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{ PAGE \* MERGEFORMAT } UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS MESTRADO EM EDUCAÇÃO ROBERTO MARQUES A ESCOLA NUMA PERSPECTIVA ESPACIAL NITERÓI 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE …de magia que me obriga a incluir algo na idéia original; algo que a desfigura, que a faz parecer diferente do concebido na mente. Ao colocar

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS MESTRADO EM EDUCAÇÃO

ROBERTO MARQUES

A ESCOLA NUMA PERSPECTIVA ESPACIAL

NITERÓI 2007

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A ESCOLA NUMA PERSPECTIVA ESPACIAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação. Área de concentração: Estudos do Cotidiano da Educação Popular

Orientador: Prof. Dr. VICTOR VINCENT VALLA

NITERÓI, JUNHO DE 2007.

ROBERTO MARQUES

A ESCOLA NUMA PERSPECTIVA ESPACIAL

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Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação. Área de concentração: Estudos do Cotidiano da Educação Popular.

Prof. Dr. Jader Janer Universidade Federal Fluminense

Prof.ª Dr.ª Maria Tereza Goudard Tavares Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof.ª Dr.ª Mônica Dias Peregrino Ferreira Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Niterói, Julho de 2007

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Tenho tentado seguir o método que você me propôs: não escrever nada antes de analisar minuciosamente. Até descobrir todas as armadilhas possíveis, onde pode se ocultar a idiotice. Mas não é fácil, creia-me, é muito difícil. Por momentos a minha razão empenha-se em enganar-me. Leva-me a pensar que o simples fato de escrever para explicar um tema ou uma idéia, é uma espécie de magia que me obriga a incluir algo na idéia original; algo que a desfigura, que a faz parecer diferente do concebido na mente. Ao colocar a idéia no papel, é como se a manchasse com a própria tinta com que a escrevo e ao querer limpá-la, começo a sobrecarregá-la de analogias, de adjetivos, de verborragia, até perceber que a sintaxe, em vez de limpá-la, oculta-a quase por completo. E, pior ainda, quando me esforço por aprimorá-la, sem perceber, contamino-a com outra idéia. Outra idéia que costuma ser diametralmente oposta à original. Então a pluma corre frenética atrás dela, tratando de atrapalhá-la e eliminá-la. Mas, muitas vezes, o que consigo, e disso me dou conta quando leio o parágrafo recém-escrito, é fazer uma apresentação rigorosa e até deslumbrante da idéia parasita que conseguiu, sem fazer o menor esforço, desalojar minha intuição original. Talvez tudo isso pareça confuso, mas não é fácil de explicar.1

1 REBOLLEDO, Francisco. Rasero. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe e grande amiga, Tania, agradeço porque ‘é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho, por mais que pense estar’.

Ao meu irmão, Nícolas, pelo suporte técnico e por estar sempre aí. Enfim, por ser mesmo irmão.

À Denise Carvalho da Silva, pela companhia e companheirismo, ao longo deste estranho trajeto.

Ao meu orientador, Victor Vincent Valla, não só pela confiança de embarcar nessa proposta, mas principalmente por me apresentar novos significados para as palavras coragem e vida.

À professora Regina Leite Garcia, pelo incentivo, cuidado e pela confiança depositada.

À Maria Emília Silva e Valter Cruz, pela confiança e generosidade.

Ao geógrafo Renato Emerson, por todo o apoio.

Aos professores da escola onde trabalhei e que trouxe como campo de observação. Antes de tudo, sujeitos que construíram e constroem esse espaço.

À minha amiga Izzi, pelo apoio irrestrito ao projeto. Sem você...

Às minhas queridas Priscila “Japa”, Sheila e Raphaela. Sem vocês...

Aos meus professores: Ângela Siqueira, Cláudia Alves, Paulo Carrano, Valdelúcia e Joanir, pelos diálogos que me proporcionaram.

À Maria Tereza Goudard Tavares e Jader Janer, pela generosidade.

Aos meus amigos Antônio Veríssimo, Ivia Maksud, José Guilherme e Adriana Brant, por tudo o que aprendi com vocês e pelo privilégio de tê-los nesse caminho.

Às minhas amigas Gabriela Jordão e Júlia Pereira e meus amigos Ricardo Miranda e Leonardo Dresch, porque esse trabalho não é o resultado apenas da escolha de um punhado de palavras.

À minha querida Rachel Gomes Lau, pelos diálogos, pelos silêncios, pelo apoio, pela paciência, pela presença... Enfim, por tudo. Mesmo.

Aos culpados diretos por esse projeto: Cláudio Barria e Mônica Peregrino. Seja pelo início ou pela conclusão deste trabalho, vocês foram mapa e bússola que

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apontaram caminhos.

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RESUMO

Este trabalho propõe uma investigação da escola sob o ponto de vista das suas especificidades como espaço. Para isso foi necessário percorrer um caminho pela desnaturalização das noções de espaço, contextualizando-as e compreendendo que o conceito é uma construção referenciada em elementos culturais, históricos e sociais. A partir disso, buscou-se referência nas concepções de espaço trabalhadas principalmente na Geografia, especialmente com suporte em Doreen Massey e Milton Santos. Para compor um panorama da organicidade da escola e das percepções dessa organização, foram realizadas entrevistas com ex-alunos e com uma ex-diretora. As referências teóricas foram importantes no sentido de confrontar conceitos e ferramentas de análise espaciais com as entrevistas e observações dos movimentos do cotidiano da escola. Assim, considerando o cotidiano como uma dimensão do espaço e a escola como um fenômeno espacial, alguns momentos e ‘pedaços’ da escola foram investigados, na tentativa de compor um quadro significativo do funcionamento da unidade escolar: o sistema de rodízio de turma, o banheiro e seus objetos, o funcionamento do refeitório, a operacionalização das aulas na sala de informática, a dinâmica do portão de entrada e a superposição de três escolas oficiais dentro da mesma área. Na conjugação dessas reflexões foi possível perceber o quanto a escola é uma conjugação de práticas espaciais, como é o encontro de fenômenos em diferentes escalas e, em função disso, uma parte do que a uma investigação ou uma análise espacial pode contribuir para a reflexão sobre a escola. PALAVRAS-CHAVES: Espaço, escola e cotidiano.

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RESUMEN

Este trabajo propone una investigación de la escuela desde el punto de vista de sus especificidades como espacio. Para ello ha sido necesario recorrer a uno camino para la desnaturalización de las nociones de espacio, contextualizándolas y comprendiendo que e concepto es una construcción referenciada en elementos cuturales, históricos y sociales. A partir de eso se ha buscado referencia principalmente en concepciones de espacio trabajadas en la Geografía, en especial com soporte en Doreen Massey y Milton Santos. Para componer un mapa de la organicidad de la escuela y de las percepciones de esa organización se realizaron entrevistas con ex-alumnos y con una ex-directora. Los referenciales teóricos han sido importantes para confrontar conceptos y herramientas de análisis espaciales con las entrevistas y observaciones de los movimientos del día a día escolar. Así, considerando la cotidianeidad como una dimensión del espacio y la escuela como un fenómeno espacial se han investigado algunos momentos y ‘pedazos’ de la escuela, en el intento de componer un cuadro significativo del funcionamento de la unidad escolar: el sistema de rodizzio de cursos, el baño y sus objectos, el funcionamiento del comedor o casino escolar, la operacionalización de as clases en el aula de informática, la dinámica del portón de entrada y la superposici[on de tres escuelas dentro de la misma área. En la conjugación de estas reflexiones ha sido posible percibir hasta qué punto la escuela es encuentro de prácticas espaciales y de fenómenos a diferentes escalas. De esta manera, la presente disertación desarola una investigación basada en un anáisis espacial como forma de contribuir com la reflexión sobre la escuela. PALABRAS-CLAVE: Espacio, escuela e cotidianeidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p. 11

Da pesquisa e de pesquisar, p. 12

Da trajetória, das questões e das trajetórias das questões, p. 15

1- De Onde Falo e Para Onde, p. 21

De onde falo, de onde olho, (o que) e por que investigo, p. 22

2- Capítulo II

Considerações iniciais

A escola como um espaço, p. 43

Algumas concepções de espaço e a escola escolhida, p. 56

Investigação de uma escola na perspectiva do seu espaço

Uma escoa: onde e como, p. 63

Os rodízios, p. 69

Ainda os fluxos: portas, portões e lugares internos, p.77

Os objetos – alguns objetos, p. 84

Sobreposição de escolas: a questão da forma, p. 97

O espaço como materialização de tempos, p. 109

3- Considerações Finais, p. 113

Novas trajetórias?, p. 114

4- Bibliografia, p. 120

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À Ana Clara, sempre.

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INTRODUÇÃO

DA PESQUISA E DE PESQUISAR

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INTRODUÇÃO

“E eu só quero dizer Que eu não sei nada de você

E eu só quero dizer Não sei muito de mim também”

(Herbert Vianna)

Da pesquisa e de pesquisar

O termo “pesquisar” aparece nos dicionários com alguns significados,

todos eles muito semelhantes, porém diferenciados por algumas sutilezas.

Recorro ao “Aurélio” instalado no meu computador e escolho alguns deles

(destacados com grifos meus) para tentar explicar o que entendo e procuro

praticar aqui como pesquisa:

Pesquisar

[De pesquisa + -ar2.]

V. t. d.

1. Buscar com diligência; inquirir, perquirir; investigar:

2. Informar-se a respeito de; indagar, esquadrinhar, devassar:

(Dicionário Aurélio – Século XXI, versão 3.0)

Informar-se a respeito de é, para mim, o princípio de tudo nesse

trabalho. Parafraseando ALGEBAILE, o que aqui escrevo é uma busca de

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entendimentos e não a tentativa de elaborar explicações2. Faço pesquisa como

exercício de levantar informações, vasculhar aquilo que não me foi exposto e

que pode me ser útil para tentar compreender o que se coloca como um

desafio a essa tarefa. Pesquisar não significa necessariamente a intenção de

construir respostas, criar leis gerais ou estabelecer verdades. É primeiro o

exercício de colher informações com o intuito de ampliar as possibilidades de

compreensão, e também o de elaborar e ampliar os questionamentos. Por isso,

indagar e inquirir.

O que entendo por pesquisa não se faz sem indagações, tampouco sem

inquirir a si mesmo, ao que se pesquisa e aos caminhos da própria pesquisa,

entendida antes de tudo como processo.

Portanto, neste trabalho, busco informações que me permitam ampliar

os questionamentos e reflexões, bem como as possibilidades de entendimento

dos processos que constroem a escola. Para isso me esforço em estabelecer

constante diálogo com aquilo que pesquiso. Encaro isso como um desafio: a

escola me desafia a tentar entendê-la como espaço em constante movimento.

Inquiri-la de maneira diferente do que fez a Santa Inquisição, séculos

atrás, que extraía verdades – as verdades prévias e inquestionáveis, para

encontrar ali a sua confirmação. A inquisição desta vez se faz pelo confronto de

determinadas verdades e de alguns ‘confortos explicativos’, tentadores ao

desejo de construir explicações, mas muitas vezes nocivos às possibilidades

de entendimentos.

Finalmente, investigar. A primeira idéia que tenho é a do investigador-

detetive, protagonista dos filmes e livros policiais. Aquele que sem embrenha

2 “Inúmeras passagens dessa tese decorrem, exatamente, da minha tentativa de entendimento e não da minha capacidade de explicação”. ALGEBAILE (2004, p. 18.)

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nas histórias dos fatos e das pessoas, buscando pistas para desvendar o

crime. Fazendo a devida ressalva do ‘crime’, a descrição está bastante de

acordo e se soma muito bem aos termos anteriores. Pesquisar é buscar pistas,

se emaranhar nos acontecimentos para tentar descobri-las entre as penumbras

das rotinas, aproximando a lupa, no desejo de encontrar aquilo que ‘ao olho nu’

escaparia à percepção.

A escola pulsa, se constrói e reconstrói constantemente, e me instiga a

refletir sobre ela, ao mesmo tempo em que se expõe às indagações. Ela se

expõe, mas não completamente, então me obriga a buscar pistas que me

permitam construir incertezas enquanto tento compreendê-la.

Entre as tais incertezas, para me orientar nesse caminho, uma me

parece bem relevante: não defino inicialmente muito bem sobre qual sentido de

escola invisto. Deixo realmente, de início, aberto o termo, pois, longe da

pretensão de falar sobre a escola, como se pudesse me imunizar dos riscos de

ser tão generalista, percebo aos poucos que há conexões entre cada uma

delas: a unidade específica, as unidades da rede e até mesmo a instituição

escola pública, no Brasil. Porém, como este não é o objetivo do trabalho (o de

investigar e me aprofundar em tais conexões), aos poucos vai ficando mais

clara essa definição. Não se trata de um descuido, mas de certa necessidade

do encaminhamento da discussão, pois provavelmente a preocupação com

essa definição a priori, de alguma maneira, da forma como escolho conduzir o

trabalho, ‘engessaria’ as reflexões. Assim, essa definição aos poucos vai sendo

trabalhada, construída, de acordo com as conclusões (ou não) a que chego.

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Da trajetória, das questões e das trajetórias das questões

Uma pesquisa não brota do nada. Aliás, penso que as coisas que

povoam e as que saem da nossa cabeça não brotam do nada, como frutos do

acaso, ou nascidas de um ‘estalo’. As informações chegam e, então, os olhos e

os ouvidos recebem da maneira que aprenderam a receber, ou que se

acostumaram, ou do jeito que nossas intenções buscaram. Recebem, primeiro,

como nos permitem e nos traduzem o tempo, a cultura e a história. Enquanto

isso as experiências vão digerindo, rejeitando, interpretando ou mesmo

assimilando todos os sinais. Vez por outra as coisas entram em choque, não

encaixam muito bem ou então não ficam muito confortáveis nas nossas idéias.

Nesse momento, erradamente algumas pessoas podem dizer: ‘criou-se’ uma

questão – como se elas pudessem passar por um período de cativeiro, isoladas

do mundo, para então aparecerem, ‘mais maduras’. Mas, não. Entendo que as

questões e as idéias são construídas na velocidade dos acontecimentos e no

emaranhado das experiências que regem as percepções.

Não fiz de maneira diferente. A idéia de discutir os temas que trago,

deve ser entendida como um processo que se fez ao longo, principalmente, da

minha vida no magistério, mas não somente nela.

Comecei a atuar como professor no último ano da minha graduação, em

1992, quando ainda era estudante do curso de Licenciatura em Geografia, na

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde então, passei por algumas

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escolas particulares e outras da rede pública, tanto estadual quanto municipal3,

o que me permitiu experimentar algumas realidades cotidianas distintas,

governos e políticas educacionais oficiais variadas, além de idéias e práticas

diversas, trazidas pelos alunos, comunidades, professores e toda gama de

trabalhadores das escolas – enfim, o que muitas vezes nos acostumamos a

chamar de “comunidade escolar”.

A alegria diante do sucesso de algumas propostas, bem como a

decepção e o desconforto diante de impossibilidades ou entraves, foi aos

poucos se transformando em vontade, quase uma necessidade, de encontrar

novos mirantes, outros olhares e outras lentes para enxergar a escola. Não

queria abdicar da minha posição de professor, de profissional atuante da área,

mas as inquietações pareciam fadadas ao conformismo, caso as mesmas não

se transformassem em investigações e movimentos. Neste momento resolvi

‘colocar um pé’ fora da escola.

No emaranhado da rotina e das exigências institucionais, na pressão das

responsabilidades cotidianas, sentia que não conseguia refletir com clareza

sobre o que se colocava imediatamente diante dos meus olhos. Pesquisar,

então, tornou-se uma imposição da própria prática de professor. Não era mais

possível ter uma atuação de profissional da sala de aula, isolando-a

artificialmente do mundo. Ao mesmo tempo, muitas explicações que se

colocavam a minha frente produziam hiatos, uma vez que se mostravam

insuficientes quando confrontadas com o cotidiano, ou então não se

articulavam de maneira clara.

Desse imbróglio teórico-prático, algumas das principais referências 3 Merece destaque a esfera municipal da cidade do Rio de Janeiro, onde atuo desde 1995. O destaque é justificado por ter escolhido uma escola municipal como campo de investigação e objeto reflexão, além de ser a rede que mais tempo tenho de atuação.

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acadêmicas que eu tinha passaram a fazer parte das minhas inquietações de

forma mais incisiva: por que as questões, explicações e teorias que chegam ao

meu conhecimento sobre a escola, falam do seu espaço como se este fosse

uma superfície apenas? Por que o espaço da escola é encarado simplesmente

como um acessório ou um palco de relações e movimentos, um lugar disso ou

daquilo?

Sentia, portanto, a necessidade de tratar a escola como um espaço, de

mergulhar nessas suas particularidades e tratá-la como um fenômeno espacial.

De uma forma surpreendente, minha preocupação com o campo da Educação

acabou me levando de volta para a Geografia. Isso porque foi nela e com base

no pensamento de alguns nomes importantes dessa ciência, que passei a

pensar a educação, em especial e educação pública da cidade do Rio de

Janeiro.

Não se trata de transformar a escola em um objeto da Geografia, mas

ampliar a idéia de objeto e da pertinência em relação a este ou aquele campo.

Mais do que isso, o que diferencia esta proposta de trabalho é a certa

pretensão de trazer uma perspectiva de análise diferente das que tomei

conhecimento até agora. A palavra é mesmo pretensão, pois entendo que fazer

pesquisa e trabalhar ciência é ter a pretensão de chegar a algum lugar, mesmo

não sabendo onde, mesmo tendo que inventar como, ou mesmo que seja a

algum outro ponto de partida.

No primeiro capítulo apresento e reflito sobre o lugar de onde falo e as

implicações da minha posição. Foi do lugar de professor que se construiu a do

pesquisador e onde surgiram as inquietações iniciais que me levaram ao

presente trabalho. Por sua vez, o pesquisador deve se embrenhar por outros

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pontos de observação, outros focos, com o intuito de trazer o que for possível

para a indagação, para o confronto e para a reflexão. A primeira questão que

se coloca é a de como se apresenta a encruzilhada “objetividade-

subjetividade”. Longe de ser um mero exercício intelectual, é necessária a

reflexão, pois sou pesquisador e observador em um campo onde atuo e atuei

como professor. Outra questão, aprofundando mais ainda o debate, é a dos

pontos de vista que a posição instável oferece e também os limites que ela me

impõe. Quer dizer, nesse capítulo tento expor os caminhos da pesquisa, os

olhares que direciono e as posições que percorro. Se algumas questões não

ficam completamente resolvidas, a tarefa de expô-las constantemente é

condição para que a pesquisa seja entendida dentro das suas limitações e

potencialidades.

No segundo capítulo procuro desnaturalizar o conceito, enquanto

exponho algumas concepções de espaço. Procuro, dentro disso, definir as

diretrizes das minhas análises. Nele busco suporte em obras de nomes como

David Harvey e Henry Lefebvre, mas utilizo dois pensadores da Geografia em

especial: Dorren Massey e Milton Santos. Utilizo a palavra ’pensadores’ e não

‘teóricos’ porque não os vejo como teóricos, mas antes de tudo como práticos4,

apesar de e em razão da densidade das suas teorias. As concepções de

espaço de ambos não são necessariamente confluentes, mas é nas suas

confluências e em também em algumas contradições que sustento a minha

análise espacial da escola. Também apresento, embasado por eles, algumas

importantes ferramentas analíticas que me ajudam a observar e questionar a

escola. 4 Lembro-me de um congresso de Geografia Urbana em 1991, em Rio Claro (SP), quando vi e ouvi Milton Santos dizer, com muita ênfase: “Lefebvre me dizia que uma das maiores tristezas que ele tinha era a de ser visto como um teórico, porque ele é um prático! Um prático!”.

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No mesmo capítulo também apresento a escola que me serve de campo

de observação. Nela e sobre ela investigo, reflito e lanço algumas questões

sobre elementos importantes do seu funcionamento. Para isso conto com um

trabalho de observação e algumas entrevistas. Assim como prefiro omitir o

nome da escola, as pessoas são citadas com nomes fictícios. Primeiro, porque

não se trata de um trabalho sobre esta escola. A razão dessa pesquisa não é

senão a possibilidade de refletir e lançar elementos significativos para a

reflexão da escola pública, ainda que exista (e não há como ser diferente) uma

escola específica como campo de observação. Depois, existe um compromisso

ético que me impede de citar nomes (inclusive o da escola) que porventura

possam ter algum tipo de implicação com sua exposição nessas páginas. Quer

dizer, uma das questões que se revela ao meu processo de construção de um

trabalho sobre uma realidade da qual faço ou fiz parte é a de reconhecer os

sujeitos como sujeitos, sem transformá-los ao reduzi-los a objetos inertes. A

objetivação é do pesquisador e ela não pode sobrepor-se às subjetividades.

Nem imagino poder ultrapassar determinados limites da minha própria, uma

vez que entendo que uma pesquisa se faz, também respeitando limites éticos.

A escola é exatamente aquela onde trabalhei durante cinco anos, até o

final de 2006. A sétima escola da rede municipal onde atuei. Durante esse

período alguns dos meus principais questionamentos sobre a educação e

sobre a instituição escola ganharam corpo e se materializaram na forma dessa

pesquisa. Assim, o presente trabalho não tem o intuito de ‘descobrir a pólvora’,

ou trazer luzes novas para o pensamento em Educação. Pretende, sim, dar

vazão da forma mais consistente possível a várias indagações que ganharam

corpo longo de anos, mesmo que não muitos, de prática, bem como as dúvidas

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que se construíram (ou me perseguiram) com base no meu fazer e pensar

como professor da rede pública na cidade e no estado do Rio de Janeiro.

