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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
Mielson dos Santos Menezes
MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO
NATAL/ RN
2013
MIELSON DOS SANTOS MENEZES
MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO
Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) apresentado ao Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Doutor José Diniz de Mo-raes
NATAL/ RN 2013
MIELSON DOS SANTOS MENEZES
MORAL, VALORES E POSITIVISMO JURÍDICO
MONOGRAFIA apresentada ao curso de Direito
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Direito.
Aprovação em 14/06/2013.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Diniz de Moraes
UFRN
Prof. Dr. José Orlando Ribeiro Rosário
UFRN
Profa. Ma. Patrícia Borba Vilar Guimarães
UFRN
“Certos valores brilham com uma luz dominadora
em dadas conjunturas, levando indivíduos e po-
vos a vencer algo que, no fundo, seria uma ten-
dência ‘natural’. O homem eleva-se ao mundo do
valioso graças a seu autodomínio, à sua capacida-
de única de superar, não só as inclinações natu-
rais dos instintos, como os estímulos rudimenta-
res da vida afetiva. Sob esse prisma, o mundo do
valioso é o do superamento ético” (REALE,
2002, p. 200).
RESUMO
O presente trabalho trata de um dos temas mais recorrentes da Filosofia do Direito em todos
tempos, que é o das relações entre o Direito e a moral, assunto este que sofre transformações
desde o tempo da Antiguidade Clássica, além de ter constituído um motivo de preocupações
de importantes filósofos, podendo-se afirmar que o direito reflete, em cada presente histórico,
os fatores que condicionam a consciência do ser humano mesmo e de sua maneira de encarar
a realidade em que vive. Trata-se de estudo de cunho especulativo acerca das condições reais
de concepção da influência das várias fontes de normatividade jurídica no conteúdo e aplica-
ção do direito, mediante pesquisa bibliográfica lastreada em pensadores que cuidaram profi-
cuamente de tal assunto e são responsáveis por marcar o estudo da determinação das relações
entre o direito e os valores, que são componentes da vida ética cujo centro produtor é o ser
humano mesmo. O desenvolver das pesquisas demonstrou observar-se atualmente uma maior
preocupação com a influência de critérios morais na determinação do conteúdo das regras
jurídicas ou da sua aplicação, o que representa certa transformação qualitativa no positivismo
jurídico e a emergência de doutrinas axiológicas, as quais estão orientadas segundo padrões
morais mais rígidos e constituem um meio bastante eficaz de transformação da realidade jurí-
dica rumo a uma compreensão mais adequada de Direito, que põe no centro a figura do ser
humano, produto histórico que deve ser o centro da vida jurídica e inspirar uma abertura dos
sistemas jurídicos aos conteúdos morais que são exigências de bem comum e realização das
aspirações sociais.
Palavras-chave: Direito e moral. Justiça. Positivismo Jurídico. Normatividade. Cultura e
valores.
ABSTRACT
This work addresses one of the most recurrent themes of philosophy of law at all times, which
is the relationship between law and morality, that suffered transformations since Classical
Antiquity, and has been a major cause for concern for philosophers because the law reflects,
in each historical present, the factors that influence the consciousness of the human being and
even its way of looking at reality in which he lives. It is a speculative nature study about the
real conditions of conception of the influence of various sources of legal normativity in the
content and application of the law, through bibliographic research grounded by thinkers who
cared profitably in such matter and are responsible for marking the inquires toward determin-
ing relations between law and values, which are components of ethical life whose producer
center is the human being itself. The development of the research showed today we can find
greater concern with the influence of moral criteria in determining the content of legal rules or
their application, which represents some qualitative change in legal positivism and the emer-
gence of axiological doctrines, which are oriented at stricter moral standards and are a very
effective means of transforming the legal reality toward a more adequate understanding of
law, which puts the figure of the human at the center, historical product that should be the
center of life and inspire an opening in legal systems to moral contents which are require-
ments of the common good and social aspirations of achievement.
Keywords: Law and morality. Justice. Legal Positivism. Normativity. Culture and values.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................8
2 O DIREITO E O JUSTO NA FILOSOFIA DO DIREITO DA ANTIGUI-
DADE CLÁSSICA................................................................................................ 9
2.1 A FILOSOFIA DO DIREITO NA GRÉCIA ANTERIOR A PLATÃO .........11
2.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES
.................................................................................................................................12
2.3 ESTOICISMO E DIREITO ROMANO............................................................16
3 DIREITO E JUSTIÇA NA IDADE MÉDIA ...................................................20
3.1 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO...............................20
3.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO.................21
3.3 A DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA TOMISTA, O NOMINALISMO E O
VOLUNTARISMO NA FILOSOFIA DO DIREITO NO FINAL DO PERÍODO
MEDIEVAL.............................................................................................................26
4. O DIREITO MODERNO.................................................................................31
4.1 LAICIDADE, INDIVIDUALISMO E HUMANISMO.....................................31
4.2 A REFORMA PROTESTANTE, A CONTRARREFORMA E A ESCOLÁS-
TICA ESPANHOLA................................................................................................32
4.3 O JUSNATURALISMO RACIONALISTA .....................................................38
5. O POSITIVISMO JURÍDICO .........................................................................43
5.1 SURGIMENTO, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS................................. 43
5.2 O POSITIVISMO JURÍDICO SEGUNDO A CONCEPÇÃO
NORMATIVISTA DE HANS KELSEN.................................................................48
6. DOUTRINAS AXIOLÓGICAS E TRANSFORMAÇÕES DO
POSITIVISMO JURÍDICO .................................................................................57
6.1 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO E A EMERRRGÊNCIA DAS
TEORIAS AXIOLÓGICAS.....................................................................................57
6.2 AS TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UMA
REDEFINIÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE MORAL E DIREITO ......................65
6.3 O CULTURALISMO JURÍDICO E O DESAFIO DA CONSTRUÇÃO DE
UMA ORDEM OBJETIVA DOS VALORES.........................................................72
7 CONCLUSÃO......................................................................................................79
REFERÊNCIAS.....................................................................................................82
8
1 INTRODUÇÃO
O tema das relações entre a moral e, consequentemente, os valores e o direito é um dos
mais relevantes temas para a Filosofia do Direito, mas também um dos mais complexos e
indefinidos, uma vez constatar-se um conflito permanente entre várias tendências doutrinárias
que possuem algumas diferenças entre si, como o caso do jusnaturalismo ou do culturalismo e
o positivismo jurídico, mormente o de feição exclusiva, os quais defendem posturas
diametralmente opostas e, possivelmente, inconciliáveis no tocante à consideração de critérios
ou parâmetros morais incidirem como fatores que determinam a validade do direito positivo,
ou somente a vigência do direito positivado, assim como no tocante a se a moral seria um
fator diretamente condicionante do conteúdo e da validade das regras jurídicas.
Assim, o presente trabalho constitui um esforço em prol do melhor entendimento e
reconhecimento do problema, com o intuito de poder distinguir um ponto de vista mais
coerente e satisfatório em relação à necessária complexidade do direito nas sociedades atuais,
quando se reclama por mais flexibilidade e defesa de uma posição moralmente definida de
promoção dos bens e valores que contribuem para o bem-estar e a consagração ética e social
das pessoas, não significando isso deixá-las à própria sorte em meios às acentuadas
diversidades e problemas do contexto social, o que se faz mediante a incursão nas variadas
doutrinas que contribuíram de alguma forma para o estado atual das relações entre a realidade
jurídica e os valores sociais e humanos.
Em vista disso, este trabalho tem um cunho explicativo e, ao mesmo tempo, defensor
de uma posição incisiva, uma vez que seu propósito é exatamente o de precisar o estado atual
das relações entre o direito e a moral tendo em vista todo o desenvolvimento histórico de
escolas de pensamento distintas desde um tempo arcaico da história jurídica dos povos até os
contornos atuais, sob a justificativa de ter uma aclarada noção da transformação das
concepções jurídicas ao longo do tempo assim como dos fatores que levam ao abandono e
posterior adoção de um novo modelo de juridicidade, como se observou com o advento da
Idade Moderna e seu espírito racionalista, fator que marcou profundamente a história jurídica
até os nossos dias, mas que atualmente sofre uma crítica justificada por ter transmitido
somente uma falsa certeza quanto à natureza do direito, ante a maior valorização do homem
como ser dotado de dignidade e, por isso, fator de reformulação das preocupações do direito.
9
2 O DIREITO E O JUSTO NA FILOSOFIA DO DIREITO DA ANTIGUIDADE
CLÁSSICA
O estudo da filosofia do direito, que se ocupa do “estudo crítico dos princípios dos
sistemas científicos de direito” (VILLEY, 2009, p. 5), não teria outro lugar a principiar a não
ser a Grécia antiga, em grande parte devido ao fato de a civilização grega ter alcançado gran-
de desenvolvimento, mormente quanto a certa estabilidade alcançada pela democracia ateni-
ense, que deixou uma herança jurídica e filosófica inestimável à humanidade. No dizer de
Villey (2009, p. 16), “é na Grécia que descobrimos os germes da teoria do direito natural; mas
também poderíamos encontrar os germes do positivismo jurídico, do relativismo, quando não
do sociologismo”.
Conforme nos diz Villey (2009), a vida pública ateniense proporciona sólido clima de
liberdade, sob o qual florescem as mais diversas tendências da filosofia jurídica, podendo-se
citar partidários e inimigos da democracia, nacionalistas atenienses, partidários da união da
Grécia ou até do cosmopolitismo.
Encontramos já em Hesíodo, grande poeta da civilização grega clássica, traços de uma
concepção de direito que procura exaltar o papel da justiça. Acerca disso, contempla ele o
sentimento de que “Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra a espezinhem, e de
que os bens mal adquiridos nunca prosperam” (JAEGER, 1995, p. 91). Assim, observamos já
presente, na concepção grega do direito, um imanentismo axiológico baseado no ideal de jus-
tiça, o qual estava relacionado a importantes fatores condicionantes da vida.
Outro elemento importante para o estudo da filosofia do direito grega é a polis, que
adquire relevância fundamental, haja vista o fato de ser o principal meio para a investigação
das várias dimensões que compunham a vida daquela sociedade, incluindo a política e o direi-
to, que mantinham relações cujo estudo é indissociável de uma adequada consideração dos
fatores determinantes do justo e do jurídico. Sobre a importância da polis, Jaeger (1995, p.
107) assim escreve:
[...] Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo definitivo a sua estrutura. No perí-odo primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade. Poderíamos comparar isso a múltiplos regatos e rios que desembocassem num único mar - a vida comunitária - de que recebessem orientação, e refluíssem à sua fonte por ca-nais subterrâneos e invisíveis. Descrever a cidade grega é descrever a totali-dade da vida dos Gregos. Embora isto seja um ideal praticamente irrealizá-vel, ao menos na forma usual de uma narração temporal progressiva e linear dos fatos históricos, a consideração daquela unidade é muito fecunda para
10
todas e cada uma das suas esferas. A polis é o marco social da história da formação grega.
Temos que, no desenvolver da sociedade grega, houve uma transição de conceitos,
pois passou-se, cada vez mais, a buscar-se dike, cujo significado fundamental equivale a “dar
a cada um o que lhe é devido” (JAEGER, 1995, p. 135), em vez de themis, que possuía feição
formal e significava literalmente apenas lei, termo que se originava como sentimento de exal-
tação da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e senhores nobres, tendo a dike assumido a
feição de representar a luta de classes que se iniciou com o aumento da oposição entre os no-
bres e os cidadãos livres, inclusive com a exigência popular por leis escritas como forma de
refrear os abusos políticos dos magistrados (JAEGER, 1995). Assim, nas exatas palavras de
Jaeger (1995, p. 135):
Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua validade, dike significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra dike se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo dike tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.
Surgiu o termo dikaiosyne, conceito que designava um sentimento genérico de respeito
aos justos limites e o afastamento das várias formas de transgressão da conduta, que proveio
da crescente intensificação do sentimento de justiça e de sua expressão na forma de arete, que
significava a coragem de um homem, um tipo de excelência, do grupo das aretai, e a que to-
das as outras excelências que a pessoa possuísse deveriam estar a serviço (JAEGER, 1995).
Sobre essa nova concepção, escreve Jaeger (1995, p. 137-138):
[...] A nova dikaiosyne era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, o conceito de justiça ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a ‘virtude cristã’ consistiria na obediência às ordens do divino.
Nos primórdios da civilização grega, a natureza era um elemento de importância
fundamental para a regulação da vida, o que se explica pela subordinação aos ditames naturais
de uma cultura alheia a uma maior liberdade, que confiava cegamente nas imposições da vida
natural, que era a fonte de normas para o comportamento humano (MORRISON, 2006). Tem-
se que o naturalismo do qual se originam os conceitos fundamentais da vida grega também
condiciona a manifestação do justo presente na antiguidade da Grécia, podendo-se dizer,
11
acerca do naturalismo antigo, consoante Billier e Maryioli (2005, p. 40), ser ele uma
“formidável invocação de um modelo natural do qual derivaria a convenção e que acaba de
realizar uma completude perfeita da visão do direito, considerando-o positivo e natural”.
Observa-se que há uma complementaridade, na compreensão grega do direito, entre as
esferas jurídica, ética e política, assim como entre a ordem positiva das leis e sua ordem
objetiva fundada na ideia de natureza (BILLIER & MARYIOLI, 2005).
2.1 A FILOSOFIA DO DIREITO NA GRÉCIA ANTERIOR A PLATÃO
Dividindo-se a história da filosofia do direito na Grécia Antiga até Platão, como o faz
Villey (2009), originam-se três fases distintas: as origens, a crise cética do século V e a reação
de Sócrates.
O primeiro dos períodos, o arcaico, é aquele em que o senso de justiça é expresso
primeiramente sob uma forma teológica, mitológica, como se verifica em Hesíodo, na sua
obra Teogonia, havendo também uma laicidade da noção de justiça, a partir de que se chegou
a uma ordem natural, onde se acha o início da ideia de direito natural (VILLEY, 2009).
A crise do século V a.C refere-se a transformações na vida ateniense que estão
relacionadas a eventos jurídicos e políticos que ocorrem já a partir do século anterior, havendo
mudanças na legislação. A confiança no costume tradicional, o nomos, decai e passam a se
opor a ele tanto a justiça (dike) como a natureza e sua ordem (physis), podendo-se citar a obra
Antígona, de Sófocles, oriunda daquela época, como uma das primeiras afirmações do direito
natural, embora não se tratasse propriamente de uma concepção completa de direito natural.
Além disso, alguns sofistas empreenderam esforço em defesa da lei da natureza em oposição à
lei da polis, numa posição que criticava a ordem social tradicional (VILLEY, 2009).
Por sua vez, a última fase do período pré-platônico, baseada nas ideias do filósofo
Sócrates, representa uma reviravolta substancial na maneira de encarar a realidade jurídica,
pois a influência filosófica socrática foi responsável pelo estabelecimento de uma teoria
jurídica baseada em elementos amparados pela razão humana. Opôs-se ele ao relativismo e ao
empirismo dos sentidos, próprios dos sofistas, para defender um intelectualismo capaz de
apreender os elementos essenciais da realidade e traduzi-los em conceitos, possibilitando a
busca da verdade e o estabelecimento de uma concepção de Estado que se afasta da
arbitrariedade dos homens (MONCADA, 1955).
12
Para Villey (2009, p. 21), “Sócrates parece ter iniciado uma reação a favor do direito e
ter tentado, pela primeira vez, fundar racionalmente a autoridade das regras do direito, em
resposta à crise cética da sofística”.
2.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE PLATÃO E DE ARISTÓTELES
O pensamento de Platão acerca do direito se mostra bastante relacionado com a ética e
com a política, representando um ponto culminante dessa relação. A questão da legitimação
da ordem jurídica e política está necessariamente, em termos platônicos, relacionada a um
exame moral do ponto de vista da justiça (BILLIER & MARYIOLI, 2005). A concepção
platônica do direito não se mostra de uma forma comum, senão apenas entendida a partir do
papel político da realização do justo. Assim, defende Platão que a missão das leis ou do
homem político é a descoberta do justo e que a ordem jurídica requer todo o cuidado do
homem político (VILLEY, 2009).
A finalidade do direito seria, então, o alcance do bem (justiça), devendo a justiça ser
exercida tanto no interior do homem quanto no de uma polis, observando-se que o mesmo
equilíbrio interior responsável pela justiça no indivíduo, ou seja, a subordinação dos instintos
sensuais ao coração, e a deste à razão, constituiria a justiça da polis, que seria a submissão
hierárquica de classes, como a dos trabalhadores aos guerreiros e a destes aos filósofos,
devendo-se ter em conta que essas duas dimensões são indissociáveis em face de que a polis é
composta de matéria humana, daí ser o regime constitucional justo somente aquele no qual os
homens aceitam subordinar seus sentidos à coragem ou à razão (VILLEY, 2009).
Platão desenvolve uma concepção do direito que se confunde com o próprio Estado,
que expressa as condições necessárias para o indivíduo atingir a perfeição moral e realizar o
bem, e em que a virtude máxima seria a justiça, que seria um princípio de equilíbrio entre as
outras virtudes, quais sejam, a sabedoria, a coragem e o domínio dos sentidos (MONCADA,
1955).
O Estado ideal platônico, objeto da obra A República, representa uma fonte
inestimável acerca do estudo do direito e da justiça. Funda-se ele sobre dois atributos, que são
a justiça e a felicidade dos seus cidadãos, estando presente a ideia de perseguição do bem
comum, sendo a justiça uma noção equivalente ao que é necessário ao funcionamento dessa
noção.
13
Pelas palavras do próprio filósofo, temos uma ideia mais clara da finalidade do direito
de concepção platônica, que preza pela busca do bem comum, do bem da comunidade, da
justiça na polis:
Esquece-te novamente, meu amigo, que à lei não importa que uma classe qualquer da cidade passe excepcionalmente bem, mas procura que isso aconteça à totalidade dos cidadãos, harmonizando-os pela persuasão ou pela coação, e fazendo com que partilhem uns com os outros do auxílio que cada um deles possa prestar à comunidade; ao criar homens destes na cidade, a lei não o faz para deixar que cada um se volte para a atividade que lhe aprouver, mas para tirar partido dele para a união da cidade. (PLATÃO, 2000, p. 215).
Observa-se na obra platônica certa exaltação da justiça, enquanto a injustiça é vista
como contrária aos deuses e à própria ordem social e política, porquanto teria esta um poder
tal que, quer se trate de um Estado, de uma nação, de um exército ou qualquer outra entidade,
a incapacitaria de atuar de acordo consigo mesma, em face das dissensões e discordâncias,
além de torná-la inimiga de si mesma e de todos os outros que são justos (PLATÃO, 2000).
A justiça, em Platão, é concebida como um atributo da alma, que se relaciona com a
personalidade e as virtudes do homem, e, assim, diretamente dependente da conduta moral.
Para Jaeger (1995), tal como presente em A República, a alma é o valor moral da
personalidade e a justiça o que mantém a alma em bom estado, sendo ela útil para a vida uma
vez que sua ausência implicaria doença e degeneração.
Segundo Villey (2009), a doutrina platônica do direito baseia-se na descoberta do
justo, só podendo ser considerado direito ou lei o resultado de uma prática da arte, não pelo
método experimental, mas sim através de uma ciência especulativa, a ciência do justo
(dikaion).
Platão, conforme Villey (2009), como consequência da observância da violação das
leis constitucionais pelo poder, dá importância ao conceito de legalidade na sua doutrina
política, sendo levado a construir uma teoria positiva das leis escritas, segundo a qual não
podiam as leis proceder da vontade popular, mas sim do filósofo (sábio).
Conforme se depreende das palavras do próprio filósofo, a natureza da justiça ou da
injustiça está relacionada com o interesse comum materializado na forma de governo
estabelecida, segundo o qual a justiça consistiria no interesse do mais forte (PLATÃO, 2010).
Assim, podemos afirmar que a justiça platônica mantém uma crença na importância do estado
como forma de realização do bem comum necessário à sociedade ou à polis.
Por sua vez, Aristóteles, foi talvez o filósofo mais importante da época, e também o
que deixou a maior contribuição ao desenvolvimento da filosofia do direito, devido à
14
aceitação e importância de suas teorias. Observa-se na doutrina do Estagirita, consoante
Morrison (2006), a crença em que há certa estrutura ontológica na base da natureza humana e
do cosmo, apesar do fato de Aristóteles ter sido o criador de uma abordagem mais empírica,
que se contrapõe ao idealismo platônico. Para Moncada (1955, p. 24), pode-se chamar o
sistema de ideias aristotélico de “naturalismo idealista ou de um idealismo ainda, se
quisermos, mas educado e morigerado por um profundo sentimento experimental e
naturalista”.
Em Aristóteles, tem-se uma nova ideia de natureza, sendo a natureza humana variável
e sujeita a uma indeterminação essencial, deixando-se de lado a noção de universalidade para
defender-se a variabilidade na conformação com a natureza, devendo o direito natural ser
compreendido como algo que acompanha a variabilidade do humano (MORRISON, 2006).
A doutrina aristotélica, segundo Morrison (2006), exige a busca da essência das
coisas, que não significa que tudo seja reflexo de uma ideia ou essência pura, mas sim que
devemos tentar determinar a natureza essencial das coisas da maneira como operam elas nos
processos naturais do mundo, tornando-se a busca da essência de uma coisa a busca da
própria natureza da mesma. Segundo ele, o retrato aristotélico da vida humana está inserido
numa concepção teleológica da natureza humana (Morrison, 2006).
Aristóteles, sem deixar de lado a concepção da justiça como virtude universal,
segundo a qual o justo seria toda conduta conforme a lei moral, preocupa-se bastante com a
justiça particular, cujo objeto é atribuir a cada um o que é seu, o suum cuique tribuere,
prescrevendo a realização de uma partilha adequada, na qual cada indivíduo não recebe nem
mais nem menos do que exigido pela boa medida, observando-se uma teoria geral da virtude
como meio-termo, o qual está nas próprias coisas, verificando-se que o objeto da justiça não
mais se confunde com o conjunto da moral (VILLEY, 2009).
A justiça aristotélica, dessa forma, buscaria uma pretensa igualdade, que pode ser
entendida a partir das funções da justiça, das quais a primeira é zelar pela distribuição dos
bens, das honrarias e dos cargos públicos entre os membros da polis, daí ser esta forma de
igualdade uma proporção. A segunda função da justiça seria o zelo pela retidão nas trocas,
utilizando-se, se fosse o caso, da justiça corretiva, em se observando algum desequilíbrio,
sendo este o caso de uma igualdade aritmética (VILLEY, 2009).
Nas palavras de Villey (2009), Aristóteles dá ênfase à concepção do justo como
equilíbrio realizado entre os diversos cidadãos que se reúnem numa polis, e, assim, concebe o
justo político como o principal tipo do justo.
15
A doutrina aristotélica opera a importante distinção entre direito e moral, o que não se
observa em Platão. Para o Estagirita, era possível a alguém realizar o justo sem ser intima-
mente justo (Villey, 2009). E Villey (2009, p. 46), a respeito dessa diferenciação, assim se
expressa:
A ciência do direito, do dikaion, concerne ao efeito, ao resultado exterior, a essa igualdade nas coisas, nas relações entre cidadãos, a esse medium rei, que caracterizávamos há pouco como sendo o objeto da justiça. Deixaremos para o moralista a busca das intenções. Não que o jurista não seja um auxili-ar da moral; pois ele indica ao moralista o que a intenção deve tentar encon-trar. Mas ele só se ocupa do objeto, não da maneira como o objeto será pro-curado.
No que concerne às fontes jurídicas na doutrina aristotélica, apesar de haver o reco-
nhecimento tanto do justo natural como do justo positivo, e o fato de às vezes termos de nos
contentar apenas com o direito natural, embrionário, a solução jurídica deve ser alcançada
conjuntamente através tanto do estudo da natureza como da determinação precisa do juiz ou
legislador, não havendo oposição entre o justo natural e as leis escritas do Estado (VILLEY,
2009).
Acerca dessa característica, Villey (2009) comenta que o direito aristotélico acaba
procedendo, ao mesmo tempo, tanto da natureza como da convenção, devido ao trabalho do
legislador com base no justo natural, ao qual acrescenta algo de sua vontade própria para fazer
resultar um justo completo.
