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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO Mielson dos Santos Menezes MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO NATAL/ RN 2013

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE …Villey (2009, p. 16), “é na Grécia que descobrimos os germes da teoria do direito natural; mas também poderíamos encontrar os germes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

Mielson dos Santos Menezes

MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO

NATAL/ RN

2013

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MIELSON DOS SANTOS MENEZES

MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO

Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) apresentado ao Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Doutor José Diniz de Mo-raes

NATAL/ RN 2013

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MIELSON DOS SANTOS MENEZES

MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO

MONOGRAFIA apresentada ao curso de Direito

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial para obtenção do título de

Bacharel em Direito.

Aprovação em 14/06/2013.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. José Diniz de Moraes

UFRN

Prof. Dr. José Orlando Ribeiro Rosário

UFRN

Profa. Ma. Patrícia Borba Vilar Guimarães

UFRN

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“Certos valores brilham com uma luz dominadora

em dadas conjunturas, levando indivíduos e po-

vos a vencer algo que, no fundo, seria uma ten-

dência ‘natural’. O homem eleva-se ao mundo do

valioso graças a seu autodomínio, à sua capacida-

de única de superar, não só as inclinações natu-

rais dos instintos, como os estímulos rudimenta-

res da vida afetiva. Sob esse prisma, o mundo do

valioso é o do superamento ético” (REALE,

2002, p. 200).

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RESUMO

O presente trabalho trata de um dos temas mais recorrentes da Filosofia do Direito em todos

tempos, que é o das relações entre o Direito e a moral, assunto este que sofre transformações

desde o tempo da Antiguidade Clássica, além de ter constituído um motivo de preocupações

de importantes filósofos, podendo-se afirmar que o direito reflete, em cada presente histórico,

os fatores que condicionam a consciência do ser humano mesmo e de sua maneira de encarar

a realidade em que vive. Trata-se de estudo de cunho especulativo acerca das condições reais

de concepção da influência das várias fontes de normatividade jurídica no conteúdo e aplica-

ção do direito, mediante pesquisa bibliográfica lastreada em pensadores que cuidaram profi-

cuamente de tal assunto e são responsáveis por marcar o estudo da determinação das relações

entre o direito e os valores, que são componentes da vida ética cujo centro produtor é o ser

humano mesmo. O desenvolver das pesquisas demonstrou observar-se atualmente uma maior

preocupação com a influência de critérios morais na determinação do conteúdo das regras

jurídicas ou da sua aplicação, o que representa certa transformação qualitativa no positivismo

jurídico e a emergência de doutrinas axiológicas, as quais estão orientadas segundo padrões

morais mais rígidos e constituem um meio bastante eficaz de transformação da realidade jurí-

dica rumo a uma compreensão mais adequada de Direito, que põe no centro a figura do ser

humano, produto histórico que deve ser o centro da vida jurídica e inspirar uma abertura dos

sistemas jurídicos aos conteúdos morais que são exigências de bem comum e realização das

aspirações sociais.

Palavras-chave: Direito e moral. Justiça. Positivismo Jurídico. Normatividade. Cultura e

valores.

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ABSTRACT

This work addresses one of the most recurrent themes of philosophy of law at all times, which

is the relationship between law and morality, that suffered transformations since Classical

Antiquity, and has been a major cause for concern for philosophers because the law reflects,

in each historical present, the factors that influence the consciousness of the human being and

even its way of looking at reality in which he lives. It is a speculative nature study about the

real conditions of conception of the influence of various sources of legal normativity in the

content and application of the law, through bibliographic research grounded by thinkers who

cared profitably in such matter and are responsible for marking the inquires toward determin-

ing relations between law and values, which are components of ethical life whose producer

center is the human being itself. The development of the research showed today we can find

greater concern with the influence of moral criteria in determining the content of legal rules or

their application, which represents some qualitative change in legal positivism and the emer-

gence of axiological doctrines, which are oriented at stricter moral standards and are a very

effective means of transforming the legal reality toward a more adequate understanding of

law, which puts the figure of the human at the center, historical product that should be the

center of life and inspire an opening in legal systems to moral contents which are require-

ments of the common good and social aspirations of achievement.

Keywords: Law and morality. Justice. Legal Positivism. Normativity. Culture and values.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................8

2 O DIREITO E O JUSTO NA FILOSOFIA DO DIREITO DA ANTIGUI-

DADE CLÁSSICA................................................................................................ 9

2.1 A FILOSOFIA DO DIREITO NA GRÉCIA ANTERIOR A PLATÃO .........11

2.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES

.................................................................................................................................12

2.3 ESTOICISMO E DIREITO ROMANO............................................................16

3 DIREITO E JUSTIÇA NA IDADE MÉDIA ...................................................20

3.1 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO...............................20

3.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO.................21

3.3 A DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA TOMISTA, O NOMINALISMO E O

VOLUNTARISMO NA FILOSOFIA DO DIREITO NO FINAL DO PERÍODO

MEDIEVAL.............................................................................................................26

4. O DIREITO MODERNO.................................................................................31

4.1 LAICIDADE, INDIVIDUALISMO E HUMANISMO.....................................31

4.2 A REFORMA PROTESTANTE, A CONTRARREFORMA E A ESCOLÁS-

TICA ESPANHOLA................................................................................................32

4.3 O JUSNATURALISMO RACIONALISTA .....................................................38

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5. O POSITIVISMO JURÍDICO .........................................................................43

5.1 SURGIMENTO, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS................................. 43

5.2 O POSITIVISMO JURÍDICO SEGUNDO A CONCEPÇÃO

NORMATIVISTA DE HANS KELSEN.................................................................48

6. DOUTRINAS AXIOLÓGICAS E TRANSFORMAÇÕES DO

POSITIVISMO JURÍDICO .................................................................................57

6.1 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO E A EMERRRGÊNCIA DAS

TEORIAS AXIOLÓGICAS.....................................................................................57

6.2 AS TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UMA

REDEFINIÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE MORAL E DIREITO ......................65

6.3 O CULTURALISMO JURÍDICO E O DESAFIO DA CONSTRUÇÃO DE

UMA ORDEM OBJETIVA DOS VALORES.........................................................72

7 CONCLUSÃO......................................................................................................79

REFERÊNCIAS.....................................................................................................82

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1 INTRODUÇÃO

O tema das relações entre a moral e, consequentemente, os valores e o direito é um dos

mais relevantes temas para a Filosofia do Direito, mas também um dos mais complexos e

indefinidos, uma vez constatar-se um conflito permanente entre várias tendências doutrinárias

que possuem algumas diferenças entre si, como o caso do jusnaturalismo ou do culturalismo e

o positivismo jurídico, mormente o de feição exclusiva, os quais defendem posturas

diametralmente opostas e, possivelmente, inconciliáveis no tocante à consideração de critérios

ou parâmetros morais incidirem como fatores que determinam a validade do direito positivo,

ou somente a vigência do direito positivado, assim como no tocante a se a moral seria um

fator diretamente condicionante do conteúdo e da validade das regras jurídicas.

Assim, o presente trabalho constitui um esforço em prol do melhor entendimento e

reconhecimento do problema, com o intuito de poder distinguir um ponto de vista mais

coerente e satisfatório em relação à necessária complexidade do direito nas sociedades atuais,

quando se reclama por mais flexibilidade e defesa de uma posição moralmente definida de

promoção dos bens e valores que contribuem para o bem-estar e a consagração ética e social

das pessoas, não significando isso deixá-las à própria sorte em meios às acentuadas

diversidades e problemas do contexto social, o que se faz mediante a incursão nas variadas

doutrinas que contribuíram de alguma forma para o estado atual das relações entre a realidade

jurídica e os valores sociais e humanos.

Em vista disso, este trabalho tem um cunho explicativo e, ao mesmo tempo, defensor

de uma posição incisiva, uma vez que seu propósito é exatamente o de precisar o estado atual

das relações entre o direito e a moral tendo em vista todo o desenvolvimento histórico de

escolas de pensamento distintas desde um tempo arcaico da história jurídica dos povos até os

contornos atuais, sob a justificativa de ter uma aclarada noção da transformação das

concepções jurídicas ao longo do tempo assim como dos fatores que levam ao abandono e

posterior adoção de um novo modelo de juridicidade, como se observou com o advento da

Idade Moderna e seu espírito racionalista, fator que marcou profundamente a história jurídica

até os nossos dias, mas que atualmente sofre uma crítica justificada por ter transmitido

somente uma falsa certeza quanto à natureza do direito, ante a maior valorização do homem

como ser dotado de dignidade e, por isso, fator de reformulação das preocupações do direito.

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2 O DIREITO E O JUSTO NA FILOSOFIA DO DIREITO DA ANTIGUIDADE

CLÁSSICA

O estudo da filosofia do direito, que se ocupa do “estudo crítico dos princípios dos

sistemas científicos de direito” (VILLEY, 2009, p. 5), não teria outro lugar a principiar a não

ser a Grécia antiga, em grande parte devido ao fato de a civilização grega ter alcançado gran-

de desenvolvimento, mormente quanto a certa estabilidade alcançada pela democracia ateni-

ense, que deixou uma herança jurídica e filosófica inestimável à humanidade. No dizer de

Villey (2009, p. 16), “é na Grécia que descobrimos os germes da teoria do direito natural; mas

também poderíamos encontrar os germes do positivismo jurídico, do relativismo, quando não

do sociologismo”.

Conforme nos diz Villey (2009), a vida pública ateniense proporciona sólido clima de

liberdade, sob o qual florescem as mais diversas tendências da filosofia jurídica, podendo-se

citar partidários e inimigos da democracia, nacionalistas atenienses, partidários da união da

Grécia ou até do cosmopolitismo.

Encontramos já em Hesíodo, grande poeta da civilização grega clássica, traços de uma

concepção de direito que procura exaltar o papel da justiça. Acerca disso, contempla ele o

sentimento de que “Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra a espezinhem, e de

que os bens mal adquiridos nunca prosperam” (JAEGER, 1995, p. 91). Assim, observamos já

presente, na concepção grega do direito, um imanentismo axiológico baseado no ideal de jus-

tiça, o qual estava relacionado a importantes fatores condicionantes da vida.

Outro elemento importante para o estudo da filosofia do direito grega é a polis, que

adquire relevância fundamental, haja vista o fato de ser o principal meio para a investigação

das várias dimensões que compunham a vida daquela sociedade, incluindo a política e o direi-

to, que mantinham relações cujo estudo é indissociável de uma adequada consideração dos

fatores determinantes do justo e do jurídico. Sobre a importância da polis, Jaeger (1995, p.

107) assim escreve:

[...] Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo definitivo a sua estrutura. No perí-odo primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade. Poderíamos comparar isso a múltiplos regatos e rios que desembocassem num único mar - a vida comunitária - de que recebessem orientação, e refluíssem à sua fonte por ca-nais subterrâneos e invisíveis. Descrever a cidade grega é descrever a totali-dade da vida dos Gregos. Embora isto seja um ideal praticamente irrealizá-vel, ao menos na forma usual de uma narração temporal progressiva e linear dos fatos históricos, a consideração daquela unidade é muito fecunda para

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todas e cada uma das suas esferas. A polis é o marco social da história da formação grega.

Temos que, no desenvolver da sociedade grega, houve uma transição de conceitos,

pois passou-se, cada vez mais, a buscar-se dike, cujo significado fundamental equivale a “dar

a cada um o que lhe é devido” (JAEGER, 1995, p. 135), em vez de themis, que possuía feição

formal e significava literalmente apenas lei, termo que se originava como sentimento de exal-

tação da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e senhores nobres, tendo a dike assumido a

feição de representar a luta de classes que se iniciou com o aumento da oposição entre os no-

bres e os cidadãos livres, inclusive com a exigência popular por leis escritas como forma de

refrear os abusos políticos dos magistrados (JAEGER, 1995). Assim, nas exatas palavras de

Jaeger (1995, p. 135):

Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua validade, dike significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra dike se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo dike tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.

Surgiu o termo dikaiosyne, conceito que designava um sentimento genérico de respeito

aos justos limites e o afastamento das várias formas de transgressão da conduta, que proveio

da crescente intensificação do sentimento de justiça e de sua expressão na forma de arete, que

significava a coragem de um homem, um tipo de excelência, do grupo das aretai, e a que to-

das as outras excelências que a pessoa possuísse deveriam estar a serviço (JAEGER, 1995).

Sobre essa nova concepção, escreve Jaeger (1995, p. 137-138):

[...] A nova dikaiosyne era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, o conceito de justiça ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a ‘virtude cristã’ consistiria na obediência às ordens do divino.

Nos primórdios da civilização grega, a natureza era um elemento de importância

fundamental para a regulação da vida, o que se explica pela subordinação aos ditames naturais

de uma cultura alheia a uma maior liberdade, que confiava cegamente nas imposições da vida

natural, que era a fonte de normas para o comportamento humano (MORRISON, 2006). Tem-

se que o naturalismo do qual se originam os conceitos fundamentais da vida grega também

condiciona a manifestação do justo presente na antiguidade da Grécia, podendo-se dizer,

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acerca do naturalismo antigo, consoante Billier e Maryioli (2005, p. 40), ser ele uma

“formidável invocação de um modelo natural do qual derivaria a convenção e que acaba de

realizar uma completude perfeita da visão do direito, considerando-o positivo e natural”.

Observa-se que há uma complementaridade, na compreensão grega do direito, entre as

esferas jurídica, ética e política, assim como entre a ordem positiva das leis e sua ordem

objetiva fundada na ideia de natureza (BILLIER & MARYIOLI, 2005).

2.1 A FILOSOFIA DO DIREITO NA GRÉCIA ANTERIOR A PLATÃO

Dividindo-se a história da filosofia do direito na Grécia Antiga até Platão, como o faz

Villey (2009), originam-se três fases distintas: as origens, a crise cética do século V e a reação

de Sócrates.

O primeiro dos períodos, o arcaico, é aquele em que o senso de justiça é expresso

primeiramente sob uma forma teológica, mitológica, como se verifica em Hesíodo, na sua

obra Teogonia, havendo também uma laicidade da noção de justiça, a partir de que se chegou

a uma ordem natural, onde se acha o início da ideia de direito natural (VILLEY, 2009).

A crise do século V a.C refere-se a transformações na vida ateniense que estão

relacionadas a eventos jurídicos e políticos que ocorrem já a partir do século anterior, havendo

mudanças na legislação. A confiança no costume tradicional, o nomos, decai e passam a se

opor a ele tanto a justiça (dike) como a natureza e sua ordem (physis), podendo-se citar a obra

Antígona, de Sófocles, oriunda daquela época, como uma das primeiras afirmações do direito

natural, embora não se tratasse propriamente de uma concepção completa de direito natural.

Além disso, alguns sofistas empreenderam esforço em defesa da lei da natureza em oposição à

lei da polis, numa posição que criticava a ordem social tradicional (VILLEY, 2009).

Por sua vez, a última fase do período pré-platônico, baseada nas ideias do filósofo

Sócrates, representa uma reviravolta substancial na maneira de encarar a realidade jurídica,

pois a influência filosófica socrática foi responsável pelo estabelecimento de uma teoria

jurídica baseada em elementos amparados pela razão humana. Opôs-se ele ao relativismo e ao

empirismo dos sentidos, próprios dos sofistas, para defender um intelectualismo capaz de

apreender os elementos essenciais da realidade e traduzi-los em conceitos, possibilitando a

busca da verdade e o estabelecimento de uma concepção de Estado que se afasta da

arbitrariedade dos homens (MONCADA, 1955).

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Para Villey (2009, p. 21), “Sócrates parece ter iniciado uma reação a favor do direito e

ter tentado, pela primeira vez, fundar racionalmente a autoridade das regras do direito, em

resposta à crise cética da sofística”.

2.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES

O pensamento de Platão acerca do direito se mostra bastante relacionado com a ética e

com a política, representando um ponto culminante dessa relação. A questão da legitimação

da ordem jurídica e política está necessariamente, em termos platônicos, relacionada a um

exame moral do ponto de vista da justiça (BILLIER & MARYIOLI, 2005). A concepção

platônica do direito não se mostra de uma forma comum, senão apenas entendida a partir do

papel político da realização do justo. Assim, defende Platão que a missão das leis ou do

homem político é a descoberta do justo e que a ordem jurídica requer todo o cuidado do

homem político (VILLEY, 2009).

A finalidade do direito seria, então, o alcance do bem (justiça), devendo a justiça ser

exercida tanto no interior do homem quanto no de uma polis, observando-se que o mesmo

equilíbrio interior responsável pela justiça no indivíduo, ou seja, a subordinação dos instintos

sensuais ao coração, e a deste à razão, constituiria a justiça da polis, que seria a submissão

hierárquica de classes, como a dos trabalhadores aos guerreiros e a destes aos filósofos,

devendo-se ter em conta que essas duas dimensões são indissociáveis em face de que a polis é

composta de matéria humana, daí ser o regime constitucional justo somente aquele no qual os

homens aceitam subordinar seus sentidos à coragem ou à razão (VILLEY, 2009).

Platão desenvolve uma concepção do direito que se confunde com o próprio Estado,

que expressa as condições necessárias para o indivíduo atingir a perfeição moral e realizar o

bem, e em que a virtude máxima seria a justiça, que seria um princípio de equilíbrio entre as

outras virtudes, quais sejam, a sabedoria, a coragem e o domínio dos sentidos (MONCADA,

1955).

O Estado ideal platônico, objeto da obra A República, representa uma fonte

inestimável acerca do estudo do direito e da justiça. Funda-se ele sobre dois atributos, que são

a justiça e a felicidade dos seus cidadãos, estando presente a ideia de perseguição do bem

comum, sendo a justiça uma noção equivalente ao que é necessário ao funcionamento dessa

noção.

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Pelas palavras do próprio filósofo, temos uma ideia mais clara da finalidade do direito

de concepção platônica, que preza pela busca do bem comum, do bem da comunidade, da

justiça na polis:

Esquece-te novamente, meu amigo, que à lei não importa que uma classe qualquer da cidade passe excepcionalmente bem, mas procura que isso aconteça à totalidade dos cidadãos, harmonizando-os pela persuasão ou pela coação, e fazendo com que partilhem uns com os outros do auxílio que cada um deles possa prestar à comunidade; ao criar homens destes na cidade, a lei não o faz para deixar que cada um se volte para a atividade que lhe aprouver, mas para tirar partido dele para a união da cidade. (PLATÃO, 2000, p. 215).

Observa-se na obra platônica certa exaltação da justiça, enquanto a injustiça é vista

como contrária aos deuses e à própria ordem social e política, porquanto teria esta um poder

tal que, quer se trate de um Estado, de uma nação, de um exército ou qualquer outra entidade,

a incapacitaria de atuar de acordo consigo mesma, em face das dissensões e discordâncias,

além de torná-la inimiga de si mesma e de todos os outros que são justos (PLATÃO, 2000).

A justiça, em Platão, é concebida como um atributo da alma, que se relaciona com a

personalidade e as virtudes do homem, e, assim, diretamente dependente da conduta moral.

Para Jaeger (1995), tal como presente em A República, a alma é o valor moral da

personalidade e a justiça o que mantém a alma em bom estado, sendo ela útil para a vida uma

vez que sua ausência implicaria doença e degeneração.

Segundo Villey (2009), a doutrina platônica do direito baseia-se na descoberta do

justo, só podendo ser considerado direito ou lei o resultado de uma prática da arte, não pelo

método experimental, mas sim através de uma ciência especulativa, a ciência do justo

(dikaion).

Platão, conforme Villey (2009), como consequência da observância da violação das

leis constitucionais pelo poder, dá importância ao conceito de legalidade na sua doutrina

política, sendo levado a construir uma teoria positiva das leis escritas, segundo a qual não

podiam as leis proceder da vontade popular, mas sim do filósofo (sábio).

Conforme se depreende das palavras do próprio filósofo, a natureza da justiça ou da

injustiça está relacionada com o interesse comum materializado na forma de governo

estabelecida, segundo o qual a justiça consistiria no interesse do mais forte (PLATÃO, 2010).

Assim, podemos afirmar que a justiça platônica mantém uma crença na importância do estado

como forma de realização do bem comum necessário à sociedade ou à polis.

Por sua vez, Aristóteles, foi talvez o filósofo mais importante da época, e também o

que deixou a maior contribuição ao desenvolvimento da filosofia do direito, devido à

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aceitação e importância de suas teorias. Observa-se na doutrina do Estagirita, consoante

Morrison (2006), a crença em que há certa estrutura ontológica na base da natureza humana e

do cosmo, apesar do fato de Aristóteles ter sido o criador de uma abordagem mais empírica,

que se contrapõe ao idealismo platônico. Para Moncada (1955, p. 24), pode-se chamar o

sistema de ideias aristotélico de “naturalismo idealista ou de um idealismo ainda, se

quisermos, mas educado e morigerado por um profundo sentimento experimental e

naturalista”.

Em Aristóteles, tem-se uma nova ideia de natureza, sendo a natureza humana variável

e sujeita a uma indeterminação essencial, deixando-se de lado a noção de universalidade para

defender-se a variabilidade na conformação com a natureza, devendo o direito natural ser

compreendido como algo que acompanha a variabilidade do humano (MORRISON, 2006).

A doutrina aristotélica, segundo Morrison (2006), exige a busca da essência das

coisas, que não significa que tudo seja reflexo de uma ideia ou essência pura, mas sim que

devemos tentar determinar a natureza essencial das coisas da maneira como operam elas nos

processos naturais do mundo, tornando-se a busca da essência de uma coisa a busca da

própria natureza da mesma. Segundo ele, o retrato aristotélico da vida humana está inserido

numa concepção teleológica da natureza humana (Morrison, 2006).

Aristóteles, sem deixar de lado a concepção da justiça como virtude universal,

segundo a qual o justo seria toda conduta conforme a lei moral, preocupa-se bastante com a

justiça particular, cujo objeto é atribuir a cada um o que é seu, o suum cuique tribuere,

prescrevendo a realização de uma partilha adequada, na qual cada indivíduo não recebe nem

mais nem menos do que exigido pela boa medida, observando-se uma teoria geral da virtude

como meio-termo, o qual está nas próprias coisas, verificando-se que o objeto da justiça não

mais se confunde com o conjunto da moral (VILLEY, 2009).

A justiça aristotélica, dessa forma, buscaria uma pretensa igualdade, que pode ser

entendida a partir das funções da justiça, das quais a primeira é zelar pela distribuição dos

bens, das honrarias e dos cargos públicos entre os membros da polis, daí ser esta forma de

igualdade uma proporção. A segunda função da justiça seria o zelo pela retidão nas trocas,

utilizando-se, se fosse o caso, da justiça corretiva, em se observando algum desequilíbrio,

sendo este o caso de uma igualdade aritmética (VILLEY, 2009).

Nas palavras de Villey (2009), Aristóteles dá ênfase à concepção do justo como

equilíbrio realizado entre os diversos cidadãos que se reúnem numa polis, e, assim, concebe o

justo político como o principal tipo do justo.

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A doutrina aristotélica opera a importante distinção entre direito e moral, o que não se

observa em Platão. Para o Estagirita, era possível a alguém realizar o justo sem ser intima-

mente justo (Villey, 2009). E Villey (2009, p. 46), a respeito dessa diferenciação, assim se

expressa:

A ciência do direito, do dikaion, concerne ao efeito, ao resultado exterior, a essa igualdade nas coisas, nas relações entre cidadãos, a esse medium rei, que caracterizávamos há pouco como sendo o objeto da justiça. Deixaremos para o moralista a busca das intenções. Não que o jurista não seja um auxili-ar da moral; pois ele indica ao moralista o que a intenção deve tentar encon-trar. Mas ele só se ocupa do objeto, não da maneira como o objeto será pro-curado.

No que concerne às fontes jurídicas na doutrina aristotélica, apesar de haver o reco-

nhecimento tanto do justo natural como do justo positivo, e o fato de às vezes termos de nos

contentar apenas com o direito natural, embrionário, a solução jurídica deve ser alcançada

conjuntamente através tanto do estudo da natureza como da determinação precisa do juiz ou

legislador, não havendo oposição entre o justo natural e as leis escritas do Estado (VILLEY,

2009).