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CAPÍTULO I

DE ONDE FALO, DE ONDE OLHO, (O QUE) E POR QUE INVESTIGO

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“Transito entre dois lados / De um lado / Eu gosto de opostos”

(Adriana Calcanhoto – “Esquadros”)

De onde falo, de onde olho, (o que) e por que investigo

Existe uma história antiga, bastante conhecida e que pode ser contada

de forma resumida assim: uma pessoa sobrevoa de avião uma floresta e a

observa durante o vôo, enquanto outra pessoa caminha entre as árvores, por

dentro da floresta. Aquela que está no avião consegue descrever a floresta,

mas não faz idéia das particularidades das árvores, ao passo que a outra pode

observar muito bem cada uma das árvores, mas talvez não tenha noção da

floresta como um todo.

Destaquei a palavra “talvez”, para poder discorrer sobre minha posição e

situação diante do objeto, do próprio trabalho, e também sobre o meu lugar de

observação e reflexão. Consciente das restrições das parábolas e das

metáforas, uso esta pequena história para me auxiliar na difícil tarefa de tentar

me situar e tentar identificar as implicações desta posição ao longo da

pesquisa.

Procuro as árvores da história porque elas podem mostrar muito de si e

talvez, também, fornecer pistas importantes para me permitir compreender a

floresta, não apenas nas suas marcas, mas nos fenômenos que envolvem a

sua existência e nos processos diversos dos quais elas fazem parte.

As marcas contidas no que chamamos de local (ou pontual) são

expressão de movimentos variados, que dizem respeito aos seus arredores,

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aos seus tempos passados e aos tempos outros que ali se cruzam. Tais

marcas não são apenas registros estanques, retratos de um passado – são, em

primeiro lugar, os testemunhos e nuances de fenômenos do presente e das

dinâmicas que compõem e são compostas pelos diversos outros fenômenos,

para além do lugar onde os identificamos. Aquilo que convencionamos chamar

de local ou pontual, carrega as marcas dos seus arredores e do todo em que

se insere. Se aqui tratamos da escola, podemos dizer que cada unidade traz

em si elementos que nos permitem compreender ou reconhecer o sistema de

educação do qual faz parte, bem como, a sociedade e as particularidades da

comunidade a que pertence. É com base em tais pressupostos que se

desenvolve o presente trabalho.

Dentro desta perspectiva, aponta Bourdieu:

“O proveito científico que se retira de se conhecer o espaço em cujo interior se isolou o objeto estudado (por exemplo, uma dada escola) e que se deve tentar apreender, mesmo grosseiramente, ou ainda, à falta de melhor, com dados de segunda mão, consiste em que, sabendo-se como é a realidade de que se abstraiu um fragmento e o que dela se faz, se podem pelo menos desenhar as grandes linhas de força do espaço cuja pressão se exerce sobre o ponto considerado (um pouco à maneira dos arquitetos do século XIX, que faziam admiráveis esboços de carvão do conjunto do edifício no interior do qual estava situada a parte que eles queriam figurar em pormenor). E, sobretudo, não se corre o risco de procurar (e de ‘encontrar’) no fragmento estudado mecanismos ou princípios que, de fato, lhe são exteriores, nas suas relações com outros objetos”.

(Bourdieu, 1989, pp 31-32)

Isso nos indica que aquilo que é pontual, tido mesmo como local, não é

necessariamente o excepcional. É na articulação deste com outras esferas (ou

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mesmo escalas) que nos permitem ampliar as perspectivas de entendimento

dos fenômenos, pois se existem elementos que singularizam aquilo que é tido

como local (ou pontual), por outro lado não podemos esquecer que ele é uma

expressão de articulações e construções diversas, que transcendem as suas

particularidades.

Mais ainda:

“Trata-se de interrogar sistematicamente o caso particular, constituído em ‘caso particular do possível’, como diz Bachelard, para retirar deles propriedades gerais ou invariantes que só se denunciam mediante uma interrogação assim conduzida (...)”.

(Ibid, pp 32)

Desta forma, o desafio é o de articular constantemente a unidade

escolar e as dimensões diversas que ali se fazem presentes, ou simplesmente

ali esbarram. Mas, é também o de vasculhar nas particularidades aqueles

elementos que são realmente particularidades e aqueles que não são5. Assim,

talvez seja possível que essas particularidades abram caminhos para que se

possa compreender aquilo que no geral ou no todo não apareça de forma tão

nítida ou realmente se esconda. Melhor dizendo, a forma particular como

determinados vetores e forças se materializam naquela unidade escolar pode

ser importante para entender a ação, a natureza e o papel desses mesmos

vetores, bem como os processos de construção desse espaço (a escola), não

5 Estabeleço aqui um diálogo com o que SARMENTO (2003, pp 145.) chama de Interpretativismo

Crítico: “O estudo interpretativo das escolas deriva, portanto, e antes de mais, da compreensão da singularidade de cada uma delas, mesmo se elas se integram num campo institucional”.

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só neste, mas mesmo em outros lugares6.

Dentro disso, mais do que um trabalho de identificação e descrição, o

que pretendo aqui é capturar o movimento, a dinâmica das relações que, a

todo tempo, produzem esse espaço – não apenas uma determinada escola

(como unidade escolar singular), mas principalmente no sentido de espaço que

é ao mesmo tempo institucional e de relações diversas.

Para tal, entendo que a dimensão do cotidiano é extremamente

importante, uma vez que pode trazer ou expor aquilo do todo que em outras

esferas nem sempre está explícito. É no vivido, no campo das relações

contidas nessa dimensão, que ganham visibilidade os processos e as forças

que atravessam diversos campos da sociedade.

No sentido do que pensava Agnes Heller:

“As grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam”.

(HELLER, 2004, pp. 20.)

Por essa razão, concentrando o olhar “na espuma da ‘aparente’ rotina de

todos os dias” (PAIS, 2003, pp. 1), Procuro investigar como se processa a

construção desse espaço que chamamos de escola. Isso porque o cotidiano

6 ALGEBAILE (2004, pp. 29) diferencia as particularidades do que chama de “específico”, sendo este último referente aos processos supostamente determinados apenas por acontecimentos de um lugar, enquanto as particularidades “não são simples variações superficiais de um mesmo modelo, nem simples elementos acessórios a uma estrutura sem variações. São particularidades que designam produções de sentido diverso e é isto que interessa à análise”.

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pode ser considerado também uma dimensão do espaço7 e não exatamente o

contrário , conforme veremos no próximo capítulo.

“Não constituiria ele [o cotidiano] uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a atividade produtora (criadora) se projeta, precedendo assim criações novas?”.

(LEFEBVRE, 1991, pp. 19-20)

A provocação de Lefebvre nos leva a pensar o cotidiano como prática,

como criação, como interface de produção material e de sentidos. É o domínio

das resistências e do possível, ainda que não realizado, mas também é o das

rotinas e dos movimentos repetitivos. Essa contradição nos indica um

promissor caminho investigativo, e nos convida a traçar como eixo de análise a

escola numa concepção espacial. Mesmo porque, mais do que existir uma

dimensão espacial do cotidiano, podemos mesmo dizer que não há como

pensar o cotidiano sem espaço e vice-versa. Daí a opção por utilizar também a

dimensão do cotidiano como perspectiva metodológica, na sua potencialidade

de problematizar, ao mesmo tempo em que busco nas categorias espaciais as

ferramentas para analisar a escola.

Seguir na investigação do cotidiano como uma perspectiva metodológica

(PAIS, 2003), e não transformando este em objeto, mas trazendo esta para

uma perspectiva também histórica, pressupõe:

”Aconchegar-se ao calor da intimidade da compreensão, 7 SANTOS (1996, pp. 5): “O espaço considerado primeiro como tendo duas dimensões, depois como tendo três, depois conforme Einstein, como tendo quatro dimensões, tem também uma quinta dimensão que é o cotidiano. O espaço tem esta quinta dimensão. Mas, sobretudo, o cotidiano tem como dimensão essencial no mundo de hoje a dimensão espacial. A dimensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano do mundo de hoje”.

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fugindo das arrepiantes e gélidas explicações que, insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido, erguem fronteiras entre os fenômenos, limitando ou anulando as suas relações recíprocas8”.

As possibilidades que se abrem com essa perspectiva me parecem

promissoras e se alinham diretamente ao que entendo do meu posicionamento

com relação ao objeto e também com relação à própria pesquisa. Tal

esclarecimento é fundamental para que seja possível compreender o processo

de construção do presente trabalho e suas implicações.

Sendo assim, vem à tona a questão sobre minha condição e

posicionamento: em qual ponto ou campo me situo, de onde falo e de onde

parte minha observação, no jogo das relações que envolvem minha

participação em diferentes posições.

Para tentar esclarecer e desenvolver melhor os entraves que essa

questão impõe, peço licença ao rigor do formalismo acadêmico e tomo de

empréstimo os versos de Paulo Leminski:

“aqui nesta pedra alguém sentou olhando o mar o mar não parou pra ser olhado foi mar pra tudo quanto é lado”

8 PAIS, José Machado, 2003, pp 30.

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Escolher uma pedra para dali observar não é tarefa simples e, como

toda escolha, se faz recheada de riscos. Escolhi, então, uma pedra no meio do

mar. Uma pedra mesmo que convive com o regime das marés e das ondas e

que por isso não só está, como também é parte do próprio mar. Essa escolha

não foi feita de forma aleatória, mas por imposições da tarefa e do posto (de

professor e de pesquisador) e por comprometimento científico, político e ético.

Ali estou e estive durante anos e, portanto, senti, vivi, experimentei durante

esse tempo e ainda experimento, deste lugar, o objeto e os fenômenos a ele

inerentes. A escolha por esse ponto de observação é, portanto, uma ação e

opção de alguém que tem a pesquisa como objetivo, mas não tem a ilusão de

dissociá-la das subjetividades que lhe são inerentes, pois o mesmo objetivo

não é algo meramente ‘científico’, no sentido clássico de uma produção que,

para se fazer como tal, tem a obrigação de separar sujeito e objeto – como se

essa abstração não fosse também historicamente construída.

Trabalho com a busca da indissociabilidade entre teoria e ação, onde o

fazer e o pensar se atravessam, não só por opção, mas pela minha condição e

posição de sujeito diretamente relacionado ao espaço pesquisado. Foi da ação

e da experiência que brotaram as questões que originaram esse trabalho; e

que a elas retorna. Portanto, não existe possibilidade de fazer aqui uma

pesquisa pretensamente dissociada do objeto, pretensamente dissociada dos

resultados e das implicações da produção, pois o seu sentido, nesse caso, só

existe como parte do pensar uma escola a partir dela e para ela,

principalmente. Pensar este, que não nasce de súbito, mas que veio sendo

construído nessa e nas outras escolas onde atuei, e que continua ao longo

deste trabalho e além da sua conclusão como material acadêmico.

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Isso não significa que esse trabalho se resume a fazer uma autobiografia

numa base espaço-temporal, ou um apanhado de reflexões sobre meus anos

de magistério na rede pública municipal do Rio de Janeiro, ou ainda contar

histórias dos anos de atuação numa determinada escola. Na verdade, a

discussão inicial é sobre as possibilidades e potencialidades que me oferecem

a minha proximidade com o objeto e a minha relação subjetiva com a escola

em questão, explorando, deste modo, aquilo que a posição proporciona.

Contudo, sei que essa posição apresenta limitações, que devem ser

expostas e enfrentadas. As principais dizem respeito ao posto ou lugar que

ocupo nessa escola e, em decorrência disso, do papel que não é dado, em

princípio, por mim. Não é, necessariamente, minha atuação como professor

que impõe determinados limites, mas a do pesquisador também. Quer dizer, se

a ‘dupla identidade’ permite certos saltos, esses saltos não são vôos ilimitados,

nem livres de implicações. Não são apenas potencialidades, mas também

riscos e entraves. Significa dizer que não existe lugar privilegiado para a

investigação, mas existem posições diversas e que conduzem a leituras e

reflexões também diversas. Assim, essa situação permite que eu transite por

posições distintas, mas devo ter sempre em mente que elas possuem também

seus obstáculos, alguns intransponíveis.

Se essa situação é relativamente instável, o olhar e a análise que

produzo, portanto, são resultados das tensões criadas por essas mesmas

posições. Algo como o que de forma aproximada podemos chamar

espacialmente de ‘fronteira’. Ou seja, um lugar onde os limites não se definem

muito bem e estão em construção; onde as forças e tensões mais diversas,

bem como os mais variados vetores encontram campo para disputar quase que

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livremente as verdades, as demarcações e as lógicas.

Na verdade, os limites dessa posição dupla ou tripla estão relacionados

à natureza de determinados movimentos e fenômenos dos quais faço parte.

Além disso, a posição produzida pela tensão pesquisador<=>pesquisado (ou

pesquisador<=>objeto) não me retira nem de uma nem de outra, mas ainda

cria uma terceira, o que faz com que determinadas questões de cunho político

ou ético, por exemplo, possam assumir um caráter aparentemente

contraditório. Isso porque, ao ‘vestir a roupa’ estranha do pesquisador-

professor, tomo consciência de que ela existe porque ambas existem ao

mesmo tempo, tanto a do pesquisador quanto a do professor.

De alguma forma, mesmo a escolha do tema e também de todos os

caminhos tomados nesse trabalho, foram determinados pelas tensões que esta

condição suscitou.

Treze anos atuando em escolas públicas da rede municipal do Rio de

Janeiro, sendo os cinco últimos na escola que trago como campo de

investigação e reflexão, não apenas foram, mas são importantes para a

pesquisa de diversas formas. Seja na escolha da temática, das questões e

inquietações orientadoras do trabalho, nas escolhas das pessoas para as

entrevistas, ou então na percepção das conseqüências imediatas de

determinadas mudanças de regras de funcionamento da unidade, o fato de ser

professor atuante na instituição investigada trouxe algumas possibilidades.

Primeiro, de uma maior aproximação da compreensão da relação subjetiva

com esse espaço. Depois, permitiu uma abertura maior para a compreensão

das demais relações deste mesmo espaço pelos outros sujeitos, que o desejo

de distanciamento, provavelmente, não permitiria. Melhor dizendo, esta

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proximidade, a vivência “de dentro” da escola propiciou o reconhecimento e

algum conhecimento de determinadas relações que de outra forma, acredito,

não seria possível. Nesse raciocínio, trata-se de uma questão de certa forma

epistemológica, pois chega a partir de uma idéia de produção de conhecimento

sobre a escola, a partir da própria escola e dialogando com produções outras.

Mais do que conhecimento sobre a escola, não podemos negar que também

falamos de produção de conhecimento a partir da escola. Isso porque, mesmo

quando saio da escola para buscar elementos que me permitam investigá-la e

compreendê-la, faço isso com pelo menos um dos pés fincados no chão da

escola, tendo como base também as relações que me levam a confrontá-las

com as ferramentas de análise e as teorias e conclusões trazidas de fora deste

espaço. Não quero dizer que isso me legitima ou me reveste de uma

autoridade maior sobre o assunto, nem mesmo tenho a (ingênua) pretensão de

produzir verdades ou análises definitivas, mas que se trata de uma perspectiva

importante e como tal não pode ser desprezada.

Assim, se o objetivo deste trabalho é o de investigar a produção do

espaço “escola” como processo dinâmico e constante, o fato de ter sido

professor desta escola até a conclusão deste trabalho me leva a tensionar9

constantemente a minha condição de sujeito deste espaço, trazendo inclusive

nos registros de memória recentes fatos, movimentos, bem como sentimentos

integrantes deste processo.

Ao mesmo tempo, o exercício mais importante, talvez, é exatamente

esse: o de tensionar esta posição o tempo todo. Significa trazer para a reflexão

9 A palavra não existe no Dicionário Aurélio (versão 3.0). Encontramos nele a palavra “tencionar”, que significa “fazer tenção de; projetar; planejar”. Tensionar se refere à idéia de tensão ou tenso, que significa “estendido com força, esticado, retesado”. Utilizo o termo pensando em estender as possibilidades das posições, levando-as mesmo ao confronto, às contradições, expondo-as.

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constante o que a posição do pesquisador tem de interferência na pesquisa,

além do que a relação direta entre o sujeito (que é também, neste caso,

observador e parte integrante do objeto observado) e o objeto traz para o

trabalho. Decorre daí a necessidade de fazer como o narrador da poesia

anterior, que falou sobre alguém e sobre o mar, apontando a pedra como o

lugar onde estava o observador.

“Estranhar” foi o verbo principal nesse caminho de reflexão sobre a

posição do observador. Estranhar a escola, o espaço, a própria pesquisa e o

ponto de observação. Em poucas palavras, estranhar a mim mesmo, tanto

quanto os fenômenos e processos observados, foi tarefa árdua e, tenho

consciência, sempre incompleta. Na verdade, incompleta se pensarmos na

investigação e produção científica dentro de uma pseudo-assepsia positivista,

como busca de uma ilusória neutralidade. Daí a necessidade constante (até

mesmo uma obrigação) de deixar claro o papel do observador, seus

referenciais, as suas opções, as orientações do seu olhar, seus caminhos e os

objetivos da investigação.

Por outro lado, a minha condição de sujeito faz com que seja possível

estranhar aquilo que o pesquisador distante, ou o que se faz distante mesmo

existindo neste espaço, não estranhem. Questionar o que surge nesse

caminho, como algo estranho ao cotidiano desse espaço, sabendo que a rotina

faz com que se naturalize este ou aquele fenômeno, fato ou movimento. É esta

possibilidade, quase uma condição, a que considero rica e que ‘pede’ para ser

explorada, mesmo sabendo, também, que a rotina produz olhares, posições e

valores que se arraigam, muitas vezes tornando-se difíceis de serem

percebidos e superados.

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Se a escolha do lugar da pedra, e da própria pedra, são fundamentais,

temos que lembrar sempre, também, que o mar não para. Assim como o mar

dos versos de Leminski, a escola também não parou para ser olhada, por isso

a dificuldade de interpretar aquilo que sempre já passou. Toda essa reflexão e

também a investigação, portanto, devem ser entendidas como um recorte, um

retrato na tentativa de se produzir um pensamento sobre algo que é dinâmico.

É no esforço de pesquisar nessa “estreita nesga entre o passado e o

futuro10”, que me concentro para produzir uma investigação sobre a construção

de uma realidade, sobre a materialização de ações, símbolos e relações.

Ao delimitar uma determinada escola, não podemos transformar isso em

limites do objeto nem do fenômeno. Os limites reduzem e aprisionam o espaço,

roubando-lhe a riqueza: sua construção pelos processos históricos, os

emaranhados de relações sociais e políticas que por ali passam e circulam,

além daquilo que estes produzem.

Os espaços são dinâmicos, e não existem, de fato, circunscritos a

determinados traçados imaginários ou mesmo físicos (os muros, por exemplo).

Tal delimitação decorre de um recurso metodológico e das necessidades da

investigação, seja ela da produção científica ou não. Mas, não significa que

tratamos de um objeto de fato ‘isolável’, destacado do tempo e do mundo, que

existe por si e para si, ou que ele possa ser entendido a partir de um olhar

único. Por isso, o que aparecer como delimitador neste trabalho deve ser lido

como instrumento de análise, um recorte como recurso e não como limite de

investigação ou dos fenômenos, muito menos como limite espacial.

O segundo problema foi o de “sobrar escola pra tudo quanto é lado” e,

10 SANTOS, 1996, p. 4.

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para isso e a partir daí, fazer escolhas: além da tarefa de escolher o que

observar, escolher a pedra de onde observar.

Quer dizer, um desafio que se colocou também, além de tentar me

equilibrar na pedra, foi o de recolher, entre o que se espalhava (‘pra tudo

quanto é lado’), aquilo que era possível de ser recolhido e que poderia ajudar a

compor olhares e pensamentos claros sobre a construção deste espaço

chamado escola.

Digo ‘olhares’ porque não há um olhar único para qualquer fenômeno

que seja. Então, busco contribuir com dúvidas sobre alguns olhares

costumeiros e também com suspeitas de outros, que podem ajudar a

compreender a escola. Isso, levando-se em conta que o objetivo do trabalho

não é o de estabelecer leis gerais ou verdades sobre a construção desse

espaço, mas de levantar questões e incertezas, compartilhando minhas

tentativas de explicação.

Neste caso, o fato de não ser um estranho foi de extrema importância,

pois possibilitou que eu tivesse facilidade (naturalidade, por que não?) de

transitar entre códigos, valores e rotinas, sinais vários, fazendo parte deste

universo de significados e ações. Além disso, esse papel duplo ou triplo11 é

motivo de muita reflexão, antes e durante a própria investigação, pois recai não

só sobre a minha participação, mas também no que diz respeito à produção

científica.

Dentro disso, a escolha de um ponto de observação, mesmo não sendo

este ponto único, fechado, definitivo, está impregnada por questões históricas,

sociais, culturais, éticas e políticas, onde se insere a escola, mas também o 11 Inicialmente, professor e pesquisador, mas também pesquisador-sujeito da pesquisa – se considero que a escola pesquisada constitui um ‘nós’, um coletivo do qual sou parte e durante o período dessa pesquisa não existe sem mim e vice-versa.

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pesquisador. É a partir deste lugar que a história vai ser contada, de onde os

olhares partirão e as questões serão levantadas.

