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NATAL/RN AGOSTO/2007

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NATAL/RN AGOSTO/2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE MESTRADO

DA PEDRA DO ROSÁRIO AO PANTANAL: ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA

(NATAL/RN)

DALINE MARIA DE SOUZA

NATAL/RNAGOSTO/2007

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DALINE MARIA DE SOUZA

DA PEDRA DO ROSÁRIO AO PANTANAL:ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA

(NATAL/RN)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

ORIENTADOR(A): Prof.ª Dr.ª Lisabete Coradini

NATAL/RNAGOSTO/2007

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

NNBSE-CCHLA

Souza, Daline Maria de Da Pedra do Rosário ao Pantanal : espaço e urbanização no Passo da Pá- tria (Natal/RN) / Daline Maria de Souza. - Natal, RN, 2007. 155 f.

Orientadora: Profª. Drª. Lisabete Coradini.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Progra- ma de Pós-graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração: Cultura e Representações.

1. Antropologia urbana. 2. Urbanização - Passo da Pátria - Natal (RN) – Dissertação. 3. Espaço urbano - Favela – Dissertação. I. Coradini,Lisabete. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 39:316.334.56

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A dissertação intitulada “DA PEDRA DO ROSÁRIO AO

PANTANAL: ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA

(NATAL/RN)” foi submetida à banca examinadora, sendo

considerada ____________________.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________Profª. Dra. Lisabete Coradini

(Profª. Orientadora – PPGCS/UFRN)

______________________________________________Profª. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos

(Profª. Examinadora Externa – PPGA/UFPE)

______________________________________________Prof. Dr. Patrick Le Guirriec

(Universidade François Rabelais de Tours – Prof. Visitante Estrangeiro – PPGCS/UFRN)

______________________________________________Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas

(Membro Suplente – PPGCS/UFRN)

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Aos moradores da Pedra do Rosário eO seu pedaço,

Destinados a existir apenas Na memória do Passo da Pátria.

Dedico.

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AGRADECIMENTOS

A conclusão de mais uma etapa da minha vida acadêmica não teria sido

possível sem a contribuição de várias pessoas e instituições. Cada uma com

sua forma, independente do lugar que ocupam neste trabalho ou na minha vida

foram indispensáveis para a consolidação deste sonho.

A CAPES, que concedeu-me bolsa durante um ano, viabilizando,

naquele momento que eu prosseguisse no curso.

A Base de Pesquisa Poder Local, Cultura Política e Políticas Públicas

onde a participação em projetos de pesquisa e a orientação do professor João

Bosco Araújo da Costa na iniciação científica (PIBIC/CNPQ) e na monografia

de conclusão do curso de Serviço Social foram fundamentais para a

interlocução com diversos aportes teórico-metodológicos e temas das Ciências

Sociais. Uma experiência essencial para o desenvolvimento deste estudo.

Ao Núcleo de Antropologia Visual/NAVIS - UFRN pelo aprendizado na

área da pesquisa e nos campos temáticos que lhe compõem.

A professora Lisabete Coradini pela aposta nesta orientanda, pela

paciência e respeito com o meu ritmo de trabalho e pela orientação que

ampliou meus horizontes teórico-analíticos no campo da Antropologia.

Ao Professor Raimundo Arrais do Departamento de História da UFRN,

que apontou autores importantes para que eu pudesse compreender a

formação histórica de Natal e do Passo da Pátria.

A Carlos Magno de Sousa, ex- morador do Areado, que me conduziu a

todos os pedaços do Passo da Pátria e aos entrevistados, sua disposição foi

imprescindível para que pudéssemos desenvolver o trabalho de campo.

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A todos os entrevistados por terem gentilmente nos relatado seus

depoimentos sobre a configuração sócio-espacial do Passo da Pátria, matérias-

primas do nosso estudo.

A Carlos Silva, artista plástico, morador do Areado, que criou a arte para

as capas desta dissertação. Seu realismo me ajudou a compreender o

crescimento do Passo da Pátria.

A Eni Barbosa, assistente social do Projeto Integrado do Passo da Pátria

e a Paulo Araújo, ex-consultor do projeto, que permitiram o livre acesso aos

documentos e acervo fotográfico da equipe técnica.

A João Bosco Araújo da Costa, meu companheiro, pelo incentivo nos

momentos em que dilemas e angústias contornavam o trabalho, por partilhar

comigo seus conhecimentos e pelo amor que me aquece todas as chamas.

Aos meus pais, Giovani e Socorro que me acompanham em todas as

caminhadas e me apóiam sem medir esforços.

Aos amigos Max Bruno, Cristiana, Viviane e Daniely, pela amizade e

pelos debates sobre as mais diversas questões que sobrevoam este trabalho.

A todos que fazem o Ile Ase Dajo Oba Ogodo, pela acolhida amável que

me faz acertar os ponteiros e transitar com mais tranqüilidade nas jornadas da

vida.

A todos vocês meus sinceros agradecimentos.

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“Um Passo a frente E você não está mais no mesmo lugar

(...)Eu só quero andar nas ruas do Brasil

Andar no mundo livre Sem ter sociedade

Andando pelo mundo E todas as cidades

Andar com os meus amigos Sem ser incomodado

Andar com as meninas E eletricidade”.

(Um Passeio no Mundo Livre - Chico Science)

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RESUMO

SOUZA, Daline Maria de. Da Pedra do Rosário ao Pantanal: Espaço e Urbanização no Passo da Pátria (Natal/RN). Dissertação do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN. 2007.

O Passo da Pátria é uma das áreas de moradia da cidade de Natal/RN,

apresenta características de precariedade quanto às formas de habitar e no

acesso a bens e serviços. O projeto de urbanização chamado de Projeto

Integrado do Passo da Pátria implementado desde 2002 pelo poder público

pretende modificar este quadro. No Passo da Pátria o sistema de classificações

do espaço operado pelos moradores sinaliza para singularidades que permite a

identificação de quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal.

As ações do projeto de urbanização visam promover uma nova configuração

sócio-espacial. Nosso objetivo é analisar as formas de apropriação do espaço

no Passo da Pátria, construídas pelos moradores, os quais inscrevem suas

práticas culturais dando significados simbólicos aos quatro pedaços. Os

procedimentos metodológicos consistiram em: revisão bibliográfica dos temas

da Cidade, Urbanização, Segregação sócio-espacial, do Espaço, das políticas

Públicas na área urbana e dos textos sobre o Passo da Pátria; pesquisa

documental e entrevistas com moradores antigos, moradores recentes, entre

estes: homens, mulheres, jovens, e lideranças do Passo da Pátria. A avaliação

dos dados aponta que os moradores do Passo da Pátria vivenciam

positivamente a ação do poder público no que se refere a ampliação da infra-

estrutura urbana e serviços. Ao mesmo tempo, valorizam negativamente as

ações de remoção de moradores e a idéia de integração para os diferentes

pedaços que constituem o Passo da Pátria, para os mesmos, estas ações

desconstroem tempos, experiências e narrativas que se expressam nas suas

relações com o espaço em que vivem.

Palavras-chave: Favela, Espaço, Pedaço e Urbanização.

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ABSTRACT

SOUZA, Daline Maria de. Da Pedra do Rosário ao Pantanal: Espaço e Urbanização no Passo da Pátria (Natal/RN). Dissertação do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN. 2007.

The “Passo da Pátria” is one of the areas of housing in the city of Natal/RN,

presents characteristics of insecurity on ways to live and access to goods and

services. The project of urbanization called Integrated Project “Passo da Pátria”

implemented since 2002 by the public power wants to change this picture. In

“Passo da Pátria” system of classifications of space operated by the villagers

signals to singularities that allows the identification of four pieces: “Pedra do

Rosário”, “Passo”, “Areado” and “Pantanal”. The actions of the Project of

Urbanization promote a new socio-space configuration. Our objective is to

examine ways of appropriation of space in “Passo da Pátria”, built by the

residents, which included their cultural practices giving symbolic meaning to the

four pieces. The methodological procedures consisted of: literature review of

the themes of the City, Urban, Segregation socio-space, Space, the Public

Policies in urban area and texts on the “Passo da Pátria”; desk research and

interviews with old residents, recent residents, and these: men, women, young,

and leaders of the “Passo da Pátria”. The evaluation of the data indicates that

residents live positively the action of the public power as regards the expansion

of urban infrastructure and services. At the same time, negative value of the

shares removal of residents and idea of integration for the different pieces that

form the “Passo da Pátria”, for them, these actions desconstroem times,

experiences and narratives that are expressed in their relations with the space

in which live.

Key Words: Slum, Space,Piece and urbanization.

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

CAPA DA DISSERTAÇÃO: A ilustração da capa foi elaborada por Carlos Silva,

artista plástico que reside no Areado. Na margem superior, de um lado, o monumento

da Pedra do Rosário, de outro, imagem das palafitas do Pantanal. Abaixo desenho do

novo cenário pós-urbanização, pode-se ver crianças caminhando sobre o aterro, como

também, o muro de arrimo próximo à margem do Rio Potengi. Ao fundo, casa

reproduzindo o modelo do Projeto de Urbanização. Na margem inferior, desenho feito

a partir de uma imagem do Passo da Pátria, presente em um cartão-postal do ano de

1904, em que aparecem comerciantes, o galpão da feira, o largo do porto, o trem e o

casario da época.

MAPA 01 - principais bairros da cidade de Natal, com localização do Passo da

Pátria ( área em vermelho)................................................................................18

Capa do Capítulo I: ilustração de Carlos Silva (2007).....................................27

Capa do Capítulo II: ilustração de Carlos Silva (2007)....................................55

Foto 01 - Panorâmica da cidade.......................................................................60

Foto 02 – Vista panorâmica do acesso à Rua Passo da

Pátria..................................................................................................................61

Foto 03 - Passo da Pátria no início do séc. XX................................................63

Foto 04 – Primeiras habitações do Passo da Pátria.........................................65

MAPA 02 – área oficial do Passo da Pátria com divisão de pedaços...............71

Foto 05 – Trânsito de pessoas durante a Festa da Padroeira de Natal/RN em

2006...................................................................................................................74

Foto 06 – Momento após a celebração da missa para a Padroeira de Natal/RN

em 2006.............................................................................................................74

Foto 07 - Casas da Pedra do Rosário, Rua Ocidental de Baixo.......................77

Foto 08 - Casas da Pedra do Rosário, Passagem do trem...............................77

Foto 09 – Primeiras habitações do Passo.........................................................82

Foto 10 – Banho no Rio Potengi pela Rua Largo do Porto...............................84

Foto 11 – Conversa na calçada, casa da Rua Largo do Porto.........................85

Foto 12 – Vista do Areado sem habitações......................................................91

Foto 13 – Palafitas do Areado. Maré alta. ........................................................93

Foto 14 – Vista aérea do Passo da Pátria.........................................................95

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Foto 15 – Campo São Francisco.......................................................................96

Foto 16 – Quadra de esportes do Areado.........................................................98

Foto 17 – Propaganda da Biblioteca.................................................................99

Foto 18– Vista da Biblioteca Comunitária do Areado.......................................99

Foto 19 - Navegação de canoa no canal do baldo.........................................101

Foto 20 - Crianças brincando no canal do baldo............................................102

Foto 21 - Travessa Ocidental de Baixo..........................................................107

Foto 22 - Canal do Baldo, vista pelo lado do Pantanal..................................107

Foto 23 - Entrada da Travessa Ocidental de Baixo.......................................110

Foto 24 - Fim da Travessa Ocidental de Baixo em frente à Igreja São

Francisco.........................................................................................................110

Capa do Capítulo III: ilustração de Carlos Silva (2007).................................113

Foto 25 – Rua com córrego no Pantanal........................................................122

Foto 26 – Tv. Ocidental de Baixo, córrego coberto.........................................123

Foto 27– Obras no canal do baldo..................................................................124

Foto 28 - Casas à margem do canal do baldo................................................124

Foto 29 – Casas à margem do canal do baldo, em mesmo ângulo da foto 28

após aterramento.............................................................................................125

Foto 30 – Casas da nova rua com canal do baldo coberto. Reformas nas

habitações........................................................................................................125

Foto 31 – Novas casas localizadas no Pantanal.............................................126

Foto 32 – Banho no Rio Potengi na antiga área das palafitas do

Pantanal...........................................................................................................126

Foto 33 – Novas casas construídas pelo Projeto Integrado para os moradores

do núcleo mais antigo vindos da remoção.......................................................128

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SUMÁRIORESUMO ABSTRACT ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES INTRODUÇÃO...................................................................................................13

1 - CAPÍTULO I - FAVELA, ESPAÇO E URBANIZAÇÃO...............................261.1– A favela na cidade....................................................................................30 1.2 - Espaço: apropriação e significado........................................................401.3 - Políticas Públicas de Reurbanização de favelas..................................47

2 - CAPÍTULO II – A CONFIGURAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL DO PASSO DA PÁTRIA..................................... ........................................................................542.1 - A emergência do Passo da Pátria no contexto histórico e cultural de Natal/RN: o Porto e a Feira..............................................................................592.2 – O Passo da Pátria em pedaços..............................................................69 2.3 – Pedra do Rosário: os moradores mais antigos...................................722.4 – Passo: o segundo pedaço do Complexo Favelar do Passo da Pátria.................................................................................................................812.5 – Areado: laços identitários e discriminação..........................................90 2.6 – O outro lado do canal: o Pantanal e o meio-ambiente......................105

3 - CAPÍTULO III - A URBANIZAÇÃO E A PERCEPÇÃO DOS MORADORESSOBRE A “INTEGRAÇÃO” DOS PEDAÇOS................................................1123.1 – O Projeto Integrado do Passo da Pátria: ações e atividades de integração dos quatro pedaços....................................................................116 3.2 – Integração: a percepção dos moradores sobre a construção de um consenso........................................................................................................129

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................140 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................144 ANEXOS..........................................................................................................151

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Estudos sobre processos de mudanças sócio-espaciais nas cidades

contemporâneas, revelam a complexidade da vida urbana. Há mais de cem

anos, a formação de favelas tornou-se uma marca das principais médias e

grandes cidades do Brasil. A análise sobre as diversas formas de consolidação

de favelas pode revelar uma multiplicidade de referências espaciais e sociais

elaboradas pelos moradores a partir de diferentes redes de significado.

Ao emergir como campo de estudo da Antropologia, as questões

referentes aos contextos urbanos proporcionou uma série de aproximações e

diferenciações com a tradição antropológica baseada em estudos sobre povos

distantes no tempo e no espaço, sociedades que durante um longo período,

foram consideradas primitivas. A partir da compreensão de Magnani (2000), é

possível dizer que as questões que se colocaram, inicialmente, para a

antropologia urbana convergiam para a construção de uma abordagem teórico-

metodológica voltada para esta nova condição, quando “o campo é a cidade”.

No Brasil, os estudos antropológicos sobre questões derivadas do

fenômeno urbano são evidentes a partir dos anos 70, quando os grupos

tradicionalmente estudados pela Antropologia como índios, negros, favelados.

sofrem um deslocamento de sentido, ou seja, de grupos sociais marginais para

novos atores sociais e políticos. De acordo com Magnani,

Essa conjuntura – política, acadêmica, institucional – abriu espaço para estudos de caráter antropológico sobre a realidade dos grandes centros urbanos, pois era preciso conhecer de perto esses atores, seu modo de vida, aspirações – já que conceitos como ‘consciência de classe’, ‘interesses de classe’ e outros não davam conta de uma dinâmica que se processava no cotidiano. Quem são? Onde moram? Em que acreditam? Como passam seu tempo livre? Nesse particular a antropologia estava à vontade, pois [...] tais perguntas sempre estiveram presentes, norteando a pesquisa etnográfica (2000; p. 28-29).

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As pesquisas no âmbito da Antropologia Urbana possibilitam a

compreensão de como se estabelecem configurações sócio-espaciais nos

cenários urbanos a partir de “dentro”. Estas pesquisas utilizam os métodos e

técnicas já consagrados nos estudos com grupos tradicionais, tais como:

observação participante, documentação censitária, histórias de vida,

entrevistas dirigidas, entre outros, os quais permitem apreender o que as

populações urbanas pensam a respeito de suas condições de vida, seus

valores ou, ainda, dos seus ordenamentos, que constroem o sentido de

pertencimento a um determinado espaço.

Em geral, os estudos antropológicos desenvolvidos com as populações

urbanas tratam de suas estratégias de sobrevivência, religião, formas de lazer,

formação de favelas e tantos outros temas que expressam as manifestações

do fenômeno urbano na cidade. A produção antropológica na área urbana no

Brasil impôs novos desafios e problemas para a pesquisa e reflexão

antropológica. De acordo com Eunice Durham,

[...] não se desenvolveu no Brasil uma antropologia urbana propriamente, nos moldes em que foi iniciada pela Escola de Chicago, uma tentativa de compreender o fenômeno urbano em si mesmo. Ao contrário, trata-se de pesquisas que operam com temas, conceitos e métodos da antropologia, mas voltados para o estudo de populações que vivem nas cidades. A cidade é, portanto, antes o lugar da investigação do que seu objeto (1986; p.19).

A cidade e o contexto urbano tornaram-se um laboratório privilegiado

para as reflexões antropológicas, permitindo novos estudos e interpretações

sobre a cultura urbana. A partir da composição deste quadro de referências

sobre a experiência urbana, a Antropologia estabeleceu novos recortes e

incorporou outras categorias; um exemplo disso são os trabalhos que abordam

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os campos da marginalidade, segregação sócio-espacial, periferia, favelas,

entre outros. Entre estas abordagens chamou-nos a atenção os estudos sobre

a construção de configurações sócio-espacias no interior de favelas situadas

no cenário da cidade moderna.

Em se tratando da discussão sobre favelas, uma importante reflexão

encontra-se em Janice Perlman, a qual pesquisou o fenômeno das favelas, a

fim de analisar o conjunto de estereótipos sobre a pobreza urbana,

especialmente, na realidade das médias e grandes cidades latino-americanas.

Para a autora,

De fora, a favela típica parece um formigueiro humano congestionado e imundo. Mulheres andam de um lado para outro carregando grandes latas de água na cabeça ou se aglomeram ao redor da bica de água que serve à comunidade, lavando roupa. Homens ficam pelos bares conversando ou jogando carta, aparentemente sem nada para fazer. Crianças nuas brincam na terra e na lama. As casas parecem, no mínimo, inseguras, feitas como são de pedaços desencontrados de refugo. [...] Por dentro, porém, as coisas parecem bem diferentes. [...] O observador fortuito tampouco percebe o notável grau de coesão social e confiança mútua, e a complexa organização social interna, que se expressa em numerosos clubes e associações espontâneas (1977; p.40-41).

O estudo de Perlman focaliza uma análise das formas da dinâmica

cultural das favelas, combinada à descrição de características grupais que

distinguem seus moradores da visão que confere uma classificação

estigmatizadora sobre os modos de vida nas favelas.

Percebida como um problema, praticamente quando surge, no Brasil, as

diversas tentativas para a sua “resolução” passaram por um processo de

mudança de significado, a partir da década de 70. No contexto da transição

democrática brasileira, os movimentos reivindicatórios ligados às questões

urbanas deram visibilidade aos problemas relativos à ocupação, habitação,

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saúde, saneamento, segurança no âmbito das favelas e exigiam que as

soluções fossem construídas com a participação dos moradores.

A implementação de projetos e programas pelo poder público, tanto

simbólica como materialmente, transformam a organização sócio-espacial das

favelas. A avaliação destas ações possibilita apreender em que medida seus

resultados refletem as reivindicações dos moradores. É sob esta perspectiva

que me proponho a estudar o “Complexo Favelar do Passo da Pátria”,

localizado em Natal/RN, o qual corresponde a um aglomerado que, desde

2002, vivencia um processo de urbanização engendrado pelo poder público

através do Projeto Integrado do Passo da Pátria.

O Passo da Pátria está localizado na Zona Leste da cidade de Natal/RN,

próximo a três bairros de grande importância histórica e comercial para a

cidade, os bairros da Cidade Alta, da Ribeira e do Alecrim. Sua área totaliza

205.506m2 e comporta quatro comunidades: Pedra do Rosário, Passo, Areado

e Pantanal.

A área em que se situa o Passo da Pátria era de Patrimônio da União e

foi caracterizado como um assentamento subnormal. Em seu interior

encontramos aproximadamente, 952 habitações e uma população estimada em

mais de 3.700 pessoas (MIRANDA, 2002). Como nos demais assentamentos

subnormais de Natal/RN, os moradores não possuem a propriedade do terreno;

a ocupação apresenta alto adensamento, localiza-se em área de risco e chama

a atenção pelo acesso precário aos serviços públicos essenciais.

Nem sempre o Passo da Pátria foi conhecido, no contexto urbano de

Natal, como um “complexo favelar”. No início da sua formação, no final do séc.

XIX, o Passo da Pátria era um importante local de encontro e lazer na cidade,

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onde funcionavam um porto e uma feira. Os primeiros moradores estavam

relacionados a estas atividades e, em geral, eram pessoas de baixo poder

aquisitivo, que vislumbraram no Passo da Pátria uma solução para a sua

necessidade de moradia, local que, além disso, possuía como vantagem a sua

localização estratégica próxima à área central da cidade.

MAPA 01 - PRINCIPAIS BAIRROS DA CIDADE DE NATAL, COM LOCALIZAÇÃO DO PASSO DA PÁTRIA( área em vermelho)

FONTE – PREFEITURA MUNICIPAL DE NATAL. PROJETO INTEGRADO DO PASSO DA

PÁTRIA (2002).

Outro aspecto relevante na composição do Passo da Pátria é sua

configuração sócio-espacial, que divide o espaço em Pedra do Rosário, Passo,

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Areado e Pantanal. O manejo de símbolos e códigos em seu interior configura

cada pedaço como ponto de distinção das referências identitárias de seus

moradores.

Em relação à composição do Passo da Pátria, a classificação oficial

determinada pelos órgãos públicos considera que o complexo favelar é

composto por três favelas: Passo da Pátria, Areado e Pantanal. A identificação

destas favelas deu-se em virtude da autodenominação atribuída pelos

moradores e da presença de três Associações Comunitárias: Associação dos

Moradores do Passo da Pátria, Associação dos Moradores do Areado e

Associação dos Moradores do Pantanal.

A partir da observação direta, que realizamos durante a pesquisa,

percebemos que há uma outra nomenclatura atribuída pelos moradores para

determinar parte da área que a leitura oficial denomina de Passo da Pátria, a

qual corresponde à Pedra do Rosário. Menos dependente da existência de

Associações Comunitárias, essa denominação atribuída pelos moradores

sinalizam para outros elementos da dinâmica espacial da área, os quais

conferem uma identidade diferenciada ao local.

Sendo assim, consideramos que os moradores definem a área do Passo

da Pátria englobando quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e

Pantanal. A delimitação espacial elaborada pelos moradores, que configura

uma hierarquização entre os pedaços no Passo da Pátria, está associada ao

tempo de moradia, o que confere aos moradores mais antigos, os da Pedra do

Rosário e do Passo, uma característica grupal distintiva em relação ao Areado

e Pantanal, pedaços de ocupação mais recente.

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Desde 2002, a Prefeitura Municipal de Natal, vem implementando no

Passo da Pátria ações voltadas para a urbanização, através do Projeto

Integrado do Passo da Pátria proveniente do Programa Habitar Brasil1 - HBB. A

principal ação do Projeto Integrado do Passo da Pátria é a reforma, ou

remoção das habitações, com o intuito de homogeneizar os arranjos, formas e

referências das redes de relações dos seus moradores, transformando num

bairro planejado.

Esta proposição do Projeto Integrado é um dos principais motivos da

falta de consenso entre os moradores e os agentes do poder público. Isto

porque está previsto para o grupo de moradores mais antigos a remoção de

suas residências. Tratam-se dos moradores da Pedra do Rosário e de alguns

do Passo que estão em áreas consideradas de risco pelo poder público.

A existência dos quatro pedaços é um dos suportes para as diferenças

existentes entre os moradores do Passo da Pátria e há uma resistência por

parte da maioria dos moradores mais antigos em estabelecerem laços

identitários e de sociabilidade com aqueles que residem nos pedaços

constituídos mais recentemente.

A pesquisa “Da Pedra do Rosário ao Pantanal: espaço e urbanização no

Passo da Pátria (Natal/RN)” teve como objetivo geral identificar as formas de

apropriação do espaço urbano, as quais configuram a existência de quatro

pedaços no Passo da Pátria e seus significados simbólicos para os moradores,

1 Programa realizado com os recursos previstos na parceria entre a União Federal e o BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Tem como Órgão Gestor o Ministério das Cidades, sendo a CAIXA o agente financeiro, técnico e operacional. Em Natal, a Prefeitura Municipal é responsável pela execução e o Passo da Pátria é uma experiência piloto de urbanização de favelas do HBB no município, como discutiremos melhor no terceiro capítulo deste estudo.

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analisando a percepção dos moradores quanto à integração dos pedaços

proposta no Projeto Integrado do Passo da Pátria.

Procuramos reconstruir a história da expansão do Passo da Pátria e

apreender os diversos recortes espaciais estabelecidos pelos moradores,

identificando marcas exclusivas, as quais delimitam as referências identitárias

e/ou a construção de diferenciações nestas áreas. Para identificar a efetividade

do Projeto Integrado do Passo da Pátria consideraremos as avaliações, falas e

repertórios de linguagem mobilizados pelos moradores.

Os objetivos específicos foram: a) Descrever o processo de formação e

expansão do Passo da Pátria, o estabelecimento dos quatro pedaços: Pedra do

Rosário, Passo, Areado e Pantanal; b) identificar as práticas sociais que

operam no sistema de classificações que singulariza cada pedaços; c) analisar

as ações do Projeto Integrado que incidem diretamente no reordenamento do

espaço urbano no Passo da Pátria; e d) avaliar a percepção dos moradores

sobre as ações do Projeto que visam redefinir a dinâmica sócio-espacial do

Passo da Pátria.

O nosso interesse intelectual pelas temáticas do crescimento urbano das

favelas, do processo de segregação sócio-espacial, do Espaço e das políticas

públicas urbanas deu-se a partir de alguns trabalhos acadêmicos realizados no

âmbito do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como os da disciplina Questão Agrária e Urbana, na qual foi possível

conhecer abordagens teóricas multidisciplinares sobre as categorias teóricas

citadas.

Entre estas abordagens, chamaram-nos a atenção os métodos e

técnicas utilizados pela Antropologia Urbana. Para pensar questões como a

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construção de configurações sócio-espacias no interior de favelas situadas no

cenário da cidade moderna, como é o caso do Passo da Pátria, as abordagens

da Antropologia Urbana são importantes, porque situam as populações

urbanas como legítimos objetos de estudo.

Em 2003, fui estagiária do Projeto Integrado do Passo da Pátria, período

em que pude perceber sua configuração sócio-espacial e imaginar a

possibilidade do desenvolvimento de um estudo sobre a relação entre Espaço

e Urbanização no Passo da Pátria. Isto porque, além de ser uma experiência

piloto no município, a remoção de algumas moradias e o remanejamento de

moradores têm sido a principal razão da falta de consenso entre os moradores

e os agentes do poder público no processo de urbanização do Passo da Pátria.

