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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA Flávia Ferreira Lopes da Costa CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA Natal RN 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · samba são pressionadas a se afirmar e mesmo a redefinir suas identidades culturais. Considerando essa nova reordenação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

Flávia Ferreira Lopes da Costa

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO:

UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Natal ‒ RN

2018

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Flávia Ferreira Lopes da Costa

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO:

UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL),

da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como exigência parcial para a obtenção do

título de Mestre em Estudos da Linguagem na

área de concentração Linguística Aplicada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra

de Faria

Natal ‒ RN

2018

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Flávia Ferreira Lopes da Costa

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-

EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL),

da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como exigência parcial para a obtenção do

título de Mestre em Estudos da Linguagem e

aprovada pela seguinte banca examinadora:

_________________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria (Orientadora − Presidente)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Gilvando Alves de Oliveira (Examinador Externo)

Instituto Federal do Rio Grande do Norte

_________________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves (Examinadora Interna)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Natal − RN

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AGRADECIMENTOS

Minha gratidão absoluta a Deus, por me dar força, saúde e energia para concluir esta

pesquisa sem fraquejar ante as dificuldades de percurso.

Ao meu marido, companheiro de todas as horas, que vivenciou comigo todo este

processo, por sua paciência e compreensão plena neste momento de travessia.

À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria, exemplar profissional,

que, em sua generosidade ímpar, me orientou com dedicação e competência intelectual, tornando

bem mais fácil palmear o caminho.

À Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves, por acolher-me em seu grupo de estudos (aos

sábados), dando-me a oportunidade de partilhar saberes e refletir melhor sobre meu objeto de

estudo.

À Prof.ª Dr.ª Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, que se fez presente, neste estudo,

com sua inesgotável sapiência sobre o Círculo de Bakhtin.

A Anne Michelle, que, além de me “presentear” com sua preciosa amizade, me animou

na caminhada com sua alegria contagiante.

A Diana Mendonça, amiga e companheira de todas as horas, que, com sua constante

presença, seus bons papos regados a cafés e crepes, seus conselhos e suas reflexões sobre a vida

e sobre nossas pesquisas, imprimiu leveza à jornada.

A Magda Renata, que, com sua grande generosidade, me recebeu de braços abertos, desde

o início, sempre me aconselhando, orientando, motivando e, principalmente, sendo uma grande

e fiel amiga.

A minha família que, mesmo longe, sempre me apoiou e torceu para o meu sucesso.

Aos amigos: Cíntia, Artur e Marcelle, pela amizade construída neste feliz encontro, em

que partilhamos saberes e vidas.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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RESUMO

Há mais de um século, o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o grande público,

resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis mudanças em sua estrutura

organizacional. Assim como qualquer outra instituição cultural, as escolas de samba passam por

constantes transformações para se adequar à nova realidade e às exigências do público, que deseja

sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da proporção que a festa carnavalesca

tomou e de todas essas mudanças ocorridas, dentro e fora do universo do samba, as escolas de

samba são pressionadas a se afirmar e mesmo a redefinir suas identidades culturais.

Considerando essa nova reordenação no universo do samba, este estudo objetiva analisar como

as escolas de samba do Rio de Janeiro se constroem identitariamente a partir de seus sambas-

exaltação. Para tanto, assume-se, a princípio, o pressuposto de que essas canções, assim como os

hinos nacionais, são propagadoras ideológicas de modos de pensar e constitutivas de identidades

da agremiação e da própria comunidade. Os sambas-exaltação, também conhecidos como hinos

de exaltação, são fundamentais no processo de construção e de afirmação da identidade dessas

instituições culturais. São gêneros discursivos que não só favorecem a elevação da autoestima da

comunidade participante mas também contribuem para desperta-lhe o sentimento de

pertencimento. A pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada, um campo teórico que

entende a linguagem como prática social e se ancora no modelo sócio-histórico, em que a

linguagem é entendida como prática discursiva (Círculo de Bakhtin). Ainda no campo teórico,

estabeleceu-se uma interconexão com os estudos culturais (Hall; Canclini; Bauman; Woodward),

considerando que a cultura constrói valores, produzindo diferenças em função de suas condições

de produção. As escolas de samba analisadas foram as três com o maior número de títulos até

2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo da Portela e Beija-Flor de Nilópolis.

No percurso investigativo, constatou-se que o processo de construção identitária das escolas de

samba é semelhante ao dos hinos nacionais. Constatou-se também que as escolas de samba

afirmam sua identidade por meio de sistemas representacionais, como a valorização de um

autêntico passado de glórias, a bandeira, as cores que as singularizam, as suas tradições e os seus

valores, o bairro/morro onde estão localizadas, um discurso de amor e devoção à “terra amada”

a ser assimilado e reproduzido pela comunidade, a sensação de felicidade, a identidade feminina,

a identidade religiosa, e a afirmação de seu status de lugar de samba, pelo qual querem ser

reconhecidas.

Palavras-Chave: Enunciado. Identidade cultural. Escolas de samba. Samba-exaltação. Signo

ideológico.

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ABSTRACT

For more than a century, samba schools parades keep surprising the audience, resisting to certain

requirements, to culture commercialization, and also facing the endless changes in their

organizational structure. Like any other cultural institution, they are in constant change to

adequate themselves to the new reality and needs of the audience who always want to be surprised

by a huge spectacle. Due to the high proportion that the carnival party has taken and to all these

changes inside and outside of the samba universe, samba schools are impelled to reaffirm or even

change their cultural identities. In this context, this study aims to analyze how samba schools in

Rio de Janeiro have their identities built upon representations contained in their sambas-exaltação

– also known as anthems of exaltation. We start out with the premise that these songs are

ideological propagators of ways of thinking and constitutive of the identities of the institution

and of the community itself. Sambas-exaltação are constitutive of the construction and of the

affirmation of the identities of these cultural institutions. They are discursive genres that act upon

building up the community’s self-esteem and they develop a feeling of belonging. This study is

situated within the area of Applied Linguistics, a theoretical field that understands language as a

social practice, and it is based on a social and historical model of language, with language

construed as a discourse practice (Circle of Bakhtin). It also presents an interface with cultural

studies (Hall, Canclini, Bauman, Woodward), taking into account the fact that culture builds up

values and brings forth differences in respect of the conditions under which such values and

differences are produced. Three top samba schools were analyzed according to their number of

titles up to the year of 2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo de Nilópolis

e Beija-Flor de Nilópolis. Analyses indicate that the process of identity construction of samba

schools is similar to the one found in national anthems. Samba schools reaffirm their identities

through symbolic values: an authentic past of glories; flags and school colors; traditions and

values; the environment or the school neighborhood; words of love and devotion for the ‘beloved

land’ that the community must develop for the school; happiness; female identity; religious

identity; and the place of samba.

Key words: Utterance. Cultural identity. Samba schools. Samba-exaltação. Ideological sign.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ……...……..………...…...………….. 92

Figura 2 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ………………….…...………..…….…93

Figura 3 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ...…...…..…………...….…….....…… 93

Figura 4 ‒ Águia da Portela …………………………………………....……………………105

Figura 5 ‒ Pomba do Espírito Santo …………………………….………………..……..…106

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SUMÁRIO

1 ENSAIO TÉCNICO: As escolas de samba e os desafios do mundo pós-moderno ...........20

2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL ...........................................................................................26

2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE ............................................................ 26

2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO ...................................................... 33

2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: resistência e transgressão ................. 40

2.4 ENFIM, AS ESCOLAS DE SAMBA E O SAMBA: Dentro da ordem do permitido .........47

2.5 ESTADO DA ARTE ........................................................................................................... 55

2.5.1 Identidades de Escolas de Samba .................................................................................. 56

2.5.2 Identidades de Comunidades, favelas e cidades ...........................................................61

2.5.3 As Festas populares do Rio de Janeiro e o surgimento das escolas de samba ...........64

2.5.4. Sambas-exaltação e hinos institucionais ...,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,......................................65

2.5.5 Gênero samba em busca de representações identitárias .............................................68

3 SEGUNDO ENSAIO OFICIAL .............. .............................................................................71

3.1 CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA OS ESTUDOS DA

LINGUAGEM ............................................................................................................................ 71

3.2 SAMBA-EXALTAÇÃO EM DIALOGIA COM OS HINOS NACIONAIS...................... 75

4 OUTROS ENREDOS: CORTEJO METODOLÓGICO ...................................................87

4.1 A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA

QUALITATIVA-INTERPRETATIVISTA ............................................................................... 87

4.2 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS ........................................................................ .91

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5 ABRINDO O DESFILE: EM BUSCA DE IDENTIDADES ............................................. 96

5.1 ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SAMBAS-EXALTAÇÃO..............................................96

5.1.1 Grêmio Recreativo da Portela.........................................................................................96

5.1.1.1 Samba-exaltação Hino da Portela .............................................................................100

5.1.1.2 Samba-exaltação Portela na Avenida .......................................................................102

5.1.2 Estação Primeira de Mangueira...................................................................................107

5.1.2.1 Samba-exaltação Exaltação à Mangueira ................................................................109

5.1.3 Beija-flor de Nilópolis....................................................................................................111

5.1.3.1 Samba-exaltação A deusa da passarela ....................................................................112

5.1.3.2 Samba-exaltação Eu sou de Nilópolis .......................................................................114

5.1.3.3 Samba exaltação A soberana .....................................................................................114

5.2 DIALOGANDO COM AS IDENTIDADES .......................................................................117

6 APURAÇÃO FINAL .......................................................................................................... 122

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 126

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Carnavalia ‒ Tribalistas

Vem pra minha ala

Que hoje a nossa escola vai desfilar

Vem fazer história

Que hoje é dia de glória nesse lugar

Vem comemorar [...]

Vamos pra avenida

Desfilar a vida, carnavalizar

A Portela tem Mocidade

Imperatriz

No Império tem

Uma vila tão feliz

Beija-Flor vem ver

A porta-bandeira

Na Mangueira tem morena da Tradição

Sinto a batucada se aproximar

Estou ensaiando para te tocar

Repique tocou, o surdo escutou

E o meu corasamborim

Cuíca gemeu

Será que era eu

Quando ela passou por mim [..]

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1 ENSAIO TÉCNICO: AS ESCOLAS DE SAMBA E OS DESAFIOS DO MUNDO

PÓS-MODERNO

Como carioca, antiga moradora do bairro de Ramos, zona norte da cidade do Rio

de Janeiro, o universo do samba sempre esteve presente na minha vida, seja frequentando

os ensaios na quadra das escolas de samba, seja participando das feijoadas ou até mesmo

assistindo aos desfiles pela televisão. Apesar de não ter nascido dentro do que poderíamos

considerar como uma comunidade do samba, mas sim em um grande bairro da zona norte

carioca, frequentar a quadra da escola Imperatriz Leopoldinense, localizada neste bairro,

afigurava-se-me uma oportunidade lúdica, principalmente, durante o período que

antecedia aos desfiles.

Desde essa época, recordo-me que o momento de entoação do hino da escola era,

para mim, o mais emocionante. Era lindo ver e ouvir a comunidade cantando o hino com

tanta emoção como se estivesse participando de um jogo da seleção brasileira ou de algum

outro momento cívico. O som da bateria, de fato, junto ao clamor do público participante,

sempre me causou arrepios. E assim se foi construindo toda a minha relação afetiva com

o samba e com as escolas de samba.

Depois de muitos anos morando fora da cidade do Rio de Janeiro, e distante desse

universo, já no último período da graduação, no curso de Letras, iniciei os estudos sobre

identidade cultural na disciplina Literatura Brasileira. A partir daí, despertada pela

experiência com o mundo das escolas de samba, resolvi mergulhar na pesquisa sobre a

construção da identidade de escolas de samba, dando a devida relevância a seus sambas-

exaltação. Esta abordagem foi impulsionada, também, pela recém-descoberta dos estudos

de análise discursiva, que se vieram conjugar à minha admiração e curiosidade pelo

mundo do samba1.

1 De acordo com Leopoldi (2010), a expressão mundo do samba diz respeito ao conjunto de

manifestações sociais e culturais que fazem parte dessa esfera de comunicação verbal.

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Ao ingressar no mestrado2, tive oportunidade de conhecer a concepção dialógica

da linguagem do Círculo de Bakhtin3, o que possibilitou olhar para meu objeto de estudo

com outras “lentes4”, fundamentais para melhor compreendê-lo.

Dito isto, sobre as escolas de samba, é importante recordar que, diferentemente do

passado, escolas de samba, hoje, institucionalizaram-se e se transformaram em um

importante empreendimento turístico e econômico para o Brasil. A partir do momento em

que o desfile passou a fazer parte de uma grande competição, a gerar visibilidade e lucros

às agremiações e às suas comunidades, novas escolas surgiram e a disputa ficou ainda

mais acirrada. O que era antes considerado um prazer, uma diversão para as comunidades,

deu lugar às constantes correrias, exigências e cumprimento de prazos para o desfile.

Há mais de um século o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o

grande público, resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis

mudanças em sua estrutura organizacional. Assim como qualquer outra instituição

cultural, está em constante transformação para se adequar à nova realidade e às exigências

do público que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da

proporção que a festa carnavalesca tomou e de todas essas transformações dentro e fora

do universo do samba, as escolas de samba são pressionadas a se afirmarem ou até

redefinirem suas identidades culturais.

Tudo isso acontece porque vivemos no tempo de uma sociedade fluida e

transitória (BAUMAN, 2001). E, nesse contexto de grandes incertezas, as identidades que

até então se consideravam estáveis, passaram a sofrer volições; não são fixas sequer no

interior de um mesmo grupo. Essa complexidade em que se transformou a vida moderna

“exige que assumamos diferentes identidades, mas essas identidades podem estar em

conflito”, vez que surgem em lugares de tensões “entre as expectativas e as normas

sociais” (WOODWARD, 2014, p. 32-33).

2 Grupo de pesquisa intitulado A construção identitária da cidade múltipla, coordenado pela Prof.ª Dr.ª

Marília Varella Bezerra de Faria, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, vinculado

ao grupo de pesquisa (no CNPq), Práticas Discursivas na Contemporaneidade. A pesquisadora integra

também, desde 2016, o Projeto de Extensão Ciclo de Estudos: diálogos com o círculo de Bakhtin, sob

a perspectiva da Linguística Aplicada, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves. 3 Nome dado ao grupo de intelectuais russos (Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N.

Medvedev) que, entre 1919 e 1929, reuniam-se regularmente, com o intuito de discutir sobre o

pensamento linguístico a partir de uma natureza filosófica. Juntos, desenvolveram um conjunto de obras

sobre os estudos dialógicos da linguagem (FARACO, 2009). 4 Termo usado por Moita Lopes (2014) ao tratar dos novos rumos para pesquisas em Linguística

Aplicada.

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Refletindo sobre essas questões e sobre os desafios enfrentados pelas escolas de

samba no atual contexto pós-moderno, fluido e transitório, não há como negar que, ao

transformarem-se numa grande instituição cultural, essas agremiações precisaram buscar

mecanismos para a afirmação de sua identidade e a consolidação de sua importância

dentro do universo do samba e, principalmente, dentro da própria comunidade onde estão

localizadas. A integração e o envolvimento da comunidade com a escola são

indispensáveis para que o desfile aconteça conforme a expectativa; afinal, seus

integrantes é que dão vida ao espetáculo sob as mais variadas formas, em especial por

meio de seu trabalho, muitas vezes, voluntário.

É muito comum as escolas de samba vincularem o nome da agremiação ao local

onde se encontram sediadas: morros, favelas ou bairros. Essa associação é uma

importante estratégia “para a sobrevivência e crescimento” dessas instituições culturais

(MATOS, 2005, p. 71). E ainda que atualmente incorporem outros frequentadores que

não pertencem à comunidade, continuam “reféns” de seus sambistas e de seus moradores;

“são estes os que ensaiam durante meses na bateria, carregam a bandeira da escola no

momento do desfile, frequentam a quadra da escola durante todo ano” (MATOS, 2005,

p. 71), e principalmente assumem sua identidade ao se irmanarem “patrioticamente” na

reprodução de seu hino, traduzido no seu samba-exaltação.

Em sua configuração de gênero discursivo, caracteriza-se pela exaltação das

qualidades da escola de referência e, tal como os hinos nacionais e os hinos de

agremiações futebolísticas, esse samba-exaltação, apesar de ter uma entoação diferente,

pode ser entendido como uma representação sonora da escola de samba, objetivando

construir e consolidar a identidade da instituição, desenvolver o sentimento de

pertencimento e elevar a autoestima da comunidade. Essas canções podem ser entendidas

como práticas discursivas que não somente disseminam mas também consolidam

identidades de uma forma mais ampla.

A entoação dos sambas-exaltação é parte dos acontecimentos que marcam os

desfiles das escolas de samba e também as disputas travadas entre as agremiações. Cada

uma dessas instituições culturais carrega, como signo ideológico, um ou mais hinos de

exaltação, uma bandeira representando as cores da escola “que podem ser reconhecidos

como transmissores de uma consciência partilhada” (MORAES, 2015, p. 75).

O discurso dos compositores opera como uma forma de afirmação da identidade

desses espaços e da própria escola. Nesse contexto, o samba-exaltação surge para reforçar

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a importância da escola de samba para a comunidade, atribuindo identidades múltiplas a

essa instituição, transmitindo valores e formas de ver a agremiação. O principal propósito

comunicativo desse gênero é fazer com que todos os participantes se sintam envolvidos

e assimilem o mesmo horizonte comum, de exaltar e contemplar a escola de samba com

a qual se identificam.

Como qualquer outro gênero, o samba-exaltação está diretamente ligado ao

contexto e à esfera de comunicação verbal de que se deriva e a seu projeto de dizer,

cumprindo sua funcionalidade e sua finalidade. Todas essas especificidades vão

determinar seu tema, seu estilo e sua estrutura composicional.

A entoação dos sambas-exaltação e as escolhas lexicais expressam a identidade

que se deseja atribuir e instituem uma forma de pensar. Dentro dessa comunidade

discursiva, que são as escolas de samba, há a concretização de valores adquiridos e

socialmente aceitos, que definem a seleção lexical. O samba-exaltação não pode,

portanto, ser analisado desvinculado de seu contexto de produção e de circulação. Uma

abordagem que desconsidere o social tornaria esse estudo pouco coerente com a proposta

teórica do Círculo de Bakhtin.

Muito embora o samba-exaltação tenha sido estudado e analisado sob os mais

variados prismas, apropriamo-nos, nesta pesquisa, da teoria do Círculo de Bakhtin, em

que a linguagem é compreendida a partir de sua relação com o contexto de produção e

circulação, seu caráter dialógico, valorado e responsivo. Nessa perspectiva teórica, os

gêneros surgem a partir de relações dialógicas que constituem os enunciados e sua

formação axiológica. Assim, a escolha pelo gênero samba-exaltação foi norteada pelo

fato de tais canções, assim como os hinos nacionais, serem propagadores ideológicos de

modos de pensar e constitutivos de identidades da agremiação e da própria comunidade.

Em se tratando de uma investigação sobre o uso da linguagem na relação com o

mundo da vida, numa visão não essencialista, e assumindo a pretensão de produzir

respostas satisfatórias à nossa proposição de estudo, nortearemos nosso percurso

investigativo pelas seguintes questões:

1. Quais identidades as escolas de samba constroem a partir dos seus sambas-

exaltação?

2. Que relações dialógicas essas identidades estabelecem entre si?

Para responder essas questões, traçamos os seguintes objetivos:

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avaliar como as identidades culturais das escolas de samba são construídas a partir

dos sambas-exaltação;

analisar as relações dialógicas entre esses discursos construídos pelas escolas de

samba em seus sambas-exaltação.

O trabalho tem como orientação teórica a concepção dialógica da linguagem do

Círculo de Bakhtin (2010, 2011, 2013, 2015, 2016, 2017), e os conceitos de identidade

sob a ótica dos estudos culturais contemporâneos (HALL, 2003, 2015; CANCLINI, 1997,

1999, 2015; BAUMAN, 2001, 2003, 2005, 2013; WOODWARD, 2014).

Metodologicamente, esta pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada (LA),

ancorada no paradigma qualitativo-interpretativista. Tal escolha justifica-se pelo fato de

analisarmos enunciados concretos, construídos por sujeitos reais, em uma sociedade real.

Não isolamos o objeto estudado da historicidade do acontecimento, que é parte

constituinte e constitutiva do todo do enunciado.

O texto encontra-se organizado em seis seções. Na primeira, intitulada Ensaio

Técnico: as escolas de samba e os do mundo pós-moderno, apresentamos uma breve

contextualização das escolas de sambas e dos desafios enfrentados por essas agremiações

dentro de um novo contexto pós-moderno; definimos o objeto de estudo desta pesquisa,

o problema de pesquisa e sua justificativa, as questões que norteiam o estudo e as escolhas

teórico-metodológicas que subsidiam nossa investigação.

Na segunda seção, Primeiro ensaio oficial, trataremos sobre o conceito de

identidade, a partir da visão dos estudos culturais contemporâneos de Hall (2015)

Canclini (1997, 2015), Bauman (2001, 2003, 2005, 2013) e Woodward (2014), e sobre o

conceito de cultura popular, apoiando-nos em Bakhtin (2013), Canclini (1999), Hall

(2003), entre outros autores. Abordaremos sobre as festas populares do Rio de Janeiro

como um movimento de resistência e transgressão, dialogando com os conceitos de

carnaval-carnavalização-riso-grotesco; o surgimento das escolas de samba como

afirmação da identidade dos espaços marginais da sociedade carioca até figurar como

símbolo da cultura nacional e entrar na ordem do permitido. Por fim, entrecruzaremos os

saberes de algumas pesquisas sobre o que até então já foi dito acerca do nosso objeto e

com outros que dialogam com o estudo em causa.

Na terceira seção, Segundo ensaio oficial, apresentamos a concepção dialógica da

linguagem bakhtiniana (Círculo de Bakhtin), a noção de alteridade, do signo ideológico

e dos gêneros do discurso, em que se ancora o presente estudo. É ainda nesta seção que

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discorremos sobre o gênero samba-exaltação e sua dialogia com outros enunciados

concretos.

Na quarta seção, Outros Enredos: cortejo metodológico, definimos a

metodologia, delineando o procedimento de análise dos dados, justificamos também a

inserção desta pesquisa na área da Linguística Aplicada, e damos a conhecer os sujeitos

participantes da pesquisa e o processo de investigação pertinente a este tipo de pesquisa.

Na quinta seção, Abrindo o desfile: em busca de identidades, procedemos à análise

dos sambas-exaltação selecionados e, retomando os teóricos apresentados nas seções

anteriores, realizaremos uma análise dos posicionamentos identitários dos sujeitos

partícipes deste universo cultural, ideológico e multifacetado de comunidades concretas

da parte marginal carioca. Aqui, a música, compreendida como linguagem, ganha

significado no interior de uma dada cultura.

Na sexta e última seção, Apuração final, discutiremos os resultados obtidos com

a realização da pesquisa, bem como sua importância para os estudos da linguagem.

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2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL

Nesta seção, visando compreender o processo de construção identitária das

escolas de samba em seus sambas-exaltação, num contexto pós-moderno, em que a

velocidade do tempo contribui para a construção de identidades cada vez mais instáveis,

ancoramo-nos em postulados teóricos dos Estudos Culturais contemporâneos.

Subsidiando essa abordagem adotamos o conceito de cultura popular, tomando como

referência contribuições de Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin

(2013), particularmente sobre carnaval-carnavalização. Ainda nessa seara, tratamos sobre

as festas populares do Rio de Janeiro que antecederam as escolas de samba, e que foram

fortemente coibidas pela polícia, sobressaindo-se, nesse contexto, como um fenômeno de

resistência e transgressão. Em arremate, procedemos a uma revisão de pesquisas que

dialogam com as discussões aqui empreendidas.

2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE

Vivemos em tempos de velocidade e mobilidade, de identidades fluidas e

transitórias. Essa aceleração do tempo que caracteriza a sociedade moderna exige táticas

de sobrevivência. Nessa mesma linha de raciocínio, num mundo globalizado, pertencer a

uma comunidade e estabelecer a diferença é uma forma de ser notado. É bem esse o

posicionamento assumido por Geraldi (2009, p. 4) quando assim se pronuncia:

a aceleração do tempo, a mobilidade num mundo globalizado pelas

novas tecnologias, e supostamente também pela economia, parece

trazer a pá de cal: as identidades com que nos definimos como

pertencentes a uma cultura, a uma nação, a um povo evaporam-se. O

sólido estaria se desmanchando no ar. Somos ‘trans’ ou ‘pós’ qualquer

coisa que, talvez, nunca tenhamos chegado a ser.

Abstraímos, desse pensamento, a compreensão de que uma identidade não é

sempre igual a si mesma, pois os sujeitos são, desde sempre, múltiplos, porque as vozes

que os constituem são de ordens diversas. Desvendamos, sob essa perspectiva, uma nova

forma de conceber as identidades, que estão constantemente em processo de

reconfiguração, em permanentes mudanças.

Faria (2007, p. 26), uma das estudiosas da identidade cultural, sublinha que

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27

a temática central dos estudos culturais contemporâneos contempla o

processo de formação das identidades culturais, baseado na

fragmentação e no deslocamento das identidades modernas. Estudam-

se as identidades de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia, de raça

e de nacionalidade, além de suas características, de suas implicações e

de suas prováveis consequências.

Indubitavelmente, a problemática das identidades culturais tornou-se uma

abordagem preferencial nos vários campos de produção acadêmica, quer no âmbito do

estudo das linguagens, quer no domínio das ciências sociais, e para além dessas áreas de

saberes. Tudo isso se justifica pelas atuais mudanças trazidas pela globalização que

causaram a chamada “crise de identidade” na sociedade moderna (HALL, 2015, p. 50).

De acordo com Hall (2015), essa “crise de identidade” de que padece a sociedade

moderna faz com que os sujeitos percam suas referências que até então eram consideradas

estáveis e inabaláveis. Todas essas transformações sociais, além de causarem uma crise

contemporânea da identidade, contribuem, ao mesmo tempo, para o “fortalecimento de

identidades locais ou para a produção de novas identidades” (HALL, 2015, p. 50). Na

visão do autor, apesar de a globalização parecer excluir as diferenças, ela caminha junto

a um projeto de (re)afirmação das identidades como forma de reação ao “racismo cultural

e de exclusão” (HALL, 2015, p. 50). Essas estratégias visam a um retorno às identidades

de origem. E vale ressalvar que, nesse processo, as antigas identidades não são excluídas;

elas caminham simultaneamente às novas identidades. Ou seja, ao mesmo tempo em que

surgem novas construções identitárias, a globalização contribui também para o

fortalecimento das antigas identidades como forma de resistência.

Em outras palavras, a globalização, além de contribuir para o surgimento de novas

identidades e para a manutenção das já existentes, cria o que Hall denominou efeito

“pluralizante” (HALL, 2015, p. 51) sobre as identidades. Isto é, produz-se uma variedade

de possibilidades e novas posições de identidades. Há, nessa “pluralidade”, algumas

identidades que buscam recuperar uma tradição, uma pureza que sentiram perdida. Já

outras aceitam que as identidades estão sujeitas a mudanças e, por isso, não são “puras”.

É o que Hall (2015, p. 51-52) chamou de movimento de contradição entre “Tradição e

Tradução”, e que se está tornando evidente num mundo globalizado, dinâmico e

transitório. Isso implica dizer que, paralelamente à globalização, existe um processo de

“revitalização de diferenças” (GERALDI, 2009, p. 4).

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E é nessa perspectiva que Hall trabalha o conceito de identidades múltiplas para

explicar o conceito de cultura num mundo globalizado. Em tempos de fluidez, de

transitoriedade, discutir identidade é refletir sobre os papéis desempenhados pelos

sujeitos nos dias atuais. O sujeito contemporâneo é cada vez mais instável, descentrado.

E nem poderia ser diferente; afinal, faz-se reflexo da sociedade em que vive, tão bem

definida por Hall (2015):

a sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo

unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de

mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o

desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está

constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si

mesma (HALL, 2015, p. 14, grifo do autor).

É justamente por ser dinâmica que a sociedade produz, ao mesmo tempo, uma

pluralidade de identidades, ou seja, diferentes “posições de sujeitos”. Por isso mesmo,

não podemos pensar a identidade como um conceito; tampouco como uma essência.

Os sujeitos são sensíveis; assim, à medida que há transformações no cenário

cultural em que estão inseridos, também sofrem mudanças e/ou ressignificações. Esse

conjunto de mudanças é constante e acontece em tempo acelerado. Em outras palavras, o

sujeito não possui uma identidade única, sempre fixa e estável; ela muda de acordo com

o papel que o sujeito desempenha. Sob essa perspectiva, “[...] a identidade é formada na

‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior

que é o ‘real’, mas esse é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos

culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2015, p. 11,

grifo do autor).

A discussão sobre identidade é aqui concebida como uma construção

sociocultural, visto que resulta da junção entre o social/coletivo e individual. Todas as

transformações que ocorrem no meio social provocam alterações no processo de

construção identitária, sempre nesse processo de reformulação. Ademais, trata-se de uma

construção, uma representação e não de uma verdade em essência.

Parece, pois, bem evidente o fato de que estudar identidades na linha dos Estudos

Culturais é compreender que essas construções ocorrem na interação e essa interação não

precisa ser necessariamente entre sujeitos; ocorre também entre os espaços em que estes

habitam e se relacionam. Conforme Woodward (2014, p. 8), “essas identidades adquirem

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sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são

representadas” (WOODWARD, 2014, p. 8).

Se, por um lado, se enfatiza a importância crucial da identidade para o bem-estar

pessoal e para a ação coletiva, por outro, teoriza-se a identidade como algo fluido, em

construção, múltiplo, dinâmico e fragmentado (BAUMAN, 2003). Tal fato se explica

porque os sujeitos não se definem mais apenas como seres pertencentes a uma única

identidade. A sociedade moderna, por ser dinâmica, produz uma variedade de identidades

que são contraditórias e estão em constantes processos de reconfiguração (HALL, 2015).

A ideia de identidade (comum a todos os sujeitos), sólida, firme e inabalável,

numa perspectiva essencialista, desconsidera os princípios éticos, sociais, culturais e

individuais. Logo, não deve ser pensada a partir do conceito de origem, associando os

sujeitos sempre a partir de características prefixadas e imaginárias. Esse tipo de

entendimento revela que, sendo a identidade uma construção discursiva, pode ser

facilmente manipulada.

