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Universidade Federal do Rio de Janeiro hipertexto.com.literatura O PROCESSO DE CRIAÇÃO EM OBRAS DE ITALO CALVINO Reheniglei Araújo Rehem 2007

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

hipertexto.com.literatura O PROCESSO DE CRIAÇÃO EM OBRAS DE ITALO CALVINO

Reheniglei Araújo Rehem

2007

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hipertexto.com.literatura O PROCESSO DE CRIAÇÃO EM OBRAS DE ITALO CALVINO

Reheniglei Araújo Rehem

Tese de Doutorado em Letras apresentada à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de doutor em Letras (Teoria Literária).

UFRJ - Letras

2007/2

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SUBSTITUIR PELAS ORIGINAIS AVULSAS

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FICHA CATALOGRÁFICA

Rehem, Reheniglei Araújo

Hipertexto.com. literatura: o processo em obras de Italo Calvino / Reheniglei Araújo Rehem. — Rio de Janeiro, 2007.

vi, 189f. : il. ; 31 cm. Orientador: Angélica Maria Santos Soares. Tese ( Doutorado) — Faculdade de Letras, Departamento de

Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. 1. Calvino, Italo, 1923-1985 – Linguagem. 2. Hipertexto 3.

Intertextualidade. 4. Romance italiano – séc.XX – História e crítica. 5. Narração (retórica). I. Soares, Angélica Maria dos Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título.

CDD 853.91

____________

Reheniglei Araújo Rehem é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, Ilhéus/Ba. Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (2000). É membro Groupe Paragraphe (Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris 8, França), da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) e do Grupo de Estudos em Crítica Genética (Comunicação e Semiótica na PUC-SP). É autora, entre outros, de Moça com brinco de pérola: a mulher, o estético e o literário (2005); O eterno retorno do cacau: história, literatura, imaginário (2001); Do outro lado do espelho com Narciso, Plotino e Velásquez (2000); Nas especificidades, a simetria circular (2000); Brasil e Portugal: fronteiras e convivências (2000); Tempo cronológico, tempo virtual, qual a noção de tempo para o próximo milênio? (2000). Atualmente pesquisa a hipertextualidade em obras de ficção escrita.

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RESUMO

hipertexto.com.literatura

O PROCESSO DE CRIAÇÃO EM OBRAS DE ITALO CALVINO

Reheniglei Araújo Rehem

Orientadora: Angélica Maria Santos Soares

Resumo da Tese de Doutorado em Letras (Teoria Literária) apresentada à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de doutor em Letras (Teoria Literária).

Esta pesquisa faz uma retomada histórica e dialética do conceito de hipertexto,

apresentando-o como um corolário dos valores estéticos cultuados no último século; valores que propugnam a intertextualidade, a confusão entre os papéis do leitor e do autor, o texto escrevível e a obra aberta, tendo como objeto de análise os romances As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados e Se numa noite de inverno um viajante, do escritor italiano Italo Calvino. Esta análise discute como o conceito de hipertexto pode operar e estar presente no processo criativo em textos de papel que primam pela fragmentação, interconectividade, arquitetura labiríntica e interatividade com o leitor.

Palavras-chave: romance pós-moderno; hipertexto de ficção; processo criativo; escrita; leitura.

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ABSTRACT

hypertext.com.literature THE PROCESS OF CREATION IN WORKS OF ITALO CALVINO

Reheniglei Araújo Rehem Director of the thesis: Angélica Maria Santos Soares Abstract of Thesis of Doctorate in Letters (Literature Theory), Program of After-Graduation in Science of Literature, Federal University of Rio de Janeiro.

This research presents a historical and dialectic retaking of the hypertext concept, introducing it as a corollary of the aesthetic values present in the last century. Those values support the intertextuality, the confusion among reader's and author's roles, the written text and the open work, having as objects of analysis the novel The Invisible Cities, The Castle of Crossed Destinies and If in a Winter's Night a Traveler, of the Italian writer Italo Calvino. This analysis argues how the hypertext concept can operate and be present in the creative process in printed texts which stand out by the fragmentation, interconnectivity, mazy-like architecture, and inter-activity with the reader.

Words-key: post-modern romance; fiction hypertext; creative process; writing; reading.

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RÉSUMÉ

hypertexte.com.littérature LE PROCESSUS DE CRÉATION CHEZ ITALO CALVINO

Reheniglei Araújo Rehem

Directeur de recherche: Angélica Maria Santos Soares Résumé de Thèse de Doctorat en Lettres (Théorie de la Littérature), Programme d'études doctorales en Littérature, Faculté de Lettres, Université Fédérale de Rio de Janeiro.

Cette recherche reprend d’un point de vue historique et dialectique le concept

d’hypertexte, en le présentant comme un corollaire des valeurs esthétiques du siècle dernier; valeurs qui préconisent l’intertextualité, l’interchangeabilité des rôles du lecteur et de l'auteur, le texte écrit comme une oeuvre ouverte. L’étude se fait par l'analyse des romans Les villes invisibles, Le château des destins croisés et Si par une nuit d’hiver un voyageur, de l'auteur italien Italo Calvino. Elle montre comment le concept d’hypertexte peut être présent et opératoire dans le processus de création de textes fictionnels marqués par la fragmentation, l’interconnectivité, l’architecture labyrinthique et l’interactivité avec le lecteur. Mots-clé : roman post-moderne; hypertexte de fiction; processus créatif; écriture; lecture.

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Para:

D. Gleide Rehem

in maternidade!

Dindinha e Petrolino Rehem

in memória!

Joni e Lula Rehem

in vida!

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Agradecer, verbo transitivo direto e indireto:

Angélica Soares,

confiança orientada

Jean Clément,

bienveüe hypermédia

Aline Nascimento, Anne de Barre, George Pellegrine, Jeanete Farias e Lúcia Netto,

Gentis gestos

CNPq-Capes

apoio substancial

UESC-Bahia,

espaço do retorno

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SUMÁRIO

LISTA DAS ILUSTRAÇÕES .......................................................................................... 10 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11 Capítulo I .......................................................................................................................... 24 DO CÓDICE AO HIPERTEXTO .................................................................................... 24 Capítulo II ......................................................................................................................... 62 HIPER-AUTOR DE HIPER-ROMANCES ..................................................................... 62 Capítulo III........................................................................................................................ 76 DA SIMETRIA CIRCULAR EM AS CIDADES.............................................................. 76 Capítulo IV........................................................................................................................ 95 DO JOGO ESTÉTICO EM O CASTELO ......................................................................... 95 Capítulo V....................................................................................................................... 118 DA INCOMPLETUDE EM UM VIAJANTE.................................................................. 118 CONCLUSÃO ................................................................................................................ 165

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................178

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LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Rizoma (Botânica).................................................................................32

Figura 2: Rizoma Computacional (Placa-Mãe).................................................... 34

Figura 3: Rizoma Hipertextual de As cidades....................................................... 90

Figura 4.1: Rizoma da Estrutura Narrativa de O castelo.....................................100

Figura 4.2: Rizoma da Estrutura Narrativa de O castelo.....................................109

Figura 5.1: Rizoma da Estrutura Narrativa de Um viajante................................ 122

Figura 5.2: Rizoma da Estrutura Narrativa de Um viajante................................ 146

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INTRODUÇÃO

Antes de entrar no tema da hipertextualidade e a sua correlação com as obras

escolhidas de Italo Calvino para a análise desta pesquisa, faz-se necessário descrever o

percurso histórico do romance para se entender a inserção daquele termo – originário da

linguagem computacional – na literatura de ficção há mais de duas décadas.

Herdeiro direto da estrutura narrativa da epopéia clássica, o romance emerge –

como o concebemos hoje – entre meados do século XVI e início do século XVII,

especialmente na Espanha, expandindo-se em seguida pela Inglaterra, França e

Alemanha. Já no século XVIII, o romance havia-se transformado na mais popular de

todas as formas literárias.

Do século XVI e início do XVII, no momento em que os valores de caráter

nitidamente feudal eram destruídos pelo surgimento dos estados modernos e pela

complexidade crescente do universo mercantil-burguês, o prestígio da classe senhorial

entrou em declínio, e o capitalismo, mesmo que em sua forma primitiva, consagrou

outros ideais como a ascensão social e a constituição da riqueza individual.

A forma literária da épica medieval – cuja derradeira manifestação foram os relatos de

cavalaria – tornou-se igualmente o registro de “algo morto”: aquele passado mítico, feito

de cavaleiros audazes, não tinha mais sentido a partir do Renascimento e da expansão

mercantil burguesa.

Em 1612 veio à luz Dom Quixote de la Mancha. Entre as singelas narrativas

medievais de entretenimento – centradas em torno de incidentes amorosos ou de

peripécias de cavalaria – nesta obra-prima de Cervantes, um mundo inteiro desaparece

(num único golpe) e outro nasce de seus escombros. Dom Quixote é um sarcástico e

comovente “atestado de óbito” dessa antiga forma de narrativa. O protagonista –

embriagado pelas histórias de cavalaria – julga-se um herói à moda antiga e lança-se em

aventuras extravagantes. Para ele, os seus sonhos é que são a realidade; e a realidade

objetiva não passa de um reino de demônios e inimigos. Sua interioridade alucinada é, no

entanto, destruída pelo frio mundo que o circunda. Do choque nasce o riso. Mas nasce

também uma grandeza patética de um pobre homem, que parece ter dormido enquanto a

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história européia se modificava, e que, ao acordar, tenta impor as suas ilusões nobres e

cavalheirescas sobre a sordidez da vida cotidiana.

Contudo, o século do romance foi, sem dúvida, o XIX. Só durante a era

napoleônica (1799-1815), calcula-se que tenha sido publicado cerca de quatro mil

romances, o que atesta a impressionante recepção popular do gênero. De certa maneira, é

esta amplidão que leva o romance a adquirir tamanha representatividade, conforme

afirma o poeta Baudelaire por volta de 1860:1 “Os romances têm um maravilhoso

privilégio de maleabilidade. Adaptam-se a todas as naturezas, abrangem todos os

assuntos. [...] O romance é um gênero bastardo cujo domínio, em verdade, não tem

limites”. (BAUDELAIRE, 2006, p. 615).

Especialmente a partir de 1850, o gênero experimentou extraordinário apogeu.

Surgiu um conjunto de obras-primas escritas por Flaubert, Zola, Dostoiévski, Tolstói, Eça

de Queirós e Machado de Assis, entre outros. As técnicas narrativas tornaram-se mais

requintadas, aprofundaram-se as experiências humanas e ampliaram-se as visões de

mundo. Desde a velha Grécia, a literatura não falava tão proximamente aos homens

comuns.

Verdade que, após a notável emergência do referido grupo de autores, o romance

entrou num relativo declínio. Esse fato levou alguns historiadores literários, e mesmo

alguns ficcionistas, em meados do século XX, a anunciar o desaparecimento das formas

narrativas e até da própria literatura. A era da letra escrita teria chegado a seu fim,

substituída por formas visuais de expressão como o cinema e a televisão. Mas o vaticínio

de um apocalipse das espécies literárias fracassou, e a morte anunciada não se cumpriu.

Ao inverso, nos alvores do século XXI, o romance continua cada vez mais vivo

abordando novos temas e revestindo-os de novas maneiras de apresentação ficcional da

realidade. Quanto à sentença “morte do romance contemporâneo”, talvez a melhor

expressão fosse “nostalgia de formação”.

A pergunta que se impõe é: qual a origem dessa crise? A resposta não é simples,

mas crê-se que ela se localiza no entroncamento representado pelas transformações da

1 BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. In: Charles Baudelaire: Poesia e Prosa. Trad. Alexei Bueno et al. São Paulo: Nova Aguilar, 2006. (Coleção Biblioteca Luso-Brasileira).

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sociedade burguesa, que não por acaso são coetâneas ao surgimento do romance. Trata-se

da ânsia de dar conta da totalidade da experiência humana, filosófica, literária, estética,

existencial. Esta compreensão filosófica da perda da totalidade está representada pelo

fechamento da cultura grega e do estilhaçamento do homem e do mundo pós-segunda

guerra mundial.

Walter Benjamin, no ensaio “O narrador” (1996), apresenta uma genial aparente

contradição: o advento do romance moderno representa a morte da figura do narrador

(daquele artesão sedentário que narra sua história pessoal). Ou seja, da expressão oral da

experiência, surge outro tipo, o narrador-viajante (aquele que narra a experiência do outro

de outro lugar), refundindo a história da cultura do seu povo, ouvida de outro narrador

que o antecedeu, configurando uma sucessão de tempo. Se na narrativa oral importa a

relação experiência-tempo, na narrativa escrita, no romance, importa a informação

divulgada materialmente no livro impresso. Benjamin (1996) mostrou que as técnicas da

reprodução sugeridas no último século ajudaram a desmontar o tripé sobre o qual se

fundara toda a estética clássica e a “bela aparência” da obra: a unicidade, a autenticidade

e o poder de testemunho histórico garantido pela duração: “A arte contemporânea será

tanto mais eficaz quanto mais se orienta em função da reprodutibilidade e, portanto,

quanto menos colocar em seu centro a obra original” ( ibid., p. 130).

Visto assim, o romance já é, em sua origem, uma obra em crise, e a crítica

literária não pode desconsiderar as contradições e suturas do processo histórico que têm

marcado inexoravelmente a produção cultural do nosso tempo e as relações entre matéria

histórica e forma literária. Daí a atualidade e o espaço hoje ocupados pelos autores da

Teoria Crítica como Lukács (Teoria do Romance), Adorno e Horkheimer (Dialética do

Esclarecimento) e Walter Benjamin (Magia e técnica, arte e política: textos escolhidos).

Acerca do caráter de crise do “gênero” romance, encontramos as usuais acusações

de ausência de real talento, originalidade, ou da exaustão das capacidades formais de

expressão. Tais juízos, quando isolados da concretude histórica, constituem salmodia

conservadora que, além de não propiciar nenhuma amplitude analítica ou entendimento

conceitual, apenas repõe uma nostalgia acrítica de um paraíso perdido de existência. Há,

entretanto uma perspectiva alternativa que nos parece muito mais adequada para o

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equacionamento da situação atual do romance: a crítica literária exercida pela teoria pós-

estruturalista sobre a crise da representação fragmentada, e de outros sinônimos que

signifiquem dissolução e ruptura, são a marca registrada da experiência estética

contemporânea.

Só a partir da década de 20 do século passado essa situação se modifica. O

romance, considerado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno

pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal, formado por unidades estilísticas de composição

heterogêneas: o discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados,

os discursos dos personagens. Essa orientação da produção literária para o dialogismo, a

polifonia e a apropriação de palavras alheias provocou efeitos na crítica contemporânea

que, por meio de seus numerosos representantes, reformulou os problemas da relação entre seu próprio discurso e o das obras estudadas.

Em 1975, o teórico russo Mikhail Bakhtin publica Questões de literatura e de

estética2. Nessa obra o precursor da teoria sobre a interatividade no discurso romanesco

discute que até a primeira metade do século XX os problemas estéticos do romance foram

objetos somente de estudos totalizantes ou superficiais. Até então a estilística permanecia

surda ao diálogo, e a obra literária era concebida como um todo, fechado e autônomo,

cujos elementos compunham um sistema que não pressupunha nada fora de si nem sequer

outras enunciações. Nessa perspectiva, a obra em sua totalidade era um monólogo do

autor independente e fechado que previa apenas um leitor passivo.

A partir do conceito bakhtiniano de dialogismo, Kristeva (1974, p. 69) analisou o

processo da presença de uma obra sobre a outra e a impossibilidade de se criar um texto

inaugural: “Todo texto se constrói como um mosaico de citações”. Somando estas à

contribuição de Barthes, o texto foi sendo visto não mais como um produto acabado, mas

como uma “galáxia de significantes” (1971, p. 39) que proporciona múltiplas entradas e

múltiplas saídas.

Nesse percurso, usando o palimpsesto como figura, Genette (1982) formulou o

conceito de transtextualidade como as relações que todo hipertexto mantém com seu

2 No Brasil foi publicado em 1982 sob o título de Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, com tradução do russo de Aurora Bernardini, mantendo a mesma seqüência de estudos da edição russa.

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hipotexto (o texto de origem de todo discurso). Enfatizou que essa “origem” é apenas

alusiva: “Um texto sempre pode ser lido em outros textos e o seu contrário também”

(GENETTE, 1982, p. 45). Antecipando a noção de hipertextualidade tão discutida nestas

duas últimas décadas, Genette (ibid.) utilizou o conceito de hipertexto – de forma não

associada ao meio eletrônico – para definir a obra que nasce da relação com outra por

transformação, imitação, paródia ou pastiche. Entendida, assim, a imagem do palimpsesto

como uma sobreposicão de camadas de escrituras auxilia a pensar o próprio meio

eletrônico, onde é possível abrir simultaneamente diversas janelas e escrever sobre um

texto sem deletar o original. Mas, vamos devagar, pois adiante trataremos com mais

especificidade o tema hipertexto.

O caminho desta pesquisa remete aos princípios do discurso teórico

contemporâneo que tem o mérito de se referir, sobretudo, à relação interdiscursiva entre

vários sistemas significantes, como nas posições metodológicas de alguns representantes

da semiótica moderna.

O estatuto dialógico do texto não apenas foi ressaltado como contribuiu para a

realização de novas reestruturações, principalmente quanto ao conceito de texto, de obra

acabada, do lugar do sujeito no discurso, como na transposição do termo

intersubjetividade por intertextualidade.

Quando a teoria dialógica do discurso romanesco nos diz que o processo de

produção e realização da obra se caracteriza por certa colocação de dúvida da autoridade

do texto, em favor de uma atenção particular a seus modos de elaboração, já podemos

problematizar, quanto às estratégias de elaboração, o como e o porquê de uma obra já

realizada. Entregue ao público, leitor, pode, ela mesma, através do seu discurso, inquirir

sobre o seu próprio fazer poético, indicando as intencionalidades do seu produtor.

Por esse raciocínio multidirecional, considero o conceito de texto como um objeto

de significação e como manifestação cultural de comunicação entre sujeitos. E a leitura

como resultado de uma organização perceptiva do sujeito em face do mundo e sua

conseqüente resposta. Assim, quando observo o desenvolvimento do processo ficcional

enquanto fazer criativo que, na literatura, se revela através da linguagem e do discurso,

tenho em conta a relação texto, autor e leitor; considerando também que o ato de leitura e

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o ato de escrita se sustentam na interação, ou seja, em processos reciprocamente

relacionados de ações sociais do escritor e do leitor, diretamente relacionados com o seu

contexto.

Ao abordar, portanto, a diversidade de concretização dessas obras ficcionais,

entramos num ponto sempre questionado quando se apresenta essa linha de pesquisa: a

relação Literatura e Hipertextualidade, a qual será amplamente discutida no

desenvolvimento deste trabalho. Referir, sobretudo, aos princípios do discurso teórico

sobre a relação interdiscursiva entre vários sistemas significantes, a partir das (o)posições

conceituais e metodológicas de alguns representantes da teoria da semiótica e da

hipertextualidade, compreende a proposta metodológica desse projeto. Ao comparar a

estrutura e o conteúdo textual de As cidades invisíveis (1972), O castelo dos destinos

cruzados (1973) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), 3 estamos identificando

o princípio de escolha e de tipos de links hipertextuais presentes nessas obras ficcionais,

buscando manter a relação desses vestígios materiais com as estratégias de escrita e de

leitura em função do processo interativo entre o autor, a obra e o público receptor. Por

essas razões, a história fragmentada do sujeito no discurso do romance contemporâneo só

poderá ser recomposta em espiral e com a ajuda de vozes e autorias diversificadas. Neste

tipo de narrativa, busca-se refletir sobre o estatuto do discurso assinado por um

determinado sujeito, que caminha ao lado das produções culturais de seu tempo

discutindo, sobretudo, a questão da autoria no texto considerado hipertextual.

Aqui, já vale ressaltar, para adiante, no capítulo I, discutir com mais propriedade,

que há uma diferença significativa entre hipermídia e hipertexto, que envolve a distinção

entre elementos textuais, hipertexto, e não textuais-hipermídia-som, imagem. Essa

diferença apontada por Nelson (1992) e Landow (1992). Portanto, deixemos clara a

primeira, senão a mais importante regra do jogo: não tomamos o hipertexto como um

funcionamento textual exclusivo dos ambientes virtuais, uma vez que ele sempre esteve

3 CALVINO, Italo. Se numa noite de inverno um viajante. Trad. Maria de Lurdes S. Ganho e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Vega, s.d.. ___. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ___. O castelo dos destinos cruzados. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 5. reimp., 1997. Daqui em diante poderemos citar essas obras como As cidades, O castelo e Um viajante.

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presente em nossa escrita, nas iluminuras dos textos medievais, nas notas de rodapé ou

em textos científicos, por exemplo.

Para tanto, dois momentos distintos compuseram esse procedimento. Inicialmente,

com a pesquisa bibliográfica no âmbito das modernas teorias da Teoria Literária, da

Semiótica e da Hipertextualidade na medida em que tais conhecimentos oferecem

sustentação teórica adequada ao estudo das relações trandisciplinares. Esse recorte

seletivo abrange consultas permanentes ao acervo das bibliotecas no Rio de Janeiro da

Faculdade de Letras da UFRJ, da Nacional, da Maison de France e do Instituto Italiano

de Cultura. O segundo momento orienta-se pela participação em seminários com a

apresentação e discussão dos resultados iniciais desta pesquisa em intercâmbio com os

trabalhos de outros pesquisadores de instituições nacionais e internacionais.

No Brasil, esses objetivos se põem em prática desde a minha inserção em grupos

de estudos voltados para a pesquisa da relação do hipertexto com a comunicação e a

literatura. Além de participar dos eventos do Programa de Ciência da Literatura da UFRJ

e de acompanhar a produção científica de reconhecidas instituições de educação, sou

integrante da Associação dos Profissionais de Manuscritos Literários – APML/USP,

coordenada por Phillippe Willemart; do Grupo de Crítica Genética, dirigido por Cecília

Salles; e do Grupo em Estudos Semióticos, orientado por Irene Machado, na PUC/SP.

No exterior, esse meu projeto foi selecionado pelo Programa de Doutoramento de

Estágio no Exterior-PDEE/Capes para uma bolsa de estudos pelo período de dez meses

no Grupo de Pesquisa Écritures Hypertextuelles da Universidade de Paris 8, coordenado

pelo especialista em hipermídia Jean Clément. Vale ressaltar que esta experiência, além

do contato e aprendizagem de cultura e língua diferentes, rendeu-me a ratificação da

atualidade desse tema de pesquisa, o hipertexto ficcional, por se tratar do tema da

hipertextualidade na literatura, matéria que vem ocupando as mesas de discussões de

importantes eventos acadêmicos e encabeçando a lista de títulos teóricos. Entretanto, a

bem da verdade, esse estágio em Paris não significou uma virada radical, um giro

copernicano em relação ao que já vinha pensando e produzindo no campo da

interpretação do romance na pós-modernidade. Significou, sim, uma confirmação que

trouxe mais segurança quanto às posições na minha trajetória de pós-graduação. Há mais

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de dez anos venho pesquisando sobre a relação entre textos e a sua interatividade com o

leitor, prova que a pesquisa no Groupe Paragraphe na Universidade de Paris 8 foi

sentida como uma feliz combinação de idéias.

Quando iniciei esta pesquisa, em 2000, já usando aqui e ali o termo hipertexto,

tentava chamar atenção para uma nova ordem de questão que estava surgindo.

Empurrando esse conceito para uma espécie de pano de fundo, as questões apontavam

para paisagens inaugurais, principalmente no Brasil, dos estudos resultantes de uma

diversidade desses fatores emergentes. Lembro-me que finalmente, no mestrado, acabei

adotando-os por me parecerem os mais apropriados para a demanda da época, ano de

2000.

O sentido estrito da palavra hipertexto, diretamente ligado à linguagem do

computador, não me servia, entretanto, pois havia outros novos fatores que buscava dar

expressão. Com a WWW (World Wide Web [Mundo Conectado em Rede]), entra em

cena um sistema de ligações entre arquivos digitais de textos, som e gráficos, acessados a

partir de um computador em qualquer parte do globo através do e-mail (correio

eletrônico) ou de algum buscador de pesquisa, por exemplo, o Google, e dá-se início a

um diálogo sem fim. Com tudo isso, dá-se o aparecimento de um feixe dinâmico

inaudito: novos registros lingüísticos, um novo tipo de escrita falada, novas maneiras de

se expressar, de se relacionar o mundo com o outro e de perceber o mundo na sua

globalidade. Geram-se aí modalidades inéditas de diálogo e processos de comunicação

interativos multidirecionais assim instaurados num hiperespaço disseminado de

informação em fluxo que, opondo-se à rigidez topológica de qualquer modelo linear,

compartilha as propriedades dos sistemas não lineares tais como aqueles que se

encontram na hipermídia.

Nas duas últimas décadas, a expressão cultura das mídias soava um pouco vaga.

De lá para cá, no contexto das emergências acima delineadas, essa expressão foi-se

incorporando com naturalidade crescente ao vocabulário e à prática cotidiana. Cultura

midiática tornou-se voz corrente juntamente com uma série de outras expressões

pertencentes ao mesmo paradigma semântico, tais como redes midiáticas, tecnologias

midiáticas, virtual, ciberespaço, interatividade, hipermídia e hipertexto, tema este

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dissecado no próximo capítulo. Enfim, no desafio de se defrontar com temas tão

candentes e febris, este trabalho se faz necessário e literalmente uma pesquisa em

progresso, em contínuo crescimento.

Nessa pesquisa defendemos algumas idéias originais, outras nem tanto, sobre a

presença da narrativa hipertextual nesses três romances. A escolha dessas obras ficcionais

não ocorreu somente por suas diferenças ou por suas semelhanças, mas, sobretudo, pela

soma desses traços, pois cada uma ao seu modo percebe o mundo e o homem como rede

de conexões, celebrando o dialogismo com a alteridade. Será, pois, a partir desses

referentes que o tema proposto se desenvolverá via comparação crítica que permita a

ativação da complexidade do processo de criação, essencialmente intertextual, do autor

em questão.

A discussão da complexidade formal dos livros é de capital importância, tanto

para ampliar a compreensão formal de cada obra, ao nos colocar em contato com os

possíveis procedimentos artísticos que dão tanta força à prosa de Calvino, quanto no

terreno metodológico, para nos imunizar das leituras meramente descritivas ou de recorte

muito limitado. Destaco que a volta regular de alguns conceitos não deve ser encarada

como repetição, mas sim como indícios de uma possível constatação das estratégias

selecionadas pelos autores.

A obra de Calvino oferece conjunto ideal para se arriscar tal jogo de leitura. Os

escritos deste intelectual italiano contemporâneo apresentam um grau de complexidade

que favorece o enfrentamento das dificuldades apresentadas pelo tipo de busca proposto.

Sua obra em prosa apresenta surpreendente variedade de exemplos muito rentáveis para a

elaboração específica que se deseja realizar: exemplos de como se constroem textos que

se desdobram em outros textos que, como máscaras do escritor, dialogam com as

provocações do nosso tempo, sem perder a malícia e a irreverência com que desafiam a

inteligência do leitor.

É também instigante a obra ensaística deste escritor porque não se restringe ao

discurso ficcional, mas – pelo fato de ser crítico literário, além de ter sido conferencista

em diversas instituições de ensino na Itália e no exterior –, abrange a reflexão crítica

aprofundada. Com uma produção suplementar composta por uma variedade de artigos e

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palestras que abrange reflexão sobre a literatura atual, apresentada nos meios acadêmicos

e publicada em revistas especializadas, a sua prosa suplementar é enriquecida por uma

variada série de trabalhos sobre temas literários, em permanente diálogo com os estudos

da cultura. Destes, destacam-se Seis propostas para o próximo milênio, escrito em 1998,

e Por que ler os clássicos, de 1990. No primeiro, Calvino identifica as seis qualidades

que a literatura deve resguardar neste final de século: leveza, rapidez, exatidão,

visibilidade, multiplicidade e consistência. Já no segundo o escritor italiano fornece

algumas respostas, algumas consensuais, outras polêmicas, mas todas certamente

enriquecedoras sobre os seus próprios clássicos, ou seja, alguns dos autores mais

importantes da tradição literária e intelectual do Ocidente que de uma forma ou de outra

influenciaram a sua produção artística.

Esta pesquisa está fundamentada em referências elementares sobre literatura e

hipertexto, tanto quanto com as suas noções principais do contexto histórico e

epistemológico do aparecimento do termo. Seguidamente, aplico estas considerações na

análise dos três últimos romances de Italo Calvino, considerado, a justo título, um dos

autores menos lineares do nosso tempo.

As três obras objeto da análise foram escolhidas criteriosamente, pois grande e

predicativa é a produção deste autor. Seguindo as suas três fases de produção, para cada

uma delas elegi um romance considerado pela crítica especializada como os mais

relevantes da sua obra. A partir da cartografia com seus mapas imaginários em As

cidades invisíveis (1972), do suporte imagético das cartas de tarô em O castelo dos

destinos cruzados (1973) e da imagem do labirinto em Se numa noite de inverno um

viajante (1979), per(sigo) esses índices enquanto percepção da influência direta desses

recursos visuais dispostos para a construção de uma narrativa – hipertextual –

verificável no processo de escrita do Calvino e no de recepção pelo leitor-usuário.

Será a partir desses referentes que a metodologia desta pesquisa se desenvolverá

via a comparação dos contrastes e das semelhanças dos elementos estruturais e temáticos

ativadores da complexidade do processo de criação deste escritor, principalmente nas três

obras ficcionais supracitadas.

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Desse modo, penso que estas três obras podem ser consideradas exemplares

máximos na literatura de Italo Calvino, pelo caráter claramente pós-moderno das suas

construções narrativas. E esses títulos, pela contribuição que trazem para melhor

compreensão da criação literária do escritor, serão interpretados ao longo do trabalho

nesta distribuição: O primeiro apresenta-se por “Do códice ao hipertexto”. O segundo

intitula-se “Hiper-autor de hiper-romances”. O terceiro nomeia-se “Da simetria circular

em As cidades”. O quarto identifica-se por “Do jogo estético em O castelo”. O quinto

chama-se “Da incompletude em Um viajante”, o qual, por seu conteúdo e extensão será

dividido em duas seções destinadas para a discussão do processo criativo, da escrita, da

leitura, da autoria e da interatividade. O sexto e último capítulo, aparecendo como última

leitura possível para o trabalho, apresenta-se como “Que conclusão lá embaixo espera um

fim?”.

Informo que, postas à parte algumas consultas e citações a outras publicações 4, a

referência bibliográfica do romance Se numa noite de inverno um viajante que prevalece

nesta pesquisa é a publicada pela editora Vega, Lisboa, sem data, com tradução de Maria

de Lurdes Sirgado Ganho e José Manuel de Vasconcelos. Privilegiei essa versão porque

ela se apresenta, do título ao conteúdo, muito próxima ao original italiano, também por

manter, atualizar e acrescentar informações importantes sobre o autor, este romance e a

sua obra em geral. No que diz respeito a esta escolha editorial temos, por exemplo, o

prefácio “O leitor protagonista“, de Paolo Angeleri, mais dois apêndices, um intitulado

“Como escrevi um dos meus romances”, redigido por Calvino, e o outro, “Relance da

vida e da obra de Italo Calvino”, organizado por José Manuel de Vasconcelos.

O complexo percurso que daí resulta, deste conjunto de capítulos, é o meu crédito,

nada virtualmente obtido, nessa rede que agora abro para a aprovação desta navegação

sobre o hipertexto, Italo Calvino e a sua obra.

4 No original italiano, Se una notte d’inverno un viggiatore, Turim, editora Einaudi, 1979. No Brasil foi publicado em 1999 pela Companhia das Letras, com tradução de Nilson Moulin, teve o título modificado para Se um viajante numa noite de inverno.

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Etimologicamente, se diz que um labirinto é múltiplo porque tem muitas dobras. Mas, o múltiplo não é só o que tem muitas partes, mas sim o que é dobrado de muitas maneiras.

Gilles Deleuze

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Capítulo I

DO CÓDICE AO HIPERTEXTO

Palavra que vem do latim e significa “livro”, códice, ou codex, é um “livro de

madeira” manuscrito, utilizado do período da era antiga tardia até a Idade Média.

Somente por volta do século XVI é que os manuscritos do Novo Mundo foram escritos.

O códice é um avanço da escrita e gradativamente substituiu o rolo de pergaminho, mas,

por sua vez, também foi substituído pelo livro impresso.

E sobre a história do livro e o inventor da imprensa Johannes Gutemberg? Por

volta da metade do século XV, dizem que a primeira reunião do corpo docente da

universidade de Oxford, na Inglaterra, foi realizada para se discutir os efeitos à chegada

da notícia do extraordinário acontecimento que se dera na cidade de Mainz. Os

professores ingleses, desconsolados, acreditaram que, com a vinda dos livros impressos,

eles não teriam mais função. No futuro, pensaram eles, qualquer um poderia adquirir um

livro e aprenderia tudo por si mesmo. A desolação foi geral.

Longe, porém, de ser esta a intenção de Johan Gutemberg (1394? – 1468), um

pacífico mestre gráfico alemão, um ex-ourives que aprendera a nova arte da impressão

com caracteres móveis, e cujo nome verdadeiro era Henne Gänsfleisch zur Laden.

Quando retornou a sua cidade natal, Mogúncia, em 1448, estava distante dele qualquer

intenção subversiva. Filho de um integrante do patriciado da cidade estivera por alguns

anos em Estrasburgo aprendendo a arte gráfica, de onde voltara com o sonho de compor

uma Bíblia. Jamais lhe passaria pela cabeça que um livro impresso poderia abalar a fé

fosse de quem fosse, ou ainda ser capaz de tirar o sossego e o emprego dos mestres do

saber. Ao contrário, pensou ele, imprimir o Livro Santo era fixar as suas palavras divinas

bem fundo na mente dos homens. Tratava-se de um pilar da fé, não uma remoção da

estaca que sustentava a crença nos céus. Se bem que uma das utilizações do seu invento

foi proporcionar à Igreja Católica uma maneira mais eficaz de vender indulgências, até

então negociadas com recibos feitos à mão, chegando-se a imprimir mais de 200 mil

delas; invento este que alguns dizem ter provocado, indiretamente, a Reforma.

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O mestre-impressor convenceu um sócio a ajudá-lo no empreendimento, pois

sairia muito caro executar o Werk der Bücher (O Trabalho do Livro). Por volta de 1450, o

próspero advogado Johan Füst, deu-lhe como adiantamento a soma de 800 güldens,

moeda da época, para ele pôr em marcha o ambicioso projeto. Tudo resultou numa

maravilha: a Bíblia Mazarin, a Bíblia de 42 linhas, como a chamaram. Toda ela com

letras góticas foi aprontada por volta de 1455. As suas ilustrações, belíssimas,

assemelhavam-se, ainda que em miniatura, aos vitrais das imponentes basílicas da

cristandade. Com 20 auxiliares que se revezaram na oficina, Gutemberg construiu uma

“catedral” de papel composta de 1.282 páginas e 290 gravuras. Até hoje, os 48 originais

que restaram, dos 180 impressos (150 em papel e 30 em pergaminho), são os mais belos

exemplares dos que até hoje foram produzidos pela técnica dos tipos móveis que tanto ele

se empenhou em aperfeiçoar e difundir. "A imprensa", dizem que ele teria dito, "era um

exército de 26 soldados de chumbo com os quais poderia conquistar-se o mundo”.5

Cinco séculos depois do invento que mudou o mundo – a imprensa – o

canadense Marshall McLuhan, um teórico das comunicações, tido então como o "Oráculo

da Era Eletrônica", decretou o fim do império do livro impresso. No seu The medium is

the massage (A galáxia de Gutemberg, de 1962), afirmou que “o cosmo da impressão”,

inaugurado pelo gênio de Mainz havia cinco séculos passados, teria poucas chances de

sobreviver numa aldeia global que então se constituía, movida toda ela pela força das

imagens. Uma nova galáxia, a audiovisual, então em fase de assombrosa expansão, em

breve iria superá-la. Pois não foi o que aconteceu. Longe de o livro impresso desaparecer,

o produto do prelo luminoso de Gutemberg, associado ou não às imagens, tem brilhado

ainda mais.

Em A galáxia de Gutemberg, McLuhan na qual declarava que a maneira linear de

pensar, respaldada pela invenção da imprensa, estava em via de ser substituída por um

modo mais global de percepção e de compreensão, por meio de imagens de TV ou de

outros tipos de aparelho eletrônico. Se não McLuhan, certamente muitos de seus leitores

apontaram o dedo para a tela da TV e depois para o livro impresso e disseram: “Isto vai

matar aquilo”. Se ainda estivesse entre nós, hoje, McLuhan seria o primeiro a escrever

5 Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Johannes_Gutenberg >. Acesso: 28/03/2006.

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algo como “Gutemberg contra-ataca”. Sem dúvida, um computador é um instrumento por

meio do qual é possível produzir e editar imagens.

Há diferenças entre a primeira galáxia de Gutemberg e a segunda? Muitas. Por

exemplo, só os processadores de texto arqueológicos do início da década de 80 ofereciam

um tipo de comunicação escrita linear. Hoje, os computadores não são mais lineares, pois

apresentam uma estrutura hipertextual. Curiosamente, o computador nasceu como uma

máquina capaz de dar um passo de cada vez. E, de fato, nas profundezas da máquina, a

linguagem ainda opera dessa maneira, por uma lógica binária, de zero-um. Porém o

produto da máquina não é mais linear: é uma explosão de fogos de artifício semióticos.

Seu modelo é menos uma linha reta do que uma verdadeira galáxia, onde todos podem

captar nexos inesperados entre estrelas diferentes para formar uma nova imagem celestial

em qualquer novo ponto de navegação.

Contudo é exatamente nesse ponto que a nossa atividade de desemaranhar deve

ter início, porque, por estrutura hipertextual, entendemos em geral dois fenômenos muito

distintos. Primeiro, há o texto hipertextual. Num livro tradicional, deve-se ler da esquerda

para a direita (ou da direita para a esquerda, segundo culturas diversas) de um modo

linear. Podem-se obviamente saltar páginas. Pode-se, depois de chegar à página 300,

voltar para verificar ou reler algo na página dez, mas isso implica trabalho físico. Em

contraste, o texto hipertextual é uma rede multidimensional ou um labirinto em que cada

ponto ou nó pode ser potencialmente ligado a qualquer outro nó. Em segundo lugar, há o

hipertexto sistêmico. A “WWW” é a Grande Mãe de Todos os Hipertextos, uma

biblioteca mundial onde podemos ou poderemos, em breve, pegar todos os livros que

quisermos. A Internet é o sistema geral de todos os hipertextos existentes.

Tal diferença entre texto e sistema é imensamente importante e devemos voltar a

ela. Por ora, deixem-me dar cabo da pergunta mais ingênua que se faz frequentemente, na

qual essa diferença ainda não está tão nítida. Mas é ao responder essa primeira pergunta

que poderemos esclarecer nossa questão posterior. A pergunta ingênua é: “Os suportes

hipertextuais, a internet ou os sistemas de multimídia tornaram os livros obsoletos”? Com

essa pergunta, chegamos ao capítulo final na nossa história isto-vai-matar-aquilo. Mas

mesmo essa pergunta é confusa, pois pode ser formulada de duas maneiras: (a) os livros

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desaparecerão como objetos físicos? e (b) os livros desaparecerão como objetos virtuais?

Respondamos à primeira pergunta. Mesmo após a invenção da imprensa, os livros nunca

foram o único instrumento para adquirir informação. Havia também pinturas, imagens

populares impressas, lições orais e assim por diante. Simplesmente, os livros provaram

ser o instrumento mais adequado para transmitir informação.

Existem dois tipos de livros: os que são para ler e os que são para consultar. No

tocante aos livros para ler, a maneira normal de ler é a que eu chamaria de “maneira de

história de detetive”. Começa-se da página um, onde o autor conta que um crime foi

cometido, seguem-se todas as trilhas do processo investigativo até o fim e se descobre,

afinal, que o culpado era o mordomo. Fim do livro e fim da experiência de leitura.

Notem que o mesmo ocorre até quando se lê, digamos, um tratado de filosofia. O

autor quer que abramos o livro na primeira página, sigamos a série de questões que

propõe e vejamos como alcança determinadas conclusões. Sem dúvida, os estudiosos

podem reler tal livro saltando de uma página para outra, na tentativa de isolar um possível

nexo entre uma afirmação no primeiro capítulo e outra, no último. Podem também

resolver isolar, digamos, cada ocorrência da palavra “idéia”, numa determinada obra,

saltando, desse modo, centenas de páginas a fim de concentrar a atenção apenas em

trechos que tratem dessa noção. Além disso, há os livros de consulta, como manuais e

enciclopédias. As enciclopédias são concebidas com o propósito de serem consultadas e

jamais lidas da primeira à última página. Uma pessoa que lesse a Enciclopédia Britânica

toda noite antes de dormir, da primeira à última página, seria um personagem cômico.

Em geral, o volume de uma enciclopédia é usado para saber ou lembrar quando Napoleão

morreu ou qual a fórmula química do ácido sulfúrico.

Entretanto os estudiosos usam a enciclopédia de um modo mais sofisticado. Por

exemplo, se quisesse saber se era possível ou não Napoleão encontrar-se com Kant, eu

teria de pegar o volume K e o volume N da minha enciclopédia: descubro que Napoleão

nasceu em 1769 e morreu em 1821. Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, quando

Napoleão já era imperador. Portanto não seria impossível que os dois se encontrassem.

Para confirmá-lo, eu provavelmente teria de consultar uma biografia de Kant ou uma de

Napoleão, mas em uma curta biografia de Napoleão, que encontrou tantas pessoas ao

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longo da vida, um possível encontro com Kant pode ser relegado, ao passo que, numa

biografia de Kant, um encontro com Napoleão seria registrado. Em resumo, tenho de

folhear muitos livros em muitas prateleiras de minha biblioteca; tenho de tomar notas a

fim de, mais tarde, comparar os dados que coligi. Tudo isso me vai custar um árduo

esforço físico.

De outro lado, no entanto, com o hipertexto, posso navegar por toda a

“rede-ciclopédica”. Posso ligar um fato registrado no início a uma série de fatos

disseminados ao longo de todo o texto; posso comparar o início com o fim; posso

solicitar uma lista de todas as palavras que começam com a letra A; posso pedir todos os

trechos em que o nome de Napoleão esteja ligado ao de Kant; posso comparar as datas de

seus nascimentos e de suas mortes. Em resumo, posso fazer meu trabalho em poucos

segundos ou minutos. Ontem, era possível ter uma enciclopédia inteira em CD-ROM;

hoje, é possível ter a enciclopédia ligada em linha, com a vantagem de que isso permite o

cruzamento de referências e a recuperação não-linear de informação. Todos os CDs e

mais o computador ocuparão um quinto do espaço ocupado por uma enciclopédia

impressa. Uma enciclopédia impressa não pode ser facilmente transportada de um lugar

para outro e atualizada como ocorre, por exemplo, com o CD-ROM, Pen drive, etc.

Contudo, ainda há que se considerar que o manuseio e o local em que se encontram livros

e enciclopédias, ou seja, nas bibliotecas, oferecem um tipo de prazer, estímulo sensorial

(visão, tato, olfato) que, ainda, não temos no suporte eletrônico.

Retomemos, mais uma vez, e sempre, o que mais nos interessa. O termo

“hipertexto” tem seu surgimento em meados dos anos 60 criado por Theodore Nelson

(1992) para exprimir a idéia de escrita/leitura não-linear em um sistema de informática,

portanto, conceito ainda específico para a linguagem computacional. Para Nelson (1992)

no termo hipertexto, a adoção do hiper deve-se à noção de extensão e generalidade, tal

qual o hiperespaço matemático. Ele defende a idéia de hipertexto, enquanto primeiro

sistema, como “a construção de uma imensa rede acessível em tempo real e

simultaneamente, contendo todos os tesouros literários e científicos do mundo (1992, p.

17).

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A segunda geração de sistemas, já com características de hipermídia, surge nos

anos 80. Nesta fase, que se estende até os dias atuais, a preocupação centra-se na

adequação das interfaces. Por interface entende-se a superfície de acesso e troca de

informações entre os usuários e os sistemas. A evolução das interfaces gráficas, por

exemplo, mostra-se como um processo contínuo de melhoria do diálogo entre homens e

máquinas digitais. Do ponto de vista tecnológico, o percurso desta ferramenta, (a

máquina digital, o computador), aponta para sua adequação, a partir da otimização dos

sistemas criados, visando à acessibilidade de um novo usuário, o doméstico.

É justamente a partir do momento da transposição desses sistemas para uma

comunidade não especializada, que começam a surgir questões a respeito da maneira pela

qual os blocos informacionais passam a ser disponibilizados a esse público. Note-se que

os idealizadores desses sistemas visavam à construção de bibliotecas virtuais com

capacidade e acesso ilimitado aos usuários. Porém a sua vulgarização promoveu um

redimensionamento do que viria a ser o objeto disponibilizado virtualmente, pois a

inserção da tecnologia da Internet na vida social leva áreas do saber da linguagem e da

comunicação a refletir sobre o funcionamento virtual cuja materialidade é o seu objeto de

análise: o(s) texto(s).

Nesse contexto, a noção de texto apresenta-se em dois grandes blocos: o de cunho

estritamente lingüístico, baseado nos estudos estruturalistas da língua, que considera o

texto (enunciado) como um conjunto de unidades lingüísticas que encerram um sentido; e

o de cunho sócio-pragmático, baseado nos princípios da lingüística textual. Este último

considera o texto (enunciado e enunciação) como unidade de sentido estabelecido entre

leitor/autor, na modalidade escrita da língua, e entre locutor/interlocutor, na sua forma

oral, envolvendo conhecimentos, situação, contexto, propósitos, intenções e outros

aspectos comunicacionais abertos a múltiplas interpretações, como tão bem já

discorreram, entre outros, Rolland Barthes, com a teoria do texto aberto, e Hans-Robert

Jauss com os postulados da estética da recepção.