Outro elemento importante da doutrina jurídica de Aristóteles é a sua teoria da
equidade, que serve como um auxiliar às imperfeições da lei escrita e da má aplicação do
direito. Sobre isso, Villey (2009, p. 65), assim se expressa:
Pois é verdade, embora seja lamentável, que nesta terra o direito é distinto da moral; que não é, como sonhava Platão, o Filósofo quem faz o direito mas, com base em alguns conhecimentos teóricos, o legislador e o juiz; que não se deve esperar demais da teoria, da ciência do direito natural; e que tampouco é desejável, nem, aliás, possível atribuir às leis positivas uma autoridade ab-soluta etc.
Temos que, segundo as palavras do próprio filósofo (ARISTÓTELES, 2002, p. 6), o
termo injusto “se aplica tanto ao homem que transgride a lei como ao homem que toma mais
do que lhe é devido, o parcial”. O parcial a que se refere o Estagirita é aquele que não pratica
a justa distribuição da riqueza, que é objeto da justiça particular, e assim é tido igualmente
injusto como o transgressor da lei. Noutra passagem, o grande filósofo sabiamente expressa a
necessidade de a justiça ser praticada não em relação a si mesmo, mas sim em relação aos
16
outros, pois, para ele, “assim como o pior homem é aquele que pratica o mal com relação a
seus amigos, tal como em relação a si mesmo, o melhor não é aquele que exerce a virtude em
relação a si mesmo, mas sim aquele que a pratica em relação a outros, pois essa é uma tarefa
mais difícil” (ARISTÓTELES, 2002, p. 7).
Mostra-se bastante interessante sua concepção de equidade, consistente numa forma
mais aperfeiçoada de justiça, embora não deixe de ser justiça, e que busca a correção das im-
perfeições da prática do justo com base numa prática especial dessa virtude:
É evidente agora o que é o equitativo, e que ele é justo e é superior a uma espécie de justiça. E daí está claro o que é o homem equitativo: é aquele que por escolha e hábito faz o que é equitativo, que não insiste em seus direitos de forma indevida, mas que se contenta em receber uma parte menor, embo-ra tenha a lei a seu lado. E essa disposição descrita é a Equidade; um tipo es-pecial de Justiça, não uma qualidade inteiramente diferente (ARISTÓTE-LES, 2002, p. 16).
2.3 ESTOICISMO E DIREITO ROMANO
O estoicismo, corrente filosófica que abrange vários pensadores, teve uma importância
fundamental na filosofia do direito grega e romana.
Após Aristóteles e devido ao arrebentamento das fronteiras políticas que conferiam
intensidade à racionalidade grega, ocorreu o desaparecimento da cidade-Estado, o que trouxe
para a filosofia grega o ideal de universalidade, passando-se a falar, após Alexandre Magno,
no homem enquanto animal político não devido às suas relações com a polis, mas sim como
um indivíduo, o que implicava afirmar que o homem era também universal, estendendo-se à
humanidade como espécie geral tudo quanto dissesse respeito ao indivíduo (MORRISON,
2006).
Como nos diz Moncada (1955), o estoicismo é a filosofia oriunda da escola fundada
em Atenas em 312 a.C. por Zenão de Chipre (342-270), tendo durado vários séculos e várias
fases, das quais as duas últimas, de que são representantes da penúltima Panácio (180-110),
Possidônio (130-50) e Cícero (106-42), e da última os conhecidos romanos Sêneca (4-65),
Epicteto (50-120) e Marco Aurélio (121-180), que se compreendem imediatamente antes e
depois do advento do Cristianismo, exerceram maior influência.
Nas palavras elucidativas de Morrison (2006, p. 61):
O estoicismo é uma abordagem da vida; implica o controle das emoções e a aceitação tanto das forças da vida quanto do destino em um cosmo que, quanto ao mais, é caótico e imprevisível. E não se trata, aqui, de uma
17
aceitação irracional. Por sob a aparência caótica da vida, os estoicos argumentavam que o universo era um ordenamento sistemático no qual o homem e o cosmo se comportavam segundo princípios finalísticos específicos. A razão e a lei operavam em toda a natureza.
Segundo Morrison (2006), Cícero, que era orador e estadista romano, harmonizou a
ideia estoica da lei natural universal que dirige a conduta humana com a atitude psicológica
dos céticos, combinava ideias dos estoicos com outras influências gregas e acreditava que a
filosofia e a retórica eram inseparáveis, devendo a persuasão, e não a coerção, ser o
instrumento do poder político.
Para Moncada (1955), a concepção do mundo e das ideias estoicas sobre o direito e o
Estado outra coisa não significa que certo retorno ao idealismo, no sentido de se considerar a
razão como primeiro princípio do mundo e essência da realidade. E a partir da concepção
metafísica do mundo própria dos estoicos, de base racionalista, “o direito positivo é agora
nitidamente contraposto, como nunca até aí, a um outro direito cuja essência radica na própria
ordem do universo, vindo a impregnar-se dum significado ôntico” (MONCADA, 1955, p. 38).
Conforme Billier e Maryioli (2005), a doutrina estoica do direito partirá de uma lei
natural, originada da relação universal existente entre os seres, a partir de que a relação social
se funda sobre uma dádiva natural, a oikeiósis, que significa conhecimento primeiro e quase
intuitivo de pertença à comunidade universal dos seres humanos.
Segundo nos diz Villey (2009), a ciência jurídica romana, em relação aos princípios,
assemelha-se a um produto cultural grego, tendo os romanos realizado empréstimos
filosóficos de diversas escolas ao mesmo tempo, sendo o aristotelismo a principal influência,
incluindo-se também o estoicismo, mas não se deixando de fora o platonismo. Afirma ainda
ele ter a lei natural estoica, a razão universal reinante sobre o mundo e sobre a história, ou a
parte dessa razão que está disseminada na consciência de cada homem, apenas alcance moral,
mas cuja moral afetará bastante o conteúdo do direito romano da época clássica, tendo o
humanismo estoico, o qual enfatiza a dignidade superior de cada indivíduo e mais tarde
inspiraria a moral cristã e a filosofia moral e jurídica moderna, sido responsável por abrandar
a condição do escravo e do peregrino.
Nas palavras de Cícero (2002, p. 36), “Lei é a razão mais elevada, implantada na
Natureza, que comanda o que deve ser feito e proíbe o oposto”. Assim, expressa ele o caráter
da lei natural estoica, da qual é maciço representante, observando-se uma forma de direito
natural racional e de alcance moral bem nítido. Para ele, a razão seria um caráter distintivo
entre os homens e os animais, sendo ela provinda de Deus como a primeira posse comum
entre o homem e a divindade. E a razão em sua forma correta seria a Lei (CÍCERO, 2002).
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Cícero (2007), em sua obra De Officiis, expressa uma distinção dos deveres em
perfeitos, a que se podiam chamar de equidade, e medíocres, os quais consistiriam apenas
naqueles deveres aos quais se pode dar uma razão admissível. Em outra parte da obra,
expressa uma necessidade intransigente de justiça, a qual está presente até mesmo na conduta
dos criminosos, que possui algumas regras mínimas:
Enfim, a necessidade de justiça é tão grande e tão universal que os próprios bandidos, vivendo de crimes e roubos, não podem subsistir entre eles sem alguma espécie dela, pois os que roubam em sociedade, se puserem à parte pedaço da presa, ou afastarem à força os outros, não seriam mais tolerados, mesmo em uma matilha de bandidos; e um chefe de piratas, se não respeitar a igualdade na partilha, será infalivelmente assassinado ou abandonado pelos outros (CÍCERO, 2007, p. 95).
Sabe-se que, apesar de na Grécia já estarem contidas concepções e teorias importantes
acerca do direito, ou do justo, foi mais precisamente na seara romana que se considera o
nascimento do direito, pelo menos segundo as características em torno das quais costumamos
delimitar esse conceito, haja vista ter havido somente em Roma a observância de uma série de
outras características jurídicas relacionadas ao âmbito da prática do direito, que o distinguiam
pela maior cientificidade.
Sobre isso, segundo Billier e Maryioli (2005), são traços da singularidade latina no
direito: o fato de os romanos possuírem uma profissão específica a serviço do aparelho teórico
jurídico, exercida pelos jurisconsultos, que eram também teóricos do direito, escrevendo obras
doutrinárias; o fato de os jurisconsultos romanos não terem se limitado à prática judicial, mas
terem desenvolvido frequentemente uma obra científica e pedagógica; o fato de o direito
romano propiciar o surgimento de um paradoxo na relação entre direito natural e direito
positivo, pois os romanos não partem da lei natural para pensar o direito, mas fazem o
contrário, e assim atrelam-se a uma função fundadora, de um direito ordenador da realidade, e
não emancipador.
Importante destacar o fato de o Direito Romano Clássico contemplar uma concepção
distinta de Direito Natural daquela dos gregos. Segundo Reale (1977), a concepção grega
caracterizava-se pela abstração, segundo a qual sua validade antecederia a qualquer processo
histórico, enquanto a concepção romana assumia um significado empírico e prático, não
somente especulativo e teorético, daí sua validade na forma de norma ideal e como uma forma
de ordenação jurídica positiva.
Além disso, comparando as concepções jusnaturalistas da época clássica romana e da
era romana cristã, Reale (1977), afirma que o sentido concreto do Direito Natural, à maneira
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de algo inseparável da experiência jurídica histórica, caracteriza o Direito Romano clássico,
contrastando-se com o conceito de Direito Natural abstrato da época posterior, após o advento
do cristianismo.
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3 DIREITO E JUSTIÇA NA IDADE MÉDIA
3.1 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO
A obra filosófica de Santo Agostinho, maniqueu convertido ao cristianismo, que se
tornou bispo de Hipona, na África, encaixa-se no contexto de grandes acontecimentos
históricos que transformaram profundamente a vida no período medieval nascente,
principalmente as invasões bárbaras, e, de certa forma, está relacionada a tais acontecimentos.
Segundo Moncada (1955), a obra agostiniana Civitas Dei (413-426), representou uma
tentativa de elucidar o problema de em que medida o Cristianismo foi responsável pela ruína
do Estado romano e do mundo antigo, que se tornou acentuado depois da devastação de Roma
por Alarico em 410. E continua ele (MONCADA, 1955), afirmando ser a obra uma apologia
ao Cristianismo baseada numa visão histórica e filosófica, elaborada através de elementos do
Antigo Testamento, do Novo Testamento, de ideias platônicas, neoplatônicas e estoicas,
sendo estas últimas sobretudo retiradas de Cícero e Sêneca. Nas palavras dele (MONCADA,
1955, p. 58):
Retomando a ideia pauliana acerca da Igreja, como de uma comunidade dos santos, embora num plano mais histórico, não só como instituto de salvação, mas como organização da catolicidade do Espírito, Agostinho começa por considerar a história da humanidade como o teatro onde se desenrola o dra-ma de uma luta transcendente entre duas forças ou grandezas de essência metafísica: a civitas dei e a civitas terrena ou diaboli.
Ainda segundo o mestre lusitano (MONCADA, 1955), o direito em Santo Agostinho
está totalmente dominado pelo teísmo cristão, passando a lei reguladora das relações entre os
homens, de uma lei da natureza, para uma lei moral e divina, além de o amor a Deus ser
considerado a primeira norma da justiça, e assim o princípio da justiça não residiria na
natureza das coisas nem na razão, nem na ideia platônica, mas sim apenas na vontade divina.
Sobre isso, nas exatas palavras do ilustre mestre:
Este é o conceito de direito natural que preside a todo mundo de Agostinho: o velho conceito helênico de Aristóteles e dos Estoicos transformado pelo pensamento cristão e no qual se torna agora evidente uma forte deslocação de acento tônico dos seus elementos lógico-racionais para os seus elementos ético-voluntários (MONCADA, 1955, p. 62-63).
21
Segundo Villey (2009, p. 77), Santo Agostinho “elabora uma doutrina do
conhecimento pela iluminação divina, de espírito platônico, mas cristianizado”. Sobre isso,
Morrison (2006, p. 68), assim se expressa:
O caminho do conhecimento (puro) não consiste em explorar o cosmo como se fôssemos nos tornar seu soberano, mas sim em indagarmo-nos a nós próprios com humildade, como seres limitados e dependentes, e assim ascender ao conhecimento daquilo que é mais puro e verdadeiro, isto é, Deus.
E Morrison (2006) complementa esse entendimento acerca desse aspecto da filosofia
agostiniana, dizendo que a razão deve estar alinhada à revelação e, munida de um instrumen-
tal lógico, argumentar tendo como base a segurança das entidades a nós reveladas, fundindo-
se a filosofia com a teologia.
Agostinho, apesar de prezar enormemente pela supremacia da ordem justa, oriunda
dos preceitos humanos iluminados pela ordem divina, revelada, segundo Villey (2009), aceita
a obediência às leis da ordem temporal ou profanas em alguns casos, na falta de uma justiça
plena por que se possa esperar, em sendo a justiça algo ideal e exigente para ele, uma vez pos-
suir a instituição algum valor e ser uma espécie de embrião da justiça por sua utilidade à or-
dem temporal. Para Villey (2009), esse aspecto da doutrina jurídica agostiniana se afasta um
pouco das doutrinas clássicas do direito natural, remetendo-nos ao positivismo jurídico.
Interessante afirmação a feita por Villey (2009) de que, apesar de se constatar, na obra
de Santo Agostinho, bases metafísicas de uma doutrina do direito natural, pois ele considera a
imposição de uma ordem sobre toda a natureza por Deus, sendo a justiça a obediência a essa
ordem da natureza, e, mesmo tendo reconhecido que os pagãos tivessem descoberto de fato,
exclusivamente através de suas luzes naturais, algumas regras de justiça, falta algo substanci-
al, haja vista o fato de inexistirem bases psicológicas suficientes ao reconhecimento de uma
doutrina do direito natural agostiniana, observando-se que a referência feita à lei natural, por
ele, apenas enfatiza a própria insuficiência dela.
3.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
Tomás de Aquino (1226-1274), maior expoente da corrente filosófica medieval esco-
lástica, foi responsável por uma grande contribuição para a filosofia jurídica posterior, desta-
cando-se como o principal filósofo da Baixa Idade Média, período que vai, aproximadamente,
dos séculos XI a XV da era cristã.
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Segundo Moncada (1955), a diferente atitude ou posição tomada por Tomás de Aqui-
no ante o dogma do pecado original e seus efeitos sobre a natureza criada nas suas relações
com a graça divina é o ponto de partida e a concepção fundamental que dominam, de longe,
todos os horizontes do pensamento do Aquinate em matéria de filosofia jurídica e política,
pois, enquanto que, em Agostinho, o pecado original corrompera completamente a natureza
humana, à maneira de um verdadeiro delictum naturae, para Tomás os efeitos dele foram me-
nos destrutivos, tendo a graça apenas o papel de complementar a natureza, haja vista o fato de
após a mácula original ainda restar algo de bom no homem, que seria uma espécie de virtude
original, capaz de permitir a ele, com a ajuda da graça, participar mais ativamente na sua pró-
pria salvação.
Interessante notarmos também a comparação entre o pensamento agostiniano e tomista
no tocante às relações entre vontade e inteligência, ou entre o bem e o justo, na compreensão
da essência divina, chegando Moncada (1955) a afirmar que, enquanto em Agostinho Deus é
essencialmente vontade, e não sendo o bem outra coisa que a simples manifestação de sua
vontade indeterminista, em Tomás de Aquino sobressai uma orientação contrária, segundo a
qual Deus seria, antes de tudo, um ser de natureza intelectual e o bem seria essencialmente a
manifestação do seu querer em harmonia com essa natureza.
Ainda segundo o mestre lusitano (MONCADA, 1955), Tomás parte da ideia de Logos
para formar a ideia de direito, pois sendo o Logos a inteligência divina, essência da divindade
criadora do mundo, à semelhança do que foi o homem criado, é, ao mesmo tempo, princípio
ordenador do mundo, como Lex aeterna, e princípio regulador e normativo da atividade hu-
mana, como Lex naturalis, observando-se que, para ele, à semelhança dos estoicos, a lei natu-
ral nada mais é do que uma presença da lei eterna na criatura racional.
Segundo Morrison (2006), Tomás de Aquino acreditava que os erros em nossos pontos
de partida básicos podiam afetar radicalmente nossa vida, levando-nos a relações falsas com
Deus. E afirma ainda que a teologia inicia-se com as verdades da ordem divina, revelada, en-
quanto a filosofia começaria pelo mundo do modo como ele foi revelado aos nossos sentidos,
que seria analisado a fim de se descobrir seus princípios. Segundo ele:
A filosofia preocupa-se com os objetos imediatos da experiência dos sentidos e eleva seu raciocínio a concepções mais gerais; em última instância, a mente chega à prova da existência de Deus. Inversamente, a teologia começa com a fé em Deus e passa a interpretar a vida de todas as coisas como derivadas de sua existência enquanto criaturas de Deus (MORRISON, 2006, p. 77).
23
Ainda de acordo com Morrison (2006), a filosofia, em Tomás, seria capaz de propor-
cionar o raciocínio que concluiria pela existência de Deus de cinco formas: pelas provas do
movimento, da causa eficiente, do necessário, por oposição ao possível, a dos graus de perfei-
ção e a da ordem do universo.
Digno de menção é a concepção tomista de direito natural, que se diferencia da agosti-
niana, já que aquela se assenta sobre uma visão finalística da natureza humana, segundo a
qual os homens estariam naturalmente voltados para determinados fins, querendo-se dizer que
a felicidade reside em atingir o fim ou o objetivo do homem, sendo o pecado a capacidade de
deixar de agir de acordo com esses fins, observando-se que, enquanto Aristóteles propunha
uma moral naturalista segundo a qual os homens podiam alcançar a virtude e a felicidade me-
diante a satisfação de seus fins naturais, Santo Tomás fez acrescentar o elemento cristão do
fim sobrenatural do homem (MORRISON, 2006).
Observa-se que, na filosofia jurídica e moral tomista, a liberdade ocupa um papel pri-
mordial, haja vista sua ausência descaracterizar um ato como moral, devido à inexistência de
possibilidade de o homem ter usado sua vontade livre. Acerca desse elemento, Morrison
(2006) diz que nenhuma moralidade seria possível caso o determinismo físico dominasse o
homem em sua liberdade de ação e, em sendo a liberdade exigência irremediável para que
qualquer ato seja considerado moral, só seria humano um ato dotado de tal atributo, que im-
plica o conhecimento de alternativas e a capacidade de escolher entre elas, conforme Santo
Tomás, para quem a virtude ou o bem consistiria em realizar as escolhas certas, sendo um
meio-termo entre os extremos.
Sobre o papel da razão em Tomás de Aquino, temos que, segundo Finnis (2007), a
razão prática, capacidade de alguém pensar sobre a maneira como as coisas são, pode ser a-
largada, fazendo julgamentos verdadeiros e plausíveis acerca do que fazer, observando-se um
pensamento prático, que pretende resultar em escolha e ação. E continua Finnis (2007) afir-
mando que, para Tomás de Aquino, nem todas as nossas atividades são livremente escolhidas,
existindo, assim, atos realizados pela pessoa humana que não seriam, na verdade, atos huma-
nos de acordo com o sentido central (livremente escolhidos), mas sim espontâneos e não deli-
berados, além do que os atos escolhidos não são necessariamente antecedidos por alguma
escolha, haja vista a possibilidade de os atos consistirem em realizações de escolhas feitas no
passado, isso porque alguém pode estar numa situação em que só haja a escolha já realizada
como fator determinante desta.
Assim, tem-se que:
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Essa concepção de escolha livre (liberum arbitrium ou libera electio) é muito mais forte do que a de Aristóteles, cujas concepções de escolha livre são livres apenas dos fatores determinantes externos. A concepção livre de escolha de Tomás de Aquino é também incompatível com as noções modernas de determinismo leve, ou com a compatibilidade presumida da responsabilidade humana (e da sensatez [autocompreensão] de que alguém está escolhendo livremente) e a determinação de todos os eventos por leis (por exemplo, físicas) da natureza. Tomás de Aquino compreende a liberdade de nossas escolhas livres como sendo uma realidade tão primária, metafísica e conceitualmente irredutível, como a realidade das leis físicas. Ele coloca todas as suas reflexões sobre moralidade e razão prática sob o título de 'o domínio sobre os próprios atos' (FINNIS, 2007, p. 30-31).
Nesse contexto, temos que fatores como a preservação da vida, a propagação da espé-
cie, a formação de uma sociedade composta por leis humanas pertenceriam ao estado natural
humano, fundando-se a lei moral sobre a capacidade da razão em reconhecer o caminho ade-
quado para sua conduta a partir dos ditames da natureza humana, ou seja, após se levar em
consideração as tendências humanas naturais com relação a específicas formas de comporta-
mento, e, assim, uma vez que a natureza do homem possui algumas propriedades fixas, as
normas comportamentais que se correlacionam a essas propriedades correspondem ao direito
natural (MORRISON, 2006).
Apesar de o direito natural tomista ser concebido a partir da observação de proprieda-
des fixas de comportamento segundo a natureza humana, temos que, conforme observa Villey
(2009, p. 149), a concepção do direito natural em Tomás de Aquino é “mutável, porque a nos-
sa própria natureza é mutável”.
Temos que, na doutrina tomista do direito, observa-se a influência tanto do agostinis-
mo como do aristotelismo e do averroísmo, havendo uma valorização das fontes jurídicas
profanas na sua concepção de direito, conciliando-se fé e razão a partir de elementos caracte-
risticamente tomistas. Conforme informa Verdi (2005), a partir da filosofia de Aristóteles,
surgiu uma escola conhecida pelo nome de averroístas e que consideravam a filosofia inde-
pendente da revelação divina, que serviu de base à revolução cultural ocorrida no século XIII,
que teve como principal responsável Tomás de Aquino, tendo este feito uma revisão das idei-
as agostinianas e introduzido o pensamento aristotélico, elaborando uma síntese tanto do a-
gostinismo como do averroísmo da qual resultou justamente o tomismo.
E, conforme observa Villey (2009), mostra-se inovadora a doutrina tomista retirada do
Tratado sobre as Leis, haja vista estar presente ali um grande espaço concedido às fontes pro-
fanas de conhecimento, observando-se que a lei natural existe pela natureza e é acessível tanto
aos pagãos como aos fiéis cristãos por sua própria definição, tendo Tomás destacado as fontes
profanas da moral.
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Diz ainda Villey (2009) que a filosofia tomista do direito conduziu a uma reconquista
da autonomia do Estado perante a Igreja, reavivando uma teoria profana da soberania, defen-
dendo também o Aquinate a obediência ao rei em vez de ao papa, em se tratando de matéria
temporal.
Conforme nos descreve Finnis (2007), Tomás de Aquino se vale da antiga concepção
romana de justiça, o suum cuique tribuere, além da divisão aristotélica da justiça em justiça
distributiva, consistente no bom julgamento acerca da divisão e distribuição dos benefícios e
ônus totais ou de se estabelecer uma maneira que fosse justa, por estar dirigida segundo crité-
rios apropriados, e na sua concepção de justiça comutativa, que ultrapassa a noção aristotélica
de justiça corretiva, referindo-se a quaisquer outros tipos de transações entre pessoas.
Elemento importante no estudo da doutrina jusfilosófica tomista é a sua noção de lei
que, como nos diz Finnis (2007), reserva papel proeminente para a lei eterna através de que
Deus governa até mesmo as criaturas inanimadas e também para a participação da lei moral
natural nessa lei eterna; entretanto, afirma que, tratando da lei fora dos limites textuais que ela
representa, enfatiza que a característica mais essencial dela é algo que transpassa as leis natu-
rais, transformando-se em apelo à mente, à escolha, à força moral (virtus) e ao amor de quem
a ela se submete.
Observa-se que, como nos assinala Villey (2009), para Tomás de Aquino, assim como
para Aristóteles, além do estudo do direito natural, exige-se o complemento das leis positivas,
que ocupam lugar de destaque na doutrina jurídica tomista, não sendo estas mais do que um
prolongamento do estudo do justo natural, devendo ser justas, isto é, serem editadas para o
bem comum tendo em vista o fim natural do povo para o qual foi elaborada e estarem adapta-
das às circunstâncias de tempo e lugar, por deverem ser expressão de um justo natural mutá-
vel.