Acerca dessa característica, Villey (2009) comenta que o direito aristotélico acaba

procedendo, ao mesmo tempo, tanto da natureza como da convenção, devido ao trabalho do

legislador com base no justo natural, ao qual acrescenta algo de sua vontade própria para fazer

resultar um justo completo.

Outro elemento importante da doutrina jurídica de Aristóteles é a sua teoria da

equidade, que serve como um auxiliar às imperfeições da lei escrita e da má aplicação do

direito. Sobre isso, Villey (2009, p. 65), assim se expressa:

Pois é verdade, embora seja lamentável, que nesta terra o direito é distinto da moral; que não é, como sonhava Platão, o Filósofo quem faz o direito mas, com base em alguns conhecimentos teóricos, o legislador e o juiz; que não se deve esperar demais da teoria, da ciência do direito natural; e que tampouco é desejável, nem, aliás, possível atribuir às leis positivas uma autoridade ab-soluta etc.

Temos que, segundo as palavras do próprio filósofo (ARISTÓTELES, 2002, p. 6), o

termo injusto “se aplica tanto ao homem que transgride a lei como ao homem que toma mais

do que lhe é devido, o parcial”. O parcial a que se refere o Estagirita é aquele que não pratica

a justa distribuição da riqueza, que é objeto da justiça particular, e assim é tido igualmente

injusto como o transgressor da lei. Noutra passagem, o grande filósofo sabiamente expressa a

necessidade de a justiça ser praticada não em relação a si mesmo, mas sim em relação aos

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outros, pois, para ele, “assim como o pior homem é aquele que pratica o mal com relação a

seus amigos, tal como em relação a si mesmo, o melhor não é aquele que exerce a virtude em

relação a si mesmo, mas sim aquele que a pratica em relação a outros, pois essa é uma tarefa

mais difícil” (ARISTÓTELES, 2002, p. 7).

Mostra-se bastante interessante sua concepção de equidade, consistente numa forma

mais aperfeiçoada de justiça, embora não deixe de ser justiça, e que busca a correção das im-

perfeições da prática do justo com base numa prática especial dessa virtude:

É evidente agora o que é o equitativo, e que ele é justo e é superior a uma espécie de justiça. E daí está claro o que é o homem equitativo: é aquele que por escolha e hábito faz o que é equitativo, que não insiste em seus direitos de forma indevida, mas que se contenta em receber uma parte menor, embo-ra tenha a lei a seu lado. E essa disposição descrita é a Equidade; um tipo es-pecial de Justiça, não uma qualidade inteiramente diferente (ARISTÓTE-LES, 2002, p. 16).

2.3 ESTOICISMO E DIREITO ROMANO

O estoicismo, corrente filosófica que abrange vários pensadores, teve uma importância

fundamental na filosofia do direito grega e romana.

Após Aristóteles e devido ao arrebentamento das fronteiras políticas que conferiam

intensidade à racionalidade grega, ocorreu o desaparecimento da cidade-Estado, o que trouxe

para a filosofia grega o ideal de universalidade, passando-se a falar, após Alexandre Magno,

no homem enquanto animal político não devido às suas relações com a polis, mas sim como

um indivíduo, o que implicava afirmar que o homem era também universal, estendendo-se à

humanidade como espécie geral tudo quanto dissesse respeito ao indivíduo (MORRISON,

2006).

Como nos diz Moncada (1955), o estoicismo é a filosofia oriunda da escola fundada

em Atenas em 312 a.C. por Zenão de Chipre (342-270), tendo durado vários séculos e várias

fases, das quais as duas últimas, de que são representantes da penúltima Panácio (180-110),

Possidônio (130-50) e Cícero (106-42), e da última os conhecidos romanos Sêneca (4-65),

Epicteto (50-120) e Marco Aurélio (121-180), que se compreendem imediatamente antes e

depois do advento do Cristianismo, exerceram maior influência.

Nas palavras elucidativas de Morrison (2006, p. 61):

O estoicismo é uma abordagem da vida; implica o controle das emoções e a aceitação tanto das forças da vida quanto do destino em um cosmo que, quanto ao mais, é caótico e imprevisível. E não se trata, aqui, de uma

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aceitação irracional. Por sob a aparência caótica da vida, os estoicos argumentavam que o universo era um ordenamento sistemático no qual o homem e o cosmo se comportavam segundo princípios finalísticos específicos. A razão e a lei operavam em toda a natureza.

Segundo Morrison (2006), Cícero, que era orador e estadista romano, harmonizou a

ideia estoica da lei natural universal que dirige a conduta humana com a atitude psicológica

dos céticos, combinava ideias dos estoicos com outras influências gregas e acreditava que a

filosofia e a retórica eram inseparáveis, devendo a persuasão, e não a coerção, ser o

instrumento do poder político.

Para Moncada (1955), a concepção do mundo e das ideias estoicas sobre o direito e o

Estado outra coisa não significa que certo retorno ao idealismo, no sentido de se considerar a

razão como primeiro princípio do mundo e essência da realidade. E a partir da concepção

metafísica do mundo própria dos estoicos, de base racionalista, “o direito positivo é agora

nitidamente contraposto, como nunca até aí, a um outro direito cuja essência radica na própria

ordem do universo, vindo a impregnar-se dum significado ôntico” (MONCADA, 1955, p. 38).

Conforme Billier e Maryioli (2005), a doutrina estoica do direito partirá de uma lei

natural, originada da relação universal existente entre os seres, a partir de que a relação social

se funda sobre uma dádiva natural, a oikeiósis, que significa conhecimento primeiro e quase

intuitivo de pertença à comunidade universal dos seres humanos.

Segundo nos diz Villey (2009), a ciência jurídica romana, em relação aos princípios,

assemelha-se a um produto cultural grego, tendo os romanos realizado empréstimos

filosóficos de diversas escolas ao mesmo tempo, sendo o aristotelismo a principal influência,

incluindo-se também o estoicismo, mas não se deixando de fora o platonismo. Afirma ainda

ele ter a lei natural estoica, a razão universal reinante sobre o mundo e sobre a história, ou a

parte dessa razão que está disseminada na consciência de cada homem, apenas alcance moral,

mas cuja moral afetará bastante o conteúdo do direito romano da época clássica, tendo o

humanismo estoico, o qual enfatiza a dignidade superior de cada indivíduo e mais tarde

inspiraria a moral cristã e a filosofia moral e jurídica moderna, sido responsável por abrandar

a condição do escravo e do peregrino.

Nas palavras de Cícero (2002, p. 36), “Lei é a razão mais elevada, implantada na

Natureza, que comanda o que deve ser feito e proíbe o oposto”. Assim, expressa ele o caráter

da lei natural estoica, da qual é maciço representante, observando-se uma forma de direito

natural racional e de alcance moral bem nítido. Para ele, a razão seria um caráter distintivo

entre os homens e os animais, sendo ela provinda de Deus como a primeira posse comum

entre o homem e a divindade. E a razão em sua forma correta seria a Lei (CÍCERO, 2002).

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Cícero (2007), em sua obra De Officiis, expressa uma distinção dos deveres em

perfeitos, a que se podiam chamar de equidade, e medíocres, os quais consistiriam apenas

naqueles deveres aos quais se pode dar uma razão admissível. Em outra parte da obra,

expressa uma necessidade intransigente de justiça, a qual está presente até mesmo na conduta

dos criminosos, que possui algumas regras mínimas:

Enfim, a necessidade de justiça é tão grande e tão universal que os próprios bandidos, vivendo de crimes e roubos, não podem subsistir entre eles sem alguma espécie dela, pois os que roubam em sociedade, se puserem à parte pedaço da presa, ou afastarem à força os outros, não seriam mais tolerados, mesmo em uma matilha de bandidos; e um chefe de piratas, se não respeitar a igualdade na partilha, será infalivelmente assassinado ou abandonado pelos outros (CÍCERO, 2007, p. 95).

Sabe-se que, apesar de na Grécia já estarem contidas concepções e teorias importantes

acerca do direito, ou do justo, foi mais precisamente na seara romana que se considera o

nascimento do direito, pelo menos segundo as características em torno das quais costumamos

delimitar esse conceito, haja vista ter havido somente em Roma a observância de uma série de

outras características jurídicas relacionadas ao âmbito da prática do direito, que o distinguiam

pela maior cientificidade.

Sobre isso, segundo Billier e Maryioli (2005), são traços da singularidade latina no

direito: o fato de os romanos possuírem uma profissão específica a serviço do aparelho teórico

jurídico, exercida pelos jurisconsultos, que eram também teóricos do direito, escrevendo obras

doutrinárias; o fato de os jurisconsultos romanos não terem se limitado à prática judicial, mas

terem desenvolvido frequentemente uma obra científica e pedagógica; o fato de o direito

romano propiciar o surgimento de um paradoxo na relação entre direito natural e direito

positivo, pois os romanos não partem da lei natural para pensar o direito, mas fazem o

contrário, e assim atrelam-se a uma função fundadora, de um direito ordenador da realidade, e

não emancipador.

Importante destacar o fato de o Direito Romano Clássico contemplar uma concepção

distinta de Direito Natural daquela dos gregos. Segundo Reale (1977), a concepção grega

caracterizava-se pela abstração, segundo a qual sua validade antecederia a qualquer processo

histórico, enquanto a concepção romana assumia um significado empírico e prático, não

somente especulativo e teorético, daí sua validade na forma de norma ideal e como uma forma

de ordenação jurídica positiva.

Além disso, comparando as concepções jusnaturalistas da época clássica romana e da

era romana cristã, Reale (1977), afirma que o sentido concreto do Direito Natural, à maneira

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de algo inseparável da experiência jurídica histórica, caracteriza o Direito Romano clássico,

contrastando-se com o conceito de Direito Natural abstrato da época posterior, após o advento

do cristianismo.

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3 DIREITO E JUSTIÇA NA IDADE MÉDIA

3.1 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO

A obra filosófica de Santo Agostinho, maniqueu convertido ao cristianismo, que se

tornou bispo de Hipona, na África, encaixa-se no contexto de grandes acontecimentos

históricos que transformaram profundamente a vida no período medieval nascente,

principalmente as invasões bárbaras, e, de certa forma, está relacionada a tais acontecimentos.

Segundo Moncada (1955), a obra agostiniana Civitas Dei (413-426), representou uma

tentativa de elucidar o problema de em que medida o Cristianismo foi responsável pela ruína

do Estado romano e do mundo antigo, que se tornou acentuado depois da devastação de Roma

por Alarico em 410. E continua ele (MONCADA, 1955), afirmando ser a obra uma apologia

ao Cristianismo baseada numa visão histórica e filosófica, elaborada através de elementos do

Antigo Testamento, do Novo Testamento, de ideias platônicas, neoplatônicas e estoicas,

sendo estas últimas sobretudo retiradas de Cícero e Sêneca. Nas palavras dele (MONCADA,

1955, p. 58):

Retomando a ideia pauliana acerca da Igreja, como de uma comunidade dos santos, embora num plano mais histórico, não só como instituto de salvação, mas como organização da catolicidade do Espírito, Agostinho começa por considerar a história da humanidade como o teatro onde se desenrola o dra-ma de uma luta transcendente entre duas forças ou grandezas de essência metafísica: a civitas dei e a civitas terrena ou diaboli.

Ainda segundo o mestre lusitano (MONCADA, 1955), o direito em Santo Agostinho

está totalmente dominado pelo teísmo cristão, passando a lei reguladora das relações entre os

homens, de uma lei da natureza, para uma lei moral e divina, além de o amor a Deus ser

considerado a primeira norma da justiça, e assim o princípio da justiça não residiria na

natureza das coisas nem na razão, nem na ideia platônica, mas sim apenas na vontade divina.

Sobre isso, nas exatas palavras do ilustre mestre:

Este é o conceito de direito natural que preside a todo mundo de Agostinho: o velho conceito helênico de Aristóteles e dos Estoicos transformado pelo pensamento cristão e no qual se torna agora evidente uma forte deslocação de acento tônico dos seus elementos lógico-racionais para os seus elementos ético-voluntários (MONCADA, 1955, p. 62-63).

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Segundo Villey (2009, p. 77), Santo Agostinho “elabora uma doutrina do

conhecimento pela iluminação divina, de espírito platônico, mas cristianizado”. Sobre isso,

Morrison (2006, p. 68), assim se expressa:

O caminho do conhecimento (puro) não consiste em explorar o cosmo como se fôssemos nos tornar seu soberano, mas sim em indagarmo-nos a nós próprios com humildade, como seres limitados e dependentes, e assim ascender ao conhecimento daquilo que é mais puro e verdadeiro, isto é, Deus.

E Morrison (2006) complementa esse entendimento acerca desse aspecto da filosofia

agostiniana, dizendo que a razão deve estar alinhada à revelação e, munida de um instrumen-

tal lógico, argumentar tendo como base a segurança das entidades a nós reveladas, fundindo-

se a filosofia com a teologia.

Agostinho, apesar de prezar enormemente pela supremacia da ordem justa, oriunda

dos preceitos humanos iluminados pela ordem divina, revelada, segundo Villey (2009), aceita

a obediência às leis da ordem temporal ou profanas em alguns casos, na falta de uma justiça

plena por que se possa esperar, em sendo a justiça algo ideal e exigente para ele, uma vez pos-

suir a instituição algum valor e ser uma espécie de embrião da justiça por sua utilidade à or-

dem temporal. Para Villey (2009), esse aspecto da doutrina jurídica agostiniana se afasta um

pouco das doutrinas clássicas do direito natural, remetendo-nos ao positivismo jurídico.

Interessante afirmação a feita por Villey (2009) de que, apesar de se constatar, na obra

de Santo Agostinho, bases metafísicas de uma doutrina do direito natural, pois ele considera a

imposição de uma ordem sobre toda a natureza por Deus, sendo a justiça a obediência a essa

ordem da natureza, e, mesmo tendo reconhecido que os pagãos tivessem descoberto de fato,

exclusivamente através de suas luzes naturais, algumas regras de justiça, falta algo substanci-

al, haja vista o fato de inexistirem bases psicológicas suficientes ao reconhecimento de uma

doutrina do direito natural agostiniana, observando-se que a referência feita à lei natural, por

ele, apenas enfatiza a própria insuficiência dela.

3.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO

Tomás de Aquino (1226-1274), maior expoente da corrente filosófica medieval esco-

lástica, foi responsável por uma grande contribuição para a filosofia jurídica posterior, desta-

cando-se como o principal filósofo da Baixa Idade Média, período que vai, aproximadamente,

dos séculos XI a XV da era cristã.

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Segundo Moncada (1955), a diferente atitude ou posição tomada por Tomás de Aqui-

no ante o dogma do pecado original e seus efeitos sobre a natureza criada nas suas relações

com a graça divina é o ponto de partida e a concepção fundamental que dominam, de longe,

todos os horizontes do pensamento do Aquinate em matéria de filosofia jurídica e política,

pois, enquanto que, em Agostinho, o pecado original corrompera completamente a natureza

humana, à maneira de um verdadeiro delictum naturae, para Tomás os efeitos dele foram me-

nos destrutivos, tendo a graça apenas o papel de complementar a natureza, haja vista o fato de

após a mácula original ainda restar algo de bom no homem, que seria uma espécie de virtude

original, capaz de permitir a ele, com a ajuda da graça, participar mais ativamente na sua pró-

pria salvação.

Interessante notarmos também a comparação entre o pensamento agostiniano e tomista

no tocante às relações entre vontade e inteligência, ou entre o bem e o justo, na compreensão

da essência divina, chegando Moncada (1955) a afirmar que, enquanto em Agostinho Deus é

essencialmente vontade, e não sendo o bem outra coisa que a simples manifestação de sua

vontade indeterminista, em Tomás de Aquino sobressai uma orientação contrária, segundo a

qual Deus seria, antes de tudo, um ser de natureza intelectual e o bem seria essencialmente a

manifestação do seu querer em harmonia com essa natureza.

Ainda segundo o mestre lusitano (MONCADA, 1955), Tomás parte da ideia de Logos

para formar a ideia de direito, pois sendo o Logos a inteligência divina, essência da divindade

criadora do mundo, à semelhança do que foi o homem criado, é, ao mesmo tempo, princípio

ordenador do mundo, como Lex aeterna, e princípio regulador e normativo da atividade hu-

mana, como Lex naturalis, observando-se que, para ele, à semelhança dos estoicos, a lei natu-

ral nada mais é do que uma presença da lei eterna na criatura racional.

Segundo Morrison (2006), Tomás de Aquino acreditava que os erros em nossos pontos

de partida básicos podiam afetar radicalmente nossa vida, levando-nos a relações falsas com

Deus. E afirma ainda que a teologia inicia-se com as verdades da ordem divina, revelada, en-

quanto a filosofia começaria pelo mundo do modo como ele foi revelado aos nossos sentidos,

que seria analisado a fim de se descobrir seus princípios. Segundo ele:

A filosofia preocupa-se com os objetos imediatos da experiência dos sentidos e eleva seu raciocínio a concepções mais gerais; em última instância, a mente chega à prova da existência de Deus. Inversamente, a teologia começa com a fé em Deus e passa a interpretar a vida de todas as coisas como derivadas de sua existência enquanto criaturas de Deus (MORRISON, 2006, p. 77).

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Ainda de acordo com Morrison (2006), a filosofia, em Tomás, seria capaz de propor-

cionar o raciocínio que concluiria pela existência de Deus de cinco formas: pelas provas do

movimento, da causa eficiente, do necessário, por oposição ao possível, a dos graus de perfei-

ção e a da ordem do universo.

Digno de menção é a concepção tomista de direito natural, que se diferencia da agosti-

niana, já que aquela se assenta sobre uma visão finalística da natureza humana, segundo a

qual os homens estariam naturalmente voltados para determinados fins, querendo-se dizer que

a felicidade reside em atingir o fim ou o objetivo do homem, sendo o pecado a capacidade de

deixar de agir de acordo com esses fins, observando-se que, enquanto Aristóteles propunha

uma moral naturalista segundo a qual os homens podiam alcançar a virtude e a felicidade me-

diante a satisfação de seus fins naturais, Santo Tomás fez acrescentar o elemento cristão do

fim sobrenatural do homem (MORRISON, 2006).

Observa-se que, na filosofia jurídica e moral tomista, a liberdade ocupa um papel pri-

mordial, haja vista sua ausência descaracterizar um ato como moral, devido à inexistência de

possibilidade de o homem ter usado sua vontade livre. Acerca desse elemento, Morrison

(2006) diz que nenhuma moralidade seria possível caso o determinismo físico dominasse o

homem em sua liberdade de ação e, em sendo a liberdade exigência irremediável para que

qualquer ato seja considerado moral, só seria humano um ato dotado de tal atributo, que im-

plica o conhecimento de alternativas e a capacidade de escolher entre elas, conforme Santo

Tomás, para quem a virtude ou o bem consistiria em realizar as escolhas certas, sendo um

meio-termo entre os extremos.

Sobre o papel da razão em Tomás de Aquino, temos que, segundo Finnis (2007), a

razão prática, capacidade de alguém pensar sobre a maneira como as coisas são, pode ser a-

largada, fazendo julgamentos verdadeiros e plausíveis acerca do que fazer, observando-se um

pensamento prático, que pretende resultar em escolha e ação. E continua Finnis (2007) afir-

mando que, para Tomás de Aquino, nem todas as nossas atividades são livremente escolhidas,

existindo, assim, atos realizados pela pessoa humana que não seriam, na verdade, atos huma-

nos de acordo com o sentido central (livremente escolhidos), mas sim espontâneos e não deli-

berados, além do que os atos escolhidos não são necessariamente antecedidos por alguma

escolha, haja vista a possibilidade de os atos consistirem em realizações de escolhas feitas no

passado, isso porque alguém pode estar numa situação em que só haja a escolha já realizada

como fator determinante desta.

Assim, tem-se que:

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Essa concepção de escolha livre (liberum arbitrium ou libera electio) é muito mais forte do que a de Aristóteles, cujas concepções de escolha livre são livres apenas dos fatores determinantes externos. A concepção livre de escolha de Tomás de Aquino é também incompatível com as noções modernas de determinismo leve, ou com a compatibilidade presumida da responsabilidade humana (e da sensatez [autocompreensão] de que alguém está escolhendo livremente) e a determinação de todos os eventos por leis (por exemplo, físicas) da natureza. Tomás de Aquino compreende a liberdade de nossas escolhas livres como sendo uma realidade tão primária, metafísica e conceitualmente irredutível, como a realidade das leis físicas. Ele coloca todas as suas reflexões sobre moralidade e razão prática sob o título de 'o domínio sobre os próprios atos' (FINNIS, 2007, p. 30-31).

Nesse contexto, temos que fatores como a preservação da vida, a propagação da espé-

cie, a formação de uma sociedade composta por leis humanas pertenceriam ao estado natural

humano, fundando-se a lei moral sobre a capacidade da razão em reconhecer o caminho ade-

quado para sua conduta a partir dos ditames da natureza humana, ou seja, após se levar em

consideração as tendências humanas naturais com relação a específicas formas de comporta-

mento, e, assim, uma vez que a natureza do homem possui algumas propriedades fixas, as

normas comportamentais que se correlacionam a essas propriedades correspondem ao direito

natural (MORRISON, 2006).

Apesar de o direito natural tomista ser concebido a partir da observação de proprieda-

des fixas de comportamento segundo a natureza humana, temos que, conforme observa Villey

(2009, p. 149), a concepção do direito natural em Tomás de Aquino é “mutável, porque a nos-

sa própria natureza é mutável”.

Temos que, na doutrina tomista do direito, observa-se a influência tanto do agostinis-

mo como do aristotelismo e do averroísmo, havendo uma valorização das fontes jurídicas

profanas na sua concepção de direito, conciliando-se fé e razão a partir de elementos caracte-

risticamente tomistas. Conforme informa Verdi (2005), a partir da filosofia de Aristóteles,

surgiu uma escola conhecida pelo nome de averroístas e que consideravam a filosofia inde-

pendente da revelação divina, que serviu de base à revolução cultural ocorrida no século XIII,

que teve como principal responsável Tomás de Aquino, tendo este feito uma revisão das idei-

as agostinianas e introduzido o pensamento aristotélico, elaborando uma síntese tanto do a-

gostinismo como do averroísmo da qual resultou justamente o tomismo.

E, conforme observa Villey (2009), mostra-se inovadora a doutrina tomista retirada do

Tratado sobre as Leis, haja vista estar presente ali um grande espaço concedido às fontes pro-

fanas de conhecimento, observando-se que a lei natural existe pela natureza e é acessível tanto

aos pagãos como aos fiéis cristãos por sua própria definição, tendo Tomás destacado as fontes

profanas da moral.

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Diz ainda Villey (2009) que a filosofia tomista do direito conduziu a uma reconquista

da autonomia do Estado perante a Igreja, reavivando uma teoria profana da soberania, defen-

dendo também o Aquinate a obediência ao rei em vez de ao papa, em se tratando de matéria

temporal.

Conforme nos descreve Finnis (2007), Tomás de Aquino se vale da antiga concepção

romana de justiça, o suum cuique tribuere, além da divisão aristotélica da justiça em justiça

distributiva, consistente no bom julgamento acerca da divisão e distribuição dos benefícios e

ônus totais ou de se estabelecer uma maneira que fosse justa, por estar dirigida segundo crité-

rios apropriados, e na sua concepção de justiça comutativa, que ultrapassa a noção aristotélica

de justiça corretiva, referindo-se a quaisquer outros tipos de transações entre pessoas.

Elemento importante no estudo da doutrina jusfilosófica tomista é a sua noção de lei

que, como nos diz Finnis (2007), reserva papel proeminente para a lei eterna através de que

Deus governa até mesmo as criaturas inanimadas e também para a participação da lei moral

natural nessa lei eterna; entretanto, afirma que, tratando da lei fora dos limites textuais que ela

representa, enfatiza que a característica mais essencial dela é algo que transpassa as leis natu-

rais, transformando-se em apelo à mente, à escolha, à força moral (virtus) e ao amor de quem

a ela se submete.

Observa-se que, como nos assinala Villey (2009), para Tomás de Aquino, assim como

para Aristóteles, além do estudo do direito natural, exige-se o complemento das leis positivas,

que ocupam lugar de destaque na doutrina jurídica tomista, não sendo estas mais do que um

prolongamento do estudo do justo natural, devendo ser justas, isto é, serem editadas para o

bem comum tendo em vista o fim natural do povo para o qual foi elaborada e estarem adapta-

das às circunstâncias de tempo e lugar, por deverem ser expressão de um justo natural mutá-

vel.