Muito se vem escrevendo a respeito da natureza do hipertexto e as suas

implicações no processo de escrita e de recepção do romance pós-moderno, segundo as

mais diferentes perspectivas e propósitos. Discussões têm motivado o debate sobre

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hipertextualidade no campo da linguagem, da comunicação e da lingüística. Na

comunicação, o hipertexto constitui-se como um suporte capaz de congregar muitas

mídias (som, imagem, escrita), transformando-se numa ferramenta hipermidiática. Para a

lingüística, o hipertexto surge como a possibilidade de discutir a textualidade à luz de

teorias textuais, do dialogismo e da interatividade, num portador de texto de ficção

escrito, disponibilizado num veículo com especificidades próprias, como se configura a

Internet.

Podemos dizer que a história do hipertexto na sua relação com a virtualidade

apresenta dois momentos. Um que remonta à primeira geração (década de 50) de sistemas

computacionais visando ao acúmulo de informações, e o outro à segunda geração (década

de 80) com a incorporação de recursos hipermidiáticos a estes sistemas e a popularização

da informática e da Internet. Entretanto, não é bem assim que pensam os filósofos Gilles

Deleuze & Félix Guattari. Na seqüência de Anti-Édipo, os Mil Platôs, escrito em 1980, a

preocupação apresentada pelos autores é de outra ordem. Para eles mais importa a

construção de conceitos capazes de pensar a contemporaneidade do que fazer uma crítica

da mesma.

Anti-Édipo, os Mil Platôs 6 foi um livro escrito no calor dos eventos do Maio de

68 para aqueles que estavam fartos da psicanálise: "Sonhávamos em acabar com Édipo”

(1995, p. 11), mas as reações ao Maio de 68 e o desenrolar da história mostraram o

quanto Édipo7 era forte e ainda dominava – e como um olhar mais cuidadoso pode

observar –, ainda domina certa parcela considerável do pensamento psicanalítico

6 Mil Platôs (2 vol.)é composto de quinze "platôs", conceito que, tomado de empréstimo a Bateson, designa

uma estabilização intensiva e, no caso, uma multiplicidade conceitual. Pois os conceitos, para Deleuze e Guattari, devem determinar não o que é uma coisa, sua essência, mas suas circunstâncias. Explica-se, assim, que cada platô possua um título relacionado a uma data. Os títulos enunciam um campo de problemas, e as datas indicam que se pretende determinar a potência e os modos de individuação de um acontecimento. Cada platô realiza um mapeamento, cujos movimentos descrevem um mesmo percurso: parte-se do interior de um ou mais estratos e de seus dualismos na direção de suas condições de possibilidade, das "máquinas abstratas" que os efetuam e os determinam como atualizações. Simultaneamente, os estratos são associados aos agenciamentos de poder que lhes são anexos e primeiros. Por fim, em um outro giro, o pensamento contorna as máquinas abstratas e as remete a um plano de consistência a que se acede por desestratificação. Revela-se, assim, nesse percurso, a heterogeneidade, a coexistência, as imbricações e a importância relativa das diferentes linhas que compõem uma multiplicidade.

7 O "Édipo" ao qual aludem os autores é apresentado como um construto, um dispositivo histórico que estabelece certo número de relações de poder entre a sociedade e os indivíduos.

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contemporâneo. Era preciso tentar algo novo, e o que se propõe com os "platôs" é

justamente esta tentativa – a de constituir um pensamento que se efetue através do

"múltiplo" – e não a partir de uma lógica binária, dualista, do tipo "um-dois", "sujeito-

objeto", que se efetue por dicotomia, de modo a construir uma teoria das multiplicidades

que fosse imanente, que colocasse propostas concretas de pensamento ao invés de

simplesmente se limitar à crítica da psicanálise.

Apresenta-se Mil Platôs como livro-rizoma que, abolindo a tripartição entre o

mundo, como campo de realidade a reproduzir, a linguagem, como instância

representativa, e o sujeito, como estrutura enunciativa, é capaz de conectar-se com as

multiplicidades. Dessa forma, a categoria rizoma, para Deleuze e Guattari, recusa-se à

idéia do pensamento como representação, sua submissão à lei da reflexão e da unificação.

O primeiro conceito criado para propor esta teoria das multiplicidades é o sentido

científico de "rizoma".

Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas verdes

possuem, o qual cresce horizontalmente, muitas vezes subterrâneo, mas podendo também

ter ramificações aéreas. Certos rizomas, como em várias espécies de gramíneas, servem

como órgãos de reprodução vegetativa ou assexuada, desenvolvendo outras raízes e

outros caules aéreos nos seus nós. Noutros casos, o rizoma pode servir como órgão de

reserva de energia, tornando-se tuberoso, mas com uma estrutura diferente de um

tubérculo, como no exemplo da figura seguinte.

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Figura 1: Rizoma (Botânica)

http://www.herbarivirtual.uib.es/.../4637_80281.html

Vê-se ao longo dos Platôs como o conceito botânico de rizoma funciona

perfeitamente como o ponto de partida para se pensar as multiplicidades por elas mesmas,

visto que o fundamento do rizoma é a própria multiplicidade. Mas a definição

desenvolvida por Deleuze & Guattari amplia muito esta acepção e comporta muito mais

sentidos. Para esses filósofos, este tipo de caule em conjunto com a terra, o ar, os

animais, a idéia humana de solo, a árvore, etc. formariam o rizoma, não se limitando

apenas à pura materialidade, mas também à imaterialidade de uma máquina abstrata que

o arrasta. É, portanto, um conceito ao mesmo tempo ontológico e pragmático de análise.

"Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs."

(DELEUZE & GUATTARI, 1998, p.33). Nesse sentido, um rizoma é uma segunda

espécie de conjunto de linhas no qual uma linha é subordinada ao ponto, à verticalidade e

horizontalidade, que estria o espaço, faz um contorno, submete multiplicidades variáveis

ao uno, ao todo de uma dimensão suplementar ou suplementária. As linhas deste tipo são

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as linhas molares, e formam sistemas binários, arborescentes, circulares e segmentários,

como no sistema computacional gerado pela placa-mãe.

Com apresentação arquitetônica semelhante à rizomática,8 as placas-mãe são

desenvolvidas de forma que seja possível conectar todos os dispositivos que compõem o

computador, oferecendo conexões para o processador, a memória RAM, o HD e para os

dispositivos de entrada e saída, entre outros. Também conhecida como motherboard ou

mainboard, a placa-mãe é, basicamente, a responsável pela interconexão de todas as

peças que formam o computador. O HD, a memória, o teclado, o mouse, a placa de vídeo,

enfim, praticamente todos os dispositivos precisam ser conectados à placa-mãe para

formar o computador. A foto a seguir exibe um modelo de placa-mãe. As letras apontam

para os principais itens do produto. Cada placa-mãe possui características distintas, mas

todas devem possibilitar a conexão dos dispositivos.

Figura 2: Rizoma Computacional (Placa-Mãe)

http://www.jornadapc.hpg.ig.com.br

8 Sobre esta aproximação do rizoma com a descrição técnica do sistema eletrônico do computador,

agradeço ao Grupo de Pesquisa Paragraphe do Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris 8 coordenado pelo professor Jean Clément, co-orientador do meu estágio de doutorado, com bolsa “sanduíche” Capes-CNPq, entre agosto de 2005 a agosto de 2006.

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Resumidamente, nesta Placa-Mãe, o item A mostra o local em que o processador

deve ser conectado, também conhecido como socket. O item B mostra os encaixes

existentes para a memória RAM (Random Access Memory), ou memória de acesso

aleatório, a qual que permite a leitura e a escrita, utilizada como memória primária em

sistemas eletrônicos digitais. O item C corresponde aos slots de expansão. Para que seja

possível conectar placas que adicionam funções ao computador, é necessário fazer uso de

slots de expansão. Esses conectores permitem a conexão de vários tipos de dispositivos.

O item D, plug de alimentação, mostra o local onde se deve encaixar o cabo da fonte que

leva energia elétrica à placa-mãe. Os itens E1e E2, Conectores IDE e drive de disquete,

mostram as entradas-padrão IDE (Intergrated Drive Electronics) onde devem ser

encaixados os cabos que ligam HDs e unidades de CD/DVD à placa-mãe. O item F2

aponta para o chip Flash-ROM, e o F1, para a bateria (BIOS-Basic Input Output System)

que o alimenta e é responsável por controlar o uso do hardware do computador e manter

as informações relativas à hora e data. O item G aponta para a parte em que ficam

localizadas as entradas para a conexão do mouse, teclado, portas USB e porta paralela,

usada principalmente por impressoras. O item H, furos de encaixe, serve para evitar

danos. O item I, chipset, é responsável pelo controle de uma série de itens da placa-mãe,

como acesso à memória, barramentos e outros.

Por este raciocínio aproximativo, um rizoma não é exato, mas um conjunto de

elementos nômades. É oportuno enumerar agora algumas características aproximativas do

rizoma, para, posteriormente pensarmos esse conceito numa perspectiva mais ampla.

Qualquer ponto de rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.

Descentramento do sujeito, negação da genealogia, afirmação de uma heterogênese em

oposição à ordem filiativa do modelo de árvore e raiz. O rizoma é distinto disso tudo,

pois não fixa pontos nem ordens – há apenas linhas e trajetos de diversas semióticas,

estados e coisas, e nada remete necessariamente a outra coisa.

Para demonstrar estes princípios, Deleuze e Guattari recorrem à ontologia da

linguagem, e conseqüentemente à lingüística. A árvore lingüística à maneira de Noam

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Chomsky 9 que começa num ponto “S” e procede por dicotomia. Por esse raciocínio, a

língua forma-se e estabiliza-se em torno de uma comunidade, de uma coletividade,

espalhando-se como uma mancha de óleo. Isto equivale a dizer que uma análise

rizomática procurar estabelecer conexões transversais entre os estratos e os níveis, sem

centrá-los ou cercá-los, mas atravessando-os, conectando-os.

Pensar o múltiplo efetivamente como substantivo, pois é aí que ele não tem mais

nenhuma relação com o uno, sujeito ou objeto, realidade natural e espiritual, imagem e

mundo, pois a multiplicidade não constitui sujeito e muito menos objeto, mas apenas

determinações, grandezas e dimensões. Uma boa maneira de compreender esta idéia de

multiplicidade é olhando a marionete, os fios e o manipulador: os fios da marionete

constituem a multiplicidade. São as linhas de um ponto ao outro que importam, e não os

pontos em si. A escrita rizomática, que se define pela operação de subtração dos pontos

de unificação do pensamento e do real, realiza um mapeamento e uma experimentação do

real que contribui para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das

multiplicidades sobre um plano de consistência.

Nessa perspectiva, a teoria da multiplicidade efetua uma interpretação do real que

conjuga uma construção ontológica e uma leitura do mundo e da sociedade que

surpreende com uma nova distribuição dos seres e das coisas: não admite unidade natural,

uma vez que não se apóia em nenhuma necessidade e não visa a nenhum prazer; não

reconhece a falta, uma vez que não se constitui em referência a uma unidade ausente

(recusando, pois, a noção de desejo como falta); e não aceita nenhuma transcendência,

seja na origem, como idéia ou modelo, seja no destino, como sentido historicamente

desenvolvido. A perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade fazem do

pensamento uma atividade ética – sem modelos e finalidades transcendentes – avessa a

qualquer conforto moral ou orientação histórica.

9 Criado por Noam Chomsky o Gerativismo ou Teoria Gerativa é uma tentativa de formalização dos fatos

lingüísticos, aplicando um tratamento matemático preciso e explícito às propriedades das línguas naturais. O Gerativismo foi de grande importância para a formação da linguagem da teoria da computação. Essa teoria foi denominada Gerativa exatamente por ser um sistema (S) de regras e princípios formalizado ou explícito, o que significa que essas regras e princípios só podem ser operados sob condições específicas, sendo, no entanto, automaticamente aplicadas desde que satisfeitas essas condições

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Assim como a estrutura do rizoma, um texto hipertextual pode ser rompido e

quebrado em algum lugar qualquer, mas também retoma segundo uma de suas linhas ou

segundo outras linhas. Cada vez que há ruptura no hipertexto as linhas segmentares

explodem numa linha de fuga, mas estas linhas de fuga são partes dele mesmo não

parando de remeter umas às outras. Traça-se uma linha de fuga quando se faz uma

ruptura, mas nela podem se encontrar elementos que reordenam o conjunto e

reconstituem o texto.

O rizoma não é feito de pontos, apenas de linhas, é uma hecceidade (potência,

intensidade). Nele não há estrutura ou gênese, formas ou sujeitos. Há somente

agenciamentos coletivos em relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão, em

que suas dimensões não param de crescer. É um plano de proliferação, povoamento,

contágio dos enunciados, ou seja, modos de expansão, de propagação, de ocupação, de

contágio, de povoamento, de despopulação e de desterritorialização da Terra. E como

fazer da despopulação um povo cósmico? Como fazer da desterritorialização uma Terra

cósmica? O problema do artista contemporâneo é encontrar o poeta, é semear sua arte

para o povo, fazer o cosmo e fazer com que o cosmo seja a própria arte. O problema do

artista contemporâneo está no agenciamento, em como criar múltiplas conexões, em fazer

surgir rizomas. O artista não sabe como fazer rizomas, não sabe quando vai encontrar

uma linha de fuga, mas, como diz Deleuze, é necessário experimentar. São as

experiências que povoam a arte, que fazem o cosmo na Terra.

Alguns artistas contemporâneos vêm apostando neste sentido e experimentam

técnicas criativas que dialogam com os conceitos aqui expostos. São processos de criação

baseados nos conceitos de apropriação e reutilização de signos, agenciamentos típicos das

mediações digitais como o sampling, hacking e clonagem (ou cópia/plágio). Um exemplo

é o artista Sebastian Luetgert.10

10 Sebastian Luetgert , fundador do site Textz.com, uma plataforma para disponibilização de textos warez

(gíria digital para a pirataria de softwares). Luetgert é um ativista contra os direitos autorais e está sendo processado pela cópia e distribuição de dois ensaios do teórico Theodor W. Adorno em seu website. Ele apresentou na última edição do site Read me, o programa Pngreader – PNG (formato bitmap de imagem, criado a partir da necessidade de existir um formato livre de royalties).

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Dessa prática, surge uma cultura focada nos processos de recombinação. A

recombinação coloca em prática o potencial de atualização das redes, criando

experiências para além do previsto originalmente em determinada obra. Profundamente

polifônica, propõe uma reflexão acerca da natureza do remix suas relações com as várias

vozes que abriga. E por isto dialoga com outro conceito: o de replicação. O termo deriva-

se de réplica, resposta, e é por este motivo que a cópia transcende o original. A réplica

dialoga com um tempo diferente do original, que passa a situar-se no passado. É um

processo evolutivo, em uma espécie de evolução antropofágica, na qual se relacionam

máquinas, textos e corpos que absorvem uns aos outros.

Estas perspectivas sobre o texto promovem os chamados paradigmas formais e

funcionais. A concepção formal é estritamente lingüística, trabalha com a língua na sua

imanência, considerando-a como um fenômeno homogêneo, transparente, determinado,

enquanto conjunto de regras dispostas num sistema. Por outro lado, a concepção

funcionalista (na perspectiva sociolingüística), a língua é vista enquanto prática de uso,

assim ela é heterogênea, opaca, indeterminada, social, histórica, simbólica, sígnica e

cognitiva.

É neste paradigma funcional que os estudos da textualidade se têm voltado nos

últimos anos. Mas, além da concepção elementar de hipertexto enquanto um espaço

textual de escrita eletrônica estruturalmente dinâmico e variado há outras caracterizações

de hipertexto. Lévy o define como “um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós

podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, seqüências sonoras,

documentos complexos que podem ser eles mesmos serem hipertextos” (1993).

Outros teóricos como Bolter (1991) e Douglas (1991) vão conceber o hipertexto

como um tipo de programa destinado à organização de conhecimento ou dados, no qual

os links são as suas competências definidoras. Podemos dizer que os links promovem

ligações entre blocos informacionais (outros textos, fragmentos de informação: palavra,

parágrafo, títulos de capítulos, notas de rodapé, índices remissivos, etc.). Tais conexões

produzem a possibilidade de novos ingredientes gravitando naquela tessitura textual, no

caso do hiper-romance, diferentes recepções, novas isotopias. Ou seja, a tessitura

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hipertextual funcionaria como uma representação das redes de sentido que o usuário ou o

leitor do texto escrito estabelece.

Os links seriam as representações dessas redes que o autor propositalmente

apresenta ao leitor como estratégia de marcar seu próprio percurso enquanto autor, seu

estilo, sua história e delineando que caminhos o leitor pode perseguir nesta(s) sua(s)

leitura(s). Por outro lado, falar de links como determinantes do lugar da exterioridade

textual é mostrar a sua capacidade de relacionar o co-texto com o contexto, este no

sentido de conhecimentos prévios, cultura, situação comunicativa, etc. Como afirma

Marcuschi (2000), “os links são instrumentos interpretativos e não simples instrumentos

neutros e ingênuos de relações constantes e estáticas”.

Como se percebe, a discussão em torno dos links promove também

questionamentos acerca da noção de autoria e leitura. Argumentando a este respeito,

Possenti (2002) comenta:

[...] o hipertexto acabaria atribuindo ao leitor um papel similar ao do autor, na medida em que cabe ao leitor organizar em grande parte a seqüência do que está lendo (clicando ou não palavras-chave, escolhendo ou não espaços diferentes, decidindo o ir e vir ao texto independente de como o autor o teria disposto ou imaginado). Não temos o direito de fazer essa discussão como se ela estivesse sendo inaugurada agora, como efeito dos computadores. (POSSENTI, 2002, p. 208). (Grifo nosso)

Portanto, antes de se dizer que o autor é a autoridade no texto livro tradicional e o

leitor no hipertexto, é prudente considerar os diversos tipos de leitura, texto e autoria; ou,

ainda, não acreditar ser somente o efeito do uso do computador a causa inaugural dessa

discussão, como se só a virtualidade modificasse os lugares da autoria e da leitura. A

virtualidade não modifica a posição da autoria e da leitura, mas apenas explicita esse

processamento em outro suporte.

Retomando, o interesse dos estudos lingüísticos e literários sobre o objeto

hipertexto consiste na possibilidade de tornar a textualidade enquanto processo e

estratégia de escrita, visto que a novidade dos textos virtuais reside em explicitar, através

da demonstração por “linkagem” (interligações textuais) o mesmo que fazemos quando

lemos. E, na esteira da evolução do gênero romance, vemos emergir outra modalidade de

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narrativa, a hipertextual. Com ela, narrar e ler o mundo tornou-se virtualmente possível

cujo espaço de apreensão de sentido não é composto apenas de palavras, mas, também,

de sons, gráficos e diagramas, amalgamados uns sobre os outros formando um todo

significativo.

É assim o hipertexto. Ele reúne condições físicas de materializar os horizontes de

expectativas e de surpresa do leitor viabilizando multidimensionalmente a compreensão

deste pela exploração superlativa de informações por meio de alguns princípios, a saber,

o da deslinearização, da pluritextualidade, da emancipação de leitor e o da

dessacralização do autor.

O princípio não-linear de construção do hipertexto pode contribuir para aumentar

a compreensão global do texto, como também há o risco, e é bom dizer, de essa falta de

linearidade fragmentar o hipertexto de tal maneira a deixar o leitor iniciante desorientado

e disperso. O uso inadequado de links pode dificultar a leitura por quebrar, quando

visitados indiscriminadamente, as isotopias que garantiriam a continuidade do fluxo

semântico responsável pela coerência, tal como ocorre em uma leitura de um texto

convencional. Tal dispersão pode gerar indisposição e abandono da leitura pelo

hiperleitor.

Textos literários supostamente não-lineares não são novidade. Para citar apenas

alguns exemplos, além, é claro, dos três romances adiante analisados de Calvino, temos

O Jogo de Amarelinha, de Julio Cortázar (1966), Composition numéro 1, de Marc

Saporta (1965), O Dicionário Kazar (1988), de Milorad Pavitch e o famoso conto de

Jorge Luis Borges "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam" (1941), dentre muitos

outros. Cada uma dessas obras tem uma estrutura específica e busca "quebrar" a

linearidade da narrativa de uma forma particular. Na verdade há todo um percurso de

textos impressos ditos "não-lineares" que são os precursores do hipertexto. Uma breve

"Cronologia da Tradição Não-Linear em Literatura", organizada por C.J.Keep,11 dá uma

idéia desse percurso e desses precursores hipertextuais, avant-la-lettre. Enfatizando, o

argumento de um romance ou de um filme raramente é apresentado de forma linear.

11 KEEP, Christopher. The Electronic Labyrinth. Disponível: <http://web.uvic.ca/~ckeep/hfl0130.html>.

Acesso: 10 abr. 2006.

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Estamos acostumados a flashbacks, a compressões de vários anos da história numa única

cena ou parágrafo ou, inversamente, descrições hiper-detalhistas que se estendem muito

além do "tempo real" de uma ação.

No entanto, até que ponto essa noção de "não-linearidade" é efetivamente

apropriada, seja ela aplicada ao texto convencional, seja ao hipertexto? Pode existir uma

discursividade "não-linear"? Nosso propósito, neste momento, é discutir a idéia de não-

linearidade discursiva e verificar em que medida o hipertexto estaria abrindo novas

possibilidades em termos de construção discursiva, buscando lançar alguma luz sobre

confusões que parecem ser correntes no tratamento da questão e sugerindo um padrão

conceitual, derivado, em grande medida, de idéias aportadas por Gunnar Liestøl (1997).

Para melhor situar e discutir as questões em torno da linearidade e não-linearidade

discursiva faz-se necessário também introduzir e brevemente discutir a idéia de

“fechamento” (closure).12 O “fechamento” é um conceito psicológico que se refere à

conclusão bem-sucedida de uma tarefa antes que outra esteja começada. Isto significa que

um leitor nunca pode terminar a leitura de um link sem partir para o seguinte. As ligações

podem assim pôr em perigo o “fechamento” porque incentivam a começar algo novo

antes que termine o atual.

Vamos começar com trecho de um texto de Howard Becker13, no qual

ele descreve sua primeira experiência de leitura de um texto eletrônico. Trata-se de

Afternoon, a Story, de Michael Joyce. Em 1990, Michael Joyce produziu e publicou uma

obra ficcional em hipertexto, que viria a se tornar um clássico. O texto eletrônico,

atualmente comercializado no formato de disquete, que pode ser adquirido por meio da

editora Eastgate, foi produzido através de um software chamado Storyspace,

especialmente desenhado para facilitar a construção de intrincadas tramas usando

hipertexto. A história desenvolve-se em muitos níveis, e a rota de leitura escolhida pode

12 Termo utilizado por Karin Schlegel. Hypertext Concepts. Disponível:

<http://netspot.city.unisa.edu.au/netspot/eduweb/Theory/Hypertxt/~hypertx.htm>. Acesso: 13 mai. 2006.

13 BECKER, Howard. The New Art Form: Hypertext Fiction. Disponível em: <http://weber.u.washington.edu/~hbecker/lisbon.html>. Acesso: 07/2005.

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fazer diferença fundamental quanto ao sentido que venha a ser constituído pelo leitor de

Afternoon, a Story.

Afternoon, a Story é considerado um marco inicial da literatura em

hipertexto eletrônico. Sua estrutura e processos de leitura da obra são uma abertura para

muitas das questões que nos preocupam neste texto, especialmente no que se refere ao

uso do hipertexto e do "lugar" do autor e do leitor nesse tipo de construção discursiva.

Mas vejamos como foi a experiência de Howard Becker ao ler Afternoon, a Story pela

primeira vez:

Pus o CD-ROM no meu computador, dei um duplo clique sobre o ícone para abrir o documento e comecei a ler a história. Deparei-me com muitos caracteres, li muitos diálogos intrigantes, penso que apreendi o dilema crucial do texto, mas não estou certo. Alguns textos foram repetidos, mas as repetições conduziram-me ao material que eu não tinha visto antes. Em uma seção longa, uma palavra de cada vez apareceu na tela como um tipo de poema. Continuei a leitura e não me dei conta de quanto tempo fiquei ali trabalhando naquele texto e nem o quanto dele já tinha lido, e o que ainda faltava para terminar. Telefonei para o Michael Joyce e lhe disse: ‘Michael, eu estou lendo a sua história maravilhosa, mas onde ela começa e termina?’ Eu devo ter antecipado a resposta. Com uma risada profunda, disse ele, ‘sim, esta é uma pergunta interessante, não é?’ (...). 14

O que percebemos imediatamente é que para um leitor não familiarizado

com o funcionamento de um hipertexto, seja ele ficcional ou não, a questão do

“fechamento” é posta imediatamente como um problema: como se chega ao fim desta

história ou deste site? A expectativa de um fim advém, é claro, de nossa experiência com

a narrativa tradicional (seja numa narração oral, seja num texto, seja numa peça teatral,

seja um filme, etc.), pois desde crianças ficamos na expectativa do "fechamento" das

histórias que nos são contadas.

A Poética de Aristóteles (350 a.C.) já determinava claramente que uma narrativa

deve ter início, meio e fim. Porém uma narrativa tradicional, ou seja, não hipertextual,

não-linear, independentemente de que suporte esteja sendo usado, chega sempre a um

fim, porque chegamos à última página do livro (mesmo que a "última" não seja

14 Retirado do site disponível em: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/palacios/hipertexto.html. Acesso em: 07/2005.

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fisicamente a última, como no caso do citado Jogo de Amarelinha, Cortázar, ou até

mesmo que não haja "última página", como no já referido Composition numéro1,

Saporta, no qual o leitor tem de decidir quando encerrar a leitura).

O mesmo se pode afirmar com relação às produções cinematográficas que

pretendem experimentar a não-linearidade, como A Estrada Perdida (The Lost Highway)

de David Lynch (1996) e Prospero´s Book (A Última Tempestade), de Peter Greenaway

(França-Inglaterra, 1991). Em seu filme, Greenawayv experimenta o recurso de "telas

dentro de telas" para criar novos efeitos, superpondo vários "tempos narrativos". No

entanto, queira-se ou não, eventualmente chegamos a um "fechamento", representado

pela projeção do último fotograma no processo de projeção do filme. Portanto, em textos

considerados como hipertextuais, o “fechamento” não acontece da forma à qual estamos

habituados: início, meio e fim.

Essas características têm levado, no entanto, à apressada definição de hipertexto

como simplesmente "não-linear", sem maiores qualificativos ou reflexões. A noção de

"não-linearidade", tal como vem sendo generalizadamente utilizada, parece-nos aberta a

questionamentos. Nossa experiência de leitura dos hipertextos deixa claro que é

perfeitamente válido afirmar-se que cada leitor, ao estabelecer sua leitura, estabelece

também uma determinada "linearidade" específica, provisória, provavelmente única. Uma

segunda ou terceira leitura do mesmo texto podem levar a "linearidades" totalmente

diversas, a depender dos links seguidos e das opções de leitura escolhidas, em momentos

em que a história se bifurca ou oferece múltiplas possibilidades de continuidade.

Conquanto metaforicamente15 se possa falar de uma não-linearidade, tal idéia,

Stricto sensu, não tem cabimento quando colocada em termos de processos de construção

das estruturas discursivas. Pode-se, no máximo, dizer que o hipertexto é mais bem

descrito como multilinear, em contraste com outras estruturas discursivas, de caráter

unilinear.

15 Uma descrição metafórica do processo de navegação hipertextual, assemelhando-o à perambulação ao

léu de uma cidade por um flâneur está registrada por André Lemos em seu ensaio "Andar, Clicar e Escrever Hipertextos", incluído como apresentação ao site Hipertexto: uma experiência coletiva e hipertextual. <http://www.facom.ufba.br/hipertexto/andre.html>.

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Para melhor entendimento sobre os conceitos de linearidade/não-linearidade, é

útil fazer-se uso da distinção entre Discurso e História ou Estória no âmbito da narrativa.

Christian Metz faz a seguinte observação:

A narrativa é uma seqüência duplamente temporal: há o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa (o tempo do significado e o tempo do significante). Essa dualidade não só torna possíveis todas as distorções temporais que são lugar comum nas narrativas (três anos da vida do herói sintetizados em uma ou duas sentenças numa novela ou em algumas cenas num filme, etc.), como também nos leva a pensar que uma das funções da narrativa é inventar um esquema temporal em termos de um outro esquema temporal (METZ, 1983, p. 134).

Podemos fazer, portanto, a distinção entre a Linha do Discurso e a Linha da

História na narrativa de um filme ou de uma novela. Na linha do discurso, para ver um

filme, temos de ir do começo ao fim das imagens arquivadas em celulóide, projetadas,

uma a uma, numa determinada velocidade, do primeiro ao último fotograma. Para ler

uma novela, temos de juntar letra por letra, palavra por palavra, sentença por sentença, da

primeira à última página do texto. A seqüência temporal discursiva é unidirecional. Na

Linha da História, no entanto, isso não é necessariamente verdade. Com efeito, na

maioria das narrativas, não existe uma sincronia entre Discurso e História. Gunnar Liestøl

(1997) em seu artigo The Readers Narrative in Hypertext toma o exemplo do filme

Cidadão Kane, de Orson Welles, para ilustrar esse ponto: a história é contada por meio

de muitos flashbacks, mostrando anacronia entre os elementos da história e os do

discurso. O primeiro elemento no tempo do discurso é a morte de Kane em seu quarto em

Xanadu, que na linha da história é quase o último. Além disso, podemos relacionar

história e discurso em termos de duração, ou seja, o tempo que leva para se narrar um

evento na história comparado com o tempo dos eventos no universo ficcional.

Gennete, citado por Liestøl (1997, p. 87-102), discrimina cinco categorias para

análise da duração narrativa: sumário, elipse, cena, alongamento e pausa. Elipse refere-se

às partes da história que não tem qualquer representação no discurso. A elipse é, portanto,

um elemento essencial para o sumário na hipermídia. Saltando de nódulo em nódulo, o

leitor produz sumário e elipse. Na cena, os tempos do discurso e da história são idênticos.

Festim Diabólico (Rope), o famoso filme de Hitchcock (1948), composto de uma junção

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de longuíssimas tomadas de dez minutos ou mais e que em conjunto contam uma história

em "tempo real", é um bom exemplo dessa situação.

Mais recentemente, Tempo Esgotado (Nick of Time) de John Badham (EUA,

1995), apresenta uma trama que se desenvolve em "tempo real", nos 80 minutos que o

herói tem para cumprir sua "missão". Alongamento ocorre quando o tempo do discurso é

maior que o tempo da história, como nas cenas em câmera lenta, por exemplo, ou

descrições extremamente detalhadas na literatura. O melhor exemplo talvez seja o estilo

de Marcel Proust no seu livro Em Busca do Tempo Perdido. Essa narrativa é rica em

passagens com vários parágrafos ou mesmo páginas que são usadas para desfiar detalhes

ínfimos no curso da narrativa. Na hipermídia, o alongamento se dá quando seguimos

links que acrescentam mais e mais material sobre um mesmo tema.

A idéia de pausa, por outro lado, é mais difícil de ser transposta para a

hipermídia. Liestøl (1997) sugere que no esquema de Genette, a pausa na hipermídia

poderia se referir a uma ilustração ou fotografia, no curso de uma navegação.

Consideramos essa idéia questionável, pois imagens e ilustrações são, em geral, partes

intrínsecas do hipertexto, sendo a nosso ver abusivo considerá-las como "pausas",

“lacunas”. No caso do hipertexto e da hipermídia, Liestøl chama a atenção para um

terceiro nível que se soma à dicotomia discurso-história, que podemos visualizar como

[...] um nível ou uma terceira linha é introduzida que pode ser chamada de texto discursado ou Discurso-como-Discursado, que corresponde ao efetivo uso ou leitura do texto digitalmente armazenado. Trata-se, em outras palavras, da criação de uma rota de leitura baseada na seleção e combinação de elementos existentes num arranjo espacial e não linear de nódulos e links. (LIESTØL, 1997, p. 96). (Tradução nossa)

O que se pode argumentar, portanto, é ainda que o Discurso-como-

Armazenamento possa ser visualizado como um "arranjo espacial e não linear de nódulos

e links", cada Discurso-como-Discursado se torna, forçosamente, uma linearidade. Todo

e qualquer discurso como armazenamento (virtualidade) só se atualiza por um processo

de leitura e, nesse processo, seja numa obra hipertextual, seja no mais tradicional dos

textos impressos, linearidades discursivas são, forçosamente, construídas. Em outras

palavras, no processo de leitura as Linhas de Histórias em Potencial, tornam-se Histórias-

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como-Discursado. O Discurso-como-Armazenamento, num hipertexto, ou seja, as

diferentes combinações de elementos (lexias) que o leitor pode acionar, ao seguir

diferentes "rotas" ou "trilhas" de leitura, permitem uma série de possibilidades de

construção, pelo leitor, de Discursos-como-Discursado e, portanto, de uma série de

possíveis Linhas de História (História como Discursado).

Tais idéias sugerem a multilinearidade do hipertexto, em contraposição à

unilinearidade do texto tradicional, ainda que, evidentemente, mesmo no texto tradicional

leituras transgressivas sejam possíveis, criando multilinearidades. Basta que se pense

numa leitura transversal, que seleciona trechos e que "vai e volta", saltando ao longo do

texto, sem que seja seguida a seqüência "canônica" preestabelecida pelo autor. Não é

ocioso lembrar que a palavra browser, utilizada para designar os programas de leitura de

hipertexto, provém do verbo pré-informático to browse, que significa (entre outras

coisas) percorrer páginas a esmo, mas que tem uma raiz etimológica associada aos brotos

ou ramificações na ponta da haste de uma planta.

Assim, parece-nos que a apropriação das idéias trabalhadas por Liestøl levam a

uma melhor caracterização do hipertexto enquanto estrutura discursiva multilinear.

Consideramos este termo muito mais preciso e mais apropriado do que não-linear, por

traduzir mais adequadamente a multiplicidade de possibilidades de construção e leitura

abertas pelo hipertexto.

A recepção não hierárquica do texto não chega, porém, a constituir uma revolução

radical implantada pelo hipertexto, pois que as notas de roda-pé, índices remissivos,

sumários e divisão em capítulos encontrados nos livros tradicionais também oferecem ao

leitor caminhos alternativos a serem trilhados, os quais podem levá-lo a fazer quebras na

linearidade da leitura.

No entanto esta é uma forma de recepção textual pelo leitor, e não uma regra

constitutiva de sua confecção como no hipertexto. Afirmar que o hipertexto é

deslinearizado não equivale a dizer que ele seja um conjunto de enunciados justapostos

aleatoriamente. Para ser inteligível, o hipertexto – como qualquer outro – precisa

apresentar alguma linearidade, pois não pode subverter os níveis de organização das

línguas naturais (sintaxe, semântica, pragmática) utilizada por uma dada sociedade.

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Outro princípio do hipertexto, intrinsecamente ligado ao anterior, é a

pluritextualidade denominada por alguns autores também de multissemiose. No texto

eletrônico a pluritextualidade viabiliza a absorção de diferentes aportes sígnicos numa

mesma superfície de leitura, tais como palavras, ícones animados, efeitos sonoros,

diagramas e tabelas tridimensionais. A fusão dos diversos recursos das várias linguagens

numa só tela de computador, acessíveis e utilizáveis simultaneamente em um mesmo ato

de leitura, provoca um construtivo impacto perceptual-cognitivo no processamento da

leitura. Num ambiente intersemiótico como o hipertexto, o ato de ler/compreender

viabiliza-se com muito mais totalidade e amplitude, haja vista que, estando esses aparatos

midiáticos bem organizados e inter-relacionados, o usuário, mesmo inconscientemente,

será beneficiado pela convergência dessas interfaces comunicacionais e juntas cooperam

para fazer fluir a compreensão. Conseqüentemente, quanto mais explícitas as idéias do

autor pelos aparatos sígnicos, maior será o estímulo à participação e ao envolvimento do

leitor no processo de apreensão da significação.

É, portanto, dentro de um contexto cultural, teórico e literário muito complexo

que nasce a teoria do hipertexto, como emergência do novo no antigo, tal qual analisou

Pierre Lévy (1993) sobre a sucessão da oralidade, da escrita e da informática como

modos fundamentais de gestão social do conhecimento, as quais não se dão por simples

substituição, mas antes por complexificação e deslocamento de centros de gravidade.

Hipertexto ficcional é, assim, essa interdisciplinaridade da crescente insubordinação da

linearidade que redefine o objeto livro com uma forma de escrita e de leitura associativa e

não-seqüencial. Até aqui, percebe-se que os princípios do discurso teórico-

contemporâneo tiveram o mérito de se referir, sobretudo, à relação interdiscursiva entre

vários sistemas significantes. Também o outro, não mais o artista, mas o sujeito comum,

leitor-comum, leitor-coletivo das pequenas narrativas da cotidianidade, assume um papel

de co-criador da obra. E esses procedimentos de como se contar histórias, haja vista,

sempre pela interatividade do eu com o outro, fazem com se mantenha vivo o mito do eu

do autor, ou o eu do narrador, (ou será ainda o eu de um escritor chamado Italo Calvino

que convoca o eu do leitor para nele se metamorfosear em muitos eus?).

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Dessa forma, há sempre o outro deflagrado diante do eu, há sempre relações – de

passividade ou dinâmicas, de criação ou de repetição – mas sempre relações entre

linguagens. É o lugar do narrador e do leitor que perfaz o texto por meio de um contínuo

testar do livro como objeto e como canal de uma fascinante viagem da travessia

metalingüística. É nesse quadro que o lugar do sujeito oscila, ao perceber que não

existem mais segredos científicos ou discursos legitimadores, tal como se verificava no

pensamento crítico tradicional. Foram rompidos os liames da sistematização genérica que

ainda vigorava nas artes e na literatura nas primeiras décadas do século XX com o projeto

modernista, o surgimento do noveau roman e a morte do autor, conferindo total

alteridade do romance contemporâneo.

Para tanto, pretendemos, nesta tese, discorrer sobre o hipertexto naquilo que o

torna um texto hiper: seus links, pois conforme mostraremos adiante, esses elementos –

agora não só exclusividades da linguagem hipermidiática – têm um papel relevante na

construção de sentido nos textos ficcionais vistos como hipertextuais.

Dado que a palavra "hipertexto" não é mais uma metáfora, mas sim uma

possibilidade de aplicação no texto ficcional, deve-se começar pelas definições. The

Electronic Labyrinth, criado em 1995, é um estudo das implicações do hipertexto para os

escritores que criam com o olhar além das noções tradicionais das linearidades. O seu site

original em inglês é The Electronic Labyrinthe. Especialista em hipertextualidade e

produção da escrita na era da Internet, George Landow 16 é um dos pioneiros na crítica de

textos em suportes eletrônicos conhecidos, na atualidade, como hipertexto ou hipermídia.

Seus primeiros artigos e livros sobre o assunto datam de 1991 e têm grande importância

como reflexão sobre a escrita e a recepção com o uso das tecnologias digitais.

16

Atualmente, George Landow é professor de inglês e história da arte na Brown University, em Providence, nos Estados Unidos. A lista de suas publicações é extensa. Dentre elas destacam-se os seguintes livros: Hypermedia and literary studies (MIT, 1991) e Word: text-based computing in the humanities (MIT, 1993), ambos em parceira com Paul Delany. Hypertext: the convergence of the contemporary critical theory and technology (Johns Hopkins UP, 1992), Hypertext in Hypertext (Johns Hopkins UP, 1994), estudo ampliado e posteriormente publicado como Hypertext 2.0 (Johns Hopkins UP, 1997). Além disso, Landow é editor de Hyper/text/theory (John Hopkins UP, 1994), uma coletânea com textos críticos de Gregory Ulmer, Espen Aarseth, entre outros.

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Nesse site, Landow,17 uma das melhores referências no que diz respeito à teoria

do hipertexto eletrônico, dá-nos uma das definições mais completas e mais gerais. Ele

defende a idéia de que hipertexto é uma apresentação da informação como uma rede de

links interligados, nos quais os leitores estão livres para navegar de modo não-linear. Ele

autoriza a possibilidade de uma pluralidade de autores, a dissolução das funções de autor

e de leitor, conferindo amplitude às obras abertas com fronteiras indefinidas e uma

pluralidade de leituras. Landow ainda discute os efeitos da mídia eletrônica na criação

literária, dialogando com autores como Paul de Man, Jacques Derrida, James Joyce,

Gilles Deleuze, Michel Foucault, entre outros, o que o deixa numa posição diferente

daquela que, por exemplo, trata de temas como “o fim do livro” pelo viés profético e

“futurológico” que tem acometido grande parte da crítica a respeito do uso da tecnologia.

Apesar de Landow ser um autor referencial, nenhum de seus livros, até esta

data, dezembro de 2006, foi traduzido no Brasil. Uma explicação possível

para essa lacuna seria sua postura crítica que não se deixa afetar tão

facilmente pelas “transformações” oferecidas/provocadas pela era tecnológica.

Em entrevista concedida para Cícero Inácio da Silva, via e-mail, em

julho de 2006, professor de Hipermídia e Interatividade da PUC–SP, ele fala

sobre hipertextualidade, sua obra e, acima de tudo, sobre a recepção do texto

na contemporaneidade. No seu livro Hypertext 2.0, Landow defende a não

distinção entre hipermídia e hipertexto:

Os textos de computador – sejam eles hipertextos ou não – podem facilmente incluir imagens e textos alfanuméricos, já que, em computadores, é possível armazenar tanto palavras como imagens na forma de códigos. A interconexão destes textos ou de combinações de textos e imagens já é o hipertexto e a hipermídia. Não vejo como faria sentido distinguir entre os dois. Por outro lado, deveríamos fazer uma distinção entre o hipertexto e o texto animado, como os criados com os softwares Flash ou Director. (LANDOW, 1992, p. 13). (Grifo nosso).

E quanto à visão ainda atual por parte de alguns teóricos, de certa

forma, do hipertexto ser visto como mais uma ferramenta de escritura que

17 Disponível em: <http://jefferson.village.virginia.edu/elab/elab.html> Acesso em: 09 /12/2006.

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permite um arquivamento e uma relação temática entre conceitos do que

propriamente uma linguagem, este estudioso diz que vê a escritura como

[...] uma das primeiras e mais importantes tecnologias desenvolvidas pelo homem, e cada um dos seus conjuntos de ferramentas - buril e argila, pena e pergaminho, talhadeira e pedra, impressão e papel, teclado e tela de computador - afeta a leitura, a escrita e nossas concepções destas. A leitura e a escritura são sempre materiais, mesmo que o texto do computador seja codificado e virtual. Nós criamos e percebemos nele arranjos físicos muito específicos, através de práticas físicas muito específicas. (ibid, 1992, p. 23).

A sua dissertação descreve a trajetória histórica, conceituação essencial e

elementos estruturais do hipertexto e a relação deste com as mídias digitais CD-ROM e

Internet. A busca por uma afirmação prática dos conceitos desenvolvidos levou à

produção de uma hiperficção, a qual demonstra as implicações de transpor uma narrativa

linear para o universo digital.

É necessário sublinhar três aspectos desta definição: Dispersão da estrutura. A

informação é apresentada por pequenos fragmentos-nós, e pode-se "entrar" nesta

estrutura por qualquer ligamento. Não-linearidade do hipertexto. O leitor é doravante

livre para escolher o seu percurso de leitura, criando assim o seu texto. Esta situação,

como nota George Landow (1992), torna impossível a crítica literária clássica: “O

hipertexto faz desaparecer a fixidez do texto que é o fundamento da teoria e a prática

desta crítica. Uma crítica não pode, por definição, ler um hipertexto na sua integralidade,

pois um texto literário é passível de infinitas leituras” (ibid.,1997, p. 32).

Heterogeneidade e multimídia, este terceiro aspecto se refere ao emprego dos meios de

ação sobre o leitor-usuário, possíveis tecnicamente num sistema (considerado como obra

aberta), a começar pelos meramente literários (escolhas da estratégia narrativa e

estilística), passando pelos editoriais (paginação, ilustrações, por exemplo) até os digitais

mais sofisticados (som, animação, hiperligações e outros dados não-literários).

O elemento mais importante da estrutura hipertextual é a hiperligação ou cadeia,

como, por exemplo, uma macromolécula de proteína que tem uma estrutura primária

básica e uma estrutura de um nível superior interligadas por links. As proteínas não se

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podem mover sem esta estrutura secundária. Os hipertextos também não. A hiperligação

num hipertexto é a conotação materializada, a alusão num texto comum. Esta

sintagmatização das relações paradigmáticas, como dizem os estruturalistas, não é nada

mais do que a manifestação do processo proclamado por Umberto Eco 18 e citado por

Steven Johnson (2001) da substituição da "civilização de Gutemberg” para a da

"civilização da imagem", em que as alusões se tornam mais visíveis e ressaltam da

superfície. Revisando as tecnologias do passado e do presente, Eco (2003) mostra como

os meios de comunicação de massa afetam profundamente a vida física e mental do

homem, levando-o do mundo linear e mecânico da Primeira Revolução Industrial para o

novo mundo audiotátil e tribalizado da era eletrônica.

Por outro lado, é possível justificar o tema hipertexto com a noção de pós-

modernismo. Nesse sentido, o crítico americano Ihab Hassan (1988), dando uma das

melhores descrições do pós-moderrnismo, evoca os seguintes pontos dessa nossa época:

indeterminação, culto ao hermetismo, ao erro e à omissão; caráter fragmentado e

princípio de montagem; descanonização e a luta contra os centros tradicionais de valores;

superficialização, ausência de profundidades psicológicas e simbólicas; confusão

conceitual e hierarquização do “gênero”; teatralização da cultura moderna e

interatividade com o público; interpenetração da consciência e dos meios de

comunicação, capacidade de adaptar-se às suas evoluções e de se refletir sobre eles.

Esses aspectos da cultura pós-moderna apontados por Ihab Hassan podem se

referir também às características do hipertexto: o primeiro e o terceiro aspectos

manifestam-se em não-linearidade e desaparecimento; o segundo e o quarto exprimem a

noção da hiperligação, o quinto, o sexto e, sobretudo, o sétimo à heterogeneidade e à

multimídia. Constata-se, por conseguinte, que o hipertexto não é só um dispositivo

eletrônico, mas uma parte intrínseca e legítima da época em que vivemos.

18 ECO, Umberto. From Internet to Gutenberg. Palestra apresentada para a Academia Italiana de Estudos

Americanos Avançados. Turim, 12/11/1996. Citado por JOHNSON, Steven. Cultura da Interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 172.