Nas palavras do próprio Aquinate, temos uma noção de direito como objeto da justiça,
pois como se dá o nome de justo, que caracteriza retidão que é conveniente à justiça, ao que a
justiça realiza, sem se levar em conta a forma de proceder de quem assim agiu, em relação às
outras virtudes ocorre o contrário, sendo a retidão determinada apenas pela maneira como se
procede, daí, portanto, o objeto da justiça ser determinado em si mesmo e chamado justo, sen-
do precisamente o direito, o qual é manifestamente o objeto da justiça (AQUINO, 2005).
Noutra passagem, temos explicitamente a definição e papel do direito positivo em
Tomás, que deve estar em conformidade com o direito natural:
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[…] deve-se dizer que a vontade humana, por uma convenção comum, pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham à justiça natural. Tal é o lugar do direito positivo. Daí, o que diz o Filósofo: 'O justo legal é aquilo que, antes, não importava ser de um ou de outro modo; porém, importa, sim, depois de estabelecido'. Mas, se algo, de si mesmo, se opõe ao direito natural não se pode tornar justo por disposição da vontade humana (AQUINO, 2005, p. 49).
3.3 A DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA TOMISTA, O NOMINALISMO E O VOLUN-
TARISMO NA FILOSOFIA DO DIREITO NO FINAL DO PERÍODO MEDIEVAL
A par da importância e de certo sucesso da doutrina tomista, vale destacar o fato de
que a escolástica de influência tomista será bastante confrontada pela escolástica franciscana
de fins da Baixa Idade Média, entre os séculos XIV e XV, observando-se a introdução de no-
vas influências filosóficas na doutrina jurídica concebida naquele tempo, podendo-se destacar
o nominalismo e o voluntarismo como elementos que irão permear a filosofia jurídica, prea-
nunciando o ambiente filosófico que lhe seguirá até culminar com as doutrinas modernas a-
cerca do direito. Podem-se destacar, nesse período, nomes como Marsílio de Pádua, João
Duns Escoto e Guilherme de Ockham como figuras ímpares na realização de uma reviravolta
nos caminhos do direito, sendo eles responsáveis por contemplar elementos que marcarão a
modernidade jurídica e todo o direito até nossos dias.
Acerca disso, Moncada (1955) afirma serem os séculos XIV e XV um período de de-
cadência da escolástica, em que os muitos momentos inconciliáveis objeto da síntese concili-
adora tomista encontram-se livres e dão origem a várias tendências cada vez mais indepen-
dentes, das quais o esforço faz sentir a chegada do mundo moderno. Ainda, segundo ele, um
fator da maior importância para se compreender a transição da Escolástica para o Renasci-
mento é a total emancipação do Estado, no contexto da disputa entre este e a Igreja, podendo-
se tomar este fato como consequência tanto do fortalecimento das nacionalidades europeias
como do crescimento das tendências individualistas e nominalistas na Escolástica decadente
(MONCADA, 1955).
Marsílio de Pádua é, nesse contexto, o mais destacado pensador político, cuja obra
Defensor Pacis (132-?) significa um marco de individualismo e autonomia da esfera política
na Teoria do Estado na Idade Média, o que se observa como forte oposição ao pensamento
tomista, o que coincide com o fim da Escolástica (MONCADA, 1955).
Nas palavras do mestre lusitano, temos que: “Em Marsílio de Pádua, como em Occam
o indivíduo querente é de, de fato, a única substância de toda a vida social e histórica; esta e o
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Estado são mero produto dos interesses individuais, combinados dentro do conceito de bonum
commune” (MONCADA, 1955, p. 91).
E Billier e Maryioli (2005, p. 129), acerca de Marsílio de Pádua, afirmam que ele
“projeta uma doutrina política que apresenta a demonstração de que o poder político é uma
emanação que, por isso, pode reivindicar a soberania”.
Agora, passemos ao exame dos autores mais importantes para a nova corrente filosófi-
ca marcante, que é a escolástica franciscana, cuja obra, segundo Villey (2009), representou
mais uma reação do que uma inovação, pois promoveu uma retomada do agostinismo.
Podendo-se classificar o tomismo dentro de uma corrente dita “humanista” da escolás-
tica medieval, haja vista a abertura da filosofia de Tomás de Aquino ao profano, pode-se en-
quadrar Duns Escoto e todos os filósofos franciscanos referentes dentro de uma corrente a que
se pode chamar “integrista”, decisivamente contrária à literatura pagã (VILLEY, 2009).
Especificamente acerca das características da transformação escolástica operada por
Escoto e Ockham, Billier e Maryioli (2005), afirmam que a evolução do pensamento escolás-
tico afastou-se do modelo tomista, em que a razão prevalece sobre a vontade, ou segundo o
qual razão e vontade consistem numa unidade, à semelhança da Razão divina, que não pode-
ria querer em contrariedade à sua Vontade, operando-se uma mudança teológica pelas mãos
de Escoto e Ockham cuja pauta é o estatuto da vontade.
Como nos diz Villey (2009), em confronto com a visão tomista, o pensamento escotis-
ta vê-se marcado por uma desconfiança na ideia de ordem natural, isso porque tal noção aca-
baria por diminuir o poder divino, uma vez que este, assim, teria sempre que agir segundo a
ordem, o que equivaleria a subjugar Deus a uma natureza imaginada em pé de igualdade com
a razão humana, fruto da soberba intelectual. E continua Villey (2009), afirmando terem a fé e
a meditação inspirado, em Duns Escoto, a ideia de um Deus onipotente e absolutamente livre
de qualquer ordem preconcebida.
Assim, pode-se afirmar, como Villey (2009, p. 204-205):
Em definitivo, todo conteúdo determinado da moral fica pendente da insondável vontade divina, da sua vontade positiva. Assim, a moral natural da Antiguidade, que o ramo humanista da escolástica medieval se empenha em pôr novamente em circulação, perde qualquer certeza; ante a onipotência de Deus, senhor absoluto da natureza e que pode modificar totalmente a sua ordem, desmorona a solidez da ordem natural.
Segundo Billier e Maryioli (2005), Escoto afirma que a liberdade humana importa na
independência de sua vontade em relação à razão, passando a ser a vontade que governa a
razão e não o contrário, sendo apenas em Deus o momento em que a vontade coincidiria com
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a razão, pois a liberdade absoluta de Deus é incapaz do mal, mas, ao contrário, a liberdade do
homem é capaz de errar. E, assim, afirmam Billier e Maryioli (2005), o mandamento se torna
central em relação à lei em Escoto, sendo importante apenas o amor a Deus, que seria o único
princípio de direito natural existente.
Dentro desse contexto, Billier e Maryioli (2005, p. 127) observam que:
A inversão efetuada pelo 'voluntarismo' scotista é decisiva: o direito é identificável em última instância com a vontade absoluta de Deus, que não é a natureza das coisas e que só é sujeita ao seu próprio arbítrio. Nessa perspectiva, há em Scot um ponto de vista muito radical: a lei suprema é sem lei, uma vez que ela não é outra coisa senão a pura e simples liberdade da vontade divina. Nesse sentido, a 'lei eterna' é suprimida por Scot.
Outra importante característica trazida pela doutrina de Escoto, segundo Villey (2009),
foi o fato de ele ter substituído a visão tomista, originada a partir de Platão e Aristóteles, con-
sistente num mundo de generalidades, de gêneros, de espécies, de naturezas, de causas for-
mais e finais, por um mundo que acentua o caráter das pessoas, de indivíduos, tendo sido a fé
responsável por essa nova visão, devido ao fato de a Sagrada Escritura ser personalista.
E Villey (2009) apresenta alguns pontos incisivos nos quais a doutrina escotista se
distingue expressamente da tomista, pois, segundo Escoto: é possível o conhecimento imedia-
to do singular, ao passo que, em Tomás, 'a ciência é geral', sendo os gêneros e as espécies o
objeto predileto do conhecimento; há uma forma particular de cada indivíduo, e em Tomás, ao
contrário, apenas a matéria seria suscetível de individuação e a “forma” seria comum; e, es-
sencialmente, a vontade possuiria primazia em relação à inteligência, e não o contrário, como
professava São Tomás.
Duns Escoto torna-se o responsável por uma verdadeira reviravolta teórica no direito,
isso porque se depreende de sua doutrina um acentuado caráter de positivismo, não importan-
do que seja a vontade divina positivada nos textos sagrados, haja vista estes representarem
preceitos sociais e, até jurídicos, relevantes. Segundo ele, como nos diz Villey (2009), a or-
dem oriunda da vontade divina, instituída a partir da Sagrada Escritura, com base no texto
positivo divino terá um lugar privilegiado nas regras de direito, contudo, as leis positivas hu-
manas também são detentoras de importante autonomia, como consequência da valorização
das liberdades do homem e do fato de a vontade humana estar livre de quaisquer obstáculos
que poderiam ser impostos pela razão.
Sobre o papel desempenhado pela doutrina escotista no tocante à filosofia do direito,
levando-se em conta seus desdobramentos históricos, Villey (2009, p. 210) afirma que “pode-
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ríamos, portanto, ter a tentação de datar a grande guinada, que substitui a antiga doutrina do
direito natural clássico pelo positivismo jurídico, no próprio ensino de Duns Escoto”.
Após Escoto, o pensamento de Guilherme de Ockham transpõe a essência da lei para a
decisão voluntária, quer seja a de Deus ou a do imperador, contudo, o que originalmente mar-
ca em sua doutrina é a extensão do alcance da fonte voluntarista da lei, pois o próprio sujeito,
o indivíduo, transforma-se em legislador, o que representa um elemento não presente na dou-
trina escotista (BILLIER & MARYIOLI, 2005). Assim, conforme nos dizem Billier e Mar-
yioli (2005, p. 128), “contra a tradição augustiniana, e bem além das proposições escotistas,
Ockham vai exaltar a vontade humana”.
Guilherme de Ockham, grande representante da escolástica franciscana medieval, foi
responsável por uma nova influência filosófica em fins do período medieval, consistente na
defesa e promoção do nominalismo. Sua importância, nesse aspecto, situa-se exatamente na
questão dos universais, acerca do que se observa o eterno debate entre realistas e nominalis-
tas, aqueles defendendo a existência concreta dos universais, que são as noções que expres-
sam ideias gerais, como homem etc., estes negando a existência real desses entes e admitindo
apenas sua existência fora do mundo das ideias.
Para Villey (2009), a querela dos universais é uma questão relevante para o entendi-
mento das diferenças e da passagem do direito antigo para o direito moderno, já que nela está
presente a linha que divide o direito natural clássico, que não se concebe fora do realismo
herdado de Aristóteles e de Tomás de Aquino, do positivismo jurídico, encontrando-se nela a
solução fundamental da filosofia do direito.
Segundo nos diz Villey (2009), Ockham, levando ao extremo o ensinamento aristotéli-
co que ia de encontro a Platão de desprezar o geral em benefício do singular, interpreta como
existentes apenas os indivíduos, que são reais e só eles constituem substâncias, e afirma não
possuírem existência todas as noções gerais, como o homem, o vegetal ou o mineral. E, des-
crevendo a atitude filosófica ockhamiana, acrescenta:
Não há natureza das coisas, natureza do homem, formas comuns, causas fi-nais. Só possuem existência real esses indivíduos singulares, de que, de resto (tese franciscana já encontrada em Duns Escoto) nos é dado um reconheci-mento imediato e intuitivo, e que designamos por meio desses signos que são os nomes próprios (VILLEY, 2009, p. 230).
A metafísica ockhamiana traz para o universo conceitual, o mundo da linguagem e do
pensamento, o que era próprio, na doutrina tomista, ao mundo real, do ser, quais sejam, os
gêneros, as formas comuns e as relações, transformando-os em meros conceitos, instrumentos
30
ou etapas do percurso de uma realidade inteiramente singular, apenas um início de conheci-
mento obscuro dos indivíduos, sendo universais e relações não mais que instrumentos do pen-
samento, não havendo qualquer coisa acima dos indivíduos na realidade, inexistindo, portan-
to, universais, estruturas ou direito natural (VILLEY, 2009).
Villey (2009), acerca das consequências do nominalismo ockhamiano quanto à relação
entre fé e razão, descreve que, devido a Ockham, há um abismo entre filosofia e fé, pois, haja
vista o fato de a filosofia natural e a razão terem por domínio a criação, considera-se apenas a
fé como meio de acesso ao conhecimento de Deus. Assim, observa-se que essa característica
contraria enormemente a doutrina tomista, segundo a qual a razão seria um meio de se aceder
ao conhecimento das realidades divinas e de se obter provas de sua existência.
Desta vez, Villey (2009), tratando especificamente acerca da influência diretamente
exercida pela filosofia de Ockham sobre o direito, diz que o nominalismo invadiu o direito,
significando o abandono do direito natural, quer dizer, do método utilizado na formação da
ciência jurídica romana e que a escola humanista tinha restaurado na forma do direito erudito
medieval, o qual se utilizava da observação da natureza para a descoberta das soluções jurídi-
cas. E, no tocante às normas jurídicas sob influência nominalista, Villey (2009, p. 233) afirma
“não podendo mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será
preciso buscar sua origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivis-
mo jurídico é filho do nominalismo”.
31
4. O DIREITO MODERNO
O conteúdo jurídico próprio da Modernidade é fruto de um novo ambiente cultural e
filosófico que, em geral, formou-se a partir da decadência do pensamento medieval, no alvo-
recer do Renascimento europeu, movimento que introduziu uma revolução cultural no início
da Idade Moderna e influenciou profundamente toda a vida que lhe seguiu, incluindo o surgi-
mento de aspectos marcantes para o direito, o que se observa pela indelével presença de al-
guns elementos importantes que se tornaram um eterno objeto da filosofia jurídica.
A Idade Moderna, sabe-se muito bem, foi uma época de grandes transformações para a
vida humana e para o direito, tendo-se presenciado nesse tempo o desenrolar de eventos sin-
gulares para a história, na qual o mundo se transformou de maneira definitiva, marcando uma
nova fase do percurso da verdade e conhecimento na esfera da ética e do direito, podendo-se
citar a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica como acontecimentos que deram
grandes frutos para o entendimento e a reflexão da realidade jurídica.
4.1 LAICIDADE, INDIVIDUALISMO E HUMANISMO
Um primeiro elemento importante, marcante para o direito moderno, será a laicidade.
Entenda-se essa característica como um aspecto segundo o qual o direito não mais considera a
ordem divina ou os preceitos religiosos como propriedades necessárias do seu conteúdo, como
se observava durante o período medieval, mas, ao contrário, considera ser de maior importân-
cia as fontes laicas que, na realidade social, condicionam a realidade jurídica, influenciando a
produção das normas, e, assim, fazendo repercutir esse aspecto diretamente no conteúdo do
direito nascente. Para Villey (2009), a fé nos textos sagrados é inteiramente substituída pela
confiança na razão.
Entretanto, Villey (2009) atenta para o fato de esse caráter laico do direito nos primór-
dios da modernidade não ter significado uma atitude de combate à religiosidade, mas, pelo
contrário, seguiu compatível, por algum tempo, com a mais autêntica teologia cristã, obser-
vando-se que os maiores filósofos do direito do século XVII, Suárez Grócio, Locke, Pufen-
dorf e Espinosa, permanecem teólogos, e possuem a preocupação de compatibilizar sua dou-
trina jurídica com a religião cristã, inclusive fundamentam suas posições com muitas citações
retiradas da Sagrada Escritura.
Acerca do individualismo, podemos dizer que ele é o elemento segundo o qual o indi-
víduo se torna um fator primordial nas considerações acerca do conteúdo do direito, obser-
32
vando-se nele a valorização dos interesses individuais, ressaltando-se os atributos que estão
relacionados aos diversos aspectos da realidade individual das pessoas. Mais fortemente a
partir da Idade Moderna é que o individualismo assume uma importância acentuada na histó-
ria, devido ao seu favorecimento propiciado pelo novo clima cultural de liberdade de que pô-
de se servir, o que trouxe grandes consequências jurídicas.
Segundo Villey (2009), o individualismo é algo que espraiou largamente por todo o
mundo moderno, isso devido à filosofia do conhecimento de inspiração nominalista, que foi
largamente difundida, o que ocorreu também na metafísica, a qual somente reconhecia a subs-
tância individual.
E, conforme Villey (2009), existem algumas teses jurídicas modernas marcadas por
fortes traços individualistas, quais sejam elas: a existência de direitos naturais do indivíduo; a
construção artificial do Estado a partir do contrato social, com base no interesse, visando a
utilidade dos indivíduos; o positivismo jurídico, como corolário que é das teses do estado de
natureza anárquico e do contrato social, uma vez que, em sendo o indivíduo livre no estado de
natureza e ante o fato de a própria natureza não regular as relações sociais, só restaria o direito
disposto pelo estado; e, finalmente, a noção de direito subjetivo.
Sobre o humanismo, podemos defini-lo como um movimento que faz ressurgir ou res-
taurar elementos das culturas profanas antigas, cujas características valorizam o papel do ho-
mem, diferente da centralidade nas realidades sobrenaturais mais própria da época medieval,
que foi justamente a responsável pelo esquecimento de muitos dos autores resgatados no hu-
manismo, como se observa pelo Renascimento do século XVI.
Acerca do humanismo, Villey (2009) diz que seu papel foi, mais que o de conceber
doutrinas originais, revalorizar e repensar filosofias antigas desprezadas pela cultura medie-
val, principalmente em relação às filosofias chamadas helenísticas, produtos da Antiguidade
tardios e posteriores ao declínio de Atenas e às grandes conquistas de Alexandre Magno, que
foram transmitidas pelos autores latinos representantes do estoicismo, do ceticismo e do epi-
curismo, destacando que o positivismo moderno descende certamente de filosofias pagãs.
Segundo o mesmo (VILLEY, 2009, p. 438), “o interesse dos círculos humanistas parece, an-
tes, voltado para os problemas da vida privada, para as questões de moral [...]”. E, ainda, a-
cerca da importância desse movimento para o direito moderno, diz: “do humanismo provém
sobretudo a moral e a psicologia” (VILLEY, 2009, p. 439).
4.2 A REFORMA PROTESTANTE, A CONTRARREFORMA E A ESCOLÁSTICA
ESPANHOLA
33
A filosofia do direito no início da Era Moderna vê-se bastante influenciada pelos mo-
vimentos da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica, dos quais resultaram conse-
quências importantes para a formação do direito moderno, observando-se uma nova concep-
ção de religiosidade, desta vez purificada das extravagâncias medievais, e adequada aos tem-
pos modernos. As disputas religiosas surgidas devido ao processo de cisma eclesiástico repre-
sentaram um fator importante na transformação do pensamento moderno incipiente a fim de
apontar um horizonte de esperança para o homem ante o novo cenário político e jurídico.
Para Moncada (1955), o movimento da Reforma constituiu originalmente, antes que
qualquer coisa, uma reação cristã contra o paganismo fruto do Renascimento, que também se
apoderara da Igreja Católica, tendo nascido primeiramente, apesar de se afirmar o contrário, a
partir de razões ligadas à religião.
Apesar de ter se iniciado apenas na busca de uma nova forma de religiosidade, como
muitos humanistas, e aliada a algumas tendências quinhentistas, desejando maiores universa-
lismo e interioridade no cristianismo, a orientação passou, em pouco tempo, a adquirir um
caráter de ruptura em relação ao humanismo, haja vista o fato de Lutero ter optado por se va-
ler de uma doutrina teológica profundamente avessa à essência do humanismo e de todo o
espírito dos séculos XV e XVI, que foi a doutrina agostiniana da graça e do pecado original
(MONCADA, 1955).
Segundo Moncada (1955), tal doutrina era de um pessimismo mais exagerado do que o
presente em Agostinho de Hipona, trazendo a natureza humana como essencialmente má e
corrupta, sendo o pecado a condição natural do homem, negligenciando qualquer mérito e
liberdade no homem que fossem independentes da fé e da graça.
Lutero professava uma doutrina que, de certa forma, se mostra avessa ao direito, uma
vez que leva ao descrédito das fontes jurídicas, haja vista o fato de sua opção teológica tê-la
tornado muito distante de uma busca do direito pelo direito, mas unicamente prescreve uma
forma interior de caminho cristão que tem seu sucesso independente da obediência às leis
humanas. Assim, Villey (2009, p. 312) afirma que “Lutero professa, por outro lado, seguindo
São Paulo, que o cristão está isento da obediência a qualquer lei – a não ser que se trate da ‘lei
de Cristo’, mas esta é informulada, informulável, completamente interior, subjetiva, e seu
único conteúdo é a fé”.
E Lutero demonstra ainda sua posição teológica extremada através de sua noção de
direito natural, talvez herança da doutrina agostiniana. Sobre isso, afirma Villey (2009) ser o
direito natural luterano a lei divina revelada responsável por substituir, vantajosamente, tanto
34
para judeus como para cristãos, a lei natural pagã, ditada por Deus apenas primitivamente a
cada consciência, com conteúdo idêntico, mas acerca da qual nossas consciências corrompi-
das não tem ainda um conhecimento claro.
Sabe-se, assim, que a noção de direito natural em Lutero está eivada do caráter sobre-
natural da revelação, e que não dita prescrições fundamentais acerca do conteúdo das leis hu-
manas, apenas prescreve-lhe a obediência em função da prerrogativa divina que é reservada à
autoridade legislativa ou ao príncipe. Acerca desse aspecto, Villey (2009) afirma que, em Lu-
tero, a autoridade da lei é incondicional, haja vista não estar mais submetida, como em Tomás
de Aquino, a certos limites, cuja doutrina prevê o controle judicial e doutrinário da justiça de
seu conteúdo.
Para Villey (2009, p. 333), “Lutero plantou na alma alemã o germe de um tipo original
de positivismo jurídico, fundado na fé religiosa, extremo em suas consequências e que se re-
sume ao culto da autoridade e à apologia da obediência e da disciplina”.
Sobre Calvino, importante reformador protestante, podemos considerá-lo, como o faz
Villey (2009), seguidor de Lutero em termos doutrinários, mas havendo diferenças entre eles,
observando-se que o primeiro é posterior a este último, além de ter sofrido influências dife-
rentes das de Lutero, destacando-se o fato de Calvino ter recebido uma forte formação, tendo-
se impregnado de nominalismo e estado envolvido ativamente no movimento humanista.
Conforme nos diz Villey (2009), Calvino, assim como Lutero, espera submeter a con-
duta cristã ao corpo de leis representado na Bíblia, sobretudo pelo Antigo Testamento, obser-
vando-se que, para aquele, que sabe utilizar a distinção escolástica entre preceitos morais e
jurídicos, preceitos estritamente jurídicos (judicialia) não existem no Evangelho e os do Anti-
go Testamento, por exemplo os cerimoniais, não mais valem no mundo cristão, restando ape-
nas os morais (moralia), não se podendo mais confundir a moral com o direito, tratando-se a
lei prevista na Sagrada Escritura apenas como lei moral.
Acerca da moral calvinista, Villey (2009, p. 343) afirma que “a grandeza e a novidade
da moral de Calvino é que ela afeta a vida dos laicos, e na sua integralidade”. Talvez isso pos-
sa ser entendido como uma forma peculiar, encontrada pelo reformador, para promover a reli-
gião cristã e suas prescrições morais, tendendo a construir a autonomia de uma moral exclusi-
vamente retirada dos ensinamentos estritamente cristãos, assim como entendeu o próprio Cal-
vino a necessidade de influenciar a ordem temporal.
Consoante nos revela Villey (2009), a doutrina calvinista do direito, que é semelhante
à luterana, é marcada por relegar a distribuição de todos os bens e honrarias absolutamente ao
poder da autoridade temporal, o que a leva aos caminhos do positivismo jurídico.
35
Aspecto relevante de se destacar é a doutrina calvinista da predestinação, por meio da
qual o reformador busca submeter a ordem de salvação humana a uma espécie de opção feita
por Deus em favor daqueles destinados a serem salvos, o que se distancia da tradicional tese
de uma maior participação da vontade dos homens, universalmente considerados, no seu pró-
prio caminho de salvação, pois claramente restringe o alcance da redenção por meio de Cristo
e cria um abismo em relação à concepção tomista de que a razão humana representava uma
propriedade suficiente para, se devidamente iluminada pela ordem divina, conduzir o homem
à salvação. Para Moncada (1955), o dogma da predestinação defendido por Calvino, se obe-
decido radicalmente, equivaleria quase a tornar sem a menor importância qualquer ação moral
e reformadora estatal que não fosse através da Igreja.