Nas palavras do próprio Aquinate, temos uma noção de direito como objeto da justiça,

pois como se dá o nome de justo, que caracteriza retidão que é conveniente à justiça, ao que a

justiça realiza, sem se levar em conta a forma de proceder de quem assim agiu, em relação às

outras virtudes ocorre o contrário, sendo a retidão determinada apenas pela maneira como se

procede, daí, portanto, o objeto da justiça ser determinado em si mesmo e chamado justo, sen-

do precisamente o direito, o qual é manifestamente o objeto da justiça (AQUINO, 2005).

Noutra passagem, temos explicitamente a definição e papel do direito positivo em

Tomás, que deve estar em conformidade com o direito natural:

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[…] deve-se dizer que a vontade humana, por uma convenção comum, pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham à justiça natural. Tal é o lugar do direito positivo. Daí, o que diz o Filósofo: 'O justo legal é aquilo que, antes, não importava ser de um ou de outro modo; porém, importa, sim, depois de estabelecido'. Mas, se algo, de si mesmo, se opõe ao direito natural não se pode tornar justo por disposição da vontade humana (AQUINO, 2005, p. 49).

3.3 A DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA TOMISTA, O NOMINALISMO E O VOLUN-

TARISMO NA FILOSOFIA DO DIREITO NO FINAL DO PERÍODO MEDIEVAL

A par da importância e de certo sucesso da doutrina tomista, vale destacar o fato de

que a escolástica de influência tomista será bastante confrontada pela escolástica franciscana

de fins da Baixa Idade Média, entre os séculos XIV e XV, observando-se a introdução de no-

vas influências filosóficas na doutrina jurídica concebida naquele tempo, podendo-se destacar

o nominalismo e o voluntarismo como elementos que irão permear a filosofia jurídica, prea-

nunciando o ambiente filosófico que lhe seguirá até culminar com as doutrinas modernas a-

cerca do direito. Podem-se destacar, nesse período, nomes como Marsílio de Pádua, João

Duns Escoto e Guilherme de Ockham como figuras ímpares na realização de uma reviravolta

nos caminhos do direito, sendo eles responsáveis por contemplar elementos que marcarão a

modernidade jurídica e todo o direito até nossos dias.

Acerca disso, Moncada (1955) afirma serem os séculos XIV e XV um período de de-

cadência da escolástica, em que os muitos momentos inconciliáveis objeto da síntese concili-

adora tomista encontram-se livres e dão origem a várias tendências cada vez mais indepen-

dentes, das quais o esforço faz sentir a chegada do mundo moderno. Ainda, segundo ele, um

fator da maior importância para se compreender a transição da Escolástica para o Renasci-

mento é a total emancipação do Estado, no contexto da disputa entre este e a Igreja, podendo-

se tomar este fato como consequência tanto do fortalecimento das nacionalidades europeias

como do crescimento das tendências individualistas e nominalistas na Escolástica decadente

(MONCADA, 1955).

Marsílio de Pádua é, nesse contexto, o mais destacado pensador político, cuja obra

Defensor Pacis (132-?) significa um marco de individualismo e autonomia da esfera política

na Teoria do Estado na Idade Média, o que se observa como forte oposição ao pensamento

tomista, o que coincide com o fim da Escolástica (MONCADA, 1955).

Nas palavras do mestre lusitano, temos que: “Em Marsílio de Pádua, como em Occam

o indivíduo querente é de, de fato, a única substância de toda a vida social e histórica; esta e o

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Estado são mero produto dos interesses individuais, combinados dentro do conceito de bonum

commune” (MONCADA, 1955, p. 91).

E Billier e Maryioli (2005, p. 129), acerca de Marsílio de Pádua, afirmam que ele

“projeta uma doutrina política que apresenta a demonstração de que o poder político é uma

emanação que, por isso, pode reivindicar a soberania”.

Agora, passemos ao exame dos autores mais importantes para a nova corrente filosófi-

ca marcante, que é a escolástica franciscana, cuja obra, segundo Villey (2009), representou

mais uma reação do que uma inovação, pois promoveu uma retomada do agostinismo.

Podendo-se classificar o tomismo dentro de uma corrente dita “humanista” da escolás-

tica medieval, haja vista a abertura da filosofia de Tomás de Aquino ao profano, pode-se en-

quadrar Duns Escoto e todos os filósofos franciscanos referentes dentro de uma corrente a que

se pode chamar “integrista”, decisivamente contrária à literatura pagã (VILLEY, 2009).

Especificamente acerca das características da transformação escolástica operada por

Escoto e Ockham, Billier e Maryioli (2005), afirmam que a evolução do pensamento escolás-

tico afastou-se do modelo tomista, em que a razão prevalece sobre a vontade, ou segundo o

qual razão e vontade consistem numa unidade, à semelhança da Razão divina, que não pode-

ria querer em contrariedade à sua Vontade, operando-se uma mudança teológica pelas mãos

de Escoto e Ockham cuja pauta é o estatuto da vontade.

Como nos diz Villey (2009), em confronto com a visão tomista, o pensamento escotis-

ta vê-se marcado por uma desconfiança na ideia de ordem natural, isso porque tal noção aca-

baria por diminuir o poder divino, uma vez que este, assim, teria sempre que agir segundo a

ordem, o que equivaleria a subjugar Deus a uma natureza imaginada em pé de igualdade com

a razão humana, fruto da soberba intelectual. E continua Villey (2009), afirmando terem a fé e

a meditação inspirado, em Duns Escoto, a ideia de um Deus onipotente e absolutamente livre

de qualquer ordem preconcebida.

Assim, pode-se afirmar, como Villey (2009, p. 204-205):

Em definitivo, todo conteúdo determinado da moral fica pendente da insondável vontade divina, da sua vontade positiva. Assim, a moral natural da Antiguidade, que o ramo humanista da escolástica medieval se empenha em pôr novamente em circulação, perde qualquer certeza; ante a onipotência de Deus, senhor absoluto da natureza e que pode modificar totalmente a sua ordem, desmorona a solidez da ordem natural.

Segundo Billier e Maryioli (2005), Escoto afirma que a liberdade humana importa na

independência de sua vontade em relação à razão, passando a ser a vontade que governa a

razão e não o contrário, sendo apenas em Deus o momento em que a vontade coincidiria com

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a razão, pois a liberdade absoluta de Deus é incapaz do mal, mas, ao contrário, a liberdade do

homem é capaz de errar. E, assim, afirmam Billier e Maryioli (2005), o mandamento se torna

central em relação à lei em Escoto, sendo importante apenas o amor a Deus, que seria o único

princípio de direito natural existente.

Dentro desse contexto, Billier e Maryioli (2005, p. 127) observam que:

A inversão efetuada pelo 'voluntarismo' scotista é decisiva: o direito é identificável em última instância com a vontade absoluta de Deus, que não é a natureza das coisas e que só é sujeita ao seu próprio arbítrio. Nessa perspectiva, há em Scot um ponto de vista muito radical: a lei suprema é sem lei, uma vez que ela não é outra coisa senão a pura e simples liberdade da vontade divina. Nesse sentido, a 'lei eterna' é suprimida por Scot.

Outra importante característica trazida pela doutrina de Escoto, segundo Villey (2009),

foi o fato de ele ter substituído a visão tomista, originada a partir de Platão e Aristóteles, con-

sistente num mundo de generalidades, de gêneros, de espécies, de naturezas, de causas for-

mais e finais, por um mundo que acentua o caráter das pessoas, de indivíduos, tendo sido a fé

responsável por essa nova visão, devido ao fato de a Sagrada Escritura ser personalista.

E Villey (2009) apresenta alguns pontos incisivos nos quais a doutrina escotista se

distingue expressamente da tomista, pois, segundo Escoto: é possível o conhecimento imedia-

to do singular, ao passo que, em Tomás, 'a ciência é geral', sendo os gêneros e as espécies o

objeto predileto do conhecimento; há uma forma particular de cada indivíduo, e em Tomás, ao

contrário, apenas a matéria seria suscetível de individuação e a “forma” seria comum; e, es-

sencialmente, a vontade possuiria primazia em relação à inteligência, e não o contrário, como

professava São Tomás.

Duns Escoto torna-se o responsável por uma verdadeira reviravolta teórica no direito,

isso porque se depreende de sua doutrina um acentuado caráter de positivismo, não importan-

do que seja a vontade divina positivada nos textos sagrados, haja vista estes representarem

preceitos sociais e, até jurídicos, relevantes. Segundo ele, como nos diz Villey (2009), a or-

dem oriunda da vontade divina, instituída a partir da Sagrada Escritura, com base no texto

positivo divino terá um lugar privilegiado nas regras de direito, contudo, as leis positivas hu-

manas também são detentoras de importante autonomia, como consequência da valorização

das liberdades do homem e do fato de a vontade humana estar livre de quaisquer obstáculos

que poderiam ser impostos pela razão.

Sobre o papel desempenhado pela doutrina escotista no tocante à filosofia do direito,

levando-se em conta seus desdobramentos históricos, Villey (2009, p. 210) afirma que “pode-

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ríamos, portanto, ter a tentação de datar a grande guinada, que substitui a antiga doutrina do

direito natural clássico pelo positivismo jurídico, no próprio ensino de Duns Escoto”.

Após Escoto, o pensamento de Guilherme de Ockham transpõe a essência da lei para a

decisão voluntária, quer seja a de Deus ou a do imperador, contudo, o que originalmente mar-

ca em sua doutrina é a extensão do alcance da fonte voluntarista da lei, pois o próprio sujeito,

o indivíduo, transforma-se em legislador, o que representa um elemento não presente na dou-

trina escotista (BILLIER & MARYIOLI, 2005). Assim, conforme nos dizem Billier e Mar-

yioli (2005, p. 128), “contra a tradição augustiniana, e bem além das proposições escotistas,

Ockham vai exaltar a vontade humana”.

Guilherme de Ockham, grande representante da escolástica franciscana medieval, foi

responsável por uma nova influência filosófica em fins do período medieval, consistente na

defesa e promoção do nominalismo. Sua importância, nesse aspecto, situa-se exatamente na

questão dos universais, acerca do que se observa o eterno debate entre realistas e nominalis-

tas, aqueles defendendo a existência concreta dos universais, que são as noções que expres-

sam ideias gerais, como homem etc., estes negando a existência real desses entes e admitindo

apenas sua existência fora do mundo das ideias.

Para Villey (2009), a querela dos universais é uma questão relevante para o entendi-

mento das diferenças e da passagem do direito antigo para o direito moderno, já que nela está

presente a linha que divide o direito natural clássico, que não se concebe fora do realismo

herdado de Aristóteles e de Tomás de Aquino, do positivismo jurídico, encontrando-se nela a

solução fundamental da filosofia do direito.

Segundo nos diz Villey (2009), Ockham, levando ao extremo o ensinamento aristotéli-

co que ia de encontro a Platão de desprezar o geral em benefício do singular, interpreta como

existentes apenas os indivíduos, que são reais e só eles constituem substâncias, e afirma não

possuírem existência todas as noções gerais, como o homem, o vegetal ou o mineral. E, des-

crevendo a atitude filosófica ockhamiana, acrescenta:

Não há natureza das coisas, natureza do homem, formas comuns, causas fi-nais. Só possuem existência real esses indivíduos singulares, de que, de resto (tese franciscana já encontrada em Duns Escoto) nos é dado um reconheci-mento imediato e intuitivo, e que designamos por meio desses signos que são os nomes próprios (VILLEY, 2009, p. 230).

A metafísica ockhamiana traz para o universo conceitual, o mundo da linguagem e do

pensamento, o que era próprio, na doutrina tomista, ao mundo real, do ser, quais sejam, os

gêneros, as formas comuns e as relações, transformando-os em meros conceitos, instrumentos

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ou etapas do percurso de uma realidade inteiramente singular, apenas um início de conheci-

mento obscuro dos indivíduos, sendo universais e relações não mais que instrumentos do pen-

samento, não havendo qualquer coisa acima dos indivíduos na realidade, inexistindo, portan-

to, universais, estruturas ou direito natural (VILLEY, 2009).

Villey (2009), acerca das consequências do nominalismo ockhamiano quanto à relação

entre fé e razão, descreve que, devido a Ockham, há um abismo entre filosofia e fé, pois, haja

vista o fato de a filosofia natural e a razão terem por domínio a criação, considera-se apenas a

fé como meio de acesso ao conhecimento de Deus. Assim, observa-se que essa característica

contraria enormemente a doutrina tomista, segundo a qual a razão seria um meio de se aceder

ao conhecimento das realidades divinas e de se obter provas de sua existência.

Desta vez, Villey (2009), tratando especificamente acerca da influência diretamente

exercida pela filosofia de Ockham sobre o direito, diz que o nominalismo invadiu o direito,

significando o abandono do direito natural, quer dizer, do método utilizado na formação da

ciência jurídica romana e que a escola humanista tinha restaurado na forma do direito erudito

medieval, o qual se utilizava da observação da natureza para a descoberta das soluções jurídi-

cas. E, no tocante às normas jurídicas sob influência nominalista, Villey (2009, p. 233) afirma

“não podendo mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será

preciso buscar sua origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivis-

mo jurídico é filho do nominalismo”.

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4. O DIREITO MODERNO

O conteúdo jurídico próprio da Modernidade é fruto de um novo ambiente cultural e

filosófico que, em geral, formou-se a partir da decadência do pensamento medieval, no alvo-

recer do Renascimento europeu, movimento que introduziu uma revolução cultural no início

da Idade Moderna e influenciou profundamente toda a vida que lhe seguiu, incluindo o surgi-

mento de aspectos marcantes para o direito, o que se observa pela indelével presença de al-

guns elementos importantes que se tornaram um eterno objeto da filosofia jurídica.

A Idade Moderna, sabe-se muito bem, foi uma época de grandes transformações para a

vida humana e para o direito, tendo-se presenciado nesse tempo o desenrolar de eventos sin-

gulares para a história, na qual o mundo se transformou de maneira definitiva, marcando uma

nova fase do percurso da verdade e conhecimento na esfera da ética e do direito, podendo-se

citar a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica como acontecimentos que deram

grandes frutos para o entendimento e a reflexão da realidade jurídica.

4.1 LAICIDADE, INDIVIDUALISMO E HUMANISMO

Um primeiro elemento importante, marcante para o direito moderno, será a laicidade.

Entenda-se essa característica como um aspecto segundo o qual o direito não mais considera a

ordem divina ou os preceitos religiosos como propriedades necessárias do seu conteúdo, como

se observava durante o período medieval, mas, ao contrário, considera ser de maior importân-

cia as fontes laicas que, na realidade social, condicionam a realidade jurídica, influenciando a

produção das normas, e, assim, fazendo repercutir esse aspecto diretamente no conteúdo do

direito nascente. Para Villey (2009), a fé nos textos sagrados é inteiramente substituída pela

confiança na razão.

Entretanto, Villey (2009) atenta para o fato de esse caráter laico do direito nos primór-

dios da modernidade não ter significado uma atitude de combate à religiosidade, mas, pelo

contrário, seguiu compatível, por algum tempo, com a mais autêntica teologia cristã, obser-

vando-se que os maiores filósofos do direito do século XVII, Suárez Grócio, Locke, Pufen-

dorf e Espinosa, permanecem teólogos, e possuem a preocupação de compatibilizar sua dou-

trina jurídica com a religião cristã, inclusive fundamentam suas posições com muitas citações

retiradas da Sagrada Escritura.

Acerca do individualismo, podemos dizer que ele é o elemento segundo o qual o indi-

víduo se torna um fator primordial nas considerações acerca do conteúdo do direito, obser-

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vando-se nele a valorização dos interesses individuais, ressaltando-se os atributos que estão

relacionados aos diversos aspectos da realidade individual das pessoas. Mais fortemente a

partir da Idade Moderna é que o individualismo assume uma importância acentuada na histó-

ria, devido ao seu favorecimento propiciado pelo novo clima cultural de liberdade de que pô-

de se servir, o que trouxe grandes consequências jurídicas.

Segundo Villey (2009), o individualismo é algo que espraiou largamente por todo o

mundo moderno, isso devido à filosofia do conhecimento de inspiração nominalista, que foi

largamente difundida, o que ocorreu também na metafísica, a qual somente reconhecia a subs-

tância individual.

E, conforme Villey (2009), existem algumas teses jurídicas modernas marcadas por

fortes traços individualistas, quais sejam elas: a existência de direitos naturais do indivíduo; a

construção artificial do Estado a partir do contrato social, com base no interesse, visando a

utilidade dos indivíduos; o positivismo jurídico, como corolário que é das teses do estado de

natureza anárquico e do contrato social, uma vez que, em sendo o indivíduo livre no estado de

natureza e ante o fato de a própria natureza não regular as relações sociais, só restaria o direito

disposto pelo estado; e, finalmente, a noção de direito subjetivo.

Sobre o humanismo, podemos defini-lo como um movimento que faz ressurgir ou res-

taurar elementos das culturas profanas antigas, cujas características valorizam o papel do ho-

mem, diferente da centralidade nas realidades sobrenaturais mais própria da época medieval,

que foi justamente a responsável pelo esquecimento de muitos dos autores resgatados no hu-

manismo, como se observa pelo Renascimento do século XVI.

Acerca do humanismo, Villey (2009) diz que seu papel foi, mais que o de conceber

doutrinas originais, revalorizar e repensar filosofias antigas desprezadas pela cultura medie-

val, principalmente em relação às filosofias chamadas helenísticas, produtos da Antiguidade

tardios e posteriores ao declínio de Atenas e às grandes conquistas de Alexandre Magno, que

foram transmitidas pelos autores latinos representantes do estoicismo, do ceticismo e do epi-

curismo, destacando que o positivismo moderno descende certamente de filosofias pagãs.

Segundo o mesmo (VILLEY, 2009, p. 438), “o interesse dos círculos humanistas parece, an-

tes, voltado para os problemas da vida privada, para as questões de moral [...]”. E, ainda, a-

cerca da importância desse movimento para o direito moderno, diz: “do humanismo provém

sobretudo a moral e a psicologia” (VILLEY, 2009, p. 439).

4.2 A REFORMA PROTESTANTE, A CONTRARREFORMA E A ESCOLÁSTICA

ESPANHOLA

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A filosofia do direito no início da Era Moderna vê-se bastante influenciada pelos mo-

vimentos da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica, dos quais resultaram conse-

quências importantes para a formação do direito moderno, observando-se uma nova concep-

ção de religiosidade, desta vez purificada das extravagâncias medievais, e adequada aos tem-

pos modernos. As disputas religiosas surgidas devido ao processo de cisma eclesiástico repre-

sentaram um fator importante na transformação do pensamento moderno incipiente a fim de

apontar um horizonte de esperança para o homem ante o novo cenário político e jurídico.

Para Moncada (1955), o movimento da Reforma constituiu originalmente, antes que

qualquer coisa, uma reação cristã contra o paganismo fruto do Renascimento, que também se

apoderara da Igreja Católica, tendo nascido primeiramente, apesar de se afirmar o contrário, a

partir de razões ligadas à religião.

Apesar de ter se iniciado apenas na busca de uma nova forma de religiosidade, como

muitos humanistas, e aliada a algumas tendências quinhentistas, desejando maiores universa-

lismo e interioridade no cristianismo, a orientação passou, em pouco tempo, a adquirir um

caráter de ruptura em relação ao humanismo, haja vista o fato de Lutero ter optado por se va-

ler de uma doutrina teológica profundamente avessa à essência do humanismo e de todo o

espírito dos séculos XV e XVI, que foi a doutrina agostiniana da graça e do pecado original

(MONCADA, 1955).

Segundo Moncada (1955), tal doutrina era de um pessimismo mais exagerado do que o

presente em Agostinho de Hipona, trazendo a natureza humana como essencialmente má e

corrupta, sendo o pecado a condição natural do homem, negligenciando qualquer mérito e

liberdade no homem que fossem independentes da fé e da graça.

Lutero professava uma doutrina que, de certa forma, se mostra avessa ao direito, uma

vez que leva ao descrédito das fontes jurídicas, haja vista o fato de sua opção teológica tê-la

tornado muito distante de uma busca do direito pelo direito, mas unicamente prescreve uma

forma interior de caminho cristão que tem seu sucesso independente da obediência às leis

humanas. Assim, Villey (2009, p. 312) afirma que “Lutero professa, por outro lado, seguindo

São Paulo, que o cristão está isento da obediência a qualquer lei – a não ser que se trate da ‘lei

de Cristo’, mas esta é informulada, informulável, completamente interior, subjetiva, e seu

único conteúdo é a fé”.

E Lutero demonstra ainda sua posição teológica extremada através de sua noção de

direito natural, talvez herança da doutrina agostiniana. Sobre isso, afirma Villey (2009) ser o

direito natural luterano a lei divina revelada responsável por substituir, vantajosamente, tanto

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para judeus como para cristãos, a lei natural pagã, ditada por Deus apenas primitivamente a

cada consciência, com conteúdo idêntico, mas acerca da qual nossas consciências corrompi-

das não tem ainda um conhecimento claro.

Sabe-se, assim, que a noção de direito natural em Lutero está eivada do caráter sobre-

natural da revelação, e que não dita prescrições fundamentais acerca do conteúdo das leis hu-

manas, apenas prescreve-lhe a obediência em função da prerrogativa divina que é reservada à

autoridade legislativa ou ao príncipe. Acerca desse aspecto, Villey (2009) afirma que, em Lu-

tero, a autoridade da lei é incondicional, haja vista não estar mais submetida, como em Tomás

de Aquino, a certos limites, cuja doutrina prevê o controle judicial e doutrinário da justiça de

seu conteúdo.

Para Villey (2009, p. 333), “Lutero plantou na alma alemã o germe de um tipo original

de positivismo jurídico, fundado na fé religiosa, extremo em suas consequências e que se re-

sume ao culto da autoridade e à apologia da obediência e da disciplina”.

Sobre Calvino, importante reformador protestante, podemos considerá-lo, como o faz

Villey (2009), seguidor de Lutero em termos doutrinários, mas havendo diferenças entre eles,

observando-se que o primeiro é posterior a este último, além de ter sofrido influências dife-

rentes das de Lutero, destacando-se o fato de Calvino ter recebido uma forte formação, tendo-

se impregnado de nominalismo e estado envolvido ativamente no movimento humanista.

Conforme nos diz Villey (2009), Calvino, assim como Lutero, espera submeter a con-

duta cristã ao corpo de leis representado na Bíblia, sobretudo pelo Antigo Testamento, obser-

vando-se que, para aquele, que sabe utilizar a distinção escolástica entre preceitos morais e

jurídicos, preceitos estritamente jurídicos (judicialia) não existem no Evangelho e os do Anti-

go Testamento, por exemplo os cerimoniais, não mais valem no mundo cristão, restando ape-

nas os morais (moralia), não se podendo mais confundir a moral com o direito, tratando-se a

lei prevista na Sagrada Escritura apenas como lei moral.

Acerca da moral calvinista, Villey (2009, p. 343) afirma que “a grandeza e a novidade

da moral de Calvino é que ela afeta a vida dos laicos, e na sua integralidade”. Talvez isso pos-

sa ser entendido como uma forma peculiar, encontrada pelo reformador, para promover a reli-

gião cristã e suas prescrições morais, tendendo a construir a autonomia de uma moral exclusi-

vamente retirada dos ensinamentos estritamente cristãos, assim como entendeu o próprio Cal-

vino a necessidade de influenciar a ordem temporal.

Consoante nos revela Villey (2009), a doutrina calvinista do direito, que é semelhante

à luterana, é marcada por relegar a distribuição de todos os bens e honrarias absolutamente ao

poder da autoridade temporal, o que a leva aos caminhos do positivismo jurídico.