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Muitos são ainda os que crêem que a noção de hipertexto apareceu muito

recentemente. Conseqüentemente a partir do desenvolvimento dos computadores pessoais

e do advento da Internet. Porém a sua definição principal, em termos gerais, foi

formulada nos anos 60 pelo programador computacional e filósofo Theodor Nelson,

lembrado por muitos como “inventor” do termo. Definindo-o mais estritamente em 1981

no seu livro Literary Machines (Máquinas Literárias), ele diz: “A característica principal

do hipertexto é a sua descontinuidade: deslocação inesperada da posição do leitor-usuário

na leitura do texto [...]. Entendo por hipertexto uma produção não-seqüencial, um texto

em arborescência que permite o poder de escolha” (NELSON, 1992, p. 23).

Visto assim, o conceito de hiperficção surge da conjugação de duas noções:

hipertexto e hipertextualidade. Por hipertexto entendemos um agregado de textos

interligados por links. Esses links podem ser ativados pelo leitor que é transportado para

outros documentos desse agregado formando a hipertextualidade. O hipertexto permite

assim uma nova forma de leitura. É este processo que encontramos na hiperficção; a

leitura não se desenvolve de forma linear (leitura tradicional), mas através da ativação

dos links por parte do leitor que escolhe o seu percurso individual de leitura, participando

dessa maneira da elaboração da própria obra. Na hiperficção deparamo-nos com novas

relações entre o leitor e o autor, bem como o leitor e a obra: o leitor transforma-se em co-

autor, e a obra não preexiste à leitura, é um objeto a ser construído pelo leitor que lhe

confere não só uma interpretação (como sucede na leitura tradicional), mas também a

própria forma.

Em outras palavras, é uma série de fragmentos textuais, ligada por relações,

propondo ao leitor percursos diferentes. Hipertexto, ainda segundo essa visão de Theodor

Nelson, seria o texto que vai além do texto, que é mais uma palavra atrás da outra, do

começo ao fim, sem variação permitida. Essa escrita não-linear é a base do sistema

Xanadu, docuverse com a ambição de uma “Biblioteca de Babel”, que permitiria o acesso

a um arquivo ilimitado de textos. Como Ted Nelson (1992) nos informa, o Projeto

Xanadu teve seu início no outono de 1960, tendo como objetivo maior integrar todos os

sistemas hipertextuais existentes. Em 1987, Nelson colocou um protótipo on line para

experimentações, na expectativa de oferecer uma versão comercial em 1988. O termo

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“Xanadu” é referência ao poema Kubla Khan, do poeta romântico inglês Samuel Taylor

Coleridge, falecido em 1834.

Mais ou menos na mesma época o pós-estruturalista francês Rolland Barthes em

S/Z (1970) define o seu texto (escrita ideal) da seguinte maneira: “Neste texto ideal, as

redes são múltiplas e brincam entre si. Este texto é uma galáxia de significantes, não uma

estrutura de significados; não tem início; é reversível. Pode ser acessado por várias

entradas. Texto plural, multissignificativo, aberto e infinito” (ibid. , p. 39). Vista assim, a

opinião de Nelson sobre hipertexto não é outra coisa que não a de Barthes: “O significado

fundamental de hipertexto está na sua seqüência de curtos fragmentos contínuos, que

chamarei aqui de lexias; a dimensão da sua significação dependerá da densidade das

conotações, que é variável de acordo com os momentos do texto” (BARTHES, 1970, p.

47).

Qualquer novo método, uma vez definido, tem tendência "a extrapolar-se" sobre

os fatos anteriores. A noção do hipertexto não faz exceção. Quando aparece uma nova

tendência para a construção narrativa é natural uma resistência interna a essa tendência.

Com efeito, o texto perde a linearidade. Transforma-se num conjunto

paradigmaticamente com alternativas possíveis da evolução. Uma construção

sintagmática é substituída por um espaço multidimensional das potencialidades do

assunto. Assim, por exemplo, os romances polifônicos de Dostoiévski, considerados

como os seus precursores diretos, teriam antecipado os princípios da prosa e, sobretudo,

as particularidades da mentalidade do século XX. Sobre isso, Yuri Lotman (1994), crítico

literário e principal representante da semiótica russa, descreve sobre as suas impressões

da leitura dos rascunhos de Dostoiévski. Segundo ele, é suficiente lançar um olhar sobre

uma página de manuscrito desse escritor para ver até que ponto o trabalho do autor de

Crime e Castigo é distante de um texto narrativo "normal", pois as frases são lançadas

sobre as páginas sem respeito a uma continuidade temporal de linhas ou de páginas. Ou

ainda que as palavras dos manuscritos de Dostoiévski têm tendência de se transformarem

em “signos multidimensionais”, fazendo recursos aos diferentes meios pondo as palavras

em relevos sublinhados em negrito ou em maiúsculas, caracteres de tipografia que fixa

para mais do que destacar os meios gráficos, dar a sua projeção de escritor e de pessoa no

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seu texto. É esse o resumo da análise genética dos manuscritos de Dostoiévski

apresentada por Lotman (1994).

Isso parece ser o caso dos manuscritos de uma grande parte de escritores, nos

quais eles deixam marcas e indícios que revelam os seus processos de criação. Estes

traços se referem às diferentes alternativas dos episódios, às evocações para o texto, às

reflexões teóricas filosóficas, às palavras-imagem, às observações laterais nas páginas, às

notas de rodapé e a toda palavra que ainda não encontrou o seu lugar, mas que estão por

desenvolver-se em episódios futuros.

Podem-se igualmente encontrar elementos de multimídia em poemas visuais dos

futuristas italianos (também nos calligrammes de Apollinaire e nos "poemas concretos"

dos autores alemães). Esses exemplos dos indícios ou da presença da hipertextualidade

no texto escrito podem ser extrapolados mais ainda na história da literatura, como na

Bíblia e no texto dialógico de Alice no país das maravilhas (1865). Este e Alice no país

do espelho (1872) são os livros mais famosos (reconhecidos popularmente como um só)

do escritor e matemático inglês Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodson

(1832-1898).

A história narra o sonho de uma garotinha. Como em todo sonho, nesse também

são quebradas muitas das regras que regem o mundo real. E essas quebras vão sendo

analisadas pela própria personagem principal em um jogo bastante interessante de se

acompanhar. O interessante de Alice no país do espelho é que toda a história se passa

como se fosse um jogo de xadrez, em que cada evento se constitui em uma jogada, sendo

o final da história, e seu clímax, o xeque-mate. Cabe à garotinha assistir e tentar

compreender todo esse jogo, antes que sua irmã a acorde e a traga de volta para seu

próprio ambiente, controlado e conhecido.Ainda sobre essa obra de Carroll nos interessa

em primeiro lugar o seu caráter não-linear latente: os capítulos são unidos formalmente

pelos temas de "procura da saída" e "procura do tesouro". No mundo de Carroll todas as

evoluções dos acontecimentos são possíveis, elas não são determinadas por nenhumas

leis de lógica ou de bom sentido (do resto, qualquer universo fictício autoriza esta

situação, na condição de a regra da sua construção ser a ausência de regras). Não se pode

nunca prever o que Alice vai encontrar na página seguinte e como isso vai terminar. Esta

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é a diferença em relação ao romance de aventura ou do romance picaresco: no mundo de

Dumas 19, um personagem entra num combate, pode apenas vencer o adversário ou

perder, enquanto no mundo de Carroll há uma infinitude de alternativas: o seu adversário

pode transformar-se em pássaro ou se pode descobrir que o seu combate é um combate

com a sombra. É ainda menos claro, como cada leitor concreto vai interpretar os sentidos

que constroem a base deste texto.

No que diz respeito à Bíblia, interessa-nos, primeiramente, o seu sistema

extremamente bem elaborado de referências cruzadas de lugares paralelos (analogia das

hiperligações), e por outro lado, pela leitura adotada pelos cristãos pela “leitura de

contraponto” (reading of counterpoint), expressão de Mark Bernstein (1998, p. 52),

segundo a qual todos os acontecimentos do Antigo Testamento são projetados sobre os

do Novo Testamento, os profetas e os chefes são considerados como precursores, que são

em parte uma encarnação de Cristo como um ligamento incontornável da humanidade

sobre o caminho da salvação. Além disso, cada versículo da Bíblia é polissêmico. Na

dogmática ortodoxa há quatro níveis de leitura dos textos bíblicos distinguidos

teologicamente por: a) o sentido literal, que representa o acontecimento, o fato; b) o

sentido alegórico do Antigo Testamento, que anuncia a vinda, o nascimento, a vida e a

morte de Jesus; c) o sentido moral-antropológico, que explica por que Jesus deve realizar-

se em cada homem; d) o sentido anagógico,20 que faz ver por antecipação a realização

final do homem perfeito em companhia de Deus. Com sentidos entrecruzados, esse

sistema contém potencialmente uma infinidade de interpretações e de associações

promovendo uma rede de novos sentidos.

19 Refiro-me a Alexandre Dumas (pai), romancista francês, 1802-1870. Autor de o Conde de Monte Cristo

(1831); Os três mosqueteiros (1844), e nao a Alexandre Dumas (filho), 1824-1895, o qual seguiu os passos do pai, tornando-se um conceituado autor de livros e de peças teatrais, A dama das camélias (1846) é a sua obra mais conhecida.

20 Anagogia é a forma de hermenêutica dos textos sagrados, que permite apreender o seu sentido místico. Tradicionalmente, a hermenêutica bíblica possui quatro níveis de interpretação, por ordem crescente: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. A obra dos autores clássicos como Virgílio e Dante, por exemplo, foram objetos de interpretações anagógicas. No caso de Virgílio, os exegetas medievais souberam ler nos seus versos um sentido místico que traduzia a esperança do regresso de Cristo à Terra. Jerusalém foi interpretada em todos os sentidos: literalmente, como cidade santa; alegoricamente como a imagem da Igreja; moralmente como o símbolo dos crentes; e anagogicamente como a “Cidade de Deus”.

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Acrescenta-se ainda que no processo hipertextual os textos se encontram ligados

entre si não só no nível do assunto, mas também a nível "metaficcional/metatemático". É

importante, quando se fala dessas narrativas hipertextuais, não confundir o objeto e o

meio de representação. Assim, em O jardim dos caminhos que se bifurcam, de Borges,

temos um exemplo clássico para a descrição metatemática da narrativa não-linear no mais

alto grau de proximidade com o sentido de hipertexto. Nas ficções lineares, sempre que

diversas possibilidades se apresentam, o homem adota uma e elimina outras. Porém, na

história quase inextricável de Ts'ui Pên, personagem desta narrativa, ele as adota

simultaneamente, criando assim diversos futuros, diversos tempos que se proliferam e

também se bifurcam: um desconhecido golpeia a porta da casa de Fang que decide matá-

lo. Naturalmente, neste episódio há vários desenlaces possíveis: Fang pode matar o

intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem ser salvos ou ambos podem morrer etc.

Na obra de Ts’ui Pên, todas as possibilidades podem acontecer, cada uma é o ponto de

partida de outras bifurcações.

Por outro modo, Barulho e fúria (1929) de William Faulkner (1897-1962) não

tem nada de hipertexto: é uma narrativa complexa carregada de alusões bíblicas e

realizada com técnicas narrativas modernistas. Chega-se a distinguir um sentido cuja

interpretação não coloca problema, é uma história completamente linear (Caddy

Compson ficou grávida pela obra de Dalton Alma e é obrigada a casar-se

precipitadamente. Um dos irmãos a maldiz, outro, que se suicida, tem por ela afeição

doentia, e o terceiro irmão, idiota, tem uma adoração muda para ela, etc.). É a diferença

do Barulho e fúria das verdadeiras construções hipertextuais, como na citada obra de

Borges, por exemplo, na qual, sem ainda se tratar dos outros traços típicos do hipertexto,

o leitor pode reconstituir pelo menos várias versões e desfechos fundados a partir do que

se passou na história que leu e como ele poderá interpretá-la.

Portanto, se observarmos que as minas inteiras de mármore de Carrara não levam

à aparição da Vênus de Millus nem de David, o computador sozinho não engendra a não-

linearidade, a hipertextualidade e a multimídia. Os elementos de hipertextualidade são

generosamente salpicados em toda a literatura mundial. Mas por que só na segunda

metade do século XX elas se condensam, são reivindicadas e passam a outro nível? A

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resposta talvez seja porque o homem está começando a perceber a mudança do seu lugar

no mundo. Altera-se a face do mundo, porém muitos não se deram ainda inteiramente

conta da mudança do lugar do homem no mundo no curso das últimas décadas do século

XX. Mudou-se a face do mundo.

Mas o essencial é que não somente pensamos no mundo diferentemente, mas

também o sentimos de outra maneira. Não se trata aqui do fato que se pode falar aos

outros continentes de sua própria casa, mas de noções básicas: graças aos carros e trens, a

nossa noção de tempo e de ritmo mudou; graças às cores artificiais apuradas, a noção de

colorido se ampliou. Nós ainda podemos ficar impressionados pelas Pirâmides do Egito,

mas essa admiração é retrospectiva. A realidade e a ficção trocam de lugar, difunde-se

uma na outra. Um acidente de carro na vida real não tem o ar inverossímil: não tem

filmagem em câmara lenta, nem repetições de ângulos diferentes, nada daqueles efeitos

que vemos, por exemplo, num replay de um lance duvidoso numa partida decisiva de

futebol. Aquele acidente que nós presenciamos num lugar e momento real poderá ser

retransmitido pelo telejornal por efeitos visuais – de cima para baixo, de baixo para cima,

da direita, da esquerda, de frente, de trás; e velocidade – mais lenta ou acelerada, etc.

Jean Baudrillard (1991) escreveu na sua reflexão sobre os horrores da guerra do Golfo,

primeira guerra da época eletrônica, quando Bush e Hussein sabiam o que se passava nos

confrontos pelas mesmas transmissões da rede americana de televisão CNN:

Hoje em dia, o virtual domina resolutamente o real; o nosso destino é se satisfazer com a virtualidade limite que, contrariamente a virtualidade de Aristóteles, faz temer a perspectiva da passagem para a ação. Não estamos mais na lógica da passagem do possível para o real, mas na lógica hiper realista. (1991, p. 27).

Não é de se surpreender que, desde os anos 80, os sociólogos, os culturólogos, os

filósofos e mesmo os críticos literários falam, cada um do seu ponto de vista, da mudança

do paradigma cultural e da crise da civilização industrial. Não se trata de uma crise como

as outras: a realidade mudou fora e dentro de nós. A substituição das oposições binárias

realidade/ficção e realidade/texto, e por conseqüência da arte, são marcas do conflito da

mudança de nossos paradigmas e a sua resolução no eixo da evolução da civilização do

século XX. A propósito disso, Lotman escreve:

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As culturas orientadas sobre as informações têm um caráter mais dinâmico. Têm tendência a aumentar o número de textos ao infinito e dão um crescimento rápido aos conhecimentos. As culturas orientadas sobre o autocomunicação são capazes de desenvolver uma maior atividade espiritual, mas são freqüentemente muito menos dinâmicas daquelas que necessitam a sociedade humana (LOTMAN, 1994, p. 75).

O hipertexto que destrói a determinação e a monosignificação da mensagem

encontra-se como um instrumento particularmente adaptado à nossa época e adequado

para a descrição dos novos relatórios da realidade. É o instrumento capaz de reunir "a

atividade espiritual" da civilização do tipo autocomunicativa na qual estamos, e a

civilização clássica "da mensagem". Após a sua popularidade, a noção de hipertexto

engloba um grande número de classes de objetos. Vamos, por conseguinte, tentar

classificar os hipertextos de acordo com parâmetros diferentes e determinar o grupo no

qual se vai colocar a obra de Calvino.

Os hipertextos ficcionais/não ficcionais. Como a maioria dos textos "comuns", a

maior parte dos hipertextos não é fictícia. São manuais, modos de emprego, construídos

de acordo com o princípio "para tal operação ver tal página" (um exemplo conhecido é o

manual de ajuda inserido no sistema de exploração de Windows e, certamente, as

enciclopédias).

Os hipertextos isolados/em rede. Um dos primeiros e mais conhecidos hipertextos

de ficção é Afternoon, de Michael Joyce (1991). Esta obra, em forma de CD-ROM, tem

o seu acesso limitado a um só usuário, num dado momento, em frente à tela do

computador. Por outro lado, existem os hiper-romances em rede que são acessados

simultaneamente por vários usuários e ao mesmo tempo, e também podem agrupar-se em

sítios com outras obras deste tipo, por exemplo, O Livro dos livros, projeto enciclopédico

de Mikhail Epstein. 21 O seu objetivo é o de reunir "idéias dos livros não escritos" de

modo que qualquer interessado possa servir-se da sua leitura.

21 Teórico, crítico literário e professor de Cultura e Literatura Russa na Universidade Emory, Atlanta,

EUA. Possui uma vasta produção crítica sobre o pós-modernismo, teoria cultural, literatura russa e hipermídia. Epstein desenvolveu um método chamado de “Potencialização”. A sua análise é focada no desdobramento das múltiplas potencialidades de um fato numa dada realidade.

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Os hipertextos leitura-escrita. Leitura-escrita diz respeito aos projetos em

evolução constante. Divide-se em projetos de só um autor e projetos coletivos. No caso

de um projeto individual o acesso ao site é protegido e reservado para o autor ou

mediante a sua autorização. Assim são também todos os projetos em CD-ROM. Na rede,

tal é o caso de "O cais de Jitinski" – site em que o escritor de St-Petersbourg, Jitinski,

põe suas obras em cruzamento com links, formando um hipertexto. Já o acesso aos

projetos coletivos é aberto.

Nesse sentido, parece que teve êxito O jardim dos haicais que se bifurcam, de

Zhurnal Ru.22 Também se tem conhecimento de outros complicados projetos individuais

pela introdução de “autores-marionetes” ou personagens virtuais criados pelos autores

que lhes dão vozes independentes. Tal é o caso do “La grenouillère” 23 – site consagrado

para a poesia japonesa cujo autor publica não somente os seus textos como os de outros,

por exemplo, os de "Mary Shelli" (!), o personagem criado por ele que tem uma vida na

rede muito ativa. Esse tipo de leitura com comentário é que tem mais tempo de existência

sobre a rede.

Os hipertextos axiais/dispersados são o tipo de hipertexto que mais nos interessa

nesta pesquisa. As "axiais” são as obras que, sem ter assunto transversal, se emprestam

melhor para as operações combinatórias. Isso quer dizer que têm um princípio magistral

de construção. Os hipertextos axiais são uma passagem entre o livro clássico impresso em

papel e o hipertexto propriamente dito, dispersados por sua natureza. Os hipertextos

dispersados não têm um eixo narrativo definido. Não têm início e nem fim, podendo ser

acessados de qualquer lugar. São não-lineares, no sentido mesmo do termo. Este aspecto

classificatório é convencional, pois seria necessário falar não de uma oposição binária,

mas de dois eixos num sistema de coordenadas, entre os quais cada hipertexto concreto

vai encontrar o seu lugar.

22 Esta versão eletrônica, em russo, desta obra de Borges está disponível em: < http://www.zhurnal.ru/ >.

Acesso: 29/012006. 23 Expressão derivada da palavra francesa grenuoille (rã), podendo ser traduzida para o português como “A

coaxada”. Na poesia japonesa o coaxar das rãs é uma imagem poética equivalente ao canto do rouxinol na poesia européia e ao do sabiá na literatura brasileira.

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Assim, como conseqüência desta classificação, o objeto do nosso estudo será

constituído pelos hipertextos do tipo "axial/dispersado", pois esse é o que mais se

aproxima e se verifica nos três romances aqui a serem analisados. É este mais um critério

que nos permitirá seguir o percurso literário de Italo Calvino durante o último período da

sua obra. E, uma vez dadas as definições e estabelecida a classificação das formas

narrativas hipertextuais, pode-se passar para o estudo da hipertextualidade em algumas

das obras de Italo Calvino. Em 1967 Calvino em “Seis propostas para o próximo

milênio” (1980) escreveu: “No modo de olhar a cultura atual sobre o mundo existe uma

tendência que se manifesta por toda a parte: o mundo é visto, nos seus diferentes

aspectos, sempre mais disperso do que contínuo” (1980, p. 167). A realização literária

desta afirmação deu origem a As cidades invisíveis, a O castelo e a Um viajante.

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Tudo, no mundo, existe para acabar num livro.

Italo Calvino

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Capítulo II

HIPER-AUTOR DE HIPER-ROMANCES

Lembro-me do ano de 1998, no curso de mestrado em Comunicação e Semiótica

da PUC-SP, quando me caiu às mãos um livro de Italo Calvino. “Um Calvino italiano”,

repeti para mim mesma, fixando para sempre na memória aquele nome. À-toa, fiquei

imaginando e me perguntando que tipo de livro e sobre que assunto um homem chamado

Calvino poderia escrever. Passei os olhos pela estante de literatura italiana e peguei o

primeiro romance dele, de 1947, A trilha dos ninhos de aranha (2004). Alguma coisa a

ver com os partigiani na Ligúria. Um romancista de guerra. “Não”, pensei, e deixei para

lá, pondo o livro de lado. Sem ainda muito saber que a obra desse autor me acompanharia

por muito tempo. Dito e feito. Voltei à biblioteca e devorei o que à frente encontrava

sobre a sua biografia e a sua bibliografia.

A partir daí li toda a obra de Calvino, começando pelo mesmo livro que, em 1998,

merecera de mim apenas uma rápida folheada. Traduzido para o português como A trilha

dos ninhos de aranha (2004), o primeiro romance de Calvino é exuberante, e traz uma

história contada de modo franco e direto. Ainda que a escrita seja convencional, há uma

estranha intensidade na maneira com que Calvino vê as coisas, uma precisão de

escrutínio e uma minúcia de exame muito próxima ao estilo de William Golding 24.

Assim como Golding, Calvino sabe como e quando preencher inteiramente, fazendo uso

pleno de todos os sentidos, paisagem, estado de espírito, ato.

Calvino faz o mesmo ao narrar a história de Pin, menino que vive no litoral da

Ligúria, perto de San Remo (embora tenha crescido em San Remo, Calvino nasceu em

Cuba, detalhe biográfico a que absolutamente nenhuma editora norte-americana de seus

24

Em The Spire (A Torre, de 1964), o Deão Jocelin, da Catedral da Virgem Maria, impõe para si e para a equipe de pedreiros de Roger Mason uma tarefa impossível: levantar uma gigantesca torre no pináculo da catedral, a despeito do fato de que o edifício da igreja não possuir fundação suficiente para suportar o peso de tal estrutura. Obcecado por uma visão, Jocelin persiste e acaba envolvendo todos numa espiral de problemas financeiros, brigas, morte e delírio. O britânico William Golding (1911–1993), vencedor do Nobel de Literatura em 1983, é mais famoso no Brasil pelo romance The Lord of the Flies (O Senhor das Moscas, de 1954), seu romance de estréia, fábula pessimista sobre a condição humana.

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livros faz menção). Pin mora com a irmã, prostituta. Passa os dias numa taberna de má-

fama, onde se diverte com canções, insulta e provoca os adultos, raça de monstros no que

lhe diz respeito e até onde ele saiba, mas é que não tem outra companhia, pois “é um

menino que não sabe brincar, e que não consegue tomar parte das brincadeiras nem dos

garotos nem dos adultos”. Pin sonha, contudo, em encontrar “um amigo, um verdadeiro

amigo, que o compreenda e que ele possa compreender, e então, só para ele, Pin mostrará

o lugar das tocas das aranhas”:

É um atalho pedregoso que desce para a torrente entre duas paredes de terra e grama. Ali, em meio à grama, as aranhas fazem suas tocas, uns túneis forrados de cimento de grama seca; mas o mais maravilhoso é que as tocas têm uma portinha, também feita daquela massa seca de grama, uma portinha redonda que pode ser aberta e fechada (CALVINO, 2004, p. 17).

É este tipo de observação precisa, quase científica, que distancia Calvino da

qualidade sentimentalista que prevalecia na década de 1940. Pin junta-se aos

guerrilheiros nas colinas acima da costa da Ligúria. Desconfio que Calvino esteja

sonhando isso tudo, porque escreve feito um rato de biblioteca livresco e míope, usando

as lentes erradas: objetos absolutamente próximos são descritos de maneira vívida, mas

as distâncias intermediárias e mais afastadas da guerra e da paisagem tendem ao borrão

indistinto. O que, entretanto, não faz a menor diferença, pois os sonhos de um jovem

míope dando os primeiros passos na carreira literária podem muito bem ser mais reais ao

leitor do que as robustas e tumultuosas reportagens de alguns jornalistas-romancistas que,

a despeito de sua presença efetiva e ostensiva lá, vendo tudo, nada viram.

Embora Calvino consiga fazer-se evidente na pele da criança ultrajada e

ultrajante, insultada e insultuosa, ofendida e ofensiva, provocada e provocadora, os

homens e mulheres que cria são quase sempre sombrios. Mais tarde, ao longo da carreira

Calvino acabará eliminando tanto homens quanto mulheres, à medida que vai recriando o

cosmos. Enquanto isso, de início é um escritor ardente, intenso, expressivo, se não é aqui

e ali algo canhestro. Ao longo de dois terços da narrativa, ele desloca o ponto de vista de

Pin para um par de comissários; depois, mais uma breve mudança de foco narrativo,

agora para a mente de um traidor prestes a ser fuzilado. Por fim, a voz narrativa retoma o

ponto de vista de Pin, bem na hora em que o garoto encontra o tão aguardado amigo, um

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jovem guerrilheiro chamado Primo, que o leva pela mão não apenas literalmente, mas, ao

que se presume, pelo resto do tempo de que Pin ainda precisa para virar adulto. Os

últimos parágrafos de Calvino são sempre exultantes – aquele tipo de coda alegre e

agradável que somente um profundo pessimista acerca das coisas humanas poderia

escrever. Mas então, assim como um dos companheiros de Pin, o personagem Lobo

Vermelho, Calvino, o escritor, “pertence àquela geração que se formou olhando os álbuns

coloridos de aventuras; só que ele levou tudo a sério, e a vida até agora não o desmentiu”

(ibid, 2004, p. 43).

Em 1952, Calvino publicou O Visconde Partido ao Meio (2005), um dos três

romances curtos, depois reunidos sob o título Os Nossos Antepassados.25 São obras

engajadas, escritas num estilo levemente semelhante ao ciclo dos romances arturianos de

T. H. White.26 O narrador de O Visconde Partido ao Meio (2005) é, mais uma vez, um

menino órfão. Durante uma guerra entre a Áustria e a Turquia (1716), o tio do garoto, o

Visconde Medardo di Terralba, leva uma bala de canhão no peito e tem o corpo rachado

ao meio, de cima abaixo, em sentido longitudinal. Salvo pelos médicos ainda no campo

de batalha, o mutilado Visconde é mandado de volta para casa, com uma perna, um

braço, uma bochecha, um olho, meio nariz, meia boca, etc. No caminho, Calvino presta

(irônica?) homenagem a Malaparte:27 “A faixa de planície que atravessavam se achava de

fato cheia de carcaças eqüinas, algumas para cima, com os cascos voltados para o céu,

outras de bruços, com o focinho enfiado na terra”. – bela reprise dos cavalos mortos, A

pele (2005, p. 36). A história é contada de modo alegre, divertido, esperto, bem-

humorado. O meio Visconde é um completo mau-caráter, um vilão cruel que obtém

enorme prazer matando, incendiando, torturando. Chega a atear fogo ao próprio castelo,

25 A trilogia Os nossos antepassados (I nostri antenati, 1960) compreende os romances O visconde partido

ao meio (Il visconte dimezzato, 1952), O barão nas árvores (Il barone rampante, 1957) e O cavaleiro inexistente (1959). No Brasil, o volume Nossos Antepassados, contendo os três pequenos romances, foi publicado em 1997 pela Companhia das Letras.

26 Figura reclusa e excêntrica, T.H. White (1906-1964) tornou-se um dos autores mais cultuados da Literatura inglesa do século XX, graças a sua primorosa versão da saga do rei Arthur.

27 MALAPARTE, Curzio (1898–1957), pseudônimo de Kurt Erich Suckert, escritor italiano da primeira metade do século XX. O romance La Pelle (The Skin, na edição em inglês, e A Pele, na edição brasileira de 1971 pela Abril Cultural) é de 1949 e retrata as experiências de Malaparte durante a Segunda Guerra Mundial em Nápoles. O livro rendeu uma adaptação para o cinema, La Pelle (ou La Peau; Itália/ França, 1981), indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes (Direção de Liliana Cavani, com Marcello Mastroianni, Burt Lancaster e Claudia Cardinale no elenco).

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na esperança de reduzir a cinzas sua velha ama Sebastiana. Por fim, manda a criada para

uma colônia de leprosos. Tenta envenenar o sobrinho. E nunca cessa de talhar em duas

partes, a golpes de espada, todas as criaturas que encontra. Tem obsessão pela idéia da

metade, da divisão, da incompletude:

– Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira – disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo –, que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa (CALVINO, 2005, p. 41).

Noto que a sinopse da contracapa quer fazer crer que se trata de uma alegoria do

homem moderno – alienado e mutilado. Este romance tem profundas implicações e

nuances. Como paródia das parábolas cristãs a respeito do Bem e do Mal, a obra é, a um

só tempo, espirituosa, atual e agradável. Bem, pelo menos o livro é mesmo espirituoso,

atual e agradável. A bem da verdade, a história é menos cristã do que uma sátira das

idéias de Platão como um todo.

No devido tempo, eis que ressurge na cidade a outra metade do Visconde, esta

insuportavelmente bondosa e profundamente chata. A metade boa também renega a

inteireza e faz o elogio da não-inteireza, porque “isso é o bom de ser partido ao meio:

entender de cada pessoa e coisa no mundo a tristeza que cada um e cada uma sente pela

própria incompletude. Eu era inteiro e não entendia” (ibid., p. 52).

Uma bela e encantadora pastora de cabras chamada Pamela (homenagem a

Richardson) 28 torna-se o objeto do amor das duas metades laceradas do Visconde, mas

tem sérias reservas em relação a ambas. “Fazer boas ações juntos é a única maneira de

nos amarmos” (ibid., p. 54), entoa a metade bondosa. Ao que a irritadiça moça responde,

“Pena. Pensei que houvesse outras maneiras” (ibid., 2005, p. 53). Quando, por fim, as

duas metades são novamente unidas, o Visconde volta a ser um homem inteiro, mas o

resultado é a costumeira mistura humana, não muito interessante. Num final feliz, ele se

28 No romance Pamela (Pamela, ou a Virtude recompensada), publicado em 1740, Samuel Richardson (1689-1761), um dos precursores da literatura folhetinesca.

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casa com Pamela. Mas o menino-narrador não fica contente. “Em meio a tantos fervores

de integridade, eu me sentia cada vez mais triste e carente. Às vezes a gente se imagina

incompleto e é apenas jovem” (ibid., p. 54).

O visconde partido ao meio é recheado de imagens naturais derivadas de

observação cerrada e minuciosa, como “o subsolo estava tão abarrotado de formigas que

era só enfiar a mão em qualquer lugar e sair com ela toda preta e fervilhando”. Não sei o

que foi escrito primeiro, O visconde, de 1952, ou A formiga-argentina, de 1965, conto

incluído em Botteghe oscure, revista de Literatura publicada no mesmo ano, mas o fato é

que o pesadelo calviniano de um mundo infestado por formigas, tema mencionado apenas

de passagem no romance do visconde dilacerado, vem a ser o mote principal do conto.

Desconfio que agora devo repisar aquela expressão quase sempre tão castigada e mal

empregada: “obra-prima”. Ou, usando outros termos, se A formiga-argentina (2001) não

é uma obra-prima da prosa do século XX, não sei o que é, pois não consigo pensar em

nada melhor. Certamente é tão ameaçador e estranho como qualquer coisa escrita por

Kafka. E é também terrivelmente engraçado. Em cerca de quarenta páginas, Calvino nos

apresenta “a condição humana”, segundo anotariam, exagerando, todos os

escrevinhadores de sinopses, resumos, orelhas e resenhas. Ou seja, a condição humana

atual. Ou o dilema do homem moderno. Ou o meio ambiente corrompido. Ou a vingança

da natureza. Ou uma alegoria da graça divina. Mas, no fim das contas, a história é o que

é, nada mais.

Essa história de Calvino é precisa, leve, simplesmente nos conta o que acontece:

“Nós não sabíamos dessa coisa das formigas quando viemos nos estabelecer aqui”. Nada

há de absurdo em “aqui” e “nós”. Aqui é um lugar infestado de formigas; nós, a família

nuclear: pai, mãe, filho. Sem nomes. O resto da história narra os recursos e estratégias

utilizados pelos vários moradores do vale para enfrentar as formigas. Para esse mal das

formigas, metodicamente, Calvino descreve as várias reações humanas diante da

Condição. Há o cientista cristão que ignora toda e qualquer evidência; há a aceitação

maniqueísta do Mal; há a inabalável crença darwiniana de que a superioridade genética

vai prevalecer. Mas as formigas revelam-se figuras inquietantes e indestrutíveis, e a

história termina com a fuga da família para o litoral, onde não há formigas e onde

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A água estava calma, quase só com uma leve e contínua troca de cores, preto e azul, cada vez mais escuros conforme aumentava a distância. Eu pensava nas vastidões de água como aquela, nos infinitos grãozinhos de areia fina lá no fundo do mar, onde as correntes depositam cascas brancas de conchas polidas pelas ondas (CALVINO, 2001, p. 77).

Não sei ao certo o que significa este final. E também não vejo razão para que

tenha que significar alguma coisa. É estabelecido um contraste entre o vale fervilhante de

formigas e a fresca serenidade dos minerais e conchas escondidos sob as águas, aquele

outro ar que não respiramos mais desde que nossos antepassados escolheram viver na

superfície da terra.

Em 1956 Calvino editou um volume de Fábulas italianas (2004). Os críticos

locais decidiriam que ele era um verdadeiro herdeiro dos Grimm. É certo que o mundo

encantado e fatal dos contos de fadas atrai Calvino, que volta ao gênero com O barão nas

árvores 29. Assim como nas duas outras partes da trilogia, a história é narrada na primeira

pessoa, no caso pelo irmão do barão hipônimo. O ano é 1767. O lugar, a Ligúria. O barão

do título é Cosimo [Cosme] Piovasco di Rondó, que, depois de uma discussão à mesa do

jantar, no dia 15 de junho, decide viver nas árvores. A família e os amigos reagem de

maneira diversa à atitude do jovem barão. Mas Cosme está feliz. Mais tarde entra na

política, trava relações como o próprio Napoleão em pessoa; torna-se uma lenda.

No ano de 1959, Calvino troca de estilo. O cavaleiro inexistente (1998) é a última

parte da trilogia Os nossos antepassados, embora cronologicamente venha em primeiro –

na era carolíngia. Mais uma vez há uma guerra em curso. O leitor só vem a conhecer o

narrador lá pela página 36: irmã Teodora, religiosa da ordem de São Columbino,

incumbida de escrever a história como penitência, “pela saúde da alma”, como um modo

de ganhar a salvação eterna. Desafortunadamente, a trama dá muito trabalho para a freira;

nem tudo na história está claro para ela, porque

Nós, freiras, temos poucas ocasiões de conversar com soldados [...] vocês vão me desculpar: somos moças do interior, ainda que nobres, tendo vivido sempre em retiro, em castelos perdidos e depois em conventos; excetuando-se as funções religiosas, tríduos, novenas, trabalhos de lavoura, debulha de cereais, vindimas, açoitamento de servos, incestos, incêndios, enforcamentos, invasões de exércitos,

29 Il barone rampante, Turim, Einaudi, 1957. No Brasil, O barão nas árvores, tradução de Nilson Moulin,

São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

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saque, estupros, pestilências, não vimos nada. O que pode saber do mundo uma pobre freira? (CALVINO, 1998, p. 37).

A irmã Teodora faz o melhor que pode para narrar a história de Agilulfo [Emo

Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia

Citeriore e Fez], cavaleiro que não existe. O que existe é uma armadura toda branca,

“bem conservada, sem um risco, bem-acabada em todas as juntas, encimada no elmo por

um penacho” (ibid., p. 45), de onde emerge a voz metálica de Agilulfo, cavaleiro

totalmente devotado à santa causa e ao serviço do imperador Carlos Magno. Uma vez que

não existe, Agilulfo não tem fraquezas nem apetites; é o cavaleiro perfeito, um modelo de

soldado, e antipático a todos. Para Agilulfo, “o corpo das pessoas que tinham um corpo

de verdade dava-lhe um mal-estar semelhante à inveja, mas também uma sensação que

era de orgulho, de desdenhosa superioridade” (ibid., p. 49).

Para vingar a morte do pai, um jovem chamado Rambaldo. Agilulfo dá para o

novato conselhos insípidos. Sucedem-se batalhas. A narradora faz observações genéricas:

“E o que é a guerra além desse passar de mão em mão coisas cada vez mais amassadas?”

(ibid., p. 100). As tropas deparam com um homem chamado Gurdulu, que se confunde

com as coisas do mundo exterior. Quando toma sopa, torna-se a sopa, pensa que ele

próprio é a sopa a ser tomada.

Aqui Calvino anuncia temas que serão mais bem desenvolvidos em obras

posteriores: a confusão entre “eu” e “coisa” e entre “eu” e “você”; a arbitrariedade do

nome e da nomeação das coisas, da categorização e da exclusão, particularmente porque

“ainda era confuso o estado das coisas do mundo, no tempo remoto em que esta história

se passa. Não era raro defrontar-se com nomes, pensamentos, formas e instituições a que

não correspondia nada de existente” (ibid., p. 102). Nesse sentido, emblemático é o caso

do bizarro personagem Gurdulu:

– Tragam-me aqui aquele Gurgur... Como se chama? – perguntou o rei; – Conforme as aldeias que atravessa – disse o sábio hortelão – e os exércitos cristãos ou infiéis aos quase se junta, chamam-no de Gurdur ou Gudi-Ussuf ou Bem-Va-Ussuf ou Bem-Stanbul ou Pestanzul ou Bertinzoul ou Martimbon ou Omobon ou Omobestia ou então de Monstrengo do Valão ou Gian Paciasso ou Pier Paciugo. Pode acontecer que lhe dêem um nome totalmente diferente dos outros: notei ainda que, por toda a parte, seus nomes mudam de uma estação para

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outra. Dir-se-ia que os nomes deslizam sem jamais se fixar. De qualquer modo, ele não liga nada para o jeito como o chamam. Chamem-no e ele pensa que estão falando com uma cabra; digam ‘queijo’ ou ‘torrente’ e ele responde: ‘Estou aqui’. (CALVINO, 1998, p. 109)

Há na trama um triângulo amoroso. Rambaldo cai de amores por um colega

cavaleiro que se revela uma formosa jovem, chamada Bradamante. Infelizmente, ela está

apaixonada por Agilulfo, o cavaleiro que não existe. A essa altura a história fica

complicada demais para a irmã Teodora, que lança ao papel a mais triste das notas que

um escritor profissional poderia escrever:

Começa-se a escrever com gana. Porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre nem uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. (ibid., p. 65)

São várias as reflexões da freira sobre as incertezas do fazer romanesco, como por

exemplo:

Eu, que escrevo este livro recorrendo a documentos quase ilegíveis de uma crônica antiga, só agora me dou conta de que preenchi páginas e páginas e ainda me encontro no início da minha história [...] Mas este fio, em vez de fluir veloz entre meus dedos, eis que afrouxa, que se interrompe, e, se penso, em quanto tempo ainda tenho de pôr no papel os itinerários e obstáculos e perseguições e enganos e duelos e torneios, sinto que me perco. (ibid., p. 72)

Por fim, a narradora consegue levar a cabo a dura tarefa de terminar a história, e

apara as arestas, e fecha as lacunas. Chegam ao fim as viagens aventurosas dos

cavaleiros. Agilulfo entrega sua armadura, “dissolve-se como uma gota no mar”, e deixa

de fato de existir; Rambaldo é autorizado a ocupar a vestidura. Bradamante desapareceu,

mas, com um elegante coup de theatre, a irmã Teodora revela aos leitores e ao próprio

livro que a narradora da história e a guerreira Bradamante são a mesma pessoa. Agora ela

precipita a narração de modo a terminar logo e tomar nos braços a armadura branca, que,

ela sabe, passou a conter o jovem e apaixonado Rambaldo, seu verdadeiro amado, por

quem queima de desejo.

Completada a trilogia, Calvino dá uma virada e publica, em 1963, O dia de um

escrutinador (2002), a mais realista de suas histórias, e a mais ostensiva e abertamente

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política. O protagonista tem nome, Amerigo Ormea, cidadão responsável, eleitor

consciente, participante do poder democrático, filiado ao Partido Comunista e

escrutinador em Turim, durante as eleições nacionais de 1953. Via de regra, nesta obra, a

visão de Calvino é apresentada em termos fantásticos, mas aqui ele se torna inusualmente

e surpreendentemente concreto. Uma vez que elegeu iluminar uma época e um lugar reais

(a Itália entre 1945 e a eleição de 1953), o autor tem condições de falar tudo, nos

mínimos detalhes:

Na Itália daqueles anos o Partido Comunista assumira, entre as tantas outras tarefas, também a de um ideal, jamais existido, Partido Liberal. E assim o peito de um único comunista podia abrigar duas pessoas ao mesmo tempo: um revolucionário intransigente e um liberal olímpico (ibid., p. 27).

O pessimismo de Amerigo deriva do óbvio fato de que estas duas instâncias não

dão muito certo, não combinam muito bem. A mais realista e específica das obras de

Calvino, O dia de um escrutinador, confirmou-se (até agora) como a última das

narrativas “secas” do autor.

Em 1964, Calvino publica As cosmicômicas (1992): doze histórias breves de

humor cósmico que tratam, sob o manto do fantástico, da criação do universo, do homem

e da sociedade. Assim como o jovem amigo de Pin que achava que a vida de fato se

assemelha aos álbuns coloridos de aventuras, aqui Calvino organiza sua complexa prosa

de modo a compor em palavras um superálbum colorido, narrado por Qfwfq, herói-sigla

cuja evolução – da vida no interior do primeiro átomo à condição de molusco no fundo

do mar, o anfíbio em escalada social, a último dinossauro vivo a colhedor de leite lunar –

é descrita e narrada em doze episódios estranhos e singulares.

Então Calvino mudou-se para Paris, onde encontrou sua própria voz (ou suas

próprias vozes) e, a seu modo, foi infectado pelos franceses. Desde Os Nossos

Antepassados e das três histórias que compõem O dia de um escrutinador, Calvino foi

influenciado, de maneira diversa, por Roland Barthes e os semiólogos, por Jorge Luis

Borges e pelo agora velho nouveau roman.

Em As cosmicômicas tais influências aparecem, em geral, de modo benigno, visto

que Calvino é um artista por demais formidável e original para se deixar seduzir ou

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desviar por teóricos ou se diluir e se perder por seguir o exemplo de outro criador.

Contudo, a história Um sinal no espaço chega, perigosamente, quase a ser uma

homenagem reverente demais aos ideais da semiologia. Neste romance, Calvino torna

possível ao leitor habitar um molusco, um dinossauro. Pela primeira vez, permite ao leitor

ver a luz dando fim a um universo mergulhado na treva. Uma vez que se trata de um dom

ímpar, penso ser absolutamente alarmante a “literariedade” de T com zero, de 1967. É

particularmente interessante a história central de T com zero (2000). Colocando uma frase

seguida de outra, o engenhoso Calvino descreve um álbum colorido de aventuras, e o

efeito é no mínimo encantador, ainda que a peripécia de Qfwfq entre os pássaros não seja

de fato um álbum colorido, e sim a descrição de um álbum colorido em palavras. A

técnica do narrador é a mesma de O cavaleiro inexistente. Primeiro esboça a cena para

depois apagá-la, assim como fazia a irmã Teodora, que ia eliminando oceanos e florestas

à medida que impelia os amantes rumo ao inevitável encontro amoroso. Como qualquer

outro escritor, Calvino também chega a ponto de dizer que aquilo que se sente sobre a

criação talvez não possa ser expresso por palavras ou sequer esboçado em desenhos e

imagens.

Calvino encerra o livro com sua própria versão de O Conde de Monte Cristo. O

problema que propõe para si mesmo é como escapar do Castelo d’If. O abade Faria faz

planos e escava túneis, mas erra continuamente o caminho e acaba por encontrar-se

sempre em locais mais profundos da fortaleza sem fim e sem saída. Por outro lado,

Edmond Dantès medita acerca da natureza da fortaleza, bem como sobre os vários

esboços do romance que Dumas está escrevendo. Em algumas versões, Dantès vai

conseguir escapar e encontrar o tesouro e vingar-se dos inimigos. Em outros, sua sorte é

diferente. O narrador contempla as possibilidades de fuga considerando a maneira com

que a fortaleza (ou a obra de arte) é construída. “Para planejar um livro – ou uma fuga –,

a primeira coisa que se deve saber é o que excluir” (2000, p. 78). Esta história em

particular é Borges em estado puro; e, levando-se em conta a unidade essencial da

multiplicidade de todas as coisas, não se pode descartar a idéia de que a versão de

Calvino para O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas seja de fato a mais fina

façanha de Jorge Luis Borges, segundo imaginada por Italo Calvino.

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O sétimo e mais recente romance (ou tratado de filosofia, ou meditação ou poema)

de Calvino, escrito em 1972, As cidades invisíveis (1998), talvez seja sua mais bela obra.

Sentados num jardim de magnólias estão o já envelhecido Kublai Khan e o jovem Marco

Polo – imperador tártaro e viajante veneziano. O ambiente é de ocaso, de declínio.

Próspero ergue pela última vez sua varinha mágica: o grande Khan sente que se avizinha

o fim de seu império, de duas cidades, de si próprio.

Marco Polo, entretanto, distrai o imperador com relatos e descrições das cidades

que viu e visitou em suas andanças pelo vasto império do conquistador mongol. Kublai

Khan ouve atentamente, absorto, e medita, busca estabelecer um padrão, um paradigma

para o conjunto de cidades apresentadas pelo aventureiro, que acabam formando uma

geografia fantástica: as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os

símbolos, as cidades delgadas [ou sutis], as cidades e as trocas, as cidades e os olhos, as

cidades e os nomes, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas, as

cidades ocultas. O imperador logo conclui que todos esses lugares fantásticos são na

verdade um mesmo e único lugar.

