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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Laboratório de História Ambiental Monografia de fim de curso É da roça! História Ambiental dos caiçaras da Península da Juatinga/RJ e sua relação com a conservação da natureza.

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Universidade Federal do Rio de JaneiroInstituto de Filosofia e Ciências Sociais

Laboratório de História Ambiental

Monografia de fim de curso

É da roça!

História Ambiental dos caiçaras da Península da Juatinga/RJ e sua relação com a conservação da natureza.

Tainá Miê Seto Soares DRE101142254

Orientador: José Augusto PáduaNovembro de 2006

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No lugar que havia mata, hoje há perseguição. Grileiro mata posseiro, Só pra lhe roubar seu chão. (...) Zé da Nana tá de prova, naquele lugar tem cova Gente enterrada no chão:1

1 A Saga da Amazônia, música de Vital Farias.

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Dedico esse trabalho ao meu pai matuto, Antonio Castor, que desde cedo me levou pelos caminhos das matas e das histórias dos antigos da roça. E a minha mãe Célia, que me ensinou a amar os matutos, em suas intermináveis conversas nos povoados de nossas viagens.

Agradecimentos:

São tantos agradecimentos desse tão simples texto, que como monografia mais parece um projeto de vida. Anos se passaram desde o dia em que conversando com Seu Maneco, veio a primeira idéia de fazer algum trabalho sobre os caiçaras e sua terra. Descobri que era pra mim tão prazeroso escrever sobre os caiçaras, que não conseguia terminar, inventando sempre uma correção ou reflexão. Foram tantas pessoas envolvidas nesse trabalho, que realmente há muito, este transcendeu seu viés acadêmico, sem deixar de respeitá-lo.

Agradeço por ordem de chegada no projeto, porque todos foram fundamentais. Então começo pelo Seu Maneco, da Praia do Martim de Sá, que me mostrou um universo de luta ambiental que até então não conhecia de perto, a luta das populações tradicionais. Agradeço a querida amiga Tadzia Maya, que foi quem me mostrou que não poderia ser outro o assunto de minha monografia final. À Paloma Sol Hertz, Marcelo Bueno e Carolina Carvalho, que me acompanharam na longa trilha de 10 dias na pesquisa de campo, pois sem eles não haveria material nenhum.

Ao Bruno Pacheco de Oliveira, que além de editar meu documentário sobre os caiçaras, foi um apoio emocional sem o qual teria desistido do projeto. Também agradeço ao João Pacheco de Oliveira Filho, que na parte da história indígena foi um incentivador, num momento em que achava já que este era um tema proibido. Agradeço também a Mariza Carvalho Soares, que me emprestou sem me conhecer pessoalmente, sua câmera mini-dv nova, com a qual terminei as filmagens.

Agradeço a todos os caiçaras da Península da Juatinga, que me levaram em seus barcos, me ofereceram suas casas, me contaram muitas histórias e que com o tempo se tornaram grandes amigos. Seu Altamiro, Dona Jandira, Dona Maria, Dona Dica, Seu Filhinho, aos jovens da Praia Grande, Dona Tetéia do Pouso, que foi como uma mãe pra mim, ao Gilson, grande contador de causos e seus amigos Às crianças do Pouso, a maravilhosa família do Careca e da Dona Maria da Ponta da Juatinga, seus filhos que me contaram muitas histórias de assombração, Seu Olímpio, um sábio caiçara e seus vários feijões. Seu Aplígio do Cairuçu das Pedras, o França cesteiro, seu irmão Jango, Seu Domingo da Ponta Negra, Seu Nelson, Dona Dilma, agradeço com muito amor à todas as comunidades e à todos os entrevistados. Com eles aprendi muitas coisas, como prever o tempo através das estrelas, fazer peixe com banana e o gosto do macucu, mas também aprendi infinitas coisas que não conseguem ser expressas com palavras e que mudaram muitas maneiras de me relacionar e ver o mundo.

Às pessoas da ONG Verde Cidadania, que sempre foram muito parceiras, e que me explicaram exaustivamente os detalhes das leis, dos processos e de seu relacionamento com a comunidade. Agradeço também pelo exemplo de luta da Thati, da Flavinha, do Léo, do Marcio e do Manuel, que sempre me apoiaram muito. Agradeço também à Dani, a Laura, ao Martim e à Lucia Cavalieri que também foram muito importantes no aprofundamento das questões pesquisadas.

Agradeço muito aos meus avós, aos meus amigos e irmãos que dividiram comigo as aventuras e questionamentos dessa pesquisa; o Carlos Henrique me ajudando a datilografar, o Kenzo me ajudando a diagramar, a Ádjoa repassando às organizações internacionais os protestos caiçaras. Meus amigos foram as vigas que me sustentaram durante todo esse difícil processo de estudar a luta política de uma cultura que depende de seu ambiente para sobreviver enquanto povo caiçara. Entraram nas lutas e estamos formulando juntos novas propostas para um relacionamento mais harmônico entre urbanidade e conhecimento tradicional na Península da Juatinga.

À Leila Maria Capella, que me ajudou na organização mental e física do texto e a quem devo muito a conclusão do trabalho.

Por fim agradeço muito ao meu orientador, José Augusto Pádua, que com o início de seu Laboratório de História Ambiental, me proporcionou continuar na graduação sem ter que me transferir para outro curso que levasse mais em conta o ambiente e suas interações com os homens. Agradeço também pela sua paciência e perseverança em me ouvir e compreender.

Espero que toda essa pesquisa possa contribuir para a rede de trabalhos que recentemente vem estudando e se relacionando com comunidades tradicionais e seus ambientes e que buscam uma interação mais viva entre a academia e as comunidades pesquisadas.

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Índice:

Introdução teórico metodológica.......................................................................... 06

Capítulo I - A região, o homem e a natureza............................................. 27

Capítulo II - A vida caiçara e sua herança indígena................................... 45

Capítulo III - Ambiente e resistência: memória ambiental, segurança alimentar, turismo e luta pela terra.......................................... 66

Conclusão ........................................................................................................... 86

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In t rodução Teór i co Metodo lóg ica

“A História Ambiental está se convertendo em uma disciplina aplicada que, rompendo com a impronta academicista e eruditos que sempre tiveram os relatos históricos; busca e propõe soluções para a crise ambiental atual ou coopera com outras disciplinas para encontrá-las.”2

O tema des ta pesqu isa é a h i s tó r ia das re lações

es tabe lec idas en t re a popu lação ca içara da Pen ínsu la da

Juat inga e o me io amb ien te em que v i vem. A Pen ínsu la da

Juat inga é uma reg ião l i to rânea de d i f í c i l acesso , na d iv isa en t re

os Es tados do R io de Jane i ro e São Pau lo . É in te ressante

observar que, nessa reg ião , são os p rocessos h is tó r icos que

fazem com que, a lém de um ra ro ecoss is tema de mata a t lân t i ca

conservado, se encon t re uma express iva cu l tu ra loca l .

Para a H is tó r ia Amb ienta l , essa reg ião apresen ta d i ve rsas

ca rac ter í s t i cas de in te resse : a lém das prá t i cas comuni tá r ias de

o r igem ind ígena e a lu ta pe la posse da te r ra , ex is te a ques tão da

á rea se r uma Reserva Eco lóg ica e uma Área de Pro teção

Ambien ta l . As fo rmas de in te ração homem-natureza são o ponto

de par t i da para a aná l ise h i s tó r ica da v ida ca iça ra .

2 CIRCULAR #1 - março 2005 - III SIMPOSIO LATINOAMERICANO E CARIBEÑO DE HISTÓRIA AMBIENTAL, III ENCONTRO ESPANHOL DE HISTORIA AMBIENTAL “História Ambiental, um instrumento para sustentabilidade” Carmona (Sevilha), 6,7 e 8 de abril de 2006

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A P r a i a G r a n d e d a C a j a í b a é h o j e o p r i n c i p a l f o c o d e c o n f l i t o e n t r e

c a i ç a r a s e g r i l e i r o s .

A H is tó r ia Amb ien ta l a pa r t i r da década de 70, quando

começou a se es t ru tu rar como campo de pesqu isa acadêmica já

contava com uma b ib l i ogra f ia . Es ta apesar de não te r essa

nomenc la tura , já t raba lhava a t ravés da perspec t i va da re lação

homem-na tu reza . Os v ia jan tes na tu ra l i s tas , as pesqu isas

modern is tas sobre cu l tu ra popu la r e tan tos ou t ros pesqu isadores

como Sérg io Buarque de Ho l landa , Antôn io Când ido e G i lbe r to

Fre i re .

Na Amér ica La t ina vem se desenvo lvendo ma is

contemporaneamente pesqu isas que abarcam aná l i ses sobre a

cu l tu ra e o empobrec imento , que segundo Her re ra , a lém da

d iscussão sobre a des t ru ição da natureza permi tem uma “ v i s ã o

m a i s g l o b a l , c o m u m a n o ç ã o m a i s c l a r a d e q u e f a z e m o s p a r t e d a

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h u m a n i d a d e . ” 3 Essas pesqu isas v isam c r ia r a poss ib i l i dade de

in teg ra r duas es fe ras h i s to r icamente d i co tômicas que são as

c iênc ias na tura is e as soc ia i s .

Den t ro do tema pesqu isado, esse v iés de aná l i se que

percebe a cu l tu ra como fa to r impor tan te para a pesqu isa

ambienta l fo i ap ro fundado nas h ipó teses . A pr ime i ra focou nos

ca iça ras como cu l tu ra lmente e b io log icamente descenden tes de

ind ígenas , possu idores de um e tnoconhec imento que pode se r

u t i l i zado na conservação e recompos ição amb ienta l das á reas

onde v i vem. A segunda pesqu isou como os fa to res adv indos da

u rban idade: g r i lagem, p ro tes tan t i smo, l e i s amb ien ta is e tu r i smo,

fo ram h is to r i camente agen tes de degradação ambien ta l na

pen ínsu la . A ú l t ima ana l i sou como recen temente vem se fo r jando

um es te reo t ipo de que os ca iça ras são um povo exc lus ivamente

pescador . Ignorando, mu i tas vezes in tenc iona lmente , suas fo r tes

ra ízes agr í co las .

O tema da p resente pesqu isa fo i sendo desenvo lv ido a

par t i r do p r ime i ro conta to com um l íde r na tura l da comunidade

ca iça ra , Seu Manoe l dos Reméd ios . Ún ico morador da Pra ia do

Mar t im de Sá, sua lu ta pe la posse da te r ra mot i vou a fo rmação

de uma ONG, a Verde C idadan ia e a cons t rução de uma rede de

a l i ados u rbanos . A par t i r do resu l tado pos i t i vo desse mov imento ,

o caso de Seu Maneco, como é conhec ido , passou a se r um

exemplo mu i to respe i tado den t ro da comun idade ca içara . O

p r inc ipa l e lemento de in te resse em re lação a Seu Maneco são

suas h is tó r ias sobre a fauna , a f l o ra , a po l í t i ca , a l u ta pe la te r ra ,

a eco log ia , a é t ica e o modo de v ida ca iça ra .

3 DINIZ, Laura. O viés social marca história ambiental na América Latina. Entrevista com Guillermo Castro Herrera. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: PNUD Brasil. Sítio http://www.pnud.org.br/meio_ambiente/reportagens/index.php?id01=413&lay=mam

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S . M a n e c o s o b r e a s r a í z e s d a m a n g u e i r a q u e p l a n t o u q u a n d o j o v e m .

Após a primeira viagem de campo, foi constatada a carência de fontes

primárias provocada principalmente pelo impacto do protestantismo. E, ao retornar

à cidade, soube-se que o Instituto Estadual de Florestas – IEF/RJ havia destruído

ranchos de pesca na Praia Grande da Cajaíba. A ONG Verde Cidadania, que já

atuava na região, elaborou uma proposta de ação civil pública, via internet, que

conseguiu 700 assinaturas e denunciou a ação violenta do IEF. A partir desse

episódio, fez-se necessário ampliar o alcance da pesquisa. O foco, que era

inicialmente o estudo da família dos Remédios, da Praia do Martim de Sá, passou

a ser toda a região da Península da Juatinga.

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Ass im, tema e o ob je to des ta pesqu isa inserem-se no

domín io da H is tór ia Ambien ta l . Es ta , segundo Wors te r , “ n a s c e u

( . . . ) d e u m o b j e t i v o m o r a l , t e n d o p o r t r á s f o r t e s c o m p r o m i s s o s p o l í t i c o s ,

m a s , à m e d i d a q u e a m a d u r e c e u , t r a n s f o r m o u - s e t a m b é m n u m

e m p r e e n d i m e n t o a c a d ê m i c o q u e j á n ã o t i n h a u m a s i m p l e s o u ú n i c a a g e n d a

m o r a l o u p o l í t i c a p a r a p r o m o v e r . S e u o b j e t i v o p r i n c i p a l s e t o r n o u

a p r o f u n d a r o n o s s o e n t e n d i m e n t o d e c o m o o s s e r e s h u m a n o s f o r a m ,

a t r a v é s d o s t e m p o s , a f e t a d o s p e l o s e u a m b i e n t e n a t u r a l e , i n v e r s a m e n t e ,

c o m o e l e s a f e t a r a m e s s e a m b i e n t e e c o m q u e r e s u l t a d o s . ” 4 Também na

op in ião desse au to r , “ o h i s t o r i a d o r a m b i e n t a l t e m q u e e n f r e n t a r o

f o r m i d á v e l d e s a f i o d e e x a m i n a r a s i d é i a s c o m o a g e n t e s e c o l ó g i c o s ” . 5

Diegues e Nogara , em seu l i v ro O Nosso Lugar V i rou

Parque , sobre o p rocesso de c r iação da á rea pro teg ida do Saco

do Mamanguá , que per tence à Reserva da Jua t inga , i n ic ia seu

tex to ressa l tando : “ ( . . . ) h á a n e c e s s i d a d e d e s e c o m e ç a r a f a z e r , n o

B r a s i l , d e f o r m a s i s t e m á t i c a , a h i s t ó r i a e c o l ó g i c a n ã o s o m e n t e a n í v e l

n a c i o n a l , m a s t a m b é m r e g i o n a l e a t é l o c a l . E s s a h i s t ó r i a e c o l ó g i c a c o m o

p r o p o s t a p o r W o r s t e r ( 1 9 8 8 ) n ã o d e v e s e r s i m p l e s m e n t e a h i s t ó r i a d o s

c i c l o s e c o n ô m i c o s , m a s , s o b r e t u d o a h i s t ó r i a d a s r e l a ç õ e s c o m p l e x a s ,

m a t e r i a i s e s i m b ó l i c a s , q u e o s h o m e n s , a o l o n g o d o t e m p o h i s t ó r i c o ,

d e s e n v o l v e r a m c o m o m u n d o n a t u r a l e c o m o s o u t r o s h o m e n s . ” 6

O es tudo das popu lações ru ra is no Bras i l , a pa r t i r dos

c ron is tas co lon ia i s , passando pe los na tu ra l i s tas , a té chegar às

C iênc ias Soc ia i s do séc .XX, sempre buscou cap ta r as

pecu l ia r idades e os modos de v ida dos g rupos hab i tan tes do

in ter io r do país : caboc los , r ibe i r inhos , matu tos , roce i ros ,

ca ip i ras , e ou t ras denominações que ho je se fundem no conce i to

de popu lações t rad ic iona is ou na t i vas , ao que se jun tam os

ind ígenas , qu i lombo las e ca iça ras . Um dos mais re levan tes

es tudos do séc . XX sobre popu lações ru ra is é o l i v ro Parce i ros 4 WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991. p.025 idem6 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12.

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do R io Bon i to , de An tôn io Când ido , um dos p recursores e base

para o desenvo lv imen to de d iversas re f lexões sobre a

ru ra l i dade . O ca ip i ra , como homem do campo, de p rá t i cas

a rca icas , é abordado de fo rma comp lexa e ho je a lguns autores

cons ideram que “ a c u l t u r a c a i ç a r a é u m a s u b c u l t u r a d a c u l t u r a c a i p i r a ,

n ã o s i m p l e s m e n t e p o r s e c o n s t i t u i r n u m a v a r i a ç ã o p a r a l e l a , m a s ( . . . )

t a m b é m c o n s i d e r a m o c a i ç a r a c o m o u m a e x p r e s s ã o r e g i o n a l d o c a i p i r a d o

i n t e r i o r ” . 7

Alguns au to res d i scordam, a f i rmando que os ca iça ras

possuem iden t idade p rópr ia . Nas en t rev is tas rea l i zadas duran te

a pesqu isa de campo, os in fo rmantes comumente se re fe r iam aos

ca ip i ras quando quer iam expressar a d i fe rença en t re a v ida nas

c idades e a v ida na roça, a r t i cu lando ca iça ras e ca ip i ras como

“p r imos” cu l tu ra is .

É a inda nascen te o es tudo das l igações en t re o

e tnoconhec imento e o fazer c ien t í f i co fo rma l . Na h is to r iog ra f ia ,

o tema popu lações t rad ic iona is não aparece em nenhum tóp ico

pedagóg ico , e a pesqu isa sobre essas popu lações permaneceu

como ob je to de ou t ras c iênc ias soc ia i s , como a An t ropo log ia , a

Geogra f ia e a Soc io log ia . Apesar d isso , e a par t i r dos novos

enfoques t raz idos pe la H is tó r ia Amb ien ta l , esses g rupos

popu lac iona is de ín t ima re lação com o me io amb ien te podem ser

abrang idos pe los es tudos acadêmicos . Sendo fundamenta l a

re fe rênc ia dos t raba lhos p ione i ros das ou t ras á reas . Segundo

Wors te r , “ à m e d i d a q u e o s h i s t o r i a d o r e s e n f r e n t a m e s s a s q u e s t õ e s

e l e m e n t a r e s r e f e r e n t e s a f e r r a m e n t a s e s o b r e v i v ê n c i a , l o g o p e r c e b e m q u e

a q u i t a m b é m o u t r a s d i s c i p l i n a s a n d a r a m t r a b a l h a n d o , e h á m u i t o t e m p o .

E n t r e e l a s e s t á a d i s c i p l i n a d o s a n t r o p ó l o g o s , c u j o s t r a b a l h o s o s

h i s t o r i a d o r e s a m b i e n t a i s t ê m l i d o c o m g r a n d e i n t e r e s s e . E l e s c o m e ç a r a m a

p r o c u r a r n o s a n t r o p ó l o g o s c h a v e s p a r a p o n t o s c r u c i a i s d o q u e b r a - c a b e ç a s

7 ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000.

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e c o l ó g i c o : q u a l a m e l h o r m a n e i r a d e c o m p r e e n d e r a r e l a ç ã o d a s c u l t u r a s

m a t e r i a i s h u m a n a s c o m a n a t u r e z a ? ” 8

A perspec t i va da H is tó r ia Amb ien ta l como poss ib i l i dade de

novas abordagens é perceb ida de fo rma c la ra nos tex tos que

embasaram teor icamente a monogra f ia . O v iés agroeco lóg ico da

h is tó r ia , e Para fazer His tó r ia amb ien ta l , ambos de Dona ld

Wors te r , e A Formação da Agricultura Brasileira de José Augus to de

Pádua , demons t ram, como d iz Wors te r , que “ a H i s t ó r i a A m b i e n t a l é ,

e m r e s u m o , p a r t e d e u m e s f o r ç o r e v i s i o n i s t a p a r a t o r n a r a d i s c i p l i n a d a

H i s t ó r i a m u i t o m a i s i n c l u s i v a n a s s u a s n a r r a t i v a s d o q u e e l a t e m

t r a d i c i o n a l m e n t e s i d o . ” 9

Uma das ma is s ign i f i ca t i vas p roduções b ib l i og rá f icas na

á rea das C iênc ias Soc ia i s é a do Núc leo de Es tudos em Áreas

Úmidas da USP, p r inc ipa lmente a t ravés do ant ropó logo Car los

D iegues . Es te desenvo lve uma in tensa p rodução b ib l iog rá f ica ,

inse r indo nos me ios acadêmicos a p rob lemát i ca das un idades de

conservação e popu lações t rad ic iona is . Na sé r ie de

Enc ic lopéd ias Ca içaras , c inco a té agora , sobre o tu r i smo, a

conservação, a h is tó r ia , a memór ia e as fes tas , os temas são

ana l isados por d ive rsos pesqu isadores , de d iversas á reas do

conhec imento , a lém de en t rev is tas com ca iça ras , i nc lus ive Seu

Maneco , do Mar t im de Sá . Essa aná l ise é impor tan te na geração

de um arcabouço teó r i co sobre o tema, re t i rando-o do

obscuran t i smo e poss ib i l i tando , inc lus ive , conseqüênc ias

po l í t i cas . Ent re tan to , a lgumas c r í t i cas têm s ido fe i t as ao v iés

metodo lóg ico que , segundo a lguns autores como Cr i s t i na Adams,

é ca ren te de r igo r c ien t í f i co acadêmico , p r inc ipa lmente na

u t i l i zação de conce i tos u l t rapassados . Apesar d i sso , as

conseqüênc ias a té in ternac iona is do l i v ro O Mi to Moderno da

8 WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991.9 idem

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Natureza In tocada fo ram um d iv iso r de águas no processo de

deba te sobre a c r iação de á reas pro teg idas e suas

conseqüênc ias po l í t i cas e cu l tu ra is pa ra as popu lações na t i vas .

A b ib l i og ra f ia u t i l i zada fo i p r inc ipa lmente a que t ra ta do

tema re feren te à H is tó r ia Amb ien ta l , popu lações t rad ic iona is ,

cu l tu ra popu lar e un idades de conservação . As pesqu isas

acadêmicas , monogra f ias e teses de mes t rado sobre a Reserva

Eco lóg ica da Jua t inga fo ram fundamenta is . A tese de mes t rado

de Laura S inay sobre o eco tu r i smo em Mar t im de Sá , a vas ta

pesqu isa sobre a reca tegor ização da reserva fe i ta po r Lúc ia

Cava l ie r i e a d i scussão teo r i camente apro fundada fe i ta po r

F láv ia O l i ve i ra Te ixe i ra fo ram nor teadoras não apenas como

es tudos acadêmicos , mas , também porque suas autoras

par t i c iparam at ivamente dos p rocessos po l í t i cos da pen ínsu la .

Esse fa to se re f le t i u nos t raba lhos e enr iqueceu as aná l i ses .

Já o l i v ro A Fer ro e Fogo , de War ren Dean , fo ram ma is

t raba lhados no sen t ido da vas ta pesqu isa que represen tam sobre

o tema, e menos pe las abordagens metodo lóg icas .

P r inc ipa lmente o tex to de War ren Dean que , apesar da p rec iosa

pesqu isa documenta l , e do amp lo panorama sobre a ocupação da

Mata A t lân t ica , a inda se p rende a mu i tos esquemas de defesa de

uma pos ição bem de f in ida , em seu caso o ca rá te r des t ru ido r do

homem. Seu rad ica l i smo des toa da va lo rosa pesqu isa e de ixa

por fa la r a lguns tóp icos impor tan tes como as poss ib i l idades e

exper iênc ias de equ i l í b r io homem – natureza , bem como da

teo r ia sóc io -amb ien ta l i s ta de que o homem não é uma en t idade

separada de seu me io e v i ce-ve rsa .

Sobre o tema espec í f i co da h is tó r ia ca iça ra , o l i v ro Lavoura

Ca iça ra , de Car los Borges Schmid t , de 1958 , é um documento

p rec ioso. Nes te l i v ro , o au to r ana l i sa as p r inc ipa is fo rmas de

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produção ca iça ra , l evan tando sua or igem ind ígena. Es ta aná l i se

é c ruc ia l pa ra a compreensão do tema porque abrange

impor tan tes ques tões mui to debat idas a té ho je quando se t ra ta

do tema ca iça ra .

A metodo log ia de pesqu isa u t i l i zada, a lém da inves t igação

b ib l iog rá f i ca , fo i a de pesqu isa de campo par t i c ipan te , com

ent rev is tas l i v res , pe rgun tas -chave, ma is para conversa do que

para o ques t ionár io . A inserção da pesqu isa fo i a fe t i va , método

que poss ib i l i tou um ma io r acesso a in fo rmações res t r i tas . Foram

os in formantes ma is p róx imos dos laços de amizade que

fo rneceram dados comp lexos , como a loca l izações dos s í t i os

a rqueo lóg icos e os p rocessos de g r i lagem. Os s í t ios

a rqueo lóg icos são ce rcados de tabus comun i tá r ios , que

res t r i ngem o acesso, a lém de se r assun to pouco comentado com

“es t ranhos” ; também a mor te de moradores por causa de b r igas

de te r ra e lendas também são d i f í ce is de se rem nar radas ,

p r inc ipa lmente pe lo impac to do p ro tes tan t i smo. Os moradores

ma is an t igos fo ram os ma is p rocurados , buscando mapear

l i gações ent re moradores , an t igas h is tó r ias e lugares out ro ra

hab i tados .

En t re tan to , moradores de todas as idades fo ram

ent rev is tados - c r ianças , ado lescen tes e adu l tos jovens - ,

p r inc ipa lmente no in tu i to de perceber as d i fe renças e

aprox imações nas p rá t i cas produ t i vas e o conhec imento

t rad ic iona l das d i fe ren tes idades . São poucos ent re os jovens os

que va lo r izam as a t i v idades t rad ic iona is , fa to que se inver te nas

c r ianças , que têm in teresse pe los b r inquedos , c i randas e

h is tó r ias .

Agen tes u rbanos também fo ram pesqu isados , no sen t ido de

es tabe lecer v isões d i fe renc iadas das ques tões da reg ião , bem

como sua a tuação . Os responsáve is l ega is pe la reserva também

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hav iam s ido esco lh idos para serem ent rev is tados . E , como

anter io rmente todos os pesqu isadores de á reas soc ia i s que

ped i ram au to r i zação para suas pesqu isas t i ve ram acesso

negado, a lém de ent rarem para a l i s ta de ameaçados de mor te ,

p re fer iu -se não con tac ta r os órgãos lega is , po r rece io de

represá l ias dos g r i l e i ros , que mantêm com aque les ó rgãos uma

rede de in fo rmação e ação .

As en t rev is tas dos t raba lhos de campo fo ram os f ios

condu to res da pesqu isa . Os temas pesqu isados com os

moradores loca is focaram a memór ia da h is to r ia l oca l , dos

conhec imentos botân icos , de fauna, c l imá t i co , cu l i ná r io , e

ou t ros . Mu i tas lendas e causos remontam an t igas lendas

co le tadas por Câmara Cascudo e ou t ros e tnógra fos ,

ev idenc iando uma herança ind ígena e co lon ia l . As mús icas , as

b r incade i ras e a esp i r i t ua l i dade fo ram mapeadas , permi t i ndo

aná l ises ma is m inuc iosas sobre o impac to das t rans formações

cu l tu ra i s con temporâneas .

A p rodução de um documentá r io , com imagens d ig i ta is

captadas duran te as en t rev is tas fo i fundamenta l na conso l idação

da p ropos ta de in te ração ent re a pesqu isa acadêmica e a

comun idade pesqu isada . Pr inc ipa lmente porque a p ropos ta

in i c ia l de t raba lho de conc lusão do Curso de g raduação hav ia

s ido um v ídeo documentá r io sobre a h i s tó r ia dos ca iça ras da

Juat inga . Embora ta l p ropos ta tenha s ido negada , o v ídeo fo i

conc lu ído antes des ta monogra f ia e abr iu o I I Fes t i va l de C inema

Ca iça ra , ocor r ido na Pra ia do Sono , dent ro da pen ínsu la , em

dezembro de 2005 .

Na pesqu isa buscou-se também um con jun to de p roduções

aud iov isua is , como os v ídeos fe i tos sobre a Pra ia de Mar t im de

Sá e a famí l ia dos Reméd ios , o v ídeo sobre a puxada de canoa,

o documentá r io sobre os assov ios que chamam os an ima is , e

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out ros v ídeos impor tan tes . Sobre o processo de expu lsão dos

moradores da Pra ia Grande da Ca ja íba , como o " Expu lsos do

Para íso" , "Vest íg ios" e out ros sobre a Pra ia do Sono , Pon ta

Negra e sobre a expu lsão dos moradores da T r indade , como o

f i lme Vento Cont ra . Nes te documentá r io da década de 70 , o

p rocesso v io len to mov ido pe lo gr i l e i ro G ibra i l Tannus con t ra os

ca iça ras moradores da Pra ia da Tr indade é captado em imagens

que t rans fo rmam esse documentá r io em uma impor tan te fon te

h is tó r i ca . Out ros aspec tos também são t ra tados por esses

documentá r ios como o impac to do tu r ismo, a p ropos ta de

aber tu ra de uma es t rada a té a Pra ia do Sono e o

e tnoconhec imento dos moradores .

As pesqu isas sobre as re lações en t re popu lações

t rad ic iona is e á reas p ro teg idas têm evo lu ído no sen t ido de

desvendar os in te resses que mui tas vezes es tão imp l íc i tos sob a

bande i ra da p ro teção da na tu reza. In te resses econômicos ,

ideo lóg icos e po l í t i cos mu i tas vezes são envo l tos em uma capa

de a rgumentos ambienta l i s tas , ap rove i tando-se do market ing

re lac ionado à impor tânc ia da p ro teção da na tu reza , causada

pe la c r i se ambienta l do sécu lo XXI . Mui tas vezes esses fa l sos

in teresses p reservac ion is tas causam danos a inda ma iores às

á reas que se p ropõem a p ro teger .

Há conseqüênc ias po l í t i cas nas pesqu isas , j á que es tas

geram dados que mu i tas vezes con t ras tam com o senso comum

no qua l fo i baseada a c r iação das á reas pro teg idas . Essa

perspec t i va po l í t i ca da p rá t ica acadêmica re lac iona-se à aná l i se

foucau l t iana de que todos os corpos e ações têm poder . Para

Foucau l t , há um mi to em re lação à ausênc ia de poder en t re

saber e c iênc ia . Para e le , imp l í c i t o em todo saber es tá uma lu ta

de poder , e o poder po l í t i co não es tá ausen te do saber , pe lo

cont rár io , e le é fo r jado com o saber . Em suas pa lav ras , “ p o d e r e

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s a b e r e s t ã o d i r e t a m e n t e i m p l i c a d o s ; n ã o h á r e l a ç ã o d e p o d e r s e m

c o n s t i t u i ç ã o c o r r e l a t a d e u m   c a m p o d e s a b e r , n e m s a b e r q u e n ã o s u p o n h a

e n ã o c o n s t i t u a a o m e s m o t e m p o r e l a ç õ e s d e p o d e r . ” 1 0

Para as comun idades , as inves t igações c ien t í f i cas também

são perceb idas como poss ib i l i dades de ação po l í t i ca . As

pesqu isas das C iênc ias Soc ia i s , na qua l a H is tó r ia se insere ,

sugerem um ou t ro modo de re lac ionamento com a soc iedade

le t rada , j á que es ta h is to r i camente age de fo rma opress iva ,

cont ra a comun idade ca iça ra .