A questão sobre identidade tem-se tornado um elemento central para agrupar

sujeitos em dois lados opostos e colocá-los numa relação de oposição entre o nós e os

outros. Essa oposição dá-se, em primeiro lugar, pelo compartilhamento de passado

comum e tradições; em segundo lugar, pelo reconhecimento dos mesmos valores. Em sua

gênese, esse jogo de oposição ocorre a partir do estabelecimento da diferença e se tem

tornado crucial na construção identitária de determinados grupos e nações. Trata-se de

uma forma de ser diferente, de singularizar-se; sobretudo, para obter vantagens em

relação aos outros grupos. Aqueles que gozam de determinada situação de prestígio

sentem-se em vantagem e subjugam o grupo do qual diferem, lançando mão de estratégias

para denigrir e fragilizar o outro, ou até mesmo dominá-lo para sentir-se superior e pregar

valores de natureza racionalista, como prática para manter a ordem vigente.

Tudo isso é revelador de que a identidade é uma questão relacional: uma

identidade depende da outra para existir. Ela é marcada por meio de sistemas simbólicos

que envolvem o estabelecimento da distinção, excluindo-se aquilo que ela não é. Os

grupos buscam afirmar suas identidades reivindicando um passado, um antecedente

histórico; e ao reafirmar “uma verdade histórica podem nos dizer mais sobre a nova

posição-sujeito”. Essa necessidade de afirmação pela reivindicação de um passado

“sugere um momento de crise e não, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido

e fixo na construção da identidade [...]” (WOODWARD, 2014, p.11).

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As reflexões precedentes levam-nos a compreender as perspectivas essencialista

e não essencialista sobre identidade. Justamente pelo fato de as identidades não serem

sempre as mesmas, elas são múltiplas e inacabadas; estão sempre em processo de

reconfiguração. Na visão essencialista, excluem-se as diferenças. Já na visão não-

essencialista, defendida por Hall (2015), a identidade não limita o sujeito.

Os sistemas simbólicos de representação identitária estão intrinsecamente

relacionados à cultura e ao significado, ou seja, para compreendermos seus significados,

precisamos entender quais são as posições-de-sujeito produzidas “e como nós, como

sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior” (WOODWARD, 2014, p. 17). Em

outras palavras, as representações identitárias incluem

[...] as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos

quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito.

É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos

sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive

sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos

e aquilo no qual podemos nos tornar (WOODWARD, 2014, p. 17-18).

A construção identitária também é uma relação de poder, facilmente manipulada.

A mídia e as instituições culturais, por exemplo, nos dizem quais posições-de-sujeito

devemos assumir. Isso porque produzem sistemas simbólicos não arbitrários e que podem

ser facilmente identificados como reais. Como observa Silva (2000, p. 81), “a identidade

e a diferença não são, nunca, inocentes”. É pelo processo de diferenciação, de inclusão e

exclusão, quem pertence e quem não pertence, que se fazem presentes as relações de

poder. São demarcações simbólicas responsáveis em definir quem somos nós e quem é o

“outro”.

Anderson (1989, p. 14) defende a ideia de que a identidade de uma nação é uma

“comunidade imaginada”. Isso porque manipula símbolos que podem ser reconhecidos

facilmente por suas especificidades culturais, fazendo com que os sujeitos tenham coisas

em comum e que se “imaginem” pertencentes a essa nação. Sobre essa questão, Pacheco

(2004, p. 3-4) esclarece:

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para haver essa “consciência” de nação, esse sentimento de pertencer a

um mesmo grupo, a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma

identificação nacional, alguns dispositivos são acionados para

representar a nação e produzir significados. Nesse sentido, a língua, a

raça e a história enquanto narrativas homogeneizadoras foram/são

essenciais para a constituição das identidades nacionais, para a

constituição das culturas nacionais e para a formação de uma

consciência nacional, essas narrativas possibilitaram/possibilitam a

internalização da ideia de pertencimento nacional, de nacionalidade.

Para tal alcance, o Estado-nação vale-se da sustentação de determinadas

características que visam uniformizar e unificar modos de ser. A distinção cultural e

identitária é uma das estratégias para unificar e criar um sentimento patriótico, de

pertencimento. Os discursos da cultura nacional são modos de construir sentidos com os

quais os indivíduos se identificam, sentem-se pertencentes àquela nação.

No entanto, não é mais possível pensar uma identidade nacional como uma

construção homogênea. Nas palavras de Faria (2007, p. 42-43), isso ganha ainda mais

clareza:

a história moderna sinaliza para algo que poderosamente desloca as

identidades culturais – a globalização, que embora não seja um

fenômeno recente, tem uma característica importante para a aceleração

dos processos globais – a compressão espaço-tempo. Há no interior

desse processo, no entanto, dois movimentos opostos – enquanto um

reforça a autonomia nacional, o outro nos torna mais globalizados.

Esses movimentos simultâneos (de hegemonia e resistência) fazem com

que algumas identidades nacionais se desintegrem, dando lugar a novas

identidades; com que outras permaneçam inalteradas, como forma de

resistir bravamente à globalização, e tantas mais se remodelem e surjam

como identidades híbridas.

Como vimos, todas essas transformações têm como pano de fundo a globalização.

Aliás, desde então, tudo em nossa vida tem sido moldado por essa tendência. As

alterações sociais daí resultantes ocorrem de forma acelerada e se estendem a vários

campos, repercutindo nomeadamente na conceitualização da identidade e,

consequentemente, no sentimento de pertença a uma dada comunidade.

Com a globalização e as rápidas mudanças no mundo atual, as comunidades, que

pareciam se sentir plenamente seguras por laços de identificação, estão perdendo terreno

e se desestabilizando. O termo comunidade é também muitas vezes ligado ao sentido de

homogeneidade, um lugar onde grupos vivem de forma integrada, compartilham

objetivos em comum, os mesmos costumes, as mesmas tradições e estão ligados ao espaço

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que ocupam (PAVÃO, 2009). Para Hobsbawm (1984), a comunidade seria o significado

moderno para nação, pois existe a ideia de compartilharem os mesmos valores.

No julgamento de Bauman (2003, p. 17), fazer parte de uma comunidade, “ter

uma comunidade” ou “estar numa comunidade” é “a busca por segurança no mundo

atual”. Mas essa comunidade que oferece tal sensação de segurança é uma “comunidade

imaginada”, uma “comunidade dos sonhos”. A real comunidade exige lealdade e é

homogeneizante. Isso porque a “distinção” significa “divisão entre nós e eles”. Na

comunidade dos sonhos, há uma relação de entendimento que é “natural” e “tácito”. A

partir do momento em que essa comunidade “passa a ser objeto de contemplação”,

quando fala de si mesma, exalta seus valores e virtudes, essa “comunidade não existe

mais” (BAUMAN, 2003, p. 10-17).

Bauman (2005) denomina esse novo cenário de grandes incertezas e transições de

“modernidade líquida”. Para o sociólogo, a globalização constitui-se com uma “grande

transformação” na vida quotidiana e nas relações humanas. As comunidades surgem

nesse contexto como abrigo aos efeitos trazidos pela globalização. Com os grandes

“deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos”, pertencer e fazer parte de uma

comunidade seria uma das “tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar”

(BAUMAN, 2003, p. 31).

Levando em consideração todas essas questões aqui levantadas, o estudo sobre as

identidades torna-se cada vez mais relevante. Ademais, as atuais pesquisas em LA nos

conduzem a produzir novas respostas para os problemas que se colocam na pós-

modernidade, de forma não excludente, não homogeneizante, ou essencialista como até

então se teorizava.

Como dissemos, esta pesquisa pretende analisar sambas de exaltação e buscar as

representações identitárias das escolas de samba expressas nesse gênero discursivo. Se

analisarmos essa instituição sem considerar todas as mudanças e demandas trazidas pela

pós-modernidade, estaremos recaindo numa visão essencialista, ou seja, de que sua

identidade cultural não sofreu influências e permanece fixa no tempo e no espaço.

Nessa perspectiva, com vistas a melhor conhecer nosso objeto de estudo, as seções

a seguir pretendem discutir sobre o conceito de cultura popular e também sobre as festas

carnavalescas da cidade do Rio de Janeiro como forma de compreender os significados

imbricados no surgimento dessas manifestações.

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2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO

Como nosso objetivo é analisar os sambas-exaltação de escolas de samba do Rio

de Janeiro ‒ uma manifestação cultural de origem popular ‒, e considerando o fato de que

a compreensão que se tem de cultura popular é relativamente ampla, vez que um mesmo

conceito passeia sob olhares distintos e perspectivas diversas, faz-se necessário delimitar

o que podemos definir como cultura popular. Sendo assim, apresentaremos, nesta seção,

algumas concepções que vão auxiliar na compreensão desse conceito tão polissêmico.

Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin (2013), mais particularmente,

favorecerão, com suas ideias, esta abordagem.

No romantismo, a cultura popular era sinônimo de tradição e preservação do

passado. De acordo com Chauí (1986), foi a partir desse período que surgiram os

primeiros traços definidores da cultura popular: o primitivismo (preservação de

tradições), o comunitarismo (o popular nunca é algo individual) e o purismo (preservação

da pureza, não se contaminando pelos hábitos urbanos). Nesse primeiro momento, a

cultura popular é, portanto, associada a uma visão de povo e de folclore.

Outra concepção bastante explorada foi a relação entre o nacional e o popular, que

se colocou historicamente como uma discussão central no Brasil. Nessa abordagem, o

popular é compreendido como tradição e preservação folclórica, ou seja, “[...] o popular

é visto como objeto que deve ser conservado em museus, livros e casas de cultura”

(ORTIZ, 2006, p. 160).

Nesse contexto, até meados do século XVII, ainda não se estabelecia uma

distinção entre cultura popular e de elite. De acordo com Ortiz (2006), a elite frequentava

as mesmas religiões e os jogos realizados pela classe subalterna. No entanto, aos poucos,

a fronteira entre as duas culturas passou a ser bem delimitada e se instaurou um grande

processo de repressão sobre as manifestações populares, como veremos posteriormente.

Contrário a esse pensamento, surge uma outra perspectiva, deslocada para uma

discussão de natureza mais política, afastando-se do viés romântico, cujo interesse era

estabelecer a hegemonia burguesa. Os bens culturais produzidos pela elite passam a ser

valorizados em detrimento daqueles derivados da cultura tradicional e popular. Para Ortiz

(2006), esses ideais são impulsionados pela implementação de uma nova política e um

novo projeto de centralização do Estado e, principalmente, pela preocupação com práticas

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geradoras de manifestações, tumultos e protestos, como o carnaval, entre outras

manifestações de cunho popular.

Em meados do século XIX, surge uma nova perspectiva de cultura apoiada num

projeto iluminista em que se rompe com a religião, e a ciência passa a ter um papel central.

Nesse contexto atual, há uma grande corrida rumo ao progresso, que “afaga” a todos com

seus grandes avanços tecnológicos, com meios de comunicação mais eficazes e

transportes mais modernos.

A partir da revolução industrial, a discussão sobre cultura passa a ser direcionada

por outra vertente ideológica. Com o aparecimento da teoria marxista, a questão central

não era mais o povo, numa visão de "povo como plebe explorada, dominada e excluída

(CHAUÍ, 1986, p. 21)”, mas a luta de classe. Aliada a esse pensamento marxista, surge,

nos anos 50, outra concepção fundamentada por estudiosos americanos em ciências

sociais: o de sociedade de massa e cultura de massa.

Ainda nesse período de grande efervescência e de “vários matizes ideológicos”

(ORTIZ, 2006, p. 162), ocorre o rompimento dessa perspectiva tradicionalista que

concebia o popular do ponto de vista folclórico. Com o desenvolvimento da cultura

popular há, um redimensionamento daquilo que até então era compreendido como cultura

popular. A indústria passou a transformar os produtos culturais em bens de consumo.

É em função dessa abordagem de cultura de massa e de sociedade de massa que

passa a separar e distinguir os artefatos culturais em "desejáveis e indesejáveis". Ter

cultura, portanto, significava ter um gosto refinado, apreciar o que era considerado

"grande arte", reservado à elite cultural, como, por exemplo, frequentar óperas e

concertos. Os bens voltados para o grande público, para a sociedade de massa, como

programas de TV, eram vistos como indesejáveis "para um homem ou mulher de cultura"

(BAUMAN, 2013, p. 7). E muito embora esse pensamento ainda persista entre muitos

sujeitos, Bauman (2013) refuta a ideia de se entender cultura a partir do estabelecimento

hierárquico entre bens culturais que pertencem à elite de um povo e aqueles que estão

abaixo dela. A sociedade não é mais a mesma e, nesse contexto de grandes mudanças,

surge um novo sujeito que consome os artefatos culturais de "maneira onívora", ou seja,

consome um pouco de tudo. Não há mais um confronto entre o que é considerado de

massa e o que é considerado de elite.

Assim, com o crescimento da indústria cultural, o “popular se reveste de um outro

significado, e se identifica ao que é mais consumido, podendo-se inclusive estabelecer

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uma hierarquia de popularidade entre diversos produtos ofertados no mercado” (ORTIZ,

2006, p. 164).

Não parece mesmo restar qualquer dúvida quanto ao fato de que o conceito de

cultura popular sempre foi mal compreendido, e até tomado, muitas vezes, num sentido

genérico, “como uma expressão tradicional e subalterna, contrária ao erudito e assinalada

pelo moderno e hegemônico, colocada ao lado do folclore e da cultura de massa” (PAJEÚ,

2011, p. 114). Sob essa ótica, concebe-se a cultura a partir da marginalização da cultura

popular, usada como um mecanismo de distinção entre as classes sociais, “isto é, a classe

da elite versus a classe subalterna; a cultura popular versus cultura erudita” (PAJEÚ,

2011, p. 114), limitando, assim, toda a riqueza de significados que o domínio cultural

abarca.

Como vimos, a cultura não apenas representou uma relação de poder entre as

classes sociais mas também serviu para fins mercadológicos, sendo traduzida como objeto

de desejo e de consumo. Essa visão de cultura está fundamentada numa perspectiva

antropológica de que a cultura representava os valores, os costumes e a mentalidade do

povo.

De acordo com Canclini (1999), a cultura popular está inserida num processo de

muitas contradições entre moderno e tradicional; culto e popular; hegemônico e

subalterno. Apesar de hoje existir uma predileção pelo tradicionalismo que se combina

com o moderno, no que diz respeito à exaltação dessa tradição com vistas a perpetuar a

modernização, essa dicotomia colocada pelo autor ainda, de certo modo, persiste.

Em oposição a essas concepções, os atuais estudos orientam-nos a pensar o

conceito de cultura não como um conjunto de características e de costumes que

diferenciam uma sociedade da outra, mas como um “sistema de relações de sentido que

identifica diferenças, contrastes e comparações” (CANCLINI, 2015, p. 24). Essa

redefinição do conceito de cultura, ao invés de comparar culturas, deixa evidentes as

misturas e os mal-entendidos que se estabelecem entre os grupos. Para entender os grupos

sociais, é necessário descrever como se apropriam dos produtos materiais e simbólicos

alheios e os reinterpretam (CANCLINI, 2015). A cultura popular caracteriza-se pela

heterogeneidade, pelo hibridismo; portanto, hoje não deve mais ser entendida na mesma

visão apresentada pelos folcloristas e antropólogos.

Na esteira desse pensamento, existem outros tantos modos de compreender a

cultura. A concepção de Bakhtin (2013) surge como resposta a essas diversas vertentes.

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Como se sabe, o autor não restringiu seus estudos apenas à reflexão sobre a linguagem;

seu empreendimento visa a um campo mais vasto, como a cultura popular.

O autor mergulha no estudo da cultura popular ao analisar a obra de François

Rabelais no contexto da Idade Média e do Renascimento. A festa carnavalesca coloca-se,

nesse entendimento, como um dos elementos centrais em toda obra de Rabelais. Para

Bakhtin (2013), é impossível não recuperar essa cultura para compreender a obra literária.

A prosa não existe isolada da realidade e é nessa relação entre o autor e seu universo que

a cultura popular tem um papel preponderante. Ainda segundo o autor, o ponto “chave”

para mergulhar na obra rabelaisiana é a materialização de uma outra “visão de mundo, do

homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial,

exterior à igreja e ao Estado” (BAKHTIN, 2013, p. 4-5).

Os pilares desse universo da cultura cômica popular é o riso, o vocabulário, a festa,

a feira na praça pública, o banquete, a imagem grotesca, o baixo material e corporal. Para

compreender esse universo particular, o autor deixa claro que ele não é homogêneo, os

mundos culturais coexistem e um não predomina sobre a outro. O que distingue a cultura

popular da Idade Média ‒ em que o “riso ocupa o lugar de destaque” (BAKHTIN, 2013,

p. 23)” da cultura “oficial” é um conjunto de expressões comuns e de uma visão de mundo

como um “processo ambivalente, interiormente contraditório” (BAKHTIN, 2013, p. 23).

Como se pode constatar, o autor não trata da cultura popular como sendo

independente da cultura “oficial”. Vê-se, ao contrário, que ela só existe e só faz sentido

se compreendida em partilha. Assim sendo, a cultura popular coloca-se paralela a um

universo “oficial”, interligada à cultura de elite.

Consoante entende Bakhtin (2013, p. 122), o carnaval

[...] propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas

as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um

fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter

ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral,

apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de

épocas, povos e festejos.

Outra característica importante da cultura popular observada por Rabelais é o

tempo e o espaço, cronotopo5. No carnaval, ocorre um cronotopo diferente daquela

5 Conceito usado para Bakhtin por explicar o tempo e o espaço em que ocorre a festa carnavalesca e que

logo depois ele transporta para a obra literária.

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concepção de mundo medieval; trata-se de “uma nova forma de tempo e uma nova relação

entre o tempo e o espaço” (BAKHTIN, 2013, p. 315-316).

O conceito de carnavalização criado por Bakhtin (2013) surge a partir da

compreensão dos modelos do carnaval e da cultura popular na Idade Média e no

Renascimento. O carnaval diz respeito à festa propriamente dita, ao ritual carnavalesco.

Já a carnavalização é a inversão da ordem durante essa manifestação cultural.

Sobre tais concepções, Ponzio (2009, p. 172) assim elucida:

Bakhtin chama de ‘carnavalização’ da literatura a transposição da

linguagem do carnaval à linguagem literária, que se reflete em várias

formas simbólicas (ações de massa, gestos individuais, etc.), unificadas

pela visão do mundo que todas elas expressam. Entre essas duas

linguagens, o carnavalesco e o artístico-literário, produz-se uma relação

de afinidade que tem permitido historicamente, a passada da primeira

para a segunda, isto é, a transposição, a tradução da linguagem

carnavalesca para a linguagem da literatura.

Nesse sentido, a carnavalização deve ser pensada a partir da transposição da

linguagem carnavalesca para o universo literário, que, obviamente, não se restringe ao

caráter verbal da obra, mas a todo o conjunto de significados e expressões de gestos que

envolve o carnaval. Todos esses elementos exprimem uma visão de mundo, uma

cosmovisão carnavalesca; melhor dizendo, uma visão de mundo que atravessa esse

universo, que é o carnaval, entendido como os modos de conceber o mundo e

experimentá-lo.

Assim, para pensar a cultura popular e suas diversas manifestações, do ponto de

vista bakhtiniano, é preciso entender que suas contribuições surgem como resposta às

outras concepções. Para o autor, não existem limites definidos quando se trata de cultura

popular, como bem traduzem suas próprias palavras:

não se deve, porém, imaginar o domínio da cultura como uma entidade

espacial qualquer, que possui limites, mas que possui também um

território interior. Não há território interior no domínio cultural: ele está

inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo

lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemática da cultura

se estende aos átomos da vida cultural, como sobre fronteiras: nisso está

sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno,

torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre (BAKHTIN, 2013, p. 29).

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Essa concepção nos permite pensar a cultura entre fronteiras, numa relação de

troca, de aproximação. A cultura está em todos os lugares, está nos diversos grupos

sociais, nas comunidades e nas diversas esferas, sempre em diálogo, em embate e em

constante transformação. Portanto, não podemos falar de cultura no singular; não existe

um único signo para definir o popular, porque são distintos fenômenos ligados e atrelados

a ela. Essas variadas manifestações culturais se constituem nas relações dialógicas, nas

diversas esferas. E é justamente essa mistura, essas diferenças, essa pluralidade ‒ e como

se relacionam ‒ que interessa a Bakhtin.

Em consonância com o pensamento de Bakhtin sobre cultura popular, Hall (2003),

a partir de estudo realizado por Allon White, propõe pensar a relação entre cultura popular

e cultura hegemônica diferente da “metáfora clássica”, ou seja, mudar os velhos padrões

de pensar o conceito de cultura. Para o autor, não se deve dicotomizar cultura popular e

cultura “hegemônica”, colocando-as como opostas. Trata-se de problematizar essa

relação, mesmo porque

[...] o que é surpreendente e original a respeito do “carnavalesco” de

Bakhtin enquanto metáfora da transformação cultural e simbólica é que

esta não é simplesmente uma metáfora de inversão – que coloca o

“baixo” no lugar do “alto”, preservando a estrutura binária de divisão

entre os mesmos. No carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza

dessa distinção binária que é transgredida. O baixo invade o alto,

ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não

simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas

formas impuras e híbridas do “grotesco”; revelando a interdependência

do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e

ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas,

símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício

arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os

mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição

ou formação canônica, e o funcionamento de cada princípio hierárquico

de clausura cultural (HALL, 2003, p. 226).

De acordo com Hall, não é esse o processo de carnavalização sobre o qual Bakhtin

aborda; não se trata de uma metáfora da inversão: o alto e o baixo não desaparecem; as

duas culturas estão numa relação de poder. A carnavalização, para Bakhtin, é uma relação

de resistência e transgressão. A oposição está, nessa relação, na problematização do alto

e do baixo. Numa visão marxista, a lógica é a de que uma se opõe a outra, e uma vence a

outra, rompendo com o hibridismo.

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A cultura popular não surge a partir da cultura de elite e para se opor a ela. As

duas estão numa relação de troca; portanto, não há dicotomias rígidas entre elas. Colocá-

las em diálogo foge dessa lógica, coloca-as em relações semânticas. O “alto” e o “baixo”

existem, mas não é uma relação simples. A cultura do alto não apaga a do baixo. São de

ordem da ambivalência, do híbrido. A plurivalência e o dialógico permitem viabilizar essa

metáfora da transformação. A cultura popular e a cultura oficial estão numa relação de

alteridade, de transgressão, por isso o conceito de carnavalização. Para Bakhtin (2013),

durante um determinado período, nas festas, nas ruas, nas praças, as relações hegemônicas

são invertidas. O não oficial é considerado canônico e hegemônico, como se as outras

manifestações culturais não existissem.

No Brasil, a ideia de cultura e sociedade brasileira constituiu-se, durante muito

tempo, numa relação complexa. Algumas manifestações culturais passaram a ser usadas

como instrumento de poder entre as classes sociais e a refletir uma disputa/jogo entre

culturas consideradas hegemônicas e populares. Como já mencionamos na sessão

anterior, ao discutir sobre identidade e relação de poder, a classe dominante da sociedade

apodera-se de um conjunto de conhecimentos para exercer maior influência sobre as

outras classes sociais e manter um status de supremacia e vigência.

Vale ainda recordar que, durante os primeiros séculos de história brasileira, a

sociedade era basicamente constituída por senhores e escravos. Com a instauração da

República, seguida de um grande desenvolvimento no país, surgem, nesse novo contexto

socioeconômico, duas classes sociais distintas: a classe operária e a classe burguesa.

Desde o início, a elite brasileira cercou-se de bases jurídicas, religiosas e

científicas para subjugar a classe dominada, sobretudo os negros. Estes eram proibidos

de exercer seus direitos sociais e o desenvolvimento pleno da cidadania. As teorias raciais

do século XIX serviram para assegurar a superioridade da classe branca em relação às

classes representadas pelos não-brancos. A classe dominante, constituída por brancos,

colocava-se como raça superior e considerava os negros e os mestiços um atraso à

sociedade branca, rica e civilizada. Circunscrito nesse cenário, o Brasil vive um período

de branqueamento do tom da pele, assimilando unicamente os traços da cultura branca.

Esse processo contribuiu para aniquilar toda e qualquer autoestima do negro e sua

possível luta pelos direitos de igualdade, conformando-se ante os privilégios do branco e

sendo obrigado a aceitar a superioridade deste.

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A classe dominante fez uso de todo seu poder para afogar qualquer artefato

cultural negro, principalmente o samba e o candomblé que, por sua vez, eram

manifestações de resistência a toda maneira de exclusão e segregação de sua cultura.

Nessa perspectiva, não podemos falar de cultura popular sem falar de resistência, pelo

menos em relação aos séculos anteriores. E cabendo uma melhor verticalização dessa

temática, reservamos à próxima seção tal abordagem, em que contemplaremos os

processos de resistência e transgressão da cultura popular, tendo como foco a cidade do

Rio de Janeiro.

2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: RESISTÊNCIA E

TRANSGRESSÃO

Vimos, na seção anterior, que, ao estudar as festas populares na Idade Média e no

Renascimento, Bakhtin (2013) mostrou que essas manifestações, em especial o carnaval,

são fecundos espaços para a compreensão das tensões e conflitos das sociedades. Apesar

da singularidade do contexto social e histórico, o estudo realizado pelo autor contribui

para uma visão mais abrangente sobre as festas populares, (particularmente o carnaval),

o que nos permite compreender, um pouco mais, a evolução e o significado das escolas

de samba, bem como os processos culturais que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro

antes de se configurarem em elemento da cultura nacional.

Ademais, a história das escolas de samba está diretamente ligada às manifestações

culturais de origem popular que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro. É impossível

falar dessa instituição sem tratar do árduo caminho que os sujeitos (seus atores)

enfrentaram para se inserir e permanecer numa cidade que insistia em marginalizá-los.

Como veremos no decorrer desta seção, as escolas de samba não apenas renovaram a festa

carnavalesca mas também conferiram identidade aos sujeitos e aos espaços habitados por

eles (FERNANDES, 2001).

Inspirando-nos, a seguir, nas palavras de Bakhtin sobre o conceito de festa, esta

seção visa discutir sobre as festas populares do Rio de Janeiro, a princípio, como elemento

de resistência e transgressão, até se transformarem em uma das maiores manifestações

culturais do país, a ponto de as escolas de samba serem reconhecidas como símbolo da

identidade de toda uma nação.

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as festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial,

marcante, da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem

explicá-las como um produto das condições e finalidades práticas de

trabalho coletivo nem, interpretação mais vulgar ainda, da necessidade

biológica (fisiológica) de descanso periódico. As festividades tiveram

sempre uma concepção do mundo. Os “exercícios” de regulamentação

e aperfeiçoamento do processo do trabalho coletivo, o “jogo no

trabalho”, o descanso ou a trégua no trabalho nunca chegaram a ser

verdadeiras festas. Para que sejam, é preciso um elemento a mais, vindo

de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito das ideias. A sua

sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições

indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana,

isto é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima

de festa (BAKHTIN, 2013, p. 8, grifo do autor).

No fragmento acima, podemos observar, já na antiguidade, que as festividades são

importantes instrumentos de socialização entre os homens e uma necessidade humana

(foge de uma explicação biológica ou fisiológica). Ao falar de festa, Bakhtin (2013) toma

especialmente o carnaval por ser um momento de transgressão; por isso mesmo, longe de

representar prazer e descanso. O carnaval de que Bakhtin fala é a festa, um “espetáculo

ritual”, em cujo transcurso o tempo é suspenso e a vida transforma-se “como um modo

particular de existência” (BAKHTIN, 2013, p. 8). Essas manifestações culturais

expressam uma outra visão de mundo e de ideais, que circundam a existência, inerentes

àqueles em que estão imersos. Para o homem medieval, as festas surgiam como uma nova

possiblidade de vida, posto que

[...] durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo

tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica

do carnaval, seu modo particular de existência. O carnaval é a segunda

vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa

é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos

cômicos da Idade Média (BAKHTIN, 2013, p.7).

Trazendo as concepções de Bakhtin para pensar as festas populares do Rio de

Janeiro, é importante situar que as primeiras manifestações carnavalescas dessa cidade

ocorreram no período colonial e imperial, “ainda que celebrados fora do período do

carnaval” (MATOS, 2005, p. 18). Muitas aconteciam durante as festas religiosas que

dominavam o seu calendário festivo. As festas partiam de dentro das igrejas para as ruas

(TINHORÃO, 1962) e se tornaram um importante momento lúdico e mais esperado pela

população carioca. Este também era o átomo em que os grupos populares dividiam o

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mesmo espaço com a monarquia que “transformava suas aparições em espetáculo,

transformando realidade em representação” (SCHARCZ, 1998, p. 253).

Desde o período colonial, esses festejos ocorriam dentro do calendário religioso e

duravam até três dias; eram celebrados em praças públicas, mas a frente das igrejas ainda

era o espaço central onde aconteciam essas manifestações que envolviam um grande

público. Assim, além do carnaval, as festas religiosas continuavam sendo o principal

ponto de encontro entre as pessoas, pois surgiam como uma oportunidade lúdica para

esses sujeitos. De acordo com Albin (2009, p. 250), “o carnaval carioca seria influenciado

em suas origens mais remotas por festas de igrejas como as da Glória, da Penha, da Matriz

e por procissões religiosas, como as de São Jorge [...]”.

De acordo com Cabral (1996), o Rio de Janeiro, quando capital do Brasil, recebeu

um grande contingente de pessoas vindas de várias regiões do país, entre eles escravos,

além de africanos vindos de seus lugares de origem, “transformando a cidade numa

espécie de síntese da cultura popular do país” (CABRAL, 1996, p. 23).

Nesse contexto, a festa da Igreja da Penha foi um importante espaço para a

expressão cultural dos segmentos mais populares e “encontrou seu apogeu em fins do

século XIX e início do XX [...]” (SOIHET, 1998, p. 20). Para chegar à Igreja da Penha

durante o primeiro período, não era uma tarefa fácil: alguns chegavam de carros de bois,

em burros, cavalos, a pé. E ainda havia outros que se deslocavam bem antes para chegar

na véspera e garantir seu espaço com bastante antecedência. Com a criação do trem e a

facilidade de deslocamento, o número de frequentadores passou a ser maior.