A experiência no Projeto foi fundamental para esta pesquisa, tanto pelo

fato de ter obtido diversos dados documentais sobre o Passo da Pátria e a

urbanização, como também pela aproximação com alguns moradores, o que

me garantiu identificar as principais lideranças dos quatro pedaços: Pedra do

Rosário, Passo, Areado e Pantanal.

No período 2005/2007 realizei o trabalho de campo que subsidia este

estudo. Para isto, estabeleci contato com um jovem morador, uma pessoa que

conheci em outros circuitos da cidade e descobri que morava no Passo da

Pátria em uma reunião com lideranças, articulada pela equipe do Projeto

Integrado em 2003. Solicitei, então, seu auxílio para dar início à pesquisa na

área e o fato de este haver concordado foi o que tornou viável este trabalho.

Isto porque, num universo social de uma favela, é quase impossível para

um pesquisador desenvolver um estudo sem a legitimação da sua presença

por alguma rede de relações. Para um “estranho” existem várias interdições

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que tornam impossível qualquer estudo, como por exemplo, transitar,

indiscriminadamente, por todos os espaços, em qualquer hora.

Não deixei de cultivar o envolvimento com outros moradores, mas este

jovem, em especial, tornou-se auxiliar desta pesquisa, sem o qual teria sido

difícil conhecer bem todos os pedaços do Passo da Pátria e seus moradores;

os mais antigos, os mais novos, os desempregados, as lideranças e aqueles

que dificilmente me concederiam uma entrevista.

Neste sentido, a pesquisa consistiu, primeiramente, em uma revisão

bibliográfica da literatura sobre os temas Espaço, Favela, Cidade, Políticas

Públicas de Urbanização, Memória e Identidade, e textos sobre o Passo da

Pátria, para a construção das referências teórico-analíticas.

Em seguida, realizamos coleta de dados documentais em instituições de

pesquisa e órgãos do poder público local, nos quais foi possível perceber a

trajetória histórica do Passo da Pátria e as intencionalidades das ações de

urbanização e estabelecer a comparação com os resultados efetivamente

encontrados.

Posteriormente, organizamos mapas e desenhos sobre a área, onde

reunimos, tanto os existentes em documentos oficiais como aqueles que

elaboramos. Estes mapas e desenhos foram fundamentais para melhor

descrever a divisão do Passo da Pátria em quatro pedaços. Soma-se a isso a

reunião de fotografias que também possibilitam uma melhor apreensão das

dimensões internas da vida social no Passo da Pátria.

Finalmente, realizamos treze entrevistas com os moradores de cada

pedaço. Como critério para a escolha dos entrevistados buscamos lideranças e

pessoas que possuem um significativo tempo de moradia em cada um deles.

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Além disso, entrevistamos agentes do poder público local que executam o

Projeto Integrado do Passo da Pátria. Nos depoimentos foi possível perceber

como a concepção de urbanização e integração dos pedaços empreendida no

âmbito do Projeto vem sendo percebida pelos moradores, no que se refere à

melhoria da qualidade de vida e à percepção sobre a redefinição sócio-espacial

do Passo da Pátria.

Por uma melhor operacionalização do roteiro do trabalho de campo

percorremos o Passo da Pátria, de uma a outra extremidade, a partir da

seguinte ordem: 1- Pedra do Rosário; 2 – Passo; 3 – Areado; e 4 - Pantanal.

Esta ordem também segue a cronologia das ocupações no Passo da Pátria.

O presente estudo constitui-se de três capítulos. No primeiro capítulo

discutimos a noção de favela, a qual atravessou nos últimos trinta anos um

processo de reclassificação, apontando que nesta noção a participação dos

moradores em projetos e programas de urbanização das áreas de favelas tem

importância crucial na busca de soluções para os problemas de crescimento

das cidades. Neste sentido, também se discute, no primeiro capítulo, as

categorias teórico-analíticas que permitem uma melhor apreensão sobre a

análise dos usos e apropriações do espaço em áreas de favelas. No último

tópico do capítulo fazemos uma discussão sobre a avaliação de políticas

públicas de urbanização, focalizando o diálogo com a realidade dos projetos e

programas desenvolvidos em áreas de favelas.

No segundo capítulo, fazemos uma descrição sobre o Complexo Favelar

do Passo da Pátria. Neste capítulo, procura-se identificar o cenário do Passo

da Pátria desde os seus primeiros registros históricos, do final do século XIX,

até a sua atual formação. Trata-se de um processo de ocupação e crescimento

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o qual produziu um ordenamento sócio-espacial, que divide a área em quatro

pedaços. Estes pedaços são suportes para uma hierarquização das formas do

viver no Passo da Pátria que estabelecem distinções entre os grupos de

moradores.

No terceiro capítulo, realizamos uma análise sobre o Projeto Integrado

do Passo da Pátria, acerca das ações que estão voltadas para a idéia de

integração dos quatro pedaços. Nesta análise destacamos as ações de

remanejamento de moradores e remoção de moradias; a formação de uma

comissão de moradores, composta por representantes de cada pedaço, que

objetiva a unificação das associações comunitárias. A análise do Projeto

Integrado privilegia a ótica dos moradores e sua compreensão sobre a

integração.

Nas considerações finais, fazemos algumas reflexões sobre a relação

Espaço e Urbanização no Passo da Pátria. Destacamos a relevância da

incorporação da ótica dos moradores na implementação de projetos que visam

a redefinição da dinâmica sócio-espacial do lugar em que vivem.

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Nos anos 70 do século XX, a crítica ao crescimento desordenado das cidades

ampliou-se no interior das elaborações dos movimentos sociais urbanos tanto nos

países de capitalismo central como nos países em desenvolvimento. A atuação

destes movimentos foi fundamental para dar visibilidade às questões urbanas, entre

as quais se destaca a formação de áreas de moradia compostas por habitações

precárias, com um arranjo social que apresenta baixos índices de qualidade de vida,

além de compor o conjunto dos problemas que agravam a questão ambiental

urbana. Um exemplo disto são as favelas, carentes e desprivilegiadas em termos de

infra-estrutura e serviços públicos (CALDEIRA, 1984; ZALUAR, 2000; ROLNIK,

2004; VALLADARES, 1980; 2003).

No Brasil, a partir da década de 70, os movimentos reivindicatórios ligados às

questões urbanas estão inseridos no que se chamou de novos movimentos sociais e

emergem no contexto da transição democrática brasileira (SCHERER-WARREN,

1987). Quando o alcance das críticas elaboradas pelos movimentos sociais urbanos

chega à opinião pública e questiona os problemas provocados pela organização

sócio-espacial das cidades modernas, a favela passa a adquirir um novo sentido e

se constituir como campo de atuação de atores sociais e políticos que exigem

soluções para os problemas relativos à ocupação, habitação, saúde, saneamento,

segurança, etc.

Quando as demandas por bens e serviços de infra-estrutura são articuladas

através dos movimentos sociais urbanos e incorporadas na agenda pública, não dão

visibilidade apenas aos problemas urbanos que envolvem as cidades, mas também

à necessidade de implementação de projetos e programas de urbanização nas

favelas como uma alternativa viável na busca de soluções para os problemas sócio-

ambientais das cidades.

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A intervenção urbanística nas áreas de favelas, através de políticas públicas,

tem-se constituído numa das vias básicas para as ações do poder público, na

tentativa de reverter, no âmbito do desenvolvimento urbano da cidade, o processo

de exclusão dessas áreas. A avaliação destas ações possibilita apreender em que

medida seus resultados refletem as reivindicações dos moradores.

Isto porque, ainda que seja prevista a participação da população local nos

processos de implementação de projetos e programas na área urbana, nem sempre

esta participação se dá de maneira efetiva e não autoritária. A não participação

efetiva dos moradores em todo o processo, ou seja, na escolha das prioridades, na

implementação das ações e avaliação das políticas públicas urbanas, pode implicar

na exclusão de uma multiplicidade de referências espaciais elaboradas ao longo do

tempo pelos próprios moradores, as quais são cruciais para o planejamento

adequado da intervenção urbanística nas favelas.

Para situarmos, teoricamente, a configuração sócio-espacial do Passo da

Pátria, neste capítulo discutiremos como, gradativamente, as comunidades

consideradas favelas vivenciaram um processo de reclassificação, o qual busca

redimensionar a segregação e a estigmatização que atribuía características morais e

culturais negativas a seus moradores. Também discutiremos os usos e apropriações

de espaços no interior das favelas, as formas de classificação e atribuição de

sentido operadas pelos moradores, as quais constituem a diversidade de

ordenamentos sócio-espaciais nas favelas.

Finalizamos com a discussão sobre algumas questões de ordem teórico-

metodológica que envolve as políticas públicas de urbanização, as quais, por um

lado, são mobilizadoras do discurso da reclassificação das favelas e, por outro,

possuem uma visão instrumental sobre o manejo de símbolos e códigos, em cujo

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interior configuram espaços como pontos de distinção das referências identitárias de

seus moradores.

1.1 – A FAVELA NA CIDADE

A concepção de cidade engloba não só aspectos econômicos; isto é, até

mesmo aquelas localidades, que do ponto de vista do crescimento econômico, não

seriam classificadas como cidades podem ser assim definidas pela existência de

uma estrutura político-administrativa. Para Max Weber, “a cidade tem que se

apresentar como uma associação autônoma em algum nível, como um aglomerado

com instituições políticas e administrativas especiais” (WEBER, 1987, p. 76).

Cidades de formação histórica e social diferentes comportam esta característica em

comum: a existência de instituições políticas e administrativas que lhes

proporcionam, em algum nível, autonomia. De acordo com Raquel Rolnik, a cidade

nasce com o processo de sedentarização e seu aparecimento delimita uma nova relação homem/natureza: para fixar-se em um ponto para plantar é preciso garantir o domínio permanente de um território. Imbricada, portanto com a natureza mesma da cidade está a organização da vida social e consequentemente a necessidade de gestão da produção coletiva. Indissociável à existência material da cidade está a sua existência política (2004, p.08).

Da necessidade de uma dimensão pública na gestão da vida coletiva e da

importância do seu papel na organização das regras e ordenamentos destinados ao

funcionamento da vida na cidade, institui-se uma autoridade político administrativa.

Esta condição se coloca para a vida urbana até mesmo nas cidades mais simples e

rudimentares.

A dimensão pública corresponde à possibilidade de existência da cidade. Sua

importância para o funcionamento da cidade dá-se, na medida em que surge a

necessidade de conceber e administrar as atividades produtivas e regular os modos

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de habitar que, como discute Raquel Rolnik, são “regulamentos e organizações que

estabelecem uma certa ordem na cidade definindo movimentos permitidos,

bloqueando passagens proibidas” (2004, p.19).

A partir do século XIX, com o paradigma da industrialização, vivenciou-se um

processo de desenvolvimento nas cidades, em que a busca pelo progresso

significava o alcance de bons resultados, no que se refere ao crescimento

econômico. Este processo de desenvolvimento, instituído no século XIX, de matriz

tradicional, tem como principais pilares a industrialização e o uso incessante de

tecnologia como paradigma de mudança social, logo, sinônimo do próprio

desenvolvimento. Este ideário, que ancora a concepção tradicional de

desenvolvimento moldou o espaço e a sociedade urbano-industrial.

Nos últimos trinta anos do século XX, a idéia de que a industrialização e o uso

incessante de tecnologia garantiriam mudança social foi colocada em cheque pelas

crises ambientais, econômicas e sociais. No que se refere à cidade, existe um

consenso crítico que a coloca como expressão deste modelo de desenvolvimento

tradicional além de epicentro dos problemas sócio-ambientais atuais.

A expansão das atividades produtivas modernas no cenário da cidade foi um

dos fatores que configurou um processo de urbanização, produzindo novas

espacialidades, entre as quais destacam-se a composição de “periferias, subúrbios,

distritos industriais, estradas e vias expressas que recobrem e absorvem zonas

agrícolas” (ROLNIK, 2004, p.12). Um exemplo disto é a sua consolidação enquanto

metrópole, a qual resultou num modelo de urbanização com uma dinâmica produtora

de segregações sócio-espaciais.

A imagem da cidade ficou também associada ao sentido de atração que esta

desempenhou sobre grandes contingentes populacionais, quando se tornou o centro

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das atividades produtivas modernas; e ao acelerado processo de transformação das

suas paisagens. As práticas materiais e simbólicas desempenhadas na cidade são

assim permeadas pelo aspecto da heterogeneidade, para Magnani: “A cidade, [...]

não só admite e abriga grupos heterogêneos (seja do ponto de vista de origem

étnica, procedência, linhagens, crenças, ofícios etc.) como está fundada nesta

heterogeneidade, pressupõe sua presença” (2000, p. 48).

A presença da heterogeneidade na cidade pode ser associada ao percurso

histórico do crescimento urbano de grandes cidades como Nova York, São Paulo ou

Rio de Janeiro. A instalação de indústrias atraiu grandes contingentes populacionais

em ritmo acelerado, contribuindo para aumentar o padrão desordenado de

crescimento. A construção de estradas, ferrovias, edificações, pontes, transformou e

ressignificou suas paisagens.

Neste contexto, predominavam a migração e a falta de moradia,

impulsionando a apropriação “irregular” do espaço urbano. Nas cidades modernas, o

processo de urbanização apresentou consequências sociais e econômicas que

agravaram a questão urbana. Uma das principais expressões disto é o fenômeno da

constituição de favelas. Mike Davis discute que,

Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita. [...] As favelas de São Paulo – meros 1,2% da população em 1973, mas 19,8% em 1993 – cresceram na década de 1990 no ritmo explosivo de 16,4% ao ano. Na Amazônia, uma das fronteiras urbanas que crescem com mais velocidade em todo o mundo, 80% do crescimento das cidades tem-se dado nas favelas, privadas, em sua maior parte, de serviços públicos e transporte municipal, tornando assim sinônimos “urbanização” e “favelização“ ( 2006, p. 27).

As favelas representam os aglomerados urbanos que não se encontram

adequadas às regras e normas propostas nas ações de ordenação espacial das

cidades. Ao mesmo tempo, desde que passam a existir, demandam intervenções

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urbanísticas de correção ou controle no sentido da adequação à estrutura urbana

das cidades.

Como lugar de moradia, desde sua origem, a favela foi constituída por

habitações irregulares, resultado da pobreza dos seus habitantes que se

estabeleceram sob a ausência de saneamento e de serviços públicos, devido ao

descaso do poder público, fatores que até hoje compõem o quadro dos problemas

sócio-ambientais urbanos. No que se referem às dimensões sociais, os moradores

das favelas eram associados a imagens da carência, da falta e do vazio de valores

morais.

Na segunda metade do século XX, quando se intensifica o crescimento das

favelas, é evidente a construção de um imaginário social ancorado em referências

negativas pré-concebidas, que distingue os moradores das favelas dos residentes

de outros ordenamentos sócio-espaciais da cidade. Além disso, as primeiras

propostas de intervenção do poder público partiam do imaginário que o “problema

das favelas” era “problema de Polícia”, determinando para estas áreas a sua

destruição, sob o critério da saúde e da qualidade de vida, principalmente, para os

demais moradores da cidade. Na maioria dos planos urbanísticos, a favela é

considerada uma “patologia social”, um duplo problema sanitário e policial.

Pode-se dizer que as favelas tornaram-se presentes na configuração territorial

da maioria das médias e grandes cidades do Brasil, desde o início do século

passado. A cidade do Rio de Janeiro é a expressão do processo de modernização

do país e destaca-se no quadro do assim chamado “problema das favelas2” no

Brasil:

2A primeira favela do Rio de Janeiro, no morro da Providência, surgiu na década de 1880 (DAVIS, 2006, p. 37).

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Pode-se dizer que as favelas tornaram-se uma marca da (antiga) capital federal [...]. Cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cortiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também deveu-se à criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização demonstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história (ZALUAR & ALVITO, 2004, p.07).

No contexto cultural e político carioca pós década de 60, a consolidação da

favela envolveu a construção da categoria favelado. Esta categoria está relacionada

com as organizações de moradores envolvidas na luta contra as ações de remoção

das favelas. Atitudes como a organização de congressos de favelados articuladas à

atuação de algumas entidades ligadas à Igreja buscavam influenciar as ações

implementadas pelos governos.

As proposições dos movimentos sociais urbanos de favelados objetivavam

compatibilizar as particularidades da realidade ambiental, cultural, econômica e

social das favelas com o contexto mais geral do desenvolvimento urbano da cidade

do Rio de Janeiro. Segundo Marcelo Burgos,

Organizados politicamente e representados por uma Fafeg3 [...], os habitantes das favelas lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções, ocorridas sobretudo entre 1968 e 1975, representa um dos capítulos mais violentos da longa história da repressão e exclusão do Estado brasileiro ( 2004, p.36).

Como assinala Burgos, a resistência das organizações de moradores às

ações de remoção é contemporânea da idéia autoritária de urbanização presente

nas ações do poder público. No entanto, como demonstra o autor, o alcance dessa

resistência foi limitado pelas constantes ações de violência que caracterizaram a

maioria dos processos de remoção.

3 Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara. Fundada em 1963 tinha como objetivo a incorporação política dos moradores das favelas à vida das cidades; congregava cerca de 100 associações (BURGOS, 2004).

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Embora a formação das favelas, em cada cidade, deva-se a processos de

urbanização distintos, o que há em comum é que sua constituição deu-se em

oposição à cidade, ou seja, configurou-se como lugares da falta, da carência e da

violência, percebidos como separados da cidade. De acordo com Alba Zaluar e

Marcos Alvito,

ao longo deste século, a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral (2004, p.14).

Estabeleceu-se uma idéia sobre a favela e seus moradores baseada na

desagregação e ausência de valores morais. Esse discurso sobre a favela deixava

de lado outros aspectos, os quais o colocariam em contradição, tais como a

existência de uma vida social baseada em laços de vizinhança, crianças com suas

brincadeiras de infância ocupando as ruas ou, ainda, o transitar dos trabalhadores

saindo de casa e voltando para ela.

Desde sua formação, a favela é considerada como um problema para a

cidade, um lugar carregado de negatividades e indesejado. Este imaginário que

estigmatizou seus moradores orientou algumas decisões do poder público, tanto no

sentido da ausência de investimentos em infra-estrutura e serviços nestes lugares,

quanto no intuito da sua remoção ou destruição.

O tratamento negativo dispensado às favelas, por parte do poder público, e a

percepção social construída em torno dos seus moradores constroem o espaço da

favela como excluída ou separada da cidade. Apesar de se apresentarem com

muitas características de outros bairros da cidade, tais como: ruas, casas, comércio

próprio e alguns equipamentos urbanos, a favela não era considerada como

integrada à cidade formal.

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No final do século XX, no Brasil, durante a transição democrática, a

emergência de novos atores sociais e políticos e as lutas pelo atendimento de suas

demandas por direitos sociais e participação redimensionaram as políticas públicas

urbanas (SADER,1988). O ingresso das favelas nas prioridades de projetos e

programas sociais vem, ao longo do tempo, redefinindo a situação de exclusão do

reconhecimento oficial a que estiveram submetidos seus moradores.

Ações de estabelecimento de infra-estrutura urbana, melhorias habitacionais

e de regularização fundiária passam a ser previstos nos projetos e programas

voltados para as áreas de favelas (MOYSÉS; BERNARDES e AGUIAR, 2005). A

remoção ainda continuava presente nos planos e ações do poder público na área

das favelas, mas como um processo negociado com os moradores. A possibilidade

de obter uma casa em outra região da cidade ou uma indenização para compra de

outro imóvel são alternativas de reurbanização nestas áreas (VALLADARES, 1980).

Outra mudança importante, resultado da emergência e atuação destes novos

atores sociais e políticos foi, certamente, o investimento na construção de um novo

sistema classificatório para as áreas de favelas.

A definição de AEIS – Áreas Especiais de Interesse Social por exemplo,

corresponde a uma denominação utilizada para designar as áreas de moradias

localizadas em terreno de propriedade alheia, pública ou particular, geralmente

situadas em áreas de risco e que apresentam ausência de serviços públicos

essenciais, características comumente encontradas nas favelas e que se destinam a

ações de urbanização e regularização fundiária. Além disso, esta definição busca

desconstruir a carga de negatividade atribuída, ao longo do tempo, aos moradores

das favelas.

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As favelas passam a ser incluídas num discurso que busca a sua integração à

cidade; a sua transformação em bairro popular e a ampliação da participação de

seus moradores em processos de urbanização. Um exemplo recente de

consolidação deste discurso foi a criação do Estatuto das Cidades4 (Lei Federal

10.257/01). De acordo com Alexandre Weber, o Estatuto das Cidades proporcionou

uma mudança

de perspectiva metodológica: essas áreas, então denominadas oficialmente favelas, passaram a ser definidas a partir de uma leitura puramente espacial e jurídica, por suas carências de infra-estrutura e pela situação fundiária da ocupação, e não pelos preconceitos que atribuíam características morais e culturais a seus moradores (2005, p. 275).

Esse processo de reclassificação contribuiu para que a favela se constituísse

em um espaço urbano relevante para a cidade, lugar da implementação de políticas

públicas de urbanização, as quais se distanciam de proposições que visam “destruir”

ou remover as moradias.

Neste contexto, novos desafios aos moradores das favelas se colocaram, tais

como a possibilidade da participação em todo o processo de implementação das

políticas públicas de urbanização, superando a intervenção, muitas vezes autoritária,

desempenhada pelo poder público. Com as discussões sobre a participação

democrática que se amplificaram pós anos 70, a urbanização das favelas deve-se

configurar como uma decisão negociada entre o poder público e os moradores

(MOYSÉS; BERNARDES & AGUIAR, 2005; VALLADARES,1980).

Em Natal/RN, os movimentos sociais urbanos que atuaram durante a

transição democrática tiveram pouca visibilidade e abrangência; além disso, não

estavam diretamente ligados às questões sociais das favelas (DOMINGOS, 1987). A

4 O Estatuto das Cidades foi sancionado em 2001, prevê instrumentos de controle social, regulamentação e planejamento das cidades, tais como: o Plano Diretor dos municípios; a participação popular através de conselhos, entre outros. Ver Estatuto das Cidades (2001).

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fragilidade desse campo nas experiências dos movimentos sociais urbanos de

Natal/RN contribuiu para que o fomento à participação, no interior das favelas, fosse

articulada por atores sociais e políticos de matriz conservadora, os quais se

apropriaram do discurso participativo e democrático e organizaram diversos

conselhos comunitários nas chamadas “comunidades carentes” da cidade.

O discurso democrático e participativo que prevaleceu no âmbito das favelas

de Natal/RN foi permeado por práticas políticas tradicionais privatistas da esfera

pública, patrimonialista e clientelística, contribuindo para o desvirtuamento destas

noções e o esvaziamento do seu possível sentido transformador (COSTA, 1995).

Ainda assim, o investimento na geração de um novo sistema classificatório

para as áreas de favelas, resultado da atuação dos movimentos sociais urbanos no

contexto nacional, implicou também em uma mudança de postura no que se refere à

atuação do poder público de Natal/RN nestas áreas.

Neste sentido, é importante perceber que, quando estabelecemos

determinados recortes espaciais na cidade, como um Bairro ou uma favela,

constata-se que no interior destes espaços configuram-se coesões sociais que

estabelecem redes de relações, as quais implicam no cumprimento de determinadas

regras de lealdade e proteção; no compartilhar memórias, identidades e construção

de alteridades. Esse conjunto de práticas culturais é exercido numa relação, ao

mesmo tempo simbólica e concreta com o espaço vivenciado, tornando a

apropriação de cada espaço densa de significação (GEERTZ, 1973).

Quando se trata de intervenções urbanísticas em áreas de favelas, existe um

tipo de situação que é emblemática, da não participação dos moradores na

formulação de projetos de urbanização. Trata-se das ações de redefinição da

dinâmica sócio-espacial, presentes nos projetos de urbanização, as quais visam

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estabelecer uma classificação oficial para a organização dessas áreas, deixando de

considerar as fronteiras simbólicas e as classificações localmente produzidas.

Em nosso estudo, analisamos o processo de configuração do Passo da Pátria

em favela, inserido no contexto mais geral do crescimento urbano da cidade de

Natal/RN. O que foi denominado como Complexo Favelar do Passo da Pátria pelos

meios de comunicação e pelo próprio poder público corresponde, na ótica dos

moradores, a um espaço dividido em: a Pedra do Rosário, Passo, Areado e

Pantanal.

A área que engloba os quatro deixou, desde o ano de 2002, de ser

considerada pela administração pública municipal como um Assentamento Sub-

Normal5 e passou a ser classificado como uma Área Especial de Interesse Social e

vivencia um processo de urbanização desenvolvido pelo poder público, através do

Projeto Integrado do Passo da Pátria.

Durante as negociações entre os moradores e o poder público visando à

implementação deste projeto, era constante o conflito de opiniões sobre o significado

do morar, que se diferenciavam entre os quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo,

Areado e Pantanal. O epicentro deste conflito era a idéia de remoção das moradias.

Compreendemos que, ampliar o conhecimento sobre as formas de apropriação

destes espaços como lugares de moradia é entender melhor a questão da

urbanização das áreas de favelas e da própria cidade de Natal como um todo.

Os registros de como os moradores das favelas percebem, usam e constroem

as configurações sócio-espaciais no lugar em que vivem têm-se constituído em uma

importante ferramenta na busca pela efetividade das políticas públicas de

5 “Assentamento habitacional irregular – favela, mocambo, palafita e assemelhados - localizado em terreno de propriedade alheia, pública ou particular, ocupado de forma desordenada e densa, carente de serviços públicos essenciais, inclusive em área de risco ou legalmente protegida” (PREFEITURA DO NATAL, 2002, P.09).

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urbanização. Estes registros põem em cheque as idealizações urbanísticas para as

áreas de favelas e garantem representatividade às reivindicações específicas de

seus moradores.

1.2 – ESPAÇO: APROPRIAÇÃO E SIGNIFICADO

Cada sociedade tem elementos e formas diferentes de organização espacial.

Verificar os processos culturais de apropriação dos espaços nas cidades é essencial

para entender seu crescimento e sua urbanização. No que se refere aos usos e

apropriações do espaço, é necessário saber quem são seus usuários e moradores,

como desempenham o sentimento de pertencimento ao lugar, que atividades e

acontecimentos caracterizam a vida vivenciada nele.

Diferentes da leitura oficial que classifica e mapeia a cidade utilizada por

órgãos e instituições públicas existem outras formas de classificá-la, as quais são

estabelecidas por histórias de vida e redes de relações sociais que, em vez de

homogeneizá-la constroem-na a partir de uma multiplicidade de referências sócio-

espaciais que nem sempre legitimam o discurso da intervenção oficial nas cidades.

Para Carlos Nelson dos Santos,

Há dois tipos principais de espaços nas nossas cidades: o construído, fechado e, em maior ou menor grau, privatizado (exs – casas, lojas, fábricas, escolas, bares); e o aberto e de uso coletivo (exs – ruas, becos, largos, praças, jardins públicos, praias). Entre estes dois pólos, que servem para armar as representações do urbano, se estabelecem relações de apropriação diferencial. As manifestações sócio-culturais características de um grupo e que servem para distingui-lo, em relação a quem é de fora e para seus próprios membros, sempre estarão referidas a conceitos de abertura dos espaços (1985, p.13).