A lgumas ques tões es tão imp l í c i t as na presen te pesqu isa :

Qua is in te rações são poss íve is en t re Academia e comun idade?

Qua l a impor tânc ia da pesqu isa c ien t í f i ca para os moradores

loca is? E por f im, qua l o re to rno poss íve l que ex is te para

ambos?

Por f im, es te t raba lho, ao comparar os resu l tados da

pesqu isa de campo com as fon tes b ib l i ográ f i cas , cons t ru iu um

esboço da H is tór ia dos Ca iça ras da Pen ínsu la da Jua t inga, e sua

in t r incada te ia de re lações com o amb ien te que os ce rca . Houve

uma ên fase no impac to dos agen tes ex te rnos , como o

p ro tes tan t ismo, a gr i l agem, as ONGs, pesqu isas , ó rgãos

ambienta is , en f im, a soc iedade urbana, nas p rá t icas , v isões de

mundo e cu l tu ra popu la r dos ca iça ras dessa reg ião . A lguns

conce i tos não apro fundados pe los au to res pesqu isados , como a

memór ia amb ien ta l e a de f ic iênc ia a l imenta r , fo ram aqu i

aspec tos fundamenta is , mas a fa l ta de in formações sobre esses

temas p re jud icou a aná l i se , embora não a tenha imped ido de

todo. Uma das pr inc ipa is perspec t i vas des te t raba lho fo i t razer à

luz as a t iv idades t rad ic iona is que se encont ram em ex t inção

10 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas — uma arqueologia das ciências humanas. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

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ent re os ca iça ras , as conseqüênc ias dessas perdas e as

a l te rna t i vas poss íve is pa ra sua adap tação à contemporane idade .

Mapa do Estado do Rio de Janeiro e a localização da Península da Juatinga

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Mapa da Península da Juatinga e as áreas protegidas.

Mapa das Pr inc ipa is V iagens de Campo

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1 ª V i a g e m d e C a m p o : m a i o / 2 0 0 5

1 0 d i a s ( b a r c o e t r i l h a )

2 ª V i a g e m d e C a m p o : s e t e m b r o / 2 0 0 5

1 0 d i a s ( b a r c o e t r i l h a )

C o m u n i d a d e s p e r c o r r i d a s n a p e n í n s u l a :

1 . P r a i a d o C r u z e i r o ( S a c o d o M a m a n g u á )

2 . P r a i a d o E n g e n h o ( S a c o d o M a m a n g u á )

3 . P r a i a G r a n d e d a C a j a í b a

4 . P r a i a d a I t a o c a

5 . P r a i a d o C a l h e u s

6 . P r a i a d a I p a n e m a

7 . P r a i a d o P o u s o d a C a j a í b a

8 . P o n t a d a J u a t i n g a

9 . P o n t a d a R o m b u d a

1 0 . P r a i a d o M a r t i m d e S á

1 1 . P r a i a d o C a i r u ç u d a s P e d r a s

1 2 . P r a i a d a P o n t a N e g r a

1 3 . P r a i a d e A n t i g u i n h o s

1 4 . P r a i a d e A n t i g o s

1 5 . P r a i a d o S o n o

1 6 . C o n d o m í n i o d e L a r a n j e i r a s

1 7 . P r a i a d a T r i n d a d e

Mapa das V iagens de Campo Complementares

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1ª V iagem de Campo: Fes t i va l de C inema Ca içara

dezembro /2005 - 4 d ias ( t r i l ha)

2ª V iagem de Campo: Agr icu l tu ra Trad ic iona l /Agroeco log ia

abr i l /2006 - 4 d ias (ba rco e t r i l ha )

3ª V iagem de Campo: Arqueo log ia do Museu Nac iona l

Junho /2006 – 3 d ias (ba rco e t r i lha )

Principais Informantes:

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Paraty

Mestre Hildo (marinheiro): História, hábitos caiçaras, herança indígena e caça.Obs: Último caiçara morador do centro histórico de Paraty.

Saco do Mamanguá

S.Benedito (aposentado): Sacis ou “tentos”, protestantismo, fim da lavoura, barcos de arrasto, escravos, decadência social e econômica do Saco.Obs: Filho de um grande festeiro cujas festas foram lembradas em diversas localidades.

Praia Grande da Cajaíba

D.Maria (agricultora/comerciante): Nomadismo caiçara, bijus puvus, roças, herança indígena, grilagem e bailes.Obs: No decorrer da pesquisa D.Maria, uma das mais importantes informantes, apresentou problemas emocionais devido à pressão da grilagem.

S.Filhinho (agricultor): Lendas e causos caiçaras.Obs: Casado com D.Maria, mas, moram em casas separadas.

D.Dica (agricultora/comerciante): Roça e grilagem.Obs: Irmã de D.Maria, move processo contra capataz do grileiro que a ameaçou com uma arma de fogo.

S.Altamiro (agricultor/pescador/comerciante): Roça, compostagem, viveiros agroflorestais, grilagem, herança indígena e pesca.Obs: Presidente da Associação de Moradores da Praia Grande sofre constantes ameaças do grileiro, além de ser réu em processo de reintegração de posse.

D.Jandira (agricultora/pescadora/comerciante): Feitio de farinha e grilagem.Obs: Casada com S.Altamiro.

Praia do Pouso da Cajaíba

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D.Tetéia (merendeira da escola): Roças, bailes e sítio arqueológico.Obs: Informou a presença de sílex e machados de pedra, localmente conhecidos como pedras de raio.

S.Miguel (agricultor/pescador): Festas, bailes, comidas, rezas, lendas e causos.Obs: Casado com D.Tetéia, S.Miguel era o violeiro da Folia do Divino, que percorria as praias da Península.

Gilson (pescador/pedreiro/outros): Lendas, causos, trabalho.Obs: Filho do casal, Gilson mesmo jovem é reconhecido na praia como ótimo contador de histórias seguindo a tradição do pai.

Ponta da Juatinga

D.Maria (agricultora/pescadora): Roça, pesca e conflitos de terra entre parentes.Obs: Sua casa em construção na Praia dos Calheus foi destruída pelos agentes do IEF, na mesma operação que destruiu os ranchos na Praia Grande.

Careca (agricultor/pescador): Gostos caiçaras.Obs: Casado com D.Maria, é nitidamente descendente de indígenas, com fortes características asiáticas.

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S.Olímpio (agricultor): Variedade genética das roças, controle do fogo na coivara, consórcio de espécies vegetais, sítio arqueológico, herança indígena, localizou a aldeia de onde sua avó indígena teria morado.Obs: S.Olímpio foi um dos principais informantes, tanto pela localização do sítio arqueológico, como pelas informações sobre a avó indígena, e também porque possui variedades genéticas de vegetais indígenas, extintos em outras localidades.

Ponta da Rombuda

Camuzinho (agricultor/pescador): Modo de vida caiçara tradicional.

Creuseli (agricultora): Vida em um local isolado e vacinação infantil.Obs: A Ponta da Rombuda é um local extremamente isolado, entre rochedos e a mata e onde foi encontrada a maior presença de usos e costumes caiçaras tradicionais como a casa em palafitas, o aimpim como alimento principal da dieta e o consorcio de espécies.

Praia de Martim de Sá

D.Capitulina dos Remédios ou D. Capita (dona de casa): Vida caiçara, caiçaras antigos e cata de mexilhões.Obs: Matriarca, segundo o filho S.Maneco, D.Capitulina tem 100 anos e foi muito lembrada nas outras praias pela saúde. Segundo contam é capaz de rachar lenha e fazer trilhas mais rápido que um jovem e quando chegar pedir um cigarro.

S.Manuel dos Remédios ou S.Maneco (pescador/agricultor/dono de camping): Flora, fauna, desequilíbrios ambientais, história caiçara, antecedentes indígenas, sítios arqueológicos, grilagem, Ong, protestantismo, feitio de canoas.Obs: S.Maneco foi um dos principais informantes e o caiçara mais conhecido dentro e fora da Península.

Praia do Cairuçu das Pedras

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S.Aplígio (agricultor/pescador/dono de camping): Feitio de farinha, poluição, agricultura, pesca, lendas, sítios arqueológicos, antecedentes indígenas, causos e magia.Obs: S.Aplígio, assim como D.Maria e S.Filhinho foram os únicos a relatar elementos da cultura caiçara extintos inclusive na memória dos outros caiçaras entrevistados, é casado com a irmã de S.Maneco, D.Dulcinéia.

S.Jovino (agricultor/pescador/fazedor de canoas/dono de camping/fazedor de tapitis): Sítio arqueológico cerâmico, antecedentes indígenas, feitio de canoas, extinção da fauna.Obs: S.Jovino é irmão de Seu Maneco e D.Dulcinéia, ele e os filhos são os últimos fazedores de tapiti da península.

Jango (agricultor): Encantados e livro do séc.XIX.Obs: É irmão de D.Lorença, casada com S.Maneco.

Francino (cesteiro/agricultor/dono de camping): Feitio de balaios e manejo de cipós.Obs: Francino, irmão de Jango, é o último fazedor de cestos e balaios da península, muito conhecido pela boa qualidade de seu trabalho que abastece toda a região.

Praia da Ponta Negra

S.Domingos (agricultor/pescador): Roça, alimentos industrializados, associação de moradores e tapitis.Obs: S.Domingos é um dos últimos agricultores que colhe a maioria de seu alimento na Ponta Negra, fato que se orgulha muito. É casado com D.Dominga.

S.Nelson (aposentado/pescador/agricultor): Roça, adubagem com feijão guandu, lenda da Mãe do Ouro, grilagem.Obs: S.Nelson foi um dos líderes locais que organizou a resistência da Ponta Negra contra a ação dos grileiros, aparecendo inclusive no filme Vento Contra.

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D.Dilma (aposentada/dona de camping): Bailes e trilhas percorridas até as festas.Obs: D.Dilma descreveu com detalhes os bailes e a dança de tamancos, que foi inclusive negada por muitos antigos que se tornaram protestantes.

Nego (padeiro): Reflorestamento, desmatamento e conflitos da associação de moradores.

Praia do Sono

D.Baíca (agricultora/dona de camping): Roça e antecedentes indígenas.

Preta (estudante): Jovens, ciranda e roça.Obs: Filha de D.Baíca.

S.Nilo (aposentado): Protestantismo.Obs: Considerado caiçara mais velho da comunidade.

S.Antônio (pescador/dono de camping): grilagem e protestantismo.Obs: Foi um dos líderes da comunidade na resistência à grilagem.

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A Região, o homem e a natu reza .

A Reg ião de Para ty

Para ty é uma das c idades mais an t igas do pa ís . Fo i ponto

de embarque do ouro e desembarque de escravos e es t range i ros

de todo o mundo que v inham ten ta r a so r te nas minas . A t ravés

do Caminho do Ouro da P iedade , ou Es t rada Ve lha de Minas ,

sub iam as bo iadas e a l imen tos , pe lo que ou t ro ra fo ra a t r i l ha

gua ianá para o Va le do Para íba . Apesar d i sso , a reg ião da

Juat inga sempre fo i de d i f í c i l acesso e cont inua sendo . “ O c u l t i v o d e c a n a - d e - a ç ú c a r f o i a a t i v i d a d e m a i s i m p o r t a n t e a p a r t i r

d o s é c u l o X V I I I , q u a n d o o s e n g e n h o s s e e s t a b e l e c e r a m n a r e g i ã o . N o S a c o

d o M a m a n g u á a i n d a p o d e m s e r e n c o n t r a d o s c i n c o r u í n a s d e s s e s

e n g e n h o s . ” 1 1

Na época áurea dos engenhos , a reg ião possuía uma

p rodu t i v idade re levan te e durante o sécu lo X IX p roduz iu

quan t idade s ign i f i ca t iva de ca fé , fumo e aguarden te . A inda os

ant igos moradores lembram-se das canoas de voga indo

ca r regadas para Para ty , l evando ca fé , f a r inha e pe ixe seco .

Ho je , com os barcos a motor , a comida vem de Para ty ,

empaco tada em sacos p lás t i cos que depo is são que imados .

A decadênc ia da reg ião começou com a concor rênc ia da

es t rada de Fer ro D .Pedro I I e a abo l i ção dos esc ravos . Mesmo

ass im con t inuou a p roduz i r a famosa cachaça Para ty e ass is t iu

ao in íc io de um novo c ic lo , o da banana . Todos esses c i c los

devas ta ram as encos tas , e ho je , em todas as á reas da Reserva,

vêem-se g randes á reas degradadas . Mesmo que a técn ica de

cu l t i vo ind ígena , ca rac te r i zada pe lo uso da que imada (co iva ra ) ,

11 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12

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tenha s ido u t i l i zada em épocas pré -co lon ia i s , não dev ia a t ing i r o

a l t o das se r ras , já que e ram que imadas con t ro ladas .

A lém d isso , u t i l i zavam um s is tema de pous io longo , o que

não parece te r s ido a reg ra dos co lon izadores . Durante o

p rocesso de desenvo lv imen to econômico do Bras i l , as técn icas

de p rodução empregadas se basearam na u t i l i zação imprev idente

e avassa ladora dos recursos na tu ra is . Essa reg ião v iveu o

apogeu e decadênc ia do c ic lo do ouro , os engenhos e a

t rans fo rmação da p rodução em gêneros a l imen t íc ios , quando

passou a p rover os cent ros u rbanos .

Os sucess ivos c ic los econômicos inc lu indo a pesca

embarcada e as p lan tações de banana fo ram fa to res de

d ispersão da popu lação, mas segundo Nogara e A .C.D iegues , “ o

e s v a z i a m e n t o i m p o r t a n t e d a r e g i ã o s e a g r a v o u c o m a c o n s t r u ç ã o d a V i a

D u t r a , e m 1 9 4 0 , d e s l o c a n d o o e i x o e c o n ô m i c o p a r a o V a l e d o P a r a í b a . A

p a r t i r d e 1 9 5 5 , a c o m u n i c a ç ã o d e P a r a t i c o m o e x t e r i o r s e f a z i a c a d a v e z

m e n o s d e b a r c o e c a n o a s a v o g a e m a i s p e l a e s t r a d a d e C u n h a . A c e n t u o u -

s e o p r o c e s s o d e m i g r a ç ã o p a r a o u t r a s á r e a s c o m o , p o r e x e m p l o , A n g r a

d o s R e i s , o n d e , e m 1 9 5 0 , s e i n s t a l o u o e s t a l e i r o V e r o l m e , s e g u i d o , e m

1 9 7 4 , p e l a i m p l a n t a ç ã o d a U s i n a N u c l e a r q u e e m p r e g o u 9 . 0 0 0 o p e r á r i o s . ” 1 2

Mas fo i com a cons t rução da BR-101, na década de 70 , que

o con ta to com o mundo u rbano se to rnou mass ivo . Para le lo à

degradação de t rechos in te i ros do recor te do l i to ra l , os te r renos

so f re ram uma va lo r ização abrup ta que gerou um ac i r ramento

v io len to das d ispu tas por te r ras da década anter io r . “ A p a r t i r d o s i m p l e s p r o j e t o d a R i o - S a n t o s , o s p r o p r i e t á r i o s d e t e r r a s

s u r g e m c o m o q u e d o n a d a , d e m a r c a n d o á r e a s e n o r m e s a p a r t i r d e

p e q u e n a s e s c r i t u r a s , “ g r i l a n d o ” t e r r a s , e x p u l s a n d o o s l a v r a d o r e s c o m

v i o l ê n c i a e a m e a ç a s o u m e s m o c o m o f e r t a s i r r i s ó r i a s a q u e o s l a v r a d o r e s

n ã o r e s i s t i a m , p o r n ã o c o n h e c e r o v a l o r e x a t o d o d i n h e i r o . E s t e s ,

12 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.22

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a n a l f a b e t o s e m s u a m a i o r i a , e r a m e n g a n a d o s d e v á r i a s f o r m a s , i n c l u s i v e

a s s i n a n d o c o n t r a t o s d e a r r e n d a m e n t o , m e i a o u p a r c e i r a , o n d e a c a b a v a m

c e d e n d o s e u s d i r e i t o s d e p o s s e , s e m s a b e r . ” 1 3

A Pen ínsu la da Jua t inga

Insc r i ta na par te para t iense da baía da I l ha Grande,

encon t ra -se a Pen ínsu la da Juat inga , que cons t i t u i o ú l t imo

f ragmento l i to râneo de á reas con t inuas de mata a t lân t i ca do

es tado do R io de Jane i ro . A Reserva Eco lóg ica , que toma toda a

Penínsu la , es tá inser ida dent ro da Área de Pro teção Ambien ta l

do Ca i ruçu , que por sua vez se l im i ta com o Parque Nac iona l da

Ser ra da Boca ina , a Ser ra do Mar e ou t ras á reas p ro teg idas do

l i to ra l no r te de São Pau lo . É uma das ma is be las e conservadas

reg iões l i to râneas do pa ís , mesmo se s i t uando ent re as duas

ma io res cap i ta is . A á rea pro teg ida va i de Para t i -M i r im, na par te

do mar in te r io r , e passa pe lo Saco do Mamamguá, ún ico f i o rde

do hemis fé r io Su l . Na Pra ia Grande da Ca ja íba , ass im como no

Saco, há fo r te p ressão da especu lação imob i l i á r ia . As p ra ias da

Ipanema, I t aoca e Ca lheus são hab i tadas por comun idades

ca iça ras , com poucas casas veran is tas .

O Pouso da Ca ja íba , aonde se chega após duas horas e

me ia de barco de Para t i , é bem tu r í s t i co , com bares e casas

para temporada . Nes ta comunidade fo i descober to recentemente

um s í t io a rqueo lóg ico ca rac te r ís t i co de a ldeamentos de povos

p ré-h is tó r icos fazedores de machados de pedra , p rovave lmente

re lac ionados aos s í t i os da Pra ia do Aven tu re i ro , na I lha Grande .

Essa descober ta fo i fe i t a po r a rqueó logos do Museu

Nac iona l /UFRJ, em decor rênc ia dos s í t ios a rqueo lóg icos

levan tados pe la p resen te pesqu isa .

Da Pra ia do Pouso sa i a t r i l ha de mais 2 horas a té a Pra ia

do Mar t im de Sá . No cos tão da Penínsu la , j á na á rea do mar

13 Idem

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aber to , onde ex is te um impor tan te fa ro l , s i t ua -se a comun idade

de pescadores da Pon ta da Jua t inga , de d i f í c i l acesso. Após a

comun idade da Ponta do Jua t inga, ab re-se a reg ião oceân ica ,

conhec ida como cos te i ra . Após o fa ro l , f i ca a Pon ta da Rombuda,

hab i tada apenas pe lo casa l Camuz inho , Creuse l i e os f i l hos .

Loca l i so lado e ex t remamente be lo , onde fo ram encont radas

p rá t icas ca iça ras t rad ic iona is j á ex t in tas na maio r ia dos lugares .

A próx ima p ra ia é a Sumaca , nome de um an t igo t i po de

embarcação e também hab i tada por apenas um morador ,

Manequ inho. A segunda depo is do fa ro l e rea lmente possu idora

de uma enseada e de um r io é a Pra ia do Mar t im de Sá . Cober ta

de densa mata en t re as a l tas montanhas do va le , tem apenas o

rancho dos barcos de Seu Maneco , ou Manoe l dos Remédios ,

en t re as cas tanhe i ras da p ra ia .

No Saco das Anchovas , há paren tes da famí l ia dos

Reméd ios , e depo is Ca i ruçu das Pedras , Pon ta Negra ,

An t igu inhos , Ant igos e Pra ia do Sono , onde acaba a á rea de

conservação. Depo is vem o condomín io de Laran je i ras , hab i tado

por mu l t im i l i onár ios , e a famosa Pra ia da T r indade , onde os

v io len tos p rocessos de g r i l agem na década de se ten ta inser i ram

o tema ca iça ras na pauta de d iscussão dos mov imentos soc ia i s .

Ex is tem ou t ras loca l idades ca içaras na Pen ínsu la , como o Saco

das Sard inhas , a Ce la , e hab i tações em pequenas enseadas .

Essas , en t re tan to , re f le tem os aspec tos es tudados nas ou t ras e

não fo ram de t idamente pesqu isadas , po r se rem mui to d im inu tas

e também porque o foco se f i xou nas comun idades com ma ior

in f luênc ia geopo l í t i ca , h i s tó r i ca e cu l tu ra l .

Na reg ião pesqu isada, as “á reas ve rdes” , cons ideradas de

g rande be leza cên ica e hab i ta t de espéc ies impor tan tes , são há

mi lha res de anos te r r i tó r io mane jado . Desde as ocupações pré -

h is tór i cas , i nd ígenas , co lon ia i s , a té os d ias a tua is , a ocupação

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l i t o rânea b ras i l e i ra vem sendo es tudada pe los pesqu isadores .

A lém do s í t i o encont rado no Pouso, f o ram co lh idos re la tos de

amoladores de pedra na Pra ia do Mar t im de Sá, onde fo i

encon t rado um p ingen te de pedra e no Ca i ruçu das Pedras .

Houve também um re la to de um s í t i o ce râmico no in te r io r da

mata , na d i reção do P ico do Ca i ruçu , fe i to pe lo Seu Jov ino ,

i rmão de Seu Maneco , e es te s í t io pode ser a a lde ia a que Hans

S taden se re fere como ex is ten te aba ixo do P ico do Caeroçu .

A lém d isso , na Pon ta da Juat inga , há d iversos re la tos sobre a

Toca dos Ossos , uma caverna onde es ta r iam en te r rados índ ios ,

an tepassados dos a tua is hab i tan tes da Ponta da Jua t inga.

Os hab i tan tes da Pen ínsu la : os ca iça ras

Por ta i s re la tos podemos in fe r i r que as matas da Pen ínsu la

da Jua t inga possuem uma ocupação de longu íss ima da ta , que

nos d ias de ho je é fe i ta pe los a tua is ca içaras . Es tes possuem

um ter r i tó r io i n te rmi ten te , de roças em regeneração e á reas

ocupadas por an tepassados . Ao o lhar do não na t ivo , ap resen ta -

se apenas uma g rande á rea ve rde , sem perceber as

espec i f i c idades da ocupação . Ex is tem demarcações que são

fe i tas com árvores , de ant igas casas dos pa is e avós , que ho je

es tão cober tas pe la mata . São mangue i ras , jaque i ras , cambucás

e jabut icabe i ras que guardam a memór ia do loca l an tes ocupado

pe los an tepassados .

Os ca iça ras , ass im como ou t ras soc iedades t rad ic iona is

baseadas na o ra l idade, v i vem, no p resente , uma c rescen te

rup tura na t ransmissão de conhec imento , p r inc ipa lmente pe lo

a fas tamento das gerações . Ta lvez por i s to houve uma

p reocupação por par te dos en t rev is tados em ver reg is t rado seus

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conhec imentos . A h is tó r ia g rupa l recon tada cons t i t u i -se uma

a f i rmação dessas soc iedades , e leg i t ima o seu d i re i t o ao

te r r i tó r io ances t ra lmente ocupado . Nesse contex to , as pesqu isas

p rop ic iam o fo r ta lec imento e a coesão dos grupos humanos ,

embora não de ixem de se r mecan ismos da soc iedade le t rada ,

que é uma das p r inc ipa is causas das fo rmas de desagregação

v iv idas pe las soc iedades t rad ic iona is , p r inc ipa lmente a t ravés do

impac to causado pe la esco la r ização in fan t i l .

A o r igem ind ígena das popu lações ca içaras ev idenc ia -se ,

em p r ime i ro lugar , pe lo própr io nome, que em tup i s ign i f i ca

pa l i çada , que p ro tege as tabas . Es te t ipo de ce rcamento de

va ras de taquara e /ou da Jussara a inda ho je é u t i l i zado na

reg ião , em áreas ma is povoadas e também nas i so ladas . No

Nordes te , as ca iça ras são armad i lhas de pesca mar inha usadas

pe los pescadores t rad ic iona is . Segundo Schmid t :“ o s c a i ç a r a s s ã o f r u t o d a m i s c i g e n a ç ã o e n t r e í n d i o , p o r t u g u ê s e n e g r o ( e m

m e n o s q u a n t i d a d e ) q u e d u r a n t e l o n g o p e r í o d o f i c a r a m r e l a t i v a m e n t e

i s o l a d o s n a M a t a A t l â n t i c a e n o l i t o r a l d e S ã o P a u l o . A i n d a q u e s e j a m

e t n i c a m e n t e d i s t i n t o s , s u a c u l t u r a a p r e s e n t a i n f l u ê n c i a m u i t o g r a n d e d a

c u l t u r a i n d í g e n a n o s i n s t r u m e n t o s d e t r a b a l h o ( c o i v a r a , c a n o a s , f a b r i c a ç ã o

d e f a r i n h a ) , v o c a b u l á r i o d i f e r e n c i a d o d o s d e m a i s h a b i t a n t e s d o e s t a d o ,

e t c . ” 1 4

No caso da Pen ínsu la , ex i s tem comp lementações a essa

descr i ção: a descendênc ia de p i ra tas , como fo i d i t o em

ent rev is tas ; a herança genét ica ind ígena nos t raços f í s i cos das

pessoas e nas sementes que p lan tam, na genea log ia do

paren tesco , na descr ição de p rá t icas an t igas desaparec idas ;

a lém do consórc io de espéc ies nas roças também ser uma

carac ter í s t i ca remanescente da cu l tu ra ind ígena .

14 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.56

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O enfoque h is tó r i co ao pesqu isa r as remin iscênc ias , en t re

os ca iça ras a tua is , das p rá t icas de seus an tepassados

ind ígenas , é impor tan te por con t r ibu i r para o debate sobre a

h is tó r ia ind ígena da reg ião Sudes te , t ão a fe tada pe lo conta to

mac iço e pe la d i z imação das t r i bos . Se rea lmente ex is te um povo

remanescente ind ígena e que se cons idera como ta l , mu i tos

aspec tos da h is tó r ia do R io de Jane i ro podem ser redesenhados .

Esse modus v i ven d i que permanece no d ia -a-d ia dessas

comun idades vem sendo va lo r i zado como um recurso po l í t i co

para a f i rmação de sua ident idade e pe lo d i re i to ao te r r i tó r io em

que hab i tam.

Nes ta re lação , a ident idade cu l tu ra l da comun idade se

cons t ró i e recons t ró i sobre uma herança ind ígena t ransmi t ida por

me io das p rá t i cas ca içaras , a lém do resga te dessa iden t idade

ca iça ra es t ra teg icamente re lac ionada à leg i t imação da ocupação

do te r r i t ó r io . Há uma emergênc ia é tn i ca , já que

contemporaneamente a auto- in t i tu lação como ca iça ra gera

conseqüênc ias pos i t i vas , em cont ras te ao passado de v io lênc ias .

Seu Maneco , recordando , a f i rma que seu pa i nunca se

in teressou em fazer canoas . Fo i e le , Seu Maneco , que fo i

aprender em ou t ras p ra ias e começou a ens inar aos seus , e

agora envo lve os f reqüentadores na puxada de canoa . Por tan to ,

a ques tão é como essas p rá t i cas rea f i rmadas in f l uenc iam a

re lação in terna en t re os ca içaras , des tes com os agen tes

ex te rnos e a cons t rução de parcer ias com a l iados na de fesa de

suas te r ras , como no caso da convenção 169 , da Organ ização

In te rnac iona l do T raba lho que t ra ta das popu lações na t i vas , e a

leg is lação das áreas amb ien ta lmente pro teg idas em que hab i tam.

Percebe-se que há um processo, embora len to , en t re os

ca iça ras , de reconhec imento da impor tânc ia das a t i v idades

t rad ic iona is . En t re tan to , essa len t idão permi te que perdas

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gené t i cas acon teçam, já que a agr i cu l tu ra t rad ic iona l ca iça ra de

co iva ra es tá p ro ib ida pe los f i sca is . Há também um es fo rço de

agen tes u rbanos , leg is ladores , func ionár ios , pesqu isadores e

out ros de recons t ru i r a i den t idade ca iça ra não mais como povo

essenc ia lmente agr icu l to r e s im de pescadores . Porém, no l i v ro

de Schmid t , de 1958 , é descr i ta a casa do ca içara , como tendo a

por ta vo l tada para a lavoura e não para o mar , mesmo que a

casa es te ja per to des te . No l i v ro , o au to r apon ta essa

cons t rução como uma ev idênc ia mate r ia l da l i gação do ca iça ra

com a roça.

Na Pra ia do Ca i ruçu das Pedras , onde a inda ho je moram a

i rmã e o i rmão de Seu Maneco do Mar t im de Sá , encont ra-se a

ant iga casa de Roque Caçador , pa t r ia rca da famí l i a . Após se r

“g r i l ado” da Pra ia do Mar t im de Sá, sua ú l t ima morada fo i no

Ca i ruçu. D . Du lc iné ia , sua f i lha , a inda mora na an t iga casa , em

que , apesar da v i s ta des lumbran te para o mar , a po r ta se

encon t ra vo l tada para o pomar , a mata em regeneração e seus

pés de ca fé .

Essa herança ca iça ra , ances t ra l e /ou rec r iada como fo rma

es t ra tég ica de a f i rmação do te r r i tó r io em que hab i ta , i nc lu i a ra iz

ind ígena e se mos t ra fundamenta l para a conso l idação dessa

imagem do mane jo t rad ic iona l bem adap tado ao me io amb ien te ,

sendo essa a f i rmação p laus íve l ou não . Se ja a roça de abacax is ,

a casa de fa r inha ou a puxada de canoa . Essas ca rac te r ís t i cas

também con t r ibuem para uma a f i rmação do d i re i t o ances t ra l à

te r ra em que v i vem. Luch iar i a f i rma: “ p o d e - s e d i z e r q u e a o c u p a ç ã o

i n d í g e n a d o l i t o r a l , a n t e r i o r à c o l o n i z a ç ã o ( s é c u l o X V ) , n ã o d e i x o u m u i t a s

m a r c a s n a p a i s a g e m l o c a l , m a s t r a n s m i t i u , c o m o l e g a d o , f o r t e s

c o n t r i b u i ç õ e s c u l t u r a i s : o t i p o é t n i c o , a l g u m a s t é c n i c a s p a r a a l a v o u r a e

p e s c a e m u i t a s t r i l h a s e c a m i n h o s ” . 1 5

15 DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton, Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo, NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005.