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Aspecto relevante de se destacar é a doutrina calvinista da predestinação, por meio da

qual o reformador busca submeter a ordem de salvação humana a uma espécie de opção feita

por Deus em favor daqueles destinados a serem salvos, o que se distancia da tradicional tese

de uma maior participação da vontade dos homens, universalmente considerados, no seu pró-

prio caminho de salvação, pois claramente restringe o alcance da redenção por meio de Cristo

e cria um abismo em relação à concepção tomista de que a razão humana representava uma

propriedade suficiente para, se devidamente iluminada pela ordem divina, conduzir o homem

à salvação. Para Moncada (1955), o dogma da predestinação defendido por Calvino, se obe-

decido radicalmente, equivaleria quase a tornar sem a menor importância qualquer ação moral

e reformadora estatal que não fosse através da Igreja.

E Moncada (1955), analisando as doutrinas calvinista e luterana no tocante ao direito

natural que se poderia compreender nas suas obras, afirma ter o Protestantismo se mantido

tradicionalmente na linha humanista e, até mesmo, escolástica, sendo responsável por uma

reação contra o paganismo de Machiavel e afirmando existir uma lei eterna objetiva, não se

observando, entretanto, a mesma uniformidade quanto ao tema das relações entre a Igreja e o

Estado, daí advindo duas posições claramente distintas.

Descrevendo as duas posições, Moncada (1955) diz ter sido a luterana mais a favor de

uma plena submissão da Igreja ao poder estatal, o que levou ao surgimento da doutrina do

direito divino dos reis, que se desenvolveu, sobretudo, na Alemanha; mas tendo a posição

calvinista, por outro lado, sido mais afeita à fiscalização do Estado pela ordem religiosa, e, em

termos políticos e filosóficos, a favor das mais diversas doutrinas ocasionais, incluindo-se

nelas desde a doutrina monárquica do direito divino dos reis até teorias mais democráticas

como a da soberania popular inalienável e a do direito de resistência dos monarcômacos,

estes relacionados com as guerras religiosas travadas durante o século XVI.

E, expressando-se a respeito das diferenças entre essas posições, Moncada (1955. p.

115) afirma, acerca das posturas luterana e calvinista, respectivamente:

[…] enquanto que a primeira, sob a forma de uma renúncia a moralizar o Estado, deixa este entregue às leis do kratos e do bios, a segunda, por virtude talvez de uma sistemática desvalorização do Estado, reduzido a mero instrumento dos fins do indivíduo, único portador de um fim de salvação, desde o campo religioso até ao econômico, veio afinal concorrer, segundo alguns, poderosamente, para o desenvolvimento do capitalismo moderno.

O movimento da Contrarreforma, concebido como um esforço católico cujo objetivo

era barrar a expansão protestante e reforçar o domínio religioso do catolicismo pelo mundo,

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representou um fator de grande transformação cultural e filosófica, cujos efeitos influencia-

ram profundamente a filosofia do direito que lhe segue.

E esse movimento, em termos filosóficos e jurídicos, foi representado por uma nova

escolástica, cujo centro era, sobretudo, a Universidade de Salamanca, na Espanha, e alguns

dos seus principais representantes eram: Francisco de Vitória, Domingo De Soto, Medina,

Gabriel Vazquez, Molina, Mariana e Francisco Suárez, sendo este último considerado o maior

expoente dessa corrente filosófica.

Consoante Villey (2009), a escolástica espanhola representou uma restauração da filo-

sofia tomista e, questionando a respeito das razões desse retorno do tomismo na escolástica

espanhola do século XVI, responde que isso de se deveu ao fato de os jesuítas estarem clara-

mente movidos pelo espírito de oposição ao protestantismo, esperando buscar em Tomás de

Aquino o senso de liberdade e participação humana e de seus próprios méritos pessoais na

salvação. Assim, pode-se observar aí uma clara distinção com relação à doutrina protestante

da exclusividade da graça divina como meio de o homem obter a salvação, representando o

pensamento da escolástica católica uma forma de adequação à doutrina tomista.

Aspecto relevante pode-se considerar, também, o fato de a escolástica de Salamanca

ter realizado uma revivescência da doutrina do direito natural, o que representou também uma

revalorização jurídica de uma ordem natural que se mostra afeita a uma maior valorização da

razão e do homem, diferente da característica protestante de supervalorizar uma ordem objeti-

va cuja fonte remete exclusivamente à religiosidade cristã objeto de defesa pelos reformado-

res. Sobre esse aspecto, Villey (2009. p. 371) diz que:

[…] diferentemente de Lutero e até de Calvino, cuja tendência é negar à razão do homem qualquer poder de encontrar por si mesma soluções justas, a escola de Salamanca restaura as fontes naturais do direito: é à inteligência dos homens, até a dos infiéis, a de Aristóteles, de Cícero, dos juristas romanos, que se deve perguntar as regras do justo.

Aliado a isso, e dentro desse contexto de retorno do direito natural de forma emanci-

pada dos laços do agostinismo protestante, a escolástica promove, segundo Villey (2009), o

caráter laico do direito, desprezando a herança das fontes divinas de qualquer direito. Esse

elemento representa um traço original dessa escola filosófica, estando presente, em maior

medida, no direito natural abstrato da Escola Moderna, encabeçada por Hugo Grócio, fazendo

da escolástica do século XVI uma segura precursora, em certa medida, do padrão de ideias

que se tornou clássico durante alguns séculos que lhe seguiram.

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Francisco de Vitória é considerado importante na formação do direito internacional

moderno. Consoante Villey (2009), o fato de, após o cisma realizado pelo protestantismo, ter-

se tornado impossível uma intervenção papal na resolução dos conflitos envolvendo nações

que não estavam sob domínio católico resultou na exclusiva utilização do direito natural, ten-

do a escolástica espanhola atendido à emergente necessidade, no contexto do século XVI, de

elaboração de um direito internacional.

E Villey (2009) afirma ter sido Vitória o responsável por lançar as bases desse direito

internacional nascente, tendo formulado os princípios que prescrevem o respeito mútuo das

soberanias entre os Estados, a não intromissão de um Estado nos assuntos internos de outro, a

admissão da livre circulação de mercadorias e pessoas entre os territórios dos países, a liber-

dade de pregação religiosa; além disso, foi ele que, ainda, estabeleceu a liberdade de utiliza-

ção dos mares e dos rios internacionais, o direito relativo aos embaixadores, o respeito à pro-

teção dos civis durante a guerra, inclusive o direito da autonomia dos índios contra os coloni-

zadores.

Francisco Suárez, considerado o principal representante da escolástica católica do sé-

culo XVI, representou uma grande contribuição para a filosofia do direito. Ele é dono de uma

concepção diferente do direito do que a tomista, tendo Villey (2009) reconhecido que Suárez,

não mais considerando unitariamente o direito como uma atividade que visa a um fim trans-

cendente, faz uma cisão na noção de direito em dois elementos separados, que são o direito

subjetivo, que seria o benefício individual resultante da arte jurídica, a faculdade, e a lei, que

seria o instrumento da arte jurídica.

Assim, podemos considerar um aspecto peculiar da filosofia jurídica suareziana que é

uma espécie de restrição do direito à lei, elemento que, a nosso ver, expressa já uma antecipa-

ção ou uma incursão precoce no espírito filosófico da modernidade, inclusive projetando sua

influência para as características atuais da filosofia do direito, pois o indivíduo adquiriu gran-

de importância no mundo atual, incluindo-se também a noção de direito subjetivo e o próprio

positivismo jurídico, que assumirá mais tarde uma feição estritamente legalista, apesar dos

sérios ataques hoje sofridos.

E Villey (2009, p. 410) expressa bem as características da concepção jurídica presente

na doutrina de Suárez:

E é a essa lei, entendida da maneira a mais estreita, a mais positiva, que Suárez pretende reduzir o direito. Não concebe mais, fora ou acima dos textos, outras fontes para a arte jurídica; nem, fora, a ordem latente da natureza exterior; nem, acima, essa razão da lei que, na visão de São Tomás, constituía causa final. Suárez já não considera mais tanto, na lei, sua

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finalidade, para a qual era parte integrante, segundo São Tomás, de sua essência, mas apenas seu ser atual, o preceito efetivamente firmado. A lei é a norma tal como sai da vontade legislativa. Em suma, não existe nada além do texto.

Para Moncada (1955), Suárez é responsável, diferentemente de Tomás de Aquino, por

uma abordagem mais legalista e nominalista, assim como voluntarista, do que a oriunda da

influência tomista, observando-se que, enquanto a doutrina puramente tomista considerava a

lei um ato intelectual por essência, a doutrina suareziana desloca a essência da lei para o seu

momento voluntário, sendo a lei positiva, antes de qualquer coisa, um ato de vontade realiza-

do pelo legislador em face do legislado. E acrescenta o mestre lusitano que “o que imediata-

mente faz que a lei seja lei, é o elemento vontade daquele que a emite. E com isto, reivindi-

cando um mais acentuado caráter de heteronomia da lei positiva, imediatamente também o

intelectualismo ficava, ipso facto, retificado pelo voluntarismo suareziano” (MONCADA,

1955, p. 135).

Pode-se retirar dessa influência voluntarista que a doutrina de Suárez, de certa forma,

mesmo que apenas bem vagamente, já expõe, em certa medida, a característica marcante da

Escola da Exegese francesa, a qual reservava grande proeminência ao papel do legislador e

erigiu em dogma jurídico o principio da onipotência do legislador, como através do papel re-

legado à voluntas legislatoris na interpretação do direito, que era essencialmente o que estava

contido nos textos legais. Contudo, deve-se reconhecer que um conjunto amplo de fatores foi

responsável pela formação do positivismo estritamente legalista do Século das Luzes, não

sendo a herança suareziana um elemento diretamente considerável, haja vista a importância de

toda a filosofia que se lhe segue, mais afeiçoada às características da modernidade.

No que respeita à lei natural, elemento imprescindível na concepção jurídica de Suá-

rez, assim como para Tomás de Aquino, temos que é suprema, imutável e de essência divina,

diferenciando-se apenas pelo fato de que a aplicação aos fatos e realidades, de acordo com a

posição suareziana, deve sempre atentar para a causa material da lei, formada pelos destinatá-

rios da lei em suas múltiplas situações históricas (MONCADA, 1955).

4.3 O JUSNATURALISMO RACIONALISTA

Agora, passemos a considerar o surgimento de uma nova onda doutrinária de cunho

jusnaturalista, imediatamente posterior à nova escolástica tomista do século XVI, que pode

ser genericamente denominada jusnaturalismo racionalista e não deixa de ser um desenvolvi-

mento a partir do racionalismo e do humanismo florescente desde os primórdios da Idade

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Moderna, merecendo destaque a formação de uma escola própria de pensamento jurídico e

filosófico, a Escola do Direito Natural Racionalista, da qual fazem parte Hugo Grócio e outros

grandes juristas e filósofos da época, merecendo destaque o fato de a doutrina do direito natu-

ral, sob sua influência, ter adquirido maior laicidade de acordo com o consagrado secularismo

simpático ao desenvolvimento de uma concepção jurídica mais afeita à valorização da razão e

do homem, havendo afastamento da anterior base teológica herdada das correntes tomistas.

Levaggi (1991 apud WOLKMER, 2006, p. 129-130), tentando identificar os fatores

que permitiram tal desenvolvimento jusracionalista, afirma como elementos culturais e cientí-

ficos importantes: o impacto e a repercussão do humanismo; a crise e o esgotamento da he-

gemonia da filosofia escolástica na Idade Média Ocidental; a influência da crítica e da inde-

pendência das posições tanto do averroísmo como do voluntarismo nominalista (representado

por Duns Escoto e Guilherme de Ockham); os avanços alcançados pela astronomia e a ruptura

com a física de Aristóteles empreendida por Copérnico, Galileu e Kepler; a valorização do

método matemático, as observações científicas baconianas e a introdução de processos de

cognição baseados no racionalismo cartesiano.

Para Wolkmer (2006), é evidente que a construção da teoria jusfilosófica moderna e as

concepções de direitos humanos que lhe seguem são inseparáveis de uma mentalidade racio-

nalista, naturalista, individualista e cientificista.

Acerca das características do jusnaturalismo como paradigma teórico dos séculos XVI

a XVIII, Levaggi (1991 apud WOLKMER, 2006, p. 130-131) distingue princípios gerais que

lhe seriam próprios, a seguir enumerados: a fundamentação do Direito com base na natureza

humana; que o direito natural coincide com o direito da razão; a existência de direitos naturais

inatos, dotados de inviolabilidade e imprescritíveis, atuando como princípio de validade do

Direito posto; a possibilidade de se construir um sistema jusnaturalista completo a partir do

método axiomático dedutivo; a consideração do estado de natureza como base racional para a

explicação da origem do Estado; a ideia de contrato social como meio jurídico constituinte do

Estado.

Para Billier e Maryioli (2005), a antropologização efetiva do direito, que supõe uma

nova forma de compreender o homem e o mundo, tem seus pressupostos evidentes no século

XVII, devido à mutação galileana seguida da cartesiana, observando-se que o modelo físico é

logo elevado a modo de apreensão da realidade natural, tendo o processo de racionalização

logo sido estendido ao domínio do direito e da política.

Para Goyard-Fabre (2007), aliado ao processo de antropologização do direito natural

há uma paralela desnaturalização dele, e daí não mais se estar procurando fundamentá-lo na

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ordem natural nem na força sobrenatural do divino, isto porque a crescente autoridade que se

atribuía ao homem não mais permitiu que fosse cultivada igualmente a ideia de um fim onto-

logicamente definido responsável pela indicação de um horizonte valorativo localizado no

centro da reflexão filosófica, dando a parecer que esse direito dos homens, para eles feito, não

pode possuir outro fundamento senão o homem mesmo.

Passemos a analisar a importância do primeiro grande marco do jusnaturalismo racio-

nalista, o jurista holandês Hugo Grócio, principalmente lembrado como o responsável pelo

surgimento de uma teoria jurídica que se mostra claramente autônoma em relação à critérios

teológicos de validade, emancipada da Revelação. Conforme afirmam Billier e Maryioli

(2005), Grócio parte da ideia aristotélica do desejo natural humano de vida em sociedade e se

vale da tese segundo a qual a natureza do intelecto humano acabaria por conduzir o homem a

desejar uma sociedade pacífica para desenvolver os princípios de um direito natural tão imu-

tável que nem mesmo Deus poderia mudá-lo, assim como existiria ainda que Deus não exis-

tisse.

Reale (1977) destaca como elemento essencial, em Grócio, o fato de a justiça ser to-

mada como o fundamento eterno do direito, considerado um sentimento espontâneo que habi-

ta o coração humano independente do próprio querer divino, haja vista ser ela uma das carac-

terísticas indissociáveis da ideia de Deus, destacando que o elemento novo depreendido da

sua doutrina é a plena consciência da autonomia do sentimento do justo, aliado ao fato de que

o homem seria naturalmente inclinado a buscar o que é justo, haja vista nem Deus poder dei-

xar de assim agir.

Conforme nos diz Villey (2009), Grócio é responsável por promover uma distinção

radical entre a realidade fática e o campo jurídico, numa atitude própria do pensamento jurídi-

co moderno. Essa característica expressa a evidência do abstrativismo peculiar a essa concep-

ção jusnaturalista, que marca esse período da vida jurídica.

Ainda, conforme Villey (2009), depreende-se dessa concepção que a moral é a fonte

primordial das regras jurídicas, chegando-se a constatar a absorção do direito na moralidade.

A principal obra de Grócio é o seu De iuri belli ac pacis (Do Direito da Guerra e da

Paz, 1625), na qual expressa os aspectos da sua teoria jusnaturalista, inserida no contexto de

uma necessária definição de limites jurídicos ao direito de guerra pelos estados, valendo-se do

Direito Natural. Por suas próprias palavras, podemos perceber a não vedação ao recurso à

guerra pelo direito natural, haja vista estar justificada em casos nos quais esteja em questão a

própria autoconservação da sociedade, tratado como princípio ou instinto natural:

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Por outro lado, a Razão Certa e a natureza da Sociedade... não proíbem toda força, mas apenas aquela que é contrária à Sociedade, isto é, aquela que é usada para atacar os direitos de outros. Pois o objetivo da Sociedade é que cada um possa ter o que é seu em segurança. Pelo acordo e ajuda comuns (GRÓCIO, 2002, p. 82).

Assim, compreendemos que a reta razão, que seria um princípio supremo que condi-

cionaria qualquer conduta de acordo com o que está em devido acordo com os ditames da

razão, para não dizer da moralidade, não se mostra contrária ao recurso à guerra, o qual pode

se tornar um instrumento naturalmente considerado, tendo-se em vista que os povos sempre

vão perseguir sua conservação quando forem atacados por um inimigo, entretanto, não se con-

sidera justa a belicosidade que desrespeita os direitos das pessoas, cuja segurança e proteção

constitui o próprio fim da sociedade, sem o qual ela não teria sentido para os homens.

Outro importante pensador a contribuir com a concepção jusnaturalista moderna foi,

sem dúvida, Tomas Hobbes, não significando isso que não possua diferenças em relação a

Grócio. Conforme nos diz Villey (2009), Hobbes pode ser considerado defensor de um nomi-

nalismo extremado, que resume as noções de justo e de direito a meras expressões linguísticas

que só encontram sentido na referência às vontades e apetites individualmente considerados,

que seriam as únicas realidades atuais, ou como resultado da arbitrariedade do poder criativo

do príncipe, não sendo as póleis mais que criações artificiais.

Segundo Wolkmer (2006), não se constata, em Hobbes, um desprezo pelo direito natu-

ral; entretanto, contrastando com os escolásticos e contratualistas daquele tempo, os quais

defendiam a sociabilidade humana natural, defende ser o estado de natureza como autêntico e

contínuo estado de guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), rompendo

com a tradição jusnaturalista vigente por atribuir a criação fictícia da lei exclusivamente à

vontade do soberano.

Conforme nos diz da concepção hobbesiana, Villey (2008) reporta que se define o

direito subjetivo do estado de natureza como a liberdade disponível ao homem de fazer tudo

que esteja relacionado à sua conservação, no estado de natureza, sendo esta liberdade ilimita-

da, e, já que não há ainda qualquer ordem social, tudo é permitido a todos os homens.

Não seria exagero considerar a possibilidade de Hobbes ter sido, em certa medida, o

fundador do positivismo jurídico, como assim referencia Wolkmer (2006) e propriamente o

faz Villey (2009). Segundo este, o pacto figuraria como a fonte de todo o direito positivo e,

até mesmo, de toda justiça, sendo o injusto concebido como a própria transgressão dos pactos.

Já para aquele, em Hobbes, as leis da natureza, que seriam princípios gerais ou regras de con-

duta, não se comparam às leis do Estado, positivadas pela vontade do governante, que trazem

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segurança, afirmando que “a concepção positivista hobessiana tende a demonstrar que as leis

naturais reforçam não só a assertiva da submissão do homem às leis civis positivas, como

também o reconhecimento do papel influente das leis naturais eternas e imutáveis no seu con-

teúdo” (WOLKMER, 2006, p. 139). Para Villey (2009), os autores que ainda situam Hobbes

dentro do campo jusnaturalista confundem os conceitos de lei e direito presentes em sua obra,

pois se observa que o estado de natureza é substituído pelo estado civil, que é formado por um

direito exclusivamente positivo.1

Vê-se muito claramente que, em Hobbes, há uma necessidade irrefreável de estabele-

cimento de uma autoridade como forma de necessária estabilidade política para poder afastar

os males naturais resultantes do estado de natureza, o que coincidira com uma obrigação de

reconhecimento de um soberano dotado de um poder comum. Assim, “torna-se manifesto que

o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em res-

peito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra” (HOBBES, 2006, p. 98).

Encontra-se também na sua obra a necessidade da lei como o fator que assegurará jus-

tamente a limitação da liberdade em prol da comum ordenação dos direitos, visto ser a liber-

dade que existe como elemento nocivo à constituição da sociedade, como se percebe do tre-

cho seguinte:

Desta lei fundamental da natureza, que ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Pois enquanto cada homem detiver seu direito e fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos (HOBBES, 2006, p. 102).

1 Isso nos faz refletir acerca de se a concepção hobbesiana de lei, estritamente relacionada ao ato de vontade da autoridade, pode ser uma fiel antecipação do positivismo jurídico que, segundo posição bastante aceita, adveio com a codificação e a Escola da Exegese francesa do século XIX, ou, no máximo através das considerações traçadas por John Austin no mesmo período. Para nós, por razão de prudência, foi melhor considerar aqui a grande importância atribuída a uma maior exclusividade no papel do legislador estatal como a quase exclusiva ou primordial fonte das normas jurídicas, o que não significa que várias das ideias consagradas não estejam presentes em períodos anteriores, mas apenas que ainda se observa, em Hobbes, a ausência de uma maneira mais autônoma de expressão do direito positivo, como está consagrada nas correntes positivistas clássicas haja vista a influência não negligenciável da lei natural do estado de natureza, que, de certa forma, condiciona o ordenamento das leis e da conduta segundo preceitos metafísicos.

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5. O POSITIVISMO JURÍDICO

5.1 SURGIMENTO, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

O positivismo jurídico está, de alguma forma, relacionado ao movimento positivista da

filosofia do século XIX, o chamado positivismo filosófico e científico, do qual Augusto Com-

te é o principal representante. Conforme Wolkmer (2006), o conhecimento científico desse

período é marcado pela influência do modelo positivista de ciência, cujos atributos são a ex-

periência, a objetividade e a universalidade, tendo a filosofia positivista como características a

defesa de um conhecimento obtido através da observação empírica e pela experiência dos

fatos, valendo-se da metodologia própria das ciências naturais, da matemática e da lógica.

Entendendo diferentemente a questão, Dimoulis (2006) afirma não dever o positivis-

mo jurídico nem o nome nem o objeto de estudo à visão positivista desenvolvida nas ciências

humanas a partir do século XIX, estando sua origem mais relacionada ao surgimento do termo

ius positum ou ius positivum, que se refere ao estudo da positividade do direito que, segundo

pesquisas históricas, teve início já na terceira década do século XII. 2

O positivismo jurídico, como escola científica do conhecimento jurídico, somente co-

meçou a se desenvolver séculos mais tarde, não nos parecendo adequado, portanto, antecipar

o objeto de estudo para uma época em que não havia apenas as leis como a principal fonte da

normatividade jurídica, ou, ainda, diferente da concepção de direito como o que exclusiva-

mente está positivado pelo texto legal segundo a vontade do legislador, o que só veio a ocor-

rer devidamente pela influência da Escola da Exegese do século XIX no âmbito do movimen-

to da codificação, em pleno período de império napoleônico.

A influência exercida sobre as concepções jurídicas surtiu efeitos em várias regiões do

mundo, fazendo florescer tendências juspositivistas diferentes e em lugares distintos, mas

tendo elas assumido algumas características que se pode devotar, certamente, ao positivismo

filosófico e científico. Assim, temos que:

2 Tentando resolver a celeuma, achamos ser o positivismo originariamente o relacionado à ciência positiva do direito assim concebida pelas correntes teóricas operantes ainda no século XVIII e que encontraram uma consagração no positivismo jurídico da Escola da Exegese francesa do século posterior e relacionado ao movimento da codificação, não se mostrando adequado, a nosso ver, querer situar essa corrente jusfilosófica em plena Idade Média, período em que imperavam soberanamente as teorias de feição teológica e metafísica de definição da natureza e conceito do direito. Mesmo não sendo a ideia de positividade do direito tão nova, podemos reconhecer, entretanto, que a concepção científica do direito como a conhecemos hoje tem muito mais a dever ao positivismo do século XIX do que à filosofia teológica e metafísica do direito do século XII, mesmo que já existisse algum estudo anterior acerca da positividade do direito, como o referido por Dimoulis.

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Está claro, portanto, que a filosofia jurídica positivista que atravessa a metade do século XIX consagra alguns princípios como o repúdio a conceitos valorativos (construções metafísicas, racionalistas e jusnaturalistas), a redução da juridicidade à produção estatal (voluntarismo estatista), a exaltação do Direito como construção legal lógico sistemática (legalismo dogmático) e o rigor metódico enquanto formalismo técnico (formalismo). Com essa constituição, emergem as mais significativas tendências do positivismo jurídico para a época: a Escola da Exegese Francesa, a Escola Analítica Inglesa e a Escola do Formalismo Conceitual na Alemanha (WOLKMER, 2006, p. 191-192).