O ponto de partida é a escola – do seu interior, nas suas relações

cotidianas. O eixo da investigação é o seu espaço, ou melhor, a escola dentro

de uma concepção espacial. Faz sentido, uma vez que foi deste e neste lugar

que apareceram as primeiras inquietações, originando o presente trabalho.

Deste mesmo lugar se desenharam algumas das primeiras reflexões sobre a

dinâmica da escola – partindo da vivência e da experimentação, de criar e

recriar a cada dia, de forma coletiva, aparentemente combinada (nem por isso

harmônica) este espaço, sentindo os efeitos desses movimentos e de outros

diversos.

A idéia de levantar essa discussão certamente não é de todo original,

mas entendo ser importante para que possamos compreender as

transformações pelas quais passa a escola pública.

Tal insistência na dimensão espacial da escola decorre principalmente

de minha atuação como professor, vivenciando dentro da escola processos que

as explicações de cunho sociológico, antropológico, histórico, psicológico ou

pedagógico12 nem sempre dão conta de interpretar ou avaliar13. Não que a

concepção espacial da escola seja definitiva, algo que substitui qualquer outra

linha ou campo de conhecimento quando pensamos a escola. Exatamente ao

12 Entendido aqui no sentido de um conhecimento técnico relacionado aos processos de ensino e aprendizagem. Utilizo um reducionismo extremamente equivocado, sem dúvida, mas nesse caso a palavra ‘pedagógico’ carrega esse significado para tentar se aproximar da idéia que muitos professores da rede pública municipal do Rio de Janeiro (destacando a escola observada) costumam ter sobre os debates pedagógicos, as teorias e os projetos constantemente propostos e /ou implementados pela Secretaria Municipal de Educação. 13 Não tenho o menor interesse em desqualificar ou reduzir a importância de qualquer campo do conhecimento, nem área profissional. Porém, entendo que os objetos e fenômenos podem e devem ser investigados a partir das potencialidades de cada campo, como forma de compreendê-los na sua complexidade. O que exponho aqui é mais um caminho investigativo, que não observo ser considerado quando tratamos da escola.

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contrário, significa mais um conjunto de ferramentas de análise que pode e

deve ser trazido para essa investigação, somado e confrontado aos outros.

Assim, essa dissertação pretende percorrer dois caminhos, que podem

ser entendidos como um só: tratar a escola a partir de uma determinada

concepção, valorizando um determinado olhar, ou seja, resgatando sua

dimensão espacial; identificar, partindo dessa dimensão espacial,

algumas transformações pelas quais ela vem sofrendo e que produzem

alterações na sua dinâmica.

Não pretendo com isso conseguir explicar, mas principalmente tentar

entender as especificidades da escola como espaço.

Considero tais transformações da (e na) escola num sentido amplo,

fugindo da armadilha de simplificá-las e encerrá-las como ações por parte das

políticas do Estado, apenas. Tratando-se de um espaço institucional e regido

por instâncias da esfera estatal, com certeza as políticas oficiais têm um peso

significativo e ocupam um papel central nas orientações dos caminhos da

escola. Mas, o exercício que me proponho é exatamente esse: entender como

se criam certas particularidades de um espaço em meio ao esforço (externo e

interno) de homogeneização; como se materializam (ou não) as políticas e os

esforços da gestão pública sobre a escola.

A investigação contou com a consulta a duas categorias de atores14:

gestor (diretor) e alunos. Escolhidos não de forma aleatória, mas segundo os

próprios papéis que lhes são conferidos.

14 Utilizo a categoria ‘ator’ no sentido de ser aquele que atua. Esbarrando no que seria uma simplificação deste nas artes cênicas, como o ator desempenhando um papel que não foi necessariamente por ele definido, mas que consegue ainda reconstruí-lo, mesmo com as limitações impostas pelo texto. Considero interessante, nesse caso, porque tratamos aqui de construção do espaço, de pessoas que trazem seus valores, anseios, desejos, histórias e movimentos para a escola, mas que encontram ali papéis socialmente, culturalmente e institucionalmente definidos.

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O primeiro por ser o mediador nas relações entre o Estado e a escola,

entre a esfera pública (escola) e a privada (comunidade, famílias), entre as

políticas oficiais e as suas implantações. No caso da escola escolhida, a

principal entrevistada entrou como professora na rede municipal em 1974, em

outra escola situada num bairro próximo. No final dos anos 1980 transferiu-se

para a unidade estudada, onde foi eleita diretora, em 1991. Exerceu este cargo

de 1992 a 2003.

O papel da direção, apesar de ser de por si só ambíguo, é chave na

implementação dessas políticas, nos projetos e na gestão do espaço. Não

estou falando sobre autonomia e possibilidades, mas sobre o significado de

uma função e do posto que ela ocupa dentro do jogo de relações cotidianas

que constroem a escola. Aos olhos do poder público é ele o responsável pelo

funcionamento da unidade escolar, pela execução das suas políticas e pela

gestão da escola como um todo. Para o interior da escola (alunos, funcionários

administrativos e professores) é ele o eixo, o topo do poder ali hierarquizado e

aquele que transita nas esferas superiores da instituição, além de ter a

responsabilidade final sobre o seu funcionamento.

Os alunos, por sua vez, podem ser entendidos como os clientes15, os

‘educandos’, a demanda, o fluxo. São o destino final, a razão e sentido último,

os sujeitos sociais a serem transformados ou criados, aqueles aos quais se

destina o saber sistematizado. Mas, também são os que ocupam o patamar

dos subjugados nas relações hierárquicas de poder, de acordo com a

organização funcional institucional (ou estrutura administrativa), aqueles que

devem ser ‘educados’ pela escola, ou escolarizados. Na rede pública municipal

15 ‘A clientela’, na linguagem cotidiana do universo das escolas, entre salas de professores e outros lugares.

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do Rio de Janeiro, me arrisco a afirmar que, de uma forma geral, transitam

entre o poder que o mercado confere aos clientes e a submissão dos assistidos

pela caridade.

A descrição dos papéis acima pode ser breve e reducionista, mas nos

ajuda a perceber a importância desses atores (gestor e alunos) no emaranhado

das relações que se estabelecem na escola. Pensando nisso, nos papéis que

lhes conferem, optei ainda por fazer algumas entrevistas no sentido de tentar

me aproximar dos sentidos das suas ações, nos seus sentimentos sobre as

ações do outro, suas razões e impulsos orientadores dos movimentos, suas

relações com os papéis atribuídos a eles e aos outros e, principalmente, suas

reflexões sobre esse espaço.

Além da observação dos movimentos ações no cotidiano escolar, essas

entrevistas me ajudaram na árdua tarefa de buscar caminhos explicativos. Para

isso foi importante ter conhecimento de pessoas que atuam ou atuaram na

unidade escolar, bem como alguma clareza do papel que desempenhavam.

Isso não quer dizer que as entrevistas foram feitas com o intuito de comprovar

esta ou aquela idéia sobre determinado fato, mas exatamente o contrário.

Decidi por algumas pessoas que, por observações e pelo convívio, imaginava

que poderiam trazer visões e fatos diferentes, inclusive divergentes, em relação

aos que eram do meu conhecimento. As entrevistas foram importantes no

sentido de me levar por trilhas e cantos desconhecidos, por vezes

aparentemente irrelevantes, do cotidiano da escola, mesmo para um professor

atuante. Elas me mostraram a riqueza das relações e dos movimentos que se

escondem por trás das cortinas da rotina e do visível16, que são inerentes a

16 Visível como o olhar viciado pela rotina, que espera o mesmo e não é capaz de captar as imagens que circulam ao redor dos movimentos repetidos.

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determinados papéis e permanecem ocultas aos olhares do outro. Fizeram com

que aquele espaço ganhasse uma outra vida, que até então pulsava nas

sutilezas das relações das quais não fazia parte diretamente, apesar de nele

ser também habitante e construtor. Elas contribuíram bastante para ratificar a

importância de se considerar a dimensão espacial da escola.

O que me proponho, portanto, não é fazer uma investigação do (ou

sobre) espaço da escola, mas tratar a escola como espaço.

Trata-se de uma mudança de perspectiva, onde o esforço é o de

desnaturalizar os sentidos de espaço, compreendendo o processo de

construção desses sentidos de forma contextualizada, para depois buscar

reconstruí-los numa perspectiva analítica. Não se trata de encaixar o objeto em

modelos e teorias explicativas, mas do esforço de mudar o olhar sobre o

fenômeno, ou melhor, compreender a escola como um fenômeno também

espacial, tentando mostrar a riqueza de observá-la e investigá-la sob essa

perspectiva.

Para esse exercício, tenho em mente que:

“O espaço reúne a materialidade e a vida que a anima”.

(SANTOS, 2004, pp. 62)

Significa dizer que as relações que se estabelecem na escola são

imanências deste espaço17. Investigar ou buscar compreender o papel de tais

relações na produção desse espaço não me levam necessariamente a fazer 17 SOUZA, 2003, p. 17.

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uma etnografia da escola (nem me impedem). Isso porque algumas vezes pode

ser que haja aqui uma aproximação com uma pesquisa etnográfica, o que é

justificável, pois estamos tratando também de algo que é construído a partir de

relações que envolvem questões como, por exemplo, aspectos culturais,

valores e subjetividades. Mas, não é a compreensão desses aspectos o

objetivo desta pesquisa, e sim as articulações e conflitos entre estes e outros,

bem como aquilo que essas articulações e conflitos podem produzir. Isso

porque, do espaço:

“(...) não se pode dizer que seja um produto como qualquer outro, um objeto ou uma soma de objetos, uma coisa ou uma coleção de coisas (...)”.

(LEFEBVRE, 1976, p.3418)

Não estamos lidando com uma simples identificação de coisas ou

processos, estabelecendo com estes conclusões a partir de lógicas de ‘causa e

efeito’. O propósito deste trabalho é o de estabelecer conexões entre os

elementos que orientam a forma de organização da escola e as suas

implicações. Para isso penso a escola na sua dimensão espacial, ou seja,

antes de tudo como um espaço. Como algo que se movimenta e que se mostra

como o resultado constante e inacabado de correlações de forças, interesses,

políticas e sentidos.

Para identificar sua dinâmica e transformações, utilizo ferramentas

analíticas que me permitem interrogá-la nas suas relações e na composição

18 Apud CASTRO, I. E. de ; GOMES, P.C. da C.; CORREA, R.L. (Org.)., 1995.

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dos diversos vetores que o constroem.

Este é, na verdade, o maior desafio: trazer para a superfície estática do

papel, dinâmicas de processos que se realizam o tempo todo. Investigar

movimentos, conflitos e conexões, como tais, e não como retratos ou objetos.

Daí a importância de transitar entre pontos de vista, entre postos de

observação. Se, por um lado, as questões que se colocam com relação às

limitações tornam essa posição incômoda, por outro me obriga não só a

questionar constantemente minha posição, mas a ficar sempre atento aos

movimentos que se apresentam e, por vezes, tentar perceber os que até então

se ocultavam.

Isso porque esse trabalho e suas questões nasceram da prática, das

ações e ganharam forma e consistência nos caminhos percorridos entre a

escola e as reflexões ‘além-muros’. Foi nas dúvidas sobre teorias e

necessidades práticas de confrontá-las que se construiu esse texto.

Na verdade, acabou se estabelecendo aí um tipo de movimento de

retro-alimentação: prática docente e pesquisa, em diálogo e conflito constante,

produzindo incertezas, indagações e buscando outros horizontes de

entendimento.

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CAPÍTULO II

A ESCOLA COMO ESPAÇO

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“É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares”

(Cecília Meireles – ‘Ou Isto ou Aquilo’)

Considerações iniciais

A escola como um espaço

Durante conversa com um amigo, também educador, sobre o papel e a

importância da escola, sempre voltávamos a um dilema que se coloca

freqüentemente, entre a educação – esta entendida num sentido mais amplo,

principalmente fora da escola – e a escolarização, ou a educação oficial,

produzida na escola, então institucional. Ao desenvolver determinados

argumentos (utilizados para embasar sua posição e, com isso, reduzir o papel

da escola), emitiu a seguinte frase: “Para mim a escola é apenas um espaço de

socialização como outro qualquer”.

O que me incomodou durante meses nessa frase não foi o certo

reducionismo (que pode ser discutido) referente à escola, mas o modo como o

espaço aparece como acessório ao processo de socialização e, além disso, o

‘como outro qualquer’. A primeira pergunta é sobre este final da frase: existe

um espaço como outro qualquer? Existe o espaço como dimensão19 ou sempre

ele é um ‘espaço de’?

Além disso, percebi na sua fala algo que se repete em muitas conversas

19 Sem entrar na discussão sobre uma ontologia do espaço, que não é, nem de longe, a proposta deste trabalho.

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e discursos sobre a escola, ou seja, que pouco se procura pensá-la como um

espaço, apesar de muito se falar sobre espaço da escola.

Tratar a escola como um espaço de socialização ‘como outro qualquer’

retira desta a riqueza das relações e processos que a ela são inerentes, não só

como instituição, mas como esfera da vida social, quer dizer, que também dela

não se dissocia. Do contrário, estaremos pensando o espaço “como palco das

ações humanas e não como imanência dessas mesmas ações20”.

O fato de o espaço ser tratado como “um fato da natureza, ‘naturalizado’,

através da atribuição de sentidos cotidianos comuns21” dificulta a conceituação

e mesmo a compreensão de que o sentido atribuído a este está assentado e

referendado em processos sociais, bem como influenciado por matrizes

culturais e dinâmicas históricas. As formas como concebemos e nos

relacionamos com o espaço, além do sentido que a ele atribuímos não são,

portanto, elementos de uma dada natureza, inerente ao ser humano, como

essência. São, antes de qualquer coisa, construções e como tal devem ser

sempre consideradas e tratadas. O que se concebe como espaço não é o

mesmo em qualquer canto do mundo e em qualquer época. As concepções,

quaisquer que sejam, são sempre construções sociais, historicamente e

espacialmente referenciadas. É necessário trazer esses elementos para a

discussão, contextualizando-a e fazendo o mesmo com o conceito.

Assim, se dizemos que a escola é apenas um espaço de socialização,

nisso acabamos encerrando a questão, reduzindo o espaço ao papel de um

palco inerte, ou, quando muito, um apêndice das relações sociais. Confunde-se

aí o espaço com lugar ou paisagem, o que dificulta a ampliação da sua análise.

20 SOUZA, 2003, p. 17. 21 HARVEY, 2006, p. 188.

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Lugar é muitas vezes entendido ou concebido como numa aproximação

com a definição da Física, em que ele é “o limite que circunda o corpo22”. Isso

não significa que esteja apenas nos domínios dos limites matematicamente

estabelecidos, o que nos permite expandir essa compreensão também para as

relações sociais diversas, trazendo o ‘lugar’ para o campo da experiência

humana e para as dimensões diversas dos sujeitos e da sociedade. Partindo

desse princípio, o lugar não é apenas o local matematicamente definido, o

ponto, mas o resultado das “características históricas e culturais intrínsecas ao

seu processo de formação23”. Portanto, se o lugar não é um simples terreno ou

uma área recortada e delimitada claramente, podemos defini-lo também pela

sua posição ou condição relacional.

“O lugar é o quadro de uma referência pragmática do mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas também é o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade”.

(SANTOS, 2004. p 322.)

‘Lugar ‘ não é ‘espaço’, mas pelo fato de conter ações e manifestações

muitas vezes é apreendido como tal. Assim, no caso do lugar, cabe pensarmos

como um lugar de algo, ou relativo a algum tipo de função. São as ‘solicitações’

e ‘ordens precisas’ que criam e recriam o lugar.

A escola, portanto, parece se encaixar, em muitas análises, dentro da

22 LEITE, 1998, p. 9. 23 Ibidem, p 15.

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definição de ‘lugar’. Se não um lugar, um objeto que desempenha um papel,

que possui significado e função dentro de um lugar. No caso da escola:

“Allí donde se aprende y eseña siempre es lugar, se crea un lugar”.

(FRAGO, 1994, pp. 20)

O ‘espaço de socialização’ na verdade pode ser traduzido como um

‘lugar de socialização’, ainda que possa soar um pouco estranho, e também

sem entrar no mérito do que se entende como socialização.

Além do ‘lugar’, outro termo que comumente parece se confundir com o

espaço, quando nos referimos à escola (ou às escolas) é o de ‘paisagem’. Nas

palavras de Milton Santos:

“Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc.”.

(SANTOS, 1988. p 61.)

“A paisagem é o conjunto de objetos que nosso corpo alcança e identifica.”

(SANTOS, 1988. p 76)

Também a paisagem se refere ao domínio da percepção, dos sentidos e

da experiência. Ela é, então, o real e a sua interpretação ao mesmo tempo. É o

físico e o simbólico, um recorte do espaço no tempo e do tempo no espaço. É a

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“materialização de um instante da sociedade24”. A ela se referem os olhares, as

visões e as percepções da realidade. Sobre a paisagem e seus objetos

despejam os valores simbólicos25.

Ao reduzirmos a dimensão espacial da escola ao tratamento de lugar ou

paisagem (ou mesmo de um objeto da paisagem) e nisso encerrarmos a

discussão, trabalhamos com recortes e pré-análises26, que muito dificultam e

limitam as investigações e reflexões. Mais ainda, isso também nos leva a crer

que a escola é uma coisa acabada em sua função institucional e oficial, e que

as relações que derivam ou emergem daí são determinadas apenas por esse

mesmo viés institucional, e não influenciadas por ele. Deixamos de perceber,

assim, a dinâmica dos processos diversos que constroem a escola

cotidianamente e que ultrapassam, por exemplo, os limites da sua

institucionalidade, sem dela prescindir. Negamos, portanto, a concepção de

espaço como um produto de relações, ainda que no discurso afirmemos muitas

vezes o contrário.

A diferença que se estabelece é essa: o espaço não é necessariamente

e apenas um campo, mas primeiro é o resultado de relações. Tal fato nos

obriga a lembrar que estamos sempre falando de uma produção, mais ainda,

de algo dinâmico e não de um objeto inerte. Tratamos de uma construção que

deve ser considerada como tal, em termos históricos e sociais.

Sobre essas diferentes abordagens, Milton Santos afirma:

24 SANTOS, 1988, p. 72. 25 SALES, 2000, p. 23-46. 26 Tomo a liberdade de chamar de ‘pré-análise’ as análises que não permitem que o objeto escape aos seus modelos explicativos, independente deles serem adequados ou insuficientes. Tratar a escola de forma acessória como um lugar ou apenas na sua condição de paisagem termina por restringir a investigação dos fenômenos e processos que a ela são inerentes a priori.

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“É preciso fazer claramente a diferença entre aqueles que apenas dão importância às formas, estudando assim o espaço em si mesmo (...) e aqueles que procuram analisar o espaço nas suas relações com a sociedade (...)”.

(SANTOS, 2004, pp. 58)

Os primeiros citados, nesse caso, entendem o espaço como algo pronto,

material e podemos dizer até limitado, reduzido a um aparato físico, mesmo

levando em conta que esse aparato é histórica e socialmente construído. É o

mesmo que acontece quando se fala em ‘espaço da escola’. Como se isso se

referisse a uma área determinada ou terreno mensurável – que fazem parte do

conjunto de relações e fenômenos que denominamos escola.

O segundo caso parece ser mais ampliado, pois coloca como elemento

central, as relações sociais. Na verdade ele fala em ‘relações com a

sociedade’, o que pode nos levar a crer que se trata de duas coisas distintas:

espaço e sociedade, ainda que depois, como referências teóricas, ambos se

relacionem. Não é exatamente essa a idéia do autor, mas de compreender

espaço e sociedade como indissociáveis, mesmo porque:

“a história não se escreve fora do espaço e não há sociedade a-espacial”.

(SANTOS, 1979)

De fato, a sociedade constrói o espaço e este, por sua vez, é parte

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integrante dela. As relações não aparecem após a existência de ambos, mas

não existe sociedade sem espaço e não há porque pensar o espaço sem

sociedade. Por essa lógica podemos começar a traçar linhas de análise a partir

do espaço e não apenas utilizando o espaço. Para isso, faz-se necessário

assumir que o conceito de espaço é uma construção.

Discutir o sentido de algo que faz parte da existência humana e que

aparece para nós como já dado, absoluto, não é tarefa das mais simples. Na

verdade, se (e como) partimos do princípio de que nossas percepções e o

sentido que atribuímos às coisas são construções históricas, relacionadas ao

conjunto das construções sociais, etc., então o sentido do espaço deve seguir

esse mesmo princípio. Ou melhor, podemos mesmo dizer que existe uma

teoria do espaço ou um espaço teórico no espaço percebido, ou concebido,

mas oculto, escamoteado na naturalização.

Realmente, dentro de uma cultura como a nossa27, onde as coisas

tendem a ser mensuráveis e mensuradas, tendemos também a nos confortar

com as delimitações e concepções baseadas em lógicas cartesianas quando

nos referimos ao espaço. É algo que está posto, que sentimos e vivenciamos,

experimentamos e explicamos por recortes de imagens, geralmente utilizando-

o como referência a alguma outra coisa.

“O espaço é tratado como um fato da natureza, ‘naturalizado’ através da atribuição de sentidos cotidianos comuns. (...) é tipicamente como atributo objetivo das coisas, que pode ser medido e, portanto, apreendido”.

(HARVEY, 2006, p. 188)

27 Com valores e matrizes teóricas inerentes ao que nos acostumamos a chamar de ‘cultura ocidental’: aquilo que nos remete a uma formação judaico-cristã-ocidental, uma matriz de pensamento com raízes datadas e localizadas na Europa.