Marco Polo concorda: “– As margens da memória, uma vez fixadas com palavras,

cancelam-se – disse Polo (E o mesmo disse Borges, tantas vezes!). – Pode ser que eu

tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que,

falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco” (CALVINO, 1998, p. 114).

Mais uma vez o tema da multiplicidade e da completude, “quando toda cidade”, como

Calvino escreveu ao final de O dia de um escrutinador, “é a Cidade”.

Descrever o conteúdo de um livro é a mais árdua das tarefas; e diante da

maravilhosa criação que é As cidades invisíveis, é também completamente tentador

dedicar-lhe um capítulo exclusivo, como o faremos no que segue. Anoto, porém, que algo

de novo e sábio passou a fazer parte do “cânone” de Calvino. Com esta obra o artista

parece ter feito as pazes e chegado a termos com a tensão entre a idéia humana acerca dos

muitos e do uno, do coletivo e do individual. E agora poderia, se quisesse, parar de

escrever.

Ainda assim, Calvino se vê obrigado a seguir escrevendo, assim como seu

protagonista Marco Polo é impelido a continuar viajando, porque não pode parar. Deve

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prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez

fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não

realizados são apenas ramos do passado:

Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: Você viaja para reencontrar o seu futuro? E a resposta de Marco: – Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá (1998, p. 58).

Adiante (e também como veremos no capítulo três deste trabalho), depois de mais

descrições de suas cidades, Kublai Khan pensa que “o império talvez não passe de um

zodíaco de fantasmas da mente”. Por fim, o Khan reconhece que todas as cidades

caminham na direção dos círculos concêntricos do Inferno de Dante.

Disse: - É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito. E Polo: - O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui. O inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos (1998, p. 60).

Italo Calvino (1923-1985) é um dos escritores italianos mais importantes do

século XX. Nos anos 60 participou ativamente nas discussões sobre os destinos da

Literatura, sobre as suas relações com a ciência fazendo parte do grupo que fazia

experiências matemático-literárias, Oulipo (Ouvroir de la littérature potencielle

(Ampliando o Potencial da Literatura), opondo-se a Rolland Barthes e aos escritores

partidários da escrita automática, reunidos em redor da revista Tel Quel.30 Obviamente foi

com a influência destas discussões que Calvino escreveu, como já citamos, nos anos 70,

os seus últimos romances, em vida: As cidades invisíveis (1972), O castelo dos destinos

cruzados (1973) e Se numa noite de inverno um viajante numa noite (1979), os quais,

dentro da sua obra, melhor se descrevem e se definem em termos de hipertexto literário,

Manifestando interesse pela ciência contemporânea, sua obra move-se fora da simples

30 Considerada de vanguarda para a época, a revista parisiense Tel quel foi fundada em 1960 por Philippe

Soller e Jean-Edern Hallier (Editora de Seuil). Seu conteúdo era significativamente influenciado pelo pensamento de Nietzsche, Lacan, Barthes, Julia Kristeva e Jacques Derrida. A sua editoração refletia sobre o que acontecia de mais atual e revolucionário na Literatura. Dentre os seus autores e colaboradores se destacavam, além dos já citados, Georges Bataille, Maurice Blanchot, Michel Foucault, Tzetan Todorov, Umberto Eco, Gérard Genette, Jean-Luc Godard. Tel quel teve a sua última publicação em 1982.

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representação. Apresentando temas com uma incomum habilidade para a possibilidade e

o acaso, tem como ponto de partida o trabalho com a linguagem. Sempre numa dimensão

crítica, filtrada numa imensa ironia, é o homem apresentado por Calvino, seja ele o

personagem tragicômico como Medardo di Terralba; o alienado Agilulfo; o ‘telescópico’

senhor Palomar; o personagem einsteiniano QFFWFQ (sic); ou ainda o casal

protagonista o Leitor e a Leitora. Em 1983, dois anos antes da sua morte por hemorragia

cerebral, a editora milanesa Mondadori publica, em dois volumes, o livro Racconti

fantastici dell’ottocento 31, coletânea de autores e textos do século XX organizada por

Calvino. Suas obras Por que ler os clássicos (1991-1998); Sob o sol-jaguar (1992), Seis

propostas para o próximo milênio (1988-1998) foram publicadas postumamente.

Ao longo do último quarto de século, Italo Calvino esteve muito à frente de

muitos dos seus escritores contemporâneos. Enquanto alguns deles continuam procurando

o lugar em que as aranhas fazem os ninhos, Calvino não apenas encontrou aquele lugar

especial como também aprendeu a construir fantásticas teias de prosa nas quais tudo

gruda. De fato, lendo e analisando a obra de Calvino, tem-se a desconcertante sensação

de que também se escreve o que ele escreveu; assim, sua arte prova que escritor e leitor

tornam-se apenas um, ou Um.

31 No Brasil, Contos Fantásticos do Século XX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. Vários

tradutores, São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

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Fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras.

Pe. Antonio Vieira

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Capítulo III

DA SIMETRIA CIRCULAR EM AS CIDADES

O que nos sugere um título? Sempre algo ainda mais distante do que efetivamente

é ou do que poderia ser. O que dizer sobre o belo livro As cidades invisíveis? (1998).

Pensei em descrições de ambiências humanas, em relações, em gentes. Pensei nas coisas

que não sendo palpáveis, não sendo visíveis, tornam uma cidade no que ela é. Pensei

ainda nos cheiros, nas variações de temperatura e umidade. Pensei em como poderia

descrever lugares, sem descrever o visível, mas descrevendo a imagem física. O cheiro da

maresia, ainda que longe do mar. A umidade que se cola à pele ao amanhecer. O canto

dos pássaros competindo com o ruído do trânsito. O calor refletido nas casas, ao

entardecer, no verão. O cheiro perfumado do chocolate bruto que sai de algumas casas,

quando passamos em alguma cidadezinha de uma zona rural cacaueira. Sensações

invisíveis? Podem ser, mas nem por isso caracterizam menos a cidade, uma cidade ou

alguma outra cidade distante que cada um traz dentro de si.

E Calvino o que tem a nos dizer sobre essas aparências? Ele nos diz que As

cidades invisíveis, no original, Le città invisibili, escrito em 1972, é estruturado como

uma coletânea de 55 minicontos matematicamente intitulados e enquadrados por

fragmentos de conversas entre Marco Polo e Kublai Khan. Síntese da História: No século

XVIII, após uma viagem que teria durado 30 meses, o mercador veneziano Marco Polo

chegou às portas do Extremo Oriente e conheceu a capital do imenso império de Kublai

Khan: Cambaluc, atual Pequim. Lá o jovem Marco permaneceu por 17 anos,

desempenhando importantes funções diplomáticas na corte do Grande Khan. Isso é o que

está registrado nos compêndios historiográficos. A história ficcional lhe serve de pretexto

trata dos relatórios que Polo faz ao imperador dos mongóis sobre as cidades que visita

nas suas viagens pelo grande império do Khan.

A estrutura narrativa contém nove capítulos, com exceção do primeiro e do nono

que trazem dez contos cada um, todos os demais capítulos se apresentam com um grupo

de cinco histórias, somando um total de cinqüenta e cinco contos consagrados às cidades

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que Marco Polo teria visitado (“teria visitado” na realidade interior do romance) sobre o

pedido de Kublai Khan. Cada capítulo é intermediado de diálogos pelo autor com

intervalos que variam entre alguns parágrafos de algumas páginas. Esses intervalos

reproduzem os diálogos entre Polo e Khan.

E estes diálogos são chaves para discussões literárias e filosóficas sobre o que é

narrado e o que é apreendido; sobre a cidade para seus habitantes e para o visitante; sobre

o tempo e as cidades; sobre imaginação e realidade; e muito mais. O desejo de Khan é

montar o império perfeito a partir dos relatos que ouve. Narrações curtas, poéticas,

carregadas de imaginação. São lugares imaginários, sempre com nome de mulher:

Pentesiléia, Cecília, Leônia, Diomira e muitos outros. O livro descreve as cidades

dividindo-as em vários tipos: as cidades e a memória, as cidades delgadas, as cidades e as

trocas, as cidades e os mortos, as cidades e o céu. Nessas descrições, aparecem os

diálogos entre o genovês e o mongol.

De fato, as grandes pérolas são as cidades. Calvino consegue criar descrições de

cidades fantásticas, que nos colocam sempre a pensar e a imaginar nossa relação com os

ambientes ao redor. Cidades que são espelhadas, metrópoles inconscientes de sua

história, povoados formados apenas por tubos hidráulicos. Em cada uma, uma sugestão.

Em cada uma, uma imagem. Em cada uma, uma poesia. Calvino consegue deixar claro

que, mesmo invisíveis, essas cidades coexistem na história, na memória e,

principalmente, na imaginação de cada um.

No diálogo que fecha o último capítulo (“As cidades ocultas”) tem-se uma

descrição das mais conhecidas cidades imaginárias de todos os tempos, denominadas

assim no Atlas de Kublai Khan: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana,

Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária, como também as cidades malditas e monstruosas:

Enoch, Babilônia, Butua, Yahoo, Brave New World. Dessa forma, esta obra além de não

ser linear, é também interativa, pois o leitor é convidado a prosseguir as viagens de

Marco, quer seja retornando àquelas que já tenha visitado, quer seja inventando as suas

próprias cidades ou preenchendo as lacunas deixadas pelo malicioso veneziano e/ou pelo

autor não menos malicioso.

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Malicioso por nos oferecer um livro que dobrada cada página se desdobra outra

leitura, aparecendo outro tema. Muitas cidades, muitos nomes. Utopia! A força da utopia

vem da imaginação dos insatisfeitos, da vontade de uma sociedade menos desigual, de

um bem-estar total. Mas será que com o fim das utopias (há quem acredite nisso com o

fim do Socialismo) acabaria a imaginação utópica? Eis aí mais uma boa questão para se

analisar As cidades.

Investigando este aspecto, o termo “utopia” vem daquela ilha inventada por

Thomas More, em 1516. Levando-se em conta que topos significa lugar, em grego, o

neologismo pode ser entendido como contração de oú com topos que pode significar

“nenhum lugar”. Também caberia a contração do grego eu com topos, igual a lugar feliz,

a utopia. Sobre esse paradoxo – lugar feliz é lugar algum –, muita gente já se debruçou, e

a utopia enquanto tal permanece inalcançável.

Naquela primeira ilha utópica, Thomas More situa seu modelo de “melhor

governo possível”, uma sociedade sem propriedade privada e com igualdade para todos

em relação ao trabalho produtivo. A constituição da ilha assegura a cada um a maior

quantidade de tempo e lazer possível para a liberdade e a cultura. Nada a ver com o

direito à preguiça, mas sim com o refinamento do espírito.

Existem utopias anteriores. A mais decantada é a de Platão (1996), na qual os

filósofos dirigiriam o Estado. Ele deu forma à vontade do homem de habitar uma

sociedade perfeita: igualdade entre os sexos, educação para todos, abolição da

propriedade privada, etc. Outros bordaram os contornos da sociedade ideal (ou

impossível?) como Francis Bacon (sociedade dirigida por sábios guiados por princípios

científicos) ou Tommaso Campanella (cidadãos dedicados ao conhecimento e à piedade).

Existem ainda as utopias dos iluministas, as dos socialistas ditos utópicos, as dos

anarquistas ou as dos messiânicos, na qual caberia até o nosso Antonio Conselheiro, de

Canudos. Na palavra cabem tratados como A república, de Platão, poemas como Vou-me

embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira e até movimentos românticos como as lides

estudantis de Maio de 1968, em Paris.

O dado notável da utopia é que ela remete ao melhor possível, um lugar

inexistente, outro lugar para lá de radical, fundamentado por uma crítica pensada a partir

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dos erros do presente. Sua força vem da imaginação dos insatisfeitos, da vontade de uma

vida menos desigual, de um bem-estar total. Se a palavra se banalizou, se o conceito se

deteriorou, se as utopias falharam porque eram utopias – projeto irrealizável, quimera,

fantasia –, então o mundo mostrou ter cabeças fortes ao menos na imaginação de um

mundo melhor, mesmo que constituído e construído por cidades (in)visíveis.

Como construir no ar é de graça, muitos escritores de nossa adolescência

comungam com grandes escritores. Pode-se saltar da “cidade perdida” de Atlântida

Pala32, a ilha utópica de Aldous Huxley,33 aos acidentes geográficos tetratomórficos de

Scylla e Caríbdis 34, descritos por Homero. Ou Lilliput, a cidade miniatura de J. Swift, e a

gruta de Montesinos visitada por Dom Quixote. Ou ainda o Mar de Liddenbrock,

minuciosamente cartografado no centro da Terra por Júlio Verne. É um prazer crucial

encontrar a descrição da absurda Camelot inventada por Mark Twain, da verdadeira Ilha

do Tesouro, a original, de Robert Louis Stevenson; e a Ilha de Próspero de Shakespeare,

ao lado do castelo do “Príncipe Próspero” de Edgar Allan Poe (A máscara da morte

vermelha).

Continentes imaginados (há de haver muitos outros), aventuras, regiões

desbraváveis: A ilha do tesouro de Stevenson, O centro da terra, de Júlio Verne, O

arquipélago de Mardi, de Herman Melville, As minas do rei Salomão, de Ridder

Haggard. Cidades – metáfora: recurso de moralistas e satiristas. Carregam nos defeitos

que enxergam ou nas virtudes com que sonham, criando ilustrações da decadência ou da

vontade de perfeição humana: a Utopia de T. More, a Lilliput de Jonathan Swift, o País

dos Cegos de H.G. Wells, a Camelot de M. Twain, a Pala de Aldous Huxley, a colônia

penal de Kafka. Cidades-esquisitices. E claro, além do frêmito de reconhecimento

provocado por cidades que já “visitamos”, pode-se contar com a surpresa das esquisitices

32 A primeira fonte de informação que chegou ao mundo moderno sobre esta ilha é, sem dúvida, os escritos

de Platão. Foi ele quem primeiro falou da existência de uma ilha então submersa à qual foi dado o nome de Atlântida. Platão tomou conhecimento da Atlântida através de Sólon, que, por sua vez lhe foi referido por pelos sacerdotes egípcios, num dos templos da cidade egípcia de Saís. (Para informações históricas de Atlântida ver o site < http://users.hotlink.com.br/egito/atl.htm > .

33 Escritor inglês (1894-1963), autor dos romances Admiravel mundo novo (1932) e A ilha (1962). 34 Scylla e Caríbdis referem-se ao nome de duas ilhas gregas presentes na mitologia da Odisséia de

Homero. Também é o título do episódio 9 do romance Ulysses (1922) de James Joyce (Dublin, 1882-1941).

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como sugere a cidade de “Virgínia” (Virgidiniarum)! Isso mesmo: uma utopia feminista

de 1597, assinada por Joseph Hall (1574-1656).

Mas voltemos às cidades-livro. Os escritores contemporâneos preferem paisagens

transparentes, cidades que não disfarçam o fato de serem feitas de papel e tinta. O mapa

como metáfora do conhecimento – as ruínas circulares e a biblioteca de Babel de Borges,

as cidades de Cortázar, de Umberto Eco, por exemplo. E Calvino, neste com essas suas

cidades reúne todas aquelas paisagens vaporosas que descansam em algum lugar no

fundo dos livros, de utopias e pesadelos. Ele inventou regras restritas para seu livro: nada

de infernos, nada de paraísos, nem de lugares no futuro, mas muitas viagens.

E como é de se esperar, "quem viaja tem muito que contar". Em seu famoso texto

sobre o desaparecimento da arte de narrar, Walter Benjamin (1994) remete a essa máxima

popular para, então, apresentar o modelo arquétipo do narrador que viaja. Na verdade, o

narrador, para Benjamin, é aquele que possui experiências a transmitir, seja a figura

sedentária do camponês que nasceu e sempre viveu em sua terra e, como ninguém,

conhece as histórias e as tradições de sua cultura; seja o marinheiro comerciante,

conhecedor de outras terras. Todavia, é o retorno do viajante para casa ou a sua saída de

trânsito que permite a transmissão de experiências, uma vez que somente a partir da

interpenetração dessas famílias de narradores a arte de narrar se apresenta em plenitude.

O narrador que é "marinheiro comerciante" tem como famoso representante o

mercador Marco Polo, que abandona sua cidade natal, Veneza, em companhia do tio e do

pai, com destino ao Oriente. Na corte de Kublai Khan, torna-se o preferido do imperador,

por sua habilidade em descrever as maravilhas que encontra ao longo de seus itinerários.

Assim, surgem As viagens de Marco Polo (1956-1995), livro de relato das viagens

empreendidas pelo mercador veneziano. Esse livro, entretanto, é o registro escrito do

relato oral de Marco Polo, uma vez que este o ditou para um companheiro de cela.

A relação entre o narrador-viajante arquetípico, Marco Polo, e aqueles que

relatam a viagem num contexto pós-moderno merece reflexão. A questão alcança maior

complexidade com a retomada do mercador veneziano como narrador em As cidades

invisíveis, de Calvino. Isto porque os relatos que apresenta para Kublai Khan, as belezas

das cidades de seu reino, são tecidos pelo imaginário de Marco Polo e do seu ouvinte, ou

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seja, o próprio imperador. Calvino retoma a figura de Marco Polo para estruturar um

novo relato de viagens. Desta forma, em sua relação intertextual, ou mesmo de

meta-relato, o diálogo entre o narrador e seu ouvinte, no caso, respectivamente, Marco

Polo e Kublai Khan, constrói a narrativa pelo sistema de combinações em que se opera o

imaginário. O relato de viagem deixa de ser então apenas um processo de transmissão de

experiências para ser também a construção destas por meio da interação entre narrador e

ouvinte. A viagem se confunde, então, com o próprio discurso.

A viagem-discurso do Marco Polo de Calvino o situa como outro em relação ao

Marco Polo seu paradigma. Daí perguntar-se o porquê da retomada, num romance

contemporâneo como As cidades invisíveis, da moldura de uma narrativa clássica. E por

que a figura do narrador-viajante? Ulla Musarra (1990), ao discutir as relações entre as

convenções do romance e a multiplicação das instâncias narrativas, constata que:

Em muitos textos pós-modernos, a multiplicação das instâncias narrativas, que será o nosso tópico principal, é combinada com a exploração de algumas das mais celebradas convenções da tradição do romance (inicialmente, de parte do século dezoito). (MUSSARA, p. 215).

Musarra menciona as convenções, por exemplo, das memórias e da frame-story

(histórias dentro de histórias, como a já citada fábula das “Mil e uma noites”). No

entanto, a multiplicação das instâncias narrativas abala as fronteiras convencionais da

narrativa, representando um recurso importante na produção literária pós-moderna: "No

romance pós-moderno, as fronteiras entre os vários níveis narrativos, entre frame e

história narrada e entre a história e a história dentro da história são freqüentemente

obliteradas" (ibid., p. 216).

Se, em As viagens de Marco Polo (2006), escrito em 1956, há uma preocupação

em legitimar como autêntica, verídica, a narrativa; em As cidades invisíveis (1998), os

famosos personagens Marco Polo e Kublai Khan são "retirados" desta conexão com o

real para que se possam construir as cidades invisíveis. A relação entre o narrado como

real e como ficcional não é dicotomizada, mas apresentada em sua complexidade. Viajar,

portanto, no passado, na tradição, é transformá-lo, salvando-o do esquecimento,

tornando-o produtivo: ramos viçosos.

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Em As cidades invisíveis, esse procedimento equivale a viajar pelo território da

Literatura, por itinerários já esgotados, em que todas as histórias foram contadas até o

limite da saturação e só é possível inventariar e revisitar (parece pairar por aí o espírito de

Borges). Tais itinerários, portanto, são inscritos numa perspectiva intertextual que os

legitima e faz de sua leitura uma viagem na Literatura: itinerários que se transformam

quando os atravessamos, quando estabelecemos as atividades de conexões, de uma cidade

escrita a outra cidade escrita, onde nada se passa no real, mas em espaços fictícios.

A viagem deste Marco Polo outro se assume viagem literária que ocupa espaços

ficcionais construídos na dinâmica da leitura. O Grande Khan queria a "verdade", no

entanto, Marco oferece-lhe, em suas impressões de viagens, aparências ilusórias? A

memória entra neste jogo; pois, ainda que não se trate de uma narrativa de "memórias", o

relato de Marco Polo edifica-se a partir da reminiscência, como não deixa escapar o

atento Kublai Khan que afirma: "Portanto, na realidade a sua é uma viagem através da

memória!" (CALVINO, 1998, p. 93).

Em As cidades invisíveis, apesar de a memória ser importante no jogo narrativo,

há um aspecto em sua construção que funciona como o fio condutor que se enrosca na

reminiscência da viagem: o discurso. Este é, simultaneamente, construtor e construção,

caracterizando o recurso metaficcional empreendido por certas narrativas pós-modernas:

"O artifício metaficcional do escritor como personagem principal e o processo de

escritura em si como tema central e ação são também proeminentes nos trabalhos de

Federman, Irving, Sorrentino, Boon e Calvino". (MUSARRA, 1990, p. 223).

Sem dúvida, As cidades invisíveis resultam de um jogo combinatório, numa

matemática permutacional operada pelo imaginário. A opção por um modelo narrativo

tradicional apresenta relação intrínseca com esse jogo de combinações. Afinal as peças já

determinadas se apresentam numa situação relacional nova, o que lhes confere outro

significado. As próprias cidades descritas no romance, as suas distribuições em grupos e

a forma como são apresentadas revelam a combinação de elementos como método de

construção. Todavia não é aleatória a combinação, um fio discursivo orienta o jogo.

Desta forma, o movimento permutacional dirigido por um "fio condutor" leva a

questionar-se, então, a Literatura como representação para entendê-la como construção

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hipertextual. Não é por acaso que o romance então se apresenta como uma rede de

referências cruzadas intra e intertextuais. O romance que remete à aventura da viagem se

concretiza como aventura da linguagem, como assinala Musarra:

A linguagem é recrutada para a empresa de construir um outro império, o textual, em que tudo está sob o signo da duplicidade que fomenta os relatórios do veneziano. Somente através desses relatórios, o Khan, o primeiro leitor-ouvinte a que o leitor outro, virtual ou concreto, pode colar-se, conseguia discernir [...] (1990, p. 42). (Grifo nosso)

Assim, enquanto aventura da linguagem, a situação narrativa arquetípica é

redimensionada no romance de Calvino. E Musarra confirma: "Nesse contexto que

assiste ao declínio de uma tradição e de uma memória comunitária da degradação é que

Calvino resgata aquele tipo de narrador, na tentativa de reconstruir um universo incerto, a

partir de uma tradição esfacelada?" (ibid., p. 43). Logo, Marco Polo de As cidades

invisíveis é ao mesmo tempo o Marco Polo de As viagens de Marco Polo, enquanto

matriz, mas sobre o qual se delineia outro, uma vez discurso.

Por outro lado, o narrador-viajante, com bagagem e sem destino, não apresenta

uma narrativa linear marcada por um sentido ou pelo relato das experiências de quem

viaja. As situações surgem e desaparecem como episódicas, fragmentárias, formando

uma colcha de retalhos unidos por uma tênue ligação que não chega a formar uma

unidade sob a forma de roteiro. O que este narrador registra são fragmentos que o olhar-

câmera capta, apresentando-se, portanto, como observador isolado, distanciado. O mundo

torna-se espetáculo para esse observador. O olhar perde-se naquilo que Italo Moriconi

(1987) chama de “atenção distraída” e que interfere decisivamente na sua forma de

relacionar-se com o mundo, daí "um estado de travelling permanente" (ibid., p. 26). Para

este viajante em trânsito, ser Marco Polo é circular pelos espaços da memória,

"instantaneizar-se" num presente qualquer: "O narrar deixa de se apresentar como

resultado de uma experiência acumulada. A própria noção de experiência acumulada

perde relevância ética e cognitiva num mundo em que estar vivendo é mais valorizado

que ter vivido" (ibid., p. 27). Conjugados, vida e viagem revelam um universo em que

nenhuma palavra sela o momento final; nenhuma viagem faz do narrador o viajante que

tem muito, mas não tudo o que contar.

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A respeito disso, é possível afirmar que sua viagem é com mapas imaginários de

lugares concretos. É um ator que desempenha papéis fugazes condicionados à exigência

da situação. Sua identidade nada fingida permite a relação com o espaço ou com o outro,

mas o contato é breve, necessário, e não propicia o estabelecimento de vínculos. Esse

personagem com nome e passado crê na possibilidade de existência de uma identidade

que se relaciona ao lugar, pois os espaços para ele se oferecem como signos e marcas

passageiras.

Temos, assim, de um lado Marco Polo, referência histórica, de As viagens de

Marco Polo, do outro, o Marco Polo de As cidades invisíveis. Ambos trazem à tona uma

questão: o episódico, o fragmentário, construído pelo olhar de um narrador que vive em

trânsito, sem destino, pode constituir um relato de viagem?

O personagem, que viaja pela necessidade do trânsito permanente, não tem

experiências, descrições, observações a registrar, pois a sua viagem é, em si, o próprio

trânsito que o liberta, brevemente, da des-identidade que é ao mesmo tempo sua e dos

espaços por que passa. Desprovido de um ponto de chegada que permitiria a volta e a

fixação necessárias para a elaboração de um relato, esse narrador permanece no trânsito

de uma viagem perenizada que implica a negativa do próprio relato de viagem. A

narrativa de Marco Polo, o de As cidades, é, portanto, a narrativa imaginária de um relato

de viagem. A sua narrativa se configura não como relato de viagem de acontecimentos

em que o narrador exponha suas experiências, que poderiam ser de grande utilidade para

o seu ouvinte, Kublai Khan, mas com a apresentação mesma de riqueza de imaginação.

Narra a possibilidade de narrar uma história de aventuras e maravilhas capazes de

fascinar o seu ouvinte.

Essa estrutura se torna complexa quando a brevidade dos contos ganha uma

descrição detalhada de meia página a uma página e meia apresentando a particularidade

da cidade ou de seus habitantes. Assim cada conto constitui praticamente uma lexia,

respeitando o princípio de equilíbrio: quanto mais curto o conto é, mas ele carrega

alusões. Além disso, outro fator que chama a atenção do leitor atento em As cidades

invisíveis é a ausência total do vetor do tempo. A ação não avança e nem recua. Trata-se,

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em termos, de Jean Genet 35, não da ausência de movimento do discurso, mas da ausência

do movimento da própria "história". A ação não se move: Marco e Khan estão sentados

no jardim; Marco relata histórias não ligadas umas as outras. Contrariamente às Mil e

uma noites36 ou Decamerão,37 de Bocaccio, não há nenhuma ação nessas histórias a não

ser elas mesmas. Em As cidades a flecha do tempo encontra-se metida na areia das

pequenas histórias, onde existe uma coesão interna.

Esta estrutura não contínua e estática do livro faz com que seja praticamente

impossível reter a ordem das histórias. O leitor é convidado a encontrar e ativar ele

mesmo as relações internas. Por exemplo, é grande a tentação de classificar as pequenas

narrativas em grupos temáticos: cinco "Cidades e memória"; cinco "Cidades e desejo"; e

assim até os cinco últimos tipos encontrados em "Cidades ocultas". O que existe de

comum e de diferente? Qual é o princípio que reúne as histórias nos capítulos? É a

descrição de uma mesma cidade com pontos de vista diferentes? Qual é o princípio que

governa a escolha dos nomes de cidades? Às vezes de origem pseudo-oriental (Zaíra,

Tâmara), às vezes latinizadas (Otávia, Leônia), outras vezes gregas (Fedora, Phylide), ou

ainda de origem mitológica (Leandra, Berenice), às vezes com recorrência direta à

comédia da arte (Clarice, Esmeraldina), ou quem sabe travestidas (Raíssa: Rassia,

Rússia?), Zirme (Birme?).

A presença destas relações internas é ativada pelo leitor tornando-o um co-autor

da história, isto, aliás, é um dos diferenciais de As cidades com relação aos romances de

aventuras dos séculos XVII e XVIII, os quais também são compostos de uma sucessão de

35 Não o semioticista Jean Genette, mas o escritor e dramaturgo francês Jean Genet, (1910-1986), autor de

O balcão (1956), Os negros (1958) e Os biombos (1963). 36 Clássico da literatura árabe. Nesta história a protagonista Sherazade está em maus lençóis com o sultão,

arriscando de ter a sua cabeça decapitada. Porém, pensando rapidamente, consegue que o sultão adie sua execução: desafia-o com os mais mirabolantes enigmas jamais inventados. O sultão seduzido pelos contos-enigma de Sherazade, vai adiando a sentença noite após noite, e assim ela conserva a sua vida.

37 Giovanni Bocaccio (1335-1375) escreveu Decamerão em 1350. Nesta obra há dez personagens principais que, para fugir da peste negra, refugiam-se em um castelo, onde nada havia para fazer. Teriam que passar ali muito tempo, até que o ambiente externo voltasse à salubridade. Para ocupar-se, cada um dos personagens contou uma história em cada um dos dez dias. Composta por cem histórias que abrangem as mais peculiares paixões e comportamentos humanos, esta obra tem a propriedade de revelar em cada conto que o proibido e o pecaminoso eram vigiados pelas autoridades do clero e da nobreza no final da Idade Média. (Qualquer semelhança com o enredo de O castelo dos destinos cruzados de Calvino não é mera coincidência).

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aventuras pouco interligadas entre si em que o vetor de tempo está muito presente no

desenrolar das ações, característica esta contrária a As cidades.

Neste romance de Calvino, as histórias, sem estarem vinculadas em nível de

assunto, encontram-se ligadas pelo metatema, não de maneira linear como em

Decamerão, mas por muitas características que estão em conformidade com a definição

de hipertexto. Vejamos no diálogo de Khan com Marco no início do capítulo VI, quando

o imperador pede para ele falar de outra cidade, Veneza, a qual ele nunca a mencionou

nas descrições das suas viagens; e Polo lhe responde:

Todas as vezes que descrevo uma cidade, digo algo a respeito de Veneza. [...] As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se, – disse Polo. – Talvez, eu tenha medo de perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou, pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido, pouco a pouco. (CALVINO, 1998, p.82).

Mas, o objetivo de Calvino é traçar-nos o retrato de uma série de cidades

exemplares, e como tal fantásticas, perdidas num limbo espaço-temporal onde os bazares

e as rotas de caravanas se cruzam com problemas de tráfego e arranha-céus, cada uma

com uma característica que a marca e distingue (e que se reflete no título do respectivo

mini-conto), e todas com nomes femininos, chegando por vezes a assaltar-nos a dúvida se

Calvino não estará no fundo a falar de mulheres, e não de cidades. Entre elas, a de nome

Diomira, por exemplo, era desconhecida dos mapas, mas, ao visitar alguns símbolos nela

existentes, o viajante veneziano teve a impressão de já tê-la visto; e a razão disso era

conhecer os símbolos ali existentes em outras cidades por onde já havia passado.

A narrativa de As cidades também pode ser caracterizada pela ambivalência do

sonho e da realidade, no espírito de Borges. Embora o imperador chinês seja um

personagem histórico com o qual o negociante veneziano conviveu cerca de 20 anos,

como já enfatizamos, Calvino evoca o leitor para o personagem Kublai Khan que só

existiu na sua imaginação. O resultado é um livro extraordinário e indefinível. Em

nenhuma outra obra Italo Calvino levou tão longe os valores que considerava

fundamentais à sobrevivência da literatura. O leitor certamente verá que é impossível não

se perder nessas cidades, como é impossível não se enredar nessas teias de palavras.

Cidades que escapam do controle humano, do olhar aferidor, racional e oferecem

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surpresas constantes a todos os sentidos. Suas ruas e vielas nunca podem ser fixadas no

papel. A melhor idéia é percorrer as cidades não fisicamente, mas com o pensamento,

pois a travessia não é física, mas interior. A cidade deixa de ser um conceito geográfico

para se tornar o símbolo complexo e inesgotável da existência humana.

Embora pareçam, à primeira vista, sistematizadas em uma determinada seqüência

e agrupadas por estilo, não é preciso percorrer o livro em uma ordem predeterminada.

Cada breve narrativa (de cerca de três páginas) encerra em si própria toda a descrição

necessária, de modo que se torna possível ler as descrições em outra ordem, e faz com

que a obra se aproxime de noções como o hipertexto (numa noção bem ampla, por conta

da não-linearidade da leitura, no sentido de que o caminho de leitura pode ser criado e

percorrido de forma diferente por diferentes leitores – embora na prática, para que fosse

hipertexto de verdade, talvez fosse preciso haver remissões internas a outras partes do

texto-como uma cidade indicar a outra) ou obra aberta (em que o leitor/intérprete

participa e preenche os espaços).

Tendo Calvino feito uma apologia a este romance como rede, 38 um romance que

tende para a multiplicidade dos possíveis, operando cruzamentos entre os procedimentos

narrativos desta obra com a teoria da obra aberta, do texto em movimento, sempre haverá

cidades construídas de forma a dar passagem a muitos outros universos, a mostrar como é

possivel “construir” até mesmo um universo virtual, onde cada novo tipo de cidade

aparece no final de cada capítulo e em cada capítulo seguinte ele vai avançando de

posição até desaparecer, como se verifica no nono, e último, intitulado de “Cidades

ocultas”!

Nos diálogos que abrem e fecham os capítulos, blocos de cinco a dez cidades,

aparentemente reunidas ao acaso, sem que haja algum elo entre elas, Polo e Khan

discutem sobre os assuntos mais diversos, como a condição humana ou lingüística, num

duelo intelectual interessante, mas que não chega a ser o ponto alto do livro. O principal

mesmo são as descrições das cidades, todas elas feitas na forma de narrativas breves, em

tom poético, com aspectos que nos fazem lembrar de cidades que conhecemos, ou que

38 No capítulo sobre a Multiplicidade em Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São

Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 132.

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então nos fazem parar para refletir como seria se um lugar tal qual o descrito na obra

realmente existisse.

O imperador mongol ouve as incontáveis histórias narradas pelo peregrino

veneziano vai contando, registrando, inventando, abrindo o lacre de um império sem fim

e sem forma, um domínio em ruínas, mas também em constante construção através de

caminhos que se abrem, se bifurcam e nunca se apresentam os mesmos. Os comentários

constituem um adeus à imutabilidade, aos conhecimentos do mundo cristalizados e são

uma entrada no domínio da “desterritorialização”39 dos sentidos, apontando cidades com

formações paradoxais, porém coexistentes – a vida e a morte, o lado positivo e negativo,

o claro e o escuro revelando as duas faces da mesma moeda – invocando momentos de

plenitude, mas paralelamente de conflito.

Interconexões entre os procedimentos narrativos, As cidades é uma obra

curiosamente construída de forma a dar passagem a muitos outros universos, a mostrar

como é possível "construir" diferentes cidades (e que no fundo é uma, apenas) conforme

se privilegiem determinados aspectos a partir do trabalho, do lazer, da economia, da

religião, etc. sempre haverá cidades a serem construídas.

Imaginemos então partir do texto e cruzá-lo com outros textos (hipertexto), outros

meios de linguagem (hipermídia), outras formas de narrativas não-lineares

(hipernarrativa), outras formas de relação de experiências, de reatividades e de

particpações (interatividade) e de outras formas de relação de meios de apresentação

(interfaces) etc. Tratar-se-ia, portanto, de criar mais do que uma narrativa, isto é, várias

narrativas através de uma estrutura que propusesse várias maneiras de ser percorrida e/ou

experimentada, conducentes a diferentes conclusões, dependentes da utilização do(s)

leitor(es). Isso seria possível? Poderá tudo isso estar disponível, mesmo que, aqui e agora,

off-line? Sim.

39 Aproprio-me deste termo no sentido de deslocamento virtual primeiramente empregado por Gilles

Deleuze em Conversações (1970) e depois, em 1995, por Pierre Lévy em O que é o Virtual? (1997). Esses dois renomados filósofos franceses discutem, cada um ao seu modo, a questão do “encurtamento” das distâncias por conseqüência da globalização tecnocrática, instrumental, mercantil, consumista, virtual, etc., as quais provocam a “desterritorialização”, ou seja, o deslocamento, ao mesmo tempo para diferentes espaços numa mobilidade “virtual” cada vez mais intensificada pela aceleração das comunicações.

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A esta questão respondo afirmativamente resumindo o projeto criativo, e nada

invisível, do site www.cidadesinvisiveis.com.sapo.pt 40 das comunicólogas Lopes &

Mota (2005). Nesta transcodificação são aplicados, na estrutura externa do livro, outros

meios e outras formas de narrativa e de experiência, procedendo na prática à transposição

do hipertexto de ficção escrito para a linguagem hipermidiática.

Isso possibilitou a disseminação de informação, de forma rápida e eficiente, para

um público vasto e sem limites geográficos, mas de forma individualizada,

proporcionando-lhe explorar os conceitos de hiper-narrativa e multimídia como, por

exemplo, a interconectividade do texto escrito, do som e da imagem e a interatividade do

leitor-usuário com a obra. A página inicial do site apresenta o esquema da estrutura

externa do livro.

Nesta página se encontram onze links que se referem aos onze temas presentes na

obra: memória, desejo, sinais, subtis, trocas, olhos, nome, mortos, céu, contínuas,

ocultas. Estes aparecem sob a forma de abreviatura: mm, ds, sn, sb, tr, oo, nm, mo, ce, co,

oc, respectivamente. As nove linhas horizontais se refereciariam aos nove capítulos do

livro e as cinqüenta e cinco abreviaturas correspondem ao número de cidades nele

descritas. A organização descendente e diagonal do esquema da página inicial teria a ver

com a nossa interpretação do livro e com a coincidência de temas na linha vertical,

vejamos:

40 LOPES, Fátima; MOTA, Joana. www.cidadesinvisiveis.com.sapo.pt Orientadas pelos professores João

Cruz e Miguel Carvalhais, Desenho Gráfico I, Belas Artes, Lisboa, 2005|06. Acesso em 01/01/2007. Tecnicamente, desenvolveram essa estrutura narrativa através do recurso ao som e ao texto, explorando as várias possibilidades desta linguagem, como por exemplo, a existência de cor plana ou padrão. Cor plana, como o próprio nome sugere é a chapada como a apresentada na impressão em papel com fax, carimbo, etc.. A cor padrão é a forma utilizada para se reproduzir diversas cores através das cores básicas iniciais: vermelho (Red), verde (Green) e azul (Blue), RGB. Em computação utiliza-se muito esse padrão para se definir cada cor mostrada na tela, por exemplo, nas páginas HTML, através de números, pois a linguagem do computador é sistema binário e só decodifica bits (combinação numérica).

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Figura 3: Rizoma Hipertextual de As cidades

www.cidadesinvisiveis.com.sapo.pt

LOPES & MATOS. Disponível: <www.cidadesinvisiveis.com.sapo.pt > Acesso: 01/01/2007.

A partir de cada link, o leitor-usuário tem acesso a uma das cinco cidades que

fazem parte desse tema e que surgem de forma aleatória, o que permite que se percorra a

obra de maneira imprevista. Cada cidade é apresentada por um pequeno excerto do livro

e por, pelo menos, uma faixa de som. Algumas palavras funcionam como links para

outras cidades que contenham essas mesmas palavras ou parte delas. O som ativa-se com

a abertura da janela e cessa com o encerramento desta, podendo ser controlado pelo

utilizador. O elemento sonoro contextualiza a cidade em questão, criando um

determinado ambiente.

Os links acessados abrem sempre novas janelas para que aquele usuário possa

escolher as que pretende manter abertas. Isto permite também a simultaneidade de sons e

de imagens e a interatividade entre estas. Este fato impede um retrocesso no percurso da

obra. E porque a Internet é um sistema de informação a distância, e porque o que nela é

visionado difere de computador para computador, as autoras desse site optaram por

permitir que o leitor-navagante possa redimensionar as janelas, de forma a não perder

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nenhuma informação. Todas as páginas referentes às cidades possuem um botão com o

seu nome, que dá acesso à página inicial.

Assim, o leitor-usuário-navegante poderá voltar ao início sempre que desejar. A

tipografia é condicionada pelo ambiente da Internet. E esta escolha se restringiria a fontes

serifadas 41 ou não consoante as páginas. Portanto, comprovam-se os elementos

hipertextuais dessa narrativa ficcional escrita transformada em um texto eletrônico o qual

pode ser navegado na Internet, a partir do site mencionado.

Desse modo, imaginar a cidade e ultrapassar seu conceito geográfico foi o grande

projeto de Calvino nesta obra. Torná-la um elemento aglutinador das experiências e

sentimentos humanos, uma fonte inesgotável em transformação. Permitir uma criação

pessoal e coletiva, por meio dos elementos que são ao mesmo tempo descritivos e

imaginativos, que fazem ou não parte do mundo real. Lopes & Matos (2005-2006) se

reportaram ao mundo dos sonhos, do faz-de-conta, lugares onde tudo é possível. Um

convite a sentir e compreender sem pressa, analisando os detalhes como numa obra de

arte. Um espaço digital que possibilite um diálogo não só no campo da fala, mas também

do olhar, do criar, do fazer, do dividir e do compreender. A passagem para uma nova

forma de interação, em que as trocas acontecem livre e independentemente, sem direção

de fluxos, derrubando barreiras espaços-temporais. Uma busca poética que tomará forma

por meio da construção de um mundo, formado por elementos como luz, som, imagens,

animações, objetos, palavras e emoções, está disponível em As cidades invisíveis para

acesso ilimitado e com interação sem medida.42

41 Na tipografia as “serifas” são os pequenos traços e prolongamentos que ocorrem no fim das hastes das

letras (ABC) e as letras sem-serifa são as “limpas” (ABC), também chamadas de grotescas (do francês sans-sarif, grotesque ou do alemão grotesk). A classificação dos tipos em serifados e não-serifados é considerado o principal sistema de diferenciação de letras.Tipicamente, os textos serifados são usados em blocos de texto (como em um romance) pois as serifas tendem a guiar o olhar através do texto. O ser humano lê palavras ao invés de letras individuais, assim as letras serifadas parecem juntar-se devido aos seus prolongamentos, unindo as palavras. Por outro lado, as fontes sem-serifa costumam ser usadas em títulos e chamadas, pois valorizam cada palavra individualmente e tendem a ter maior peso e presença para os olhos, chamando mais a atenção. Maior interesse sobre esse tema, visite o site <http://pt.wikipedia.org/wiki/Serifa >.

42 Lopes & Matos desenvolveram essa estrutura narrativa por meio do recurso do som e do texto, explorando as várias possibilidades desta linguagem, como, por exemplo, a existência de cor plana ou padrão. Tecnicamente, cor plana, como o próprio nome sugere, é a chapada como a apresentada na impressão em papel com fax, carimbo; e a cor padrão é a forma utilizada para se reproduzir diversas cores através das cores básicas iniciais: vermelho (Red), verde (Green) e azul (Blue), RGB. Em

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Encontra-se aqui uma das particularidades do estilo de Calvino que retornará nos

dois romances analisados a seguir: os princípios da construção textual são projetados

dentro do texto. Assiste-se à fusão da abordagem de criação e a abordagem discursiva,

característica citada por (1992) como um dos índices do hipertexto. Do mesmo modo, a

idéia subjacente do passado é realizada num futuro plural, que atravessa todo o livro, por

exemplo, presente neste diálogo entre Marco e Khan (em “As cidades e as trocas”), que

faz referência direta ao conto Jardim dos caminhos que se bifurcam, já citado, de Borges:

Marco entra numa cidade; ele vê alguém sobre um lugar vivendo um momento que poderia ter sido seu; não pode parar; deve continuar até uma outra cidade, onde o esperam outras vidas passadas, ou algo que pode ter sido uma das suas vidas futuras possíveis e que é agora no tempo presente de um outro. –Você viaja para reviver a tua vida passada? Pergunta Khan, que podia ainda formular-se desta maneira: - Você viaja para encontrar o teu futuro? E a resposta de Marco: – Noutro lugar é um espelho negativo. Há o pouco que lhe pertence, e descobre qualquer coisa que não teve, e não terá. (CALVINO, 1998, p. 28).

Lendo e analisando esta engenhosa narrativa, constata-se que não há época nem

estilo literário livre de geógrafos fantasiosos ou fantasiosos geógrafos. De Ovídio aos

satiristas ingleses,43 aos surrealistas franceses e modernistas, As cidades empilham-se

numa arqueologia indolor, sem sangue ou ruínas. Há imaginações que produzem

personagens, puras sensações, teorias. As imaginações criadoras de cidades são grandes

organizadoras. Seu delírio nunca é sem método: elas inventam leis, paisagens, costumes,

topografias, utopias.

Os absurdos das cidades imaginárias acabam por ser mais harmônicos e

expressivos que os arranjos arbitrários das cidades reais. Criar uma imagem virtual

coletiva de uma das 55 cidades descritas é a intencionalidade demonstrada por Italo

computação utiliza-se muito esse padrão para se definir cada cor mostrada na tela, por exemplo, nas páginas HTML, por meio de números, pois a linguagem computacional é sistema binário e só decodifica bits (combinação numérica).

43 Neste grupo se inclui o irlandês Jonathan Swift (1667-1743) autor de As viagens de Gulliver (...).

Espera-se que não haja criança que desconheça as aventuras do médico (Lemuel) Samuel Gulliver, ou adulto que dela se tenha esquecido. A história começa com o seu naufrágio e cativeiro em Lilliput, terra de anões. Depois de aprender o idioma, Gulliver é libertado, torna-se conselheiro do rei, mas a inveja e as brigas políticas obrigam-no a fugir; ocasião que faz irônicas reflexões sobre o poder político. Tão original é essa experiência literária que deixou marcas lingüísticas como o adjetivo “lilliputiano” é usado em muitas línguas como sinônimo de minúsculo, miniatura. Jonathan Swift morreu só, internado como demente. Foi esmagado pelo relativismo. Gigante e anão.

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Calvino nesta história; extrapola os fatos possíveis e imagina um diálogo fantástico entre

"o maior viajante de todos os tempos" e o famoso imperador. Melancólico por não poder

ver com os próprios olhos toda a extensão dos seus domínios, Kublai Khan faz de Marco

Polo o seu telescópio, o instrumento que irá franquear-lhe as maravilhas de seu império.