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Desta forma, a experiência cotidiana de moradia e ocupação nas favelas é

imbuída de sentidos e significados que constroem identidades sociais, distinguem

grupos e legitimam o exercício da diferenciação entre espaços. As classificações

que distinguem espaços revelam a existência de uma apropriação material, mas

também simbólica, que permite estabelecer vínculos com um determinado espaço.

De acordo com Magnani:

Quando o espaço - ou um segmento dele - assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como pertencentes a uma rede de relações, recebia o nome de "pedaço". [...] Uma primeira análise mostrou que essa noção era formada por dois elementos básicos: um de ordem espacial, física - configurando um território claramente demarcado ou constituído por certos equipamentos - e outro social, na forma de uma rede de relações que se estendia sobre esse território (2000, p. 21).

O ângulo escolhido para abordar a realidade do Passo da Pátria foi a relação

que os moradores dos quatro pedaços estabelecem, ao configurá-los como lugares

de moradia que se distinguem entre si. Com o programa de urbanização coloca-se a

possibilidade de mudar a localização das moradias, o que pode significar adentrar

em outro pedaço, nem sempre “aberto”, mobilizando, assim, práticas de identificação

ou de segregação.

É comum, em áreas de favelas, a existência de pedaços que se diferenciam

entre si. São arranjos sócio-espaciais estabelecidos pelos próprios moradores, os

quais determinam suas formas de transitar, usufruir e estabelecer relações entre os

diversos grupos sociais. O sistema de classificações operado por moradores de

espaços urbanos sinaliza para singularidades no que se refere aos aspectos e

práticas culturais de determinados grupos sociais.

No caso das favelas, existem sistemas de oposições que dão sentido aos

espaços, estabelecendo códigos de reconhecimento entre seus moradores, tais

como: moradores de “antes” /moradores de “depois”, igreja/terreiro ou

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trabalhadores/desempregados. Assim, a classificação produzida pelos moradores,

internamente, diferencia-se das representações oficiais e constroem regras que

regulam os relacionamentos entre os pedaços.

A apropriação dos espaços nas favelas está ordenada em hierarquias de

lugares que definem sua valorização ou desvalorização. Muitas vezes não há

grandes diferenças entre os moradores de cada pedaço, no que se refere à origem

social, ocupação, renda ou escolaridade; mas basta conversar com alguém,

observar os comportamentos e reações regulares, para perceber como os

moradores de cada pedaço consideram-se distintos dos demais.

Como exemplo disto, pode-se refletir sobre os processos de remoção que

visam deslocar moradores que residem, há um tempo significativo, 40, 50 anos ou

mais, na favela. A problemática torna-se mais complexa quando o objetivo das

intervenções urbanísticas é desloca-los para a vizinhança dos moradores instalados

mais recentemente. Geralmente, são os pedaços mais antigos os cenários de maior

resistência a políticas de urbanização, devido ao fato de seus moradores repudiarem

a idéia de se tornarem vizinhos daqueles com os quais não compartilharam práticas

de identificação comunitária.

Além disto, demonstram insatisfação quanto aos valores atribuídos pelo poder

público para suas moradias. Isto acontece, especialmente, com aqueles que

conseguiram ampliar a estrutura de suas casas, capazes de abrigar grandes famílias

e desenvolver atividades comerciais, mas não encontram consenso para recriarem

sua infra-estrutura particular na nova moradia.

Há toda uma literatura dedicada à análise das categorias Identidade e

Espaço, seja na Antropologia, na História, na Geografia, ou entre outros campos

científicos, que procura detalhar as diferentes concepções que cercam as suas

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conceituações. Cada abordagem teórico-analítica legitima que estas categorias

podem ser tratadas enquanto objetos de análise.

Em nosso trabalho fazemos uma leitura mais instrumental destes estudos, o

que nos ajuda na análise do Espaço, partindo de duas dimensões, uma material e

outra simbólica. Para Roberto DaMatta, “ o espaço se confunde com a própria ordem

social, de modo que, sem entender a sociedade com suas redes de relações sociais

e valores, não se pode interpretar como o espaço é construído” (1985, p.30).

Milton Santos afirma que o espaço “reúne a materialidade e a vida que a

anima” (1997, p.51), ou seja, não se trata de considerar as configurações territoriais

e as relações sociais separadamente, mas, sim, de enxergá-las de maneira

imbricada. Neste sentido, abordar a questão do espaço numa dada realidade

significa trabalhar o resultado desta interação. Um dos elementos do espaço urbano

que fundamenta estas duas dimensões é a Rua. Segundo Carlos Nelson Santos,

Para nossa cultura é impossível imaginar o urbano sem o recurso à noção e à imagem de ruas. A importância de que desfrutam pode ser percebida pela constatação da quantidade de atividades e significados para os quais servem de apoio ou de lócus. [...] Um “microcosmo real” de espaços e relações (Jacobs, 1973) que tem a ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por diante. Que serve para referenciar bons e maus lugares (1985, p. 24).

O movimento de uma Rua, seu trânsito, as diversas atividades desenvolvidas,

seus principais acontecimentos históricos e o conjunto de seus usuários, moradores

ou não, configuram um repertório de referências espaciais num mesmo espaço. A

Rua pode ser a referência para delimitar territorialidades diferentes, tais como a

divisão entre comunidades de uma mesma região. A Rua compõe o quadro das

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diferenciações espaciais e possibilita o encontro de grupos sociais diversos, que

interagem construindo fronteiras simbólicas que regulam a apropriação do espaço.

Ocorre que, nas favelas, áreas que se estabeleceram sob a ausência de

planejamento urbano e de ações do poder público, existem códigos próprios que

impõem a inserção numa determinada rede de relações para que se possa transitar

nas ruas “livremente”. Vale ressaltar que, conhecer todo o emaranhado de acessos

e caminhos que constituem a maioria das favelas é portar um saber necessário e

funcional que, como discute Alexandre Weber: permite aos moradores distinguirem

as áreas de conflito intenso, de ocupação e atuação do tráfico – que devem ser

evitadas pelos riscos e porque são moralmente desqualificadas -, das áreas

residenciais, ditas mais tranqüilas, onde o tráfico tem menor atuação (WEBER,

2005, p. 251).

Num processo de urbanização de áreas de favela, deter esse conhecimento

espacial é fundamental na elaboração das ações, especialmente, quando constam

no plano de intervenção, ações de deslocamento de moradores e reordenamento

dos espaços que, ao longo do tempo, configuraram-se como suportes de

identidades diferenciadas.

As práticas culturais de apropriação do espaço que distinguem moradores

também têm como suporte o tempo de moradia na favela. Os grupos de moradores

mais antigos estabelecem relações com os moradores mais recentes, baseadas no

sentido de superioridade. De acordo com Nobert Elias e John Scotson,

um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos – o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidos-outsiders (2000, p.23).

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O grupo de “estabelecidos” atribui a si mesmo valores humanos superiores e

estigmatizam os moradores dos espaços de formação mais recentes, os “outsiders”.

O sentido de pertencimento a um dos grupos de moradores, os mais antigos ou os

que residem há menos tempo, denota o prestígio e a diferenciação que dão suporte

para representações acerca das fronteiras simbólicas existentes no interior de uma

única favela.

Enquanto o grupo de “estabelecidos” se configura a partir de antigos laços de

solidariedade e vizinhança, aquele considerado “outsider” é identificado pelo não

cumprimento de regras de lealdade e proteção para com o grupo de “estabelecidos”

e muitas vezes em relação ao seu próprio grupo. Elias & Scotson discutem que,

A estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito – que seus membros sentem perante os que compõem o grupo outsider (2000, p.23).

No Passo da Pátria, a delimitação espacial elaborada pelos moradores, a qual

distingue os quatro pedaços, também está associada ao tempo de moradia na área.

Na Pedra do Rosário surgiu o primeiro grupo de moradores e os do Passo vieram

logo em seguida. O tempo em que residem os moradores destes dois pedaços é

praticamente igual, uma característica grupal distintiva em relação aos demais,

colocando-os, neste tipo de análise, na posição de “estabelecidos”.

Não existem grandes diferenças de origem, formas de ocupação, renda e

escolaridade entre os moradores dos quatro pedaços, mas no Areado e Pantanal

predominam moradores que se instalaram recentemente, o que podemos considerar

como “outsiders”. Os “estabelecidos” se conhecem há mais de duas gerações,

compartilham memórias e uma vida em comum, que consolidou laços de vizinhança

e solidariedade.

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Não obstante esses laços de vizinhança do grupo de “estabelecidos” terem

sido ampliados ao alcance de alguns moradores “outsiders”, a estrutura da

hierarquia moradores antigos/moradores recentes permanece, na classificação do

espaço no interior do Passo da Pátria, configurando quatro pedaços.

Portanto, observando melhor a configuração espacial do Passo da Pátria, a

partir da ótica dos moradores, percebe-se que existe um confronto entre as

classificações espaciais localmente produzidas e a definição adotada pelos agentes

do poder público, a qual enquadra os quatro pedaços num todo chamado de

“Complexo Favelar do Passo da Pátria”.

Para o poder público local, o Complexo Favelar do Passo da Pátria é formado

por uma área em que se identificam três favelas: Passo da Pátria, Areado e

Pantanal. Dá-se esta classificação, em virtude da existência de três Associações

Comunitárias: Associação dos Moradores do Passo da Pátria, Associação dos

Moradores do Areado e Associação dos Moradores do Pantanal.

A partir da observação direta que realizamos durante o trabalho de campo,

percebemos que há uma outra nomenclatura, atribuída pelos moradores, para

determinar parte do espaço no Passo da Pátria, a qual corresponde à Pedra do

Rosário. Menos dependente da existência de Associações Comunitárias, essa

denominação atribuída pelos moradores sinaliza para outros elementos da dinâmica

espacial da área, os quais conferem uma identidade diferenciada ao local. Sendo

assim, consideramos que a área do Passo da Pátria engloba quatro pedaços: Pedra

do Rosário, Passo, Areado e Pantanal.

No Passo da Pátria, a intervenção do poder público local considera as

diferentes formas de uso e apropriação dos espaços como mobilizadoras de

conflitos sociais e entraves à urbanização. Esta visão dos agentes do poder público

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não identifica as diferentes situações da dinâmica cultural estabelecida nos espaços

do Passo da Pátria, as quais constituem elementos importantes da vida social e

fundamentais para impulsionar processos de desenvolvimento socialmente justos.

1.3 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE REURBANIZAÇÃO DAS FAVELAS

Uma política pública é, sem dúvida, o resultado do processo em que um

“estado de coisas” constituiu-se em um problema político e passa a compor a

agenda pública governamental. De acordo com Graças Rua,

uma decisão em política pública representa apenas um amontoado de intenções sobre a solução de um problema, expressas na forma de determinações legais: decretos, resoluções, etc... Nada disso garante que a decisão se transforme em ação e que a demanda que deu origem ao processo seja efetivamente atendida (Mimeo, p.12).

Quando uma decisão política referente às demandas pela solução de algum

problema passa a constar, legalmente, no ordenamento das gestões públicas,

significa que se instituiu uma política pública. Apenas a avaliação desta poderá

apreender quais os resultados obtidos nos distintos momentos de sua constituição e

implementação e quais os elementos para a sua correção.

Avaliar significa afirmar valores, independente dos modelos e metodologias

adotados para a avaliação de políticas públicas. O processo de avaliar um programa

ou projeto tem, antes de tudo, um atributo de valor, como a concepção de sociedade

desejada, de justiça, etc.

No Brasil, os estudos relacionados com a temática das políticas públicas de

urbanização das favelas podem ser generalizados em dois grandes quadros: um

primeiro, situado no período anterior à década de 70 do século XX, constituído pelo

conjunto de planos e projetos, cujo ideário urbanístico de cidade estabelecia para as

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favelas a sua remoção ou destruição. Um segundo momento é composto pelas

proposições e projetos desenvolvidos no período pós década de 70, onde se

encontram os programas públicos, cujo modelo objetiva a “integração” da favela à

cidade.

No primeiro quadro, nos planos e projetos que expressaram a visão

tradicional de urbanização, a intervenção do poder público caracterizou-se pela ação

autoritária do Estado. No Brasil, temos como exemplo, os grandes planos

urbanísticos para as capitais, nos quais as favelas eram consideradas “aberrações”

urbanas, um problema moral, restando para estas áreas a sua destruição.

Neste período, destacam-se as ações engendradas pelos moradores, no

sentido da resistência à remoção. Diante da ameaça de perderem suas casas, os

moradores das favelas se organizaram, como forma de se oporem aos planos

urbanísticos que impunham o deslocamento forçado. Enquanto ator político, os

moradores das favelas tinham seu poder de barganha limitado pelo fato de que,

como assinala Burgos, “ a preservação, pela Constituição de 1946, da restrição ao

voto dos analfabetos ainda mantinha fora da competição política a grande maioria de

seus moradores, inibindo sua participação até mesmo em engrenagens de tipo

clientelística” (2004, p. 29).

Na verdade, a participação e mobilização política dos moradores das favelas

destacaram-se pelo diálogo com a Igreja, o qual favorecia a resolução de problemas

como a ausência de serviços básicos como água, esgoto, luz e redes viárias, além

de estimular a criação de centros sociais e a melhoria das habitações. Sob esta

ótica, atuou a Fundação Leão XIII, pioneira na parceria com o poder público que

desenvolveu ações junto às favelas cariocas (BURGOS, 2004).

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O segundo quadro comporta o processo de democratização e de organização

da sociedade brasileira, vivenciado pós-década de 70. A emergência de novos

atores sociais e políticos instituiu novas possibilidades de consolidação de um

ambiente democrático de participação e debate público. Neste ambiente

democrático, aumentaram as exigências pelo cumprimento de direitos sociais e

participação, redimensionando, assim, a intervenção política no âmbito das favelas.

A construção dos programas que atenderiam às populações nas favelas

passa a ser caracterizada por um distanciamento da ação remocionista e

investimento na urbanização das favelas. A urbanização incide diretamente na

consolidação das áreas de favelas e torna-se essencial para o discurso da

integração da favela à cidade (BURGOS, 2004).

Por meio de diferentes estratégias, através das políticas públicas de

urbanização, ações são implementadas, as quais devem expressar os interesses

específicos da população que vive na favela, além de consolidá-la como uma área

“regularizada” da cidade. As propostas dos planejadores nem sempre encontram

respaldo nas ordens próprias criadas pelos moradores; por isto é essencial o

conhecimento sobre a população-alvo do programa e sobre os possíveis efeitos das

intervenções na dinâmica cultural do conjunto de moradores.

A avaliação dos diversos aspectos que envolvem as políticas públicas de

urbanização é um recurso metodológico que permite perceber como os efeitos das

intervenções urbanísticas são sentidos por um número considerável de pessoas que

vivem nas favelas. Nem sempre a dinâmica cultural dos espaços urbanos se

adequou às regras e normas propostas nas ações oficiais de ordenação espacial.

Como aponta Lisabete Coradini, existem,

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de um lado, inúmeras tentativas por parte da administração pública, no sentido de ordenar, vigiar e disciplinar o espaço urbano. Do outro, uma multiplicidade de vozes, cada uma expressando uma visão de mundo, tentando subverter, desordenar, libertar-se do olhar disciplinador e ressignificar a vida social (1995, p.29).

Diferentes da leitura oficial da cidade existem outras formas de classificá-la,

as quais são estabelecidas por histórias de vida e redes de relações sociais que, em

vez de homogeneizá-la, constroem-na a partir de uma multiplicidade de referências

sócio-espaciais que nem sempre legitimam o discurso da intervenção oficial nas

cidades.

Quando se trata da intervenção do Estado numa realidade social, visando a

implementação de políticas públicas é fundamental a participação da sociedade no

controle social dos atos e decisões do poder público e na formulação das políticas

públicas. No caso das políticas públicas urbanas, a incorporação de moradores, por

exemplo, no processo de definição de prioridades e implementação de projetos e

programas, permite introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade,

necessários para o alcance de resultados efetivos.

A elaboração das ações a serem implementadas nas favelas, no entanto,

podem basear-se, não no ponto de vista dos moradores, mas em resultados de

pesquisas que muitas vezes atingem apenas um nível superficial da formação das

redes de relações e valores que compõem o espaço da favela. Neste sentido, a

participação dos moradores é secundária; trata-se, muito mais, de serem

convocados apenas para conhecer as ações que modificarão o espaço em que

vivem e muito menos para (re)construí-lo, expressando suas formas de

sociabilidade, estilos de vida, conflitos, etc, e fazendo valer seus interesses quanto

ao desenvolvimento de sua localidade.

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No Brasil, o reconhecimento dos usos e formas de apropriação do espaço no

interior das favelas ainda não se constituiu num elemento crucial, no que se refere

às ações de urbanização dessas áreas. A crescente necessidade de identificar as

modificações na formação espacial, o que permanece e o que se transforma, no

transcorrer de um projeto ou programa de urbanização, pode ser um fator

impulsionador para novas ações urbanísticas.

As ações do poder público, ao que parece, possuem uma tradição em que

prevalece a visão instrumental sobre a multiplicidade de espaços nas favelas e estão

impregnadas pelo desprezo dos aspectos simbólicos das práticas sociais que

caracterizam as formas de apropriação dos espaços.

É bem verdade que, mesmo prevalecendo a visão autoritária e

homogeneizadora do poder público nos processos de urbanização de favelas, a

intervenção urbanística, ao propiciar melhorias urbanas e equipamentos coletivos,

faz com que a população avalie positivamente esta intervenção. Ao mesmo tempo,

valorizam negativamente as idéias que buscam, por exemplo, a integração de

espaços que ao longo do tempo se construíram, diferenciando-se entre si. Para os

mesmos, estas ações desconstroem tempos, experiências e narrativas que se

expressam nas suas relações com os espaços em que vivem.

Neste sentido, analisar uma política de urbanização de favelas significa obter

informações que indiquem quais os objetivos da política pública em questão; como

vem sendo, ou foi implementada; quem é, e como vem sendo beneficiada a

população-alvo dos programas e projetos públicos que refletem o padrão de

urbanização em curso. De maneira geral, para o êxito de uma política pública, vários

fatores transversais e/ou externos à política se fazem presentes. Como aponta

Teresa Lobo,

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Há que se refletir sobre questões tais como o ambiente político no qual os programas se desenvolvem, as forças políticas que se contrapõem ou se aliançam para apoiar ou sabotar um programa, o ideário econômico-financeiro que preside a determinação sobre a alocação do gasto público, as concepções sobre a maior ou menor necessidade de democratização do Estado, a visão sobre os princípios da eficiência, efetividade e eficácia das ações governamentais na área social (1999, p.77).

Existe ainda muita dificuldade em estabelecer procedimentos metodológicos

que apreendam os resultados das políticas públicas e que possibilitem dizer por que

determinadas políticas foram, ou não, exitosas e por que chegaram, ou não, a certos

resultados. Em avaliação de políticas públicas, principalmente, a distinção feita entre

as concepções de eficácia6, eficiência7 e efetividade8 representam um recurso

analítico para a escolha da abordagem, dos métodos e técnicas de avaliação.

Nossa abordagem aproxima-se de uma avaliação da efetividade do projeto de

reurbanização do Passo da pátria. Procuramos apreender como os moradores

vivenciam as mudanças na dinâmica sócio-espacial, as quais buscam integrar os

quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal; ou seja, até que

ponto a urbanização é considerada satisfatória pelo conjunto de moradores, no

sentido de redimensionar a relação pautada pela estigmatização de um pedaço

sobre o outro.

Na literatura existente sobre o tema da avaliação é comum a percepção da

dificuldade em apreender a efetividade de programas ou políticas públicas. A

6 A noção de eficácia refere-se ao “grau em que se alcançam os objetivos e metas do projeto na população beneficiária, em um determinado período de tempo, independentemente dos custos implicados” (COHEN & FRANCO, 1993, p.102 apud COTTA, 1998, p.14).

7 Quanto à eficiência, esta corresponde à “avaliação da relação entre o esforço empregado na implementação de uma dada política e os resultados alcançados” (FIGUEREDO & FIGUEREDO, 1986 apud ARRETCHE, 1999, p.34). A avaliação da eficiência está diretamente relacionada aos custos financeiros e ao trabalho empregado para realizar determinado programa ou projeto.

8 Em relação à avaliação da efetividade procura-se apreender os efeitos de um programa ou projeto público no ambiente onde interveio, no que se refere às condições econômicas, socioculturais, institucionais e ambientais. Quanto maior a capacidade de continuidade dos efeitos benéficos alcançados, maior sua efetividade.

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dificuldade está em identificar se houve, ou não, alterações nas condições sociais

prévias da população-alvo e, no caso afirmativo, atribuir uma relação de casualidade

entre estas alterações e o programa ou projeto em questão.

É preciso demonstrar, quando se trata da avaliação de efetividade, que os

resultados ou efeitos encontrados não existiriam, caso o programa ou projeto sob

avaliação não tivesse sido implementado. Deve-se comparar a realidade anterior e

posterior à intervenção de uma política pública, buscando identificar as mudanças

ocorridas no meio em que esta se insere e a relação dessas mudanças com o fato

de a política pública ter sido implementada.

Para avaliar o projeto de urbanização implementado pelo poder público no

Passo da Pátria, desde 2002, procurando perceber sua efetividade, como este

expressa a concepção de urbanização que busca a integração da favela à cidade,

consolida um novo sistema classificatório para a favela e redimensiona internamente

sua dinâmica sócio-espacial faz-se necessário situar a história do uso do espaço no

Passo da Pátria no cenário da urbanização do município de Natal/RN.

No próximo capítulo, descreveremos o processo de formação dos quatro

pedaços que atualmente constituem o Passo da Pátria e como os moradores

estabeleceram, ao longo do tempo, relações sociais que configuram cada pedaço

distinto dos demais. Sintetizamos o quadro da segregação sócio-espacial existente

no Passo da Pátria e sua relação com os resultados efetivos do projeto de

urbanização.

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Nas últimas três décadas, a intensificação do processo de urbanização

vivenciado pelo município de Natal/RN acarretou mudanças significativas no padrão

de ocupação urbana da cidade. Uma das características da urbanização da cidade

de Natal/RN foi o acelerado crescimento, que na década de 80 foi comparado com

os das grandes cidades do país (SANTOS, 2002).

O processo de urbanização, que conferiu à Região Metropolitana de Natal o

lugar de principal pólo industrial e de serviços do Estado do Rio Grande do Norte,

teve como principais atividades produtivas a indústria têxtil, a indústria do turismo e,

mais recentemente, a carcinicultura. Essas atividades produtivas dinamizaram a

economia da cidade do Natal e redefiniram suas paisagens ao disponibilizar infra-

estrutura para vários setores da cidade, como por exemplo, a abertura de vias e

estradas, energia elétrica, sistema de comunicação, entre outros.

Esta fase de dinamização da economia natalense constituiu-se num atrativo

para um grande contingente populacional, que resultou na expansão urbana da

cidade com consequências negativas para o meio ambiente. Além da ausência de

saneamento básico em diversas áreas de Natal, a devastação ambiental e a

poluição de rios e mananciais aqüíferos são emblemáticos do processo de

urbanização vivenciado na cidade.

O fato é que a prosperidade que se deu no âmbito da economia não

correspondeu à realidade de alguns dos indicadores de qualidade de vida da

população, ou seja, não obstante ter ocorrido um forte crescimento econômico, o

modelo de desenvolvimento implementado no município de Natal não proporcionou

eqüidade social e responsabilidade ecológica. A questão sócio-ambiental no espaço

urbano é uma das expressões da reprodução desta desigualdade de acesso a bens

e serviços.

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Uma das expressões da questão sócio-ambiental no espaço urbano consiste

no fato de que as camadas mais pobres da população não têm acesso a uma

habitação de qualidade. Como conseqüência disto, várias áreas da cidade

apresentam altos índices de degradação ambiental, ocupações desordenadas que

estão situadas em extensões geográficas proporcionalmente pequenas para a

quantidade de moradores, na sua maioria correspondendo a assentamentos não

legalizados, além de apresentarem condições de insalubridade e precariedade de

serviços, como é o caso das favelas. Em Natal, um dos espaços que apresentam

uma significativa precariedade quanto às formas de acesso a bens e serviços é o

Passo da Pátria.

Desde o final do século XVIII, encontram-se registros sobre habitações e

atividades comerciais e sócio-culturais desempenhadas na área do Passo da Pátria.

O Passo da Pátria está localizado próximo aos primeiros bairros da fundação de

Natal/RN, a Cidade Alta e a Ribeira, sendo impactado por um dos elementos do

processo de urbanização da cidade. Trata-se da redefinição dos seus espaços e

paisagens, os quais passaram a se configurar como áreas de favela.

Após 2002, com a Lei Complementar Municipal nº 44/02, o Passo da Pátria

passou a englobar oficialmente, dentro dos seus limites, quatro pedaços nomeados

pelos seus moradores como: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal, mas nem

sempre o Passo da Pátria apresentou esta composição. A lei foi elaborada no

contexto de implementação do Projeto de Urbanização do Passo da Pátria, o qual

segue o modelo do Programa Habitar Brasil, promovido pela Prefeitura Municipal, o

Poder Público Federal e o BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento.

O projeto de urbanização propõe ações de remanejamento e remoção de

moradores que podem ser “transferidos” de um dos quatro pedaços para outro. O

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estabelecimento de uma nova configuração sócio-espacial proposta pela

urbanização do Passo da Pátria pauta-se pela homogeneização dos quatro pedaços,

os quais passariam a ser definidos, espacialmente, como apenas um.

Neste capítulo, para analisarmos a nova configuração sócio-espacial do

Passo da Pátria, retratamos, primeiramente, o processo de sua ocupação e

consolidação como área de moradia, inserido no contexto mais amplo do

desenvolvimento urbano da cidade de Natal/RN. Analisamos os primeiros registros

históricos sobre o desenvolvimento de atividades comerciais e culturais que irão se

constituir num forte atrativo à fixação de moradia no Passo da Pátria.

Em seguida, descrevemos a consolidação do Passo da Pátria como área de

moradia, destacando seu primeiro ciclo de crescimento, no qual se constituem os

dois primeiros pedaços: Pedra do Rosário e Passo. Os outros dois, que se

interligaram ao Passo da Pátria, o Areado e Pantanal, também são caracterizados. A

partir do depoimento dos entrevistados buscamos apreender a percepção dos

moradores sobre as apropriações diferenciadas do espaço e a nova configuração

sócio-espacial proporcionada pelo Projeto de Urbanização.

Na caracterização destes pedaços, analisamos dados estatísticos sobre a

comunidade, que dão pistas importantes sobre número de moradores,

características das moradias, tempo de residência, além dos aspectos do lazer, da

sociabilidade e da cultura. Através das falas dos moradores, trataremos sobre os

principais aspectos da vida cotidiana, os quais viabilizam uma hierarquia entre os

quatro pedaços.