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É importante também, neste momento, enfrentar essa certa

‘naturalização conceitual’ do espaço e tentar compreender os processos que

levam a tratá-lo como algo já estabelecido, anterior a qualquer processo, para

então buscar conceitos e ferramentas de análise que nos permitam pensá-lo na

sua complexidade.

Essa concepção naturalizada e que se apresenta quase como certo

elemento intrínseco a tudo na nossa vida, dificulta um maior questionamento

sobre sua construção, principalmente teórica, mas também uma reflexão mais

aprofundada sobre as relações e processos que a constroem. Mais ainda,

como desdobramento dessa naturalização, podemos perceber que dentro da

nossa sociedade:

“(...) O espaço é tratado tipicamente como um atributo das coisas que pode ser medido e, portanto, apreendido”.

(Ibidem)

Essa situação transfere o espaço de maneira única ao campo da

experiência e da subjetividade; daí a dificuldade em questionar o que está no

domínio exclusivo dos sentidos e da experiência. É a mesma experiência que

nos impele a atribuir o valor de ‘real’ ao que se aproxima e é apreendido nas

nossas relações. É a percepção da experiência espacial e ela própria que se

transforma, assim, em concepção de espaço. Mas, o que não podemos

esquecer é que as experiências não são isoladas; elas são, primeiro, relações

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e por isso não estão soltas nem são acasos fortuitos, nem mesmo condições

‘dadas’. As experiências são contextualizadas, carregam as marcas dos

tempos e lugares onde se inserem e como tal devem ser tratadas.

Em outras palavras:

“(...) sociedades ou subgrupos distintos possuem concepções de espaço diferentes”.

(Ibidem, p. 189)

Mais ainda, numa perspectiva materialista:

“(...) cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço”.

(Ibidem, p. 189)

Esse raciocínio nos leva a concluir que são também as relações sociais

e relações de produção que constroem concepções de espaço, inclusive a de

que na nossa sociedade, e em especial com relação à escola, o espaço seja

minimizado na sua importância e tratado apenas na sua materialidade.

Ou seja, utilizando a idéia de Harvey, é a prática que rege a relação com

o espaço e, por extensão, sua concepção. Podemos estender a perspectiva e

concluir que é o fazer, a base da concepção de espaço de um determinado

grupo ou sociedade. Fazer no sentido amplo, envolvendo não só as relações

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produtivas e de uma produção social, mas fazer que nos remete ao ser28. A

idéia de espaço e da relação com o espaço, portanto, está intimamente ligada

com as práticas e a idéia de ser dentro de uma determinada sociedade, num

determinado contexto. Destrinchar as relações que se constroem, mas que

também constroem as concepções de espaço, portanto, pode significar

encontrar caminhos que ajudem a compreender as relações sociais e as

construções de subjetividades num certo contexto.

Ao analisar uma escola na sua dimensão espacial, é possível que

encontremos elementos significativos da produção de subjetividades no

processo de escolarização.

Assim como na nossa sociedade as coisas, materiais ou não, tendem a

se transformar em coisas em si e daí em mercadorias, a relação que

estabelecemos com o espaço não é diferente. O aparato conceitual com o qual

lidamos está impregnado desses valores e dessa lógica, que retira o que

poderia ser de cunho subjetivo, mesmo uma significação, e lhe empresta um

significado29. Por essa razão fica mais claro compreender que o movimento

que constrói as relações desiguais e as desigualdades diversas na nossa

sociedade (seja ela material, de direitos, etc.) é o mesmo que tende a retirar os

sujeitos do espaço e o espaço dos sujeitos. É a valorização do tempo em

detrimento do espaço – como se fôssemos, em primeiro lugar, temporais.

28 HARVEY, 2004, p. 190. 29 Chamo de significação a atribuição de valor e construção do signo, que está relacionada ao sentido, ou aos sentidos. Esta se remete aos elementos culturais e construções diversas, que cria uma concepção de espaço ligada ao pertencimento, ao vivido. Ao contrário, o significado pode ser entendido aqui como a leitura que se estabelece por meio da homogeneização, ou pela massificação, ao construir idéias que ganham peso de senso comum e terminam por retirar das pessoas o signo, a reflexão e apropriação do espaço. Estabeleço nesse caso um diálogo com Odete Seabra (1996), ao desenvolver as idéias de Henry Lefebvre sobre o movimento conflituoso entre apropriação e propriedade. O que busco nesse momento é, a partir dessa reflexão, levantar questão sobre como se dá o movimento que naturaliza a concepção de espaço na nossa sociedade, fazendo com que este seja tratado muitas vezes como um elemento acessório e não como dimensão da mesma.

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Como, também, se fosse possível essa relação tempo-espaço numa dicotomia,

como duas dimensões distintas que se conectam, e não como inter-

relacionados.

O tempo reina absoluto e não é tratado como uma abstração. Por isso,

na nossa sociedade, o tempo conduz as relações, por isso também o espaço é

acessório. A escola se torna o fluxo, ou um apanhado de fluxos: de alunos de

professores, de investimentos econômicos, do tempo visto como investimento e

de horas medidas. O espaço é encarado como acessório ao fluxo. Ele se torna,

a partir dessa lógica, nada mais do que uma forma onde se processam

fenômenos temporais. É o ‘espaço’ da escola e o ‘horário’ (tempo apreendido,

medido) de aula. É o ‘calendário’ escolar. É a ‘idade’ escolar: a escola

confecciona o sujeito pela temporalidade. As preocupações com a correção de

fluxo30, ou com as reprovações, são sempre maiores do que as atenções

dadas, por exemplo, às condições materiais e dos equipamentos. “Todos estão

na escola”, é a máxima do discurso oficial, sem que haja uma maior reflexão

sobre o que isso representa e em que condições estão. Isso, sem falar que

estar já significa uma condição de transitoriedade, diferente de ser, que indica

existência. Voltamos ao tempo e espaço como dicotomia.

Nada mais lógico, então, do que a dimensão espacial da escola não ser,

na maioria das vezes, valorizada e apreciada nas suas especificidades, mas

traduzida como uma parte, um objeto integrante de um arranjo. Faz sentido,

pois o os sujeitos são impelidos ao não pertencimento, a medir o tempo da vida

e simplesmente tratar o espaço na medida das outras relações sociais.

30 Correlação direta da faixa etária com a seriação escolar. O fluxo corresponde à passagem do aluno pelos estágios de escolarização, que são temporais, ao longo da sua vida escolar. A chamada correção de

fluxo diz respeito aos planejamentos, ações e políticas que tem o objetivo de fazer com que o aluno em idade fora da esperada seriação seja capaz de voltar à série correspondente, preferencialmente antes do final da vida escola institucionalmente desejada.

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Não quero, com isso, desqualificar ou ignorar a importância e o papel

das subjetividades no que diz respeito às concepções de espaço, mas o

interessante é escapar da tentação de se atribuir essa subestimação do espaço

a um etéreo ‘senso comum’ e enfrentar o desafio de conceitualizar ou procurar

conceitualizações de espaço que atendam aos propósitos dessa pesquisa e

permitam estabelecer um diálogo com diversos fenômenos relativos à escola.

A escola é um espaço delimitado fisicamente, mas ao delimitá-lo não

necessariamente o estamos limitando. O prédio escolar é um objeto da

paisagem, sem dúvida, mas a escola não é o prédio, por mais que ele seja um

elemento importante da sua constituição. Isso significa que o esforço em traçar

os limites do objeto deve ser também o esforço em conceber tais linhas como

abstrações e como referências necessárias metodologicamente, no sentido de

circunscrever aquilo sobre o que se pretende trabalhar. Dimensões diversas de

fenômenos e processos atravessam seus muros em várias direções, fazendo

com que este espaço, por ser espaço, seja pulsante, jamais acabado e sempre

em construção31. Daí a importância e a riqueza de identificar, reconhecer,

conhecer e pensar a escola na sua dimensão como espaço. Daí, também, a

necessidade de compreendê-la na sua especificidade como instituição e como

unidade.

Trazer a escola para uma perspectiva de análise espacial significa, antes

de qualquer coisa, trazê-la aos conceitos e sentidos de espaço diversos e, para

isso (e a partir disso), expô-la ao conjunto de ferramentas teóricas que

permitam assim buscar compreendê-la.

31 MASSEY, 2004. p. 8.

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Algumas concepções de espaço e a escola escolhida

Tratar a escola na sua dimensão espacial nos obriga, antes de tudo, a

explorar concepções de espaço que auxiliem de maneira significativa tal

exercício. Duas possibilidades aqui se apresentam: destrinchar concepções

diversas, para depois trazê-las com suas ferramentas de análise; ou então,

‘deixar a escola falar’ como espaço, para buscar as ferramentas necessárias.

Não encaro tais possibilidades como excludentes. Pelo contrário, considero

complementares os dois caminhos.

Primeiro, porque é importante conhecer determinados conceitos, ainda

que o processo de investigação e as reflexões terminem por reescrevê-los ou

mesmo descartá-los. É importante que tais referências sejam utilizadas e

expostas ao seu limite, caso contrário, corremos o risco de cair nas armadilhas

da mesma naturalização aqui criticada. Não fazer qualquer reflexão anterior

pode significar trair o próprio argumento, como que andando em círculos.

Ao mesmo tempo, é fundamental deixar também que a escola ‘fale’, sem

reduzir o objeto ao papel do simples (ou mesmo do complexo) observável.

Quer dizer, cabe tratar a escola como um objeto aberto, entendendo que se

trata de algo que se define também nas suas relações.

Assim, se por um lado o domínio de conceitos e concepções é sempre

importante para uma investigação consistente, por outro é a própria escola que

tensiona a teoria e induz à elaboração de outras. Dentro disso, é importante

lembrar que os conceitos não são ferramentas de uso exclusivo de um ou outro

campo. Porém, são construídos dentro de determinadas lógicas, que dizem

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respeito, por sua vez, ao conjunto de conceitos que se referem aos objetos e

preocupações desses campos. Por exemplo:

“Oscar Niemeyer chega a dizer que a grande maestria de sua arte está não na construção concreta que ocupa o espaço, mas sim na maneira de produzir vazios.”

(MARTINS, 2004. p. 24.)

O trecho acima traz a idéia de espaço como construção, eminentemente

física. Faz todo o sentido essa idéia, pois sua preocupação é com a forma, com

o objeto físico e os desdobramentos da sua construção. Neste caso a

dicotomia entre o ocupado e o vazio nos transporta à idéia de paisagem, dentro

da Geografia, apesar do uso da palavra espaço. Esta é a ‘materialização de um

instante’32, a forma, física e produzida. No caso em questão, Niemeyer se

ocupa do objeto da paisagem e da sua relação com o conjunto da paisagem.

Não importa ali ultrapassar a idéia do vazio e do ocupado físicos, utilizando-os

para desenvolver idéias como as do uso, por exemplo. Numa escola, o vazio

pode significar a possibilidade de disputa de uso, ou simplesmente o exercício

de poder, ou ainda uma mudança na função do espaço ou de parte dele.

Trabalhar a escola como um espaço apenas nessa concepção seria perder a

dimensão de boa parte das suas relações e do seu movimento.

Mesmo a relação entre o ocupado e o vazio pode ganhar outra

dimensão, que não a material, se distanciando da confusão conceitual com a

paisagem:

32 SANTOS, 1988, p. 72.

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“Para que alguma coisa relevante ocorra é preciso criar um espaço vazio33.”

“O vazio no teatro permite que a imaginação preencha as lacunas. Paradoxalmente, quanto menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é como um músculo que gosta de se exercitar em jogos34.”

(BROOK, 1999. p 23)

No teatro a materialidade das formas se funde com a imaterialidade da

percepção e da imaginação. O vazio não é o vazio apenas da ausência do

objeto físico, mas é também o da ausência da imposição do signo, da imagem,

do gesto, da voz, dos movimentos e das demarcações diversas. É o físico e

material que necessita do significado, da história, do conteúdo imaterial

colocado pelos atores e pelo público. Ainda assim, o vazio é físico e também

produzido numa intencionalidade, tal qual a idéia da arquitetura de Niemeyer.

As duas concepções apresentadas nos mostram como elas são

significativas dentro do campo que as geraram. Em ciências sociais, mas

também nas chamadas ciências exatas, encontramos formas de conceitualizar

o espaço de acordo com o que esses campos representam, com o que se

preocupam, com o que produzem, e como se dão essas relações de produção

de conhecimento e operacionalização de movimentos dentro dos seus eixos

teóricos. Quer dizer, nem sempre se trata de um a concepção única dentro de

um campo. 33 BROOK, Peter, apud MARTINS, Marcos B., 2004, p. 31. 34 Ibidem.

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Na Sociologia, Pierre Bourdieu, por exemplo, trabalha com a idéia de

‘espaço social’, sem materialidade explícita e, de maneira bastante

simplificada, definido como um conjunto de relações e posições de agentes35.

Não descarto essa nem outras concepções, uma vez que se encontram

estruturadas dentro de determinadas matrizes pertinentes aos seus campos de

saber e ação. Mas como referências principais, utilizo pensamentos e a

produção de origem na Geografia para me dar suporte na tarefa de tratar a

escola na sua dimensão espacial. Dentro deste campo, debruço-me sobre o

trabalho e o pensamento, em especial, de Doreen Massey e de Milton Santos,

como ferramentas e, principalmente, como possibilidades de interpretação e

investigação.

A escolha pela Geografia é uma escolha por uma ciência que tem na

sua raison d’être o trabalho com o espaço e um pensamento sobre o espaço.

Quer dizer, o espaço não só é objeto, mas é visto também como possibilidade

analítica, uma vez que é entendido como dimensão da sociedade. Trata-se de

uma ciência do espaço, sem dúvida, seja ela descritiva36 ou esteja ela

preocupada com a produção (ou com relações de poder).

Milton Santos se esforçou em desenvolver ferramentas conceituais

sobre e para a investigação, ao mesmo tempo, do espaço e espaciais sobre os

fenômenos. Apesar de não tratar o espaço como algo unicamente material, foi

no trabalho partindo da sua materialidade que propôs e desenvolveu

importantes categorias de análise. Sistemas de categorias como forma, função,

estrutura e processo, fixos e fluxos, sistema de objetos e sistema de ações, ou

outras como horizontalidade e verticalidade, são algumas ferramentas 35 BOURDIEU, 2000, p. 133. 36 “Descrição e explicação são inseparáveis. O que deve estar no alicerce da descrição é a vontade de explicação (...)”. SANTOS, 2004, p. 18.

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importantes e que podem, no seu conjunto, ser interessantes para ajudar a

investigar e pensar a escola, uma vez que esta, mais do que um objeto, é um

produto da sociedade, uma construção resultante de relações diversas,

principalmente produtivas.

Por sua vez, Doreen Massey trata o espaço como esfera da existência

de trajetórias, como produto constante de inter-relações, como algo em

processo, um devir, que ‘está sempre sendo feito – nunca está finalizado,

nunca se encontra fechado’37’. Essa idéia é interessante de ser transportada

para a escola: por mais que sua forma pouco se altere, lidamos com um objeto

que aglutina pessoas, com histórias, valores, anseios, enfim, movimentos em

diversos sentidos.

Não é a materialidade, para Massey, que caracteriza o espaço. Sobre

essa questão, ela deixa bem claro:

“Talvez de forma a mais surpreendente, dadas asa conceitualizações hegemônicas, o espaço não é uma superfície.”

(MASSEY, 2004, p 17)

Numa primeira análise, as concepções de espaço de Massey e Santos

parecem ser bastante contraditórias. De fato, a materialidade encontrada na

produção do espaço em Milton Santos não encontra eco nas relações e na

ausência de superfície do espaço de Doreen Massey. Porém, quando

problematizo a escola como espaço e ‘deixo que ela fale’ como objeto, percebo

37 MASSEY, 2004, p. 8.

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que as duas concepções me servem como complementares. Isso porque a

escola é inegavelmente material: é um objeto físico que tem na forma e na sua

função (principalmente nesta) aquilo que condiciona sua existência. Suas

especificidades como objeto físico, como arquitetura ou como forma, trazem,

por exemplo, uma carga simbólica com relação a sua função, conforme já foi

levantado em outras situações:

“O valor simbólico de um prédio escolar está relacionado com o valor social atribuído aos códigos emitidos por sua forma arquitetônica que, por sua vez, está atrelada ao valor atribuído ao tipo de escola associado à sua forma arquitetônica.”

(SALES, 2000, p. 261) “O valor atribuído aos diversos tipos de escolas é fruto de um processo sócio-histórico de julgamento social, que se estabelece e se manifesta nas representações sociais de escola que os sujeitos compartilham em um dado contexto”

(Ibidem, p. 262)

Porém, ela é também um produto de inter-relações, é o encontro de

trajetórias e a coexistência delas. São as trajetórias que produzem a escola,

que tensionam as políticas oficiais e as funções social e institucionalmente

determinadas.

“O espaço, então, é o produto das dificuldades e complexidades, dos entrelaçamentos e não

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entrelaçamentos de relações.” (MASSEY, 2004. p. 17)

Pensar a escola com base nessas concepções, portanto, é trabalhar ao

mesmo tempo a sua materialidade e suas inter-relações. Como uma

construção física, mas que não pode ser vista acabada nesses limites, pois o

espaço não é fragmentado. Mais do que contextualizá-la, no tempo e na

sociedade, capturar os movimentos, as trajetórias, os fluxos e as correlações

de forças passa a ser fundamental, se pretendemos mergulhar nesse espaço

(escola).

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Investigação de uma escola na perspectiva do seu espaço

Uma escola: onde e como

A escola escolhida como campo de observação e análise dessa

pesquisa se localiza numa área de subúrbio do Rio de Janeiro, no bairro de

Irajá (área destacada no mapa abaixo).

{ EMBED Unknown }

(Fonte: <www.rio.rj.gov.br/armazemdedados.)

Ao contrário dos ‘suburbs’38 da América do Norte, o que é chamado de

subúrbio na cidade do Rio de Janeiro se caracteriza por outro passado, bem

distinto: na maioria são antigos bairros operários, ou então com a ocupação

marcada pela expansão das linhas ferroviárias urbanas39. Ao longo do tempo, a

escassez de determinados serviços e equipamentos urbanos, bem como a

qualidade e a quantidade dos investimentos (seja por parte do Estado ou do

38 Os ‘suburbs’, nos EUA, são bairros afastados do centro urbano. Situam-se longe dos fluxos intensos, da poluição e agitação dos núcleos das metrópoles. Os terrenos são mais valorizados, muitas vezes organizados em condomínios ou grandes projetos de mercado imobiliário. Em função disso as populações que os habitam costumam apresentar poder aquisitivo relativamente elevado. O fenômeno da ‘suburbanização’ nos EUA tem origem na primeira metade do século XX, especialmente ligado aos investimentos privados, em associação com a construção de largas vias de acesso entre essas áreas e os centros das cidades e a expansão da indústria automobilística. No Rio de Janeiro, o ‘subúrbio’ tem seu passado nas vilas operárias e expansão das linhas de trens urbanos. Deste modo, são áreas historicamente proletárias, habitadas por população de poder aquisitivo inferior ao de bairros mais centrais e dotados de melhor oferta de equipamentos urbanos. Não podemos aqui ‘congelar’ os bairros cariocas nessa descrição, como se isso explicasse o que eles são, mas ao dizer que Irajá é um bairro de subúrbio, chamo atenção ao fato de que a cidade possui processos de construção do seu espaço bem diferenciados, ainda que internamente funcionem de forma combinada. Considero, portanto, relevante situar, no tempo e no espaço, onde se insere a escola observada e trazer aqui algumas características importantes para enriquecer a compreensão de determinadas relações. 39 Uma curiosidade: não é raro encontrar pessoas na cidade do Rio de Janeiro que ligam o subúrbio ao trajeto das linhas de trens urbanos.

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setor privado) diretamente associados ao baixo valor do solo urbano na

região40, fizeram com que se estabelecesse gradativamente uma população de

renda mais baixa do que das áreas centrais da cidade. Tal lógica não deve ser

levada como definitiva para explicar o processo de ocupação e configuração

socioeconômica do bairro, nem devemos entender com isso que existe grande

homogeneidade com relação a esses aspectos. As condições de vida da

população e as condições materiais deste e de outros bairros devem ser

entendidas também de forma relativa, dentro da cidade do Rio de Janeiro.

Segundo dados publicados no caderno “Retratos do Rio”, do jornal O

Globo, em 24 de maio de 200141 o IDH42 de Irajá era o 72º (0,736) entre os 161

bairros da cidade. De acordo com o “Armazém de Dados43”, em 2000 o bairro,

analisado em conjunto com Vista Alegre, ocupava o 101º lugar entre 126, no

indicador de desigualdade social, com 0,46 pelo índice de Gini44. Esses dados,

mesmo com os limites das suas superficialidades, nos ajudam a compor um

panorama preliminar do bairro onde se insere escola escolhida.

A escola analisada se localiza numa rua secundária, repleta de casas,

vilas e prédios de três ou quatro andares, compondo uma paisagem suburbana

carioca típica. Vale lembrar que boa parte são alunos de famílias moradoras do

40 Mesmo entre os bairros considerados suburbanos encontramos diferenças significativas quanto ao valor do solo urbano e oferta de serviços, regidas por fatores que vão desde o histórico e simbólico até a violência urbana e os investimentos por parte do poder público. 41 A publicação citada divulgou dados de pesquisa realizada em conjunto pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), Prefeitura do Rio de Janeiro e Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) 42 Índice de Desenvolvimento Humano – Índice criado pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sem, em 1991. Esse índice leva em consideração dados sobre educação, longevidade e renda. No relatório do Rio o IDH foi calculado com base na renda per capita, taxa de alfabetização dos maiores de 15 anos e a expectativa de vida. 43 Banco de dados quantitativos sobre a cidade, disponibilizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro no sítio <www.rio.rj.gov.br> 44 O índice de Gini mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita. Seu valor varia de 0, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula).