Vários intelectuais da elite carioca da época expressavam seu desprezo e

preconceito a essas manifestações, chegando mesmo a sugerir a proibição da

“escandalosa e selvagem romaria” (SOIHET, 1998, p. 24). Vale salientar que, durante as

celebrações da igreja da Penha, além da presença significativa do segmento pobre, havia

“inclusive ‘senhoras da nossa melhor sociedade’ e famílias das ‘mais distintas’[...]”

(SOIHET, 1998, p. 23, grifo do autor). Tempos depois, pessoas de pontos mais afastados

passaram também a comparecer; dentre eles, a “comunidade de negros baianos, que, nas

décadas iniciais do nosso século, teriam passado a predominar” (SOIHET, 1998, p. 24).

Além do cumprimento de promessas e realização de missas, a festa da igreja da

Penha assumia uma natureza de arraial, com bandeirolas, barraquinhas de jogos, prendas,

muito vinho, comidas típicas e apresentações musicais e de dançarinos. Em torno das

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famosas barracas lideradas pelas “tias”, os populares reuniam-se e se formavam rodas de

samba.

Sobre a festa realizada na Igreja da Penha, Soihet (1998, p. 24) observa:

[...] um contingente significativo era constituído pelos negros, que, nas

décadas iniciais do nosso século, teriam passado a predominar. Desses,

especial importância teve a comunidade de negros baianos, liderados

pelas famosas “tias” que armaram na Penha suas barracas, ponto de

encontro e de identidade cultural. Através da culinária, da música e da

dança, atraíam não só seus conterrâneos como os de outros locais. Em

torno dessas barracas formavam-se as rodas de samba, das quais

participavam operários, trabalhadores em geral e alguns dos capoeiras

mais famosos.

Assim, a festa da igreja da Penha constituía-se em um importante canal de

comunicação e socialização entre as várias classes sociais cariocas. “Na verdade, ali os

populares viviam um grande acontecimento, sem uma demarcação rígida, entre o sagrado

e o profano, categorias que se mesclam” (SOIHET, 1998, p. 26).

Podemos observar que, durante essas festividades, há a desestabilização da

seriedade da festa religiosa, quebrando sua oficialidade. Essa é a cosmovisão

carnavalesca a que Bakhtin faz menção. Coloca em diálogo o que estaria separado

temporariamente e fisicamente, o “alto” e o “baixo”, o “sagrado” e o “profano”. O riso

constitui-se o grande motor da cosmovisão carnavalesca. Todo esse processo de

carnavalização dá-se através do riso, pois o riso desestabiliza qualquer norma e lei,

criando o processo de subversão.

Os grupos populares bebiam, comiam, jogavam, cantavam e dançavam “batendo

palma e sacudindo o corpo desengonçadamente” (SOIHET, 1998, p. 24). Esse

comportamento era considerado um atraso e atrapalhava a nova fase que os grupos de

poder desejavam para o país. O alto estrato da sociedade buscava, de todas as formas,

coibir as tentativas de lazer dos grupos populares. A festa da Penha tornou-se palco de

grandes conflitos, pois era constante a presença da força policial que reprimia e perseguia

os participantes.

Muito ao contrário aconteceu com o samba moderno e seus desfiles.

Pelo menos até a invenção das escolas de samba, no final da década de

1920, os sambistas e a prática do samba eram reprimidos em seus

lugares de reunião, em suas rodas de samba, nos terreiros de macumba,

e em grandes festas, como no Carnaval e até na Festa da Igreja da Penha.

Mesmo em pequenos grupos, em suas casas ou sozinhos nas ruas, os

sambistas podiam ser coagidos e ter seus instrumentos musicais

apreendidos pela polícia. Por incrível que pareça, o direito de sambar

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nas ruas do Rio de Janeiro foi durante muito tempo apenas tolerado,

sendo rotineira e arbitrariamente reprimido e proibido (FERNANDES,

2001, p. 5).

Esses sujeitos buscavam todas as formas alternativas para satisfazer suas

necessidades lúdicas, seu direito de se divertir. Mesmo com a proibição do samba e dos

instrumentos musicais que os acompanhavam, lançavam mão de vários outros artifícios.

Os grupos populares reagiram à exclusão e insistiram em sua participação social

por meio de sua cultura. Assim, a festa carnavalesca surge como um “momento

privilegiado”, como um “processo de resistência” (SOIHET, 1998, p. 50). Era o momento

em que a população marginalizada ocupava as ruas com suas músicas e danças.

Inserida nesse contexto, a classe dominante carioca ambicionava pelo progresso

do país e pela modernização aos moldes parisienses. A pretensão era transformar a cidade

em uma capital branca, rica, moderna e civilizada. Em contrapartida, a presença mais

marcante das classes populares em todos os espaços da cidade e as suas manifestações

culturais, em sua maioria de origem negra, representavam um atraso e ignorância para a

elite carioca. Por isso, “[...] teriam recorrido à força, apelando mesmo para a repressão

policial” (SOIHET, 1998, p. 28). Daí em diante, a festa da Igreja da Penha transformou-

se num espaço de grandes conflitos.

Mesmo quando fazer samba não era mais uma proibição, os populares não tinham

permissão para o uso dos instrumentos musicais. Porém, como nos informa Soihet (1998),

eles não se rendiam às proibições e criavam alternativas: usavam as palmas das mãos,

batiam garrafas ou até mesmo pedaços de paus. As letras dos sambas também

expressavam o direito de se divertirem. Todos esses processos de subversão e

transgressão ocorrem “através da carnavalização. Utilizavam-se do deboche, da paródia,

da inversão para tornarem explícita sua consciência da relatividade das verdades das

autoridades no poder [...]” (SOIHET, 1998, p. 46).

Ainda de acordo com Soihet (1998), a Belle Époque foi o período marcado pelo

lema da civilização e do progresso do país. Queria, a qualquer custo, higienizar a cidade.

Os “desfavorecidos” foram varridos de suas moradias nas áreas centrais para dar lugar ao

grande projeto de urbanização que transformava esse espaço da cidade em verdadeiro

“boulevard francês”.

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Apesar das restrições, o carnaval continuava sendo o momento em que a classe

popular resistia às perseguições, às regras impostas. A dança e a música foram a forma

encontrada por esses sujeitos para reagirem à exclusão e à segregação.

Uma das principais iniciativas modernas foi a criação de um carnaval aos moldes

europeus, reservado à camada rica da sociedade carioca, com direito a bailes de máscaras

e ricas fantasias. “Elas significaram uma afirmação de posições ilustradas” (SOIHET,

1998, p. 54) e foram criadas com o intuito de dominar as celebrações carnavalescas, até

então dominadas pelo entrudo6.

A rua do Ouvidor era o espaço mais procurado pela multidão durante as festas

carnavalescas. Lá se assistiam a diferentes manifestações de cunho popular: cordões de

mascarados, os Cuncubis Africanos, os zé-pereiras, os ranchos e blocos, e ainda ao desfile

elegante das grandes sociedades7. Reprimida sob tais condições, a camada popular, então

varrida dos principais pontos carnavalescos, como a rua do Ouvidor, rendeu-se aos

“ranchos (originários da zona portuária) e ao carnaval da Praça Onze e do Largo de São

Domingos” (MATOS, 2005, p. 24). Na avaliação de Soihet (1998, p. 56),

[...] apesar do esforço para segmentar espaços, para restringir a avenida

ao carnaval dos segmentos mais elevados, isso não se concretizou de

todo. A presença local dos segmentos populares e a indesejada mistura

de classes eram uma realidade, não obstante o empenho desenvolvido

[...].

Ao final do século XIX, o carnaval passou a ocorrer em várias ruas do centro do

Rio de Janeiro. A praça onze foi conhecida como “o ponto alto do samba”. Assim, para a

elite carioca, o “Rio, em vez de progredir com o tempo, afundava-se cada vez mais em

gostos rudes e frívolos” (SOIHET, 1998, p. 56). As ruas eram enfeitadas por bandeirolas

e ficavam intransitáveis. Por lá passavam vários grupos populares de carnaval: os

mascarados, os cucumbis africanos, os cordões e os zé-pereiras. Muito embora se

posicionassem contrários a essa mistura, os representantes das grandes sociedades ainda

não haviam separado seus desfiles das manifestações populares. Logo depois, no entanto,

abandonaram as ruas para ocuparem teatros e clubes luxuosos. Desse modo, podemos

6 O entrudo é um tipo de festa popular de origem ibérica, trazida pelos portugueses e que permaneceu

no Brasil até meados do século XIX. Os participantes jogavam água nas pessoas, farinha e limões de

cheiro. Era considerado pelas elites como um tipo de “jogo selvagem e bárbaro”. E considerado

incompatível com a civilização que se buscava (FERNANDES, 2001, p. 14). 7 Desfile reservado à classe rica da sociedade carioca aos moldes europeus.

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observar que, por certo período, o “alto” e o “baixo” ocuparam o mesmo espaço na festa

carnavalesca no cenário carioca.

Com a virada do século, o confronto entre as classes populares e a elite

intensificava-se. Vale ressaltar que o cenário carioca do século XX foi marcado por

grandes transformações. Houve um grande crescimento na indústria automobilística,

contribuindo para a chegada considerável de migrantes em busca de melhores

oportunidades. Além disso, muitos desses espaços eram constituídos, em sua maioria, por

mestiços, brancos mais humildes e negros, ex-escravos, que conheciam a liberdade há

pouco tempo. Excluídos da sociedade e sem lugares para se estabelecerem devido à

superpopulação instalada na cidade, esses sujeitos aglomeraram-se em morros e encostas

formando um novo cenário no Rio de Janeiro. Esse período foi marcado também pela

intolerância às favelas. Convém lembrar que essas comunidades estavam em processo de

consolidação e sua infraestrutura era distinta da que se observa atualmente. Por isso, um

dos grandes projetos políticos da época era a higienização desses espaços marginais da

cidade.

Sobre esse período, Fernandes (2001, p. 57) observa:

o estigma e a intolerância contra estas formas de habitação cresciam

tanto quanto elas se expandiam por todo o território da cidade,

impulsionadas pela imigração galopante e por um urbanismo

excludente que concentrava seus investimentos nas áreas nobres e não

destinava quase nada aos bairros e subúrbios populares.

Mesmo estigmatizada, a classe popular continuava indo às ruas com suas

manifestações culturais. Graças a essa insistência, sua forma de resistir às imposições dos

dominantes, sua cultura popular sobreviveu, provocando mudanças não apenas no

carnaval mas também na própria sociedade brasileira. Os negros tiveram um papel

importante nessa transformação e circularidade cultural.

O Estado viu a importância de manter essas manifestações, posto que seriam a

forma mais autêntica de expressão cultural, capaz de garantir um carnaval que despertasse

o interesse dos turistas. Assim, o carnaval, antes considerado produto da marginalidade,

passa a figurar nas páginas dos jornais como carnaval de verdade, o carnaval do samba.

As escolas de samba e suas comunidades deixam de ser lugares estranhos e passam a ser

locais de visitação por estrangeiros e celebridades, “chegando ‘senhoras da alta

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sociedade’ a subir o morro e pedir apresentação dos sambistas” (SOIHET, 1998, p.180,

grifo do autor).

Após esse passeio pelos fatos mais marcantes das manifestações populares na

cidade do Rio de Janeiro, trata-se, a seguir da criação das escolas de samba e de sua

transformação em uma grande instituição cultural.

2.4 ENFIM, AS ESCOLAS DE SAMBA E O SAMBA: DENTRO DA ORDEM DO

PERMITIDO

Ao falarmos de escola de samba na contemporaneidade, não podemos deixar de

levar em conta que, diferente do século anterior, essas escolas, hoje, institucionalizaram-

se e, por conta de todas essas transformações, tiveram de se adaptar às novas exigências

advindas de sua reconfiguração como símbolo da cultura nacional. Em torno dessas

agremiações, como se sabe, há muitos interesses políticos e econômicos, o que as

transforma em espaços de disputas e de tensões. Por isso mesmo, não podem ser

consideradas apenas como uma manifestação cultural; são, na verdade, uma grande

instituição financeira, um grande empreendimento, que abarca grandes responsabilidades.

Mas antes de aprofundar essa temática sobre a industrialização dessa manifestação

de origem popular, faz-se pertinente reconstituir o percurso das escolas de samba, desde

seu surgimento até os dias atuais, dialogando com as concepções de Bakhtin (2013) sobre

o carnaval.

Como vimos na seção anterior, todas as manifestações culturais de origem negra

que provinham dos morros, das favelas e do subúrbio do Rio de Janeiro eram recriminadas

e estigmatizadas. Para a classe dominante, esses grupos e suas expressões culturais

“maculavam” a tão cobiçada imagem civilizada da sociedade brasileira. Apesar de toda

campanha discursiva para eliminar as formas de manifestação desses grupos, “a ação e

poder sobre eles não obteve êxito” (SOIHET, 1998, p. 120). A classe popular resistia a

toda opressão e intolerância por meio de sua cultura. “E as manifestações populares não

só persistiram, como também se difundiram e se entrelaçaram com a cultura dominante,

dando lugar à circularidade cultural” (SOIHET, 1998, p. 120).

Antes do surgimento das escolas de samba, em meados do século XIX, vários

grupos carnavalescos desfilavam pelas ruas do Rio de Janeiro. Segundo Augras (1998),

para alguns estudiosos, as escolas de samba seriam uma junção dos blocos, cordões e

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ranchos “herdeiros, por sua vez, dos ternos de reis nordestinos” (AUGRAS, 1998, p. 17).

Já o samba das escolas vem dos terreiros de candomblé e do samba baiano de roda.

Sua origem remonta à década de 20, no bairro Estácio de Sá, mais especificamente

no morro São Carlos, espaço de encontro entre os sambistas que se reuniam em rodas

para produzir letras de samba. Esse local do Rio de Janeiro era dominado por morros e

favelas que se tornaram importantes na significação e formação da cultura desses sujeitos.

Ismael Silva foi o responsável pela fundação da primeira escola de samba “Deixa Falar”,

e também autor do termo “escola de samba”. Segundo Albin (2009, p. 253), a escolha

dessa expressão, pelo sambista, para nomear essas agremiações tem sua justificativa

assentada em três razões:

a primeira – e a menos importante ‒, porque a turma do Estácio se

reunia quase em frente à Escola Normal, situada na esquina da rua

Machado Coelho com a rua Alhares. A segunda razão – de importância

bem maior ‒, era o fato de, ao se intitularem escolas de samba, deferiam

a si mesmas a graduação de bambas, de mestres, de professores na arte

de produzir sambas. O terceiro motivo – o mais importante de todos ‒,

era que o termo Escola de Samba qualificaria uma possível melhoria e

ascendência em relação aos demais blocos carnavalescos, seus

concorrentes.

A escolha do nome “escola de samba” deu-se principalmente em razão de

poderem estas se diferenciarem dos blocos carnavalescos e de criar “algo melhor que os

demais concorrentes” (ALBIN, 2009, p. 253). No início de sua criação, as escolas de

samba serviam apenas como diversão e local de encontro para fazer samba, sem grandes

responsabilidades e imposições. Aos poucos, os blocos carnavalescos assumiram novo

posto de escola de samba.

A grande inovação destas em relação às outras manifestações culturais foi o uso

diferenciado dos instrumentos musicais, como tamborins, latas de manteiga, surdos,

cuícas, pandeiros e reco-recos, “cuja função era marcar o ritmo da dança e dos sambas

cantados” (FERNANDES, 2001, p. 51).

No início, os desfiles aconteciam na Praça XI, de modo mais informal e

espontâneo; reuniam apenas algumas dezenas de pessoas. Nesse período, as escolas de

samba ainda eram fortemente coibidas pela polícia, consideradas “coisa de malandragem”

e de desordeiros. Somente passaram a fazer parte do carnaval carioca a partir da década

de 30, quando intelectuais da época buscavam a construção de uma identidade nacional e

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a valorização de uma cultura genuinamente brasileira. Um projeto-ideológico constatou

a ideia de cultura como um objeto que pudesse ser possuído e manipulado. Esse período

ficou marcado pelo discurso nacionalista exacerbado. Nesse contexto, muitos elementos

tipicamente populares foram transformados em símbolos da cultura nacional. Para eles, a

expressão cultural que vinha dos morros, favelas e subúrbios cariocas, era o que mais

poderia representar “as coisas nacionais”. Assim, as escolas de samba transformaram-se

em uma das maiores manifestações da cultura brasileira. Fernandes (2001, p. 21), a

propósito dessa questão, tece o seguinte comentário:

com origem nas camadas mais pobres da cidade, fortemente negra, a

escola de samba convergia para a busca de expressões de uma

sensibilidade nacionalista e popular que então agitava o país e cobria o

mundo. Logo encontrou seus defensores e promotores na imprensa. Um

leque de intelectuais e políticos importantes lhe prestou apoio e

legitimidade crescente ao longo do tempo, o que não significa dizer que

o costume de as autoridades promoverem perseguições e

arbitrariedades tenha sido totalmente abandonado.

Com seu formato diferenciado e suas composições de improviso, as escolas de

samba ganharam mais visibilidades dos jornais, que passaram a publicar notas sobre os

seus concursos. Em 1932, o campeonato foi patrocinado pelo Jornal Mundo Esportivo e

as escolas passaram a disputar títulos. Apesar de algumas divergências quanto ao

resultado, a primeira escola a vencer o campeonato foi a Estação Primeira de Mangueira,

de Cartola.

No ano seguinte, quando o samba e as marchinhas se consolidavam nas rádios do

país, o campeonato das escolas de samba começou a receber patrocínio do Jornal

impresso “O Globo”, e o número de escolas desfilantes era duas vezes maior que no ano

anterior. A Mangueira despontou novamente como vencedora do desfile e, desde então,

de acordo com Albin (2009, p. 253), a escola inaugurou “toda uma longa marcha de

glórias” e passou a figurar como um mito da história do carnaval, despertando paixões

até os dias de hoje.

É importante recordar que, apesar do aparecimento das escolas de samba no

cenário festivo carioca, o carnaval ainda era liderado pela alta sociedade, seguida pelos

ranchos e blocos. As escolas de samba ainda eram marginalizadas e desprezadas pela elite

carioca. Em 1934, o Jornal “O Paiz” coloca as escolas de samba em lugar “da excelência

das organizações carnavalescas” (ALBIN, 2009, p. 254). A Mangueira foi novamente

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campeã, colocando-se em posição de destaque frente às outras escolas, mas contribuindo

para a consolidação das escolas de samba e o “primeiro pacto entre elas, que tomou o

nome de União das Escolas de Samba” (ALBIN, 2009, p.254).

O ponto de partida para a legalização das escolas de samba foi a oficialização do

concurso (1935), desde então inserido no calendário oficial do carnaval carioca. No que

se refere à constituição do desfile das escolas na atualidade, é importante recordar que,

quando começaram oficialmente a fazer parte de uma competição em busca de títulos e a

receber uma ajuda de custo, foram obrigadas a seguir todo um regulamento e, em

decorrência, promover infindáveis mudanças em sua estrutura política e organizacional,

o que determinaria o futuro dos desfiles.

O ano de 1935 estabelece o ponto inicial dos concursos oficiais das

escolas de samba. Na verdade, começaram a ter vida legal a partir daí.

Com o reconhecimento, as escolas de samba ingressaram no calendário

oficial do carnaval carioca, ganharam a sigla G.R.E e o direito de

recebimento de uma verba de ajuda para confecção dos seus carnavais,

chamada subvenção (ARAÚJO, 2003, p. 227).

Esteticamente (e visualmente), as escolas de samba tiveram uma mudança drástica

de um ano para o outro após a legalização. Na opinião de Albin (2009, p. 255), apesar das

mudanças, foi mantida a “inversão da estrutura social do carnaval tão cara ao carnaval”.

Podemos observar que as transformações das escolas de samba ocorreram em

todos os sentidos, inclusive no nome quando passaram a usar a sigla G.R.E (Grêmio

Recreativo Escola de Samba). A década de 30 marcou a história das Escolas de Samba.

E, nas décadas que se seguiram, cada agremiação foi em busca da sua própria identidade

como forma de distinção das outras manifestações culturais que já existiam.

Nas décadas de 40/50, as Escolas de Samba completam o ciclo de

formação e constituem suas ‘espinhas vertebrais’ básicas compostas

pelo enredo, samba enredo, alegorias e fantasias. Esses arcabouços dão

identidade própria às Escolas de Samba. Já é possível diferenciá-las das

Grandes Sociedades, ranchos e blocos” (ARAÚJO, 2003, p. 230-231,

grifo do autor).

Uma forma de marcar essas identidades, essas diferenças, é por meio do sistemas

de signos: a vinculação a uma comunidade ou bairro em que a escola de samba está

inserida, às cores da bandeira, o toque e a qualidade da bateria, os sambistas e toda

estrutura organizacional que compõe as escolas de samba e as torna singulares em relação

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a outras manifestações populares. Todos esses elementos funcionam como “significante

importante da diferença” (WOODWARD, 2014, p.10).

Mas a grande mudança viria apenas ao final dos anos 50 quando a escola de samba

Salgueiro, fundada em 1953, e figurante obscura no quarto lugar, resolveu surpreender

seu público contratando os carnavalescos Marie Louise e Dirceu Nery. Uma das primeiras

providências foi acabar com as cordas que separavam os desfilantes da plateia, além de

trazer novos e jovens talentos do Teatro Municipal para agregar nos desfiles da escola.

Todas essas novidades, particularmente o interesse por jovens artistas plásticos de

formação universitária, serviram para impor uma nova estética ao carnaval carioca.

Apesar de muitos embates em relação a esse inusitado delineamento, aos poucos as

escolas de samba foram perdendo toda sua essência suburbana e popular.

Para os críticos, a inovação fez com que as escolas perdessem sua identidade

cultural suburbana, “de caráter artesanal e comunitário” (ALBIN, 2009, p. 256). O desfile

passou a ser reservado àqueles que poderiam pagar pelos ingressos caríssimos; o povo

ficaria em casa, assistindo, pela televisão, em suas casas. Com o tempo rigorosamente

cronometrado para o desfile, o que era antes considerado prazer e diversão deu lugar à

correria e ao cumprimento de prazos.

Um registro importante para a ascensão das agremiações foi o início das

transmissões dos desfiles pelas emissoras de televisão na década de 60. O espetáculo

começou então a atrair um público cada vez maior. Além da industrialização da cultura,

da fusão de outras classes no seio da escola, convivia-se com a inconstância dos locais de

apresentação, sempre em deslocamentos.

Outra grande reconfiguração estética no universo das escolas de samba ocorreu,

em 1975, com a chegada da Beija-Flor de Nilópolis, juntamente com seu carnavalesco,

João Jorge Trinta (Joãozinho Trinta), que imprime riqueza e luxo às fantasias, aos carros

alegóricos e às demais alas, o que rendeu à escola três anos consecutivos de vitórias. João

Jorge Trinta contribuiu para a renovação do carnaval carioca de tal forma que a partir de

então passaram a admitir “referências e construções dos grandes shows da Brodway e da

Walt Disney” (ALBIN, 2009, p. 258).

A partir de 1984, com a construção da Passarela do Samba, localizada na Avenida

Marquês de Sapucaí, no centro do Rio de Janeiro, o desfile passou a realizar-se em local

fixo. Com essa definição espacial, a separação social ficou ainda mais visível. “A

organização do espaço no sambódromo é uma hierarquia de visibilidade. Os melhores

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lugares, que permitem a visão da evolução de toda a escola na pista são os mais caros”

(CAVALCANTE, 1994, p. 57). Em deriva, a transmissão dos desfiles torna-se por demais

importante já que nem todos poderiam adquirir os ingressos.

No mesmo ano, criam-se a liga independente das escolas de samba (LIESA), uma

associação responsável pela organização das escolas do grupo especial. Nesse novo

reordenamento, as escolas que constituem o grupo de acesso (LIERJ8), ao serem

promovidas para o grupo especial, precisam se filiar à LIESA. O desfile do grupo especial

é o único que tem transmissão televisiva para todo o mundo, com apresentações cuja

duração é de 75 minutos para cada escola.

Ao integrar o grupo especial, a escola de samba ganha mais visibilidade, e também

mais admiradores. A mídia televisiva teve (e ainda tem) um papel preponderante na

divulgação dessas escolas de samba, assumindo a exclusividade na transmissão (para

mais de 180 países) daquelas que compõem o primeiro grupo. Como se sabe, não é fácil,

para a maioria das escolas, mesmo para aquelas que são conhecidas do grande público,

permanecer ou fazer parte desse grupo; afinal, elas precisam sempre surpreender com um

grande espetáculo. O desfile desse grupo de elite transformou-se em um grande

espetáculo que encanta o mundo todo. Na esteira dessa festa, não apenas as comunidades

do samba mas também o Estado do Rio de Janeiro movimentam grandes lucros com o

show que proporcionam.

Como dito anteriormente, as escolas de samba nem sempre fizeram parte da festa

carnavalesca; muito menos foram consideradas parte da cultura nacional. Hoje, no

entanto, constituem uma das mais importantes expressões culturais do povo brasileiro.

Ao serem reconhecidas como patrimônio cultural do Brasil, proporcionaram visibilidade

ao lugar e aos sujeitos esquecidos que logo descobriram possibilidades de dar um novo

significado àqueles espaços. A classe dominante da sociedade carioca sentiu então

ameaçada a sua tão sonhada civilização. À população pobre, negra e mestiça foi negado

o direito à cidade e à expressão de sua cultura. Sendo assim, as manifestações populares

surgem inicialmente como uma forma de subversão e transgressão às regras impostas pela

elite carioca.

Atualmente, as escolas de samba se profissionalizaram, gerando milhares de

empregos, pelo necessário acolhimento de profissionais das mais variadas especialidades,

8 Liga independente das escolas de samba do Rio de Janeiro (LIERJ), associação das escolas de samba

do grupo de acesso.

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como artesãos, artistas especializados, escultores dos mais diversos, trabalhadores

autônomos da própria comunidade (costureiras, bordadeiras, eletricistas, mecânicos), e

tantos outros aqui não mencionados.

Para os críticos de hoje, os desfiles perderam muito do seu purismo, de sua

autenticidade e de suas características da cultura popular. Mas essas transformações

dentro e fora das instituições culturais são regulares. Afinal, situamo-nos em novos

contextos sociais, os sujeitos são outros. A globalização exerce grande influência sobre a

produção cultural. Vivemos o tempo da impermanência e “produzimos cultura” para um

público cada vez mais exigente e difícil de surpreender. As escolas de samba sobrevivem

desse espetáculo, desse público para se afirmar e permanecer na indústria cultural.

Como dito, as festas populares no Rio de Janeiro do século XIX até meados do

século XX podem até confirmar os mesmos sentidos da festa que Bakhtin (2013)

encontrou na Idade Média. Os grupos populares fizeram do riso um instrumento de

resistência e subversão e passaram a incomodar a ordem vigente. Parece-nos o mesmo

riso apresentado pelo autor (2013): o riso que não é ingênuo, o riso que subverte e que

desestabiliza os traços mais sérios, tão sagrados nas sociedades primitivas. Não se trata

apenas de uma expressão facial; ele “contamina” toda a linguagem carnavalesca, e sua

invocação é fundamental quando se trata de cultura popular. E não só o riso,

[...] todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão

impregnadas do lirismo da alternância e da renovação, da consciência

da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela

caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas ‘ao

aveso’, ‘ao contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo

(‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias,

travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos

bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-

se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao

revés”. É preciso assinalar, contudo, que a paródia carnavalesca está

muito distante da paródia moderna puramente negativa e formal; com

efeito, mesmo negando, aquela ressuscita e renova ao mesmo tempo. A

negação pura e simples é quase sempre alheia à cultura popular

(BAKHTIN, 2013, p. 9-10, grifo do autor).

Vimos também que, na visão bakhtiniana, as festas carnavalescas surgem como

uma possibilidade de transgressão e não um simples descanso periódico. Nascia para o

homem medieval como uma “segunda vida”.

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Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de

libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de

abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras

e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e

renovação. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e

regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto

(BAKHTIN, 2013, p. 8).

O contraponto está no fato de que, no carnaval das escolas de samba, não se

encontra esse mesmo “desenho”, uma vez que, ao se institucionalizarem, elas entraram

na ordem do oficial, na ordem do permitido. O desfile transformou-se em produto de

exportação da cultura nacional, mudando todas as características do carnaval configurado

por Bakhtin. Fazer samba não é mais uma proibição. Toda sua estrutura exige

organização e regras bem definidas. O carnaval pós-moderno é estritamente

regulamentado. Para participar da festa, é preciso pagar pelas fantasias, pelas

arquibancadas ou pelos camarotes. O desfile é rigorosamente cronometrado e o

Sambódromo circunscreve-se em um espaço físico bem delimitado. A comissão julgadora

se encarrega de vigiar “o desempenho das escolas [...] para denunciar eventuais deslizes

que a podem levar à desqualificação” (AUGRAS, 1998, p. 16).

A grande festa carnavalesca proporcionada pelo Estado do Rio de Janeiro gira em

torno da mercantilização do desfile e envolve um grande “esquema econômico-financeiro

que assegura altíssimos lucros às diversas instituições que regem a organização do desfile

e sua divulgação” (AUGRAS, 1998, p. 16).

As escolas de samba transformaram-se, portanto, num grande fenômeno popular

que desperta grande interesse econômico. E o mercado não está preocupado com o fato

de serem de origem popular nem de preservar suas tradições, mas com o seu alcance como

objeto de consumo. Sobre a industrialização da cultura popular, Canclini (1997, p. 260)

observa:

Popular é o que vende maciçamente, o que agrada a multidões. A rigor,

não interessa ao mercado e a mídia o popular e sim a popularidade. Não

se preocupam em preservar o popular como cultura ou tradição; mais

que a formação da memória histórica, interessa à indústria cultural

construir e renovar o contrato simultâneo entre emissores e receptores.

E foi bem à satisfação dessa indústria massiva que as escolas de samba

reinventaram-se. Martín-Barbero (2003, p. 322) explicita melhor esse processo:

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o massivo, nesta sociedade, não é um mecanismo isolável, ou um

aspecto, mas uma nova forma de sociabilidade [...]. Assim, pensar o

popular a partir do massivo não significa, ao menos não

automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de

existência e luta, um novo modo de funcionamento da hegemonia.

É justamente graças à massificação e à espetacularização da festa que as escolas

se estabelecem e a cultura popular sobrevive. A contrapartida para essa sobrevida é a

renovação constante para que se possam adequar, a essa nova realidade, os anseios do

novo público que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo.