Polo então começa a descrever minuciosamente todos os lugares por onde teria passado.

As suas visões, projetadas numa rigorosa arte combinatória mapeada em cidades-mundo-

de-todo-mundo, se não foram o bastante, foram suficientemente visíveis abrindo muitas

possibilidades de leituras, conectando horizontes oferecidos pelo tipo de escrita

hipertextual dando passagem a muitos outros universos literários, numa busca constante

de novas formas de expressão.

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Um labirinto é múltiplo porque tem muitas dobras. Porém, o múltiplo não é só o que tem muitas partes, mas sim o que é dobrado de muitas maneiras.

Gilles Deleuze

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Capítulo IV

DO JOGO ESTÉTICO EM O CASTELO

O segundo dos três romances a ser analisado, escrito em 1973, O castelo dos

destinos cruzados (1997), empresta-se ainda menos a um resumo linear. A história

divide-se em duas partes: O castelo e A taverna.44 Cada uma delas é composta por oito

histórias, somando dezesseis, sendo que a primeira e a oitava, da primeira e da segunda

parte, são a voz do narrador do romance propriamente dito, um viajante, um aventureiro

ou um cavalheiro (ou quem sabe os três juntos). A história desenvolve-se em um castelo,

ou em uma taverna, que dá abrigo para os passantes exaustos das longas andanças e

aventuras, por vezes cheias de perigo e medo pelas provas, encontros, aparições e duelos

do bosque. O personagem-narrador está à mesa comendo com outros comensais. Uma

vez a fome satisfeita, tem desejo de falar das suas aventuras que o conduziram até ali,

mas descobre que um encantamento tornou mudo todos aqueles que atravessaram o

bosque e que agora se encontravam ali. Felizmente há sobre a mesa um jogo de cartas de

tarô de Milão.45

Um dos convidados toma uma carta – Cavaleiro de Corte (a figura desenhada

assemelha-se a ele, rosto avermelhado e cabelos louros), sucessivamente ele põe sobre a

mesa dezoito cartas em duas filas verticais, construindo "A história do ingrato punido".

Terminada essa jogada, outro convidado mostra-se extremamente perturbado pelas

combinações das duas cartas que se encontram vizinhas sobre a horizontal. Acrescenta

sobre a direita a figura do Rei da Corte e constrói, como o jogador precedente, a história

das suas aventuras, pondo catorze cartas em dois alinhamentos da direita para a esquerda,

é "A história de um alquimista que vendeu a sua alma".

44 Inicialmente só foi lançada a primeira parte pela Editora Franco Maria Ricci, Parma, 1969. Depois,

juntamente com a primeira, pela editora italiana Palomar em 1973. No Brasil foi lançado em 1991 pela editora Companhia das Letras e já está na quinta reimpressão, 1997.

45 Esse Tarô, com figuras coloridas cortadas ao meio e tendo as suas metades repetidas de cabeça para baixo, foi criado pelo italiano Bonifácio Bembo no século XV para os duques de Milão. Hoje, uma parte desse baralho está na Academia Carrara de Bérgamo; outra, na Livraria de Nova York; outras mais se perderam pelo tempo. In: CALVINO, Italo. Nota Final. O castelo dos destinos cruzados, 1997, p. 151.

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As mesmas cartas, porém, servem para várias histórias, e cada uma delas

comporta várias interpretações. As histórias conectam-se assim, e Calvino as comenta da

seguinte maneira: No Castelo as histórias são compostas por cartas que estão organizadas

em colunas duplas, e são cruzadas por três alinhamentos duplos. Obtém-se como

resultado um mosaico no qual se podem ler três seqüências narrativas horizontalmente e

mais três verticalmente. Além disso, cada seqüência de cartas pode ser lida no sentido

oposto, gerando então outras histórias. Tem-se, assim, a soma de doze histórias. Quando

todas as cartas estão sobre a mesa, o primeiro jogador reinicia e depois as entrega para o

seguinte e assim sucessivamente, e vê-se que não é mais o jogo refinado renascentista de

Bembo, mas o jogo que ainda hoje em uso – o tarô de Marselha.46

O tarô é um sistema móvel de relações que exige flexibilidade de interpretação

sobre a luta do homem contra os outros e contra si mesmo via a reflexão, a introversão e

a ação. Este jogo de origem milenar tem a sua natureza direcionada para as motivações de

ordem sensível, imaginativa e universal do homem e do mundo. Uma mesma carta pode

ser interpretada como alma e espírito, ou como alma e corpo, segundo o lugar que ocupa

no conjunto escolhido e segundo os níveis de análise, por isso nenhuma delas possui um

sentido absoluto e definitivo.

Sobre este romance, Calvino redigiu uma nota final (também presente na edição

brasileira aqui utilizada) comentando sobre a sua temática e a sua estrutura narrativa.

Segundo ele, sobre o aspecto da ilustração das cartas de tarô que acompanha as edições

citadas, ele ressalta que na primeira (a da Editora Ricci) só continham as gravuras das

46 O primeiro estudo da origem do tarô foi feito por Court de Gébelin no início do século XVIII, a partir

daí várias outras teorias apareceram. Uns dizem que ele surgiu na China, na Índia, no Egito e outros, por meio dos cabalistas, dos alquimistas e dos ciganos. Do tarô de Marselha (cidade do sul da França) não se pode duvidar da popularidade do seu ensinamento esotérico transmitido ao longo dos séculos. Esse tarô reproduz gravuras do século XVIII apresentando uma icnografia medieval misturada aos símbolos cristãos. A sua forma mais original e popular compõe-se de 78 cartas coloridas distribuídas em 56 arcanos menores e 22 maiores, estes últimos são: I. O Mago, II. A Papisa, III. A imperatriz, IV. O Imperador, V. O Papa, VI. O Enamorado, VII. O Carro, VIII. A Justiça, IX. O Eremita, X. A Roda da Fortuna, XI. A Força, XII. O Enforcado, XIII. Arcano sem nome (A Morte), XIV. A Temperança, XV. O Diabo, XVI. Habitação Divina (A Torre Fulminada), XVII. A Estrela, XVIII. A Lua, XIX. O Sol, XX. O Julgamento (O Juízo Final), XXI. O Mundo e, sem número, O Louco. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 4 ed., Rio de Janeiro: 1991 p.864-865.

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cartas feitas por Bonifácio Bembo para os duques de Milão em meados do século XV,

porém muitas destas cartas foram perdidas, por exemplo, a do Diabo e a da Torre, as

quais, segundo o próprio Calvino, são elementares para o desenrolar da narração, daí o

porquê de estas cartas, mesmo bastante comentadas, não estarem estampadas em

nenhuma das referidas edições deste romance.

Outro detalhe não menos importante é o fato de que na segunda parte, A taverna,

as cartas utilizadas são as da versão francesa do tarô de Marselha, a qual apresenta uma

vasta fortuna crítica desde a de Nicolas Conver (Marselha, 1761) aos estudos da

simbologia dos arquétipos pelo psicanalista Carl Jung.47 Simbolicamente, o tarô

marselhês não difere do tarô milanês, porém se neste a figura é cortada ao meio e repetida

a sua metade de cabeça para baixo; naquele, cada figura é apresentada em forma de

gravuras e sem cortes, particularidade adaptada à sua operação de narrar as histórias por

meio de figuras variadamente interpretáveis. Calvino toma, assim, a partir da dinâmica da

linguagem emblemática, a cartomancia como sistema semiótico, pois o significado de

cada uma das cartas depende do lugar e da posição que esta ocupa na sucessão das cartas

que a precedem e a sucedem.

Por serem variadamente e diferentemente mais interpretáveis ambos os baralhos

foram adaptáveis à sua operação de narrar neste romance: o tarô de Milão para a primeira

parte, O Castelo, e o tarô de Marselha para a segunda, A taverna. Muito embora Calvino

tenha tomado o devido conhecimento da vastíssima bibliografia sobre a interpretação

simbólica do tarô, isso não influenciou o seu trabalho, pois procurou delas extrair

sugestões e associações, interpretando-as segundo uma iconologia. Cada imagem das

cartas representa a realidade transcendente, oferecendo um suporte para a reflexão

daquilo que ela sugere e simboliza. Uma carta de tarô não tem um fim em si mesmo, mas

sim um meio; uma janela, digamos aberta entre a realidade e a imaginação, abrindo

sempre dois ou mais sentidos. Por exemplo, A Força pode ser um homem ou uma

47 As cartas do Tarô são chamadas de Arcanos. Arcano vem do latim Arcanus, que significa “mistério,

segredo, aquilo que está oculto, aquilo que é enigmático”. O Tarô também é chamado de Arquétipo (do grego arketypon: modelo, exemplo, padrão), suas cartas trazem imagens arquetípicas e símbolos que refletem e exemplificam a nossa psique. Segundo o psicanalista suíço Carl Jung (1875-1961) as imagens do tarô contêm os registros primitivos do inconsciente humano. Jung sistematizou a idéia de que os arquétipos são as "imagens primordiais" presentes na psique como "formas" universais existentes no inconsciente coletivo.

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mulher; A Estrela pode apresentar-se vestida ou nua, e a carta da Imperatriz tanto pode

ser corpo como espírito. As relações alteram-se no interior do conjunto das diferentes

histórias.

As cartas são dispostas de modo que se apresentem como cenas sucessivas de um

conto pictográfico, mesmo que aparentemente enfileiradas ao acaso, dão uma história na

qual se reconhece um sentido que transformam radicalmente as situações e nos fazem

correlacioná-la a outras situações narrativas correspondentes. Na história Rolando louco

de amor (O castelo), a referência literária está inter-relacionada com o texto Orlando

furioso (1516) de Ludovico Ariosto (Itália, XVI). Mesmo que as gravuras das cartas

usadas, as do tarô de Milão, tenham precedido quase um século esse poema, elas podiam

representar muito bem o mundo visual em que a imaginação do poeta se havia formado.

Dessa forma, algumas seqüências constroem o cruzamento central do “quadro mágico”

da narrativa de O castelo, compondo uma espécie de palavras cruzadas constituídas de

figuras coloridas no lugar de letras, nas quais, além disso, cada seqüência pode ser lida,

interpretada, em ambos os sentidos.

Por outro lado, na segunda parte, A taverna, a narrativa foi construída com as

cartas do tarô popular de Marselha, reproduzíveis em preto e branco. Essa operação

narrativa também parte do princípio do entrecruzamento textual que se encaixa

compondo um esquema unitário que seguidamente se reencaixa e se recompõe num

quebra-cabeça. Mas, quanto ao seu ritmo e a sua organização das histórias demanda

escolhas e procedimentos de escrita diferente. Isso porque o mundo do século XV

representado nas miniaturas do tarô de Milão era diferente do mundo das estampas

populares marselhesas. Não só porque alguns Arcanos eram ilustrados de forma

contrária, por exemplo, a carta A Forca era um homem, sobre O Carro havia uma mulher

e A Estrela não estava nua, mas porque essas figuram supunham igualmente uma

sociedade diversa, com outra sensibilidade e outra linguagem. E, para sair desse impasse,

Calvino diz:

Abandonava os esquemas e me punha a escrever as historias que já haviam tomado forma, sem me preocupar se elas iriam ou não encontrar um lugar na malha das outras histórias, mas sentia que o jogo só tinha sentido se submetido à imposição de regras ferrenhas: ou arranjava uma necessidade geral de construção que condicionasse o encaixe de cada

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história no conjunto das outras, ou então era tudo gratuito. (CALVINO, 1997, p. 155).

A essas dificuldades nas operações pictográficas e fabulatórias juntaram-se as de

orquestração estilística, ou seja, ao lado de O castelo, A taverna só podia ter sentido se a

linguagem dos dois textos reproduzisse a diferença dos estilos figurativos entre as

miniaturas refinadas do Renascimento e as toscas incisões do tarô marselhês. Como então

resolver esse impasse? A resposta talvez esteja em “reduzir pouco a pouco o tom da

matéria verbal até chegar ao nível de um balbucio” (Ibid, 1997, p. 155). Assim A taverna

dos destinos cruzados tal como hoje finalmente vem à luz é fruto e produto dessa gênese

tormentosa. O quadrado com as 78 cartas, apresentado como esquema geral dessa

segunda parte do romance, não tem o mesmo rigor da primeira parte de O castelo: “Os

‘narradores’ não procedem em linha reta nem segundo um percurso regular; há cartas que

voltam a se apresentar em todas as narrativas e mais de uma vez na mesma história”.

(Ibid, 1997, p.156).

Dessa forma, o texto pode ser considerado um arquivo no decorrer da pesquisa, ao

longo dos materiais acumulados, no somatório das estratificações sucessivas de

interpretações iconológicas, de humores temperamentais, de intenções ideológicas e de

escolhas estilísticas de Calvino. A estrutura combinatória deste romance foi baseada,

portanto, a partir da lógica narrativa da cartomancia e da exposição emblemática (figuras

marselhesas) passível de inúmeras interpretações, em que a idéia de que o significado de

cada uma das cartas depende do lugar que esta ocupa na sucessão que a precede e a

segue, observando, é claro, as exigências internas do texto.48 Entre as cartas perdidas está

a do Diabo e a da Torre, as quais muito importantes para as duas histórias do romance, e

mesmo sendo bastante citadas na história escrita, não têm as suas figuras estampadas no

interior do esquema correspondente à história icônica, como vemos nesta ilustração do

esquema narrativo deste romance organizada pelo próprio Calvino:

48 Ver o estudo da narrativa semiótica, a partir da disposição das cartas do Tarô, na obra de Umberto Eco e

remo Faccani. Semiotica della letteratura in URSS. Milano: Bompiani, 1969.

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Figura 4.1: Rizoma da Estrutura Narrativa de O castelo

CALVINO, I. O castelo dos destinos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 59.

As cartas foram lançadas. E tal como no lance de dados de Mallarmé,49 elas

jamais abolirão o acaso da aleatoriedade do mundo, da multiplicidade dos destinos das

probabilidades dos encontros, do jogo combinatório dos significados e das existências.

Em A Taberna as sucessões das cartas criam também histórias. Formam blocos mais bem

49 Stéphane Mallarmé (Paris, 1842-1898). Um jogo de dados jamais abolirá o azar (Un coup de dês jamais

n’abolira le hasard, 1897), é um longo poema de versos livres e tipografia revolucionária que constitui a declaração trágica da impossibilidade de atingir o estabelecido no livro. Também escreveu penetrantes artigos sobre a moda feminina de seu tempo. Mallarmé desempenhou um papel fundamental na evolução da literatura no século XX, especialmente nas tendências futuristas e dadaístas. Está entre os precursores da poesia concreta ao lado de Guillaume Apollinaire (1880-1918) e o escritor americano Ezra Pound (1885-1972).

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desenhados que se sobrepõem sobre a parte central do ornamento principal no qual se

concentram as cartas que figuram na maior parte das histórias. Nesse sentido o texto foge

da linearidade inicialmente apresentada pelo escritor e apresenta-se fragmentado e

não-linear.

Fazendo uso das dilatações que a linguagem oferece, Calvino propõe bifurcações

na narrativa convencional impressa quebrando a seqüência da escrita não só com a

introdução de links, no sentido de múltiplas entradas e saídas de leitura, processo comum

na escrita eletrônica, mas, também, oferecendo linhas de fuga no texto. Com diálogos

díspares que se cruzam, rompem e corrompem com a normalidade e a linearidade

escritural. Observa-se, ainda, que mesmo havendo uma indicação do autor para a leitura

continuar na página tal, muitas das lexias, a sua maioria, são independentes do que vem

antes ou depois.

Portanto, é no decorrer da leitura, no saltitar aqui e acolá, que se descobre que

este é mais um artifício do escritor para deixar velada a proposta autoral. A maneira de

Calvino organizar os dados, digo, as cartas, de forma que os fragmentos textuais não

sejam apenas a soma de informações, mas sistemas organizados e interconectados por

meio da montagem, os quais exigem do leitor uma atitude ativa de leitura-escritura.

Dessa maneira, o texto vai se (re)escrevendo à medida que vai sendo lido, e nunca um

leitor opera o mesmo caminho que outro, pelo menos não na mesma medida ou tempo, o

processo de interação é pessoal e único, pois nossa "arca de palimpsestos" sempre é

divergente.

Pela experimentação estética Calvino, ao promover a destruição da escrita linear

tradicional pela profusão de “cartadas” aparentemente aleatórias, mas linkadas,

conectadas, organiza um jogo tipográfico distanciado da lógica impressa, na qual uma

linha (carta) possui sua seqüência na posterior. Por exemplo, podemos citar o capítulo 4

em que a continuação do primeiro parágrafo não se dá no segundo, mas no terceiro e

depois pula para o quinto e assim em diante. Seguindo as jogadas, o leitor desfiará um

pouco a(s) história(s) de O castelo e, se optar pelas dicas do narrador-jogador, encontrará

um pouco mais sobre a vida daqueles convivas que se encontram na taverna e participam

do jogo, dispondo, ora um, ora outro, também as cartas sobre a mesa. No final, a

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bifurcação se estreita e desemboca num único beco, um ângulo reto: histórias

desencontradas que vão de cá para lá, de lá para cá, fazendo o seu desenho, histórias e

vivências que se fundem.

Outra forma de compor essa estrutura labiríntica e multifacetada é promover a

“rebelião” da teoria literária, mesclando a narrativa em primeira pessoa com a terceira

pessoa, e a fusão e a diluição da narrativa com o metatexto, construindo o projeto de um

anti-romance. Uma narrativa na qual o próprio texto se bombardeia por meio da crítica

literária, que penetra na tessitura da narrativa pela presença da metalinguagem, que

problematiza os processos de criação literária e discute os próprios procedimentos

lingüísticos. Um verdadeiro jogo de construção de metatextos em que o crítico é levado a

refletir sobre a palavra, seu próprio instrumento de trabalho. Uma maneira de fazer da

escrita e da leitura o centro do processo por meio da "destruição de toda a voz, de toda a

origem” (BARTHES, 1990) que se manifesta geralmente na voz onipresente do autor,

abalando o seu império.

A prática de uma literatura com fins altamente interativos, fora de qualquer

função que não seja o próprio exercício do símbolo, leva Calvino a construir personagens

flutuantes, que necessitam do olhar atento do leitor para montá-los depois do desmonte

proposto pelo autor. Os personagens são mutantes. Eles vão-se constituindo ao longo da

novela, inclusive os nomes são duplos. Rolando também é chamado de Astolfo, Fausto

outras vezes é Percival e, ao mesmo tempo em que é personagem, é o escritor que

descreve um tratado teórico literário dentro do próprio romance, confundindo-se sua

opinião com a do próprio autor empírico.

Nesse processo de jogo que visa à libertação das palavras de um sentido único, de

rejeição à tradição, o se deslocar espacialmente é outro elemento bastante explorado pelo

autor. O leitor se vê diante de capítulos inteiros cujos personagens passam horas

discutindo sobre aventuras, desventuras e lugares, envoltos num processo de ordem e

desordem, de divagações excessivas. Essa possessão topográfica, que se ajusta ao projeto

literário calviniano de libertinagem, dilatação e refração dos significados, é justificada

pelo próprio autor ao declarar que o narrar sobre viagens é como o pássaro que migra ou

emigra, que imigra ou transmigra, saltador de barreiras, contrabandista, algo que se

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difunde. Um procedimento que tem raízes nas lições estruturais de Walter Benjamin

(1994), no seu já citado texto O narrador, que também faz da narrativa de viagem um

artifício para dar mais plasticidade à palavra.

O tratamento da literatura como processo em progresso é obtido também com a

exploração de um tempo sagrado, mítico, diferente do tempo relógio. Recheada de

mudanças abruptas de cenários, de espaços duplos que se intercambiam, vêem-se

verdadeiros labirintos de tempos que causam rodopios incessantes. Calvino busca, por

meio da transposição temporal, envolver a escritura numa auréola de primitivismo,

tentativa de resgate de um tempo perdido, saudosismo de um estado nascente das coisas,

do viver a primordialidade das palavras, acionando outra dinâmica textual. Para aumentar

o valor sugestivo da escrita, ele opera a inserção de símbolos multiplicados que permitem

a simultaneidade e a atomização dos significados. Símbolos como o jogo de cartas, a

cartografia, o labirinto, o centro, o círculo, tudo se amalgamando conjuntamente com

outros processos narrativos, construindo uma estrutura circular para a obra. Um projeto

que se encaminha para outro conceito de escritura, que supera os modelos impressos

tradicionais, nascido da angústia e da necessidade do movimento.

Ao manipular o material literário no intuito de conseguir um efeito elástico que

supere a aparente fragilidade do suporte impresso, o autor emprega a estratégia do

espelhamento das personagens, bem como a montagem dos fatos alternados e os modos

de enunciação múltiplos. A exploração das estruturas mise en abyme, em que uma parte

representa a totalidade que a contém formando uma estrutura auto-reflexiva, contribui

enormemente para a constituição de um enredo dispersivo e privado de um único centro.

Um procedimento que exige que o leitor descubra sobre a filigrana de ouro a

transparência cristalina de uma construção pura e abstrata. Esta é a leitura do leitor

conhecedor, consciente e atento às estratégias de dissimulação da escrita presentes no

texto.

A todo tempo o autor propõe desvios, põe em xeque a estrutura lógica discursiva

tradicional e para tal utiliza as artes paralelas, como o emprego de cartas de tarô em O

castelo (ou, como veremos adiante, da visualização de mapas imaginários em As cidades

invisíveis e da inserção da poesia, da constante do jogo, da montagem narrativa em Se

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numa noite de inverno um viajante). Todos esses recursos narrativos utilizados nos fazem

pensar estes como falsos, ou anti-romances, porque mais importante do que as situações

romanescas que se desenvolvem nos seus interiores são os processos de auto-reflexão

autoral que o permeiam. É o resultado do desejo de Calvino de construir uma obra cujo

conteúdo nunca estivesse encerrado, definido, que oferecesse maiores variedades

interpretativas, uma escrita móvel.

E é principalmente por meio da montagem de narrativas alternadas que essa

escrita dinâmica se constrói e, ao passarmos de uma intriga a outra, construímos um

enredo provisório através dos percursos labirínticos e caleidoscópios que o autor semeia

aqui e acolá, enredo que corre o risco de se metamorfosear, dissimulando-se sob

múltiplas marcas textuais ou após a leitura de outro fragmento.

Esse processo que luta contra o sistema literário rígido e estatizante, expande os

potenciais da escrita ao oferecer ao leitor uma leitura-escritura, processo de construção

textual interativa. Assim, o autor joga com a complexidade e subverte a escrita

tradicional ao construir uma narrativa cuja preocupação central não é o desenrolar do

enredo, mas o seu encaracolamento, rompendo com a expectativa do leitor que busca as

emoções e o prazer da narrativa hipertextual.

O percurso que O castelo celebra é, visivelmente, o do jogo de tarô: sobre cada

peça repousa um enigma e somente a sua combinatória. O pisar cauteloso e claudicante

ao traçar percursos, conexões a princípios invisíveis darão ao leitor o direito de conquista.

A que o levará essa operação? Talvez tão-somente à procura do indeterminado, à

descoberta da ausência de um ponto de vista único.

Muitos impressos, portanto, dependendo de sua composição e dos procedimentos

narrativos escolhidos pelo autor, podem oferecer ao leitor a oportunidade de leituras em

outras direções, não-lineares, que escapam da escritura tradicional. Essas estratégias de

exploração da linguagem colaboram para a idéia do romance aberto e como estrutura

combinatória, aqui tratada como hipertexto (aspecto que veremos um pouco mais

adiante). Diversas histórias, narradas por diferentes personagens que dividem o mesmo

espaço. Para o desenvolvimento desta história, Calvino dispôs de dois campos narrativos:

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a narrativa do tarô e a literária, articuladas pelo movimento dos personagens e do

narrador.

A partir da distribuição espacial das cartas na mesa, tempo, ação e personagens

vão sendo delimitados. E a história só se completa com a participação de todos os

personagens, com a junção de todas as pequenas histórias que, se não se cruzam no

campo da diegese, encontram-se no campo discursivo. Essa narrativa, no entanto, só se

efetiva com a participação do leitor-intérprete, no caso, o narrador. A interação faz-se

necessária para que a história do castelo possa ser construída, e os personagens que

circundam a mesa construam uma rede cuja centralidade se desloca a cada momento.

Aqui não há nada da aleatoriedade dos jogos de tarô: cada carta é escolhida no maço, e

tem sua posição definida pelas que a antecedem e que virão a sucedê-la. A escolha das

cartas baseia-se na semelhança entre os elementos que elas carregam e a história que vai

ser narrada. Ou, pelo menos, é esta leitura, iconográfica, que o narrador faz das cartas.

A carta é posta na mesa. A ela o narrador atribui o sentido: trata-se de um jovem

nobre, abastado, aventureiro e ambicioso. A significação, no entanto, só se completa no

momento do próximo movimento do personagem, que enfileira mais três cartas sobre a

mesa. O narrador continua a nos contar sua leitura das cartas e a construir uma narrativa a

partir dos elementos dispostos sobre a mesa: o rei de ouros, pai do jovem cavaleiro,

faleceu, deixando-lhe uma herança considerável [dez de ouros]. O jovem, com isso, parte

em viagem, chegando ao bosque que todos tinham atravessado, representado pelo nove

de paus. Segundo o narrador-leitor, “o início da história poderia ser este”. (CALVINO,

1997, p. 18).

O personagem acrescenta outras cartas às já dispostas sobre a mesa. O narrador,

por sua vez, também continua, contando-nos “sua” história, atualizando pela leitura os

elementos narrativos dispostos: no bosque, o cavaleiro foi surpreendido por um bandido

[a forca], que o deixou em uma triste situação [o enforcado]. Felizmente, apareceu uma

bela jovem [a temperança], que poderia salvá-lo. Tal salvação, no entanto, só se

concretiza com a próxima seqüência de cartas: a fonte – representada pelo ás de copas,

indicando a liberdade do homem – e o encontro amoroso – lida na inscrição do dois de

copas, amore mio – não apenas levavam a crer na salvação do nobre, como também em

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uma história de amor entre ele e sua salvadora.

Enquanto o narrador serve-se dessa forma narrativa, o nobre cavaleiro põe sobre a

mesa três outras cartas capazes de mudar o rumo da história: o sete de paus, colocado

primeiro, indicava que o jovem voltara ao bosque, e que o encontro amoroso, assim, não

fora duradouro. O nobre, então, inicia uma nova seqüência de cartas, à esquerda da

primeira. O deslocamento espacial aparece como determinante de um novo tempo e de

uma modificação nos rumos da ação até então narrada. O cenário passa a ser outro e isso,

segundo o narrador, deixa-o desconcertado em sua leitura das cartas. Apesar de

“desconcertado”, o narrador segue em sua leitura/narrativa: o jovem nobre havia

encontrado uma esposa de alta estirpe [a imperatriz], e as núpcias foram comemoradas

com um belo banquete [oito de copas]. Até que, interrompendo essa linha de significação

traçada, surge um novo elemento: o cavaleiro de espadas. Um imprevisto interrompera a

festa. As cartas continuavam a ser colocadas e nosso narrador, que agora parecia não

muito seguro de sua interpretação, parece declarar que não lhe restava senão arriscar

conjecturas.

É arriscando significações que o narrador continua criando sua leitura da história:

um menino [o Sol] fora visto correndo no bosque, levando um manto ricamente bordado

– o mesmo manto que o nobre perdera ao ser atacado no bosque. Ao tentar alcançar tal

garoto, o nobre cruza com o cavaleiro de espadas, que revela ser uma mulher, e diz

querer justiça. Mas o narrador não se satisfaz com essa história: “Melhor, pensando bem,

o encontro poderia ter se passado assim: uma amazona a cavalo havia saído do bosque e

partira ao ataque gritando-lhe: – Alto lá! Sabes a quem estás seguindo? – A quem? – A

teu filho! – dissera a guerreira, descobrindo o rosto”. (CALVINO, 1997, p. 22).

As cartas seguintes traziam o desfecho da história: o nobre cavaleiro e a amazona

iniciaram um duelo. Nesse momento, apareceu a Papisa, e o cavaleiro descobriu que a

jovem guerreira, a mesma que o salvara no início da história, era Cibele, a deusa daquele

bosque. Esta, para vingar a ingratidão do nobre, resolve acabar com sua vida, gesto

representado pelo oito de espadas. E assim de carta em carta as ações continuam.

Se até aqui, tal atividade descritiva parece ser um tanto cansativa, ela nos

possibilita, entretanto, apontar elementos importantes para pensarmos na estrutura

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utilizada por Calvino na escritura deste livro, como tão bem aceitaram os principais

críticos e escritores desse gênero.50 Seguindo a narrativa do tarô, a lógica da escolha e

colocação das cartas sobre a mesa, estamos bem próximos das narrativas literárias

baseadas na combinatória. De uma série de elementos predeterminados – no caso, as

cartas do tarô – o personagem faz suas escolhas e monta sua narrativa. Se tal trabalho

fosse levado ao extremo estaríamos diante de um imenso manancial de narrativas

possíveis, bastando optar por uma das formas de combinação das cartas. O castelo dos

destinos cruzados seria, assim, uma máquina poética baseada na permutabilidade. No

entanto, Calvino faz alguns movimentos que introduzem novos elementos a essa lógica

combinatória da narrativa.

O primeiro destes elementos é o narrador. Ao mesmo tempo em que é

personagem da ação, ele se apresenta a nós como um leitor, um intérprete das narrativas

do tarô. Se a narrativa do tarô baseia-se na combinatória, a narrativa literária apresenta-se

como o percurso de leitura do narrador, como sua interpretação dos fatos. Ele, como

leitor, não faz as “combinações”: ele as ressignifica a partir das problemáticas que lhe são

colocadas no decorrer da narrativa.

Assim, nós, leitores do livro de Calvino, não nos colocamos como o leitor que

brinca com a combinatória e constrói narrativas previamente estipuladas. São os

personagens de Calvino que fazem este papel: é o nobre da primeira história quem faz as

escolhas dos elementos significativos a serem utilizados em sua narrativa. A esta

narrativa responde o narrador que, a partir dos elementos simbólicos do baralho,

reescreve literariamente a narrativa do personagem.

É nessa reescritura que encontramos uma linha de fuga à lógica combinatória e

que pode ser aproximada do modelo do hipertexto. O narrador, ao inscrever sua leitura

junto ao texto lido, coloca em cena a questão da virtualização do texto discutida por

Pierre Lévy (1997). O narrador de Calvino encontra, tal como o leitor do hipertexto, o

suporte para objetivar seu processo de leitura, até então realizado apenas mentalmente.

Tal suporte não tem as mesmas possibilidades de um hipertexto, mas já permite a adição

50 Por exemplo, a crítica de Maria Corti (Revue Haia, Haia, 1980, p. 57) e a de Gérard Genot (Critique,

Paris, ago. set., 1992, p. 303-304).

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de um elemento hipertextual ao simples movimento combinatório.

Outro ponto que pode ser pensado como uma forma de avançar no simples jogo

de combinações é a forma de ligação entre as diversas histórias do livro. Estas, apesar de

poderem ser consideradas pequenos contos independentes, unem-se, pela estrutura

narrativa, num movimento semelhante ao que Lévy chamou “princípio de multiplicidade”

(1997, p. 27). Nesse jogo de múltiplas escolhas, uma carta funciona como um nó (link)

podendo originar uma nova rede, e assim por diante. Outro princípio do hipertexto

apontado por Lévy, que se encontra esboçado na obra de Calvino, é o “princípio de

metamorfose” (ibid 1997, p. 33) que permite a todos os envolvidos garantir a constante

reconstrução da rede hipertextual.

Essa transmutação que acontece na mesa de O Castelo: a cada história narrada

pelos personagens a rede é reconfigurada; a cada nova narrativa, a mesa tem sua

configuração alterada. Desse modo, a narrativa de Calvino, seguindo a lógica do jogo de

tarô, acaba por fazer funcionar, segundo a terminologia de Lévy (1997, p.41), o

“princípio de topologia”, transformando-se a narrativa em “rede” conectada por links no

próprio espaço da história. Nela, a narrativa, não há um ponto fixo, mas um constante

deslocamento de centralidade a cada movimento realizado pelos personagens e pelo

narrador no jogo de leitura que se estabelece com o leitor.

Mas Calvino não estabelece somente relatórios internos, mas também externos

com os suportes de informação visual, pois quando é a vez do autor que conta a sua

história, as exceções o fazem desviar das cartas em direção aos quadros: ele substitui a

carta Ermitão por São Jerônimo, a do Cavaleiro de Espada por São Jorge, voltando-se

para um estudo da história da arte, totalmente no espírito de “A escola dos anais”. Ele

examina as representações desses dois personagens por diferentes pintores e gravuristas e

a evolução de seus atributos e das paisagens. Assim, conforme a definição de hipertexto,

ele se produz, de uma parte, um apagamento de fronteiras entre os textos de ficção e não

ficcionais; e, de outra parte, os limites da obra mesma perdem sua rigidez, tornando-se

transparentes.

Calvino estuda os quadros e as gravuras que não estão entre os conhecidos. É

difícil se recordar de todos os detalhes da leitura desse livro como de todas as

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reproduções de qualidade desses quadros. É evidente que a publicação das reproduções

em cores faria aumentar e muito o volume (e o custo!) de um pequeno livro. Ora, este

problema, de difícil resolução para uma edição papel, tem uma solução instantânea na

Rede: é suficiente indicar hiperlinks adequados aos catálogos on-line do museu do

Louvre, por exemplo, nos quais o usuário pode acessar todas essas gravuras.

Mas talvez seja principalmente no movimento desse jogo de O castelo dos

destinos cruzados que encontramos maior aproximação entre a literatura e os princípios

do texto hipertextual, o da multiplicidade, o da metamorfose e da topologia espacial

apontados por Lévy (1997). Nesta narrativa Calvino coloca para os seus leitores diante de

uma rede em constante movimento, de uma estrutura espacial que deve ser percorrida na

busca do sentido, podendo deslocá-los das mais diversas formas, a partir de diferentes

entradas visíveis nesse quadrado, que acompanha a obra, inteiramente recoberto de cartas

de tarô e de histórias inteiramente à mostra (sobre a mesa):

Figura 4.2: Rizoma da Estrutura Narrativa de O castelo

CALVINO, I. O castelo dos destinos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 137.

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Mas e a história do narrador, onde está? Pois nem ele mesmo consegue distingui-

la entre as outras, tão intrincado se tornou seu entrelaçamento simultâneo. De fato, a

tarefa de decifrar as histórias uma por uma nos faz como leitores e narradores das

histórias de O Castelo, negligenciar, até certo momento, as peculiaridades mais visíveis

no modo de narrar do aventureiro viajante (Calvino?). Com isso podemos dizer que cada

relato corre ao encontro de outro relato e, enquanto um dos convivas dispõe sua fileira,

outro comensal no outro extremo da mesa avança em sentido oposto, de modo que as

histórias contadas da esquerda para a direita ou de baixo para cima podem ser igualmente

lidas da direita para a esquerda ou de cima para baixo, e vice-versa. Assim, leva-se em

conta que as mesmas cartas, apresentando-se numa ordem diversa, não raro mudam de

significado, e a mesma carta de tarô serve ao mesmo tempo a narradores que partem dos

quatro pontos cardeais.

Neste movimento de leitura, o narrador encontra uma forma de escapar à sua

história, de não mais ser “narrado” por ela. Cada personagem, ao relatar suas aventuras,

encontra-se tão imerso nelas que o sentido, a cada movimento das cartas do tarô, adianta-

se à ação do “autor”. O sujeito encontra-se imbricado no sentido de suas ações.

O narrador, ao percorrer cada caminho aberto pelas histórias extraídas do jogo de

tarô, estabelece uma abertura que lhe permite o afastamento de sua própria narrativa. Ele

passa, assim, de sujeito totalmente envolvido pelo sentido de sua história, a uma situação

em que precisa traçar seus caminhos, responder a questões e situações que lhe são

colocadas, escolhendo a forma mais adequada de atribuir sentido às suas atitudes:

Sem dúvida a minha história também estaria contida naquele entrelaçar de cartas, passado presente futuro, mas não sei mais distingui-la das outras. A floresta, o castelo, as cartas do jogo de tarô me conduziram a esta barreira: perder a minha história, confundi-la na poeira das outras, libertar-me dela. O que sobrou de mim foi apenas essa obstinação maníaca de completar, de encerrar, de dar vida aos relatos (CALVINO, 1997, p. 67). (Grifo nosso)

A problemática do conceito de jogo foi abordada por vários estudiosos. O jogo é

um símbolo de luta, resistência, coragem, dúvida e incerteza. Combate, sorte, vertigem,

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transformação, o jogo estético é por si só um universo, no qual, através de suas ações e

riscos, cada pessoa precisa achar o seu lugar. Johan Huizinga, na obra Homo ludens,

define o jogo como “uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos

limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente

obrigatórias, acompanhada de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência

de ser diferente da vida cotidiana”. (HUIZINGA, 1993, p. 33).

Entre as diversas representações lúdicas, temos: jogos funerários, jogos de guerra,

jogos de amor, jogos de azar, jogos de linguagem e tantos outros. O sentido do jogo seria,

em um primeiro momento, uma forma de distração, uma alegria; alguns enfatizam a

competição, outros a aventura, as estratégias, como nos jogos de xadrez, de baralho, ou

nas competições esportivas.

Para Roger Caillois, em Os jogos e os homens (1990), a palavra jogo está ligada

diretamente às idéias de riso, facilidade ou habilidade e evoca uma atividade com

conseqüências determinantes para a vida real. Além disso, o tema jogo relaciona-se com

as idéias de limite, liberdade e invenção, em que “todo o jogo é um sistema de regras que

definem o que é e o que não é do jogo”, ou seja, o permitido e o proibido (CALLOIS,

1990, p.11). Essas marcas seriam a essência do jogo que se reflete no comportamento

lúdico. Para que haja jogo, tem de haver algo, outro sujeito, que jogue com o jogador e

que responda à iniciativa do jogador com suas próprias contra-iniciativas.

Assim para o jogador, o jogo é sempre risco; por mais que possa imaginar todos

os lances possíveis, estará sempre sujeito ao imprevisto. O risco existe porque o leitor

aceita jogar sem saber ao certo qual será o fim, ou quanto tempo estará envolvido nele.

No jogo, quem participa, convive sempre com a incerteza, com o desconhecido, mesmo

que esse jogo possua regras. Nessa dinâmica, o jogo não é um mero objeto de prazer;

constitui-se em uma experiência comunicativa que ultrapassa as regras e as normas. E a

arte, como jogo, representa o diálogo, a comunicação. Sabe-se que, na relação do jogo

com a arte, muitas experiências já foram realizadas enfocando uma preocupação relativa

ao engajamento do espectador com as obras. Muitas dessas criações envolvem diferentes

linguagens artísticas, como a música, a arquitetura, a plástica e, é claro, a literatura. A

obra de arte propõe sempre novas questões. Ela exige resposta, participação, que não é

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óbvia e só pode ser dada por aquele que participa ativamente da experiência que a obra

propõe. A obra de arte transforma quem a experiencia.

Hans Robert Jauss, em Experiência estética e hermenêutica literária (1986),

sustenta que não passamos pela apreensão de uma obra de arte sem que ela produza um

efeito em nós. A arte alarga os nossos horizontes espacial-temporais, ampliando os

nossos horizontes de expectativas. Quando nos deixamos envolver pelo mundo da arte,

quando compreendemos uma obra, trazemos para a vida, através daquilo que

experimentamos, a essência do que somos. É por isso que o artista não cumpre sozinho o

ato da criação. O próprio processo carrega esse futuro diálogo entre o artista e o receptor.

Essa relação comunicativa é intrínseca ao ato criativo. Está inserido em todo processo

criativo o desejo de ser lido, escutado, visto, lido ou assistido. Essa relação é descrita de

diferentes maneiras: complementação, cumplicidade, jogo, alvo de intenções, associação,

soberania do receptor e possível mercado.

Nesse sentido, e conforme Salles (1998, p. 95), “o artista apropria-se da realidade

externa e, em gestos transformadores, constrói novas formas” Nessa apropriação, são

estabelecidos jogos com a realidade porque, como o jogo humano, o jogo da arte sofre

uma constante transformação. Eis aqui o conceito de espectador enquanto colaborador,

participante ativo, ou co-autor de obras artísticas como resultado da interação

arte/espectador na conceituação de jogo.

A experiência artística mostra que a obra de arte não é um mero objeto que se

encontra em oposição a um espectador que está totalmente desvinculado dela. Tudo isso

possibilita à arte um caráter de contínua transformação. O sentido do conceito de

transformação está na sua construção. Nessa perspectiva, para Calvino, o “gênero”

romance transcende uma visão particular entre o leitor e suas imagens e sugere uma

estrutura em que ele, o leitor, não seja um mero decodificador, mas sim que seja

capturado por ela e dela participe ativamente. Se o atrativo do jogo se encontra no risco,

devemos nos dar conta de que Calvino expõe a si próprio ao risco da transformação. Este

pensamento mostra que no homem sempre está presente a vontade de arriscar, e quando

alguém arrisca, se expõe. Em cada lance de sua jogada, ele está se representando,

colocando-se em jogo em estado de transformação. O jogo é uma ação de contínuo risco,

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o que significa que as diferentes possibilidades se superam, permitindo a fascinação

recíproca jogador/jogo. Na superação das possibilidades, existe uma liberdade de decisão,

embora restrita.

Cada lance, cada movimento evolui e se transforma, de adversário para

adversário, de escritor para leitor. Jogando com os códigos e as técnicas de composição, o

resultado é um discurso, um campo de significações que se foi definindo nos códigos de

um texto. Ao ser emoldurado, assinado, esse texto virou obra de um autor, ele mesmo.

Mas tudo não passou de um jogo que deve ser continuado pelo leitor-intérprete, para que

o universo de possibilidades significativas seja recriado, recontextualizado, ganhando

novos sentidos.

Ainda nesse sentido do jogo, retomo a comparação há pouco apontada: em As

cidades invisíveis a tônica é colocada sobre a não-linearidade narrativa, enquanto em O

castelo dos destinos cruzados está sobre a sua polissemia. Em As Cidades o autor nota

que Marco exprimia-se por sinais, mas ele mesmo veste esses sinais em palavras, sem

deixar livre o curso das possíveis interpretações do leitor. Em O Castelo a estratégia de

escrita é posta às claras. Calvino mostra-nos as cartas e previne-nos que a sua

interpretação é apenas uma interpretação possível, podendo haver muitas outras. É

possível que outros personagens reunidos à mesa interpretem as cartas, à sua maneira:

Não sei quantos de nós haviam conseguido decifrar de uma maneira ou de outra aquela história, sem se perder em meio a todos os cartapácios (seqüências de cartas) de copas e outros que surgiam exatamente quando desejávamos uma clara ilustração do fato. A comunicabilidade do narrador era bastante escassa, dado porque o seu engenho era mais voltado para o rigor da abstração do que para a evidência das imagens. Em suma, alguns entre nós se detinham sobre certas conjugações de cartas e não conseguiam ir além. (CALVINO, 1997, p. 35)

Nós, leitores, encontramo-nos na mesma função dos personagens e somos livres

para dar a nossa interpretação para as cartas. Confrontamo-nos aqui com este fenômeno

que, como já tenho dito, pode ser considerado como o conteúdo principal da cultura do

século XX: a oposição binária realidade/ficção. Esta ocasião torna-se possível também

pelo fato de o autor se aproximar dos seus personagens. Em As cidades ele está acima

deles. Em O castelo, não o narrador, mas o autor encontra-se entre os seus heróis. Pode-

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se dizer que está lado a lado e é obrigado (quando conta a sua própria história

autobiográfica) a "brincar" de acordo com as mesmas regras que lhes impôs.

Não há nenhuma sucessão única de acontecimentos, e o texto do autor não é mais

nada que uma das versões possíveis da interpretação das cartas. O texto não é aquele que

lemos, o texto é algo mais que isso, é o potencial que pode ser realizado apenas

parcialmente e por um certificado (conjunto de caracteres e vazios a serem preenchidos).

A história começa então a se assemelhar a um iceberg, cuja parte invisível excede a parte

visível: o número de histórias-interpretação possíveis é limitado apenas pela imaginação

do leitor, ou seja, praticamente ilimitado. É precisamente a tomada de consciência desta

forma narrativa realizada nos textos, principalmente do século XX, que serve de peça

principal para a criação de hipertextos não-lineares.

Outra particularidade de O castelo é o seu caráter multimidiático, ou seja, a

superação de uma representação de arte, neste caso, a literatura. É evidente que este livro

não pode, em princípio, existir sem as imagens ou as cartas de tarô, aos detalhes mais

ínfimos dos seus desenhos, até às expressões de rostos sobre as cartas essenciais em parte

imaginadas pelo autor-intérprete. As imagens das cartas constituem a força motriz do

tema, como nos diz Calvino:

Passava dias inteiros a desfazer e refazer o meu puzzle, imaginava novas regras de jogo, desenhava centenas de planos, em quadrado, em losango, em estrela; os planos tornavam-se complicados (requerendo até mesmo a uma terceira dimensão, sob a forma de cubos, poliedros) que eu me perdia neles mesmos. (ibid, 1997, p. 138).