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2.1 – A emergência do Passo da Pátria no contexto histórico e cultural de Natal/RN: O Porto e a Feira

No registro mais antigo sobre a origem do Passo da Pátria, o qual data do ano

de 1780, constata-se a existência de um porto construído à margem direita do Rio

Potengi, então conhecido como o Porto do Oitizeiro (NESI, 1997, p.35). De acordo

com Jeanne Nesi,

O Porto do Oitizeiro [...] era um local de atracação de barcos, nas marés cheias. À sua direita, ficava um grande galpão de alvenaria e à esquerda, algumas bodegas. Atrás, a linha da estrada de ferro. Formava, assim um quadrado, ocupado no centro por uma grande feira (1997, p.35).

Neste período, o “quadrado” que correspondia ao Porto do Oitizeiro chama à

atenção pela sua movimentação comercial, através da qual se abastecia a cidade

com mercadorias e passageiros eram transportados, configurando-se como um

importante ponto de comércio e desembarque.

A partir do final do século XIX, o porto passou a contar com uma feira

semanal. O Porto também recebia outras denominações como o Porto da Cidade e

o Porto do Passo da Pátria. O Porto do Passo da Pátria recebia mercadorias

principalmente de Macaíba e São Gonçalo, como relata Wagner Rodrigues:

Macaíba e São Gonçalo despontavam como importantes praças comerciais, enviando seus gêneros pelo rio Jundiaí e Potengi até o porto do Passo da Pátria, conhecido então como porto da Cidade. A intensa movimentação neste local determinaria a fixação de casas nos arredores da ladeira e do porto, além de uma feira muito concorrida, responsável pelo abastecimento interno da Cidade Alta (2003, p.57).

A importância do Porto do Passo da Pátria dava-se, principalmente, por

proporcionar, através do rio, o abastecimento interno e a integração da Cidade. Em

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geral, os primeiros moradores do Passo da Pátria foram comerciantes do porto e da

feira.

No início do século XX, o principal acesso ao porto e à feira do Passo da

Pátria dava-se pela ladeira da Cadeia, atual Rua João da Mata. Esta ladeira era um

trajeto estratégico na integração da cidade com o rio, sendo objeto de intervenção

do poder público, o qual visava a diminuição de obstáculos que interditassem os

caminhos ao Porto do Passo da Pátria.

Segundo Câmara Cascudo, a primeira ação do poder público foi realizada por

Antônio Bernardo de Passos que ajudou financeiramente, em 1856, Manoel bofe,

morador das cercanias, para que o mesmo alargasse, desbastasse e diminuísse a

declividade da ladeira, já que a mesma “(...) era estreita, fechada de matos,

apresentando um forte declive. Era calçada de pedras soltas” (CASCUDO, 1980,

p.251). Posteriormente, em 1865, “o governo da província mandou calçar a ladeira

íngreme com pedra preta irregular” (idem, 1980).

Foto 01 - Panorâmica da cidade. Foto de Bruno Bougard (1908). “Inicialmente chamada de Ladeira da Cadeia, pois esta terminava atrás da Casa de Câmara e Cadeia de Natal, estreitando-se em um beco ao lado do prédio. Em 1911, a Cadeia é demolida para o alargamento da rua, perdendo-se o referencial toponímico” (RODRIGUES, 2003, p.62). Prédio da Cadeia – primeiro prédio no canto inferior direito da fotografia. Fonte - RODRIGUES (2003).

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Ao mesmo tempo, passou-se a investir em outra ladeira, que passava ao

lado do Hospital da Caridade9. Em 1866, esta outra ladeira já possuía a

denominação de Passo da Pátria, uma sugestão do presidente Olinto Meira, que fez

associação à “(...) vitória do General Osório, em 16 de abril de 1866, na Batalha do

Passo da Pátria, travada entre brasileiros e paraguaios. Passo da Pátria denominava

a cidade paraguaia, onde ocorreu a batalha” (NESI, 1997, p.36).

Foto 02 - “A segunda ladeira que seria calçada em 1866 era acessível pela atual praça João Tibúrcio, prosseguindo pelo hospital da caridade, cujo telhado aparece na fotografia”(RODRIGUES, 2003, p.66). Fonte – RODRIGUES (2003).

É provável que o local do entreposto comercial possa ter vindo a se chamar

Passo da Pátria devido a esta rua, que correspondia a um dos seus principais

acessos. A Rua Passo da Pátria, a qual parte deste largo visto na fotografia,

transportava seus usuários até a margem do Rio Potengi, no porto do Passo da

9 Construído no final do século 19, o prédio que hoje sedia a Casa do Estudante foi cenário de importantes acontecimentos da História do Rio Grande do Norte. Inicialmente, funcionou como Hospital da Caridade, sendo a primeira unidade de saúde do Estado, no combate ao surto de cólera. Anos depois, passou a abrigar o Quartel da Polícia Militar, que em 1935 ofereceu resistência à chamada Intentona Comunista, sendo palco de uma intensa batalha entre as forças do governo da época e os rebeldes.

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Pátria. Até hoje, a Rua Passo da Pátria leva-nos às escadarias que se encontram

em frente à Escola Estadual do Passo da Pátria. Já a Rua João da Mata é utilizada,

principalmente, para acessar o Passo da Pátria a partir da Pedra do Rosário10.

A feira livre semanal surgiu em 1870, favorecendo-se do movimento comercial

do porto do Passo da Pátria que era abastecido por mercadorias provenientes de

outras povoações como Macaíba, São Gonçalo, Redinha, e freqüentada por todos

os moradores da cidade. Seu funcionamento dava-se, principalmente, durante a

noite, sob a iluminação de lamparinas, já que Natal ainda não contava com

iluminação pública (NESI, 1997, p.36). Para o poeta Jaime dos G. Wanderley11,

o populacho fazia da feira do “Passo da Pátria” o prazer favorito das noites de sábado, quando o pátio daquele logradouro regurgitava de gente de todas as camadas sociais, que se confundia na alegria nervosa daquelas horas, que eram vividas sem preocupações, como um passatempo. Já às 6 horas da tarde, começavam a descer a íngreme ladeira, pavimentada com empedramento irregular, moçoilas, matronas, cavalheiros, soldados, cabeceiros, comerciantes, funcionários públicos, mundanas, pescadores, uma verdadeira miscelânea humana (WANDERLEY apud SOUZA, 2001, p.89).

O uso de termos como “populacho”, “mundana”, ou ainda este tipo de

descrição que encontramos em Lauro Pinto - “Ali a condição humana atingiu o máximo

em infelicidade e degradação. Tanto assim que o maior desaforo e a ofensa mais ferina era

o de chamar a qualquer meretriz, mesmo sendo de baixa classe, de puta do Passo da

Pátria.” (1971, p.40) - podem prestar-se à interpretação de que, desde o início da

existência do Passo da Pátria, o tratamento dado ao lugar configura-o claramente

como o território da promiscuidade, dando um sentido pejorativo aos usos do espaço

social.

10 Monumento em homenagem a Nossa Senhora da Apresentação, padroeira da cidade. Neste capítulo, discutiremos, posteriormente, seus aspectos e importância para o Passo da Pátria. 11O poeta Jaime dos G. Wanderley freqüentou muitas vezes a feira do Passo da Pátria, no início do século XX (SOUZA, 2001, p.89).

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Ainda assim, nas poesias que retratam as características do Porto do Passo

da Pátria e da feira, a heterogeneidade do espaço social fundada na inter-relação

dos mais diversos segmentos sociais é exaltada como um dos seus aspectos

positivos. Sem dúvida, o Passo da Pátria era fundamental para o comércio, um das

principais atividades produtivas de subsistência da época, além de ser um lugar de

encontro em que se davam as formas de lazer características do início do século XX

em Natal/RN. A descrição do poeta Wanderley destaca a diversidade de produtos

encontrados no porto e na feira, bem como da paisagem do lazer no Passo da Pátria

com seus bares e jogos:

Espalhados pelos quadrantes do pátio, estavam botequins, barracas de caldo de cana, bancas de jogos de “jaburu”, jogos de dados, bacará, situadas num flanco, pois o outro era destinado aos tabuleiros com gostosas tapiocas de coco, alfenins, com figuras de animais e flores, sequilhos de goma, broas, doces secos, pés-de-moleque, biscoitos de araruta, cuscus, além de grandes mesas, servindo café com bolachas secas e grudes de Extremoz e de outras tantas, destinadas à venda de sarapatel apimentado, com cachaça, que eram apregoados em altas vozes pelos comerciantes, para atraírem a freguesia [...] (WANDERLEY apud SOUZA, 2001, p.89).

Para abrigar as pessoas que vinham pelo Potengi e as diversas mercadorias

comercializadas na feira, fora construído, em 1877, um telheiro ao lado de um

galpão, como podemos ver na Foto 03 (SOUZA, 2001), que também mostra o

movimento de pessoas, o volume das mercadorias e a imagem do trem.

Foto - 03 Passo da Pátria no início do séc. XX. Não existe referência ao autor da fotografia, mas há uma inscrição na fotografia identificando-a como um cartão postal de 1904.

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Nesse momento histórico, o Passo da Pátria ocupava um lugar importante na

vida comercial da cidade do Natal. No final do século XIX, o Passo da Pátria

consolidou-se como um dos principais pontos de abastecimento de Natal, como

descreve Dom Nivaldo Monte:

Aninhado entre os luxuriantes manguezais, que se esparramam ao longo da ribanceira, em cujo topo foi edificada a primitiva cidade, o Paço da Pátria assumiu, desde o início, os foros de um verdadeiro interposto comercial, ponto de encontro, cais de atracação das jangadas vindas de alto mar, carregadas de peixes, botes que vinham do outro lado do rio, apinhados de gente e canoas, descendo água abaixo, vindas de Macaíba, Guarapes e Carnaubinha, abarrotadas de mercadoria, tudo em busca da cidade (2000, p.19).

A feira teve bom funcionamento até a década de 20 do século XX. A construção

do mercado da Cidade Alta em 1937 colocará, definitivamente, a feira livre em

decadência até deixar de funcionar. Além disso, as mudanças nos “fluxos do Rio

Salgado” colocaram em cheque o entreposto do Passo da Pátria, segundo

Rodrigues,

[...] a Estrada de Ferro Central drenará a produção do norte e centro da província, realizando-se, enfim, o desejo de ter uma capital integrada às zonas produtivas. Em 1916, a ponte de ferro em Igapó modificará o trajeto desta linha férrea e fechará definitivamente o comércio do rio Jundiaí, encerrando um ciclo de investimentos nesta parte do rio. O Aterro do salgado12 será definitivamente abandonado [...], com o rio obstruído, a feira do Passo da Pátria desaparecerá por volta de 1920 (2003, p.133).

Na verdade, a feira livre ainda funcionou até meados da década de 40, como

pudemos constatar nos depoimentos dos entrevistados. A movimentação de

pessoas foi resumida aos moradores da área; os demais segmentos sociais que

freqüentavam a feira deslocaram suas atividades relacionadas ao comércio e ao

12 O Aterro do Salgado era a principal via de acesso à capital pelo Rio Potengi. Através do Aterro do salgado “as mercadorias desciam pelo rio Jundiaí e paravam no porto do Passo da Pátria” (RODRIGUES, 2003, p.65).

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lazer para outros espaços. São exemplos disto o mercado da Cidade Alta e a feira

do Alecrim (RODRIGUES, 2003, p.133).

Paralelo ao movimento comercial, surgiram, no início do século XX, as

primeiras habitações do Passo da Pátria, nos arredores da feira, entre a linha férrea

e o Rio Potengi. Existiam casarios, mas estes localizavam-se do outro lado da linha

férrea no território da Cidade Alta, como podemos ver na Foto 03.

Em geral, as primeiras casas do Passo da Pátria pertenciam a comerciantes

da própria feira (SOUSA & SILVA, 2005), pessoas de baixo poder aquisitivo.

Percebe-se que um dos “atrativos” à fixação de moradia no Passo da Pátria foi sua

localização estratégica, próxima aos bairros da Cidade Alta e do Alecrim e do Rio

Potengi. Com a decadência da feira e do porto, esta localização proporcionará aos

moradores a facilidade de acesso a postos de trabalho ou biscates na Cidade Alta e

no Alecrim, importantes bairros comerciais de Natal/RN. O Rio Potengi também

garantirá a subsistência dos moradores do Passo da Pátria, através da pesca

artesanal.

Foto 04 – Primeiras habitações do Passo da Pátria.

Fonte – LIMA (2003).

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Em registros que se referem ao início do século XX, sejam eles sobre a feira ou

sobre as formas de moradia no Passo da Pátria, é evidente a construção de um

imaginário preconceituoso, que distingue os seus moradores dos demais da cidade.

É possível que este imaginário preconceituoso e a imagem do Passo da Pátria como

um “problema” tenha-se agravado quando a feira deixou de funcionar, já que esta,

de certa forma, amenizava o tratamento negativo dado ao lugar, ao proporcionar a

integração do lugar com a cidade.

A maioria das primeiras habitações foi construída aterrando as margens do Rio

Potengi e estabeleceram-se sob a ausência de saneamento, fatores que até hoje

compõem o quadro dos problemas sócio-ambientais da área. Numa das principais

propostas de saneamento para Natal, elaborada por Januário Cicco, nas primeiras

décadas do século XX, encontramos a seguinte caracterização para o Passo da

Pátria:

À montante do Rio Potengi, e aquém do matadouro, há outro bairro de operários, de pequeno comércio, chamado Passo da Pátria, cujas condições de vida se opõem a qualquer prosperidade. De habitações úmidas, baixas, sob cujo teto vivem promiscuamente e em excesso seus moradores, o Passo da Pátria é também uma zona de plantação de capim e criação de porcos. [...] a Cidade Alta tem para seu descrédito o Passo da Pátria e imediações, onde vivem os indivíduos como se fossem em pocilgas, cujas habitações não têm fossas, impondo-se a destruição do bairro como única medida profilática (CICCO apud LIMA: 2003, p.29).

Na descrição realizada por Januário Cicco é possível perceber que o Passo da

Pátria, como lugar de moradia, desde sua origem, foi constituído por habitações

irregulares, resultado da pobreza de seus habitantes e estava associado à idéia de

uma “patologia social”. A elaboração da proposta de saneamento para Natal,

desenvolvida por Cicco determinava para o Passo da Pátria a sua destruição, sob o

critério da saúde e qualidade de vida.

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Os moradores do Passo da Pátria eram associados a imagens de carência, da

falta e do vazio de valores morais e, na proposta de Cicco, não há referência a

alguma preocupação com estes, se realmente fosse colocada em prática a

demolição das suas habitações. A destruição do Passo da Pátria nunca foi colocada

em curso, ao contrário, o que ocorreu foi um enraizamento com um intenso

crescimento do número de seus moradores, ao longo da sua formação histórica.

O antigo galpão do Porto do Passo da Pátria é um dos primeiros marcos que

dividem o espaço. De um lado, na direção do ancoradouro conhecido como Pedra

do Rosário, se estabelece o primeiro grupo de moradores, aproximadamente em

1910. Do outro lado do galpão, cerca de quarenta anos depois, chega o segundo

grupo de moradores (SILVA et al., 1992, p.111). Os dois grupos classificam o lugar

de moradia, respectivamente, como Pedra do Rosário e Passo (abreviatura para

Passo da Pátria).

Até a década de 70, havia poucas habitações no Passo da Pátria e um imenso

terreno vazio, que se estendia da Rua Nossa Senhora dos Navegantes até a Base

Naval Almirante Ary Parreira, no bairro do Alecrim. Neste terreno, fixou moradia uma

população com um perfil sócio-econômico semelhante ao dos primeiros moradores

da Pedra do Rosário e do Passo, oriunda de outras localidades periféricas da

cidade, constituindo, então, o Areado e o Pantanal. A partir da década de 80, no

Passo da Pátria (Pedra do Rosário e Passo), Areado e Pantanal identifica-se um

crescimento acelerado da população, resultando no encontro de moradias destas

comunidades.

Em dezembro de 2002, a Lei Municipal Complementar nº 44 instituiu que a

denominação Passo da Pátria compreende uma AEIS – Área Especial de Interesse

Social, que se caracteriza como uma extensa área de moradia, cujos limites dão-se,

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ao Norte, com o Rio Potengi (margem direita); ao Sul, com a linha férrea; ao Leste,

com a Pedra do Rosário e, a Oeste, com a Base Naval Almirante Ary Parreira. Sua

área total é de 205.506 m2.

A partir da regulamentação desta lei, a implementação de políticas públicas de

urbanização no Passo da Pátria, como é o caso do Projeto Integrado do Passo da

Pátria, tem buscado a planificação da disposição e densidade das quatro

comunidades, a integração entre elas e melhorias na qualidade de vida de seus

habitantes.

Nessa área total, denominada de Complexo Favelar do Passo da Pátria, está

englobada a população da Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. O poder

público não faz a distinção entre Pedra do Rosário e Passo; unificam-se estas duas

classificações, já que, comunitariamente, seus moradores são representados pela

mesma associação, a Associação Comunitária do Passo da Pátria. Como

percebemos na tabela 01, são indicadas apenas três comunidades.

Em nosso estudo, consideramos que o Passo da Pátria subdivide-se em

quatro pedaços, já que, a partir da ótica dos moradores, a Pedra do Rosário

constitui-se numa classificação localmente produzida que se distingue das demais.

Em 2002, foram identificados, no “Complexo Favelar do Passo da Pátria”, 952

moradias. Um levantamento realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do

Norte/UFRN em pareceria com a SEMTAS – Secretaria Municipal de Trabalho e

Assistência Social de Natal/RN13 - conseguiu pesquisar 887 domicílios e elaborar um

diagnóstico social sobre as famílias e moradores.

13 MIRANDA, Orlando Pinto de. Inventário Social do Complexo Favelar do Passo da Pátria e Adjacentes. Prefeitura Municipal de Natal. Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. UFRN/FUNPEC. Natal/RN. Março de 2002.

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TABELA 01

POPULAÇÃO DO PASSO DA PÁTRIA EM 2002

COMUNIDADE HABITAÇÕES FAMÍLIAS MORADORES

Passo da Pátria 289 291 1150

Areado 255 282 1227

Pantanal 343 347 1370

G E R A L 887 920 3747

Fonte: PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA (2002).

2.2 – O Passo da Pátria em pedaços

A categoria pedaço considerada aqui, como explicitamos no capítulo I deste

estudo, segue a análise de Magnani, para o qual o pedaço é composto por dois

elementos, um físico, definidor de fronteiras, que delimita territórios no interior de um

espaço, e outro social, fundado nas redes de relações que dão sentido e significado

aos ordenamentos e classificações que dividem o espaço e distinguem um pedaço

de outro (MAGNANI, 2000).

A relação entre Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal, considerados

como “comunidades carentes” ou “favelas”, que constituem o “Complexo Favelar do

Passo da Pátria”, pela leitura oficial de órgãos e instituições públicas, configurou-se

sob uma hierarquização que permite identificá-los como distintos pedaços.

Para além da leitura oficial, que aglutina as quatro comunidades numa

classificação unificada e das intervenções do poder público, que busca integrá-las,

internamente, seus moradores mantêm formas diferenciadas de classificação para o

espaço, as quais constroem sentidos e significados a partir das experiências

cotidianas de moradia e histórias individuais e comunitárias da ocupação.

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Partir do princípio da ordem ao estudar aglomerados, como é o caso das

favelas, em que há a presença de uma multiplicidade de atores sociais (migrantes,

moradores temporários, minorias, visitantes, grupos diferenciados em suas

preferências culturais ou crenças) é esgotar a própria experiência urbana. É possível

partir de outro plano, cujo foco seja a diversidade de atores sociais e como estes

constroem os arranjos que envolvem os usos e apropriações das suas relações

espaciais.

No Passo da Pátria, cada pedaço comporta regras de reconhecimento e

lealdade, presentes numa rede básica de comunicação e sociabilidade, a qual

aciona símbolos e códigos, fazendo de cada pedaço um ponto distinto das

referências identitárias dos moradores. As diferentes situações da dinâmica cultural

e da sociabilidade estabelecida no Passo da Pátria constituem elementos

importantes da vida social e são fundamentais para impulsionar processos de

desenvolvimento socialmente justos.

Nossa pesquisa analisou o contexto da vizinhança entre estes pedaços;

procuramos identificar os vínculos construídos com o lugar de moradia, no dia-a-dia

do Passo da Pátria. Partimos da hipótese de que, mesmo visualizando modos de

vida semelhantes da Pedra do Rosário ao Pantanal, cada grupo de moradores

atribui, de maneira diferenciada, o sentido da experiência de moradia em cada

pedaço.

Neste sentido, nossas questões de estudo voltaram-se para quem são os

moradores de cada pedaço, o tempo de residência, de onde vieram e como

percebem as semelhanças e diferenças entre eles. Nossa análise dá-se a partir da

descrição de cada pedaço e dos elementos da percepção dos entrevistados sobre a

experiência cotidiana de moradia no dia-a-dia do Passo da Pátria.

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MAPA 02 – ÁREA OFICIAL DO PASSO DA PÁTRIA COM DIVISÃO DE PEDAÇOS14

PEDRA DO ROSÁRIO

PASSO

AREADO

PANTANAL

14 Alterações da autora. Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DO NATAL. Lei complementar nº44, 2002.

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2.3 Pedra do Rosário: os moradores mais antigos

Os registros sobre os primeiros moradores apontam que a povoação foi

iniciada por volta de 1910 e as habitações foram fixadas numa área entre a Pedra do

Rosário e o antigo galpão que abrigava mercadorias e comerciantes do porto e da

feira do Passo da Pátria (SILVA et al., 1992, p.111). Na tabela 02, a Pedra do

Rosário está diluída na classificação Passo da Pátria que também trata do outro

pedaço, o Passo, mas os dados demonstram que nestes dois pedaços encontramos

41 famílias que residem no local há mais de 30 anos. A maioria destes moradores,

como constatamos nos depoimentos dos entrevistados, é descendente das

primeiras famílias que habitaram o local, no início do séc. XX.

TABELA 02 Tempo de residência

TEMPO Passo da Pátria

Areado Pantanal G E R A L

até 1 ano 21 7,2 27 9,6 68 19,6 116 12,61 /----- 6 anos 56 19,2 107 37,9 155 44,7 318 34,6

6 /----- 11 anos 58 19,9 56 19,9 61 17,6 175 19,011 /-----21 anos 59 20,3 87 30,9 39 11,2 185 20,121/-----31 anos 47 16,2 1 0,4 12 3,5 60 6,531 e mais anos 41 14,1 0 zero 09 2,6 50 5,4

não respondeu/não sabe 09 3,1 04 1,3 03 0,9 16 1,8T O T A L 291 100 282 100 347 100 920 100

Fonte – PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO DO PASSO DA PÁTRIA (2002).

Nas proximidades da Pedra do Rosário existe um ancoradouro, onde se

encontra uma imagem de Nossa Senhora da Apresentação, padroeira de Natal/RN.

Segundo uma conhecida lenda sobre a cidade de Natal/RN, no local onde existe o

ancoradouro foi encontrada a imagem de uma santa no dia 21 de novembro de

1753, boiando dentro de um caixão. Todos os anos, no dia 21 de novembro, a Igreja

Católica realiza, na Pedra do Rosário, uma celebração religiosa que atrai pessoas

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de vários bairros da cidade. De acordo com dados do anuário sobre Natal, a origem

do nome Pedra do Rosário parte do,

monumento em homenagem à imagem encontrada no Rio Potengi que, embora apresente evidências do vulto de Nossa Senhora do Rosário, foi identificada como Nossa Senhora da Apresentação, atual padroeira da cidade. O local no qual foi encontrada a imagem foi denominado de Pedra do Rosário (ANUÁRIO DE NATAL, 2005, p.173).

A valoração diferenciada atribuída pelos moradores à Pedra do Rosário, que

a configura como um pedaço diferenciado do Passo, Areado e Pantanal, encontra

um importante suporte no fato de que, no ancoradouro, o Passo da Pátria recebe

moradores de outros bairros e turistas que, diariamente, de lá, contemplam o pôr-do-

sol do Rio Potengi, famoso cartão postal da cidade. Além disso, a missa celebrada

nesse local, durante as comemorações da festa da padroeira de Natal/RN quebra a

“invisibilidade” do Passo da Pátria, ao atrair pessoas vindas de outros lugares da

cidade.

Nas fotografias abaixo alguns momentos da Festa da Padroeira de Natal/RN

em 2006. No dia da missa em homenagem à padroeira, a Pedra do Rosário recebe

um número significativo de pessoas vindas de vários lugares da cidade. Uma

multidão desce a ladeira da Rua João da Mata e encontra o ancoradouro para a

missa. Algumas pessoas rezam, fazem orações diante das casas localizadas ao

lado do ancoradouro. Após a missa, existe a tradição do banhar-se no rio no entorno

do ancoradouro.

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Foto 05 – Trânsito de pessoas durante a Festa da Padroeira de Natal/RN em 2006. Destaque para observadores da paisagem das casas da Pedra do Rosário. Fonte – Pesquisa de campo da autora (2006).

Foto 06 – Momento após a celebração da missa para a Padroeira de Natal/RN em 2006. Destaque para a imagem da santa que deu nome ao local. No canto inferior esquerdo, telhado de uma das casas da Pedra do Rosário. Fonte – Pesquisa de campo da autora (2006).

O ancoradouro, onde se encontra a imagem da santa, proporciona aos seus

visitantes um excelente mirante para o Rio Potengi. Deste ângulo também se podem

visualizar todas as moradias da Pedra do Rosário. O encontro freqüente com

pessoas de outros lugares, através do ancoradouro, talvez possa explicar um pouco

o fato de a Pedra do Rosário ter sido o espaço em que tivemos menos dificuldade

em estabelecer relações com os moradores, para desenvolver a pesquisa de campo.

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É bem verdade, que nos últimos anos, tem-se constatado, no Passo da Pátria, como

um todo, o crescimento do número de pesquisadores e que estes são reconhecidos,

de longe, pelos moradores.

Quando cheguei ao Passo da Pátria para estudar sua configuração sócio-

espacial, iniciei o processo de pesquisa, tomando como ponto de partida as

escadarias do ancoradouro da Pedra do Rosário, um dos extremos do Passo da

Pátria. A sensação mais forte que me perseguiu foi a insegurança de me encontrar

dentro do lugar que, freqüentemente, era notícia nas páginas policiais dos jornais.

Apesar de compreender que as matérias, muitas vezes, reforçavam a

estigmatização dispensadas aos moradores de favelas, a sensação de insegurança

só se afastou quando pude perceber, a partir da Pedra do Rosário, que o Passo da

Pátria também tinha seu lado de tranqüilidade, com intensa vida social entre

vizinhos, como vivenciamos em outros bairros da cidade. Em todo o processo de

pesquisa nunca presenciei nenhuma tensa situação como as noticiadas

freqüentemente pela imprensa.

Nas minhas visitas de observação percebi que os moradores estão cansados

dos olhares etnocêntricos e homogeinizadores que relatam apenas os aspectos

negativos da vida cotidiana no Passo da Pátria, como a violência e o comércio de

drogas. Em função disto, há uma tendência de as relações, entre os moradores e as

pessoas “de fora”, serem permeadas pela desconfiança.