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Essa recons t rução iden t i tá r ia deve se r ana l i sada de fo rma

c r í t i ca . A f ina l , os ca iça ras são povos bem adap tados e

dependen tes de sua re lação com a na tu reza , sem te rem s ido ,

h is to r i camente , povos de fensores do meio amb ien te . Essa

iden t idade por e les mesmos a t r i bu ída recentemente es tá l i gada à

necess idade de se c r ia rem es t ra tég ias de permanênc ia no

te r r i tó r io , já que “ a s c u l t u r a s t r a d i c i o n a i s n ã o s ã o e s t á t i c a s , e s t ã o e m

c o n s t a n t e m u d a n ç a s e j a p o r f a t o r e s e n d ó g e n o s o u e x ó g e n o s . ” 1 6

A lu ta pe lo espaço ances t ra l

Para a pesqu isa acadêmica, a reg ião es tudada apresen ta

mú l t ip las ques tões , p r inc ipa lmente po l í t i cas , como a v io len ta

especu lação imob i l iá r ia .

Na reg ião ex is tem áreas p ro teg idas que se sobrepõem: a

Reserva Eco lóg ica da Jua t inga , a Área de Pro teção Ambienta l do

Ca i ruçu, a Reserva Ind ígena Guaran i de Para ty -Mi r im e o Parque

de Lazer de Para ty -Mi r im. As reservas b ras i l e i ras , exc lu indo as

ind ígenas , ex t ra t iv i s tas e de desenvo lv imento sus ten táve l

ado tam em gera l um mode lo de uso res t r i t i vo . Nesses casos , a

exc lusão, d im inu ição ou con t ro le da p resença humana nas á reas

de reserva são fo rmas de garan t i r a p reservação. Há nesse

mode lo uma fo r te in f l uênc ia do parad igma do homem des t ru ido r ,

que se percebe a par t i r do 2 º pós-guer ra , e se base ia na v i são

de que não há equ i l í b r io poss íve l en t re o homem e a na tu reza.

Porém, na Reserva da Juat inga , pe lo menos no tex to do

decre to que a c r ia , es tá expresso o ob je t ivo de uma adaptação à

rea l idade b ras i le i ra , p ropondo uma in te ração en t re a u t i l i zação

dos recursos na tu ra is e os prece i tos conservac ion is tas . Como se

vê no tex to da le i :

16 idem

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“ A r t . 4 º - A F u n d a ç ã o I n s t i t u t o E s t a d u a l d e F l o r e s t a s I E F / R J d e s e n v o l v e r á

p r o g r a m a e s p e c í f i c o d e E d u c a ç ã o A m b i e n t a l , c o m o o b j e t i v o d e f o m e n t a r a

c u l t u r a c a i ç a r a l o c a l , c o m p a t i b i l i z a n d o a u t i l i z a ç ã o d o s r e c u r s o s n a t u r a i s

c o m o s p r e c e i t o s c o n s e r v a c i o n i s t a s e s t a b e l e c i d o s n e s t e D e c r e t o . ” 1 7

Essa in ic ia t i va lega l cont ras ta , con tudo , com as ações

p rá t icas dos ó rgãos amb ien ta is . Um exemplo d i s to fo i a

des t ru i ção dos ranchos de pesca e de uma morad ia ca içara na

Pra ia dos Ca lheus . Essa ação a rb i t rá r ia mot i vou um processo de

ação c i v i l púb l ica , no Min is té r io Púb l ico Federa l , que se conc lu iu

com o segu in te te rmo:

“ ( . . . ) d e t e r m i n a n d o a o I E F / R J q u e s e a b s t e n h a d e r e a l i z a r q u a l q u e r

o p e r a ç ã o q u e r e s u l t e n a d e m o l i ç ã o o u d e s t r u i ç ã o , a i n d a q u e p a r c i a l , d e

h a b i t a ç õ e s , b a r r a c o s , r a n c h o s e s i m i l a r e s d a s C o m u n i d a d e s C a i ç a r a s ,

o n d e q u e r q u e s e e n c o n t r e m , o u a d e m o l i ç ã o o u d e s t r u i ç ã o p a r c i a l d e

q u a i s q u e r e d i f i c a ç õ e s , n o s l i n d e s d a A P A d o C a i r u ç u . ” 1 8

“ E s c l a r e c e o M i n i s t é r i o P ú b l i c o F e d e r a l q u e t a i s c o m u n i d a d e s

c o n t r i b u í r a m p a r a a c o n s e r v a ç ã o d a b i o d i v e r s i d a d e , p e l o c o n h e c i m e n t o

q u e p o s s u e m d a f l o r a e d a f a u n a . A r g u m e n t a , a i n d a , q u e t a i s c o m u n i d a d e s

v i v e m p r e p o n d e r a n t e m e n t e d o m a r ( . . . ) . ” 1 9

Apesar dessa dec isão , os ca iça ras encon t ram-se em uma

pos ição paradoxa l . Ao mesmo tempo em que são reconhec idos

pe la le i , são acusados de des t ru i r o meio amb iente , e es te é o

p r inc ipa l a rgumento dos g r i le i ros para re t i rá - los do loca l . Nesse

pon to ocor re a in te rseção dos in te resses dos órgãos amb ien ta is

e dos gr i l e i ros . A ques tão amb ien ta l , na reg ião , ap resenta uma

dup la face : de um lado ameaça a sobrev ivênc ia das popu lações ,

ao res t r i ng i r as p rá t i cas t rad ic iona is de p rodução e marg ina l i zar

os que pers i s tem u t i l i zando-as , o que se rve de a rgumento para

17 Lei Decreto Estadual n° 17.981/92 - Cria a Reserva Ecológica da Juatinga. Sítio http://www.ief.rj.gov.br/legislacao/conteudo.htm, 200618 Medida liminar concedida na Cautelar Inominada n° 2005.5111.000450-0 às fls. 14/16, MPF.19 idem

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os p rocessos de gr i l agem. Por ou t ro lado , é responsáve l po r um

con junto de le i s que d i f i cu l tam a expansão da especu lação

imob i l i á r ia , poss ib i l i t am ações in tegradas en t re agen tes u rbanos ,

mov imentos amb ienta is e ca iça ras , a lém de o fe recerem novas

poss ib i l i dades de geração de renda e in te ração com o me io .

A v isão da eco log ia como te ia de ecoss is temas in teg rados

des taca a cu l tu ra como um dos pon tos de l i gação en t re

ex t remos, já que é por me io de la que a na tu reza, i nc lu indo os

p rópr ios humanos , é perceb ida . Essa v isão do homem como

par te in tegran te da na tu reza, su je i t o às suas t rans fo rmações e

também su je i to a t rans fo rmá- la , caminha no sen t ido de equ i l i b ra r

v isões que duran te mu i to tempo geraram con f l i tos exaus t ivos no

deba te c ien t í f i co . Ta l deba te também pode se r re lac ionado à

ques tão dos que de fendem a re t i rada dos humanos das á reas de

p ro teção amb ien ta l , e dos que ten tam de todas as fo rmas p rovar

que os humanos podem ser agentes da b iod ive rs idade f l o res ta l .

A exc lusão da cu l tu ra , como fa tor impor tan te na aná l i se

ecoss is têmica loca l , a inda es tá por se r ma is cons iderada pe las

pesqu isas acadêmicas , de modo gera l .

Como podemos ver no a r t i go de Cand ice Mansano em

Enc ic lopéd ia Ca içara :“ A l g u m a s v e z e s q u e o s e x e c u t o r e s d e l e i s a m b i e n t a i s f o r a m

i n t e r r o g a d o s s o b r e a s i t u a ç ã o d i f í c i l a q u e e l e s p r ó p r i o s l e v a r a m

c o m u n i d a d e s c a i ç a r a s i n t e i r a s , r e s p o n d e r a m , n a s e n t r e l i n h a s : “ e l e s p o d e m

v i v e r d o t u r i s m o ” o u “ e l e s p o d e m v i v e r d a p e s c a ” . T a l v e z p o s s a m , m a s

e s t e n ã o é o p o n t o - c h a v e d a s i t u a ç ã o . O f a t o é q u e , p a r a d e f e n d e r e m u m

m o d e l o d e U n i d a d e d e C o n s e r v a ç ã o a r r a i g a d o à p r e s e r v a ç ã o , o E s t a d o

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t e n t a s a f a r - s e d a r e s p o n s a b i l i d a d e d e t e r s i d o o c a u s a d o r d a

d e s i n t e g r a ç ã o d e t o d a u m a c u l t u r a . ” 2 0

Dent ro desse s i s tema de fo rças , uma das p r inc ipa is

ques tões é a in f luênc ia de um mode lo de reservas na tu ra is de

uso res t r i t i vo . A c r iação de uma leg i t im idade no poder de

imp lementação de ta i s á reas de p ro teção es tá re lac ionada a uma

v isão de recursos na tura is renováve is . Es te conce i to moderno

def ine a impor tânc ia da natureza como fon te de maté r ias -p r imas

para a p rodução indus t r ia l e d i sso der i va a necess idade de

p ro tegê- la . Esse cap i ta l b ru to de um pa ís , “ e s s a a r t i c u l a ç ã o

c r e s c e n t e d a d e p e n d ê n c i a ( . . . ) l e v a a u m a t r a n s f o r m a ç ã o d o m u n d o n a t u r a l

e m m e r c a d o r i a ” . 2 1

Ta l v i são da na tu reza con t ras ta bru ta lmente com a mane i ra

c íc l i ca como as comun idades t rad ic iona is pe rcebem a natureza .

O conce i to (abs t ra to) de recursos na tu ra is é perceb ido pe las

popu lações que dependem de um con ta to d i re to com os

ecoss is temas como a lgo do qua l se vêem como par te in teg ran te ,

ao qua l es tão l i gados por lendas , tabus , ro t inas de t raba lho e

lazer .

E , quanto ao mane jo t rad ic iona l do ambien te em que v ivem,

Wors te r c i ta A l t i e r i :“ M u i t a s p r á t i c a s a g r í c o l a s , o u t r o r a c o n s i d e r a d a s p r i m i t i v a s o u m a l

o r i e n t a d a s , e s t ã o s e n d o r e c o n h e c i d a s c o m o s o f i s t i c a d a s e a p r o p r i a d a s .

C o n f r o n t a d o s c o m p r o b l e m a s e s p e c í f i c o s d e d e c l i v e s , e n c h e n t e s , s e c a s ,

p e s t e s , d o e n ç a s e b a i x a f e r t i l i d a d e d o s o l o , p e q u e n o s a g r i c u l t o r e s e m t o d o

o m u n d o d e s e n v o l v e r a m s i s t e m a s d e g e r e n c i a m e n t o ú n i c o p a r a s u p e r a r

e s s a s r e s t r i ç õ e s ' . U m a d a s m a i s i m p r e s s i o n a n t e s e t a m b é m m a i s u s u a i s d e

t a i s t é c n i c a s g e r e n c i a i s c o n s i s t e e m d i v e r s i f i c a r o s p r o d u t o s a g r í c o l a s e m

c u l t i v o . ” 2 2

20 DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton, Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo, NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005.21 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 200022 WORSTER, Donald. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história. ANPPAS – UNICAMP. Sítio Ambiente e soc. v.5 n.2 / v.6 n.1  Campinas  2003.

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Essas ra ízes t rad ic iona is , ho je va lo r i zadas pe los es tudos

agroeco lóg icos e permacu l tu ra is , são o foco do debate da

p resen te monogra f ia . Se os ca iça ras fo ram capazes de mante r

a l t as taxas de va r iedade gené t i ca em seus cu l t i vos e á reas

mane jadas , como sua cu l tu ra não é também fa to r impor tan te

para a apreensão de técn icas agr í co las e de mane jo f lo res ta l?

Mesmo não compar t i l hando uma v i são românt ica dessas

popu lações t rad ic iona is , v is tas como superp ro te to ras da

natureza (es te m i to não p rocede , dev ido p r inc ipa lmente às

que imadas) , deve-se , con tudo, a ten ta r pa ra a impor tânc ia

desses povos como guard iões de espéc ies gene t i camente ra ras ,

sobre tudo pe lo avanço das cu l tu ras h ib r idas e t ransgên icas .

Par te da pesqu isa de campo focou em como as res t r i ções das

le i s amb ien ta is p rovocaram a d im inu ição das á reas cu l t i vadas .

Esse fa to acar re ta a ex t inção de espéc ies agr í co las e a quebra

da segurança a l imen ta r da comun idade .

As recentes le i s que inc idem sobre as comun idades

ca iça ras já es tabe leceram a necessár ia pa rcer ia com as p rópr ias

comun idades e a ges tão das áreas p ro teg idas compar t i l hada com

seus moradores . En t re tan to , a le i não es tá sendo cumpr ida pe los

ó rgãos amb ien ta is , como no a tua l caso da reca tegor i zação da

Reserva Eco lóg ica da Jua t inga, ca tegor ia de á rea p ro teg ida que

não ex is te ma is no S is tema Nac iona l de Un idades de

Conservação . O p razo de adequação exp i rou e fo i p ro r rogado,

sem que houvesse uma d iscussão amp la com os moradores da

reserva . As reun iões com a lguns l íde res comun i tá r ios em Para ty

se rvem pr inc ipa lmente como p ropaganda e para leg i t imar a tos

admin is t ra t i vos . A ma ior ia dos ca iça ras presen tes não fo i

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2003000200003&lng=es&nrm=iso&tlng=pt, 2006.

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i n fo rmada sobre os processos de reca tegor ização , e

s imp lesmente não compreendem o que es tá sendo d iscu t ido .

Os p rocessos são dec id idos po l i t i camente , com in f luênc ias

econômicas , como se pode perceber na reun ião com o

coordenador de un idades de conservação do IEF /RJ . Segundo

e le , “ a r e c a t e g o r i z a ç ã o v a i s e r f e i t a , e s t á q u a s e c o n c l u í d a , p a r a q u e s e j a

u m p a r q u e . H á a p o s s i b i l i d a d e d e a l g u m a s á r e a s s e r e m d e s f e t a d a s ( c o m

p r o p r i e d a d e p a r t i c u l a r ) , m a s n ã o h á i n t e r e s s e . ” 2 3

Essa reca tegor i zação é mu i to c la ra , j á que o que é

t ransmi t ido é o que o emissor tem in te resse de que o

pesqu isador sa iba . Esse p rocesso já e ra esperado , e fo rnece

dados para a aná l i se da iden t idade e qua is ques tões são

p r io r i tá r ias no que se re fe re a esse conta to com o un ive rso

le t rado . Nessa comun icação , uma das ques tões ma is deba t idas

pe los en t rev is tados fo i a razão de te rem ins t i tu ído a reserva

jus tamente onde os ca iça ras hab i tam. E se i s to não decor reu do

fa to de a l i encon t ra rem uma reg ião amb ien ta lmente conservada .

Não compreendem por que suas p rá t i cas são acusadas de

des t ru ido ras , se há mu i tas gerações os ca iça ras possuem esses

mesmos háb i tos , que ocas ionaram o a tua l es tág io em que se

encon t ra seu te r r i tó r io t rad ic iona l e pe lo es tág io de conservação

fo ram cons ideradas á reas ambienta lmente re levan tes a pon to de

se rem pro teg idas . Se suas prá t icas são per igosas para o me io

ambiente , como os órgãos amb ien ta is encon t ra ram um

impor tan te re fúg io da f lo ra e da fauna para p ro tegerem?

Out ro ques t ionamento dos ca iça ras é por que são

f i sca l i zados pe los órgãos amb ien ta is , p ro ib idos de uma sér ie de

p rá t icas , enquan to ass is tem aos barcos de ar ras to en t ra rem no

Saco do Mamamguá, as mansões , o condomín io de Laran je i ras e

percebem que , para a f i sca l i zação , t a is empreend imentos não

são cons iderados p re jud ic ia is à na tureza . São mu i tas as

23 Entrevista com o coordenador de Unidades de Conservação IEF/RJ. Abril de 2006.

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h is tór ias de p rop inas , po l i c ia i s a se rv i ço de gr i l e i ros e ações

i l ega is dos ó rgãos amb ien ta is , que ho je fazem par te dos causos

loca is .

Quanto às re lações do Poder Púb l i co com as popu lações

nat ivas , no que se re fe re aos mode los ado tados para as

un idades de conservação , as re fe rênc ias são os padrões de

países do hemis fé r io Nor te . O p reservac ion ismo é um desses

padrões , e busca , no mane jo res t r i t i vo de á reas na tu ra is , a

me lhor fo rma de pro tegê- las . Contudo , es ta v isão não é

consensua l , e pesqu isadores como Anton io Car los D iegues e

Lu is Gera ldo S i l va de fendem uma perspec t i va conservac ion is ta ,

em que a presença de comun idades t rad ic iona is nas á reas de

reserva deve se r respe i tada , j á que esses moradores guardam,

em seus conhec imentos e p rá t i cas , mane jos que poss ib i l i t a ram

aos ecoss is temas chegar aos d ias a tua is re la t i vamente

p reservados .

Segundo War ren Dean, “ o d e c r e t o q u e p r o i b i a t o d a d e r r u b a d a

u l t e r i o r d e f l o r e s t a n a t i v a p r o v o c o u i m e d i a t a m e n t e u m t e r r í v e l d e s g a s t e : a

d e s p e i t o d e s e u s p r o t e s t o s d e s o l i d a r i e d a d e , o s a m b i e n t a l i s t a s n ã o

c o n s i d e r a v a m n e m u m p o u c o a d i f í c i l s i t u a ç ã o d o s o c u p a n t e s t r a d i c i o n a i s

d a s r e s e r v a s . O s f a b r i c a n t e s d e c a n o a s , o s c o l e t o r e s d e p a l m i t o , o s

c e s t e i r o s q u e t r a b a l h a v a m c o m b a m b u e c i p ó s e o s c o r t a d o r e s d e

s a m a m b a i a s g i g a n t e s e s a s s a f r á s f i c a v a m t o d o s a g o r a f o r a d a l e i . ” 2 4

Após um ano de man i fes tações , o Ibama apresen tou a

regu lamentação das lavouras em capoe i ra , de acordo com os

p lanos de mane jo . A lém d isso , d izem Mar iana C lauze t e Wa l te r

Bare l l a : “ o s e s t u d o s d e e t n o c o n h e c i m e n t o e g e s t ã o d e r e c u r s o s n a t u r a i s

f o r n e c e m s u b s í d i o s p a r a p o s s i b i l i t a r a p e r m a n ê n c i a d a s p o p u l a ç õ e s

h u m a n a s n a s a t i v i d a d e s d e s u b s i s t ê n c i a t r a d i c i o n a i s . ” 2 5

24 ? DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.84

25 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.49

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A permanênc ia das popu lações impõe-se não apenas em

respe i to ao e tnoconhec imento ú t i l ao desenvo lv imento de

es t ra tég ias de p reservação , mas também “ p e l a n e c e s s i d a d e d e

g a r a n t i r s e u s d i r e i t o s h i s t ó r i c o s a s e u s t e r r i t ó r i o s , m a s t a m b é m c o m o

e x e m p l o a s e r c o n s i d e r a d o p e l a c i v i l i z a ç ã o u r b a n o - i n d u s t r i a l n a

r e d e f i n i ç ã o n e c e s s á r i a d e s u a s r e l a ç õ e s a t u a i s c o m a n a t u r e z a . ” 2 6

O desdobramento dessa d iscussão se dá no âmb i to do

mane jo dessas reservas , j á que no caso b ras i l e i ro é mui to maio r

a dependênc ia de popu lações t rad ic iona is a a t i v idades

ex t ra t i v is tas re lac ionadas d i re tamente com os ecoss is temas em

que v i vem e que agora vêm sendo abrang idas pe lo p rograma

nac iona l de un idades de conservação .

Mas o p rocesso h is tó r i co de fo rmação das á reas

ambienta lmente p ro teg idas no Bras i l a inda es tá engat inhando

nessa d i reção . War ren Dean , ao ana l i sa r esse p rocesso , ressa l ta

que , na h is tó r ia recen te , ta i s p rocessos não têm ocor r ido de

fo rma sa t i s fa tó r ia : “ A s u n i d a d e s d e c o n s e r v a ç ã o a d i c i o n a d a s n o s a n o s 8 0 e i n í c i o d o s 9 0

e r a m u m a m i s c e l â n e a : v i n t e c l a s s e s d i f e r e n t e s d e r e s e r v a , c r i a d a s p o r

u m a m u l t i p l i c i d a d e d e i n s t r u m e n t o s l e g a i s ( . . . ) a l é m d e a l g u m a s u n i d a d e s

s e m r e f e r ê n c i a l e g a l r e c o n h e c i d a . E r a u m a f r a g i l i d a d e e s t r a t é g i c a ( . . . ) . ” 2 7

Dent ro dessas á reas as popu lações t rad ic iona is de

qu i lombo las , i nd ígenas , ca içaras e ca ip i ras fo ram sendo

re t i radas ou supor tadas , mesmo que recen temente tenham s ido

reconhec idas como par te in teg ran te dos conse lhos de l ibe ra t i vos

na c r iação e ges tão dessas á reas . A de f in ição u t i l i zada nessa

pesqu isa para ca rac te r iza r povos t rad ic iona is , fo i a de povos

com “ l i g a ç ã o i n t e n s a c o m o s t e r r i t ó r i o s a n c e s t r a i s ; a u t o - i d e n t i f i c a ç ã o e

26 Idem p.67

27 ? DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.107

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i d e n t i f i c a ç ã o p e l o s o u t r o s c o m o g r u p o s c u l t u r a i s d i s t i n t o s ; s i s t e m a s d e

p r o d u ç ã o p r i n c i p a l m e n t e v o l t a d o s p a r a a s u b s i s t ê n c i a . ” 2 8

Ta is ca rac te r ís t i cas encon t ram-se nas comun idades

ca iça ras pesqu isadas , podendo ser ac resc idas out ras

ca rac ter í s t i cas como o e tnoconhec imento do amb ien te em que

v ivem, es t ra tég ias de res is tênc ia , mane jo de espéc ies vege ta is

de g rande impor tânc ia gené t i ca nas roças , pe rmanênc ia de

p rá t icas a rca icas e memór ia de p rá t icas cu l tu ra is ex t in tas .

A herança ind ígena das p rá t icas co t id ianas e da p rodução

mate r ia l é um dos p r inc ipa is a rgumentos re lac ionados à ques tão

do d i re i to te r r i to r ia l e a f i rmação da ident idade por pa r te dos

ca iça ras . P r inc ipa lmente a t ravés da roça po l icu l tu ra l , que u t i l i za

o consórc io de d ive rsas espéc ies e garan te va r iedade gené t i ca ,

ca rac ter í s t i ca dos cu l t i vos ind ígenas . A p rodução de canoas ,

ces tos , tap i t i s , a rmad i lhas de pesca , fes tas , e rvas medic ina is ,

conhec imento sobre a caça e a fe i tu ra da fa r inha ass im como as

roças são conhec imentos em ex t inção na reg ião .

O processo histórico de reinvidicação dos direitos dos povos nativos foi tão

recentemente garantido pelo convenção 169, que parece ainda não ter sido

processada pelos legisladores e gestores ambientais. A Convenção 169, aprovada

em 1989 pela Organização Internacional do Trabalho, faz parte dos acordos

internacionais pelos direitos humanos e revisou parcialmente a Convenção 107

sobre Populações Tribais e Indígenas, de 1957. É importante ressaltar que essa

convenção abrange as populações tradicionais nativas, já que a tradução do texto

para o português não foi correta. A palavra inglesa indigenous não significa

apenas indígena mas também significa nativo. O que os define como tal é: “o fato

de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao

país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais

e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais,

econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.” 29

28 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.91

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Os caiçaras além de serem descendentes dos antigos povos pré-

cabralinos, conservam muitas tradições extintas no restante do território nacional.

Essas práticas não precisam ser conservadas como relicários de uma identidade,

mas devem ser respeitadas pela sua importância na organização do grupo. Nos

artigos da Convenção que mais dizem respeito às comunidades caiçaras,

percebe-se como há um conflito entre as próprias diretrizes legislativas

governamentais, que de um lado promulgam leis ambientais restritivas e de outro

sanciona acordos internacionais sobre comunidades nativas. No ano de 2006 foi

criada a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais, mas é ainda um início para a criação de políticas

públicas relacionadas ao tema. No Artigo 14 da Convenção 169, lê-se:        “1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de

posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão

ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não

estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso

para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial

atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

23.1 - O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais

e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a pesca

com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da manutenção

de sua cultura e da sua auto-suficiência e desenvolvimento econômico. Com a participação desses

povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e

fomentadas essas atividades.”30

Cap i tu lo I I

A v ida ca iça ra e sua herança ind ígena.

“ M i n h a B i s a v ó p o r p a r t e d e p a i , e l a é d e s c e n d e n t e d e u m a t r i b o q u e t i n h a a q u i n a J u a t i n g a , n o p a s s a d o . O c a c i q u e d a q u i d a J u a t i n g a , o

29DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.3430 Organização Internacional do Trabalho - OIT, Convenção 169 de 7/6/1989. Em vigor em 5 de setembro de 1991. Aprovado pelo Congresso Nacional 25/8/1993. Sítio DHNET - http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/indios/conv89.htm, 2006.

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r e g e n t e d a q u i d a J u a t i n g a c h a m a v a - s e c a c i q u e E d u . É i s s o q u e a h i s t ó r i a c o n t a , n é . ”

S . O l í m p i o / P o n t a d a J u a t i n g a 3 1

Nos re la tos fe i tos pe los moradores , os ca iça ras ant igos são descr i tos como possu idores de uma re lação mais es t re i t a com a mata que os ca iça ras a tua is . As p rá t i cas co t id ianas abrang iam co le ta ex t ra t i v i s ta de cocos de pa lmei ra , da qua l e ra preparada uma aprec iada fa r inha , f ru tas , c ipós , pa lha , made i ra para as hab i tações , á rvo res para o fe i t i o de canoas , mater ia is pa ra a r tesanato , o ba r ro para o pau a p ique , a caça e an ima is de es t imação. A lém d isso , a agr i cu l tu ra e ra fe i ta em te r renos de vege tação densa de capoe i ra em regeneração ant iga ou f l o res ta ve lha .

Todas essas prá t i cas es tão re lac ionadas com tecno log ias ind ígenas de adaptação ao ecoss is tema envo lvente . Independen te de a herança ind ígena te r s ido gené t i ca e /ou cu l tu ra l e esses povos serem descenden tes dos Gua ianás loca is ou de ou t ras t r i bos rea locadas , é impor tan te perceber que sua cu l tu ra mate r ia l e ima te r ia l tem ra ízes ind ígenas . O fazer fa r inha , a que imada con t ro lada , denominada co ivara a té os d ias de ho je , as a rmad i lhas de caça , os laços , as cu ias , o tabaco, os t rançados , ba la ios , a cerâmica , a época dos p lan t ios , o pe ixe seco, as sementes , as t r i l has e a puxada de canoa que remonta inc lus ive p rá t i cas de hab i tan tes p ré-h is tó r i cos . Inc lus ive a t ravés da nominação, t ap i t i s , co ivara , t a ioba , u rucum, para t i , Jussara , Inda iá en t re tan tos out ros nomes de armad i lhas de pesca e caça bem como de a l imen tos e lugares . P rá t icas encon t radas na Penínsu la são t i das por ex t in tas em a lgumas reg iões :

“ o s v e l h o s d e s c r e v e m c o m o c o i s a d e o u t r a e r a , n ã o a p e n a s o t i p i t i ( t a p i c h i ) , o s i s t e m a d e a l a v a n c a i n t e r p o t e n t e c o n s t i t u í d o p e l o c ô c h o e a t a b u a d a p r e n s a , m a s a p r ó p r i a m a n d i o c a a m a r g a o u , ( . . . ) a t u a l m e n t e d e s a p a r e c i d a ? ” 3 2

Os pesqu isadores da temát i ca ca içara como D iegues e Pau lo Nogara apon tam para essa herança ind ígena, que começa a par t i r do nome ao qua l se reconhecem: CAIÇARA , que segundo o d i c ionár io de Tup i e ou t ras fon tes , s ign i f i ca a pa l i çada que ce rcava as a lde ias tup i -guaran i , também denominando seus hab i tan tes . A prá t i ca desses ce rcamentos a inda é mu i to comum ent re os hab i tan tes da cos te i ra . Se ja os moradores da iso lada Rombuda, que por se r apenas uma casa envo l ta po r uma densa f l o res ta na prox im idade dos rochedos , fo i ce rcada para d i f i cu l ta r o acesso de an ima is da mata , pa ra a á rea hab i tada , e do acesso

31 Pesquisa de campo nº1. Comunidade da Ponta da Juatinga / maio 2005.32 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.40

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das c r ianças à mata . Ass im também acon tece nas casas das v i l as , como no Sono, onde a casa da famí l i a de Dona Ba íca é toda ce rcada para ev i ta r o acesso de es t ranhos e ev i ta r a fuga dos an ima is domést i cos .

No impor tan te documento que é o l i v ro Lavoura Ca iça ra , Schmid t em 1958 , esc reve em fo rma de documentá r io da v ida ru ra l , em uma sér ie ed i tada para o M in is té r io da Agr icu l tu ra os modos da p r inc ipa l a t i v idade de p rodução ca iça ra , a fa r inha . Esse cará te r de co le ta de reg is t ros sobre p rá t icas a rca icas da popu lação bras i le i ra que acompanha toda a década de 50 , tendo seu in íc io com os modern is tas de 22 e se es tendendo a té a década de 70 , o fe rece dados de campo fundamenta is . Nes te documentá r io sobre a lavoura ca içara , o tema é a roça de mand ioca , suas o r igens ind ígenas , a co iva ra , as denominações das ramas, o p rocesso de cu l t i vo , co lhe i ta , p rocessamento e escoamento da p rodução f i na l , bem como os laços comun i tá r ios e s is tema de d is t r i bu ição de te r ras . Um dos aspec tos ana l i sados é a p resença de casas de fa r inha p róx imo as morad ias , a lgumas a té den t ro das casas , como na Pon ta da Juat inga . “ A c a s a d e f a r i n h a e m í n t i m a a s s o c i a ç ã o c o m a m o r a d a s e r i a u m a s o b r e v i v ê n c i a i n d í g e n a n a c u l t u r a a t u a l d e n o s s a s p o p u l a ç õ e s c a b o c l a s . ” 3 3

Na cos te i ra , en t re tan to , ex i s tem re la tos que se re fe rem a métodos a inda ma is p r im i t i vos que os apresen tados no l i v ro . Segundo o auto r , a mand ioca co lh ida era ra lada , ou em ra ladores rús t i cos de la ta manua lmente , em rodas de g i ro manua is , ou mov idas a moto r . Na cos te i ra , os re la tos se re fe rem a ba te r a mand ioca na pedra , p rá t i ca também encon t rada no p rocessamento ind ígena para a ob tenção da massa para a fa r inha . A lém d isso, mu i tos dos nomes das va r iedades gené t i cas são ind ígenas a lém do fa to de se rem a inda encon t radas em cu l t i vo , rep resentando um impor tan te banco gené t i co .