Portanto, podemos perceber que o positivismo jurídico não foi uma corrente jusfilosó-

fica ou teórico-científica do Direito resumida à codificação e à Escola da Exegese, tendo se

manifestado diferentemente também para o mundo anglo-saxão e para a Alemanha. Indo a-

lém, Bobbio (1995) reconhece o papel fundamental do historicismo para o surgimento do po-

sitivismo jurídico devido à crítica radical infligida pela Escola Histórica e o movimento ro-

mântico contra o direito natural racionalista, merecendo destaque a obra precursora de Gusta-

vo Hugo Tratado do direito natural como filosofia do direito positivo como responsável por

uma concepção que retira do direito natural sua autossuficiência em relação ao direito positi-

vo.

Reportando-nos ao terreno francês do positivismo jurídico, temos que ele é dominado

pelo advento da Escola da Exegese, que, conforme Billier e Maryioli (2005), viveu seu es-

plendor entre 1830 e 1880, tendo como pano de fundo a codificação francesa, e que pretendia

ver excluída do direito qualquer filosofia pretendendo apenas a garantia da ordem positiva e

codificada como objeto de estudo. Para Wolkmer (2006) essa escola era dona de um exege-

tismo empírico que proclamava o legalismo dogmático-dedutivo, cujo espírito proclamava a

identificação exata do direito com a lei e reconhecia o Direito positivo como valor máximo e

a onipotência jurídica do legislador, restringindo, tal postura, a experiência jurídica ao mero

exame literal da lei positiva.

Querendo expressar os fatores determinantes para o surgimento dessa escola, Bobbio

(1995) refere como importantes: a própria codificação, o fato de a mentalidade dos juristas

estar dominada pelo princípio da autoridade, a doutrina da separação dos poderes, o princípio

da certeza do direito, e, por último, a pressão exercida pelo regime de Napoleão sobre as fa-

culdades de direito a fim de que estas apenas ensinassem o direito positivo.

Bonnecase (1924 apud Bobbio, 1995, p. 84-89) distingue alguns caracteres fundamen-

tais que caracterizam a Escola da Exegese, quais sejam: a inversão das relações tradicionais

entre direito natural e direito positivo; a concepção estritamente estatal do direito; a interpre-

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tação da lei segundo a intenção ou vontade do legislador; o culto do texto da lei, querendo

dizer a obediência restrita aos artigos do código; o respeito ao princípio da autoridade.3

Agora passemos ao exame da manifestação juspositivista que teve lugar no direito

anglo-saxão, principalmente no commom law inglês, que se mostra abundantemente rica em

termos teóricos. Segundo Wolkmer (2006), a resposta anglo-saxônica baseou-se, por outro

lado, na maior valorização da experiência judicial de forma rigorosa e utilitarista, mas trazen-

do para o seio do sistema a dinâmica de interpretação própria de processos lógico-analíticos.

Para ele, a filosofia jurídica anglo-saxônica, marcada pelo utilitarismo, deve muito de sua

evolução ao legado de Jeremy Bentham (1748-1832).

Apesar dessa influência, tem-se como fato que Bentham, como nos diz Bobbio (1995),

é de uma opinião claramente crítica em relação ao sistema de commom law, quer dizer, à pro-

dução judiciária do direito, do que se compreende a opção pela codificação, tendo inclusive

apontado cinco defeitos desse sistema, quais sejam, a sua incerteza, a retroatividade do direito

comum, o fato de ele não estar fundado no princípio da utilidade (que prescreve a maximiza-

ção da felicidade para o maior número), a característica de que o juiz deve solucionar todos os

casos que lhe sejam submetidos mesmo que ele não domine o conhecimento de todos os cam-

pos do direito, e o fato de o povo não poder exercer controle sobre o direito de produção judi-

ciária.

Merece lugar aqui a importância de John Austin para o desenvolvimento do positivis-

mo jurídico anglo-saxão que, segundo Bobbio (1995), representa uma via que reúne caracte-

rísticas importantes para o surgimento do positivismo jurídico, posto ter manifestado influên-

cias tanto da Escola Histórica Alemã quanto do utilitarismo inglês. E, ainda conforme o ilus-

tre jusfilósofo italiano, fazia ele a distinção entre a jurisprudência e a ciência da legislação,

sendo esta responsável pelo estudo do direito como deveria ser e aquela pelo estudo do direito

vigente, merecendo aquela (jurisprudência) maior preocupação.

Para Billier e Maryioli (2005), Austin foi o responsável pela continuidade do positi-

vismo representado por Bentham, sendo de uma importância fundamental para a evolução da

filosofia jurídica anglo-saxônica por ter, mais que radicalizado o positivismo daquele, lhe

dado uma orientação analítica ou lógico-descritiva.

Segundo Bobbio (1995), Austin diferencia o direito das outras espécies normativas e

define lei como um comando geral e abstrato, estando excluídos do seu âmbito comandos

dirigidos a determinada pessoa que realiza uma ação individual, sendo uma marca peculiar do

3 Para maiores esclarecimentos e riqueza em detalhes, consultar a obra O Positivismo Jurídico de Norberto Bob-bio, p. 84-89.

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comando o fato de que a pessoa a quem é dirigido o desejo contido na ordem estar passível de

sofrer um mal qualquer a ser infligido pelo responsável por ela caso aja de acordo com o dese-

jo nela expresso, sendo este mal a sanção.

Ainda conforme Bobbio (1995), observa-se, na doutrina de Austin, a distinção entre

direito positivo e moralidade positiva, sendo aquele constituído por comandos emanados pelo

soberano numa comunidade política independente, diferentemente desta, que seria posta por

um sujeito humano que não possuiria a qualidade de soberano para outro ou outros sujeitos

humanos.

Importante a constatação de Morrison (2006, p. 273) quando afirma que “Austin não

recusou um papel ao direito natural, mas deixou de levá-lo em consideração”. Isso significa

apenas a influência da moralidade na vida das pessoas, não se pondo em jogo o fato de se

constatar uma doutrina positivista que merece a qualidade de autêntica, haja vista o fato de ele

atribuir uma importância e autonomia ao direito em relação aos comandos meramente morais,

desprovidos de uma sanção do soberano político da comunidade independente.

Conforme nos diz Palombella (2005), as características do positivismo jurídico, quais

sejam, ter por objeto o direito como ele é, possuir uma visão imperativa da norma, quer dizer,

concebê-la como uma estrutura de comando, assim como pela defesa de uma concepção esta-

talista do direito, segundo a qual a fonte normativa seria o próprio órgão legislativo estatal, o

titular da soberania, estariam interligadas em Austin, o que não se observa em outros positi-

vistas.

Segundo Bobbio (1995), Austin procede à distinção entre o direito legislativo, emana-

do do órgão legislador estatal, e o direito judiciário, resultado da atuação judicial dos juízes,

declarando a prevalência daquele sobre este, acerca do qual tece várias críticas, tendo, ao fi-

nal, chegado a defender a sua superação pela codificação, concebida esta como a mais nova

fase da lei do desenvolvimento histórico do direito na sociedade.

Agora passemos ao exame da manifestação do positivismo jurídico no terreno alemão,

merecendo destaque o exame da influência das ideias defendidas pela Escola Histórica do

Direito, cujo principal representante foi Savigny, haja vista ter contribuído decisivamente para

uma concepção de direito distante do jusracionalismo e do jusnaturalismo que vigorava antes

de seu advento, inclusive já tendo sido mencionada a importância do historicismo para o sur-

gimento do positivismo jurídico exatamente pelo fato de ter realizado uma crítica radical ao

direito natural.

Conforme nos diz Bobbio (1995), o historicismo se caracteriza por considerar o ho-

mem individualmente e em todas as variedades que a individualidade comportar, em oposição

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ao racionalismo, que concebe a humanidade como uma abstração, tendo afirmado possuir ele

as seguintes características fundamentais: defesa do sentido da variedade ou mutabilidade

histórica em função da mutabilidade do próprio homem; a crença no sentido irracional da his-

tória, em contraposição à crença iluminista de uma determinação racional da história; o pes-

simismo antropológico, derivado da tragicidade resultante do sentido irracional da história; o

elogio e amor pelo passado; e, finalmente, o apego à tradição, quer dizer, à formação lenta das

instituições e dos costumes presentes na sociedade.

Wolkmer (2006), afirma ser a Escola Histórica Alemã reconhecida por um bom núme-

ro de teóricos como pioneira no combate ao racionalismo iluminista, ao idealismo e ao subje-

tivismo jusnaturalista, e defensora de uma concepção jurídica centrada na historicidade orgâ-

nica das instituições assim como na espontaneidade popular nacional, afirmando ainda que o

ideal de direito formado de maneira espontânea e imperceptível fazia da prática consuetudiná-

ria a fonte jurídica primordial, o que, inclusive, explica a posição radical defendida por Sa-

vigny de ser desfavorável a qualquer codificação, pois, segundo ele, o direito teria no costu-

me, o qual seria o reflexo histórico do Volksgeist, sua fonte fundamental.

Apesar de se reconhecer uma grande importância dessa escola para filosofia jurídica e

a ciência jurídica alemã do período, não se pode desconhecer o fato de que, como se vê em

Wolkmer (2006), haver um defensor da codificação na Alemanha, Thibaut, contra quem Sa-

vigny investe, mas observando-se certa consagração da ideia de codificação por ocasião da

promulgação do Código Civil Alemão de 1900, o BGB.

A par de tudo o que já foi exposto acerca do positivismo jurídico, não há de se conten-

tar com a análise de suas raízes históricas e influências, merecendo serem apresentadas ainda

suas características gerais, em complemento a tudo o que já foi exposto de forma interligada e

sugestiva.

Assim, conforme Bobbio (1995), pode-se resumir as características fundamentais do

positivismo jurídico em sete pontos principais: quanto ao modo de encarar o direito, o positi-

vismo jurídico o concebe como fato e não como valor, o que se relaciona com a teoria forma-

lista da validade do direito que lhe é própria; o direito é definido em função do elemento coa-

ção, daí sua correspondente teoria da coatividade do direito; quanto às fontes do direito, a

consagração da teoria da legislação como sua fonte primordial; em relação à teoria da norma

jurídica, vê-se essa sendo concebida como um comando, daí uma teoria imperativista do direi-

to; a existência da teoria do ordenamento jurídico, que não considera a norma isoladamente

mas sim o conjunto das normas vigentes, sendo sustentadas as teorias da completude e da

coerência do ordenamento jurídico; quanto ao método da ciência jurídica ou da interpretação,

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observa-se a prevalência da teoria da interpretação mecanicista, a qual consagra o elemento

declarativo em desfavor do criativo; e, finalmente, a obediência absoluta da lei enquanto tal.

Portanto, traçadas, em linhas gerais, elementos identificadores e caracterizadores do

positivismo jurídico, passemos a considerações mais aguçadas acerca do seu desenvolvimento

teórico mais importante, para se discutir seu mérito com mais propriedade, o que se fará a

partir de uma análise apurada das várias considerações da doutrina kelseniana sobre o direito,

a moral e a justiça, situando-se sua concepção positivista como um ponto alto dessa corrente

de pensamento.

5.2 O POSITIVISMO JURÍDICO SEGUNDO A CONCEPÇÃO NORMATIVISTA DE

HANS KELSEN

O conceito de positivismo jurídico deve muita de sua importância atual para o legado

doutrinário do jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, responsável por uma concepção jurídi-

ca que consagrava um grande formalismo baseado na supervalorização das normas jurídicas

em si mesmas, e que estava subjugado pela ideia de pureza metódica que construía um ideal

de ciência jurídica autônoma quanto a aspectos valorativos, merecendo destaque a sua Teoria

Pura do Direito (Reine Rechtslehre, em Alemão). Para Billier e Maryioli (2005), o pensamen-

to de Hans Kelsen revolucionou o paradigma da ciência jurídica.

Palombella (2005), explicando os pressupostos e características da teoria pura de Kel-

sen, afirma que esta adota os postulados fundamentais do Estado liberal legislativo, além de

seguir e aperfeiçoar a mais atualizada doutrina publicística alemã, influenciando a doutrina

predominante da ciência jurídica e respondendo à exigência de neutralidade do direito, o que

está em consonância com a sociologia weberiana, a qual a classifica como uma consequência

natural da neutralidade do Estado liberal, pois só assim haveria a manutenção da crença na

legitimidade do poder, possuindo a sociologia de Weber aí um significado filosófico por justi-

ficar a concepção positivista de separação necessária entre o direto e a moral. Segundo ele:

Para Weber, a autonomia do direito positivo em relação à moral é a autono-mia (pertencente à realidade histórica) estrutural e funcional do direito e do Estado contemporâneos em relação a concepções morais e políticas baseadas em determinados (e variáveis) juízos de valor. Essa autonomia é própria de uma fase histórico-institucional específica (caracterizada por processos que Weber chama de burocratização e formalização e pela afirmação do Estado de direito, legislativo e parlamentar) (PALOMBELLA, 2005, p. 151).

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Informam-nos Billier e Maryioli (2005) que a teoria kelseniana não se resume a uma

teoria geral do direito pelo agrupamento dos conceitos e princípios jurídicos de diversos ra-

mos do direito subordinados a alguns conceitos fundamentais capazes de, ao mesmo tempo,

encerrar a palavra direito e obter sua unidade, sendo necessário, pelo contrário, segundo o

próprio Kelsen, que os conceitos fundamentais organizadores dos outros, presentes no topo da

genealogia conceitual, sejam submetidos à depuração de qualquer consideração de ordem

ético-política.

No tocante ao tema do jusnaturalismo e, em geral, das relações entre moral e direito,

Billier e Maryioli (2005) afirmam que, para Kelsen, o dualismo direito positivo e direito natu-

ral seria insustentável pela razão fundamental de que isso iria tornar a validade da ordem jurí-

dica dependente da conformidade aos preceitos de justiça que se localizam externamente à

ordem jurídica positiva, sendo o mesmo que querer fazer conformar o direito positivo a uma

moral absoluta e única, o que iria certamente contra o relativismo moral, ou, mais precisamen-

te, contra o relativismo axiológico responsável por toda ordem jurídica concreta e historica-

mente determinada.

Assim, podemos perceber que, em Kelsen, a moral existe uma razão para não manter

uma relação de dependência ou necessidade com a realidade jurídica, haja vista não ser com-

patível com a concepção kelseniana um papel que comprometesse a consagração do relati-

vismo axiológico necessário à construção de uma teoria jurídica que realisticamente pudesse

abarcar a necessária neutralidade jurídica imprescindível à formação de uma normatividade

adequada à realidade a que ela se destina regulamentar, podendo-se considerar a separação,

nesses termos, conditio sine qua non para a juridicidade, pelo menos é o que se depreende da

doutrina kelseniana.

Para Diniz (2003), a doutrina de Kelsen, chamada de racionalismo dogmático, consti-

tuiu-se como uma expressão ideológica de sua época, dentro do contexto do declínio da con-

cepção de mundo capitalista liberal dominante ao tempo da Primeira Guerra Mundial, obser-

vando-se que, para ela, a ciência do direito não leva em conta o conteúdo do direito, haja vista

ser fruto do período da racionalização do poder, e, portanto, produto de um democratismo de

conteúdo vazio e meramente formal.

É bastante conhecida a posição kelseniana acerca das relações entre direito e moral, ou

direito e justiça, se preferir-se assim, a qual assume a tese positivista clássica de separação

entre direito e moral, negando qualquer influência necessária de ordem valorativa para a vali-

dade do direito, podendo-se acrescentar a isso também a exclusividade da heurística normati-

vista como fonte do conteúdo das normas jurídicas, haja vista o direito ser concebido como

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um sistema de regras que buscam parâmetros internos de aplicação, sem um controle preciso

da moralidade do seu conteúdo, daí o positivismo e uma relação meramente simbólica do di-

reito com a moral ou a justiça.

Algo interessante seria a análise mais apurada da doutrina de Kelsen presente nas suas

diversas obras, para nos dar uma melhor noção sobre as relações do direito com a moral e os

valores, principalmente o valor justiça, tido como classicamente importante à realidade nor-

mativa, mas patentemente tido sua influência jusfilosófica bastante modificada por certa pre-

valência de teorias positivistas em tempos bastante recentes da história da teoria jurídica.

Assim, passaremos a expor os aspectos da presente investigação com base na leitura

de algumas das principais obras do referido autor juspositivista para melhor expor os aspectos

importantes da sua doutrina acerca do tema direito positivo e moralidade, o que se torna mais

frutuoso pela identificação do conceito de direito e seus elementos constitutivos ali expostos,

haja vista só assim podermos compreender adequadamente o sentido ou natureza da juridici-

dade para Kelsen e, só depois, podermos empreender alguma crítica ou valoração quanto à

sua suficiência ou não como modelo de ciência jurídica adequado à realidade presente.

Conforme Kelsen (2005), o direito consiste numa ordem ou sistema de conduta huma-

na, um conjunto de regras submetidas a uma unidade peculiar que lhe confere sistematicidade.

Noutro lugar ele afirma “uma 'ordem' é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo

fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade” (KELSEN, 2006, p. 33). Ocupa

um lugar proeminente no sistema normativo kelseniano o pressuposto lógico por ele chamado

de norma fundamental ou Grundnorm, afirmando ainda que “a norma fundamental é a fonte

comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu

fundamento de validade comum” (KELSEN, 2006, p. 217).

Assim, pode-se compreender a norma fundamental como uma fonte pressuposta de

validade de todo o sistema normativo. Por outro lado, para diferenciar o Direito da Moral,

mesmo que sejam ambas consideradas ordens normativas sociais, visto tanto uma como a

outra regularem a conduta humana relacionada às relações com outras pessoas, Kelsen afirma

que a ordem jurídica particularmente regula a conduta humana exatamente porque à conduta

oposta pressupõe uma sanção (KELSEN, 2006).

No tocante à coação, afirma Kelsen (2006) que esta é uma qualidade ou poder inerente

à comunidade jurídica enquanto tal, a qual é a responsável pela aplicação das sanções, obser-

vando-se, portanto, um monopólio da coação pela comunidade jurídica, constituída pela or-

dem jurídica.

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A noção de justiça kelseniana está diretamente dirigida à constituição objetiva da pró-

pria ordem jurídica, concebida em termos de legalidade (KELSEN, 2005), e que não está rela-

cionada ao conteúdo da ordem jurídica mas sim à sua aplicação, contudo que, em sendo as-

sim, seria um elemento necessário à própria manutenção de qualquer ordem jurídica positiva.

Assim, seria justo que uma norma fosse aplicada a todos os casos e situações devidas, mas

que seria injusto sua não aplicação em casos análogos ou em que coubesse aplicação.

A respeito das relações entre direito e moral na doutrina do insigne jusfilósofo austría-

co, afirma ele que “o Direito é por sua própria essência moral, o que significa que a conduta

que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem também é prescrita ou proibida pelas normas

da Moral” (KELSEN, 2006, p. 71). Por essa asserção, pode dar ele a entender uma relação

profunda ou imanente em entre as duas ordens normativas, o que não é verdade, haja vista

este, logo após, estabelecer a posição de uma relação meramente contingente entre o direito e

a ordem normativa moral, afirmando que “o direito pode ser moral - no sentido acabado de

referir, isto é, justo -, mas não tem necessariamente de o ser; que uma ordem social que não é

moral, justa, pode, no entanto, ser direito, se bem que se admita a exigência de que o direito

deve ser moral, isto é, deve ser justo” (KELSEN, 2006, p. 72).

Observa-se, portanto, na doutrina kelseniana, o reconhecimento de que tanto a realida-

de jurídica, espécie de ordem social normativa de coercibilidade jurídica, quanto a moral, or-

dem social normativa não coercitiva, pertencem a uma mesma realidade que é a realidade do

dever-ser, e que ambas mantém uma relação importante caracterizada pela possibilidade de

eles poderem até coincidir em termos de conteúdo, mas que não há uma necessária dependên-

cia de conteúdo entre o domínio da moral e o domínio jurídico, pois pode este subsistir mes-

mo de forma contrária àquele, ainda que se considere uma forte tendência a que o direito

sempre seja justo.

Entenda-se a coercibilidade referida como a imposição obrigatória de uma sanção ju-

rídica organizada sob a forma de força. Nesse sentido, fazendo a distinção entre a moral e o

direito, Kelsen (1986) acentua que a reação à violação das prescrições morais não possuem o

caráter de atos de coação, ou seja, executáveis pelo emprego da força física, como observado

nas sanções jurídicas, e, por isso, as sanções da moral não representam uma forma de se reagir

à conduta contrária à norma, mas também reações a condutas que lhe são contrárias, obser-

vando-se tanto a aprovação como a desaprovação da conduta conforme a moral.

Para Kelsen (2006), no que concerne ao valor moral e à sua relação com o direito, é

rejeitado de pronto a consideração de quaisquer valores absolutos em geral assim como algum

valor absoluto, particularmente, sob a justificativa de isso consistir num desrespeito à cientifi-

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cidade; então, diante da constatação de que só há valores relativos, a única conclusão que se

permite acerca da afirmação de que as normas sociais devem ser justas para ser direito é que

tais normas só poderiam estar sujeitas aos critérios ou conteúdos morais comuns a todos os

sistemas de moral como sistemas de justiça. Isso expressa a característica importante dessa

doutrina que é a relatividade da moral, que não deixa de influenciar o direito mas não interfere

na validade de suas normas ou no seu conteúdo, apenas representando uma propriedade con-

tingente da ordem jurídica.

Podemos entender que o formalismo e uma proeminência e supervalorização da nor-

matização enquanto tal são características centrais na posição desse autor, pois este concebe

sua teoria pura de maneira desvinculada de qualquer necessidade de conteúdo, ou seja, de

qualquer julgamento ou tendência acerca de algo que necessariamente deveria estar contido

na ordem jurídica positiva, apenas manifesta uma cientificidade responsável por conceber a

ciência jurídica como uma ciência que descreve normas, como se observa pelo seguinte: “A

ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim dizer – o Direito e descrevê-lo

com base no seu conhecimento” (KELSEN, 2006, p. 81), assim como “A ciência jurídica,

porém, apenas pode descrever o direito; ela não pode, como o Direito produzido pela autori-

dade jurídica (através de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for” (KELSEN,

2006, p. 82).

Ao adentrarmos o pensamento kelseniano, podemos perceber um normativismo abso-

luto ou intocável como a própria natureza do direito, mas afastando-se objetivamente qualquer

forma de conceber o direito como valor, daí o formalismo de que está impregnada essa teoria,

a qual procura limitar seu objeto às próprias normas da ordem jurídica positiva:

[…] a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma de-terminada conduta humana. […] Isto, porém, quer dizer: a questão das rela-ções entre o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direi-to, mas uma questão sobre sua forma. […] Com efeito, o direito constitui um valor precisamente pelo fato de ser norma: constitui um valor jurídico que, ao mesmo tempo, é um valor moral (relativo). Ora, com isto mais se não diz senão que o Direito é norma (KELSEN, 2006, p. 74).

Um elemento de destaque na doutrina de Kelsen sobre a valoração ou apreciação valo-

rativa de uma realidade é que, para ele, existe a distinção entre as realidades pertencentes ao

mundo do ser e aquelas de natureza normativa, que são a moral e o direito, as quais não po-

dem ser julgadas segundo a própria realidade normativa, do dever-ser, haja vista serem eles o

próprio dever-ser, afirmando-se que “[...] Somente um fato da ordem do ser pode, quando

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confrontado com uma norma, ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter um valor posi-

tivo ou negativo” (KELSEN, 1998, p. 5). E, conforme Kelsen (1998) mesmo afirma, como

toda norma válida constitui um valor, não seria possível sua valoração, ainda mais sua valora-

ção negativa, sendo um valor valioso uma consideração pleonástica e um valor desvalioso

uma contradição em termos.

Interessante constatar-se que Kelsen (1998), mesmo não aceitando a valoração da or-

dem normativa mesma ou do dever-ser jurídico, mostra-se solícito com a ideia de que o ato

normativo ou legiferante, o qual é responsável pela edição da norma jurídica, possa ser consi-

derado justo ou injusto, pois não deixa de ser apenas um fato da ordem do ser, da realidade.