No caso deste estudo, foi fundamental para a construção da confiança o

compromisso de não veicular em meu trabalho apenas os problemas do Passo da

Pátria, mas também a beleza presente em suas paisagens e os moradores

considerados “pessoas de bem”, na comunidade.

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Além disso, para a construção da confiança entre a autora e os entrevistados

foi imprescindível chegar até os moradores a partir das indicações de um jovem

morador do Passo da Pátria, que se tornou o auxiliar desta pesquisa. Na Pedra do

Rosário encontrei os moradores mais antigos, por suas indicações. Ao encontrá-los,

informei-lhes, primeiramente, que desenvolvia, com este jovem, uma pesquisa no

Passo da Pátria. Ao demonstrar a familiaridade com alguém que morava no Passo

da Pátria percebi que minha presença foi legitimada e, assim, pude ter mobilidade

ao percorrer cada pedaço.

Na Pedra do Rosário existem 50 construções, as habitações podem servir

apenas para moradia e também comportar bares e pequenos comércios. Existem

três estaleiros, cujos proprietários são moradores da área. Uma mesma família

ocupa, geralmente, várias habitações. A linha férrea se encontra bastante próxima

da frente das casas e suas cozinhas estão voltadas para o Rio Potengi.

Na vista em frente das casas visualiza-se o paredão da Avenida do Contorno,

utilizado pelos moradores como uma espécie de quintal, onde são colocadas roupas

para secar, ao sol. As escadarias existentes no paredão quebram o isolamento da

Pedra do Rosário e são utilizadas pelos moradores para acessar o bairro da Cidade

Alta.

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Foto 07 - Casas da Pedra do Rosário, Rua Ocidental de Baixo. Fonte - pesquisa de campo da autora (2006).

Foto 08 - Casas da Pedra do Rosário, Passagem do trem. Fonte - PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA (2002).

Seu Gonçalo, morador da Pedra do Rosário desde 1948, quando chegou, aos

cinco anos de idade e onde tem passado toda a sua vida, é proprietário de um dos

estaleiros. Na sua memória permanecem algumas imagens de como era a Pedra do

Rosário antes que ela se interligasse aos outros pedaços: Passo, Areado e

Pantanal, segundo ele:

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“Quando eu cheguei aqui dava para contar as casas. Neste trecho da linha férrea para cá, tinha esta casa que hoje é minha e só. Para a frente tinha um terreno baldio, tinha uma casa, um terreno e duas, três ou quatro casas. Lá na frente tinha um manguezal onde morava Seu Zeca da muda e tinha ele só. Para a frente, terreno desocupado e tinha mais Isaac que tinha uma venda de galos e ele era da construção naval. Daí para frente o posto da lancha da Alfândega, duas casas que eram de Joca Suassuna. Para frente terreno baldio e tinha o galpão do pessoal da feira que vinha de Santo Antônio dos Barreiros, São Gonçalo, vinham embarcado, de Macaíba, e faziam um ponto ali. Esse galpão era para proteger a mercadoria de lá e do dia da feira, a feira era ali no Passo da Pátria.No Passo da Pátria contava-se as casas que tinha, não era saneado, não tinha água, não tinha energia15, não tinha nada, tinha candeeiro” (Gonçalo Marques dos Santos, entrevista à autora em maio de 2006).

Entre os entrevistados, percebe-se que são os da Pedra do Rosário, os que

mais guardam na memória informações sobre a antiga feira, mesmo que a tenham

vivenciado já no seu período de decadência. O depoimento de Gonçalo Marques

também se refere à percepção sobre a distinção entre os pedaços. Em primeiro

lugar, o entrevistado descreve o limite da Pedra do Rosário até a localização do

antigo galpão onde era feita a feira. E, ao falar “ali no Passo da Pátria”, o mesmo

refere-se ao pedaço que neste estudo tratamos como Passo, demarcando

claramente uma distinção entre os dois.

No mesmo local em que se situava o antigo galpão foi edificada durante a

gestão do prefeito Djalma Maranhão, uma escola, onde se desenvolveu no Passo da

Pátria a campanha “De pé no chão também se aprende a ler16”. A escola, hoje,

chama-se Escola Estadual do Passo da Pátria, possui uma capacidade para 208

alunos e realiza o atendimento do ensino fundamental. Sob a ótica dos moradores, a

escola é um marco divisor dos dois pedaços - Pedra do Rosário e Passo.

15 Alguns dados indicam a instalação da energia elétrica no Passo da Pátria no ano de 1932, ou seja, anterior a chegada de seu Gonçalo.

16 A campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, do prefeito Djalma Maranhão foi realizada entre 1960 e 1964. Utilizava o método Paulo Freire de Educação de Adultos, desenvolvido em várias regiões do Brasil, através dos movimentos de cultura popular. Através de campanhas, Dom Nivaldo Monte também atuou na melhoria da escola, conseguindo verbas para ampliá-la(GALVÃO, 2004).

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Durante o seu depoimento, Gonçalo Marques faz uma demarcação espacial

entre a Pedra do Rosário e o Passo, tendo como referência a Escola Estadual do

Passo da Pátria. O Passo é o pedaço que mais se assemelha às condições de vida

da Pedra do Rosário, como, no caso, do tipo de construções e o tempo de moradia

da população. O Passo, no entanto, é colocado na condição de desvantagem, pelos

moradores da Pedra do Rosário, por estar interligado ao Areado. Para os moradores

da Pedra do Rosário, o Areado e o Pantanal são “favelas”. A utilização do termo

estigmatiza e atribui características negativas aos seus moradores; o que podemos

perceber na fala de outra moradora da Pedra do Rosário, Antônia Silvestre:

“O colégio era o mercado, o resto era umas casinhas que tinha por dentro do mato, que era só capim. O pessoal andava dentro da lama, os casebres de taipa tudo dentro da lama, para passar tinha que colocar umas pedrinhas para ir de uma casinha para outra. Lá na frente não tinha nada, eram só estes casebres aqui. Aqui é Ocidental de Baixo e a gente chama Pedra do Rosário e lá chama o Passo [...] depois, é esse negócio de favela. Ali no Passo e naquela favela não tinha nada, aqui era bom, era bem tranquilo, aqui eu dormia de porta aberta. [...]Aqui não é violento não, se for possível a gente dorme com a porta aberta. Se eles não vierem de lá para cá, os daqui não mexem com a gente não, ali é muito violento” (Antônia Silvestre, entrevista à autora em abril de 2006).

As distâncias entre os pedaços são carregadas de conteúdos simbólicos,

fazendo parecer longe os lugares que podemos alcançar caminhando em menos de

cinco minutos. As entrevistas com os moradores da Pedra do Rosário demonstraram

que a existência de um ambiente violento é atribuída ao Areado e Pantanal. Para

estes, o elemento violência passa a fazer parte do cotidiano da Pedra do Rosário, na

medida em que surgiram as “favelas”.

Os moradores da Pedra do Rosário utilizam o termo “favela” para estigmatizar

o Areado e o Pantanal. Nestes pedaços existe a maior presença de habitações

precárias e são os espaços considerados mais violentos, pobres e menos

valorizados. O tempo de vida tranqüila e calma, na Pedra do Rosário, é considerado

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passado, atualmente; “tudo está modificado”, como nos disse Maria das Dores Silva,

moradora da Pedra do Rosário, desde 1946.

A circulação voltada para passeios e lazer ou práticas religiosas encontra

outros circuitos da cidade, como a Cidade Alta, o Alecrim e bairros da Zona Norte.

Pude perceber que o trânsito de moradores da Pedra do Rosário no Passo é muito

pequeno. Na verdade, restringe-se a trajetos obrigatórios como a ida ao posto de

saúde e ao mercado. A maioria dos moradores da Pedra do Rosário, até o início da

implementação do Projeto Integrado do Passo da Pátria em 2002, nunca havia ido

ao Areado e Pantanal.

Na Pedra do Rosário, ao final da tarde, a maioria dos moradores faz das suas

calçadas, que às vezes, pode ser a linha férrea, um local de encontro entre parentes

e amigos. De início, quando os moradores da Pedra do Rosário faziam menção ao

fato de que ali todos se conheciam, além de informarem que diversos familiares

também moravam lá, eu não podia imaginar o que isto significava. Na verdade,

constatei que há uma rede de relações, cujo fundamento é a vizinhança e o

parentesco.

Existem várias casas pertencentes a uma mesma família, na Pedra do

Rosário. Quando os filhos se casam procuram residir nas proximidades, o que

reforça os laços de amizade e vizinhança. Reforça também um sentimento do

“gostar de morar” na Pedra do Rosário. Questionados sobre os riscos da

convivência com o trem, ou sobre os problemas desencadeados pelas cheias do Rio

Potengi, os moradores nos apontam seus mecanismos de proteção, ou seja, a

precaução e a ajuda mútua entre os moradores, como atitudes que garantem a

valorização positiva do lugar. Nas palavras de uma antiga moradora,

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“Eu gosto de tudo daqui para lá, tudo é gente conhecido, eu conheço tudo daqui para lá e de lá para cá17. [...] Para lá18 é tudo uma coisa só. Aqui não, é tranqüilo graças a Deus. Eu dormia aqui de porta aberta. Para mim aqui foi o melhor lugar que eu achei de morar, tranqüilo, calmo, aqui não tem perigo não da gente morar aqui”(Antônia Silvestre, entrevista à autora, em abril de 2006).

Para descrever o Areado e o Pantanal, demarcar suas diferenças, os

moradores da Pedra do Rosário enfatizam não terem conhecimento sobre quem são

os outros moradores e somam a isto os acontecimentos relacionados com o

exercício da violência no interior destes espaços, os quais são amplamente

divulgados pela mídia. A relação com os moradores do Passo é mais próxima, e não

incorpora a imagem de um lugar tão violento quanto os demais, mas o Passo é visto

em desvantagem pelos moradores da Pedra do Rosário, já que se encontra

interligado ao Areado que, por sua vez, é um dos caminhos para o Pantanal.

2.4 Passo: o segundo pedaço do Complexo Favelar do Passo da Pátria

As primeiras habitações do Passo surgem cerca de quarenta anos depois dos

primeiros moradores se instalarem na Pedra do Rosário, por volta de 1950 (SILVA et

al., 1992, p.111). Assim como na Pedra do Rosário, no Passo, a maioria dos

moradores, ou são antigos residentes, que se estabeleceram há mais de quarenta

anos, ou são descendentes dos antigos residentes. Uma das referências acionadas

entre os moradores do Passo, para demarcar o que os distingue dos demais

passava pelo relato da origem de suas casas, as quais foram reformadas e, segundo

17 Falava dos limites entre a sua casa e a Escola Estadual do Passo da Pátria. 18 Referia-se aos espaços depois da Escola Estadual do Passo da Pátria.

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os moradores, tiveram sua ocupação legalizada através de um trabalho

desenvolvido pela Arquidiocese de Natal, na década de 70.

Foto 09 – Primeiras habitações do Passo.

Fonte – PINTO (1971).

Até a década de 70, as moradias do Passo eram habitações precárias,

improvisadas com materiais vulneráveis às chuvas e marés do Rio Potengi. Seus

vizinhos, Areado e Pantanal, possuíam pouquíssimos moradores. Neste período,

Dom Nivaldo Monte, um arcebispo da Arquidiocese de Natal, desenvolvia trabalhos

com a comunidade e, em 1974, conseguiu recursos para a construção de vinte e

duas casas na área do Passo (SOUSA & SILVA, 2005, p.30). Neste relato sobre a

construção das casas do Passo, Dom Nivaldo Monte nos diz que

o Passo da Pátria tem uma história interessante, lugar de encontro de Natal. Natal não tinha para onde ir, então de tardezinha no sábado costumavam passear lá, porque durante o dia o Passo da Pátria era calmo, só ficava adoidado de noite. A elite ia comer as comidas típicas, lá tinha muita macaxeira, peixe frito, caldo de cana, sequilho que vinha de Taipu, era um lugar muito gostoso, eu quando era menino freqüentava o Passo da Pátria[...]. Cresci esqueci do Passo da Pátria, depois fui lá, uma sujeira. Um dia conversando com um velhinho passava dentro da casa dele um rego, das fezes da cidade a céu aberto. As casas que não eram casas, eram tão pequenas que eu me abaixava para poder entrar. Eu vi aquilo e não, vamos construir a catedral nova e ao mesmo tempo vamos endireitar o Passo da Pátria. Vamos nos lembrar dos pobres. Depois fui a Europa deram uma ajudazinha e começamos, quisemos tirar de lá porque a sujeira era grande, mas o povo não quis sair. Ali tinha o rio um meio de sobrevivência (SOUZA & SILVA, 2005, p.35-6).

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A reforma e construção de casas através deste trabalho liderado por Dom

Nivaldo Monte são relatadas em todas as entrevistas que realizei com moradores do

Passo, como um marco para a história do lugar. A erradicação das casas de taipa foi

uma das primeiras intervenções que buscavam organizar o espaço urbano no Passo

da Pátria. Elza Maria Souza e Silva, moradora do Passo há 30 anos, descreve a sua

percepção quanto às modificações na paisagem do Passo da Pátria durante este

período,

“aqui era um canto que se tivesse vinte casa, não era casa, era casebre, se tivesse vinte casebre tinha muito. Uma parede era para duas casas; quando chovia enchia as casa da gente de água; a gente estava dormindo, quando acordava estava tudo bóiando dentro d’água e daí por diante. Quem melhorou isso aqui foi Dom Nivaldo Monte; ele viu a calamidade da gente[...], o sofrimento da gente e ele deu um dinheiro como um empréstimo para levantar as casas. Fazia esse empréstimo e dava o trabalhador. Então a minha casa era um casebre, uma coisa muito pouca, como se fosse um barraco. Aqui era uma favela. [...]as casas era até o supermercado, daquele supermercado para lá não tinha casa tudo era mangue. Aqui podia ter umas vinte famílias ou trinta, não tinha mais do que isso.” (Elza Maria Souza e Silva, entrevista à autora, em novembro de 2006).

As casas do Passo, que eram de taipa, destacaram-se entre as demais, após

o trabalho de Dom Nivaldo Monte. Ao serem ampliadas e feitas de alvenaria, já não

podiam mais ser casas de “favela”, como se referiu dona Elza ao passado do Passo.

A presença da Arquidiocese no Passo é bastante visível: a Igreja Coração de Jesus,

o Centro Pastoral e o Centro de Saúde foram resultados deste trabalho.

Na década de 70, investimentos na infra-estrutura urbana na área do Passo,

engendrados pelo poder público, como o calçamento das ruas e a instalação de um

Posto de Saúde, além da atuação de organizações da sociedade civil contribuíram

para melhorar o tipo de vida dos seus moradores.

O primeiro acesso ao Passo dá-se pela Rua Largo do Porto. Esta rua se

localiza ao lado da Escola Estadual do Passo da Pátria, marco divisor entre a Pedra

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do Rosário e o Passo. Como o próprio nome sugere, nesta rua existiu o Porto e a

feira, já discutidos anteriormente.

A Rua Largo do Porto se constitui num dos principais acessos para percorrer

o interior do Passo da Pátria. Nela encontramos com freqüência as mesmas

pessoas, nos mesmos locais, com exceção daqueles que se ausentam do Passo

durante praticamente todo o dia, como é o caso de alguns moradores que trabalham

em outros locais.

Depois de certo tempo, ao entrar no Passo pela Largo do Porto, percebi que

os mesmos grupos de mulheres estavam sempre situadas nas proximidades de

suas casas, muitas vezes, nas calçadas; encontrava os mesmos homens num bar

da esquina e, se estivéssemos no final da tarde, algumas crianças, hora favorita

para o banho no Rio Potengi.

Foto 10 – Banho no Rio Potengi pela Rua Largo do Porto. Fonte – Acervo do entrevistado Carlos Magno de Souza (2003).

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Foto 11 – Conversa na calçada, casa da Rua Largo do Porto. Fonte – Acervo do entrevistado Carlos Magno de Souza (2003).

Da Rua Largo do Porto, entrando no primeiro acesso à esquerda, estaremos

na principal Rua do Passo, a Nossa Senhora Aparecida (podemos visualizá-la no

mapa 02, p.71). Esta rua dá acesso à Tv. Coração de Jesus, onde está localizada a

capela Sagrado Coração de Jesus, construída na época do trabalho desenvolvido

pela Arquidiocese de Natal, com Dom Nivaldo Monte. Nesta travessa tentei

entrevistar um antigo morador, cuja moradia ficava em frente à linha férrea.

Todas as tardes em que estive em campo pude vê-lo, sentado, próximo à

calçada da sua casa, ou, na sala, com suas portas abertas. A entrevista acabou não

acontecendo porque o morador, ao relembrar o período em que chegou ao Passo e

queixar-se sobre a urbanização, que deve remanejar sua família para morar em

casas construídas pelo poder público na área do Areado, emocionou-se ao ponto de

perder a fala. De acordo com Antônio Torres Montenegro,

O processo de construção ou de produção opera em uma dimensão em que, partindo do real, do acontecido, a memória – como um elemento permanente do vivido -, atende a um processo de mudança ou conservação. [...] Dessa maneira, a memória tem como característica fundante o processo reativo que a realidade provoca no sujeito (MONTENEGRO,2001, p.19).

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Os moradores das casas que estão próximas à passagem do trem, na rua

Ocidental de Baixo, são um dos principais grupos presentes na área de remoção do

Projeto Integrado do Passo da Pátria. A insatisfação destes com a proposta do

poder público consistia em não considerar o novo local de moradia com condições

similares às que possuem, ficando onde estão. As principais motivações para morar

na Ocidental de Baixo, apontadas pelos moradores são: a proximidade com o centro

da cidade e as relações estabelecidas com os outros moradores.

Na implementação do Projeto estava determinado que o início das obras dar-

se-ia a partir da Ocidental de Baixo, nas imediações da Pedra do Rosário e do

Passo, mas a tensão gerada nas reuniões entre a equipe técnica do Projeto e os

seus moradores, devido ao fato de estes não concordarem com a remoção das

moradias, impôs ao Projeto a redefinição da área inicial da implementação. O

Projeto iniciou as obras de urbanização pelo Pantanal.

De volta à Rua Nossa Senhora Aparecida, podemos seguir até à Rua Nossa

Senhora dos Navegantes e adentrar na Rua das Árvores, as quais interligam o

Passo ao Areado. Em geral, todas as ruas do Passo são bastante movimentadas,

com pessoas circulando, crianças brincando e encontros diários nas calçadas ou

nos bares.

Na Rua Nossa Senhora Aparecida está situada a séde onde, da década de 90

até 2004, funcionou a creche Dom Nivaldo Monte. As casas construídas com a ajuda

de organismos internacionais eram praticamente as únicas do Passo da Pátria.

Poucas pessoas, entre uma e quatro famílias moravam no Areado e Pantanal, como

conclui Dona Elza:

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“Tinha gente que ele (Dom Nivaldo Monte) não dava o empréstimo, tinha gente que ele já dava a casa pronta, como o pessoal da Rua das Árvores. Aquelas casas foi como um conjunto: as pessoas foram sorteadas,[...] quando ele deu aquelas casas só existia elas até lá. Depois só tinha mangue e água, aí foi aumentando” (Elza Maria Souza e Silva, entrevista à autora, em novembro de 2006).

A Rua das Árvores tem uma extensão que parte do Passo até o Areado, onde

se instalaram os seus primeiros moradores. As benfeitorias foram feitas nas casas

localizadas na área do Passo. Estas intervenções nas moradias ressignificaram a

paisagem do Passo.

As casas do Areado e Pantanal que surgiram em grande quantidade, após a

década de 80, possuíam condições quase, ou tão precárias quanto as antigas

moradias do Passo, como detalharemos a seguir. É provável que, por isto, os

moradores do Passo, assim como os da Pedra do Rosário tratem este espaço como

favela, para demarcar uma relação de estigma pelos moradores do Areado e do

Pantanal como pessoas de valor humano inferior.

A posição social dos dois grupos de moradores da Pedra do Rosário e do

Passo, os quais constituem o núcleo mais antigo do Complexo Favelar do Passo da

Pátria, possui características em comum. Comparando o Passo com o Areado e o

Pantanal, as descrições demarcam diferenças, no que se refere à origem dos

moradores, o tempo de residência, o tipo de moradia, os laços de amizade e

vizinhança e até a convivência com atos de violência. D. Elza nos diz que,

“Uma pessoa apareceu só no Areado, não tinha onde morar, cortou os mangues e fez um barraco, sozinha dentro de um barraco, que é a mãe de Joab, sozinha ali naquele meio de mundo, naquele barraco. Aí disseram: ‘uma pessoa fez um barraco’. Aí começou a aparecer gente que fez outro, já marcando o canto, outro marcando o canto e veio gente das Rocas, veio gente de Mãe Luiza, do Maruim e está instalado ali onde é o Areado, [...] aí foi se instalando, foi feito casa, foi feito quadra, foi feito Igreja, pronto se instalou tudo” (Elza Maria Souza e Silva, entrevista à autora, em novembro de 2006).

Os recém-chegados ao Areado e Pantanal eram pessoas vindas de vários

bairros, nem se conheciam, nem conheciam os outros moradores que já estavam no

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Passo da Pátria; enquanto no Passo e na Pedra do Rosário, espaços mais antigos,

os moradores praticamente eram das mesmas famílias e o tempo de residência ao

lado dos que fazem parte de famílias distintas consolidou uma maior proximidade

das relações sociais, com redes de solidariedade e sociabilidades mais integradas.

No Passo da Pátria, a maior coesão de um grupo se expressa na “união” entre os

moradores; nos relatos dos entrevistados da Pedra do Rosário e do Passo, quando

estes diziam que nestes pedaços “o povo era mais unido”, esta “união” era

associada a um maior status na hierarquia existente entre os pedaços.

Durante a pesquisa de campo, percebemos que alguns moradores do Passo

e Pedra do Rosário possuem relações de amizade ou parentesco com moradores do

Areado ou Pantanal, porém, conviver com o Areado e Pantanal é desagradável para

a maioria dos moradores “estabelecidos”, que atribuem o aumento da insegurança à

fase posterior ao surgimento do Areado e Pantanal.

“Eu achava bom antigamente, era muito bom aqui; agora não está mais como era. Era quieto, ninguém ouvia falar em morte, nem em coisa nenhuma, quando morria uma pessoa não era destas coisas que há hoje em dia, tiro e mais tiro. Dizem que ontem mataram um ali...” (Geralda Cavalcanti, entrevista à autora, em Novembro de2006).

A Pedra do Rosário é incluída no conjunto das relações dos membros do

Passo, que a consideram um espaço de referência positiva. Os relatos sobre

situações de violência são acompanhados pela percepção de que a existência do

Areado e Pantanal redefiniu as formas de uso das ruas do Passo. Para os

entrevistados, transitar durante a noite pelas ruas tornou-se arriscado e, durante o

dia, é necessário assumir um “aspecto invisível”, de quem não sabe, não viu, nem

ouviu nada. Repreendida pela filha, que lhe pediu para que não “mexesse com a

favela”, D. Geralda prossegue seu depoimento:

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“Aqui a gente só ouve a buzina de noite e de dia e haja bala. Eu vivo aqui assombrada. O povo era unido, não havia estas coisas que há hoje em dia não, não tinha nada disso, só tinha a Pedra do Rosário agora, depois que fizeram esta favela... Não havia a bandalheira que tem hoje em dia não, mas eu moro, gosto de morar e já me acostumei. Todo dia este meu filho luta para eu ir morar com ele, eu vou nada! Aqui eu sou acostumada, já faz muitos anos que eu moro aqui, daqui eu só saio para o cemitério. Gosto demais daqui, que é bem pertinho de tudo, só saio daqui quando eu morrer. Gosto de todos os meus vizinhos” (Geralda Cavalcanti, entrevista à autora, em Novembro de 2006).

Ainda assim, os entrevistados enfatizam os motivos que os levam a

considerar o Passo como um espaço privilegiado para morar. O tempo de residência

associado ao conjunto de relações sociais existentes entre os moradores e a

proximidade dos bairros centrais da capital do Estado são apontados como razões

para permanecerem no lugar. Nenhum dos entrevistados nos respondeu que

morava no Passo por não ter outra escolha.

Mesmo quando são questionados sobre os riscos de morarem tão próximos à

linha do trem, os moradores do Passo atribuem os acidentes aos descuidos das

vítimas, ou ao excesso de velocidade com a qual as máquinas atravessam o trecho

das casas do Passo da Pátria, reforçando a vinculação afetiva com o lugar19. Se

Dona Geralda tinha algum receio sobre o trem, não é o que pareceu ao nos

responder que:

“Nunca tive não, uma vez morreu dois homens aí, conversando no meio da linha, não prestaram atenção o trem pegou todos dois, pegou uma velha, pegou Margarida, pegou seu Chico que estava distraído acendendo um cachimbo, ele era mouco de um ouvido e cego de um olho” (Geralda Cavalcanti, entrevista à autora, em Novembro de 2006).

O perigo ocasionado pela passagem do trem é circunstancialmente explicado.

A linha do trem, via de passagem, é durante vários momentos utilizada como uma

19 Em 2006 uma locomotiva da CBTU descarrilou na área do Passo da Pátria. Ver nos anexos a manchete “Trem com 350 passageiros descarrila em Natal”, publicada no Diário de Natal, Caderno Cidades, 23 de fevereiro de 2006.

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calçada, em que os moradores permanecem conversando ou, no caso das

mulheres, desempenhando algumas atividades como bordados, costuras, entre

outras. Na verdade, a passagem do trem está fortemente associada como uma

marca registrada do Passo e, para os moradores, não altera a imagem deste espaço

como uma área de menor valor.

No Passo, a grande maioria das ruas apresenta locais de comércio. São

lojinhas dos mais diversos artigos, supermercado e bares. Estes últimos são

considerados os únicos equipamentos de lazer, utilizados, quase que

exclusivamente pelos homens, para “desopilar”. O Rio Potengi pode se configurar,

tanto como o lugar da atividade pesqueira, como do lazer. Muitas mulheres

passeiam com crianças em canoas, no período da tarde e levam-nas para margens

mais distantes, onde se tem a ilusão de não estar entrando em contato com a

poluição do rio, o qual recebe, diariamente, dejetos através do canal do baldo,

localizado entre o Areado e o Pantanal.

Na Pedra do Rosário e no Passo os moradores demonstram orgulho por

morarem lá. Fazem questão de enfatizar que ali moram as pessoas de bem do

Passo da Pátria. Esse status superior atribuído aos seus moradores não parece ter

sido afetado com a instalação do Areado e Pantanal. A oposição entre superioridade

e inferioridade provoca tensões que só podem ser melhor conhecidas a partir da

compreensão dos diferenciais presentes na estrutura dos outros dois pedaços.