33 Idem. p.57

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A Roça

“ O c o n c e i t o d e c u l t u r a e s t á i n t i m a m e n t e l i g a d o à s e x p r e s s õ e s d a a u t e n t i c i d a d e , d a i n t e g r i d a d e e d a l i b e r d a d e . E l a é u m a m a n i f e s t a ç ã o c o l e t i v a q u e r e ú n e h e r a n ç a s d o p a s s a d o , m o d o s d e s e r d o p r e s e n t e e a s p i r a ç õ e s , i s t o é , o d e l i n e a m e n t o d o f u t u r o d e s e j a d o . P o r i s s o m e s m o , t e m d e s e r g e n u í n a , i s t o é , r e s u l t a r d a s r e l a ç õ e s p r o f u n d a s d o s h o m e n s c o m o s e u m e i o , s e n d o p o r i s s o o g r a n d e c i m e n t o q u e d e f e n d e a s s o c i e d a d e s . D e f o r m a r u m a c u l t u r a é u m a m a n e i r a d e a b r i r a p o r t a p a r a o e n r a i z a m e n t o d e n o v a s n e c e s s i d a d e s e a c r i a ç ã o d e n o v o s g o s t o s e h á b i t o s , s u b - r e p t i c i a m e n t e i n s t a l a d o s n a a l m a d o s p o v o s c o m o r e s u l t a d o f i n a l d e c o r r o m p ê - l o s , i s t o é , d e f a z e r c o m q u e r e n e g u e m a s u a e , d e i x a n d o d e s e r e l e s p r ó p r i o s . M i l t o n S a n t o s - D a C u l t u r a à I n d u s t r i a C u l t u r a l 3 4

É cen t ra l pe rceber que o cu l t i vo ind ígena de a l imentos , ap resen ta uma a l ta taxa de va r iedade genét ica para cada espéc ie cu l t i vada em consórc io . Opos ta é a agr icu l tu ra contemporânea que p r io r i za poucos t i pos para cada espéc ie , as cu l t i vando em monocu l tu ras denominadas p lan ta t ion , que por concen t ra r mui tos ind iv íduos seme lhan tes , demanda adubos químicos e a l ta taxa de pes t i c idas . Dessa fo rma os Guaran i p lan tam mi lho ve rme lho , amare lo , p re to , b ranco e ra jado em s is temas de manda la com g i rassó is que combatem as pragas e em consórc io com fe i j ões , abóboras e amendo ins que n i t rogenam, adubam e a fo fam o so lo s imul taneamente . Ass im também os ant igos ca içaras consorc iavam suas p lan tas e a lguns poucos a inda o fazem, como Dona Mar ia da Pra ia Grande e Seu Ol imp io da Ponta Jua t inga, p lan tando fe i j ão ve rmelho g raúdo , pequeno , mar rom, mar ram ra jado de bege , bege ra jado de ve rmelho, bege ra jado de mar ram, p re to e b ranco . São guard iões de sementes ind ígenas que o moderno mercado de sementes sobrepu jou . Também possuem mamões amare los , averme lhados , e esbranqu içados , de uma var iedade da Mata A t lân t i ca que fo i comerc ia lmente sobrepu jada pe lo Papa ia amazôn ico .

Mu i tas ou t ras espéc ies são ass im cu l t i vadas com grande poo l gené t i co e apresen tando espéc ies pra t icamente ra ras se comparadas em número com as lavouras comerc ia i s contemporâneas . O aspec to do consórc io en t re vege ta is , onde o mi lho é p lan tado com o fe i j ão , com as abóboras e melanc ias no entorno . O fe i j ão Guandu , mu i to aprec iado na reg ião , com f ru te i ras , abacax is e ba ta tas doces , guarda em s i uma tecno log ia empí r ica de conservação da fe r t i l i dade do so lo a t ravés da t roca de nu t r ien tes . Essas p rá t i cas ind ígenas que fo ram a base para as pesqu isas agroeco lóg icas de Migue l A l t ie r i e B i l l Mo l l i son e são ho je a meta do Min is té r io do Desenvo lv imen to Rura l pa ra

34 SANTOS, Milton. Da Cultura à Indústria Cultural. Periódico MAIS! Nacional, 19/03/2000.

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áreas de agr icu l tu ra fami l i a r e ún ica espéc ie de cu l t i vo permi t i da por le i em á reas de reserva .

Ass im as le i s federa is em adequação aos acordos mu l t i l a te ra is i n te rnac iona is de adequação da p rodução para a sus tentab i l idade , redução de insumos po luentes e cont ro le da deser t i f i cação vão em d i reção a uma p rá t i ca loca l , de ra ízes ind ígenas . No fundo , o que i sso represen ta é que um processo h is tó r i co g loba l es tá indo ao encon t ro da h is tó r ia l oca l de uma p rá t ica t ransmi t ida ances t ra lmente geração por ge ração. O desprezo europeu pe las técn icas ind ígenas no momento da co lon ização , apesar do uso genera l i zado da co iva ra , ho je passa por uma rev isão. Os técn icos começam a perceber que a cu l tu ra ind ígena o fe rece a contemporane idade so luções empí r i cas para uma me lhor adequação ao ecoss is tema Ter ra , ho je já so f rendo fo r tes impac tos da degradação g loba l . Um c í rcu lo se fecha no sent ido de macropo l í t i cas de f in i rem usos que a t ingem mic rocon jun tos e de les ex t ra í rem sua base teó r i ca , con f igu rando uma rede de s is temas que se in te rconec ta , segundo Mor in , sendo o s i s tema s imples apenas “uma abs t ração d idá t ica ” .

En t re tan to , essas p rá t i cas loca is so f rem o impac to cu l tu ra l das lavouras comerc ia is monocu l tu ras que desde a época co lon ia l ocupam a reg ião com engenhos de cana-de-açúcar , ca feza is , banana is e de a l imen tos segu indo os c ic los p rodu t i vos nac iona is . Mu i tos ca iça ras p lan tam desde a época dos pa is , mas não dos avós , as espéc ies separadas , m i lho com mi lho , fe i j ão com fe i j ão e mand ioca separado. Essas p rá t i cas reduzem a fe r t i l i dade do so lo , esgotando os nu t r ien tes apresentando apenas uma var iedade p lan tada no loca l . Há uma a l te ração do mane jo t rad ic iona l , que apresen ta so luções empí r i cas baseadas na observação dos ecoss is temas na tu ra is da Mata A t lân t i ca , e so luções como o consórc io e a va r iedade gené t i ca que im i tam as cooperações en t re espéc ies na mata . A t ravés da h is tó r ia l oca l podemos perceber que essas mudanças fo ram an te r io rmente poss ib i l i tadas pe la der rubada de á reas f lo res tadas em método de co iva ra (que imada con t ro lada) que poss ib i l i tava a adubação e cont ro le de fe r t i l i dade do so lo .

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D . M a r i a e s e u f a c ã o n a a n t i g a r o ç a . 3 5

Com as le i s amb ien ta is que fo ram ins t i tu ídas no loca l após a c r iação da Reserva da Jua t inga , as que imadas fo ram pro ib idas , apesar de anua lmente a inda ocor re rem, inc lus ive em áreas não agr i cu l táve is apenas para mante r o te r reno “ l impo” . I sso se deve ao t raba lho inex is ten te dos ó rgãos amb ien ta is de consc ien t ização e educação amb ien ta l , o fe recendo técn icas de mane jo a l t e rna t i vas como a compos tagem, mu l t e adubação o rgân ica . Ass im os ó rgãos púb l i cos esperam que p rá t icas ances t ra lmente t ransmi t idas desapareçam por o f íc io leg is la t i vo e a tuando na reg ião apenas de fo rma pun i t i va ou de incent ivo ao tu r i smo. Essa fa l ta de esc la rec imento gera uma fo r te imagem nega t i va dos na t ivos para com as le i s ambien ta is , que não compreendem, a l te ram seu mane jo e a inda se vem em s i tuação de r isco podendo se r au tuados . Não há va lo r i zação do e tnoconhec imento ca iça ra , como o de cont ro le de p ragas . Um método que pode a té ser cons iderado agroeco lóg ico : “ o c a i ç a r a c o n s e g u e e l i m i n a r a l g u n s f o r m i g u e i r o s d e s p e j a n d o n o s o l h e i r o s o l í q u i d o r e s u l t a n t e d a p r e n s a g e m d a m a s s a d a m a n d i o c a - b r a v a r a l a d a ( á c i d o c i a n í d r i c o ) , n a s o c a s i õ e s e m q u e d e s m a n c h a a m a n d i o c a . ” 3 6

Os g r i l e i ros também a tuam press ionando pe lo f im das roças . Para isso , se amparam nas le is amb ien ta is e em a lguns de seus agentes . O cont ro le do uso da te r ra para a agr icu l tu ra modi f i ca a mane i ra de se perceber a posse , l ogo a d im inu ição do espaço u t i l i zado acar re ta uma d im inu ição do l im i te do uso , que é o fa to r de te rminan te da posse. 35 Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba setembro 2005.36 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958. p.68

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At ravés da pesqu isa de campo, se con f i rmaram as aná l ises b ib l iog rá f i cas , p r inc ipa lmente do l i v ro Lavoura Ca iça ra , de Schmid t , que o ca iça ra tem uma ra iz ag r í co la mu i to p resen te a inda ho je em seu co t id iano. Mesmo nas comun idades da Penínsu la que não v ivem d i re tamente das roças , o conhec imento e tnobo tân ico a inda es tá v ivo na ma ior ia dos adu l tos a té a fa ixa dos t r i n ta anos . Ass im a imagem do ca iça ra pescador que vem sendo pouco a pouco fo r jada inc lus ive pe los p rópr ios ca iça ras ma is jovens , nega par te da memór ia e da ident idade co le t iva , se rv indo mu i tas vezes a in te resses u rbanos . Há um desrespe i to à h is tó r ia desse povo , a t ravés da cons t rução de uma ident idade do ca içara como apenas pescador . Ass im sua l i gação com a te r ra é apagada bem como seus d i re i tos a p rodução na mesma que são subs t i tu ídos agora pe lo d i re i t o à pesca .

A C a ç a

“ U m a i m p o r t a n t e n e c e s s i d a d e a l i m e n t a r , c o m o a c a r n e , s o f r e s e v e r a r e s t r i ç ã o , p o i s a d i m i n u i ç ã o d a c a ç a n ã o é c o m p e n s a d a p o r u m a b a s t e c i m e n t o r e g u l a r d e c a r n e d e v a c a . O r e s u l t a d o d u p l a m e n t e r e s t r i t i v o é a a t r o f i a d e t e c n o l o g i a v e n a t ó r i a e , n o p l a n o n u t r i t i v o , d e u m e l e m e n t o f u n d a m e n t a l d a d i e t a . ” A n t o n i o C â n d i d o – O s P a r c e i r o s d o R i o B o n i t o . 3 7

Toda essa prob lemát i ca se rve também para a de l icada ques tão da caça , que é v i s ta pe la popu lação u rbana inc lus ive os c r iadores de le i s amb ien ta is , como uma p rá t ica a rca ica que deve se r ban ida para que as espéc ies da fauna possam sobrev ive r . En t re tan to , ques tões como a função mág ico - re l ig iosa , a o rgan ização soc ia l e a t ransmissão de técn icas ind ígenas passam por todo un ive rso da caça e seus métodos de percepção do mundo natu ra l e i n te ração homem-mata . A lém d isso , o pape l p ro té i co rep resen tado pe la ca rne de caça no per íodo de escassez da pesca, e a so lução de comprar carne de bo i de á reas de pas tagens , que c i c l i camente que imam áreas da p rópr ia Mata A t lân t i ca , não são ana l i sados . A c r iação de v i ve i ros de an ima is s i l ves t res para consumo humano, como já ex is te na Ponta Negra no caso do macuco , não são cons iderados . As h is tó r ias de v ida dos ca içaras ant igos demons t ram essa re lação e se rvem de parâmet ro para se ava l ia r as prá t i cas dos ca iça ras a tua is .

37 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.46

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Segundo An tôn io Cand ido , a ques tão da caça é ma is complexa do que a s imp les necess idade a l imentar : “ a c a ç a , q u e t e n d o c o m o p o n t o d e p a r t i d a a o b t e n ç ã o d e c a r n e , d á l u g a r a s i s t e m a s c o m p l e x o s , c o m r e p e r c u s s õ e s a f e t i v a s , m á g i c a s , a r t í s t i c a s , p o l í t i c a s – s a b e n d o – s e q u e e m m u i t o s c a s o s a l i d e r a n ç a p o l í t i c a s e e s b o ç a e m f u n ç ã o d e l a . ” 3 8

Um dos ca iça ras ant igos ma is conhec ido , inc lus ive pe los ma is novos em vár ias pra ias da reserva é Seu Bened i to Caçador , avô de Seu Maneco de Mar t im de Sá . Segundo os depo imentos e ra um ex ímio caçador , do rmindo na mata por d ias segu idos , soz inho sem temer onças ou ou t ros an imais . Segundo Seu Maneco , ne to de le , Seu Bened i to e ra f i lho de uma índ ia e mes t re em armad i lhas de caça . Os ma is an t igos , como fo i levan tado nas ent rev is tas , não u t i l i zavam armas de fogo , po rque caçavam e pescavam em abundânc ia se se rv indo de a rmadi lhas de c ipós e taquaras . Esse conhec imento ind ígena conservou inc lus ive os nomes como mundéus , a rapucas e a ra tacas .

Os en t rev is tados fo ram unân imes em d ize r , quando pergun tados sobre a o r igem dessas a rmad i lhas que e ram “co isa de índ io ” , ass im como o fe i t i o da fa r inha , da canoa e a co iva ra . Um dos en t rev is tados se lembrava do pa i con tar sempre que houve uma época an tes dos b isavós em que os ca iça ras e os índ ios v i v iam jun tos naque la cos te i ra , sem a t r i to e se casando uns com os ou t ros . Segundo o in formante não hav ia con f l i tos porque senão esses também ser iam inc lu ídos na mesma nar ra t i va e que o que e ra con tado é que v i v iam em harmon ia fug indo dos brancos e se i so lando no in te r io r das matas .

A caça é um dos p r inc ipa is fa tores de in te ração do ca içara com a f l o res ta . A procura do an ima l faz com que o caçador em s i l ênc io en t re cada vez ma is fundo na mata segu indo ras t ros de an ima is , decod i f i cando sons , im i tando os b ichos que quer caçar ou suas p resas . O caçador sabe o loca l exa to de á rvores f ru t í fe ras , águas de beber e tocas de pedra , onde dorme. É uma a t i v idade mascu l ina , que fo r ta lece os laços comun i tá r ios e fami l i a res . Mas após a p ro ib ição é cada vez menos pra t i cada e esse con ta to mais d i re to com as matas ve lhas do fundo dos va les tende a se ex t ingu i r .

P rá t i cas Ex t in tas e Re l ig ios idade

38 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.64

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M a g i a , m e d i c i n a s i m p á t i c a , I n v o c a ç ã o d i v i n a , e x p l o r a ç ã o d a f a u n a e d a f l o r a , c o n h e c i m e n t o s a g r í c o l a s f u n d e m - s e d e s t e m o d o n u m s i s t e m a q u e a b r a n g e n a m e s m a c o n t i n u i d a d e , o c a m p o , a m a t a , a s e m e n t e , o a r , o b i c h o , a á g u a e o p r ó p r i o c é u . ” A n t o n i o C â n d i d o - O s P a r c e i r o s d o R i o B o n i t o . 3 9

Os in fo rmantes em mu i tas p ra ias con ta ram que os an t igos iam mui to ma is a mata que os a tua is , como podemos perceber na h is tó r ia de Seu Bened i to . O pa i do Careca , do Ca lheus , descreveu esse caçador com admi ração , j á que a lém de passar per íodos pro longados na mata , não levava v í veres e se a l imentava do que caçava e dos a l imen tos que a mata o fe rec ia . Conhec ia toda a reg ião da cos te i ra , os caminhos in te r io res das encos tas e os p i cos das se r ras .

Out ra personagem impress ionan te é da Pon ta Negra , avó de uma imensa pro le , a té o f im da v ida morou em uma caverna que f i cou conhec ida como sua . Apesar dos ped idos dos f i l hos para que morasse em suas casas , ins i s t i u em cont inuar em sua toca a té o f im da v ida , cu idando com ze lo do loca l e cos tumei ramente sendo encon t rada va r rendo a en t rada da caverna , que e ra ce rcada pe la mata . Esse não é o ún ico re la to de moradores de tocas , que parece se rem con t inuamente hab i tadas seden tá r ia ou sazona lmente . A tua lmente os ca iça ras as u t i l i zam quando saem a caçar pe lo in ter io r da mata e dormem ne las como fo rma de abr igo .

Os an t igos t i nham háb i tos a l imentares aus te ros . Em gera l os pa is , dos mais ve lhos moradores a tua is , segundo es tes , não comiam co isas compradas na c idade. Pre fer iam se a l imen ta r de banana verde coz ida com pe ixe seco, f i na iguar ia ca iça ra , a inda p ra to pre fer ido pe los ma is ve lhos , mas re je i t ada por a lguns jovens . Segundo D .Lorença , sua mãe só comia banana verde assada no ca fé da manhã , cabeça de so rgo ou fe i j ão que e la t i vesse p lan tado , comidas compradas de mane i ra a lguma. Para D.Lorença fo ram es tes háb i tos a l imen ta res e a ro t ina de t raba lho na roça e na pesca a té mor re r , que poss ib i l i ta ram sua mãe chegar com mu i ta saúde a té uma idade tão avançada . São vár ios os re la tos dos ca içaras ve lhos que ao se mudarem para a c idade com os f i l hos , mor re ram numa ques tão de semanas , ou cont ra í ram graves doenças e der rames. Mui tos a t r i buem as doenças à mudança da ro t ina de t raba lho que os ve lhos segu iam a té mor re r , cu idando de suas roças e seus ce rcos de pesca , a l i adas a mudança dessa a l imen tação aus te ra , po rém saudáve l e r i ca em nu t r ien tes . Os moradores da cos te i ra se orgu lham mu i to

39 CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.32

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de seus an tepassados , que chegavam a 100, 108 anos , mu i tas fo ram as re fe rênc ias à pa is , avós e t ios que v i ve ram a té a casa dos cem em a t i v idade e luc idez .

Seu Maneco conta que seu pa i , Roque Fermiano , a par t i r da década de 70 , não consegu ia ma is comer o pe ixe pescado na a r reben tação . Comia e cusp ia , d i zendo sent i r um gos to insupor táve l de ó leo . A lém d isso , comidas como a paçoca de banana com touc inho, o ca fé de cana, o b i ju , a ba ta ta-doce assada , o amendo im, a ra i z da ta ioba, a ta inha coz ida com fe i j ão guandu, sobrev ivem apenas nas comun idades ma is i so ladas ou em a lgumas famí l i as apenas . A lém da mudança no reg ime das a t i v idades , o f im das roças acar re ta um prob lema de segurança a l imentar , já que com d inhe i ro da pesca ou do tu r ismo, os ca iça ras ao fazerem as compras na c idade , não compram os p rodu tos t rad ic iona is como ba ta tas -doces , amendo im e ca rá , que não são va lor i zados como p rodutos que va lham a pena se rem comprados . Ao invés d isso , compram grandes quant idades de b isco i tos de água e sa l , roscas e recheados doces que se rvem de ca fé e lanche p r inc ipa lmente para as c r ianças .

En t re os an t igos ca iça ras , e ram f reqüentes também os ba i les ru ra is e as fes tas re l ig iosas . Acon tec iam quase que semana lmente , var iando de p ra ia em pra ia . Grandes ba i les e ram fe i tos pe los fes te i ros de cada p ra ia , os ba i les comentados como mu i to bons e ram os do Mamanguá, na Pra ia do Cruze i ro , na Pra ia Grande , no Pouso e na Pon ta Negra . E ra um impor tan te espaço de soc ia l i zação em que os moradores das pra ias a fas tadas pod iam encon t ra r -se , os jovens a r ran ja rem namoros , os ma is ve lhos passarem aos ma is jovens conhec imentos , j á que hav ia a dança dos ve lhos , dos adu l tos , dos jovens e das c r ianças . Dançavam as c i randas , o ba te-pé , o carangue jo , o lenço , a dança dos ve lhos , dos maru jos , en t re ou t ras que são lembradas com nos ta lg ia pe los mais ve lhos e pe los jovens que a inda v i ram seu f i na l . E ram danças de roda , com t roca de casa is , em que a marcação e ra fe i t a na ba t ida do tamanco de made i ra no chão de tábuas cor r idas .

A dança ia a té o amanhecer , g randes fogue i ras e ram acesas na época do São João, ba ta ta -doce , m i lhos , a ip ins , b i j us puvus e ram assados na b rasa e às 4 horas da manhã t rad ic iona lmente e ra serv ido o ca fé -de-cana com b i ju . Beb ia-se cachaça , mas não hav ia d i sputas , os casa is se separavam na cont radança e ba i lavam com ou t ros pares . Os mús icos tocavam v io las , pande i ros de couro de cu t ia , t ambores e a laúdes . A bande i ra do D iv ino Esp í r i to San to percor r ia todas as p ra ias , do Saco do Mamanguá à p ra ia do Sono , reco lhendo doações e tocando seus ins t rumentos . Na Pra ia do Pouso , Seu Migue l v io le i ro , se lembra das fes tas com saudade e d i z pesaroso tocar sua v io la , agora soz inho no quar to . Pode-se perceber que essas

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fes tas também t razem em par te a fusão da t rad ição ibé r ica , vo t i va , com a in tens idade das fes tas ind ígenas e a f r i canas , que v iv ia na fes t i v idade uma mani fes tação do sagrado e da un ião do g rupo , as u t i l i zando como marcadores tempora is de processos co le t i vos .

Dona Mar ia , Dona D i lma, Seu Migue l , Dona Teté ia , Seu F i lh inho , são os que guardam essa memór ia v i va , que fo i desaparecendo len tamente ass im que as ig re jas p ro tes tan tes fo ram se ins ta lando a par t i r da década de 30 . As ig re jas pro íbem seus f i é i s de par t i c ipar das man i fes tações popu la res que c lass i f i cam como “co isas do demôn io ” . Houve ass im a separação dos ba i les an t igos em que todas as idades par t i c ipavam, para os ba i les a tua is em que o fo r ró de ra ízes nordes t inas e o b rega nor t i s ta , são o d ive r t imen to apenas de jovens e adu l tos . As beb idas a lcoó l icas são mu i to consumidas e b r igas e t i ro te ios são f reqüen tes , havendo uma d isc r im inação a inda ma io r pe los não par t i c ipan tes . Ass im não há ma is nenhum espaço co le t ivo de conv ív io dos moradores da cos te i ra , sendo os campeonatos de fu tebo l a ún ica fo rma de in tercâmb io en t re as pra ias .

A chegada das ig re jas pro tes tan tes desorgan izaram a p rodução, no sent ido que , ao a fe tar os laços de compadr io , separando em c ren tes e descrentes e a tos evangé l i cos e demoníacos , i n f l uenc iou a fo rmação de g rupos d is t i n tos den t ro de uma mesma comun idade . Os r i tos que acon tec iam na época das co lhe i tas , na época do São João e em cu l to a pescar ia e a Iemanjá , f o ram ro tu lados de prá t i cas demoníacas e fo ram pouco a pouco perdendo espaço . Ass im as prá t i cas t rad ic iona is fo ram sumindo p r ime i ro do imag inár io pa ra depo is se perderem na p rá t ica .

Out ro impor tan te impac to fo i a u t i l i zação dos pas to res evangé l i cos no convenc imento dos ca içaras a ass inarem documentos fo rnec idos por g r i l e i ros . Ou t ra c rença p ro tes tante que a inda ho je imp l i ca em mu i tas conseqüênc ias , é a da p redes t inação d iv ina . Mu i tos ca iça ras evangé l i cos ac red i tam que as co isas acon tecem porque deus ass im de te rminou , não havendo mot i vos para res is t i r . É recor ren te essa a rgumentação ent re os evangé l i cos , não aparecendo no re la to dos não-evangé l i cos , em gera l ma is esc la rec idos , já que buscam compreender os p rocessos de d ispu ta por sua te r ra .

A lém d isso , ao mod i f i ca r a cosmogon ia t rad ic iona l , tão mesc lada de um ca to l i c i smo arca ico , m i tos ind ígenas e a f r i canos , houve uma perda da iden t idade g rupa l , t an to en t re s i quan to em re lação ao espaço em que hab i ta . Os pon tos de re fe rênc ia passaram da morada da Mãe-do-Ouro no P ico do Ca i ruçu, pa ra os temp los evangé l icos da ba ixada f l uminense , e seus d íz imos mensa is . Essa descarac te r i zação cu l tu ra l

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i n f luenc iou no p rocesso de desva lo r ização do loca l e va lo r i zação do êxodo para a c idade.

Esse p rocesso que se in tens i f i cou com a chegada da BR-101 , poss ib i l i t ou ig re jas evangé l icas , sempre em busca de novos f i é is , a con tac ta rem popu lações an tes mu i to d is tan tes . Nesse p rocesso de expansão da u rban idade , ou t ros agentes chegaram pe lo mesmo caminho .

Na reg ião do Saco do Mamanguá , as comun idades ca iça ras tem uma p resença negra mu i to fo r te . Cu l tos a f ro -amer i canos ocor r iam em te r re i ros e a presença de “ ten tos ” , ou sac is , f o i mu i to re la tada . Contou Seu Bened i to , da Pra ia do Cruze i ro , que na época de seu pa i , o ú l t imo g rande fes te i ro do Saco, ao se o lhar a ou t ra margem a no i te , se av is tavam incon táve is l uz inhas ve rme lhas , dos cach imbos dos ten tos . Bem d i fe ren tes das luzes verdes dos vaga- lumes , os ten tos se “mudaram” segundo Seu Bened i to , após a conversão mac iça ao p ro tes tan t ismo.

Fes tas a Ieman já permaneceram na reg ião , dev ida a fo rça do arqué t ipo que represen ta . Essa en t idade a f roamer icana , l i gada aos cu l tos de femin i l idade e governança das águas , é mu i to reverenc iada pe los pescadores e aque les que dependem do mar . Na Pen ínsu la , ocor rem r i tua is em sua homenagem, na passagem do ano . A lém d isso , na cape la da inab i tada I taoca, encon t ra -se no cent ro do rús t ico a l ta r , uma imagem de Ieman já , ce rcada pe las ou t ras imagens c r i s tãs de Nossa Senhora , São Jo rge , Jesus e São Cosme e Damião . Sobre essa cape l inha também, é impor tan te comenta r , que guarda um enorme c ruze i ro , que sus ten ta a cape la e nes te se encon t ra pendurado um tambor de fo l i a , f u rado .

As in te rações en t re a re l ig ios idade c r i s tã e os r i t ua is co le t i vos fes t i vos e s inc ré t icos , podem ser po r essas p resenças nes ta cape la , pe rceb idas em sua complex idade . Mas com cer teza, o que guarda também é uma aura de passado , em ru ínas , de a lgo que se acabou , e apenas ves t íg ios , mate r ia i s ou o ra is que com o passar do tempo, tendem a ex t inção.

Out ras mani fes tações de uma cu l tu ra a rca ica , que guarda ra ízes no per íodo co lon ia l , fo ram encon t radas nas ou t ras pra ias . Houve uma menção reservada ao l i v ro de S .C ipr iano , f e i ta po r S .Ap l íg io , do Ca i ruçu das Pedras . Esse g rande contador de h is tó r ias con tou que esse l i v ro era usado para fazer b ruxar ias e re la tou um caso de um ve lho , lá do Ca i ruçu mesmo, que consegu iu se casar com a jovem sobr inha, g raças aos conhec imentos do l i v ro que t inha.

No Ca i ruçu das Pedras , uma das comun idades mais i so lada da reserva e ma is preservada também, ex is te um encan tado na cachoe i ra g rande . Essa en t idade , mas parece um fenômeno, ou uma energ ia , que se man i fes ta em cachoe i ras ,

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l ugares da cos te i ra , em a l to mar e p i cos das se r ras . Essa do Ca i ruçu faz desaparecer qua lquer ob je to que ca ia na água rasa e c r i s ta l ina da queda . O Jango , pe rsonagem fabu loso e i rmão ma is novo de F ranc ino , ces te i ro , é que con tou um a um todos os ob je tos perd idos , que por mais que e ram procurados jama is vo l tavam, sendo esse e fe i to g raças a esse encantado .

Há uma conv ivênc ia com esses fenômenos sobrena tu ra is , já que a cachoe i ra é o lugar em que se faz a barba , se co r ta o cabe lo , se namora e toma banho quando se tem a lgum compromisso espec ia l . Em ou t ras comunidades também houve re la tos desses encan tados , p r inc ipa lmente a Mãe do Ouro , mu i to conhec ida na reg ião . Con tam que de se te em sete anos essa luz g igante sa i de sua casa com um imenso es t rondo indo do P ico do Frade, em Angra , pa ra a Pedra da Arara , no Pouso . Ex is tem var iações que ind icam out ros t ra je tos como da Pedra da Arara para o P ico do Ca i ruçu .

Nav ios encan tados , l ob isomem cor re se te p ra ias , mu lher de b ranco , homem de pre to e a inc r íve l h i s tó r ia da cu rup i ra . Essa personagem é descr i ta como um an ima l pe ludo, sombr io , comedor de ca rne humana, morador de tocas do fundo da mata . O re la to ma is comum começa , com a h is tó r ia de um homem que morava na cos te i ra e um d ia fo i seqües t rado pe la curup i ra e obr igado a te r um f i l ho com e la . Por a í a h is to r ia va i .