Então, para sobreviverem às novas exigências nesse mundo pós-moderno, líquido

e transitório, as escolas de samba precisam aceitar o novo, ao mesmo tempo em que

buscam celebrar as tradições como uma forma de ser diferente, porque é justamente o seu

caráter exótico que atrai o interesse do público.

O carnaval, a que Bakhtin (2013) alude, é uma festa que acontece em espaço

público; é uma festa para todos; os expectadores não assistem ao carnaval, mas se

misturam e vivem a festa. Não existe limite de tempo e espaço. Os sujeitos assumem

papeis reversíveis. O que ele chamou de carnavalização foi essa liberação temporária das

relações hierárquicas. Para o autor, carnaval é uma festa popular universal, realizada em

um espaço público, onde é permitido todo tipo de expressão.

Nesse cenário de muitas tensões, acordos e desacordos, as festas populares não

apenas permaneceram firmes e fortes na sociedade moderna mas ainda passaram por

grandes transformações, a exemplo do carnaval carioca. A festa e a música foram

primordiais na afirmação da identidade da população marginalizada, dos espaços

ocupados por esses sujeitos, e na conquista de um espaço na sociedade carioca.

Após compreendermos como ocorreu o surgimento das escolas de samba do Rio

de Janeiro, bem como os processos culturais antes de se configurarem como elemento da

cultura nacional, a próxima seção apresentará o nosso estado da arte. Muitos desses

trabalhos irão complementar as discussões ao longo deste estudo.

2.5 ESTADO DA ARTE

Bakhtin construiu todo seu arcabouço confrontando outras teorias vigentes, ou

seja, dialogando com outros enunciados, opiniões e pontos de vista até então produzidos

e em circulação. Nesta seção, também estabelecemos diálogo com outros pesquisadores

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que revelaram, em seus estudos, aproximações com nosso objeto de pesquisa, o que nos

favoreceu um “confronto” com diferentes abordagens.

Não raro as escolas de samba e o samba são objetos de investigação contemplados

em diversos trabalhos acadêmicos a partir diferentes visões teóricas. As análises recaem

com frequência sobre o surgimento e a ascensão dessas agremiações, principalmente dos

fatores que levaram essa manifestação popular a transformar-se (de um século para o

outro) em símbolo da cultura nacional. São igualmente recorrentes pesquisas que

associam as escolas de samba e o samba à construção da identidade nacional.

Levando em consideração que as identidades na pós-modernidade não são

permanentes, que estão sempre em transição porque os sujeitos são afetados pela

globalização, a nossa pesquisa tem como objetivo precípuo analisar como se constituem

as identidades de escolas de samba na contemporaneidade a partir das representações

evidenciadas nos sambas-exaltação.

Firmado o propósito investigativo, voltamos então para os sujeitos que são

construídos na interação com diferentes interlocutores, na relação com o contexto e, ao

mesmo tempo, afetados pelas mudanças trazidas pela já propalada globalização. E não

podemos esquecer que todas essas transformações fazem com que o homem esteja sempre

se renovando, reinventando-se a si mesmo para melhor adaptar-se a seu tempo e à sua

“nova identidade”, tal como fizeram as escolas de samba em seu processo de readaptação

espaço-temporal.

Neste ponto da abordagem, abrindo espaço às teorias subsidiárias, trataremos, em

primeiro lugar, sobre identidade de escolas de samba a partir de diferentes perspectivas

teóricas; em segundo lugar, sobre identidades de favelas/comunidades e cidades; em

terceiro lugar, sobre as festas populares do Rio de Janeiro que, de alguma forma, se

aproximam da discussão/reflexão de nossa pesquisa; e sobre o gênero samba-exaltação e

hinos institucionais e, por último, as representações identitárias.

2.5.1 Identidades de Escolas de Samba

As pesquisas realizadas por Pavão (2005, 2010) e Ericeira (2009), resguardadas

notáveis distinções/peculiaridades, têm muito a contribuir com a nossa pesquisa pela

semelhança de suas abordagens.

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Ericeira (2009) trata da reconstrução do passado da escola de samba Portela nas

redes mundiais de computadores. O site foi criado pela equipe Portelaweb e pelos

compositores da escola com o objetivo de reconstruir e valorizar o passado da escola de

samba da Portela. De acordo com o pesquisador, no processo de reconstrução e

preservação desse passado portelense, são utilizados vários mecanismos, entre eles os

sambas-exaltação. O pesquisador observou a necessidade dos portelenses de voltar ao

passado em busca de suas glórias e de seus valores. Para ele, “graças aos apelos afetivos

que empreendem, os sambas de exaltação acionam processos explícitos de identificação

coletiva desses aficionados com a Portela” (ERICEIRA, 2009, p. 160). Essa valorização

do passado torna-se fundamental no processo de construção da identidade social como

portelense. Esquecer esse passado poderia resultar na perda de valores considerados

essenciais para a escola e também desfazer os laços afetivos que unem os portelenses e

os vinculam à agremiação.

A escola de samba da Portela também é objeto de pesquisa de Pavão (2005), que,

por sua vez, discute as transformações nas redes de sociabilidade da escola de samba a

partir das mudanças ocorridas nas últimas décadas. De acordo com esse pesquisador, as

transformações exteriores às escolas, e no interior da própria escola, contribuíram para

mudanças significativas nas redes de sociabilidade, responsáveis por manter o

funcionamento das engrenagens das escolas de samba cariocas. Nos últimos anos, houve

uma substituição da “comunidade tradicional” pela “comunidade eletiva”, embora a

comunhão de ambas seja essencial para o sucesso da agremiação. A comunidade da

Portela está localizada no bairro Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Por ser um bairro

heterogêneo, a agremiação não desperta o interesse dos moradores, caindo, muitas vezes,

no esquecimento. Em contrapartida, a indústria cultural contribui para que a memória da

agremiação ultrapasse fronteiras locais, incorporando indivíduos de outras regiões. Há,

nesse sentido, um deslocamento das relações sociais do contexto local, levando-se em

conta o fato de que algumas pessoas, por afinidade, elegem a escola como elemento de

identidade.

Pavão (2010), em sua tese de doutorado, desvela como, num contexto de mundo

globalizado e de influências culturais que desencadeiam a chamada crise de identidade,

“o samba carioca ressignifica suas práticas e atualiza sua importância para a sociedade

nos dias atuais” (PAVÃO, 2010, p. 11). Fundamentado em autores como Hall, Canclini,

Martín-Barbero, entre outros, o autor discute sobre identidades, cultura e globalização.

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Observa que, sendo o Brasil um país múltiplo, de culturas diversas em todo seu vasto

território, torna-se uma utopia a ideia de uma identidade cultural comum a todos, ou uma

visão essencialista que desconsidera tal realidade. Uma das justificativas apresentadas

pelo pesquisador para explicar a rápida ascensão das escolas de samba no cenário cultural

nacional é a de que as “classes populares assumem o protagonismo dos discursos

românticos, sendo associadas à pureza pré-capitalista” (PAVÃO, 2010, p. 310),

atribuição feita anteriormente aos indígenas, quando, junto à natureza exuberante foram

eleitos “representantes originais da nação” (PAVÃO, 2010, p. 310). Destaca também o

papel preponderante do mercado editorial na consolidação dos projetos nacionalistas e na

construção de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1989). Do ponto de vista do

autor, houve também “transformações ideológicas do período em questão” (PAVÃO,

2010, p. 311), haja vista o fato de que as teorias raciais que, até então, condenavam a

sociedade brasileira ao fracasso, deram lugar a chamada valorização positiva da

miscigenação que, para ele, ocorreu também no aspecto cultural.

A dissertação de Matos (2005) analisa as escolas de samba como um elemento

ilustrativo no entendimento da metrópole carioca como espaço vivido e espaço

construído. O tema é abordado em uma dimensão geográfica, que objetiva “revelar a

construção, a percepção, a interpretação e a representação do sentido de lugar por parte

dos sambistas cariocas” (MATOS, 2005, p. 2). Para inserir as escolas de samba numa

perspectiva geográfica, a análise é realizada a partir de conceitos de lugar, identidade e

Imagem Urbana. Em sua concepção, estudar as escolas de samba a partir de uma

investigação “atravessada” pela geografia tem contribuído para interpretar como o

homem se apropria dos espaços, com eles se relaciona e deles se utiliza em seu cotidiano.

Esses espaços são repletos de significados e de valores (CAPEL, 1981). Matos observa

ainda que estudar as identidades espaciais torna-se importante na medida em que a

contemporaneidade é marcada pela fragmentação e pela multiculturalidade. Ao tomar as

festas carnavalescas como objeto de investigação, Matos justifica que esses eventos são

elementos importantes não apenas para unificar mas também para tornar as comunidades

mais explícitas. Além disso, é o mecanismo pelo qual pode ser explicado o fenômeno

urbano, pois representa os valores e as ações de um determinado grupo. A pesquisa parte

da hipótese de que as escolas de samba representam um canal de comunicação entre as

comunidades urbanas periféricas e a cidade como um todo.

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Diferente de outras pesquisas que privilegiam as escolas de samba do grupo

especial, em seu estudo, Matos optou por uma escola pertencente ao grupo de acesso,

Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Lucas. Para ele, as escolas consideradas

menores “mantêm uma identidade ligada ao referencial de lugar ocupado pela

comunidade na metrópole de maneira mais forte” que as escolas do grupo especial, como

“mangueirense” e “salgueirense” (MATOS, 2005, p. 75). Essas escolas mais conhecidas

do público têm admiradores fora da comunidade de origem e, por isso, incorporam

identidades paralelas àquela que é assumida ao representar sua comunidade durante o

desfile.

E quando se “batiza” a escola com o nome da comunidade, fica evidente a

assunção de uma identidade territorial. Esse enraizamento do ser humano e o seu

pertencimento a uma comunidade revelaram-se útil na análise do mundo atual. No caso

dos sambistas, percebeu-se que estes não ficam presos ao espaço vivido, mas possuem

forte consciência de pertencimento à comunidade de origem e se utilizam desse

pertencimento na construção de sua identidade individual e coletiva. A comunidade é a

principal referência para um sambista. É também uma estratégia usada por eles para dar

mais visibilidades a esses espaços.

Na pesquisa de Poubel (2012), a escola de samba Vila Isabel foi analisada a partir

de sua relação com o seu bairro. A pesquisadora investiga as relações sociais criadas na

convivência dos indivíduos e grupos durante o ciclo que antecede o carnaval. As

atividades desenvolvidas na escola de samba evidenciam uma relação de convivência

entre os indivíduos do bairro. O sentimento de pertencimento é usado pela diretoria das

escolas com o objetivo de mobilizar seus componentes em prol da agremiação.

Isto é, comunidade acaba sendo uma denominação que engloba a todos

que se sentirem participantes. As pessoas de uma mesma localidade têm

na escola de samba o estabelecimento de discursos e práticas em

comum, e pertencer a uma mesma escola de samba influencia e dá

significados compartilhados pelas pessoas envolvidas. O gosto pelo

carnaval e pelo samba, o gosto pelos bares e pela feijoada, e os laços de

vizinhança instauram redes de relações ancoradas numa presença

constante em um determinado espaço. Surgem assim, relações de

sociabilidade criadas a partir de pertencimento comum (POUBEL,

2012, p. 7).

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No decorrer da investigação, Poubel observou que a necessidade de desenvolver

o sentimento de pertencimento dentro da comunidade é uma preocupação dos

responsáveis pela escola de samba.

Há, na escola de samba de Vila Isabel, um vínculo entre o bairro e essa

agremiação, bem diferente do que ocorre em outros bairros e as escolas de samba locais,

que foram responsáveis pela construção da tradição relacionada ao bairro. Em Vila Isabel,

mesmo antes do surgimento da escola de samba, já existia uma identidade musical

referente ao samba, marcada, principalmente, pelo compositor Noel Rosa. Sendo assim,

a escola de samba incorporou símbolos e significados já existentes na construção de

narrativas sobre o bairro, adquirindo uma relação privilegiada com a comunidade. A

pesquisadora observou ainda que

[...] os moradores de uma mesma localidade têm na escola de samba

uma referência para a construção de identidades sociais, estabelecendo

discursos e práticas em comum. O fato de pertencer a uma escola de

samba de determinado bairro cria relações entre as pessoas, atuando na

construção de identidades e representações sociais que orientam as

práticas dos moradores dessas localidades e, muitas vezes, constroem-

se através da escola de samba, relações que distinguem o próprio bairro

do contexto mais amplo da cidade (POUBEL, 2012, p. 12).

Após observações participativas realizadas durante a preparação do carnaval da

escola de samba de Vila Isabel, Poubel percebeu um grande interesse por parte da

diretoria da escola em construir um sentido de “comunidade” visando ao alcance de

ganhos para a entidade. Aliás, já até se configura explicitamente uma troca de interesses

entre a comunidade e a escola: doam-se fantasias e se exige um bom desempenho durante

o desfile do carnaval. Assim, “o conceito de comunidade é aqui forjado visando à

obtenção de ganhos para a escola” (POUBEL, 2012, p. 73). Na visão da pesquisadora,

porém, isso não significa a inexistência de uma comunidade em Vila Isabel. Durante as

entrevistas em locais e em momentos diversos, ela constatou “o uso, a repetição e a

reafirmação dos símbolos pertencentes ao bairro como uma característica compartilhada

pelos moradores do bairro” (POUBEL, 2012, p. 97). Além disso, notou que ora o

sentimento é de pertencimento à escola de samba, ora ao bairro; em certos casos, a ambos.

Identidade e escolas de samba também são temas da dissertação de Santos (2013).

Essa pesquisadora estudou os processos de construção identitária das escolas de samba

de São Paulo a fim de verificar como esse sentimento contribui para motivar o

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engajamento dos sujeitos em atividades não remuneradas dentro das agremiações. As

escolas de samba constituem-se em um importante instrumento de manutenção da cultura

dos negros no Brasil. Mesmo no século XXI, as escolas de samba de São Paulo ainda

carregam muito preconceito contra os descendentes de escravos e suas respectivas

manifestações culturais. A ascensão das escolas de samba contribuiu para a propagação

dos valores, da cultura e dos costumes afrodescendentes. Por sua vez, também foram esses

elementos da cultura negra que fizeram das escolas de samba uma manifestação autêntica

Nos relatos das entrevistas realizadas, ela registrou que um dos costumes herdados

da cultura negra foi o de se doar para a tribo ou comunidade. Atualmente, a cor da pele

não é mais levada em consideração, pois o sentimento de união tornou-se um dos

elementos mais importantes para o engajamento dos sujeitos nas escolas de samba.

Apesar do reconhecimento das escolas de samba como símbolo cultural nacional, esses

sujeitos relataram que existem vários fatores contrários, pois ainda estão às margens da

sociedade. Para esses sujeitos, fazer parte de uma comunidade do samba equivale “à

valorização na sociedade paulista” (SANTOS, 2013, p. 105). Além disso, contribuiu para

a elevação de sua autoestima e para uma nova forma de olhar o mundo.

2.5.2 Identidades de Comunidades, favelas e cidades

As pesquisas a seguir versam sobre identidades de favelas/comunidades e de

cidades a partir de diferentes perspectivas teóricas.

Na Universidade de Coimbra, Santana (2009) propõe discutir as representações

identitárias da favela, tendo como referência a telenovela brasileira “Duas Caras”. A

autora chama a atenção para a constante presença da periferia na ficção televisa, uma

forma de inserção que se tornou recorrente desde o filme Cidade de Deus (2002). A

telenovela “Duas Caras” foi exibida em outubro de 2007, ambientada numa favela fictícia

e com personagens centrais que contribuíam para a construção desse cenário. No entanto,

essa comunidade foi construída diferente do que normalmente estamos habituados, sem

violência e criminalidade. De acordo com o autor da novela, a intenção foi desmistificar

a visão de “que na favela só residem bandidos, enfatizando o carácter humano e

caracterizando a favela como espaço de pessoas honestas e trabalhadoras” (SANTANA,

2009, p. 2).

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62

As questões que permeiam o trabalho de Santana são as seguintes: “como a favela

pode se tornar um espaço de identidade e quais os parâmetros de identificação”

(SANTANA, 2009, p. 2.). Em sua pretensão investigativa, a autora visa também

evidenciar como os personagens representam estereótipos construídos e determinados

socialmente. No esclarecimento de tais questões sobre comunidade, recorre a Castells

(2003), para quem a comunidade é um local onde as pessoas se socializam, formando

redes sociais entre vizinhos. Constata, além disso, que “as identidades locais entram em

intersecção com outras fontes de significado e reconhecimento social, seguindo um

padrão altamente diversificado que dá margem a interpretações alternativas”

(SANTANA, 2009, p. 3).

A comunidade criada pela novela representa uma comunidade estabelecida no

âmbito local: os personagens tendem a se agrupar em organizações, excluindo qualquer

tipo de individualização, e o espaço em que atuam reproduz, na aparência, o que, segundo

citado por Santana (2009), Castells (2003) entende como uma verdadeira comunidade, ou

seja, habitantes que, juntos, participam ativamente de movimentos sociais urbanos,

associados a um conjunto de metas que visam a uma mudança social coletiva, com

condições dignas de sobrevivência. Essas metas solidárias fazem da comunidade

televisiva imaginada um lugar de identidade, contribuindo para a afirmação identitária

cultural local desses sujeitos, dando-lhes uma sensação de pertencimento. Além do

espaço fictício criado pelo autor, as personagens representam a “favela carioca

politicamente correta” (SANTANA, 2009, p. 8), com estereótipos formados a partir do

imaginário da sociedade. Para Santana, existe um esforço da telenovela em se aproximar

ao máximo da realidade através de códigos que representam o real.

No âmbito da Linguística Aplicada, o trabalho de Lopes (2009) busca as

ressignificações da identidade da favela dentro da linguagem do funk carioca. Uma das

proposições do funk é mostrar a realidade da favela, como forma de denúncia de

movimento cultural. O uso de linguagens específicas na letra da música revela como os

artistas significam suas próprias experiências e reivindicam uma cartografia diferente

para a cidade do Rio de Janeiro. “Nessa linguagem, a favela deixa de ser o espaço genérico

da barbárie e se transforma em território com nome próprio e no local da habitação e de

hábitos cotidianos de inúmeros jovens favelados” (LOPES, 2009, p. 379).

A pesquisa realizada por Barros (2016) parte da percepção de que o cinema

colabora para o fortalecimento de discursos a respeito da favela e de seus moradores. Seu

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estudo busca, por meio da Análise do Discurso Francesa, identidades atribuídas à favela

e a seus moradores representados no filme “Cinco vezes favela”, de 1961. Uma das

considerações feitas pela direção do filme foi a de que o intuito era mostrar o favelado

não de maneira folclorizada (BARROS, 2016). No entanto, Barros observou que, mesmo

tendo essa preocupação de denúncia, “é possível encontrar sentidos que reduzem seus

personagens à marginalidade e à criminalidade” (BARROS, 2016, p. 14). A constatação

conclusiva de seu estudo é a de que os meios de comunicação (entre eles o cinema)

apresentam discursos sobre a favela e sobre seus habitantes sempre sintonizados com os

discursos e saberes institucionalizados. E porque compreende o discurso como uma

construção social, entende que neste se refletirá, fatalmente, uma visão de mundo

determinada.

Um outro estudo, realizado por Barros (2013), buscou por identidades da favela e

de seus moradores no discurso de “Viver a Vida”. Para esse autor, as telenovelas também

têm um papel importante na construção das identidades no mundo contemporâneo.

Apesar de ser uma obra fictícia, os indivíduos estruturam suas identidades com base nos

“significados e visões de mundo” midiático (BARROS, 2013, p. 9). Essa pesquisa chegou

à conclusão de que a telenovela tem a intenção de alcançar maior audiência e, por isso,

busca atribuir ações de violência a esses locais, “visto que a criminalidade

espetacularizada funciona como atrativo para o público” (BARROS, 2013, p. 9).

Já a pesquisa empreendida por Da Cruz (2007) busca por identidades atribuídas à

favela e aos moradores de favela no ciberespaço. Esse meio de comunicação torna-se

um espaço pelo qual os moradores de favela podem interagir com o não-morador de

favela, possibilitando a esses indivíduos uma “inter-relação dos processos de construção

identitária” (DA CRUZ, 2007, p. 4); e essa identidade é construída a partir da relação de

alteridade, haja vista a permanente tensão entre o “nós” e os “outros”, sempre presente

nas falas de moradores e não-moradores de favelas. É também um espaço de vozes na

esfera pública. A pesquisadora também verificou que “os discursos produzidos sobre os

moradores de favelas ainda são fortemente marcados por estereótipos” (DA CRUZ, 2007,

p. 62), mesmo assim, os moradores buscam romper com esses discursos estigmáticos e

propõem novas representações desses espaços e de seus habitantes.

Sobre as identidades de cidades, temos a tese de Faria (2007), da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que trouxe importantes contribuições para as

atuais pesquisas em estudos culturais contemporâneos. Seu trabalho inscreve-se na

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Linguística Aplicada e assume a concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin. Em seu

estudo, Faria buscou por identidades culturais da cidade de Natal a partir de

representações expressas nos discursos de poetas potiguares, ao longo do século XX.

Essa escolha deu-se pela grande influência, nesse período, da poesia na construção

da identidade da cidade de Natal. Nesse processo investigativo, a autora demonstrou que

a poesia se colocou como importante registro da memória cultural de uma época. A

pesquisadora encontrou, nesse período, identidades múltiplas que representavam a cidade

de Natal: “Natal se mostra provinciana, exuberante, monótona, barulhenta, do ‘já teve’,

juvenil, sofrida/degradada, índia, desigual/injusta, asfixiada, internacional” (FARIA,

2007, p. 148, grifo da autora). Além de se revelarem como múltiplas, essas identidades,

segundo constata a autora, foram construídas vinculadas à tradição e à memória da cidade.

2.5.3 As festas populares do Rio de Janeiro e o surgimento das Escolas de Samba

As pesquisas a seguir reconstituem caminhos percorridos pelas festas populares

do Rio de Janeiro até o surgimento das escolas de samba, e assinalam a importância dessa

manifestação popular na construção e na afirmação da identidade dos sujeitos que

habitavam os espaços marginais da cidade. Os trabalhos desses pesquisadores

contribuíram para as discussões empreendidas em nossa pesquisa, na medida em que nos

auxiliaram a compreender como as agremiações se afirmaram no cenário cultural

brasileiro e de que forma seus idealizadores reagiram à exclusão imposta, fortalecendo

mais ainda sua cultura.

Fernandes (2001) focaliza, em seu estudo, a relação entre cidade, festa e cultura

popular a partir de uma perspectiva geográfica. Ao recorrer a Bakhtin e a outros autores

sobre o conceito de festa, o geógrafo ressalta a importância da festa e da música, como

instrumentos de interação e socialização entre os sujeitos que habitavam a favela durante

esse período. Segundo constata, a transformação das escolas de samba em símbolo da

cultura nacional não pode ser entendida como uma subordinação à elite; isso consistiu em

uma estratégia dos próprios sambistas para participar da festa carnavalesca e serem

reconhecidos por uma cidade que os excluía. Sendo assim, havia um interesse de ambas

as partes nessa aliança. Além disso, como o pesquisador também confirma, o

reconhecimento das escolas de samba renovou o carnaval carioca e conferiu identidade

não apenas aos sujeitos mas também às comunidades em que estes estavam inseridos.

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Ainda em sintonia com nosso propósito investigativo, registramos a pesquisa de

Soihet (1998), em que se analisam as festas populares do Rio de Janeiro, no período da

Bélle Époque e no período Vargas, a partir da perspectiva do riso e da cultura popular em

Bakhtin. Soihet constata que essas manifestações populares, nos primeiros anos da

República, eram perseguidas e combatidas pela polícia. No entanto, esses grupos não

desistiram de sair às ruas para lutar, reagindo à exclusão por meio de sua cultura. A festa

carnavalesca surge como um “momento privilegiado” como um “processo de

resistência”, conforme explica Soihet. Era o momento em que a população marginalizada

ocupava as ruas com suas músicas e danças. Para a historiadora, o riso foi uma espécie

de arma usada pelos populares no processo de luta contínua, com avanços e recuos, mas

que, apesar de tudo, logrou o arrefecimento da discriminação e da segregação.

2.5.4 Sambas-exaltação e hinos institucionais

Nesta quarta etapa de revisão de pesquisas, agrupamos trabalhos sobre sambas-

exaltação, que têm, como denominador comum, evidências de que esse gênero musical,

até então marginalizado (produzido e consumido pelas classes populares), foi usado como

importante ferramenta de propagação de uma identidade nacional e de valores

trabalhistas.

A análise de Pereira (2012) evidenciou que, nesses sambas de exaltação, alguns

conteúdos temáticos sobressaíram mais que outros (a unidade da pátria; a formação social

brasileira e a miscigenação étnico-cultural), sendo seus discursos orientados sempre para

a ideia de unidade e integração nacional. A insistência na construção de uma memória

nacional era uma preocupação da época para reforçar o nacionalismo e para que o sujeito

se identificasse e se representasse com uma cultura macro.

O pesquisador ressalta que o discurso de construção de uma brasilidade deu-se a

partir da integração de uma cultura popular à cultura nacional, “estabelecendo e

reforçando os laços sociais entre as classes populares e a nação; negros, mestiços, pobres

e outras minorias representacionais tinham um traço cultural reconhecido e

nacionalizado” (PEREIRA, 2012, p. 117). Também atesta que, apesar do reconhecimento

das minorias, outra parte da grande diversidade regional brasileira foi silenciada ou

simplesmente não se viu representada.

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Por fim, a apropriação do samba de exaltação, um gênero tipicamente popular,

que traz “carga genética” de “cultura negra” converteu essa manifestação considerada

“perigosa” em algo “seguro”, “limpo” e “domesticado”. Além disso, ao transformar uma

manifestação “subalterna” em hegemônica, pôde despertar o sentimento de pertencimento

em uma comunidade imaginada nacional” (PEREIRA, 2012, p. 117). Em termos

conclusivos, aponta a música como um sistema de linguagem capaz de difundir e forjar

identidades culturais. Nesse contexto, o samba cívico é orientado pela formação

ideológica do Estado Novo. Assim, a invenção de elementos formadores da cultura de

toda uma nação foi a forma encontrada pelos grupos de interesse para homogeneizar a

identidade brasileira e assegurar a ideia de uma cultura como artefato.

Outro artigo que reforça o pensamento de Pereira é o do Doutor em História Social

pela Universidade de São Paulo, Filho (2009). O pesquisador analisa sambas de exaltação

surgidos nos anos de 1930 e 1940, entre eles “Aquarela do Brasil”. Esse samba-exaltação

é identificado como um discurso que “vende” uma imagem do Brasil, traduzida por sua

natureza, pela felicidade, pela música, pela simpatia, e pela sensualidade de sua gente. A

investigação de Filho também teve como objetivo perceber em torno de quais ideias

buscou-se uma identidade nacional. Essa percepção é recorrente em várias pesquisas

sobre samba-exaltação.

Também em consonância com essas reflexões precedentes, a tese de Paranhos

(2005) analisa o discurso musical de compositores da música popular brasileira, entre o

final dos anos 20 e meados dos anos 40 do século XX, justificado por ele por ser o

“período que cobre desde o surgimento do samba carioca até sua consolidação como

expressão musical de brasilidade” (PARANHOS, 2005, p. 56). Sob sua ótica, o samba foi

sendo inventado como elemento essencial da singularidade cultural brasileira por obra

dos próprios sambistas, que contribuíram para a invenção do Brasil como terra do samba,

imagem que foi construída e que perdura até hoje. Como mostra ainda o pesquisador, este

gênero musical foi usado pelo Estado Novo como “instrumento na construção de um

discurso de unanimidade nacional e propagação de valores” (PARANHOS, 2005, p. 142).

No entanto, mesmo diante da incansável pregação trabalhista do governo Vargas,

Paranhos encontrou vozes que destoavam desse discurso e seguiam, em contracorrente,

mostrando que havia limites que o Estado não podia transpor.

No âmbito da Análise do discurso francesa, o artigo de Pereira (2012) referencia

os mecanismos usados pelo Estado Novo no processo de nacionalização do samba para a

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construção de uma identidade nacional. Nesse contexto, o samba de exaltação atuou como

um discurso de consolidação de uma consciência nacional, enaltecendo/valorizando a

diversidade regional. No curso de sua reflexão, o autor observa que, para descer o morro

e ocupar o asfalto, o samba passou a ser controlado/domesticado pelo governo e, por isso,

sofreu uma série de exigências e transformações. Os sambas-enredo, por exemplo, foram

obrigados a abordar temas nacionais, eventos históricos e hinos nacionais de exaltação às

dádivas do país. Aproveitando-se ainda mais desse gênero, a ditadura Vargas estimulou

o aparecimento do chamado samba cívico, também conhecido como samba de exaltação.

O objetivo desse novo gênero era a exaltação de temas patrióticos e ufanistas, sempre

buscando ressaltar as maravilhas ao som de “orquestral pomposo”. Aquarela do Brasil foi

o primeiro samba desse gênero, responsável por difundir uma tradição discursiva de

exaltação.

O samba-exaltação é também entendido como hino de exaltação ou samba cívico.

Sob nossa perspectiva analítica, como já aludimos na primeira seção, assumindo, pois,

essa orientação, consideramos pertinente apresentar algumas pesquisas que analisam o

gênero hino e que vão contribuir para as discussões apresentadas nesta pesquisa.

Na Universidade de São Carlos (UFSCAR), Moraes (2015) buscou compreender

os mecanismos utilizados na construção do gênero hino a partir da perspectiva

bakhtiniana. O autor analisou os hinos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem

Terra (MST) e do Movimento Zapatista, além do enunciado concreto “Vem Pra Rua”.

Para o autor, há uma relação dialógica entre as canções populares e as canções hinárias,

pois as canções populares podem tornar-se hinárias. Ele explica que, nessas composições,

há “reações ao campo/esfera na construção do tema”. Defende a tese de que as demandas

de reforma agrária, urbana e sociais, entoadas, “formam uma cadeia sócio-ideológica”,

como um chamado “aparentemente constante dos embates e lutas”. Esses movimentos

são sempre “dinâmicos e diferentes, dado que em cada entoação há uma eventualidade

única”. Também constata, pelos relatos de memórias, que o hino do MST, com sua

tonalidade axiológica, de fato reflete e refrata boa parte da realidade presente em suas

letras. No caso das marchas de junho, verifica, na tonalidade de sua entoação, a

consciência imediata das condições em que foi produzida. Em seu encaminhamento

conclusivo, admite que tenha sido esse momento histórico o grande motivador das

transgressões.