Observa-se que isto é um caso típico em O castelo: as histórias construídas a

partir da disposição de cartas de tarô estão sujeitas a uma desconstrução detalhada. Por

exemplo, isso acontece na história de Rolando louco de amor. Apenas no fim da aventura

amorosa de Rolando, o leitor presencia um processo incomum de decodificação, pois

Calvino faz um jogo narrativo dando ao texto um sentido completamente novo. Esta

“fluidez” é mais flagrante na história dupla de Fausto e Persifal-Parzival-Perceval e o

Cavaleiro de Espada (Duas histórias nas quais se procura e se perde):

Não sei por quanto tempo (horas ou anos) Fausto e Persifal gastaram para reencontrar os seus itinerários, tarô após tarô, sobre a mesa da taberna. Mas cada vez que eles se inclinavam sobre as cartas, a sua

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história se lia de uma outra maneira, sofrendo humores do dia e do curso dos pensamentos e oscilando entre dois pólos: o tudo ou o nada. (ibid., p. 123)

É precisamente nessa "fluidez" das passagens das histórias uma na outra que está

o aspecto único do livro. Põe-no à parte não somente entre os romances comuns, mas

também entre estas obras inegavelmente hipertextuais, como, por exemplo, o conhecido

romance Dicionário Kazar (1989) do iugoslavo Milorad Pávitch. 51

A lógica combinatória dos "quebra-cabeças" é muito importante na compreensão

do Castelo dos destinos cruzados e nas últimas obras de Calvino em geral. Os seus

palíndromos 52 reversíveis não são somente jogos filológicos sutis, mas a expressão da

idéia de reversibilidade do tempo, idéia de quem percebe o cruzamento de temas e de

destinos como o reflexo do mundo como um imenso puzzle – um jogo em que todos os

elementos necessários já estão presentes e disponíveis para serem manipulados e

combinados. Calvino, ele mesmo escreveu: “O que me interessa na minha obra, é um

puzzle onde o homem se encontre livre, um jogo de correspondências, uma figura que

deve ser reencontrada nos ornamentos de um tapete”. 53 Qual é a carta mais ou menos

verossímil, não importa.

Nestes relatos, o escritor-jogador embaralha os destinos e entrega-se à vertigem

dos jogos combinatórios, ao prazer cerebral de dispor as cartas umas ao lado das outras

para formar uma espécie de quadrado mágico sempre aberto a novas possibilidades. No

seu posfácio para O castelo, Calvino confessa que teve a idéia de escrever a terceira

parte do livro onde os assuntos resolutamente modernos são visualmente decompostos:

“Senti a necessidade de criar um contraste brusco repetindo uma operação análoga com

um material visual moderno. Mas qual é o equivalente contemporâneo dos tarôs, como

51 O Dicionário Kazar – romance-enciclopédia em 100.000 palavras foi traduzido para o português por

Herbert Daniel, editora Marco Zero, São Paulo, 1989. É considerado o primeiro livro que, explicitamente, aponta para o caráter hipertextual da leitura, já que, através de lógicas associativas, abre a leitura a uma multiplicidade de percursos e sentidos.

52 São jogos de palavras e de sentidos, palavra ou frase que, lida de trás para frente, fica igual, mantendo o mesmo sentido ou não: ANA-ANA; AMOR-AMOR; AROMA-AROMA, por exemplo. Uma cadeia “S” de caracteres é palíndromo. Se a leitura de S é igual da esquerda para a direita e da direita para a esquerda (ARARA-ARARA); se ignoramos a primeira letra de S (SARARA-SARARA), ou ainda se ignoramos a última letra de S (ROTORS-ROTORS).

53 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 118.

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representação do inconsciente coletivo?” (1997, p.157). Segundo Calvino, esse

equivalente poderiam ser as histórias em quadrinho: “não as histórias com temas para

fazer rir, mas as séries dramáticas ou as de aventuras apavorantes” (ibid., p. 157). Porém,

ele não foi adiante na formulação dessa idéia, era tempo de fazer outras coisas. E as fez

bem porque sempre gostou de variar os seus percursos. E estes outros caminhos o

mantiveram e o conduziram ao espaço por excelência da realização dos desejos e da

tensão como condição do movimento criador, aspecto presente no terceiro e último

romance aqui analisado – Se numa noite de inverno um viajante – conforme veremos no

capítulo seguinte.

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De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas as respostas que dá às nossas perguntas.

Italo Calvino

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CAPÍTULO V

DA INCOMPLETUDE EM UM VIAJANTE

Sobre o tema da hipertextualidade, Se numa noite de inverno um viajante é o mais

complexo dos três romances aqui estudados. Não somente do ponto de vista da estrutura,

mas também pelo número de alusões, referências intertextuais situadas em diferentes

níveis, episódios mascarados e jogos de sentidos camuflados. Nele, as marcas da

literatura pós-moderna são visíveis: trata-se da metaliteratura, bricolagem, hierarquia de

textos num texto, mudança da posição do autor e do leitor no processo de produção e

recepção da obra literária.

Daí, a razão de tê-lo dividido em duas seções. A primeira com ênfase no Apêndice

1, nomeado de “Rizoma Metatextual”; e a segunda com destaque para o Apêndice 2,

denominado “Rizoma Hipertextual”. Nessas análises mantenho e amplio a teoria do

hipertexto relacionando-a com a questão da interconectividade e da interatividade entre o

texto, o produtor e o receptor. Entretanto, do mesmo modo que os indícios presentes

neste livro põem-se a favor de tal interpretação, há minúsculas pistas estranhas a ela, as

quais, mais do que empecilhos, são considerados nesta pesquisa como motivação para

investigar as regras do jogo de criação. Seriam esses índices elementos necessários à

construção do texto? Ou fariam parte de uma grande “brincadeira” calviniana com seus

leitores?

*

Em uma das muitas possibilidades de se resumir a história deste romance, temos:

o Leitor, o protagonista Irnério, começa a leitura de um novo romance que é nada mais

nada menos do que o livro de Italo Calvino intitulado Se numa noite de inverno um

viajante, mas descobre que o seu exemplar comporta um erro de encadernação. O livro é

composto apenas do primeiro caderno, que se repete várias vezes, ou seja, as 32 primeiras

páginas (são reproduzidas). A leitura, por conseguinte, é cortada exatamente no momento

em que a ação começa a se desenvolver. O leitor apressa-se para ir à livraria trocar o seu

exemplar, está impaciente para conhecer a seqüência. Na livraria conhece a Leitora,

Ludmilla, que está com o mesmo problema de leitura, o de saberem que o romance que

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começaram a ler não é de Calvino (!), mas, por erro editorial, a capa do livro de Calvino

escondia o romance de um autor polaco desconhecido. O Leitor não se interessa mais por

aquele romance de Calvino que ele tinha a intenção de ler. Agora ele quer a continuação

do livro polaco.

Dão-lhe outro exemplar, mas o Leitor descobre que, como o primeiro, aquele

segundo livro não é mais o mesmo romance do polaco, e sim um terceiro livro com outro

erro: a partir do segundo capítulo, as páginas estão impressas apenas de um lado, e os

problemas continuam. Primeira pista (falsa) para uma possível solução do caso: no

romance há muitos topônimos. O Leitor consulta um Atlas geográfico e vê que os nomes

dos lugares mencionados na narrativa se referem a um país, Cimério – um Estado

aparecido após a Primeira Guerra Mundial e desaparecido definitivamente com a sua

língua após a Segunda Guerra Mundial. Intrigado, o Leitor marca um encontro com a

Leitora para fazer uma visita a um especialista dessa língua, um professor universitário.

Este reconhece instantaneamente a grande obra da literatura ciméria e põe-se a traduzi-la

desesperadamente a partir do manuscrito que possui.

Mas o Leitor e a Leitora dão-se conta de que se trata de outro romance, não mais o

polaco e nem o cimeriano. Neste, a história repete-se onze vezes. As investigações não

cessam, e a confusão aumenta, pois a figura quase mítica do Tradutor não resolve a

questão e nem sabe, ele mesmo, qual é a língua daquela versão romanesca. O Leitor está

cada vez mais envolvido na ação – e por um momento sente-se até um agente secreto – e

paralelamente a esta missão vai-se envolvendo com a Leitora. Decorridos muitos outros

impasses, o livro termina de maneira bastante "tradicional": o Leitor casa-se com a

Leitora e, antes de dormirem, eles terminam a leitura de um novo romance de Italo

Calvino, aquele inicial, Se numa noite de inverno um viajante.

Diríamos então que, de algum modo, este resumo apresenta uma síntese das duas

estruturas narrativas analisadas nos dois romances precedentes, pois ele combina o

caráter estático e fragmentado de As cidades com o dinamismo e a pluralidade de O

castelo. O caráter dinâmico da narração, interrompida nos momentos mais interessantes,

ativa não somente o Leitor, personagem a seguir por sua procura, mas também envolve o

leitor concreto no jogo, incitando-o a reconstruir a seqüência da história. É evidente que

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nesse momento cada leitor, o do lado de dentro e o do lado de fora da narrativa, obterá

seus onze livros, assim o número geral de leitura aumenta ao infinito, o que torna o texto

absolutamente não-linear, traduzindo (noção muito importante no romance) o condicional

– Se um viajante – ao indicativo como encontro dos onze romances.

Por outro lado, o paralelismo evidente de vários sub-romances (chamarei assim as

onze histórias incrustadas e inacabadas) que tratam do mesmo tema ou de temas

parecidos com estilos diferentes provoca uma tentativa de reunir as onze histórias

interligadas em uma só metanarração. Com os doze títulos – incluindo o do próprio

romance Um viajante – chegam a formar um parágrafo coerente a partir desses dez

incipts:

Se numa noite de inverno um viajante, fora da povoação de Malbork, debruçando-se da encosta íngreme sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas que se intersectam no tapete de folhas iluminadas pela lua em torno de uma fossa vazia. – Que história lá em baixo espera o fim? (CALVINO, s.d., 247)

Equivalente a esta anedota de Calvino, o escritor argentino Borges relata sobre

seu conto O jardim dos caminhos que se bifurcam: “– Numa charada cujo tema é xadrez,

qual seria a única palavra proibida? – Pensei em um momento e repliquei: – A palavra

‘xadrez’” (BORGES, 1989, p. 247). Analogamente, consta que em Um viajante não há a

palavra “criação” e a explicação para a ausência desta palavra-chave parece ser óbvia,

pois o Um viajante é uma imagem incompleta do universo da criação, da escritura e da

leitura. Um universo incompleto do tempo concebido como uma charada, ou parábola,

cujo tema, o da criação literária, como uma causa recôndita, proíbe-lhe a menção desse

nome.

Nesta obra de Calvino todos os desfechos podem ocorrer, pois cada um é o ponto

de partida de outras bifurcações. Ou, ainda, se podem reunir esses incipts em vários

grupos e em seguida construir uma metanarração. Segundo Gunnar Liestøl (1997), na

leitura de um hipertexto de ficção, o leitor não se limita a reconstruir as narrativas, ele as

cria e inventa de novo. No hipertexto de ficção, os princípios-chave da estruturação da

narrativa e as principais operações da criação são relegados do autor para o leitor, do

autor "primário" para o autor "secundário". Portanto, uma das primeiras características do

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hipertexto, do ponto de vista do leitor, é a sua implicação na escolha e a seleção dos

diferentes modos e técnicas de construção e composição da narrativa. Para Liestøl (1997),

o leitor, diante de um hipertexto, é convidado a tomar parte do que ele chama de

"maquinaria da narratividade", constituída por quatro níveis, de baixo para cima: [4]

Discurso, como ele é construído (por um leitor concreto); [3] Conjunto de discursos

(estratégias narrativas potenciais); [2] História, como ela é construída (por um leitor

concreto); [1] Conjunto de histórias (pontos potenciais de temas). Os níveis [1] e [3] não

dependem do leitor, enquanto os níveis [2] e [4] são escolhidos por ele.

E é claro que, em função da maneira como se constrói esta "Paciência" da

narrativa (após a análise de O Castelo dos destinos cruzados suponho que estes termos

não choquem ninguém), podem-se interpretar diferentes fragmentos da mesma história

dentro de um campo de narrativas. Com inícios da mesma narrativa ou de narrativas

isoladas o texto de Um viajante e os componentes da sua estrutura vão ter significados

muito diferentes. De maneira oposta e complementar do que nos outros dois romances,

As cidades e O castelo, o aspecto hipertextual que nele mais se manifesta é o da

heterogeneidade e o da interpenetração da consciência do ato de escrever com os meios

de comunicação (mas a este ponto terei ocasião de voltar adiante). Vejamos neste

apêndice que acompanha a obra:

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Figura 5.1: Rizoma da Estrutura Narrativa de Um viajante

CALVINO, Italo. Se numa noite de inverno um viajante. Lisboa, Vega, s.d., p. 251.

Constituída e descrita pelo próprio Calvino (s.d.) esta tipologia romanesca

formatada com onze sub-romances inacabados imita de maneira manifesta (às vezes

quase paródicas) este ou aquele estilo narrativo. Romance policial retrô, que reanima a

Itália de Amarcorde com alusões à resistência; romance de "educação sentimental", no

qual a ação se passa sobre um fundo etnográfico volumoso do Norte da Europa; romance

psicológico proustiano com um fundo policial; mais um sobre educação sentimental”,

porém com contexto revolucionário; romance policial contemporâneo sobre a máfia

internacional; outro romance policial, com motivos dominantes de espelhos e duplos ao

estilo borgiano; duas estranhas histórias de amor que se desenrolam nos meios

acadêmicos do Japão e dos Estados Unidos; o diário íntimo de Silas Flannery repleto de

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anotações sobre suas frustrações de escritor e de suas reflexões sobre a metafísica da

escrita; paródia sobre um romance de mitos latino-americanos; outro sobre a anti-utopia

fantasmagórica; e por último, sobre um conto de Haroun-al-Rachid. Muitas referências?

Sim, porém interconectadas.

O Apêndice 1, da página anterior, faz-nos recordar a imagem botânica do rizoma

e o conceito rizomático de Deleuze e Guattari (1998) sobre a ligação entre as suas raízes,

links. Nesse curso, relacionamos este elo com a questão da originalidade e da autoria do

romance pós-moderno – temas discutidos nos capítulos I e II.

Já se tornou recorrente na crítica literária contemporânea dizer que cada escritor

cria a tradição que lhe é anterior, evocando autores cujo parentesco se torna visível em

sua própria obra e que esta seria a culminância lógica de uma linhagem produzida por um

efeito premeditado de estilo. Porém, parece-me, que a crítica literária não pode

desconsiderar as contradições e suturas do processo histórico as quais têm marcado

inexoravelmente a produção cultural do nosso tempo. Portanto, se hoje o conceito de arte

está ampliado, é uma arte desvendar os simulacros. Walter Benjamin (1994) ao trabalhar

sobre o conceito de arte na modernidade não concorda com a crítica cartesiano-iluminista

de que o valor da arte consiste na sua autenticidade. O pensamento benjaminiano

influenciará demais Jean Baudrillard (1991), filósofo francês contemporâneo, tido como

o teórico do regime do simulacro, e Fredric Jameson, crítico literário conhecido pela sua

análise da cultura contemporânea e da pós-modernidade, entre seus livros mais

importantes está Pós-Modernismo: a lógica do capitalismo tardio (1984).

De uma forma ou de outra, e cada um na sua época, estes três estudiosos analisam

o capitalismo multinacional e falam sobre a "cultura sem profundidade". Sem

profundidade porque nela não existe mais a distinção entre alta-cultura e cultura de

massa. Conseqüência direta da reprodução, a qual ao simular o real, dá acesso ilimitado,

por meio da reprodutibilidade ou da planificação da cultura e da arte. Junto com esse

referente diluiu-se também a linha que demarcava real/irreal; autêntico/falso;

original/cópia; verdade/mentira, influência ou plágio. Vejamos.

O conceito de plágio é relativamente novo. Na Idade Média, as “leis da imitação”

permitiam e estimulavam a busca de um exemplum de um modelo do passado que

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servisse de base para fazer algo de novo com o antigo, mesmo que depois todos

pudessem perceber ali, na obra realizada, mais o antigo do que o novo. Talvez estivesse

no bojo dessa mentalidade a idéia da imitatio Christi, que não era simples cópia do

comportamento de Cristo, mas uma ascese que implicava a assimilação e a imitação

pessoal do modelo da santidade cristã. O medievalista Jacques le Goff menciona sempre

o fato de que, naquela época, os professores e artistas usavam as fontes cristãs e greco-

latinas com a liberdade de quem realmente podia apropriar-se, sem falsos escrúpulos, do

que lhes parecia inspirador.

O plágio, aliás, como a duplicidade autoral, a multiplicidade de temas, ou

histórias dentro de histórias, é um dos motivos repetidos que movem a arte e a literatura

pós-moderna. Nessas narrativas, o espaço literário exibe a imagem, logicamente absurda,

de uma absorção integral da consciência por si mesma, ou da literatura no ato de

escrever, ou da tradição na obra de seu sucessor. E, como estamos no quarto estágio da

representação, a "hiper-realidade" a tudo falsifica na época pós-moderna. No que tange à

cultura, o simulacro coloca-a como uma esfera de completa autonomia, e nela são

jogados os sujeitos descentrados, os quais devido ao acúmulo de imagens e simulações

possuem apenas uma experiência a compartilhar: a alucinação desestabilizada e

estetizada da realidade.

Portanto, cuidado. No mundo dos simulacros, tudo é uma questão de provar a

verdade pelo engano. O simulacro é construído sobre a diferença, não podemos defini-lo

em relação ao modelo porque ele já é de outra ordem; assim como não podemos defini-lo

em relação às cópias, porque estas ainda estão na mesma ordem do original, buscam a

semelhança. “O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz

parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma em seu ponto de vista”

(BAUDRILLARD, 1991, p. 164). Em suma, há no simulacro um devir ilimitado como o

do “Filebo em que ‘o mais e o menos vão sempre à frente’, um devir sempre outro, um

devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o

Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual”. ( ibid., p. 164).

O simulacro como devir faz surgir sempre o novo, o diferente e, pela distribuição

das diferenças, nega qualquer hierarquia. Em oposição, afirma a divergência e o

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descentramento. No simulacro nenhuma série tem privilégio sobre outra, nenhuma se

comporta como modelo ou possui algum tipo de semelhança como uma cópia. Cada

série é formada por diferenças e se comunica com outras exatamente por meio das

diferenças. Trata-se do falso como potência, Pseudos, no sentido em que Nietzsche diz: ‘a mais

alta potência do falso’. Subindo à superfície, o simulacro faz cair sobre a potência do falso

(fantasma) o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia: “Ele torna impossível a ordem das

participações, como a fixidez da distribuição e a determinação da hierarquia. Instaura o mundo

das distribuições nômades e das anarquias coroadas”. (BAUDRILLARD, 1991, p. 168).

É esta a potência do simulacro para a arte: são as distribuições nômades que

semeiam o cosmo e fazem populações. É através do movimento das séries divergentes

que surgem conexões improváveis, impossíveis. É o movimento que faz população, é

através dele que podem surgir rizomas. Um exemplo da potência do movimento está no

fictício. O simulacro e o fictício são dois conceitos opostos, pois enquanto o simulacro se

difere da cópia, o fictício é a cópia da cópia. Jean Baudrillard (1991) ainda cita o

Eclesiastes 54 para introduzir o conceito de simulacro como a “verdade que não existe”.

Para ele, o simulacro não é reflexo de uma realidade mais profunda, nem a mascara ou a

deforma, mas sim uma forma vazia retumbante, continente sem conteúdo, cuja ausência

de ser produz em nós aquela “histeria característica de nosso tempo: histeria da produção

e reprodução do real”, pois o que toda sociedade procura, ao continuar a produzir e a

reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa. Dessa forma, este pensamento da

ideologia, o segundo estágio da representação, no qual a realidade é pervertida e

mascarada, o consumo está garantido, e a consciência direcionada paga pela falsificação,

mas com a certeza de uma aquisição autêntica.

O pensamento de Baudrillard faz ressonância com o estudo acerca dos fluxos que

atravessam as experimentações no campo da cultura do filósofo Gilles Deleuze (2003), os

quais têm como atividade criativa o uso de apropriação e reutilização de conteúdo. Neste

cruzamento, Deleuze entende a criação como uma atividade sem sujeito, e que tenha por

isso o contágio como matriz. Surge daí a intenção de uma defesa da potência estética do

simulacro, do que não é cópia nem original, mas distancia-se de ambos pelos inúmeros

cruzamentos que faz entre séries divergentes. Para Deleuze (2003), o trabalho de criação

54 Fonte de provérbios bíblicos, Eclesiastes é o XXI Livro do Antigo Testamento.

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é um trabalho solitário, clandestino. Mas é do fundo dessa solidão que os encontros são

possíveis. A solidão de que fala Gilles Deleuze é um deserto extremamente povoado. Lá

se cruzam pessoas, pensamentos, idéias, movimentos e entidades, mas nenhum sujeito ou

nome próprio. Fluxos que se conjugam com outros fluxos. Um fluxo é algo intensivo e

instantâneo, mutante, que se desterritorializa para se conjugar com outros fluxos, que

também se desterritorializam, e assim por diante. São necessidades que se encontram, se

cruzam, se conectam em um movimento sem passado ou futuro, sempre em um “devir-

presente”. A escritura opera por conjugação, transmutação dos fluxos, linhas de fuga,

sistema de substituição, contágio e mutações pelo meio.

Essa teoria do contágio e as questões sobre a dissolução do Self se afinam com

obras de outros autores como unidade monológica e suas relações com o processo de

criação, como, por exemplo, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva e Roland Barthes. Para

Bakhtin (1982; 1993), a própria existência está fundada no diálogo, e o Self só pode ser

entendido dentro de um contínuo processo de comunicação. Esta noção de sujeito lhe é

muito cara para o estudo sobre a criação. Para ele, o processo de autoria localiza-se

sempre na fronteira entre duas consciências. Os produtos culturais, conseqüentemente,

abrigariam a polifonia resultante deste processo. A noção de sujeito em Kristeva (1974;

1978) é construída sobre a polaridade: o sujeito estaria dividido entre o consciente e o

inconsciente, a razão e o desejo, a racionalidade e a irracionalidade, o comunicável e o

incomunicável. É pela presença de múltiplas vozes nos produtos culturais que Barthes

(1988; 1990) declara, algum tempo depois, o desaparecimento do sujeito nos processos

de escritura. Para estes autores, a noção de sujeito não deve ser pensada por meio da

unidade, mas sim da dualidade presente em um Eu dividido, fragmentado.

Encontramos um exemplo deste processo da alteridade nos relatos de Deleuze,

sobre a sua experiência de escritura juntamente com a de Félix Guatarri (DELEUZE &

GUATTARI, 1998). Segundo ele, neste trabalho os dois deixavam de ser autor, um e

outro, para que a criação ocorresse entre ambos. Não era uma conversa, mas uma

conspiração. A criação entre-dois não conjugava apenas dois autores, mas remetia a

muitas outras pessoas, tanto de um quanto do outro. Era uma população, uma multidão.

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Mas mesmo se pensarmos apenas nos dois termos, vemos que existe um “e” entre

os dois que não é nem um nem outro, nem uma transmutação de um no outro, mas uma

multiplicidade. A multiplicidade está exatamente no “e”, porque não tem a mesma

natureza que os termos, os conjuntos ou mesmo suas relações. Por isso é possível traçar

uma linha de fuga que passe entre os dois, linha que não pertence nem a um nem a outro,

mas leva ambos a uma evolução “a-paralela” em um devir duplo. A linha de fuga é

criadora destes devires: “E todas essas histórias de devires, de núpcias contra a natureza,

de evolução a-paralela, de bilingüismo e de roubo de pensamentos, foi que tive com

Félix. Roubei Félix, e espero que ele tenha feito o mesmo comigo”. (DELEUZE e

PARNET, 1998, p. 24-41). Não era, portanto, imitação pura e simples, mas “plágio

criativo”.

Segundo Deleuze e Parnet (1998), em consonância com Baudrillard (1991) o

plágio criativo é uma imitação inteligente de versos e metáforas, de idéias e frases, de

resultados e conclusões de outros autores; e, devo esclarecer, esse processo criativo é

utilizadíssimo pelos grandes escritores, que são ao mesmo tempo grandes leitores e

descobriram o óbvio: “nada existe de novo sob o sol” (frase que eu devo ter copiado de

algum outro escritor). Outros exemplos. Mário de Andrade “confessou” ter roubado

inúmeras idéias de vários autores (e alguns trechos desses autores, textualmente) ao

escrever Macunaíma. Toda a escrita, para ele, se construía como uma apropriação sem

reservas do patrimônio cultural disponível.

E sobre isso, o que dizer sobre as fábulas orientais das Mil e uma noites com a

mitômana Sherazade e o Ali Babá que só era ladrão sozinho, mas junto com os outros

40, era inocente?! Ou ainda o que falar do procedimento narrativo de Calvino ao escrever

o Um viajante a partir dos onze incipts de outros romances com escritores, épocas e

culturas tão diferentes entre si e, por isso mesmo, interessante?

Desse ponto de vista, a obra de Italo Calvino, não só Um viajante, tem como

horizonte de criação as obras em prosa que fundem a literatura italiana da Idade Média.

Esse movimento de retorno ao passado ocorre em grande parte dos seus livros, como

registram os seus maiores críticos e biógrafos Paolo Angeleri, Pietro Citati e Angelo

Guglielmi. Por exemplo, na sua trilogia “Nossos antepassados”, composta por O visconde

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partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957); O cavaleiro inexistente (1959),

Calvino recua ainda mais no arco temporal da literatura italiana. Nesses livros, pode-se

identificar uma coletânea de narrativas anônimas escritas na Itália no final do século XII.

Essa exacerbação do ficcional, de influência e de estilo, em que toda experiência é

tragada por uma linguagem que a constitui, é certamente mais um traço que aproxima

Calvino dos grandes autores da pós-modernidade. Não é difícil encontrar dispositivos

narrativos em O castelo dos destinos cruzados e em Se numa noite de inverno um

viajante – segundo uma série matemática. Em ambos os casos, trata-se de se eleger um

modelo narrativo arbitrário, porém rigoroso, que organize e condicione a invenção dos

enredos romanescos numa paródia dos processos criativos pós-modernos, em que a

criação desafiava os modos herdados da tradição. Dessa forma, a própria tradição

transforma-se em efeito da matéria ficcional, indo ao encontro daquela informação de

Borges (em Kafka e seus precursores), segundo a qual cada escritor cria seus precursores.

Portanto, como as posições culturalistas sobre o cânone são contraditórias, porque

quando se fala em cânone, fala-se em duas coisas: em um consenso cultural provisório,

mas que tem de existir, e em duração.

Em Altas literaturas (1998), Perrone-Moisés vai em busca do pensamento

canônico de oito autores, mas cujas obras estão instaladas no coração da modernidade:

Ezra Pound, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Michel Butor, Phillippe Sollers,

Italo Calvino e o brasileiro Haroldo de Campos. Nestes autores, tão diversos entre si, mas

o que compartilham é fundamental, Perrone-Moisés busca os juízos e preferências

comuns ou divergentes. São escritores críticos, como ela os denomina, que acreditam em

coisas que a grande literatura nos pode dar: ampliação do imaginário, encontro com o

outro e autoconhecimento, capacidade de impressão e de expressão, visão crítica do real,

emoção estética, felicidade da palavra que nos faltava e nos é dada.

A consciência desse caráter positivo da linguagem, na qual as palavras criam as

coisas – mote de Foucault inspirado, aliás, no Borges de O idioma analítico de John

Wilkins, dá a Calvino uma liberdade infinita na invenção de sua obra. São calvinianas,

por exemplo, as histórias do cavalheiro inexistente insaciável de sonhos, que sonhava por

todos os moradores do acampamento, que medita sobre a diferença que existe “entre um

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morto de cinco minutos e um morto de cinco anos”. Com isso, percebe-se o quanto é

perversa, por parte de alguns, a relação limitadora de Calvino com os seus precursores

italianos.

Sua produção remete a obras de autores como Ariosto Ludovico, Leopardi,

Emidio Gadda e outros. Todavia o que neles era conquista do novo, fundação de uma

língua e renascimento de um mundo, adquire, em Calvino, uma valência negativa e

niilista, tanto mais eficaz quanto vazada em esquemas narrativos que estão na própria

origem da tradição literária italiana desde a sua origem aos dias atuais. Com essas

heranças, ou influências, Calvino transforma a solidão e a esterilidade do homem

moderno numa danação renovada ao confrontar seus seres anônimos com as virtudes e a

sensualidade cavalheirescas. Numa época em que o domínio literário se vai tornando o

parâmetro predileto para as análises literárias, a obra de Calvino cada vez mais se afirma

como obra central do nosso tempo, mas não se deixa reproduzir com facilidade.

Entre o infinito e o elementar, entre a multiplicação inumerável e a redução

absoluta, as produções ficcionais deste escritor apresentam-se como elegantes e sedutores

labirintos. Seu gesto mais característico é o da consciência que quer contar a si mesma,

simultaneamente fora e dentro de si. A coincidência desses dois espaços, externo e

interno, é uma ambição inalcançável, mas permanece como uma ilusão, em histórias cujo

assunto secreto parece ser seu próprio estilo.

Há muitas versões diversas do paradoxo da auto-inclusão em Calvino. Um dos

mais freqüentes é o do livro como enciclopédia total, à lá Borges, quase sempre

representada por uma técnica narrativa labiríntica. Aliás, labirintos e espelhos são outros

emblemas da duplicidade, que é a marca, afinal, de toda literatura irônica, ou moderna. O

pensamento sobre pensamento é uma forma de vertigem, e tanto maior quanto maior é a

consciência da sua inadequação. O labirinto absoluto é uma imagem ideal da

representação que a literatura desmente a cada palavra escrita. De todos os símbolos

espaciais de Calvino, nenhum é mais memorável do que a narrativa de Um viajante,

expandindo-se infinitamente para todos os lados. Neste, estão todos os livros do passado

e do futuro, incluindo o livro que contém em si todos os outros.

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Aqui, como um mundo imaginário, não existe conceito de plágio, mas sim de

criatividade de (re)leituras. Para autores fortemente irônicos, cada coisa é menos ela

mesma do que uma menção de si, e a coincidência entre a literatura e o mundo real só

pode ser uma idéia religiosa, ou expressão de fadiga. Ou ainda de um bem urdido no

simulacro a partir do qual o texto do “agora” já não é nem o mesmo e nem o semelhante

do “antes”, mas diferente. Afinal, um texto é uma totalidade que pode ser considerada de

lados diferentes, mas jamais de todos os lados simultaneamente. São vozes

influenciadoras em constante permutação e interação com a voz da autoria. Sempre numa

dimensão crítica, Calvino faz uso de máscaras de escrita, apresentando estratégias

narrativas que aos poucos se vão evidenciando nos disfarces do escritor estéril, do

escritor produtivo, do editor, do livreiro – ou ainda via o trabalho do agente, do revisor e

do tradutor, os quais, de uma forma ou de outra, conferem ao texto inaugural outro texto,

outra autoria.

Por outro lado, a estrutura dialógica do espaço romanesco atinge uma dimensão

polifônica pelo entrecruzamento de diversas instâncias discursivas que visam ao

questionamento do lugar do sujeito na linguagem. Bakhtin (1993) introduz, na teoria

literária, um novo posicionamento de leitura textual, acentuando seu aspecto heteróclito e

duplo. Processa-se uma inovação no panorama dos estudos poéticos que, anteriormente,

circunscritos ao domínio e aos modelos da lingüística, são tratados de maneira mais

totalizante, propondo uma ciência de linguagem que nomeia de “translingüística”,

pretende ressaltar o estatuto do “discurso a duas vozes”, responsável pelo dialógico,

considerando que esse tipo de discurso é orientado para a resposta antecipada. Essa

orientação é aberta para leitor e para a resposta no diálogo no qual se volta para a atuação

do escritor moderno, o qual não considera o receptor como alguém que só pode

compreender passivamente, mas sim como aquele que responde e replica de maneira

ativa na sua função de interagente da obra artística.

O dialogismo está presente não só, mesmo que principalmente, nessas três obras

escolhidas para o corpus da análise desta pesquisa, mas também em outra obra,

O cavaleiro inexistente (CALVINO, 1998). Abramos parênteses para esse romance.

Cultivando o dialogismo na dinâmica do jogo estético entre a voz do narrador e a dos

personagens em O cavaleiro, o narrador ocupa um campo de visão que define o tom de

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seu discurso. A partir dele, outros discursos se definem estabelecendo contrastes e

superposições, montando a rede dos excedentes de sua visão. Em O castelo ele escolhe

situação romanesca típica de um esquema que se poderia enunciar assim: uma

personagem masculina que narra na primeira pessoa se vê assumindo um papel que não é

seu. Visto assim, através de uma possível transmutação do escritor em autor, Calvino

enfoca as conseqüências do processo de ficcionalização no sujeito da escritura também

nesta sua obra.

Retomando Um viajante, esse núcleo narrativo básico é revelado no final do livro,

na forma de uma história apócrifa das Mil e uma noites. Também se reconhece esta

técnica da ‘moldura’ na situação da crise de identidade do protagonista, que podendo ser

um ‘você’, pode se identificar o próprio ‘eu’, indicando uma grade de percursos

obrigatórios que é a verdadeira força motriz do livro: “Tive a sensação de que naquela

luta se estava a dar a transformação, e que quando nos levantássemos ele seria eu e eu

ele, mas talvez seja só agora que o penso, ou és tu Leitor que o estás pensando, não eu

[...]” (CALVINO, s.d., p. 132).55

Percebe-se que a estratégia do autor consiste precisamente no tudo pôr em campo,

sobretudo confessando as suas preocupações muito pessoais de autor receoso de leitores

avisados aos quais já nada basta, nem a surpresa, nem o colóquio direto do skaz: “A

técnica do skaz consiste num tipo de narrativa dirigida não por um narrador impessoal

coincidente com o próprio autor, mas por um narrador/personagem cuja máscara

lingüística se mantém ao longo de toda obra” (ANGELERI, s.d., p. 7). Em Um viajante,

essa técnica, além de promover o dialógico da narrativa, possibilita a identificação

mistificadora do leitor/concreto, o do lado de cá, o leitor de fato, com o leitor/modelo, o

do lado de lá, o personagem. Com o skaz, Calvino só não exprime os procedimentos

verbais da narrativa, como pontua o processo de sistematização do significante, filtro de

projeção evocado pelo narrador, revelando maneiras de marcar o tom pessoal do autor-

narrador ou dos personagens, criando a polifonia, por exemplo: “Eu não sou mais que

uma impessoal energia gráfica, pronta a transportar do inexpresso até a escrita um mundo

imaginário que existe independentemente de mim” (CALVINO, s/d, p.185). No jogo de

55 Nesta, como em outras citações de Um viajante, mantive a sintaxe do português de Portugal por ser este

o idioma e o local da publicação do exemplar com que estou trabalhando.

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escrever, em lugar da normal estratégia do autor ligado à previsão da reação possível

leitor/modelo, Calvino usa a técnica audaciosa da identificação do leitor com o seu

leitor/modelo/protagonista. Ou ainda demonstrando uma visão crítica, pluralística e

multifacetada do mundo da escrita, propondo não só a questão da autoria “ – Que

importa o nome do autor na capa?” (CALVINO, s.d., p. 175), insere a questão da

responsabilidade autoral na produção romanesca:

O livro sagrado do qual se conhecem melhor as condições em que foi escrito é o Alcorão onde o Profeta Maomé escutava a palavra de Allah e a ditava para os seus escribas. Uma vez, - contam os biógrafos do Profeta – a ditar para o escriba Abdullah, Maomé deixou uma frase incompleta. O escriba, instintivamente, sugeriu-lhe a conclusão. Distraído, o Profeta aceitou como palavra divina o que tinha dito Abdullah. Esse fato escandalizou o escriba, que abandonou o Profeta e perdeu a fé na Palavra. (ibid., 178).

Pergunta-se: quem exerceu a função de autor, de narrador ou de escritor? De

quem foi, afinal, a autoria do texto? De Allah, de Maomé ou do escriba? Se for sobre a

página, e não antes, que a palavra se torna definitiva, o erro pode ter sido do escriba por

não ter fé na escrita e em si mesmo como operador do texto. Ou ainda as diferenças que

ocorrem na passagem, transcrição do oral para o escrito. Responde-se: é a diferença da

fluidez do pensamento em função da gramática e da sintaxe. É o grau de legitimidade

entre a linguagem oral e a linguagem escrita, ou, mais precisamente, a questão da autoria

transitando na cadeia produtiva de Allah para Maomé, de Maomé para o escriba

Abdullah, e destes para o leitor atento.

Com isso Calvino nos pergunta onde está o autor, onde estão os autores da nossa e

de outras épocas? Há livros que continuarão famosos, mas que serão considerados obras

anônimas; haverá autores cujos nomes serão sempre lembrados, mas de quem não ficará

nenhuma obra, como aconteceu com Sócrates; ou talvez todos os livros sobreviventes

sejam atribuídos a um único autor misterioso, como Homero. Reiterando, “Que importa o

nome do autor na capa?” Se o que vale, de fato, é a idéia de se penetrar nas letras

impressas, reproduzindo ao infinito o nome do autor, pois uma vez rompida a fronteira da

propriedade textual, pela constatação de seu estatuto flutuante, o autor de um texto plural

só poderá ser considerado autor enquanto ser de papel, presente no seu texto a título de

inscrição.

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Também o outro não mais o artista, mas o outro, sujeito comum, leitor-comum,

leitor-coletivo das pequenas narrativas da cotidianidade, assume um papel de co-criador

da obra. E esses procedimentos de como se contar histórias, haja vista, sempre pela

interatividade do eu com o outro, fazem com que se mantenha vivo o mito do eu do autor,

ou o eu do narrador, ou será ainda o eu de um escritor chamado Italo Calvino que

convoca o eu do leitor para nele se metamorfosear em muitos “eus”.

Dessa forma, há sempre o outro deflagrado diante do eu, há sempre relações – de

passividade ou dinâmicas, de criação ou de repetição – mas sempre relações entre

linguagens. É o lugar do narrador e do leitor que perfaz o texto através de um contínuo

testar do livro como objeto, como canal, uma fascinante viagem pela função fática da

travessia metalingüística. Recortando o objeto e inventando uma nova linguagem, obra e

criador confundem-se.

Sabe-se que a arte atual convida o sujeito a fazer parte dela e reaprender a

interagir, propondo modos de participação na obra inteiramente inusitados. O essencial

não é mais o objeto em si, mas a confrontação dramática do espectador com uma situação

perceptiva. Na estética participacionista é esta confrontação que torna a existência e a

significação da obra dependentes da intervenção do espectador, ou seja, a obra de arte

não é mais fechada em si mesma, fixa no seu acabamento. Aquele que, anulando as obras

acabadas, deu origem às obras que não são criadas só pelo artista, pois elas são realizadas

conjuntamente, a partir de interconexões entre participantes anônimos que possam

encontrar-se em locais não só diferentes, mas em partes opostas do globo. De onde

estiverem os desconhecidos receptores entram em ação por meio das tecnologias da

comunicação.

Isto ocorre especialmente no caso da arte que envolve técnicas interativas, nas

quais o espectador interage com uma situação criada pelo artista, pode ser lendo um livro,

representando um CD-ROM, caminhando pela realidade virtual, entrando na Internet,

visitando um website ou navegando um hipertexto. Mas qualquer que seja o caso, o

espectador exerce um efeito sobre aquilo que é visto. O que importa é que em todas estas

situações, sem interação nada de novo acontece; sem interação nenhum significado é

gerado; sem interação nenhuma experiência é criada.

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É nesse quadro que o lugar do sujeito oscila, ao perceber que não existem mais

segredos científicos ou discursos legitimadores, tal como se verificava no pensamento

crítico tradicional. Por essas razões, a história fragmentada do sujeito no discurso do

romance contemporâneo só poderá ser recomposta em espiral e com a ajuda de vozes e

autorias diversificadas. Busca-se refletir sobre o estatuto do discurso assinado por um

determinado sujeito, que caminha ao lado das produções culturais de seu tempo.

Extraindo do peito a matéria e da mente a forma, o seu texto literário confunde o

falso e o verdadeiro, prestando homenagem ao reino da ficção. Daí por que se pode

afirmar que o seu estilo literário vai muito além do meramente verbal, ou como ele diz

“escrever histórias reside em tirar de um quase nada todo resto de que se compõe a vida;

mas acabada a página, retorna-se à vida e percebe-se que o que sabíamos era o mesmo

que nada, o eterno retorno” (CALVINO, 1990, p. 76). Com esta declaração, Calvino

indica-nos não desconhecer e desconsiderar o que aconteceu no antepassado – intenção

confirmada na sua primeira fase de produção com os romances O visconde partido ao

meio (1951), O barão nas árvores (1957), os quais compõem com O cavaleiro

inexistente (1959) a trilogia Os nossos antepassados (1960).

Sabendo, como outros poucos grandes escritores, enfrentar as ciladas do presente,

desafiando o futuro com a permanente atualização da sua arte, Calvino prolonga a

tradição autoproblemática do romance ocidental. Fundamentalmente via a poética

representada no jogo da linguagem entre realidade e imaginação, sem esquecer, todavia, a

crítica da leitura e mesmo da cultura e da mídia. Analisar essa sua obra é como penetrar

num labirinto procurando abrir muitas das suas portas, rompendo horizontes oferecidos

pelo tipo de escrita hipertextual. São obras curiosamente construídas de forma a dar

passagem a muitos outros universos, somando-se a tantas outras engenhosamente

modeladas por escritores audazes que fizeram da literatura um jogo, ultrapassando todos

os limites, numa busca constante de novas formas de expressão.

Isto nos pede a retomada da questão do jogo como condição criadora presente no

capítulo antecedente. O jogo impõe um esforço ao jogador; coloca objetivos. O romance

inacabado é a atração do personagem Leitor. O Leitor joga algo não determinado, que

somente ganha forma pelo contato, pelo processo dialético circular de estímulo e

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resposta, de mover e ser movido. A fascinação está em conseguir cumprir tarefas, em

encontrar um exemplar completo do romance Um viajante. É o jogo que mantém o

Leitor encantado e envolvido na demanda do livro total, pois a natureza do jogo, além de

um espaço determinado e de uma liberdade de movimentos, oferece a quem participa o

elemento surpresa, o inesperado.

Se o jogador entrar no jogo conhecendo o desfecho, ele deixa de ter sentido. O

jogo pressupõe sempre a renovação de uma situação. Daí que em Um viajante para cada

capítulo há um título de um outro livro, de um outro autor, gerando um novo romance,

aumentando mais ainda a sua incompletude.

Nessa condição renovadora, por fim, sobrepujam-se os fantasmas que, quem sabe

vencidos, permitem o grande avanço em direção à construção de uma história que se faz

cíclica e infinita, retornando de várias formas textuais diferentes, em um espaço que toma

a forma de papel e letra, materializando-se em um objeto concreto do mundo real. Sendo

assim, Um viajante é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo da criação tal

como o concebia o personagem Silas Flannery, o velho escritor atormentado. Para ele, o

jogo implica a idéia de encruzilhada nos vários traçados do jogo narrativo.

Neste romance, Calvino terá a história como ele queria que fosse e, seus

personagens, inconscientemente, projetarão o que, por um motivo ou outro, ele teve de

reprimir. O jogo continua. O mundo lúdico é para sempre mantido e podemos dizer para

ele o que Freud diz sobre o escritor: “Faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um

mundo de fantasia que ele leva muito à sério, isto é, no qual investe uma grande

quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a

realidade”. (FREUD, 1976, p. 102).

A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. No

esconder e no revelar, no eterno jogo de mostra/esconde do texto, guarda-se o enigma que

deve ser decifrado em um espaço feito de letra, palavra e papel. Reflete, assim, um outro

espaço, o espaço anímico de seu criador, feito de emoções e sentimentos, sejam eles

claros ou escuros, positivos ou negativos. Nesse estado mais seguro é que Silas Flannery

gostaria de se sentir quando o fantasma da castração, gerador da impotência, se afastasse

e o escrever se fizesse fluir. Assim escritor e escritura estariam no mesmo lado do campo

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de batalha, só assim se recuperaria a euforia, a certeza da expressividade, da frase que

brota em rasgos como a que está no quadro do Snoopy e que tanto o desafia:

[...] na parede em frente da minha mesa está pendurado um pôster, é o cãozinho Snoopy sentado à máquina de escrever e na legenda lê-se a frase: ‘Estava uma noite escura e tempestuosa... ’. Desde que tenho este pôster pendurado à frente dos olhos, já não consigo terminar uma página. É preciso tirar da parede este maldito Snoopy o mais depressa possível; mas não me decido; aquele boneco infantil tornou-se para mim o emblema da minha condição, um aviso, um desafio. (CALVINO, s/d: 173). (Grifo nosso).

Nasce daí a raiva, o repúdio diante da própria impotência e da não possibilidade

de criação. Nos seus momentos de tensão negativa quando sente a própria imobilidade

diante do texto, a dificuldade se adensa, não conseguindo escrever, nascendo daí o

desespero. Este estado agrava-se mais ainda quando Flannery observa o seu grande

concorrente editorial, o jovem escritor produtivo gerando páginas e páginas de um novo

romance no seu computador de última geração, não sabendo ele que, num processo

inverso, a mesma inveja tem o escritor produtivo dele. Vejamos neste terceiro resumo,

em verdade uma descrição de uma das muitas estratégias narrativas, dentre outras

camufladas, proposta pelo próprio Calvino, e por isso mesmo, a justificativa da sua

extensão:

Projeto de Narrativa. Dois escritores se observam alternadamente. Um deles costuma escrever de manhã, o outro de tarde. Um dos dois é escritor produtivo, o outro é um escritor atormentado. O escritor atormentado vê o escritor produtivo encher as folhas de linhas uniformes, o manuscrito crescer numa pilha de folhas ordenadas. Dentro em pouco o livro estará concluído: por certo um novo romance de sucesso – pensa o escritor atormentado com certo desdém, mas também com inveja. O escritor produtivo observa o escritor atormentado enquanto este se senta à secretária, devora as unhas, se coça, rasga uma folha, se levanta para ir à cozinha fazer um café, depois um chá, copia de novo uma página já escrita e a apaga novamente, escreve alguns apontamentos que serão bons, mas não agora, talvez a seguir, depois vai consultar a enciclopédia no artigo Tasmânia (quando é claro que naquilo que escreve não há qualquer alusão à Tasmânia), rasga duas folhas, coloca um disco de Ravel [...] (CALVINO, s/d, 170).

Parece que é o que faz Italo Calvino na voz do seu personagem, o escritor-

atormentado, Silas Flannery. Nesse jogo do processo de enunciação, escritor e escritura

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não são partidários, mas inimigos. Antes do gesto, porém, o desejo aparece no texto como

forma lúdica enquanto a possibilidade da tensão psíquica aparece como agente detector

do significado da ação, sobre o conteúdo expressivo da forma e sobre a existência de

eventuais valorações. “Não há crescimento sem conflito”, assevera Fayga Ostrower

(1987) ao defender a tensão psíquica relevante para a criação podendo ser elaborada e

validada para qualquer processo criativo e produtivo.