2.5 – Areado: laços identitários e discriminação

O terceiro pedaço mais antigo do Complexo Favelar do Passo da Pátria é o

Areado. O Areado está conjugado ao Passo e estende-se até o Canal do Baldo, um

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antigo córrego, através do qual, atualmente, correm para o Rio Potengi, os esgotos

sanitários coletados em diversos bairros de Natal20. A denominação Areado foi dada

pelos moradores “devido a grande quantidade de areia salgada misturada aos

búzios que eram despejados ali quando a maré baixava” (SOUSA & SILVA, 2005,

p.37). A areia foi proveniente da dragagem do Rio Potengi, realizada na década de

60, que aterrou parte do leito do rio. Na figura abaixo, que registra a vista da cidade

de Natal, na década de 70, podemos visualizar, no canto superior esquerdo, o areal

que deu origem ao Areado, quando a maioria do espaço ainda não possuía

moradias.

Foto 12 – Na parte superior da imagem visualizamos uma área com areia clara, esta área corresponde ao Areado e Pantanal praticamente sem habitações. Fonte – Cartão Postal de Natal. 1972.

Os dados de 2002, presentes na Tabela 01, apontam a existência de 1.227

moradores, 282 famílias residentes em 255 moradias no Areado. Do total de

moradias apresentadas na tabela 01, 15 moradias foram identificadas como

20 “Petrópolis, Tirol, Mãe Luiza, Cidade Alta e Morro Branco”. ( PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA – Projeto do trabalho de participação comunitária. Natal,RN: Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. Maio de 2002.p.60.

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palafitas, as quais compõem o quadro dos quase 10% de moradias feitas com

material improvisado no Areado, tais como: tábua, papelão e lata21.

Apesar da maioria das casas do Areado ser composta de construções de

alvenaria, a imagem das palafitas situadas à margem do Canal do Baldo destacava-

se na paisagem do Areado. Para Terezinha Barreto, o Areado apresenta,

basicamente, duas características físicas:

uma parte situada em terra firme, com barracos construídos em alvenaria, madeira ou materiais improvisados e mistos, em ruelas calçadas ou chão batido[...]. A outra parte, alagadiça, com construções de madeira, taipa ou material improvisado, muitas delas sobre palafitas, tem como acesso passarelas de madeiras improvisadas sobre uma área totalmente alagada. Esse setor, sem condições de escoamento, não oferece recursos para construção de moradias providas de instalações hidráulicas e sanitárias (2004, p.49).

As palafitas foram removidas pelas ações de urbanização implementadas na

área, em 2004. Enquanto existiram, era difícil imaginar como as pessoas

desenvolviam atividades primárias como dormir, comer ou tomar banho, diante do

fato de estarem convivendo diretamente com os dejetos do Canal do Baldo. Além

disso, ao conhecer os pequenos barracos, os quais corriam constantes riscos de

desabamento ou inundação, aumentava a sensação de espanto, diante daquelas

condições de vida.

21 PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA – Projeto do trabalho de participação comunitária. Natal,RN: Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. Maio de 2002. p.60.

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Foto 13 – Palafitas do Areado. Maré alta. Fonte – Acervo pessoal do entrevistado Carlos da Silva Ferreira. Final da década de 90.

A existência das palafitas proporciona, nos outros pedaços, um olhar

generalizador sobre a paisagem do Areado. Como pudemos apreender, na Pedra do

Rosário e no Passo, os entrevistados qualificam o Areado como a área mais

violenta, suja, onde a maioria das moradias é composta de “barracos”. Segundo os

depoimentos, nem toda a área do Passo da Pátria é uma favela. O espaço que se

constitui como favela é o Areado. Aqui, o termo favela, inspirado pelo imaginário

preconceituoso do núcleo mais antigo do Passo da Pátria, é utilizado para distinguir

os territórios.

As moradias são veículos através dos quais os moradores do Passo da Pátria

pensam a sua condição social. Nas falas dos entrevistados, as características físicas

e simbólicas do meio em que vivem acionam o sistema de oposição “terra firme” e

“área alagadiça”, “casa” e “barracos”. A dona de uma palafita, Célia Alves de

Siqueira, relatou-nos sua chegada ao Areado:

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“Em 1998, quando eu cheguei de Recife para morar aqui, eu vim direto para a casa de uma filha minha que já morava aqui. Aí passei mais ou menos uns dois anos com ela. Depois meus filhos se reuniram e compraram um barraquinho dentro da maré. Tinham feito para uma pessoa e a pessoa não podia ir morar lá; aí venderam para a gente. Então era a gente morando e a água passando por baixo, fizeram uma pontezinha de madeira para a gente ir para a rua, mas era uma moradia boa, não aperreava ninguém; ninguém aperreava a gente.” (Célia Alves Siqueira, entrevista à autora, em Novembro de 2006).

O Passo da Pátria pode ser pensado como um lugar onde se tem precárias

moradias, áreas de risco, ocupação desordenada, degradação ambiental, violência,

mas estas características não são homogêneas a todos os pedaços. Os aspectos

das condições de moradia são símbolos de prestígio social em todo o Passo da

Pátria, assim como a tranqüilidade do dia-a-dia. Dona Célia reconhece que morar

nas palafitas foi uma situação extrema e possuir uma casa era objeto do seu desejo

de melhorar sua condição. Mesmo assim, ressalta que no limite, a moradia era boa,

por permitir o distanciamento de relações com “outros” grupos de moradores.

Com o tempo, pude perceber que o Areado representava muito mais que as

palafitas. A área em “terra firme” corresponde a um espaço formado mais

recentemente que a Pedra do Rosário e o Passo, composto na sua totalidade por

seis ruas e três travessas. Quando o projeto de urbanização iniciou as ações, o

Areado contava com uma associação de moradores, um time de futebol, fundado em

torno do Campo São Francisco, uma quadra de esportes, uma biblioteca

comunitária, um terreiro de umbanda, um templo pentecostal e uma igreja católica,

vinculada a organizações externas à comunidade.

O Areado, assim como todos os demais pedaços, possui moradias na Rua

Ocidental de Baixo que, como já descrevemos, contorna a linha férrea. As demais

ruas são: Rua das Árvores, Rua Nossa Senhora da Paz, Rua Santo Afonso, Rua

São Félix, Rua Trampolim da Vitória; e as travessas são: Nossa Senhora dos

Navegantes,Coração de Jesus e Pinheiros.

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Pela Rua das Árvores chegamos aos principais pontos do Areado. Dela

podemos entrar na Tv. Nossa Senhora dos Navegantes e encontrar o Largo do São

Francisco no qual existe um campo de futebol, o Campo São Francisco, bastante

utilizado pela comunidade; todo dia tem jogo neste campo. Nos dias de semana

encontramos crianças de ambos os sexos jogando, ou, ainda, as peladas dos

moradores do Areado. Só durante os torneios e campeonatos de fins de semana é

que entram em campo outros times do Passo da Pátria22.

O campo São Francisco fica no Areado; é o lugar onde todos sabem quem é

ou não do pedaço, e o que se pode, ou não, fazer ali. O campo pode se transformar,

também, no lugar dos grupos que se encaminharam para a vida que denominamos

criminosa. Há rivalidades, que não foram objetos deste estudo, que colocam em

oposição o campo do Areado e o do Pantanal, denominado Campo São Francisco II.

Foto 14 – Vista aérea do Passo da Pátria, destaque para a visibilidade do Campo São Francisco no Areado e após o Canal do Baldo, em menor área, o Campo São Francisco II no Pantanal.Fonte – PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA (2002).

22 O Areado é o único pedaço que possui um time, formado exclusivamente, por moradores da área, o Pinheiro Futebol Clube. Os demais times do Passo da Pátria, como o Barcelona, Santos, Criciúma, Palmeiras e Porto não estão vinculados a um pedaço específico e são formados por jogadores de qualquer uma das partes do Passo da Pátria.

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Foto 15 – Campo São Francisco. Fonte - Pesquisa de campo da autora (2005).

Em uma das idas a campo, um morador, que ao perceber minha condição de

pesquisadora, apressou-se em me dar uma resposta, comparou o Areado com outra

comunidade, conhecida nacionalmente. Gritou-me ele, de longe: “Aqui é a Cidade de

Deus”! Na opinião de Carlos Magno, ex-morador do Areado, que me acompanhou

nesta ida a campo, a comparação traz em si o elemento da segregação. Relatando-

nos sobre este aspecto, nos diz:

“É por isso que há tanta segregação com o Areado. A grande contestação é porque as pessoas que moram no Passo da Pátria há mais tempo, diz que não existia tanta discussão, tanta violência [...] e com o Areado isto começou a aflorar mais, veio pessoas de Mãe Luiza como eu, de Brasília Teimosa, das Rocas, locais mais periféricos onde isto se concentrava mais” (Carlos Magno de Souza, entrevista à autora, em Abril de 2006).

A lista de qualificações negativas do Areado, citada pelos entrevistados do

grupo que consideramos “estabelecidos”, engloba o problema de alagamento das

marés, a poluição do “bueirão” (Canal do Baldo), a violência e o caráter transitório

das redes de solidariedade formadas por pessoas que vinham de diferentes lugares

e que, muitas vezes, viam o Areado como uma área de passagem para uma nova

mudança.

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Um dos entrevistados, Carlos Silva, considera o Areado não muito diferente

dos demais, quando se trata de violência, mas, ao mesmo tempo que reforça a

hierarquização presente na relação com os moradores do núcleo mais antigo, impõe

tal hierarquização para o Pantanal. Para ele, todos os pedaços podem ser

considerados violentos, cada pedaço é mais ou menos perigoso, mas na sua

percepção, a idéia de favela, no sentido do “lugar violento”, volta-se para o Pantanal.

Como nos disse,

“o pessoal olha este lado aqui como violento; ali (no Passo) nem tanto, e a Pedra do Rosário é para os mais quietinhos. Aqui é o lado mais violento; agora até está deixando de ser um pouco. Algumas pessoas que moram aqui, por conviver com a violência se deixam levar por momentos. A pessoa não pensa e faz uma besteira; ocorre de uma hora para outra. É o que o povo lá de dentro faz se deixa levar pelo momento... o povo dali (do Pantanal) da favela mesmo, mas não tem muita diferença não” (Carlos da Silva Ferreira, entrevista à autora, em Fevereiro de 2007).

Carlos Silva constrói um mosaico com os pedaços do Passo da Pátria e utiliza

a violência em oposição à segurança, para demarcar as diferenças que constroem

uma hierarquia das condições sociais do Passo da Pátria. Ao mesmo tempo,

reconhece que as diferenças entre os pedaços, no quesito violência, são pequenas.

A pesquisa UFRN/FUNPEC23 demonstra que a percepção sobre a

“tranqüilidade” no seu pedaço possui índices menores entre os moradores do

Areado. Apesar de a violência ser apontada em todos os pedaços, como a principal

desvantagem do lugar onde moram, no Passo da Pátria, o índice de pessoas que

informaram considerar o lugar onde moram como calmo foi de 34% e no Pantanal de

51%. No Areado, apenas 9,7% qualificaram assim o seu pedaço24.

Nas entrevistas que realizamos, vimos que, na Pedra do Rosário e no Passo

os entrevistados consideraram como “lugar violento” o Areado, seguido do Pantanal.

23 MIRANDA, Orlando Pinto de. Inventário Social do Complexo Favelar do Passo da Pátria e Adjacentes. Prefeitura Municipal de Natal. Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. UFRN/FUNPEC. Natal/RN. Março de 2002. p.32. 24 Idem.

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Os entrevistados do Areado não consideram o seu pedaço tão diferente dos demais;

reconhecem interdependências entre eles, apesar de deixar escapar nos seus

discursos um pouco de adaptação e submissão à hierarquia de uma relação que os

configura como “estabelecidos e outsiders”.

Assim, a precariedade das condições de vida e da infra-estrutura do Areado

só não é considerada maior porque existem iniciativas dos moradores que

conseguem engendrar outros processos onde se vivenciam formas de solidariedade

e de construção de identidades que valorizam o lugar em que moram.

A quadra de esportes, localizada em frente à Igreja São Félix, é o núcleo de

diversas atividades de lazer no Areado como: torneios de futebol e palco para

eventos e festas da comunidade. As festas na quadra, geralmente giram em torno

dos eventos esportivos e da Igreja São Félix. A quadra é um importante lugar para o

encontro e o lazer no espaço público e a organização das festas aponta para a

desmistificação do Areado como um lugar apenas violento.

Foto 16 – Quadra de esportes do Areado. Fonte - acervo do entrevistado Carlos Magno de Souza (2003).

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Os moradores do Areado procuraram demarcar suas positividades na

tentativa, ora de desconstruir a tensão com os moradores da Pedra do Rosário e do

Passo, ora de reverter a sua inclusão para o grupo de ”estabelecidos”. Quando

conheci Carlos Magno, um dos moradores do Areado, que também me conduziu a

todos os pedaços do Passo da Pátria, chamou-me a atenção sua iniciativa de

organizar, em sua própria residência, na Rua Santo Afonso, uma Biblioteca

Comunitária.

Foto 17 – Propaganda da Biblioteca. Fonte - Acervo do Projeto Integrado do Passo da Pátria (2004).

Foto 18– Vista da Biblioteca Comunitária do Areado. Fotografia de Argemiro Lima. Fonte – LEITE (2006).

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A Biblioteca Comunitária José Gonçalves (BCJG) funcionou na sala da casa

de Carlos Magno entre os anos de 2003 e 2007. Para ele, iniciativas como essa

demonstram que a comunidade merece muito mais do que ser tratada com estigma

e preconceito. Cento e trinta pessoas estão cadastradas, entre crianças, jovens e

adultos. No acervo encontramos títulos sobre folclore, educação, História de Natal,

livros didáticos, poesia, entre outros. O que Carlos Magno pretende, segundo o

mesmo, é “influenciar as pessoas por aqui. Quero incentivá-las à educação e à

leitura25”. A quadra de esportes e a Biblioteca Comunitária José Gonçalves são

enclaves que contradizem a imagem pessimista construída em torno do Areado.

Os inúmeros moradores de Natal que, de longe, avistam o Passo da Pátria

nos seus trajetos diários, como aqueles feitos na Avenida do Contorno, dificilmente

enxergam enclaves como estes. Para a maioria das pessoas que nunca entraram

em suas ruas ou, tiveram que “descobri-lo” de ponta a ponta, a imagem do Passo da

Pátria, no imaginário urbano de Natal, é representada como foco de poluição e

miséria. Um dos principais suportes para esta concepção sobre o Passo da Pátria é,

sem dúvida, o Canal do Baldo.

Da quadra de esportes visualizamos os quintais de algumas casas voltados

para o Canal do Baldo. O “bueirão” como é chamado pelos entrevistados divide dois

pedaços do Passo da Pátria, o Areado e o Pantanal. O canal do baldo corresponde

a um antigo riacho que atualmente vem passando por um processo de tratamento, já

que recebe dejetos de vários bairros da cidade e lança-os in natura diretamente no

leito do Rio Potengi.

25 Leite, Ugo. Um Passo para a leitura: Biblioteca particular no Passo da Pátria atende moradores da comunidade. Revista BROUHAHA. Prefeitura Municipal do Natal. Fundação Cultura Capitania das Artes. Ano II. Nª 03. Natal/RN. Janeiro/Março de 2006. P.60.

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O desconforto do contato não era somente visual. O mau-cheiro também era

muito forte. O projeto de urbanização cobriu o Canal do Baldo, no trecho que cruza o

Passo da Pátria, amenizando partes dos problemas causados às vidas dos

moradores e criando uma rua nova, que interligou o Areado ao Pantanal.

Nas primeiras visitas que fiz ao Passo da Pátria encontrei com as crianças

que brincavam no canal, como se fossem imunes aos males da poluição. Conheci

moradores que tiveram suas casas invadidas pelo canal no período de chuvas,

quando este transbordou. Nas reuniões entre a equipe técnica do Projeto de

urbanização e a comunidade do Areado ouvi depoimentos sobre situações em que

os moradores não revelavam o lugar onde moravam, diante dos outros da cidade,

por sentirem vergonha de morar tão perto de um esgoto enorme, como se tornou o

Canal do Baldo.

Foto 19 - Navegação de canoa no canal do baldo. Acima fica a Av. do Contorno e a linha do trem.Fonte – Acervo pessoal do entrevistado Carlos da Silva Ferreira (década de 90).

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Foto 20 - Crianças brincando no canal do baldo em 2003, período do início das obras de canalização do Canal do Baldo. Fonte – Acervo da equipe do projeto de urbanização (2003).

Assumir a vida no Areado, como o morar na lama, era não ver as outras faces

do lugar. O Areado destacava-se pela organização de eventos comunitários, como

festas e torneios esportivos e também pela existência de uma biblioteca comunitária.

Em meio ao local onde a população costuma depositar lixo, o endereço da

biblioteca, no muro da casa 13 da Rua Santo Afonso, séde da biblioteca, um aviso:

“ESTUDE! BIBLIOTECA AQUI”. Carlos Magno demonstra sintonia com a maioria

dos moradores, sobre o sentimento pelo Areado,

“Eu gosto muito de morar aqui. Já gostei bastante, hoje eu gosto menos, mas gosto. Então o que me impressiona é a vida das pessoas, do hábito de pescar, de tomar banho no Rio, das crianças gostarem de passear de canoa, de se melar de lama, de jogar futebol, de sorrir apesar de toda problemática que tem” (Carlos Magno de Souza, entrevista à autora, em Abril de 2006).

De acordo com dados do Inventário Social do Complexo Favelar do Passo da

Pátria, a maioria dos moradores declarou gostar de morar no bairro. No Areado

foram 75,5% dos entrevistados; na Pedra do Rosário e Passo, 72,8%, e, no

Pantanal, 75,8%. A localização é tida como a principal vantagem em todos os

pedaços. A maioria das pessoas prefere não mudar de residência, porém se esta

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questão se coloca, são os moradores da Pedra do Rosário e do Passo os que

declaram não desejar residir no Areado ou Pantanal.

Observamos que os entrevistados do Areado, na interação com outro espaço

da cidade, quando precisaram identificar onde moram, indicaram morar no Passo da

Pátria e não no Areado. São situações que envolvem a procura por trabalho ou o

preenchimento de documentos, por exemplo.

Ao substituírem o Areado pelo Passo da Pátria, os moradores do Areado

acreditam acionar o status que o núcleo mais antigo possui, internamente, em

relação aos outros pedaços. Além disso, segundo os mesmos, o Passo da Pátria é

mais conhecido, na cidade de Natal/RN, que o Areado, o que, na percepção dos

mesmos, evita parte dos constrangimentos sofridos pelo imaginário preconceituoso

da cidade, que se opõe à favela. A percepção dos moradores é de que, ainda assim,

o espaço é desvalorizado na maioria das vezes, como nos disse dona Célia:

“[...] quando perguntam onde você mora e você diz: no Passo da Pátria, aí dizem: vixi Maria! Na favela. Para mim já foi favela, hoje não é mais, que história que aqui é sempre favela. Você sabe que a gente quando mora num lugar não vai derrubar o lugar [...] porque queira ou não queira eu estou aqui, então eu tenho que defender, não esculhambar mais [...] está certo que a gente mora numa favela, mas a gente não quer ver ninguém derrubar. Porque se eu chego lá fora e mesmo que seja uma favela se eu digo que moro numa favela, eu tô dizendo tudo o que tem de ruim ali dentro, mas porque mora um ou dois não é obrigado todo mundo ser (Célia Alves Siqueira, entrevista à autora, em Novembro de 2006).

A existência das palafitas e a percepção sobre as situações de violência que

ilustram o Areado para a cidade são, na opinião dos entrevistados, os motivos para

a discriminação que existe, tanto internamente, entre os pedaços do Passo da

Pátria, quanto para com o resto da cidade; no entanto, como percebemos na fala de

Célia Alves, a imagem de favela atribuída ao lugar, enquanto significado de estigma

e preconceito, convive com o “outro lado” do Areado constituído por moradores que

“defendem” uma outra imagem do bairro em que vivem. Carlos Silva, artista plástico,

morador do Areado relata que

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“Quando eu digo que moro no Passo da Pátria tem discriminação, porque é violento, mas aí eu fui amadurecendo e botei na cabeça que violência tem em todo canto e perigo em qualquer lugar; e essa questão de ter vergonha [...] eu já disse que morava na Cidade Alta, Centro, mas através do meu trabalho isso passou a ser uma coisa mais simples. Ao mostrar como é o ambiente aqui eu não tive mais vergonha. Agora, eu tenho prazer em dizer que moro aqui e pretendo divulgar uma imagem melhor do bairro” (Carlos da Silva Ferreira, entrevista à autora, em Fevereiro de 2007).

Romper o preconceito foi também adquirir outro conhecimento sobre o lugar,

construir outro olhar sobre o Areado, uma síntese própria a partir das suas diversas

experiências cotidianas. Não ter vergonha é uma possibilidade plenamente

realizável, se os moradores estiverem dispostos em focar nas positividades do

Areado, as famílias, os trabalhadores, os equipamentos de lazer, as festas, ou ainda

a paisagem que o rodeia, elementos que se configuram como suportes para o

reconhecimento da própria dignidade negada pelos grupos “estabelecidos”.

Observando a relação entre Areado e Pantanal, existe a percepção de

semelhanças entre os dois pedaços, as quais baseiam-se no tempo, condições de

moradia, convivência com o Canal do Baldo, existência de equipes esportivas, festas

comunitárias e laços familiares entre moradores. Não obstante o reconhecimento de

simbioses entre os dois pedaços, prevalece um tipo de inter-relacionamento, o qual

aponta o Pantanal com maiores desvantagens de moradia, considerando-o a favela

do Passo da Pátria, estando assim o Pantanal abaixo do Areado na hierarquia dos

pedaços.

Um exemplo disto são os conflitos que passaram a acontecer, quando os

moradores das palafitas do Areado mudaram-se para o Pantanal, onde ficou clara a

não receptividade dos moradores do Pantanal aos novos vizinhos. A lista de

reclamações é enorme, quando entrevistei D. Célia Alves, que se mudou de uma

das palafitas para uma casa construída pela urbanização, localizada nas imediações

do Campo São Francisco II no Pantanal. Ouvi queixas sobre os jogos que

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resultavam em intrigas, quando as bolas atingiam as casas, sendo os usos do

campo São Francisco II um elemento da tensão e do desentendimento entre

moradores.

2.6 – O outro lado do canal: o Pantanal e o meio-ambiente

O Pantanal é o pedaço de ocupação mais recente do Complexo Favelar do

Passo da Pátria. Está situado entre o Canal do Baldo, a linha férrea, o muro da Base

Naval e o Rio Potengi. Caracteriza-se como o pedaço com maior número de

habitações, famílias e moradores26. Apesar de serem identificadas algumas

moradias, desde a década de 70, do século XX, seu crescimento deu-se a partir da

década de 90. A origem da denominação Pantanal deriva da existência de vários

pequenos córregos que cortam a área, os quais aumentam de volume, de acordo

com o movimento das marés. Conforme os dados do Projeto de Urbanização, o

Pantanal

“ [...] possui ainda uma área com características de favela, marcada pelos pisos de terra batida (44 casas= 12,7%) e edificações sem alvenaria (53 unidades = 15,3%). Tem como único acesso uma rua localizada próxima ao horto municipal, sendo isolado dos demais pela existência do canal do Baldo e fazendo divisa com o muro da Base Naval (Marinha)27”.

Os aspectos sócio-ambientais do Pantanal, do período anterior ao

agravamento da poluição do Rio Potengi, em que predominavam áreas alagadiças e

vegetações, como manguezais, têm enorme influência no imaginário popular no

Passo da Pátria. Conheci uma moradora do Passo, residente há mais de 40 anos,

que afirmou nunca ter ido ao outro lado do canal. Segundo a moradora, a última vez

26 Ver tabela 01 deste capítulo na página 69. 27 PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA – Projeto do trabalho de participação comunitária. Natal,RN: Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. Maio de 2002. P. 62.

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que ela avistou a área, o Pantanal possuía poucas moradias e podia chegar até as

casas com canoas, nos períodos das marés mais altas, em Janeiro e Agosto.

Oliveira Pedro Barbosa, morador do Pantanal relatou-nos a paisagem que

encontrou, quando lá chegou, para morar, muito tempo depois, na década de 90:

“Quando eu vim, isto aqui era tudo mato, tinham algumas casas.[...]. Antes era só Pedra do Rosário e Passo da Pátria e aí eu não sei se em 85, ou 86, um pessoal de Mãe Luiza e João Câmara vieram e invadiram uma parte do Areado, formando a comunidade e depois invadiram aqui formando a comunidade do Pantanal. Quando eu cheguei aqui, já tinha muitas casas, ruas,[...] os primeiros moradores foram por invasão e os outros compraram a posse de quem tinha invadido” (Oliveira Pedro Barbosa, entrevista à autora, em 03/08/06).

Assim como no Areado, o crescimento da população do Pantanal foi mais

recente do que o da Pedra do Rosário e do Passo. Seus moradores, em sua

maioria, são pessoas vindas de diferentes locais da própria cidade de Natal/RN. No

Pantanal também existiram palafitas e grande quantidade de barracos, favorecendo

a percepção de que o lugar era uma favela, como indicaram os outros moradores do

Passo da Pátria.

Além disso, o Pantanal estava mais próximo do Canal do Baldo. A poluição

das águas do Rio Potengi, do Canal do Baldo e dos pequenos córregos se

configuram em problemas ambientais complexos e condições de alto risco,

principalmente para os moradores do Pantanal. A atividade pesqueira é notória e foi

afetada pelos altos níveis de poluição do Rio Potengi. A pesca é feita em pequenas

embarcações ou canoas e hoje, predominante, como cultura de subsistência e, não

mais, para o comércio, os pescadores apontam a desconfiança dos compradores

sobre a segurança do produto (peixe, camarão, siri, etc.), já que o mesmo foi

retirado de águas poluídas.

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Foto 21 - Travessa Ocidental de Baixo. Fonte - Acervo da equipe do projeto de urbanização (2002).

Foto 22 - Canal do Baldo, vista pelo lado do Pantanal. Fonte - Acervo da equipe do projeto de urbanização (2004).

O Canal do Baldo isolou o Pantanal do resto do Passo da Pátria. Aliada a esta

condição ambiental, contribuiu para este isolamento a relação do grupo de

moradores mais antigos com o Pantanal. Os moradores da Pedra do Rosário e do

Passo classificam este espaço como a pior área de moradia, assim como o fazem

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com o Areado. O preconceito e estigma pelos moradores do Pantanal, agregados à

imagem da convivência com o Canal do Baldo e demais córregos são fronteiras

materiais e simbólicas que separam o núcleo mais antigo, do Pantanal.

Desde 2004, o Canal do Baldo encontra-se coberto, constituindo-se, então,

numa nova rua que interligou o Pantanal aos demais espaços. A obra é avaliada

positivamente por todos os grupos de moradores do Passo da Pátria, já que,

canalizado, o canal provoca menos males à saúde, segurança e qualidade de vida

dos moradores.