Encon t ramos qua t ro núc leos onde os moradores não apenas contam essas h is tó r ias , como também ne las tem p ro fundo respe i to e temor . Na Pra ia do Pouso , o jovem G i l son , f i lho do ve lho v io le i ro M igue l , sabe todo o reper tó r io . Seus amigos , t emerosos do aparec imento de a lguma mu la sem cabeça no caminho de casa , pedem a lan terna empres tada para vo l ta r para casa . As c r ianças da Ponta Juat inga também, con tam do lob isomem cor re se te p ra ias , e os já menc ionados Ca i ruçu das Pedras e Pon ta Negra . Essas comun idades não so f rem fo r tes in f luênc ias das ig re jas p ro tes tan tes , razão pe la qua l ta lvez tenham mant ido a lguns re la tos .

A essas mani fes tações cu l tu ra i s fo rmadoras da iden t idade co le t i va e a l i ce rce das re lações com o amb ien te que os ce rca , jun tam-se as h i s tó r ias do c i c lo de Pedro Ma lasar te , do tempo em que os b i chos fa lavam, h i s tó r ias ca ta logadas como ind ígenas ; as mani fes tações fes t i vas , mus ica is e as rezas , que congregavam a comun idade nos f i ns de ta rde, com as lada inhas e te rços . Ao que parece , essas man i fes tações consegu i ram conv ive r e inc lus ive se enca ixa r no ca lendár io ca tó l i co . Nesse sent ido , pa rece que o ca to l i c i smo consegu iu conv ive r de fo rma ma is s inc ré t ica com as mani fes tações da re l i g ios idade e da cu l tu ra popu la r l oca l .

Apesar das p ro ib i ções , um s inc re t ismo pode ser perceb ido , i nc lus ive nos ca iça ras p ro tes tan tes . Seu Bened i to do Mamanguá, e os ten tos , Seu Maneco e o impor tan te pape l de

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seus sonhos na dec isão de ques tões p ra t i cas . Sabe-se que é um cos tume ind ígena par t i l hado por d ive rsas t r i bos , de cons idera r os sonhos como conse lho , av isos ou p remonições . No caso dos ca iça ras não há como a f i rmar se se r ia uma herança ind ígena , mas na soc iedade oc iden ta l , e na cu l tu ra p ro tes tan te em gera l , os sonhos não são mui to cons iderados .

Tamanha é a impor tânc ia a t r i bu ída aos seus sonhos , que S .Maneco contou aos seus advogados , que para dec id i r en t re e les , j ovens e inexper ien tes recém- fo rmados , en t re tan to cons iderados como f i l hos e um pro l i xo advogado de Uba tuba , que dava a causa como ganha , op tou pe los p r ime i ros , po r causa de um sonho . Es tava sua casa sendo levada por um vendava l mu i to fo r te , quando parou na be i ra de um ab ismo. Preocupado e assus tado , fo i quando uma c r iança , i dent i f i cada como um de seus ne tos ve io rad ian te e segurou em sua mão d izendo que não temesse. Hav ia s im um grande per igo , mas que E le (Deus) mandar ia bons an jos para lhe a judar , an jos es tes , que S .Maneco iden t i f i cou como sendo seus jovens amigos advogados .

En t re tan to , em loca is como a Pra ia do Sono , onde a chegada das ig re jas evangé l icas fo i na época dos pa is dos ma is ve lhos , é d i to por es tes quando en t rev is tados para es ta pesqu isa , nunca te r hav ido lá nenhum ba i le , nenhuma h is tó r ia , nenhuma p roc issão . Mas os moradores da v i z inha Pon ta Negra , a f i rmaram ter ido mu i tas vezes aos ba i les da Pra ia do Sono . Essa negação de um passado também acompanha uma deses t ru tu ração s imbó l i ca da iden t idade se ja co le t i va ou ind iv idua l . Esse p rocesso fo i como que uma e tapa p re l im inar , que se rv iu para a descons t rução da iden t idade co le t iva , o rompimento dos laços de so l ida r iedade e de fesa , f avorecendo os p rocessos segu in tes da g r i l agem, da reserva e do tu r i smo.

Fo i i nc lus ive , na Pra ia do Sono , ma io r comun idade p ro tes tan te da Pen ínsu la , que ocor reu um dos mais conhec idos ep isód ios de g r i l agem da pen ínsu la . A ma io r ia dos moradores já e ra p ro tes tan te , f reqüen tadores da ig re ja que se s i tua na par te cent ra l da p ra ia . Hav ia um pas to r res iden te , que fo i subs t i tu ído por ou t ro , co locado pe lo G ib ra i l ve lho . Esse pas tor conqu is tou a conf iança dos moradores , a f ina l e ra seu gu ia esp i r i tua l , e se aprove i tou de sua pos ição na comun idade , pa ra favorecer os in teresses do g r i l e i ro . Chamou os moradores e en t regou a e les um documento para se r ass inado , exp l i cando que se t ra tava de uma ten ta t i va para regu lar i za r a s i tuação dos moradores da p ra ia , sendo que ass inando o documento , se r ia en t regue en tão o documento da posse .

O que fo i descober to depo is é que es te documento se t ra tava de um te rmo de comodato , favorecendo Gib ra i l Tannus . Os moradores da Ponta Negra , t ambém fo ram conv idados pe lo pas tor pa ra ass ina rem o documento , mas por não se rem

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pro tes tan tes , desconf ia ram da p ropos ta e se negaram a par t i c ipar . Percebe-se en tão , como es tão re lac ionados esses a to res po l í t i cos : pas to res , g r i l e i ros , moradores e que poder de persuasão a re l i g ião possu i pa ra esses ca iça ras .

Ho je , o que vemos nessa p ra ia , são f i lhos e ne tos dos ma is ve lhos já desconversos . Orgu lham-se de não par t i c iparem de uma dou t r ina tão severa , que os obr igava a en t ra r no mar ves t idos , não dançar , não conversar ou namorar não-p ro tes tan tes , co isas que parecem a e les exageradas ou despropos i tadas . Ass im, esses jovens da Pra ia do Sono , vão para Para ty dançar c i randa e b r incar Fo l ia de Re is . Seus pa is , desconversos também se mos t ram sa t i s fe i t os pe los f i l hos poderem fazer co isas que a e les fo ram negadas .

Há ta lvez um processo natura l de resga te das an t igas mani fes tações cu l tu ra i s , apesar da grande expansão das re l i g iões p ro tes tan tes , nessa e nas reg iões c i rcunv iz inhas . Mu i to da sever idade dessas re l ig iões é ques t ionada a t ravés das novas percepções de mundo que chegam a t ravés do tu r i smo, dos moradores que fo ram es tudar em Para ty e vo l ta ram, da míd ia e da p rópr ia re f lexão dos ca iça ras sobre as p rá t i cas co le t ivas do passado que são perceb idas como par tes cons t i tu t i vas do se r ca iça ra , i dent idade a qua l per tencem e va lo r izam.

Com a ex t inção das p rá t icas e a t r ibu ição de demoníaco a um con jun to de va lo res , pa r tes fundamenta is das p rá t i cas que o rgan izavam o g rupo fo ram pro ib idas . Essa desar t i cu lação do complexo s imbó l ico do povo ca iça ra , t rouxe conseqüênc ias mate r ia i s , ao se perderam as redes de compadr io , havendo a separação do g rupo, em “c ren tes ” e “não-c ren tes ” , assoc iado a rup tura dos s i s temas de t ransmissão de conhec imento da h is tó r ia grupa l , v ia ora l idade e o f im dos lugares em que os even tos soc ia is ocor r iam. Esse p rocesso marcou o f im dos encon t ros em que as d i fe ren tes fa i xas e tá r ias se reun iam bem como, os das comun idades i so ladas se encon t ravam. Se os out ros processos adv indos da urban idade também co labora ram como a desva lor i zação das p rá t i cas co le t ivas , das fes tas como a lgo arca ico , e o êxodo rura l ; apenas o p ro tes tan t i smo teve um cará ter rea lmente p ro ib i t i vo dessas a t i v idades , o que não deve se r co locado em segundo p lano .

Mas mesmo décadas de pressão ideo lóg ica não in ter fe r i ram nas respos tas dos ca iça ras que responderam orgu lhosos se rem descendentes de an t igos ind ígenas . Lembram que os pa is e avós con tavam mui tas h is tó r ias de como e ram os índ ios , como e les v iv iam, suas h is tó r ias , suas en t idades p ro te toras , mas que por não repe t i rem as h is tó r ias há mu i tas décadas , hav iam embara lhado tudo na cabeça e t i nham apenas uma imagem dos mais ve lhos con tando .

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Alguns a inda fo ram capazes de apontar o nome dos b isavós e avós que eram cons iderados índ ios e apontar sua p rocedênc ia . Ou ind icar ne tos e f i lhos que por te r tamanha semelhança , o lhos rasgados , pe le verme lha e um negro cabe lo l i so eram chamados de índ ios . Um exemplo é S .O l ímp io , que a lém de te r exp l icado o s i s tema de consórc io dos vege ta is , f azer a co iva ra com um grande con t ro le do fogo , ano tando tudo em seu cadern inho , t e r uma g rande va r iedade de sementes da mesma espéc ie , contou que sua b isavó índ ia e ra da l i da Pon ta da Jua t inga mesmo. Sua a lde ia cu jo cac ique se chamava Edu, se loca l izava em uma reg ião aba ixo do fa ro l . Con tou também que nes ta reg ião ex is te uma caverna, conhec ida como Toca dos Ossos , em que os índ ios dessa a lde ia faz iam seus enter ramentos . S .O l imp io hav ia levado uma equ ipe de uma rev is ta lá , e es tes hav iam mex ido nos ossos , o que desencadeou uma g rande tempes tade . Essa toca fo i re fe r ida a lgumas vezes quando se perguntava sobre a ex is tênc ia de ind ígenas , e ou t ros a inda d isseram que hav iam lá também ossos de escravos .

Há também mu i tas pessoas que responderam que não e ram descenden tes de ind ígenas , na sua ma io r ia mu lheres e des tas , a ma ior ia a f i rmou com ên fase não te r nenhum parentesco com índ ios , e s im com por tugueses . Mesmo mulheres mu i to ve rmelhas e de longos cabe los negros e o lhos rasgados , d i z iam apenas te r sangue por tuguês . Percebe-se então que há também um tabu, quan to à herança ind ígena , p r inc ipa lmente ent re as mu lheres que na reg ião são ma is t ím idas e receosas que os homens . Há um rece io em se admi t i r uma ascendênc ia ind ígena , porque es ta duran te sécu los fo i mo t i vo de desprezo e per igo e apenas os homens como que a f i rmando sua co ragem a f i rmavam orgu lhosos se rem descendentes de índ ios . Os ma is po l i t i zados p r inc ipa lmente , d i sseram que os ant igos v iv iam pe la mata a caçar e fazer roças abundan tes , v i vendo de fa r inha e pe ixe seco , remando canoas de voga, g igan tes canoas a ve la com o i to à dez remadores que t ranspor tavam a p rodução para Uba tuba , Para ty , Angra e Mangara t iba e que todo esse conhec imento e ra c la ramente v indo dos índ ios , seus an tepassados .

Como fo i apontado na b ib l i og ra f ia e na pesqu isa de campo, os ca iça ras an t igos e ram nômades . Mui tos não passavam ma is de do is anos ocupando o mesmo te r reno. Ass im como os ind ígenas , p ra t i cavam uma agr i cu l tu ra i t i ne ran te . De ixavam áreas de capoe i ra em pous ios que duravam gerações e se mudavam em busca de áreas de pesca sazona lmente ma is abundan tes . O re la to espon tâneo de D.Mar ia da Pra ia Grande da Ca ja íba fo i p rec ioso para con f i rmar essa herança nômade:

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“ A h , s e f o s s e n o t e m p o d o m e u p a i , j á t i n h a m a c a b a d o c o m a v i d a d o m e u p a i . P o r q u e m e u p a i s ó m o r a v a s e t e a n o n u m l u g a r . E s s e l u g a r t o d o a q u i d e n t r o d a P r a i a G r a n d e é c a v a d e c a s a d e l e . ” 4 0

A inda ho je , mui tos ca iça ras possuem cas inhas de pau a p ique em out ras p ra ias , como é o caso do Franc ino e seu i rmão Jango , que apesar de morarem no Ca i ruçu , sazona lmente ocupam um bar raqu inho na Pon ta Negra . Ou t ro exemplo é a famí l i a do Careca que cons t ru ía uma casa no Ca lheus e fo i des t ru ída pe lo IEF e a famí l i a de S .Ap l íg io e D .Du lc iné ia que sazona lmente saem do Ca i ruçu para f i car no Saco das Anchovas . Segundo D.Mar ia , t oda a reg ião da Pra ia Grande e ra pass íve l de se r hab i tada, segundo e la , sua famí l ia morou na p ra ia , no r io , no caminho da cachoe i ra , no ba ix io , na mata , en f im o lugar soc ia l da sua hab i tação abrang ia toda a reg ião da Pra ia Grande. Uma perspec t i va bem d i fe ren te da a tua l em que os ca içaras têm de lu tar com todas as suas fo rças por posses com a lguns met ros quadrados e ranch inhos na p ra ia .

Por tan to , a he rança ind ígena consc ien te , que os an t igos ca iça ras receberam de seus antepassados , chegou em par te aos ca iça ras ve lhos de ho je . Quanto aos jovens , essa herança se faz p resen te nas p rá t i cas co t id ianas . Mui tos são os que sabem puxar canoa , ou tecer redes e andar na mata , mas não guardam a consc iênc ia de sua o r igem. Out ros aspec tos cu l tu ra i s se perderam ou con tam com pouquíss imos represen tan tes a t ivos . Dos d ive rsos cacos de ce râmica encon t rados no Ca i ruçu das Pedras , não ex is tem mais mãos capazes de reproduz i - los , mesmo que a lguns mui to an t igos a inda fumem em cach imb inhos de bar ro e sa ibam a técn ica de p roduz i - lo . A técn ica f i cou na memór ia , mas a p rá t i ca se perdeu. Ass im também acon tece com o b i j u puvu, de mand ioca fe rmentada , que após mui ta pesqu isa , apenas D .Mar ia da Pra ia Grande fo i capaz de se lembrar que o pa i lhe contava , que na época do avô, en te r ravam a mand ioca tan tos d ias para que f i zessem um enorme b i j u , que e ra chamado b i j u puvu e eram conhec idos como o pão dos ba i les ru ra is da Pra ia Grande . E la nunca hav ia v is to , mas lembrava do pa i contar .

Ass im também acon teceu com as a rmadi lhas de caça , de pesca , com as a t i rade i ras de a rco , as danças , os r i tua is , a p rev isão do tempo. Segundo os ma is ve lhos , os an t igos ca iça ras e ram mest res na prev isão do tempo, sab iam pe lo b r i lho das es t re las se ia chover , fazer so l ou nub la r . A época dos p lan t ios e das pescar ias também, segu iam um r igo roso ca lendár io lunar que respe i tava o c ic lo m inguante – c rescen te , havendo o tabu da lua che ia , onde não se pescava , nem p lan tava , nem co lh ia , apenas e ra permi t i do namorar ao lua r na cos te i ra . Quan to ao cu l t i vo da mand ioca , a p rá t i ca ca iça ra descr i t a po r Sch im i t é “ o

40 Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba / setembro de 2005.

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q u e v a i d e c e p a r m a r c a a é p o c a , p o r q u e d e v e c o r t a r a r a m a n a c r e s c e n t e , e o q u e v a i p l a n t a r d e v e f a z ê - l o n a m e s m a l u a . ” 4 1 Os jovens , en t re tan to , como Pau lo Henr ique , f i lho de S .Maneco, não seguem essas regras , a f i rmando p lan ta r em qua lquer época que os resu l tados são sempre os mesmos.

Permanênc ias

Quanto aos produ tos que a inda são p roduz idos , como o tap i t i , o samburá e a canoa , é impor tan te perceber que mesmo que ha ja uma g rande demanda, apenas S .Jov ino , i rmão de S .Maneco e seus f i l hos , p roduzem tap i t i s que abas tecem toda a cos te i ra . O mesmo acontece com os ces tos e samburás que Franc ino , i rmão de D .Lorença , f az . E le não dá con ta das encomendas e abas tece a cos te i ra , a lguns vão para Para ty e inc lus ive vão para São Pau lo e o ex te r io r . F ranc ino ou França como é conhec ido , exp l icou que ex is te um mane jo para a re t i rada do c ipó t imbeva . Ex is te um c ipó -mãe, que não deve

41 SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola, 1958.

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nunca se r co r tado , ou o pé mor re . Ex is te também um número de c ipós por touce i ra , para que e la se recomponha sem danos , e por f im, ex is tem áreas em pous io , que após o per íodo de regeneração podem ser reco lh idos novamente . Há uma g rande p rocura pe los ces tos de F ranc ino e se espera tempo por um, mesmo ass im os ma is jovens não se in te ressam em aprender esse t i po de conhec imento que cons ideram cansat ivo e ented ian te . Apenas no Ca i ruçu das Pedras , onde moram os ca iça ras ac ima c i t ados , encon t ramos um men ino que b r incava com um p ião fe i to po r e le própr io , e que hav ia aprend ido a fazer com o avô.

F r a n c i n o m o s t r a q u a i s c i p ó s p o d e m s e r r e t i r a d o s .

Nesta p ra ia i so lada , encont ramos o ún ico fo rno de fa r inha que p roduz ia toda a fa r inha consumida no loca l , a lém dos moradores com orgu lho a f i rmarem que a ma io r ia da comida consumida e ra co lh ida no loca l . Também lá , Seu Ap l íg io , cunhado de S .Maneco , con tou a ma ior ia das h is tó r ias da época em que os b i chos fa lavam, do c ic lo da onça e do macaco e das h is tó r ias de cu rup i ra , lob isomem, l i v ro de S .C ip r iano e Mãe do Ouro . Segundo essa ent rev is ta pode-se perceber que ant igamente hav ia uma aura mís t i ca mu i to fo r te en t re os moradores da cos te i ra . Acred i ta -se a té ho je que na Pra ia do Mar t im de Sá e submerso na a l tu ra do P ico do Ca i ruçu , es te jam grandes jaz idas de ouro , mas que essas são p ro teg idas por fo r tes encantos e ma ld ições . Mu i tos a f i rmaram que pesqu isadores es t range i ros chegam de barco , e a no i te se vem as luz inhas e os baru lhos de per fu ração e que vão embora d izendo que a mina é mu i to grande, po rém os gas tos ser iam mu i to a l tos para a ex t ração.

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O fa to é que a reg ião é mu i to marcada por tabus e segredos . Na época da escrav idão , con tam que hav ia uma g rande fazenda em Mar t im de Sá e que ne la hav ia mui tos esc ravos . Es tes e ram comprados com o d inhe i ro dessa mina de ouro já que a venda dos p rodu tos se r ia mu i to pouca em re lação ao gas to do t ranspor te . De fa to , na p ra ia ex is tem ru ínas de uma casa g rande , moendas e te lhe i ros . Ou t ra h is tó r ia mu i to popu la r sobre a p ra ia , é que na época do Impér io , um a lemão descobr iu como fa ls i f i ca r o se lo das no tas de d inhe i ro e se re fug iou em Mar t im, onde as p roduz ia . Pagava seus escravos com uma cer ta quan t idade de d inhe i ro para que não con tassem a n inguém sobre a a t i v idade fa lsá r ia , po rém ex ig ia que as no tas fossem enve lhec idas an tes de se rem usadas no comérc io de Para ty . Um d ia , um escravo não res is t iu e as usou todas novas e fo i pego , j á que as no tas que chegavam a Para ty já es tavam gas tas . Ass im seu dono fo i descober to e p reso , i ndo para a co r te .

Out ro impor tan te fa to sobre a Pra ia do Mar t im de Sá , fo i respond ido por Seu Maneco quando pergun tado sobre a ex is tênc ia no loca l , de a lgum ves t íg io de ocupação ind ígena, machados , conchas ou ce râmicas . E le respondeu que no caminho da cachoe i ra do Poção, na cachoe i ra do meio do caminho, hav ia uma grande pedra redonda , com um imenso su lco , denominando o loca l de cachoe i ra da Pedra de Amola r . Sempre que passavam por l á aprove i tavam para amo la r suas facas a té que com a tomada da te r ra pe lo g r i le i ro Pacheco, a pedra fo i remov ida e exp lod ida para que pudesse serv i r de amoladores menores na sede . Out ra pedra des ta também ex is te no encon t ro do r io com o mar , co inc id indo com os loca is de amoladores de machado dos sambaqu ie i ros da I l ha Grande , en t re tan to de menor tamanho .

Mu i tas lendas cor rem sobre a reg ião , mas é impor tan te notar que dessa memór ia co le t iva se ex t raem ind íc ios de uma h is tór ia l oca l que por não te r s ido esc r i ta a té en tão, mereça ser desc lass i f i cada . Uma herança ind ígena , se ja e la por ass im i lação ou con ta to in te ré tn i co e mes t i çagem, re f le te na v i são de mundo que o ca iça ra tem de s i , como herde i ro na tura l da te r ra de seus ances t ra i s e na mane i ra como e le en tende o mundo ex te r io r que ent ra em conta to com e le . A po lu i ção que chega a t ravés do ar e da água , o en tend imento que a te r ra é para os descenden tes e de la se ob tém o necessár io pa ra o sus ten to . A i r rac iona l idade da acumu lação de bens , a g r i lagem de te r ras enormes que não são hab i tadas por seu dono. São uma sér ie de fa to res que competem para que a d i fe rença en t re essas popu lações e os g rupos u rbanos que en t ram em con ta to se jam acen tuados .

Essa ident idade que ex is te en t re o ca iça ra morador da Juat inga e o amb ien te em que v ive passa também por essa sé r ie de resqu íc ios e permanênc ias da cu l tu ra ind ígena que

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excepc iona lmente consegu iu sobrev ive r nes ta reg ião . As p rá t icas co t id ianas desse g rupo re f le tem um con jun to de saberes que e ram pra t i cados na ma ior ia do te r r i tó r io onde ho je es tá o Bras i l . Não como p rá t i cas a rca icas no sen t ido de a t rasadas , mas como uma fo rma de res is tênc ia cu l tu ra l e i nserção no mundo , essa popu lação manteve na sua v ivênc ia , conhec imentos que permi t i ram sua permanênc ia na reg ião . Essas p rá t i cas ho je se to rnam fundamenta is na c r iação de es t ra tég ias de res is tênc ia ao aumento das p ressões ex te rnas e na a f i rmação de seu d i re i to à posse da te r ra de seus ances t ra i s .

Também no con ta to com o tu r ismo essa ances t ra l i dade se mos t ra ú t i l , no sent ido que c r ia v íncu los de respe i to do tu r i s ta para com o na t i vo , reconhecendo es te como ma is adaptado , responsáve l e conhecedor dos mis té r ios loca is . O mane jo ind ígena que fo i he rdado pe los ca iça ras é um fa to r de poder f ren te às impos ições conce i tua is da soc iedade oc iden ta l , e deve se r va lo r i zado e reconhec ido. Não é isso que acon tece , já que as bar re i ras para seu es tudo se in i c iam na academia . Nes ta , pers i s te a inda ho je uma va lo r ização dos es tudos po l í t i cos , sendo as p rá t icas co le t i vas encaradas como fo l c lo re ou e tnogra f ia . A pesqu isa da cu l tu ra de povos t rad ic iona is como fo rma de res is tênc ia po l í t i ca aparece como um ob je to rar í ss imo na h is to r iogra f ia . Na cade i ra de H is tó r ia também há um rece io mu i to g rande quanto ao es tudo de povos v i vos , como se fosse necessár io espera r uma cu l tu ra mor re r pa ra se debruçar sobre e la . De fa to , mor tos não tem como re inv id i ca r rev isões ou c r í t i cas aos es tudos sobre e les e a b ib l i ogra f ia pode ser ca ta logada e con t ida em arqu ivos , ao con t rá r io de sen t imen tos e v isões de mundo mutan tes .

A dúv ida da Academia sobre a u t i l i dade de es tudos como esse, sobre popu lações iso ladas fo i levantada durante todo o decor re r do p ro je to . Sua espec i f i c idade como es tudo sobre descenden tes de povos ind ígenas de um es tado como o R io de Jane i ro que não apresen ta ma is nenhuma popu lação ind ígena nat iva fo i t ido como i r re levante . Mesmo na fa l ta de b ib l i ogra f ia na área h is tó r ica sobre g rupos cu l tu ra lmente remanescen tes , o tema pareceu obv iamente consensuoso . Sua re lação como g rupo ru ra l em d isputa com gr i l e i ros , pa rec ia ser a ún ica sa lvação para a o r ig ina l idade do t raba lho . As p rá t icas e heranças que to rnaram esse g rupo tão che io de espec i f i c idades e possu idores de uma re lação homem-na tu reza tão s imb ió t ica , que permi t i ram aos mesmos, se rem reconhec idos em le i , como par te do que dever ia se r p reservado na reserva e mesmo a Área de Pro teção Ambien ta l do Ca i ruçu te r s ido e laborada como respos ta a um v io len to p rocesso de g r i l agem de te r ras , que se aba t ia cont ra e les , o impor tan te não era quem e les eram, mas , o que acon teceu a e les . Como se um te rmo fosse independente do

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out ro e a h i s to r iog ra f ia j á não te r encon t rado a B io log ia , a F ís i ca , a Eco log ia e a Geogra f ia , conc lu indo que tudo são redes de s i s temas in teg rados , onde o macro es tá con t ido no mic ro e v ice -ve rsa .

Cap í tu lo I I I

Amb ien te e Res is tênc ia : Memór ia Amb ienta l , Segurança A l imen ta r , Tur i smo e Lu ta pe la Ter ra .

“o H o m e m é c o n s i d e r a d o , n e s t e l i v r o , c o m o p a r t e d a n a t u r e z a ; d a í n ã o e x i s t i r u m c a p í t u l o à p a r t e o u a p ê n d i c e c h a m a d o “ o H o m e m e a N a t u r e z a ” .( . . . ) C o m u n i d a d e n o s e n t i d o e c o l ó g i c o , i n c l u i t o d a s a s p o p u l a ç õ e s d e u m a d a d a á r e a . A c o m u n i d a d e e o a m b i e n t e i n e r t e f u n c i o n a m e m c o n j u n t o c o m o u m s i s t e m a e c o l ó g i c o o u e c o s s i s t e m a . ( . . . ) A p o r ç ã o d a T e r r a n a q u a l o s

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e c o s s i s t e m a s p o d e m o p e r a r , i s t o é , o s o l o , o a r e a á g u a , b i o l o g i c a m e n t e h a b i t a d o s , r e c e b e o n o m e d e b i o s f e r a . ” 4 2

Esse capí tu lo se re fere aos temas que es tão ma is in t imamente re lac ionados ao me io amb ien te e as ques tões po l í t i cas re lac ionadas ao uso da te r ra . As le i s de p ro teção ambienta l , j á d i scu t idas an te r io rmente , são ana l i sadas quan to às suas conseqüênc ias d i re tas no ecoss is tema e na cu l tu ra loca l . Percebe-se que após a c r iação das á reas p ro teg idas , os desmatamentos fo ram pe lo menos ideo log icamente con t ro lados . Há nos d iscursos dos moradores uma consc iênc ia ambienta l , que p rovave lmente se fo rmou a par t i r da imp lementação das le is ambienta is . En t re tan to , como em casos aná logos no pa ís , apenas par te da le i é cumpr ida . No caso da reserva , apenas le is p ro ib i t i vas , que inc lus ive en t ram em choque com os d i re i tos assegurados aos povos t rad ic iona is são ap l i cadas . São neg l igenc iadas as medidas educat ivas e de geração de renda que es tão p rev is tas nos tex tos que c r iam tan to a á rea de p ro teção amb ien ta l quan to a reserva eco lóg ica .

Ta lvez esse se ja o ma io r dano ao me io amb ien te ho je co r ren te den t ro da pen ínsu la . Apesar das res t r i ções , mu i tos ca iça ras que imam todos os anos á reas de sapé , de capoe i ra e também de mata , pa ra o cu l t i vo das roças . A fa l ta de ações pedagóg icas , como es tudos de v iab i l i dade para imp lementação de cu l t i vos agroeco lóg icos e o i so lamento da reg ião em re lação a p ro je tos agro f lo res ta i s bem suced idos em comun idades ca iça ras da mata a t lân t i ca é ev iden te . Um dos exemp los é a u t i l i zação comerc ia l da po lpa dos côcos da pa lme i ra Jussara (Eute rpe edu l i s ) , que na reserva poder iam supr i r a demanda de açaí duran te as es tações tu r í s t i cas . Os côcos descar tados do p rocesso de ex t ração do suco vem com sucesso sendo u t i l i zados em Ubatuba e na reg ião Su l em áreas de re f lo res tamento .

Den t ro das a t r i bu ições da reserva e da á rea de p ro teção amb ienta l , es tá a recompos ição vege ta l das áreas degradadas , p rocesso esse mui to necessár io , já que a ma io r par te do Saco do Mamanguá é fo rmado por capoe i ras . Ex is tem grandes á reas des f lo res tadas , remanescen tes dos ant igos cu l t i vos co lon ia i s , que fo ram sucess ivamente sendo cu l t i vados a té os d ias de ho je . Os gr i l e i ros também abr i ram g randes c la re i ras na mata argumentando a necess idade de pas to para as c r iações pecuár ias e a p rodução de carvão . Ex is tem áreas , en t re tan to , que são mant idas nuas por um cos tume de a tear fogo a á reas de caminho . Ex is tem vár ias , as maio res são no Pouso da Ca ja íba, na Pra ia do Sono , no Saco das Anchovas e Ca i ruçu das

42 ODUM, Eugene Pleasants, 1931. Ecologia; tradução de Kurt G. Hell. 3ª Ed. São Paulo, Pioneira, 1977. p.20

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Pedras . Á reas desmatadas pe la lavoura se encon t ram na Pra ia Grande , Mar t im de Sá e Ponta da Jua t inga.