E Moncada (1955), analisando as doutrinas calvinista e luterana no tocante ao direito
natural que se poderia compreender nas suas obras, afirma ter o Protestantismo se mantido
tradicionalmente na linha humanista e, até mesmo, escolástica, sendo responsável por uma
reação contra o paganismo de Machiavel e afirmando existir uma lei eterna objetiva, não se
observando, entretanto, a mesma uniformidade quanto ao tema das relações entre a Igreja e o
Estado, daí advindo duas posições claramente distintas.
Descrevendo as duas posições, Moncada (1955) diz ter sido a luterana mais a favor de
uma plena submissão da Igreja ao poder estatal, o que levou ao surgimento da doutrina do
direito divino dos reis, que se desenvolveu, sobretudo, na Alemanha; mas tendo a posição
calvinista, por outro lado, sido mais afeita à fiscalização do Estado pela ordem religiosa, e, em
termos políticos e filosóficos, a favor das mais diversas doutrinas ocasionais, incluindo-se
nelas desde a doutrina monárquica do direito divino dos reis até teorias mais democráticas
como a da soberania popular inalienável e a do direito de resistência dos monarcômacos,
estes relacionados com as guerras religiosas travadas durante o século XVI.
E, expressando-se a respeito das diferenças entre essas posições, Moncada (1955. p.
115) afirma, acerca das posturas luterana e calvinista, respectivamente:
[…] enquanto que a primeira, sob a forma de uma renúncia a moralizar o Estado, deixa este entregue às leis do kratos e do bios, a segunda, por virtude talvez de uma sistemática desvalorização do Estado, reduzido a mero instrumento dos fins do indivíduo, único portador de um fim de salvação, desde o campo religioso até ao econômico, veio afinal concorrer, segundo alguns, poderosamente, para o desenvolvimento do capitalismo moderno.
O movimento da Contrarreforma, concebido como um esforço católico cujo objetivo
era barrar a expansão protestante e reforçar o domínio religioso do catolicismo pelo mundo,
36
representou um fator de grande transformação cultural e filosófica, cujos efeitos influencia-
ram profundamente a filosofia do direito que lhe segue.
E esse movimento, em termos filosóficos e jurídicos, foi representado por uma nova
escolástica, cujo centro era, sobretudo, a Universidade de Salamanca, na Espanha, e alguns
dos seus principais representantes eram: Francisco de Vitória, Domingo De Soto, Medina,
Gabriel Vazquez, Molina, Mariana e Francisco Suárez, sendo este último considerado o maior
expoente dessa corrente filosófica.
Consoante Villey (2009), a escolástica espanhola representou uma restauração da filo-
sofia tomista e, questionando a respeito das razões desse retorno do tomismo na escolástica
espanhola do século XVI, responde que isso de se deveu ao fato de os jesuítas estarem clara-
mente movidos pelo espírito de oposição ao protestantismo, esperando buscar em Tomás de
Aquino o senso de liberdade e participação humana e de seus próprios méritos pessoais na
salvação. Assim, pode-se observar aí uma clara distinção com relação à doutrina protestante
da exclusividade da graça divina como meio de o homem obter a salvação, representando o
pensamento da escolástica católica uma forma de adequação à doutrina tomista.
Aspecto relevante pode-se considerar, também, o fato de a escolástica de Salamanca
ter realizado uma revivescência da doutrina do direito natural, o que representou também uma
revalorização jurídica de uma ordem natural que se mostra afeita a uma maior valorização da
razão e do homem, diferente da característica protestante de supervalorizar uma ordem objeti-
va cuja fonte remete exclusivamente à religiosidade cristã objeto de defesa pelos reformado-
res. Sobre esse aspecto, Villey (2009. p. 371) diz que:
[…] diferentemente de Lutero e até de Calvino, cuja tendência é negar à razão do homem qualquer poder de encontrar por si mesma soluções justas, a escola de Salamanca restaura as fontes naturais do direito: é à inteligência dos homens, até a dos infiéis, a de Aristóteles, de Cícero, dos juristas romanos, que se deve perguntar as regras do justo.
Aliado a isso, e dentro desse contexto de retorno do direito natural de forma emanci-
pada dos laços do agostinismo protestante, a escolástica promove, segundo Villey (2009), o
caráter laico do direito, desprezando a herança das fontes divinas de qualquer direito. Esse
elemento representa um traço original dessa escola filosófica, estando presente, em maior
medida, no direito natural abstrato da Escola Moderna, encabeçada por Hugo Grócio, fazendo
da escolástica do século XVI uma segura precursora, em certa medida, do padrão de ideias
que se tornou clássico durante alguns séculos que lhe seguiram.
37
Francisco de Vitória é considerado importante na formação do direito internacional
moderno. Consoante Villey (2009), o fato de, após o cisma realizado pelo protestantismo, ter-
se tornado impossível uma intervenção papal na resolução dos conflitos envolvendo nações
que não estavam sob domínio católico resultou na exclusiva utilização do direito natural, ten-
do a escolástica espanhola atendido à emergente necessidade, no contexto do século XVI, de
elaboração de um direito internacional.
E Villey (2009) afirma ter sido Vitória o responsável por lançar as bases desse direito
internacional nascente, tendo formulado os princípios que prescrevem o respeito mútuo das
soberanias entre os Estados, a não intromissão de um Estado nos assuntos internos de outro, a
admissão da livre circulação de mercadorias e pessoas entre os territórios dos países, a liber-
dade de pregação religiosa; além disso, foi ele que, ainda, estabeleceu a liberdade de utiliza-
ção dos mares e dos rios internacionais, o direito relativo aos embaixadores, o respeito à pro-
teção dos civis durante a guerra, inclusive o direito da autonomia dos índios contra os coloni-
zadores.
Francisco Suárez, considerado o principal representante da escolástica católica do sé-
culo XVI, representou uma grande contribuição para a filosofia do direito. Ele é dono de uma
concepção diferente do direito do que a tomista, tendo Villey (2009) reconhecido que Suárez,
não mais considerando unitariamente o direito como uma atividade que visa a um fim trans-
cendente, faz uma cisão na noção de direito em dois elementos separados, que são o direito
subjetivo, que seria o benefício individual resultante da arte jurídica, a faculdade, e a lei, que
seria o instrumento da arte jurídica.
Assim, podemos considerar um aspecto peculiar da filosofia jurídica suareziana que é
uma espécie de restrição do direito à lei, elemento que, a nosso ver, expressa já uma antecipa-
ção ou uma incursão precoce no espírito filosófico da modernidade, inclusive projetando sua
influência para as características atuais da filosofia do direito, pois o indivíduo adquiriu gran-
de importância no mundo atual, incluindo-se também a noção de direito subjetivo e o próprio
positivismo jurídico, que assumirá mais tarde uma feição estritamente legalista, apesar dos
sérios ataques hoje sofridos.
E Villey (2009, p. 410) expressa bem as características da concepção jurídica presente
na doutrina de Suárez:
E é a essa lei, entendida da maneira a mais estreita, a mais positiva, que Suárez pretende reduzir o direito. Não concebe mais, fora ou acima dos textos, outras fontes para a arte jurídica; nem, fora, a ordem latente da natureza exterior; nem, acima, essa razão da lei que, na visão de São Tomás, constituía causa final. Suárez já não considera mais tanto, na lei, sua
38
finalidade, para a qual era parte integrante, segundo São Tomás, de sua essência, mas apenas seu ser atual, o preceito efetivamente firmado. A lei é a norma tal como sai da vontade legislativa. Em suma, não existe nada além do texto.
Para Moncada (1955), Suárez é responsável, diferentemente de Tomás de Aquino, por
uma abordagem mais legalista e nominalista, assim como voluntarista, do que a oriunda da
influência tomista, observando-se que, enquanto a doutrina puramente tomista considerava a
lei um ato intelectual por essência, a doutrina suareziana desloca a essência da lei para o seu
momento voluntário, sendo a lei positiva, antes de qualquer coisa, um ato de vontade realiza-
do pelo legislador em face do legislado. E acrescenta o mestre lusitano que “o que imediata-
mente faz que a lei seja lei, é o elemento vontade daquele que a emite. E com isto, reivindi-
cando um mais acentuado caráter de heteronomia da lei positiva, imediatamente também o
intelectualismo ficava, ipso facto, retificado pelo voluntarismo suareziano” (MONCADA,
1955, p. 135).
Pode-se retirar dessa influência voluntarista que a doutrina de Suárez, de certa forma,
mesmo que apenas bem vagamente, já expõe, em certa medida, a característica marcante da
Escola da Exegese francesa, a qual reservava grande proeminência ao papel do legislador e
erigiu em dogma jurídico o principio da onipotência do legislador, como através do papel re-
legado à voluntas legislatoris na interpretação do direito, que era essencialmente o que estava
contido nos textos legais. Contudo, deve-se reconhecer que um conjunto amplo de fatores foi
responsável pela formação do positivismo estritamente legalista do Século das Luzes, não
sendo a herança suareziana um elemento diretamente considerável, haja vista a importância de
toda a filosofia que se lhe segue, mais afeiçoada às características da modernidade.
No que respeita à lei natural, elemento imprescindível na concepção jurídica de Suá-
rez, assim como para Tomás de Aquino, temos que é suprema, imutável e de essência divina,
diferenciando-se apenas pelo fato de que a aplicação aos fatos e realidades, de acordo com a
posição suareziana, deve sempre atentar para a causa material da lei, formada pelos destinatá-
rios da lei em suas múltiplas situações históricas (MONCADA, 1955).
4.3 O JUSNATURALISMO RACIONALISTA
Agora, passemos a considerar o surgimento de uma nova onda doutrinária de cunho
jusnaturalista, imediatamente posterior à nova escolástica tomista do século XVI, que pode
ser genericamente denominada jusnaturalismo racionalista e não deixa de ser um desenvolvi-
mento a partir do racionalismo e do humanismo florescente desde os primórdios da Idade
39
Moderna, merecendo destaque a formação de uma escola própria de pensamento jurídico e
filosófico, a Escola do Direito Natural Racionalista, da qual fazem parte Hugo Grócio e outros
grandes juristas e filósofos da época, merecendo destaque o fato de a doutrina do direito natu-
ral, sob sua influência, ter adquirido maior laicidade de acordo com o consagrado secularismo
simpático ao desenvolvimento de uma concepção jurídica mais afeita à valorização da razão e
do homem, havendo afastamento da anterior base teológica herdada das correntes tomistas.
Levaggi (1991 apud WOLKMER, 2006, p. 129-130), tentando identificar os fatores
que permitiram tal desenvolvimento jusracionalista, afirma como elementos culturais e cientí-
ficos importantes: o impacto e a repercussão do humanismo; a crise e o esgotamento da he-
gemonia da filosofia escolástica na Idade Média Ocidental; a influência da crítica e da inde-
pendência das posições tanto do averroísmo como do voluntarismo nominalista (representado
por Duns Escoto e Guilherme de Ockham); os avanços alcançados pela astronomia e a ruptura
com a física de Aristóteles empreendida por Copérnico, Galileu e Kepler; a valorização do
método matemático, as observações científicas baconianas e a introdução de processos de
cognição baseados no racionalismo cartesiano.
Para Wolkmer (2006), é evidente que a construção da teoria jusfilosófica moderna e as
concepções de direitos humanos que lhe seguem são inseparáveis de uma mentalidade racio-
nalista, naturalista, individualista e cientificista.
Acerca das características do jusnaturalismo como paradigma teórico dos séculos XVI
a XVIII, Levaggi (1991 apud WOLKMER, 2006, p. 130-131) distingue princípios gerais que
lhe seriam próprios, a seguir enumerados: a fundamentação do Direito com base na natureza
humana; que o direito natural coincide com o direito da razão; a existência de direitos naturais
inatos, dotados de inviolabilidade e imprescritíveis, atuando como princípio de validade do
Direito posto; a possibilidade de se construir um sistema jusnaturalista completo a partir do
método axiomático dedutivo; a consideração do estado de natureza como base racional para a
explicação da origem do Estado; a ideia de contrato social como meio jurídico constituinte do
Estado.
Para Billier e Maryioli (2005), a antropologização efetiva do direito, que supõe uma
nova forma de compreender o homem e o mundo, tem seus pressupostos evidentes no século
XVII, devido à mutação galileana seguida da cartesiana, observando-se que o modelo físico é
logo elevado a modo de apreensão da realidade natural, tendo o processo de racionalização
logo sido estendido ao domínio do direito e da política.
Para Goyard-Fabre (2007), aliado ao processo de antropologização do direito natural
há uma paralela desnaturalização dele, e daí não mais se estar procurando fundamentá-lo na
40
ordem natural nem na força sobrenatural do divino, isto porque a crescente autoridade que se
atribuía ao homem não mais permitiu que fosse cultivada igualmente a ideia de um fim onto-
logicamente definido responsável pela indicação de um horizonte valorativo localizado no
centro da reflexão filosófica, dando a parecer que esse direito dos homens, para eles feito, não
pode possuir outro fundamento senão o homem mesmo.
Passemos a analisar a importância do primeiro grande marco do jusnaturalismo racio-
nalista, o jurista holandês Hugo Grócio, principalmente lembrado como o responsável pelo
surgimento de uma teoria jurídica que se mostra claramente autônoma em relação à critérios
teológicos de validade, emancipada da Revelação. Conforme afirmam Billier e Maryioli
(2005), Grócio parte da ideia aristotélica do desejo natural humano de vida em sociedade e se
vale da tese segundo a qual a natureza do intelecto humano acabaria por conduzir o homem a
desejar uma sociedade pacífica para desenvolver os princípios de um direito natural tão imu-
tável que nem mesmo Deus poderia mudá-lo, assim como existiria ainda que Deus não exis-
tisse.
Reale (1977) destaca como elemento essencial, em Grócio, o fato de a justiça ser to-
mada como o fundamento eterno do direito, considerado um sentimento espontâneo que habi-
ta o coração humano independente do próprio querer divino, haja vista ser ela uma das carac-
terísticas indissociáveis da ideia de Deus, destacando que o elemento novo depreendido da
sua doutrina é a plena consciência da autonomia do sentimento do justo, aliado ao fato de que
o homem seria naturalmente inclinado a buscar o que é justo, haja vista nem Deus poder dei-
xar de assim agir.
Conforme nos diz Villey (2009), Grócio é responsável por promover uma distinção
radical entre a realidade fática e o campo jurídico, numa atitude própria do pensamento jurídi-
co moderno. Essa característica expressa a evidência do abstrativismo peculiar a essa concep-
ção jusnaturalista, que marca esse período da vida jurídica.
Ainda, conforme Villey (2009), depreende-se dessa concepção que a moral é a fonte
primordial das regras jurídicas, chegando-se a constatar a absorção do direito na moralidade.
A principal obra de Grócio é o seu De iuri belli ac pacis (Do Direito da Guerra e da
Paz, 1625), na qual expressa os aspectos da sua teoria jusnaturalista, inserida no contexto de
uma necessária definição de limites jurídicos ao direito de guerra pelos estados, valendo-se do
Direito Natural. Por suas próprias palavras, podemos perceber a não vedação ao recurso à
guerra pelo direito natural, haja vista estar justificada em casos nos quais esteja em questão a
própria autoconservação da sociedade, tratado como princípio ou instinto natural:
41
Por outro lado, a Razão Certa e a natureza da Sociedade... não proíbem toda força, mas apenas aquela que é contrária à Sociedade, isto é, aquela que é usada para atacar os direitos de outros. Pois o objetivo da Sociedade é que cada um possa ter o que é seu em segurança. Pelo acordo e ajuda comuns (GRÓCIO, 2002, p. 82).
Assim, compreendemos que a reta razão, que seria um princípio supremo que condi-
cionaria qualquer conduta de acordo com o que está em devido acordo com os ditames da
razão, para não dizer da moralidade, não se mostra contrária ao recurso à guerra, o qual pode
se tornar um instrumento naturalmente considerado, tendo-se em vista que os povos sempre
vão perseguir sua conservação quando forem atacados por um inimigo, entretanto, não se con-
sidera justa a belicosidade que desrespeita os direitos das pessoas, cuja segurança e proteção
constitui o próprio fim da sociedade, sem o qual ela não teria sentido para os homens.
Outro importante pensador a contribuir com a concepção jusnaturalista moderna foi,
sem dúvida, Tomas Hobbes, não significando isso que não possua diferenças em relação a
Grócio. Conforme nos diz Villey (2009), Hobbes pode ser considerado defensor de um nomi-
nalismo extremado, que resume as noções de justo e de direito a meras expressões linguísticas
que só encontram sentido na referência às vontades e apetites individualmente considerados,
que seriam as únicas realidades atuais, ou como resultado da arbitrariedade do poder criativo
do príncipe, não sendo as póleis mais que criações artificiais.
Segundo Wolkmer (2006), não se constata, em Hobbes, um desprezo pelo direito natu-
ral; entretanto, contrastando com os escolásticos e contratualistas daquele tempo, os quais
defendiam a sociabilidade humana natural, defende ser o estado de natureza como autêntico e
contínuo estado de guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), rompendo
com a tradição jusnaturalista vigente por atribuir a criação fictícia da lei exclusivamente à
vontade do soberano.
Conforme nos diz da concepção hobbesiana, Villey (2008) reporta que se define o
direito subjetivo do estado de natureza como a liberdade disponível ao homem de fazer tudo
que esteja relacionado à sua conservação, no estado de natureza, sendo esta liberdade ilimita-
da, e, já que não há ainda qualquer ordem social, tudo é permitido a todos os homens.
Não seria exagero considerar a possibilidade de Hobbes ter sido, em certa medida, o
fundador do positivismo jurídico, como assim referencia Wolkmer (2006) e propriamente o
faz Villey (2009). Segundo este, o pacto figuraria como a fonte de todo o direito positivo e,
até mesmo, de toda justiça, sendo o injusto concebido como a própria transgressão dos pactos.
Já para aquele, em Hobbes, as leis da natureza, que seriam princípios gerais ou regras de con-
duta, não se comparam às leis do Estado, positivadas pela vontade do governante, que trazem
42
segurança, afirmando que “a concepção positivista hobessiana tende a demonstrar que as leis
naturais reforçam não só a assertiva da submissão do homem às leis civis positivas, como
também o reconhecimento do papel influente das leis naturais eternas e imutáveis no seu con-
teúdo” (WOLKMER, 2006, p. 139). Para Villey (2009), os autores que ainda situam Hobbes
dentro do campo jusnaturalista confundem os conceitos de lei e direito presentes em sua obra,
pois se observa que o estado de natureza é substituído pelo estado civil, que é formado por um
direito exclusivamente positivo.1
Vê-se muito claramente que, em Hobbes, há uma necessidade irrefreável de estabele-
cimento de uma autoridade como forma de necessária estabilidade política para poder afastar
os males naturais resultantes do estado de natureza, o que coincidira com uma obrigação de
reconhecimento de um soberano dotado de um poder comum. Assim, “torna-se manifesto que
o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em res-
peito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra” (HOBBES, 2006, p. 98).
Encontra-se também na sua obra a necessidade da lei como o fator que assegurará jus-
tamente a limitação da liberdade em prol da comum ordenação dos direitos, visto ser a liber-
dade que existe como elemento nocivo à constituição da sociedade, como se percebe do tre-
cho seguinte:
Desta lei fundamental da natureza, que ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Pois enquanto cada homem detiver seu direito e fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos (HOBBES, 2006, p. 102).
1 Isso nos faz refletir acerca de se a concepção hobbesiana de lei, estritamente relacionada ao ato de vontade da autoridade, pode ser uma fiel antecipação do positivismo jurídico que, segundo posição bastante aceita, adveio com a codificação e a Escola da Exegese francesa do século XIX, ou, no máximo através das considerações traçadas por John Austin no mesmo período. Para nós, por razão de prudência, foi melhor considerar aqui a grande importância atribuída a uma maior exclusividade no papel do legislador estatal como a quase exclusiva ou primordial fonte das normas jurídicas, o que não significa que várias das ideias consagradas não estejam presentes em períodos anteriores, mas apenas que ainda se observa, em Hobbes, a ausência de uma maneira mais autônoma de expressão do direito positivo, como está consagrada nas correntes positivistas clássicas haja vista a influência não negligenciável da lei natural do estado de natureza, que, de certa forma, condiciona o ordenamento das leis e da conduta segundo preceitos metafísicos.
43
5. O POSITIVISMO JURÍDICO
5.1 SURGIMENTO, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS
O positivismo jurídico está, de alguma forma, relacionado ao movimento positivista da
filosofia do século XIX, o chamado positivismo filosófico e científico, do qual Augusto Com-
te é o principal representante. Conforme Wolkmer (2006), o conhecimento científico desse
período é marcado pela influência do modelo positivista de ciência, cujos atributos são a ex-
periência, a objetividade e a universalidade, tendo a filosofia positivista como características a
defesa de um conhecimento obtido através da observação empírica e pela experiência dos
fatos, valendo-se da metodologia própria das ciências naturais, da matemática e da lógica.
Entendendo diferentemente a questão, Dimoulis (2006) afirma não dever o positivis-
mo jurídico nem o nome nem o objeto de estudo à visão positivista desenvolvida nas ciências
humanas a partir do século XIX, estando sua origem mais relacionada ao surgimento do termo
ius positum ou ius positivum, que se refere ao estudo da positividade do direito que, segundo
pesquisas históricas, teve início já na terceira década do século XII. 2
O positivismo jurídico, como escola científica do conhecimento jurídico, somente co-
meçou a se desenvolver séculos mais tarde, não nos parecendo adequado, portanto, antecipar
o objeto de estudo para uma época em que não havia apenas as leis como a principal fonte da
normatividade jurídica, ou, ainda, diferente da concepção de direito como o que exclusiva-
mente está positivado pelo texto legal segundo a vontade do legislador, o que só veio a ocor-
rer devidamente pela influência da Escola da Exegese do século XIX no âmbito do movimen-
to da codificação, em pleno período de império napoleônico.
A influência exercida sobre as concepções jurídicas surtiu efeitos em várias regiões do
mundo, fazendo florescer tendências juspositivistas diferentes e em lugares distintos, mas
tendo elas assumido algumas características que se pode devotar, certamente, ao positivismo
filosófico e científico. Assim, temos que:
2 Tentando resolver a celeuma, achamos ser o positivismo originariamente o relacionado à ciência positiva do direito assim concebida pelas correntes teóricas operantes ainda no século XVIII e que encontraram uma consagração no positivismo jurídico da Escola da Exegese francesa do século posterior e relacionado ao movimento da codificação, não se mostrando adequado, a nosso ver, querer situar essa corrente jusfilosófica em plena Idade Média, período em que imperavam soberanamente as teorias de feição teológica e metafísica de definição da natureza e conceito do direito. Mesmo não sendo a ideia de positividade do direito tão nova, podemos reconhecer, entretanto, que a concepção científica do direito como a conhecemos hoje tem muito mais a dever ao positivismo do século XIX do que à filosofia teológica e metafísica do direito do século XII, mesmo que já existisse algum estudo anterior acerca da positividade do direito, como o referido por Dimoulis.
44
Está claro, portanto, que a filosofia jurídica positivista que atravessa a metade do século XIX consagra alguns princípios como o repúdio a conceitos valorativos (construções metafísicas, racionalistas e jusnaturalistas), a redução da juridicidade à produção estatal (voluntarismo estatista), a exaltação do Direito como construção legal lógico sistemática (legalismo dogmático) e o rigor metódico enquanto formalismo técnico (formalismo). Com essa constituição, emergem as mais significativas tendências do positivismo jurídico para a época: a Escola da Exegese Francesa, a Escola Analítica Inglesa e a Escola do Formalismo Conceitual na Alemanha (WOLKMER, 2006, p. 191-192).