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Ainda sobre o gênero hino, encontramos um artigo escrito pelos pesquisadores

Tubino, Souza e Valadão (2009), tratando dos hinos oficiais e populares dos principais

clubes cariocas de futebol, tendo como referência a primeira república do Estado Novo.

Os pesquisadores observaram que, nesse período, os governantes viram no futebol um

ingrediente fundamental para a construção de um discurso patriótico. Aliás, em sua

percepção, essa foi uma tendência frequente durante esse período, pois não apenas o

samba, como verificamos nos trabalhos anteriores, mas também os hinos de clubes de

futebol serviram como instrumento na construção da identidade nacional. Além disso,

conforme constataram, os pesquisadores ressaltam que os hinos de futebol serviram como

importante registro histórico sobre os modos de viver e de se relacionar do carioca e sobre

as contradições do período histórico analisado.

2.5.5 Gênero samba em busca de representações identitárias

Assumindo a perspectiva dialógica da linguagem do círculo de Bakhtin, a tese de

Nanci Moreira Branco (2016), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR),

buscou identidades de sambistas, por meio de representações subjacentes a seus

depoimentos. A pesquisa faz parte de um projeto intitulado Puxando conversa, que, de

1990 a 2004, registrou, em vídeo, relatos e aspetos da vida e obra de sambistas. O samba

é o meio pelo qual os sambistas se inserem socialmente e também uma forma de

identidade para esses sujeitos que produzem samba. De acordo com Branco (2016), o

samba mantém-se vivo nas comunidades graças à preservação de suas raízes, de suas

tradições e também aos “apelos da indústria cultural” (BRANCO, 2016, p. 23). A autora

lembra ainda que é igualmente necessário levar em consideração que outros fatores lhe

conferem o aspecto singular para a continuidade dessa manifestação popular: o “lugar

social de onde emerge e a coletividade que lhe constrói” (BRANCO, 2016, p. 12). Para

além disso, observa que o samba, desde seu surgimento, sempre esteve ligado a “uma

ideia de comunidade”, “como lugar de socialização” (BRANCO, 2016, p. 255); portanto,

um produto da interação social. Retomando ainda os relatos, a pesquisadora descobre um

pouco da história do samba e de sua relação com a indústria cultural. Como sujeitos que

viveram e presenciaram a constituição do samba e interagem com o lugar social onde

vivem, seus discursos revelaram que suas identidades e singularidades são construídas a

partir da relação de alteridade com a escola. Em se tratando de alteridade, a autora,

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ancorando-se em Bakhtin (2006), ressalta que esse outro “não é necessariamente uma

pessoa, mas o lugar social em que o sujeito vive, a sua história e a desse lugar, as histórias

que fazem parte da sua vida, as várias vozes trazidas de suas relações” (BRANCO, 2016,

p. 197). A título de exemplo, recorta uma fala de um dos sambistas em que ele afirma

que suas composições são parte do seu dia a dia, “a vida na Baixada Fluminense”, “nas

periferias” (BRANCO, 2016, p. 197), reforçando, assim, a relação de alteridade desses

sujeitos com o espaço social, na troca de vivências, no espaço do samba. As falas desses

sambistas também deixaram evidente a importância de fazer parte de um grupo social e

neste interagir. Por isso, a marcação da origem é tão forte dentro do universo do samba e

de outras manifestações populares que surgem na periferia.

Além disso, a ideia de pertencimento a um grupo social aparece nos

depoimentos desses sambistas: o desejo/necessidade do sujeito de

“personificar-se, tornar-se mais definido”, “não ficar na tangente,

irromper no círculo da vida, tornar-se gente entre as gentes”

(BRANCO, apud BAKHTIN, 2006, p. 383-384, grifo da autora).

Por fim, Branco (2016) conclui que estudar a alteridade, a partir de uma

perspectiva backhtiniana, orienta ao entendimento de que, mesmo o sujeito constituído

em relação ao outro, também afirma sua singularidade; isso porque a alteridade não

significa que há diluição do eu; fato este comprovado nos discursos dos próprios

sambistas.

Em nosso programa de pesquisa em Estudos da Linguagem, na Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Silva (2010) pesquisou por identidades negras

em sambas de enredo de temática africana, pertencentes aos grupos de elite do Rio. As

análises dos sambas foram realizadas sob a ótica da Análise do Discurso Francesa e dos

Estudos Culturais. Os sambas analisados correspondem ao período de 1960 e 2007. Entre

os instrumentos metodológicos, o pesquisador também aplicou questionários a

espectadores e desfilantes das referidas escolas de samba. O objetivo era descobrir se, de

alguma forma, a concepção de negritude e as práticas de cidadania de sujeitos negros do

Rio de Janeiro são afetadas pela produção de sentidos circulantes nas práticas discursivas

desses sambas. Tanto os questionários quanto as entrevistas revelaram que o samba-

enredo de temática africana ocupa um lugar importante, mas não vital na construção das

identidades étnico-raciais do negro brasileiro. Ademais, como não são estáveis, as

identidades podem assumir valores diferentes de pessoa para pessoa. E é bem essa a

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conclusão derivada desse estudo sobre o lugar que ocupa o samba de temática africana na

construção identitária étnica do negro: essa construção não se revela de maneira idêntica

para todos os negros de todos os recantos do país.

Após conhecermos algumas pesquisas que dialogam com o nosso trabalho, a seção

a seguir apresenta os principais conceitos sobre a concepção de linguagem do Círculo de

Bakhtin que fundamentam a nossa pesquisa.

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3 SEGUNDO ENSAIO OFICIAL

A concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin contribui para

compreendermos como as escolas de samba constroem e afirmam suas identidades por

meio de seus discursos. Esses estudos empreendidos pelo Círculo partem da ideia de

linguagem como interação. Os enunciados que emergem do mundo da vida são parte

constituinte e constitutiva de uma realidade concreta, revelando seus valores e seus modos

de pensar.

Seguindo essa perspectiva teórica, esta seção foi organizada da seguinte forma:

em primeiro lugar, apresentamos os conceitos-chave que fundamentam o pensamento do

Círculo de Bakhtin a respeito da concepção dialógica da linguagem, da alteridade e do

signo ideológico; em segundo lugar, tratamos sobre o gênero samba-exaltação,

relacionando-o à noção de gênero do discurso, de enunciado concreto, das forças

centrípetas e centrífugas, do signo ideológico, dos tipos de discurso persuasivo e

autoritário e de cronotopo.

3.1 CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA OS ESTUDOS DA

LINGUAGEM

À época dos estudos do Círculo de Bakhtin, predominava a ideia de linguagem

que desconsiderava o sujeito, o contexto, a situação e a historicidade. Em diálogo com

essas concepções que estavam em vigência, esses pensadores mergulharam no estudo

sobre a linguagem visando entender o ser humano em suas relações sociais (como se

relaciona socialmente com suas alteridades/com seus outros), e como essas relações se

constroem.

Nos primeiros textos do Círculo, surge a primeira noção de linguagem, entendida

como interação verbal e que, logo depois, é substituída pela noção de diálogo. O

dialogismo é uma noção basilar para a compreensão de toda a teoria bakhtiniana. De

acordo com os estudiosos do Círculo, a linguagem é dialógica porque os discursos são

construídos em dialogia com os muitos já ditos. Esse funcionamento da linguagem só

emerge a partir de uma relação dialógica, em que o sujeito sempre se orienta para o que

já foi dito. É o espaço em que se observa o processo de interação das vozes sociais, ou

seja, o modo como os sujeitos atuam nessa interação e como atribuem significados ao que

é dito.

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A dialogia é um movimento da linguagem; não deve ser entendida como um

consenso ou acordo (FARIA, 2007). O diálogo tem um sentido mais amplo e se dá em

diferentes posições sociais. Um enunciado não existe, e tampouco pode ser

compreendido, de forma isolada; ele está sempre em diálogo com outros enunciados,

outros já ditos. São relações de sentido que se estabelecem entre enunciados produzidos

por sujeitos socialmente organizados. Surge de um lugar de tensão entre vozes sociais, de

conflitos e de luta com enunciados alheios, em que atuam movimentos centralizadores

(forças centrípetas) e descentralizadores (forças centrífugas).

A linguagem instaura-se numa relação constituinte com a realidade, com a vida

social, com o mundo concreto e com a alteridade. Constitui-se no processo de interação

verbal, na troca intersubjetiva, num espaço concreto, numa realidade concreta. Como

atividade, é viva, dinâmica e não deve ser entendida como uma construção psicológica,

devendo o sujeito se apropriar mentalmente de um sistema. Por conseguinte, foge de uma

concepção de linguagem como estrutura suficiente por si só, pois é uma ação e pressupõe

sujeitos em atividade.

A linguagem é um ato singular, que, por sua vez, é uma produção do pensamento;

o ato, em si, é responsável, ético e porta valores; é criado no mundo da vida e pertence

aos sujeitos situados espacialmente. Esses valores não são abstração do pensamento, são

construídos na relação entre sujeitos.

É pela linguagem que o sujeito pode assumir um ponto de vista, um

posicionamento; toda palavra dita expressa uma ideologia, um modo de pensar, mas esse

posicionamento é construído socialmente e não individualmente. É construído a partir de

uma interação com o outro. Por isso a linguagem deve ser considerada um fenômeno

social, porque “é produto da vida social, sua criação e sua representação”

(VOLOSHÍNOV, 2013, p. 141). Os sistemas de signos refletem e refratam essa realidade

e ela não é homogênea, é plurivalente. Os pontos de vista que existem na realidade são

múltiplos, não são iguais. Como esclarece Faraco (2009, p. 54),

[...]os signos são espaços de encontro de diferentes índices sociais de

valor, plurivalência que lhes dá vida e movimento, caracterizando o

universo da criação ideológica como uma realidade infinitamente

móvel.

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73

A palavra reflete e refrata a realidade; faz parte de uma ação, um acontecimento,

não devendo ser isolada da experiência real da vida humana. Portanto, não é um sistema

de categorias gramaticais abstratas porque é “ideologicamente preenchida” (BAKHTIN,

2015, p. 40).

Assim, toda palavra sempre enfatiza uma posição no mundo axiológico, porque

“qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico” (FARACO, 2009,

p. 47). O artista é sempre responsável pela arte que cria, responsável pelo que assina, pela

produção de um conteúdo. Essa é a noção de responsabilidade (responde pelos seus atos

e pelos dos outros), porque essa responsabilidade é responsiva. Ela é sempre uma resposta

a algo, não é criada do nada.

Em outras palavras, na compreensão do Círculo, a linguagem não pode ser vista

como um conjunto de categorias abstratas. Ela envolve uma realidade axiologicamente

valorada. Valores que, para alguns, são considerados sem sentido; para outros, não,

porque esses valores precisam ser contextualizados, fazem parte de determinada

realidade. São construídos no mundo da vida e não no mundo da cultura, porque o mundo

da cultura representa, reflete e refrata esses valores, mas não os cria. Os valores são

criados pelos seres humanos em suas interações.

A linguagem é organizada em signos; “sem signos não existe ideologia”

(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 31). Os sistemas de signos constroem a realidade; não servem

apenas como uma roupagem para as ideias. A linguagem, por sua vez, representa, age,

reflete e refrata a realidade, a qual não é homogênea; “convoca” pontos de vista

diferenciados. Caracteriza-se, dessa forma, como uma realidade ideológica, que tem sua

materialidade, é construída numa situação social determinada e condicionada por esta.

A própria consciência individual é um fenômeno de orientação social. É na

interação com o outro que se constrói a individualidade. Todo produto cultural produzido

nas atividades humanas, na vida real, é um signo e “todo signo é ideológico por natureza”

(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 36). “Cada campo possui seu próprio material ideológico e

forma seus próprios signos e símbolos específicos inaplicáveis a outros campos”

(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 99). Essa visão rompe, portanto, com a ideia de que há um

único código ideológico de comunicação e de que diferentes classes sociais se apropriam

de uma só língua. Em um mesmo signo há diferentes índices de valores, daí seu

significado não ser fixo e definitivo.

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74

O enunciado é a “unidade da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016, p. 103),

e sua construção visa sempre a um destinatário; “isso decorre da natureza da palavra, que

sempre quer ser ouvida, sempre procura uma compreensão responsiva e não se detém na

compreensão imediata, mas abre caminho e mais à frente [...]” (BAKHTIN, 2016, p. 105).

A compreensão desse enunciado, portanto, depende de uma compreensão responsiva, daí

a essência dialógica da linguagem.

O homem estabelece comunicação por meio de enunciados concretos. Esses

enunciados evidenciam as relações dialógicas, na medida em que comportam

interatividade, aspecto central do dialogismo. A língua é sociológica e axiológica, pois

todo enunciado tem valor social. Para o Círculo de Bakhtin, em todo discurso há “[...]

uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (sempre

dialogadas em maior ou menor grau)” (BAKHTIN, 2015, p. 30). Melhor situando: o

heterodiscurso não é apenas uma multiplicidade de vozes mas sim uma heterodiscurso

dialogizado, pois possui carga de valor; são vozes que dialogam com outras.

Um dos pressupostos básicos do Círculo é justamente o estabelecimento da

inegável relação entre linguagem e alteridade. A alteridade é o que se coloca em relação

ao eu; é o outro. Essa relação de alteridade leva em consideração a ideia de que o ser

humano se constitui a partir da relação com o outro, de que o ser humano é inacabado,

está sempre em processo de construção. Aqui, podemos compreender porque o homem é

considerado um ser de linguagem, porque a linguagem é inerente à concepção do ser

humano.

Os valores das sociedades humanas não são construídos a partir de um eu sozinho,

mas da relação desse eu com o outro. E essas relações, esses valores são os mais diversos

que existem na relação com a realidade, pois as pessoas, as sociedades e as esferas em

que circulam são diferenciadas. O signo só emerge na relação com o outro; não surge

sozinho. Concretiza-se em deriva de um processo de interação verbal, de troca entre duas

ou mais consciências.

Ao mergulhar na esfera literária, Bakhtin (2015) pondera sobre o fato de que a

relação autor e criador com a sua obra assemelha-se a uma relação entre o eu e o outro.

O que vai possibilitar ao autor criador (esse eu) enxergar o outro em seu inacabamento é

a sua visão exotópica, sua visão de fora, de um lugar exterior.

Na esteira do pensamento dos autores do Círculo, entendemos que ser humano

significa conviver, relacionar-se. Colocar-se sempre em relação com o outro. Essa relação

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com a alteridade constrói-se temporariamente e diferentemente, o que não quer dizer que,

nessa constituição do eu com o outro, o eu se dilua, ou se desmanche no outro, que se faz

presente no enunciado. Na alteridade, o outro entra no discurso. No processo de

apropriação e transmissão da palavra alheia, por exemplo, os discursos direto e indireto

são maneiras de apropriação do discurso do outro; não apenas uma estrutura sintática,

conforme a gramática tradicional apresenta; é uma relação com o estilo, com a

enunciação, com o enunciado, é significação e valoração.

Após esse percurso por algumas noções do pensamento do Círculo de Bakhtin, a

seção a seguir apresentará o conceito de gênero do discurso e de enunciado concreto,

relacionando-os ao samba-exaltação, ao signo ideológico, às forças centrípetas e

centrífugas e ao discurso autoritário persuasivo.

3.2 O SAMBA-EXALTAÇÃO EM DIÁLOGIA COM OS HINOS NACIONAIS

Analisar o gênero samba-exaltação a partir da teoria bakhtiniana é compreender

que são os gêneros do discurso que traduzem as relações sociais e as tensões vividas pelos

sujeitos em um determinado tempo-espaço. Isso porque os discursos estão estreitamente

vinculados ao seu contexto de produção e à situação imediata, refletem e refratam essa

realidade porque não podem ser desvinculados de suas condições de produção, do

momento histórico do qual são parte constituinte e constitutiva.

Se a palavra for estudada como objeto ou coisa, assim como ocorre nas análises

puramente linguísticas, não se dá esse “enfoque dialógico, imanente a toda interpretação

profunda e atual” (BAKHTIN, 2015, p. 148). Como afirmamos na seção anterior, sobre

o modo dialógico da linguagem, os enunciados estão sempre em relação dialógica com

outros enunciados já ditos e por dizer, ou seja, estão sempre numa posição responsiva,

quer concordando, ou discordando, quer complementando. A palavra é viva e tem

significado que dialoga com a vida.

Tradicionalmente, os gêneros discursivos eram considerados um agrupamento de

procedimentos, concebidos a partir da categorização e da descrição tipológica e arbitrária.

O Círculo de Bakhtin, ampliou o estudo dos gêneros. Passou-se, então, a compreendê-los

como formas de comunicação humana que têm regras e finalidades tecidas na interação

social. Todas as interações entre os sujeitos são mediadas pelos gêneros do discurso e é

isso que confere o caráter de uma prática social a todo discurso.

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Esse novo modo de compreensão vai de encontro àquela análise fechada da

palavra, própria da linguística tradicional. Isso porque todo e qualquer discurso verbal

desvinculado da vida, da situação pragmática extraverbal, que desconsidera a

arquitetônica enunciativa, ou seja, os sujeitos envolvidos na interação, os valores, o

contexto e a situação extraverbal, mostrar-se-á desprovido de significação.

O Círculo de Bakhtin desenvolveu a teoria sobre os gêneros “considerando não a

classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo” (MACHADO,

2014, p. 152). A noção de gênero, para o Círculo, está relacionada à vida social e a uma

“atitude responsiva ativa” dos sujeitos envolvidos no processo comunicativo. Os gêneros

são fontes substanciais de conhecimento sobre uma dada realidade; uma das

características fundamentais à noção de gênero é a sua capacidade de mobilidade

discursiva; eles acompanham a evolução da sociedade, não são fixos no tempo e no

espaço; são heterogêneos. Nesse processo comunicativo, é possível observar “o

hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na cultura”

(MACHADO, 2014, p. 153).

Os gêneros discursivos são construídos a partir de um querer dizer do interlocutor,

uma finalidade comunicativa. É esse projeto de dizer que vai determinar o seu conteúdo

temático, seu estilo e sua construção composicional, o todo do enunciado.

Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada

esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do

objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois

disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua

individualidade e à sua subjetividade, adapta-se ao gênero escolhido

(BAKHTIN, 2015, p. 291).

No que se refere aos sambas-exaltação, estes correspondem a gêneros discursivos

que têm como propósito comunicativo exaltar a escola ou algum outro componente da

agremiação. Esses gêneros, que têm ampla divulgação midiática, tornam-se hinos e são

entoados dentro da quadra da escola ou no cortejo que antecede ao desfile na avenida.

São direcionados ao público em geral, mas principalmente àqueles que pertencem à

comunidade. Assim como outros hinos, de forma geral (nacionais, religiosos,

institucionais etc.), fazem parte de uma estratégia discursiva que visa construir um modo

de ser e de pensar, elevar a autoestima da escola e dos participantes, desenvolvendo um

sentimento de pertencimento a uma determinada nação, grupo ou comunidade. “O hino

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[...] é um enunciado que reelabora a palavra do outro expressando por esse enunciado

uma entoação que nos guia, orientando-nos, apontando para um horizonte comum os

valores do momento no qual se executa” (MORAES, 2015, p. 14).

De acordo com Moraes (2015, p. 15), a tradição discursiva de exaltação “tem sua

origem na literatura grega com os hinos homéricos”, cujos versos se aproximavam do

louvor aos deuses ou heróis. Já os hinos pátrios (nacionais) tiveram seu primeiro registro

no século XVI e, principalmente, no século XVIII, pós-revolução francesa. Moraes

explica que o conceito de hino se relaciona a três práticas de comunicação verbal:

o conceito de hino, historicamente, está ligado a três práticas da

comunicação verbal: (i) às atividades populares festivas e religiosas da

Grécia Antiga, (ii) ao fenômeno denominado “nação” e aos conceitos a

ele imbricados como “nacionalismo” ‒ o que culminou na formação dos

estados nacionais ‒ e, por fim, (iii) a quaisquer entidades ou instituições

que tomam esse gênero como sua parte representativa (MORAES,

2015, p. 15).

O gênero hino (assim como qualquer outro gênero) é produzido para fins e

situações específicas; portanto, está diretamente ligado a esse contexto de produção e

circulação. No caso dos hinos nacionais, estes se atrelam a um período histórico, em que

se adotou o “estado-nação como administração política e social” (MORAES, 2015, p.

16). Essas canções surgem como propagadoras ideológicas de modos de pensar, de

valores que se deseja instituir e da identidade de uma nação.

O hino é, portanto, um produto ideológico; parte de uma realidade concreta que

revela os fatores históricos que envolvem sua construção. Os nacionais têm como objetivo

um processo de unificação cultural, regional e econômica. Nesse processo, apoderam-se

de gêneros do discurso secundário para o alcance do grande projeto de dizer. Há, portanto,

nesses enunciados, todo um apagamento das singularidades regionais e culturais. Todas

essas especificidades fazem parte do projeto de discurso e vão determinar a construção

do todo do enunciado: seu estilo verbal, seu tema e a sua estrutura composicional. É bem

essa a percepção de Voloshinov (2014, p. 118): "Os signos ideológicos constituídos da

moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do

cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim

o tom a essa ideologia". Esses enunciados criam uma ideia de nação ou comunidade,

inventando tradições, um lugar e um passado de glórias. Ressaltam as principais

características, dando um colorido a mais.

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No que diz respeito às tradições, Hobsbawm (1984, p.10) alega que muitas

tradições foram inventadas, construídas por uma repetição contínua e quase obrigatória

de referência ao passado. Essa constante repetição do passado “caracteriza-se por

estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial”. Realinhando esse pensamento,

o autor assim conceitua o termo:

por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,

normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais

práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores

e normas de comportamento através da repetição, o que implica,

automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás,

sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado

histórico apropriado (HOBSBAWM, 1984, p. 10).

De pronto, remete-nos à construção do próprio hino nacional brasileiro como um

exemplo de “tradição inventada” por meio de um discurso contínuo, em que se forja uma

ideia de identidade brasileira, ou seja, “o passado real ou forjado a que elas se referem

impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição” (HOBSBAWM,

1984, p. 11). Parece inconteste o fato de que o gênero discursivo hino é um grande

propagador de identidades, no seu intento de cristalizar um modo de pensar que nem

sempre condiz com a realidade concreta.

A entoação de hinos é uma prática comum no dia a dia, seja na escola, num estádio

de futebol, seja em qualquer outro momento cívico. Os hinos mais conhecidos são os

nacionais e os religiosos. Mas, como vimos em Moraes (2015), sobre canções homéricas,

os hinos, assim como outros gêneros discursivos, diferenciam-se de acordo com seu

propósito comunicativo e podem assumir diferentes formas. Parece-nos ser justamente o

caso dos hinos de exaltação das escolas de samba.

Os hinos são enunciados que atuam como forças centralizadoras de modos de

pensar, denominadas por Bakhtin de forças centrípetas – “aquelas que buscam impor certa

centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real” (FARACO, 2009, p. 69),

pois tentam tornar o signo monovalente, construindo uma ideia de unidade dentro da

diversidade. Faraco (2009) confirma que “a classe dominante tenta tornar monovalente o

signo – que é, no entanto, sempre polivalente – imprimindo-lhe, com este gesto, um

caráter de deformação do ser a que remete o signo” (FARACO, 2009, p. 71). Nesse

percurso reflexivo, podemos apontar os hinos nacionais como exemplos de atuação das

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forças centrípetas, vez que estes constroem uma ideia de nação homogênea, forjando

tradições e um passado de glórias, parecendo excluir toda e qualquer diversidade.

O morro, a favela e o subúrbio do Rio de Janeiro criaram o gênero samba que

conhecemos hoje, um gênero de raízes africanas e marcado pela oralidade. Os sambas,

apesar de apresentarem uma melodia parecida, diferenciam-se de acordo com seu

propósito comunicativo (samba de roda, samba de partido alto, samba enredo, entre

outros). Antes de alcançar o status de símbolo da cultura nacional, por exemplo, o samba

serviu não apenas para cantar a vida boêmia e a malandragem mas também como

instrumento de luta e resistência contra a exclusão e a segregação, conforme

mencionamos na seção anterior. Nesse período, o samba atuava como as forças

centrífugas, “aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio

de vários processos dialógicos [...] a sobreposição de vozes etc.” (FARACO, 2009, p. 70).

O samba desenvolveu-se nas casas das tias baianas, em morros e favelas do Rio

de Janeiro. Esses espaços tornaram-se redutos importantes da cultura negra africana e,

apesar da discriminação quanto às suas práticas e aos cultos religiosos, o samba conseguiu

se desenvolver. Antes da gravação de Pelo Telefone9, em 1917, o samba não era

reconhecido como gênero musical.

À luz dos saberes sobre gênero difundidos por Bakhtin (2016), revalidamos o dito

quanto ao fato de que o samba (assim como outros gêneros do discurso) diferencia-se de

acordo com seu projeto de dizer e a situação imediata. Um enunciado tem determinada

forma porque o conteúdo assim estabelece. O conteúdo temático é orientado pelo tema a

ser tratado e também pelas especificidades do gênero. Já a estrutura composicional diz

respeito à forma, à organização arquitetônica. Em outras palavras, a forma arquitetônica

é o conteúdo (relação de valores), e a forma composicional está a serviço de uma forma

arquitetônica (rede axiológica).

O conteúdo é parte de qualquer enunciado. Trata-se de um conjunto de relações

axiológicas que são constitutivas do fazer estético. O objeto estético não deve ser

compreendido como um artefato ou apenas em função de seus elementos linguísticos;

deve considerar a realidade concreta e toda a arquitetônica do enunciado, ou seja, a esfera

de produção e circulação desse discurso, os sujeitos que interagem e seus valores.

9 Considerado o primeiro samba brasileiro a ser registrado e gravado.

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A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova.

Diferentemente do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a

humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade

preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade

concreta e intuitiva desses dois mundos, coloca o homem na natureza,

compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e

naturaliza o homem (BAKHTIN, 1998, p. 33).

Relacionando esses conceitos ao nosso objeto de análise, o samba-exaltação

surgiu a partir do momento em que o desfile das escolas de samba passou a fazer parte de

uma competição, sendo conhecido incialmente como samba de “esquenta”. Mas foi

apenas em 1939, no governo de Getúlio Vargas, que o samba de “esquenta” passou a ser

denominado como samba-exaltação ou samba-cívico. Como já mencionamos, vários

estudiosos que direcionaram seus estudos ao gênero samba-exaltação (PARANHOS,

2005; FILHO, 2009; PEREIRA, 2012) afirmaram que esse período ficou marcado pelo

desejo de construção de uma consciência nacional. O samba, gênero produzido e

consumido nos morros e favelas da cidade do Rio de Janeiro, considerado até então

produto da malandragem, passa a ser usado como uma estratégia discursiva ideológica de

exaltação à nacionalidade e de entusiasmo ao trabalho.

Para descer o morro e ocupar o asfalto, o samba passou a ser controlado pelo

governo e, por isso, sofreu uma série de exigências e mudança em suas composições. Os

sambas-enredo, por exemplo, passaram a explorar temas nacionais que mostrassem as

dádivas do país e seus fatos históricos. Foi assim que, aproveitando-se ainda mais do

gênero que a ditadura Vargas fez surgir (o chamado samba cívico, conhecido também

como samba-exaltação ou hino de exaltação), se foi forjando a identidade de toda uma

nação.

Outras denominações afastavam-se da caracterização meramente

musical e informavam sobre certos predicados, como em “samba

cívico” ou “marcha patriótica”. A composição de Ari Barroso ajudou

a definir o formato e o nicho do “samba exaltação”. [...] seria

caracterizado por “melodia extensa e letra de tema patriótico, cuja

ênfase musical recai sobre o arranjo orquestral, inclusive com recursos

sinfônicos” (FILHO, 2009, p. 5, grifo do autor).

Como Filho (2009) observou acima, a principal característica desse gênero era a

exaltação às belezas naturais do Brasil, a prevalência de temas patrióticos e ufanistas.

Nesse período, vários compositores foram impulsionados a criar sambas-exaltação de

cunho patriótico. “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, foi o primeiro e mais conhecido

samba deste gênero, sendo responsável por difundir uma tradição discursiva de exaltação

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à cultura nacional. Sob essa ótica, percebe-se como os grupos dominantes conseguiram

se apoderar de um instrumento genuinamente popular, o samba, para reforçar o discurso

monológico e centralizador de valores (forças centrípetas), corroendo todo esforço da

classe popular de promover a descentralização discursiva (forças centrífugas).

Ao subir os morros com as reformas urbanas o samba “amalandrou-se”,

mas para ser incorporado neste momento pela sociedade brasileira teve

que diminuir esse traço, contrário aos ideais trabalhistas do Estado

Novo. Este processo de “domesticação” do samba à serviço do Estado

combateu a figura do malandro, a vadiagem e a orgia. O lenço no

pescoço, chapéu panamá, tamanco e navalha costumamente

mencionados nas letras foram censurados, agora o sambista só podia

ser um trabalhador. De acordo com Caldeira (2007, p. 99), “a proibição

do tema da malandragem foi a primeira e visível operação direta de uma

agência central, no caso governamental, de manipulação do material

simbólico”. (PEREIRA, 2012. p. 3, grifo do autor)

Como é possível constatar, ao entrarem na ordem do permitido, ou seja, ao se

oficializarem, alguns sambas sofreram uma série de transformações, como foi o caso dos

sambas-enredo e dos sambas-exaltação. No dizer de Pereira (2012), o samba, um gênero

tipicamente popular, que traz toda uma “carga genética de cultura popular negra", ao

entrar na ordem do permitido, submete-se ao apagamento de uma identidade ou cultura

negra, convertendo "o que é orginalmente perigoso em algo 'limpo', 'seguro' e

“domesticado’” (PEREIRA, 2012, p. 14, grifo do autor).

O outro fator que defendemos é a plurivocalização do samba, uma vez

transformado em nacional-popular e inserido no mercado cultural, este

gênero musical, além de ter um alcance representativo, também

funciona como espaço de fala dos mais diversos segmentos sociais, de

seu contexto histórico e de sua ideologia (PEREIRA, 2012, p. 6).

Vale relembrar o fato de que o samba é um gênero discursivo que foi inicialmente

construído no curso de forças centrípetas. Isso porque rompia com a lógica do pensamento

dominante que determinava as formas de vida e varria qualquer artefato cultural negro.