A fa l t a de cober tu ra f l o res ta l ocas iona conseqüênc ias que são descr i t as pe los p rópr ios moradores e con t ras tam com a lguns conce i tos do senso comum. Segundo Seu Maneco , é a fa l ta de a l imento que ex t ingue a caça , e não os caçadores loca is , po rque segundo e le com comida fa r ta , a fauna proc r ia em abundânc ia , mui to ma is do que é consumido esporad icamente pe las comun idades . Anos a t rás , quando os caçadores u rbanos f reqüen tavam as matas , hav ia uma a l ta taxa de mor te de an imais dev ido à caça, aos equ ipamentos e aos cachor ros de caça u t i l i zados . Mas após a pro ib i ção da caça na reserva , os ca iça ras também foram a t ing idos pe la p ro ib ição e vão perdendo rap idamente conhec imentos re la t i vos à fauna que poder iam es ta r sendo u t i l i zados na amp l iação des ta . Conhec imentos de an imais que ho je se encon t ram ex t in tos , como o tamanduá-mi r im ou anão , que poder iam ser re in t roduz idos , a t ravés do conhec imento dos ca iça ras de qua is os hab i ta ts mais p rop íc ios para cada espéc ie . Um t raba lho de v i ve i ros de fauna, como já es tá sendo fe i to na Ponta Negra , em que macucos es tão sendo c r iados ao invés de ga l inhas . Se essas c r iações fo rem es t imu ladas , e com a taxa de fuga na tu ra l dos an imais , ou a té uma co ta de re in t rodução na mata , em poucos anos mui tos an ima is reaparecer iam em abundânc ia , mas fa l t am pesqu isas nessa á rea.

Uma das ma is impor tan tes prá t i cas ca iça ras t rad ic iona is que se perpetuou , e necess i ta de u rgen tes es tudos para um mane jo ma is apropr iado é a puxada de canoa . Nesse g rande even to comun i tá r io , os homens aden t ram a mata p rocurando á rvores ve lhas , a pon to de mor re r , que dêem boas canoas . Cedros e Guapuruvus de g rossos t roncos sempre fo ram mu i to procurados , mas com a secu la r re t i rada de canoas , essas á rvores já são ra ras . No passado , a puxada de canoa era acompanhada de ba i les e fes tas , já que o t raba lho de ca r regar enormes to ras de made i ra por den t ro da mata era um impor tan te even to soc ia l comun i tá r io . Cada vez é necessár io i r ma is longe na mata para consegu i r um bom “pau” , e os f i sca is f l o res ta i s também press ionam, causando mui to abor rec imento para os nat ivos . Os me lhores fazedores de canoa são tão respe i tados den t ro e fo ra de suas comun idades , que são c i tados em pra ias d is tan tes como é o caso de S .Jov ino .

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C a n o a s e n d o f e i t a n o C a i r u ç u d a s P e d r a s .

Esse parece se r um caso aná logo ao da p rodução de sapé . Mate r ia l m i lenarmente usado no te lhado das hab i tações e cons t ruções carac ter i za a cons t rução ca iça ra t rad ic iona l . En t re tan to , es te só c resce com a fo rça necessár ia pa ra uso nos fo r ros , quando c resce em te r reno recém que imado . Mas a par t i r da impos ição das le i s , os ca iça ras se v i ram imposs ib i l i tados de u t i l i za r o p rodu to na t i vo e tem que adqu i r i r no mercado as te lhas de amian to , que sabem que fazem ma l à saúde .

Se houver um t raba lho sé r io po r pa r te dos ó rgãos governamenta is in te ressados rea lmente em pro teger e recuperar o me io amb ien te , na tu ra l e humano, mui tas so luções se rão v iáve is . Adap tações com mate r ia i s do p rópr io meio como o te lhado de fo lhas da pa lme i ra P indoba , abundan te na reg ião , podem ser u t i l i zadas ; em vez da que imada de áreas f l o res ta is , a que imada cont ro lada pode ocor re r em capoe i ras e te r renos de pous io de te rminados pe lo p lano de mane jo e o uso da compos tagem agr íco la também fo rnece boa quan t idade de húmus. A u t i l i zação das fo lhas do guandu espéc ie mu i to cu l t i vada nas roças t rad ic iona is e já u t i l i zada como adubo pode se r i ncen t i vada e d i fund ida nas comun idades .

Não há in te resse pe lo conhec imento t rad ic iona l . Ta lvez porque es te guarde memór ias per igosas cont ra a lguns se to res que f inanc iam as á reas p ro teg idas . Em t rês en t rev is tas com an t igos ca içaras fo i levantada a mor te de a lgumas espéc ies . A p r ime i ra fo i dos p i tus e pe ix inhos das cachoe i ras , que logo

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após a jogada de veneno que reduz iu a popu lação de mosqu i tos e maru ins , pa t roc inada pe lo condomín io Laran je i ras , ocas ionou o sumiço dos mosqu i tos , a mor tandade de p i tus e pe ix inhos das be i ras dos r ios em t rês pra ias da cos te i ra . Logo em segu ida a essa mor tandade , os enormes bandos de macacos Mur iqu i ou Bur iqu i , como são lembrados , sumi ram. Os bandos que v inham em grande a lgazar ra pe los va les das matas g randes das se r ras , sumi ram do d ia para no i te , de ixando perp lexos os que se lembram do fa to . Fo i jun to da mor tandade dos p i tus , a f i rmaram os t rês in fo rmantes , em t rês pra ias d i f e ren tes .

S . J o v i n o e a s h i s t ó r i a s d o s b i c h o s d a m a t a .

Di fe renc ia ram esse per íodo de um an te r io r , em que o Tamandua te í , ou Tamanduá-anão, sumiu também, res tando ho je apenas o g rande . As que ixadas sumi ram con ta S . Jov ino , i rmão de S . Maneco do Mar t im de Sá , quando já e ram poucos . Um caçador da c idade , sem conhecer os caminhos da mata , so l tou os cachor ros b ravos num grande bando, que acabou por ca i r num des f i l ade i ro e nunca ma is fo ram v is tas que ixadas .

Na le i da c r iação a APA, f i ca expresso :“ A r t i g o V – F i c a p r o i b i d o o u s o d e b i o c i d a s c a p a z e s d e c a u s a r

m o r t a n d a d e d e a n i m a i s v e r t e b r a d o s , e x c e t o r a t o s e m o r c e g o s h e m a t ó f a g o s . ” 4 3 Mas a le i parece mais uma vez não es ta r sendo respe i tada.

As ba le ias a té um ano a t rás , segundo Jov ino , o fe rec iam r isco às canoas de pesca no Ca i ruçu das Pedras . Chegavam tão per to com as c r ias e e ram tantas que por um descu ido do pescador , pod iam v i ra r as canoas com seu pesado

43 Lei Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. APA Cairuçu. Sítio IBAMA/RJ http://www.ibama.gov.br/siucweb/mostraDocLegal.php?seq_uc=36&seq_tp_documento=3&seq_finaliddoc=7, 2006.

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mov imento . Esse ano , j á e ra época , mas a inda não hav ia aparec ido nenhuma ba le ia , fa to que Seu Jov ino es t ranhou .

Pássaros , pe ixes , ou t ros macacos , á rvo res f ru t í fe ras , tan tas espéc ies que se lembram pe lo nome, descr i ção e sumi ram. Época em que aparec iam, sua a l imen tação, p rá t icas de acasa lamento , pe r íodo de ex t inção , são in f i n i tos os conhec imentos que vão se perdendo na memór ia dos ma is an t igos . Os ca içaras jovens , p ro ib idos de caçar , de fazer roças , se in teressam cada vez ma is por va lo res urbanos . Não há ma is o espaço do aprend izado , po rque o espaço e ra fo r jado pe la p rá t i ca e essa fo i p ro ib ida , ao invés de pesqu isada e adequada à contemporane idade .

Como d iz D iegues , ” a s c u l t u r a s r e g i o n a i s e l o c a i s r e p r e s e n t a m a s o m a t o t a l d e e x p e r i ê n c i a s p a s s a d a s , n u m a v a s t a g a m a d e c o n d i ç õ e s a m b i e n t a i s . A i n c o r p o r a ç ã o s e l e t i v a d e u m p a s s a d o r e i n t e r p r e t a d o p a r a u m f u t u r o l i b e r a d o n ã o o c o r r e r á s e a m e m ó r i a f o r d e s t r u í d a , o u s e s e u s p r o d u t o s c u l t u r a i s f o r e m c o n h e c i d o s c o m o p e ç a s d e m u s e u . ” 4 4

Mas ex is tem a l te rna t i vas , como os men inos que c r iam macucos , os meninos da Pra ia Grande, A le f e Leno com suas a rmad i lhas e sua cons tante a tenção com os ens inamentos do pa i , a Pre ta do Sono , ne ta de evangé l i cos que vo l tou a dançar c i randa em Para ty , o G i l son e seus amigos do Pouso que não só contam causos de assombração , mas mor rem de medo de encon t ra r com os personagens , ass im como as c r ianças da Ponta da Jua t inga. São jovens que guardam essa impor tan te fon te de saber que é a memór ia amb ien ta l desse povo , que em suas ca rac ter í s t i cas ma is t rad ic iona is , e adaptadas e dependentes ao me io , e independen tes da u rban idade , pe rmaneceram res t r i tas a essa pen ínsu la , p r inc ipa lmente em decor rênc ia de seu iso lamento .

A Po lu i ção

A ma ior degradação que os a f l i ge é a do mar . O c i c lo da pesca embarcada os t rans fo rmou de pescadores a r tesana is com armad i lhas de taquara e cercos , em pescadores de a l to -mar , conhecedores da cos ta desde o Espí r i t o San to à San ta Ca ta r ina , inser idos no mercado de pesca abas tecedor das g randes c idades . Ho je os pe ixes que fo rnec iam para o R io de Jane i ro , não são su f i c ien tes nem para a subs is tênc ia .

44 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.43

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Das épocas de fa r tu ra , f i ca ram os re la tos dos pe ixes co lh idos na a re ia , fug idos dos tubarões ; das mulheres pescando com suas sa ias as ta inhas , e a pesca fa r ta na a r reben tação. É chocan te a comparação dos re la tos do passado com os do p resen te . Os ca içaras percebem o processo de degradação do mar , mesmo que a lguns jovens d igam que a pesca es teve sempre como agora . Ou t ros , en t re tan to , j ovens também, c i tam os re la tos dos an t igos e sabem que a pesca acabou . Como causas p r inc ipa is apon tam os barcos de ar ras to dos empresár ios , que bur lam as le is e a f i sca l i zação , matando c r im inosamente a m ic ro fauna mar inha , a po lu ição das g randes c idades e das indús t r ias .

Seu Ap l íg io do Ca i ruçu , conta ind ignado que é da Us ina Nuc lear que vem uma maré de águas tu rvas , como a água com Nova lg ina – reméd io para dor – que a fas ta os pe ixes e g ruda nas redes . P io r do que a época em que as naus pet ro le i ras fundeavam na cos ta e lavavam seus tanques , enchendo as p ra ias da pen ínsu la de ó leo , de ixando marcas nas pedras a té ho je .

Segundo Seu Ap l íg io , o cano que so l ta a água da us ina de Angra , não é compr ido o su f ic ien te para ev i ta r que a água chegue a té a cos ta . Segundo e le também, essa maré v iscosa e t rans lúc ida é d i fe ren te das marés de esgoto que vem da d i reção de São Pau lo e das co r ren tes que t razem ó leo dos nav ios .

Segundo Seu Maneco, as á rvo res da mata não p roduzem ma is f ru tos porque a po lu i ção v inda de São Pau lo faz ba ixa r uma chuva d i fe ren te que faz com que as f ru tas ca iam dos pés an tes de maduras . Ass im a caça mor re de fome. Esses conhec imentos tão so f is t i cados do amb iente , poss ib i l i tados apenas por uma conv ivênc ia tão in t íma com a te r ra em que hab i tam e p roduzem, levam a uma re f lexão sobre como degradação cu l tu ra l ocas ionada pe la p ressão das le i s ambien ta is e o impac to cu l tu ra l e econômico da u rban idade também não são uma das facetas da própr ia degradação ambien ta l . Essas memór ias demons t ram como a h is tó r ia da res is tênc ia desse povo , pa ra sobrev ive r em seu te r r i t ó r io , es tá in t imamente re lac ionada ao ecoss is tema em que hab i ta , possu indo conhec imentos que podem ser va lo r izados como fo rma de enra izamento cu l tu ra l .

Segurança A l imen ta r

A memór ia sobre aspec tos do me io ambien te também se re fe re aos a l imen tos orgân icos que ho je já são ra r idade . A lém

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das f ru tas desaparec idas , dos pe ixes escassos , a caça que fo i p ro ib ida representava uma impor tan te comp lementação p ro té ica nas épocas do inverno , época da ba ixa da pesca . Mas o decrésc imo com ma io res conseqüênc ias fo i na d im inu ição das roças .

Essa a t i v idade t rad ic iona l e ra a p r inc ipa l a t i v idade econômica a té o c ic lo da pesca embarcada e ho je , se vê reduz ida a poucos gêneros p lan tados , em ra ras comunidades . A g rande conseqüênc ia da d im inu ição dos po l icu l t i vos , a lém da perda gené t i ca é a segurança a l imen ta r das comunidades que se vê aba lada . Pr inc ipa lmente após os p rocessos de g r i lagem que reduz i ram os espaços co le t i vos , de f in indo l im i tes de te r renos par t i cu la res e imped indo o des locamento nômade das famí l i as den t ro de seu te r r i t ó r io . Uma das pr inc ipa is causas do nomad ismo ca iça ra e ra o s is tema de pous io das te r ras cu l t i vadas . Segundo os ca iça ras an t igos , as roças do passado e ram fe i t as em áreas que após a queda da fe r t i l i dade e ram de ixadas em processo de regeneração vege ta l po r longos anos , por i sso os ca iça ras se mudavam cons tantemente , i ndo hab i ta r p róx imo das á reas que se r iam cu l t i vadas .

Com o ac i r ramento das pressões para re t i ra r os moradores , os p rocessos de g r i l agem e a quebra das re lações de compadr io pe lo p ro tes tan t ismo, as an t igas fo rmas de mut i rão de p lan t io e á reas comun i tá r ias fo ram sendo subs t i t u ídas por p lan t ios ind iv idua is . Mas as técn icas t rad ic iona is de cu l t i vo são mu i to pesadas f i s icamente , ass im houve também um aumento do t raba lho ind iv idua l , o que acar re tou um des in te resse pe las gerações ma is novas que começaram a op ta r po r t raba lhos mais s imp les e ren táve is como o t ranspor te de tu r i s tas .

Após a desar t i cu lação dos p lan t ios co le t ivos , houve recen temente a chegada do mercado de t raba lho gerado pe lo tu r i smo e o impac to das le is amb ienta is que p ro ib i ram uma sér ie de p rá t i cas sem suger i r adap tações e mane jos . Há , porém, comun idades que res is tem e permanecem desobedecendo as p ro ib ições e p lan tando seus a l imentos . Ou t ras comun idades es tão encon t rando len tamente opções a l te rna t i vas como é o caso da compos tagem agr í co la pra t i cada por seu A l tami ro . A lu ta pe lo d i re i to de p lan ta r é uma lu ta imp l íc i ta na lu ta pe la posse da te r ra . A h i s tó r ia dessa lu ta é um a le r ta e o ferece uma re f lexão sobre a p rá t i ca da g r i l agem, as le i s amb ien ta is e o impac to cu l tu ra l da u rban idade .

O tu r ismo

“o t u r i s m o n a s c e s o b a é g i d e d o c a p i t a l i s m o e d e s d e o i n í c i o a d q u i r i u a

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r a c i o n a l i d a d e q u e o c a r a c t e r i z a , e q u e n u m p r i m e i r o m o m e n t o é p r o f u n d a m e n t e i n d i v i d u a l i s t a e c o n s u m i d o r d o s r e c u r s o s n a t u r a i s ” 4 5

Os pesqu isadores D iegues e Nogara , no l i v ro “Nosso Lugar V i rou Parque” fazem uma impor tan te descr i ção do p rocesso de expansão imob i l iá r ia na reg ião da Jua t inga, mais espec i f i camente na reg ião do Saco do Mamanguá . Carac te r i zam qua t ro g rupos : tu r i s tas de luxo, com mansões e ia tes ; c lasse média urbana, com casas de verane io comprada dos ca iça ras ; moch i le i ros , em gera l jovens un ive rs i tá r ios e es t range i ros com paco tes de tu r i smo. Ma is recentemente , começa a emerg i r , no Saco, um tu r i smo vo l tado para g rupos esco la res e de pesqu isa , buscando uma in te ração a t ravés de es tudos do me io e d iagnós t icos par t i c ipa t i vos . É também uma ten ta t iva de quebra r a sazona l idade do f l uxo tu r í s t i co , in tenso apenas no ve rão e in teg ra r a cu l tu ra loca l como ma is um i t em da ro ta tu r ís t i ca , se não o p r inc ipa l .

Os g rupos de es t range i ros também se in te ressam pe las p rá t icas loca is , sendo comum a procura pe las casas de fa r inha . Os moradores vão aos poucos va lo r izando a lgumas de suas p rá t icas a rca icas em função desse in te resse tu r í s t i co . Porém, nes te caso espec í f i co , do tu r i smo in te rnac iona l , o l oca l é v i s to como exó t i co e remunerado , com os ca iça ras ganhando t rocados pe la ex ib i ção do fo rneamento da mand ioca . A í es tá uma ques tão de l i cada , que é a da au to - representaçao das p rá t i cas co le t i vas , como ressa l tou Miche l de Cer teau , em sua re f lexão sobre a invenção do co t id iano . As p rá t icas t rad ic iona is perdem a func iona l idade que guardam em s i , e passam a se r ex ib i ções exót icas sem nenhum v íncu lo com a p rá t i ca co t id iana. Ass im como os índ ios Pa taxós da A lde ia de Bar ra Ve lha /BA, cobram um rea l para o v i s i tan te t i ra r uma fo to e para tan to , o cac ique pede p ra mulher buscar seu cocar .

Essa perda da au tent ic idade é p rob lemát i ca inc lus ive para o p rópr io tu r i smo, que es tá em gera l em busca de exc lus iv idade . Mas , sobre tudo para os ca iça ras , que passam a se auto -represen ta r em t roca de d inhe i ro , t rocando a iden t idade por uma imagem da iden t idade necessár ia para a fo lc lo r ização das p rá t icas , de acordo com o in te resse tu r í s t i co . As prá t i cas loca is ass im t rans formadas em a t i v idades exót icas e rec rea t i vas es ta r iam inser idas num processo que pode se r encarado como um grande parque temát i co ca iça ra , em que os ca içaras ser iam a t rações de um espe tácu lo que se ass is te med iante pagamento . Essa mercan t i l i zação das re lações soc ia i s co labora para um c l ima de av idez pe lo d inhe i ro , que já pode se r sen t ido em lugares an tes va lo r i zados jus tamente pe la hosp i ta l i dade na tu ra l dos moradores . A Pra ia do Pouso , a Pra ia do Sono e em a lgum 45 DIAS, Reinaldo. Turismo Sustentável e meio ambiente. São Paulo, Atlas, 2003. p.07

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grau Mar t im de Sá , já são loca is em que se um es t range i ro ou uma pessoa de c lasse méd ia b ras i l e i ra , chegarem, p rovave lmente o p r ime i ro se rá ma is bem receb ido .

Loca is em que o f l uxo tu r ís t i co é menor , como a Pon ta da Juat inga e o Ca i ruçu das Pedras a recepção dos moradores é tão ma is generosa e s incera , que se tem von tade de nunca mais sa i r da l i . Inc lus ive , não há uma percepção apurada do tu r ismo, sendo o tu r i s ta enxergado como um v is i tan te . Ao con t rá r io , em ou t ros loca is , se sen te que a todo o momento os moradores querem t i ra r a lgum d inhe i ro a mais , com bo los , comidas ou a demons t ração de a t iv idades t rad ic iona is . Essa in tenção de comérc io , às vezes co loca a té em dúv ida a in tenc iona l idade da in teração do na t ivo com o v i s i tan te , causando uma sensação descon fo r táve l .

Quanto ao tu r ismo de c lasse méd ia , é o que em gera l co labora mais para o abandono das p ra t i cas t rad ic iona is nas comun idades . Ex is te sempre uma cas inha de a lguém sendo cons t ru ída , re fo rmada, e é comum a cena de jovens ca r regando sacos de c imento dos barcos para as cons t ruções . Os jovens das comun idades ma is tu r ís t i cas , já não sentem mu i to ape lo no t raba lho á rduo e a r r iscado da pesca , mu i to menos na roça, encarada como desgas tante e de nenhuma remuneração . Pre fe rem ser pedre i ros e a judan tes e ganhar a lgum d inhe i ro , com o qua l podem i r a Para ty , nos f i na is de semana e even tos . Há também ou t ros pos tos de t raba lho que na época do tu r i smo, faz com que mu i tos ca iça ras a l te rnem a t i v idades t rad ic iona is e comerc ia is .

São mui tos pos tos de t raba lho : o t ranspor te dos tu r i s tas com os barcos de pesca , os bares , seus garçons , coz inhe i ros , ca r regadores de ma la , t ra f i can te de d rogas , o a lugue l de casas , canoas , equ ipamento de mergu lho , e t c . . . Enquanto essas a t i v idades vêm comp lementa r a renda , que já es ta garan t ida com as a t i v idades de subs is tênc ia , pe rcebe-se uma cer ta me lhor ia das cond ições econômicas de v ida , sem ana l isa r as conseqüênc ias cu l tu ra i s . Mas , a ques tão é quando essas a t i v idades se to rnam a ún ica fon te de renda fami l ia r . Há uma perda de conhec imentos e técn icas , bem como de fo rmas de in teração com o meio amb ien te , mesmo que ex is ta uma gama de conhec imentos re la t i vos ao tu r ismo e aos se rv i ços .

Esses conhec imentos sobre se rv iços , j á mui to d i fund idos na u rban idade , se con t ras tam com o conhec imento ca içara t rad ic iona l , que envo lve um “ know how” mui to espec ia l i zado sobre os c i c los e se res do meio em que v i vem. Cada ca iça ra t rad ic iona l conhece cen tenas de espéc ies arbóreas daque la mata espec í f i ca , sua loca l i zação, seus usos , os an ima is , seus c i c los reprodu t i vos , t r i l has , e rvas med ic ina is , en t re tan tos ou t ros conhec imentos que podem ser cons iderados raros e a inda não

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ca ta logados pe la soc iedade le t rada . Ex is te a l i s ta nac iona l de an ima is em ex t inção , dever ia haver também a l i s ta nac iona l dos conhec imentos em ex t inção, i nc lus ive conhec imentos sobre an ima is em ex t inção . Se es ta houvesse, com cer teza os ca içaras se r iam um dos que es ta r iam em ma io r r i sco , dado o g rau de espec ia l i zação de seus conhec imentos .

A cu l tu ra es tá sempre em t rans fo rmação , po r i sso , que essas novas a t i v idades devem ser i ncorporadas às p rá t i cas d iá r ias . Ent re tan to , os ca iça ras devem d ispor de fe r ramentas que os to rnem capazes de se lec ionar as t rans fo rmações que decor rem da in teração de sua cu l tu ra e da soc iedade de consumo. O que se vê quando esse con ta to não é p lane jado , são resu l tados de uma in te ração descon t ro lada , que geram a descarac te r i zação cu l tu ra l , a po lu i ção e a fa l ta de saúde. Os ó rgãos competen tes , como o IEF , responsáve l pe la á rea , tem em suas d i re t r i zes fo rmadoras , o pape l de gera r cu rsos e pesqu isas que capac i tem esses moradores para essa in te ração . Não é o que acon tece a té o momento .

Esse é um dos temas p r inc ipa is que D IEGUES d iscute , como as a t iv idades ru ra is são c lass i f i cadas como per igosas e as a t i v idades u rbanas como o tu r ismo são favorec idas a t ravés da t rans fo rmação de espaços de p rodução co le t iva em espaços rec rea t i vos para as levas do tu r ismo u rbano , a t ravés de expropr iações governamenta is .

Essas a l te rações da sus ten tab i l i dade comun i tá r ia geram uma dura dependênc ia dos p rodutos e f l uxos f i nance i ros da u rban idade . Mesmo as p ropos tas ma is con temporâneas como o tu r i smo consc ien te e o eco tu r i smo, possuem em s i mecan ismos que permi tem apenas uma me lhor conservação dos espaços . Reduz indo o l i xo e os danos do tu r i smo preda tó r io , compromete as p rá t i cas comun i tá r ias e a l te ra a p rodução e o con jun to s imbó l ico e ident i t á r io co le t ivo . Nesses mode los a inda há uma dependênc ia econômica e cu l tu ra l , j á que a p reocupação é com a p reservação do me io natu ra l e não com a cu l tu ra que ne le hab i ta .

Os aspec tos da u rban idade gera lmente são desar t i cu ladores da v ida comun i tá r ia . O tu r i smo, en t re tan to , apesar de causar um pro fundo impac to negat ivo na cu l tu ra e no me io amb ien te também é capaz de c r ia r fo rmas de in te ração ent re agen tes u rbanos e loca is que geram processos de mão-dup la como a fo rmação de uma Ong. Es ta ong que fo i fo rmada por tu r is tas que se l i garam aos ca içaras por l aços de amizade fo i o p r inc ipa l f a tor que recen temente c r iou uma poss ib i l i dade de res is tênc ia e de permanênc ia de moradores em duas pra ias da pen ínsu la a fe tadas pe la gr i l agem.

O tu r ismo eco lóg ico sus tentáve l aparece recentemente como uma nova poss ib i l idade de in te ração. Levando em con ta o

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conce i to de que o tu r is ta se to rna um v is i t an te quando encont ra uma comun idade consc ien te , i nves te na educação amb ien ta l de comun idades e v i s i t an tes . Inc lu i a pe rspec t i va h i s tó r i ca e va lo r i za o conhec imento t rad ic iona l . Já começam a se perceber um mov imento de cursos , o f i c inas e encon t ros par t i c ipa t i vos , em que comun idades qu i lombo las , ca iça ras e ind ígenas p romovem sobre suas cu l tu ras e que cada vez mais encon t ram in teressados na urban idade.

O f i c i n a d e A g r o e c o l o g i a e R a í z e s T r a d i c i o n a i s d a P r a i a G r a n d e d a C a j a í b a 4 6

A Res is tênc ia Po l í t i ca

“ t í t u l o s f r a u d u l e n t o s s o b r e t e r r a s p ú b l i c a s – m u i t o s d o s q u a i s a t r o p e l a n d o d i r e i t o s d e o c u p a n t e s l e g í t i m o s – f o r a m a m p l a m e n t e l e g a l i z a d o s j á q u e o s g o v e r n o s e s t a d u a i s s e m o s t r a v a m e m g r a n d e p a r t e i m p o t e n t e s p a r a e v i t a r a a p r o p r i a ç ã o p ú b l i c a . A a r t e d a a p r o p r i a ç ã o p r i v a d a – g r i l a g e m , q u e v e m d e g r i l o , q u e s a l t a s o b r e a t e r r a d e o u t r o s – t o r n o u - s e u m a p r o f i s s ã o . R o u b o d e p a p e l t i m b r a d o o f i c i a l , ( . . . ) s u b t e r f ú g i o s q u e o s f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s q u a s e s e m p r e t o l e r a v a m o u d o s q u a i s p a r t i c i p a v a m . M o n t e i r o L o b a t o , ( . . . ) c i t a o c a s o d e u m g r i l e i r o q u e “ p e r s u a d i u ” u m t a b e l i ã o a c o p i a r u m t i t u l o e m s e u c a r t ó r i o c o m o s e n d o s o b r e 2 2 e m v e z d e 2 l é g u a s d e t e r r a e f e z c o m q u e a c ó p i a f o s s e a u t e n t i c a d a p o r u m f u n c i o n á r i o j u d i c i a l , q u e n ã o s e d e u a o t r a b a l h o d e c o n f r o n t a - l a c o m a o r i g i n a l . O g r i l e i r o m a n d o u e n t ã o u m a m i g o a d v o g a d o t o m a r e m p r e s t a d o o o r i g i n a l e “ p e r d e - l o ” . Q u a n d o o a d v o g a d o f o i d e v i d a m e n t e p r e s o p o r e s s a o f e n s a , o g r i l e i r o p r e s t i m o s a m e n t e a p r e s e n t o u - s e c o m a c ó p i a a u t e n t i c a d a e m a n d o u q u e o l i b e r t a s s e m . ”

W a r r e n D e a n – A F e r r o e a F o g o . 4 7

46 Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.47 DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.189

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Os p rocessos de gr i l agem na reg ião fo ram a par t i r da década de 70 , impu ls ionados pe lo tu r i smo, e na década 90 , em conseqüênc ia da expansão do tu r i smo na Ba ía da I l ha Grande . O ma io r agen te da g r i lagem fo i G ib ra i l Tannus , que ag iu na Penínsu la em áreas oceân icas e da ba ía como Ponta Negra , Mar t im de Sá, Sono, Pra ia Grande e Saco do Mamamguá. Compra de escr i t u ras e a lguns te r renos , fa ls i f i cação de cont ra tos , inc lus ive de comodato , c r iação agropecuár ia , u t i l i zação da mata para ca rvão, p ressão ps ico lóg ica , v io lênc ia f í s i ca , capangas a rmados e fa l ta to ta l de amparo governamenta l às famí l i as a t ing idas . O p r inc ipa l fa tor que permi t i u a permanênc ia ou mig ração dos g rupos fo i a a r t i cu lação en t re os própr ios moradores loca is , e recentemente a c r iação da ONG.

Apesar de todas as d i f i cu ldades , houve v i tó r ias ca iça ras no p rocesso de res is tênc ia . Na Pra ia do Sono , ocor reu ta l vez a mais impor tan te . Os con t ra tos de comodato que fo ram consegu idos a t ravés do go lpe do pas to r em bene f í c io do g r i le i ro fo ram cobrados após o prazo de 10 anos , i nc lus ive com a par t i c ipação da fo rça po l i c ia l pa ra t iense . Mu i tos casos de v io lênc ia f í s ica e mora l são lembrados , mas que ao f i na l l eva ram a um in teressan te des fecho , l embrado por toda pen ínsu la como uma prova da impor tânc ia da un ião ca iça ra .

Segundo Seu An ton io do Sono , impor tan te l íder comun i tá r io , após o g r i l e i ro te r dado a o rdem de des t ru i r a roça de um morador , comb inaram com as mu lheres e c r ianças , que apenas es tes se r iam os agen tes da l i ção , os homens f i ca r iam observando caso a lgo sa ísse er rado .