Mas essa ideia encontra uma barreira intransponível a quem pretenda considerar ou julgar tal

concepção formalista e normativista do referido autor, haja vista, mesmo que o próprio ato

normativo ou legislativo responsável pela existência da norma seja considerado injusto, de

qualquer forma, não se há de falar em invalidade da norma, ante o fato de o critério jurídico

científico que lhe atribui validade estar relacionado apenas com o próprio sistema normativo,

sustentado pela norma fundamental da ordem jurídica:

O fundamento de validade de uma norma positiva, isto é, de uma norma pos-ta através de um ato de vontade, não é o ato que põe esta norma ou põe uma norma superior, quer dizer, o ato cujo sentido objetivo é a norma inferior ou a norma superior, mas a norma superior, que é pressuposta como objetiva-mente válida e que opera a fundamentação da validade da norma inferior precisamente pelo fato de legitimar o sentido subjetivo do ato que põe esta norma como seu sentido objetivo, isto é, como norma objetivamente válida (KELSEN, 1998, p. 15).

Outro elemento importante é a independência da validade da norma jurídica em rela-

ção à norma de justiça, o que implicaria na impossibilidade de ambas serem, ao mesmo tem-

po, válidas, o que corrobora a adesão do referido pensador à corrente positivista, segundo sua

própria concepção, como o mesmo afirma:

Abstrair da validade de toda e qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em contradição com uma norma jurídica positiva como da-quela que está em harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admi-tir que a validade de uma norma do direito positivo é independente da vali-dade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são consideradas como simultaneamente válidas – é justamente o princípio do positivismo jurídico (KELSEN, 1998, p. 11).

O pensamento kelseniano está, antes de qualquer coisa, dominado por um ideal de

cientificidade que o faz estar submetido, em termos de conhecimento da realidade, somente ao

que o homem obtém de forma empírica e racional a partir dos sentidos, não podendo extrapo-

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lar a significação para além do seu próprio objeto de conhecimento. Para Kelsen (2005), é

própria de concepções metafísicas essa extrapolação, na verdade, duplicação do objeto de

conhecimento, para além dos sentidos, o que consistira uma verdadeira descrença do homem

por si mesmo. Para ele, “nada é mais contraditório e, portanto, incompreensível, do que a su-

posição de que a nossa cognição reflete um mundo inacessível à nossa cognição. Nada é mais

problemático do que explicar o conhecido pelo que não é, o compreensível pelo incompreen-

sível” (KELSEN, 2005, p. 601).

Ainda, segundo ele, o mesmo fenômeno da duplicação do objeto pode ser transposto

para a função intelectual de avaliar, haja vista se tratar da cognição de normas ou valores,

desde que expressa em proposições de dever-ser, podendo-se considerá-lo naturalmente pre-

sente na doutrina do direito natural, para a qual o direito não seria uma criação livre de um

juiz ou legislador, mas sim a reprodução de um direito natural que é somente ele direito em si,

responsável pela validade e pelo valor do direito positivo (KELSEN, 2005).

Podemos concluir, então, que, segundo esta concepção, o homem se resume, em ter-

mos jurídico-gnosiológicos, ao que pode apreender pelos sentidos, afastando-se qualquer pos-

tura idealista ou metafísica no direito, o qual deve ser um reflexo fiel da observação da reali-

dade transposto a uma realidade normativa descritiva distinta da realidade factual segundo

estritos padrões de cientificidade.

A justiça, segundo tal concepção, não seria algo racionalmente inalcançável, haja vista

estar relacionada à exigência de uma justificação absoluta de nossa conduta ou à busca de

valores absolutos, estando o absoluto em geral e os valores absolutos particularmente distan-

tes da nossa capacidade racional, somente sendo possível a adoção de uma solução condicio-

nada, relativa, para o problema da justiça como uma questão de justificação do comportamen-

to humano (KELSEN, 2001).

Para Kelsen (2001), o direito natural, quer se trate da concepção naturalista, a qual

procura retirar o direito de um sistema de fatos reunidos pelo princípio da causalidade, ou da

racionalista, que tenta deduzir as normas a partir da razão humana, seria, na verdade, um so-

fisma, defendendo que normas cujo fim seja a regulamentação do comportamento humano só

podem ser obtidas a partir da própria vontade humana.

Interessante o fato de que o referido jusfilósofo sustenta o seu relativismo axiológico

exatamente com base no princípio da tolerância, o que implica, claramente em um esforço

lúcido em prol do reconhecimento da diversidade de pontos de vista ou ordens sociais ou mo-

rais, não deixando de ser ele mesmo, contudo, uma tomada de posição em termos de morali-

dade:

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O princípio moral que fundamenta – ou do qual se pode deduzir – uma dou-trina relativista de valores é o princípio da tolerância: é a exigência de com-preender com benevolência a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica (KELSEN, 2001, p. 24).

Observação importante é a feita por Billier e Maryioli (2005), no tocante às concep-

ções positivistas oriundas da herança de Bentham e Austin e a de Kelsen, pois, enquanto a

primeira defendia o positivismo jurídico sob a influência de uma teoria imperativista do direi-

to, quer dizer, definia o direito como o ato de mandamento do legislador combinado com a

ameaça de sanção e a norma jurídica como o próprio ato do legislador que visa à obtenção de

um determinado comportamento, a segunda considera o ato de mandamento apenas como

algo necessário embora ainda insuficiente para adquirir significação jurídica, mesmo ante o

fato de tal ato comportar em si mesmo a vontade subjetiva do emissor de obter do destinatário

determinado comportamento.

Esse caráter não imperativista da teoria jurídica kelseniana remete-nos, por exemplo, a

que o seu acentuado normativismo não deixa que, como já referido, seja considerada inválida

uma norma jurídica positiva devidamente válida mesmo quando o próprio ato legiferante ou

normativo que a emitiu possa ser considerado irretratavelmente injusto, haja vista tal norma

ainda estar em harmonia com o seu fundamento de validade, que também é uma norma e não

um ato, e, por isso, não pode ser considerada injusta nem ter sua existência comprometida por

qualquer norma moral positiva, prevalecendo sempre, sobre a moral, em qualquer caso.

Lançando um olhar crítico acerca da doutrina de Kelsen, Billier e Maryioli (2005) a-

firmam que a distinção kelseniana entre o direito e o fato consiste num grande fracasso, sendo

testemunha disso a pretensa tentativa de relegar o fundamento da ordem jurídica a uma regra

em vez de fundamentá-la sobre o poder, pois, ao contrário do que defende o jurista austríaco,

constata-se ser mais adequado fundamentar-se uma ordem jurídica sobre duas bases, quais

sejam, a positividade, quer dizer, ter sido instituída pelo poder constituinte quando da sua cri-

ação, e a eficácia, no que toca à sua continuidade e permanência, ligando-se a validade da

ordem, em seu conjunto, à eficácia.

De forma semelhante, Billier e Maryioli (2005) tecem considerações no sentido de ser

pouco justificável a distinção também verificada entre o direto positivo e direito natural ou

entre direito e moral, ou, analogamente, entre direito positivo e certa concepção de justiça,

afirmando que tal consideração está fundamentada na tese do relativismo de valores, de ori-

gem neokantiana, corrente filosófica responsável por elementos importantes da doutrina kel-

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seniana, posto que era bastante difundida na época e objeto de consideração por Max Weber.

Ainda, segundo eles, o próprio Kelsen não devota o devido respeito a essa premissa epistemo-

lógica, pois apesar de o jurista austríaco recusar o jusnaturalismo sob a justificativa de ele

estar baseado em preceitos universais oriundos quer da razão quer de Deus, ele próprio realiza

uma substituição de uma concepção universalista do conteúdo das normas, segundo a qual

estas seriam variáveis segundo as contingências históricas, por um universalismo meramente

formal, que apenas se refere ao procedimento de produção normativa pelo legislador ou órgão

legiferante, não se atentando ao fato de que sua própria opção pelo formalismo constitui

mesmo uma escolha de ordem axiológica.

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6. DOUTRINAS AXIOLÓGICAS E TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍ-

DICO

6.1 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO E A EMERGÊNCIA DAS TEORIAS AXIO-

LÓGICAS

A doutrina juspositivista, apesar de ter alcançado enorme importância desde a sua con-

sagração inicial quando do surgimento do positivismo legalista da Escola da Exegese france-

sa, não ficou imune a críticas e assistiu ao florescimento de uma série de novas correntes jus-

filosóficas de cunho axiológico e empírico em face de sua insuficiência para reger de maneira

adequada a maior complexidade e as necessidades de uma imanente inserção dos valores e

objetivos sociais no conteúdo das regras jurídicas em função da mudança de paradigma ob-

servado pelas exigências de critérios morais que reclamavam o posto de parâmetro de juridi-

cidade, chegando-se a considerar insuficiente o modelo de juspositivismo formalista e norma-

tivista, mesmo o de herança kelseniana, frente à constatação de uma sede de reintrodução do

papel dos valores e da justiça como limitadores materiais do direito posto. E, assim, vários

autores falam em abandono do modelo positivista, renascimento do direito natural, crise do

positivismo jurídico etc. para significar a série de transformações envolvendo as relações en-

tre direito e moralidade, ou a maior consideração da dimensão axiológica no tratamento práti-

co do direito, surgindo novas teorias de vários matizes, tanto no sentido de se afastar radical-

mente do positivismo jurídico para propor a necessária consideração da norma jurídica em

função de critérios valorativos, assim como por somente apresentar uma nova forma de posi-

tivismo jurídico, mais preocupada com o aspecto empírico dos valores e fins sociais do que na

autonomia normativa das leis ou sua unidade lógica.

Segundo Kaufmann (2004), ocorreu um episódico, embora merecedor de importância,

renascimento do direito natural imediatamente em seguida à Segunda Guerra Mundial como

resultado do tortuoso domínio dos regimes totalitários de cunho nacional-socialista, que não

consistiu, entretanto, num renascimento da racionalidade e do bom senso, mas apenas numa

atitude crítica ante o fato de a filosofia do direito não ter preparado a ciência do direito para o

fenômeno da ‘injustiça legal’, o que motivou inclusive algumas decisões tachadas de mons-

truosas do ponto de visto metodológico, por terem se utilizado de parâmetros morais suprapo-

sitivos estritamente rígidos nas fundamentações, como o acórdão do pleno das seções penais

do Tribunal Federal alemão, que reconheceu a ilicitude das relações sexuais entre noivos sob

a justificativa de elas violarem a lei moral.

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E o mesmo autor (KAUFMMAN, 2004) refere-se especificamente ao denominado

“neopositivismo jurídico”, movimento doutrinário surgido no final dos anos cinquenta, início

dos anos sessenta, que rejeitou qualquer ideia de direito suprapositivo, restando, contudo, as

estruturas de pensamento da doutrina do direito natural. Diz-nos, ainda, que “uma fundamen-

tação filosófica do positivismo, como a apresentada por exemplo em Hans Kelsen na sua Teo-

ria Pura do Direito, dificilmente se encontra hoje. É-se positivista por resignação cética”

(KAUFMANN, 2004, p. 49).

Dentro desse contexto, podemos, com Palombella (2005), afirmar que o juspositivis-

mo dos séculos XIX e XX enfrenta uma peculiar realidade jurídica consistente na produção e

aplicação do direito, que afasta diante de si qualquer elemento exterior ao direito posto, de

origem legal, observando-se que tal visão torna-se num ponto fraco dessa teoria com o adven-

to de novos cenários histórico-institucionais. Segundo ele:

A crise do positivismo ocorrerá não tanto por uma mudança autônoma dos paradigmas internos à ciência jurídica quanto pelo enfraquecimento das ca-pacidades heurísticas do ‘modelo’ juspositivista, decorrente das transforma-ções estruturais do direito; transformações que devem ser buscadas no mo-mento da crise econômica e social do Estado liberal e que levam depois até a afirmação dos Estados ‘constitucionais’ ocidentais, nos quais o acesso ao ‘direito’ por parte de postulados de justiça, de critérios materiais de avalia-ção, de elementos de princípio, amplia e depois desagrega o horizonte do di-reito legal, criando assim a necessidade (no mínimo) de uma reflexão auto-crítica do juspositivismo, quanto à sua própria capacidade de descrever o di-reito positivo, de circunscrevê-lo e reduzi-lo a elementos passíveis todos de

submissão a critérios de cientificidade (Palombella, 2005, p. 154-155).4

Em face dessas palavras, cumpre destacar o fato de que ocorre exatamente a quebra

abrupta do paradigma cientificista que sustentava o falso ideal de certeza imanente à teoria

juspositivista desde seus primórdios, uma vez que a mudança estrutural que consiste na neces-

sidade de abertura do direito à gama de elementos que, atualmente e de maneira definitiva, se

tornaram critérios de justificação da validade do direito posto dentro do contexto da nova

consciência social e jurídica do mundo em geral, em que a evidência e tratamento objetivo de

padrões valorativos toma conta do conteúdo do direito, como uma forma de valorizar o resul-

tado histórico das experiências humanas ante a necessidade de ter ao lado, como instrumento

4 Muito pertinente a percepção do autor neste ponto, uma vez que a emergência do Estado constitucional, tam-bém chamado de Estado Constitucional de Direito, mostra-se uma amostra incontroversa e evidente do estabele-cimento de um novo paradigma no direito ocidental, representado pela influência dos valores ético-políticos e dos princípios jurídicos como elementos que passaram a constar definitivamente na pauta das teorias do consti-tucionalismo contemporâneo, tal como observado na vida jurídica de vários países, inclusive no Brasil, merecen-do menção o denominado “neoconstitucionalismo”, que seria uma nova forma de pensar o constitucionalismo bastante difundida em muitos países e que integra no seu arcabouço conceitual a consideração valorativa e o papel dos princípios jurídicos a condicionar o tratamento material do direito e sua interpretação.

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de amparo, o ideal de justiça, que, mais que nunca, assume um conteúdo empiricamente extra-

ído da experiência social e se coloca objetivamente a seu serviço.

Assim, assiste plena razão a Larenz (1997), ao afirmar que a ciência do direito é to-

talmente incompatível com o conceito positivista de ciência, que só admite como científicas

disciplinas que se utilizam dos métodos das ciências da natureza, assim como ao reconhecer o

papel de Heinrich Rickert no reconhecimento da necessidade das ciências do espírito (a filo-

sofia, a teologia, a literatura etc.) no papel de compreender verdadeiramente a totalidade da

natureza suscetível de ser objeto de experiência, empreendimento inalcançável pela via das

ciências exatas da natureza. Por isso, podemos compreender a necessária transformação do

direito quanto ao reconhecimento da natureza de seu estatuto científico que se opera pela

consciência da reflexão histórica acerca da necessidade de estabelecer parâmetros materiais de

ordem espiritual ou moral, como os valores e princípios, em face da insuficiência do positi-

vismo jurídico de caráter estrito ou exclusivo, o qual prescreve a necessária e total separação

entre o direito e a moral.

Conforme nos diz Larenz (1997), as explanações de Rickert foram importantes por

terem introduzido o conceito de “valor” na metodologia das ciências do espírito, mesmo que

apenas partido da corrente neokantiana, da qual faz parte, apresentando tal conceito como um

a priori epistemológico dessas ciências, sem, contudo, ter respondido ao problema de se saber

o que é um “valor”. E conclui:

Com isto, porém, veio Rickert a dar um passo a mais. Se o historiador real-mente ‘refere’ a valores os fenômenos efectivamente ocorridos e se para os expor tem de encontrar neles um interesse geral, então a significatividade dos valores que assume como fundamento não pode apenas existir para ele - tem de existir também para os outros. Tem, por conseguinte, de tratar-se de valores que sejam de facto geralmente reconhecidos, pelo menos na comuni-dade cultural a que o historiador pertence (LARENZ, 1997, p. 129).

Retrata ainda Larenz (1997), no contexto das reflexões de Rickert, que o conceito de

“cultura” se torna um recorrente pano de fundo, e consiste, no seu sentido mais amplo, em

tudo o que ganha sentido e significado pela referência a valores para quem reconhece referi-

dos valores, observando-se, também, a divisão entre ciências da natureza, cujo objeto seria

livre de valores e de sentido, e ciências da cultura, com objeto referido a valores e, por isso,

dotado de significação, e, assim, valores, sentido e significado são algo que não se pode per-

ceber, mas apenas compreender, considerando-se cultura o ser significante e suscetível de ser

compreendido.

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Semelhante é o reconhecimento de Perelman (2004) acerca desse aspecto, afirmando

que as modernas concepções do direito e do raciocínio judiciário desenvolvidas após a Se-

gunda Guerra Mundial consistiram numa reação contra o positivismo jurídico, que se opõe a

qualquer teoria do direito natural e está associado ao positivismo filosófico, o qual nega toda

filosofia dos valores, constituiu-se na ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim

da última grande guerra. Segundo ele, o positivismo jurídico “elimina do direito qualquer re-

ferência à ideia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar

tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais

compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário” (PERELMAN, 2004, p. 91).5

E tratando especificamente da concepção de positivismo de Hans Kelsen, Perelman

(2004) afirma que ele reconhecia devidamente que o juiz não era um simples autômato pelo

fato de que as leis por ele aplicadas comportariam interpretações as mais diversas, o que lhe

conferia certa discricionariedade, contudo, não tinha em mente a importante constatação de

que a escolha entre as diversas interpretações não poderia ser obtida através de uma pesquisa

científica objetiva e alheia a qualquer valor. No seu entender, a teoria pura do direito de Kel-

sen possui aspectos inconvenientes, que são a separação extremamente rígida entre o direito e

o fato, as concessões desmesuradas ao arbítrio do juiz no âmbito legal, o desprezo pelo papel

essencial da regra de justiça formal (a qual exige um tratamento único em situações essenci-

almente semelhantes), e a recusa a qualquer referência a juízos de valor, como se considerasse

a justiça e a equidade noções alheias ao direito.

Perelman cumpre bem o papel de expressar as razões de ordem ética e cultural que

contribuíram para a atitude de crítica ao positivismo jurídico, afirmando, neste aspecto que

“enquanto a prática jurídica não estava muito distante dos costumes, dos hábitos e das institu-

ições sociais e culturais do meio regido por dado sistema de direito, a concepção positivista

do direito podia expressar de modo satisfatório a realidade do fenômeno jurídico” (PEREL-

MAN, 2004, p. 94).

Neste ponto, cumpre destacar o fato de que a prática jurídica, tomando por base as

palavras do próprio Perelman, não se conteve apenas nos diversos elementos presentes no

espaço fechado de um dado sistema jurídico, senão precisou expressar-se de maneira mais

aberta e sensível à evidente insuficiência do formalismo vazio e avalorativo do positivismo

jurídico, sendo interessante notarmos que, “com o advento do Estado criminoso que foi o Es-

tado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gus-

5 Trata-se do bem conhecido ideal de neutralidade científica, tão propalado pelos defensores do positivismo, incluindo a concepção jurídica kelseniana e sua teoria pura do direito, que defende a pureza metódica.

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tav Radbruch, continuar a defender a tese de que a ‘Lei é lei’, e que o juiz deve, em qualquer

caso, conformar-se a ela” (PERELMAN, 2004, p. 95).

Tal narração das grandes reviravoltas operadas após a infeliz experiência humana da

dor e da opressão política dos regimes totalitários nos faz assumir a compreensão definitiva de

que se passou a redefinir o caráter do direito e da influência dos valores e critérios morais no

seu conteúdo, resgatando o esquecido ideal de justiça, restando como ensinamento, pelo me-

nos a partir da experiência alemã que:

[...] é impossível identificar o direito com a lei, pois há princípios que, mes-mo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover, dentro os quais figura em primei-ro plano a justiça (PERELMAN, 2004, p. 95).

Importante destacar a figura singular de Gustav Radbruch e o avanço que representou

suas ideias na filosofia do direito indissociável do conceito de valor, o qual, conforme nos diz

Larenz (1997), valendo-se das ideias desenvolvidas por Rickert, Windelband e Lask, vai mais

além de qualquer deles, sendo uma boa contribuição de sua parte a maior importância atribuí-

da ao conteúdo e ao nexo significativo dos valores que são relevantes para o direito, não sen-

do, assim, de seu interesse apenas a estrutura formal do pensamento das ciências sociais ‘refe-

ridas a valores’. Ainda segundo Larenz (1997), ele realizou fundamentalmente a transição de

uma filosofia dos valores de caráter essencialmente formal para uma filosofia dos valores de

cunho material, tendo estabelecido, para isso, três diferentes sistemas de valores, de certa

forma ideal-típicos, entre os quais um previa que cada indivíduo seria livre para realizar uma

escolha segundo sua própria concepção.

Pelas próprias palavras de Radbruch (2004), percebe-se sua influência quanto à ideia

de ciência cultural, pois, para ele, a ciência do direito seria de teor cultural, inserida numa

realidade referida a valores, cujo sentido seria servir a valores, e o direito seria exatamente a

realidade que teria por fim servir ao valor jurídico, à própria ideia do direito. E reforça tal

entendimento afirmando que “a ideia do direito não pode ser outra senão a justiça” (RAD-

BRUCH, 2004, p. 47).

Noutro passagem, expressa sua posição quanto às relações entre os domínios da moral

e do direito, afirmando que “a relação entre ambos os domínios de normas reside muito mais

no fato de que a moral, por um lado, é fim do direito, e, por outro, exatamente por isso, é fun-

damento de sua validade obrigatória” (RADBRUCH, 2004, p. 66).

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Ele desenvolve singularmente a importância do papel da moral no conteúdo do direito,

deixando claro que existe, entre essas duas realidades normativas, uma relação de serviço e

justificação, expressando literalmente o papel do direito em face das prescrições morais atra-

vés da permissão de obrigações jurídicas:

O direito serve à moral não por meio dos deveres jurídicos que impõe, mas pelos que consente. Ele dirige-se para a moral não pelo seu lado dos deveres, mas pelo dos direitos. Outorga direitos aos indivíduos para que, com isso, possam cumprir melhor os seus deveres morais (RADBRUCH, 2004, p. 68).

Importante destacar o fato de que, para Radbruch (2004), a ciência do direito, a que se

pode dizer ser uma ciência cultural compreensível, assume três características específicas no

tocante ao seu aspecto metodológico, que são o fato de ser compreensível, porquanto não é

dirigida ao aspecto fático de um sentido pensado qualquer, mas sim ao sentido objetivamente

válido dos preceitos jurídicos, o de ser individualizadora, uma vez que seu objeto não é a lei

individual e sim a ordem jurídica, da qual as leis fazem parte, e, por fim, o de ser referida a

valores, pois esse aspecto seria o único meio de evitar a dispersão da ciência individualizado-

ra ante a multiplicidade dos fatos individuais, permitindo a diferenciação dos fatos essenciais

dos que não o são.

Segundo Kaufmann (2004), a busca de uma terceira via entre o direito natural e o po-

sitivismo jurídico é hoje o principal tema da filosofia do direito, podendo-se considerar que

Radbruch, quanto a este aspecto, empreendeu uma transformação de paradigma que consistiu

no abandono da filosofia jurídica formada a partir de Hegel, de cunho formal, e na defesa de

uma filosofia jurídica material, em sede da qual se trata de conteúdos, e não somente de for-

mas e estruturas, distinguindo-se ele de Kelsen, apenas quanto ao fato de que, embora ambos

tenham sido igualmente influenciados pela filosofia kantiana, e, por isso, aquele apenas con-

sidera possíveis enunciados a priori, unívocos e cogentes referentes às formas, mas não aos

conteúdos, Radbruch distinguiu-se por não ter se limitado ao formal, tendo filosofado também

acerca dos conteúdos e, especialmente dos valores, tendo que pagar, assim, um alto preço

devido à sua posição kantiana, que é exatamente o seu relativismo axiológico.

Segundo o próprio Radbruch (2004), não é possível que alguma filosofia do direito

possa deixar de lado o conhecimento fundamentado por Kant, e reafirmado por Stammler, de

que só pode ser conhecido com validade geral o que tem caráter formal, devendo a filosofia

jurídica, se não quiser ser reduzida ao método, afastando-se do sistema, exatamente renunciar

à sua validade geral, ou, ainda, caso deseje sair da arbitrariedade de um único sistema, outro

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coisa não fará do que desenvolver um sistema dos sistemas, mas sem definir uma posição em

relação a eles, o que constitui a própria finalidade da filosofia jurídica relativista.