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bairro ou da região45, alguns há décadas, e não raros são os pais que foram

também alunos da escola. No corpo docente, há muitos professores moradores

do bairro e outros vizinhos e há cinco que também estudaram ali. Esses dados

conferem à escola uma carga afetiva e simbólica impossível de ser ignorada e

que tem importância quando nos referimos ao seu uso, aos seus significados e

mesmo à sua gestão. Ao longo do tempo a escola esteve associada, entre a

comunidade, a uma imagem de disciplina, seriedade e qualidade, construída

principalmente ao longo da gestão do seu primeiro diretor, que permaneceu no

cargo de 196346 até 1986.

A unidade conta com um bloco principal de dois pavimentos, um anexo,

térreo, e uma quadra polivalente. Na entrada do bloco principal ficam as salas

do setor administrativo (secretaria e direção), sala de professores, uma área

coberta (que funciona como a parte coberta do pátio), refeitório, dois banheiros,

um auditório e sala de informática. No andar superior, encontramos as salas de

aula regulares, uma sala de leitura, uma sala de informática do “Pólo de

Educação Pelo Trabalho” e dois banheiros, hoje desativados para uso dos

alunos (um funciona como uma espécie de almoxarifado e outro como um

banheiro de uso do pessoal do setor de limpeza). No prédio anexo, além de

uma sala para aula de música e um laboratório de Ciências, funcionam

atualmente as oficinas do Pólo. É como uma extensão do passado da escola:

ela já foi um Ginásio Industrial (assim foi fundada), onde os alunos tinham

aulas de marcenaria e outros, dentro do conjunto do que era chamada

45 Utilizo o termo ‘região’ para a área do bairro de Irajá e outras localidades ao redor, em especial Vila da Penha, Vicente de Carvalho, Vista Alegre, Rocha Miranda e Vaz Lobo. São bairros e sub-bairros que guardam uma história comum, principalmente das relações entre seus habitantes, apesar da diferenciação administrativa desenhada pela prefeitura. Pela Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, o bairro faz parte da 5ª CRE (Coordenadoria Regional de Educação) e da XIV RA (Região Administrativa, que engloba os bairros de Colégio, Irajá, Vicente de Carvalho, Vila Cosmos, Vila da Penha e, Vista Alegre.). 46 A escola foi fundada oficialmente em 1964, mas já funcionava em 1963.

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disciplina “Artes Industriais”. Com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio

de Janeiro (1974), a escola passou de “Ginásio Industrial” para “Escola

Municipal”.

Não se trata apenas de uma mudança de nomenclatura, mas de uma

sutil alteração na função da escola: o caráter profissionalizante sai de cena.

Poderíamos até dizer que, com a existência de um “Pólo de Educação Pelo

Trabalho” funcionando na escola, com suas oficinas, etc., o caráter

profissionalizante retorna, ou não desaparece. A afirmação não resiste quando

analisamos dois aspectos do Pólo. O primeiro é o próprio sentido deste projeto:

não é o de profissionalizar, mas de ser complementar ao trabalho do chamado

núcleo comum. Quer dizer, o trabalho aparece como meio e não como fim

dentro desta proposta. Dentro disso, o Pólo conta com alunos da rede

municipal que não são, na sua maioria, daquela escola. Há uma cota, pequena,

para os alunos da própria escola, deixando a maioria das vagas para os alunos

de outras escolas, que ali se inscrevem e freqüentam os cursos. Depois, não

há uma certificação para esses cursos, além do que não têm mesmo o objetivo

de profissionalizar, formar mão-de-obra, mas de oferecer atividades

alternativas ou complementares ao núcleo básico regular da rede.

Os horários das oficinas não se alinham, necessariamente, aos horários

da grade da escola de ensino fundamental. Isso gera, por vezes, alguns

incômodos ao funcionamento da escola e gera preocupações extras com

controle dos fluxos, pois o portão de entrada, por exemplo, é o mesmo, os

banheiros são os mesmos, mas as salas não são e os horários de entrada e

saída, bem como o horário de recreio também não são comuns. O horário de

recreio da escola e o horário de chegada de alunos para algumas oficinas

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muitas vezes coincidem, o que torna complicada a situação das pessoas

envolvidas no controle do espaço. Essa superposição de escolas com funções

diferenciadas e funcionamentos diferentes, dividindo o mesmo espaço, termina

por comprometer o funcionamento de ambas, ainda que as direções procurem

estabelecer uma harmonia no funcionamento. O controle do tempo e a

dificuldade de possibilidade de exercer esse controle nos levam a pensar sobre

as condições em que se desenvolvem ambas as atividades.

Exemplificando, quando as turmas descem para o pátio no seu horário

de recreio, é necessário fazer um controle do refeitório, da sua entrada. Ao

mesmo tempo, as salas do prédio anexo (Pólo) ficam expostas aos fluxos dos

alunos da escola. Essa questão foi resolvida parcialmente com a colocação de

uma grade entre os prédios. Parcialmente, porque assim a quadra também

ficou separada do prédio principal, além de ter sido reduzida a área de

utilização dos alunos durante o recreio. Esta situação nos mostra o quanto o

fluxo e a necessidade do seu controle condicionam o arranjo dos objetos e dos

tempos, com o intuito de preservar o funcionamento da escola.

Em termos quantitativos, foram 915 matrículas no ano de 2006. Na

verdade, contando entradas e saídas (transferências e evasão), ao longo desse

ano a escola ficou com 875 alunos. No turno da manhã são 44047, enquanto no

turno da tarde são 43548, dispostos em turmas conforme a tabela abaixo.

Turno: Manhã

Série 5ª 6ª 7ª 8ª

47 460 matrículas em 2006. 48 455 matrículas em 2006.

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Turma 502 504 506 602 604 606 702 705 801 803 804

Alunos

matriculados 40 42 40 42 41 42 43 43 43 43 41

Alunos

freqüentando 39 40 39 42 40 36 43 38 43 40 40

Total: 440 (460 matrículas)

Turno: Tarde

Série 5ª 6ª 7ª 8ª

Turma 501 503 505 507 601 603 605 701 703 704 802

Alunos

Matriculados 39 41 41 40 45 41 40 43 42 41 42

Alunos

Freqüentando 38 39 39 35 43 41 39 42 41 36 42

Total: 435 (455 matrículas)

As turmas são alocadas em salas, todas elas localizadas no andar

superior do prédio principal da escola. Nesse andar, todas as salas se

comunicam por um largo corredor central. Além das salas das turmas, ainda há

uma sala de leitura49, uma sala de informática utilizada pelo Pólo de Educação

pelo Trabalho50, duas salas bem pequenas, que servem de depósito para o

material de limpeza, e dois banheiros. No período da pesquisa, os banheiros se

49 Atualmente as escolas da rede pública da Prefeitura do Rio de Janeiro não contam com bibliotecas. Em lugar disso foram instaladas ‘salas de leitura’. De funcionamento e sentido diverso ao das bibliotecas (centros de referência), as ‘salas de leitura’ têm o papel de atuar como um espaço destinado ao desenvolvimento do hábito da leitura. 50 Utilizarei aqui o nome ‘Pólo’ para citar o ‘Pólo de Educação Pelo Trabalho’ – trata-se de projeto paralelo da Secretaria Municipal de Educação, juntamente com o ‘Núcleos de Artes’ e ‘Clubes Escolares’. Na escola em questão, a maior parte das aulas do Pólo funciona em prédio anexo, mas sua secretaria e uma sala de informática ficam no prédio principal.

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encontravam a disposição apenas para o pessoal da Comlurb51, ou professores

e funcionários que desejassem utilizá-lo. Ou seja, são doze salas no andar,

sendo dez destinadas ao uso com aulas do currículo regular. Porém, são dez

turmas por turno, o que só é possível com o que chamam de ‘rodízio de

turmas’.

Os rodízios

Há dois tipos de rodízios. Um deles se organiza com base na semana

letiva e o outro no horário do turno letivo.

No primeiro caso, as turmas se revezam com relação aos dias de folga

da semana. Desta forma, os cinco dias de aulas semanais começam na

segunda e terminam no sábado, com uma ou outra turma ‘de folga’ em um dia.

Quando uma turma tem seu dia de ficar em casa, outra ocupa a sala. Assim,

numa escola hipotética de cinco salas e seis turmas, é possível organizar o

horário com pelo menos uma turma migrando de sala em sala a semana

inteira, enquanto outras têm salas fixas.

No caso da escola estudada, o rodízio é outro. Trata-se de uma

dinâmica feita com base na organização do horário diário. A mesma lógica do

rodízio anterior vale para esse, porém utilizando o horário diário e as atividades

e aulas realizadas fora das salas.

Quer dizer, como nesse caso há nove salas para dez turmas, significa

que nove turmas têm suas salas específicas e uma ‘sobra’ – fica onde é 51 Desde 2004 a prefeitura substituiu na escola o pessoal encarregado dos serviços de conservação e limpeza, então terceirizados, por trabalhadores da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), que passou a contar com um setor específico para as escolas.

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possível. A estratégia é deslocar a turma do rodízio para uma sala, sempre que

uma outra turma está em horário de Educação Física (na quadra), laboratório

ou outra atividade externa, ou ainda com alguma ‘brecha’ no horário. Não se

trata de improviso da direção, mas de uma condição atípica, contraditoriamente

incorporada ao funcionamento da escola: o horário é montado para que isso

aconteça. Há sempre uma sala prevista no horário para ficar liberada, seja por

uma turma estar em horário de alguma aula fora da sala de aula (Educação

Física, por exemplo), ou por alguma turma entrar mais tarde ou sair mais cedo

que o horário regular.

Aquilo que Certeau chamaria de ‘tática’ ou ‘astúcia’, ou o que Paulo

Freire identifica como ‘manha’, acontece às avessas. Não são os ‘fracos’ nem

as classes populares ou os trabalhadores, mas aqui é o próprio poder público,

a administração oficial, que ‘dribla’ as estatísticas e incorpora às escolas um

contingente superior àquele inicialmente pensado para elas. Considerando que

as próprias salas já ultrapassaram o limite de ocupação52 e que as políticas de

expansão da oferta para atender a essa demanda são no mínimo insuficientes,

a sala passa a ser utilizada por mais de uma turma, porém com um controle do

fluxo e do tempo que permite essa proeza, sem concomitância. O ‘drible’ oficial

vai além: consiste em transformar aquilo que aparentemente era improviso em

algo definitivo, naturalizando e incorporando essa estratégia à rotina.

Aqui vale uma ressalva. O termo ‘estratégia’ não é empregado como o

conceito utilizado por Michel de Certeau. Utilizo uma expressão corrente do

vocabulário da própria Secretaria de Educação e suas Coordenadorias, que

costumam assim definir os planejamentos sobre determinadas ações,

52 Essa posição é a defendida pelos sindicatos, porém refutada pela Secretaria.

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geralmente imediatas, e que não constavam em um plano inicial.

“(...) no começo era assim: está faltando professor. Aí, no histórico [escolar] você não pode colocar ‘sem professor’. Inventa qualquer coisa, faz uma estratégia. O que é essa estratégia? É... Não tem [aula de] música (o certo é ter música pra todo mundo). Ah! O professor de inglês não canta? A Escola não canta hino? Dá nota pra todo mundo”.

(Selma, Ex-diretora da escola)

Tais estratégias são faces de uma relação que merece uma atenção

especial. Nem sempre essas determinações são documentadas. Muitas vezes

são impostas ou repassadas em contato das instâncias superiores (geralmente

órgãos da Secretaria ou CRE’s53) com a direção. São comuns normas impostas

de maneira informal, mas que algumas vezes chegam a ganhar status de

política oficial. Controle sobre notas, deliberações sobre disciplina, composição

de horários, enfim, boa parte da rotina da escola é controlada ou comandada

desta maneira. Não são raros os casos de determinações informais que entram

num certo senso comum e passam a se confundir com as políticas oficiais.

No caso do rodízio, a determinação para que seja realizado não é, a

princípio, da direção da escola, mas chega a estas através das CRE’s.

Algumas vezes há mais de um rodízio, justificados pela necessidade de

aumentar o número de vagas e pela possibilidade (matemática, e não

necessariamente material) do mesmo ser implementado na escola. Quer dizer,

53 Coordenadoria Regional de Educação – instâncias intermediárias que têm a função primeira de gerenciar as escolas da sua região. São responsáveis, por exemplo, pela implementação de alguns projetos específicos e pela fiscalização e acompanhamento das atividades das escolas. A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro divide a rede em 10 CRE’s, cada qual com uma área de abrangência e número de escolas diferente.

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num momento de aumento de procura por vagas, a Coordenadoria solicita que

determinada escola crie um número determinado de turmas, superior ao

número de salas, justificando que há possibilidade de organizar os horários

para que isso aconteça.

Se por um lado, analisando de forma estatística, o rodízio permite que

haja um aumento no número de alunos a partir de um aumento na oferta de

vagas, por outro as implicações de tal sistema são muitas.

Para o funcionamento da escola representa um certo transtorno, ainda

que minimizado pela naturalização imposta pelo hábito. São cerca de quarenta

alunos de uma turma e cerca de quarenta alunos de outra, que muitas vezes

‘se encontram’ durante o horário de aula e que devem fazer uma troca de

posições, de maneira acelerada. Sendo mais claro: uma turma sai e outra entra

na mesma sala, mas isso não pode ser muito demorado, pois atrapalha o

andamento das aulas nas outras salas. O encontro de oitenta alunos num

corredor deve ser aligeirado para que o início da aula nessa sala e as aulas ao

redor não sejam prejudicados.

Aparentemente podemos supor que tal sistema causa um pequeno

transtorno, sem maiores repercussões além do momento em que acontece a

transição. Será?

“Nossa turma já foi de rodízio. Nossa! Era ‘boooom’.

[risos]”.

“Era muito ruim. Porque você pega, por exemplo, a

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professora (...), de Ciências, que gostava de fazer trabalho e colocar cartazes, essas coisas... a nossa turma não dava, porque quando a gente ia ver, no dia seguinte o trabalho já não ‘tava’ lá: tinham arrancado, ou rasgado...”.

“A gente tinha umas salas marcadas, mas acabava entrando onde dava, porque vira e mexe tinha gente na sala, a aula não tinha acabado (...)”.

(depoimentos de Paula54, ex-aluna da escola de 2002 a

2005)

Não são poucos os casos de ‘dribles’ na relação demanda-oferta,

quando o assunto é educação pública no Brasil: turmas e séries diferentes na

mesma sala, quatro turnos de aula, rodízios, etc. A questão é como essa

verdadeira economia de guerra se incorpora às políticas oficiais, tendo

repercussões significativas no processo de escolarização.

No caso do rodízio, é interessante também como essa ação expõe o

lado burocratizante da relação da prefeitura com a população. A ampliação do

número de alunos num determinado prédio deveria implicar em transformações

físicas do mesmo prédio, não em relação apenas ao número de salas, mas

também em relação aos outros objetos desse sistema, como os banheiros,

refeitório, etc. Isso, sem falar na estrutura num sentido mais amplo, como

número de merendeiras, professores e pessoa de apoio. Mas, não é o que

acontece aqui. Essa situação nos leva a refletir, de forma mais ampliada, sobre

a relação que esfera do Estado estabelece com a própria população: uma

relação de mercado, uma relação de oferta de serviço. Os alunos e seus pais

54 Nome fictício.

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são levados à condição de clientes, de consumidores, dentro de um terreno

que não lhes pertence. Quer dizer, ao conceber os alunos como estatísticas de

fluxos dentro de um sistema, é papel do gestor (diretor), organizá-los de

maneira funcional, desconsiderando o que isso pode vir a trazer para o seu

rendimento ou para a sua relação com a escola. A escola não lhe pertence: ela

é de propriedade da Prefeitura e isso deve ser lembrado o tempo todo.

Enquanto isso, o tempo passa a ser o elemento principal e a ele devem se

orientar as formas e os objetos.

Por isso, talvez, o termo “reprovação” tenha se tornado maldito e passou

a ser substituído por “retenção”. “Reprovação” nos remete ao julgamento,

algum tipo de juízo ou avaliação, enquanto “retenção” nos transporta ao fluxo

obstruído, bloqueado, interrompido.

No caso do rodízio, os obstáculos à fixação são obstáculos também ao

uso, a construção de significados e relações afetivas com o espaço. Restam

aos alunos dessas turmas, as relações construídas em trânsito, as

afetuosidades descoladas do lugar. Pelo menos de um lugar específico,

ofertado às outras turmas: a sala de aula. Quer dizer, todas as turmas têm suas

salas e nelas constroem relações de pertencimento, se habituam aos seus

cantos, enfim, as usam de forma ampla. No ano de 2006, por exemplo, durante

uma semana de culminância de atividades, a decoração das salas ficou por

conta das turmas: duas turmas por sala (dois turnos). Obviamente, a turma de

rodízio ficou deslocada dessa dinâmica, vindo a se inserir em uma sala

qualquer.

A escola, nesse caso, se opõe ao pertencimento, reforça as concepções

de “utilidade” e “finalidade”, no sentido de que as coisas servem mais do que

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elas são. Ela tenta roubar-lhes as subjetividades e possibilidades de

protagonismo, atribuindo-lhes papéis muito bem definidos. Digo que tenta

porque, por mais que se tente impor, não há passividade, mas resistência,

senão re-existência55. Mais do que se opor a uma determinada ação, a tarefa é

a de conseguir definir e estabelecer as suas lógicas de uso em meio ao

movimento institucional de transformação dos sujeitos em objetos.

Os rodízios revelam uma opção do órgão gestor pelo tempo sobre o

espaço. O controle do fluxo sobre as condições materiais de funcionamento.

Isso nos leva a pensar que a escola é a convergência de trajetórias que ali se

transformam em fluxos.

As trajetórias de cada aluno, de cada professor, de cada funcionário e da

escola: suas histórias, seus anseios e seus movimentos. No momento que ali

coincidem e ali se confrontam, se complementam, também geram conflitos,

constroem esse espaço, produzem novas relações. A institucionalidade que

confere a esta forma uma função, contribui para homogeneizar e tentar

transformar essas mesmas trajetórias em fluxos anônimos, a serviço do

funcionamento de um sistema organizado pelo Estado.

Se as trajetórias nos transportam à dimensão do vivido, da experiência,

da construção, do protagonismo e da autoria, os fluxos são homogêneos, ou

tendem a uma homogeneidade como movimento. O fluxo é a produção, no

sentido das relações sociais de produção.

A opção pelos rodízios de turma como estratégia de ação às

necessidades das classes populares escamoteia duas vertentes do sistema: a

55 O jogo de palavras entre ‘resistir’ e ‘re-existir’ não é de todo original. Tomo emprestado de alguns artigos e de uma palestra proferida pelo geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, em 14 de março de 2007, na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, quando se referia a América Latina e os movimentos populares no continente.

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ausência de investimentos e a massificação.

Se o sistema de rodízio é uma diacronia dentro de uma instituição que

destina lugares para atividades específicas e tem nessa estrutura um elemento

primordial ao seu funcionamento, a sua existência nos leva a pensar que se

trata, antes de tudo, de uma mudança importante na dinâmica do espaço: ao

invés dos elementos que na parte interna podemos considerar como fixos

(salas de aula, laboratórios, etc.), são os fluxos56 (grade de horários,

deslocamentos de turmas, etc.) e sobre eles a opção de controle do espaço. É

na gestão a partir dos movimentos internos que a escola funciona. As portas

são mais importantes do que as paredes, pois elas controlam as passagens, os

caminhos e as andanças dos alunos e de todos. Ter controle sobre os fluxos

significa ter controle sobre a dinâmica do espaço. Gerenciar os fluxos é o

primeiro passo para fazer funcionar essa escola.

Ainda os fluxos: portas, portões e lugares internos

Os rodízios podem ser considerados nocivos ao rendimento e à

realidade escolar, para uns. Para outros pode significar uma engenharia

interessante quando a questão é ampliar o número de matrículas na rede. Em

ambos os casos, não há como negar que se trata de uma dinâmica no mínimo

estranha, até então, ao cotidiano escolar. Há, contudo, outras situações

rotineiras, mas que exatamente pela aparente normalidade nos revelam

interessantes aspectos do funcionamento da escola.

Uma delas é a que se refere ao portão de acesso ao terreno da escola.

56 SANTOS, Milton. 2004, p. 61-62.

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Na verdade há dois portões: um maior, para a entrada de carros e cargas, e

outro menor, para a entrada das pessoas. O portão, porém, não é apenas um

objeto. Ele não só funciona como também representa a entrada e o bloqueio do

acesso para aqueles indesejados. Sem grandes divagações, uma simples

observação de um dia letivo de portão da escola permite que identifiquemos

diversos momentos de aproximação das pessoas em relação a ele. Há os que

simplesmente chegam e entram ou saem, pois estão no horário de entrada ou

saída, então com o portão aberto.