“ E l e u s o u d e m e n t i r a , d e f a l s i d a d e e d e p o i s e l e m a n d o u m e t e r o t r a t o r n a r o ç a d e m a n d i o c a d e u m h o m e m q u e t i n h a a í , ( . . . ) a í o p o v o s e a l v o r o ç a r a m e a c h o u q u e a q u i l o j á e r a d e s a f o r o . A í b a t e r a m n e l e , f o i e m b o r a e n u n c a m a i s v o l t o u a q u i . ” 4 8

Hoje , os moradores da Pra ia do Sono , são os que possuem maio r t ranqü i l i dade quan to ao uso da te r ra . Podem vo l ta r a mora r na p ra ia caso tenham ido v ive r na c idade , podem p lan ta r , podem cons t ru i r , mas possuem um pac to in te rno de nunca venderem suas te r ras para pessoas de “ fo ra ” .

A inda é con tado pe los ant igos , como o governador na época , Leone l B r i zo la , i ns t i tu iu a Reserva Eco lóg ica , que segundo seu An tôn io , de f in iu a penínsu la como uma área p ro teg ida para os ca içaras v ive rem.

A Pon ta Negra escapou da g r i lagem, não to ta lmente , po is mesmo sendo uma p ra ia bem povoada , os descenden tes do g r i l e i ro a inda rondam a p ra ia , d i zendo que vão expu lsa r a todos , po is a te r ra não é dos ca iça ras . A lguns moradores venderam te r renos para o gr i l e i ro , e fo i com base em um desses reg is t ros 48 ? Pesquisa de campo nº2. Praia do Sono / setembro de 2005.

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de venda que o gr i l e i ro aumentou suas posses . Era o te r reno da pon t inha da p ra ia , no canto d i re i to , pe r tenc ia a um homem ve lho , e ao comprar esse te r reno, o g r i le i ro t rans fo rmou a esc r i tu ra como se t i vesse comprado a pra ia toda a té a ponta que o ve lho lhe hav ia vend ido . I sso con ta Seu Ne lson, que fo i aver iguar os p rocessos no Fórum de Para ty , quando e ra um dos l íde res da res is tênc ia dos moradores .

Um dos casos re la tados na Pon ta Negra fo i o do pa i do Dedé , que es tava cons t ru indo uma casa para a famí l i a no a l to da Cachoe i ra das Pedras , d iv i sa da Ponta Negra com atua l condomín io de Laran je i ras . Após abr i r um roçado, a po l í c ia de Para ty , ve io fa rdada e o levou preso para a cade ia de Para ty , sob a a legação de invasão de p ropr iedade par t i cu la r . O homem fo i su r rado v io len tamente , a té que fo i so l to t rês d ias depo is . Mu i to a fe tado , p r inc ipa lmente pe las pancadas da cabeça , não consegu iu se recupera r sendo levado para o hosp íc io da i lha da G igó ia , onde mor reu .

Seus mui tos f i l hos fo ram c r iados com a a juda da comun idade , j á que a v iúva não dava conta de a l imentar a todos . Essa h is tó r ia fo i amp lamente re la tada , na Pon ta Negra e no Sono . Na Pon ta Negra também, houve o caso de um ca iça ra bêbado que fo i t i ra r sa t i s fações com o capanga do G ib ra i l , porque os búfa los t i nham des t ru ído a p lan tação de seu pr imo. Es te ca iça ra fo i es faqueado e mor reu na hora , es te ep isód io também fo i lembrado pe los moradores .

Desde o in íc io dos p rocessos de gr i l agem a té o a tua l momento , as popu lações ca içaras v i ve ram um fo r te êxodo. Se ho je vemos A l tami ros , Manecos , Mar ias e D icas , na verdade, es tes fo ram os ú l t imos de um grupo de centenas que hab i tavam as p ra ias .

Nas p ra ias dos An t igos e An t igu inhos , onde mu i tos dos ca içaras ant igos de ho je , nasceram, não ex is te v iv ´a lma. A a legação é de que haver ia mu i to l i xo e camp ing i r regu lar , mas quan to à von tade de Franc ino e Jango de re to rnar a p ra ia onde nasceram, ma is uma vez a le i que garan te aos ca iça ras o d i re i to de hab i ta r os lugares de nascença não parece se r respe i tada.

O caso da pra ia do Mar t im de Sá fo i fundamenta l pa ra a t rans formação dos processos de g r i l agem con t ra ca iça ras . Na década de 60 , a famí l i a moradora do loca l , S . Roque Fermiano , D. Cap i tu l i na dos Remédios , e os f i l hos , en t re e les o a tua l morador S .Maneco, e ram os remanescen tes de uma an t iga ocupação que con tava com out ras famí l i as . Mesmo ocupando a p ra ia desde a época do b isavô , e sempre ens inando a g ra f ia co r re ta do nome da p ra ia : Mar t im de Sá , nome do nobre que na época da co lôn ia descobr iu a t r i l ha gua ianá e segundo a lenda loca l es ta se r ia sua p ra ia pre fer ida , a famí l i a de Seu Maneco fo i expu lsa por um homem que conheceu a p ra ia quando caçava .

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Encan tado , o m i l i t a r pergun tou se a p ra ia t i nha dono . Os moradores responderam que nunca t inham v is to , mas que poder ia haver . O homem, que se chamava An ton io Pacheco, j á vo l tou da p róx ima vez com a cer t idão de posse , comprada de uma v iúva possu idora de an t igo le i l ão . Mesmo nessa época , a famí l i a j á possu ía o d i re i to da posse da te r ra , já que como moradora há gerações , já hav ia adqu i r i do o d i re i to po r uso cap ião, a t ravés do uso con t inuo de hab i tação ún ica por 10 anos .

Mas como não conhec iam seus d i re i tos , como a ma io r ia da popu lação bras i le i ra , ao ve r os documentos esc r i t os , se res ignaram a serv i r de empregados na sua p rópr ia te r ra , agora uma fazenda de gado . Os bú fa los e bo is en t ra ram nas p lan tações da vá rzea , t rans fo rmando a p ra ia em um cenár io de des t ru i ção . Após ce r to per íodo, dev ido a desen tend imentos , a famí l i a se re t i rou para o Ca i ruçu das Pedras , onde S .Maneco conheceu D .Lorença e se casaram. De lá , S .Maneco fo i hab i ta r o Saco das Anchovas . As décadas passaram e os empreend imentos de carvão e c r iação de gado e búfa los do g r i l e i ro f racassaram. Mor tes , b r igas e fa l ta de sa lár io f i ze ram com que os func ionár ios abandonassem o loca l . Depo is de vaz ia , uma aura de ma ld ição reca iu sobre a pra ia , i nc lus ive quando out ras pessoas ten ta ram hab i ta r a p ra ia , sem sucesso.

Na década de 90, S .Maneco reso lveu re to rnar a mora r em Mar t im de Sá . Conta que a mãe sempre fa lava da p ra ia , e a vontade de vo l ta r e ra mui ta . Fo i reorgan izando o espaço mu i to degradado pe la ocupação do g r i l e i ro e re f lo res tando o en torno . Recons t ru iu a casa de pau-a-p ique sob a grande mangue i ra que p lan tou na juven tude , no loca l da an t iga casa dos pa is . A r rumou o rancho da p ra ia e l impou as t r i l has . Nesse per íodo fo ram chegando os p r ime i ros tu r i s tas , e S .Maneco ia a r rumando ranch inhos e conversando com os v is i tan tes . A té que em 1999 , uma repor tagem do JB de domingo , popu lar i zou a p ra ia an tes p ra t icamente desconhec ida . Car iocas , n i te ro ienses e pau l i s tas chegaram às dezenas , montando suas bar racas e coz inhando por toda par te , ca tando lenha ve rde , j ogando gar ra fas de beb idas na a re ia e gu imbas de c iga r ro .

Com a chegada dos tu r i s tas , a Pra ia do Mar t im de Sá fo i sendo va lo r izada e em 2000 , fo i aber to no Fórum de Para ty , um p rocesso de re in tegração de posse a ped ido dos descenden tes do gr i l e i ro , co locando S .Maneco como réu . A d i f i cu ldade do acesso fez com que o o f ic ia l de jus t i ça demorasse em en t regar o manda to de re in tegração de posse . Seu Maneco con ta que pouco antes d i sso sonhou com mu i tos go l f inhos enca lhados na p ra ia do Mar t im de Sá, o que es tava lhe a le r tando sobre um per igo p róx imo. Após tomar conhec imento do p rocesso, Seu Maneco reso lveu permanecer na te r ra , recebendo duas p ropos tas de defesa . Uma de um advogado de Uba tuba , espec ia l i zado em

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causas de g r i lagem con t ra ca iça ras . Es te , que fo i apresen tado pe la p rópr ia f i l ha de Maneco, l he prometeu v i tó r ia ce r ta , mas cobrava como pagamento um te r reno na p ra ia .

Vendo a s i tuação de per igo que Seu Maneco e sua famí l i a es tavam cor rendo , um grupo de f reqüen tadores da p ra ia que se conheceram lá reso lveram se jun ta r e pensar em uma fo rma de lu tar pe la permanênc ia do amigo no lugar . O g rupo que con tava com a lguns jovens advogados , p ropôs de fendê- lo sem cobrarem honorá r ios . A jus t i f i ca t i va do g rupo é a de que poder fazer a lgo cont ra tamanha in jus t i ça , em me io a tan tas out ras que nos ce rcam, e ra o ma io r pagamento que poder iam te r , a lém da ce r teza de que Seu Maneco cont inuando em Mar t im de Sá , o me io ambiente se r ia mane jado de fo rma a o rgan izar a ocupação tu r ís t i ca e in teg ra- la ao un ive rso ca iça ra .

A jus t i f i ca t iva ace i ta , a inda res tava a ques tão de que os jovens advogados não possuíam nenhuma exper iênc ia na área de d ispu tas te r r i to r ia i s . Mas , Seu Maneco também teve ou t ro sonho , que o fez op ta r pe los jovens advogados . Ass im, o g rupo se o rgan izou em fo rma de ONG, a qua l chamaram Verde C idadan ia , que nasc ia dessa fo rma d i re tamente l i gada a necess idade de defender na jus t iça o amigo Seu Maneco , da Pra ia do Mar t im de Sá . Esse processo , que a inda co r re no Fórum de Para ty , tem duas ques tões cen t ra is , uma sobre o comodato , que te r ia s ido levado à p ra ia pe lo ve lho G ibra i l , pouco an tes de mor rer , doente , em uma pra ia de d i f í c i l acesso e a fo r te ques tão da con t rovérs ia das tes temunhas do g r i l e i ro .

Dessa fo rma, fo i dada a posse temporá r ia da te r ra a famí l i a dos Remédios . Ho je ou t ras casas fo ram cons t ru ídas para os f i l hos de Maneco e a mulher D .Lorença , pa ra que a pra ia se ja herdada pe los descenden tes e também porque é ma is seguro para os pa is que já es tão enve lhecendo . Como mu i tas famí l ias ca iça ras , o casa l j á ve lho , possuem duas casas , uma que a mu lher coz inha e passa o d ia e ou t ra cen t ra l , em que va i do rmi r com o mar ido .

Na Pra ia Grande, a s i tuação fo i s im i la r . O grande êxodo popu lac iona l f o i p reced ido de anos de res is tênc ia . Os moradores contam que mu i tos res is t i ram o máx imo que puderam, mas dev ido as p ressões , a o fe r ta de d inhe i ro , a des t ru ição de casas , mu i tos não agüen ta ram e par t i ram.

Houve casos de moradores que qu iseram vo l ta r , mas fo ram imped idos pe los capangas dos g r i le i ros . A pa isagem da Pra ia Grande parece ao de um bombarde io . Mu i tas casas des t ru ídas , demo l idas , com os t i jo los espa lhados , mensagens de ameaça , roças em me io ao mataga l . O cenár io é de in t im idação e demons t ração de poder . Ho je , as t rês ú l t imas famí l i as res tan tes parecem focos i so lados de um povo que ou t ro ra hab i tou a reg ião .

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Os capangas do gr i l e i ro v ig iam o loca l e os ant igos f reqüen tadores que cos tumavam acampar nas mangue i ras de sua roça de mand ioca , fo ram agred idos . Um de les tomou um soco , e qu is p res tar que ixa na de legac ia de Para ty , mas qua l não fo i a su rpresa do g rupo , quando ao ent rar na sa la do de legado , av is ta ram o agressor ao lado do de legado . O agressor e ra ex -po l i c ia l da de legac ia de Para ty , e depo is de horas esperando e quase perdendo o u l t imo ôn ibus para o R io , os a tacados des is t i ram da que ixa e se fo ram.

Há uma fa l ta de l i be rdade na reserva . Um c l ima de te r ro r ps ico lóg ico é uma cons tan te em mui tas comun idades . Na Pra ia Grande , os capangas armados v io lam as le is de l i v re c i rcu lação de c idadãos e são uma ameaça cons tan te de agressões e vanda l i smo. Os moradores tem medo de andar soz inhos nas t r i lhas e há asséd io nas re lações de poder . Um dos casos mais g raves é o de D . D ica , que com sua f i l ha moça , tem que ace i ta r a p resença do capanga, que gera lmente paga a l tas doses de beb idas a lcoó l i cas para os moradores , i nc lus ive para a f i l ha de D.D ica . A conta que soma cen tenas de rea is é paga pe lo gr i l e i ro , f ren te à tão impor tan te consumidor , as vezes o capanga dorme bêbado na b i rosca.

Esse p rocesso de gr i l agem promoveu uma degradação das re lações pessoa is dev ido à longa duração do conf l i to . D ispu tas e desentend imentos comuns en t re v iz inhos , se t rans fo rmaram em in t r igas po l í t i cas que a fe tam a re lação de permanênc ia no loca l , com suspe i tas co t id ianas de acordos secre tos en t re ce r tos moradores e os gr i l e i ros . Mas esse fa to r de un ião ou desun ião do g rupo fo i fundamenta l para o resu l tado do processo de Pon ta Negra e Sono e nega t i vo decor ren te da desun ião dos moradores da Pra ia Grande e do Mamanguá .

Um dos exemp los da v io lênc ia f í s i ca de que são a lvos os ca iça ras , é o de D .D ica , que vo l tando para casa na encos ta , j á que sua casa próx ima à p ra ia há mu i to hav ia s ido des t ru ída . Ao c ruzar o r io a pé , já que o g r i le i ro de r rubou a an t iga pon te , encon t rou um capanga . Es te es tava agachado bebendo água e ao ve r a f ranz ina senhora de 56 anos vo l tando com seu facão , se assus tou . Mandou que D .D ica jogasse o facão na água , ao que a mu lher a rgumentou que o facão e ra seu ins t rumento de t raba lho . O homem puxou a a rma e apontou para a senhora , d i zendo que se não jogasse o facão , a t i ra r ia , e repe t iu a sen tença. D.D ica ass im fez , po r não te r ou t ra a l t e rna t i va e ho je co r re na Câmara de Para ty , um p rocesso con t ra o capanga .

Em O Mi to Moderno da Na tu reza In tocada , se encont ra um t recho que resume bem o caso da Jua t inga :

“ N a m a i o r i a d o s c a s o s , a s c h a m a d a s p o p u l a ç õ e s t r a d i c i o n a i s e n c o n t r a m - s e i s o l a d a s , v i v e n d o e m e c o s s i s t e m a s t i d o s a t é a g o r a c o m o

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m a r g i n a i s ( m a n g u e s , r e s t i n g a s , f l o r e s t a s t r o p i c a i s ) s ã o a n a l f a b e t a s e t ê m p o u c o p o d e r p o l í t i c o , a l é m d e n ã o t e r e m t í t u l o s d e p r o p r i e d a d e d e t e r r a . ” 4 9

Um dos marcos h is tó r i cos dessa d ispu ta en t re ca iça ras e g r i l e i ros fo i a des t ru ição em se tembro de 2005 , do rancho onde D.Mar ia vend ia seus pas té is no verão , e par te dos ranchos de D.D ica e S .A l tami ro . A jus t i f i ca t i va e ra de preservação ambienta l , e fo i consumada pe lo IEF e IBAMA, com responsáve is do R io , i nc lus ive . O a to a rb i t rá r io , po rém, não consegu iu mascara r sua mot i vação po l í t i ca , sendo es ta perceb ida pe lo m in is té r io púb l ico na condenação dos a tos do IEF. Fo i p ro ib ida sua ação con t ra ca içaras e de f in ida a pun ição de inquér i t o admin is t ra t i vo para os responsáve is , agora cons iderados réus .

“ A l e g a o M P F q u e , n o d i a 2 5 e 2 6 d e a g o s t o d e 2 0 0 5 , o I E F , r e p r e s e n t a d o p e l o s o u t r o s r é u s , d e m o l i u t r ê s r a n c h o s c a i ç a r a s , e m a f r o n t a a d i v e r s o s p r i n c í p i o s c o n s t i t u c i o n a i s , d e n t r e e l e s , o c o n t r a d i t ó r i o e a a m p l a d e f e s a . ( . . . )

P o r f i m , r e q u e r a c o n d e n a ç ã o d o s s e r v i d o r e s d o I E F p o r i m p r o b i d a d e a d m i n i s t r a t i v a , h a j a v i s t a o s i n d í c i o s d e d e s v i o d e p o d e r , q u e i n d i c a m q u e a o p e r a ç ã o t e v e p o r o b j e t i v o f o m e n t a r i n t e r e s s e s p e s s o a i s e n ã o o f i m c o l i m a d o p e l a s l e i s d e p r o t e ç ã o a m b i e n t a l ” 5 0

É impor tan te c i t a r também o caso de D .B id ica , que e ra v ice -p res iden te da assoc iação de moradores . A re in tegração de posse em benef íc io do gr i l e i ro fo i emi t i da nas vésperas do na ta l an ter io r , e só fo i impugnada porque a ce r t i dão de posse apresen tada não cons tava no car tó r io emissor . Fa to depo is ques t ionado em ju ízo , pe la a legação de que hav ia do is ca r tó r ios em Para ty sendo fund idos pos te r io rmente , e seus documentos embara lhados . Mas a ce r t i dão respec t i va nunca fo i apresen tada , fa to ho je esquec ido , j á que D.B id i ca , cansada de tan ta p ressão, vendeu suas posses , d i zem na p ra ia , que por 15 mi l rea is e fo i com a famí l i a pa ra um bar raco na fave la da I l ha das Cobras em Para ty . Sua casa fo i demol ida ass im como a dos out ros moradores , inc lus ive a ig re ja p ro tes tan te , sobrando apenas a esco la , po r se r um bem púb l i co .

O p rocesso ma is c r í t i co no momento , é o da famí l i a de Seu A l tami ro e Dona Jand i ra . Moradores do mor ro te do can to d i re i to da Pra ia Grande , e les es tão sendo processados por descumpr i r o cont ra to de comodato . En t re tan to , o comodato es tá ass inado pe lo casa l , sendo que ambos são ana l fabe tos na p rópr ia ca r te i ra de iden t idade . O nome de D .Jand i ra es tá esc r i to e r rado e o acusador é reconhec idamente um gr i le i ro , a famí l i a Tannus , que cons ta inc lus ive no A t las fund iá r io do Es tado do R io

49 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.43

50 M e d i d a l i m i n a r c o n c e d i d a n a C a u t e l a r I n o m i n a d a n ° 2 0 0 5 . 5 1 1 1 . 0 0 0 4 5 0 - 0 à s f l s . 1 4 / 1 6 , . ”

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de Jane i ro e sabe-se que o car tó r io de Para ty é um dos ma is f raudu lentos do Bras i l .

S . A l t am i r o a l im en t ando o f i l ho te de p i ca -pa u .

Apesar de tudo isso , a ju í za a lega que é uma prá t i ca mui to comum dos ca iça ras , receberem o d inhe i ro , ass ina r comodatos e depo is d ize r que são ana l fabe tos . Ta lvez por causa dessa c rença , que a mesma tenha dado re in tegração de posse imed ia ta para o g r i l e i ro no in í c io do p rocesso . Mas os advogados da ONG, agora também t raba lhando no caso , consegu i ram modi f i ca r a s i t uação . Recen temente a advogada p r inc ipa l do caso e esposa de um dos f i lhos de Seu A l tami ro fo i acusada pe lo gr i l e i ro , de t rá f i co de d rogas na Pra ia Grande. Apesar do absurdo de uma advogada economicamente es táve l se r t ra f i can te em uma p ra ia , onde hab i tam t rês famí l i as , sendo duas de las de idosos , a acusação fo i anexada ao processo . Tendo inc lus ive o gr i l e i ro ameaçado en t ra r com um ped ido de cassação do d i re i t o de exercer sua função de advogada .

Com essa acusação e a recente ameaça de mor te de um dos ma is impor tan tes a l iados da comun idade , um ve le jador es t range i ro que inc lus ive fo i quem ens inou a Seu A l tami ro o método da compos tagem, a comun idade se vê em grande r i sco . Inves t ido res in te rnac iona is v i s i t am a p ra ia desembarcando de luxuosos ia tes e he l i cóp te ros fazem vôos rasantes , como pôde se r comprovado em duas v iagens de campo.

A té mesmo em comun idades imob i l i a r iamente menos cob içadas ex is tem con f l i tos . No mesmo d ia em que os func ionár ios do IEF , sa ídos da ação nos ranchos da Pra ia Grande , ancoraram em uma i l ha e depo is se d i r ig i ram a Pra ia dos Ca lheus . Lá des t ru í ram o made i rame do te lhado e as paredes p ron tas a té a metade da casa da famí l i a do Careca , da Ponta da Jua t inga. Es ta famí l i a , de mu i t í ss imos f i lhos , hav ia

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cons t ru ído a casa para que no ve rão , as c r ianças pudessem te r acesso à p ra ia , e também para a pescar ia . A pesca também es tá sendo p re jud icada na i so lada comun idade da Pon ta Jua t inga. Es ta comun idade apresen tou o ma io r g rau de p resença dos háb i tos ca iça ras t rad ic iona is , ass im como a Rombuda e o Ca i ruçu das Pedras . A s imp l i c idade de seus moradores e sua in terdependênc ia do ecoss is tema a inda é o p r inc ipa l esquema do g rupo . Lá permaneceram as redes de a juda mútua , as roças co le t i vas e um s is tema de mane jo da pesca .

Porém a té lá na i so lada Jua t inga, um dos moradores ant igos e seus f i lhos , fecharam com uma casa a par te do rochedo por onde sub iam as canoas , faz iam redes e se pescava de l i nha , p r inc ipa lmente as mu lheres e as c r ianças . Percebe-se que a té en t re os ca iça ras , os idea is de p ropr iedade p r ivada vêm recen temente t rans fo rmando á reas antes comun i tá r ias , em desen tend imentos pe la posse da te r ra . Essa também fo i uma das causas para que a famí l ia do Careca tenha cons t ru ído uma casa no te r reno do pa i , o ve lho fazedor de canoas do Ca lheus . Recen temente , houve um assass ina to na Juat inga , por causa de out ra cons t rução que agred iu o espaço co le t i vo . Um rapaz matou o p rópr io avô, po rque esse fo i veemente e se revo l tou com a cons t rução de uma casa no campo de fu tebo l da comun idade.

Essa desapropr iação dos espaços reduz iu o acesso aos lugares de uso co le t ivo , c r iando uma sucessão de te r renos par t i cu la res . Mesmo te r ras que an tes e ram cons ideradas como sem dono, como as se r ras , as pedras da cos te i ra , ou p ix i r i cas , que são a t racadouros de barcos , fo ram sendo vend idas , mu i tas baseadas em con t ra tos f raudu len tos . O processo de documentos fa l s i f i cados que g rassou no pa ís desde sua fo rmação , nes ta reg ião ex is t iu e con t inua a ex is t i r . Os fo ras te i ros , ge ra lmente de São Pau lo e R io após negoc iarem com descenden tes de an t igos donos do sécu lo X IX , ou dos que hav iam negoc iado com es tes , f raudavam con t ra tos anexando aos l im i tes reg is t rados , as á reas comuna is .

Percebe-se que os d i re i t os dos povos t rad ic iona is cont inuam presos aos papé is em que fo ram escr i tos , e que t raba lhos como os de educação ambien ta l são v is tos pe los ó rgãos amb ienta is como per igosos . Não há a percepção de que p reservar a memór ia co le t i va também faz par te do p rocesso de conservação amb ienta l da reserva . Pe lo con t rá r io , a memór ia loca l pode se r um empec i lho para as mi l i onár ias inden izações que poss ive lmente esses gr i l e i ros i rão receber em caso da á rea se to rnar um parque .

Na verdade, G ib ra i l Tannus aparece em um documento púb l ico , o A t las Fund iár io do Es tado do R io de Jane i ro , como sendo um famoso g r i le i ro . Na b ib l iog ra f ia sobre o tema ca iça ra , seu nome também é mu i to conhec ido , po is fo i e le que vendeu o

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te r reno da T r indade para a Incorporadora Brascan e o te r reno onde ho je f i ca o Condomín io de Laran je i ras . O p rocesso de expu lsão dos ca iça ras da T r indade fo i um marco do mov imento de expu lsão dos ca içaras e também de sua res is tênc ia , a l i ados à g rupos u rbanos num mov imento que f i cou conhec ido como t r i ndade i ros .

A lu ta pe la posse da te r ra , como con ta bem o l i v ro “Genoc íd io Ca iça ra” , t eve d iversos embates , man i fes tações púb l icas em Para ty , o f i lme Vento Con t ra , e do lado dos g r i l e i ros , f o ram cons t ru ídos por tões que l im i tavam o acesso , uma enorme devas tação de um mangueza l pa ra a cons t rução de um g igantesco empreend imento tu r ís t i co , de r rubada de casas , bú fa los , exp lo ração de minér ios e ca rvão . Houve casos de ca iça ras que t i veram que morar com suas famí l i as em cavernas , como fo tos an t igas e re la tos de ant igos f reqüentadores a tes tam. Por f im, um acordo ent re g r i le i ros e ca iça ras def in iu que os ca iça ras f i car iam com as posses na be i ra do mar , mas que todo o enorme ter reno no in te r io r da p ra ia se r ia da BRASCAN.

Esse mesmo processo fo i e é v i v ido por mu i tos moradores da Reserva Eco lóg ica da Jua t inga . Ho je , não apenas a g r i lagem, mas a leg is lação amb ienta l impos ta a ta is á reas e o tu r i smo mal p lane jamento , é capaz de v io len tamente descarac te r i zar g rupos e p romover perdas cu l tu ra i s , econômicas e soc ia i s .

Essa d iscussão com cer teza tem re f lexos sobre a po l í t i ca re fe ren te aos g rupos t rad ic iona is , t an to no meio o f ic ia l como no não governamenta l . Den t ro desse mov imento de inversão das re lações de t roca e reconhec imento en t re a urban idade e a ru ra l i dade , se in ic iou um nov íss imo mov imento : a a l i ança es t ra tég ica en t re ca içaras e u rbanos .

Conc lusão :

“ ( . . . ) f o m o s à t e r r a e d e s c o b r i m o - l a t ã o c h e i a d e á r v o r e s q u e e r a c o i s a m a r a v i l h o s a , n ã o s o m e n t e a g r a n d e z a d e l a s , m a s s e u v e r d o r e c h e i r o s u a v e q u e d e l a s s a í a e q u e d a v a t a n t o c o n f o r t o a o o l f a t o q u e g r a n d e r e c r e i o t i r a m o s d i s t o . E o q u e v i a q u i f o i d e u m a f e í s s i m a ( s u p e r l a t i v o ) c o i s a d e p á s s a r o s d e d i v e r s a s f o r m a s , e c o r e s , e t a n t o s p a p a g a i o s q u e e r a d e s l u m b r a n t e ; ( . . . ) e o c a n t o d o s p á s s a r o s q u e e s t a v a m n a s á r v o r e s e r a c o i s a t ã o s u a v e , e d e t a n t a m e l o d i a , q u e n o s a c o n t e c e m u i t a s v e z e s

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e s t a r m o s p a r a d o s p e l a d o ç u r a d e l e s . E a m a t a é d e t a n t a b e l e z a e s u a v i d a d e q u e p e n s á v a m o s e s t a r n o P a r a í s o T e r r e s t r e . ” 5 1

Contemporaneamente , os moradores ca iça ras apresen tam um a l to g rau de consc iênc ia sobre os p rocessos pe los qua is passam seu grupo soc ia l e a reg ião que hab i tam. Os p rocessos são notados , mas as espec i f i c idades nem tan to . Essa bar re i ra da l i nguagem, pr inc ipa lmente , impede uma sér ie de a rgumentações por pa r te dos na t i vos e des loca para os me ios le t rados o deba te das ques tões que os a fe tam.

Há um con junto de saberes , f ru tos do conhec imento empí r ico acumu lado a t ravés da ora l idade. Esse conhec imento , a t ravés de uma memór ia amb ienta l , se mani fes ta no conhec imento e tnobotân ico e faun ís t i co , que inc lu i a memór ia dos c r imes amb ien ta is . A lém d isso, a va r iedade gené t i ca de suas roças se mos t ra como um poo l de espéc ies ra ras , he ranças poss íve is de um roçado ind ígena . Mesmo es tando em ex t inção as roças que a inda ex is tem, a lgumas de las , possuem a té qua t ro va r iedades de um mesmo gênero . Fe i jões de mu i tas co res , mamões da mata a t lân t i ca de t rês raças , como chamam, d ive rsos gêneros de mand ioca e por a í va i .

A pr ime i ra h ipó tese sobre a descendênc ia ind ígena ca iça ra se comprovou na cu l tu ra a t ravés da aná l i se das p rá t icas co t id ianas e dos re la tos sobre lendas e h i s tó r ias loca is . B io log icamente , mesmo que a Ant ropo log ia B io lóg ica se ja ho je p ra t icamente uma d isc ip l i na renegada , um es tudo v i sua l apon tou d ive rsos ca iça ras que são c la ramente descenden tes d i re tos de ind ígenas , pe la f i s ionomia , t i po f í s ico e por i dosos que mesmo após os 70 anos de idade conservam cabe los negros . Mui tos ape l idos de jovens são demons t radores dessa o r igem, como fo i apon tado pe los p rópr ios ca iça ras . Fo i pe rceb ido que o e tnoconhec imento t rad ic iona l ca iça ra já es tá sendo u t i l i zado em a lgumas comun idades para a recompos ição amb ien ta l das á reas degradadas , com o p lan t io de á rvo res f l o res ta is e f ru t í f e ras .

A conservação da na tu reza, p ropos ta que recen temente en t rou em conta to com a cu l tu ra ca iça ra , j á mos t ra ho je conseqüênc ias po l í t i cas , p r inc ipa lmente na lu ta pe la a f i rmação do d i re i to ao te r r i tó r io . Mesmo que em mu i tas á reas iso ladas hab i tadas por comunidades ca iça ras , ex is tam ex tensas á reas degradadas , p r inc ipa lmente pe la agr icu l tu ra e fe i t i o de canoas , o impac to dos fa to res adv indos da u rban idade são capazes de degradar as re lações que os ca iça ras mant inham com o ambien te , e conseqüen temente o mesmo.