As entrevistas também demonstraram que, embora esteja interligado ao

restante do Passo da Pátria e concentrar em sua área a maior parte das ações de

urbanização que redefiniram a infra-estrutura do Pantanal e o contato com os

demais grupos, tais como: a drenagem dos córregos, a construção de um posto de

saúde que substituiu o antigo, localizado no Passo, de uma creche e de um centro

de múltiplas atividades, os moradores do Pantanal ainda vivenciam a estigmatização

dos demais pedaços. Como nos disse Oliveira Barbosa,

“Hoje está mudado, já há organização por todos os lados, acabou-se a questão de favelas, não existe mais palafitas, nem casas de taipa, quando já existe tudo casa de alvenaria pode ser considerado como uma rua, mas o nome favela é uma coisa que não acaba nunca. O pessoal do Passo da Pátria se pensa como uma comunidade normal e aqui é a favela, até hoje, mesmo sem casas de taipa, sem palafita, pode perguntar a alguém de lá onde mora uma pessoa daqui que eles dizem: lá na favela. Existem diferenças. A Pedra do Rosário é a mais antiga que existiu aqui, desde muitos anos, a Pedra é muito antiga, mas o Passo que foi se formando depois, foi a comunidade mais organizada[...].Eles acham que tem um nível mais alto. O Passo da Pátria pode não admitir isso, mas eu falo, porque eu morei também no Areado e sentia isso. [...]quando o pessoal estava nos seus barracos e lá eram casas, eles sentiam-se humilhados. As crianças quando passavam no Passo, o pessoal chamava de “pé-de-bicho”; as lideranças de lá não queriam entrosamento com as pessoas que vieram de Mãe Luiza, não sei de onde. Houve alguns crimes, tinha drogas e no Passo da Pátria não existia boca de fumo e aí depois tinha muito e o pessoal tinha um preconceito bem grande, um medo de se aproximar” (Oliveira Pedro Barbosa, entrevista à autora, em 03/08/06).

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A tensão no Pantanal é perceptível até para uma observação menos

cuidadosa. O medo da violência foi citado pelos entrevistados e por aqueles que

conquistamos para uma breve conversa durante os trajetos no Pantanal. Talvez esta

seja a causa de encontrarmos no Pantanal ruas bem menos movimentadas que nos

outros pedaços e poucas pessoas com suas portas abertas, ou sentadas em

calçadas.

Foi mais difícil encontrar moradores disponíveis para dar entrevistas; a

desconfiança sobre o destino dos depoimentos era notória, assim como o receio de

serem considerados “delatores” da comunidade e sofrerem agressões de

determinados grupos.

Identificamos 04 ruas e 03 travessas como as principais vias do Pantanal. A

principal rua é a Ocidental de Baixo, está localizada em paralelo ao Canal do Baldo

e na sua esquina, que encontra a linha férrea, funcionou até 2005 o Horto Florestal

Municipal. Enquanto esteve isolado do restante do Passo da Pátria, pelo Canal do

Baldo, a única forma de adentrar, por terra, ao Pantanal dava-se por esta rua. As

demais são: Porto Seguro, Miramar e a que fica ao lado da Igreja São Francisco. As

travessas são: Ocidental de baixo, Mirante do Sol e Miramar do Potengi.

Na primeira vez que passei pela Rua Ocidental de Baixo para realizar a

pesquisa de campo, ouvi uma pessoa na rua comentar: “Entrando aqui assim, só

quem tem negócio”. Não me intimidei com o comentário que explicitava a minha

condição de “estranha” e logo percebi que o Pantanal era mais “fechado” que os

demais pedaços.

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Foto 23 - Entrada da Travessa Ocidental de Baixo, à direita o Horto Florestal Municipal. Em frente adentramos no Pantanal. Fonte - PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA (2002).

Foto 24 - Fim da Travessa Ocidental de Baixo em frente à Igreja São FranciscoFonte - Pesquisa de campo da autora (2006).

Para os agentes do poder público local, a existência de quatro pedaços que

se diferenciam entre si privilegia práticas de conflitos, o que, para estes agentes,

corresponde a um dos obstáculos ao desenvolvimento do Passo da Pátria. Para os

moradores, pertencer à Pedra do Rosário, ao Passo, Areado ou pantanal significa

pertencer a uma rede de relações que implica no cumprimento de determinadas

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regras de lealdade e proteção; compartilhar memórias, identidade e construção de

alteridades. Portanto, a idéia de “integração” é homogeneizadora e desconhece os

arranjos espaciais dos próprios moradores, ou seja, suas formas de transitar,

usufruir e estabelecer relações em cada pedaço que compõe o Passo da Pátria.

Levando em conta estas considerações, realizaremos, a seguir, a avaliação

da política de urbanização do Passo da Pátria, quanto à idéia de integração, na

percepção dos moradores, procurando compreender a contribuição das ações do

Projeto Integrado do Passo da Pátria para a redefinição das relações entre os

pedaços.

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O conjunto de ações e atividades voltadas para a urbanização do Passo da

Pátria, desenvolvidas pelo poder público local, são resultantes da implementação de

um projeto denominado Projeto Integrado do Passo da Pátria. Este projeto compõe o

Programa Habitar Brasil, é financiado pelo Banco Interamericano do

Desenvolvimento/BID, Governo Federal e Prefeitura Municipal do Natal. A Secretaria

Municipal do Trabalho e Assistência Social de Natal/RN é o órgão responsável pela

sua execução.

Os projetos desenvolvidos no âmbito do Programa Habitar Brasil objetivam a

promoção de intervenções nos chamados assentamentos subnormais, localizados

em regiões metropolitanas, capitais de Estado e aglomerações urbanas. As

principais ações que incidem na urbanização de assentamentos subnormais

compreendem a regularização fundiária e a implantação de infra-estrutura urbana e

de recuperação ambiental nessas áreas, assegurando a efetiva mobilização e

participação da comunidade na concepção e implantação dos

projetos(PREFEITURA DO NATAL, 2002).

Em Natal/RN, o Projeto Integrado do Passo da Pátria consiste numa

experiência piloto de urbanização de favela, através do Habitar Brasil. Esse Projeto,

iniciado em 2002, surge no contexto da geração de um novo sistema classificatório

para as áreas de favelas que se processou no Brasil, principalmente a partir dos

anos 70, o qual procura desconstruir a separação entre a favela e a cidade, e o

discurso que avalia estas áreas como cenários privilegiados da marginalidade e

transitoriedade.

O primeiro passo do poder público local em direção à urbanização do Passo

da Pátria correspondeu ao desenvolvimento de uma pesquisa que resultou na

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elaboração, em 2002, de um inventário social sobre o Passo da Pátria29. As etapas

seguintes da implementação do projeto de urbanização do Passo da Pátria

englobaram a apresentação e discussão das ações e atividades com os moradores.

O projeto visa melhorar as condições de vida dos moradores do Passo da

Pátria, através de um processo de urbanização em que as obras de infra-estrutura

articulam-se com três eixos: mobilização e participação comunitária; geração de

trabalho e renda e educação sanitária e ambiental. Como consta no texto do Projeto

Integrado do Passo da Pátria, as ações consistem em:

1 ) Remanejamento de 65 famílias; 2 ) construção de 216 UH30; 3 )melhorias de 382 UH; 4 ) 160 módulos hidráulicos; 5 ) urbanização da área (arruamento, iluminação pública, drenagem pluvial do canal, muro de arrimo para contenção de enchentes); 6 ) regularização fundiária para 920 famílias; 7 ) 30 indenizações de benfeitorias; 8 ) 210 ligações domiciliares de água; 9 )920 ligações domiciliares de esgotamento sanitário condominial; 10 ) construção de 01 escola com capacidade de atendimento a 840 alunos em 03 turnos; 11 ) construção de 01 quadra de esportes; 12 ) construção de 05 centros de atividades econômicas; 13 ) construção de 01 Posto de Saúde; 14) construção de 01 creche para atendimento a 100 crianças; 15 ) construção de 01 Centro de Múltiplas Atividades; 16 ) lavanderia comunitária; e 17) desenvolvimento da participação/organização comunitária, capacitação social para lideranças, erradicação do analfabetismo, educação sanitária e ambiental e qualificação profissional/geração de trabalho e renda31”.

Entre todas estas ações, a remoção definitiva de famílias para outras áreas,

em função de ocuparem áreas de risco, de preservação permanente, ou por

necessidade de desadensamento, é o principal motivo da falta de consenso entre os

agentes do Poder Público e os moradores. No presente capítulo, procuramos

apreender a relação da falta de consenso com o fato de que a área de intervenção,

ou seja, o Passo da Pátria, é constituído por quatro pedaços: Pedra do Rosário,

29 MIRANDA, Orlando Pinto de. Inventário Social do Complexo Favelar do Passo da Pátria e Adjacentes. Prefeitura Municipal de Natal. Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. UFRN/FUNPEC. Natal/RN. Março de 2002.

30 UH: Unidades Habitacionais.31 PREFEITURA DO NATAL. PROJETO INTEGRADO PASSO DA PÁTRIA – Projeto do trabalho de participação comunitária. Natal,RN: Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. Maio de 2002. p.20.

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Passo, Areado e Pantanal e, como discutimos no capítulo anterior, há uma

hierarquização construída pelos moradores, que valoriza, ou não, o seu pedaço e o

dos outros.

A análise da política de urbanização do Passo da Pátria dá-se a partir dos

elementos da percepção dos entrevistados sobre as ações e atividades

desenvolvidas pelo poder público, as quais estabelecem novos arranjos entre os

quatro pedaços e seus moradores. Estes arranjos consistem em deslocar moradores

de um pedaço para outro; proporcionar um maior trânsito entre os pedaços e

encontro entre os moradores, através de reuniões e eventos; unificar as associações

de moradores e construir novas vias com o propósito da redefinição dos quatro

pedaços num único espaço.

Procuramos avaliar o conhecimento quanto às ações do Projeto de

Urbanização, às principais mudanças nos usos dos espaços e à percepção dos

moradores acerca dos resultados do Projeto Integrado, no que se refere à

integração dos quatro pedaços.

3.1 – O Projeto Integrado do Passo da Pátria: ações e atividades de integração dos quatro pedaços

O início da implementação do Projeto de Urbanização do Passo da Pátria

deu-se no ano de 2002, logo após a conclusão do Inventário Social sobre a

comunidade. Os agentes do poder público estabeleceram contato com as principais

lideranças dos quatro pedaços, para que estas convocassem reuniões com os

demais moradores. Nas reuniões, todos os assuntos envolvendo a execução do

projeto integrado eram discutidos quinzenalmente. Em nosso estudo analisamos as

ações e atividades voltadas para a integração dos quatro pedaços.

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O remanejamento e a remoção de moradores da Pedra do Rosário, Passo,

Areado e Pantanal redefiniu parte das relações de vizinhança, em nome da

segurança. As obras de drenagens de córregos no Pantanal produziu novas

paisagens menos díspares entre os pedaços. A cobertura do Canal do Baldo criou

uma nova rua, interligando o Pantanal ao Areado. As obras de aterramento e

reconstrução das habitações deixaram as vias mais espaçosas, possibilitando,

inclusive, a construção de um complexo de serviços voltados aos interesses dos

moradores do Passo da Pátria, localizado na fronteira entre o Areado e o Pantanal;

inovou os trajetos do grupo de moradores mais antigos. A CAPI – Comissão de

Acompanhamento do Projeto Integrado aproximou as lideranças do Passo da Pátria.

As primeiras reuniões organizadas pelo poder público ocorreram

separadamente, em cada pedaço; tinham como objetivo apresentar as formulações

e proposições do Projeto Integrado do Passo da Pátria, debater a viabilidade com os

moradores e coletar assinaturas daqueles que concordavam com a entrada do

Projeto de Urbanização na comunidade. As expectativas dos moradores em relação

ao projeto expressavam desconfiança, mas a grande maioria concordou com a

implementação. A aceitação era uma aposta em melhorias para a qualidade de vida

no Passo da Pátria, ao mesmo tempo, para outros moradores, como os residentes

das áreas de risco apontadas pela urbanização. Havia duas alternativas: ser incluído

na urbanização, ou deixar o Passo da Pátria.

Em 2003, o Projeto Integrado do Passo da Pátria tinha um escritório com

séde no Passo e uma equipe técnica, durante cinco dias por semana. Neste ano,

deu-se prosseguimento às reuniões semanais para discussão do plano de ação do

projeto de urbanização. A CAPI – Comissão de Acompanhamento do Projeto

Integrado, constituída inicialmente por dezessete moradores originários de todos os

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pedaços, foi formada para acompanhar as ações da urbanização e estabelecer

canais de comunicação entre os agentes do poder público e a comunidade. Além

disso, o grupo de moradores que, participa da CAPI, é encarregado de organizar e

legalizar uma Associação Comunitária, para representar todos os moradores do

Passo da Pátria.

Atualmente, a CAPI está voltada para a unificação das três associações de

moradores: a do Passo da Pátria (que congregava os moradores da Pedra do

Rosário e do Passo), as do Areado e Pantanal. Um plebiscito realizado na

comunidade apontou que parte da população está aberta à integração e gostaria

que Passo da Pátria fosse o nome dado ao bairro pós-integração dos pedaços. O

próximo passo da CAPI será a organização da eleição de uma diretoria da

associação que substituiu as três, antes existentes.

Quinzenalmente é discutido com as lideranças dos quatro pedaços o

processo de urbanização. Para os agentes do poder público, a reunião entre

moradores dos distintos pedaços contribuía para integrá-los. A CAPI foi fundamental

para estabelecer um elo de negociação entre os moradores e a equipe do projeto. A

experiência do diálogo entre os representantes de cada pedaço parecia encontrar

novos caminhos diferentes do distanciamento.

As obras estavam previstas para iniciar pela Pedra do Rosário e prosseguir

para os outros pedaços. As primeiras ações voltavam-se para a remoção de todas

as famílias da Pedra do Rosário, as quais podiam escolher entre uma nova moradia

em outro pedaço, no Passo da Pátria, ou uma indenização.

De acordo com as diretrizes do Projeto Integrado, os moradores da Pedra do

Rosário encontram-se em situação de alto risco, devido à proximidade com o Rio

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Potengi e a linha férrea. Como nos relatou Eni Barbosa, Assistente Social

responsável pelo escritório do Projeto Integrado do Passo da Pátria:

“a Pedra do Rosário é uma área que a gente trata de uma maneira especial, é a única área que tem direito à indenização assistida; eles têm direito de escolher, ou uma casa ou a indenização; eles lá são os que mais relutam em vir para o lado de cá.[...] Todas elas tem que sair, até porque existe uma lei federal da RFFSA que diz que não pode ficar nenhuma casa a menos de quinze metros da linha. A gente sabe que a Pedra do Rosário não chega a ficar a um metro. Eles têm que sair. Além da lei federal tem a questão da segurança, apesar de que para eles não tem problema nenhum, porque tem famílias que mora lá há 40, 50 anos e nunca aconteceu nada, nenhum acidente, nenhum problema. Além disso, por lá ter casas muito boas, eles consideram lá a elite do Passo da Pátria e não querem se misturar, que a favela é aqui (no Pantanal) não é lá” (Eni Barbosa, entrevista à autora, em agosto de 2006).

Nas reuniões com os moradores da Pedra do Rosário, estes deixaram claro o

desejo de permanecer no lugar onde viviam, até então. Além disso, os moradores

não aceitaram o valor proposto para as indenizações, os quais foram respaldados

pelos dados da pesquisa coletados há mais de dois anos e se apresentavam

defasados. Como nos diz Antônia Silvestre, moradora da Pedra do Rosário:

“O Projeto esta aí, eles ficaram de vir mexer aqui com a gente. Eu só saio daqui se eles me derem minha casa noutro canto, para me dar o dinheiro eu não quero não. Porque com o dinheiro que eles querem me dar não dá para fazer minha casa e a dos meus filhos. [...] Mandei fazer esta casinha aqui para mim e ainda hoje eu estou dentro dela. Já sofri tanto para manter ela aqui e eles querem jogar a gente na rua. Aí eu disse que não vou não, só vou se ele der a cada um dos meus filhos uma casa e a minha casa também. Porque para eu fazer esta casa aqui, eu aterrei a maré, para fazer minha casinha para quando eu quisesse estar aqui dentro. Se eu sair daqui eu vou morar aonde? Eu não tenho onde morar”. (Antônia Silvestre, entrevista à autora, em abril de 2006).

Os moradores da Pedra do Rosário não contaram com nenhum tipo de

financiamento para construir suas casas, como ocorreu com o Passo que recebeu o

auxílio da Arquidiocese de Natal. Na Pedra do Rosário as casas resultam da

autoconstrução, um processo que consistiu em chegar ao terreno, às vezes aterrá-

lo, construir um quarto ou um barraco, passar a morar e seguir na vida, expandido e

melhorando a construção.

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A proporção de habitações com grandes estruturas é maior na Pedra do

Rosário e no Passo e os investimentos nas moradias são, para os moradores, uma

garantia de que aquele patrimônio lhe pertence, independente da condição de

ilegalidade do terreno. Os registros das primeiras habitações datam do início do

século XX. Há 95 anos, os moradores encontram-se vivendo na condição de

ilegalidade dos terrenos e expostos aos riscos da proximidade com a passagem do

trem e o Rio Potengi.

Quando questionados sobre os riscos colocados pelo trem e o Rio Potengi, os

moradores demonstravam não ter esta mesma percepção, na medida em que

constroem, no dia-a-dia, estratégias para lidar com os acidentes envolvendo o trem

e os transtornos provocados pela maré.

Ao longo do tempo, os moradores superaram perdas afetivas tais como a

morte ou mutilações de pessoas, ocorridas em acidentes com a passagem do trem.

Aprenderam a conviver com as perdas materiais provocadas pelas enchentes do

Potengi, com os afogamentos e com o agravamento das doenças devido ao contato

com a água poluída. Um exemplo sobre como os moradores vivenciam estes riscos

é a fala de Elza M. S. da Silva, que relata:

“O trem para mim nunca foi um risco, como a maré também nunca foi um risco. Nem o trem, nem a maré. Eu sempre soube criar meus filhos com cuidado, sempre dizendo: se for para lá o trem mata, o trem não pode parar, o trem não freia, o trem mata, eu sempre dizia a eles; e para a maré eu dizia: não vão para a maré porque mar não tem cabelo, depois que você cair dentro ou você sabe nadar, ou você não entra porque você morre. Sempre eu dizia a eles assim e graças a Deus foi tudo criado aqui e nunca tive problema com meus filhos por causa da maré, por conta do trem. [...] Agora, o meu pai foi que vinha descendo ali onde está aquela moça, o trem vinha nessa linha onde está essa menina, ele já estava aqui na rampa, só que ele saiu daqui e foi para lá, pensando que o trem vinha na linha de cá, só que o trem vinha na linha de lá e vinha muito atrasado. Meu pai morreu em 69, no dia 29 de novembro. Então meu pai achou que o trem vinha na linha de cá, ele passa para a linha de lá, foi fatal, o trem saiu arrastando ele” (Elza Maria Souza e Silva, entrevista à autora, em novembro de 2006).

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A partir das entrevistas que realizamos, vimos que no núcleo mais antigo, os

moradores do Passo da Pátria reconhecem os riscos existentes, os quais contornam

o local em que vivem, tais como a proximidade com o Rio Potengi e a linha férrea,

mas este reconhecimento não se transforma em motivação para deixarem o espaço

ao qual pertencem. Para os mesmos, os acidentes ocorrem muito mais por descuido

do que pelo risco iminente à realidade que vivenciam.

O projeto de urbanização redefiniu o início das obras, transferindo-as da

Pedra do Rosário para o Pantanal. Os motivos foram a necessidade da abertura de

novas vias e ruas para acolher os moradores provenientes do remanejamento, a

situação dos moradores das palafitas que requeria urgência e a falta de consenso

sobre as indenizações da Pedra do Rosário, sendo necessário mais tempo para

reavaliar os valores e negociação com os moradores.

Em 2004, as obras da urbanização encontravam-se concentradas no

Pantanal. As prioridades eram a canalização dos córregos, cobertura do Canal do

Baldo e remoção das palafitas. A construtora responsável pelas obras e a equipe

técnica e social mantinham um escritório na área, durante 05 dias por semana. A

localização dos escritórios provocou um aumento do trânsito de moradores dos

outros pedaços no Pantanal, os quais participavam de reuniões, cursos e

procuravam a equipe do projeto para tirar dúvidas sobre a urbanização.

A drenagem dos córregos no Pantanal é um tipo de ação do Projeto Integrado

que incide diretamente em questões como saúde e segurança no Passo da Pátria.

Ao serem drenados e cobertos proporcionaram outras formas de apropriação do

espaço da rua para os mais diversos fins; a rua deixa de conviver com o esgoto que

impunha limitações ao seus usos e a necessidade de maiores cuidados para quem

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passasse por uma das ruas por onde se espalhavam pequenos córregos que

carregam, até o Rio Potengi, dejetos domésticos e esgotos in natura.

A situação expunha um grave problema sócio-ambiental da área que

prejudicava a vida dos moradores que habitam no local. Conforme dados do Projeto

Integrado do Passo da Pátria, a região pode ser considerada “um escoadouro a céu

aberto dos esgotos provenientes de outros bairros [...] estabelecendo pelo local uma

rede fétida de ramificações que terminam por arruinar as águas do rio Potengi e a

salubridade local” (PREFEITURA DE NATAL, 2002, p.63).

FOTO 25 – Rua com córrego no Pantanal. FONTE – acervo do projeto integrado. 2003.

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FOTO 26 – Tv. Ocidental de Baixo, córrego coberto. FONTE – pesquisa de campo da autora. 2006.

A canalização do Canal do Baldo também se pauta pela idéia da integração

dos pedaços. Ao ser coberto o “bueirão”, como era chamado pelos moradores,

transformou-se numa nova rua. O solo em seu entorno foi reforçado com um

aterramento, para suportar a construção de um condomínio com dois pisos, o qual

era a sugestão de moradia para os moradores da Pedra do Rosário que

concordassem com a remoção e com o remanejamento para outro pedaço, no

Passo da Pátria.

Este novo espaço interligou o Areado ao Pantanal. Em sua área foram e

estão sendo construídas casas e equipamentos, pelo Projeto Integrado, como uma

escola, um Posto de Saúde, o qual atende a todo o Passo da Pátria, um Centro de

Múltiplas Atividades, que sedia cursos, reuniões e, provisoriamente, o escritório do

projeto, uma creche municipal e, no entorno deste complexo de serviços está a

maioria das casas padronizadas pela urbanização, que substituiu os barracos e as

palafitas da área.

Em 2005, as obras do canal foram concluídas, as casas, antes localizadas em

suas margens passaram por reformas executadas pelo Projeto Integrado. O

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resultado da cobertura do Canal do Baldo e aterramento do seu entorno, área antes

ocupada pelas palafitas, resultou na ampliação do espaço e diminuição dos

transtornos provocados pela convivência com esgotos e dejetos, tais como a

proliferação de doenças e acidentes.

FOTO 27 – Obras no Canal do Baldo. FONTE: Acervo do Projeto Integrado do Passo da Pátria. 2004.

No início das obras do canal começou o período de chuvas fortes em Natal; o

posicionamento da construção estava estreitando o canal, que transbordou,

inundando as casas localizadas na sua margem, pelo lado do Areado. Os

transtornos envolveram perdas materiais como móveis e eletrodomésticos, e risco

de desabamento de algumas casas.

FOTO 28 – Casas da nova rua com canal do baldo coberto. Reformas nas habitações. FONTE: Acervo do Projeto Integrado. 2005.

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FOTO 29– Casas à margem do canal do baldo. FONTE: Acervo do Projeto Integrado. 2004

FOTO 30 – Casas à margem do canal do baldo, em mesmo ângulo da foto 27 após aterramento. FONTE: Acervo do Projeto Integrado. 2004.

Entre 2005 e 2006, praticamente todas as ruas do Pantanal e do Areado

haviam passado por melhorias como saneamento e pavimentação. Não havia mais

barracos ou palafitas, substituídos pelas casas construídas pelo projeto. O

remanejamento transferiu famílias de um espaço para outro, acomodando os

moradores numa casa com sala, cozinha, banheiro e dois quartos.

Assim, os dois aspectos mais utilizados nos outros pedaços, para atribuir

características negativas ao Pantanal e classificá-lo como favela, no âmbito da

hierarquização presente entre os quatro pedaços estavam praticamente erradicados.

A substituição dos barracos e palafitas pelas novas residências, somada à

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drenagem e cobertura dos canais, o calçamento das ruas e o aterramento das

margens do rio Potengi redefiniram os usos e apropriações do espaço no Pantanal.

FOTO 31 – Novas casas localizadas no Pantanal. FONTE – Pesquisa de campo da autora. 2006.

FOTO 32 – Banho no rio Potengi na antiga área das palafitas do Pantanal. Aterramento bastante visível. FONTE – Acervo do Projeto Integrado. 2006.

Após este período, as obras do projeto integrado foram paralisadas. A

prefeitura de Natal/RN rescindiu o contrato com a construtora que trabalhava na

área desde 2003 (DIÁRIO DE NATAL, 11/01/06, p.04). A população não aprovava o

trabalho da construtora, considerando-o de qualidade duvidosa e as principais

reclamações remetiam-se à demora na conclusão das ações.

Na volta às ações de urbanização, em janeiro de 2006, deram-se

continuidade às negociações sobre a remoção das famílias do núcleo mais antigo.

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Os agentes do poder público atualizaram os valores de cada indenização e

propuseram para aqueles que desejassem continuar no Passo da Pátria, a

localização da nova moradia numa área na fronteira entre o Passo e o Areado. A

operacionalização da remoção buscava garantir que os moradores continuassem

próximos àqueles que ao longo do tempo compartilharam suas memórias e

experiências de vida.

Apesar de os valores das indenizações terem sido revistos, nas reuniões com

a equipe técnica do Projeto Integrado, os moradores avaliavam que, dificilmente,

conseguiriam comprar uma casa localizada no entorno do bairro da Cidade Alta. As

novas casas construídas pelo projeto, na fronteira entre o Passo e o Areado, na

margem do Rio Potengi, direcionadas para os moradores do núcleo mais antigo,

continuavam a ser alvos de resistência à mudança, para a maioria dos que

concordaram com a remoção.

Como pudemos acompanhar, durante a pesquisa de campo, as casas foram

inauguradas sem ligação da iluminação elétrica e abastecimento de água. A equipe

do projeto propunha aos moradores que estes fossem para as casas, que os

problemas com a energia elétrica e o abastecimento de água seriam resolvidos em

seguida.

Até o final de 2006, os moradores ainda não haviam se mudado, por

considerarem que, residir nas novas casas era expor-se à insegurança e violência.

Nesse período, ocorreram furtos de materiais da construção das casas como portas,

sacos de cimento, etc. A energia elétrica foi ligada, assim como o abastecimento de

água e as primeiras mudanças dos moradores vindos da Pedra do Rosário

aconteceram. Ao mesmo tempo, ampliavam-se as críticas à qualidade da construção

das novas casas, como relatou a matéria do Diário de Natal:

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“As obras de urbanização no Passo da Pátria continuam causando problemas. Dessa vez os protagonistas da história são os moradores da comunidade que vive nas proximidades da Pedra do Rosário, início da Rua Ocidental de Baixo. [...] Morador do Passo da Pátria há 59 anos, o construtor naval Gonçalo Marques dos Santos divide o teto com a esposa e três filhos. Ele é dono de uma das casas que serão retiradas para conclusão da urbanização no local e diz que não quer ir para as habitações que estão sendo construídas pela SEMOV lá. [...] “Os aspectos da construção não agradam a população daqui. A maioria quer sair para uma casa digna”, reclama. Gonçalo explica que as pessoas que se mudaram para as casas construídas pela prefeitura são aquelas que apresentavam situação mais precária que as demais. A casa oferecida aos moradores pela prefeitura possui sala, banheiro, dois quartos e cozinha. Para a maioria das famílias, compostas muitas vezes por mais de sete pessoas, o espaço não é suficiente” (DIÁRIO DE NATAL, 13/01/07, p.03).

