

la tele, las historietas, la música popular, el hip-hop y el periodismo que se vuelca a la

realidad de las villas y del conurbano?

CG: ¿Qué pienso sobre lo masivo? A ver si he entendido la pregunta... Si yo veo el televisor

diez minutos, me lleno de rabia, ahí sí tengo ganas de escribir algo inmediatamente. La rabia

del discurso televisivo sobre la gente de la villa me produce una rabia y una rebelión absoluta.

Creo que hay que usar las herramientas que sean necesarias para destruir los discursos

hegemónicos. Si a alguno le sirve el rap, bienvenido sea, si a otro le sirve la historieta,

bienvenida sea. Todo medio para llegar a un fin contrahegemónico lo celebro.

¿Qué tipo de diálogos crees que establecen los críticos y la universidad con un autor que

sale de una villa?

CG: No se puede generalizar, pero creo que el sentido del gusto nos explica muy bien cómo

se construye lo legítimo, como también lo ha dicho Foucault y otros. Cómo todo lo que es la

academia tiene esa bendición santa, sagrada de decir qué es y qué no es. Pero también la

universidad es un espacio donde surge la ruptura, el pensamiento crítico, las masas de

estudiantes que pueden generar cambios en la sociedad. La universidad es esa dualidad, es ese

juego de espejo donde están los que legitiman, el poder de lo que avala y lo que rechaza, pero

también es donde surgen los que rompen. Pero creo que yo no tenía que decirlo, cómo ven

ellos los villeros hay que preguntarles a ellos.

¿Cómo recibe el mundo editorial a un autor de las periferias?

CG: No sé, es que son preguntas muy abiertas, pero creo que basta entrar a cualquier librería y

ver cuántos autores hay de la villa, y yo creo que ninguno. Yo tuve suerte, fue un

encadenamiento de azares, no fue nada lineal; un amigo con otro amigo, uno que es autor y

escribió al editorial. No es que las editoriales anden interesadas, es que a veces en la sociedad

existen muchos mecanismos que alienten, fomenten la existencia de una literatura proveniente

de las villas. Creo que es algo inexistente directamente, que no existe casi, es muy escaso.

¿Cómo reciben las editoriales la literatura villera si todavía ni existe esa literatura? Somos

muy pocos para decir que es un movimiento parecido a algo, por lo menos, que sea grupal

siquiera, es muy marginal, es muy esporádico. Entonces, para que exista el segundo paso,

primero tiene que estar firme el primero. Para llegar a “¿qué hace la editorial con ‘tal cosa’?”,

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hay que llegar primero a la segunda parte [de la pregunta]. La sociedad no espera que un

villero escriba, no espera, no quiere, no le gusta y hace todo lo posible para que no pase.

Y cuando pasa eso, ¿qué piensas que se espera, que se escriba siempre sobre la villa?

CG: Se espera que caigan ciertos clichés morales. Se espera que agradezca, que pida perdón,

que agradezca la posibilidad que tuvo de poder estudiar. Se les pide un montón de cosas que a

los otros no. Hay un nivel de exigencia de buscar el mínimo detalle, el mínimo error; de

siempre encontrar un “pero”; de subestimación también, hay una sospecha antropológica –

como la llamo yo -, nunca se lo va a ver como se lo ve a un escritor blanco burgués, ¡nunca!

Así se lo avale, así pase, así trascienda, nunca se lo va a ver como un igual. Se lo captura y se

lo quiere transformar en un fenómeno, en algo único, en algo medio pop, exótico, pero nunca

algo parejo, simple, siempre se lo va a cargar de algo.

* * *