Importante destacar-se a contribuição a esse debate resultante das reflexões de Robert

Alexy (2011), para quem a tese da separação, segundo a qual não haveria qualquer conexão

necessária entre o direito e a moralidade, só seria adequada e correta dentro da perspectiva do

observador, a não ser se tratasse da hipótese improvável de um sistema jurídico que não pos-

sua uma pretensão à correção, mostrando-se ela, por outro lado, totalmente inadequada em

relação ao ponto de vista de um participante, estando correta, no entanto, a tese que lhe é o-

posta diretamente, a da vinculação, fundamentando-se tal declaração segundo três argumen-

tos, que são o da injustiça, o da correção e dos princípios.

Em relação ao argumento da correção, o qual seria a base para os outros dois, assegura

Alexy (2011) que tanto as normas e decisões jurídicas individuais assim como os sistemas

jurídicos em geral formulam uma pretensão à correção, além ter demonstrado a relevância da

tese da vinculação, porquanto, por exemplo, no próprio ato de legislação constitucional incidi-

ria necessariamente uma pretensão à correção, a qual, dependendo do caso, poderia corres-

ponder, sobretudo, a uma pretensão à justiça.

Para ele:

[...] os participantes de um sistema jurídico nos mais diversos níveis formu-lam necessariamente uma pretensão à correção. Se e na medida em que essa pretensão tem implicações morais, fica demonstrada a existência de uma co-nexão conceitualmente necessária entre direito e moral (ALEXY, 2011, p. 47).

Um traço que se mostra característico na teoria alexyana é a consideração da impor-

tância dos princípios e a formulação de um argumento neles baseado como critério segundo o

qual o juiz estaria igualmente vinculado, mesmo no âmbito da abertura do direito positivo, de

uma maneira a criar uma relação necessária entre direito e moral, constituindo como base de

construção do argumento dos princípios a distinção entre regras e princípios. Segundo Alexy

(2011), as regras são normas cuja realização prescreve consequências jurídicas definitivas,

enquanto os princípios seriam normas que prescreveriam apenas que algo seja realizado em

máxima medida em face das possibilidades reais e jurídicas, destacando que as possibilidades

jurídicas de os princípios se realizarem são determinadas não somente por regras, mas, essen-

cialmente, por princípios opostos, o que implica ser sua aplicação dependente de ponderação,

a qual é a forma peculiar mediante a qual eles são aplicados.

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Não se poderia deixar de apresentar, neste trabalho, a grande contribuição representada

pelas ideias concebidas por Lon L. Fuller, o qual, na opinião de Palombella (2005), é de gran-

de importância dentre os defensores das teorias que concebem o direito a partir de um ponto

de vista de uma relação necessária, ou interpenetração, em relação à moral, a qual chama de

“neojusnaturalismo”, afirmando que ele formulou o problema da relação entre essas duas or-

dens normativas destacando a existência de uma moralidade “interna” do direito, afirmando

sua relevância se justificar pelo fato de tal postura constituir uma tentativa de dar um trata-

mento adequado do fenômeno jurídico em suas especificidades, correspondendo a uma posi-

ção extremamente crítica do positivismo jurídico.

Segundo o próprio Fuller (1969), os princípios que ele apresenta representam, de certa

maneira, uma vertente de direito natural, embora ele mesmo se esforce por distinguir as leis

naturais de sua forma peculiar de atividade humana que ele identifica como “a aventura de

submeter a conduta humana ao governo das regras” (FULLER, 1969, p. 96, tradução nossa)6,

estabelecendo, assim, a diferença entre direito natural substantivo e direito natural procedi-

mental, segundo a qual a moralidade interna do direito corresponderia a uma versão procedi-

mental do direito natural, deixando claro, também, que o termo por ele utilizado, “procedu-

ral”, mostra-se bastante apropriado para expressar que não se refere aos propósitos substanti-

vos das normas legais, mas sim a respeito das formas segundo as quais um sistema de regras

que regulamenta a conduta humana deve ser construído e administrado para que ele seja efi-

caz e permaneça como ele próprio se propõe.

No entanto, apesar de um aparente apelo jusnaturalista, podemos observar, na verdade,

tratar-se de uma teoria diferenciada, que não defende uma teoria material da justiça, mas sim

resume a questão ao aspecto formal do sistema jurídico e, no máximo, destaca a importância

da manutenção das condições adequadas da legalidade. Ele apresenta a justiça e legalidade

como noções muito próximas, chegando afirmar:

Uma grande afinidade entre legalidade e justiça é observada com frequência e é, de fato, explicitamente reconhecida por Hart [...], residindo tal identifi-cação numa qualidade compartilhada por ambas, que é exatamente o fato de elas expressarem-se mediante regras conhecidas. A moralidade interna do di-reito exige a existência de regras, que estas se tornem conhecidas, e que se-jam obedecidas na prática por aqueles encarregados de sua administração. [...] E ,ainda, assim como o direito antecede qualquer bom direito, agir-se segundo regras já conhecidas é uma precondição para qualquer avaliação

6 No original, em Inglês: “the enterprise of subjecting human conduct to the governance of rules”.

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significativa acerca da justiça legal (FULLER, 1969, p. 157, tradução nos-sa)7.

6.2 AS TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UMA REDEFINIÇÃO

DAS RELAÇÕES ENTRE MORAL E DIREITO

O positivismo jurídico passou, ao longo do tempo, por algumas reformulações e assis-

tiu ao surgimento de uma vertente que não se conformou à tese da total exclusão do direito em

relação à moral, defendendo um ponto de vista mais aberto e reconhecendo um papel maior,

mesmo que de forma indireta ou não necessária, aos valores morais cuja consideração consti-

tui verdadeira necessidade social, sem os quais a organização humana restaria seriamente pre-

judicada.

Por sua vez, Hart (2007), reconhece e defenda a tese, que para ele mais se assemelha a

um corolário, de que não é possível discutir-se acentuadamente o fato de o desenvolvimento

do direito ter sido profundamente influenciado tanto pela moral convencional como por ideias

de grupos sociais particulares ou, mesmo, por críticas morais esclarecidas infligidas por indi-

víduos detentores de um horizonte moral transcendente da moral aceita comumente; contudo,

afirma ser ilegítimo que um sistema jurídico deva se conformar com a moral ou justiça, ou

deva repousar sobre uma convicção largamente difundida quanto à existência de um dever

moral de obediência a elas, não se mostrando correto, assim, que os critérios de validade das

leis utilizadas num sistema jurídico incluam, tácita ou explicitamente, uma referência à moral

ou à justiça.

A posição hartiana, neste ponto, não é muito diferente da kelseniana, ambos demons-

trando uma antipatia aparente em relação a qualquer forma de direito natural assim como de-

fendendo igualmente um ponto de vista que exclui do direito uma relação não mais que con-

tingente da moral. Contudo, como ele mesmo reconhece, o direito natural não é totalmente

sem importância, uma vez que:

Na verdade, a reafirmação continuada de alguma forma da doutrina do direi-to natural deveu-se em parte ao facto de que o seu atractivo é independente, quer da autoridade divina, quer da humana, e ao facto de que, apesar de uma terminologia e de muita metafísica que poucos podem aceitar nos nossos di-

7 No original, em Inglês, sem supressões: “One deep affinity between legality and justice has often been re-marked and is in fact explicitly recognized by Hart himself (p. 202). This ties in a quality shared by both, name-ly, that they act by known rule. The internal morality of the law demands that there be rules, that they be made known, and that they be observed in practice by those charged with their administration. These demands may seem ethically neutral so far as the external aims of law are concerned. Yet, just as law a precondition for good law, so acting by known rule is a precondition any meaningful appraisal of the justice of law.

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as, contém certas verdades elementares de importância para a compreensão não só da moral como do direito (HART, 2007, p. 204).

Hart (2007), no contexto da especulação acerca das finalidades naturais da vida, reco-

nhece que, restritos ao aspecto mais prático e menos especulativo da questão, reconhece-se a

sobrevivência como uma finalidade necessária num sentido que importa mais claramente para

as discussões do direito humano e da moral, visto ser evidente que todos estamos a ela subme-

tidos, em decorrência da lógica da discussão, uma vez que a nossa preocupação está centrada

nos arranjos sociais com o fim de conseguirmos existir continuamente, restando saber, apenas,

se alguns arranjos sociais podem ser considerados leis naturais susceptíveis de descoberta pela

razão e qual a relação deles com o direito humano e com a moral. Assim, para ele:

A reflexão acerca de algumas generalizações bastante óbvias – na verdade, truísmos – respeitantes à natureza humana e ao mundo em que os homens vivem mostra que, enquanto estas se mantiverem válidas, há certas regras de conduta que qualquer organização social deve conter, para ser viável (HART, 2007, p. 209).

Hart dá um passo em direção a uma peculiaridade consistente na consideração da pre-

sença necessária, embora por via oblíqua, dos conteúdos morais relacionados com o que ele

denomina “conteúdo mínimo do Direito Natural” (HART, 2007, p. 209), o qual ele contrasta

claramente com outras construções teóricas que vão além desse conteúdo, assumindo uma

posição moralista, mas ainda positivista, em relação à questão, ao afirmar que “sem um tal

conteúdo, o direito e a moral não podiam apoiar o desenvolvimento do propósito mínimo da

sobrevivência que os homens têm, ao associar-se uns com os outros” (HART, 2007, p. 209).

Tal conteúdo vai ele expressar, o que pode ser tomado, de qualquer forma, como a indicação

de uma posição moral, a qual tenta condensar em algumas assertivas algumas verdades essen-

ciais acerca da vida humana em sociedade segundo um ponto de vista geral, na forma de cinco

características comuns à natureza humana, que são a vulnerabilidade humana, a igualdade

aproximada entre as pessoas, o altruísmo limitado, a existência de recursos limitados, além de

compreensão e força de vontade limitadas.

Com efeito, reconhece ele um paradoxo em relação à passagem da sociedade de soci-

ais regras meramente primárias para a atual sociedade regida pelo direito (sistema de regras

primárias e secundárias), uma vez que há tanto ganhos como perdas, destacando como positi-

vos a adaptabilidade à mudança, a certeza e a eficiência, enquanto afirma como custo disso

tudo exatamente o risco de que o poder organizado de forma centralizada também poder ser

utilizado como meio de opressão de uma quantidade de pessoas, sem as quais a sociedade

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sobrevive tranquilamente, o que não seria possível numa sociedade de regras primárias

(HART, 2007).

A respeito da influência da moral na validade das normas jurídicas, ele trata estabele-

cendo dois conceitos de direito, um dos quais seria o amplo, o qual não considera inválida

uma lei iníqua ou injusta, e o outro seria o restrito, segundo o qual a validade de uma lei de-

penderia dos seus méritos em face da moral, indicando as razões em se adotar a primeira con-

cepção, uma vez que o contrário poderia prejudicar o estudo teórico ou científico do direito

enquanto fenômeno social, além de excluir certas regras existentes em conformidade com

todas as características complexas próprias do direito (HART, 2007). Assim, afirma ele:

Um conceito de direito, que permita a distinção entre a invalidade do direito e sua imoralidade, habilita-nos a ver a complexidade e a variedade destas questões separadas, enquanto que um conceito restrito de direito que negue validade jurídica às regras iníquas pode cegar-nos para elas (HART, 2007, p. 227-228).

Indo mais a fundo, o referido autor possibilita a consideração de uma justiça na aplica-

ção do direito, orientada pelo critério de tratar igualmente casos iguais, muito diferente de

uma suposta justiça no direito, afirmando existir, considerando-se que o sistema jurídico tem

o sentido mínimo segundo o qual deve consistir em regras gerais, algo que impede seja ele

considerado moralmente absolutamente neutro, sem qualquer contato necessário com princí-

pios morais (HART, 2010). Segundo ele, tal forma de consideração e exigência seria a justiça

procedimental natural, a qual:

[…] consiste, portanto, naqueles princípios de objetividade e imparcialidade na administração do Direito que implementam apenas este aspecto do Direi-to e que são projetados para assegurar que as regras sejam aplicadas apenas àqueles que são, genuinamente, casos englobados por essa regra ou, pelo menos, para minimizar os riscos de desigualdades neste sentido (HART, 2010, p. 88-89).

Importante destacarmos a caracterização atribuída pelo autor à natureza dos valores

morais ou fins últimos que ele reconhece, uma vez considerá-los independentes da volição

humana exatamente por serem fruto de uma necessária imposição natural do mundo em que

vivemos (HART, 2010), o que representa a forma que ele encontrou de, ao mesmo tempo,

afirmar alguns preceitos morais que devem estar necessariamente presentes no conteúdo do

direito e expressar que estes têm sua origem na compreensão da sociedade atual e de suas

exigências de sobrevivência, o que impede afirmar algo além do próprio positivismo jurídico,

já que a forma de imposição não pode ser discutida.

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Mostra-se pertinente introduzir a distinção que nos apresentam Duarte e Pozzolo

(2006), a qual se baseia nos estudos do Professor Rafael Escudero, segundo a qual o positi-

vismo jurídico pode ser classificado em duas classes, a forma sem qualificativos, que corres-

ponderia à estrita subserviência às teses defendidas por Hart, quais sejam, a separação concei-

tual entre direito e moral, a tese das fontes sociais do direito e a discricionariedade judicial; e

a forma com qualificativos, a qual é divida em duas subespécies, que são o positivismo jurídi-

co inclusivo e o positivismo jurídico exclusivo, das quais a primeira sustenta a possibilidade,

mas não necessidade, de determinações jurídicas serem estabelecidas em função de prescri-

ções morais, enquanto a segunda nega qualquer possibilidade.

Destacam Duarte e Pozzolo (2006) que o positivismo jurídico sem qualificativos justi-

fica a aceitabilidade das teses defendidas por Hart e as prende numa concepção epistêmica

que restringe a pretensão científica da teoria do direito apenas à descrição do fenômeno jurí-

dico, o que inviabiliza qualquer chance de justificação do fenômeno jurídico sobre as bases de

uma teoria positivista de caráter normativo, como seria caso fosse necessário justificar as o-

brigações que impõem o direito, além do que tal posicionamento, que rejeita claramente a tese

do positivismo incorporacionista ou inclusivo, traz problemas à pretensão de desenvolvimento

de uma teoria compreensiva do direito contemporâneo, preenchida densamente por conflitos

éticos que tornam inseparáveis o discurso jurídico e o discurso moral.

Sustentam eles, ademais, no contexto do neoconstitucionalismo, fenômeno das novas

formas de constitucionalismo, que passaram pelas críticas ao modelo juspositivista de direito

e estão inseridas nas discussões acerca da postura moral da teoria constitucional, que não é

possível conceber-se uma teoria jurídica do conceito de direito derivado do neoconstituciona-

lismo com o desprezo de critérios materiais ou valorativos de validez normativa nem com a

aceitação de tese que defenda uma forte discricionariedade judicial, uma vez que tais critérios

estão relacionados com a justificação moral e correção dos juízos jurídicos, ou mesmo com a

possibilidade de as normas jurídicas poderem obter validez jurídica a partir de uma dimensão

que se estende à verificação em torno de certo conteúdo de justiça, podendo-se considerar,

assim, que os juízos e proposições normativas formuladas pelo raciocínio jurídico evidenciam

existir uma pretensão de correção normativa imanente à própria normatividade ou retitude

exercida pelos requisitos que regem os atos de fala regulativos, isso porque a inserção do

pressuposto de correção na configuração conceitual do direito canaliza a incorporação con-

ceitual da moral ao direito (DUARTE & POZZOLO, 2006).

A título de esclarecimento, mostra-se interessante apresentar as duas correntes de posi-

tivismo qualificado já referidas, para podermos apresentar melhor o mérito de cada uma delas

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em relação ao papel da moral no direito, além da maior afinidade com os propósitos do pre-

sente trabalho. Assim, com relação à corrente exclusiva, indicam tanto Duarte e Pozzolo

(2006) como Dimoulis (2006) ser Joseph Raz seu principal representante, apesar de este últi-

mo descrever ter o Próprio Raz preferido caracterizar sua abordagem como strong social the-

sis8 ou, principalmente, sources thesis.

Dimoulis (2006) resume tal posição, afirmando que, segundo ela, a moral não pode

servir, em qualquer hipótese, como critério de identificação do direito positivo, tanto no re-

conhecimento de sua validade quanto na realização de sua interpretação, o que denota uma

versão rigorosa da tese da separação entre direito e moral, podendo-se, ainda, concluir que,

assim, o direito seria estabelecido exclusivamente por fatos sociais, sendo necessário, para a

constatação de sua existência e determinação de seu conteúdo, apenas a observação das con-

dutas humanas que o criam a partir de uma convenção social.

Por sua vez, Duarte e Pozzolo (2006) afirmam que o modelo exclusivo do positivismo

jurídico reconhece que os próprios fatos sociais podem importar em determinadas consequên-

cias de ordem moral, o que não significa, todavia, que a descrição do fenômeno jurídico deva

ser concebida a partir de uma concepção que contemple a obrigatoriedade de uma conexão

entre bases fáticas e conteúdos morais.

Para Raz (2010), o aspecto mais fundamental dos sistemas jurídicos é o fato de consis-

tirem em sistemas normativos determinados por características que definem sua função como

instituição social, ou seja, um determinado modo de organização social, além do que a maio-

ria das críticas às teorias do direito natural concentra-se na distorção dessa característica, as-

sim como numa concepção equivocada acerca da natureza da moral. Segundo sua concepção,

as teorias do direito natural, tomadas por ele indistintamente e na sua totalidade, seriam defi-

cientes em dar uma explicação plausível acerca da normatividade do direito, o que se faz atra-

vés do uso da linguagem normativa que descreve o direito:

[...] se as teorias do direito natural pretendem explicar o uso da linguagem normativa em tais contextos, elas devem provar não apenas que toda lei é moralmente válida, mas também que isso é amplamente reconhecido e que, portanto, é relevante para a aplicação da linguagem normativa ao direito. Já que isso não ocorre, o direito natural não é capaz de explicar a normativida-de do direito (RAZ, 2010, p. 168).

8 Tal expressão é uma referência ao aspecto de que o direito deve ser precisamente e apenas um reflexo fiel da realidade social e sua prática, o que exclui qualquer elemento metafísico ou moral diretamente definidor do seu conteúdo e dos critérios de reconhecimento da composição de um sistema jurídico. Então, o adjetivo strong está aí para expressar a sua posição diferenciada da social thesis “fraca”, da qual seria um exemplo a teoria de Hart.

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Neste ponto, cumpre reconhecer que tal autor mantém-se umbilicalmente ligado ao

positivismo jurídico de herança analítica pela valorização da linguagem, assim como na su-

pervalorização do aspecto meramente descritivo do modelo de juridicidade por ele apresenta-

do, o que pode evidenciar o reducionismo de sua teoria, constatando-se a ausência de algum

elemento moralmente material como critério de validade das regras do direito, podendo-se

entender ser essa mesma a sua concepção de juspositivismo, radical em relação ao fechamen-

to do sistema jurídico a elementos éticos materiais de reconhecimento da validade e definição

do conteúdo do direito.

Mostra-se, assim, proveitoso introduzir aqui algumas das ideias que são frutos do pen-

samento ulterior de Norberto Bobbio9, marcado por uma maior preocupação com o aspecto

político e social do direito, passando a dotar uma perspectiva funcional, e, por isso, afastando-

se um pouco do estruturalismo normativista de matiz kelseniana, o que inclui a adoção de um

sistema jurídico aberto, que reconhece diretamente a importância de outras fontes, pois, con-

forme nos diz:

Não há dúvida de que um dos aspectos mais interessantes da discussão em torno do direito, nesses anos, é o fato de terem sido questionadas as fontes tradicionais das normas jurídicas, inclusive nos países continentais. Esse questionamento é acompanhado da importância cada vez maior dada às chamadas fontes extralegislativas (ou, até mesmo, extra-estatais). Um dos dogmas do positivismo jurídico em sentido estrito foi que a fonte principal do direito no Estado moderno fosse a lei, isto é, a norma presumidamente ge-ral e abstrata posta por um órgão especifica e exclusivamente competente, de acordo com a constituição. Um dos aspectos pelo qual se manifesta a crise do positivismo jurídico é a crescente emergência de outras fontes do direito, que minam o monopólio da produção jurídica detido pela lei [...] (BOBBIO, 2007, p. 41).

Acrescenta, ainda, Bobbio (2007), que igualmente constata-se, nas reflexões sobre o

direito estabelecido, uma revalorização do papel criador do direito pelo juiz, afirmando-se a

exigência de um maior empenho na atividade de adaptação do direto às transformações soci-

ais, reclamando, assim, maior importância à função normativa do trabalho dos juristas.

A abordagem de Raz acerca da validade do direito, a despeito do que já foi apresenta-

do, pode ser mais bem compreendida, segundo Dimoulis (2006), a partir de sua concepção de

autoridade, a única fonte de direito reconhecida, a qual deve agregar em si, para poder ser

exercida, duas condições, que são, primeiramente, o fato de que os destinatários do comando

9 Para maiores esclarecimentos, consultar a completa apresentação da evolução de seu pensamento em relação ao positivismo jurídico de Hans Kelsen feita por Mario Losano no prefácio à edição brasileira de uma das mais evidentes obras de Bobbio neste aspecto, que é Da Estrutura à Função, edição brasileira concebida por conta da Editora Manole.

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prestam obediência porque confiam na autoridade ou se sentem intimidados por ela, e, em

segundo lugar, a obediência às ordens da autoridade estar presente independentemente do

juízo de valor exercido contra ela pelo destinatário.

Por sua vez, a corrente do positivismo inclusivo, conforme nos diz Dimoulis (2006),

também conhecido por incorporacionism ou soft positivism, cujos representantes intentam

conciliar o positivismo com uma posição moralista, é adotada por muitos autores atuais, como

David Lyons, Jules Coleman, Wilfrid Waluchow e o próprio Herbert Hart, este de acordo com

texto póstumo em que ele mesmo o reconhece, podendo-se caracterizá-la através da conside-

ração de que os valores morais não são sempre decisivos para a definição e aplicação do direi-

to, afirmando-se, contudo, que pode haver uma convenção social impondo levar-se em consi-

deração a moral como determinante da validade e da interpretação das normas jurídicas.

Interessante destacar-se o fato de que, para essa corrente, a análise de Hart quanto à

identificação do direito a partir de uma regra secundária de reconhecimento pode significar

também que esta regra possa incorporar critérios de validade que obrigam o reconhecimento

de qualidades substanciais das normas, podendo a moral, segundo tal ponto de vista, tornar-se

diretamente importante para o sistema jurídico quando a tal regra de reconhecimento incluir

valores morais (DIMOULIS, 2006).

Complementa o entendimento dessa posição duas teses adicionais, além da tese da

incorporação do direito à moral, que são, no dizer de Duarte e Pozzolo (2006), a do conven-

cionalismo, segundo a qual o próprio processo de reconhecimento do direito válido, que se faz

mediante a regra de reconhecimento, é determinado a partir de práticas sociais de reconheci-

mento do direito válido, desembocando no reconhecimento da existência de certo convencio-

nalismo sobre os critérios de legalidade, e a da diferença prática, que consiste em afirmar-se a

necessidade de os pronunciamentos da autoridade, proferidos com o objetivo de se constituí-

rem em direito, poderem diferenciar, na prática, os âmbitos de deliberação dos de ação das

pessoas e, assim, provocarem uma atitude de conformidade ao conteúdo das regras jurídicas,

podendo-se considerá-la importante no papel de orientação efetiva provocada com o direito,

ou para esclarecerem-se as condições que efetivam a prática jurídica.

O positivismo jurídico atual, em suas diversas manifestações, procura atender aos pro-

testos de formalismo e neutralidade axiológica, o que, de fato, pode-se constatar satisfeito em

alguma medida, não tão satisfatoriamente, porém, quanto àquelas teorias que procuram se

afastar do relativismo moral como única forma de relação adequada com o direito, procuran-

do, assim, construir as concepções jurídicas que defendem a necessidade de uma consideração

imanente de critérios morais e juízos de valor na determinação do conteúdo e validade do di-

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reito, que é o caso do chamado culturalismo jurídico, que se traduz, entre outros aspectos, pela

emergência de uma ordem objetiva dos valores como elemento essencial do conceito de direi-

to, o que será objeto da próxima seção e contribuirá para apresentar uma merecida imbricação

dos valores morais na própria definição da realidade jurídica.