Portanto, podemos perceber que o positivismo jurídico não foi uma corrente jusfilosó-
fica ou teórico-científica do Direito resumida à codificação e à Escola da Exegese, tendo se
manifestado diferentemente também para o mundo anglo-saxão e para a Alemanha. Indo a-
lém, Bobbio (1995) reconhece o papel fundamental do historicismo para o surgimento do po-
sitivismo jurídico devido à crítica radical infligida pela Escola Histórica e o movimento ro-
mântico contra o direito natural racionalista, merecendo destaque a obra precursora de Gusta-
vo Hugo Tratado do direito natural como filosofia do direito positivo como responsável por
uma concepção que retira do direito natural sua autossuficiência em relação ao direito positi-
vo.
Reportando-nos ao terreno francês do positivismo jurídico, temos que ele é dominado
pelo advento da Escola da Exegese, que, conforme Billier e Maryioli (2005), viveu seu es-
plendor entre 1830 e 1880, tendo como pano de fundo a codificação francesa, e que pretendia
ver excluída do direito qualquer filosofia pretendendo apenas a garantia da ordem positiva e
codificada como objeto de estudo. Para Wolkmer (2006) essa escola era dona de um exege-
tismo empírico que proclamava o legalismo dogmático-dedutivo, cujo espírito proclamava a
identificação exata do direito com a lei e reconhecia o Direito positivo como valor máximo e
a onipotência jurídica do legislador, restringindo, tal postura, a experiência jurídica ao mero
exame literal da lei positiva.
Querendo expressar os fatores determinantes para o surgimento dessa escola, Bobbio
(1995) refere como importantes: a própria codificação, o fato de a mentalidade dos juristas
estar dominada pelo princípio da autoridade, a doutrina da separação dos poderes, o princípio
da certeza do direito, e, por último, a pressão exercida pelo regime de Napoleão sobre as fa-
culdades de direito a fim de que estas apenas ensinassem o direito positivo.
Bonnecase (1924 apud Bobbio, 1995, p. 84-89) distingue alguns caracteres fundamen-
tais que caracterizam a Escola da Exegese, quais sejam: a inversão das relações tradicionais
entre direito natural e direito positivo; a concepção estritamente estatal do direito; a interpre-
45
tação da lei segundo a intenção ou vontade do legislador; o culto do texto da lei, querendo
dizer a obediência restrita aos artigos do código; o respeito ao princípio da autoridade.3
Agora passemos ao exame da manifestação juspositivista que teve lugar no direito
anglo-saxão, principalmente no commom law inglês, que se mostra abundantemente rica em
termos teóricos. Segundo Wolkmer (2006), a resposta anglo-saxônica baseou-se, por outro
lado, na maior valorização da experiência judicial de forma rigorosa e utilitarista, mas trazen-
do para o seio do sistema a dinâmica de interpretação própria de processos lógico-analíticos.
Para ele, a filosofia jurídica anglo-saxônica, marcada pelo utilitarismo, deve muito de sua
evolução ao legado de Jeremy Bentham (1748-1832).
Apesar dessa influência, tem-se como fato que Bentham, como nos diz Bobbio (1995),
é de uma opinião claramente crítica em relação ao sistema de commom law, quer dizer, à pro-
dução judiciária do direito, do que se compreende a opção pela codificação, tendo inclusive
apontado cinco defeitos desse sistema, quais sejam, a sua incerteza, a retroatividade do direito
comum, o fato de ele não estar fundado no princípio da utilidade (que prescreve a maximiza-
ção da felicidade para o maior número), a característica de que o juiz deve solucionar todos os
casos que lhe sejam submetidos mesmo que ele não domine o conhecimento de todos os cam-
pos do direito, e o fato de o povo não poder exercer controle sobre o direito de produção judi-
ciária.
Merece lugar aqui a importância de John Austin para o desenvolvimento do positivis-
mo jurídico anglo-saxão que, segundo Bobbio (1995), representa uma via que reúne caracte-
rísticas importantes para o surgimento do positivismo jurídico, posto ter manifestado influên-
cias tanto da Escola Histórica Alemã quanto do utilitarismo inglês. E, ainda conforme o ilus-
tre jusfilósofo italiano, fazia ele a distinção entre a jurisprudência e a ciência da legislação,
sendo esta responsável pelo estudo do direito como deveria ser e aquela pelo estudo do direito
vigente, merecendo aquela (jurisprudência) maior preocupação.
Para Billier e Maryioli (2005), Austin foi o responsável pela continuidade do positi-
vismo representado por Bentham, sendo de uma importância fundamental para a evolução da
filosofia jurídica anglo-saxônica por ter, mais que radicalizado o positivismo daquele, lhe
dado uma orientação analítica ou lógico-descritiva.
Segundo Bobbio (1995), Austin diferencia o direito das outras espécies normativas e
define lei como um comando geral e abstrato, estando excluídos do seu âmbito comandos
dirigidos a determinada pessoa que realiza uma ação individual, sendo uma marca peculiar do
3 Para maiores esclarecimentos e riqueza em detalhes, consultar a obra O Positivismo Jurídico de Norberto Bob-bio, p. 84-89.
46
comando o fato de que a pessoa a quem é dirigido o desejo contido na ordem estar passível de
sofrer um mal qualquer a ser infligido pelo responsável por ela caso aja de acordo com o dese-
jo nela expresso, sendo este mal a sanção.
Ainda conforme Bobbio (1995), observa-se, na doutrina de Austin, a distinção entre
direito positivo e moralidade positiva, sendo aquele constituído por comandos emanados pelo
soberano numa comunidade política independente, diferentemente desta, que seria posta por
um sujeito humano que não possuiria a qualidade de soberano para outro ou outros sujeitos
humanos.
Importante a constatação de Morrison (2006, p. 273) quando afirma que “Austin não
recusou um papel ao direito natural, mas deixou de levá-lo em consideração”. Isso significa
apenas a influência da moralidade na vida das pessoas, não se pondo em jogo o fato de se
constatar uma doutrina positivista que merece a qualidade de autêntica, haja vista o fato de ele
atribuir uma importância e autonomia ao direito em relação aos comandos meramente morais,
desprovidos de uma sanção do soberano político da comunidade independente.
Conforme nos diz Palombella (2005), as características do positivismo jurídico, quais
sejam, ter por objeto o direito como ele é, possuir uma visão imperativa da norma, quer dizer,
concebê-la como uma estrutura de comando, assim como pela defesa de uma concepção esta-
talista do direito, segundo a qual a fonte normativa seria o próprio órgão legislativo estatal, o
titular da soberania, estariam interligadas em Austin, o que não se observa em outros positi-
vistas.
Segundo Bobbio (1995), Austin procede à distinção entre o direito legislativo, emana-
do do órgão legislador estatal, e o direito judiciário, resultado da atuação judicial dos juízes,
declarando a prevalência daquele sobre este, acerca do qual tece várias críticas, tendo, ao fi-
nal, chegado a defender a sua superação pela codificação, concebida esta como a mais nova
fase da lei do desenvolvimento histórico do direito na sociedade.
Agora passemos ao exame da manifestação do positivismo jurídico no terreno alemão,
merecendo destaque o exame da influência das ideias defendidas pela Escola Histórica do
Direito, cujo principal representante foi Savigny, haja vista ter contribuído decisivamente para
uma concepção de direito distante do jusracionalismo e do jusnaturalismo que vigorava antes
de seu advento, inclusive já tendo sido mencionada a importância do historicismo para o sur-
gimento do positivismo jurídico exatamente pelo fato de ter realizado uma crítica radical ao
direito natural.
Conforme nos diz Bobbio (1995), o historicismo se caracteriza por considerar o ho-
mem individualmente e em todas as variedades que a individualidade comportar, em oposição
47
ao racionalismo, que concebe a humanidade como uma abstração, tendo afirmado possuir ele
as seguintes características fundamentais: defesa do sentido da variedade ou mutabilidade
histórica em função da mutabilidade do próprio homem; a crença no sentido irracional da his-
tória, em contraposição à crença iluminista de uma determinação racional da história; o pes-
simismo antropológico, derivado da tragicidade resultante do sentido irracional da história; o
elogio e amor pelo passado; e, finalmente, o apego à tradição, quer dizer, à formação lenta das
instituições e dos costumes presentes na sociedade.
Wolkmer (2006), afirma ser a Escola Histórica Alemã reconhecida por um bom núme-
ro de teóricos como pioneira no combate ao racionalismo iluminista, ao idealismo e ao subje-
tivismo jusnaturalista, e defensora de uma concepção jurídica centrada na historicidade orgâ-
nica das instituições assim como na espontaneidade popular nacional, afirmando ainda que o
ideal de direito formado de maneira espontânea e imperceptível fazia da prática consuetudiná-
ria a fonte jurídica primordial, o que, inclusive, explica a posição radical defendida por Sa-
vigny de ser desfavorável a qualquer codificação, pois, segundo ele, o direito teria no costu-
me, o qual seria o reflexo histórico do Volksgeist, sua fonte fundamental.
Apesar de se reconhecer uma grande importância dessa escola para filosofia jurídica e
a ciência jurídica alemã do período, não se pode desconhecer o fato de que, como se vê em
Wolkmer (2006), haver um defensor da codificação na Alemanha, Thibaut, contra quem Sa-
vigny investe, mas observando-se certa consagração da ideia de codificação por ocasião da
promulgação do Código Civil Alemão de 1900, o BGB.
A par de tudo o que já foi exposto acerca do positivismo jurídico, não há de se conten-
tar com a análise de suas raízes históricas e influências, merecendo serem apresentadas ainda
suas características gerais, em complemento a tudo o que já foi exposto de forma interligada e
sugestiva.
Assim, conforme Bobbio (1995), pode-se resumir as características fundamentais do
positivismo jurídico em sete pontos principais: quanto ao modo de encarar o direito, o positi-
vismo jurídico o concebe como fato e não como valor, o que se relaciona com a teoria forma-
lista da validade do direito que lhe é própria; o direito é definido em função do elemento coa-
ção, daí sua correspondente teoria da coatividade do direito; quanto às fontes do direito, a
consagração da teoria da legislação como sua fonte primordial; em relação à teoria da norma
jurídica, vê-se essa sendo concebida como um comando, daí uma teoria imperativista do direi-
to; a existência da teoria do ordenamento jurídico, que não considera a norma isoladamente
mas sim o conjunto das normas vigentes, sendo sustentadas as teorias da completude e da
coerência do ordenamento jurídico; quanto ao método da ciência jurídica ou da interpretação,
48
observa-se a prevalência da teoria da interpretação mecanicista, a qual consagra o elemento
declarativo em desfavor do criativo; e, finalmente, a obediência absoluta da lei enquanto tal.
Portanto, traçadas, em linhas gerais, elementos identificadores e caracterizadores do
positivismo jurídico, passemos a considerações mais aguçadas acerca do seu desenvolvimento
teórico mais importante, para se discutir seu mérito com mais propriedade, o que se fará a
partir de uma análise apurada das várias considerações da doutrina kelseniana sobre o direito,
a moral e a justiça, situando-se sua concepção positivista como um ponto alto dessa corrente
de pensamento.
5.2 O POSITIVISMO JURÍDICO SEGUNDO A CONCEPÇÃO NORMATIVISTA DE
HANS KELSEN
O conceito de positivismo jurídico deve muita de sua importância atual para o legado
doutrinário do jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, responsável por uma concepção jurídi-
ca que consagrava um grande formalismo baseado na supervalorização das normas jurídicas
em si mesmas, e que estava subjugado pela ideia de pureza metódica que construía um ideal
de ciência jurídica autônoma quanto a aspectos valorativos, merecendo destaque a sua Teoria
Pura do Direito (Reine Rechtslehre, em Alemão). Para Billier e Maryioli (2005), o pensamen-
to de Hans Kelsen revolucionou o paradigma da ciência jurídica.
Palombella (2005), explicando os pressupostos e características da teoria pura de Kel-
sen, afirma que esta adota os postulados fundamentais do Estado liberal legislativo, além de
seguir e aperfeiçoar a mais atualizada doutrina publicística alemã, influenciando a doutrina
predominante da ciência jurídica e respondendo à exigência de neutralidade do direito, o que
está em consonância com a sociologia weberiana, a qual a classifica como uma consequência
natural da neutralidade do Estado liberal, pois só assim haveria a manutenção da crença na
legitimidade do poder, possuindo a sociologia de Weber aí um significado filosófico por justi-
ficar a concepção positivista de separação necessária entre o direto e a moral. Segundo ele:
Para Weber, a autonomia do direito positivo em relação à moral é a autono-mia (pertencente à realidade histórica) estrutural e funcional do direito e do Estado contemporâneos em relação a concepções morais e políticas baseadas em determinados (e variáveis) juízos de valor. Essa autonomia é própria de uma fase histórico-institucional específica (caracterizada por processos que Weber chama de burocratização e formalização e pela afirmação do Estado de direito, legislativo e parlamentar) (PALOMBELLA, 2005, p. 151).
49
Informam-nos Billier e Maryioli (2005) que a teoria kelseniana não se resume a uma
teoria geral do direito pelo agrupamento dos conceitos e princípios jurídicos de diversos ra-
mos do direito subordinados a alguns conceitos fundamentais capazes de, ao mesmo tempo,
encerrar a palavra direito e obter sua unidade, sendo necessário, pelo contrário, segundo o
próprio Kelsen, que os conceitos fundamentais organizadores dos outros, presentes no topo da
genealogia conceitual, sejam submetidos à depuração de qualquer consideração de ordem
ético-política.
No tocante ao tema do jusnaturalismo e, em geral, das relações entre moral e direito,
Billier e Maryioli (2005) afirmam que, para Kelsen, o dualismo direito positivo e direito natu-
ral seria insustentável pela razão fundamental de que isso iria tornar a validade da ordem jurí-
dica dependente da conformidade aos preceitos de justiça que se localizam externamente à
ordem jurídica positiva, sendo o mesmo que querer fazer conformar o direito positivo a uma
moral absoluta e única, o que iria certamente contra o relativismo moral, ou, mais precisamen-
te, contra o relativismo axiológico responsável por toda ordem jurídica concreta e historica-
mente determinada.
Assim, podemos perceber que, em Kelsen, a moral existe uma razão para não manter
uma relação de dependência ou necessidade com a realidade jurídica, haja vista não ser com-
patível com a concepção kelseniana um papel que comprometesse a consagração do relati-
vismo axiológico necessário à construção de uma teoria jurídica que realisticamente pudesse
abarcar a necessária neutralidade jurídica imprescindível à formação de uma normatividade
adequada à realidade a que ela se destina regulamentar, podendo-se considerar a separação,
nesses termos, conditio sine qua non para a juridicidade, pelo menos é o que se depreende da
doutrina kelseniana.
Para Diniz (2003), a doutrina de Kelsen, chamada de racionalismo dogmático, consti-
tuiu-se como uma expressão ideológica de sua época, dentro do contexto do declínio da con-
cepção de mundo capitalista liberal dominante ao tempo da Primeira Guerra Mundial, obser-
vando-se que, para ela, a ciência do direito não leva em conta o conteúdo do direito, haja vista
ser fruto do período da racionalização do poder, e, portanto, produto de um democratismo de
conteúdo vazio e meramente formal.
É bastante conhecida a posição kelseniana acerca das relações entre direito e moral, ou
direito e justiça, se preferir-se assim, a qual assume a tese positivista clássica de separação
entre direito e moral, negando qualquer influência necessária de ordem valorativa para a vali-
dade do direito, podendo-se acrescentar a isso também a exclusividade da heurística normati-
vista como fonte do conteúdo das normas jurídicas, haja vista o direito ser concebido como
50
um sistema de regras que buscam parâmetros internos de aplicação, sem um controle preciso
da moralidade do seu conteúdo, daí o positivismo e uma relação meramente simbólica do di-
reito com a moral ou a justiça.
Algo interessante seria a análise mais apurada da doutrina de Kelsen presente nas suas
diversas obras, para nos dar uma melhor noção sobre as relações do direito com a moral e os
valores, principalmente o valor justiça, tido como classicamente importante à realidade nor-
mativa, mas patentemente tido sua influência jusfilosófica bastante modificada por certa pre-
valência de teorias positivistas em tempos bastante recentes da história da teoria jurídica.
Assim, passaremos a expor os aspectos da presente investigação com base na leitura
de algumas das principais obras do referido autor juspositivista para melhor expor os aspectos
importantes da sua doutrina acerca do tema direito positivo e moralidade, o que se torna mais
frutuoso pela identificação do conceito de direito e seus elementos constitutivos ali expostos,
haja vista só assim podermos compreender adequadamente o sentido ou natureza da juridici-
dade para Kelsen e, só depois, podermos empreender alguma crítica ou valoração quanto à
sua suficiência ou não como modelo de ciência jurídica adequado à realidade presente.
Conforme Kelsen (2005), o direito consiste numa ordem ou sistema de conduta huma-
na, um conjunto de regras submetidas a uma unidade peculiar que lhe confere sistematicidade.
Noutro lugar ele afirma “uma 'ordem' é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo
fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade” (KELSEN, 2006, p. 33). Ocupa
um lugar proeminente no sistema normativo kelseniano o pressuposto lógico por ele chamado
de norma fundamental ou Grundnorm, afirmando ainda que “a norma fundamental é a fonte
comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu
fundamento de validade comum” (KELSEN, 2006, p. 217).
Assim, pode-se compreender a norma fundamental como uma fonte pressuposta de
validade de todo o sistema normativo. Por outro lado, para diferenciar o Direito da Moral,
mesmo que sejam ambas consideradas ordens normativas sociais, visto tanto uma como a
outra regularem a conduta humana relacionada às relações com outras pessoas, Kelsen afirma
que a ordem jurídica particularmente regula a conduta humana exatamente porque à conduta
oposta pressupõe uma sanção (KELSEN, 2006).
No tocante à coação, afirma Kelsen (2006) que esta é uma qualidade ou poder inerente
à comunidade jurídica enquanto tal, a qual é a responsável pela aplicação das sanções, obser-
vando-se, portanto, um monopólio da coação pela comunidade jurídica, constituída pela or-
dem jurídica.
51
A noção de justiça kelseniana está diretamente dirigida à constituição objetiva da pró-
pria ordem jurídica, concebida em termos de legalidade (KELSEN, 2005), e que não está rela-
cionada ao conteúdo da ordem jurídica mas sim à sua aplicação, contudo que, em sendo as-
sim, seria um elemento necessário à própria manutenção de qualquer ordem jurídica positiva.
Assim, seria justo que uma norma fosse aplicada a todos os casos e situações devidas, mas
que seria injusto sua não aplicação em casos análogos ou em que coubesse aplicação.
A respeito das relações entre direito e moral na doutrina do insigne jusfilósofo austría-
co, afirma ele que “o Direito é por sua própria essência moral, o que significa que a conduta
que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem também é prescrita ou proibida pelas normas
da Moral” (KELSEN, 2006, p. 71). Por essa asserção, pode dar ele a entender uma relação
profunda ou imanente em entre as duas ordens normativas, o que não é verdade, haja vista
este, logo após, estabelecer a posição de uma relação meramente contingente entre o direito e
a ordem normativa moral, afirmando que “o direito pode ser moral - no sentido acabado de
referir, isto é, justo -, mas não tem necessariamente de o ser; que uma ordem social que não é
moral, justa, pode, no entanto, ser direito, se bem que se admita a exigência de que o direito
deve ser moral, isto é, deve ser justo” (KELSEN, 2006, p. 72).
Observa-se, portanto, na doutrina kelseniana, o reconhecimento de que tanto a realida-
de jurídica, espécie de ordem social normativa de coercibilidade jurídica, quanto a moral, or-
dem social normativa não coercitiva, pertencem a uma mesma realidade que é a realidade do
dever-ser, e que ambas mantém uma relação importante caracterizada pela possibilidade de
eles poderem até coincidir em termos de conteúdo, mas que não há uma necessária dependên-
cia de conteúdo entre o domínio da moral e o domínio jurídico, pois pode este subsistir mes-
mo de forma contrária àquele, ainda que se considere uma forte tendência a que o direito
sempre seja justo.
Entenda-se a coercibilidade referida como a imposição obrigatória de uma sanção ju-
rídica organizada sob a forma de força. Nesse sentido, fazendo a distinção entre a moral e o
direito, Kelsen (1986) acentua que a reação à violação das prescrições morais não possuem o
caráter de atos de coação, ou seja, executáveis pelo emprego da força física, como observado
nas sanções jurídicas, e, por isso, as sanções da moral não representam uma forma de se reagir
à conduta contrária à norma, mas também reações a condutas que lhe são contrárias, obser-
vando-se tanto a aprovação como a desaprovação da conduta conforme a moral.
Para Kelsen (2006), no que concerne ao valor moral e à sua relação com o direito, é
rejeitado de pronto a consideração de quaisquer valores absolutos em geral assim como algum
valor absoluto, particularmente, sob a justificativa de isso consistir num desrespeito à cientifi-
52
cidade; então, diante da constatação de que só há valores relativos, a única conclusão que se
permite acerca da afirmação de que as normas sociais devem ser justas para ser direito é que
tais normas só poderiam estar sujeitas aos critérios ou conteúdos morais comuns a todos os
sistemas de moral como sistemas de justiça. Isso expressa a característica importante dessa
doutrina que é a relatividade da moral, que não deixa de influenciar o direito mas não interfere
na validade de suas normas ou no seu conteúdo, apenas representando uma propriedade con-
tingente da ordem jurídica.
Podemos entender que o formalismo e uma proeminência e supervalorização da nor-
matização enquanto tal são características centrais na posição desse autor, pois este concebe
sua teoria pura de maneira desvinculada de qualquer necessidade de conteúdo, ou seja, de
qualquer julgamento ou tendência acerca de algo que necessariamente deveria estar contido
na ordem jurídica positiva, apenas manifesta uma cientificidade responsável por conceber a
ciência jurídica como uma ciência que descreve normas, como se observa pelo seguinte: “A
ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora, por assim dizer – o Direito e descrevê-lo
com base no seu conhecimento” (KELSEN, 2006, p. 81), assim como “A ciência jurídica,
porém, apenas pode descrever o direito; ela não pode, como o Direito produzido pela autori-
dade jurídica (através de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for” (KELSEN,
2006, p. 82).
Ao adentrarmos o pensamento kelseniano, podemos perceber um normativismo abso-
luto ou intocável como a própria natureza do direito, mas afastando-se objetivamente qualquer
forma de conceber o direito como valor, daí o formalismo de que está impregnada essa teoria,
a qual procura limitar seu objeto às próprias normas da ordem jurídica positiva:
[…] a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma de-terminada conduta humana. […] Isto, porém, quer dizer: a questão das rela-ções entre o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direi-to, mas uma questão sobre sua forma. […] Com efeito, o direito constitui um valor precisamente pelo fato de ser norma: constitui um valor jurídico que, ao mesmo tempo, é um valor moral (relativo). Ora, com isto mais se não diz senão que o Direito é norma (KELSEN, 2006, p. 74).
Um elemento de destaque na doutrina de Kelsen sobre a valoração ou apreciação valo-
rativa de uma realidade é que, para ele, existe a distinção entre as realidades pertencentes ao
mundo do ser e aquelas de natureza normativa, que são a moral e o direito, as quais não po-
dem ser julgadas segundo a própria realidade normativa, do dever-ser, haja vista serem eles o
próprio dever-ser, afirmando-se que “[...] Somente um fato da ordem do ser pode, quando
53
confrontado com uma norma, ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter um valor posi-
tivo ou negativo” (KELSEN, 1998, p. 5). E, conforme Kelsen (1998) mesmo afirma, como
toda norma válida constitui um valor, não seria possível sua valoração, ainda mais sua valora-
ção negativa, sendo um valor valioso uma consideração pleonástica e um valor desvalioso
uma contradição em termos.
Interessante constatar-se que Kelsen (1998), mesmo não aceitando a valoração da or-
dem normativa mesma ou do dever-ser jurídico, mostra-se solícito com a ideia de que o ato
normativo ou legiferante, o qual é responsável pela edição da norma jurídica, possa ser consi-
derado justo ou injusto, pois não deixa de ser apenas um fato da ordem do ser, da realidade.