Portanto, através de seus duplos Italo Calvino ocupa uma mesma posição, a do

escrito-produtivo e a do escritor-atormentado, chegando à percepção de que, num

primeiro momento, Flannery tenta defender-se de seus fantasmas e, em um segundo

momento, procura deles desvencilhar-se. E, provavelmente o escritor, consciente de seu

processo de criação, quis instigar o leitor a um mergulho interpretativo mais profundo na

sua obra ou, se entendido da ótica da hipertextualidade, quis chamar a atenção do leitor-

usuário para outra maneira de ultrapassar a linearidade do texto. Assim, abriu uma fenda

entre os vários textos que ele abriga e que se reduplicam no infinito, mostrando que a

força está não no produto pronto e acabado, mas no seu processo.

É a revelação da obra de arte que instiga e convida o leitor para estar dentro e

atento. É a contigüidade entre a narrativa encaixante e a encaixada postulada por

Todorov (1979). Por isso, mais do que uma narrativa encaixante o Um viajante é

constituído por textos encaixados, textos mostrados desde o projeto chegando a sua

circulação e a aceitação do público, pois é no desvelamento do seu processo de

enunciação que se revela a escrita do desejo comandada pelo desejo da escritura.

Em outra, das muitas possibilidades de síntese de Um viajante é dizer que a

história é narrada por um narrador-personagem cuja máscara lingüística se mantém ao

longo de toda a obra. As surpresas se sucedem como as histórias contadas, sempre

envolventes, sempre inacabadas. Como se vê, em Calvino é quase tudo estratégia,

procedimento. Daí a preocupação de ressaltar e ratificar que a pesquisa da fonte é aqui

apontada não como uma mera verificação da constatação da dinastia precedente da obra

de Calvino, mas sim enquanto elemento influenciador do seu processo criativo, isto é, a

crítica da fonte enquanto um espaço de relações textuais e também um caminho para se

fazer crítica genética, de modo a serem legíveis, no enunciado poético, vários outros

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discursos, pois ao mesmo tempo que falamos de leitura, falamos de criação. Borges,

especialmente preocupado com esta questão da relação entre memória e leitura, acredita

que o que se chama de invenção literária é realmente um trabalho de memória, “a

imaginação é o ato criador da memória do que lemos” (BORGES, 1989, p. 201).

Por isso, chega-se a sentir que a energia criativa dos dez, ou mais autores,

presentes em Um viajante, penetram e, sobretudo, evidenciam o fato de que todo livro

nasce na presença de outros livros, em relação e confronto com outros livros. Porém,

mais do que se identificar com o autor de cada um dessa dezena de romances, Calvino

procura identificar- se com o leitor(a).

Há no romance uma cena que Silas Flannery, o escritor em crise, observa do alto

da sua varanda a moça que lê, Ludmilla! A leitora de mil e uma leituras observada pelo

escritor angustiado pela busca do livro total. Flannery, entre uma olhada e outra, corre

para não deixar escapar o insight do momento. Não chegou a dizer isso, mas creio que se

o fizesse seria próximo ao instante de leitura capturado por Vermeer no seu célebre

quadro Moça lendo uma carta.56 Ouso registrar a minha descrição: uma jovem mulher lê

de pé, com o rosto iluminado pela luz da janela; seus olhos lêem o que está escrito

naquela folha de papel que suas mãos tocam; absorta, com a boca entreaberta, quase num

sorriso, nem se dá conta da cadeira ao seu lado.

É a entrega pelo puro prazer da leitura confirmado por Calvino (1999) com a

leitora por vocação, o destinatário natural e fruidor. Ludmilla é a sublimação da “leitora

média”, mas bastante orgulhosa de seu papel social de leitora por paixão desinteressada.

É na insuperável Ludmilla que se agregam estas extraordinárias qualidades que, afinal,

segundo Calvino, pertencem ao verdadeiro leitor. E essa imagem romântica da leitora-

ideal, passa a ser uma imagem geradora para o escritor em crise de produção. Flannery,

impossibilitado de criar e em estado de total angústia, inspira-se nessa entrega da Leitora,

só compromissada com o prazer da leitura, para tentar começar o seu livro.

56 De Johannes Vermeer (1632-1675). Também é dele o famoso quadro Moça com brinco de pérola

(1662), pintura que inspirou Tracy Chevalier a escrever uma consistente biografia romanceada de Vermeer (1999), e para Peter Weber um belíssimo filme (2004). Ambos, o romance e o filme, têm seus títulos homônimos ao quadro holandês.

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Essas imagens, que tanto podem ser uma visão, um sentimento, ou simplesmente

um fato do cotidiano, podem agir como elementos que propiciam futuras obras, como

também podem ser determinantes de novos rumos ou soluções de obras em andamento.

Da sua torre de observação, a varanda, o escritor faz de Ludmilla um motivo gerador,

enquanto predisposição para recuperar e renovar a vitalidade da ação de criar. Mesmo

depois de um período de cinco anos sem conseguir escrever, a realização do projeto do

seu novo romance ainda não chegou à primeira página. E aquela cena representa para ele

uma intensificação do viver, um vivenciar no fazer que, em vez de substituir a realidade,

é a realidade. É a possibilidade de uma realidade nova que adquire dimensões mais

elevadas e complexas desde quando o livro que a leitora lê é um dos seus livros ou aquela

obra que pretende criar.

Ler sem fim implica um prazer estético e mais ainda uma radicalidade crítica.

Sem dúvida, este é o lema de Calvino. Entretanto, menos que paradoxal, mas coerente,

esta não parece ser a opinião do polêmico personagem não-leitor, Irnério, aquele que

destruía livros para fazer arte e agora nos fala de crítica e leitura, ou de leitura-crítica:

Não criticas o que lês? –Eu? Eu não leio livros! – diz Irnério. –Então o que lês? –Nada. Habituei-me tão bem a não ler que não leio nem mesmo aquilo que me cai debaixo dos olhos por acaso. Não é fácil, nos ensinam a ler desde crianças e durante toda a vida permanecemos escravos de toda a escrita que nos põem debaixo dos olhos. É claro que tive de fazer um esforço, nos primeiros tempos, para aprender a não ler, mas agora já é uma atitude natural. O segredo está em não nos recusarmos a olhar as palavras escritas, pelo contrário, é preciso olhá-la intensamente até desaparecer. (CALVINO, s/d, p. 59).

Essa é a idéia que Irnério faz do livro, enquanto objeto de leitura. Os livros para

ele apresentam-se sob a forma de materiais em estado bruto, enquanto peças de

substituição, engrenagem de montar e desmontar com infinitas possibilidades de criação,

possibilidades de leituras, não aquela leitura do verbal mecanicamente decodificado, mas

a possibilidade de uma leitura, no seu papel de receptor-criador, esteticamente ativa,

participativa e criativa. Por isso, Irnério pode ser considerado como o artista (não) leitor,

o artista (a) crítico, como se no plano da crítica da arte mostrasse, através desse seu ponto

de vista sobre a leitura, a preocupação principal do artista moderno: o potencial crítico da

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obra, no qual o leitor-crítico, aquele que lê e analisa uma obra, estaria ou não dispensado

da tarefa de interpretá-la criticamente.

Com mais essa estratégia Calvino oferece ao leitor-especializado pistas que

possibilitam o conhecimento de estados preliminares que levaram à concretização de sua

obra para a compreensão e análise de sua elaboração. Por outro lado, passa a ser

considerado como um geneticista de sua própria criação; mantém o elo interativo entre a

tríade leitor-obra-autor.

Neste aspecto, o geneticista Calvino, em seu interesse pelo processo criativo,

constrói e assiste ao espetáculo da construção de uma obra, a dele mesmo, por uma

mente criadora que, além de sonhar com um leitor, tem no próprio criador o seu primeiro

receptor. Não se perde, assim, o movimento dialógico contínuo entre a radiação e o

desenvolvimento da obra através de suas futuras interpretações, isso, sem mencionar a

primeira interpretação que vem do próprio escritor.

As dualidades são destruídas, e uma relação triádica aflora. O escritor, como seu

primeiro leitor, tem poderes diferentes de um leitor comum: é um leitor que é, ao mesmo

tempo, o eu que escreve, se lê, se autocomenta e se reescreve. Em Um viajante, discernir

leis específicas da produção criativa é entender a gênese da obra de arte ou o processo de

invenção artística, é tentar discutir o processo de criação e o tempo da concepção e

gestação do produto considerado final por seu criador. Verifica-se que as fronteiras entre

a ficção e o ensaio tornam-se menos evidentes no avançar da narrativa:

Há alguns meses que Flannery tinha entrado em crise; não escreve nem mais uma linha nos romances que começou e pelos quais recebeu adiantamentos de editores de todo mundo [...] estes romances em que as marcas dos licores bebidos pelos personagens, as localidades turísticas freqüentadas foram já fixadas por contratos através de agências publicitárias [...] mas agora Flannery diz a todos para esperarem, prorroga os prazos, anuncia mudanças de programa, promete atirar-se de novo ao trabalho o mais depressa possível, recusa ofertas de ajuda. Segundo os boatos mais pessimistas, teria começado a escrever um diário, um caderno de reflexões em que não acontece mais nada [...] (CALVINO, s.d., p. 124).

Partindo da crítica à leitura, seguindo com a crítica às tensões e os conflitos da

criação, Calvino rompe o limite entre os gêneros. Com a prática de uma miscelânea

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literária teorizando até mesmo a indústria e a engenharia editorial, o seu ritmo crítico

continua com Marana, o personagem do Grande Mistificador que rege um registro

cômico-alegórico de uma conspiração universal dos poderes incontroláveis do sistema

editorial. Marana apresenta- se para Silas Flannery

Como representante da OEPHLW (Organização para a Produção Eletrônica de Obras Literárias Homogeneizadas) oferecendo a sua assistência técnica para terminar o romance do escritor em crise: Flannery tinha empalidecido, tremia, apertava o manuscrito contra o peito. – Não, isso não, – dizia, – nunca permitirei! (ibid., p. 125).

Nesse exemplo percebemos que a crítica é um espaço intermediário entre a obra, o

escritor e o leitor manifestando-se como uma atividade de linguagem, uma tentativa de

construir seu próprio discurso sobre o discurso de outro, construindo a linguagem da

linguagem. Nesse discurso reinventado são, ao mesmo tempo, o crítico e o criador que

dialogam.

Compreendendo assim, temos em um nível de consciência sobre a relação

criativa do processo do ato de leitura com o ato de escrita, por meio da relação de

causa/efeito das imagens geradoras que fornecem um imenso poder de gestão para o

artista. Dessa forma, a leitura de outros livros mais a leitura de uma imagem visiva

podem ser filtradas pela memória e tornam-se influenciadoras e transformadoras da

criação, colocando o artista no campo da técnica e, por meio dela, seu projeto se

manifesta e se concretiza.

Os capítulos que ligam estas narrativas, nos quais se desenvolve a relação entre os

personagens, o Leitor (Irnério) e a Leitora (Ludmilla), são ainda mais travestidos e mais

paródicos. Já no início, Calvino trata maliciosamente da técnica narrativa modernista. O

seu desejo perverso-polimórfico se apresenta por meio da homologia das estruturas

significantes. Todo o texto é permeado de links para os leitores atentos.

Você já leu umas trinta páginas e já começa a se apaixonar pela história. Em certa altura observa: “Mas esta frase, parece que já a conheço. Creio que li todo esse trecho”. É verdade, há motivos que retornam, o texto é tecido por esse vaivém destinado a exprimir a imprecisão do tempo. Você é um leitor sensível a esses refinamentos, pronto a captar as intenções do autor, nada lhe escapa. Um instante, espere, olhe o número da página, “Não é possível!”, o que você considerava um rebuscamento de autor modernista não passa de erro de impressão: repetiram duas

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vezes as mesmas páginas. “E depois o que acontece”? Nada, a narração se repete idêntica às paginas que você leu há pouco! (CALVINO, s/d, p. 35)

Chegamos aqui a uma particularidade bem curiosa do romance Um viajante. Se

em Cidades invisíveis o autor está acima dos seus personagens Marco e Khan, em O

castelo ele está lado a lado deles jogando cartas de tarô, em Um viajante Calvino dá mais

um passo no seu envolvimento com a narrativa estando ele próprio dentro do seu livro.

Após ter lido mais da metade do romance, o leitor real – aquele situado na realidade

externa em relação ao romance – descobre que o livro que está lendo é escrito por um

dos seus personagens! Portanto, "o autor biológico" – o escritor Italo Calvino – figura no

meta-romance na qualidade do autor de um dos sub-romances. Mas é importante dizer

que não se sabe se ele existe ou se ele é inventado pelo tradutor mitômano Marana. Dessa

forma, Calvino é tratado de maneira bastante familiar:

Foram dias de enlouquecer! Verificamos os livros do Calvino um por um. Felizmente há alguns que estão bons e podemos já trocar de seqüência de Um viajante por um em perfeito estado. – Não, escute, eu não quero saber nada mais desse Calvino. Comecei o romance polaco e é o polaco que quero continuar. Tem esse aí? (ibid., p. 41-42)

Este não é um autor onisciente, distante da narrativa, mas aquele que se dirige ao

leitor com estas palavras: "Você, leitor"; não é um autor de memórias (como Dante,

Robson Crousoé ou Casanova); não é "o herói lírico" que faz cara de quem ignora a

atividade de redação do seu "duplo real"; também não é o narrador introduzido

exclusivamente nos interesses do leitor (como doutor Watson), mas é um dos

personagens do próprio romance.

E o "leitor" que Calvino se dirige no início da narrativa tem o perfil de um leitor

comum facilmente identificável, o qual, progressivamente, vai se envolvendo e

interagindo na ação de maneira cada vez mais ativa. Pode-se dizer que atravessa, de

maneira imperceptível, os limites da folha impressa para entrar "no espaço virtual" do

texto, assim como Orpheu passa pelo espelho no “País da Morte” no filme de Jean

Cocteau 57, assim como os internautas atravessam a tela do computador. Em que

57 O francês Jean Cocteau (Paris, 1889-1963) foi poeta, escritor, dramaturgo, crítico de arte, desenhista,

escultor e cineasta (ele foi um dos primeiros escritores francês a fazer cinema). Ele foi um dos pilares da

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momento isso acontece? No momento em que o leitor chega à universidade? Quando

inicia o diálogo com a Leitora? Ou ainda mais cedo: quando recusa o bom exemplar do

romance de Italo Calvino Se por uma noite de inverno um viajante que lhe foi proposto, e

põe-se à continuação do "verdadeiro livro" que lhe escapa?

Está-se uma vez mais na situação em que não se pode pôr um limite fixo entre a

"realidade" e a "ficção". Para uma releitura atenta observa-se que o autor (quer se entenda

por esta palavra) não pára aí: Silas Flannery não chega a redigir, e espera a inspiração

telepática de extraterrestres que têm a intenção, pelo representante terráqueo do seu livro,

o próprio Flannery, de transmitir a sua mensagem. O livro que Flannery preparava está

escrito, e será ele Um viajante que lemos?

Dessa mesma maneira, a noção de autor se fluidifica no mundo atual das letras

para se transformar numa pluralidade de autores possíveis, "virtuais" que não podem

convergir para um indivíduo real. E diferentemente do romance tradicional, aquele

linearmente narrado, o hiper-romance demanda um hiperautor. Diferentemente do autor

tradicional, ele pode ser comparado ao conjunto de partículas elementares da mecânica

quântica, pois enquanto umas se deixam localizar há outras que se dissolvem e

permanecem em ondas e, assim, pode-se tentar definir o "verdadeiro" autor. “O autor não

morreu!” ele está precisamente além do simples desejo de descrever o mundo, as pessoas

e o seu arredor o mais exatamente possível.

A partir da noção, já clássica, de intertextualidade, que vem, principalmente, de

Julia Kristeva (1974; 1978) e Gérard Genette (1982; 1996), firma-se a acepção de

transtextualidade. Pois, como dizem eles, não há texto sem transcendência textual, isto é,

tudo que coloca um texto em relação manifesta ou secreta com outros textos. Referindo-

me o Calvino, lembro que quanto mais a obra tende para a multiplicidade, menos ela se

distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a

produção cultural no país entre o fim da Primeira Guerra Mundial ao início da Segunda. Foi bem-sucedido em praticamente todas essas atividades. No cinema, basta citar O Sangue de um Poeta (Le Sang d'un Poete, 1930), A Bela e a Fera (La Belle et la Bête, 1946), ou a versão de Orfeu (Orphée, 1949), obras-primas do surrealismo. Na literatura, Les Enfants Terribles, redigida em apenas 17 dias durante sua passagem por uma clínica de desintoxicação, é uma das obras mais conhecidas. Na dramaturgia, é dele a versão de Édipo Rei, baseada na tragédia grega de Sófocles, em cartaz no Municipal de São Paulo, 2003. In: Éncarte de apresentação da exposição Jean Cocteau, sur le fin du siècle. São Paulo, Museu Nacional de Arte Contemporânea, janeiro/2003.

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descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, quem somos nós senão uma

combinatória de experiências, informações, de leitura, de imaginações? Cada vida é uma

enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma mostragem de estilos, em

que tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Ampliando, seria a relação dialógica em que o significado poético remete a outros signos

discursivos, de modo a serem legíveis, no enunciado poético, vários outros discursos.

Está mais do que evidenciado que Italo Calvino em Um viajante nos apresenta um

romance sobre o que significa o ato de ler e o ato de escrever. O narrador, introduzindo-

se na narrativa como testemunha da aventura do personagem, promove que o final do

relato remeta ao seu início. A circularidade do enredo prova que seu verdadeiro

protagonista, a “narratividade”, é uma imagem circular que ao mesmo tempo se fecha e

se abre sobre si mesma: o objetivo da fábula é contar a fábula e o fim da narrativa é, por

isso mesmo, o seu reinício. Isso se baseia no próprio universo lingüístico do texto,

ressaltando o aspecto compósito da obra, atravessado por uma gama heteróclita de

discursos que dialogam entre si. Com a metalinguagem o leitor encontra, na própria

enunciação, reflexões sobre o escritor fazendo prosa, o narrador contando sobre a

narrativa – “vê” a própria história do texto, os bastidores da cena poética: o nascimento

do personagem, o narrador na narrativa, a imagem do livro no livro.

Numa das muitas entrevistas de Calvino sobre Um viajante, um amigo seu

lembrou-lhe o esquema de alternativas binárias que Platão usa em o Sofista para definir o

pescador de anzol: a cada vez se exclui uma das alternativas, e a restante se bifurca em

outras duas. Certamente bastou tal observação para que ele se pusesse a traçar esquemas

que, segundo esse método, prestassem conta do itinerário delineado no livro. E assim o

fez:

Tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe, foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de se ler romance; o protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não consegue terminar. Tive, portanto, de escrever o início de uma dezena de romances de autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si: um romance todo de desconfiança e sentimentos confusos; outro todo de sensações densas e sangüíneas; um

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introspectivo e simbólico; um existencial revolucionário; um cínico-brutal; um de manias obsessivas; um lógico e geométrico; um erótico-pervertido; um telúrico-primordial; um apocalíptico-alegórico. (CALVINO, 1999, p. 266).

Percebe-se nesta passagem, não só uma declaração de preferências de autores

‘imaginários’, mas, também, uma seleção e combinação, com um limite

matematicamente consciente, de estilos que vão desde o romance impalpável ao

apocalíptico. Parecendo assim que continuamente se lhes apresentassem infinitos tipos de

romances nos quais ele poderia acrescer uma lista combinatória inumerável.

Acrescentando certo sabor ao experimento, o romance Um viajante não representa só

uma história de histórias bem planejada, mas um modelo de narrativa hipertextual.

Perseguindo a complexidade por meio de um catálogo de possibilidades lingüísticas

diversas, enquanto procedimento que caracteriza toda uma dimensão da literatura deste

século, Calvino, ao estilo de Raymond Queneau, Poe e Borges, claro que cada um com

sua individualidade, constrói o seu estilo com exercícios de operação lógica. Chegar a

essa suposição de estratégia e procedimento geometricamente criativos é citar o próprio

depoimento de Calvino:

[...] nas últimas fases, quando o livro estava praticamente concluído e suas várias junções obrigatórias impediam deslocamentos ulteriores, fui tomado pela mania de verificar se conseguia justificar conceitualmente o enredo, o percurso, a ordem. Para meu exclusivo esclarecimento pessoal, tentei vários resumos e esquemas, mas jamais logrei quadrá-los cem por cento (ibid., p. 273).

Nesse sentido, quando comenta o princípio de amostragem de multiplicidade e de

potencial de inventividade, Calvino dá um outro exemplo de infinitude criativa, na qual a

base narrativa procura ser uma espécie de máquina de multiplicar, partindo de elementos

figurativos com múltiplos significados possíveis. Neste, como em grande parte de sua

obra, verifica-se que essas estruturas lhe permitem aliar a concentração de invenção e

expressão ao sentimento das potencialidades infinitas. Sendo assim, a noção de hipertexto

encontra-se adequada para este romance; ou seja, o deslocamento do texto nos espaços

“virtuais”, os do leitor, que permitem lê-lo em qualquer ordem e de passar de um

fragmento para outro a qualquer momento. Base narrativa que por seu turno se apresenta

como um metadiscurso relativamente às histórias incompletas que podem ser lidas

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autonomamente como as narrativas de uma narrativa (im)possível. Produzido pelo

próprio Calvino58 e constituído por um discurso lingüístico-figurativo acerca dos doze

capítulos que constituem a narrativa, esse modelo das redes dos possíveis está visível e

verificável neste Apêndice 2:

Figura 5.2: Rizoma da Estrutura Narrativa de Um viajante

CALVINO, Italo. Se numa noite de inverno um viajante. Lisboa, Vega, s.d., p. 255.

Na figura anterior, percebemos com mais clareza a combinação das diversas

linhas que compõem esse esquema rizomático da estrutura de Um viajante. Pois, como já

discutimos no capítulo I, o hipertexto é uma segunda espécie de conjunto de textos no

58 Publicado em Actes Sémiotiques-Documents e apresentado por J. A. Greimas com o título Comment j’ai

écrit un de mes livres, VI, p. 51, Paris, 1984. In: CALVINO, Italo. Se numa noite de inverno um viajante. Lisboa, Vega, s.d., pp.251-266.

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texto atravessado e constituído por vários textos. É uma produção de inconsciente

(individual, dual, coletivo, social), e não uma representação de conteúdos desprovidos de

significância e de subjetivação.

Esta narrativa não é somente um composto de diversos blocos de informações

amarrados por meio de elos correlacionados ao tema central – o processo de criação –

mas é principalmente uma escritura que reúne diversas estratégias e procedimentos na

utilização de elementos desencadeantes, que enlaçam um a outro espaço e tempo. Essa

demonstração da sua obra é representada por três livros de hipertextual, livro-síntese,

alegórico, de dimensões míticas, um romance existencialista, mas também um anti-

romance, que trabalha a idéia de Walter Benjamim (1994) do livro como uma grande

enciclopédia.

Vemos um composto de páginas camufladas, submersas em uma verdadeira areia

movediça, um empilhamento de textos que oferecem diferentes opções de percursos. A

obra é inteiramente construída com referências cruzadas, explícitas e implícitas, vários

tópicos simultaneamente vão-se mesclando tornando a leitura politópica, formando uma

complexa rede de informações. Estas, por sua vez, permitem ao leitor constituir relações

próprias entre suas várias trilhas encaminhando-se para a construção de um pensamento

multifacetado, não-linear, rompendo com a ilusão de que o impresso é uniforme e

contínuo.

Textos dinâmicos que assim se constituem pela sua multiplicidade de opções dos

percursos narrativos, da interpolação de tempos e espaços, da experiência da

simultaneidade de informações compartilhadas, da inserção de textos de diversos

gêneros, promovendo inclusive a sua diluição, conseguindo extrapolar a limitação da

folha plana e oferecendo uma escritura e leitura de estrutura rizomática. Esses processos

de construção do texto literário permitem que se perfurem as estruturas temporais e se

passe a outro ponto do texto que pode ser o ponto de origem ou de convergência de outra

narrativa, conferindo ao texto impresso características que hoje são atribuídas ao

hipertexto eletrônico: multiplicidade, interatividade, dinamicidade (mobilidade),

desterritorialização, engendrabilidade.

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Fazer um hipertexto é traçar essas linhas, essas ligações. E a narrativa hipertextual

é o contrário da narrativa linear, pois enquanto esta se apresenta constituída como um

conjunto de pontos e posições que opera por correlações binárias entre os pontos e

relações biunívocas entre as posições, o hipertexto procede por variação, conquista,

captura, é heterogêneo, sempre desmontável, conectável, reversível.

O conceito de hipertexto na obra do Calvino funciona como a porta de entrada ao

pensamento rizomático deleuze-guattariano. Porta cujo local de aparição é variável,

indeterminado, vagamente dado, uma porta pela qual entramos e caminhamos a qualquer

lugar deste “livro-platô”. Qualquer ponto de Um viajante pode ser conectado a qualquer

outro. Ele é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde

ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar. Não há uma força

coordenadora dos movimentos. Um viajante “é uma circulação de estados, uma

combinação anômala cujos resultados não podemos prever ou organizar, pois ele está

sempre em um meio. Um conjunto de devires e sempre um intermezzo”.59

Cada entrada (podendo também ser chamada de texto, de sub-romance ou de link,

pois essa pesquisa nos permite isso) realiza um mapeamento, cujos movimentos

descrevem um mesmo percurso. Parte-se do interior de um ou mais estratos e de seus

dualismos na direção de suas condições de possibilidade, das "máquinas abstratas" que os

efetuam e os determinam como atualizações. Simultaneamente, os estratos são associados

aos agenciamentos de poder que lhes são anexos e primeiros. Por fim, em outro giro, o

pensamento contorna as máquinas abstratas e as remete a um plano de consistência.

Revela-se nesse percurso a heterogeneidade, a coexistência, as imbricações e a

importância relativa das diferentes linhas que compõem uma multiplicidade de histórias

disponíveis para o leitor.

Neste, como no apêndice anterior, Calvino deixa pistas de como escreveu Um

viajante. Podemos considerá-lo como uma metodologia, um questionamento que pode

atuar tanto em níveis materiais como os imateriais. A articulação interdiscursiva

instaurada no interior do texto e a produção de um enunciado que mantém o jogo

constante com o contexto e consigo próprio força-nos a refletir sobre o caráter móvel dos

59 Retirado de http://www.revista.criterio.nom.br/artigodiogo.htm. Acesso em: julho/2006.

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signos disfarçados e suscetíveis de ser intercambiados por outros. O episódio da base da

narrativa, o romance incompleto que se perde à medida que se mescla com outros

romances, é o grande pretexto para o convite à leitura. O inacabamento do livro suscitou,

no personagem-autor, a necessidade de suplantá-lo pela força do discurso; e no

personagem-leitor, o intuito de recuperar a obra perdida.

É essa consciência de que a obra, no anseio de conter todo o possível, não

consegue dar a si mesma uma forma nem desenhar seus contornos, permanecendo

inconclusa por vocação constitucional, (mesmo que construída com rigorosa geometria e

abstração de um raciocínio dedutivo), que se insere o conceito de obra inacabada, cada

texto contém um modelo do universo ou de um atributo do universo – o infinito, o

inumerável, o cíclico, como o que nos oferece Calvino, não se esgotando em si mesmo e

nem podendo ser considerado como fechado e definitivo.

Quando a teoria dialógica do discurso romanesco nos diz que o processo de

produção e realização da obra se caracteriza por uma certa colocação de dúvida da

autoridade do texto, em favor de uma atenção particular a seus modos de elaboração,

percebe-se, quanto às estratégias de elaboração, o como e o porquê de uma obra já

realizada e entregue ao público, leitor, pode, ela mesma, através do seu discurso, inquirir

sobre o seu próprio fazer poético indicando as intencionalidades do seu produtor. Vem

daí que, na contemporaneidade os livros modernos que mais admiramos, nascem da

confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de leituras e métodos interpretativos,

maneiras de pensar e estilos de expressão diferentes que se encontram e se completam

por meio de uma pluralidade, canalizando a multiplicidade polifônica por meio do tecido

verbal.

Talvez a pergunta que se pode fazer agora seja: Por que esse procedimento e não

outro? É possível que, se Calvino escolheu aqueles dez tipos de romance, foi porque

pareciam ter mais significado para ele, porque poderiam trazer-lhe resultados melhores,

talvez porque se divertia mais em escrevê-los, ou ainda, o que está sendo mais provável,

para comunicar o sentido da multiplicidade através da metatextualidade, recurso que

convida o leitor a adiantar as suas suposições, assim como o autor a adiantar as suas.

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Nesse núcleo narrativo a idéia subjacente ao romance ganha consciência de si,

como motivo arquetipal a partir do qual se foi estratificando toda a ação que integra os

capítulos numerados de I a XII, numa espécie de catapulta de reflexos. Todo o capítulo

nuclear, o IX, tem um tom predominante ensaístico, pois aborda os mais diversos e

fundamentais problemas da teoria da literatura, além de conter todos as valores,

qualidades ou especificidades literárias preconizadas por Calvino, principalmente a da

multiplicidade, resultando numa consistente simetria circular que não se limita só à

escolha de um procedimento estilístico, mas, também, a uma postura no estilo na sua

relação com o mundo, em torno do qual deixa ecos da memória de tantos livros lidos.

Torna-se este tópico um ponto de partida para pensar o gesto de leitura como

duplo mover-se. No primeiro movimento, o leitor sucumbe à força de uma forte sedução;

depois, entrega-se a um ato de desvelamento; pela sedução, o objeto-texto desliza suave

pelo prazer da leitura. No segundo movimento, a leitura, até então um deslizar idílico,

transforma-se, para o autor, num exercício de crítica à leitura, em um dinâmico jogo de

criação, como se leitura e memória passassem a ser um exercício de procedimento

criativo. A leitura, também um gesto criador, em sua luta com as palavras, entra na magia

do texto e, no caminho de volta, anuncia os mistérios do objeto, pelo desemaranhar dos

fios que a escritura tecera.

Ler é verbo transitivo. Aquele que lê, lê alguma coisa e não necessariamente

palavras. Na primeira e mais tradicional acepção, ler aplica-se à palavra escrita. É o ato

de mediação entre a dimensão representativa (significante) e a dimensão interpretativa

(significados) de textos escritos. Entretanto, em um espaço midiático híbrido tal qual o

contemporâneo, é necessário compreender e explorar a ampla transitividade do verbo ler,

pois se modificaram os modos de codificação e descodificação. Multiplicaram-se os

leitores, os textos escritos diversificaram-se, novos modos de ler e novos modos de

escrever foram criados. Os verbos “ler” e “escrever” deixaram de ter uma definição

imutável: não designavam mais (e tampouco designam hoje) atividades homogêneas. Ler

e escrever são construções sociais e, por isso mesmo, cada época e cada circunstância

histórica dá novos sentidos a esses verbos. De modo que são preferíveis as considerações

hoje elaboradas por Italo Calvino sobre o ato de ler.

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No belo fragmento sobre a Visibilidade, Calvino discorre acerca das operações de

deslizamento entre a leitura e a imaginação, ou entre a imagem (mental ou

cinematográfica) e o texto escrito. Não há oposição entre o mundo das imagens e o

mundo das letras, entre texto escrito e imagens. São formas diferentes e complementares

de mostrar realidade e ficção. Nesta especificidade literária Calvino distingue dois tipos

de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que

parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal. O primeiro processo é o que

ocorre normalmente com a leitura: lemos, por exemplo, uma cena de romance ou a

reportagem de um acontecimento num jornal, e “conforme a maior ou menor eficácia do

texto somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante de nossos olhos, se

não toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto”.

(CALVINO, 1998, p. 99).

Texto escrito, na forma de livro ou não, e textos em múltiplos suportes, são

agenciamentos semióticos que requerem preparos diferenciados do corpo do leitor para

recepção e uso, assim como “[...] remanejam constantemente nossas fronteiras cósmicas”

(GUATTARI, 2000, p. 67). A dificuldade de marcar fronteiras definidas para os media

contemporâneos provoca a emergência de “linguagens interagentes”, que atuam em zonas

fronteiriças e que exigem do fruidor uma energia voltada para múltiplos sentidos. Uma

complexidade que exige, logicamente, a reeducação dos sentidos para o aprendizado

dessas linguagens e de outros suportes além do impresso. De fato, fora e além do livro, há

uma multiplicidade de modalidades de leitores. Há o leitor da imagem, do desenho, da

pintura, da gravura, da fotografia.

Há o leitor do jornal, das revistas. Há o leitor de gráficos, mapas, sistemas de

notações. Há o leitor da cidade, leitor da miríade de signos, símbolos e sinais em que se

converteu a cidade moderna, a floresta de signos de que já falava Baudelaire. De fato, o

entendimento que ainda temos do objeto-livro e do verbo ler não mais se aplica à

multiplicidade de práticas que podemos mencionar como práticas de leitura. Lembremos

que a noção de livro que correntemente utilizamos não é senão uma derivação do modelo

códice, imposto pelos cânones cristãos que se disseminou e se cristalizou não somente

por conveniências religiosas, como também mercadológicas e políticas, com a imprensa

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de tipos móveis. Mas, na contemporaneidade, é necessário ampliar a acepção do termo. E

comecemos pela memória.

Têm-se três tipos de memória. O primeiro é orgânico, que é a memória feita de

carne e de sangue e administrada pelo nosso cérebro. O segundo é mineral, e, nesse

sentido, a humanidade conheceu dois materiais dele: milênios atrás, foi a memória

representada por tijolos de argila e por obeliscos, nos quais as pessoas entalhavam seus

textos; porém esse segundo tipo é também a memória eletrônica dos computadores de

hoje, que tem por base o silício. Conhecemos também o terceiro tipo de memória, a

memória vegetal, representada pelos primeiros papiros e, posteriormente, pelos livros,

feitos de papel. Consideremos o fato de que, em certo momento, o velino dos primeiros

códices foi de origem orgânica, e o fato de que o primeiro papel foi feito de trapos, e não

de madeira. Assim, no interesse da simplicidade, falo aqui em memória vegetal para

referir-me aos livros.

Ao longo dos séculos as bibliotecas têm sido o meio mais importante de conservar

nosso saber coletivo. Esse local foi e é ainda uma espécie de cérebro universal onde

podemos reaver o que esquecemos e o que ainda não sabemos. Esse espaço foi, no

passado, e será, no futuro, dedicado à conservação de livros. Portanto é e será um templo

da memória vegetal. Em metáfora, uma biblioteca é a melhor imitação possível, por

meios humanos, de uma mente divina, na qual o universo inteiro é visto e compreendido

ao mesmo tempo. Uma pessoa capaz de guardar em sua mente a informação suprida por

uma grande biblioteca emularia, de certo modo, com a mente de Deus. Em outras

palavras, inventamos bibliotecas porque sabemos que não possuímos poderes divinos,

mas tentamos ao máximo imitá-los.

Construir, ou melhor, reconstruir hoje uma das mais célebres bibliotecas do

mundo pode soar como um desafio, uma provocação. Acontece, não raro, que em artigos

de jornais ou em ensaios universitários alguns autores, diante da nova era do computador

e da Internet, refiram-se à possível "morte dos livros". Porém, se os livros estiverem em

via de desaparecer, como ocorreu com os obeliscos ou com os tijolos de argila das

civilizações antigas, não será esse um bom motivo para abolir as bibliotecas. Ao

contrário, devem sobreviver como museus que guardam as descobertas do passado, assim

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como guardamos a Pedra de Roseta60 num museu porque já não estamos acostumados a

entalhar nossos documentos em superfícies minerais.

Mas elogiemos as bibliotecas com um pouco mais de otimismo. Vamos fazer

parte daqueles que ainda acreditam que livros impressos têm um futuro e que todos os

receios a respeito de seu desaparecimento são apenas o exemplo derradeiro de outros

medos ou de terrores milenaristas em torno do fim de alguma coisa, inclusive do mundo.

Sobre isso, perguntas existem: Os novos meios eletrônicos tornarão os livros obsoletos?

Será que a Internet tornará a literatura obsoleta? A civilização hipertextual eliminará a

própria idéia de autoria? Como podemos ver, essas são perguntas diferentes e, levando

em conta o tom apreensivo em que são formuladas, podemos pensar que nós nos

sentiríamos reconfortados ao respondermos: Não, fiquemos tranqüilos, está tudo bem?

Engano.

Se dissermos a essas pessoas que os livros, a literatura e a autoria não vão

desaparecer, elas se mostrarão desesperadas. Mas então, onde está o furo de reportagem?

Publicar a notícia de que um vencedor do Prêmio Nobel morreu é notícia; dizer que ele

está vivo e passa bem não interessa a ninguém, salvo a ele mesmo, suponho. Então,

tentemos desemaranhar uma mixórdia de receios entrelaçados acerca de problemas

diversos. Clarear nossas idéias sobre esses problemas diversos pode também nos ajudar a

compreender melhor o que, em geral, entendemos por livro, texto, literatura,

interpretação e assim por diante. Desse modo, veremos como, a partir dessas perguntas,

podem-se produzir muitas respostas.

Comecemos com uma história egípcia, muito embora contada por um grego.

Segundo Platão, em Fedro, quando Hermes – ou Thot, o suposto inventor da escrita –

apresentou sua invenção para o faraó Thamus, este louvou tal técnica inaudita, que

haveria de permitir aos seres humanos recordarem aquilo que, de outro modo,

esqueceriam. Mas Thamus não ficou inteiramente satisfeito. Meu habilidoso Thot, disse

ele, a memória é um dom importante que se deve manter vivo mediante um exercício

contínuo. Graças a sua invenção, as pessoas não serão mais obrigadas a exercitar a

60 Bloco de basalto negro, com inscrições em egípcio e grego, descoberto pelos soldados de Napoleão, em

1799, a 56 km de Alexandria e que se tornaria fundamental para a compreensão da civilização egípcia.

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memória. Lembrarão coisas não em razão de um esforço interior, mas apenas em virtude

de um expediente exterior.

Podemos compreender a preocupação de Thamus. Escrever, como qualquer nova

invenção tecnológica, entorpeceria a faculdade humana que almejava substituir e ampliar.

Escrever era perigoso porque reduzia o poder da mente ao fornecer aos seres humanos

uma alma petrificada, uma caricatura da mente, uma memória mineral. O texto de Platão

é irônico, está claro. Platão escrevia sua tese contra a escrita. Mas também fingia que seu

discurso era proferido por Sócrates, que não escrevia (como não publicava, sucumbiu no

curso da batalha acadêmica, cujo lema é: publicar ou morrer). Hoje, ninguém compartilha

as preocupações de Thamus por duas razões muito simples. Primeiramente, sabemos que

livros não são um meio de fazer outra pessoa pensar em nosso lugar; ao contrário, são

máquinas que suscitam outros pensamentos. Só depois da invenção da escrita, foi

possível escrever uma obra-prima de memória espontânea como Em busca do tempo

perdido,61 de Marcel Proust, por exemplo. Em segundo lugar, se de vez em quando as

pessoas precisavam exercitar a memória para lembrar coisas, depois da invenção da

escrita tiveram também de exercitar a memória para lembrar dos livros. Livros desafiam e

aprimoram a memória; não a entorpecem. No entanto o faraó dava testemunho de um

temor eterno: o temor de que uma nova proeza tecnológica pudesse matar algo que

considerava precioso e frutífero.

Usei o verbo matar de propósito porque, cerca de 14 séculos mais tarde, Victor

Hugo, em seu romance Nossa Senhora de Paris, narrou a história de um padre, Claude

Frollo, que olhava tristonho para as torres da sua catedral. A história de Nossa Senhora

de Paris se passa no século 15, após a invenção da imprensa. Antes disso, os manuscritos

estavam reservados a uma elite restrita de pessoas alfabetizadas e, para ensinar às massas

as histórias da Bíblia, a vida de Cristo e dos santos, os princípios morais, até mesmo os

feitos da história nacional ou as noções mais elementares de geografia e de ciências

naturais (a natureza de povos desconhecidos e as virtudes de pedras e de ervas), só se

61 Romance francês escrito entre 1908 e 1909 e publicado entre 1913 e 1927 em sete volumes, os três

últimos postumamente.

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podia contar com as imagens de uma catedral. Uma catedral medieval era uma espécie de

programa de tevê permanente e imutável, destinado a transmitir às pessoas tudo o que era

indispensável para a sua vida cotidiana, assim como para a sua salvação eterna. Agora,

porém, Frollo tem sobre a sua mesa um livro impresso e ele sussurra: Ceci tuera cela –

isto vai matar aquilo ou, em outras palavras, o livro vai matar a catedral, o alfabeto vai

matar as imagens. O livro vai desviar as pessoas de seus valores mais importantes,

incentivar a informação supérflua, a livre interpretação das Escrituras Sagradas, uma

curiosidade insana.

Portanto, utilizar tão-somente o modelo tradicional de livro é eliminar todos os

demais dispositivos criados pelo homem para o registro do conhecimento e da cultura.

Livro, livros. Livros múltiplos. O contemporâneo caracteriza-se pela convivência de

livros em vários formatos: livro códex (escrito e impresso no papel) livro multimídia

(escrito e formatado na tela do computador, podendo ser lido, visto, ouvido e também

impresso). Textos que não existem fora dos suportes (papel ou CD-ROM). Tantos

suportes, desde que o homem registra suas impressões do mundo. Diversos são os

suportes, tantos são os livros, porque o livro se emancipou do que alguns autores

denominam “camisa de força”, isto é, o formato códice. Emancipando-se da camisa de

força do livro, o processo de leitura exerce uma hipertextualidade ou uma diversificação

de textos, imagens, sons, filmes, bancos de dados, mensagens e redes interativas.

Politextualidade que gera progressivamente uma nova dimensão polimorfa, transversal e

dinâmica.

Assim, agora me valendo de Deleuze e Guattari (1998), ressalto que é preciso

pensar o livro como dispositivo, cuja materialidade não seria tão significativa para a

transmissão do conhecimento. Ao optarmos pelo termo dispositivo não fazemos,

necessariamente, analogia à mecânica, tampouco concebemos o livro como preceito ou

norma, mas o consideramos como objeto que opera ou põe em operação o pensamento e a

imaginação. Embora objeto, ele não é inerte, mas potencializador. Não se perguntará

nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada

compreender num livro. Perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que

ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e

metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Assim, sendo o

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próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina

literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina

revolucionária, etc. – e com uma máquina abstrata que as arrasta (DELEUZE;

GUATTARI, 1998, p. 12).

Destaque-se que, atualmente, o livro em seu formato tradicional, o códice, deixou

de ser o principal objeto de disseminação da cultura e do saber, como o fora no século

XIX e em boa parte do século XX. De fato, a “era da informática planetária” transformou

as relações tradicionalmente estabelecidas entre autor, editor e leitor. O leitor e a leitura

transfiguraram-se, e o texto, ou o suporte, tornou-se maleável. Há uma nova ordem que

“impõe uma redistribuição dos papéis na ‘economia da escrita’, a concorrência (ou a

complementaridade) entre os diversos suportes dos discursos e uma nova relação, tanto

física quanto intelectual e estética, com o mundo dos textos” (CHARTIER, 2002, p. 117).

É da natureza do livro contemporâneo, de sua materialidade e conteúdo que trata o

fragmento a seguir:

A boa maneira para se ler hoje, porém, é a de conseguir tratar um livro como se escuta um disco, como se vê um filme ou um programa de televisão, como se recebe uma canção: qualquer tratamento do livro que reclamasse para ele um respeito especial, uma atenção de outro tipo, vem de outra época e condena definitivamente o livro”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 11-12).

Todo exercício intelectual, toda produção de texto, é um exercício laborioso feito

nas margens e nas dobras de outros textos. São páginas criadas ao lado e de dentro de

outras páginas. Como um palimpsesto em que a raspagem da camada (ou camadas) de

textos expõe outros textos subpostos, que provêm de lugares e tempos distintos,

revelando uma memória até então oculta.

De fato, nenhum texto opera seu discurso isoladamente. A produção do texto se

faz através da apropriação e transformação de outros textos, o que Bakhtin nomeia como

processo de dialogismo, que pressupõe muitas vozes, ou uma polifonia habitando o

espaço textual. Através do dialogismo e da polifonia, realiza-se o diálogo com a tradição:

“O texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu ponto de

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contato é que surge a luz que aclara para trás e para frente, fazendo que o texto participe

de um diálogo”. (BAKHTIN, 1982, p. 404).

Se as primeiras noções do que é denominado intertexto ou intertextualidade vêm

da dialogicidade de Bakhtin, é Júlia Kristeva a responsável pelos desdobramentos da

idéia do autor, fixando o conceito de intertextualidade. Afirma Kristeva (1984) que,

depois de o livro ter-se tornado romance, seu texto passou a ser penetrado e composto por

outros livros, na forma de citações ou vestígios mnésicos. Assim, o texto é transformado

e, no romance, as significações, já duplas na origem, desdobram-se mais uma vez,

multiplicam-se, e o romance, no seu campo transformacional e intertextual, só pode ser

lido como polifonia.

Também Barthes (1987), lendo Proust em Stendhal, comenta sobre a

impossibilidade de viver fora do texto infinito. O texto está dentro do texto, porque texto

é tecido não acabado que se faz através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse

tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela

mesma nas secreções construtivas de sua teia. Neste aspecto, o que Barthes questiona é a

idéia da obra original e da genialidade do poeta/autor, visto que uma obra já se encontra,

potencialmente, em obras precedentes.

A marcante presença da intertextualidade é característica cultural da pós-

modernidade como observa Linda Hutcheon (1991) que ratifica a elaboração de Kristeva

sobre a pluralidade de textos no texto e a impossibilidade de se encontrar a “fonte

original” onde nasce o texto. Hutcheon firma a expressão “metaficção historiográfica” 62

como menção “àqueles romances famosos e populares, que, ao mesmo tempo, são

intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se

apropriam de acontecimentos e personagens históricos” (HUTCHEON, 1991, 116).

Enfim, a autora refere-se a uma maneira de narrar o passado que é a principal

característica do pós-modernismo na ficção, ou seja, o confronto entre História e a

metaficção.

62 Destes, um dos mais conhecidos é o romance Cem anos de solidão (1967) do colombiano Gabriel

Garcia Márquez, por exemplo.