Há os que chegam fora desses horários, então, se querem entrar,

tentam, insistentemente, falar com alguma pessoa na parte interna do

terreno57. Como a parte entre o portão e a entrada do prédio não é uma parte

de grande circulação por parte de alunos e outras pessoas da escola, muitas

vezes ocorre uma significativa demora na chegada de alguém que possa pegar

a chave a abri-lo, ou simplesmente atender a pessoa. Em função de questões

relativas a diversos fatores como, por exemplo, à segurança, procura-se

manter o portão sempre fechado, exceto nos horários rotineiros de entrada e

saída de turmas.

Exatamente o horário rotineiro, as pessoas que ficam do lado de fora da

escola e o funcionamento da unidade criaram uma situação problemática que,

por sua vez, obrigou a direção a tomar uma medida com base numa reflexão

sobre o tempo e o espaço. Havia reclamações sucessivas de professores e

preocupação da direção com os jovens que ficavam do lado de fora da escola

com o objetivo de se encontrar com os alunos. Alguns desses eram ex-alunos,

que foram convidados a se retirar, ou então que abandonaram a escola. É fato 57 Existe uma janelinha no meio do portão de ferro, mas ela pode estar fechada. Isso, porém, não impede que se trave contato com pessoas no interior, uma vez que há brechas pelo portão que permitem que se possa observar parte da área interna.

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que uma boa dose da preocupação passava por uma questão de preconceito58,

mas também não podemos deixar de mencionar que alguns dos que

participavam desses encontros estavam realmente na época ligados à

criminalidade. A solução encontrada pela direção para se livrar do evento

indesejado sem entrar em conflito foi tão simples quanto inteligente.

Percebendo que os jovens de fora da escola ficavam ali para se

encontrar com determinados alunos mais velhos, a direção inverteu os turnos.

Até então, as turmas de alunos mais novos ficavam no turno da manhã,

enquanto as turmas de alunos mais velhos freqüentavam o turno da tarde59.

Era nesse turno (principalmente no horário da saída) que se acumulavam nas

proximidades do portão os jovens indesejados. Ao trocar as turmas de turno,

colocando os mais velhos para chegar cedo, a direção mexeu com a rotina dos

jovens. Ora, se não estão na escola e não trabalham, não há motivo para

acordar cedo, então eles não se aglomeram na calçada e no portão. Ao mesmo

tempo, como seus colegas não estão no turno da tarde, não há motivo,

também, para ir até a escola. A medida surtiu efeito. A entrada da manhã e a

saída da tarde passaram a ser mais tranqüilas para a ordem da escola.

Há outras práticas espaciais relacionadas às funções de certos lugares

internos, que compõem a unidade escolar. O refeitório, por exemplo, é um

importante ‘pedaço’ da escola. Sua função inicial (lugar da alimentação dos

58 Vale lembrar que a juventude muitas vezes transita entre a potencialidade e a periculosidade, em termos de imagem. Fica bem evidente a dicotomia que se estabelece aqui entre os que estão em processo de escolarização (alunos) e aqueles para quem o conflito com o mesmo processo representou a exclusão do sistema (ex-alunos). Ver Cecília Coimbra e Maria Lívia do Nascimento, “Jovens Pobres: O Mito da Periculosidade”, in FRAGA, P.C.P., & IULIANELLI, J.A.S. (Organizadores). Jovens em Tempo Real, DP & A, 2003. 59 Há uma tradição em se agrupar alunos mais novos, de comportamento mais condizente com certo padrão de escola, com melhor rendimento acadêmico, etc., em turmas específicas. O mesmo acontece com alunos repetentes, os que pararam de estudar, os identificados como portadores de’ problemas’ (nem sempre clinicamente diagnosticados) e mais estranhos ao padrão escolar, em outras turmas. O próprio programa da SME utilizado para compor as turmas (Sistema Acadêmico) tem como critério de separação as idades.

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alunos) depende de uma dose de organização para que se cumpra com

eficiência. O número de alunos, o tempo de merenda, os seus equipamentos, a

equipe de trabalho, enfim, são alguns dos elementos que fazem parte da sua

existência e influenciam diretamente a qualidade do seu funcionamento.

O horário da manhã conta com um recreio de 20 minutos, de 09:40h até

10:00h, enquanto à tarde vai de 14:40 até 15:00h. Durante esse período é

servido o almoço. Quer dizer, o almoço, hoje, é dividido por turno, mas

anteriormente (até 2004) havia recreio com lanche, o que permitia que o

almoço fosse servido em conjunto para os dois turnos. Vale ressaltar que o

número de crianças que almoçam na escola aumentou60, o que levou a um

aumento também do fornecimento de comida para o almoço por parte da

Prefeitura. A procura maior, segundo uma merendeira, é na parte da manhã.

Ao passar essa informação (aumento da procura, mesmo com o horário pouco

usual para o almoço) para uma antiga diretora, sua conclusão foi imediata:

“Meu deus! Estão mais pobres.”

(Selma, ex-diretora)

A conclusão por si só mereceria uma investigação mais apurada das

condições de vida dos alunos ao longo desse tempo61, mas a lógica que levou

a ex-diretora a tal exclamação foi simples: Quando o almoço era servido no

60 Fiquei surpreso, ouvir de uma merendeira, a informação de que, apesar do horário ser bem mais cedo do que o habitual para o almoço, depois da mudança de horários o número almoços servidos aumentou. 61 Não é esse o objetivo deste trabalho. Tal investigação quantitativa e qualitativa fugiria aos objetivos iniciais dessa pesquisa, razão pela qual não me debrucei nesse levantamento.

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horário intermediário dos turnos, coincidia com o horário de almoço comum de

todas as casas. Ficavam na escola para almoçar, portanto: aqueles que

entravam no turno da tarde e por algum motivo chegavam mais cedo (faziam

algum curso pela manhã, demoravam mais na condução, etc.); os que saíam

dali para alguma atividade externa na parte da tarde e não tinham tempo de

almoçar em casa; os que ficavam na escola para oficinas na parte da tarde; os

que preferiam, por algum motivo qualquer, almoçar na escola62; finalmente,

aqueles para os quais essa era a única possibilidade de se alimentar. A

maioria, no caso dessa escola, saía do turno da manhã direto para almoçar em

casa. Os da tarde chegavam perto do horário de entrada, depois da hora do

almoço. Quando nos deparamos com a informação do aumento do número de

almoços servidos num horário anterior às 10 horas da manhã, temos realmente

que nos perguntar sobre as possibilidades desses jovens se alimentarem

diariamente, seja no café da manhã, no almoço ou em ambos.

O refeitório (destinado à merenda e ao almoço) possui 12 mesas, com

quatro cadeiras cada, o que dá um total de 48 alunos por vez. Assim como o

rodízio de turma, também é feito um ‘rodízio’ de cadeiras e pratos. São 200

pratos plásticos e colheres correspondentes63, que os alunos, em fila, pegam e

levam para as mesas. A fila estaciona quando o refeitório está completo, pois a

pessoa que controla a porta de entrada impede a passagem64 dos outros

alunos.

Ao longo dos 20 minutos de recreio os alunos devem descer para o

pátio, entrar no refeitório, pegar o prato já preparado pelas merendeiras, comer

62 Gostavam da comida, gostavam de ficar na escola, ficavam para alguma pesquisa em grupo, tinham que preparar sua comida em casa, etc. 63 Existem (poucas) escolas que disponibilizam garfos, mas nesta só há colheres. 64 Pode ser a própria diretora, um funcionário da secretaria, uma merendeira, um funcionário da limpeza, ou mesmo o chamado ‘agente educador’ (função correspondente a do antigo ‘inspetor de disciplina’).

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e sair. Seria simples, não fosse o fato de haver uma fila esperando que um se

levante para outro poder entrar. Nesse sistema fast food a inadequação do

espaço é solucionada pelo controle rigoroso do tempo: come-se rápido para

que todos comam.

Como a fila é numerosa, o tempo de espera não é tão pequeno e ela se

forma exatamente no pátio onde todos os alunos descem para o recreio, não

são raros os “incidentes”. Brigas e brincadeiras diversas (algumas mais

enérgicas) são comuns na dinâmica da fila do refeitório. O que para a direção é

sinal de indisciplina, pode ser considerado indisciplina mesmo, uma vez que as

condições de disciplinamento oferecidas pela instituição são extremamente

frágeis. Assim, no jogo das relações que constroem esse espaço, a fila acaba

se transformando numa peça mais integrada ao movimento do pátio do que do

refeitório.

A prática do refeitório no horário da refeição é massificadora e

massificada. Transcorre numa corrente temporal restritiva, pouco dá chance de

movimentos. Não quer dizer que tudo aconteça em tensa paz nesse lugar. Pelo

contrário, ‘guerras’ com cascas de frutas ou macarrão fazem parte da história

do refeitório, mas uma vez dentro dele, as possibilidades de retaliação, de

punição, são maiores. Ao mesmo tempo, determinados movimentos permitidos

no pátio não são nem de perto tolerados no refeitório. Talvez por esse motivo

as repercussões das indisciplinas ocorridas dentro dele sejam ampliadas em

relação ao que acontece em outros pedaços65 da escola.

65 Chamo de pedaços os lugares internos, certas áreas com funcionalidades definidas e demarcadas territorialmente dentro da escola. Porém, como são demarcações dentro de um espaço (a escola), estão sempre em construção, o que nos permite pensar que mesmo os seus usos se encontram em constante definição e redefinição. Neles os alunos transitam, estacionam, praticam e deixam marcas. O refeitório, o corredor, a quadra, são exemplos de pedaços da escola. Eles foram confeccionados com finalidades específicas para atender ao conjunto da escola, porém, o cotidiano e as suas relações insistem em

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Fora do horário do recreio, porém, o refeitório se transforma em sala de

estudos, sala de pesquisa, de confecção de trabalhos, de conversas, etc.

Como os responsáveis pelo funcionamento da escola estão agora mais

preocupados com as salas de aula e o corredor, enfim, com o andar superior, o

refeitório fica praticamente livre para ser usado, apropriado pelos alunos. Os

que estão em tempo vago (seja por falta de algum professor ou qualquer outra

razão), os que por algum motivo não estão na quadra durante a aula de

Educação Física, os que solicitam ao professor para ir ao banheiro, enfim,

vários alunos que estão fora do rigor do horário da grade de disciplinas acabam

por utilizar o refeitório e suas mesas de diversas maneiras, redefinindo e

ampliando o seu uso. Essa redefinição não exclui a função inicialmente

atribuída a ele, mas negocia o seu tempo.

A dinâmica da construção de sentidos e de usos que se processa em

relação ao refeitório revela o embate cotidiano de forças que se estabelece no

espaço institucional. Nas práticas cotidianas, na dimensão do vivido as

negociações, as imposições e resistências acontecem, ainda que de forma

sutil, revelando também certas desconexões entre as ações institucionais e as

classes populares. Desconexões, por exemplo, entre demanda e oferta de

serviços, entre qualidade da assistência e possibilidade de ação.

O refeitório é um dos pedaços dessa escola, que conta também com

outros, como o corredor, no andar superior, e o pátio, no térreo. Neles, as

dinâmicas ultrapassam, ainda que dentro de certos limites, as barreiras do

funcionamento institucional, ao mesmo tempo em que expõem as fragilidades

dessas próprias ações institucionais66.

construir novos usos diariamente. 66 Ao falar sobre ‘fragilidade da ação da instituição’, não quero dizer necessariamente que a instituição é

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Os objetos – alguns objetos

Além do refeitório, no andar térreo também se encontram os banheiros

de uso dos alunos. Apesar de existirem dois no andar superior, onde ficam as

salas de aula das turmas regulares, eles são pequenos e não se encontram

disponíveis para que os alunos os utilizem. No térreo, então, são dois – um ao

lado do outro, comunicando-se com o mesmo pátio coberto onde estão

também o refeitório, o auditório, bebedouros e a sala de informática. Os

banheiros foram reformados há cinco anos e se encontram em estado físico

razoável. São mantidos limpos pelo pessoal responsável67, mas as tábuas dos

vasos sanitários praticamente inexistem (tanto no banheiro feminino quanto no

masculino). Os dois banheiros contam com quatro vasos sanitários (sendo que

no masculino um está interditado), e três pias. No banheiro masculino há

também três mictórios. Não há sabonete ou sabão e nem mesmo um recipiente

específico para isso. Inverso ao que pregam as aulas com relação aos hábitos

de higiene, a limpeza das mãos após a utilização do banheiro é feita somente

com água. Também não existe nada para enxugar as mãos e o papel higiênico

deve ser pedido ao pessoal da limpeza ou direção. Segundo a direção, essa

medida pode não ser a melhor, mas teve que ser tomada. O argumento é que:

frágil, mas chamo a atenção para o fato de que a “escola-instituição” é também a “escola-esfera do Estado”. Com isso, devemos levar em conta que as suas ações são definidas por essa outra instituição, que por sua vez é a gestora e de onde partem as políticas definidoras da sua relação com as populações assistidas. 67 Atualmente a conservação das escolas da rede pública municipal do Rio de Janeiro é feita pela Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), órgão da prefeitura responsável pela limpeza da cidade. Inicialmente as escolas contavam com funcionários próprios, ao longo da década de 1990, estes foram sendo substituídos por trabalhadores de empresas terceirizadas. Em 2002/2003 a Comlurb passou a fazer a manutenção das escolas.

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“os papéis não ficam nos banheiros para que os alunos não joguem ou brinquem com eles, pois molham e jogam no teto, entopem os vasos, etc.”

(Declaração de Célia68, diretora adjunta)

Ela disse ainda que tentou, certa vez, deixar os papéis nos banheiros e

que para isso foi até as salas e explicou o que pretendia. Porém, o problema

continuou e como solução voltou a manter sob seu controle os rolos de papel

higiênico e passar para os alunos quando eles os pedem. De forma muito sutil,

aqui a preocupação da direção com a gestão parece se misturar, ou mesmo

ofuscar o papel educativo da ação. Preservar o prédio escolar, os recursos

materiais existentes e garantir o funcionamento da escola deveriam ser, com

razão, algumas das incumbências das direções. Contudo, parecem estacionar

aí as suas funções e ações: administrar os recursos, prestar contas e se

desdobrar em tarefas que permitam o funcionamento, principalmente

burocrático e administrativo da escola

Por um lado, essa situação rotineira, administrada da maneira como

descrita, nos mostra um lado no mínimo impessoal da relação da escola com

os alunos. Por outro, dá indícios interessante das orientações e rumos da

direção, ou das direções da rede.

“Você é o gestor. (...) Não dirige mais. Você é o responsável pela parte administrativa (...)”

(Selma ex-diretora)

68 Nome fictício

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Essa mudança conceitual69 é significativa para o cotidiano da escola,

pois transforma o cargo em algo eminentemente técnico e o mesmo passa a

ser esperado do funcionamento da escola. Ou seja, para um ambiente onde

algumas centenas de pessoas convivem, se relacionam, interagem, etc., as

soluções dos seus problemas do dia a dia devem passar por respostas

objetivas e técnicas. A questão do papel higiênico, por exemplo, parece que

pouco tem de pedagógica ou educativa, ainda que seja numa escola. O

objetivo é solucionar o problema do papel e do banheiro, por mais que haja

alunos envolvidos nessa situação. A solução encontrada foi tão simples quanto

simplista, mas deve ser considerada dentro de um contexto que praticamente

empurra a direção da escola para esse caminho. Talvez possamos

compreender um pouco o que representa a direção da escola hoje, tanto para a

Secretaria (e CRE’s) quanto para a comunidade escolar, compreendendo

algumas transformações pelas quais passou esta unidade.

Ao ser indagada sobre diferenças importantes entre o funcionamento da

escola com primeiro diretor e durante o seu período na direção (anos 1990), a

ex-diretora respondeu:

“[Na época do primeiro diretor] Tinha diretor, diretor adjunto, secretário, coordenador de turno, coordenador de área [do conhecimento] (que tinha menos tempos em sala para ser coordenador), inspetor, orientador pedagógico...”

(Selma ex-diretora)

69 O Dicionário Aurélio Século XXI (versão 3.0), por exemplo, chega a definir o diretor como “guia, mentor”, enquanto gestor aparece como “gerente, administrador”. Isso, definindo gerente como aquele “que ou quem gere ou administra negócios, bens ou serviços”.

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“[Sobre o período em que atuou como diretora] Não tinha agente administrativo. Éramos eu e a adjunta e a gente tinha que fazer prestação de contas, tinha que fazer quadro de horário e ainda tinha que fazer inventário."

(idem)

Saltam aos olhos as diferenças de estrutura nesse breve relato, mas o

que está em jogo, também, são as orientações, a mudança de papel do cargo.

A preocupação da ex-diretora era, primeiro, com a prestação de contas. De

fato, desde o início dos anos 1990, sob a idéia de descentralização e calcada

na busca da qualidade administrativa70, as escolas da rede passaram a receber

verba diretamente de fundos destinados à educação71. Pode parecer, com isso,

que as unidades escolares passaram a gozar de maior autonomia. Mas, na

realidade isso é, no mínimo, questionável.

“Deu autonomia financeira, mas não tem autonomia... você é chamado de gerente, você é o gestor..." “Eu acho que não... é impressionante, né? A gente tem o dinheiro, mas não tem mais autonomia... porque hoje cobram mais. E eu acho que essa questão de dinheiro ficou muito pior, porque é assim: (...) você recebe (...) e tem (...) prazo muito curto pra comprar e tem limitações - não pode comprar isso não pode comprar aquilo (...)" “[Em época de prestação de contas] é uma coisa de louco!” “Ainda tem essa história da gerência, (...) que é: os bens; você todo final do ano contar o que tem – contar cadeira, contar computador, contar isso, contar aquilo... aí fica complicado."

70 SILVA, Maria E. P., 2000. 71 Ex: PDDE e Fundo Rotativo.

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“A gente não é contador72!"

(Selma)

Se nas atribuições em relação à escola a direção passou a exercer o

papel de administração pura e simples, nas suas relações com as

coordenadorias parece que as expectativas também acompanharam o

processo. Sobre o que parece ser o papel do diretor para as CRE’s, a mesma

ex-diretora declara:

“Passador de recados. (risos)" Depois, séria: "Cumpridor de ordens.”

Gradativamente essa mudança parece ter sido sentida pela comunidade

escolar, refletindo em novas relações nesse espaço, em novas práticas

espaciais e construção de novos sentidos. Perguntada sobre as principais

diferenças entre o primeiro (1992) e o último ano como diretora (2003),

respondeu:

“A comunidade respeitava mais... via a escola com outros olhos."

72 Nesse caso ela se referiu ao profissional da contabilidade, pois identifica que uma grande parte das atribuições atuais das direções se resume ao campo da Contabilidade, o que reforça sua sensação de exercer uma gerência, mais do que uma direção de escola.

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Depois, sobre os motivos da mudança em doze anos e se ela identifica o

que conduziu tal mudança:

“Isso começou quando a gente começou a perder poder junto à CRE... quando entrou conselho tutelar... a gente dava uma ordem e era descumprida.” “Quando eu comecei a não poder barrar aluno (...) em qualquer situação.”

De acordo com ela no início dos anos 90, quando entrou para a direção,

havia sido criado um lema para a escola. Era o “resgata escola73”, pois os pais

queriam:

“Quando eu entrei, o lema era 'resgata escola'. Eles [os pais] queriam uniforme certo, horário certo... queriam a escola dos tempos do Inácio74".

É claro que “os tempos do Inácio” devem ser contextualizados, assim

como as diferenças entre o início e o final da direção de Selma também devem

ser vistas no bojo das transformações da sociedade, da estrutura política e

econômica do Brasil e do Rio de Janeiro. Mas, também não podemos atribuir à

instituição uma passividade diante das estruturas dos processos históricos,

econômicos e sociais, como se fosse uma resultante simples de um somatório

de vetores. A idéia do ‘resgate da escola’ como desejo dos pais e alunos passa 73 Nome verdadeiro da escola é aqui omitido. 74 Nome fictício para o primeiro diretor da escola, que esteve no cargo de 1963 a 1988.

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pela percepção da perda da sua institucionalidade e mesmo da legitimidade.

Mais ainda, parte de uma referência viva na memória; daí a idéia de ‘resgate’,

como se algo tivesse sido ‘perdido’. Colocando isso cronologicamente, o

projeto de ‘resgate’ apareceu no início da década de 90 e a diretora lamentou a

perda do respeito da escola pela comunidade na década seguinte. São dois

momentos recortados num processo que veio numa torrente desde antes da

entrada da diretora (Selma), e desembocou na perda de valor (que ela

identifica como perda de respeito).

O que a comunidade queria nada mais era do que o funcionamento

dentro daquilo que ela entende como institucional, agregando valores que ela

identifica como institucionais. A sonegação desses valores por parte do Estado,

a retirada de determinadas práticas de maneira unilateral, acaba recaindo

sobre a própria imagem da instituição e por conseqüência, das unidades. Aliás,

como utilizamos a noção de espaço como construção e encontro, mais do que

nunca são as particularidades das unidades, nas suas relações com a

comunidade e nas produções internas, que permanecem como resistência75.

As possibilidades, portanto, parecem ser determinadas pelas especificidades

locais e dos sujeitos que ali se encontram. Mas, são condicionadas pela

intensidade das políticas e práticas oficiais, pois constituem um sistema

hegemônico de ações e objetos nesse espaço.

Além do que a questão anterior suscitou, outros dois fatos chamam a

atenção com relação ao banheiro: o posicionamento na organização

arquitetônica (e funcionamento atual da escola) e a ausência de chuveiro.