6.3 O CULTURALISMO JURÍDICO E O DESAFIO DA CONSTRUÇÃO DE UMA OR-

DEM OBJETIVA DOS VALORES

O culturalismo jurídico, corrente da filosofia do direito que estendeu influência por

vários países, incluindo ramificações e teóricos de peso na América Latina, é responsável por

apresentar o direito de forma a considerar uma relação necessária entre a realidade jurídica e

os elementos morais representados pelos valores, os quais são concebidos, já desde os estudos

de Lask e Radbruch, pertencentes ao mundo da cultura. Particularmente, podemos citar, entre

outros, como grandes representantes dessa vertente jurídica e filosófica em face da completu-

de e complexidade de suas concepções, Luís Cabral de Moncada, Miguel Reale e Luis Reca-

séns Siches, podendo-se considerar sempre, em suas obras, a referência a um conceito de di-

reito inseparável de um vínculo axiológico necessário e condicionante de sua realização práti-

ca, porquanto emerge uma ordem de valores que é naturalmente constatada objetivamente em

meio à realidade jurídica, objeto de uma construção histórica dos fatores morais que constitu-

em a normatividade.

Para Moncada (1966), não há direito positivo sem uma moral positiva, a qual é, como

ele mesmo, histórica e temporalmente condicionada, além do que os fundamentos e a origem

da obrigatoriedade jurídica somente são comunicados ao direito através da sua dependência

em relação à moral. Por outro lado, continua, há uma contraprestação prestada pelo direito,

pois “o direito positivo dá, em primeiro lugar, à moral a proteção e o reforço coercitivo da-

quela parte fundamental dos preceitos desta, considerada o mínimo ético, sem o respeito da

qual a própria sociedade não poderia existir” (MONCADA, 1966, p. 139).

Importante destacar, conforme afirma o referido mestre lusitano, que as ideias de valor

e de norma antecedem a própria ideia de dever-ser, uma vez que qualquer expressão do dever-

ser seria ineficaz e sem sentido caso não estivesse referido a uma norma ou valor preexistente,

podendo-se diferenciar essas três ideias apenas com relação ao grau de intelectualização abs-

trata com o qual nós as representamos em nossa inteligência teorética, podendo-se diferenciá-

las nos termos em que o valor seria um fenômeno concreto da consciência imediatamente

apreensível por meio de uma revelação única e peculiar, antes de qualquer construção intelec-

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tual generalizadora, a norma, por sua vez, a própria construção generalizante posteriormente

realizada pelo intelecto, cujo fim é servir a uma pluralidade de consciências e pessoas em vi-

vência comum, e o dever-ser, por fim, uma síntese dos dois elementos anteriores, mas desta

vez por meio da elaboração em um plano mais elevado da abstração do intelecto e da máxima

generalização (MONCADA, 1966).

O Professor Luis Recaséns Siches trata o problema das relações entre direito e moral

de uma forma diferenciada, reconhecendo uma maior importância à preservação do aspecto

formal do direito, o único realmente capaz de satisfazer à exigência de universalidade, pois

segundo ele:

Por um lado, resulta que caso pretendamos estabelecer uma noção formalista universal do jurídico, uma noção de Direito em termos gerais, não podemos introduzir dentro de tal conceito ou noção o conteúdo da estimativa ou valo-ração jurídica. Pois se procedêssemos assim, então obteríamos não uma no-ção essencial de Direito, mas sim a ideia de Direito justo, do Direito que sa-tisfaz os requisitos de valor, isto é, as exigências estimativas. (RECASÉNS SICHES, 2009, p. 188-189, tradução nossa) 10.

Contudo, mesmo mantendo a pretensão de estabelecer um conceito essencial ou uni-

versal do Direito, sem adjetivos, reconhece Recaséns Siches (2009) que deve estar contido em

tal conceito ser sua tarefa regular a conduta humana, cujo objeto são pessoas humanas en-

quanto tais, que dizer, enquanto sujeitos intrinsecamente dotados de dignidade ou detentores

de fins próprios, sendo cada qual um fim em si mesmo, devendo, por isso, possuir autonomia

ou liberdade. O referido mestre reconhece, assim, a necessidade de estabelecer um conceito

de direito cujos parâmetros não se resumam apenas à observância da legitimidade das condi-

ções políticas de emanação, senão também incluam a valoração do conteúdo possível das

normas, pois:

[...] ainda que as normas do Direito positivo emanem do mandato do poder político elas não podem ser, de nenhum modo, entendidas como meros feitos de poder. De qualquer forma, são feitos humanos e, enquanto tais, têm es-sencialmente um sentido, uma significação. Ora, este sentido consiste fun-damentalmente na referência a valores. Ou expressando o mesmo de outro modo, a normatividade do Direito positivo careceria absolutamente de senti-

10 No original espanhol: “Por un lado, resulta que si pretendemos establecer una noción formalista universal de lo jurídico, uma noción del Derecho em términos generales, no podemos introducir dentro de tal concepto o noción el contenido de la estimativa o valoración jurídica. Pues si procediésemos así, entonces ló que obtendría-mos no sería la noción esencial del Derecho, antes bien la idea del Derecho justo, del Derecho que satisficiese lós requerimientos de valor, esto es, las exigências esimativas”.

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do caso não estivesse referida a um juízo de valor, que é precisamente o que a inspira (RECASÉNS SICHES, 2009, p. 279, tradução nossa11).

Miguel Reale (1992), por sua vez, afirma, no tocante ao problema das relações entre

direito e moral e as variáveis mutações históricas, que tal questão é indissociável das concep-

ções dominantes acerca do indivíduo e da sociedade, do povo e do Estado, e envolve, na ver-

dade, a estrutura axiológica vigente de forma integral, em cada sistema cultural, o que implica

os assuntos estarem íntima e essencialmente relacionados em diferentes totalidades históricas

de sentido, que correspondem a diferentes condições humanas. Com isso, o ilustre mestre

paulista acentua, em sua teoria, a grande valorização do caráter histórico das condições de

reconhecimento dos valores, que são inseparáveis do conceito e aplicação do direito, demons-

trando que a experiência jurídica, que tem caráter concreto, está condicionada pelas concep-

ções culturais ou axiológicas dominantes na comunidade, cujos elementos refletem-se na

construção da normatividade.

Importante destacarmos que, ainda segundo o mestre Reale (1992), o direito distingue-

se da moral, mesmo em sendo ambos realidades do mundo ético, a partir da característica de

que, a bilateralidade, propriedade observada ontologicamente tanto na moral como no direito,

as quais são atividades igualmente espirituais, uma vez, a partir do prisma da alteridade, no

caso daquela, a instância valorativa residir no agente, o qual seria a própria medida do ato

valorativo, que deve pôr-se obrigatoriamente em relação com outrem, e, no caso deste, poder-

se afirmar decorrer a validade da relação de sua coordenação objetiva, o que importaria na

superação do ego e do alter a envolvê-los numa relação comum, em função da qual poderiam

existir pretensões recíprocas ou não entre os participantes, consistindo essa última na bilatera-

lidade própria do mundo jurídico, a bilateralidade transubjetiva ou atributiva.

Segundo se pode observar na teoria de Reale (1992), mesmo o processo de objetivação

representada pela experiência jurídica, a qual é normativa e coercível, não tem como conse-

quência a perda da espontaneidade própria da moral, uma vez que, ao contrário, tal processo

tem apenas como objetivo a ordenação objetiva das relações sociais, ao menos segundo a in-

tencionalidade e renovada tentativa de preservação da própria subjetividade, o que permite

exatamente que o espírito se revele multiformemente, inclusive mediante formas de vida con-

flitantes. Para ele:

11 No original espanhol: “aunque las normas del Derecho positivo emanen del mandato del poder político, ellas no puedem ser de ningún modo entendidas como meros hechos de poder. Em todo caso, son hechos humanos, y, em tanto que tales, tienen esencialmente um sentido, uma significación. Ahora bien, este sentido consiste funda-

mentalmente em la referencia a valores. O espresando lo mismo de outro modo, la normatividade del Derecho positivo carecería en absoluto de sentido si no estuviese referida a um juicio de valor, que es precisamente lo

que la inspira”.

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Os processos de objetivação normativa poderão variar de um ordenamento jurídico para outro, mas talvez seja possível dizer-se que a linha ideal do de-senvolvimento histórico do direito se projeta no sentido de uma objetividade jurídica ideal, daquela que mais possa realizar socialmente os valores da sub-jetividade, em extensão e profundidade. Na conjuntura dos nossos tempos, são as ‘sociedades plurais’ as que se mostram mais fiéis a esse sentido deon-tológico da história (REALE, 1992, p. 270).

Não obstante tudo o que já foi exposto, cumpre destacar, de maneira expressiva, uma

característica essencialmente peculiar dessa corrente, tal como defendida por alguns autores,

como o próprio Reale, mas também Siches, de que um traço essencial dos valores, concebidos

como critérios ou pautas axiológicas inseparáveis da realidade jurídica concreta, é o fato de

serem concebidos a partir de uma objetividade ou encerrarem critérios últimos que constituem

uma ordem objetiva diretamente condicionante das condições de realização do direito, o que

vai frontalmente de encontro ao ponto de vista positivista, que, reconhecendo o caráter formal

do direito de maneira proeminente, não considera os valores mais que meras expressões sub-

jetivas que podem influenciar o direito de maneira indireta, defendendo, apenas, um mero

relativismo, segundo o qual seria provável que o direito incorporasse qualquer conteúdo, ain-

da aquele que não fosse o moralmente mais adequado ou o verdadeiro reflexo das aspirações

dos seres humanos, resumindo a questão da validade apenas às condições de regularidade do

ato de que emanam as normas jurídicas, sem discutir comprometidamente seus méritos mo-

rais.

Assim, para Siches (2009), os valores não são puras atitudes subjetivas nem constitu-

em somente projeções de mecanismos mentais, senão tem existência objetiva, e sua objetivi-

dade é imanente à existência humana, pois, mesmo que os homens não criem os valores, de-

vem reconhecê-los, estando o sentido deles essencialmente referido a sua existência, especifi-

camente relacionados também com o contexto das situações particulares e concretas da vida

humana. Contudo, ainda segundo ele, tal característica não impede que os juízos de valor con-

cretos estejam relacionados com algumas realidades humanas sociais particulares, quer dizer,

que tais juízos de valor sejam relativos a situações concretas, históricas, assim como às cir-

cunstâncias de lugar, de fato e de época, uma vez tais relatividades não implicarem oposição à

objetividade dos critérios valorativos, mas sim refletirem a necessidade de a realidade social

particular exercer influência e condicionar a elaboração das normas jurídicas.

Reale (2002), por sua vez, trata a questão em termos de que os valores não existem

autonomamente ou, de per si, não se constituem em realidade material, mas se manifestam

não coisas que são valiosas, constituindo uma manifestação que se revela a partir da experiên-

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cia humana através da história, uma vez serem algo que o homem realiza com sua própria

experiência e assume diversas e exemplares expressões através do tempo. Segundo ele, são

eles dotados de objetividade, porquanto sua possibilidade de reconhecimento é inexaurível,

representando uma abertura sem fim para novas determinações do gênio inventivo e criador.

Contudo, tal objetividade é relativa exatamente pelo fato de que, ontologicamente, eles só

existirem em relação aos homens, em referência a um sujeito, o qual é o homem mesmo, só

que como sujeito universal de estimativa, não se reduzindo às vivências de algum indivíduo

da espécie.

O pensamento de Reale é detentor de uma importante abertura conceitual do fenômeno

jurídico, assim como dos critérios que influenciam a sua normatividade, para estudos de or-

dem sociológica que dão conta de apresentar uma característica essencial do direito, que é

justamente o fato de ele consistir numa realidade que regula a conduta humana através de re-

gras concebidas segundo uma posição ética que nem sempre coincide com o desejo dos desti-

natários, o que, inclusive, justifica a própria objetividade dos valores, pois, como afirma, “o

certo é que eles [os estudos] representam um esforço notabilíssimo no sentido de explicar a

objetividade dos valores, a razão pela qual os valores se impõem aos indivíduos, muitas vezes

contrariando frontalmente seus desejos” (REALE, 2002, p. 199).

No centro da teoria de Reale repousa a compreensão de que o homem ocupa uma po-

sição peculiar e única do processo da regulação de sua própria conduta através dos reflexos de

sua vivência, sendo concebido segundo um ponto de vista das suas próprias finalidades, pois

“somente o homem, de uma forma originária e fundante, é e deve ser, e, mais ainda, que o

homem é o seu dever ser” (REALE, 1994, p. 81), podendo-se, assim, reconhecer, como ele o

faz, a importância do conceito de pessoa como elemento necessário da existência dos valores:

Toda a minha perspectiva histórica [...] gira em torno de um ponto firme, que é como a alma e a condição imanente da experiência jurídica: é a ideia de pessoa, não entendida como substância dogmaticamente pressuposta à pesquisa filosófica, mas como imanente possibilidade de escolha constitutiva de valores (REALE, 1994, p. 82).

Por fim, o insigne mestre paulista apresenta um conceito de direito peculiar, que o

compreende a partir da realidade do mundo da cultura, integrando elementos fáticos e axioló-

gicos, segundo um ponto de vista historicista:

O direito é, pois, uma espécie de experiência cultural, isto é, uma realidade que resulta da natureza social e histórica do homem, o que exige nele se con-sidere, concomitantemente, tanto o que é natural como o que é construído, as contribuições criadoras, que consciente e voluntariamente se integram e

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continuam se integrando nos sistemas jurídico-políticos. Daí se apresentar sempre como síntese ou integração de “ser” e de “dever-ser”, de fatos e valo-res, quer em experiências particulares, quer na experiência global dos orde-namentos objetivados na história (REALE, 1992, p. 111-112).

Diante de tudo o que já foi apresentado, cumpre destacar a pertinência da noção de

vigência do direito concebida por Reale (2002), a qual se afasta da visão exclusivamente nor-

mativista, que considera tal propriedade relacionada somente com os requisitos formais ne-

cessários à aquisição ou perda de vigor, para defini-la em termos de referência aos valores que

permitem o surgimento da regra de direito, assim como relacionada às condições fáticas que

podem assegurar sua eficácia social.

Acerca desse aspecto, mostra-se valioso expressarmos que tal peculiaridade é de fun-

damental importância e segue claramente o conceito de direito por ele irremediavelmente ado-

tado, que põe no centro a questão da valoração inerente à consideração da norma jurídica

sempre com vistas às possibilidades concretas de realização dos valores que emanam por

meio da realidade do direito, a qual assume o papel de um verdadeiro estandarte de promoção

do bem moral cuja fonte primordial é a própria pessoa, considerada um valor supremo e sem-

pre aberto à atualização histórica, o que a torna perene fonte de realização do bem comum.

Assim, mostra-se extremamente frutuoso concordar com o ilustre mestre no tocante ao

evidente sucesso teórico de sua concepção de direito e seu tridimensionalismo, segundo estas

palavras:

O mérito do Culturalismo Jurídico, o que o torna preferível a todas as dou-trinas sobre a natureza e o fundamento do Direito, é exatamente a apreciação integral da vida jurídica, que não é só norma, nem só fato social. O Direito é uma realidade tridimensional, que apresenta um substratum “fático” (dado de natureza, circunstância histórica etc.) no qual se concretizam valores de cultura, e, ao mesmo tempo, é norma que integra em unidade superior o pro-cesso incessante de atualização dos valores (REALE, 1977, p. 266).

Sua proposta, ao final das contas, segundo suas próprias palavras, é a de conceber o

Direito como “fato cultural”, elemento que faz parte da ciência da cultura, e assim ver abertas

maiores perspectivas em favor de se compreender os problemas jurídicos de uma forma mais

ampla e humana, o que se faz mediante a adoção de uma orientação inspirada no realismo

crítico contemporâneo, possibilitando um entendimento mais nosso de nossos próprios orde-

namentos, conforme as tendências mais fundamentais de nossa cultura (REALE, 1977).

Podemos considerar, assim, que tal corrente teórica, responsável pelo desenvolvimento

de uma concepção jurídica inseparável da questão moral, a qual condiciona diretamente e

integralmente o seu conteúdo, consiste numa forma eficaz de transformar o direito num meio

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mais eficaz de realização humana e social, o que se faz mediante uma proposta bastante ade-

quada à grande complexidade das sociedades atuais, as mais diversas, incluindo seus desafios

e peculiaridades culturais enquanto comunidade.

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7 CONCLUSÃO

A realidade do mundo ético e jurídico, desde a Antiguidade, aponta sempre a relevân-

cia da questão existencial na determinação do conteúdo e natureza do direito, pois o homem,

nas diferentes épocas de sua existência, procurou sempre construir um modelo de juridicidade

que correspondesse às suas expectativas de não frustrar os meios de sua consagração social e

proporcionasse a satisfação dos bens mais importantes à sua alma, inclusive a vida sobrenatu-

ral.

Atualmente, embora não exista dúvida de que a sociedade é um reflexo do homem que

nela vive e que o direito deve ser um meio eficaz de manter a ordem e paz social, pode-se

considerar que um modelo normativo diferenciado e aberto pode contribuir de maneira direta

para um avanço nas relações entre as pessoas, uma vez consistir numa maneira de definir a

necessária atualização do conteúdo das regras através da inserção de critérios e juízos de valor

na aplicação prática das normas jurídicas, uma vez restar mais que evidente ser a única certe-

za na ciência do direito a possibilidade de seu funcionamento de acordo as balizas de ordem

moral e espiritual que reconhecem ser o homem, ao mesmo tempo, detentor de um núcleo de

indeterminação essencial e capaz de evidenciar atributos éticos que o marcam eternamente e

que ajudam na própria constituição da sociedade.

O positivismo jurídico, mesmo com todo o seu esforço em prol de uma concepção ló-

gico-sistemática e normativista do fenômeno jurídico que procura, de alguma forma, atender

eficazmente, embora de maneira unitária e unidimensional, as necessidades de regulamenta-

ção da conduta humana através do seu conceito de direito e da própria natureza do direito,

caso não seja orientado devidamente por um espírito crítico favorável à sensível e evidente

efusão dos valores e critérios materiais de conteúdo e validade das normas jurídicas, pode

tornar-se, ao contrário, uma metodologia que vai de encontro às reais necessidades de controle

social da conduta, já que passaria a menosprezar a única característica realmente essencial de

qualquer ordem social de conduta humana, que é exatamente o fato de estar construído, inclu-

sive munido de poder coercitivo-legal, em função da promoção e defesa dos valores e bens da

pessoa enquanto ser dotado de intrínseca dignidade.

Da mesma forma, os inúmeros esforços travados cotidianamente na tarefa de aplicação

do direito não podem ser realizados simplesmente à maneira da identificação literal do que

contém a lei, senão que devem estar devidamente amparados e orientados por uma postura

aberta do sistema jurídico aos valores ético-políticos relevantes e reconhecidos na comunida-

de jurídica, os quais permitem, mediante o reconhecimento, cada vez maior, do papel criador

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do juiz através de juízos de valoração, que dependem, afinal de contas, da indispensável sub-

jetividade do interprete enquanto razoável escolha objetiva de uma solução correta baseada na

própria realização do humano através da consideração dos seus atributos morais, cuja concre-

tização observa-se mediante sua transposição à realidade prática do direito.

Por isso naturalmente tem-se atribuído tanto expressão, ultimamente, às correntes po-

sitivistas moderadas, que, exatamente por reconhecerem devidamente as limitações do antigo

modelo de positivismo normativista lógico e cerrado num ideal de autossuficiência pelas

normas em si, e não pela adequação do conteúdo aos evidentes propósitos da sociedade hu-

mana, podendo-se considerar essa postura adequada ao que se propõe ser o direito nas socie-

dades complexas, quando a normatividade funde-se à identificação ética com o justo.

Só para mantermos uma ligação mais direta com a jurídica atual, mostra-se proveitoso

referirmos que, no estado presente das relações entre a moral e o direito, o próprio sistema

jurídico é bastante claro quando, contemplando em seu seio um sistema de princípios e valo-

res decorrentes que determinam os limites da aplicação e interpretação das leis vigentes, elege

um padrão ético objetivo que deve estar imanentemente presente no tratamento prático das

regras, podendo-se falar de um definido padrão de correção jurídica em função de se levar ou

não tal aparato ético-normativo em consideração, reconhecendo-se uma pretensão à correção

do sistema jurídico com base no devido reconhecimento dos elementos do mundo ético que

são obrigatoriamente parte integrante do direito, caso contrário não estaríamos falando de uma

sociedade composta por pessoas em seu sentido pleno, enquanto ser constitutivo de valor mo-

ral.

Não basta, para obtermos uma concepção adequada de normatividade jurídica, pre-

vermos que os bens necessários à mera sobrevivência do meio social em relação a ele mesmo

devam ser preservados ou guardados através do aparato legal coercitivo do Estado, pois tal

postura corresponderia simplesmente a conformar-se com todos os males que podem advir

pelo governo de todos os sentimentos que não correspondem ao bem espiritual e moral do

homem, devendo residir a obrigatoriedade jurídica e sua manifestação externa através da

norma no atendimento a que se reconheçam os vários fatores de ordem fática, axiológica e

normativa que, por fazerem parte de uma concepção integral do fenômeno jurídico, vão além

do formalismo e do relativismo e podem mais eficazmente determinar o que satisfaz ou não a

ideia de direito, inclusive a sua aplicação de forma diferenciada levando em conta as possibi-

lidades sócias de sua realização.

Assim, podemos considerar mais premente do que nunca uma exigência moral no pró-

prio conceito e na natureza do direito, devendo seu conteúdo refletir exatamente as necessida-

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des de normatização das condutas valiosas ao convívio social, não se podendo, sob pena de

conivência com uma grande injustiça, restringir-se a realidade jurídica ao aspecto puramente

legal ou a um sistema jurídico fechado, o qual não tem elementos precisos para captar as ne-

cessidades de concretização normativa numa situação específica de lacuna ou indeterminação

da lei, e, por conseguinte, não satisfaz o anseio de ultrapassar o limite da literalidade para pre-

encher um espaço vazio por meio de um processo que, ao considerar os elementos fáticos e

axiológicos que necessariamente estão em questão, produza uma interpretação inovadora,

uma vez que a própria figura da pessoa, centro de toda vida jurídica, é constantemente aberta

ao novo representado pela exigência de realização do bem.

Mais que nunca, atualmente é o tempo da complexidade social e das consequentes

exigências de mais adequada normatividade, a qual deve refletir a realização concreta das

exigências de promoção que constituem um sistema de controle social humano que não pode

estar restrito a uma supervalorização da repressão organizada, senão que, atenta à realidade

social, saiba construir elementos normativos que, não ficando na neutralidade, possam servir

como meio de realização da justiça social, da qual o direito deveria ser um instrumento eficaz,

uma vez estivesse constituído juntamente com a tendência de concretização dos valores.

O formalismo e o relativismo foram, portanto, dois dos maiores vilões para o avanço

de uma consideração integral da ideia de direito, o qual ficava distante de uma posição defini-

da eticamente e não estava atento a novas formas de compreender o homem e a sociedade que

podem ser consideradas uma verdadeira necessidade atual, pois o direito justifica sua validade

segundo os critérios socialmente exigidos, na qual vive a figura do ser humano, ente cujo as-

pecto físico não é o mais importante, mas o é o espiritual, pela simples realização dos seus

valores, os quais são uma imagem fiel de sua essência natural, que é o bem e a paz social.

Portanto, agora, mostra-se enormemente proveitoso atribuir-se o devido lugar ao pen-

samento orientado a valores e à abertura axiológica do sistema jurídico, como forma de impe-

dir que alguma necessidade de regulação jurídica da vida reste desamparada e que isso cor-

responda a um prejuízo ao bem da sociedade, ou que seja praticada uma verdadeira injustiça

legal ou omissão jurídica motivada unicamente na ausência de critérios objetivos que sirvam

como um marco de realização dos bens mais prementes da vida social, podendo a interpreta-

ção jurídica, se orientada pelos elementos devidos, constituir uma forma perene de renovação

e adequação da aplicação do direito e de sua transformação num sonhado instrumento de rea-

lização humana.

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