Mas essa ideia encontra uma barreira intransponível a quem pretenda considerar ou julgar tal
concepção formalista e normativista do referido autor, haja vista, mesmo que o próprio ato
normativo ou legislativo responsável pela existência da norma seja considerado injusto, de
qualquer forma, não se há de falar em invalidade da norma, ante o fato de o critério jurídico
científico que lhe atribui validade estar relacionado apenas com o próprio sistema normativo,
sustentado pela norma fundamental da ordem jurídica:
O fundamento de validade de uma norma positiva, isto é, de uma norma pos-ta através de um ato de vontade, não é o ato que põe esta norma ou põe uma norma superior, quer dizer, o ato cujo sentido objetivo é a norma inferior ou a norma superior, mas a norma superior, que é pressuposta como objetiva-mente válida e que opera a fundamentação da validade da norma inferior precisamente pelo fato de legitimar o sentido subjetivo do ato que põe esta norma como seu sentido objetivo, isto é, como norma objetivamente válida (KELSEN, 1998, p. 15).
Outro elemento importante é a independência da validade da norma jurídica em rela-
ção à norma de justiça, o que implicaria na impossibilidade de ambas serem, ao mesmo tem-
po, válidas, o que corrobora a adesão do referido pensador à corrente positivista, segundo sua
própria concepção, como o mesmo afirma:
Abstrair da validade de toda e qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em contradição com uma norma jurídica positiva como da-quela que está em harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admi-tir que a validade de uma norma do direito positivo é independente da vali-dade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são consideradas como simultaneamente válidas – é justamente o princípio do positivismo jurídico (KELSEN, 1998, p. 11).
O pensamento kelseniano está, antes de qualquer coisa, dominado por um ideal de
cientificidade que o faz estar submetido, em termos de conhecimento da realidade, somente ao
que o homem obtém de forma empírica e racional a partir dos sentidos, não podendo extrapo-
54
lar a significação para além do seu próprio objeto de conhecimento. Para Kelsen (2005), é
própria de concepções metafísicas essa extrapolação, na verdade, duplicação do objeto de
conhecimento, para além dos sentidos, o que consistira uma verdadeira descrença do homem
por si mesmo. Para ele, “nada é mais contraditório e, portanto, incompreensível, do que a su-
posição de que a nossa cognição reflete um mundo inacessível à nossa cognição. Nada é mais
problemático do que explicar o conhecido pelo que não é, o compreensível pelo incompreen-
sível” (KELSEN, 2005, p. 601).
Ainda, segundo ele, o mesmo fenômeno da duplicação do objeto pode ser transposto
para a função intelectual de avaliar, haja vista se tratar da cognição de normas ou valores,
desde que expressa em proposições de dever-ser, podendo-se considerá-lo naturalmente pre-
sente na doutrina do direito natural, para a qual o direito não seria uma criação livre de um
juiz ou legislador, mas sim a reprodução de um direito natural que é somente ele direito em si,
responsável pela validade e pelo valor do direito positivo (KELSEN, 2005).
Podemos concluir, então, que, segundo esta concepção, o homem se resume, em ter-
mos jurídico-gnosiológicos, ao que pode apreender pelos sentidos, afastando-se qualquer pos-
tura idealista ou metafísica no direito, o qual deve ser um reflexo fiel da observação da reali-
dade transposto a uma realidade normativa descritiva distinta da realidade factual segundo
estritos padrões de cientificidade.
A justiça, segundo tal concepção, não seria algo racionalmente inalcançável, haja vista
estar relacionada à exigência de uma justificação absoluta de nossa conduta ou à busca de
valores absolutos, estando o absoluto em geral e os valores absolutos particularmente distan-
tes da nossa capacidade racional, somente sendo possível a adoção de uma solução condicio-
nada, relativa, para o problema da justiça como uma questão de justificação do comportamen-
to humano (KELSEN, 2001).
Para Kelsen (2001), o direito natural, quer se trate da concepção naturalista, a qual
procura retirar o direito de um sistema de fatos reunidos pelo princípio da causalidade, ou da
racionalista, que tenta deduzir as normas a partir da razão humana, seria, na verdade, um so-
fisma, defendendo que normas cujo fim seja a regulamentação do comportamento humano só
podem ser obtidas a partir da própria vontade humana.
Interessante o fato de que o referido jusfilósofo sustenta o seu relativismo axiológico
exatamente com base no princípio da tolerância, o que implica, claramente em um esforço
lúcido em prol do reconhecimento da diversidade de pontos de vista ou ordens sociais ou mo-
rais, não deixando de ser ele mesmo, contudo, uma tomada de posição em termos de morali-
dade:
55
O princípio moral que fundamenta – ou do qual se pode deduzir – uma dou-trina relativista de valores é o princípio da tolerância: é a exigência de com-preender com benevolência a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica (KELSEN, 2001, p. 24).
Observação importante é a feita por Billier e Maryioli (2005), no tocante às concep-
ções positivistas oriundas da herança de Bentham e Austin e a de Kelsen, pois, enquanto a
primeira defendia o positivismo jurídico sob a influência de uma teoria imperativista do direi-
to, quer dizer, definia o direito como o ato de mandamento do legislador combinado com a
ameaça de sanção e a norma jurídica como o próprio ato do legislador que visa à obtenção de
um determinado comportamento, a segunda considera o ato de mandamento apenas como
algo necessário embora ainda insuficiente para adquirir significação jurídica, mesmo ante o
fato de tal ato comportar em si mesmo a vontade subjetiva do emissor de obter do destinatário
determinado comportamento.
Esse caráter não imperativista da teoria jurídica kelseniana remete-nos, por exemplo, a
que o seu acentuado normativismo não deixa que, como já referido, seja considerada inválida
uma norma jurídica positiva devidamente válida mesmo quando o próprio ato legiferante ou
normativo que a emitiu possa ser considerado irretratavelmente injusto, haja vista tal norma
ainda estar em harmonia com o seu fundamento de validade, que também é uma norma e não
um ato, e, por isso, não pode ser considerada injusta nem ter sua existência comprometida por
qualquer norma moral positiva, prevalecendo sempre, sobre a moral, em qualquer caso.
Lançando um olhar crítico acerca da doutrina de Kelsen, Billier e Maryioli (2005) a-
firmam que a distinção kelseniana entre o direito e o fato consiste num grande fracasso, sendo
testemunha disso a pretensa tentativa de relegar o fundamento da ordem jurídica a uma regra
em vez de fundamentá-la sobre o poder, pois, ao contrário do que defende o jurista austríaco,
constata-se ser mais adequado fundamentar-se uma ordem jurídica sobre duas bases, quais
sejam, a positividade, quer dizer, ter sido instituída pelo poder constituinte quando da sua cri-
ação, e a eficácia, no que toca à sua continuidade e permanência, ligando-se a validade da
ordem, em seu conjunto, à eficácia.
De forma semelhante, Billier e Maryioli (2005) tecem considerações no sentido de ser
pouco justificável a distinção também verificada entre o direto positivo e direito natural ou
entre direito e moral, ou, analogamente, entre direito positivo e certa concepção de justiça,
afirmando que tal consideração está fundamentada na tese do relativismo de valores, de ori-
gem neokantiana, corrente filosófica responsável por elementos importantes da doutrina kel-
56
seniana, posto que era bastante difundida na época e objeto de consideração por Max Weber.
Ainda, segundo eles, o próprio Kelsen não devota o devido respeito a essa premissa epistemo-
lógica, pois apesar de o jurista austríaco recusar o jusnaturalismo sob a justificativa de ele
estar baseado em preceitos universais oriundos quer da razão quer de Deus, ele próprio realiza
uma substituição de uma concepção universalista do conteúdo das normas, segundo a qual
estas seriam variáveis segundo as contingências históricas, por um universalismo meramente
formal, que apenas se refere ao procedimento de produção normativa pelo legislador ou órgão
legiferante, não se atentando ao fato de que sua própria opção pelo formalismo constitui
mesmo uma escolha de ordem axiológica.
57
6. DOUTRINAS AXIOLÓGICAS E TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍ-
DICO
6.1 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO E A EMERGÊNCIA DAS TEORIAS AXIO-
LÓGICAS
A doutrina juspositivista, apesar de ter alcançado enorme importância desde a sua con-
sagração inicial quando do surgimento do positivismo legalista da Escola da Exegese france-
sa, não ficou imune a críticas e assistiu ao florescimento de uma série de novas correntes jus-
filosóficas de cunho axiológico e empírico em face de sua insuficiência para reger de maneira
adequada a maior complexidade e as necessidades de uma imanente inserção dos valores e
objetivos sociais no conteúdo das regras jurídicas em função da mudança de paradigma ob-
servado pelas exigências de critérios morais que reclamavam o posto de parâmetro de juridi-
cidade, chegando-se a considerar insuficiente o modelo de juspositivismo formalista e norma-
tivista, mesmo o de herança kelseniana, frente à constatação de uma sede de reintrodução do
papel dos valores e da justiça como limitadores materiais do direito posto. E, assim, vários
autores falam em abandono do modelo positivista, renascimento do direito natural, crise do
positivismo jurídico etc. para significar a série de transformações envolvendo as relações en-
tre direito e moralidade, ou a maior consideração da dimensão axiológica no tratamento práti-
co do direito, surgindo novas teorias de vários matizes, tanto no sentido de se afastar radical-
mente do positivismo jurídico para propor a necessária consideração da norma jurídica em
função de critérios valorativos, assim como por somente apresentar uma nova forma de posi-
tivismo jurídico, mais preocupada com o aspecto empírico dos valores e fins sociais do que na
autonomia normativa das leis ou sua unidade lógica.
Segundo Kaufmann (2004), ocorreu um episódico, embora merecedor de importância,
renascimento do direito natural imediatamente em seguida à Segunda Guerra Mundial como
resultado do tortuoso domínio dos regimes totalitários de cunho nacional-socialista, que não
consistiu, entretanto, num renascimento da racionalidade e do bom senso, mas apenas numa
atitude crítica ante o fato de a filosofia do direito não ter preparado a ciência do direito para o
fenômeno da ‘injustiça legal’, o que motivou inclusive algumas decisões tachadas de mons-
truosas do ponto de visto metodológico, por terem se utilizado de parâmetros morais suprapo-
sitivos estritamente rígidos nas fundamentações, como o acórdão do pleno das seções penais
do Tribunal Federal alemão, que reconheceu a ilicitude das relações sexuais entre noivos sob
a justificativa de elas violarem a lei moral.
58
E o mesmo autor (KAUFMMAN, 2004) refere-se especificamente ao denominado
“neopositivismo jurídico”, movimento doutrinário surgido no final dos anos cinquenta, início
dos anos sessenta, que rejeitou qualquer ideia de direito suprapositivo, restando, contudo, as
estruturas de pensamento da doutrina do direito natural. Diz-nos, ainda, que “uma fundamen-
tação filosófica do positivismo, como a apresentada por exemplo em Hans Kelsen na sua Teo-
ria Pura do Direito, dificilmente se encontra hoje. É-se positivista por resignação cética”
(KAUFMANN, 2004, p. 49).
Dentro desse contexto, podemos, com Palombella (2005), afirmar que o juspositivis-
mo dos séculos XIX e XX enfrenta uma peculiar realidade jurídica consistente na produção e
aplicação do direito, que afasta diante de si qualquer elemento exterior ao direito posto, de
origem legal, observando-se que tal visão torna-se num ponto fraco dessa teoria com o adven-
to de novos cenários histórico-institucionais. Segundo ele:
A crise do positivismo ocorrerá não tanto por uma mudança autônoma dos paradigmas internos à ciência jurídica quanto pelo enfraquecimento das ca-pacidades heurísticas do ‘modelo’ juspositivista, decorrente das transforma-ções estruturais do direito; transformações que devem ser buscadas no mo-mento da crise econômica e social do Estado liberal e que levam depois até a afirmação dos Estados ‘constitucionais’ ocidentais, nos quais o acesso ao ‘direito’ por parte de postulados de justiça, de critérios materiais de avalia-ção, de elementos de princípio, amplia e depois desagrega o horizonte do di-reito legal, criando assim a necessidade (no mínimo) de uma reflexão auto-crítica do juspositivismo, quanto à sua própria capacidade de descrever o di-reito positivo, de circunscrevê-lo e reduzi-lo a elementos passíveis todos de
submissão a critérios de cientificidade (Palombella, 2005, p. 154-155).4
Em face dessas palavras, cumpre destacar o fato de que ocorre exatamente a quebra
abrupta do paradigma cientificista que sustentava o falso ideal de certeza imanente à teoria
juspositivista desde seus primórdios, uma vez que a mudança estrutural que consiste na neces-
sidade de abertura do direito à gama de elementos que, atualmente e de maneira definitiva, se
tornaram critérios de justificação da validade do direito posto dentro do contexto da nova
consciência social e jurídica do mundo em geral, em que a evidência e tratamento objetivo de
padrões valorativos toma conta do conteúdo do direito, como uma forma de valorizar o resul-
tado histórico das experiências humanas ante a necessidade de ter ao lado, como instrumento
4 Muito pertinente a percepção do autor neste ponto, uma vez que a emergência do Estado constitucional, tam-bém chamado de Estado Constitucional de Direito, mostra-se uma amostra incontroversa e evidente do estabele-cimento de um novo paradigma no direito ocidental, representado pela influência dos valores ético-políticos e dos princípios jurídicos como elementos que passaram a constar definitivamente na pauta das teorias do consti-tucionalismo contemporâneo, tal como observado na vida jurídica de vários países, inclusive no Brasil, merecen-do menção o denominado “neoconstitucionalismo”, que seria uma nova forma de pensar o constitucionalismo bastante difundida em muitos países e que integra no seu arcabouço conceitual a consideração valorativa e o papel dos princípios jurídicos a condicionar o tratamento material do direito e sua interpretação.
59
de amparo, o ideal de justiça, que, mais que nunca, assume um conteúdo empiricamente extra-
ído da experiência social e se coloca objetivamente a seu serviço.
Assim, assiste plena razão a Larenz (1997), ao afirmar que a ciência do direito é to-
talmente incompatível com o conceito positivista de ciência, que só admite como científicas
disciplinas que se utilizam dos métodos das ciências da natureza, assim como ao reconhecer o
papel de Heinrich Rickert no reconhecimento da necessidade das ciências do espírito (a filo-
sofia, a teologia, a literatura etc.) no papel de compreender verdadeiramente a totalidade da
natureza suscetível de ser objeto de experiência, empreendimento inalcançável pela via das
ciências exatas da natureza. Por isso, podemos compreender a necessária transformação do
direito quanto ao reconhecimento da natureza de seu estatuto científico que se opera pela
consciência da reflexão histórica acerca da necessidade de estabelecer parâmetros materiais de
ordem espiritual ou moral, como os valores e princípios, em face da insuficiência do positi-
vismo jurídico de caráter estrito ou exclusivo, o qual prescreve a necessária e total separação
entre o direito e a moral.
Conforme nos diz Larenz (1997), as explanações de Rickert foram importantes por
terem introduzido o conceito de “valor” na metodologia das ciências do espírito, mesmo que
apenas partido da corrente neokantiana, da qual faz parte, apresentando tal conceito como um
a priori epistemológico dessas ciências, sem, contudo, ter respondido ao problema de se saber
o que é um “valor”. E conclui:
Com isto, porém, veio Rickert a dar um passo a mais. Se o historiador real-mente ‘refere’ a valores os fenômenos efectivamente ocorridos e se para os expor tem de encontrar neles um interesse geral, então a significatividade dos valores que assume como fundamento não pode apenas existir para ele - tem de existir também para os outros. Tem, por conseguinte, de tratar-se de valores que sejam de facto geralmente reconhecidos, pelo menos na comuni-dade cultural a que o historiador pertence (LARENZ, 1997, p. 129).
Retrata ainda Larenz (1997), no contexto das reflexões de Rickert, que o conceito de
“cultura” se torna um recorrente pano de fundo, e consiste, no seu sentido mais amplo, em
tudo o que ganha sentido e significado pela referência a valores para quem reconhece referi-
dos valores, observando-se, também, a divisão entre ciências da natureza, cujo objeto seria
livre de valores e de sentido, e ciências da cultura, com objeto referido a valores e, por isso,
dotado de significação, e, assim, valores, sentido e significado são algo que não se pode per-
ceber, mas apenas compreender, considerando-se cultura o ser significante e suscetível de ser
compreendido.
60
Semelhante é o reconhecimento de Perelman (2004) acerca desse aspecto, afirmando
que as modernas concepções do direito e do raciocínio judiciário desenvolvidas após a Se-
gunda Guerra Mundial consistiram numa reação contra o positivismo jurídico, que se opõe a
qualquer teoria do direito natural e está associado ao positivismo filosófico, o qual nega toda
filosofia dos valores, constituiu-se na ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim
da última grande guerra. Segundo ele, o positivismo jurídico “elimina do direito qualquer re-
ferência à ideia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar
tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais
compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário” (PERELMAN, 2004, p. 91).5
E tratando especificamente da concepção de positivismo de Hans Kelsen, Perelman
(2004) afirma que ele reconhecia devidamente que o juiz não era um simples autômato pelo
fato de que as leis por ele aplicadas comportariam interpretações as mais diversas, o que lhe
conferia certa discricionariedade, contudo, não tinha em mente a importante constatação de
que a escolha entre as diversas interpretações não poderia ser obtida através de uma pesquisa
científica objetiva e alheia a qualquer valor. No seu entender, a teoria pura do direito de Kel-
sen possui aspectos inconvenientes, que são a separação extremamente rígida entre o direito e
o fato, as concessões desmesuradas ao arbítrio do juiz no âmbito legal, o desprezo pelo papel
essencial da regra de justiça formal (a qual exige um tratamento único em situações essenci-
almente semelhantes), e a recusa a qualquer referência a juízos de valor, como se considerasse
a justiça e a equidade noções alheias ao direito.
Perelman cumpre bem o papel de expressar as razões de ordem ética e cultural que
contribuíram para a atitude de crítica ao positivismo jurídico, afirmando, neste aspecto que
“enquanto a prática jurídica não estava muito distante dos costumes, dos hábitos e das institu-
ições sociais e culturais do meio regido por dado sistema de direito, a concepção positivista
do direito podia expressar de modo satisfatório a realidade do fenômeno jurídico” (PEREL-
MAN, 2004, p. 94).
Neste ponto, cumpre destacar o fato de que a prática jurídica, tomando por base as
palavras do próprio Perelman, não se conteve apenas nos diversos elementos presentes no
espaço fechado de um dado sistema jurídico, senão precisou expressar-se de maneira mais
aberta e sensível à evidente insuficiência do formalismo vazio e avalorativo do positivismo
jurídico, sendo interessante notarmos que, “com o advento do Estado criminoso que foi o Es-
tado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gus-
5 Trata-se do bem conhecido ideal de neutralidade científica, tão propalado pelos defensores do positivismo, incluindo a concepção jurídica kelseniana e sua teoria pura do direito, que defende a pureza metódica.
61
tav Radbruch, continuar a defender a tese de que a ‘Lei é lei’, e que o juiz deve, em qualquer
caso, conformar-se a ela” (PERELMAN, 2004, p. 95).
Tal narração das grandes reviravoltas operadas após a infeliz experiência humana da
dor e da opressão política dos regimes totalitários nos faz assumir a compreensão definitiva de
que se passou a redefinir o caráter do direito e da influência dos valores e critérios morais no
seu conteúdo, resgatando o esquecido ideal de justiça, restando como ensinamento, pelo me-
nos a partir da experiência alemã que:
[...] é impossível identificar o direito com a lei, pois há princípios que, mes-mo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover, dentro os quais figura em primei-ro plano a justiça (PERELMAN, 2004, p. 95).
Importante destacar a figura singular de Gustav Radbruch e o avanço que representou
suas ideias na filosofia do direito indissociável do conceito de valor, o qual, conforme nos diz
Larenz (1997), valendo-se das ideias desenvolvidas por Rickert, Windelband e Lask, vai mais
além de qualquer deles, sendo uma boa contribuição de sua parte a maior importância atribuí-
da ao conteúdo e ao nexo significativo dos valores que são relevantes para o direito, não sen-
do, assim, de seu interesse apenas a estrutura formal do pensamento das ciências sociais ‘refe-
ridas a valores’. Ainda segundo Larenz (1997), ele realizou fundamentalmente a transição de
uma filosofia dos valores de caráter essencialmente formal para uma filosofia dos valores de
cunho material, tendo estabelecido, para isso, três diferentes sistemas de valores, de certa
forma ideal-típicos, entre os quais um previa que cada indivíduo seria livre para realizar uma
escolha segundo sua própria concepção.
Pelas próprias palavras de Radbruch (2004), percebe-se sua influência quanto à ideia
de ciência cultural, pois, para ele, a ciência do direito seria de teor cultural, inserida numa
realidade referida a valores, cujo sentido seria servir a valores, e o direito seria exatamente a
realidade que teria por fim servir ao valor jurídico, à própria ideia do direito. E reforça tal
entendimento afirmando que “a ideia do direito não pode ser outra senão a justiça” (RAD-
BRUCH, 2004, p. 47).
Noutro passagem, expressa sua posição quanto às relações entre os domínios da moral
e do direito, afirmando que “a relação entre ambos os domínios de normas reside muito mais
no fato de que a moral, por um lado, é fim do direito, e, por outro, exatamente por isso, é fun-
damento de sua validade obrigatória” (RADBRUCH, 2004, p. 66).
62
Ele desenvolve singularmente a importância do papel da moral no conteúdo do direito,
deixando claro que existe, entre essas duas realidades normativas, uma relação de serviço e
justificação, expressando literalmente o papel do direito em face das prescrições morais atra-
vés da permissão de obrigações jurídicas:
O direito serve à moral não por meio dos deveres jurídicos que impõe, mas pelos que consente. Ele dirige-se para a moral não pelo seu lado dos deveres, mas pelo dos direitos. Outorga direitos aos indivíduos para que, com isso, possam cumprir melhor os seus deveres morais (RADBRUCH, 2004, p. 68).
Importante destacar o fato de que, para Radbruch (2004), a ciência do direito, a que se
pode dizer ser uma ciência cultural compreensível, assume três características específicas no
tocante ao seu aspecto metodológico, que são o fato de ser compreensível, porquanto não é
dirigida ao aspecto fático de um sentido pensado qualquer, mas sim ao sentido objetivamente
válido dos preceitos jurídicos, o de ser individualizadora, uma vez que seu objeto não é a lei
individual e sim a ordem jurídica, da qual as leis fazem parte, e, por fim, o de ser referida a
valores, pois esse aspecto seria o único meio de evitar a dispersão da ciência individualizado-
ra ante a multiplicidade dos fatos individuais, permitindo a diferenciação dos fatos essenciais
dos que não o são.
Segundo Kaufmann (2004), a busca de uma terceira via entre o direito natural e o po-
sitivismo jurídico é hoje o principal tema da filosofia do direito, podendo-se considerar que
Radbruch, quanto a este aspecto, empreendeu uma transformação de paradigma que consistiu
no abandono da filosofia jurídica formada a partir de Hegel, de cunho formal, e na defesa de
uma filosofia jurídica material, em sede da qual se trata de conteúdos, e não somente de for-
mas e estruturas, distinguindo-se ele de Kelsen, apenas quanto ao fato de que, embora ambos
tenham sido igualmente influenciados pela filosofia kantiana, e, por isso, aquele apenas con-
sidera possíveis enunciados a priori, unívocos e cogentes referentes às formas, mas não aos
conteúdos, Radbruch distinguiu-se por não ter se limitado ao formal, tendo filosofado também
acerca dos conteúdos e, especialmente dos valores, tendo que pagar, assim, um alto preço
devido à sua posição kantiana, que é exatamente o seu relativismo axiológico.
Segundo o próprio Radbruch (2004), não é possível que alguma filosofia do direito
possa deixar de lado o conhecimento fundamentado por Kant, e reafirmado por Stammler, de
que só pode ser conhecido com validade geral o que tem caráter formal, devendo a filosofia
jurídica, se não quiser ser reduzida ao método, afastando-se do sistema, exatamente renunciar
à sua validade geral, ou, ainda, caso deseje sair da arbitrariedade de um único sistema, outro
63
coisa não fará do que desenvolver um sistema dos sistemas, mas sem definir uma posição em
relação a eles, o que constitui a própria finalidade da filosofia jurídica relativista.