Como ficam no andar térreo e as aulas acontecem no andar superior, o

75 Novamente podemos pensar também em re-existência, como possibilidade de existir em meio às forças hegemônicas.

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acesso aos banheiros é dificultado fora do horário de recreio, pois atrapalha o

andamento das aulas. Fora do recreio, o aluno demora um tempo razoável até

descer, utilizar o banheiro e subir. Nem é preciso dizer que ir ao banheiro é

também um evento, uma vez que o tempo de deslocamento torna-se um

excelente álibi para fugir das aulas, encontrar colegas, observar as outras

salas, etc. Além do tempo, ao sair do andar superior o aluno entra numa

espécie de campo de instabilidade do sistema de controle, pois sai do setor

possível de ser observado pelos professores (andar superior) para o setor de

observação da coordenação (térreo). Essa transição esbarra tanto na

inexistência de comunicação direta entre professores e coordenação quanto

nos diferentes ritmos de trabalho de ambos: professores em sala e

coordenação/direção em atividades administrativas. Ou seja, encontram aí um

ponto frágil do sistema de controle interno dos fluxos. Exatamente por isso a

direção freqüentemente pede para que professores não deixem os alunos irem

ao banheiro ou ao bebedouro em horário de aula.

Percebendo essa zona de vulnerabilidade da vigilância, alguns alunos

tentam faze uso dela sempre que possível. Os dribles são os mais diversos,

mas giram sempre em torno do “jogo do subserviente”. Por exemplo, quando

um aluno pede para ir ao banheiro e o professor permite, então ele desce e vai

para outro lugar. Demora um pouco, passa na direção e diz que o professor

pediu para pegar giz, ou qualquer outra coisa. Ao voltar para a sala, mesmo

com a demora, o argumento é que estava falando com a diretora ou

coordenadora. Usa o giz, então, como álibi de que estava realmente no setor

da secretaria e direção. Ao ser abordado pela diretora ou coordenadora,

quando demora muito para subir para as salas e fica no pátio, seja depois da

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hora do recreio ou no trânsito entre uma aula de Educação Física (quadra) e as

outras aulas, diz que o professor deixou ir ao banheiro e que aproveitou para

‘falar rapidinho’ com alguém. É claro que as pessoas não são ‘enganadas’ com

a facilidade com que descrevo, mas o sistema permite que haja esse certo

desgaste, o que faz com que a direção, de vez em quando, reitere o pedido de

não deixar os alunos saírem para ir ao banheiro durante o horário de aula. Na

impossibilidade de uma vigilância eficiente e na necessidade de exercer a

função de gestão, medidas proibitivas e cerceamentos vão fazendo parte cada

vez mais do cotidiano da escola. Não que jamais tenham feito parte, mas agora

tendem a ser os alicerces do funcionamento (burocrático) da unidade escolar.

Aluno fora de sala, num sistema que gradativamente parece se resumir

a função de controle, mas que não disponibiliza objetos nem possibilita ações

suficientes para isso, se transforma num transtorno ao funcionamento ‘normal’

da escola. Isso porque aparentemente as salas se tornaram uma espécie de

micro-espaços de contenção, dentro de um sistema com funcionamento que

aparenta se fragilizar na estrutura.

Talvez por esse motivo, no início do ano letivo de 2005, a diretora tenha

dito, durante reunião com os professores:

“O maior favor que vocês podem nos fazer [à direção] é manter os alunos em sala."

(Lara76, diretora da escola)

A chegada do agente educador77, no segundo semestre de 2006, trouxe

76 Nome fictício.

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maior possibilidade de controle sobre esse fluxo indesejado, mas este

funcionário muitas vezes está ocupado em outras tarefas78 que não a de vigiar

o corredor ou o pátio. Ainda assim, sua presença representou uma melhora

sensível na dinâmica da escola, pois passou a ser um elemento importante nos

lugares que eram verdadeiros ‘pontos cegos’ aos poderes e ações da direção

ou dos professores, como, por exemplo, o corredor do andar das salas

Se a disposição do banheiro dentro do arranjo de lugares da escola

chama a atenção quando analisado na dinâmica de funcionamento da escola,

outro fato ligado ao banheiro também traz algumas interrogações: o chuveiro,

ou melhor, sua inexistência. Isso nos traz uma pergunta imediata: e após as

aulas de Educação Física? Vale lembrar que as aulas de Educação Física

acontecem, na grande maioria das vezes, na quadra – ou seja, numa área

externa, fora do prédio onde ficam as salas das outras aulas. Como o tempo

entre as aulas de Educação Física e as das outras disciplinas é o mesmo que

entre qualquer outra, o deslocamento das turmas entre elas ‘invade’ o horário

de uma ou outra aula. Há, nesse caso, uma tolerância por parte dos

professores com relação ao horário de entrada e saída das aulas de Educação

Física. Ou seja, alguns encerram a aula mais cedo, liberado os alunos para a

quadra uns 5 minutos antes do final do seu tempo, ou então permitem que os

alunos cheguem uns minutos depois do início da aula (quando há Educação

Física no horário anterior), ou a própria aula de Educação Física fica reduzida

em alguns minutos, seja no início ou no final (ou em ambos).

Em qualquer uma das situações descritas, a informalidade dá o tom. O

movimento, o deslocamento no espaço não faz parte do planejamento. A

77 Cargo com função semelhante a dos inspetores de disciplina. 78 Carimbar e distribuir cadernetas, abrir e fechar portões, etc.

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organização baseada no tempo não conta com o espaço, que aqui é físico –

ele é real e agora se apresenta como problema. Assim como o relógio

materializa o tempo no espaço, aqui o deslocamento é a materialização do

fluxo na superfície. É nesses momentos que o pensar a escola e a sua

dinâmica, sem levar em conta uma reflexão espacial sobre a ela, encontra

limitações. Na verdade, não chegam a ser exatamente limitações, mas

encontram eventos e impasses que obrigam a redirecionar as análises para

uma perspectiva espacial.

Quer dizer, mesmo com a ordem na escola se restabelecendo mediante

a adaptação feita pelos professores em caráter informal79 e tudo voltando a sua

normalidade, algumas conclusões podem ser tiradas. Primeiro, na articulação

de escalas. Se os horários são matematicamente montados, seja por meio de

programas para isso80 ou não, eles são re-interpretados e reconstruídos nas

práticas cotidianas, ainda que o sistema imponha limites de ação. A rigidez da

imposição da estrutura oficial, por sua vez, não é absoluta, pois só consegue

fluidez no seu funcionamento na medida em que essas relações cotidianas a

reconstroem. Algumas vezes, porém, as mesmas relações cotidianas que

reconstroem e redefinem as ações, também estão impregnadas daquilo que as

limitam. Provavelmente foi esse o sinal dado pelos alunos quando, ao levantar

plataforma de propostas de uma determinada chapa na eleição do grêmio

estudantil, pleiteavam a possibilidade de sair de bermuda da escola, sempre

que o último tempo fosse de Educação Física. A direção optou pela

imutabilidade do uniforme – os alunos continuaram a sair com a calça vestida

79 Mesmo quando essas adaptações vêm por parte de um pedido ou mesmo em reunião com a direção, continuo classificando como informal ou, no mínimo, não oficial. 80 A SME utiliza nas escolas o programa ‘Urânia’, que constrói o horário mediante disponibilidade dos professores, carga horária das disciplinas, etc.

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por cima da bermuda, retirando-a ao ultrapassar o portão.

Em segundo lugar, temos que voltar a questão do tempo como eixo

orientador das práticas, ou melhor, das teorizações e planejamentos sobre as

práticas espaciais. O horário é o grande organizador da escola. Dos lugares da

escola espera-se que atendam às normas temporais estabelecidas

previamente. Acontece que, quando há troca de horário os professores se

deslocam e os alunos e as turmas devem permanecer nas suas salas. Quando

os alunos vão para o corredor, isso constitui uma situação de certa indisciplina,

permitidas até certo ponto e no corredor, até quando as aulas se reiniciam.

Como se estivessem, neste momento, numa certa ‘margem de tolerância’. Mas,

quando uma turma inteira se desloca para a quadra e dela retorna, cobrindo

um trajeto maior que a área do corredor, passando por pedaços diferentes da

escola, há um peso diferenciado nesse evento. O mais interessante é que isso

não foi considerado na organização da escola, senão não haveria

informalidade nem improviso na sua condução.

Ocorre então uma revalorização do espaço em relação ao tempo, ainda

que esta se faça mediante a necessidade de reorganizar e readequar a ordem

das coisas a uma ordem temporal. O cumprimento do horário necessita de uma

prática espacial ou de um controle sobre o espaço que permita isso. Por sua

vez, o controle sobre o espaço, no caso sobre o deslocamento espacial, se faz

no sentido de reafirmar a temporalidade como elemento primordial da

organização da instituição e da unidade. Fica, pois, a idéia de que tempo e

espaço são dimensões ao mesmo tempo contraditórias, complementares e

indissociáveis.

Como a troca da quadra para a sala de aula deve ser feita de maneira

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imediata, torna-se desnecessário o chuveiro. Resumindo: não há tempo para o

banho; como no caso dos sabonetes, após a atividade física não há banho,

logo, não há necessidade de um lugar na escola para isso. Os banheiros são

banheiros simples e não vestiários. Eles são pequenos para uma turma trocar

de roupa após atividades como as aulas de Educação Física.

Parece que encontramos aqui uma contradição, se pensamos em

termos da educação, atividade física e higiene. O papel pedagógico da escola

é colocado em cheque nessas situações. De fato, é mesmo uma incoerência,

quando nos baseamos apenas em pressupostos pedagógicos; porém, faz parte

da mesma lógica que reduz as possibilidades de uso do espaço da escola

pelos alunos, tutelando e vigiando seus movimentos, gerenciando seus fluxos.

O sinal que é dado parece claro: a sobreposição do tempo sobre o espaço

como estratégia para organizar o sistema é parte de um processo que

transforma a aula em elemento burocrático-administrativo, pois as funções da

escola talvez já não sejam atreladas apenas ao seu papel no campo da

Educação81.

Sobreposição de escolas e a questão da forma

Durante o dia essa escola funciona como duas. À noite ela se transforma

numa terceira. Melhor explicando, durante o dia funciona a escola regular da

rede municipal e um programa, também da SME, denominado “Pólo de

Educação Pelo Trabalho”. Segundo definição da própria secretaria:

81 ALGEBEILE, 2004.

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“Os Pólos de Educação pelo Trabalho são Unidades Educacionais, supervisionadas pelo Programa de Extensão Educacional, que atendem prioritariamente alunos matriculados na Rede, oferecendo oficinas tendo o Trabalho como princípio educativo”.

<www.rio.rj.gov.br/sme>

Em termos funcionais, ele opera com oficinas diversas. No caso, o Pólo

dessa escola oferece algumas oficinas, como as de “Fotografia e Vídeo” e

“Educação Para o Lar”. São poucos os alunos do projeto, comparados ao

contingente da escola regular, mas alguns são alunos também da escola. Não

me preocupo aqui em detalhar o funcionamento do Pólo, mas reconhecê-lo

como uma unidade paralela que convive sobreposta ao mesmo espaço da

escola de núcleo comum da rede. As implicações desse fato são interessantes

e conferem a este espaço uma configuração diferenciada.

Por um lado, contar com um programa de oficinas significa uma

ampliação das possibilidades pedagógicas e da diversificação do trabalho.

Porém, essa convivência cria situações peculiares, pois as condições de

trabalho são diferentes em pontos simples, mas de significado importante,

como o número de alunos por sala, as expectativas com relação ao trabalho,

os horários e relação com a SME. Outro elemento relevante é a circulação de

alunos, como já foi mencionado anteriormente. Como os horários das duas

unidades não são necessariamente o mesmo (ainda que ambas as direções

caminhem no sentido de reduzir ao máximo os conflitos nesse sentido), mas o

acesso de entrada é comum, o controle sobre o portão, por exemplo, é motivo

de desconforto – principalmente por parte da direção da escola regular, pois

sobre ela recai a maior responsabilidade sobre o funcionamento deste espaço

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físico.

O convívio, portanto, dos dois sistemas no mesmo espaço torna esta

escola um espaço diferenciado. A construção do seu espaço passa pelos dois

sistemas de ações distintos, por vezes concomitantes, associados a um

sistema de objetos que podemos dividir em dois, mesmo não definidos assim

claramente. Isso porque, por mais que façam parte da mesma unidade física,

funcionem no mesmo prédio e se abriguem sob a mesma forma, eles se

utilizam de maneiras distintas dos mesmos objetos, na maior parte das vezes

se utilizam dos mesmos objetos da mesma maneira, mas em outros momentos

fazem uso de determinados objetos, enquanto o outro não faz. Esse

emaranhado de usos, funções e sistemas, muitas vezes dificulta a

compreensão, ao observador inadvertido, do que é exatamente parte do

espaço do Pólo e o que é parte do espaço da escola regular.

O Pólo e a escola regular por vezes se fundem, apesar de serem duas

situações distintas. Essa fusão ou confusão de compreensão se deve a cinco

motivos: estão no mesmo espaço físico, funcionam no mesmo horário,

atendem aos mesmos alunos, com um corpo de professores que praticamente

não se distingue de imediato e estão sub a tutela da mesma secretaria. O que

os diferencia, portanto, é basicamente a ação, ou melhor, as ações

combinadas sobre o mesmo arranjo de objetos.

Ao final do segundo turno letivo, porém, acontece talvez a grande

transformação da escola. É quando tem início o turno da noite e ela muda até

mesmo de nome82. Muda também a direção e o corpo de professores83, assim

como mudam os alunos, a secretaria gestora, o programa, a esfera de governo,

82 Vale lembrar que o Pólo recebe o mesmo nome da escola regular 83 Há duas professoras que trabalham na rede municipal e estadual, neste mesmo prédio.

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enfim, poderíamos quase dizer que a escola muda de função, mesmo sem

deixar de ser escola. Mais ainda, sem mudar a forma.

Durante o dia, tanto a escola quanto a unidade de extensão são geridas

pela SME, mas na parte da noite a escola fica sob responsabilidade e uso da

Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Funciona ali mesmo o

ensino noturno para alunos do ensino médio.

Essa situação nos remete a uma reflexão e um questionamento com

relação a forma e aos objetos: se, de maneira bastante resumida a escola pode

ser entendida como o lugar destinado processo de escolarização, o que é, o

que representa e o que se espera dessa escolarização num sistema que não

incorpora o espaço físico, a forma mesmo, como elemento constituinte desse

processo?

O edifício de uma escola é construído com o intuito de comportar a

tarefa de escolarizar. Esta, por sua vez, diz respeito, entre outras coisas, aos

processos de transmissão de saberes legitimados e sistematizados, bem como

valores e condutas. Acontece que, mesmo aceitando a explicação simplista

não podemos conceber um sem o outro. Mesmo entendendo que a

escolarização não é um processo que ocorre somente na escola, é nela que

encontra o seu principal campo. Ao mesmo tempo, a escola é um espaço que

só existe como tal pela definição da sua função de escolarização. Ou seja, é

sua função que a faz ser o que é. Assim, mesmo as mudanças na sua forma,

considerada como aparato e estrutura física, remetem imediatamente a sua

função. O que chama a atenção, aqui, é o fato de a forma ser, praticamente,

desconsiderada, quase como se a escola pudesse existir sem ela.

A idéia do prédio de uma escola de horário diurno ser utilizado para o

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noturno não é de todo estranha. O que devemos considerar, porém, é como

isso se processa, pois falamos de dois segmentos bem distintos (Ensino

Fundamental e Ensino Médio Noturno), num mesmo espaço que não foi

pensado inicialmente para tal. Temos que buscar explicações não nas

limitações da escola em si, mas nas estruturas e processos nos quais ele se

insere e dos quais ela é peça importante.

Os “Grupos Escolares” de Belo Horizonte do início do século XX84, por

exemplo, possuíam uma estrutura física e uma organização interna dessa

estrutura que era razão direta da função definida e desenvolvida pelo Governo

de Minas Gerais – direcionado por concepções ideológicas e práticas políticas

do lugar e da época. Voltando no tempo, falamos de uma proposta oficial de

escolarização pensada para a construção do cidadão do Brasil republicano e

industrial. De acordo com FARIA FILHO (1998):

“Os prédios construídos para funcionamento de grupos escolares dispõem das seguintes acomodações: saletas de entrada, onde são colocados vestiários para guardar chapéus e capas das crianças; alpendres largos para facilitar as entradas independentes nas diversas salas; salas de aula bastante espaçosas, iluminadas e bem ventiladas, sendo em número e dimensões calculadas em razão de 40 crianças em cada sala e com ambiente de 5 metros cúbicos para cada menino; um vasto salão para museu; gabinetes para diretoria e professores; dependências para instalação de reservados e, finalmente, galpões para exercícios físicos e trabalhos manuais.”

A descrição acima demonstra que o projeto de educação, ou melhor, o

84 Mais especificamente iniciados em 1908.

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projeto de escolarização estava diretamente relacionado ao projeto

arquitetônico85, de maneira interdependente. Também não podemos

compreender este fato sem ter em mente o período de crise que a República,

como um projeto ainda inacabado, passava na época, sob influência das

estruturas sociais e econômicas herdadas do período monárquico. Daí um

projeto oficial grandioso, com o objetivo de atender principalmente à população

pobre de Belo Horizonte, inserindo-a num universo mais “culto”, mercantil e

urbano.

Do mesmo modo, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, conhecido

hoje como Escola Parque, inaugurado em 1950, foi palco do projeto

educacional de Anísio Teixeira. Ou melhor, ‘palco’ não é a melhor palavra, pois

nos remete à idéia de algo inerte, sobre onde ações se desenvolvem. No caso,

foi o espaço pensado e realizado por Anísio Teixeira enquanto ocupou o cargo

de Secretário Estadual de Educação da Bahia. O ambicioso projeto

educacional tinha como base a concepção de escola em horário integral e

trazia a idéia de uma escola cuidando da alimentação, higiene, socialização e

preparação para o trabalho e cidadania, em contraponto com as desigualdades

encontradas na sociedade brasileira. Para isso, o Centro:

“Contava com quatro escolas-classe, de nível primário, com funcionamento em dois turnos, projetadas para mil alunos cada, e uma escola-parque, com sete pavilhões, destinados às chamadas práticas educativas, freqüentadas pelos alunos em horário diverso ao da escola-classe, de forma que as crianças permanecessem o dia completo em ambiente educativo”.

(MAURÍCIO, 2004)

85 Entendido aqui num sentido bem simplificado, como projeto de elaboração matemática de um espaço físico, sem entrar no mérito da Arquitetura em si, como campo de conhecimento ou disciplina acadêmica.

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Para o projeto arquitetônico foi chamado o renomado pintor e arquiteto

Diógenes Rebouças, além de Hélio Duarte, que tiveram a incumbência de

projetar um espaço que atendesse às ambições de abrigar um grande número

de alunos até 18 anos, realizando atividades diversas. Mostrando a importância

que o projeto educacional atribuía às artes e ao espaço86, dentro deles

encontram-se pinturas murais de artistas como Mário Cravo, Jenner Augusto e

Carybé.

Tomando como base o pensamento de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro

elaborou, no estado do Rio de Janeiro o projeto dos “Centros Integrados de

Educação Pública”, mais conhecidos pela sigla CIEP. Implantados na gestão

do governador Leonel Brizola, a partir de 1985, o desenho das unidades era

assinado por Oscar Niemeyer e tinha o objetivo de abrigar também uma escola

de horário integral. Pela idéia do projeto, denominado Programa Especial de

Educação, os CIEP deveriam atender a três requisitos fundamentais para o

funcionamento do projeto. Destaco duas:

“Espaço para a convivência e as múltiplas atividades sociais durante todo o largo período da escolaridade87, tanto das crianças como para as professoras. O tempo indispensável, que é igual ao da jornada de trabalho dos pais, em que a criança está entregue à escola”.

(RIBEIRO, 1995, pp 22.)

86 Inclusive ao valor simbólico do espaço escolar. 87 Grifo meu.

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Nos três casos fica clara a relação entre a função-concepção88 de escola

e a elaboração da forma; a organização de um determinado espaço, a

construção física de um objeto não se dá ao acaso, ou por uma idealização

estética desconectada de sua orientação funcional. A forma tinha o intuito de

ser potencializadora de atividades escolares e estimuladora da integração das

pessoas envolvidas com o ambiente escolar. Nessa lógica:

“Os prédios dos CIEP’s deveriam situar-se preferencialmente em áreas carentes. (...) Cada escola teria três blocos. No bloco principal, com três andares, estariam as 24 salas de aula, um centro médico, a cozinha e o refeitório, além das áreas de apoio e recreação. No segundo bloco ficaria o ginásio coberto, com quadra esportiva polivalente, arquibancada e vestiários. No terceiro bloco estaria a biblioteca e, sobre ela, a moradia dos alunos residentes”.

(CUNHA, 2001, p. 142)

Mais recentemente, na cidade de São Paulo, o projeto dos Centros

Educacionais Unificados (CEU) foi implantado. Começaram a funcionar em

2003, com gigantescas construções que tinham a intenção de funcionar como

intervenções educacionais em bairros periféricos, tentando contribuir para

reverter as desigualdades naquela capital.

“Como arquitetura escolar pública – e em especial a de áreas periféricas –, o CEU apresenta concepção no mínimo pouco usual. De grande porte (pode receber mais

88 Mais do que uma função atribuída social ou politicamente a um determinado espaço, nesse caso a concepção de educação é algo que ultrapassa a de escola. Ou seja, a função de escolarização é condição da construção das unidades escolares, porém, são as concepções de educação que orientam as diferentes elaborações arquitetônicas dos edifícios.