Por ser música e ter grande representatividade cultural, o samba teve um alcance imediato

e se configurou como um importante divulgador de ideologias10 do Estado, como já

assinalam os estudos de Pereira (2012), Filho (2009) e Paranhos (2005). Essa estratégia

10 Nos textos do Círculo de Bakhtin, ideologia diz respeito a todo universo de manifestações que envolvem

as superestruturas: a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política (FARACO, 2009,

p. 46).

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do samba como propagador das ideologias vigentes, por parte das classes dominantes, é

uma forma de “apagar as possibilidades do outro se alterar, impondo nesse lugar a

identidade estática e genética, edificando dessa maneira uma hegemonia discursiva

opressora através dos meios de comunicação cada vez mais eficazes e diversificados”

(MORAES, 2015, p. 25).

A ideologia tem sua essência na vida cotidiana, no dia a dia e é criada pelos seres

humanos em suas mais diversas interações sociais. A palavra serve de veículo a essa

ideologia, que tem sua origem tanto nas classes dominantes (ideologia oficial) quanto nas

classes dominadas (surge no cotidiano, parte de encontros fortuitos e causais, na

proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida). Na visão de

Machado (2014, p. 170),

[...] todo signo, além dessa dupla materialidade, no sentido físico-

material e no sentido sócio-histórico, ainda recebe um “ponto de vista”,

pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a

como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o

signo coincidir com o domínio ideológico.

O conjunto de signos que fazem parte de cada escola de samba, como a bandeira,

os símbolos e as cores, usados para representar a agremiação e seu hino de exaltação,

formam o que Volóchinov (2017) denominou de universo de signos. Quando pensamos

na Escola de Samba da Mangueira, por exemplo, logo vêm à mente, as cores verde e rosa;

a escola da Portela, por sua vez, remete-nos à sua águia azul e branca.

Apesar de não encontrarmos nenhuma semelhança entre os hinos e os sambas-

exaltação, em sua forma entoacional e modelar, em ambos é a “a realidade imediata da

situação social que promoveu as condições da forma” (MORAES, 2015). Assim, segundo

Moraes (2015), podemos dizer que os hinos são gêneros discursivos “falaciosos pelas

monovalências” (MORAES, 2015), pois simulam uma imagem que não coincide com o

real, e com aquilo que eles almejam da comunidade; veiculam modos de pensar,

suprimindo as outras vozes e ignorando outras formas de ser e outros índices de valores.

Atualmente, com a crescente rivalidade entre as agremiações e as dificuldades

enfrentadas no âmbito da própria comunidade, o samba-exaltação (assim como os hinos

nacionais e religiosos) tornou-se uma espécie de ritual das escolas: seus versos exaltam e

enaltecem suas qualidades e vitórias, reforçam o sentimento de pertencimento e

contribuem para a construção da identidade da escola e propagação de seus valores.

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Durante a entoação dos hinos, os participantes são guiados por seu tom emocional,

sentem-se mais envolvidos, motivados, e bem mais próximos à agremiação. É o momento

de construção do sentimento “patriótico”, o verdadeiro representante da agremiação e do

espaço da comunidade; de fato, um dos elementos constitutivos da escola.

Os sambas-exaltação, assim como os hinos nacionais, simulam uma realidade

forjada, criam a ideia de “ser comunidade”, reforçam valores que desejam instituir e

constroem modos de pensar. No caso das escolas de samba, a mídia tem um papel

preponderante na ampla divulgação e consolidação das identidades dessas agremiações.

No que diz respeito à escola de samba da Mangueira, por exemplo, ouvimos

constantemente da mídia televisiva que ela tem tradição de samba.

Assim, podemos dizer que o samba-exaltação enquadra-se naquilo que Bakhtin

(2015) denomina de gênero secundário, que é produzido em uma esfera de atividade

sociocultural mais complexa, mais elaborada.

Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários

tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja,

dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo

[...] Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que

assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo

lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade

do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida

(BAKHTIN, 2015, p. 264).

Em sua forma composicional, os sambas-exaltação abrigam os valores e os modos

de pensar que a agremiação deseja instituir. Chamam, igualmente a atenção, pelo seu

caráter axiológico-entonacional, pois são carregados de valores, harmonizados com tom

musical capaz de envolver e emocionar, e é esse valor “que faz um “enunciado-palavra”

se tornar um hino”. O momento de entoação de um hino seria como o apagamento das

singularidades em prol de um discurso unificador que corresponde às ideologias

pretendidas (MORAES, 2015, p. 15).

Podemos dizer que os hinos nacionais e religiosos entram na categoria

denominada por Bakhtin discurso autoritário (2015). Em termos bakhtinianos, a

linguagem é socialmente constituída por uma multiplicidade de vozes. Os enunciados

estão repletos de palavras dos outros, em graus diferenciados de alteridade e de

assimilação. Assim, considerando o modo de assimilação da palavra do outro no discurso,

Bakhtin (2015, p. 142) apresenta duas categorias:

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a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações,

indicações, regras, modelos, etc., ‒ ela procura definir as próprias bases

de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso

comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a

palavra interiormente persuasiva. [...] O conflito e as inter-relações

dialógicas destas duas categorias da palavra determinam

frequentemente a história da consciência ideológica individual.

De acordo com o autor, esse tipo de discurso autoritário (religioso, político,

científico, entre outros) possui graus diferentes de autoritarismo e pode ser organizado

dentro de outros discursos que o aplicam de modos vários. Trata-se de um discurso

monológico visto que se fecha para as relações dialógicas. Exerce forte influência sobre

os outros discursos e se coloca hierarquicamente superior. Para Bakhtin, a palavra

autoritária “entra em nossa consciência verbal como uma massa compacta e indivisível”

(BAKHTIN, 2015, p. 144). Não há fusão entre os dois discursos, o discurso autoritário

“permanece acentuadamente destacado, compacto e inerte: ele, por assim dizer, exige não

só aspas como também um destaque de letras” (BAKHTIN, 2015, p. 137). Ele não se

dilui dentro do discurso do outro, seus limites são facilmente reconhecíveis.

Não se representa o discurso autoritário: ele é apenas transmitido. Sua

inércia, seu acabamento semântico e sua ossificação, seu afetado

isolamento externo, a inadmissibilidade de que se aplique a ele um livre

desenvolvimento estilizante [...] (BAKHTIN, 2015, p. 138).

O discurso internamente persuasivo é muito comum na esfera publicística,

religiosa e nos hinos nacionais. Nas propagandas, é muito comum o uso de modelos e

construções de valores que são facilmente assimilados como reais e autênticos

socialmente. Essas formas de discurso do outro ocorrem de maneira diversa e

fundamentam a nossa “relação ideológica com o mundo e o nosso comportamento”

(BAKHTIN, 2015, p. 139). Nesse sentido, a linguagem não é uma construção neutra;

orienta-se sempre visando a um possível interlocutor e antecipando possíveis respostas à

sua enunciação.

Embora a ideia que se tem de hino seja muitas vezes vinculada à noção de oficial,

como se esse gênero estivesse sempre ligado a instituições públicas ou privadas, Moraes

(2015, p. 18) demonstra que o que faz o “enunciado-palavra” se tornar um hino é o “valor

axiológico-entonacional”; a propósito,

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[...] é sabido que o valor axiológico-entonacional é o que permite que

um “enunciado-palavra” se torne um hino, sendo esse o momento em

que aquilo que é tido como oficial ou de qualquer nação terá um sentido

único, nem sempre correspondendo às ideologias pretendidas pelas

classes das instâncias superestruturais, pois são inúmeras as canções

que, devido às determinações do momento histórico e das interações

que ocorrem no interior de cada esfera transmutam-se para esse gênero,

na passagem de uma canção a outra. Dos tempos homéricos até os dias

atuais, entoar um hino é promover uma suspensão do corriqueiro, do

cotidiano em prol da constituição de um sentido, ora oficial ‒ em que

se pretende apagar as singularidades ‒ ora como atividade social

espontânea de alargamento da visão de mundo

A entoação é outro aspecto importante dos enunciados. A entoação é o meio pelo

qual se exterioriza uma visão avaliativa do mundo, denominada nos textos do Círculo

como expressão axiológica-emocional. Na relação dos enunciados com a situação

extraverbal que os produz, a entoação-expressiva é responsável pelo sentido pleno do

discurso verbal, que completa o significado do que se enuncia. É um “elemento axiológico

de posicionamento a partir do qual podemos identificar o caráter ideológico das vozes

dos sujeitos que se alternam no discurso” (MORAES, 2015, p. 55). Essa é uma

característica do gênero hino, visto que os gêneros do discurso veiculam uma visão de

mundo por meio da “expressão axiológica entonativa” (MORAES, 2015, p. 25).

O entendimento do enunciado não depende apenas do conhecimento da situação

extraverbal; pode-se expandir quando temos acesso ao horizonte global da situação. “A

entoação estabelece um elo firme entre o discurso verbal e o contexto extraverbal – a

entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal para além das fronteiras do verbal,

por assim dizer” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 7).

No caso do samba-exaltação, a entoação vem da necessidade dos interlocutores

de criarem um sentimento patriótico pela escola de samba. É a emoção causada pela

entoação do hino que provoca esse efeito nos participantes. Por isso, nesse caso, a

compreensão global do enunciado é expandida pela entoação que lhe é dada.

Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é

na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor

ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é

especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que

envolve o falante (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 10).

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Fica, pois, bem claro o fato de que a entoação só adquire força quando existe

“apoio coral” dos interlocutores. Sem a “comunhão de julgamentos básicos”, o discurso

perde sua capacidade. Nesse sentido, o samba de exaltação toma força e adquire

significados pretendidos quando há o envolvimento dos participantes. Nessa perspectiva,

a entoação dada aos sambas-exaltação é capaz de dar uma atitude ativa à escola de samba,

torná-la objeto vivo. Isso considerando que

[...] cada instância de entoação é orientada em duas direções: uma em

relação ao interlocutor como aliado ou testemunha, e outra em relação

ao objeto do enuncia como um terceiro participante vivo, a quem a

entoação repreendeu ou agrada, denigre ou engrandece. Essa orientação

social dupla é o que determina todos os aspectos da entoação e a torna

inteligível (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 13).

São todos esses aspectos do discurso verbal que fazem com que o samba-exaltação

adquira sentido. Ele toma forma nesse processo de orientação: o falante (sambistas), o

interlocutor (público participante) e o tópico (escola de samba). Justamente porque faz

parte de um evento social, é “a alma social do discurso verbal” que lhe “dá também

significado artístico” (VOLOCHÍNOV, 1976, p.13). Nessa forma, o samba-exaltação

adquire ainda mais sentido por causa de uma série de fatores – a entoação, a situação

extraverbal, o discurso verbal e todo o significado que a escola de samba engloba, que

conferem ao gênero do discurso uma forma enunciativa e não uma forma linguística, pois

sua significação relaciona-se ao contexto da interação, aos efeitos comunicativos e

expressivos (MACHADO, 2014, p. 158).

Após compreendermos alguns conceitos-chave do Círculo de Bakhtin, nos

apropriamos dessa abordagem teórico-metodológica para interpretar os significados

construídos bem como os valores atrelados a construção dos hinos das escolas de samba.

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4 OUTROS ENREDOS: CAMINHOS METODOLÓGICOS

Esta seção visa contextualizar o nosso objeto de pesquisa e apresentar os

fundamentos e escolhas metodológicas que subsidiam o nosso estudo para a análise do

corpus.

4.1 A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA

QUALITATIVA-INTERPRETATIVISTA

Como dissemos na seção de introdução deste estudo, esta pesquisa é norteada pela

concepção de linguagem dialógica do Círculo de Bakhtin, associada aos estudos culturais

contemporâneos. Insere-se metodologicamente no âmbito das Ciências Humanas e

Sociais, no domínio da Linguística Aplicada (LA) e está amparada pelo paradigma

qualitativo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994); (BOGDAN & BIKLEN, 1994).

Essa escolha torna-se pertinente na medida em que se coloca em sintonia com os novos

cenários que se configuram na atualidade, exigindo dos pesquisadores uma nova postura,

uma nova forma de produzir conhecimentos que possam satisfazer as demandas dessa

nova realidade.

Nesse modelo de pesquisa, não há lugar para a concepção de linguagem

tradicional, considerada como objeto autônomo, em que a língua é apenas uma estrutura

sintagmática ou abstração do pensamento, relegando-se, em sua fundamental

importância, a linguagem em uso, sua historicidade e suas esferas de produção e

circulação. A noção de linguagem aqui assumida dialoga com a vida, uma vez que é

considerada como prática social, não se devendo desvincular do estudo da sociedade e da

cultura da qual ela é parte constituinte e constitutiva.

Atualmente, a LA é uma área que dialoga com a vida e está focada na “resolução

de problemas das práticas de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula” (MOITA

LOPES, 2015, p. 18). As pesquisas em LA buscam refletir sobre o problema da linguagem

em uso nas práticas sociais e nas diversas esferas sociais. Constitui-se, dessa forma, em

uma das áreas de produção de conhecimento mais amplas, cuja principal característica é

estar sempre em processo de reconfiguração.

Essa compreensão de língua como prática social rompe com a lógica de uma

linguagem entendida como estrutura gramatical. A língua está diretamente ligada à

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realidade, às mudanças da vida social. Ela não está isolada como uma abstração. Seu

objeto de estudo não nega o sujeito e nem sua historicidade.

As transformações ocorridas ao longo dos últimos séculos contribuíram para a

formação de novos cenários e outros modos de ser dos sujeitos. A origem dessa

problemática está no processo de globalização, em que as mudanças ocorrem numa

velocidade ímpar, o que vem afetando as identidades, que se definiam antes tão estáveis

e seguras. Ao inserirmos esta pesquisa no campo de estudos da LA, enredamo-nos num

emaranhado de fios a serem conectados; isso porque as respostas para essas questões

requerem um passeio por múltiplos saberes. Afinal, uma das características mais notáveis

e unânimes da LA é a sua transdisciplinaridade, sua capacidade de dialogar com

diferentes áreas do conhecimento: História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, estudos

culturais, entre outras.

E para enfrentar os questionamentos da pós-modernidade, a Linguística Aplicada

busca respostas diferentes daquelas consideradas como universais, abrindo espaço para

as diferenças, para a “periferia social” (BOHN, 2005, p. 21). Preocupa-se em

problematizar e questionar as contingências do mundo atual, sem pretensões de trazer

verdades incontestáveis e indiscutíveis, nem de provar exaustivamente as causas e os

efeitos, assim como ocorre nas áreas das ciências naturais. Esse tipo de investigação

adotado nas ciências naturais e exatas reduz a “complexidade do mundo a leis simples”

(BOAVENTURA, 2016, p.1), “insuficientes” para gerar respostas para as ciências

humanas. Isso porque o objeto de estudo é “multifacetado, repousando em

multicausalidades” (OLIVEIRA, 2012, p. 2).

Em diálogo transfronteiriço com outras áreas de produção de conhecimento,

assume-se como uma área mestiça, transgressora e indisciplinar. Indisciplinar porque não

se constitui como disciplina, mas como uma área de produção de conhecimento que se

coloca além dos paradigmas consagrados (MOITA LOPES, 2015).

A LA indaga as teorias tradicionais, propondo novas formas de produzir

conhecimento, distanciando-se de “verdades consideradas universais”. Os estudos

tradicionais ignoravam a historicidade dos sujeitos, desvinculando-os do mundo real. A

LA entende a linguagem como prática social constitutiva das relações humanas, atuando

nas múltiplas esferas de atividade sociais. Nesse sentido, fazer pesquisa em LA pressupõe

que é preciso levar em conta o contexto sócio-histórico.

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Para “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um

papel central” (MOITA LOPES, 2015, p. 14), a LA necessita aliar-se a teorizações e a

uma concepção de linguagem que deem respostas a essas perguntas e sejam compatíveis

com esse pensamento. Dentre as várias concepções de linguagem existentes na

atualidade, a do círculo de Bakhtin é uma das que têm contribuído para apreender o ser

da linguagem.

O conjunto de obras dispostas pelo Círculo de Bakhtin conduz ao entendimento

do que seria produzir conhecimento em Ciências Humanas e as diretrizes para

compreender melhor o objeto estudado. Para os autores do Círculo, nas pesquisas em

ciências humanas, “a questão da voz do objeto é decisiva” (AMORIM, 2001, p, 10).

Ao contrário do que pensam, o Círculo de Bakhtin criou não apenas uma teoria

para os estudos da linguagem mas “também uma metodologia para as Ciências Humanas”

(GERALDI, 2010, p. 27). Os pensadores do Círculo colocaram o ser “humano como

centro das pesquisas”. Em outras palavras, seus estudos demonstram que a linguagem

decorre de toda atividade humana e, portanto, não se deve estudá-la fora de seu contexto

de produção e circulação porque é “onde a linguagem circula e onde ela faz sentido”

(GERALDI, 2010, p. 27). Vê-se, pois, que esses estudiosos não se amarram nas estruturas

sintagmáticas, “ou no sistema, ou no signo isolados dos seus contextos e relações, ou no

objeto objetivados”. Retiram a ideia de texto como objeto puramente linguístico, colocam

“o texto como o material sígnico ideológico por excelência” (MIOTELLO, 2005, p. 10)

porque partem do entendimento “da palavra como arena mínima de embates ideológicos”

(MIOTELLO, 2005, p. 10).

É nesse aspecto que, segundo Bakhtin (2016), reside a diferença entre fazer

pesquisa nas ciências humanas e fazer pesquisa nas ciências naturais:

o pensamento das ciências humanas nasce como pensamento sobre

pensamentos dos outros, sobre exposições de vontades, manifestações,

expressões, signos atrás dos quais estão os deuses que se manifestam (a

revelação) ou os homens (as leis dos soberanos do poder, os legados

dos ancestrais, as sentenças e enigmas anônimos, etc.) (BAKHTIN,

2016, p.72).

As ciências humanas estão voltadas para desvendar os pensamentos, os sentidos e

significados que se materializam em forma de texto. O texto é, portanto, o ponto de

partida para o conhecimento, independente dos objetivos. Os elementos verbais são dados

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primários porque “todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve)

(BAKHTIN, 2016, p. 72)”. Nesse processo, o pesquisador entra como um segundo autor

porque cria um novo “texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.)” (BAKHTIN,

2016, p. 73).

O texto, seja oral ou escrito, faz parte de uma realidade imediata. São fontes

substanciais de conhecimento: “onde há texto há objeto de pesquisa e pensamento”

(BAKHTIN, 2016, p. 71). Ademais, todo texto “pressupõe um sistema universalmente

aceito (isto é, convencional no âmbito de um dado grupo) de signos, uma linguagem

(ainda que seja a linguagem da arte)”. Se não há linguagem, não é um texto, “mas um

fenômeno das ciências naturais (não embasado em signo), por exemplo, um conjunto de

gritos naturais e gemidos desprovidos de repetição linguística (semiótica)” (BAKHTIN,

2016, p. 74).

Bakhtin não rejeita a ideia de que todo texto tem elementos que vão além dos

limites humanísticos e que podem ser chamados de elementos técnicos: “Não há e nem

pode haver textos puros”; todo texto pressupõe um sistema de linguagem. O que faz o

texto ser um enunciado são todas as intenções comunicativas pelas quais foi criado e,

portanto, faz dele algo único, singular e individual.

No campo de estudo da LA, os sujeitos de pesquisa não são considerados objetos

estáticos que se afastam do funcionamento real da língua, dos discursos produzidos em

sociedade. Seu propósito é estudar a língua real, a língua em uso, em seus vários contextos

de produção e circulação.

Ao tentar compreender o ser humano no “processo de sua existência”, Bakhtin

(2012) critica os princípios universais que direcionam as teorias da época. Para o autor, a

produção de conhecimento não pode ser isolada “do ser e de sua existência concreta nos

eventos do mundo da vida” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). O mundo da vida, mundo em que

se realizam as ações humanas, é onde se encontram as orientações necessárias para a

investigação e a compreensão dos seres humanos e suas ações.

Esse tipo de pesquisa requer, portanto, um modo de pensar “pós-abissal”

(BOAVENTURA, 2016). A produção de conhecimento nas ciências humanas não deve

separar a realidade das formas de fazer ciência; deve tonar visível as minorias, não dividir

o mundo humano do subhumano.

Parece-nos bem evidenciado o fato de que o objeto de estudo da LA é a linguagem

em suas práticas discursivas, configurando, nesse sentido, um modo específico de

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investigação, pois estudar a linguagem por meio da relação do sujeito com a sociedade à

qual pertence requer uma análise que vá além dos dados quantitativos.

E vale ainda considerar que, nas ciências humanas, trabalhamos com a

“interpretação das estruturas simbólicas” e o sujeito é um objeto falante e não mudo como

se encontra nas ciências exatas (FREITAS, 2002, p. 24). Sendo assim, torna-se necessário

um método de estudo compatível com o estudo da língua em sua natureza viva como

componente de análise. Por isso optamos pelo método qualitativo-interpretativista. Sobre

essa questão, Bogdan e Bliken (1994) deixam claro que as análises na investigação

qualitativa assumem caráter indutivo, pois, diferente de outras formas de fazer ciência,

não há, nesse procedimento, a preocupação em confirmar hipóteses. Na percepção de

Oliveira (2016, p. 56), a construção do conhecimento é um ato de responsabilidade social,

até porque

[...] o pesquisador não é um observador objetivo, politicamente neutro.

Seu posicionamento é o de um observador da condição humana e, na

relação entre pesquisador e pesquisado, um não pode emudecer a voz

do outro. Isso é, ao pesquisador é necessária a clareza de que o ato

cognitivo a ser por ele praticado vai encontrar um objeto (sujeito) já

apreciado e de certa forma ordenado, perante o qual ele deve ocupar,

com conhecimento de causa, sua posição axiológica.

Nas ciências humanas, o pesquisador tem participação ativa no ato de investigar.

Ele não é neutro e assume responsabilidades na produção de conhecimentos, pois “sua

ação e também os efeitos que propicia constituem elementos da análise”. O pesquisador

entra numa relação com o sujeito pesquisado, questionando, desafiando e, ao mesmo

tempo, dialogando com ele, ou seja, faz parte da “própria situação de pesquisa”

(FREITAS, 2002, p. 24).

4.2 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS

Levando em consideração o fato de que, atualmente, são setenta escolas

desfilantes11, treze delas, inseridas no grupo especial (LIESA), também conhecido como

grupo de elite, e que as demais cinquenta e seis formam os chamados grupos de acesso,

11 Informação retirada dos sites: Liga independente das escolas de samba (LIESA), associação responsável

pelo grupo especial; Liga independente das escolas de samba do Rio de Janeiro (LIERJ), associação das

escolas de samba do grupo de acesso, Apoteosa – ordem de desfiles 2017.

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adotamos quatro critérios para a seleção do corpus. O primeiro deles foi o de

pertencimento ao grupo especial do Rio de Janeiro (pelo fato de essas escolas serem

conhecidas pelo grande público e de sua importância no universo do samba).

Grêmio Recreativo da Portela

Estação Primeira de Mangueira

Império Serrano

São Clemente

Unidos de Vila Isabel

Paraíso do Tuiuti

Acadêmicos da Grande Rio

Mocidade Independente de Padre Miguel

Unidos da Tijuca

União da Ilha do Governador

Acadêmicos do Salgueiro

Imperatriz Leopoldinense

Beija-flor de Nilópolis

Figura 1: Tabela de Ranking

Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017

Feito o levantamento das escolas de samba pertencentes ao grupo de elite,

aplicamos o segundo critério: a escolha das escolas de samba com maior número

de títulos até o ano de 2018.

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Total de

Títulos

Agremiação

22 Grêmio Recreativo da Portela

19 Estação Primeira de Mangueira

14 Beija-flor de Nilópolis

9 Acadêmicos do Salgueiro

9 Império Serrano

8 Imperatriz Leopoldinense

6 Mocidade Independente de Padre Miguel

4 Unidos da Tijuca

3 Unidos de Vila Isabel

1 Acadêmicos da Grande Rio

Figura 2: Tabela Ranking

Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017

Das treze escolas de samba que fazem parte do grupo de elite do Rio de Janeiro,

dez delas possuem títulos. No entanto, levando em conta a impossibilidade de analisar

essas dez escolas, operamos mais um recorte, que se definiu como nosso terceiro critério:

as três escolas detentoras do maior número de títulos, para além de dez. Por esse critério,

as escolas analisadas serão as seguintes:

Total de Títulos Agremiação

22 Grêmio Recreativo da Portela

19 Estação Primeira de Mangueira

14 Beija-flor de Nilópolis Figura 3: Tabela Ranking

Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017

O quarto e último critério diz respeito à escolha dos sambas reconhecidos pelas

escolas como hinos, ou seja, sambas-exaltação divulgados no site da própria escola e

entoados durante o cortejo que antecede o desfile e durante os ensaios, conhecidos

também como “hinos de exaltação” ou “sambas de esquenta”.

No que tange ao levantamento do corpus analisado nesta pesquisa, é importante

registrar que nem todos os sambas-exaltação tornaram-se, de fato, hinos oficiais da escola.

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De acordo com Ericeira (2009), apenas aqueles que têm maior divulgação popular são

inseridos no ritual que antecede o desfile; e nem todos os sambas-exaltação são

divulgados, sendo difundidos apenas no interior das escolas de samba. Isso justifica a

escolha daqueles sambas que são reconhecidos como hinos de exaltação das escolas de

samba.

Observando as peculiaridades do critério adotado, os sambas-exaltação analisados

serão aqueles pertencentes às seguintes escolas de samba do Rio de Janeiro: Grêmio

Recreativo da Portela, Estação Primeira de Mangueira e Beija Flor de Nilópolis.

Em nossa próxima seção, apresentaremos as categorias de análises interpretadas

de acordo com as incidências linguístico-discursivas dos enunciados concretos. Vale

ressalvar o fato de que, em se tratando uma pesquisa de abordagem qualitativo-

interpretativista, as categorias não são preestabelecidas; elas surgem em função do

próprio corpus.

Os estudos empreendidos pelo Círculo de Bakhtin nos direcionam a conhecer

melhor o objeto estudado, de modo que o analista do discurso, por meio de gestos de

interpretação (GINZBURG, 1989), seguirá as pistas para compreender o enunciado

concreto em seu contexto de produção e de circulação. Como dissemos no início desta

seção, o objeto nas ciências humanas é “um ser expressivo e falante” (BAKHTIN, 2010,

p. 84), ou seja, ele não está mudo e nem inerte. Está sempre em interação com o que já

foi dito em outros enunciados, ao mesmo tempo em que produz respostas ativas. Portanto,

ao buscar pelas identidades das escolas de samba, exercemos a prática de ouvir o nosso

sujeito de pesquisa, para que ele nos sinalizasse as categorias, tornando-se guia em nossa

análise.

Após a seleção das escolas de samba e dos respectivos sambas-exaltação (a partir

dos critérios apresentados na seção 4.2), examinamos os enunciados sob a perspectiva

dialógica da linguagem, com vistas a buscar os sentidos reveladores do modo como, em

seus discursos, essas escolas se representam identitariamente.

Ao ouvir nosso sujeito de pesquisa e observar as incidências linguístico-

discursivas, verificamos alguns aspectos em comum na construção dos sambas-exaltação

como: exaltação à bandeira, exaltação às cores da escola, valorização do passado, palavras

que sugerem sentimentos de amor, paixão, de felicidade e de devoção que a comunidade

deve desenvolver pela escola, relação de alteridade com a comunidade ou bairro, palavras

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que despertam emoção, elementos tipicamente religiosos, lugar de natureza e lugar de

samba.

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5 ABRINDO O DESFILE: EM BUSCA DAS IDENTIDADES

Com a base teórica e metodológica instituída, esta seção discorrerá sobre as

análises dos sambas-exaltação das escolas de samba com a finalidade de responder as

questões que norteiam a nossa pesquisa: como as escolas de samba se constroem

identitariamente a partir dos seus sambas-exaltação? Que relações dialógicas estabelecem

entre si?

5.1 ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SAMBAS-EXALTAÇÃO

Nesta seção, como já estabelecido na metodologia, optamos por sistematizar a

análise da seguinte forma: em primeiro lugar, traçamos um percurso investigativo sobre

o contexto em que cada escola de samba analisada se insere; em segundo lugar,

apresentamos a letra dos sambas-exaltação da escola analisada e a interpretação desse

enunciado, fazendo ancoragem nos conceitos já apresentados nas seções de

fundamentação teórica.

As seções de análise foram organizadas seguindo o critério de construção do

corpus, ou seja, iniciando pelas escolas de samba com o maior número de títulos (ficando

na seguinte ordem: Grêmio Recreativo da Portela, Estação Primeira de Mangueira e

Beija-flor de Nilópolis) e prosseguindo com a análise de seu samba-exaltação. Trazer o

contexto das escolas de samba junto à análise de seu respectivo samba-exaltação permite

enxergar as condições sócio-históricas em que a interação verbal acontece, reforçando a

ideia de que esses enunciados não podem ser desvinculados da situação imediata da qual

são parte constituinte e constitutiva.

5.1.1 Grêmio Recreativo da Portela

A escola de samba Grêmio Recreativo da Portela está localizada em Cascadura,

zona norte do Rio de Janeiro, bairro conhecido pelas estações de trem e pela via de acesso

ao grande bairro de Madureira. No começo do século passado, com as grandes

construções urbanísticas promovidas por Pereira Passos12, novos moradores chegavam à

12 Nesse período, o Rio de Janeiro, sob administração do prefeito Pereira Passos, passou por grandes

transformações arquitetônica nos principais centros. Vários locais de moradia popular foram demolidos

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região; em sua maioria, negros varridos dos grandes aglomerados urbanos. Suas moradias

eram humildes, distantes do centro e desprovidas de serviços públicos básicos. Sem

maiores opções para o lazer, o bairro tornou-se mais conhecido pela quantidade de

conjuntos carnavalescos.

Apesar das divergências quanto à sua fundação, de acordo com registros oficiais,

consta como a mais antiga agremiação do Estado do Rio de Janeiro, e também a que

acumula o maior número de títulos ‒ vinte e dois no total.

São Sebastião (Oxossí) e Nossa Senhora da Conceição (Oxum) são padroeiros da

escola; as cores azul e branca fazem referência às vestes de Nossa Senhora da Conceição.

Além desses símbolos, a escola faz-se representar pela imagem da águia. Nas palavras de

Ericeira (2009) “as cores azuis e brancas de sua bandeira e da águia - consubstanciam

uma dimensão simbólica da experiência de ser portelense” (ERICEIRA, 2009, p. 167,

grifo do autor).