Importante destacar-se a contribuição a esse debate resultante das reflexões de Robert
Alexy (2011), para quem a tese da separação, segundo a qual não haveria qualquer conexão
necessária entre o direito e a moralidade, só seria adequada e correta dentro da perspectiva do
observador, a não ser se tratasse da hipótese improvável de um sistema jurídico que não pos-
sua uma pretensão à correção, mostrando-se ela, por outro lado, totalmente inadequada em
relação ao ponto de vista de um participante, estando correta, no entanto, a tese que lhe é o-
posta diretamente, a da vinculação, fundamentando-se tal declaração segundo três argumen-
tos, que são o da injustiça, o da correção e dos princípios.
Em relação ao argumento da correção, o qual seria a base para os outros dois, assegura
Alexy (2011) que tanto as normas e decisões jurídicas individuais assim como os sistemas
jurídicos em geral formulam uma pretensão à correção, além ter demonstrado a relevância da
tese da vinculação, porquanto, por exemplo, no próprio ato de legislação constitucional incidi-
ria necessariamente uma pretensão à correção, a qual, dependendo do caso, poderia corres-
ponder, sobretudo, a uma pretensão à justiça.
Para ele:
[...] os participantes de um sistema jurídico nos mais diversos níveis formu-lam necessariamente uma pretensão à correção. Se e na medida em que essa pretensão tem implicações morais, fica demonstrada a existência de uma co-nexão conceitualmente necessária entre direito e moral (ALEXY, 2011, p. 47).
Um traço que se mostra característico na teoria alexyana é a consideração da impor-
tância dos princípios e a formulação de um argumento neles baseado como critério segundo o
qual o juiz estaria igualmente vinculado, mesmo no âmbito da abertura do direito positivo, de
uma maneira a criar uma relação necessária entre direito e moral, constituindo como base de
construção do argumento dos princípios a distinção entre regras e princípios. Segundo Alexy
(2011), as regras são normas cuja realização prescreve consequências jurídicas definitivas,
enquanto os princípios seriam normas que prescreveriam apenas que algo seja realizado em
máxima medida em face das possibilidades reais e jurídicas, destacando que as possibilidades
jurídicas de os princípios se realizarem são determinadas não somente por regras, mas, essen-
cialmente, por princípios opostos, o que implica ser sua aplicação dependente de ponderação,
a qual é a forma peculiar mediante a qual eles são aplicados.
64
Não se poderia deixar de apresentar, neste trabalho, a grande contribuição representada
pelas ideias concebidas por Lon L. Fuller, o qual, na opinião de Palombella (2005), é de gran-
de importância dentre os defensores das teorias que concebem o direito a partir de um ponto
de vista de uma relação necessária, ou interpenetração, em relação à moral, a qual chama de
“neojusnaturalismo”, afirmando que ele formulou o problema da relação entre essas duas or-
dens normativas destacando a existência de uma moralidade “interna” do direito, afirmando
sua relevância se justificar pelo fato de tal postura constituir uma tentativa de dar um trata-
mento adequado do fenômeno jurídico em suas especificidades, correspondendo a uma posi-
ção extremamente crítica do positivismo jurídico.
Segundo o próprio Fuller (1969), os princípios que ele apresenta representam, de certa
maneira, uma vertente de direito natural, embora ele mesmo se esforce por distinguir as leis
naturais de sua forma peculiar de atividade humana que ele identifica como “a aventura de
submeter a conduta humana ao governo das regras” (FULLER, 1969, p. 96, tradução nossa)6,
estabelecendo, assim, a diferença entre direito natural substantivo e direito natural procedi-
mental, segundo a qual a moralidade interna do direito corresponderia a uma versão procedi-
mental do direito natural, deixando claro, também, que o termo por ele utilizado, “procedu-
ral”, mostra-se bastante apropriado para expressar que não se refere aos propósitos substanti-
vos das normas legais, mas sim a respeito das formas segundo as quais um sistema de regras
que regulamenta a conduta humana deve ser construído e administrado para que ele seja efi-
caz e permaneça como ele próprio se propõe.
No entanto, apesar de um aparente apelo jusnaturalista, podemos observar, na verdade,
tratar-se de uma teoria diferenciada, que não defende uma teoria material da justiça, mas sim
resume a questão ao aspecto formal do sistema jurídico e, no máximo, destaca a importância
da manutenção das condições adequadas da legalidade. Ele apresenta a justiça e legalidade
como noções muito próximas, chegando afirmar:
Uma grande afinidade entre legalidade e justiça é observada com frequência e é, de fato, explicitamente reconhecida por Hart [...], residindo tal identifi-cação numa qualidade compartilhada por ambas, que é exatamente o fato de elas expressarem-se mediante regras conhecidas. A moralidade interna do di-reito exige a existência de regras, que estas se tornem conhecidas, e que se-jam obedecidas na prática por aqueles encarregados de sua administração. [...] E ,ainda, assim como o direito antecede qualquer bom direito, agir-se segundo regras já conhecidas é uma precondição para qualquer avaliação
6 No original, em Inglês: “the enterprise of subjecting human conduct to the governance of rules”.
65
significativa acerca da justiça legal (FULLER, 1969, p. 157, tradução nos-sa)7.
6.2 AS TRANSFORMAÇÕES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UMA REDEFINIÇÃO
DAS RELAÇÕES ENTRE MORAL E DIREITO
O positivismo jurídico passou, ao longo do tempo, por algumas reformulações e assis-
tiu ao surgimento de uma vertente que não se conformou à tese da total exclusão do direito em
relação à moral, defendendo um ponto de vista mais aberto e reconhecendo um papel maior,
mesmo que de forma indireta ou não necessária, aos valores morais cuja consideração consti-
tui verdadeira necessidade social, sem os quais a organização humana restaria seriamente pre-
judicada.
Por sua vez, Hart (2007), reconhece e defenda a tese, que para ele mais se assemelha a
um corolário, de que não é possível discutir-se acentuadamente o fato de o desenvolvimento
do direito ter sido profundamente influenciado tanto pela moral convencional como por ideias
de grupos sociais particulares ou, mesmo, por críticas morais esclarecidas infligidas por indi-
víduos detentores de um horizonte moral transcendente da moral aceita comumente; contudo,
afirma ser ilegítimo que um sistema jurídico deva se conformar com a moral ou justiça, ou
deva repousar sobre uma convicção largamente difundida quanto à existência de um dever
moral de obediência a elas, não se mostrando correto, assim, que os critérios de validade das
leis utilizadas num sistema jurídico incluam, tácita ou explicitamente, uma referência à moral
ou à justiça.
A posição hartiana, neste ponto, não é muito diferente da kelseniana, ambos demons-
trando uma antipatia aparente em relação a qualquer forma de direito natural assim como de-
fendendo igualmente um ponto de vista que exclui do direito uma relação não mais que con-
tingente da moral. Contudo, como ele mesmo reconhece, o direito natural não é totalmente
sem importância, uma vez que:
Na verdade, a reafirmação continuada de alguma forma da doutrina do direi-to natural deveu-se em parte ao facto de que o seu atractivo é independente, quer da autoridade divina, quer da humana, e ao facto de que, apesar de uma terminologia e de muita metafísica que poucos podem aceitar nos nossos di-
7 No original, em Inglês, sem supressões: “One deep affinity between legality and justice has often been re-marked and is in fact explicitly recognized by Hart himself (p. 202). This ties in a quality shared by both, name-ly, that they act by known rule. The internal morality of the law demands that there be rules, that they be made known, and that they be observed in practice by those charged with their administration. These demands may seem ethically neutral so far as the external aims of law are concerned. Yet, just as law a precondition for good law, so acting by known rule is a precondition any meaningful appraisal of the justice of law.
66
as, contém certas verdades elementares de importância para a compreensão não só da moral como do direito (HART, 2007, p. 204).
Hart (2007), no contexto da especulação acerca das finalidades naturais da vida, reco-
nhece que, restritos ao aspecto mais prático e menos especulativo da questão, reconhece-se a
sobrevivência como uma finalidade necessária num sentido que importa mais claramente para
as discussões do direito humano e da moral, visto ser evidente que todos estamos a ela subme-
tidos, em decorrência da lógica da discussão, uma vez que a nossa preocupação está centrada
nos arranjos sociais com o fim de conseguirmos existir continuamente, restando saber, apenas,
se alguns arranjos sociais podem ser considerados leis naturais susceptíveis de descoberta pela
razão e qual a relação deles com o direito humano e com a moral. Assim, para ele:
A reflexão acerca de algumas generalizações bastante óbvias – na verdade, truísmos – respeitantes à natureza humana e ao mundo em que os homens vivem mostra que, enquanto estas se mantiverem válidas, há certas regras de conduta que qualquer organização social deve conter, para ser viável (HART, 2007, p. 209).
Hart dá um passo em direção a uma peculiaridade consistente na consideração da pre-
sença necessária, embora por via oblíqua, dos conteúdos morais relacionados com o que ele
denomina “conteúdo mínimo do Direito Natural” (HART, 2007, p. 209), o qual ele contrasta
claramente com outras construções teóricas que vão além desse conteúdo, assumindo uma
posição moralista, mas ainda positivista, em relação à questão, ao afirmar que “sem um tal
conteúdo, o direito e a moral não podiam apoiar o desenvolvimento do propósito mínimo da
sobrevivência que os homens têm, ao associar-se uns com os outros” (HART, 2007, p. 209).
Tal conteúdo vai ele expressar, o que pode ser tomado, de qualquer forma, como a indicação
de uma posição moral, a qual tenta condensar em algumas assertivas algumas verdades essen-
ciais acerca da vida humana em sociedade segundo um ponto de vista geral, na forma de cinco
características comuns à natureza humana, que são a vulnerabilidade humana, a igualdade
aproximada entre as pessoas, o altruísmo limitado, a existência de recursos limitados, além de
compreensão e força de vontade limitadas.
Com efeito, reconhece ele um paradoxo em relação à passagem da sociedade de soci-
ais regras meramente primárias para a atual sociedade regida pelo direito (sistema de regras
primárias e secundárias), uma vez que há tanto ganhos como perdas, destacando como positi-
vos a adaptabilidade à mudança, a certeza e a eficiência, enquanto afirma como custo disso
tudo exatamente o risco de que o poder organizado de forma centralizada também poder ser
utilizado como meio de opressão de uma quantidade de pessoas, sem as quais a sociedade
67
sobrevive tranquilamente, o que não seria possível numa sociedade de regras primárias
(HART, 2007).
A respeito da influência da moral na validade das normas jurídicas, ele trata estabele-
cendo dois conceitos de direito, um dos quais seria o amplo, o qual não considera inválida
uma lei iníqua ou injusta, e o outro seria o restrito, segundo o qual a validade de uma lei de-
penderia dos seus méritos em face da moral, indicando as razões em se adotar a primeira con-
cepção, uma vez que o contrário poderia prejudicar o estudo teórico ou científico do direito
enquanto fenômeno social, além de excluir certas regras existentes em conformidade com
todas as características complexas próprias do direito (HART, 2007). Assim, afirma ele:
Um conceito de direito, que permita a distinção entre a invalidade do direito e sua imoralidade, habilita-nos a ver a complexidade e a variedade destas questões separadas, enquanto que um conceito restrito de direito que negue validade jurídica às regras iníquas pode cegar-nos para elas (HART, 2007, p. 227-228).
Indo mais a fundo, o referido autor possibilita a consideração de uma justiça na aplica-
ção do direito, orientada pelo critério de tratar igualmente casos iguais, muito diferente de
uma suposta justiça no direito, afirmando existir, considerando-se que o sistema jurídico tem
o sentido mínimo segundo o qual deve consistir em regras gerais, algo que impede seja ele
considerado moralmente absolutamente neutro, sem qualquer contato necessário com princí-
pios morais (HART, 2010). Segundo ele, tal forma de consideração e exigência seria a justiça
procedimental natural, a qual:
[…] consiste, portanto, naqueles princípios de objetividade e imparcialidade na administração do Direito que implementam apenas este aspecto do Direi-to e que são projetados para assegurar que as regras sejam aplicadas apenas àqueles que são, genuinamente, casos englobados por essa regra ou, pelo menos, para minimizar os riscos de desigualdades neste sentido (HART, 2010, p. 88-89).
Importante destacarmos a caracterização atribuída pelo autor à natureza dos valores
morais ou fins últimos que ele reconhece, uma vez considerá-los independentes da volição
humana exatamente por serem fruto de uma necessária imposição natural do mundo em que
vivemos (HART, 2010), o que representa a forma que ele encontrou de, ao mesmo tempo,
afirmar alguns preceitos morais que devem estar necessariamente presentes no conteúdo do
direito e expressar que estes têm sua origem na compreensão da sociedade atual e de suas
exigências de sobrevivência, o que impede afirmar algo além do próprio positivismo jurídico,
já que a forma de imposição não pode ser discutida.
68
Mostra-se pertinente introduzir a distinção que nos apresentam Duarte e Pozzolo
(2006), a qual se baseia nos estudos do Professor Rafael Escudero, segundo a qual o positi-
vismo jurídico pode ser classificado em duas classes, a forma sem qualificativos, que corres-
ponderia à estrita subserviência às teses defendidas por Hart, quais sejam, a separação concei-
tual entre direito e moral, a tese das fontes sociais do direito e a discricionariedade judicial; e
a forma com qualificativos, a qual é divida em duas subespécies, que são o positivismo jurídi-
co inclusivo e o positivismo jurídico exclusivo, das quais a primeira sustenta a possibilidade,
mas não necessidade, de determinações jurídicas serem estabelecidas em função de prescri-
ções morais, enquanto a segunda nega qualquer possibilidade.
Destacam Duarte e Pozzolo (2006) que o positivismo jurídico sem qualificativos justi-
fica a aceitabilidade das teses defendidas por Hart e as prende numa concepção epistêmica
que restringe a pretensão científica da teoria do direito apenas à descrição do fenômeno jurí-
dico, o que inviabiliza qualquer chance de justificação do fenômeno jurídico sobre as bases de
uma teoria positivista de caráter normativo, como seria caso fosse necessário justificar as o-
brigações que impõem o direito, além do que tal posicionamento, que rejeita claramente a tese
do positivismo incorporacionista ou inclusivo, traz problemas à pretensão de desenvolvimento
de uma teoria compreensiva do direito contemporâneo, preenchida densamente por conflitos
éticos que tornam inseparáveis o discurso jurídico e o discurso moral.
Sustentam eles, ademais, no contexto do neoconstitucionalismo, fenômeno das novas
formas de constitucionalismo, que passaram pelas críticas ao modelo juspositivista de direito
e estão inseridas nas discussões acerca da postura moral da teoria constitucional, que não é
possível conceber-se uma teoria jurídica do conceito de direito derivado do neoconstituciona-
lismo com o desprezo de critérios materiais ou valorativos de validez normativa nem com a
aceitação de tese que defenda uma forte discricionariedade judicial, uma vez que tais critérios
estão relacionados com a justificação moral e correção dos juízos jurídicos, ou mesmo com a
possibilidade de as normas jurídicas poderem obter validez jurídica a partir de uma dimensão
que se estende à verificação em torno de certo conteúdo de justiça, podendo-se considerar,
assim, que os juízos e proposições normativas formuladas pelo raciocínio jurídico evidenciam
existir uma pretensão de correção normativa imanente à própria normatividade ou retitude
exercida pelos requisitos que regem os atos de fala regulativos, isso porque a inserção do
pressuposto de correção na configuração conceitual do direito canaliza a incorporação con-
ceitual da moral ao direito (DUARTE & POZZOLO, 2006).
A título de esclarecimento, mostra-se interessante apresentar as duas correntes de posi-
tivismo qualificado já referidas, para podermos apresentar melhor o mérito de cada uma delas
69
em relação ao papel da moral no direito, além da maior afinidade com os propósitos do pre-
sente trabalho. Assim, com relação à corrente exclusiva, indicam tanto Duarte e Pozzolo
(2006) como Dimoulis (2006) ser Joseph Raz seu principal representante, apesar de este últi-
mo descrever ter o Próprio Raz preferido caracterizar sua abordagem como strong social the-
sis8 ou, principalmente, sources thesis.
Dimoulis (2006) resume tal posição, afirmando que, segundo ela, a moral não pode
servir, em qualquer hipótese, como critério de identificação do direito positivo, tanto no re-
conhecimento de sua validade quanto na realização de sua interpretação, o que denota uma
versão rigorosa da tese da separação entre direito e moral, podendo-se, ainda, concluir que,
assim, o direito seria estabelecido exclusivamente por fatos sociais, sendo necessário, para a
constatação de sua existência e determinação de seu conteúdo, apenas a observação das con-
dutas humanas que o criam a partir de uma convenção social.
Por sua vez, Duarte e Pozzolo (2006) afirmam que o modelo exclusivo do positivismo
jurídico reconhece que os próprios fatos sociais podem importar em determinadas consequên-
cias de ordem moral, o que não significa, todavia, que a descrição do fenômeno jurídico deva
ser concebida a partir de uma concepção que contemple a obrigatoriedade de uma conexão
entre bases fáticas e conteúdos morais.
Para Raz (2010), o aspecto mais fundamental dos sistemas jurídicos é o fato de consis-
tirem em sistemas normativos determinados por características que definem sua função como
instituição social, ou seja, um determinado modo de organização social, além do que a maio-
ria das críticas às teorias do direito natural concentra-se na distorção dessa característica, as-
sim como numa concepção equivocada acerca da natureza da moral. Segundo sua concepção,
as teorias do direito natural, tomadas por ele indistintamente e na sua totalidade, seriam defi-
cientes em dar uma explicação plausível acerca da normatividade do direito, o que se faz atra-
vés do uso da linguagem normativa que descreve o direito:
[...] se as teorias do direito natural pretendem explicar o uso da linguagem normativa em tais contextos, elas devem provar não apenas que toda lei é moralmente válida, mas também que isso é amplamente reconhecido e que, portanto, é relevante para a aplicação da linguagem normativa ao direito. Já que isso não ocorre, o direito natural não é capaz de explicar a normativida-de do direito (RAZ, 2010, p. 168).
8 Tal expressão é uma referência ao aspecto de que o direito deve ser precisamente e apenas um reflexo fiel da realidade social e sua prática, o que exclui qualquer elemento metafísico ou moral diretamente definidor do seu conteúdo e dos critérios de reconhecimento da composição de um sistema jurídico. Então, o adjetivo strong está aí para expressar a sua posição diferenciada da social thesis “fraca”, da qual seria um exemplo a teoria de Hart.
70
Neste ponto, cumpre reconhecer que tal autor mantém-se umbilicalmente ligado ao
positivismo jurídico de herança analítica pela valorização da linguagem, assim como na su-
pervalorização do aspecto meramente descritivo do modelo de juridicidade por ele apresenta-
do, o que pode evidenciar o reducionismo de sua teoria, constatando-se a ausência de algum
elemento moralmente material como critério de validade das regras do direito, podendo-se
entender ser essa mesma a sua concepção de juspositivismo, radical em relação ao fechamen-
to do sistema jurídico a elementos éticos materiais de reconhecimento da validade e definição
do conteúdo do direito.
Mostra-se, assim, proveitoso introduzir aqui algumas das ideias que são frutos do pen-
samento ulterior de Norberto Bobbio9, marcado por uma maior preocupação com o aspecto
político e social do direito, passando a dotar uma perspectiva funcional, e, por isso, afastando-
se um pouco do estruturalismo normativista de matiz kelseniana, o que inclui a adoção de um
sistema jurídico aberto, que reconhece diretamente a importância de outras fontes, pois, con-
forme nos diz:
Não há dúvida de que um dos aspectos mais interessantes da discussão em torno do direito, nesses anos, é o fato de terem sido questionadas as fontes tradicionais das normas jurídicas, inclusive nos países continentais. Esse questionamento é acompanhado da importância cada vez maior dada às chamadas fontes extralegislativas (ou, até mesmo, extra-estatais). Um dos dogmas do positivismo jurídico em sentido estrito foi que a fonte principal do direito no Estado moderno fosse a lei, isto é, a norma presumidamente ge-ral e abstrata posta por um órgão especifica e exclusivamente competente, de acordo com a constituição. Um dos aspectos pelo qual se manifesta a crise do positivismo jurídico é a crescente emergência de outras fontes do direito, que minam o monopólio da produção jurídica detido pela lei [...] (BOBBIO, 2007, p. 41).
Acrescenta, ainda, Bobbio (2007), que igualmente constata-se, nas reflexões sobre o
direito estabelecido, uma revalorização do papel criador do direito pelo juiz, afirmando-se a
exigência de um maior empenho na atividade de adaptação do direto às transformações soci-
ais, reclamando, assim, maior importância à função normativa do trabalho dos juristas.
A abordagem de Raz acerca da validade do direito, a despeito do que já foi apresenta-
do, pode ser mais bem compreendida, segundo Dimoulis (2006), a partir de sua concepção de
autoridade, a única fonte de direito reconhecida, a qual deve agregar em si, para poder ser
exercida, duas condições, que são, primeiramente, o fato de que os destinatários do comando
9 Para maiores esclarecimentos, consultar a completa apresentação da evolução de seu pensamento em relação ao positivismo jurídico de Hans Kelsen feita por Mario Losano no prefácio à edição brasileira de uma das mais evidentes obras de Bobbio neste aspecto, que é Da Estrutura à Função, edição brasileira concebida por conta da Editora Manole.
71
prestam obediência porque confiam na autoridade ou se sentem intimidados por ela, e, em
segundo lugar, a obediência às ordens da autoridade estar presente independentemente do
juízo de valor exercido contra ela pelo destinatário.
Por sua vez, a corrente do positivismo inclusivo, conforme nos diz Dimoulis (2006),
também conhecido por incorporacionism ou soft positivism, cujos representantes intentam
conciliar o positivismo com uma posição moralista, é adotada por muitos autores atuais, como
David Lyons, Jules Coleman, Wilfrid Waluchow e o próprio Herbert Hart, este de acordo com
texto póstumo em que ele mesmo o reconhece, podendo-se caracterizá-la através da conside-
ração de que os valores morais não são sempre decisivos para a definição e aplicação do direi-
to, afirmando-se, contudo, que pode haver uma convenção social impondo levar-se em consi-
deração a moral como determinante da validade e da interpretação das normas jurídicas.
Interessante destacar-se o fato de que, para essa corrente, a análise de Hart quanto à
identificação do direito a partir de uma regra secundária de reconhecimento pode significar
também que esta regra possa incorporar critérios de validade que obrigam o reconhecimento
de qualidades substanciais das normas, podendo a moral, segundo tal ponto de vista, tornar-se
diretamente importante para o sistema jurídico quando a tal regra de reconhecimento incluir
valores morais (DIMOULIS, 2006).
Complementa o entendimento dessa posição duas teses adicionais, além da tese da
incorporação do direito à moral, que são, no dizer de Duarte e Pozzolo (2006), a do conven-
cionalismo, segundo a qual o próprio processo de reconhecimento do direito válido, que se faz
mediante a regra de reconhecimento, é determinado a partir de práticas sociais de reconheci-
mento do direito válido, desembocando no reconhecimento da existência de certo convencio-
nalismo sobre os critérios de legalidade, e a da diferença prática, que consiste em afirmar-se a
necessidade de os pronunciamentos da autoridade, proferidos com o objetivo de se constituí-
rem em direito, poderem diferenciar, na prática, os âmbitos de deliberação dos de ação das
pessoas e, assim, provocarem uma atitude de conformidade ao conteúdo das regras jurídicas,
podendo-se considerá-la importante no papel de orientação efetiva provocada com o direito,
ou para esclarecerem-se as condições que efetivam a prática jurídica.
O positivismo jurídico atual, em suas diversas manifestações, procura atender aos pro-
testos de formalismo e neutralidade axiológica, o que, de fato, pode-se constatar satisfeito em
alguma medida, não tão satisfatoriamente, porém, quanto àquelas teorias que procuram se
afastar do relativismo moral como única forma de relação adequada com o direito, procuran-
do, assim, construir as concepções jurídicas que defendem a necessidade de uma consideração
imanente de critérios morais e juízos de valor na determinação do conteúdo e validade do di-
72
reito, que é o caso do chamado culturalismo jurídico, que se traduz, entre outros aspectos, pela
emergência de uma ordem objetiva dos valores como elemento essencial do conceito de direi-
to, o que será objeto da próxima seção e contribuirá para apresentar uma merecida imbricação
dos valores morais na própria definição da realidade jurídica.