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de 2400 alunos), o complexo não se intimida em abrir-se para o entorno, ainda que a paisagem, (...) retrate as mazelas de áreas quase sempre esquecias pelo poder público. Estabelece-se, assim, o contraste entre o referencial urbano positivo e a vizinhança empobrecida, que, a partir da presença do equipamento público de qualidade, esboça mudanças para melhor”.

(MELENDEZ, 2003)

Nesse caso a proposta é mais explícita com relação ao papel do Estado,

principalmente no tocante a educação. A forma não se resume a um simples

desenho ou abrigo de movimentos, mas amplia suas funções, assumindo a de

potencializar as propostas pedagógicas dentro da escola e intervir no espaço

da comunidade, tentando integrá-la ao que é considerado como espaço

urbano89.

O projeto arquitetônico dos CEU foi desenvolvido por Alexandre

Delijaicov, André Takiya e Wanderley Ariza, arquitetos da Divisão de Projetos

do Departamento de Edificações da Prefeitura de São Paulo. Isso significa que

faziam parte de uma política maior e não apenas de intervenções destacadas

de uma secretaria.

Quatro momentos distintos da história do país, em quatro estados, foram

brevemente mencionados, a partir das formas arquitetônicas produzidas para

abrigar a função de escolarizar, dentro de determinados preceitos referentes

aos processos sociais dos quais faziam parte. No primeiro, período pós-

monarquia, início do século XX, em Minas Gerais, desenvolveu-se um projeto

educacional oficial com o objetivo de inserir aquela população nas

transformações que esperavam e desejavam os grupos políticos e econômicos 89 Tomo a liberdade de utilizar a denominação “espaço urbano” como o espaço atendido pelos serviços urbanos essenciais, como água, luz, esgoto, calçamento, etc., que muitas vezes servem de referência para se estabelecer dicotomias de espaços dentro da cidade, como ”favela” em oposição à cidade, como se ambas não fizessem parte de um mesmo processo de construção do meio urbano.

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dominantes.

No caso de Anísio Teixeira, anos 1940/50, num Brasil de crescente

urbanização, porém associada a desigualdades econômicas e sociais cada vez

mais ampliadas, vislumbrou-se uma educação democrática e democratizante,

como maneira de abrigar e corrigir esses impasses. Para isso projetou-se a

Escola-Parque. Essa proposta deu origem ao programa dos CIEP’s (terceiro

caso citado), no Rio de Janeiro, em 1985 e 1994, e aos CEU, no município de

São Paulo, em 2003. Nomes de peso assinaram os projetos arquitetônicos,

talvez mostrando a importância dada à forma, dentro das propostas de escola.

Isso não significa, contudo, que todos esses projetos foram bem

sucedidos, nem defendo que as propostas educacionais devem sempre

encampar projetos arquitetônicos de destaque. Utilizo esses quatro exemplos

para fazer um contraponto com a escola da rede municipal do Rio de Janeiro

que cede o seu prédio para a utilização do curso noturno gerido pela secretaria

estadual. O contraste é trazido quase como uma pergunta: o que sugere uma

proposta de educação que minimiza a importância da forma no processo de

escolarização, ao ponto de utilizar como escola espaços físicos que não

necessariamente foram projetados para escolas desse tipo?

Desde a última década do século XX, o ensino noturno oferecido pela

Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro90 tem acontecido não

apenas nos estabelecimentos púbicos estaduais, mas também em edifícios de

escolas particulares e públicas municipais (como é o caso aqui estudado). No

caso dos estabelecimentos públicos municipais, firma-se um acordo entre os

dois governos, onde no termo de cessão são definidas as atribuições e

90 Utilizarei a siga SEE.

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responsabilidades de ambos.

Destaco dois trechos do Termo de Cessão de Uso Nº 147/2004 que

deixam bem claro o caráter precário do acordo firmado entre o Governo do

Estado e a Prefeitura do Rio e Janeiro:

“CLÁUSULA TERCEIRA – É vedado ao ESTADO (SEE): I. Utilizar a sala de Biblioteca e sala de vídeo dos

próprios municipais bem como os respectivos equipamentos; (...)

IV. Utilizar os equipamentos de informática dos

prédios cedidos.”

“O ESTADO (SEE) reconhece que a Cessão de Uso lhe é

concedida em caráter eminentemente precário, podendo

ser cancelada a qualquer tempo e critério exclusivo do

Prefeito, obrigando-se a desocupar os imóveis, tão logo

receba a ordem de desocupação, sem direito a qualquer

indenização, independentemente de interpelação ou

notificação judicial, sob pena de desocupação

compulsória por via administrativa, respeitada a

conclusão do ano letivo correspondente.”

(TERMO DE CESSÃO DE USO Nº147/2004)

Não bastasse a precariedade das condições firmadas nas letras dos

termos de cessão, salta aos olhos a inadequação de um prédio e de um

sistema de objetos que não sofreu praticamente nenhuma alteração para

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abrigar uma escola com as especificidades de um curso noturno. Vale lembrar

que as escolas da rede municipal funcionam com alunos de 5ª a 8ª série do

Ensino Fundamental e um bom número delas conta ainda com o 1º segmento

do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série). Ao abrir a escola para o terceiro turno,

nas especificações do contrato, não são levadas em conta as condições

materiais da escola, nem na estrutura física em si (banheiros, espaço de

circulação, etc.), nem nos equipamentos e objetos (cadeiras, mesas, etc.).

Assim, os alunos do curso noturno ficam em situação de desconforto, pois são

mais velhos e maiores do que a maioria dos alunos das séries dos turnos

anteriores. Mesmo que não se encontrem, ficam os registros: ambiente das

salas é construído ao longo do dia pelos seus ‘habitantes’ diurnos, os alunos

mais novos, que colam cartazes, trabalhos diversos, enfim, deixam marcas do

seu uso nas salas, no corredor, no pátio. Esses vestígios parecem dizer que os

freqüentadores do turno da noite são ‘intrusos’, que eles estão ai em caráter

provisório, ou por meio de algum tipo de permissão. O mesmo a direção do

curso noturno, ocupa um espaço que foi dividido da sala de professores.

Interessante o contraste das duas escolas que coexistem durante o dia,

com a que ocupa o espaço no turno da noite. Pela manhã e à tarde as duas

dividem o indivisível, atuam, exercem, praticam e usam o espaço, enquanto à

noite a escola ocupa, adentra e funciona de forma contraditoriamente marginal.

O espaço como materialização de tempos

Já disse aqui que o deslocamento de alunos, a pequena e rápida

migração entre quadra e sala de aula representa a materialização de um fluxo.

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Aquilo que os números, as grades de horários e os planejamentos não

alcançam, se revela num movimento real e cotidiano. A escola, por ser espaço

é o encontro de histórias, trajetórias, vetores e tempos diversos. É possível

encontrar pistas dos seus encontros, superposições e desencontros em vários

lugares e instantes, mas talvez um dos mais explícitos nesse sentido seja a

sala de informática.

Localizada no térreo, em comunicação direta com o pátio, a sala de

informática já foi sala de multimeios91 (onde havia aula de inglês), sala de

música e sala de aula regular. Nela há 16 computadores, todos com programas

básicos instalados: pelo menos editor de texto, navegador para internet,

programa de apresentação. A escola é uma das 473 que possuem laboratório

de informática, porém, 1296 unidades possuem computador e impressora para

fins administrativos92. Os equipamentos da sala são simples para um

laboratório de informática: um condicionador de ar, um quadro branco, duas

bancadas grandes (onde ficam os computadores), cadeiras acolchoadas, uma

mesa com cadeira, um sistema de alarme93 e um roteador94. Há também uma

impressora, utilizada quase exclusivamente pelo setor administrativo.

Numa análise fria dessa descrição, poderíamos supor que a escola se

encontra razoavelmente informatizada. Contudo, ao somarmos a esses dados

alguns outros e a eles uma simples observação da dinâmica de utilização da

sala de informática, veremos que não basta a presença física de alguns

computadores para concluirmos que a escola está informatizada.

Uma turma é composta de 35 alunos, outra conta com 36, e todo o

91 Algo como uma sala ambiente com uma maior concentração de recursos pedagógicos materiais, como vídeo, livros, etc. 92 Fonte: <www.rio.rj.gov.br/sme> 93 A sala já foi arrombada e levaram os poucos computadores há alguns anos. 94 Equipamento usado para fazer comunicação entre diferentes redes de computadores.

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restante varia entre 38 e 43 alunos. Isso significa que há mais do que o dobro

de alunos do que a sala de informática comporta, em condições reais de

utilização por todos. Mesmo que fiquem dois alunos por computador, ainda

assim “sobram” alunos e falta espaço, porque a área da sala de informática é

menor do que a das salas de aula comuns. A escassez de programas,

associada à lentidão e à precariedade da rede, transformam as aulas na sala

de informática numa caricatura do que elas poderiam ser, se as condições

fossem pelo menos um pouco melhores95.

A estratégia de alguns professores é deixar metade da turma durante a

primeira parte da aula em sala comum, enquanto a outra metade fica na sala

de informática, trocando na metade do tempo de aula. Essa tática nem sempre

funciona com tranqüilidade, pois as salas de aula ficam no andar superior, o

que torna praticamente impossível o controle quando se está mais preocupado

com a sala de informática, situada no andar térreo.

O tempo da informática na escola pública da rede do município do Rio

de Janeiro não é o tempo de hoje na informática. Gera reações diversas, de

acordo com a aproximação ou distância desse tempo. Para os alunos que

transitam pela internet e têm acesso a computadores fora da escola com

freqüência (seja em casa, em lan house ou na casa de alguém próximo), as

aulas na sala de informática valem muito mais pela quebra de rotina do que

pelos computadores em si. Primeiro porque certamente os computadores e a

conexão são bem mais eficientes fora da escola do que ele encontra no

laboratório de informática.

Porém, para outros, considerados “excluídos digitais”, mesmo o

95 São 16 computadores, mas nem sempre é possível contar com todos, em função de problemas técnicos.

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laboratório precário é um laboratório. É uma possibilidade de acesso. Isso não

significa que se trata de ignorância por parte desse grupo, mas do

reconhecimento das limitações da sua condição e da necessidade do uso dos

objetos, inclusive nas condições que se apresentam.

“é bem provável que esses setores da população [os pobres, os lentos] tenham uma enorme lucidez sobre sua situação social (...). Mas clareza de que uma melhoria significativa seja uma ilusão (...) a não ser que se configure uma conjuntura com indicações de possibilidades reais de melhora (...).”

(VALLA, 2004, p.150)

Ou seja, a modernidade tardia que se instala na escola – nas mesmas

condições de todos os outros objetos – pode ser a modernidade ou pode ser o

tardio, quando contextualizamos, relativizamos nos termos dos atores, das

suas inserções e das suas trajetórias:

“Os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles que não têm a possibilidade de exercer plenamente a modernidade, colocam-se mais facilmente com a possibilidade de perceber as situações, ainda que confusamente (...).”

(SANTOS, 2001, p 15)

Neste ponto emerge também a imaterialidade desse espaço, como

“produto das dificuldades e complexidades, dos entrelaçamentos e dos não-

entrelaçamentos de relações, desde o inimaginavelmente cósmico até o

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intimamente pequeno” (MASSEY, 2004, p. 16). São as estruturas políticas e

processos sociais produzindo e orientando uma relativa modernidade ao

encontro de determinados sujeitos e suas trajetórias, construindo e

reconstruindo esse encontro, como novas trajetórias. Ao mesmo tempo, a

materialidade também se revela na obsolescência dos objetos. Estes, por sua

vez, não devem ser vistos de forma isolada, mas como parte integrante de um

sistema, inseridos nas ações que vêm conferindo à escola pública da rede

municipal do Rio de Janeiro uma variação na sua função de escolarização.

Trata-se de uma escolarização para as massas, cada vez mais

desinstitucionalizada, ainda que se processe na escola oficial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

NOVAS TRAJETÓRIAS?

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“Sei que às vezes uso palavras repetidas,

mas quais são as palavras que nunca são ditas?” (Renato Russo)

Novas trajetórias?

A escola é um espaço. Talvez essa frase resuma, de forma categórica, a

intenção deste trabalho: reafirmar a escola como um espaço. Além das suas

especificações físicas, da sua paisagem e de ser um objeto na paisagem, é

algo em construção, um devir, que não se limita aos muros e paredes, por mais

que seu funcionamento pareça estar circunscrito a eles.

Para chegar a fazer essa afirmação, foi necessário um exercício intenso

de destrinchar as idéias de espaço e de escola, articulando-as. Exatamente por

isso o segundo capítulo não foi dividido em dois. Aparentemente poderia haver

um capítulo discutindo as concepções de espaço e outro exercitando a

aplicabilidade de ferramentas analíticas em sobre os dados levantados sobre a

escola. Fazer tal separação, contudo, retirava do trabalho o que entendo que é

a sua autenticidade: não fazer uma teoria do espaço aplicada à escola, mas

analisar a escola numa concepção espacial. Essa ‘não divisão’ foi um risco,

mas necessário, pois caso contrário não estaria reafirmando a dimensão

espacial, mas o espaço como objeto apenas e uma separação entre teoria e

prática.

No documentário intitulado “Espelho da Alma”, o cineasta alemão Wim

Wenders diz que prefere usar óculos, porque há muita imagem e muita

informação nos bombardeando o tempo todo. Os óculos possuem molduras

(“frames”), que enquadram e selecionam o que se vê. É nesse sentido que

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tento propor a investigação e análise sobre a escola. Ao concentrar o olhar

sobre ela numa perspectiva espacial, a atenção pode ser dada a determinados

fenômenos e dinâmicas que nem sempre se revelam quando temos outras

preocupações. Uma análise em bases espaciais necessita de uma reflexão, por

exemplo, que leve em conta as articulações e os conflitos. Isso porque o

espaço é articulação, é produção e é inacabado.

Articulação de escalas e fenômenos. Articulação também de políticas e

vivências, que devem ser analisadas mesmo nas suas interações e

impossibilidades, mas não como elementos absolutos. É a sala de informática,

por exemplo, que se apresenta como uma política que se materializa, mas que

é atravessada pelas possibilidades e impossibilidades reveladas quando esta

se torna parte do cotidiano. Nela o simbolismo, a técnica, as experiências,

enfim, vários elementos entram em contato, se sobrepõem, ou mesmo se

destacam – como só ali podem fazê-los.

Produção que nos remete ao embate de forças, ao conflito, mas que traz

também o fazer. A re-significação pelo uso, a prática coletiva de criar e recriar,

como ações que se processam no espaço. É o refeitório, que do seu papel

definido pela estrutura oficial, se transforma pela ocupação. Vai da estranha

célula, que enclausura ao fornecer a refeição, ao espaço de construção

coletiva, tomado pelas pesquisas em grupo, pelas conversas fora da aula,

pelas comemorações de aniversário.

Inacabado, porque é dinâmico. Abriga os fluxos, mas não de forma

passiva. Encampa as histórias e trajetórias, nelas se redefinido a cada dia. É

inacabado porque é produção e porque é articulação. Os rodízios de turma, ao

retirar a possibilidade de uso desta ou daquela sala, tensiona outras formas de

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apropriação, para além da fixação. Expõe as mazelas de determinadas

políticas, mas também as reinvenções cotidianas.

Pensar a escola nessa perspectiva significa, também, reconhecer as

reflexões como reflexões sobre recortes de uma realidade que já passou.

Significa, com isso, ter a preocupação em capturar os movimentos nos

contextos em que eles se desenvolveram, como construções. Daí a

necessidade de articular escalas e vetores. Isso, não só nas hierarquias da

estrutura do Estado, mas também nas relações com os processos sociais, as

interações culturais.

Com isso, corri o risco de não aprofundar a investigação sobre este ou

aquele fenômeno. Não é o objetivo desta dissertação mergulhar, por exemplo,

na idéia dos rodízios de turmas, vasculhando suas implicações pedagógicas,

suas percepções pelos sujeitos envolvidos ou a validade e justificativa teórica

do poder público para permitir e estimular sua existência. Também não significa

que isso não possa ser feito ou que não tenha importância. O que importava

era investigá-lo e levantar questões sobre o referido rodízio, analisando-o como

uma prática espacial, como estratégia dentro de uma correlação de elementos

que constroem o espaço. O interesse maior foi o de apontar, tentando mostrar

de forma consistente, algumas lógicas existentes na dinâmica da escola.

Lógicas que se revelavam quando partia do princípio de serem práticas

espaciais e que como tal poderiam ser tratadas.

O mesmo raciocínio foi levado à investigação com relação ao refeitório e

os processos que envolvem o seu funcionamento. A re-significação do lugar, a

disputa e os acordos que envolvem o seu uso, o seu papel dentro do arranjo de

sistemas da escola, são questões de ordem espacial, que devem ser

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analisadas no seu conjunto. Tais questões influenciam diretamente, não

apenas o refeitório isoladamente, mas o próprio funcionamento da escola.

Não foram escolhidos assuntos ou pontos da escola ao acaso. A

observação os indicou como caminhos, pois levantou suspeita sobre a

espacialidade da escola que eles poderiam revelar. A conjugação de três

unidades educacionais, três instâncias de escolarização no mesmo bloco de

concreto, por exemplo, é algo que nos remete às ações e funções que esse

espaço abriga, ao mesmo tempo em que problematiza esse espaço nas suas

especificidades, por exemplo, como contato na relação do Estado com a

população pobre. O mesmo acontece quando nos analisamos os objetos e as

condições de uso dos banheiros e da sala de informática nessa perspectiva. A

simples constatação da existência deles talvez não fosse suficiente para isso,

mas ao relacionarmos esses conjuntos como um sistema integrado ao sistema

de ações que se processam na escola, eles ganham outro significado e

importância.

É esse um dos principais objetivos deste trabalho: propor uma análise

dos fenômenos de forma articulada com diferentes escalas (sejam estas

temporais, espaciais ou dos próprios fenômenos). Quer dizer, não ficar

satisfeito com explicações que se iniciem e terminem neles próprios, sem

passar por outros campos.

Uma escola não é um objeto possível de isolar, sem prejuízo para a

consistência das questões que sobre ela possam se construir. Ela extrapola os

seus muros, em vetores que atuam nos dois sentidos, entre o interno e o

externo. São políticas educacionais atreladas a interesses de cunho ideológico

mais amplo, que encontram no cotidiano as aplicabilidades e resistências. Por

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sua vez, é também no âmbito das expectativas e ações da comunidade escolar

e das comunidades onde se inserem as escolas, que surgem pressões e

demandas, outras forças na construção de uma realidade. Essa característica

de certa liminaridade se materializa nas práticas e na construção, que são

eminentemente espaciais. A articulação entre as políticas oficiais e o cotidiano,

portanto, são tornadas fato quando praticadas no espaço.

A análise da escola que serviu de campo de observação, portanto, não

poderia ser feita separada da reflexão sobre o espaço. Ela é integrante e a ele

está associada de forma direta, onde ambos se complementam. As descrições,

os questionamentos e análises, são também teorias que precisavam ser

explicitadas e confrontadas. Mesmo com o risco, a pesquisa tinha a

necessidade de um capítulo onde a descrição fosse também um exercício de

construção teórica, de livre uso de ferramentas analíticas, sem a preocupação

de apontar diretamente quais eram utilizadas nesse ou naquele momento, nem

de mostrar como se aplicam. Um trabalho que se ocupa de investigar sob uma

perspectiva do espaço não é simplesmente um trabalho de aplicação pura e

direta de alguns conceitos e categorias. Estes são importantes e

imprescindíveis, mas este trabalho é, em primeiro lugar, o resultado da

construção de diálogos com o objeto onde a partir daí se construíram os

caminhos investigativos.

Finalmente, partindo do princípio de que a escola é um espaço e, como

tal, é o produto de relações sociais, processos históricos, trajetórias,

experiências e interações culturais, podemos supor que ela também pode nos

mostrar muito de vários desses elementos. Assim, uma segunda intenção

deste trabalho foi também de identificar alguns desses elementos e a forma

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como se manifestam na escola. Quer dizer, a partir do momento que o espaço

é relacional e produção, uma investigação consistente sobre essas mesmas

relações pode nos dizer muito sobre os próprios vetores envolvidos nelas.

A utilização da escola de Ensino Fundamental por uma unidade do

Ensino Médio noturno nos dá importantes indícios da relação entre o Governo

do Estado do Rio de Janeiro e a população por ele assistida, principalmente

quando investigamos as condições (inclusive legais) de funcionamento da

referida escola noturna. O mesmo é possível estender aos rodízios de turma e

da sala de informática, no tocante às políticas da Prefeitura e a população mais

pobre da cidade.

Com certeza esse trabalho não tratou de um tema inédito, nem tive a

pretensão de ser completamente original. A idéia inicial foi a de buscar direções

por onde pensar a escola que pudessem se combinar às que costumamos

seguir. Isso quer dizer que nem o tema nem as categorias apresentadas são

necessariamente novos. Mas a importância de se tratar a escola como um

espaço está em pensá-la como construção e não como um prédio meramente

físico, onde dentro dele se processam fenômenos. Pensar como construção

desnaturaliza a escola, inclusive como concepção, nos forçando a pensar ainda

mais no seu papel.

Por outro lado, essa forma de tratar a escola abre alguns caminhos que

parecem interessantes, como por exemplo, em relação à espacialidade e

territorialidade. Essas questões, contudo, podem ser mais bem destrinchadas

em investigações e reflexões futuras.

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BIBLIOGRAFIA

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