Diferente de outras escolas, a Portela não faz parte do que podemos denominar

de comunidade; é mais um grande bairro do subúrbio carioca. Além disso, seu nome não

faz associação ao bairro onde está localizada, como ocorre com outras escolas. Talvez

por esse motivo, a participação da população do bairro de Cascadura seja diferente

daquela de outras agremiações que se integram dentro do morro/comunidade onde estão

localizadas, incorporando seu nome.

Na opinião de Pavão (2005), antropólogo que pesquisa sobre a escola de samba

da Portela, o envolvimento dos moradores do bairro é diferente em relação a outras

escolas. Nos últimos anos, houve uma substituição da “comunidade tradicional” pela

“comunidade eletiva”. A “comunidade tradicional” seria aquela composta pelos próprios

moradores do bairro, enquanto a “comunidade eletiva” é composta pelas pessoas que

vivem em outras localidades, mas que desenvolvem um laço afetivo com a escola de

samba. Para esse pesquisador, por estar localizada em um grande bairro da zona norte, e

muito heterogêneo, a agremiação não desperta o interesse dos moradores, caindo muitas

vezes no esquecimento. A indústria cultural contribui para que a memória da agremiação

ultrapasse fronteiras locais, incorporando indivíduos de outras regiões. Há, nesse sentido,

um deslocamento das relações sociais do contexto local, na medida em que, por afinidade,

muitas pessoas elegem a escola como elemento de identidade.

para dar lugar às grandes construções, como a abertura da Avenida Central, do Teatro Municipal, do

Porto do Rio de Janeiro e da Avenida Beira-Mar.

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A Portela vivenciou vários momentos de conflitos internos que, inclusive,

ocasionaram o afastamento de Paulo da Portela13 e de alguns compositores. Natal da

Portela14, outra figura importante quando se fala da agremiação, passou a se dedicar à

escola após a morte de Paulo Portela. Foi responsável pelos dez títulos conquistados pela

escola, entre 1951 e 1970. Nesse período, a escola “foi a primeira das principais escolas

de samba cariocas a ter um homem forte do jogo do bicho determinando suas diretrizes

no carnaval” (ERICEIRA, 2009, p. 82).

Os anos de 1950 e 1970 foram marcantes na história da Portela em razão da vinda

de artistas plásticos que trouxeram, com suas experiências profissionais, uma nova

estética para a escola. Entre as transformações ocorridas, destacam-se “a criação de um

Departamento Cultural; a inserção de Paulinho da Viola, músico profissional, como

integrante da ala de compositores portelenses” (ERICEIRA, 2009, p. 84). Lembrando

que, até então, como vimos na seção sobre as escolas de samba, a Acadêmicos do

Salgueiro era considerada a primeira agremiação a trazer esse tipo de mudança estética.

Em 1970, criam a Velha Guarda Show da Portela, contribuindo para significativa

mudança no discurso dos portelenses sobre a escola: “a escola deixava de encarnar o papel

de pioneira nas mudanças dos cortejos carnavalescos e passava a ser classificada como o

celeiro do samba de raiz, tradicional e autêntico” (ERICEIRA, 2009, p. 85).

De acordo com Pavão (2005), entre os anos de 1970 e 1990, a escola da Portela

viveu um grande dilema entre modernizar-se para se tornar mais competitiva ou manter

a tradição. Essa crise entre o antigo e o novo, entre modernidade e tradição dividia a

escola em grupos da ala tradicionalista, que criticavam as mudanças dentro da escola, de

novos integrantes, revelando pontos de tensão, vez que “estavam em jogo também a

disputa por prestígio e pela hegemonia das relações de poder dentro da escola”

(ERICEIRA, 2009, p. 87).

Com o enfraquecimento da Portela no cenário carnavalesco, chegando a ficar dez

anos consecutivos sem ganhar campeonatos, a escola “via-se obrigada a resguardar o que

13 Quando se fala da Portela, não tem como não citar Paulo da Portela, figura importante quando se trata

do passado dessa escola. Nas palavras de Ericeira (2009), Paulo da Portela, além de fundador e grande

compositor, destacava-se como um grande líder, responsável por difundir os valores da escola. Paulo

da Portela teve um papel preponderante na construção da identidade da escola, na sua divulgação e na

sua afirmação no universo do samba. 14 Natal da Portela administrava bancas de jogo do bicho em Madureira. Parte da renda dos jogos era

destinada à escola, fato que contribuiu para seu grande prestígio dentro da Portela. No entanto, Natal da

Portela também ficou conhecido “pelos crimes que cometeu”, além dos processos por contravenção

(ERICEIRA, 2009, p. 81).

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lhe restava de bens significativos: a memória de seu passado e o discurso de defensora da

autenticidade e da tradição do samba”. Assim, dá-se seu retorno à tradição, como uma

forma de afirmar positivamente a agremiação e legitimá-la no universo do samba. Desde

1990, a Portela vem “mergulhando” na busca de seu passado; seus sambas-enredo

transformaram-se numa espécie de samba-exaltação, trazendo “fortemente um processo

de autolouvação” (ERICEIRA, 2009, p. 93). Essa busca pelo passado não fez com que a

escola saísse vitoriosa, mas melhorou relativamente seu desempenho e sua posição entre

as outras agremiações. Além dos sambas-enredo, Ericeira destaca outros projetos de

fixação e memorização do passado da Portela e dos valores da escola.

Outro fato importante sobre a Portela é a forte devoção pelos santos padroeiros,

como um dos principais valores a serem incorporados pela comunidade. Várias missas

são realizadas para celebrar a fé religiosa dos portelenses e homenagear seus padroeiros.

Essa fé fica evidente na citação a seguir:

Homenagens aos santos padroeiros da agremiação, modificações

de nomes de ruas, inaugurações de bustos em homenagem a

determinados portelenses, são alguns dos usos da memória

portelense que fortalecem o grupo internamente e mantêm o seu

sentido de continuidade através do tempo [...]. Às seis da manhã,

ao raiar do dia, um corneteiro anunciava a Alvorada com queima

de fogos, cuja duração foi de dois minutos. Os componentes da

bateria, enfileirados em direção aos fogos, rufaram os

instrumentos e se dirigiram ao altar de São Sebastião, onde

tocaram em sua homenagem. Entre lágrimas, os poucos presentes

se abraçavam, alguns choravam e se cumprimentavam saudando-

se com um ‘feliz ano novo’. Perguntei a um dos presentes o

porquê daquela saudação aparentemente extemporânea, o qual

respondeu: “para o verdadeiro portelense, o ano só efetivamente

começava após os festejos do nosso santo padroeiro”

(ERICEIRA, 2009. p. 98, grifo do autor).

Vimos que, em seus tempos áureos, a escola de samba Grêmio Recreativo da

Portela manteve-se vitoriosa por sete anos consecutivos. É conhecida na história do

carnaval por acumular o maior número de vitórias, muito embora tenha passado um

período longo de crise e conflitos dentro e fora da própria comunidade, chegando a ficar

anos sem ganhar campeonatos. O último título foi conquistado em 2017. Nesse ano, a

escola resolveu novamente trazer o passado da Portela para dentro da Sapucaí, com o

tema “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar”.

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5.1.1.1 Samba-exaltação Hino da Portela

E para melhor expressar o que representa a Portela, passamos à interpretação de

seus sambas-exaltação, levando em conta o contexto de produção da escola de samba

analisada. No levantamento do corpus, verificamos que a Portela tem dois sambas-

exaltação considerados hinos da escola.

Hino da Portela

Compositor: Chico Santana - 1935

Portela

Suas cores têm

Na bandeira do Brasil

E no céu também

Avante portelense para a vitória

Não vê que o teu passado é cheio de glória

Eu tenho saudade

Desperta oh! Grande mocidade

As suas cores são lindas

Seus valores não têm fim

Portela querida

És tu na vida pra mim.

Nos versos desse primeiro samba analisado, observamos que os enunciados são

marcados pela valorização das cores da bandeira da escola: “Portela/Suas cores têm/ Na

bandeira do Brasil”. A referência às cores da escola associadas à bandeira do Brasil

contribui para reforçar o “sentimento patriótico” pela escola e sua valorização, assim

como se dá com a bandeira nacional. O verso “E no céu também” parece colocar a escola

em um status mais elevado em relação às rivais. Na sequência dos enunciados,

verificamos novamente a necessidade de a escola exaltar as suas cores: “As suas cores

são lindas”. A valorização da bandeira e de suas cores é também muito comum no gênero

hino pátrio, até para criar uma ideia de pertencimento e de uma identidade para

determinada nação/comunidade.

O samba-exaltação em análise foi gravado em 1935, ano do primeiro título

conquistado pela Portela (antes, e por três anos consecutivos, pertencente à Mangueira).

No verso “Não vê que o teu passado é cheio de glória”, a escola busca afirmar sua

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importância no universo do samba pela valorização de um passado de glórias, tomando

como suporte para isso um título recém-adquirido. Esse "passado de glórias" pode não

estar relacionado a títulos conquistados, mas pode dizer respeito ao fato de a escola

continuar mantendo-se entre as mais bem colocadas desde o início. Ou ainda pode tratar-

se de uma estratégia no sentido de querer dizer que tem um passado “cheio de glória” e,

dessa forma, atribuir-se maior importância, ficando à frente de outras agremiações, quem

sabe igualar-se à sua maior rival, a escola de samba da Mangueira, que vinha

conquistando a maioria dos títulos até então. Essa estratégia é muito comum aos

movimentos nacionalistas, em que a identidade é reforçada com referência a um “suposto

e autêntico passado” cheio de glória (WOODWARD, 2014, p. 28). Relacionando esses

enunciados com os momentos de crise vividos pela agremiação, podemos dizer que “[...]

essa redescoberta do passado é parte do processo de construção da identidade que está

ocorrendo neste exato momento e que, ao que parece, é caracterizada por conflito,

contestação e uma possível crise” (WOODWARD, 2014, p. 12). Esse pensamento é

reforçado no verso: “Eu tenho saudade”, que apresenta um discurso nostálgico e

saudosista sobre esse passado que ainda não existe ou já existiu.

Todos esses mecanismos de recordar o passado contribuem para levantar a

comunidade, para despertar o desejo-emotivo dos participantes e fazer com que se sintam

mais envolvidos e motivados a trabalhar pela escola, conforme conclama o verso “Avante

portelense para a vitória/ Não vê que seu passado é cheio de glórias”.

No verso “Portela querida/ És tu na vida pra mim”, registram-se palavras de amor

e devoção pela escola, o que pode transmudar-se em um discurso internamente persuasivo

(BAKHTIN, 2015). Como sabemos, uma das características desse tipo de discurso é o de

jogar com as emoções, de despertar o emotivo-volitivo da comunidade. Não se permite,

nessa forma de manifestação, a abertura para o discurso do outro; este quer ser

reconhecido e assimilado pelos interlocutores.

Além da valorização de suas cores e de seu passado de glórias, a escola também

tenta reforçar a transmissão de valores que deseja instituir, como bem sublinha o verso:

“Seus valores não têm fim”.

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5.1.1.2 Samba-exaltação Portela na avenida

Após a análise do primeiro samba-exaltação, passamos para o segundo samba

registrado no site da escola como hino oficial da Portela.

Portela Na Avenida (samba-exaltação)

G.R.E.S Portela – 1980

Compositor: Mauro Duarte E Paulo César Pinheiro

Portela

Eu nunca vi coisa mais bela

Quando ela pisa a passarela

E vai entrando na avenida

Parece a maravilhosa de aquarela que

surgiu

O manto azul da padroeira do Brasil

Nossa Senhora Aparecida

Que vai se arrastando

E o povo nas ruas cantando

É feito uma reza, um ritual

É a procissão do samba

Abençoando

A festa do divino carnaval

Portela,

É a Deusa do samba o passado revela

E tem a velha guarda como sentinela

É por isso que eu ouço essa voz que me

chama

Portela

Sobre a tua bandeira este divino manto

Tua águia altaneira é Espírito Santo

No templo do samba

As pastoras e os pastores

Vem chegando da

Cidade, da favela

Para defender as suas cores

Como fiéis na santa missa da capela

Salve o samba, Salve a Santa, Salve ela

Salve o manto azul e branco da Portela

Desfilando triunfal

Pelo altar do Carnaval

Como se pode constatar, a religiosidade é uma característica marcante no segundo

samba-exaltação da Portela. Suas escolhas lexicais dão a ideia de se estar numa

“procissão”, “feito uma reza, um ritual”. A escola de samba faz-se representar como

sendo a “Padroeira do Brasil”; “Nossa senhora Aparecida”. A águia, símbolo da escola,

é o “Espírito Santo”; a avenida por onde as escolas de samba desfilam é o “altar”; o

público participante são os “fiéis na santa missa da capela”; o ensaio ou desfile da escola

é a “festa do divino”. Assim, no plano estilístico, todo campo semântico dos enunciados

remete a temas religiosos como “abençoado”, “divino manto”, “templo”, “pastoras e os

pastores”, “salve o samba, salve a santa, salve ela”, “salve o manto”. A identidade

atribuída à escola é de santa: “Nossa senhora do Brasil/ Nossa senhora Aparecida” e

“padroeira do Brasil”. Em termos gerais, a escola assume uma identidade religiosa, e o

seu desfile apresenta-se como um momento divino. Num outro plano, constrói sua

identidade à semelhança de uma mulher: “Eu nunca vi coisa mais bela/ Quando ela entra

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na avenida/ Parece a maravilhosa de aquarela que surgiu”, “É a Deusa do samba o

passado revela”.

Esses enunciados, ao inserirem elementos religiosos num ambiente de festa

carnavalesca, colocam em diálogo o “sagrado” e “o profano”, revelando todo processo de

carnavalização a que Bakhtin (2013) faz referência. A festa carnavalesca tem como

característica a abolição de tudo que é sagrado durante um determinado período. Até já

se fazem muito comuns paródias carnavalescas de textos e rituais sagrados. O samba-

exaltação analisado não pertence ao gênero paródia, é verdade; mas comporta o que

Bakhtin (2013) denomina de mésalliance carnavalesca, pois aproxima tudo aquilo que

estaria separado.

E vale dizer, a título de esclarecimento, que não é por ingenuidade que temas

religiosos aparecem em letras de samba. A religiosidade, não raro, esteve presente na

construção das letras desse gênero do discurso e relacionada à própria escola. Como

vimos na segunda seção desta dissertação, as festas populares do Rio de Janeiro eram,

muitas vezes, celebradas durantes as festas religiosas.

Esse segundo samba-exaltação foi escrito em 1980 quando a Portela conquistou

seu vigésimo título de campeã do carnaval, após ficar dez anos consecutivos sem ganhar

campeonatos. Nesse atual contexto sócio-histórico em que se encontrava, todas as

escolhas lexicais fazem parte de um projeto de dizer que busca conquistar a adesão do

público por meio do discurso religioso, caracterizado como discurso autoritário, pois

vimos que este último está ligado ao dogmático, próprio da esfera religiosa.

A Portela mantém relação importante com a religiosidade e tenta preservar essa

devoção como um dos principais valores da escola. Sempre homenageia seus santos

padroeiros. O samba-exaltação acima entra diretamente em diálogo com as rezas e os

cânticos religiosos de missas em celebração aos santos.

Em pleno período colonial no Brasil, o gênero hino era muito utilizado pela igreja

como instrumento de conversão dos povos indígenas. Nesse caso, podemos dizer que o

samba-exaltação da Portela segue os mesmos propósitos comunicativos desse período

uma vez que, por meio de signos religiosos, o samba-exaltação também serve de

mecanismos para converter os participantes da comunidade.

E vale acrescentar o fato de que registramos a presença de ideologias diversas

nesse samba-exaltação, que vão se formando a partir de signos socialmente aceitos.

Apoderam-se de símbolos ideológicos já estabilizados, mais aceitos socialmente, como é

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o caso dos símbolos religiosos, com o intuito de exercer maior influência. Mesmo porque,

como sabemos, a “compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos

já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com

signos” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95). Dá-se, desse modo, a combinação entre os

gêneros hino religioso, rezas, cantos religiosos e samba-exaltação, caracterizando uma

forma híbrida de construção. Nesse sentido, o samba-exaltação deve ser compreendido

como unidade real de comunicação, mantendo relações com outros enunciados já ditos.

De acordo com Rojo (2007, p. 176), a hibridização é uma construção típica das canções

populares.

Sobre os gêneros híbridos, Bakhtin explica:

chamamos de construção híbrida um enunciado que, por seus traços

gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um falante, mas

no qual estão de fato mesclados dois enunciados, duas maneiras

discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semânticos

e axiológicos. Entre esses enunciados, estilos, linguagens e horizontes,

repetimos, não há nenhum limite formal – composicional e sintático: a

divisão das vozes e linguagens ocorre no âmbito de um conjunto

sintático, amiúde no âmbito de uma oração simples, frequentemente a

mesma palavra pertence ao mesmo tempo a duas linguagens, a dois

horizontes que se cruzam numa construção híbrida e, por conseguinte,

tem dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos (BAKHTIN, 2015, p.

84).

Em seu samba-exaltação, a Portela novamente reforça a necessidade de a

comunidade “defender as suas cores”, tal como se conclama no discurso patriótico. No

verso “Salve o manto azul e branco da Portela”, as cores adquirem um valor sagrado ao

serem associadas à palavra manto. A referência às cores da bandeira é uma estratégia

comum também nos hinos pátrios e nos hinos de times de futebol. São marcações

simbólicas usadas como estratégias discursivas que contribuem para a afirmação

identitária de uma nação ou de uma instituição. “A marcação simbólica é o meio pelo

qual damos sentido a práticas e relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído

e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da

diferença são ‘vividas’ nas relações sociais” (WOODWARD, 2014, p. 10, grifo da

autora). Determinadas cores podem ser diretamente associadas à determinada nação,

comunidade, marca ou time de futebol.

Apesar de o hino fazer referência às cores azul e branca como cores de sua

bandeira, fazendo associação às cores da padroeira, estas podem também caracterizar as

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cores Oxóssi e Oxum da religião de origem africana. Além desses elementos, não

observamos nenhum outro aspecto de referência à cultura e à identidade negra, sendo

procedente a afirmação de que há nesses hinos o apagamento da identidade e da cultura

negra. Parece, pois, legítimo dizer que o samba, ao entrar na ordem do permitido, tornou-

se “domesticado, limpo, seguro” conforme sublinha Pereira (2012).

Outro símbolo muito importante para a escola da Portela é a águia, citada no verso

“Tua águia altaneira é Espírito Santo”. Tomando a águia como um signo ideológico,

podemos dizer que, simbolicamente, remete ao poder, à imponência, à força. Já a palavra

altaneira significa soberana, orgulhosa, altiva. Na religião afro, a águia é um animal solar

e tem um significado sagrado, a mais alta divindade, considerada a rainha de todos os

pássaros. Simboliza poder e força espiritual. De acordo com Ericeira (2009), o carro

alegórico com o símbolo da águia na avenida causa fascínio e emoção nos portelenses.

Aliás, todos esses signos ideológicos representados pela imagem da águia são valores que

a escola deseja instituir e afirmar como sua marca identitária. E são igualmente

importantes para despertar o emotivo-volitivo (atitude responsiva) dos participantes, que,

em resposta, se empenharão mais ainda durante o desfile em prol do êxito comum.

De fato, como podemos observar abaixo (Figura 4), a imagem da águia azul e

branca, com as asas abertas, entrando na avenida pode facilmente remeter à imagem da

pomba representada pelo Espírito Santo. A expressão “facial” da águia impõe aquilo que

simbolicamente ela representa: poder, imponência e força.

Figura 4

Fonte: http://www.gresportela.org.br/ Acesso em 09 de junho de 2018

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Figura 5

Fonte:https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-pomba-do-esp%C3%ADrito-santo-

image52057728/ Acesso em: 09 de junho de 2018

Entendendo, como Volóchinov (2017), que toda palavra veicula uma ideologia e

está diretamente ligada à situação extraverbal, podemos dizer que a escolha da águia

como símbolo da escola não se restringe a uma decisão aleatória; cumpre um objetivo

bem-definido: faz parte de um projeto de dizer que visa construir uma atitude responsiva

da comunidade e afirmar uma identidade positiva e competitiva para a escola.

Bakhtin (2016, p. 105) lembra que toda palavra tem, por natureza, a necessidade

de ser ouvida; “sempre procura uma compreensão responsiva e não se detém na

compreensão imediata, mas abre caminho sempre mais e mais à frente (de forma

ilimitada)”. Assim, todo enunciado é construído visando sempre a um destinatário e sua

compreensão constitui-se num processo dialógico.

Nesse processo dialogizado, há a assimilação de discursos que pertencem à

categoria do discurso autoritário (religioso e nacional). Para Bakhtin, “o discurso de

autoridade pode organizar em torno de si massas de outros discursos” (BAKHTIN, 2015,

p. 136-137). Sob essa ótica, pode-se considerar que o samba-exaltação da Portela vincula-

se ao discurso de autoridade, na medida em que visa alcançar mais adesão do público,

obter mais o empenho da comunidade. Trata-se de aplicar material de outro discurso em

uma nova situação para “conseguir novas respostas (uma vez que um eficiente discurso

do outro gera dialogicamente nosso novo discurso responsivo) (BAKHTIN, 2015, p.

141).

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O discurso autoritário caracteriza-se como sendo monológico porque impõe seus

valores desconsiderando as outras vozes; está fechado para outras opiniões e outros

questionamentos. É um tipo de discurso que exerce poder sobre os outros e “entra em

nossa consciência verbal como uma massa compacta e indivisível” (BAKHTIN, 2015. p.

144),

Ao misturar elementos do discurso religioso e de hinos nacionais, percebemos, na

composição do já aludido samba-exaltação, uma forma de molduragem do discurso do

outro, posto que se intercalam traços sintáticos e elementos do léxico próprios de outro

gênero, mas que “permanecem acentuadamente destacados”. Há, portanto, no samba-

exaltação da Portela dois universos discursivos de estilos, linguagens e horizontes de

universos distintos: o religioso e o nacional que, juntos, constroem um projeto de dizer.

Ao estabelecermos a comparação entre os dois sambas-exaltação dessa escola (um

escrito em 1935; ano do primeiro título conquistado; outro gravado em 1980, ano em que

a escola de samba conquista seu vigésimo título, após ficar dez anos sem ganhar

campeonatos), constatamos que o primeiro samba afirma uma identidade baseada num

passado recém-conquistado, o que se traduz na valorização das cores de sua bandeira (um

discurso mais nacionalista). Já o segundo samba-exaltação busca outra estratégia para

conquistar a adesão do público: o apelo à religiosidade, à elevação do espírito, visto que

o portelense estava com a autoestima baixa por ficar tanto tempo sem receber títulos.

5.1.2 Estação primeira de Mangueira

Localizada ao lado de uma das linhas férreas da cidade, com vista privilegiada

para a Quinta da Boa Vista e para o estádio de futebol Maracanã, a escola de samba da

Mangueira é, muito provavelmente, uma das mais conhecidas em todo o território

nacional e talvez a que contabiliza mais adeptos. É uma das agremiações que levam o

mesmo nome da comunidade onde está localizada; e foi graças à sua presença que a favela

“passou a ser considerada o celeiro e patrimônio da cultura popular e berço de alguns

poetas mais geniais da música popular brasileira” (COSTA, 2002, p. 33).

Assim como a Portela, a escola de samba da Mangueira também faz questão de

preservar o título de escola mais antiga, de valorizar seu passado, suas raízes e seus

personagens mais ilustres. As cores verde e rosa [seu principal símbolo] estão em todos

os lugares; por isso mesmo, ainda nas palavras de Cabral (1996, p. 56), “não dá para

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separar o morro da escola de samba” Além de ser considerada uma das escolas mais

antigas, está situada, de acordo com os registros15, numa das favelas (a terceira) mais

antigas do Rio de Janeiro.

A população do complexo da Mangueira chegou à região impulsionada pela

localização de fábricas em torno do morro, condição favorável ao surgimento de grande

contingente de migrantes mineiros e nordestinos, em sua maioria, negros, filhos e netos

de escravos, à procura de melhores oportunidades. Nos anos 20, o morro da Mangueira

ainda era uma comunidade pequena (bem diferente do que se observa nos dias de hoje),

constantemente ameaçada de remoção por força de ações judiciais.

Desde seu aparecimento, a favela da Mangueira foi centro de grandes

manifestações da cultura popular. Mesmo antes da fundação da escola, já era considerada

reduto de sambistas (CABRAL, 1996).

A escola de samba da Mangueira foi fundada em 28 de abril de 1928, sob a

liderança de Cartola, que também foi quem escolheu o nome e as cores da Estação

Primeira; por isso o compositor tornou-se menção obrigatória quando se fala da

Mangueira. A escola é também conhecida por possuir grandes compositores. Esse

diferencial levou-a a ganhar mais prestígio no universo do samba carioca.

Contando com o patrocínio de grandes empresas, essa agremiação mantém

inúmeros projetos sociais para o desenvolvimento da educação, da cultura, do esporte e

lazer dos moradores da comunidade. De acordo com Costa (2002), a escola mantinha-se

sem a contribuição do tráfico de drogas ou do “jogo do bicho”, prática muito comum entre

as escolas de samba no século passado. Tudo isso contribuiu para dar-lhe mais

credibilidade.

Sua história revela que, desde seu advento, a Estação Primeira de Mangueira

sempre se colocou numa posição de destaque em relação às demais escolas, ficando

conhecida na história do carnaval carioca por construir toda uma “marcha de glórias”

(ALBIN, 2009, p. 253).

O período de maior destaque da Mangueira situa-se entre as décadas de 30 e 40,

quando (juntamente com a Portela) liderou, com hegemonia, os desfiles das escolas de

samba. Albin (2009) observa que, nesse período, as escolas de samba da Mangueira e da

15 Dados da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Disponível em (http://www.fau.ufrj.br/prourb/cidades/favela/anamang.htlm.)

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Portela inseriram traços da ideologia de Prestes16 nas composições dos sambas e se

firmaram com grande liderança frente as outras escolas. Depois desse longo período de

vitórias e de supremacia, essas escolas tiveram seu protagonismo desafiado com a

chegada da escola de samba Império Serrano e, logo depois, da Beija-flor de Nilópolis.

Com a inauguração do Sambódromo, em 1985, a Mangueira “sinalizaria uma volta

profética aos tempos idos e vividos” (ALBIN, 2009, p. 258).

A comunidade da Mangueira “inflama-se” de orgulho pela escola, pois foi graças

a essa agremiação que deixou de ser considerada lugar estranho à cidade (FERNANDES,

2001). Por isso mesmo, faz questão de divulgar e preservar a história da escola e das

principais figuras com a criação da sede “Palácio do Samba”.

5.1.2.1 Samba-exaltação Exaltação à Mangueira

No processo de levantamento do corpus, verificamos que, apesar de existirem

vários sambas-exaltação em homenagem à mangueira, a escola de samba registra, em seu

site, apenas um deles como hino oficial desde de 1956.

Exaltação à Mangueira (hino da Mangueira)

Compositor: Enéas Brites Da Silva / Aloísio Augusto Da Costa

Intérprete: Jamelão

Ano:1956

Mangueira teu cenário é uma beleza

Que a natureza criou, ô...ô...

O morro com seus barracões de zinco,

Quando amanhece, que esplendor,

Todo o mundo te conhece ao longe,

Pelo som de teus tamborins

E o rufar do seu tambor

Chegou, ô... ô...

A mangueira chegou, ô... ô...

Ó Mangueira, teu passado de glória,

Ficou gravado na história,

É verde-Rosa a cor da tua bandeira,

16 Esse período Prestes e Getúlio Vargas disputavam o poder pela presidência. Prestes defendia uma ideia

de evolução social vinda das classes sociais mais baixas, das massas.

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Pra mostrar a essa gente,

Que o samba, é lá em Mangueira !

Nesse hino de exaltação, os espaços apresentam-se como lugares de beleza “que

a natureza criou”, ao mesmo tempo em que os elementos típicos dos morros e das favelas,

os “barracões de zinco”, símbolos de simplicidade e pobreza, mostram-se em todo o seu

esplendor: “Quando amanhece, que esplendor”. Todas essas escolhas lexicais visam

construir uma descrição de lugar, em que os elementos caracterizadores do objeto em

foco estabelecem a relação de alteridade entre a escola e a comunidade. A valorização do

lugar e das paisagens é muito comum no discurso patriótico, que visa fixar não apenas

um imaginário de lugar mas também uma identidade, construída a partir de uma ideia de

pertencimento territorial.

Nesse samba-exaltação, as escolhas lexicais contribuem para ressaltar as virtudes

da escola e ainda enaltecer o seu “passado de glórias”. A valorização do passado em busca

de vitórias (e glórias) é também uma característica do gênero hino pátrio. Recordar o

passado reiteradamente é uma estratégia de manutenção do sentimento de pertencimento

dos que fazem parte da comunidade/nação. Esse apelo afetivo e a valorização do lugar,

visam fortalecer ainda mais o vínculo com a escola.

Essa insistente valorização de um “passado feito de glórias” também se faz

recorrente nos hinos nacionais. No caso em foco, a alusão a um “passado feito de glórias”

é uma forma de colocar-se superior a outras agremiações; afinal, diferentemente das

demais, conta com uma história gloriosa. Essa constante repetição dos grandes feitos

pode ser considerada uma tática de sobrevivência, uma forma de ser diferente e também

de afirmação da identidade dessas instituições culturais.

A Mangueira ainda reforça sua identidade por meio da marcação simbólica da

bandeira da escola, como se verifica no verso “É verde-Rosa a cor da tua bandeira”. Ao

dizer que verde-rosa são as cores da bandeira, a escola, indiretamente, alude ao

“sentimento patriótico” que a comunidade deve desenvolver pela escola, tal como se

processa com as cores da bandeira nacional.

No discurso autoritário nacionalista, também é muito comum a exaltação à

bandeira como estratégia para reforçar os principais símbolos de uma nação. Em seus

sambas-exaltação, a Mangueira utiliza semelhante estratégia: lança mão de um modo de

dizer com o propósito de conquistar a adesão do público por um discurso “patriótico” que

supervaloriza os principais símbolos da escola.

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Fica, pois, evidenciado o fato de que a identidade da Estação Primeira de

Mangueira é construída a partir da relação de alteridade da escola com o

morro/comunidade onde está localizada. Tanto é que as referências ora remetem à escola

de samba, ora ao “morro com seus barracões de zinco”. Reforçar essa relação das escolas

de samba com suas comunidades parece fundamental para o fortalecimento de suas

identidades e o enfrentamento das dificuldades criadas em razão das exigências a serem

satisfeitas para que se possam manter no grupo das campeãs.