6.3 O CULTURALISMO JURÍDICO E O DESAFIO DA CONSTRUÇÃO DE UMA OR-
DEM OBJETIVA DOS VALORES
O culturalismo jurídico, corrente da filosofia do direito que estendeu influência por
vários países, incluindo ramificações e teóricos de peso na América Latina, é responsável por
apresentar o direito de forma a considerar uma relação necessária entre a realidade jurídica e
os elementos morais representados pelos valores, os quais são concebidos, já desde os estudos
de Lask e Radbruch, pertencentes ao mundo da cultura. Particularmente, podemos citar, entre
outros, como grandes representantes dessa vertente jurídica e filosófica em face da completu-
de e complexidade de suas concepções, Luís Cabral de Moncada, Miguel Reale e Luis Reca-
séns Siches, podendo-se considerar sempre, em suas obras, a referência a um conceito de di-
reito inseparável de um vínculo axiológico necessário e condicionante de sua realização práti-
ca, porquanto emerge uma ordem de valores que é naturalmente constatada objetivamente em
meio à realidade jurídica, objeto de uma construção histórica dos fatores morais que constitu-
em a normatividade.
Para Moncada (1966), não há direito positivo sem uma moral positiva, a qual é, como
ele mesmo, histórica e temporalmente condicionada, além do que os fundamentos e a origem
da obrigatoriedade jurídica somente são comunicados ao direito através da sua dependência
em relação à moral. Por outro lado, continua, há uma contraprestação prestada pelo direito,
pois “o direito positivo dá, em primeiro lugar, à moral a proteção e o reforço coercitivo da-
quela parte fundamental dos preceitos desta, considerada o mínimo ético, sem o respeito da
qual a própria sociedade não poderia existir” (MONCADA, 1966, p. 139).
Importante destacar, conforme afirma o referido mestre lusitano, que as ideias de valor
e de norma antecedem a própria ideia de dever-ser, uma vez que qualquer expressão do dever-
ser seria ineficaz e sem sentido caso não estivesse referido a uma norma ou valor preexistente,
podendo-se diferenciar essas três ideias apenas com relação ao grau de intelectualização abs-
trata com o qual nós as representamos em nossa inteligência teorética, podendo-se diferenciá-
las nos termos em que o valor seria um fenômeno concreto da consciência imediatamente
apreensível por meio de uma revelação única e peculiar, antes de qualquer construção intelec-
73
tual generalizadora, a norma, por sua vez, a própria construção generalizante posteriormente
realizada pelo intelecto, cujo fim é servir a uma pluralidade de consciências e pessoas em vi-
vência comum, e o dever-ser, por fim, uma síntese dos dois elementos anteriores, mas desta
vez por meio da elaboração em um plano mais elevado da abstração do intelecto e da máxima
generalização (MONCADA, 1966).
O Professor Luis Recaséns Siches trata o problema das relações entre direito e moral
de uma forma diferenciada, reconhecendo uma maior importância à preservação do aspecto
formal do direito, o único realmente capaz de satisfazer à exigência de universalidade, pois
segundo ele:
Por um lado, resulta que caso pretendamos estabelecer uma noção formalista universal do jurídico, uma noção de Direito em termos gerais, não podemos introduzir dentro de tal conceito ou noção o conteúdo da estimativa ou valo-ração jurídica. Pois se procedêssemos assim, então obteríamos não uma no-ção essencial de Direito, mas sim a ideia de Direito justo, do Direito que sa-tisfaz os requisitos de valor, isto é, as exigências estimativas. (RECASÉNS SICHES, 2009, p. 188-189, tradução nossa) 10.
Contudo, mesmo mantendo a pretensão de estabelecer um conceito essencial ou uni-
versal do Direito, sem adjetivos, reconhece Recaséns Siches (2009) que deve estar contido em
tal conceito ser sua tarefa regular a conduta humana, cujo objeto são pessoas humanas en-
quanto tais, que dizer, enquanto sujeitos intrinsecamente dotados de dignidade ou detentores
de fins próprios, sendo cada qual um fim em si mesmo, devendo, por isso, possuir autonomia
ou liberdade. O referido mestre reconhece, assim, a necessidade de estabelecer um conceito
de direito cujos parâmetros não se resumam apenas à observância da legitimidade das condi-
ções políticas de emanação, senão também incluam a valoração do conteúdo possível das
normas, pois:
[...] ainda que as normas do Direito positivo emanem do mandato do poder político elas não podem ser, de nenhum modo, entendidas como meros feitos de poder. De qualquer forma, são feitos humanos e, enquanto tais, têm es-sencialmente um sentido, uma significação. Ora, este sentido consiste fun-damentalmente na referência a valores. Ou expressando o mesmo de outro modo, a normatividade do Direito positivo careceria absolutamente de senti-
10 No original espanhol: “Por un lado, resulta que si pretendemos establecer una noción formalista universal de lo jurídico, uma noción del Derecho em términos generales, no podemos introducir dentro de tal concepto o noción el contenido de la estimativa o valoración jurídica. Pues si procediésemos así, entonces ló que obtendría-mos no sería la noción esencial del Derecho, antes bien la idea del Derecho justo, del Derecho que satisficiese lós requerimientos de valor, esto es, las exigências esimativas”.
74
do caso não estivesse referida a um juízo de valor, que é precisamente o que a inspira (RECASÉNS SICHES, 2009, p. 279, tradução nossa11).
Miguel Reale (1992), por sua vez, afirma, no tocante ao problema das relações entre
direito e moral e as variáveis mutações históricas, que tal questão é indissociável das concep-
ções dominantes acerca do indivíduo e da sociedade, do povo e do Estado, e envolve, na ver-
dade, a estrutura axiológica vigente de forma integral, em cada sistema cultural, o que implica
os assuntos estarem íntima e essencialmente relacionados em diferentes totalidades históricas
de sentido, que correspondem a diferentes condições humanas. Com isso, o ilustre mestre
paulista acentua, em sua teoria, a grande valorização do caráter histórico das condições de
reconhecimento dos valores, que são inseparáveis do conceito e aplicação do direito, demons-
trando que a experiência jurídica, que tem caráter concreto, está condicionada pelas concep-
ções culturais ou axiológicas dominantes na comunidade, cujos elementos refletem-se na
construção da normatividade.
Importante destacarmos que, ainda segundo o mestre Reale (1992), o direito distingue-
se da moral, mesmo em sendo ambos realidades do mundo ético, a partir da característica de
que, a bilateralidade, propriedade observada ontologicamente tanto na moral como no direito,
as quais são atividades igualmente espirituais, uma vez, a partir do prisma da alteridade, no
caso daquela, a instância valorativa residir no agente, o qual seria a própria medida do ato
valorativo, que deve pôr-se obrigatoriamente em relação com outrem, e, no caso deste, poder-
se afirmar decorrer a validade da relação de sua coordenação objetiva, o que importaria na
superação do ego e do alter a envolvê-los numa relação comum, em função da qual poderiam
existir pretensões recíprocas ou não entre os participantes, consistindo essa última na bilatera-
lidade própria do mundo jurídico, a bilateralidade transubjetiva ou atributiva.
Segundo se pode observar na teoria de Reale (1992), mesmo o processo de objetivação
representada pela experiência jurídica, a qual é normativa e coercível, não tem como conse-
quência a perda da espontaneidade própria da moral, uma vez que, ao contrário, tal processo
tem apenas como objetivo a ordenação objetiva das relações sociais, ao menos segundo a in-
tencionalidade e renovada tentativa de preservação da própria subjetividade, o que permite
exatamente que o espírito se revele multiformemente, inclusive mediante formas de vida con-
flitantes. Para ele:
11 No original espanhol: “aunque las normas del Derecho positivo emanen del mandato del poder político, ellas no puedem ser de ningún modo entendidas como meros hechos de poder. Em todo caso, son hechos humanos, y, em tanto que tales, tienen esencialmente um sentido, uma significación. Ahora bien, este sentido consiste funda-
mentalmente em la referencia a valores. O espresando lo mismo de outro modo, la normatividade del Derecho positivo carecería en absoluto de sentido si no estuviese referida a um juicio de valor, que es precisamente lo
que la inspira”.
75
Os processos de objetivação normativa poderão variar de um ordenamento jurídico para outro, mas talvez seja possível dizer-se que a linha ideal do de-senvolvimento histórico do direito se projeta no sentido de uma objetividade jurídica ideal, daquela que mais possa realizar socialmente os valores da sub-jetividade, em extensão e profundidade. Na conjuntura dos nossos tempos, são as ‘sociedades plurais’ as que se mostram mais fiéis a esse sentido deon-tológico da história (REALE, 1992, p. 270).
Não obstante tudo o que já foi exposto, cumpre destacar, de maneira expressiva, uma
característica essencialmente peculiar dessa corrente, tal como defendida por alguns autores,
como o próprio Reale, mas também Siches, de que um traço essencial dos valores, concebidos
como critérios ou pautas axiológicas inseparáveis da realidade jurídica concreta, é o fato de
serem concebidos a partir de uma objetividade ou encerrarem critérios últimos que constituem
uma ordem objetiva diretamente condicionante das condições de realização do direito, o que
vai frontalmente de encontro ao ponto de vista positivista, que, reconhecendo o caráter formal
do direito de maneira proeminente, não considera os valores mais que meras expressões sub-
jetivas que podem influenciar o direito de maneira indireta, defendendo, apenas, um mero
relativismo, segundo o qual seria provável que o direito incorporasse qualquer conteúdo, ain-
da aquele que não fosse o moralmente mais adequado ou o verdadeiro reflexo das aspirações
dos seres humanos, resumindo a questão da validade apenas às condições de regularidade do
ato de que emanam as normas jurídicas, sem discutir comprometidamente seus méritos mo-
rais.
Assim, para Siches (2009), os valores não são puras atitudes subjetivas nem constitu-
em somente projeções de mecanismos mentais, senão tem existência objetiva, e sua objetivi-
dade é imanente à existência humana, pois, mesmo que os homens não criem os valores, de-
vem reconhecê-los, estando o sentido deles essencialmente referido a sua existência, especifi-
camente relacionados também com o contexto das situações particulares e concretas da vida
humana. Contudo, ainda segundo ele, tal característica não impede que os juízos de valor con-
cretos estejam relacionados com algumas realidades humanas sociais particulares, quer dizer,
que tais juízos de valor sejam relativos a situações concretas, históricas, assim como às cir-
cunstâncias de lugar, de fato e de época, uma vez tais relatividades não implicarem oposição à
objetividade dos critérios valorativos, mas sim refletirem a necessidade de a realidade social
particular exercer influência e condicionar a elaboração das normas jurídicas.
Reale (2002), por sua vez, trata a questão em termos de que os valores não existem
autonomamente ou, de per si, não se constituem em realidade material, mas se manifestam
não coisas que são valiosas, constituindo uma manifestação que se revela a partir da experiên-
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cia humana através da história, uma vez serem algo que o homem realiza com sua própria
experiência e assume diversas e exemplares expressões através do tempo. Segundo ele, são
eles dotados de objetividade, porquanto sua possibilidade de reconhecimento é inexaurível,
representando uma abertura sem fim para novas determinações do gênio inventivo e criador.
Contudo, tal objetividade é relativa exatamente pelo fato de que, ontologicamente, eles só
existirem em relação aos homens, em referência a um sujeito, o qual é o homem mesmo, só
que como sujeito universal de estimativa, não se reduzindo às vivências de algum indivíduo
da espécie.
O pensamento de Reale é detentor de uma importante abertura conceitual do fenômeno
jurídico, assim como dos critérios que influenciam a sua normatividade, para estudos de or-
dem sociológica que dão conta de apresentar uma característica essencial do direito, que é
justamente o fato de ele consistir numa realidade que regula a conduta humana através de re-
gras concebidas segundo uma posição ética que nem sempre coincide com o desejo dos desti-
natários, o que, inclusive, justifica a própria objetividade dos valores, pois, como afirma, “o
certo é que eles [os estudos] representam um esforço notabilíssimo no sentido de explicar a
objetividade dos valores, a razão pela qual os valores se impõem aos indivíduos, muitas vezes
contrariando frontalmente seus desejos” (REALE, 2002, p. 199).
No centro da teoria de Reale repousa a compreensão de que o homem ocupa uma po-
sição peculiar e única do processo da regulação de sua própria conduta através dos reflexos de
sua vivência, sendo concebido segundo um ponto de vista das suas próprias finalidades, pois
“somente o homem, de uma forma originária e fundante, é e deve ser, e, mais ainda, que o
homem é o seu dever ser” (REALE, 1994, p. 81), podendo-se, assim, reconhecer, como ele o
faz, a importância do conceito de pessoa como elemento necessário da existência dos valores:
Toda a minha perspectiva histórica [...] gira em torno de um ponto firme, que é como a alma e a condição imanente da experiência jurídica: é a ideia de pessoa, não entendida como substância dogmaticamente pressuposta à pesquisa filosófica, mas como imanente possibilidade de escolha constitutiva de valores (REALE, 1994, p. 82).
Por fim, o insigne mestre paulista apresenta um conceito de direito peculiar, que o
compreende a partir da realidade do mundo da cultura, integrando elementos fáticos e axioló-
gicos, segundo um ponto de vista historicista:
O direito é, pois, uma espécie de experiência cultural, isto é, uma realidade que resulta da natureza social e histórica do homem, o que exige nele se con-sidere, concomitantemente, tanto o que é natural como o que é construído, as contribuições criadoras, que consciente e voluntariamente se integram e
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continuam se integrando nos sistemas jurídico-políticos. Daí se apresentar sempre como síntese ou integração de “ser” e de “dever-ser”, de fatos e valo-res, quer em experiências particulares, quer na experiência global dos orde-namentos objetivados na história (REALE, 1992, p. 111-112).
Diante de tudo o que já foi apresentado, cumpre destacar a pertinência da noção de
vigência do direito concebida por Reale (2002), a qual se afasta da visão exclusivamente nor-
mativista, que considera tal propriedade relacionada somente com os requisitos formais ne-
cessários à aquisição ou perda de vigor, para defini-la em termos de referência aos valores que
permitem o surgimento da regra de direito, assim como relacionada às condições fáticas que
podem assegurar sua eficácia social.
Acerca desse aspecto, mostra-se valioso expressarmos que tal peculiaridade é de fun-
damental importância e segue claramente o conceito de direito por ele irremediavelmente ado-
tado, que põe no centro a questão da valoração inerente à consideração da norma jurídica
sempre com vistas às possibilidades concretas de realização dos valores que emanam por
meio da realidade do direito, a qual assume o papel de um verdadeiro estandarte de promoção
do bem moral cuja fonte primordial é a própria pessoa, considerada um valor supremo e sem-
pre aberto à atualização histórica, o que a torna perene fonte de realização do bem comum.
Assim, mostra-se extremamente frutuoso concordar com o ilustre mestre no tocante ao
evidente sucesso teórico de sua concepção de direito e seu tridimensionalismo, segundo estas
palavras:
O mérito do Culturalismo Jurídico, o que o torna preferível a todas as dou-trinas sobre a natureza e o fundamento do Direito, é exatamente a apreciação integral da vida jurídica, que não é só norma, nem só fato social. O Direito é uma realidade tridimensional, que apresenta um substratum “fático” (dado de natureza, circunstância histórica etc.) no qual se concretizam valores de cultura, e, ao mesmo tempo, é norma que integra em unidade superior o pro-cesso incessante de atualização dos valores (REALE, 1977, p. 266).
Sua proposta, ao final das contas, segundo suas próprias palavras, é a de conceber o
Direito como “fato cultural”, elemento que faz parte da ciência da cultura, e assim ver abertas
maiores perspectivas em favor de se compreender os problemas jurídicos de uma forma mais
ampla e humana, o que se faz mediante a adoção de uma orientação inspirada no realismo
crítico contemporâneo, possibilitando um entendimento mais nosso de nossos próprios orde-
namentos, conforme as tendências mais fundamentais de nossa cultura (REALE, 1977).
Podemos considerar, assim, que tal corrente teórica, responsável pelo desenvolvimento
de uma concepção jurídica inseparável da questão moral, a qual condiciona diretamente e
integralmente o seu conteúdo, consiste numa forma eficaz de transformar o direito num meio
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mais eficaz de realização humana e social, o que se faz mediante uma proposta bastante ade-
quada à grande complexidade das sociedades atuais, as mais diversas, incluindo seus desafios
e peculiaridades culturais enquanto comunidade.
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7 CONCLUSÃO
A realidade do mundo ético e jurídico, desde a Antiguidade, aponta sempre a relevân-
cia da questão existencial na determinação do conteúdo e natureza do direito, pois o homem,
nas diferentes épocas de sua existência, procurou sempre construir um modelo de juridicidade
que correspondesse às suas expectativas de não frustrar os meios de sua consagração social e
proporcionasse a satisfação dos bens mais importantes à sua alma, inclusive a vida sobrenatu-
ral.
Atualmente, embora não exista dúvida de que a sociedade é um reflexo do homem que
nela vive e que o direito deve ser um meio eficaz de manter a ordem e paz social, pode-se
considerar que um modelo normativo diferenciado e aberto pode contribuir de maneira direta
para um avanço nas relações entre as pessoas, uma vez consistir numa maneira de definir a
necessária atualização do conteúdo das regras através da inserção de critérios e juízos de valor
na aplicação prática das normas jurídicas, uma vez restar mais que evidente ser a única certe-
za na ciência do direito a possibilidade de seu funcionamento de acordo as balizas de ordem
moral e espiritual que reconhecem ser o homem, ao mesmo tempo, detentor de um núcleo de
indeterminação essencial e capaz de evidenciar atributos éticos que o marcam eternamente e
que ajudam na própria constituição da sociedade.
O positivismo jurídico, mesmo com todo o seu esforço em prol de uma concepção ló-
gico-sistemática e normativista do fenômeno jurídico que procura, de alguma forma, atender
eficazmente, embora de maneira unitária e unidimensional, as necessidades de regulamenta-
ção da conduta humana através do seu conceito de direito e da própria natureza do direito,
caso não seja orientado devidamente por um espírito crítico favorável à sensível e evidente
efusão dos valores e critérios materiais de conteúdo e validade das normas jurídicas, pode
tornar-se, ao contrário, uma metodologia que vai de encontro às reais necessidades de controle
social da conduta, já que passaria a menosprezar a única característica realmente essencial de
qualquer ordem social de conduta humana, que é exatamente o fato de estar construído, inclu-
sive munido de poder coercitivo-legal, em função da promoção e defesa dos valores e bens da
pessoa enquanto ser dotado de intrínseca dignidade.
Da mesma forma, os inúmeros esforços travados cotidianamente na tarefa de aplicação
do direito não podem ser realizados simplesmente à maneira da identificação literal do que
contém a lei, senão que devem estar devidamente amparados e orientados por uma postura
aberta do sistema jurídico aos valores ético-políticos relevantes e reconhecidos na comunida-
de jurídica, os quais permitem, mediante o reconhecimento, cada vez maior, do papel criador
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do juiz através de juízos de valoração, que dependem, afinal de contas, da indispensável sub-
jetividade do interprete enquanto razoável escolha objetiva de uma solução correta baseada na
própria realização do humano através da consideração dos seus atributos morais, cuja concre-
tização observa-se mediante sua transposição à realidade prática do direito.
Por isso naturalmente tem-se atribuído tanto expressão, ultimamente, às correntes po-
sitivistas moderadas, que, exatamente por reconhecerem devidamente as limitações do antigo
modelo de positivismo normativista lógico e cerrado num ideal de autossuficiência pelas
normas em si, e não pela adequação do conteúdo aos evidentes propósitos da sociedade hu-
mana, podendo-se considerar essa postura adequada ao que se propõe ser o direito nas socie-
dades complexas, quando a normatividade funde-se à identificação ética com o justo.
Só para mantermos uma ligação mais direta com a jurídica atual, mostra-se proveitoso
referirmos que, no estado presente das relações entre a moral e o direito, o próprio sistema
jurídico é bastante claro quando, contemplando em seu seio um sistema de princípios e valo-
res decorrentes que determinam os limites da aplicação e interpretação das leis vigentes, elege
um padrão ético objetivo que deve estar imanentemente presente no tratamento prático das
regras, podendo-se falar de um definido padrão de correção jurídica em função de se levar ou
não tal aparato ético-normativo em consideração, reconhecendo-se uma pretensão à correção
do sistema jurídico com base no devido reconhecimento dos elementos do mundo ético que
são obrigatoriamente parte integrante do direito, caso contrário não estaríamos falando de uma
sociedade composta por pessoas em seu sentido pleno, enquanto ser constitutivo de valor mo-
ral.
Não basta, para obtermos uma concepção adequada de normatividade jurídica, pre-
vermos que os bens necessários à mera sobrevivência do meio social em relação a ele mesmo
devam ser preservados ou guardados através do aparato legal coercitivo do Estado, pois tal
postura corresponderia simplesmente a conformar-se com todos os males que podem advir
pelo governo de todos os sentimentos que não correspondem ao bem espiritual e moral do
homem, devendo residir a obrigatoriedade jurídica e sua manifestação externa através da
norma no atendimento a que se reconheçam os vários fatores de ordem fática, axiológica e
normativa que, por fazerem parte de uma concepção integral do fenômeno jurídico, vão além
do formalismo e do relativismo e podem mais eficazmente determinar o que satisfaz ou não a
ideia de direito, inclusive a sua aplicação de forma diferenciada levando em conta as possibi-
lidades sócias de sua realização.
Assim, podemos considerar mais premente do que nunca uma exigência moral no pró-
prio conceito e na natureza do direito, devendo seu conteúdo refletir exatamente as necessida-
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des de normatização das condutas valiosas ao convívio social, não se podendo, sob pena de
conivência com uma grande injustiça, restringir-se a realidade jurídica ao aspecto puramente
legal ou a um sistema jurídico fechado, o qual não tem elementos precisos para captar as ne-
cessidades de concretização normativa numa situação específica de lacuna ou indeterminação
da lei, e, por conseguinte, não satisfaz o anseio de ultrapassar o limite da literalidade para pre-
encher um espaço vazio por meio de um processo que, ao considerar os elementos fáticos e
axiológicos que necessariamente estão em questão, produza uma interpretação inovadora,
uma vez que a própria figura da pessoa, centro de toda vida jurídica, é constantemente aberta
ao novo representado pela exigência de realização do bem.
Mais que nunca, atualmente é o tempo da complexidade social e das consequentes
exigências de mais adequada normatividade, a qual deve refletir a realização concreta das
exigências de promoção que constituem um sistema de controle social humano que não pode
estar restrito a uma supervalorização da repressão organizada, senão que, atenta à realidade
social, saiba construir elementos normativos que, não ficando na neutralidade, possam servir
como meio de realização da justiça social, da qual o direito deveria ser um instrumento eficaz,
uma vez estivesse constituído juntamente com a tendência de concretização dos valores.
O formalismo e o relativismo foram, portanto, dois dos maiores vilões para o avanço
de uma consideração integral da ideia de direito, o qual ficava distante de uma posição defini-
da eticamente e não estava atento a novas formas de compreender o homem e a sociedade que
podem ser consideradas uma verdadeira necessidade atual, pois o direito justifica sua validade
segundo os critérios socialmente exigidos, na qual vive a figura do ser humano, ente cujo as-
pecto físico não é o mais importante, mas o é o espiritual, pela simples realização dos seus
valores, os quais são uma imagem fiel de sua essência natural, que é o bem e a paz social.
Portanto, agora, mostra-se enormemente proveitoso atribuir-se o devido lugar ao pen-
samento orientado a valores e à abertura axiológica do sistema jurídico, como forma de impe-
dir que alguma necessidade de regulação jurídica da vida reste desamparada e que isso cor-
responda a um prejuízo ao bem da sociedade, ou que seja praticada uma verdadeira injustiça
legal ou omissão jurídica motivada unicamente na ausência de critérios objetivos que sirvam
como um marco de realização dos bens mais prementes da vida social, podendo a interpreta-
ção jurídica, se orientada pelos elementos devidos, constituir uma forma perene de renovação
e adequação da aplicação do direito e de sua transformação num sonhado instrumento de rea-
lização humana.
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