O depoimento de Gonçalo Marques, o qual foi nosso entrevistado, apontava

os principais problemas das novas construções. Em seu caso, proprietário de um

estaleiro ao lado da sua casa na Pedra do Rosário, ainda não conhecia a solução da

equipe do Projeto Integrado, para que o mesmo não ficasse prejudicado, tendo em

vista a remoção do estaleiro.

FOTO 33 – Novas casas construídas pelo Projeto Integrado para os moradores do núcleo mais antigo vindos da remoção. FONTE – pesquisa de campo da autora. 2006.

Em junho de 2007, ao caminhar pela Pedra do Rosário, os espaços vazios já

eram em número de 23. Os moradores já remanejados, além do fato de serem da

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Pedra do Rosário ou do Passo, são pessoas que, no interior do núcleo mais antigo

constituem-se como os moradores mais recentes e suas casas, nestes espaços, não

tiveram a estrutura ampliada pelo processo de autoconstrução. O Projeto Integrado

busca concluir toda a remoção até o final deste ano.

3.2 – Integração: a percepção dos moradores sobre a construção de um consenso

Nosso interesse nas entrevistas foi explorar basicamente as representações

que os moradores tinham sobre a distinção entre os pedaços e as ações voltadas

para a integração destes, as quais vêm sendo implementadas pelo poder público,

através do projeto Integrado do Passo da Pátria. Estava evidente que a maneira pela

qual os moradores dos quatro pedaços vivenciavam a experiência do morar no

Passo da Pátria era diferente. Não significava que concebessem cada pedaço

completamente diferente do outro, mas sim, que viam de modos distintos a sua

participação e o seu lugar, no Passo da Pátria.

Onde pensávamos existir Passo da Pátria descobrimos haver: Pedra do

Rosário, Passo, Areado e Pantanal. Existem dois tipos de vivência que dão suporte

para o estabelecimento de distinções, na maneira de conceber o seu pedaço: a

primeira refere-se ao tempo de moradia; a segunda, à noção de favela. Segundo

Fernanda Piccolo,

O significado do termo “favela” passou por transformações, mas a representação social de chaga no espaço da cidade contemporânea permaneceu no bojo de sua (re)construção, impingindo ao local e a seus habitantes um estigma (GOFFMAN, 1988). A inclusão da favela no rol dos problemas sociais decorre da imagem construída socialmente de que nesse local imperariam inúmeras “carências”. “Carência” de bens materiais, devido a habitações irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgoto, água ou luz; e de civilidade, já que sua população era vista como marginal, criminosa, perigosa, “carente” de moralidade. Imagem que permanece ainda hoje, embora seus objetos–símbolos tenham mudado. (2006, p.332).

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Ser morador da Pedra do Rosário significa construir sua identidade como a

elite do Passo da Pátria, onde residem os moradores mais antigos e as casas

encontram-se bem estruturadas em relação às demais. Os moradores do Passo

disputam o status de elite com os da Pedra do Rosário e acrescentam que passaram

por um número maior de intervenções urbanísticas, concentrando os principais

serviços urbanos da área, como posto de saúde, escola, creche, etc. No Areado os

moradores vivenciam a discriminação atribuída pelos outros pedaços, mas procuram

apontar as semelhanças entre eles. Por fim, no Pantanal, a percepção sobre a

discriminação é maior que no Areado, mas os moradores acreditam que a

redefinição da paisagem, principalmente, a cobertura do Canal do Baldo, o

saneamento e a reestruturação das moradias vêm quebrando o isolamento com os

outros pedaços e pode provocar mudanças nesta hierarquização.

A principal referência que todos os entrevistados utilizam para descrever sua

própria situação e o lugar que ocupam no Passo da Pátria é a utilização do termo

favela. Em boa parte das situações em que os moradores de um pedaço se referem

a outro basta falar em favela para se fazer entender. No núcleo mais antigo, os

moradores não se incluem na classificação de favelados e atribuem esta

característica ao Areado e Pantanal, mesmo depois de várias intervenções urbanas

na área destes dois pedaços. No Areado e Pantanal, os moradores indicam que todo

o Passo da Pátria pode ser considerado como favela no contexto geral da cidade,

mas, internamente, são os pedaços que apresentam as maiores “carências”.

Após a implementação do Projeto Integrado, no Areado e Pantanal, os

moradores já passam a indicar que não se pode considerar estes pedaços como

favela, mas ressaltam que ainda sofrem a discriminação e o preconceito advindos do

núcleo mais antigo: os moradores da Pedra do Rosário e do Passo.

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A intervenção do poder público na área urbana pretende desconstruir a

classificação oficial do Passo da Pátria enquanto favela. As intencionalidades do

Projeto integrado do Passo da Pátria voltam-se para a sua inserção na cidade como

bairro planejado, o que significa (re)construir e complementar a infraestrutura

urbana, abrir vias de acesso, oferecer condições ambientais e legais para a vida dos

moradores da área, além de intervir nos domicílios.

No âmbito das melhorias e da legalização, está presente a idéia de

integração. A integração, como tratamos anteriormente, é um resultado da união

física entre os pedaços, através da abertura de novas vias e ruas; das ações de

remanejamento de famílias e da articulação dos moradores dos quatro pedaços

através de uma associação que objetiva substituir as três associações comunitárias

existentes no Passo da Pátria.

O remanejamento direciona-se para as famílias residentes nas palafitas e

barracos, e para os moradores das áreas de risco. Estas famílias foram, e estão

sendo deslocadas de um pedaço para outro. No caso da Pedra do Rosário, todas as

famílias devem ser remanejadas, já que a proximidade com a linha férrea e o Rio

Potengi transgride as normas de segurança dos órgãos públicos competentes, que

indicam a necessidade de uma distância mínima de 15m, entre as casas e a linha

férrea, ou o rio. No Passo, o remanejamento está previsto para algumas famílias que

se encontram dentro da área de risco. No Areado, as ações já foram concluídas e

remanejaram os moradores das palafitas para o Pantanal. No Pantanal, o

remanejamento também voltou-se para moradores de palafitas e barracos e já foi

concluído. Basicamente, as famílias permaneceram no mesmo pedaço, mudando

apenas de logradouro.

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Antes do início da urbanização, o Passo da Pátria estava lá com toda a sua

vitalidade, ou seja, com ruas, espaços públicos, comércio próprio e, ainda que

precários, alguns equipamentos urbanos; entretanto encontrava- se desqualificado e

lançado à marginalidade. O Projeto Integrado do Passo da Pátria, no entanto, não foi

resultado das reivindicações dos moradores, ainda que seja garantida a participação

da população local em todo o processo de execução do projeto. Este constitui-se

como uma intervenção que partiu de fora, ou seja, foi proposta pelo poder público.

Na compreensão de Magnani,

“A incorporação desses atores e de suas práticas permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além do olhar ‘competente’ que decide o que é certo e o que é errado e para além da perspectiva e interesse do poder, que decide o que é conveniente e lucrativo” (2000, p. 05).

Assim, as classificações localmente produzidas, as quais dividem o Passo da

Pátria em quatro pedaços, expressam as múltiplas redes, estilos de vida e conflitos

que constituem as relações entre os moradores. A representação oficial que o poder

público pretende estabelecer, a qual corresponde à integração dos pedaços,

condição necessária para a ressignificação do Passo da Pátria, de favela a bairro,

confronta-se com outras representações imbuídas de sentidos e significados

provenientes das experiências cotidianas de moradia e das histórias comunitárias da

ocupação.

Como discutimos no capítulo anterior, existe no Passo da Pátria uma

hierarquização entre os pedaços, construída por seus moradores, que têm como

referência vínculos já existentes, os quais correspondem à família, vizinhança e

procedência. A construção das identidades sociais no Passo da Pátria pautam-se

pelas fronteiras simbólicas que configuram a ocupação do espaço. Dessa forma,

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buscamos compreender como os moradores vivenciam a idéia da integração que

vem redefinindo as classificações e distinções estabelecidas sobre cada pedaço.

Dentre as ações de integração voltadas para os moradores da Pedra do

Rosário o destaque se dá para a questão do remanejamento das famílias. No

processo de formulação do Projeto Integrado do Passo da Pátria, em 2002, efetuou-

se uma pesquisa com os moradores da Pedra do Rosário. Dentre as 50 famílias, 42

responderam ao questionário. Destas, 36 indicaram que não mudariam para o

condomínio proposto pelo Projeto, devido a este se localizar “dentro da favela”

(PREFEITURA DE NATAL, 2002, relação de anexos). Esta proposta tratava-se de

um condomínio que seria construído na área do Areado, para onde o Projeto

propunha transferir os moradores da Pedra do Rosário. Antônia Silvestre fala-NOS

sobre as perspectivas, diante da idéia do remanejamento,

“Aculá eu não vou não, sou mais ir para o cemitério. Ali estão matando um hoje e o outro guardando para amanhã, vou não, de jeito nenhum. Deus me livre, já mataram tanta gente ali, pai de família, mãe de família. Daqui eu só saio para outro canto, ou para o cemitério, quando Deus quiser me levar, porque para ali eu não quero ir (Antônia Silvestre, entrevista à autora, em abril de 2006).

A idéia da construção de um condomínio foi reavaliada e retirada das metas

do projeto, já que todas as análises sobre o solo apontavam que a capacidade de

carga era pequena, devido à encharcação. Além disso, as barreiras afetivas que os

grupos de moradores mais antigos ergueram, geração após geração, opunham-se à

idéia da remoção.

Os depoimentos demonstraram que na Pedra do Rosário há uma relação de

casualidade entre a hierarquização dos pedaços e a resistência à idéia de remoção.

Entre ser removido para uma outra área e ir morar numa casa construída pelo

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Projeto e a indenização para a compra de um imóvel em outro bairro da cidade, os

moradores preferiam a segunda alternativa.

As novas moradias, além de estar prevista a sua construção em um pedaço

estigmatizado como favela, pelos moradores da Pedra do Rosário, não atendiam às

necessidades das famílias, no que se refere ao seu tamanho. No interior do Passo

da Pátria, as casas da Pedra do Rosário são consideradas bem estruturadas pelo

tipo de material e pelo tamanho das edificações. As casas do Projeto Integrado eram

consideradas de baixa qualidade e seu tamanho não comportava nem mesmo a

mobília dos moradores. A insatisfação dos moradores da Pedra do Rosário era

compreendida, até por quem não iria passar pelo remanejamento, como dona Elza,

moradora do Passo:

“ É como as pessoas ali da linha32, aquelas casa já era para eles terem saído e estarem naquelas casas lá do campo, eles não quiseram ir para aquelas casas lá do campo, porque era lá para dentro, eles querem essas casas daqui, que já vem bem próxima, essa casas é para o pessoal da beira da linha, nem todos, porque muitos não querem vir para cá e muitos tem troços dentro de casa que não dá nessas casinhas, é muito pequena, a cozinha é um ovo, ali é para quem não tem nada, pouquinha coisa e pouca família, um casal jovem que não tem essas coisas, mas para as pessoas que moram ali na linha que têm de tudo, casa grande, os troços não dão, vai se desfazer dos troços que tem? Assim não dá, é para quem não tem nada. (Elza Maria Souza e Silva, entrevista à autora, em novembro de 2006).

As indenizações também foram objeto da falta de consenso entre os

moradores da Pedra do Rosário e o poder público. Os valores, mesmo depois de

passarem por atualizações, não satisfaziam os moradores, já que o maior valor não

garantia a aquisição de um imóvel nas mesmas condições do atual e localizado

próximo ao bairro da Cidade Alta.

As negociações com os moradores da Pedra do Rosário foram retomadas no

ano de 2006. Neste período, boa parte das ações voltadas para a “integração” já se

32 Refere-se aos moradores da Pedra do Rosário.

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encontravam avançadas nos outros pedaços. O Projeto Integrado não havia

modificado os valores das indenizações, mas a proposta de remanejamento

apresentava uma outra área para a localização das moradias, para aqueles que

escolhessem permanecer na comunidade. Trata-se de um espaço situado no Passo.

Na fase final da pesquisa, em 2006, tive contato contínuo com os moradores

da Pedra do Rosário e pude participar de uma reunião que os agentes do poder

público haviam organizado, para tratar sobre a mudança para as novas casas.

Estava evidente que as opiniões contrárias à idéia da remoção não tinham a mesma

freqüência como no início da urbanização.

No período desta reunião, as casas para o pessoal da Pedra do Rosário

estavam concluídas, mas não dispunham de energia elétrica e abastecimento de

água. Estes foram os motivos apresentados pelos moradores, durante a reunião,

para o fato de não terem efetuado a mudança para a nova moradia. O poder público,

que tinha promovido a inauguração das casas, solicitava que os mesmos se

mudassem, orientando-os a buscarem os órgãos competentes para a resolução

destes problemas.

Enquanto os moradores não iam para as novas moradias, aconteciam furtos

de materiais, como portas, vasos sanitários, equipamentos hidráulicos, etc. As

primeiras mudanças só ocorreram após a resolução dos problemas, com o auxílio do

poder público. Atualmente, restam poucas casas na Pedra do Rosário, que devem

ser removidas até o final de 2007.

No interior da CAPI, os representantes dos moradores da Pedra do Rosário já

não possuem uma participação efetiva, a ausência nas reuniões e nas atribuições da

comissão é um reflexo disso. Além disso, os moradores são contrários à unificação

das Associações de Moradores.

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As ações da “integração” no Passo foram: o remanejamento de algumas

famílias residentes das áreas de risco, indicadas pelo Projeto Integrado para as

mesmas casas destinadas ao pessoal da Pedra do Rosário e a participação na

CAPI.

No Passo o remanejamento foi previsto para cerca de quinze casas que se

localizam na Rua Ocidental de Baixo e estão a menos de 15m da linha férrea. Assim

como os moradores da Pedra do Rosário, no Passo, os que estavam no grupo do

remanejamento do Projeto Integrado ressaltavam a valorização da sua moradia,

ainda que esta não se enquadrasse na norma de segurança. A proximidade com a

Cidade Alta, a qualidade das moradias e a memória dos acontecimentos vivenciados

no Passo entrecruzam lealdades, solidariedades e pertencimentos que colocam em

desvantagem a questão do remanejamento. Nas palavras de uma moradora do

Passo,

“Aqui não é ruim não, a não ser quando aparece uma intriga, mas comigo não tem porque eu já sou velha, então não tem nada de ruim para mim que estou dentro de casa. Agora para andar por aí, eu não sei não. Até lá nas casas novas estão carregando as portas, as torneiras, que se botou lavanderia, deviam não fazer isso. Não muraram ainda, não tem cerca, quiseram entregar ao povo, ninguém quis. Lourdes aí de seu Paulo diz que não quer, eu digo que se a gente se juntar tudinho vamos, porque são as mesmas caras, lá é seco, ventilado, o que eu tenho ciúme de lá é daquele vento. Lá são casas no beiço d’água que ele33 veio oferecer para trocar por esta, por causa da linha do trem que tem que ter 15 metros, ora 15 metros veio dar aqui (na sala), daqui para lá, ele disse, a senhora perde tudo, esses dois vãos tem que botar abaixo e eu faço lá do lado para quem tem terra e quem não tem ele disse que vai tudo para lá34, cada um recebe suas casas. Eu já fui nas casas olhei, dois quartos e sala, pequeno como o quê! Não cabe as coisas daqui. Eu disse na cara do homem: Meu senhor, não cabe as coisas daqui. Ele disse: Venda os troços, dê, faça o que quiser e receba a casa, ta bom?. Nós dissemos que recebia, [...] se for pra receber a gente recebe porque é melhor do que perder tudo. O terreno daqui eles não querem nem que eu fale que tenho este terreno que dizem que terreno não voga (Maria das Dores Neves, entrevista à autora, em dezembro de 2006).

33 O prefeito da cidade de Natal/RN em 2006, Carlos Eduardo Alves. 34 Para a área em que foram construídas casas para o remanejamento das famílias da Pedra do Rosário e do Passo.

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Maria das Dores Neves, dona Liu como é conhecida, sabe que é preciso fazer

uma escolha entre as alternativas da reurbanização, sair do Passo ou permanecer

nas novas casas construídas pelo projeto. Na sua opinião, a indenização não

garante que ela encontre uma nova residência onde não seja preciso desfazer-se de

uma casa e sua mobília, que pode ser a síntese de 30, 40 anos de trabalho. Dona

Liu sinaliza em seu depoimento que, sem alternativa, iria para as novas casas, mas

demarca a afetividade com a vizinhança quando deseja pelo menos continuar ao

lado das “mesmas caras”.

Há uma negociação em curso, estabelecida entre o poder público e a

REFFSA, que pretende reduzir a distância obrigatória da linha do trem de 15m para

10m. Caso seja aprovada, a proposta garante a permanência dos moradores do

Passo que se encontram na previsão do remanejamento.

A outra ação que se destaca no Passo, voltada para a idéia de “integração”, é

a atuação da CAPI. Gilberto Ferreira da Silva, morador do Passo há 55 anos, será

candidato à diretoria da Associação de Moradores, resultado do trabalho da CAPI.

Como nos relatou em entrevista, tem-se empenhado na integração dos pedaços, por

perceber que é necessária a união entre as associações, para o Passo da Pátria

atrair mais investimentos que incidam no desenvolvimento da comunidade. Na sua

compreensão:

“nós estamos quase acabando com esta rivalidade. A Pedra do Rosário está sendo desapropriada, a maioria está indo morar no Passo, nas casas novas que estão recebendo e a rivalidade entre as comunidades está acabando, porque a gente está unificando a comunidade. Estamos pleiteando uma eleição aqui na comunidade[...] a gente está unificando as três comunidades: o Passo da Pátria, o Areado e o Pantanal. [...] Eu acho que ninguém hoje quer ser discriminado, mesmo que a pessoa seja, ela não quer ser, então a gente dizia que veio discutir e essa questão de briga deixa lá fora, para outro canto. Vamos discutir o que é melhor para a comunidade que está precisando de melhorias, não de brigas. Então o que nós estamos fazendo é interessante. Tem pessoas na reunião que dizem que não entende porque o povo não está brigando. Simplesmente nós estamos respeitando cada um na sua qualidade” (Gilberto Ferreira da Silva, entrevista à autora, em agosto de 2006).

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Gilberto é uma das lideranças que está convencida das positividades da

integração. Organizados num único bloco, também podem aumentar o poder de

barganha junto ao projeto, para garantir a participação efetiva na implementação das

ações. No início da formação da CAPI, as reuniões entre os membros eram

permeadas por conflitos que reproduziam a divisão das comunidades. Ao

exercitarem o diálogo em nome dos “benefícios” para a comunidade, os moradores

do Passo consolidaram sua interlocução com os demais pedaços.

No Areado, dentre as intervenções do poder público voltadas para a

“integração” destacam-se o remanejamento dos moradores das palafitas para o

Pantanal e a mudança na denominação do pedaço, que passa a ser constituído

oficialmente como pertencente ao Passo da Pátria. Para Carlos Silva:

“ Desde o início do ano passado, quando a urbanização foi levada a sério, eles tomaram a decisão de que o espaço todo seria Passo da Pátria e não tão dividido como era antigamente. Para quem não mora aqui, tudo é o Passo da Pátria, mas para os moradores não. São divisões - Areado, Passo, Pedra do Rosário, Pantanal [...]. Se você disser que mora no Passo da Pátria as pessoas continuam com medo, realmente o bairro conviveu muitos momentos de violência e deixou todos a temer, mas quem mora aqui ainda é discriminado. (Carlos da Silva Ferreira, entrevista a autora em Fevereiro de 2007).

Mesmo depois da atuação do poder público, quando o Areado é englobado no

Passo da Pátria, percebe-se que os moradores rejeitam a nova classificação. Em

vez de criar maior representatividade acaba por desconsiderar as representações

sócio-espaciais dos próprios moradores. Além disso, a “integração” não desconstruiu

a desqualificação dos moradores dessas áreas e de seus investimentos nos

espaços urbanos de moradia.

No Pantanal, as intervenções urbanísticas ligaram este pedaço aos demais,

quando realizou a cobertura do Canal do Baldo. Além disso, é do Pantanal o maior

número de moradores atuando nos trabalhos da CAPI. Ainda assim, ao avaliar a

“integração” promovida pelo Projeto Integrado, os moradores consideram que ainda

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há resistência à unificação dos quatro pedaços. Apesar de concordar com a

“integração”, Oliveira Barbosa, morador do Pantanal, fala da sua percepção sobre a

construção de um bairro unificado:

“ A CAPI está querendo agora fazer eleição para o conselho e boa parte da comunidade ainda não aceita que seja uma comunidade só. Ainda querem que sejam um presidente aqui e outro lá[...]. Até hoje a maioria das lideranças não concordam com esta união. Eles fizeram um plebiscito, era para ser consultado no mínimo cinqüenta por cento mais um, mas foram consultadas 330 pessoas, quase 12% do Passo da Pátria. Entre estas, mais de 70% foram contrárias. [...] Eu acho que deve haver a integração realmente, porque hoje está mudado, já há organização por todos os lados, acabou-se a questão de favelas, não existe mais palafitas, nem casas de taipa, quando já existe tudo casa de alvenaria pode ser considerado como uma rua, mas o nome favela é uma coisa que não acaba nunca. O nome fica sempre. Então eu concordo que seja uma comunidade só, já que não existe mais a barreira do canal, mas a gente deve respeitar a opinião do povo, se a maioria acha que deve continuar a divisão, prevalece a maioria, mesmo a prefeitura querendo, se a comunidade não quiser, não tem como. (Oliveira Pedro Barbosa, entrevista à autora, em Agosto de 2006).

Neste sentido, existe uma série de práticas sociais que nos possibilitam

afirmar que pensar a formação de um Bairro pautado pela idéia de homogeneidade

é insustentável, tendo em vista as diferentes distribuições de espaços e as relações

que moradores, visitantes, trabalhadores estabelecem, formando grupos, redes,

sistemas de trocas e pontos de encontro em contextos variados.

A existência de espaços diferenciados no Passo da Pátria configura um

repertório de significantes que guardam a história, a memória e a relação dos

moradores com o pedaço. O poder simbólico da organização destes ordenamentos

sócio-espaciais pode ser expresso pela resistência de seus moradores às ações de

integração.

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A implementação de uma política pública de urbanização no Passo da

Pátria, a partir de 2002, através do Projeto Integrado do Passo da Pátria,

expressa a intencionalidade do poder público local em solucionar um dos

aspectos do crescimento urbano de Natal/RN, ou seja, o aumento da

favelização.

O que se constata é que, nas formulações e proposições do Projeto

Integrado está prevista a participação dos moradores na implementação das

ações, porém é possível perceber os limites desta participação, quando

analisamos o alcance da idéia de “integração” e das ações de remoção

presentes no Projeto. A participação dos moradores foi secundária, tratou-se

muito mais de serem convocados às reuniões para conhecer o Projeto

elaborado pelo poder público local, a partir do diagnóstico social do complexo

favelar do Passo da Pátria e muito menos para construí-lo, expressando suas

formas de sociabilidade, estilos de vida, conflitos, etc, fazendo valer seus

interesses quanto ao desenvolvimento de sua localidade.

A importância da diferenciação entre os pedaços encontra-se no fato de

sua configuração, enquanto área de moradia, estar interligada com aspectos

históricos, identitários, econômicos, ecológicos, entre outros. Em Pedra do

Rosário temos os moradores mais antigos. Sob a ótica destes moradores, este

é também o pedaço mais valorizado, por estar interligado à cidade, através do

ancoradouro da Pedra do Rosário e por ser considerado menos violento.

No Passo, segundo pedaço a ser ocupado para fins de moradia, alguns

moradores possuem relações de parentesco com os da Pedra do Rosário. Isto

contribui para aproximações entre a população dos dois pedaços. O Passo é

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bastante valorizado pelos moradores, por ter sido importante na vida comercial

e cultural de Natal/RN, enquanto funcionaram o Porto e a Feira.

O Areado, no início, formado por pessoas vindas de outras “periferias”

da cidade, apresenta atualmente laços comunitários entre a sua população. A

Biblioteca Comunitária José Gonçalves, o Campo São Francisco e a quadra de

esportes configuram-se como equipamentos coletivos fundamentais para esta

coesão social, na medida em que dão suporte para a sociabilidade pautada nos

vínculos de parentesco, amizade e vizinhança.

O Pantanal apresenta formação mais recente. Até o início da

implementação do Projeto Integrado do Passo da Pátria, em 2002, era o

pedaço menos valorizado e mais estigmatizado pelos demais, representado

como um lugar com muita sujeira, devido aos problemas sócio-ambientais

provocados pela passagem de córregos e do Canal do Baldo, os quais

depositam no Rio Potengi esgotos não tratados. A separação física que o

Canal do Baldo representava para o Pantanal, também contribuiu para o

distanciamento sócio-espacial entre os pedaços.

Quando os moradores da Pedra do Rosário e do Passo, os quais tinham

suas residências localizadas muito próximo à linha férrea ou ao Rio Potengi,

portanto numa área considerada de risco, por órgãos e instituições públicas,

recusaram-se a ser removidos para casas construídas no Areado, pelo poder

público, deixaram clara a demarcação que supõe, não só uma referência

espacial, mas também o sentido de pertencimento que valoriza cada pedaço do

Passo da Pátria, de maneira diferenciada.

A intervenção do poder público local no Passo da Pátria considera as

diferentes formas de uso e apropriação dos espaços, como mobilizadoras de

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conflitos sociais e entraves ao desenvolvimento local. Esta visão dos agentes

do poder público não identifica as diferentes situações da dinâmica cultural e

da sociabilidade estabelecida nos espaços do Passo da Pátria, as quais

constituem elementos importantes da vida social e fundamentais para

impulsionar processos de desenvolvimento socialmente justos.

Ainda que a visão homogeneizadora do poder público prevaleça no

processo de urbanização do Passo da Pátria, a intervenção da Prefeitura, ao

construir novas moradias para as famílias residentes de palafitas ou barracos,

ao propiciar melhorias urbanas e equipamentos coletivos faz com que a

população dos quatro pedaços avalie positivamente esta intervenção. Ao

mesmo tempo, valorizam negativamente a idéia de integração e remoção, as

quais, para os mesmos, desconstrói tempos, experiências e narrativas que se

expressam nas suas relações com os espaços em que vivem.

Neste sentido, para que ocorra efetividade nas ações que visam

solucionar os problemas da ocupação urbana no Passo da Pátria, é

fundamental o reconhecimento, por parte do poder público local, das relações

que se estabelecem entre os moradores, pelo manejo de símbolos e códigos,

os quais determinam cada espaço como um ponto distinto de referências

identitárias.

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