51 VESPÚCIO, Américo. 1505. trad. Luís Renato Martins. Novo Mundo – cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre, L&PM Editores, 1984. contracapa

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A cu l tu ra ca iça ra t rad ic iona l não é h is to r icamente defensora da natureza nem possu i p rá t i cas que por s i só p reservam os ecoss is temas. Tem, en t re tan to , s i s temas de equ i l í b r io com o me io , p r inc ipa lmente por possu i r uma economia de subs is tênc ia que depende d i re tamente da qua l idade dos ecoss is temas do ento rno . Ass im, mesmo que a iden t idade cu l tu ra l ca iça ra permaneça num contex to p rodut ivo consumis ta , a cu l tu ra t rad ic iona l possu i um con jun to de conhec imentos que se r ia ma is capaz de fazer essa adaptação de um un ive rso ru ra l para um con tex to de g loba l ização .

Os fa to res da urban idade in t roduz i ram novas p rá t icas que comparadas com as t rad ic iona is degradaram mu i to mais a na tureza . A cons t rução de casas de ve rane io , o l i xo der i vado dos produ tos indus t r ia l i zados e as fazendas agropecuár ias são exemp los do impac to devas tador desses novos fa to res , não havendo nenhum t raba lho de adap tação ou educação amb ien ta l , por pa r te dos ó rgãos responsáve is . Ma is a f ren te es tes fa tores se rão ana l i sados mais p ro fundamente . Mesmo técn icas t rad ic iona is t idas como p r inc ipa is agen tes de degradação não so f re ram nenhum t ipo de t raba lho educa t i vo , a não ser de pessoas independen tes como no caso da in t rodução da técn ica de compos tagem agroeco lóg ica .

A co iva ra como técn ica de p reparação da te r ra para o p lan t io , é a inda u t i l i zada em loca is em que a f i sca l i zação não se mos t ra agress iva , ou se ja , em loca is aonde o tu r i smo não chega com fo rça . I ndo em d i reção opos ta a a lgumas aná l i ses em que o ca iça ra aparece como essenc ia lmente um homem do mar , a p resen te pesqu isa focou de que mane i ra , o ca iça ra possu indo um pro funda l igação com o mar , é em sua ra iz , um agr i cu l to r também. E percebendo, em que med ida, como o abandono das roças es tá ocas ionando uma per igosa perda de sua segurança a l imentar .

Essa d im inu ição do número de roças acompanha um processo h is tó r ico g loba l , em que a par t i r do f im do sécu lo X IX , a t ra ídos pe lo po tenc ia l de mercado de t raba lho das c idades , e decadênc ia de mode los de produção agr íco la insus ten táve is , as popu lações ru ra is começaram seu f l uxo em d i reção à u rban idade. F luxo esse que é também de mão-dup la , j á que a lóg ica do consumo se funda pr inc ipa lmente na necess idade de es ta r expand indo seu ra io de in f l uênc ia em d i reção as per i fe r ias met ropo l i t anas . Assoc iado a esse con tex to , novas re lações homem-ambien te fo ram for jadas , e o campo, em opos ição à u rban idade, passou a rep resentar um lugar onde p rá t i cas a rca icas se con t rapunham as benesses do p rogresso c ien t i f i co da modern idade.

As a t i v idades t rad ic iona is , como as roças , o fe i t i o de canoas , a ces tar ia , as fes tas en t re ou t ros , en t ra ram para o

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con junto de prá t icas re lac ionadas ao an t igo , ao ve lho , em uma soc iedade que agora , p r i v i leg ia ac ima de tudo o fu tu ro , o novo e a con temporane idade. D.Cap i tu , v ivendo seus cem anos , ao se r pergun tada sobre o se r ca içara , esc la receu que os an t igos cu l t i vavam a te r ra como p r inc ipa l f on te de subs is tênc ia , tendo na pesca uma comp lementação a l imen ta r . En t re tan to , com o in í c io da pesca embarcada , e da chegada da pesca com cercos , a impor tânc ia econômica da pesca u l t rapassa o da agr icu l tu ra , já em f ranca decadênc ia . A inda segundo D.Cap i tu , o ca iça ra não v ive sem a fa r inha de mand ioca, p r inc ipa lmente no inverno, quando a pesca escasse ia . Sobre esse aspec to é in teressan te notar , que os g rupos Tup is , que hab i tavam a cos ta , também possu íam uma re lação p rodut iva ma is l igada à agr i cu l tu ra , mesmo que dominassem a tecno log ia da navegação .

In fe l i zmente , esse p rocesso de t rans formação cu l tu ra l vem sendo mis t i f i cado a t ravés de uma sér ie de es t ra tég ias que buscam redesenhar o ca iça ra como um povo essenc ia lmente pescador . Essa que parece se r uma f raude h is tór i ca , j á que nega um passado em função de uma necess idade do p resente e que mu i tas vezes se rve para a tender in te resses que não desse g rupo . Mesmo que ho je a impor tânc ia econômica da pesca se ja a mat r i z das prá t icas co t id ianas , há um in te resse po l í t i co , inc lus ive re la t i vo à posse da te r ra , em ignora r a p rá t i ca co le t i va da agr i cu l tu ra , como fa to r impor tan te da iden t idade que esse g rupo possu i de s i mesmo e de seus antepassados .

A lém d isso , o d i scurso homogene izan te ocas iona uma p ressão sobre os que a inda possuem essas prá t i cas agr íco las . A t ravés da pesqu isa de campo em todas as comunidades , com exceção da Ponta da Jua t inga, onde a f i sca l i zação não é fo r te , fo ram dezenas de que ixas sobre o pre ju í zo em que se v i ram a par t i r do momento em que a co iva ra fo i p ro ib ida e ou t ras técn icas de mane jo não fo ram propos tas . Esse p rocesso h is tó r i co de res t r i ção da reprodução cu l tu ra l , t em na ca tequese p ro tes tan te , nos p rocessos de g r i l agem, no tu r i smo e cu lm ina nos d ias a tua is , nas le i s amb ien ta is seus p r inc ipa is fa tores de degradação amb ien ta l e cu l tu ra l , como ressa l ta D iegues :

“ A s á r e a s n a t u r a i s p r o t e g i d a s , s o b r e t u d o a s d e u s o r e s t r i t i v o , m a i s d o q u e u m a e s t r a t é g i a g o v e r n a m e n t a l d e c o n s e r v a ç ã o , r e f l e t e m , d e f o r m a e m b l e m á t i c a , u m t i p o d e r e l a ç ã o h o m e m / n a t u r e z a . ” 5 2

As le i s , fo ram pouco a pouco se t rans formando em in im igos dos moradores , em opos ição a sua gênese , quando no áp ice das d ispu tas en t re ca içaras e g r i l e i ros , f o i i ns t i tu ída a APA do Ca i ruçu . Como se vê nes te t recho :

52 ? DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.67

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A r t i g o 1 º - F i c a c r i a d a a Á r e a d e P r o t e ç ã o A m b i e n t a l ( A P A ) , d e n o m i n a d a C a i r u ç u , ( . . . ) c o m o o b j e t i v o d e a s s e g u r a r a p r o t e ç ã o d o a m b i e n t e , ( . . . ) e a s c o m u n i d a d e s c a i ç a r a s i n t e g r a d a s n e s s e e c o s s i s t e m a . ” 5 3

Apesar de a le i es ta r sendo in f r i ng ida , há casos em que a d i re t r i z l eg is la t i va é no sen t ido es t r i to de dec la ra r p rá t icas cu l tu ra i s co le t ivas como i lega is . Não há um in te resse de u t i l i zar o conhec imento empí r i co que já ex is te na cu l tu ra ca iça ra , pa ra que se t rans forme em opções de mane jo v iáve is , sem pro ib i r a rb i t ra r iamente p rá t icas soc ia i s e a inda favorecer a conservação dos amb ientes . Com exceção da recém c r iada comissão de povos t rad ic iona is do Min is tér io do Me io Amb ien te e os tex tos das le is que não são pos tas em prá t i ca , não há um d iá logo ent re ó rgãos leg is la t i vos e comun idades t rad ic iona is , como se as comun idades fossem incapazes de o fe recer so luções v iáve is pra necess idades da soc iedade nac iona l . Esse parece ser o caso dos v i ve i ros de f l o ra e fauna, que já ex is tem na pen ínsu la que podem ser uma opção v iáve l pa ra o prob lema da p ro ib i ção da caça e das áreas agr icu l táve is e re f lo res tadas , mas ambos são p ro ib idos pe la leg is lação das á reas de reserva .

Na le i , t an to da c r iação da APA, quan to da c r iação da reserva , não se encon t ra p ro ib ição expressa , nem a caça, nem a co iva ra , e s im a a t iv idades que ameacem as espéc ies ra ras :

“ A r t i g o I V - O e x e r c í c i o d e a t i v i d a d e s q u e a m e a c e m e x t i n g u i r a s e s p é c i e s r a r a s d a b i o t a r e g i o n a l . ” 5 4

A caça , uma das p r inc ipa is heranças ind ígenas , fo i a rb i t ra r iamente p ro ib ida , sem levar em con ta que der i va de um complexo cu l tu ra l , mís t i co , econômico e po l í t i co que envo lve p reparações co rpora is , p resság ios , l i de ranças comuni tá r ias , conhec imentos da mata , e a p r inc ipa l a rgumentação dos ca iça ras : de que a caça d im inu iu depo is da escassez de á rvo res f ru t í fe ras e do despe jo de venenos con t ra mosqu i tos , de terminado pe lo condomín io de Laran je i ras .

Em respos ta as c r í t i cas sobre a c r im in i l i zação das comun idades , os ó rgãos ambienta is a legam que ex is tem opções sus tentáve is . No caso da caça, como a legar sus ten tab i l idade em re lação a comun idades iso ladas , que no inverno tem na caça uma comp lementação da a l imen tação. A compra de ca rne bov ina nas c idades , ca rne essa que der i va de fazendas que que imam anua lmente pas tos na própr ia reg ião da Mata A t lân t i ca , se r ia uma opção sus ten táve l? No caso da Jua t inga, a padron ização das le is amb ien ta is a t inge em che io a rep rodução do conhec imento t rad ic iona l . No que cons is te a rep rodução soc ia l dessas comun idades , é impress ionante perceber que há uma espec i f i c idade em sua dependênc ia do me io na tura l , i nc lus ive

53 Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. Sítio IBAMA/RJ.54 ? idem 52

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acerca do novo c i c lo que se es tabe lece com o tu r i smo, e que def ine a cond ição eco lóg ica das popu lações t rad ic iona is .

Há um prob lema de saúde púb l i ca em decor rênc ia da fa l ta de a l te rna t i vas de adap tação das p rá t i cas t rad ic iona is . No caso das que imadas , ge ra a ex t inção das roças , ba ixa na qua l idade da a l imen tação loca l , pe rda de bancos gené t i cos , e u l t imamente tem em sua base, não mais fa r inha ou pe ixe , mas de b isco i tos de água e sa l . Esse p rocesso h is tó r ico da expropr iação das fo rmas de reprodução soc ia l en t ra inc lus ive no deba te sobre o pape l governamenta l na ex t inção de p rá t i cas cu l tu ra i s , que ho je , a inda não a t ing i ram o s ta tus a lcançado pe la l i s ta de espéc ies em ex t inção . Sem inc lus ive , haver qua lquer deba te sobre o pat r imôn io gené t i co das espéc ies cu l t i vadas pe las popu lações t rad ic iona is , que con tam na á rea da Jua t inga com espéc ies ind ígenas . Em uma soc iedade em v ias de aumento das á reas cu l t i vadas com var iedades gene t i camente mod i f i cadas , a impor tânc ia desses bo lsões de cu l t i vo de espéc ies na t i vas assume um pape l f undamenta l na p reservação da soberan ia a l imentar não apenas dessas comunidades , mas também em re lação da tão defend ida soc iedade nac iona l .

Não há nenhum inves t imen to que se perceba , no sen t ido de in t roduz i r e amp l ia r o conhec imento de técn icas de mane jo a l t e rna t i vas por pa r te dos ó rgãos responsáve is . Essa v isão d ico tômica que se es tabe leceu , sobre a conv ivênc ia negat iva ent re popu lações loca is e á reas ambienta lmente p ro teg idas , e que faz par te de uma v i são que tem o se r humano, como par te não per tencen te ao mundo natura l , sendo impresc ind ive lmente danoso aos amb ientes na tu ra is . I nc lus ive , a lguns au to res como War ren Dean acabam o fe recendo dados dessa re lação d i f í c i l , sem, en t re tan to o fe recer re f lexões p lu ra is sobre o assun to .

D iegues a f i rma que : “ p a r a d o x a l m e n t e , g r a n d e p a r t e d o o r ç a m e n t o d a s u n i d a d e s d e

c o n s e r v a ç ã o é u s a d a p a r a a f i s c a l i z a ç ã o e r e p r e s s ã o ( . . . ) , e m u i t o p o u c o p a r a m e l h o r a r a s c o n d i ç õ e s d e v i d a e a m a n u t e n ç ã o d a s p o p u l a ç õ e s t r a d i c i o n a i s q u e , s e o r g a n i z a d a s e e s t i m u l a d a s , p o d e r i a m c o n t r i b u i r p o s i t i v a m e n t e p a r a a c o n s e r v a ç ã o d a s á r e a s p r o t e g i a s . ” 5 5

A fa l ta de uma educação d i fe renc iada , que abarque as espec i f i c idades cu l tu ra i s das comun idades ca iça ras co labora para a perda da memór ia e das p rá t i cas e se cor re lac iona com a saúde e todas as ou t ras ques tões . Em gera l , a não va lo r ização da cu l tu ra ca içara pe los meios ins t i tuc iona is , fo r ta lece uma adequação de f i c ien te e mu i tas vezes danosa en t re o un ive rso s imbó l ico t rad ic iona l e as so luções o fe rec idas pe lo mundo contemporâneo . A fa l ta de t ranspor te para os doen tes , é em gera l uma das jus t i f i ca t i vas para a necess idade de es t radas , o

55 DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999.

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que parece ser uma das ques tões de maio r deba te en t re os moradores . O aumento das doenças ocas ionadas pe la t rans fo rmação da a l imen tação e abandono da ro t ina de t raba lhos f í s i cos pesados , po r uma ma is leve , parece te r levado a uma sér ie de doenças c rôn icas que ex igem t ra tamento na c idade .

Essa dependênc ia da u rban idade man i fes ta em d i fe ren tes aspec tos se demons t ra , p r inc ipa lmente , na es t ra tég ia de res is tênc ia quan to à posse da te r ra . A par t i r do mov imento de mão dup la gerado pe la fo rmação da ONG e defesa dos in te resses ca iça ras , po r agen tes u rbanos a l i ados , e a in te ração com pesqu isadores e a l iados independen tes , a fo rmação das es t ra tég ias de res is tênc ia não re t i ra dos p rópr ios ca içaras o pro tagon ismo na cons t rução de uma iden t idade favoráve l às es t ra tég ias de permanênc ia . Mesmo que essa iden t idade es te ja acompanhada de uma romant i zação do passado . A recon f igu ração da imagem, mu i tas vezes se aprox ima de um idea l do ca iça ra bom se lvagem, p ro te to r do ambiente em que v i ve , a rgumentação que não se conec ta com as p rá t icas co t id ianas t rad ic iona is .

Um dos maio res empec i lhos para uma aná l ise ma is pormenor izada do tema ca içara é essa dua l idade p resente na b ib l iog ra f ia en t re o ca içara ambien ta l i s ta e o ca iça ra humano, com prá t icas s imb ió t icas e des t ru to ras , como todos os se res . Ou t ro p rob lema é a p recar iedade das técn icas de pesqu isa , o que faz com que as conc lusões apresen tadas se jam re la t i v i zadas . Segundo Adams : “ m u i t a s a f i r m a ç õ e s s o b r e p o p u l a ç õ e s c a i ç a r a s s ã o f e i t a s d e f o r m a l e v i a n a , c o m f u n d a m e n t a ç ã o t e ó r i c a m e t o d o l ó g i c a d e f i c i e n t e o u f a l t a d e e m b a s a m e n t o e m p í r i c o ( d a d o s ) . ” 5 6

Ta lvez o maio r a rgumento levantado pe la b ib l i ogra f ia e cons ta tado pe las pesqu isas de campo, é que o ca iça ra possu i uma re lação de subs is tênc ia a t ravés de suas p rá t icas . Essa cu l tu ra tende a res t r ing i r a poss ib i l i dade de des t ru ição avassa ladora do ambien te , t a l como vemos ho je na soc iedade u rbana de consumo. A soc iedade do s ta tus quo , que vem agora regu lar as p rá t icas desses g rupos t rad ic iona is , c r iando le i s que re f le tem suas prá t i cas consumis tas e não ana l i sando os modos de v ida dos g rupos t rad ic iona is . Ou t ro prob lema é tu r i smo ma l p lane jado, que vem se t rans fo rmando na p r inc ipa l f on te de renda de a lgumas comun idades , e que mesmo sendo a inda re la t i vo à dependênc ia dos ca iça ras de seu ambiente , é uma passagem drás t ica para as re lações de p rodução e consumo da u rban idade .

56 ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000. p.49

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Mesmo as fo rmas de tu r ismo consc ien te , como o ecotur i smo, pa recem não responder adequadamente as necess idades loca is . As out ras fo rmas apresen tadas na reg ião do Mamanguá , de t raba lho com esco las e es tudos do meio , parecem a le r ta r pa ra a percepção de como ex is tem es t ra tég ias que já es tão sendo imp lementadas loca lmente e que o fe recem so luções ma is adequadas às necess idades dos g rupos t rad ic iona is . As p ressões de um tu r ismo de luxo in te rnac iona l , e de mega-condomín ios , em mui tos casos , impu ls ionam as p rá t icas de gr i l agem, descor t i nam um patamar de p rob lemas re lac ionados ao tu r i smo que tem h is to r i camente , um fo r te pape l na reg ião desde a d i spu ta na Pra ia da Tr indade, a té o desenro la r das ques tões a tua is na Pra ia Grande.

São as conseqüênc ias de um tu r i smo sem p lane jamento por pa r te dos ó rgãos responsáve is , e que a t ravés de uma a tuação neg l igen te e mu i tas vezes cor rup ta , i nc lus ive por pa r te dos órgãos f i sca l i zadores amb ien ta is . A co r rupção da f i sca l i zação governamenta l já aparece fazendo par te da mi to log ia loca l , com d ive rsas h is tó r ias sobre f i sca is co r rup tos , ações a rb i t rá r ias e ju ízes de imparc ia l i dade duv idáve l . Esse cenár io de te r ra-sem- le i , em que os ca iça ras ocupam o pape l de marg ina l idade , f o i uma das percepções ma is marcan tes das pesqu isas de campo, quando o c l ima de te r ror ps ico lóg ico e f í s i co , na ma io r ia das comunidades , chocou e ao mesmo tempo incen t i vou a con t inu idade da pesqu isa .

Se há uma t rad ição desde um passado remoto , de guer ras ent re ca içaras e fazende i ros e a u t i l i zação de po l ic ia is para t ienses por pa r te de g r i le i ros em d i fe ren tes ep isód ios , a lguns com mor tes , vem se mantendo, como se percebe no caso a tua l da Pra ia Grande . Nes ta p ra ia , em que capangas a rmados , ameaçam moradores , imped indo a té sua c i rcu lação , o quadro de antecedentes h is tó r i cos se mantém. Esse te r ror emoc iona l faz par te de es t ra tég ias de g r i l agem, que em mu i to se base ia na degradação das re lações pessoa is . As ações de re ta l i ação dos g r i l e i ros fo rçam d isputas e desen tend imentos en t re v i z inhos a fe tando as re lações de a l ianças , e p re jud icando as es t ra tég ias de permanênc ia no loca l .

A un ião ou desun ião do g rupo fo i fundamenta l pa ra o resu l tado dos processos de res is tênc ia pe la posse da te r ra . No caso das Pra ias do Sono e Pon ta Negra , em que a comun idade se fo r ta leceu , houve resu l tados pos i t i vos , após reações con juntas . Ent re tan to , nas comun idades da Pra ia do Pouso da Ca ja íba, Pon ta da Jua t inga e Pra ia Grande da Ca ja íba , a rede de in t r igas en t re moradores parece te r s ido fundamenta l nos p rocessos de des in tegração comun i tá r ia . Mesmo o a lcoo l i smo parece te r t i do um pape l menor , apenas o ferecendo quadros de ca iça ras dúb ios , que se t rans fo rmaram em in formantes dos

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gr i l e i ros e agentes amedron tadores dos própr ios ca içaras . Out ro fa to r , que fo i c ruc ia l f o i o da p rá t i ca co r r ique i ra na reg ião , de um ca iça ra vender a sua posse para a lguém de fo ra e cons t ru i r sua casa no mesmo ter reno , a legando não te r vend ido . Essa prá t ica fo i t omada jud ic ia lmen te como um parâmet ro para ju lgar d i versos casos de g r i l agem, a par t i r do momento em que o gr i l e i ro apresen tava a ce r t i dão de venda ass inada , t endo para tan to essa a legação .

Todas essas ques tões perpassam a fo rmação de es t ra tég ias de sobrev ivênc ia e a c r iação de redes , se ja en t re ca iça ras , ou in te resses de fo ra . Essas redes têm em mui tos casos s ido de te rminan tes na fo rmação de a l ianças que tem poss ib i l i tado a permanênc ia ou exc lusão dos moradores . A ma is contemporânea , e que desper tou ma io res conseqüênc ias na h is to r ia recente dos ca iça ras dessa pen ínsu la , é a fo rmação de uma a l iança en t re moradores ca içaras e agen tes u rbanos . Se ja a fo rmação da ONG por jovens tu r is tas para a defesa dos moradores ca iça ras , se ja a par t i c ipação e in t rodução de novas técn icas e abordagens sobre mane jo de espéc ies por v i s i t an tes e pesqu isadores , tem c r iado uma v ia de mão-dup la , c r iando conseqüênc ias s imbó l icas que ex t rapo lam as ações concre tas . Esses v íncu los en t re soc iedade u rbana e moradores loca is , in f luenc ia na p rópr ia cons t rução ident i t á r ia . Ofe rece a l te rna t i vas de d iá logo en t re as popu lações loca is e as ques tões que se apresen tam, se ja da gr i l agem, do tu r ismo ou da reserva . O in teresse por p rá t icas que es tão sendo exc lu ídas das ca tegor ias que os de f inem no âmb i to da leg is lação , como parece se r o caso da agr icu l tu ra , há também um processo de re f lexão por pa r te dos moradores , se as p ro ib ições que os a t ingem são rea lmente inexoráve is .

A memór ia e as prá t i cas desse povo , sua ident idade d i re tamente re lac ionada com a p rópr ia v i são de me io ambien te que os ce rca e dos processos con temporâneos que vem a l te rando essas in te rações , i nc lus ive nas novas fo rmas de re lac ionamento com os agentes ex te rnos , podem ser um dos nós da rede de re f lexões acerca da contemporane idade e a c r ise ambienta l p lane tá r ia . Podem con t r ibu i r também com a lgumas so luções p rá t icas de mane jo amb ien ta l e v i são de mundo. Apesar de dent ro das prá t i cas ca iça ras , es ta rem inser idas fo rmas de mane jo ho je cons ideradas noc ivas à b ios fera , um d iá logo ent re conhec imento t rad ic iona l e modern idade , não é apenas poss íve l , mas t raz conseqüênc ias saudáve is a ques tões prob lemát i cas como no caso espec í f i co da reg ião , que é o de popu lações t rad ic iona is em áreas ambien ta lmente p ro teg idas .

“ O s a d m i n i s t r a d o r e s p o d e m a p r e n d e r m u i t o s o b r e c o n s e r v a ç ã o e u s o d o s r e c u r s o s n a t u r a i s , e n q u a n t o a c o n s e r v a ç ã o d e á r e a s n a t u r a i s p o d e

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o f e r e c e r g r a n d e o p o r t u n i d a d e p a r a a s o b r e v i v ê n c i a d a s c u l t u r a s t r a d i c i o n a i s . ” 5 7

Ainda es tá mu i to nascen te uma s in ton ia dos d iscursos governamenta is , que por um lado começam a c r ia r es t ra tég ias de p reservação do pa t r imôn io ima te r ia l , p r inc ipa lmente da memór ia e da cu l tu ra popu la r e por ou t ro não cons idera aspec tos desse pat r imôn io , como a memór ia amb ien ta l desses povos como aspec tos re levan tes a serem abrang idos pe las le i s amb ien ta is . Apenas a superação da re lação românt i ca e man ique ís ta da d ico tomia homem X na tu reza, pode levar a uma percepção mais ho l ís t i ca e sens íve l das popu lações t rad ic iona is , como os ca iça ras da Penínsu la da Juat inga , são ana l fabe tos s im, mas não ana l fabe tos amb ien ta is .

O p rocesso h is tó r i co dessa popu lação demons t ra como o f i c ia lmen te há uma exc lusão do pape l po l í t i co desse g rupo , inc lus ive em ques tões que os a fe tam d i re tamente . Inc lus ive mu i tos p rocessos de v io lênc ia e arb i t ra r iedade ju r íd ica fo ram levados a cabo por agentes governamenta is o f i c ia i s . As permanênc ias de p rá t icas h is to r i camente repud iadas pe la soc iedade democrá t i ca , pa recem nessa reg ião te rem se es tabe lec ido de ta l fo rma, que apenas em casos em que a o rgan ização popu lar ex t rema e a tomada de med idas rad ica is ocas ionaram a lguma forma de sucesso . Mesmo ho je , em que d ive rsas le i s i n te rnac iona is e amb ien ta is o fe recem espaço para a par t i c ipação e respe i to à ex is tênc ia dessas comun idades t rad ic iona is , o processo po l í t i co rea l , como no caso da recategor i zação da reserva , con t inua não levando em conta a par t i c ipação popu la r s ign i f i ca t i va .

A l te rna t i vas podem ser ap resentadas a p rob lemas recor ren tes , como p ropõe D iegues :

“ d e v e - s e p r o i b i r a c o n s t r u ç ã o d e c a s a s d e n ã o r e s i d e n t e s . Q u a n t o a a g r i c u l t u r a t r a d i c i o n a l , e s t a d e v e s e r a d m i t i d a , m a s e m á r e a s b e m -d e f i n i d a s , a l é m d e s e e s t a b e l e c e r u m a z o n a - t a m p ã o e n t r e e s t a s e a s d e p r e s e r v a ç ã o p e r m a n e n t e . ”

Mas, mesmo havendo p ropos tas , há um con jun to de a rb i t ra r iedades levadas a cabo por g rupos econômicos in f in i tamente super io res e c la ramente a l i ados à agentes governamenta is . Os ca içaras que sobrev ive ram a essas décadas de v io lênc ia cont inuam a res is t i r , p r inc ipa lmente baseados em uma iden t idade co le t i va e na memór ia do grupo como ances t ra lmente descenden te de hab i tan tes do loca l . Essa lu ta , que tem ra ízes mí t i cas , em lendas como a guer ra de Mar ia Franc isca e os ca iça ras do Ca i ruçu das Pedras cont ra a

57 DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.234

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expansão da fazenda do a lemão do Mar t im de Sá , o fe recem um panorama de como a soc iedade nac iona l e os ó rgãos governamenta is responsáve is , cont inuam a conv ive r es ta t i camente com prob lemas arca icos , como a gr i l agem. Ho je as reservas com suas le is a rb i t rá r ias acabam por i ns t i t u i r uma g r i l agem governamenta l .

Apesar dos es tudos c ien t í f i cos já a le r ta rem para a impor tan te l i gação ent re b iod ive rs idade e cu l tu ra , essa consc iênc ia a inda não a lcançou os n íve is l eg is la t i vos e execu t i vos . Como apon ta D iegues :

“ a b i o d i v e r s i d a d e e x i s t e n t e h o j e n o m u n d o é e m g r a n d e p a r t e g e r a d a e g a r a n t i d a p e l a s c h a m a d a s p o p u l a ç õ e s t r a d i c i o n a i s . N e s s e s e n t i d o , a c o n s e r v a ç ã o d a d i v e r s i d a d e b i o l ó g i c a e a c u l t u r a l d e v e m c a m i n h a r j u n t a s . ” 5 8

A cu l tu ra ca iça ra p resen te na reg ião que va i de Mangara t iba , no R io de Jane i ro , ao l i t o ra l do Paraná , v i ve ho je um es t re i t o p rocesso de in teração com a cu l tu ra da soc iedade u rbana . Esse p rocesso mesmo sendo ma is ág i l do que a capac idade de f i l t ragem dos aspec tos noc ivos à essas comun idades , t ambém demons t ra ho je , a t ravés da re lação com out ros agen tes ex te rnos , que possu i uma capac idade de es ta r conec tado à p rocessos p lane tá r ios de va lo r i zação dos bancos gené t i cos das espéc ies cu l t i vadas , de um tu r i smo ma is p lane jado e sens íve l a cu l tu ra loca l , de re inv id i cações por j us t i ça ambienta l , e par t i c ipação popu lar na fo rmação de á reas ambienta lmente pro teg idas . A descarac te r i zação cu l tu ra l é uma rea l idade p resente , mas deve-se perceber também que na h is tó r ia dos ca iça ras da Juat inga es tão p resen tes temas mui to d iscu t idos . A capac idade de res is tênc ia à processos po l í t i cos a l i ados a in te resses econômicos , e novas fo rmas de in te ração da human idade com o ambien te que a cerca . A h is tó r ia dos ca içaras da Pen ínsu la da Jua t inga demons t ra que os homens não são apenas responsáve is pe la ex t inção de espéc ies , mas também guard iões de bancos genét icos , h is to r i camente cons t i t u ídos .

58 DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.

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Mudas de palmito Jussara e Guapuruvu feitas durante a Oficina da Praia Grande.59

59 Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.

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Aqui termina essa história Para gente de valorprá gente que tem memória,muita crença, muito amorPrá defender o que ainda resta,sem rodeio, sem arestaEra uma vez uma floresta (...)60

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60 A Saga da Amazônia, música de Vital Farias. A floresta amazônica e a mata atlântica são irmãs e que compartilham de sagas muito similares, nas histórias de suas plantas, de seus bichos e sua de gente.

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