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Mais recentemente, um autor que avançou no discurso da intertextualidade foi

Gérard Genette (1982), para quem a intertextualidade é apenas um dos aspectos da

transtextualidade, que é a relação, evidente ou não, de um texto com outros ou, nas

palavras do próprio autor, a transcendência textual do texto, ou ainda tudo o que tem uma

relação manifesta ou secreta com o texto. As várias faces da transtextualidade

comunicam-se e são fundamentais para a construção do texto. Genette (ibid.) expõe pelo

menos cinco relações entre textos: a) a intertextualidade, que é a presença (ou co-

presença) de um texto em outro; b) a paratextualidade, representada pelos sinais presentes

em torno do texto, como título e prefácio, por exemplo; c) a metatextualidade, ou relação

de comentário; d) a arquitextualidade, relação do texto com seu estatuto; e) e a

hipertextualidade, relação de um texto B (hipertexto) com um texto A (hipotexto).

Conforme se percebe, essas classes não são estanques. De fato, é uma

classificação bastante flutuante, o que vale dizer que as faces se podem comunicar, e de

fato se comunicam ou se imbricam umas nas outras, e até atuam conjuntamente. Assim, a

relação hipertextual pode manifestar-se como intertexto, a metatextualidade pode se dar

sob a forma de paratexto, da mesma forma que pode ser mostrada através de um

paratexto ou de um metatexto, a “arquitextualidade”. Daí o título do livro de Italo

Calvino: Se numa noite de inverno um viajante. Título que sugere um trânsito dinâmico

entre textos, da mesma forma que indica a presença de várias camadas de relações e de

textos na construção de um único texto.

Avalizando, Um viajante agora é pensado como uma forma aproximativa do

hipertexto eletrônico, aquele literal e fisicamente intertextual, uma vez que os textos são

escritos sobre outros. Assim, uma leitura chama outra, uma leitura prolonga outra, as

várias leituras vão emprestando uma às outras conteúdo e contexto. E um leitor ou um

espectador emprestam às obras a sua experiência, acrescentando mais níveis às camadas

de texto, de forma que, além do hipertexto “editado” pelo autor, entram em jogo, através

da leitura/fruição, novos níveis ou camadas.

Estruturalmente, o encaixe do romance evidencia uma preocupação com o reflexo,

com a especularidade. Neste romance, não há um, mas vários encaixes, caracterizando de

que maneira um livro pode ser infinito. Se nos recordamos daquela noite que está no

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centro da trama narrativa das Mil e uma noites, quando a Rainha Sherazade (por uma

mágica distração do copista) põe-se a repetir textualmente a história das Mil e uma noites,

com o risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim ad

infinitum, percebemos que as histórias semelhantes são muitas.

E Calvino parece exprimir bem isto se apropriando, na narrativa de Um viajante,

do início de dez romances: um romance de Butor, um romance de Günter Grass, uma

novela de Thomas Mann, um conto de Kafka, um capítulo de T com zero, dele próprio(!),

uma novela de Borges e uma apologia sobre a dissidência russa, como que ressuscitando

Sherazade por meio de seus personagens nomeados de leitor e leitora que perseguem a

continuação desses incipts que, deliberadamente, se interrompem.

Por isso, antes de ser um produto, por tudo isso, as marcas da leitura de um autor

firmam-se como um processo, e processo criador. Aliás, pode-se até dizer que, atrás, ou

ao lado, de um escritor há sempre um leitor, desde quando se percebe a presença de suas

leituras firmando-se como um denominador comum no seu processo criativo, ou seja, as

suas leituras e as suas lembranças, já filtradas e transformadas pela memória,

caracterizam-se como a matéria inicial para o objetivo a que se propõe. Ampliando,

Barthes (1971) nos diz que um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias

escrituras e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação.

Exemplificando, Calvino, na sétima, das 14 razões que ele dá à sua pergunta Por que ler

os clássicos, título de um dos seus livros, responde: “Os clássicos são aqueles livros que

chegam até nós trazendo consigo as marcas das literaturas que precederam a nossa, e

atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram”

(CALVINO, 1993, p.11).

Desse modo, voltemos aos rastros das leituras de Calvino em Um viajante.

Reconhecido como ‘o romance do leitor’, Um viajante apresenta-se como um texto de

retorno a que o leitor volta com freqüência, atraído pela extrema sedução que ele exerce

sobre o seu imaginário.

Portanto, falar em hiper-romance significa entrar num espaço textual que, à

semelhança de qualquer outro organismo vivente, manifesta, ao mesmo tempo, simetrias

e assimetrias, repetições e mudanças inesperadas. Ao invés da linha, o que melhor

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representaria a estrutura do hiper-romance seria a rede de múltiplas linhas narrativas

proliferantes num tempo feito de correlações. Cria-se um ambiente informacional de

hipertexto onde ler é sinônimo de explorar um modelo, e o conhecimento se dá por meio

da “simulação”, pois, ao invés da mera “decifração” defrontamo-nos com um novo modo

de ler: aquele que recorta, cola, insere, encaixa, inverte, retorna e salta.

Escrevendo sem fim, Calvino nos propõe também a experiência radical da leitura

e da crítica sem fim – a quantidade de aproximações, simetrias, analogias, paralelos,

semelhanças e convergências de todo um conjunto de detalhes que compõem sua obra é

tão extraordinário e vertiginosamente exorbitante, podendo ramificar-se em tantos

caminhos possíveis de análise que, por mais empenhados que sejam seus leitores, uma

única leitura é necessariamente insuficiente.

Considerados os pontos máximos da obra de Italo Calvino, Se numa noite de

inverno um viajante, escrito em 1979, intercala humor e angústia, o autor conversa com

o leitor e, constantemente, exige que preste atenção aos detalhes e ao jogo criado por uma

narrativa que mescla a forma tradicional do romance com procedimentos típicos da

vanguarda literária, como personagens bizarras, situações absurdas compondo o tema que

volta para si mesmo: a própria leitura e escritura do livro.

A dupla perspectiva ganha movimento quando falando de uma, discute-se a outra.

Na pessoa do personagem Leitor, que trava verdadeira demanda na busca do romance

acabado, completo, navega-se por vários outros textos e temas. Nestes, o escritor

apropria-se deliberadamente como uma forma de ensaiar sobre a leitura e ao mesmo

tempo como um álibi na pessoa do personagem do ‘escritor atormentado’, Silas Flannery

e, com isso, discorrer sobre o ato da escrita sobre as implicações do processo criativo que

vão, desde a dúvida da escolha e do destino dos personagens, à angústia da sua sensação

de impotência diante de uma folha de papel em branco. E nada melhor do que a

compilação de textos de diferentes escritores, cuidadosamente selecionados, para tratar

criticamente do problema da castração inspiradora.

Em Um viajante Calvino dá um tom ensaístico ao seu discurso constituído

basicamente pelas inferências intertextuais, teorizando, no texto literário, o processo de

criação, colocando em discussão a legitimidade do texto e tomando como cenário o

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mundo da leitura que envolve e dá movimento ao mundo da escrita, ou vice-versa, por

meio da atuação dos heróis da sua trama, o Leitor e a Leitora.

Ao se traduzir o texto calviniano, ousa-se uma leitura hipertextual. Torna-se

insuficiente somente ler. É preciso participar. A dominante-autor cederá lugar à

cumplicidade autor- leitor, aceitando uma espécie de parceria, no sentido de que tenderá a

proporcionar-lhe, além da postura hedonística, do puro prazer, outra posição pragmática,

do árduo fazer. A partir daí a palavra-chave deixa de ser logus para ser ludus, no jogo do

vir-a-ser, do constante definir que jamais se completa.

Ao laborar as suas interrogações, implicitamente, “Como uma obra realizada e

entregue ao público pode continuar na cadeia contínua do processo criador?”; e

explicitamente, “Que importa o nome do autor na capa do livro?”, Calvino lança mão de

recursos sustentados, notadamente, no dialogismo, ao exigir uma atitude tanto sua,

enquanto produtor do texto, como do seu leitor, o qual participa da criação da obra de

várias formas, pois na urdidura metalingüística utilizada praticada no texto ele oferece ao

leitor condições para se recriar.

Calvino em Um viajante nos diz que “toda a atividade do pensamento remete para

os espelhos” (CALVINO, s/d, p. 159). Possivelmente essa passagem nos direciona para a

imagem do espelho enquanto espaço da interatividade e do dialogismo e sua relação com

os reflexos transformadores da ação do artista, estabelecendo-se um diálogo entre o eu do

artista e o mundo, numa espécie de especularidade da consciência na qual a imagem

desse eu, e sua relação com o mundo, pode ser examinada, questionada e transformada. A

interação, que em determinado momento é do contexto para o autor, se dará do texto para

o leitor. Na seleção dos seus materiais, a experiência o faz buscar novas formas de

diálogo que passa das reflexões de um ‘escritor atormentado’ ao diálogo com o leitor.

Ao longo dessa produção ficcional, a presença do produtor – presença que

imprime o caráter de auto-reflexividade quanto à criação da obra – estabelece-se

progressivamente pela presença das vozes narrativas centradas e realizadas numa

narrativa fragmentada, para um segundo posicionamento voltado para o leitor ativo.

Para além das questões contextuais, ainda importa, para a constituição e a

designação da sua escrita, o seu viver numa época tecnológica de vertiginosa

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comunicação de massa. Procura-se fugir dos desgastes das fórmulas rígidas e das

pressões massificantes do mercado editorial, procura-se maior comunicabilidade entre o

escritor, o texto e o leitor. A postura estética desse escritor revela influências percebidas

por meio das inferências intertextuais reveladoras de um gosto, de um tempo. Essa

postura também define uma forma particular de consciência histórica, por meio da qual o

texto é produzido como interrogador do próprio discurso, promovendo o deslocamento do

centro de interesse para o próprio processo criador, abrindo horizontes novos e

contribuindo para a historicidade da arte e da literatura contemporânea. E, “por aí passa a

escada espiral, que se abisma e se eleva para o longe”, como diz Borges (1972, p. 85).

Nesta narrativa de Calvino, não há diferença entre ficção e ensaio. E a rigor talvez

possa ser considerado como um livro de ensaio. É mais uma “obra conceitual” do que

literária. O que conta é o conceito, a idéia organizadora do livro, é a técnica da

apropriação de textos alheios, e até dele mesmo, falando através deles, prolongando

sempre o texto anterior no texto atual. E esta é a técnica estilística de Calvino neste

romance: a metalinguagem usando a intertextualidade para discutir o ato de leitura e o ato

de escrita.

Ao escrever, Italo Calvino especula como um jogo combinatório, arriscando nas

probabilidades. Um Viajante é um texto circular: ele volta constantemente a um diálogo

com o leitor, abrindo sempre novos ciclos e avançando na narração, fazendo de episódios

descontínuos a trama que ordena a seqüência do texto. Tudo não passa de um jogo que

deve ser continuado pelo leitor-intérprete para que o universo de possibilidades seja

recriado. No esconder e no revelar, o eterno jogo do mostra-e-esconde do texto guarda o

enigma que deve ser decifrado em um espaço feito de letras, refletido num outro espaço,

o espaço criador. O que interessa nesse ludus narrandi é o ambíguo, a confusão dos

papéis, é a tendência da obra para o ato comunicativo pelo que o eu narrador é ao mesmo

tempo o autor, o leitor e o protagonista-leitor.

Continuando a trabalhar, não diretamente no projeto do romance ideal, mas no

próprio romance que o leitor tem em mãos, Calvino recolhe esses múltiplos momentos de

sua própria experiência de vida em conteúdos autobiográficos que talvez venham a ser

reconhecidos em certos detalhes da sua obra criada, ou talvez se tornem irreconhecíveis,

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transpostos e absorvidos pela proposta essencial do trabalho: evidenciar à luz da obra

realizada, porém não definitiva, a sua própria gênese, exigindo do leitor um olhar atento

à difícil emergência das idéias, ao seu “inacabamento” constitucional, a uma bricolagem

intelectual e textual que caracterize o texto.

Em nome de (ou na dúvida de) suas convicções, Calvino demonstra uma postura

de independência, acreditando na busca do “melhor” processo de criação, na busca da

“melhor” palavra, não defendendo o imobilismo e tendo a coragem de estabelecer com o

estabelecido. Daí pode-se considerar que o estilo literário de Calvino vai além do

meramente verbal, talvez porque na sua composição entram incontáveis fatores que

trazem implícita e misteriosamente presentes a sua visão interpretativa e a sua concepção

subjetiva e particular de perceber a realidade.

Aqui é importante ratificar, utilizando como endosso o argumento dos teóricos já

citados, a idéia de texto com a qual estamos trabalhando. O texto tanto como objeto de

significação, ou seja, um “tecido” organizado e estruturado enquanto objeto de

comunicação, ou melhor, objeto de uma cultura, cujo sentido depende, em suma, do

contexto sócio-histórico e da demanda da época na qual o sujeito está inserido, sem antes,

porém não ter cruzado um longo caminho do códice ao hipertexto eletrônico.

Os dois apêndices presentes em Um viajante, aqui denominados de

“apêndices-rizoma”, a partir de Deleuze e Guattari (1995), podem demonstrar a inquieta

postura de Calvino diante da sua criação, revelada no fluir do seu ato de escrita. Ao

buscar cada vez mais a consistência por meio da multiplicidade, ele demonstra que o

texto pode ser considerado uma caixa de peças pré-fabricadas, uma espécie de lego com o

qual se pode fazer o que quiser. Ao estilo lector in fabula de Umberto Eco, o autor é um

estratega capaz de prever manobras e contra-manobras de seu adversário, o interlocutor-

leitor. O leitor é livre para tentar uma descodificação pessoal do texto. Logo, a habilidade

de Calvino consiste na destreza de prever a sua possível reação, às modalidades do

processo de descodificação, em que a operação criadora consiste não só no ato de

construir um texto, mas também na programação de um texto em função de um receptor-

modelo.

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Nesse seu laboratório poético, o curso de sua atividade pela luta contra o espaço

em branco da página é habitado por ações, emoções, desejos, vitórias e derrotas, que se

oferecem ao leitor como conteúdo poético. Por isso, ao desdobrar-se o produto, revela-se

o mecanismo de produção. Ao lado da obra ficcional híbrida, pode-se inventariar

numeroso material teórico, em que o autor dá as coordenadas de sua arte poética. E é bem

precisamente isto, a descoberta de inúmeras significações que o texto oferece nos

caminhos e tropeços do ato de leitura. Porque o encontro que se dá aí é o da linguagem:

do poeta e do leitor, construtores de signos. Confirma-se que a criação literária é o

processo de construção de muitas leituras e experiências de vida, afastando-se do

pressuposto de que a criação artística é o processo de construção só da fantasia. Mantém-

se assim um permanente e interessante diálogo entre a teoria e a crítica literária,

oferecendo aos pesquisadores uma fonte quase inesgotável para uma análise da sua obra.

No trajeto analisado ao longo desse romance, podemos compreender como os

conceitos possuem uma conectividade – variável e indeterminada – sem que haja uma

unidade ou um conceito determinante para o funcionamento de tal rede de conexões

conceituais. Um viajante funciona como um princípio cosmológico, caixa de ferramentas,

um sistema aberto. Este romance talvez seja o mais hipertextual dos três aqui

selecionados para análise. Calvino aprimora o desenvolvimento da concepção de

multiplicidade já desenvolvida em O castelo e As cidades.

Enfim, com Um viajante Calvino opõe a um universo extensivo, constituído por

coisas e representações, por identidades e diferenças referidas a uma unidade, um

universo intensivo, composto por singularidades pré-individuais. Espaço de diferenças, a

noção de repetição liberta-se da idéia de mesmo para sempre constituir a diferença. Não

só nestas, mas em toda a sua obra é clara a presença do conceito nietzschiano de vontade

de potência, força criativa e intempestiva, imanência do desejo e da diferença, irrupção da

multiplicidade. Na incompletude, o infinito.

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CONCLUSÃO

Se, no que se refere à arte participacionista, teóricos começaram a dar respostas ao

princípio do inacabamento da obra de arte, Italo Calvino, a bem dizer, um escritor que

não se reconhece nas ‘intenções totalizantes’ e nem na tranqüilizadora ‘verdade de

completude’, continua respondendo, por meio da sua produção artística, a este caráter

interativo da obra de arte, com publicações em que o modo dialógico introduz-se em

todos os seus níveis de produção, principalmente no plano da enunciação, o do discurso,

enquanto processo que supõe a interação entre o emissor (o autor-criador) e aquele a

quem se dirige o discurso, o receptor (o leitor-criador).

Ao propor o modelo do hipertexto como uma metáfora válida para o texto de

ficção escrito, em que as esferas da realidade e suas significações estejam em jogo, e de

acordo com os postulados de Lévy (1996), discutimos o percurso do romance da sua

origem à contemporaneidade e investigamos o processo criativo de Italo Calvino a partir

de seis princípios: o de metamorfose, que garante a constante (re)construção da rede

textual por todos os fatores envolvidos, sejam eles do domínio da leitura e da escrita, da

produção e da recepção; o de heterogeneidade, definido pela variedade de materiais

envolvidos nas mais diversas formas de associação (links, lexias, memória, influências); o

de multiplicidade, pelo qual a rede textual se desenvolve de forma fractal, de tal modo

que um nó pode conter toda rede e assim por diante; o de exterioridade, segundo o qual a

rede textual se constrói e se movimenta a partir de elementos externos ao sistema; o de

topologia, que possibilita aos hipertextos o funcionamento espacial, por movimentos de

proximidade; e finalmente o princípio de mobilidade, que indica a presença simultânea na

rede textual de diversos centros, que se modificam a cada movimento de sentido.

A partir dessa caracterização do hipertexto, confirmamos ser possível identificar e

analisar as posições e as práticas literárias de Calvino defendidas nos seus livros As

cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados e Se numa noite de inverno um

viajante. Vimos até que ponto o hipertexto acrescenta à obra literária novos elementos

permitindo-lhe a produção de novas significações. Discutimos quais os pontos do

hipertexto que possibilitam ao leitor novas experiências estéticas. Defendemos que a

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posição da rede hipertextual pode propiciar nova forma de expressão literária e a sua

ação/intervenção no mundo.

Desse modo, os traços característicos para a literatura reivindicados por Calvino

no seu livro ensaístico Seis propostas para o próximo milênio – leveza, rapidez, exatidão,

multiplicidade, visibilidade e consistência – em muito se aproximam do hipertexto,

mesmo estando ele falando a respeito da literatura impressa, a qual nomeia de “objeto-

livro”. O que Calvino deseja é uma literatura leve, um estilo ágil, capaz de retirar da

linguagem e da estrutura narrativa qualquer elemento de peso. Ao falar de leveza e

rapidez, ele fala de movimento, de vivacidade, de mobilidade. É a busca de uma literatura

que permita a continuidade da passagem de uma forma à outra. É a leveza da “gravidade

sem peso”, da mudança constante. Calvino não só deseja que a obra literária possa ser

“semelhante à luz da lua”, semelhante a Guido Cavalcanti, personagem de Bocaccio, mas

também nos apresenta um leitor que seja capaz de saltar, com agilidade e precisão, sobre

as possíveis redes de significações do texto, tecendo um percurso tênue, porém marcante.

Suas caracterizações da leveza e da rapidez em muito se aproximam dos

princípios de metamorfose e mobilidade dos centros apontados por Pierre Lévy (1996). A

idéia de uma narrativa construída em nós, em ligações fragmentárias que podem conter

em si uma nova rede textual é, segundo o próprio Calvino, o princípio narrativo de As mil

e uma noites, e de algumas de suas obras, como as três aqui selecionadas e estudadas.

A sua obra solicita uma literatura que se amolde à rapidez e à velocidade

informacional, que dominam o espaço contemporâneo, exigindo a economia da narrativa

e a manutenção do desejo do leitor, num momento em que “os acontecimentos,

independentemente de sua duração, se tornam puntiformes, interligados por segmentos

retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto”

(CALVINO, 1990, p. 46).

A sua literatura é leve e rápida, dona de uma textualidade ágil, móvel, desenvolta,

uma literatura dinâmica tanto no aspecto referente à produção da obra quanto no tocante à

experiência da leitura. Essa literatura em movimento parece ter encontrado no hipertexto

o espaço para seu pleno desenvolvimento, já que o hipertexto permite a objetivação

desses novos elementos requisitados para a obra literária. Nessa consonância de

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pensamento com Calvino, mais Pierre Lévy (1996) dizemos que o hipertexto é dinâmico,

está perpetuamente em movimento, pois se a rapidez e a leveza encontram no hipertexto o

espaço ideal de desenvolvimento, o mesmo acontece com outras duas qualidades

solicitadas por Calvino para a literatura contemporânea: a exatidão e a multiplicidade. A

exatidão, segundo ele, nada tem a ver com a univocidade, e se aproxima das noções de

definição, de precisão, de nitidez da obra. Exatidão em oposição à inconsistência e à

perda de forma. Não que a obra deva possuir uma significação única, e sim que ela

apresente uma precisão na variabilidade das possibilidades. A essa forma exata associa-se

a obra múltipla, a “enciclopédia aberta”. A literatura contemporânea deve ser uma rede

de conexões entre os mais heterogêneos elementos significativos, fatos narrativos,

técnicas, pessoas, imagens, sons. Uma obra precisa, mas capaz de proporcionar múltiplas

construções significativas.

Já a questão da visibilidade apresentada por Calvino refere-se a dois processos: a

palavra que deixa transparecer uma imagem, ou a imagem que se transfigura em palavras

– ele fala em “pensar por imagens”. Esse “pensar por imagens” é, de certa forma, o modo

de funcionamento do hipertexto, no qual o “princípio de topologia” apontado por Pierre

Lévy assegura a importância dos ícones e da formatação visual da tela na leitura e na

criação hipertextual. As imagens devem ser carregadas de significações, possibilitando a

rápida associação dos elementos na hipernavegação. Assim, a visibilidade no hipertexto

vai além da construção de significações possíveis, funcionando como interface, como

agente interativo entre autor/leitor/texto, possibilitando a movimentação topológico-

sensorial. Por isso, as seis especificidades,63 ou qualidades literárias que segundo Calvino

mereceriam ser preservados no curso do próximo milênio: a leveza na forma de expressar

o mundo está na linguagem constituída por um ritmo ágil, parágrafos curtos e no humor

do tratamento dispensado ao tema; a rapidez de estilo e de pensamento, quer dizer antes

de mais nada, agilidade, mobilidade, desenvoltura; a exatidão refere-se à estruturação do

texto, plano, estratégia, intenção, como também ao caráter ilimitador e à simetria que

promove, num grau maior ou menor, a circularidade e totalidade do texto; a visibilidade

provocada pelo aspecto gráfico do texto, resulta de dois percursos que vão da palavra à

63 Preconizadas por Italo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio (2000).

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imagem visiva e da imagem visiva para a palavra – no primeiro caso, um movimento do

autor para o texto, no segundo, um movimento do texto para o leitor; a multiplicidade

está relacionada com as vozes narradoras e é considerada como forjadora do que Calvino

entende por textos ‘multíplices’, ‘plurais’ e ‘intertextuais’.

Quanto à sexta especificidade, a consistência, mesmo não concluída por razão da

morte, de fato, do escritor Italo Calvino, pode ser considerada como o resultado do

conjunto das cinco especificidades, ou qualidades, garantindo, assim, a solidez e a

espessura à obra literária.

Em toda sua obra, Calvino cultivou essas qualidades literárias, mas é em Se numa

noite de inverno um viajante que constatamos a presença de todas elas. Percebemos a

leveza do ato da leitura, por meio da personagem Ludmilla, em contraponto com o peso

do ato da escrita carregado pela personagem Silas Flannery, o escritor-atormentado. A

leveza também se faz presente pelo discurso marcado por passagens de humor, nas quais

temas como a impotência criativa, a crise do gênero romanesco, entre outros, expressam-

se num tom tragicômico, fazendo com que, o que era para ser áspero e pesado torna-se

motivo de riso e reflexão.

A continuidade sugerida pela descontinuidade de uma forma recortada,

fragmentada em sua estrutura, sugere a rapidez do movimento narrativo que se dá desde

os capítulos curtos, em forma de contos, podendo ser lidos separadamente sem nenhuma

dependência com o capítulo antecedente ou o procedente, à harmonia narrativa: interna

do texto para o texto e externa do texto para o leitor. Característica que implica a

percepção do receptor e sua recepção da obra. Aqui, a fragmentação desaparece, dando

lugar a uma trama bem urdida; o texto abandona as interrupções dando prioridade à

continuidade. A proposta é maior velocidade da rapidez, de outra atitude por parte do

leitor, que passa a ter diferente dinâmica de leitura. A multiplicidade está na simetria

circular. A narrativa de Um viajante realiza rotações em torno de um eixo de superfície

que se pluraliza tematicamente. A circularidade da estrutura gera um texto em círculos

concêntricos que se abrem, mais e mais, a cada recomeço de leitura, funcionando como a

força motriz disparadora. Isso tanto para o Leitor protagonista, que está dentro da

narrativa em busca da continuação do livro que começou a ler, Se numa noite de inverno

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um viajante, quanto para o leitor concreto, que está fora do mundo ficcional. Calvino não

só neste romance, mas em toda sua obra, buscou representar o mundo como um

emaranhado de elementos heterogêneos que valoriza e concorre para a complexidade

inextricável de cada evento. Nos seus textos, bem como em cada episódio de Um

viajante, cada objeto mínimo é visto como o centro de uma rede de relações de que o

escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e

divagações se tornarem infinitas. De qualquer ponto que parta, seu discurso se alarga de

modo a compreender horizontes sempre mais vastos, e se pudesse desenvolver-se em

todas as direções acabaria por abraçar o universo inteiro. O melhor exemplo dessa rede

que se propaga a partir de cada um dos objetos como um modelo de um sistema de

infinitas relações de tudo com tudo. E é esta consistente multiplicidade exaustivamente

trabalhada por Calvino que favorece a ampliação da relação dialógica e da

hipertextualidade nesta obra.

O que procurei destacar, com essa aproximação conceitual entre a linguagem do

hipertexto e a literatura, é que os eixos caracterizadores do hipertexto já se encontram de

certa forma anunciados nos paradigmas da teoria da literatura, auxiliando-nos a pensar o

literário sob o prisma da rede e das possibilidades significativas que este nos oferece. É

possível pensar, assim, a leitura como uma experiência de novo tipo, na qual autor e leitor

precisam reconfigurar suas áreas de atuação em um ambiente que permite maior interação

entre ambos e que exige participação mais ativa por parte do sujeito leitor.

Muitas dessas experiências, inclusive as que utilizam algum suporte tecnológico,

no entanto, resumem-se a transcrever para o novo meio algo que já existia no “papel”.

Pensar a literatura e a leitura a partir do modelo do hipertexto não é simplesmente pensar

neste como uma técnica, e sim nas novas possibilidades de produção de sentido e

conhecimento que ele pode permitir. Trata-se de explorar a tecnologia como alteridade,

como meio de produção distinto, de interagir com ela em busca de um novo resultado,

isto é, buscando novas possibilidades literárias e estéticas, num outro parâmetro de

interação entre autor, texto e leitor, em que o suporte computacional é utilizado como

elemento de criação.

Tendo como operador de análise o modelo hipertextual, o estudo destas três obras

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de Calvino apresentou algumas das variantes de olhares sobre a questão da

hipertextualidade e alguns dos possíveis intercâmbios, diálogos e cruzamentos que

podem ser estabelecidos entre diferentes objetos semióticos. Ao lançar esse olhar sobre a

literatura pós-moderna e sobre o hipertexto e, de maneira mais ampla, sobre a produção

de conhecimento e subjetividade propiciada pela produção artística, foi possível

vislumbrar novas opções de ação efetiva sobre o mundo, ação esta pautada em noções de

produção coletiva de subjetividade e interatividade.

Como concluir, entretanto, este trabalho de análise das obras, em questão, de um

ficcionista da qualidade de Italo Calvino, de modo a pôr em ação o olhar crítico que não o

abandona? Como fechar uma pesquisa que trata do tema da hipertextualidade, ainda tão

caminhante na teoria literária? Como demonstrar todo o esforço desempenhado nestas

leituras e flagrar este movimento textual, articulando partes, de modo a exibir um

conjunto ao mesmo tempo coerente e descentrado, que revele não uma técnica, mas uma

postura, um modo de olhar o mundo, movido pela curiosidade e pela segurança da

instabilidade da inovação? A partir da busca de repostas para estas questões, utilizei o

hipertexto como um modelo reticular de leitura do literário e das formas de produção de

conhecimento, metaforizados pela própria narrativa, num movimento que vai da lógica de

escrita às possibilidades de leitura.

Como foi antecipado na Introdução deste trabalho, em movimento análogo ao do

texto sobre o qual se debruça a interpretação da literatura contemporânea, de clara

inserção pós-moderna, é forma de tessitura, de des/re/fazimento do texto construído e

constituído por fios extraídos de outros fios-tecidos. Esse processo gerativo não promove

somente as influências literárias que se incorporam ao patrimônio do escritor, que se

angustia no trato com elas, mas sim um desserviço à obra por meio de leituras de fricção

que estabeleçam com o texto primeiro a produção de novos sentidos na interpretação. A

interpretação será uma leitura que supletive o texto, no momento em que, ao desconstruí-

lo revele aquilo que estava recalcado. O texto apresenta-se como enigma: logo o

desfazimento da sua trama, isto é, sua interpretação, se constituirá de movimentos de

leituras sucessivos, e o deciframento do texto se efetivará por um sistema interpretativo

próprio.

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Nestas três obras ficcionais aqui analisadas, Calvino expõe, para depois por em

prática, sobre a forma de leitura estrelar, estilhaçada, tão instável e descentrada quanto o

objeto literário do qual se aproxima, sugerindo uma proporção entre os textos lisibles e

scriptibles, em que os primeiros, pela facilidade de serem lidos, de serem lisíveis, não são

as obras mais instigantes, interessando a ele apenas os textos escrevíveis. A boa literatura,

a obra em que a opacidade do tecido torna difícil a leitura, é apenas escrevível, isto é,

convida à interpretação. Termo que ele emprega no sentido nietzscheano de apreciar o

plural de que o texto é feito. Interpretar, portanto, não é dar-lhe um sentido, pois esta

idéia, baseada no par opositivo denotação/conotação, traria de volta, o fechamento do

discurso ocidental (científico, crítico ou filosófico), sua organização centrada, quando

dispomos em circuito todos os sentidos de um texto. Afinal, reitero, com outras palavras,

o evocado nas primeiras páginas deste trabalho: não é o computador que gerou narrativas

hipertextuais, nem o século XX, simplesmente a realidade e a consciência humana

transformaram-se de tal maneira neste último século, que o hipertexto tornou-se a forma

mais adequada para descrevê-lo. E Italo Calvino, como um verdadeiro artista, sentiu-o e

teve êxito ao exprimi-lo.

Vale a pena relembrar que a obra do Calvino, aqui representada pelos três dos

seus mais hipertextuais romances, para dar, entre tantas outras possíveis, uma idéia do

seu universo particular, autoral e ensaísta. A leitura é o tema constante, assim como o da

batalha inevitável para o ato de escrever. Tudo isso sem perder de vista a ironia, o

suspense e a leveza que dão substância lúdica à linguagem empregada pelo escritor. A

sua obra parece participar de um jogo que a literatura contemporânea está estabelecendo

com seu leitor; um jogo de adivinhação cujo desafio principal é descobrir quem está

narrando a história, descobrir quem é o narrador. Parte significativa da literatura

contemporânea escrita em prosa tornou-se um lugar onde se misturam linguagens alheias,

tendências e incorporações, orgânicas ou contraditórias.

Neste final de século, o escritor, estimulado por provocações das mais diversas e

cada vez mais urgentes, desenvolve a capacidade de transferir para o exercício da

narração as formas diversas de um permanente jogo de alteridade, do qual se sente

instado a participar através dos discursos que o constituem. Se, por um lado, deseja

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controlar sua permeabilidade às múltiplas referências, por outro, precisa lidar com a

diversidade de possibilidades e materiais.

O escritor contemporâneo elabora seu trabalho com restos de materiais de sua

própria experiência, relativiza o peso desta reminiscência, amarrando fatos reais com

narrativas que ouviu de outros e com o que importou de insólitas viagens, costurando os

mais díspares elementos com as linhas que lhe parecem adequadas – um fragmento de

sonho; versos de antigo poeta; uma citação filosófica; trecho de um diário pessoal ou,

ainda, por que não, partes inteiramente emprestadas de romances ou de peças ou de

poemas, de outros escritores que deseje homenagear?

Esses são alguns acessos de entrada pelo mundo alheio no qual busca as saídas

possíveis para a criação do próprio universo. Portanto, o escritor vai montando um

mosaico, ou seja, uma forma complexa de convivência de elementos díspares, autônomos

entre si, mas que interagem, dialogam, como um jogo cujas peças não se encaixam

exatamente; antes, elas vibram e fazem vibrar umas às outras, criando tensões e

desarmonias, contrastes e diferenças que formam novos sentidos. Aí está o sentido do

jogo, na liberdade que o escritor experimenta de ser um e vários e que o permite deslizar

pelos caminhos do tempo, ultrapassar os limites da técnica, cruzar as fronteiras

estabelecidas de sua arte sem, no entanto, apagar-se totalmente atrás do tecido da escrita.

Este é o sentido do jogo, que se coloca na questão inicial. Descubra: quem é o narrador?

Era de se esperar que a pós-modernidade trouxesse essa liberação, como em geral

ocorre nos momentos de transição. A questão de não abrir mão de nada do que lhe pareça

interessante, permite desrespeitar a “hierarquia” ou a “origem”. O escritor captura,

desmonta e canibaliza, para incorporar e adequar ao próprio patrimônio. Foram rompidos

os liames da sistematização genérica que ainda vigorava nas primeiras décadas do século

XX, até mesmo reforçada pela irreverência modernista, como no novo romance francês,

na “morte do autor” 64, no “fluxo da consciência”.65

64 A morte do autor, artigo de 1968, foi escrito por Roland Barthes em plena vigência do estruturalismo

crítico, e publicado na edição brasileira de O rumor da língua, p. 65-70. Esse texto é discutido por Michel Foucault em Qu’est-ce qu’um auteur? [O que é um autor?], de 1969, publicado em Dits écrits [Dito e escrito], v. I, p. 788-820.

65 Trabalho de linguagem em que o movimento segue a respiração sem pontuação gráfica. Renovação atribuída a James Joyce (Dublin, 1882-1941), tem como obras mais conhecidas o volume de contos

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Muitos escritores, aqui bastante exemplificados, largamente fizeram uso dos

processos de escrita por associações, armazenando dados de diferentes tipos num só

documento, que o identifica com o texto elástico, o stretch text:

Um tipo de documento que amplia o potencial do conteúdo do impresso e o envolve num alo de movimentação.A existência de uma escrita multidimensional, formada por uma pluralidade de percursos narrativos labirínticos cujo tempo, passado, presente e futuro, aparece simultaneamente fazendo o pensamento ondular numa abundância de imagens e sensações, é anterior ao surgimento da informática. 66

Nesse sentido, os romances O castelo, As cidades e Um viajante são experiências

que mantêm uma correspondência estreita com outros escritos de diversas épocas que

tiveram como objetivo suscitar a interação do leitor e multiplicar os espaços da escritura.

O sistema estético-literário em que a obra de Calvino se insere faz parte e é o resultado de

um projeto cujas fontes e influências aparecem bem delineadas numa série de fatores

históricos e literários, a partir do século XIX, que contribuíram para a formação da

literatura moderna.

Os procedimentos de construção e de recursos de linguagem que Calvino emprega

nesses três livros, em especial, nos remetem a uma visão da modernidade. Eles buscam

violentar as normas estabelecidas da escritura e das estruturas narrativas para substituir a

ordem convencional da narrativa por uma ordem aparentemente desordenada, para

revolucionar o ponto de vista do narrador, o tempo narrativo, a psicologia dos

personagens e a organização espacial da história. Esse processo de ruptura e de renovação

busca a indeterminação, e Calvino, por meio da inserção de signos como, por exemplo, o

mapa (As cidades), o jogo (O castelo) e o labirinto narrativo (Um viajante), ou ainda

com o emprego de elementos estruturais que dão a essas obras uma coerência da

construção hipertextual. Isso, ainda, com a exploração e a inserção de intertextos

Dublinenses (1914)) e os romances Retrato do Artista Enquanto Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939). A obra de Joyce foi submetida a pesquisas intensas por estudiosos de diferentes areas de conhecimento, confirmando-o como um dos autores mais notáveis do século XX. Também foi influência importante para autores tão diversos quanto Beckett, Jorge Luis Borges, Italo Calvino, Salman Rushdie e muitos outros. O filósofo americano Donald Davidson fez o mesmo com o Finnegans Wake, comparando-o com “Alice” de Lewil Carroll. E o uso da linguagem em Ulisses ganhou um livro de Jacques Derrida, além de render muito na mão destra de Guimarães Rosa.

66 Retirado de http://br.geocities.com/ciberliteratura/tese/jogo.htm. Acesso em: 07/2006.

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fragmentados, porém conectados por meio da montagem, conseguindo tornar vasta e

novidativa a rede de significação da obra, aumentando sua potencialidade criadora.

A literatura de Calvino articula-se, assim, com os movimentos literários anteriores

que procuraram estruturar o "Novo Romance" e edificar uma nova concepção da

linguagem poética, e figura como uma espécie de síntese de todos esses movimentos que

procuraram desmontar a realidade e estilhaçar com a tradição literária. Sua obra,

inserindo-se nesse contexto em que o escritor busca consolidar um novo espaço literário,

extrapola os limites do romance tradicional, ultrapassando as estruturas convencionais,

participando de um ponto de vista novo, independente das formas usuais, aventurando-se

numa estética literária que explora o abstrato, a presença da subjetividade sobre a

objetividade.

E são essas formas de composição narrativa lembram a escrita hipertextual

eletrônica, cujo traçado se encontra geralmente em movimento, e gera uma infinidade de

outros escritos, uma palavra sendo a passagem para outra página, num dobrar e desdobrar

de imagens sucessivas e voláteis, uma estrutura tão dinâmica que sua mobilidade espacial

lembra um jogo. Portanto, penso que o que prevaleceu nos capítulos aqui desenvolvidos

foi a pergunta: Até que ponto o texto digitalizado se distingue do hipertexto impresso

com relação à sua estruturação textual, aos mecanismos e estratégias de composição do

discurso? Responder a tal questão é rever e relembrar o dito anteriormente. Pois, quando

se fala em leitura hipertextual, geralmente se pensa no tipo de escrita que permite ao

leitor construir seu próprio trajeto de leitura, de acordo com sua curiosidade, simpatia ou

competência, consultando o texto de diversas maneiras, entrando na janela que quer

optar, de qualquer ponto do sistema, interagindo com este. Entretanto, essa idéia não é

restritiva à escrita eletrônica, pois esses infinitos percursos não são construções que

partem somente do escritor, podendo o leitor, inclusive, efetuar caminhos e desvelar

enunciações não idealizadas por este. As múltiplas janelas sejam elas links luminosos ou

palavras de conotação ambígua, ou ainda, estruturas que remetem a outras, só se abrem

ou são deflagradas na medida em que o leitor constrói, ele próprio, o jogo de

arborescências sugeridas pela obra, idealizadas ou não pelo autor, independentemente do

meio utilizado para veicular a informação.

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A teoria de redes, que se tem mostrado um rico instrumento de análise para as

mais diversas áreas do conhecimento, parece-me um interessante modelo para as

discussões acerca da hipertextualidade neste segundo romance em análise do Calvino, O

castelo dos destinos cruzados, escrito em 1973, um ano depois de As cidades invisíveis,

não nos surpreendendo por isso se encontrarmos muitas semelhanças entre ambos, ou

seja, uma cronologia muito convencional, ao estilo do "conto maravilhoso". As duas

narrativas têm conjuntamente a ambivalência dos acontecimentos proclamada pelo

narrador. Não se chega a compreender se tudo se passa em um castelo de cavaleiros em

companhia de pessoas refinadas ou em uma taberna de beira de estrada, com

companheiros ocasionais: “A este espetáculo, provei uma sensação esquisita, ou antes:

duas sensações distintas que se confundiam na minha cabeça ligeiramente confusa e

incomodada pelo cansaço” (CALVINO, 1997, p. 13).

Dentre os diversos modelos de conhecimento que podem ser vinculados às

teorias de rede, um dos que me parecem mais interessantes e capazes de possibilitar

análises múltiplas no âmbito da literatura e da leitura é o hipertexto. Relacionado à

ampliação das novas tecnologias e à informatização da sociedade, o modelo hipertextual

– conforme tratado por Pierre Lévy (1997) – apresenta elementos que o tornam um

valoroso instrumento para se pensar nas possibilidades que a literatura e a leitura trazem

para a produção de conhecimento no mundo contemporâneo. Ao ler um texto, cada

sujeito o interpreta à sua maneira, atribuindo-lhe um significado único e contextualizado.

Assim, o texto é tecido pelo leitor, é retalhado e depois costurado, formando uma

tessitura única, que pode tanto criar quanto desconsiderar elos e conexões da trama

textual. Em outras palavras, o que as “tecnologias intelectuais” fazem é exteriorizar,

virtualizar um processo mental. A escrita, por exemplo, é uma forma de virtualização da

memória. Ela desterritorializa o texto, objetivando-o, afastando-o de seu contexto de

produção. A digitalização, por sua vez, é uma forma de potencialização, de criação de um

número – por vezes imenso – de possíveis formas de realização. Mas ela apresenta

apenas uma gama de possibilidades já esperada. A virtualização só entra em cena a partir

do momento em que há interação entre a técnica e a subjetividade humana. É na forma

diferente de organização e compreensão do texto que a digitalização encontra os

caminhos da virtualização, ou seja, quando o elemento humano entra em campo, num

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processo reticular de produção de subjetividade.

Termo construído pela fusão de dois conceitos aparentemente contraditórios,

global e local, a globalização é uma marca da década de 90 enquanto fenômeno

característico das análises relativas ao setor econômico, social, político e cultural e

processo de transformações econômicas e suas conseqüências políticas em escala

mundial desencadeado a partir da convergência tecnológica baseada na digitalização e na

desregularização e privatização de importantes setores econômicos. Em síntese, o novo

termo ressalta a importância do local num contexto global, fazendo-o emergir como

afirmação de identidade cultural, de regionalidade, por oposição a massificação da

universalidade.

Nesse espaço global incrementa-se a convergência das mídias e com ela o novo

paradigma da comunicação se desenvolve como um sistema de comunicação em que

textos, imagens e sons coexistem, coabitam e interagem num espaço comum. Este modo

de demonstrar as capacidades de um sistema que aglutina as mídias precedentes de forma

é o novo paradigma interativo. O computador é um dispositivo de comunicação que

integra no seu funcionamento uma boa parte das características das mídias que o

precederam (imprensa, cinema, rádio e televisão) caracterizando-o como multimídia.

E a escrita no ambiente digital pode e deve ser revista a partir da sua publicação e

está permanentemente atualizada e revisada, isso fazendo com que o hipertexto

estabeleça uma nova relação com o tempo, para além da sua não-linearidade. O

hipertexto permite um percurso não-linear pelos documentos. A escrita não-linear é a

grande inovação da Web e a sua característica principal, que se assume como o motor da

interatividade na WWW, é conectar o mundo em rede. A flexibilidade inerente da

codificação digital é catalisada pelo incentivo de interatividade e de convergência. A

palavra "convergência” está diretamente relacionada com a abordagem correlativa de

diversos processos comunicativos, significando a conjunção de três áreas:

telecomunicação, mídia e informação, possibilitada pela tecnologia digital.

Falar em hiper-romance, portanto, significa entrar num espaço textual que, à

semelhança de qualquer outro organismo vivente, manifesta, ao mesmo tempo, simetrias

e assimetrias, repetições e mudanças inesperadas. Ao invés da linha, o que melhor

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representaria a estrutura do hiper-romance seria a rede de múltiplas linhas narrativas

proliferantes num tempo feito de correlações. Cria-se um ambiente informacional de

hipermídia onde ler é sinônimo de explorar um modelo e o conhecimento se dá através da

“simulação”, pois, ao invés da mera “decifração”, defrontamo-nos com um novo modo de

ler: aquele que recorta, cola, insere, encaixa, inverte, retorna e salta.

Assim, mais que um instrumento para agilizar a produção de textos clássicos, o

hipertexto e outros suportes informatizados são um novo universo de criação e de leitura

dos signos, aparecendo como uma virtualização do texto potencializado e colocando

diante dele uma nova problemática, à qual o leitor responde conectando, movendo,

alterando o texto de diversas maneiras.

Ler um hipertexto consiste em selecionar, em esquematizar, em construir uma

rede de remissões internas ao texto, em associar aos outros dados, em integrar as palavras

e as imagens a uma memória pessoal em reconstrução permanente. Então, os dispositivos

hipertextuais constituem de fato uma espécie de objetivação, de exteriorização, de

virtualização dos processos de leitura. São deslocados, assim, os papéis do leitor e do

autor, que passam a se intercambiar; o leitor passa a escrever/inscrever sua leitura,

tornando-se uma espécie de co-autor.

Cada leitura, ao atualizar o hipertexto primeiro, é também uma forma de

virtualizá-lo, introduzindo elementos novos e criativos. Nesse contexto, o livro – e o ato

de ler – tornaram-se um espaço “virtualizado” e desterritorializado; ele é parte de uma

rede que desloca o sujeito leitor, apresentando a ele novas problemáticas. Os dispositivos

hipertextuais desterritorializaram o romance pós-moderno. Fizeram emergir um texto sem

fronteiras nítidas, sem interioridade definível. O texto é posto em movimento, envolvido

em um fluxo, vetorizado, metamórfico, disponibilizando, assim, um texto que é sempre

recriado, que nunca aparece da mesma forma, alimentando um sujeito ativo, que o

agencia de acordo com suas demandas e atualiza-o constantemente. O hipertexto propicia

uma relação diferente entre obra e leitor, possibilitando a formação de um novo sujeito-

leitor, estabelecendo uma forma de comunicação e produção de sentido na qual a escrita

não é mais apenas um instrumento, mas um dos elementos de uma rede na qual o sujeito

está imerso no hipertexto.com.calvino.

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