Como revelamos nas seções anteriores, a relação de alteridade é assimilada com

frequência no nome da própria escola de samba, visto que muitas delas adotam o nome

da comunidade ou do bairro como marcação de origem, a exemplo da escola de samba da

Mangueira que leva o mesmo nome do morro onde está localizada; da Unidos da Tijuca,

localizada no bairro da Tijuca; da Beija-flor de Nilópolis, entre outras escolas. As

comunidades são, para algumas escolas de samba, um “prolongamento de sua própria

identidade” (POUBEL, 2012, p. 4). Desde sua criação histórica, elas estiveram ligadas à

ideia de comunidade, pois foi nesses espaços que se constituíram e se afirmaram. Vale

salientar que essa associação surge como uma necessidade de sobrevivência para essas

agremiações e a interação com esses espaços fortalece a relação de alteridade, pois é nessa

troca que a escola constrói sua identidade.

A escola de samba Mangueira também quer ser reconhecida pelo “som de seus

tamborins” e o “rufar de seu tambor”. Afinal, é lugar de samba; e de samba de qualidade!

De fato, é uma identidade que a escola de samba da Mangueira tenta preservar, pois, como

vimos, mesmo antes de seu surgimento, a comunidade da mangueira era reconhecida pela

qualidade de seu samba, pelo destaque de compositores, como Cartola, que deu esse título

à Mangueira.

Por fim, é importante registrar que esta escola de samba, ao narrar sua história (em

seu site), “alardeia” sua relação com os batuques e os cantos advindos de várias nações

africanas, e também as religiões afro-brasileiras, o candomblé e a umbanda. Não obstante,

em seu samba-exaltação, observamos poucas referências de origem afro-brasileira.

5.1.3 Beija-flor de Nilópolis

A escola de samba Beija-flor de Nilópolis foi fundada em 25 de dezembro de

1948; é a terceira escola com o maior número de títulos ‒ o último conquistado este ano

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(2018) ‒, somando treze no total. Está localizada na baixada do Rio de Janeiro,

especificamente no bairro de Nilópolis. Tem como principais símbolos as cores azul e

branca e o beija-flor.

O município de Nilópolis tem, pela escola, um grande orgulho, principalmente

porque, graças ao reconhecimento internacional dessa agremiação, associado às vitórias

conquistadas na história do carnaval, a cidade tornou-se mais visível nacionalmente e

mundialmente.

Antes do surgimento da Beija-flor, as escolas da Mangueira, da Portela e o Império

Serrano eram as mais bem colocadas e dominavam o carnaval carioca há mais de três

décadas. A Beija-flor desfilou pela primeira vez com as grandes escolas apenas em 1960,

conseguindo, nesse ano, ficar no sexto lugar. Nos anos seguintes, foi-se aprimorando em

suas apresentações, de tal modo a obter vitórias sucessivas (1976, 1977, 1978), acabando

com a primazia das escolas da Mangueira, Portela e Império. Outros títulos vieram em

1980, 1983, 1998, 2003, 2004, 2005, 2007, 2008, 2011, 2015 e 2018, definindo-a como

uma das principais escolas no cenário carnavalesco do Rio de Janeiro.

Como já mencionado (cap. 2), a Beija-flor teve um papel importante na

transformação do desfile das escolas de samba. E essa meteórica progressão deveu-se,

sem dúvida, ao carnavalesco Joãozinho Trinta, responsável pela reinvenção do desfile das

escolas de samba. Muito embora alguns estudiosos defendam a tese de que essa rápida

ascensão da Beija-flor deve-se à contribuição do mecenato do jogo do bicho (QUEIROZ,

1992; CAVALCANTI, 2008).

5.1.3.1 Samba-exaltação A Deusa da Passarela

Ao buscar pelo hino oficial da escola, verificamos que a Beija-Flor registra três

sambas-exaltação como oficiais, sendo A Deusa da Passarela o mais famoso e o mais

divulgado midiaticamente.

A Deusa da Passarela

Compositor e intérprete: Neguinho da Beija-Flor

Ano: 1979

É ela,

Maravilhosa e soberana

De fato nilopolitana.

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Enamorada deste meu país

É ela,

A deusa da passarela

Razão de meu cantar feliz.

É ela,

Um festival de prata em plena pista,

É sorriso alegre do sambista,

Ao ecoar do som de um tambor... ôô

Beija-flor minha escola,

Minha vida, meu amor.

Como se pode observar nesse samba-exaltação da Beija-flor de Nilópolis, todas

as estrofes são introduzidas pela expressão “É ela”. Constrói-se, assim, uma identidade

feminina sempre em referência à escola: “É ela/ Maravilhosa e soberana/ De fato

nipolitana / Enamorada deste meu país/ É ela/ A deusa da passarela”. É também em

função das escolhas lexicais que se enaltece a escola. Os epítetos “deusa da passarela”, e

“Maravilhosa e soberana” pertencem ao que Valença (1983, p. 83) denominou de “área

semântica de esplendor”; são recursos discursivos comuns utilizados pelos sambistas não

só para caracterizar as escolas de samba mas também para definir o lugar que elas devem

ocupar. Todas essas adjetivações “personificam” a escola, que é “de fato nilopolitana” ‒

uma expressão de orgulho para o lugar em que se situa.

Os enunciados que se seguem apresentam palavras que exprimem amor, paixão e

devoção. Aliás, são os sentimentos mais evocados na maioria dos sambas-exaltação.

A escola também quer ser conhecida como lugar de felicidade. Por isso a presença

de palavras que expressam amor e felicidade em alguns de seus versos: “Razão do meu

cantar feliz/Beija flor minha escola/Minha vida, meu amor”, “Um festival de prata em

plena pista/ É o sorriso alegre do sambista”. Todas essas escolhas parecem produzir uma

sensação de felicidade e buscam desenvolver um sentimento afetivo pela escola,

caracterizando um discurso persuasivo, tal como na linguagem publicitária. Sugerem

ainda que a escola é lugar de pessoas felizes e essa alegria está no fato de pertencerem à

escola Beija-flor de Nilópolis, lugar de “sorriso alegre”. O conjunto desses elementos

formalizam uma declaração de amor à escola, e seu tom emotivo-volitivo desperta o

engajamento da comunidade pela agremiação.

Vimos, com Moraes (2015), que uma característica comum do gênero hino é sua

tendência a ser um discurso monológico, aquele que, segundo Bakhtin, tenta

homogeneizar as vozes. Esse tipo de discurso é dogmático “já que ele quer fazer com que

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se ouça nele apenas uma voz” (AMORIM, 2001, p.11). As escolhas estilísticas,

associadas à entoação própria do gênero, estão orientadas para surtir esse tipo de efeito.

A escola de samba Beija-flor de Nilópolis expressa, com frequência, o “patriotismo” em

termos de um amor exacerbado, quase numa devoção (“Razão do meu cantar feliz/Beija-

flor minha escola/ Minha vida, meu amor”), bem ao estilo do ufanismo presente nas letras

dos hinos nacionais.

Diferentemente da Portela e da Mangueira, a escola de samba Beija-flor de

Nilópolis, por ser uma das escolas mais modernas, não usa como estratégia discursiva o

seu “passado de glórias”; investe muito mais em uma estratégia de passionalização.

Constrói toda uma temática de amor, de devoção, de vivência em um ambiente de

felicidade a fim de despertar o emotivo-volitivo e uma atitude responsiva da comunidade,

com o intuito de alcançar bons resultados na avenida. Afinal, é a dedicação e o trabalho

da comunidade que contribui para que o desfile satisfaça as expectativas.

Apesar de não figurar entre as escolas de samba mais antigas do Rio de Janeiro, a

Beija-flor de Nilópolis teve um papel importante na transformação dos desfiles de modo

geral. Como vimos (na segunda seção deste estudo), essa agremiação trouxe exuberância

e modernidade para a passarela. “Em termos gerais, essas inovações no carnaval carioca

possibilitaram que agremiações, como Salgueiro, Beija-Flor, reconfigurassem a então

hegemonia exercida pela Portela, Mangueira, Império Serrano, no universo das escolas

de samba cariocas” (ERICEIRA, 2009. p. 84).

5.1.3.2 Samba-exaltação Eu sou de Nilópolis

O próximo samba-exaltação registrado como hino oficial da Beija-flor de

Nilópolis chama-se “Eu sou de Nilópolis”, escrito também pelo compositor Neguinho da

Beija-flor, ano de divulgação desconhecido.

Eu sou de Nilópolis

Compositor: Neguinho da Beija-flor

Ano: Desconhecido

Vem um e diz que é da mangueira

Outro diz que é do Estácio de Sá

Finalmente todos querem

Exaltar o seu lugar

Eu sou de Nilópolis

Terra que tem gente bamba

E tem macumba e tem samba

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Nilópolis terra da magia.

Quem é Nilópolis é a mesma coisa

Que ser da Bahia

Em Nilópolis tem sol, jogo bom

Que é futebol, terra de gente de raça

Temos parques e cinemas, negras,

loiras

E morenas desfilando em nossas

praças.

E além de tudo isso tem nego bom no

feitiço

E no samba é professor

É de lá a escola de samba Beija-flor

Nesse samba-exaltação, o próprio-enunciado título “Eu sou de Nilópolis” já

estabele uma relação de alteridade entre o bairro e a escola de samba. Nesse sentido, usa

como estratégia discursiva a vinculação ao bairro onde a escola de samba está localizada.

Essa estratégia de marcação geográfica é muito comum em hinos pátrios que visam criar

uma ideia de pertencimento a partir da remissão particular ao “território pátrio”,

estabelecendo, assim, uma origem comum a todos. De acordo com Berg (2014), a

geografia foi também simbolicamente importante na construção da identidade nacional,

servindo para todo o imaginário desses espaços.

Nos versos “Quem é de Nilópolis é a mesma coisa que ser da Bahia” / “E tem

macumba e tem samba”, registramos aspectos que valorizam a origem afro-brasileira,

tratando da diversidade e da origem do próprio samba, referências não encontradas nos

outros sambas analisados.

E mais uma vez, atesta e valoriza a diversidade que se faz presente em seu espaço

quando descreve a cidade de Nilópolis como “[...] terra de gente de raça”/ “temos

parques e cinemas, negras, loiras”/ “E morenas desfilando em nossas praças”.

5.1.3.3 Samba-exaltação A soberana

O último samba-exaltação da Beija-flor foi divulgado em 2014, novamente pelo

compositor Neguinho da Beija-Flor. De acordo com o sambista, esse samba-exaltação

seria uma continuação do primeiro, “Deusa da Passarela”.

A soberana

Compositores: Neguinho da Beija-flor e Samir Trintade

Ano: 2014

Eu tô numa boa

De bem com a vida e até sorrindo a toa

Porque a minha escola é...

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Felicidade, garra, e samba no pé

Ela é de fato da avenida Soberana

Da bateria que tem harmonia e gana

Quando ela chega o mundo grita lá vem ela (OBÁ)

A Deusa da passarela

Maravilhosa é mesmo tudo para mim

E é isso que eu canto assim

Brilhou na tela o meu grande amor

Beija-flor

Com a comunidade meu canto ecoou

A campeã chegou!

Quando esse terceiro samba foi escrito, a Beija-flor já vinha acumulando títulos,

quase que numa sequência desde 2003. Talvez, por esse motivo, a escola faça uso de

expressões como “Eu tô de boa/ De bem com a vida e até sorrindo a toa” e “A campeã

voltou”, com a pretensão de diferenciar-se das outras agremiações e colocar-se superior.

Ao que parece, após alcançar as outras escolas e colocar-se entre as que têm o maior

número de títulos, a Beija-flor de Nilópolis passa a incluir outro tipo de discurso em seus

sambas-exaltação, o de “campeã”.

E também nesse samba, novamente a Beija-flor cria uma ideia de lugar de

“Felicidade” e de gente “sorrindo a toa”. Ela visa ser conhecida como lugar de gente

com “garra e samba no pé”, com uma “bateria que tem harmonia e gana”.

Nesse samba, a escola recorre ainda ao mesmo discurso persuasivo de amor e

devoção pela escola, presente em suas outras composições, a exemplo dos seguintes

versos: “Maravilhosa é mesmo tudo para mim” e “Brilhou na tela o meu grande amor/

Beija-flor”.

No dicionário de símbolos, o beija-flor que carrega o nome da escola e é a todo

tempo evocado na letra de seus sambas-exaltação, representa o mensageiro dos deuses,

como também é significado de alegria, de beleza, de harmonia, de energia, de delicadeza

e de renascimento.

Nesse terceiro samba da Beija-flor de Nilópolis, registramos traços típicos da

religião afro brasileira com o uso da palavra “OBÁ”. No candomblé, “Obá” é um orixá

guerreira feminina. Já na umbanda, essa expressão significa uma saudação aos Orixás.

Ao comparar esses três sambas-exaltação da Beija-Flor de Nilópolis, verificamos

algumas recorrências em seus enunciados: relação de alteridade entre a escola e o

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município onde se encontra sediada; uso de palavras que evocam os sentimentos de amor

e devoção à escola, o verdadeiro “refúgio da felicidade”.

5.2 DIALOGANDO COM AS IDENTIDADES

Ao longo da análise dos sambas-exaltação das três escolas com maior número de

títulos do Rio de Janeiro, percebemos que, em seus enunciados, a construção de suas

identidades assemelha-se ao processo de construção identitária de uma nação, isto é, suas

identidades são construídas por meio da afirmação e da valorização de sistemas

simbólicos que marcam a diferença, criando uma ideia de pertencimento.

Vimos, na seção teórica, que a identidade é uma relação de poder, propensa a ser

manipulada por meio de sistemas simbólicos que podem ser facilmente reconhecidos

como reais. Essas instituições manipulam a posição-sujeito que se deve ocupar

socialmente. O discurso nacionalista faz uso das mesmas estratégias. Visa construir uma

unidade dentro da diversidade e instituir valores, modos de pensar e modelos capazes de

influenciar comportamentos, caracterizando-se como um discurso autoritário e altamente

persuasivo (BAKHTIN, 2015).

Assim, é possível que as escolas de samba construam o que Anderson (1989)

denominou de comunidade imaginada. O autor defende a ideia de que as comunidades

nacionais constroem uma série de sistemas de representação cujos significados são

facilmente identificados pelos seus membros. A ideia de nação não é algo concreto ou

definido a partir da extensão territorial; ela só existe por meio de um sentimento de

pertencimento e de uma imaginação compartilhada por todos. Dessa forma, para o autor,

as comunidades nacionais são politicamente imaginadas “porque até os membros da mais

pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria

dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe

a imagem da sua comunhão” (ANDERSON, 1989, p. 14).

No caso específico das escolas de samba, elas se fazem representar por meio da

seleção de sistemas simbólicos não arbitrários, isto é, aqueles que são facilmente

percebidos pela comunidade como reais. É como um jogo que precisa levar em conta o

sentido que deve ser construído com credibilidade. Daí a seleção daquilo que se deseja

preservar e ressaltar. Esse sistema simbólico de representação é o mecanismo de “poder

para gerar um sentimento de identidade e lealdade” da comunidade pela escola de samba

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(HALL, 2015, p. 106). A identidade é, portanto, “um discurso – um modo de construir

sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de

nós mesmos”. São sistemas de signos “com os quais podemos nos identificar” (HALL,

2015, p. 50-51).

Assim, podemos dizer que as escolas de samba constroem uma espécie de

nação/comunidade imaginada, pois, tal como uma nação, elas também marcam suas

diferenças por meio de símbolos como bandeira, brasão, cores e hino. De acordo com

Berg (2014, p. 11),

[...] os símbolos nacionais possuem uma amplitude de formas e

representações: bandeira, hinos, canções, marchas, brasões, timbres,

selos, cores, a flora e fauna, monumentos, santuários, moeda, língua,

escrita/alfabeto, personificação da nação etc.

Para Fernandes (2001), as escolas de samba são o que Hobsbawm (1984)

denominou como tradição inventada, ou seja, inventam tradições e uma continuidade em

relação ao passado. Uma das características das “tradições inventadas” é assegurar

elementos marcantes de sua identidade, e todo esse processo de implantação ocorre com

velocidade. Desde seu surgimento, as escolas de samba se apoiaram num discurso de

tradição, muito comum nesse tipo de manifestação cultural.

No curso desse processo de análise (e já respondendo a primeira questão desta

pesquisa: como as escolas de samba se constroem identitariamente a partir de seus

sambas-exaltação?), constatamos que a construção identitária das escolas de samba

assemelha-se àquela dos hinos nacionais. Cada uma delas afirma sua identidade por meio

de sistemas representacionais que marcam a necessária diferença em relação às demais

concorrentes: a valorização de um autêntico passado de glórias; a bandeira e as cores da

escola; as tradições e os valores; o bairro/morro onde a escola está localizada; um

discurso de amor e devoção à “terra amada” que a comunidade deve desenvolver pela

escola; a sensação de felicidade; a identidade feminina; a identidade religiosa; e o lugar

de samba que ela representa.

E quando se questiona (como o fazemos em nossa segunda questão de pesquisa)

que relações dialógicas essas identidades estabelecem entre si, respondemos que a Portela

e a Mangueira afirmam suas identidades a partir da reivindicação de um passado “feito

de glória”, de “suas raízes”. Nesses casos, a antiguidade é uma vantagem em relação às

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outras agremiações. Mesmo indiretamente, a Portela e a Mangueira estabeleceram essa

distinção com as outras agremiações; mas, em nenhum momento, fizeram referência ao

nome de outras escolas de samba rivais em seus enunciados. Quando tratamos (na seção

teórica) sobre identidade cultural, vimos que estabelecer a distinção é uma estratégia

comum, na construção identitária, para separar grupos em lados oposto, para dizer quem

pertence ou quem não pertence a uma dada comunidade, nação ou grupo, a partir da

diferença. Reivindicar um passado é uma forma de obter vantagens em relação aos

adversários, para colocar-se superior aos outros e estabelecer a singularidade.

No caso da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, talvez por não figurar entre

as mais antigas do Rio de Janeiro, as estratégias são outras. A escola investe,

principalmente, no discurso de passionalização e de vinculação ao município de

Nilópolis, numa relação de alteridade.

Sua identidade é construída, em primeiro lugar, pelo uso de um discurso de

exaltação, que a coloca em lugar de destaque, enaltecendo o seu grande esplendor; em

segundo lugar, pelo uso de expressões capazes de ativar o emotivo-volitivo da

comunidade, que evocam o devotamento e o amor pela escola, provocando a sensação

de felicidade por pertencerem àquela comunidade, por se situarem naquele bairro. Esse

tipo de discurso é monológico e lança mão de estratégias que mexem com a emoção e

“vendem” uma imagem que não corresponde à real. É dessa forma que as escolas de

samba dizem qual posição-de-sujeito os participantes devem ocupar e os valores que

devem cultivar.

A Mangueira e a Beija-Flor também se fazem representar identitariamente por

meio da relação de alteridade com a comunidade onde estão localizadas. No samba-

exaltação da Mangueira, ora se faz referência ao morro, ora à escola de samba. Nos três

sambas da Beija-flor de Nilópolis, a marcação geográfica fez-se presente. Parece que a

agremiação faz mesmo questão de estabelecer essa vinculação com o município de

Nilópolis. Aliás, a ligação a uma comunidade também é uma forma de dispor sujeitos em

lados opostos, em uma relação de oposição (WOODWARD, 2014), ou seja, quem

pertence à comunidade da Mangueira e quem pertence à cidade de Nilópolis. Essa

marcação espacial também é uma estratégia muito comum nos hinos pátrios, justamente

para criar uma sensação de pertencimento e dizer quem faz parte e quem não faz parte

daquela comunidade/nação.

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No samba-exaltação da Portela, a vinculação ao bairro de Cascadura não é

marcada como nos sambas da Mangueira e da Beija-flor. Talvez, como afirmou Pavão

(2005), por ser um grande bairro da zona norte e bastante heterogêneo, a relação com a

escola de samba não seja a mesma que ocorre com as outras agremiações.

Outras relações dialógicas na construção identitária das escolas se estabelecem

entre os sambas-exaltação da Portela e da Mangueira, que diferente do da Beija-flor,

afirmam sua identidade por meio de marcação simbólica e exaltação da bandeira e das

cores (de sua bandeira), o que igualmente acontece nos hinos nacionais. Essa marcação

simbólica contribui para criar uma ideia de nação e de pertencimento a esses espaços.

Assim, para essas escolas tornarem possível a identificação com a agremiação,

descrevem a comunidade com características que possibilitam a ideia de pertencimento.

Há, nos sambas-exaltação, uma escolha de palavras que estão diretamente ligadas à esfera

em que foram produzidas, ou seja, a palavra só faz sentido dentro dessa comunidade

discursiva. Portanto, não podem ser isoladas da situação de produção.

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da

palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em

relação à coletividade. A palavra é lançada entre mim e os outros. Se

ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o

meu interlocutor (VOLOCHÍNOV, 2013, p.115).

Ademais, os discursos são construídos visando a um projeto de dizer que é levado

para o todo da enunciação. As palavras não são escolhidas aleatoriamente; fazem parte

de um esquema discursivo. Quando a palavra adquire um sentido concreto, quando se

refere a determinada realidade e às condições reais de comunicação, estamos diante de

um enunciado concreto. Por isso, quando analisamos uma palavra na perspectiva do

Círculo de Bakhtin, ela não é considerada “enquanto palavra da língua” (BAKHTIN,

2015, p. 290), mas como palavra inserida em uma determinada situação real de

comunicação e sua “ativa posição responsiva” (BAKHTIN, 2015, p. 290) em relação a

essa realidade concreta. Assim, “toda palavra pronunciada [...] é a expressão e o produto

da interação social” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 110).

Nesse processo, é preciso igualmente levar em conta a entoação expressiva que

um enunciado pleno de significação ganha. Toda palavra como enunciado concreto ganha

“um tom emocional” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 110). No caso dos sambas-exaltação, a

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entoação tem grande efeito sobre os participantes; faz com que se sintam mais envolvidos

e pertencentes à agremiação.

Vale lembrar que o sujeito vivencia trajetórias sócio-históricas distintas, reflete o

conjunto de relações do meio social no qual se insere. Portanto, não possui os mesmos

valores axiológicos e o mesmo horizonte de expectativa porque pertence à mesma

comunidade. Cada um vivencia a experiência de forma singular.

Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de

orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira.

Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. É

seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a

mesma definição geral (BAKHTIN, 2011, p. 33).

Todos esses discursos revelam as especificidades desse campo de comunicação

verbal e revelam que “o signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente

ligados” (VOLOCHÍNOV, 2014, p. 16).

Como dissemos, todas essas incidências podem ser interpretadas como

representativas do propósito comunicativo almejado pelos sambas exaltação: exaltar a

escola de samba, atribuindo-lhe identidades múltiplas; manter o sentimento de

“pertencimento patriótico” à escola; instituir valores, valorização e afirmação de sua

importância no universo do samba.

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6 APURAÇÃO FINAL

Nesta dissertação, objetivamos, em primeiro lugar, identificar como as escolas de

samba se constroem identitariamente a partir de seus sambas-exaltação, e, em segundo

lugar, determinar as relações dialógicas entre os discursos estabelecidos pelas escolas nos

enunciados de seus respectivos sambas-exaltação.

No decorrer da análise dos sambas, constatamos que o processo de construção

identitária das escolas é semelhante ao encontrado nas composições dos hinos pátrios, na

medida em que, nos dois casos, se visa reforçar o sentimento de pertencimento e criar

uma unidade na diversidade por meio de sistemas de signos que marcam a diferença, a

exemplo da valorização de um autêntico passado de glórias, da valorização das cores da

bandeira, da valorização da natureza e, em referência particular às escola, do bairro/morro

em que a escola está localizada, do uso de palavras que traduzem sentimento de amor e

de devoção à “terra amada”, da identidade religiosa e de sua caraterização como lugar de

samba.

Como já mencionado, para que exista esse sentimento de pertencimento a uma

dada nação/comunidade, é preciso uma série de símbolos capazes de “tornar possível uma

identificação” (PACHECO, 2004, p. 3-4). Há, para tanto, vários sistemas de signos não

arbitrários que estabelecem a distinção identitária entre os grupos e fazem com que os

indivíduos se sintam pertencentes a uma dada nação/comunidade.

Nesse processo comparativo (samba-exaltação x hino pátrio), verificamos que,

embora o samba-exaltação seja diferente do hino pátrio, registra-se uma aproximação

estilístico-semântico no modo de construção dos enunciados que compõem o gênero.

Todos os elementos que compõem os enunciados despertam o emotivo-volitivo dos

participantes e exigem deles uma atitude responsiva; afinal, toda enunciação está voltada

a um ouvinte e espera dele “sua concordância ou discordância” (VOLOCHÍNOV, 2013,

p. 163). O orador não fala para um público inerte, imóvel, seu ouvinte é sempre um

avaliador. É isso que confere caráter dialógico à linguagem.

Quanto às representações identitárias das escolas de samba analisadas,

percebemos que algumas se diferenciam pela forma como constroem suas identidades. A

Portela e a Mangueira, por exemplo, recorrem ao passado de glórias; já a escola de samba

da Beija-flor, provavelmente por ser mais moderna, recorre a uma estratégia de

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passionalização; assume o discurso de amor e de devoção pela escola, caracterizado como

um tipo de discurso autoritário e altamente persuasivo (BAKHTIN, 2015).

Todos esses elementos (associados à entoação-expressiva coletiva do hino, como

um ritual comum nos cerimoniais cívicos) contribuem para tocar o emotivo-volitivo do

público participante, sendo de capazes criar toda uma atmosfera de comunhão e de

desenvolver (em uns) / reforçar (em outros) o sentimento de pertencimento.

Os hinos, de modo geral, pátrios e institucionais, têm um papel importante na vida

dos indivíduos, especialmente porque os leva a identificar-se como sujeito de uma nação,

de uma crença religiosa etc. Em qualquer caso, o ritual de entoação dos hinos faz com

que os indivíduos se sintam mais fortes, mais envolvidos, pertencentes a um grupo.

Todos, enfim, reunidos em uma só voz e agindo como um único corpo coletivo,

compartilhando os mesmos valores, numa emoção unânime. Essas canções valem-se de

um conjunto de palavras característico de seu universo e representam um dos símbolos

mais significativos de uma nação, de uma crença religiosa, de uma escola de samba...

Quanto ao gênero samba-exaltação, constatamos que este obedece ao padrão,

tanto no que concerne à sua forma composicional quanto no que diz respeito a seu

conteúdo, e apresenta, como projeto discursivo, a exaltação da escola de samba com vistas

a desenvolver o sentimento de pertencimento da comunidade, explorando os principais

símbolos e valores da agremiação.

O samba-exaltação e as escolas de samba já foram temas privilegiados em vários

estudos acadêmicos; mesmo assim, acreditamos haver marcado a singularidade desta

pesquisa pelo fato de termos procedido a uma análise dos enunciados, pondo em destaque

a sua relação com o contexto de produção e de circulação, sua dialogicidade, seu caráter

valorado e responsivo. E isso o fizemos em sintonia com os ensinamentos de Faraco

(2009), para quem os gêneros não devem ser estudados de forma cristalizada, mas levando

em consideração seu caráter dinâmico e não estático, visto que estão sempre se adaptando

à nova realidade, aos novos contextos e horizontes de expectativas.

De fato, os sambas-exaltação (assim como os hinos nacionais) são canções

importantes para a construção e afirmação de identidades. E porque se propagam pela

melodia, tem-se impressão de que o processo de assimilação dos valores atinge os

participantes de forma mais ampla, mais rápida. É a entoação do samba que toca o

emotivo-volitivo e faz com que os participantes se sintam envolvidos pela mesma esfera.

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A análise também deixou evidente que não existe neutralidade quando se trata de

discurso, posto que toda linguagem possui um conteúdo ideológico e está intrinsecamente

ligada a uma determinada situação social, mantendo relações dialógicas com outros

enunciados, outros signos. Assim, para interpretar esses enunciados, é preciso levar em

conta todas as características dessa esfera e o atual contexto em que as escolas de samba

se inserem. Por isso mesmo, não os analisamos assumindo um pensamento essencialista,

como ponderamos na discussão acerca das construções identitárias.

Muitas vezes, as ideologias não são evidentes, como é o caso do samba-exaltação.

Volóchinov (2017) alerta-nos para o fato de que toda palavra dita, por mais neutra que

possa parecer, veicula uma ideologia, porta valores e modos de pensar. Ademais, cada

esfera de atividade humana constrói seu sistema ideológico, que possui função específica;

não pode ser separado dessa realidade. Esses signos são feitos especificamente para essas

esferas e não são aplicáveis fora dela.

Com todas as transformações causadas pela globalização, as escolas de samba são

prova dessa busca de afirmação e reafirmação, da busca da distinção, entre “tradição e

tradução”, ou seja, entre o celebrar as tradições e o renovar-se. Não é, pois, sem razão

que Geraldi (2009, p. 1) assevera: “O tempo da velocidade é o tempo da exigência de um

novo contínuo, sem transcurso temporal: tudo é substituído e deve ser substituído com

pressa”. Assim, para sobreviverem às novas exigências num mundo pós-moderno, as

escolas de samba precisam aceitar o novo e, ao mesmo tempo, celebrar aquilo que as

singulariza, que as diferencia, como é o caso da valorização de suas tradições, de suas

raízes e de seu passado. Nesse sentido, constroem suas identidades como uma verdade

essencialista, representações que muitas vezes não condizem com o real, pois

desconsideram todas as mudanças, revelando “que, se a identidade é fruto de uma

construção, ela também passa por processos de manipulação” (SILVA, 2010, p. 32). Essa

seria uma estratégia de sobrevida num mundo globalizado no qual é preciso “inserir-se

como distinto para se fazer notado” (GERALDI, 2009, p. 18).

Numa última palavra, com a crescente rivalidade entre as agremiações para

manterem-se no grupo das campeãs, e dada a aceleração do tempo e as exigências do

mundo pós-moderno, as escolas de samba precisam sempre achar o seu diferencial, a sua

singularidade, o que, em deriva, render-lhes-á mais simpatizantes, quiçá mais

investidores, e, principalmente um maior envolvimento da comunidade. Aliás, num dizer

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mais definitivo, as escolas de samba precisam sempre se afirmar como importante

manifestação cultural.

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